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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

Trechos de SOBRE O POLITICO DE PLATÃO – Cornelius


Castoriadis
[seminário realizado entre os dias 19 de fevereiro e 30 de abril de 1986]

“SEMINÁRIO DE 5 DE MARÇO DE 1986

[...]

3. O terceiro incidente — de longe o mais importante — concerne aos paradigmas

Com efeito, esse incidente está ligado aos outros de modo estreito, tanto ao primeiro como aos outros que se seguem,
de modo particular ao quinto, sobre a medida relativa e absoluta, e sobretudo ao sexto, que se refere ao objeto
verdadeiro do diálogo: a dialética. Então, o que diz esse terceiro incidente? Ele é precedido por uma espécie de
abandono, não muito compreensível e justificado, da definição do político ou do homem régio como pastor. Isso não
funciona, diz o Estrangeiro, é preciso recomeçar. Como recomeçar? É preciso encontrar um paradigma a partir do qual
tentar compreender o político. Tudo isso começa em 277d, em que o Estrangeiro diz:

É difícil mostrar algo importante privando-se dos paradigmas.

Segue-se uma espécie de avalanche de ideias extremamente importantes, muito mais importantes do que o que é dito
no resto do diálogo. Em primeiro lugar, diz o Estrangeiro, é preciso utilizar paradigmas porque cada um de nós corre o
risco, embora em sonho possa saber todas as coisas, de ignorá-las em estado de vigília (o que é, certamente, uma ideia
essencial de Platão, à qual retornarei, mas não se vê por que ela aparece neste lugar). Então o jovem Sócrates não
compreende, e o Estrangeiro faz, se me permitem dizer, um terceiro incidente-di-gressão ao dizer: pois bem, para fazê-
lo compreender o que quero fazer, preciso dar um paradigma do paradigma.

E ele expõe como paradigma do paradigma as crianças e as letras. As crianças podem começar facilmente a sentir, a
compreender os elementos, os stoicheia, as letras, nas sílabas mais curtas. E, a partir disso, as crianças podem exprimir-
se dizendo a verdade. E, depois, quando se trata de sílabas complicadas, as crianças de início se confundem, mas ao
compreender as mais simples podem estabelecer similaridades e uma natureza idêntica das complexões que elas
encontram, os sumplokai, e a partir daí chegar pouco a pouco a reconhecer de modo seguro o mesmo e o outro.
Portanto temos esse aprendizado, por parte das crianças, dos elementos e dos complexos desses elementos, os quais
são relativamente acessíveis de maneira fácil quando são curtos, mas quando se tornam mais longos são muito mais
difíceis. E, dentro disso, é por analogia, por similaridade, que as crianças chegarão a ver a verdade referente às
complexões mais "complicadas" das letras.

Ora, diz o Estrangeiro, eis o que se deve entender por paradigma. Este é um paradigma do paradigma em geral. Isto é,
quando tentamos ver algo, compreender algo, pensar algo mediante um paradigma, visamos um e o mesmo que se
encontra em outro que é desordenado ou que está não conectado. E queremos visar corretamente esse um e o mesmo
e chegamos finalmente, precisamente por meio do paradigma, a visá-lo corretamente e de maneira conjunta
encontrando-o nos dois.

Portanto, o que é pressuposto pela teoria do paradigma é que possuímos a verdade, ou que podemos possuir a verdade
ou, em todo caso, que podemos ter acesso à verdade mais facilmente, quando se trata de certos elementos simples;
mas que encontramos dificuldade diante da totalidade dos objetos complexos. Por conseguinte, devemos retornar à
compreensão do paradigma limitado sobre um objeto relativamente pequeno, como há pouco as letras. E faremos isso
também, diz o Estrangeiro, procurando encontrar um paradigma referente ao político ou ao homem régio. Para depois,

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após esse paradigma, retornar ao político ou ao homem régio. E, sobre isso, sem outra forma de processo e por
expressões que, ao ler o texto, parecem realmente surpreendentes, o Estrangeiro introduz (279a-b) como paradigma a
tecelagem:

O que poderíamos então tomar como paradigma, que estivesse sujeito às mesmas operações que o político e, embora
muito pequeno, bastasse para nos fazer encontrar por comparação o objeto que buscamos? Você quer, Sócrates, por
Zeus, se não temos outra coisa à mão, que tomemos, na falta de algo melhor, a tecelagem? [...] Pois isso talvez nos mos-
tre o caminho rumo à política...

E como se isso tivesse caído do céu, como se tivesse sido tirado ao acaso. E evidentemente o jovem Sócrates aceita:
"Por que não?".

Tem-se aqui esta espécie de imposição completamente arbitrária da tecelagem, sobre a qual não me estenderei agora.
O que nos interessa é que a tecelagem é introduzida aqui, imposta, após o que será preciso encontrar uma participação
comum às mesmas formas, tanto da tecelagem como da ativi-dade do político ou do homem-fégiò\ Talvez na tecelagem
se tenha uma forma relacional, (Uma forma de composição que nos ajudará a encontrar o quèf o político ou o homem
régio.

Mas, no fundo, o que ocorre nesse terceiro incidente é que Platão levanta, sem resolvê-los, dois problemas essenciais
que também podem ser encontrados no resto de sua obra e que são fundamentais para ele:

1) O primeiro, que aliás é o mais pesado, ele o levanta sob a forma de incidente dentro do incidente, de passagem. É a
frase que lia há pouco, dizendo que é difícil mostrar algo importante pois "cada um de nós corre o risco de encontrar-se
como conhecendo tudo em sonho e ignorando tudo em estado de vigília" (277d). Esse é o primeiro problema.

2) Quanto ao segundo, é a partir do que e como os elementos se prestam a complexões; e a partir do que podemos
descobrir complexões análogas, de formas iguais, por meio dos elementos que compõem essas complexões. E, de fato,
esse segundo problema está incluído no primeiro, e por enquanto será sobre o primeiro que insistirei.

É preciso, pois, utilizar os paradigmas para indicar as coisas maiores. E por que é preciso fazer isso? Porque cada um de
nós conhece todas essas coisas como que em sonho mas as ignora em estado de vigília. Essa frase aparece novamente
em 278e, isto é, para avançar é necessário passar do sono para a vigília. Ora sabemos que esta é a teoria fundamental
de Platão. Ela é exposta longamente no Mênon, no Fédon e em outros lugares: cada um de nós conhece — dir-se-á, com
um anacronismo: em potência, virtualmente — e conhece tudo o que pode conhecer. Só não sabemos disso. Essa é a
concepção de Platão: não sabemos, isso dorme em nós. Cada um de nós é como alguém que dorme com esse saber.
Pode-se recordar a expressão análoga de Heráclito — não que Heráclito tenha a mesma ideia, mas, enfim, a expressão
já está nele. Cada um de nós conhece mas não sabe que conhece; e pode-se ajudar cada um de nós a compreender o
que já sabe. E o que faz Sócrates no Mênon: ele toma um jovem escravo analfabeto e, na aparência e na realidade, o faz
demonstrar o maior teorema, o mais misterioso, o mais incompreensível, o mais paradoxal para a época, a saber, o
teorema que estabelece que a relação da hipotenusa com os lados de um triângulo retângu-lo isósceles não é racional,
mas igual à raiz quadrada dos dois. Esse teorema, recentemente descoberto na época, monstruoso, enorme, paradoxal,
porque estabelece que há números que não são racionais — o que em grego se diz arrètoi, isto é, indizíveis —, equivale
para a época, digamos, aproximadamente à demonstração de que o espaço é curvo, por exemplo, um teorema tão
avançado, tão difícil quanto isso. Ora, Sócrates toma um escravo e o faz demonstrar esse teorema. E a objeção "ele o faz
descobrir por sim/não" não se sustenta porque ele poderia fazer a mesma coisa com um nobre ateniense.
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Então, podemos fazer uma nota de rodapé: ele o faz demonstrar isso fazendo-lhe as perguntas corretas. Às quais cada
vez o escravo dá respostas corretas. Pode-se ironizar dizendo que é Platão que o faz dar as respostas corretas. Isso não
impede que o que o diálogo quer ilustrar é que cada um conhece na verdade, mas não sabe que conhece. E é preciso
alguém que desperte nele esse conhecimento. E esse alguém é Sócrates, e é praticamente em toda a obra de Platão o
Sócrates real ou o Sócrates fictício que questiona, faz as perguntas corretas e permite que os, outros cheguem à
verdade.

E isto está ligado a outro aspecto ao qual aludi no último encontro: como se pode buscar o que não se conhece? Ou:
como algo como o conhecimento pode ser conquistado se já não o possuímos? Com efeito, o que Platão diz é que ele
não pode realmente ser adquirido: ele já é possuído. E esse é o objetivo dessa teoria da anamnese, que está vinculada à
imortalidade da alma: as almas conhecem porque viram em outro lugar, em um lugar supraceleste, as Ideias, e ao
encarnar-se ganham peso, esquecem esse conhecimento que, contudo, permanece.

Teoria muito estranha, que pode parecer arcaica, folclórica, bizarra, selvagem, primitiva, pagã, que não temos a menor
vontade de aceitar. Entretanto, essa teoria é, em um sentido, totalmente justificada. Por quê? Pela simples razão de que
toda teoria que diz que o conhecimento provém de um aprendizado choca-se com dificuldades insuperáveis. Ou seja,
estamos numa situação em que é praticamente impossível aceitar que se possa aprender qualquer coisa.

E isso já está em Platão. A questão do Mênon: como posso buscar se não sei o que busco? Se não sei o que busco, não o
reconhecerei quando o encontrar. Não saberei o que era que eu buscava. Portanto, o que quer dizer buscar? Qual é
esse estranho estado de saber/não-saber no qual posso procurar?

Mas também o aprendizado. Como posso aprender? O que quer dizer aprender? E isso está ligado a todo o problema da
indução — retornarei a isso. Pode-se dizer indutivamente: todos os homens são bípedes. Como sabemos disso? Simples-
mente olhamos os homens. Eu passo sobre o fato de que a indução é empírica, não se pode saber. Bom. Mas como se
sabe que o que se observa são homens? Naturalmente, pode-se dizer: eu chamo de homem... Mas é-se obrigado a
passar para características mais elementares, a partir das quais é-se obrigado a pôr uma individualidade que é, ao
mesmo tempo, uma universalidade e uma essencialidade da qual não se pode dizer que é tomada na realidade. Em todo
caso, isso não é evidente. Retornarei a isso. De qualquer modo, o problema com o qual essa frase incidente se depara, e
ao qual Platão respondeu, é: como pode haver aprendizado? E, em princípio, não pode haver aprendizado.

E é preciso ver quão pouco essa posição é folclórica, antiga, atrasada, bizarra, pois é exatamente o que professa hoje em
dia alguém como Chomsky no domínio linguístico. As estruturas linguísticas, diz Chomsky, não as de superfície, mas as
estruturas profundas mediante as quais se fala são inatas. Falar significa organizar o mundo e não simplesmente dizer:
blablablá. Quer dizer: enunciar proposições, frases, que têm sujeitos, verbos, adjetivos, advérbios. Que — aqui
retornamos a Platão/Aristóteles, naturalmente — traduzem em forma linguística as categorias lógicas: se há
substantivos, é porque há substâncias; se há adjetivos, há atributos; se há verbos, há processos, ou ações, ou estados.
Há uma ontologia por trás da gramática, e essa gramática é inata. Não sob sua forma aparente — a gramática aparente
do francês, por exemplo, é completamente diferente da gramática árabe, chinesa... Mas as suas estruturas profundas
são as mesmas.

E certo que a teoria de Chomsky é questionada. O próprio Chomsky diz que sua linguística é uma linguística "cartesia-
na". E Descartes pensa que temos ideias a priori. E é também o que diz Platão. Pouco importa que lhe seja colada a
metafísica, que esse a priori tenha sido aprendido ao se olhar as Ideias em um lugar supraceleste ou de outro modo. Há
um a priori.

Já que falamos de Chomsky, o que podemos dizer dos pontos fortes e dos pontos fracos de sua posição — ainda esta-
mos no nível preparatório. Ora, Chomsky fala das estruturas siiitáticas, das estruturas profundas. Ou seja: há sujeito,
verbo... Mas a questão que se põe evidentemente é: essas estruturas sintáticas profundas que seriam as mesmas em
todas as línguas — admitamos —, será que elas são radicalmente separáveis dos magmas semânticos? E a resposta é:
certamente não. Não se pode dizer que se pode separar radicalmente os magmas semânticos das estruturas sintáticas.
Dito de outro modo: não sc pode dizer que se pode transvasar qualquer significação em qualquer língua, quaisquer que

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sejam as estruturas sintáticas dessa língua. Não há essa separabilidade. Portanto não podemos aceitar pura e
simplesmente que esse a priori são as estruturas sintáticas integralmente.

E como, por outro lado, sabemos que os magmas semânticos, os magmas de significação que cada língua traz consigo se
alteram em e pela criação social-histórica, torna-se impossível admitir que as estruturas sintáticas são integralmente
inatas e radicalmente separadas dos magmas semânticos. E podemos reforçar essa consideração.

Quanto ao que se sustenta nessa teoria chomskiana: sabemos que todo ser humano, enquanto bebé, pode aprender
todas as línguas, aprenderá qualquer língua à qual for exposto. Mas ele não apenas aprenderá: ele pensará com essa
língua. Isso significa que ele terá acesso às significações que essa língua carrega, e que não terá acesso às significações
que estão em outras línguas. Ou então ele precisará fazer um esforço especial para aprendê-las. Mas, de qualquer
modo, podemos dizer que, para a grande maioria dos seres humanos, essa faculdade de aprender uma língua — como
todas as outras faculdades: tornar-se dançarino, pianista — se perde uma vez que a idade avançou. Estamos, pois,
lidando com uma faculdade a priori que consiste em armazenar a priori, mas armazenar diferentes a priori. Armazenar a
priori por quê? Porque, quando o bebé armazena, ele forma seu pensamento de acordo com essa língua. E,
naturalmente, a língua é uma imposição a priori de uma estrutura, de uma organização àquilo que vai vir.

Portanto — retorno ao aprendizado e faremos um longo percurso nesse labirinto —, aprendizado, sim, mas qual é esse
aprendizado da criança? Não se pode dizer que a alma, a priori, conhece todas as línguas realizadas, ainda mais porque
línguas ainda estão sendo criadas. Nem que ela viu essas línguas em um lugar supraceleste. Sabemos, pois, que a alma
possui a priori a faculdade de aprender qualquer língua, portanto de entrar em qualquer sistema de pensamento. E
sabemos que essa faculdade, por outro lado, se perde com o tempo. Que, portanto, há um ensino, um aprendizado, e
que esse aprendizado é aprendizado das formas do aprendizado, dos recipientes, dos moldes, das articulações, mas não
é verdadeiramente um aprendizado. Se se aprende a língua, aprende-se antecipadamente sobre as coisas,
antecipadamente segundo a organização, a articulação, e, antecipadamente, também, segundo o conteúdo.

Mas, por outro lado, somos incapazes, evidentemente, de aceitar que haja uma completa tabula rasa, que haja simples-
mente uma capacidade de aprender porque, como acabo de dizer, é preciso pressupor uma capacidade de formação.
Se*b sujeito não fosse capaz de formar minimamente o que lhe é fornecido, mesmo que fossem apenas os vocábulos
elementares da língua, ele não poderia dizer nada, nem mesmo apreender o que lhe é fornecido.

Temos pois necessidade de considerar que o sujeito não pode formar nada por indução sem uma capacidade formado-
ra, que certamente é inata no sujeito, a priori. E o que significa essa capacidade formadora? Ela significa uma
capacidade que elementarmente é discriminadora. O que vai junto, sem ser idêntico, com o fato de que o sujeito deve
possuir a capacidade de certo reconhecimento das formas. E também, seguramente, uma capacidade universalizante
ou, se preferirem, generalizante. Não se trata apenas de separar, de discriminar, mas de reconhecer que isso, a, é
novamente aquilo que já havia sido discriminado. E depois reconhecer, estabelecer, a partir do objeto a que foi
discriminado e a partir do qual se fabricou uma forma, poder dizer que há outro objeto a' que se oferece,
simultaneamente, como separado e como apresentando a mesma forma; e poder ordenar a e a', e talvez muitos outros,
na mesma classe. Isto é, o sujeito possui estruturas categoriais ou categorizantes, uma capacidade de posição-
classificação-diferenciação já quase no nível da sensorialidade.

Mas não podemos nos limitar a isso. Somos obrigados a aceitar, por um lado, que todo sujeito humano (mas isso tam-
bém é verdade para qualquer sujeito) deve possuir a priori uma organização subjetiva, que é uma capacidade de
organizar que se dá, que se oferece. E essa capacidade não pode ser escrava daquilo que se oferece, não pode obedecer
àquilo que se oferece: ela deve possuir como que "graus de liberdade" consideráveis. E sabemos disso mediante um
exemplo totalmente trivial e material: sabemos que nossa sensorialidade nos permite organizar as cores de certa
maneira; e que existem animais cuja sensorialidade os faz organizar as cores de outra maneira, os torna sensíveis, por
exemplo, à polarização da luz enquanto nós não o somos: não "constatamos" a polarização da luz senão a partir do
século XIX e com aparelhos especiais.

Organização subjetiva, portanto, organização como capacidade relativamente livre de organizar aquilo que se oferece —
o que se oferece sendo, naturalmente, "x". Mas, ao mesmo tempo — e esse é o outro aspecto —, essa organização
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subjetiva e relativamente livre não poderia organizar nada. Ela deve basear-se numa organização mínima daquilo que é
que, de certa maneira, no nível último, é sempre desconhecida e sempre a ser buscada.

Explico. Há uma árvore, depois três árvores, depois dez árvores, é um pequeno bosque. Há quinhentas, e é um bosque;
depois cinquenta mil, é uma floresta. Aqui, portanto, a nossa língua discrimina e organiza o que aparece ao seu modo.
Outra língua poderia ter cem palavras para organizar essas mesmas árvores... Mas, por fim, há essa organização do
dado, e ela parece completamente arbitrária. Mas há dois pontos sobre os quais ela não é arbitrária. O primeiro deles é
que há árvores, que nós não vemos uma árvore. E vemos vacas, seres humanos. Em outras palavras: essa
universalidade, à qual temos acesso pela organização, já está subjacente de outra maneira no que é dado. E se ela não
estivesse subjacente não faríamos essa organização. Faríamos outra. Mas para fazer outra, qualquer uma, necessitamos
de algo que é quase universal de modo imanente. E como isso temos algo que não depende de nossa organização
subjetiva a priori: é o fato de* que há dez árvores, ou cem árvores, ou cinquenta mil árvores... Isso também depende da
organização, de nossas definições, do que se chama de árvore. Se alguém chama de árvore os galhos, isso produz
milhões de árvores. Isso não impede nada, pois sempre constituirá um certo número. E a possibilidade de utilizar esse
número baseia-se no fato de que o que se encontra, o que é fornecido, é suficientemente parecido para que possa ser
enumerado. E isso não poderia ser inventado.

Ou bem poderíamos sempre ou não poderíamos verdadeiramente. Assim, se se conhece um pouco de teoria dos
conjuntos, pode-se perfeitamente dizer que todos os objetos, vivos ou não vivos, desta sala formam um conjunto.
Aplicação arbitrária dos números. Mas cada vez que tentamos conhecer, compreender, recusamos — e aqui retorno ao
incidente número 1 — justamente a aplicação arbitrária dos números. Pode-se dizer, por exemplo, que há nesta sala
não um conjunto, mas dois: os seres humanos e os outros. Isso tem certo sentido, talvez. Mas ainda há dois conjuntos
se considerarmos esta parte da sala ou esta outra. Bom, mas qual é o interesse disso? Que conhecimento, que
compreensão ganha-se com isso? Nós formaremos conjuntos numerados, quando se trata da realidade, a partir de
outras características que permitem fortalecer a separação, a divisão e a enumeração que fazemos. E para formar esses
conjuntos que enumeraremos: dez árvores, dez ovelhas... nós nos basearemos em algo que reforce essa enumeração e
que não dependa de nós.

Se tomamos a árvore, podemos ver bem os dois lados da coisa: por um lado, se se é físico, sabe-se que essa árvore é a
todo instante atravessada por milhões de neutrinos perfeitamente inapreensíveis. Então o que é essa árvore? Onde
estão as suas fronteiras? Deste lado, o recorte da árvore parece completamente arbitrário. Mas, por outro lado, ele não
é arbitrário. Por quê? Pela simples razão de que precisamente uma árvore se reproduz enquanto esse tipo de árvore.
Aristóteles diz ánthropos ánthropon gennai, "um homem gera outro homem", um homem não pode ser gerado senão
por um homem. Então vocês podem dizer, acompanhando todas as filosofias aprioristas: organizamos o mundo
inteiramente. Tudo o que é observado em laboratório, dirá um físico, depende do dispositivo instrumental. Questão: há
um dispositivo instrumental mediante o qual se pode fazer uma vaca dar à luz um crocodilo? Não, a vaca resiste, e o
crocodilo também. E somos obrigados a basear-nos, em nossa organização, em articulações fornecidas por aquilo que
vem, sem que jamais se possa eliminar totalmente daquilo que vem o nosso ponto de vista sobre o que vem.

Então como se dá essa organização?

Deixo agora o lado do embasamento porque ele responde de fato. Retornaremos a isso, à ontologia. Permaneçamos no
lado da organização, no lado subjetivo. Dissemos discriminação, isto é, separação, reconhecimento e universalização. Se
vocês refletirem sobre esses três termos, verão que eles são praticamente inanalisáveis. Seus elementos podem ser
separados, mas separa-se por meio do quê? Reconhece-se uma forma mediante o quê? Universal iza-se por intermédio
do quê? E só se pode universalizar coisas separadas, mas reconhecer uma forma já contém em germe uma
universalização.

Pois bem, deixando de lado o fato de que se isolou uma coisa, de que ela foi separada, como a reconhecemos? Ela é
reconhecida porque é semelhante a si mesma ou a outra coisa. Mas como se sabe que ela é semelhante a si mesma ou a
outra coisa? O que significa que uma coisa é semelhante a si mesma ou a outra coisa? Naturalmente, dizer semelhante
não significa dizer idêntica. Se ela não é idêntica, isso quer dizer que ela não é integralmente semelhante. Mas ela é

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posta como semelhante porque se considera que uma parte dessa coisa é suficiente para que se possa caracterizá-la,
portanto que se pode— mesmo que provisoriamente — passar da parte para o todo.

Generalização. Quando se universaliza, passa-se do semelhante para o semelhante; não se agrupam os idênticos: se eles
fossem idênticos, eles seriam únicos. Mas, se em vários exemplares se repete uma coisa, esses exemplares não são
idênticos.

Eles são diferentes, nem que fosse apenas por sua posição diferente (ver Leibniz, os indiscerníveis). Quando se passa do
semelhante para o semelhante faz-se o que na retórica ou na literatura se chama de metáfora: um herói e um leão são
semelhantes. Isso, na psicanálise, corresponde ao que se chama de deslocamento e isso também corresponde ao que se
pode chamar de "valer como", a equivalência, o valor de troca na economia. Pode-se tomar uma coisa por outra se elas
são suficientemente semelhantes: um pneu do meu automóvel furou, eu o substituo pelo estepe. Não é o mesmo pneu,
mas eles são suficientemente semelhantes para que eu faça o deslocamento, a metáfora de um pneu para o outro. Por
que posso fazer isso? Porque os dois pneus têm uma parte que é mais que semelhante, quase idêntica, suficientemente
idêntica quanto à necessidade e ao uso. Passo, portanto, da parte para o todo, o que pressupõe que antes eu tivesse
passado do todo para a parte. Pois não posso passar da parte para o todo se não tenho a parte. Isso quer dizer que, na
medida em que discrimino as coisas, posso discriminar partes nessa coisa, e a partir do parentesco dessas partes passar
para o semelhante e para o universal.

Ora, passar do todo para a parte, ou da parte para o todo é o que na retórica se chama de metonímia: você quer tomar
um copo d agua? E uma metonímia e também uma sinédoque: bebe-se o conteúdo de um copo, não o copo — isso faria
muito mal ao estômago. Na psicanálise, é uma condensação. E a palavra copo vale por. Não é mais um esquema de
equivalência, mas um esquema de instrumentalidade, de pertencimento.

Temos então esses dois procedimentos absolutamente fundamentais em todo esse trabalho do reconhecimento: a se-
paração e a universalização. Ou seja, por um lado, a passagem do todo para a parte e da parte para o todo; por outro, a
passagem do semelhante para o semelhante. Isto é, a metonímia e a metáfora, sem que se possa estabelecer uma
prioridade de uma em relação à outra. Haveria a tentação de dizer que toda metáfora pressupõe uma metonímia.
Quando digo: Hércules era como um leão, minha metáfora baseia-se numa metonímia; a saber, que tanto Hércules
como um leão têm uma propriedade, uma parte deles que é a coragem e a força... Mas essa capacidade de discriminar e
de dar parte e todo implica uma forma extrema do semelhante: a capacidade de manter algo em sua identidade.

Guardemos simplesmente o seguinte: não pode jamais haver reconhecimento de um semelhante a partir da totalidade
exaustiva de seus caracteres. Porque, se houvesse totalidade exaustiva de seus caracteres, não se trataria mais do
semelhante, seria um impossível idêntico. Toda similaridade, naturalmente, é parcial. Isso é quase tautológico.

E tudo o que acabamos de dizer pode ser encontrado na realidade quando lidamos com o vivente, antes mesmo da
consciência humana. Pois o que se constata no nível do vivente? E, certamente, a sua capacidade de
discriminar/separar; de reconhecer; e de universalizar, de reconhecer nas categorias do universal. Mais uma vez, um
cão persegue a caça, não uma baleia. Há classes. E isso vale no nível elementar.

Mas como se faz essa universalização no vivente? Ora, sabemos disso agora de modo completamente positivo: isso se
faz mediante a relação todo/parte — e mais particularmente a partir da parte, ou das partes. São as partes que são
reconhecidas e que conduzem ao todo. E conhecemos isso positivamente no nível elementar da biologia, no nível
celular. E notadamente no reconhecimento imunológico ou na assimilação dos alimentos: os linfócitos reconhecem os
antígenos por meio de uma parte destes últimos, o seu aspecto estereoquímico. Um antígeno qualquer tem uma região
de superfície que é tal que o hnfócito, como as duas peças de um quebra-cabeça, a reconhecerá adaptando-se a ela,
colando-se a ela, como uma luva. A partir disso produzir-se-ão reações químicas, e o antígeno será destruído — ou o
alimento assimilado.

Há pois uma região de fixação, que se pode chamar de embasamento do conhecimento pelo Hnfócito; e o anticorpo é
capaz de reconhecer segundo a natureza dessa região esta ou aquela categoria de antígenos. Há pois nele o
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princípio de pertencimento: tudo isso pertence a alguma coisa; e um princípio de equivalência ou de universalização,
pois tudo o que se apresentar com propriedades estereoquímicas idênticas será reconhecido pelo anticorpo, que
reagirá.

E isso vai ainda mais longe porque essa espécie de processo está na base dos procedimentos médicos: a invenção das
sulfas consistiu em isolar uma substância estereoquimicamente tal que ela se colasse na bactéria precisamente em sua
região nutritiva. Fabricou-se portanto uma substância que "engana" a bactéria — pois a bactéria também conhece e,
porque conhece, pode ser enganada.

Todo esse sistema de adaptação estereoquímica é, pois, em parte mecânico, mas somente em parte, justamente
porque se pode enganar uma bactéria como se pode enganar um ser humano, mas não se pode enganar uma massa
gravitacional.

Retorno ao problema mais geral. O sujeito humano, psíquico digamos, reconhece objetos a partir de marcas. Mas que
marcas? E como se reconhece uma marca? Por que se reconhece uma marca? E por que uma marca determinada?
Pode-se dizer que na natureza há mesmo partes e todos? Por exemplo, se se considera o sistema solar, onde pára o que
se chama de vento solar? As tempestades magnéticas sobre a Terra que vão para além dos últimos planetas? O raiar do
Sol e as partículas que ele cria? Tudo o que se pode dizer é que o que se apresenta na natureza oferece certa
quantidade de articulações, de pontos sobre os quais podem ser enxertadas divisões. Mas elas serão enxertadas nesses
pontos e não em outro lugar, segundo o que faz o sujeito. E o sujeito que escolhe colocar separações neste ou naquele
lugar. Não o sujeito no primeiro nível, naturalmente, não o sujeito completamente singular: trata-se aqui do sujeito
coletivo, da espécie.

Portanto é o sujeito que organiza um mundo a partir de um caos no qual se apresentam diferenças — mas essas dife-
renças em si mesmas não têm nenhum privilégio umas em relação às outras, é o sujeito que privilegia algumas delas e
não outras. E o sujeito que organiza o seu mundo, que se organiza ao organizar o seu mundo.

Por que esse incidente/digressão enorme no segundo incidente do Político? Porque, afinal, é um dos eixos da proble-
mática filosófica: o que é a priori e o que é a posteriori? O que o sujeito já sabe antes de entrar em contato com o
mundo? E o que o sujeito pode aprender no mundo? E sob que condições? Cronologicamente, antes de entrar em
contato com o mundo, o sujeito não sabe nada, certamente. Mas ele só aprende ao organizar o mundo e ao organizar-
se ao mesmo tempo. A partir do momento em que um sujeito vive, ele é auto-orga-nização, mais exatamente
autocriação de si mesmo e do mundo. E ele só pode fazer isso sob a condição de que o mundo se preste a tal
organização.

Ora, aqui temos toda uma filosofia herdada, desde Platão até Heidegger, passando por Descartes e por Kant, que, quan-
do discute o conhecimento ou o ser, discute a partir do indivíduo. E esse indivíduo é um indivíduo que vem muito tarde,
tarde demais: é o indivíduo socialmente fabricado, que fala francês, inglês, "latim ou javanês", como dizia Desnos, que
tem uma língua, um pensamento de acordo com essa língua, pertence a um mundo social-histórico, tem uma história —
são muitos pressupostos! E seria preciso pensar o sujeito primeiramente naquilo que herda do vivente, depois em
relação ao que lhe fornece o social. E aqui, no nível social, temos essencialmente a linguagem, mas também um
submundo coerente que passa pela família, pelo primeiro meio ambiente ar-tificializado do ser humano fornecido ao
sujeito. E também temos uma reelaboração, uma recriação pela psique singular de tudo isso, de tudo o que lhe é
fornecido.

Se, por exemplo, tomamos uma concepção como a concepção kantiana do entendimento, se tomamos o sujeito kan-
tiano: esse sujeito é bastardo, ao mesmo tempo excessivo e deficiente. E por quatro razões:

1) Em primeiro lugar, porque se dá por evidente uma sensorialidade desse sujeito que pertence, segundo todas as evi-
dências, ao mundo empírico, mas que supostamente é passiva. O que é falso: essa sensorialidade é organizadora, ao
que tudo indica. E, na medida em que pertence ao mundo empírico, ela deveria, na visão kantiana, pertencer a um

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diverso caótico. Ora, isso não é verdade, a sensorialidade do sujeito é organizadora e organizada. Há pois em Kant uma
sensibilidade que é ignorada em sua organização profunda.

2) Em segundo lugar, Kant dá como evidente um pensamento sem língua, o que é absurdo. Ou uma língua que é miste-
riosamente inata, universal e transcendental, o que não existe.

3) Portanto, Kant ignora a carga social-histórica da qual o entendimento humano faz parte.

4) E, por fim, Kant ignora as outras dimensões da subje-tividade psíquica nas quais jamais há funcionamento do sujeito,
mesmo cognoscente. O que Kant descreve é uma espécie de autómato mecânico cognoscente, não um sujeito cognos-
cente. Esse sujeito só conhece na medida em que investe no conhecimento, na medida em que o conhecimento é
objeto de anseio ou de desejo. E temos a contraprova imediata disso com a psicose autística, em que o sujeito não se
interessa, não investe no conhecer o mundo exterior.

Isso simplesmente para mostrar os desvios fatais nos quais cai a filosofia herdada quando ignora esse duplo lado de que
eu falava há pouco, isto é, quando quer fazer uma teoria do conhecimento evitando ao mesmo tempo 1) uma ontologia
do sujeito cognoscente e 2) uma ontologia do objeto posto como cognoscível. Toda teoria simplesmente apriorista ou
apos-teriorista choca-se com impossibilidades radicais.

Ora —volto a Platão e à história do sono e da vigília —, tanto em Platão como em Aristóteles, a teoria do conhecimento
é inseparável de uma ontologia. Tem-se até mesmo a um só tempo uma ontologia, uma cosmologia e uma psicologia
que formam um conjunto. E é certamente essa psicologia que fornece uma teoria do conhecimento. Então a alma pode
aprender no mundo? Não, diz Platão, em função dos argumentos que já avançamos: como posso aprender se já não sei?
Nenhuma indução pode me fornecer conhecimento sólido. Portanto, se há conhecimento é porque a alma já conheceu.
E aí Platão tira a conclusão inevitável: se ela já conheceu, isso quer dizer que ela conheceu em outro lugar e
previamente, que, portanto, há uma imortalidade da alma. E isso deixa totalmente de ser folclórico, é quase uma
consequência. Encarnada, a alma cai numa espécie de sono, do qual ela pode acordar, sobretudo se ela é ajudada por
um parteiro como Sócrates. E uma vez acordada ela se lembra das Formas, dos eidè, que ela conheceu enquanto
imateriais, portanto imortais.

Mas o mundo — e chegamos aqui à cosmologia — com o qual ela lida não é imaterial, mas material. Como podemos
então conhecê-lo? Ora, é precisamente a isso que querem responder a cosmologia de Platão e a sua teoria das Ideias: o
mundo efetivo é corporal, não apenas material. Ele é soma echon, como diz no Político, no mito que comentaremos no
próximo encontro. Enquanto corporal, o mundo não pode ser simplesmente Formas, ele participa do devir e da
mudança, mas também participa das Formas, dos eidè. E como relativamente aos eidè a alma não conhece, mas
reconhece, relativamente às coisas do mundo, às coisas corporais, ela conhece algo na medida em que aquelas coisas
participam das Formas, isto é, não são pura matéria.

Paradigma que nos traz novamente ao incidente de que falávamos. E é apenas quando se compreendeu, não tanto as
teses de Platão, mas a articulação da problemática que as sustenta que se pode ver por que elas permaneceram tão
importantes — mesmo que elas possam nos parecer bizarras, folclóricas, arcaicas. E também compreender a que ponto
o próprio Aristóteles é tributário de Platão. E isso já fixa o que chamamos de "transmissão hereditária", ao mesmo
tempo no sentido corrente e no sentido matemático do termo, das propriedades dos filósofos. Porque o que ocorre
com Aristóteles é uma nova versão, em um certo sentido, da seguinte tríade de Platão: ontologia, psicologia,
cosmologia; e isso se transmitirá posteriormente.

Dito de outro modo, para Aristóteles também há necessariamente uma relação íntima entre a ontologia, a psicologia e a
cosmologia; para Aristóteles também o ser verdadeiro de algo, de um ente, sua essência, sua ousia, é o eidos, é a
Forma. Só que — diferenças enormes com Platão —, em primeiro lugar ele pretende que esse eidos não é separado,
que ele não está em outro lugar, no além. Ele está neste mundo. Aristóteles elimina então todas as frases de Platão
sobre participação, comunicação dos objetos, dos entes particulares com as Formas como simples metáforas. E, por

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986
outro lado, ele oferece uma análise extremamente aprofundada dessa Forma. Onde Platão se contenta de falar dos
eidè, das Formas, Aristóteks diz: todo ente comporta quatro princípios, ou quatro causas, ou quatro elementos:

— a matéria;

— a forma em sentido restrito;

— a causa eficiente, final;

— depois ele agrupa esses três elementos de forma geral, que é a destinação da coisa, sua ousia, o que ela estava desti-
nada a ser.

Não devemos esquecer que, para Aristóteles, se essa ousia é verdadeiramente última, ela também não é definível (isso
é um pouco secundário). Mas o kósmos não é nada mais que essas formas realizadas e se autoperpetuando na natureza
sublunar, ou essas formas eternas na natureza celeste. E, no limite, não há mais que uma forma, não há mais que um
único ser-ente, Deus, pura forma sem matéria. Mas esse ser que é Deus, que é pura forma sem matéria, não pode ser
conhecido diretamente, nós o deduzimos como uma necessidade da existência da natureza.

Como conhecemos? Aqui também Aristóteles está completamente na linhagem de Platão porque o que ele diz sobre o
conhecimento é que, quando falamos do conhecimento segundo, do que ele próprio chama de logos, a atribuição de
uma coisa, quando dizemos algo sobre algo, então nesse momento utilizamos diferentes métodos, entre os quais
também a indução, que é justificável até certo ponto. Aristóteles sabe muito bem do que se trata em relação à indução.

Mas, quando se trata da essência de uma coisa, essa essência não pode ser dita por uma definição, ela não pode ser
apreendida indutivamente, ela é conhecida diretamente pelo pensamento — é o que Aristóteles afirma na célebre
passagem sobre a psique do De anima: o nous é sempre verdadeiro quando conhece a ousia das coisas, o to ti èn einai,
o que elas estavam destinadas a ser. Mas o pensamento pode equivocar-se nas atribuições quando diz ti kata tinos, algo
sobre algo. Ou seja, temos um domínio secundário no qual há mais e há menos, há verdadeiro e falso; no qual podemos
saber mais ou menos e no qual podemos nos enganar. Mas, no que diz respeito às essências das coisas, o nous as
apreende diretamente, isso não é nem mesmo um logos, ele não as reflete discur-sivamente, ele as apreende, as fixa, as
vê.

Essa é a posição de Aristóteles. E, contudo — mas isso é outro problema —, há outras passagens em Aristóteles, nos

Tratados zoológicos, nas quais ele estranhamente diz que o nous, o pensamento, entra de fora no sujeito humano,
enquanto todo o resto é produzido pelo ser vivo, pelo ser humano. Aristóteles nunca fala de imortalidade da alma, mas
diz que o nous entra thurathen, de fora, "pela porta", no ser vivo, porque de outro modo ele não pode dar conta dessa
capacidade do sujeito humano de conhecer as essências das coisas.

Vemos com isso por que em Platão há uma teoria dos paradigmas, isto é, que existem Ideias que organizam o ser, que
organizam até mesmo o ser no mundo, que há parentesco entre os entes, que se pode passar de um ente para outro já
que há participação em eidè superiores. O mesmo ocorre em Aristóteles, já que ele pensa que as ousiai, as essências,
são imanentes às coisas. Por conseguinte, isso também pode fornecer um fundamento, se me permitem dizer,
ontológico e cosmológico da indução.

E então o que é dito com Platão e Aristóteles traça o qua-* dro do que virá depois, inclusive como sua negação na histó-
ria da filosofia, isto é, que há elaborações sutis muito depois, há tentativas de quebrar essa articulação ontologia-
cosmolo-gia-psicologia. Esse não é o caso de Descartes e Leibniz, que modificam as coisas mas mantêm essa unidade
psicologia-cos-mologia-ontologia. Mas há tentativas nos Tempos modernos de quebrar essa unidade: Espinosa a quebra
mantendo apenas uma ontologia, em certo sentido; Kant a quebra guardando apenas uma psicologia, negando que
possa haver uma ontologia e uma cosmologia. Naturalmente, ele fala de nível transcendental, mas isso dá no mesmo. E
para Fichte é igual. Hegel, por sua vez, retorna a um modelo aristotélico.

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986
E Heidegger, para chegar ao final do percurso, constata que com efeito todas essas filosofias pertencem ao mesmo cír-
culo, que esse círculo ainda não tinha sido fechado pelos pré-socráticos — o que significa dizer, por outro lado, que com
Platão há uma segunda criação da filosofia, e é o que entendemos verdadeiramente por filosofia — e que esse círculo se
esgotou. E esse esgotamento — com certas consequências reais das principais ideias que emergiram com o círculo,
como a razão, por exemplo, a racionalidade — desemboca na desolação e no deserto. E nesse sentido que há um fim da
filosofia; é nesse sentido, também, que se pode retomar uma frase de Nietzsche: "O deserto cresce". O que há também
é que Heidegger não pode sair filosoficamente desse círculo, mas simplesmente constatar que um círculo se fechou. (Ele
se encontra encerrado nele — e proclama que ele é fechado.)

Ora — e terminaremos hoje por aqui, antes de retornar ao Político —, o que dizemos é precisamente que a questão do
ser deve ser retomada, e ser retomada na tripla articulação da psicologia, da cosmologia e da ontologia. Mas há outra
coisa no pensamento, que aliás pode englobar esse círculo herdado e até certo ponto pode dar conta dele. E essa
retomada não pode ser feita a partir da constatação de que o ser se cria a si mesmo, que ele é temporalidade, e que o
sujeito se cria no ser como capacidade de conhecer o ser; e não só isso, mas isso são as outras dimensões da
subjetividade de que falei. Mas essa capacidade de conhecer o ser baseia-se na capacidade do sujeito — e aqui falo do
sujeito no sentido mais geral, tanto psíquico como social-histórico e individual — de recriar, de criar de novo as matrizes
originárias nas e pelas quais se fez a auto-criação do ser.

O que ocorre, grosso modo, com este enigma é que não podemos conhecer nada se já não o conhecemos; e se já o co-
nhecemos, por que diabos o conheceríamos? A solução desse enigma é a seguinte: quando conhecemos, quando
aprendemos, não copiamos a realidade, porque isso é um absurdo. Reinventamos a realidade, e uma realidade que se
mostra congruente em nós com uma parte da realidade que existe. Ou melhor: reinventamos um esquema imaginário
que se mostra congruente com uma parte do ser realmente dado. Essa é a resposta ao problema de Platão no Mênon e
de toda a filosofia. E é a partir disso que podemos recomeçar e sair do círculo do pensamento herdado.

Continuaremos no próximo encontro encerrando rapidamente essa história do terceiro incidente com o paradigma, e
tratando dos outros incidentes de alcance relativamente secundário. E abordaremos as duas digressões: 1) sobre o mito
de Cronos e 2) sobre a essência do político.” P107-132

“Seminário de 12 de março de 1986

IV. Os oito incidentes (continuação) 3. Incidente 3 sobre o paradigma

Retomarei as ideias com as quais terminamos nosso último encontro a respeito desse famoso terceiro incidente do
Político de Platão que se referia à necessidade de um paradigma para compreender os objetos de pensamento que não
possuem materialidade.

Percorremos muitos labirintos, mas o ponto importante, a razão pela qual insisti nesse incidente, foi a necessidade que
ela desvela no pensamento de Platão, e justamente por isso no pensamento de toda a filosofia depois de Platão, até
Hei-degger inclusive, a saber, a necessidade de ordenar o conhecimento — daí essa faculdade da alma, daí essa
atividade, daí essa natureza da alma (a psique) — com o ser no sentido mais abstrato, por um lado, com a totalidade do
ser-ente, o cosmos, o mundo, do outro. Essa articulação de uma psicologia com uma cosniologia e com uma ontologia é
muito nitidamente marcada em Platão e em Aristóteles, marcada também em muitos filósofos dos Tempos modernos.
Às vezes ela pode ser, como é o caso em Kant, objeto de uma negação, com consequências pelo menos aporéticas e, na
verdade, absurdas. Quero dizer com isso que a tentativa kantiana ou, ao menos, do primeiro sucessor de Kant, Fichte,
de dizer algo sobre o nosso conhecimento olhando unicamente para o sujeito dessa ativi-dade conhecedora e
eliminando o objeto, pretendendo que enquanto tal ele não desempenhe nenhum papel, que, portanto, esse sujeito
possa funcionar em qualquer mundo, evidentemente desemboca em aporias.

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986
Para Platão, há pois essa posição comum da psicologia, da cosmologia e da ontologia. A alma conhece. Por quê? Porque
ela já conheceu enquanto alma imaterial. Uma vez encarnada, ela caiu numa espécie de sono do qual pode ser acor-
dada. Uma vez acordada, ela se lembra e o que ela recorda são os eidè, as Formas, que ela conheceu desde sempre.
Depois, é na medida em que o próprio kósmos — a realidade existente, a totalidade dos entes — é composto por
participação nessas Formas, onde há a famosa participação ou comunicação, a methexis ou a koinônia, que a alma pode
conhecer algo desse mundo real no qual ela se encontra, provisoriamente.

A articulação é exatamente a mesma em Aristóteles ainda que suas posições, o conteúdo das teses, sejam diferentes,
mas suas grandes linhas são as mesmas. Também há uma alma; essa alma aristotélica, tal como a vemos no tratado De
anima ou implicitamente na Metafísica, é a faculdade de apreender os sentidos, e nisso ela jamais pode se enganar.
Aristóteles diz isso explicitamente: quando a alma considera os dados dos sentidos, ela diz sempre a verdade, ela possui
a verdade. Ela só se equivoca quando opera no logos, no sentido de Aristóteles, isto é, na complexão das significações,
no atributo, no que ele chama de ti kata tinos, dizer algo contra algo, ou seja, sobre algo, em outras palavras, de algo. E
nessa parte raciocinante da alma que pode estar o erro, se se excluir a imaginação, que para Aristóteles — o primeiro a
colocar esse princípio — também pode ser fonte de erro: "As sensações são sempre verdadeiras, "enquanto a maior
parte dos dados da imaginação é falsa" (De anima, III, 3, 428).

Para Aristóteles, a cognoscibilidade de algo se baseia no fato de que há ousiai, essências, e que essas essências contêm
katholou, algo universal — esse é o nível ontológico. E, ao mesmo tempo — e este é o aspecto cosmológico Aristóteles
rejeita, com uma observação pouco amável sobre Platão, todas essas histórias de comunicação, de participação, pois
isso, diz ele, não é dizer nada e "utilizar metáforas poéticas". As ousiai — o eidos, a Forma — não são separadas dos
seres reais, dos entes reais dos quais elas são formas; elas são imanentes. Há apenas uma única forma que é forma sem
matéria, é o pensamento de pensamento, o que ele chama de Deus, o pensamento que se pensa a si mesmo e que não
contém nenhuma matéria. No que diz respeito aos objetos materiais, há, para Aristóteles, possibilidade de indução
porque, precisamente, quando a alma considera as coisas, ela não estará diante — como estará para muitos Modernos,
para Kant digamos — da pura matéria informe. A alma não é colocada diante de uma diversidade caótica. Ela é colocada
diante de objetos aos quais a essência é inerente, imanente, de tal modo que há um fundamento ontológico da indução,
embora Aristóteles saiba,

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986
naturalmente, que a indução não permite que se chegue a conclusões rigorosas. Ele sabe muito bem que toda
conclusão, a partir de um número limitado de exemplos da totalidade de uma espécie, pode ser enganosa, não contém
nenhuma necessidade. Mas, se há alguma coisa que permite conhecer a partir do real, essa coisa é a imanência da ousia
no real; ela permite que se comece a raciocinar sobre o que é, que se comece a saber o que é.

É pois essa unidade relativa, essa articulação organizada entre a psique, os entes e o que é o ser verdadeiro (to ti èn
einai), que para Aristóteles permite não apenas que se conheça os objetos, mas também, por fim, o pensamento. Ela
nos dá esse saber limitado mas assegurado do mundo, limitado porque estamos para sempre separados do que é a
essência suprema, a forma pura, o nous absoluto, a pura atividade, o actus punis, que está separado do mundo, que não
considera senão ele mesmo. (Talvez esta seja a única forma de pensamento de uma divindade que tenha certa
dignidade filosófica. Todos os outros deuses, no monoteísmo ou não, que se ocupam das trivialidades deste mundo são
deuses muito esquisitos, muito estranhos...)

Essa articulação permanece em muitos filósofos modernos. Ela é explícita, por exemplo, nos pensamentos como os de
Leibniz ou Hegel, mas ela também é muito marcada em Descartes (passando aqui, evidentemente, pelo deus criador do
mundo). Ela é interrompida na corrente subjetivista, em Kant, mas já antes em Hume, que não considera senão o su-
jeito, embora permaneça preso a essa problemática, o que se pode chamar de deficiências do pensamento de Kant. A
saber, as aporias que conduzem os idealistas alemães a superá-lo: elas são marcadas por essa articulação e por esse
círculo. Hei-degger, por fim, não fará nada mais que constatar que essa história da filosofia, de Platão até Husserl,
pertence ao mesmo círculo, que esse círculo ainda não havia — é verdade — sido fechado no tempo dos pré-socráticos,
que ele é fechado pela primeira vez com Platão (eu lhes dizia que, para mim, com Platão, de fato, há uma segunda
criaJão da filosofia). Mas, para Heidegger, esse círculo está esgotado, seu destino histórico foi'o de alimentar essa
tecnicidade, essa racionalidade, essa cientificidade modernas, ou seja, o de criar esse deserto, essa ausência, esse
eclipse do ser e dos deuses. Nessa medida, o próprio Heidegger ficou preso nesse círculo; ele não pode sair dele
filosoficamente; ele está aprisionado nele e não pode fazer senão chamar seu próprio aprisionamento de "retração do
ser", a retração historial do ser.

Pode-se sair desse círculo? Na minha opinião, pode-se sair dele na medida em que a questão do ser deve ser retomada,
na medida em que há outro campo de pensamento que engloba esse círculo herdado. E a condição para sair dele é a de
quebrar essa ideia central que mantém juntas todas essas grandes peças, esses trêsarcos da circunferência do círculo
herdado. É preciso quebrar a ideia de determinidade, ou seja, do ser como ser determinado, e rever que o ser é criação,
que a psique e o social-histórico são eles próprios criações. E preciso ver que o problema da indução foi em certo
sentido mal colocado; a terceira parte, a dimensão cosmológica foi mal colocada porque a questão não é somente a de
constatar que todo saber empírico é incerto, mas também a de partir desse fato incontestável — ou então é preciso
parar de falar — que o saber empírico existe. Já há saber empírico quando discuto com al

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

guém, pois isso pressupõe que eu aceito a sua existência. Essa existência não é uma ideia a priori, é um fato alimentado
pela experiência, e esse alguém é justamente por isso o testemunho da sensorialidade, tem um peso inegável. Mas,
naturalmente, ainda permanecemos com o problema da forma desse conhecimento. Não podemos dizer que tomamos
emprestado dessa sensorialidade, dessa experiência ou do que quer que seja de exterior as formas da intuição, o espaço
e o tempo, ou as categorias. Somos então obrigados a constatar que o que fazemos, não enquanto indivíduos, enquanto
almas singulares, mas enquanto indivíduos participantes de um mundo so-cial-histórico, é que recriamos como forma
de pensamento aquilo que é, aquilo que, num sentido e já de maneira imanente, é como que formável.

Temos a forma do um, e é absurdo dizer, como certos materialistas fazem, que extraímos os números das coisas. Não
vejo, com efeito, como podem ser extraídos os números das coisas; para que possamos extrair algo de uma coisa, é
preciso primeiro pôr essa coisa como uma e várias, e pôr que pode haver um e dois e três... e assim por diante. Somos
nós que pomos, mas isso tem uma relação com a realidade. As coisas são tais que podem ser contadas, são tais que
podem ser separadas. Aqui é preciso retornar ao grande espírito de Aristóteles: as coisas são tais que podem ser
suficientemente separadas quanto à necessidade e ao uso, e suficientemente quanto à perspectiva sob a qual as
consideramos no momento em que falamos. Não estamos separados da Terra porque a cada instante bilhões de
neutrinos nos atravessam, mas, quanto à necessidade e ao uso de discutir, de se alimentar ou de fazer o que quer que
seja de diferente, estamos suficientemente separados da totalidade do cosmos, por exemplo, e estamos sufi-
cientemente separados em certos pontos relativos ao conhecimento, a saber, que nossa indistinção relativamente ao
campo gravitacional ambiente ou aos neutrinos que nos atravessam não interessa, por exemplo, para a consideração do
inconsciente ou do pensamento de/alguém.

Somos portanto obrigados a pôr como tese ontológica que o que é é ensidisable[neologismos introduzidos por Cornélius
Casto-riadis para designar a dimensão "conjuntista-identitária" do real], mas nãoo é globalmente, não se pode fazer-
tlele um sistema global. É isso que a história de nosso saber mostra e, também, que temos acesso aos diferentes es-
tratos desse ser-ente total mediando o que se pode chamar de imaginação criadora dos indivíduos e de imaginário
criador das sociedades que repousam, reinventam, recriam o que em um certo sentido já está aí para poder pensá-lo.
Isso anda junto com a ideia de que esses diferentes estratos do que é, para os quais temos necessidade de pôr, de
inventar, de criar sempre novos esquemas para poder pensá-los, são eles próprios emergências, surgimentos do ser-
ente total; que o ser é sempre a ser, ou é criação. Essa ideia de que no fim há uma verdade — isto é, que de certa
maneira há uma verdade no sentido mais ingênucv mais tradicional do termo, como adequação, como correspondência
entre o que pensamos e o que é, o que não significa uma reprodução total e exata, uma Abbildung, mas uma
correspondência suficiente — e que, ao mesmo tempo, para atingirmos essa verdade somos obrigados a inventá-la, é
paradoxal, mas é assim mesmo. Alegrei-me ao descobrir que essa ideia já havia sido formulada (não sei se outros já a
haviam enunciado) pelo grande William Blake em O casamento do céu e do inferno. Um dos "Provérbios do inferno" diz:

What is now proved was once only imagined.

O que agora está demonstrado deve ter sido antes imaginado. Frase brilhante e ao mesmo tempo banal, que diz uma
verdade evidente: não se pode demonstrar nada se antes isso não foi imaginado como possibilidade de enunciado a ser
demonstrado. Mais uma vez o poeta é um profeta, como dizia um outro poeta. Essa é, em certo sentido, toda a história
do saber humano: imaginar as coisas e depois demonstrá-las por puro raciocínio, por exemplo, e tornar pensável algo
que não depende de nós, algo que é real, isto é, o real no sentido daquilo que resiste, que não pode ser dobrado à
vontade aos nossos esquemas de pensamento.” P133-140

“1. O mito do reino de Cronos

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

Vamos nos lembrar do que se trata. De repente, o Estrangeiro hesita sobre a definição do político como pastor de reba-
nhos humanos à qual se chegou, e pergunta a Sócrates, o jovem, se ele se recorda de uma velha história em que havia
pastores divinos e na qual o mundo girava no sentido oposto ao qual gira agora. Com efeito, Platão retoma aqui três
antigas lendas:

— em primeiro lugar, o mito referente a Atréia e a Tieste segundo o qual, em dado momento, Zeus, furioso porque
Tieste trapaceia, inverte o curso do céu e, como tudo é regulado pelo céu, os acontecimentos começam a desenrolar-se
ao contrário;

— a segunda lenda é a de que há um reino de Cronos, geralmente associando,"rra^ tradição popular, à ideia de uma
época de ouro;

— a terceira lenda é a de que outrora os seres humanos não eram produzidos uns pelos outros, por reprodução
sexuada, mas cresciam da terra, brotavam dela, eram gègeneis.

Ele parte portanto dessas três lendas gregas. A lenda de uma época de ouro certamente é universal. Lendas como essa
de que os homens cresceram da terra poderão certamente ser encontradas em muitos lugares (no Antigo Testamento,
é a partir da terra que Adão é fabricado), assim como, por outro lado, a história — que é encontrada em outras
mitologias — da inversão do curso do mundo. Não são temas exclusivamente gregos, mas pertencem a esquemas
imaginários razoavelmente universais na humanidade de outrora.

Retomada rápida do conteúdo do mito. Platão diz que a história do universo, de tudo o que é, passa sempre sucessiva-
mente por duas fases opostas. Há uma fase que seria a verdadeiramente direta. Não esqueçamos que a filosofia é
realmente o mundo ao contrário. O próprio Platão diz: a verdade da filosofia é aquilo que os homens não vêem. Para o
filósofo, o que eles vêem não é senão ilusão. Vivemos em uma fase da história do mundo em que o normal é que os
seres humanos — e também todos os outros seres vivos — nascem pequenos e jovens, crescem e envelhecem, e, enfim,
morrem e desaparecem. E talvez isso esteja ligado em nossa concepção com certa maneira de girar do universo, um
sentido de rotação da abóbada celeste. Ora, diz Platão, isso não é senão a fase inversa, o reino de Zeus: é o que ocorre
com o mundo quando o deus o abandona à sua própria sorte. Então o que ocorre quando o deus abandona o mundo à
sua própria sorte? Pois bem, nesse momento, o mundo começa a girar como gira agora, os seres humanos começam a
reproduzir-se e a ter filhos, o curso do tempo se dá nesse sentido, do nascimento rumo à velhice, e o mundo dirige-se a
si mesmo. Mas, ao dirigir-se a si mesmo, o mundo não pode senão, pouco a pouco, desregrar-se, aumentando
progressivamente a desordem, a entropia. Essa é uma ideia muito velha na humanidade, e é o que nós chamamos de
segundo princípio da termodinâmica. Quando Aristóteles fala do tempo na Física, afirma: Pas chronos ekstatikos, todo
tipo de tempo é "extático", no sentido de destruidor, de fazer as coisas saírem de sua formal Nesse sentido, é a justo
título, diz ele, que as pessoas dizem que toda espécie de tempo é extática, corruptora, destruidora. Mas em seguida
Aristóteles, com seu rigor habitual, retoma o dito popular: embora na verdade

J. Precisamente, Aristóteles diz: Metaholè de pasa physèi ekstatikon ("Ora toda mudança é por natureza desfazedora",
Física, livro A, 222b 16). Mas a mudança está intimamente ligada ao tempo, e Aristóteles fala, em 221b 2, do tempo
destruidor, com efeito, empregando os termos phthoras e existèsi.

se devesse dizer que não é o tempo enquanto tempo que destrói as coisas, e sim as próprias coisas que chegam à sua
destruição, à sua decomposição, o fato é que isso sumbainei no tempo, se passa no tempo, coincide, "comita" com o
tempo, e é por isso que se diz que o tempo corrompe as coisas.

Vivemos pois a fase em que o mundo, deixado a si mesmo, caminha para a corrupção, e, quando essa corrupção atinge
um ponto máximo, um ponto em que um deus — que sem dúvida não é Cronos ou Zeus — pensa que isso não pode
mais continuar assim, então o deus se recoloca no posto de pilotagem, retoma a direção dos assuntos e conduz o curso
do mundo ao seu verdadeiro curso (que seria para nós um curso invertido). A partir desse momento, a esfera celeste
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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

começa a girar no outro sentido, todos os processos de que temos experiência desenvolvem-se no sentido inverso ao
qual estamos habituados. Os seres humanos saem da terra velhos, com os cabelos brancos — talvez até mesmo carecas
— e, na medida em que o tempo passa, seus cabelos escurecem, eles chegam à idade madura, rejuvenescem, tornam-
se adolescentes, tornam-se crianças e, quando ficam pequenos, entram novamente na terra^Todos os outros processos
desenvolvem-se da mesma maneira. Esse período é o reino de Cronos. O próprio deus dirige o curso do mundo e,
mediante deuses subalternos, observa todos os assuntos e conduz todas as coisas como é preciso. E é por isso também
que as pessoas acreditam que durante esse período os homens cresciam da terra, que eles eram gègeneis, por um lado,
e que a vida era feliz, por outro. Por quê? Porque o próprio deus cuidava de toda a existência, porque havia deuses
subordinados que agiam como pastores das diferentes categorias de seres. Para os homens, era o próprio deus que os

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

apascentava — Geòç sVE(p fiev outouç carros 8Trio~T0iTõLVv

(27le) —, do mesmo modo que agora os homens fazem pastar as categorias inferiores de animais. Na época de Cronos,
não havia políteíai, cidades, não havia casamentos exclusivos — KTT|0-ei,<; tuvoíikójv Kcà ttoílôojv (posses das
mulheres e das crianças, 272a) —, não havia partos. Essa época de Cronos, mais uma vez, é uma época de ouro, é o mito
do comunismo primitivo, mas também de um período de abundância. Os homens cresciam da terra e não se lembravam
de nada do que havia antes, eles nasciam, pois, sem memória.

Vê-se aqui a ambiguidade da história e, mais uma vez, a ambiguidade de Platão, sobre a qual podemos nos perguntar
até que ponto é voluntária ou não. Com efeito, essa época de ouro é obtida pelo fato de que as pessoas não têm
memória, não se lembram de nada do que havia antes. Podia-se viver, mas numa espécie de selva em que o deus provia
tudo. Pode-se pensar nisso com nostalgia? Por que não vivemos sob o reino de Cronos? Será que isso deveria ter sido a
nossa vida? De início, Platão introduz essa observação de que as pessoas não tinham memória e, em seguida, o
Estrangeiro de Eléia faz explicitamente a pergunta: é verdade o que as pessoas contam, que a vida sob o reino de
Cronos era a mais feliz das vidas possíveis? Ele faz então uma distinção muito evidente e que hipoteca essa lenda e a
ideia de outro curso do mundo em que os homens seriam felizes. Se os bebés (272b, trophi-moi) da idade de Cronos
utilizassem o seu tempo, todo o tempo livre que tinham, para fazer filosofia, então pode-se dizer que o tempo de
Cronos era realmente um tempo de felicidade. Mas, se eles vivessem simplesmente para encher suas próprias barrigas
como animais e para dourar-se ao sol, então dir-se-ia que não era uma existência de felicidade, e que agora gozamos
uma melhor sorte.

Mas, diz ele, deixemos isso porque não podemos saber. E ele chega a uma espécie de antropogonia da humanidade
atual. De tempos em tempos, o deus abandona o cuidado do mundo e produz-se então uma catástrofe, o curso
contrário reaparece e os seres humanos são então como hoje: eles têm uma reprodução sexuada, vivem entre os
animais selvagens e são obrigados a passar do estado de natureza para o estado de cultura. E, diz Platão, os homens
teriam morrido aqui caso não tivessem os dons, as doações divinas, o fogo de Prometeu, as artes de Hefesto e de sua
companheira nas artes — sun-technos —, visivelmente é Atena que é visada. Foram eles que dotaram os homens de
tudo isso, e os homens puderam chegar a sobreviver^córtstituir cidades e a viver como vivemos hoje. Essas são as
grandes linhas do mito.

Platão retorna várias vezes a essa história de época de ouro, de idade de Cronos, e a essa antropogonia, essa espécie de
"politeiogonia" (criação das cidades). Esse é o caso em As Leis (676b ss. e 713b ss.), no Protágoras (321a ss.), na
República (36% e 378b), no Crítias (109b ss.) etc. Por que ele volta a ela? Há uma tradição que é retomada muito
fortemente no século V e enfrentada pelos seus grandes pensadores. Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, fala da época
de Cronos (v. 109-111). Contra o pano de fundo de uma velha tradição que continha essa ilusão coletiva de uma época
de abundância e de felicidade, tradição registrada por Hesíodo (v. 116-121), ele acrescenta a sua visão de como os
tempos se tornam cada vez mais difíceis: as gerações humanas se deterioram...

A esta visão opõe-se, no século V, uma visão diferente, que talvez pudesse ser chamada de racional, no bom sentido

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

do termo, e que é aproximadamente a mesma que a nossa hoje, uma visão evolutiva e, digamos, mais ou menos de
autocons-tituição, de autocriação da humanidade. O primeiro pensador ao qual essa nova visão pode ser atribuída é
evidentemente o grande Demócrito. Protágoras, que também era de Abdera e do qual se diz que ouvira falar de
Demócrito, sem dúvida ensinava coisas semelhantes, e essa também (como vimos há dois anos) é a tese de Tucídides na
Arqueologia do primeiro livro da Guerra do Peloponeso.

Qual é o conteúdo dessa tese? E o de que há um "estado de natureza" efetivo, um estado de selvageria, um estado pri-
mitivo; que, pouco a pouco, os seres humanos inventam as artes, constituem as comunidades ou as amplificam, se
organizam... Essa visão está em Tucídides, como pano de fundo da Arqueologia. Em Demócrito, tem-se um longo
extrato, que nos é transmitido por um autor bizantino, Tzetzes, e provém do Mikrós Diakósmos [B v 3, Diels] de
Demócrito. Nem em Demócrito nem em Tucídides há dom divino. Quando Platão faz Protágoras contar, no diálogo de
mesmo nome, um mito do nascimento da humanidade, é claro que ele põe em sua boca dotações divinas para os
homens, as histórias de Prometeu e de Epi-temeu etc. (321a ss.). Mas não há nada parecido em Demócrito: a
humanidade se constitui, se cria, se dá as artes, inventa a vida em comum, e isso progressivamente. Comentei longa-
mente o fato de que em Tucídides esse progresso se refere unicamente à técnica e à materialidade; ele não tem nada a
ver nem com um progresso moral, nem civilizacional. O progresso em Tucídides é que as pessoas sabem matar cada vez
melhor, a coisa se resume mais ou menos nisso.

Essa é a visão da Aufklãrung do século V. Mas, no século IV, há em torno de Platão muitas considerações sobre a reto-
mada do tema da época de ouro; há uma espécie de marcha à ré. O século IV é um período de crise, de decomposição
das significações imaginárias... Já há cínicos que falam de uma espécie de estado de natureza, que pedem o retorno ao
estado de natureza. Um conhecido discípulo de Aristóteles, Dicearco, retoma o tema da época de ouro combinando-o
com o que havia sido encontrado no século V — não se retorna simplesmente a Hesíodo. Há uma época de ouro, diz ele,
de não-guer-ra, de não-Constituição política; e era ao mesmo tempo uma época de penúria. Vê-se aqui uma espécie de
nostalgia ecológica: não era o paraísp4errestre no sentido da abundância, mas os homens eram melhores\ão
guerreavam, não eram corruptos moralmente — é um rousseauísmo ecológico —, mas viviam na dificuldade, comiam
ervas e frutas silvestres...

-Ora, Platão retoma esse material que encontra ao seu redor e, visivelmente, quer lhe dar outro sentido; ele o modela
enquanto mito, mas quer fazê-lo funcionar, de alguma maneira. A função essencial desse mito é, primeiramente, a de
inserir a antropogonia, a antropogênese, num processo que concerne à totalidade cósmica. Ou seja, vivemos agora num
período no qual há cidades e no qual o problema da política e do político se põe porque pertencemos a esse período
cósmico durante o qual o mundo é deixado à sua própria sorte. É por isso que a questão da política se põe. Na outra
fase, durante a época

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

de Cronos, é o próprio deus que cuida de nós, que nos apascenta e, por conseguinte, o problema da política não se
coloca.

Precisa-se ver a extraordinária combinação, mais uma vez, de audácia da imaginação, no sentido poético, de Platão e de
rigor quase geométrico com o qual, uma vez postos certos postulados, ele desenvolve a sua história. Os elementos de
partida são os três elementos da tradição mítica:

1) A inversão do sentido dos processos cósmicos.

2) O reino de Cronos.

3) O crescimento dos humanos a partir da terra.

Tomemos isso como postulados. Suponhamos também que há um deus que fabrica o mundo; para Platão é uma
evidência, ele crê estabelecer isso no Timeu, no qual explica como isso de dá. Suponhamos, como no Timeu e como ele
repete no Político (269c-d), que o mundo é um animal inteligente, que a totalidade do universo é um ser vivo. Supo-
nhamos ainda que somente o que é incorporai pode ser eternamente idêntico — o que também é uma evidência para
Platão, isso é afirmado em 269d do Político e no Timeu —, isto é, o ser verdadeiro são as Ideias (eidè), eternamente
idênticas a si mesmas, por outro lado, o "eternamente" não significa aqui onitemporalidade, mas atemporalidade,
ausência de temporalidade, o fato de nem se pôr a questão de um tempo (esse aei, esse sempre, não sendo
simplesmente um sempre atemporal, mas uma determinação que põe o ser verdadeiro como o que é idêntico a si
mesmo em todos os aspectos; é isso que ele significa muito claramente no Timeu).

Há três princípios para que um mundo seja feito: há o ente eterno, que é o paradigma no interior do qual o mundo deve
ser feito; há o devir eterno, isto é, o que, a todo momento e sob todos os aspectos, é outro. Aqui ainda pode-se admirar
a radicalidade do pensamento de Platão: quando busca o oposto do ser verdadeiro, ele põe o sempre dessemelhante (o
sempre não sendo temporal), ou seja, aquilo no qual não há um único momento — no sentido filosófico — de
universalidade. Nesse devir eterno não há nem mesmo dois pontos que sejam parecidos um com o outro: bastaria que
você se deslocasse um milímetro para que ocorresse a dessemelhança sob todos os aspectos. É pois o infinito da
dessemelhança, e essa é a matéria, isto é, o a-racional total.

Além desses dois, é preciso um terceiro elemento, o demiurgo que controla o devir eterno e o faz entrar numa forma
que participa da forma eterna. Mas esse demiurgo — e esta é uma diferença entre toda a filosofia grega em relação à
teologia cristã e até mesmo ao que está implícito no Antigo Testamento — não é onipotente; ele dá forma a essa
matéria kata to dunaton, na medida do possível.

Esse mundo, portanto, deve conter uma parte corporal. É por isso que ele é; ele existe como matéria formada pelo
demiurgo. Sendo corporal e espacial, ele só pode, por si mesmo, ir rumo à desordelíiTàausência de regularidade. Não
basta, pois, que o demiurgo o tenha]fabricado: ele o fabricou kata to dunaton à semelhança do vivente eterno, mas
esse mundo não é o vivente eterno, ele contém matéria e só pode, como tal, ir rumo à ausência de regularidade, à
desordem, à destruição...

Platão permanece aqui no imaginário grego, mas ele não permanece nele na medida em que, nesse imaginário, come-
çando com Hesíodo, há no mundo uma espontaneidade formadora. Para Platão, não há espontaneidade formadora, a

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 12 DE MARÇO DE 1986

formação é obra do demiurgo; a matéria não tem senão uma espontaneidade deformadora, destruidora ou corruptora.

Há, por fim, um quarto elemento, ele também grego; é que há uma lei, que o Político também menciona, de relação, de
equilíbrio, entre a criação e a destruição, entre a génesis e a phthora. Ela é uma necessidade, uma anankè impessoal, a
saber, o demiurgo não pode fazer nada em relação a isso, é assim; ele não pode fazer essa formação senão de maneira
aproximada e não de modo absoluto.

Dado que não há espontaneidade formadora da matéria, que há uma alteração desordenada, um movimento destrui-
dor, o princípio ordenador exterior — o demiurgo — é necessário: é preciso um deus produtor, fabricador, e o deus
produz esse mundo que não pode ser totalmente perfeito. Isso é muito importante para posteridade da história do
pensamento, inclusive da história do pensamento da sociedade. Com efeito, isso é retomado explicitamente no Político
e é um dos pilares ocultos do diálogo tanto no que se refere ao mundo como às coisas humanas.

Há outro aspecto de todo esse assunto. E uma espécie de teodicéia de Platão, que consiste em negar que a questão da
teodicéia possa ser colocada: se deus fez o inundo e se lhe forem atribuídos esses atributos, por exemplo, a onisciência,
a onipotência, a bondade absoluta, como existe o mal? Há então várias respostas possíveis. Não há mal, o mal é uma
ilusão. Ou a resposta leibniziana: o que nos aparece como mal é uma parte necessária de uma forma que não podia ser
otimizada senão como... uma superfície geométrica, que tem saliências e reentrâncias em alguns lugares, e é isso que
faz a sua perfeição total. Pouco importa. Platão, por sua vez, toma o argumento ao contrário, e o preço a ser pago para
negar a questão da teodicéia é o de negar a onipotência de deus. Para ele, há uma imperfeição do produto — isso é
certo e é repetido no Político — já que, no período de Zeus que estamos atravessando, as coisas andam rumo à sua
corrupção; essa imperfeição do produto é uma imperfeição da matéria-prima, em todos os sentidos do termo, a partir
da qual deus construiu o mundo. Mas essa matéria-prima não foi feita por deus, contrariamente ao deus cristão.
Portanto, ele não é responsável e nada pode fazer, é o limite de seu poder. O mundo é imperfeito porque só foi
fabricado no absoluto na medida do possível. Era a isso que Aristóteles já respondia dizendo que os argumentos de
Platão não se sustentam porque não se pode compreender que um deus, ele próprio supostamente perfeito, tenha
produzido, gerado algo menos perfeito que ele. E uma das razões que fazem com que Aristóteles pense um deus
totalmente separado, afastado do mundo.

Mas o importante, tanto relativamente aos argumentos de Platão e à maneira de colocar a questão como com relação a
toda a discussão da teodicéia, são os pressupostos dessa discussão. O mundo é perfeito ou o mundo não é perfeito; mas
perfeito em relação a quê? Vocês certamente podem ver a origem de toda essa discussão: dizer que algo é perfeito tem
um sentido quando se trata-de<ntes particulares — nada é perfeito neste mundo, é claro, mas, afinal de contas, um
automóvel é quase perfeito ou então é imperfeito, mal feito; quando se insere algo em um sistema, numa articulação
de finalidades em que isso serve para algo, em que isso corresponde à sua finalidade, é adequado ou ainda corresponde
ao tipo que sua espécie determina etc. Mas quando se trata do mundo, do ser-ente total, que sentido pode ter a
discussão sobre o fato de saber se

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

é perfeito ou não? Ora, o sentido é evidentemente a projeção antropomórfica do desejo: o mundo seria perfeito se
correspondesse ao que desejamos. Todos os argumentos apresentados nas teodicéias referem-se, naturalmente, a
todos os aspectos do mundo que são, parecem, são julgados por nós como contrários ao que desejaríamos, ao que nos
tornaria felizes — embora, por outro lado, ainda não tenha surgido alguém que consiga dizer o que o tornaria feliz,
bom, mas isso é outra história. .. (Isso faz parte, precisamente, da imperfeição de que podemos acusar o mundo; fomos
fabricados de tal modo que nem sequer sabemos o que poderia nos tornar felizes.)

Há pois essa espécie de alicerce antropomórfico em toda essa posição do problema. Isso já está subjacente na escolha,
por parte de Platão, do termo agathon para designar o ser verdadeiro, isto é, aquilo que está até mesmo além, como
ele diz, das essências e das Ideias e que as sustenta. Traduz-se agathon por "bem", o bonum dos latinos, mas não se
deve esquecer a etimologia grega de agathon. Agathon é o desejável, vem do verbo agamai (isso me agrada, gosto
disso), que tem a mesma raiz que agapô (eu amo), agapè. O agathon é o amável, o desejável. Quero com isso dizer que
o conteúdo antropomórfico dessa ideia filosófica suprema já se denuncia na escolha do vocábulo: o ser verdadeiro é o
que é desejável.

Essa é uma ideia de Platão; não é o imaginário grego. Para o imaginário grego anterior a Platão o ser não é nem agathon
nem não agathon; ele não é nem desejável nem detestável, ele não é nada disso. O ser é o que é, ele é espontaneidade
geradora e espontaneidade destruidora, ele é génesis e phthora. Isto está lá desde Homero até o final do século V. Isto
está em Demócrito. E é essa visão que é quebrada por Platão. Ela é quebrada dessa maneira, impelindo-se para o além
todo elemento de atividade e de espontaneidade criadora. Com efeito, essa não é uma verdadeira espontaneidade
criadora uma vez que aquilo que o demiurgo fabrica é fabricado como uma imitação de algo que está dado de uma vez
por todas, a saber, das Formas e, em particular, da Forma, da Ideia do vivente eterno. Mas esse elemento é exportado
desse mundo, é separado, e a phthora (ou seja, a usura, a corrupção, a destruição) é guardada para este mundo aqui —
vê-se isso com o mito do Político. Para que essa phthora seja mantida, contida em seus limites, é preciso que, uma vez
que ela atinja um certo ponto, o deus intervenha novamente, inverta o curso das coisas e, ao mesmo tempo, ele próprio
se coloque no leme para dirigir a evolução.

Retomo o quase teorema contido nesse mito com os postulados que enunciei no início, isto é, a ideia de que é preciso
primeiro acomodar esses três elementos da tradição, depois, que há um deus demiurgo, que a matéria é matéria não
inteiramente formável e que tende por si mesma à corrupção. O mundo é corporal, ele deve mover-se: isso é um
corolário. Ele é corporal, isso está claro; na realidade, é o aei gignesthai, o mudar sob todos os aspectos, portanto
também sob o aspecto das determinações espaciais. Portanto o mundo deve mover-se. Como ele é fabricado por deus,
ele é tão perfeito quanto possível; cere^deve mover-se, na falta da perfeição absoluta que é a imobilidade, com o
movimento que é — na concepção de Platão, mas concepção que não é gratuita —, o movimento que mais se aproxima
da perfeição absoluta. Esse movimento é o movimento circular. O profundo parentesco — se vocês quiserem,
imaginário, mas até mesmo lógico, matemático — do círculo com a identidade pode ser percebido: se uma identidade
não é uma identidade imediata, ela é mediatizada, ou seja, após ter feito um certo circuito eu retorno ao meu ponto de
partida. Esse movimento circular é idêntico porque o círculo é, entre as figuras planas, a única figura que se pode fazer
deslizar sobre ela mesma; em uma rotação, todos os pontos do círculo passam por todos os outros pontos e
permanecem no mesmo círculo. Não se pode, em compensação, fazer deslizar sobre si mesma nem uma senóide, nem
um conóide, nem uma elipse etc. Pode-se fazer deslizar sobre si mesma uma reta, mas aqui o problema fundamental é
que ela é imaginariamente infinita; é, pois, uma figura imperfeita para um grego, e para Platão em particular.

Portanto o mundo, se se move, não pode se mover senão circularmente. Como o deus fez o mundo (aqui a
demonstração talvez seja menos rigorosa), ele não o fez para ocupar-se dele constantemente, ele o lança, portanto, e o
deixa ao seu próprio movimento. Nesse momento, o mundo e a humanidade — uma certa parte, pelo menos — tentam
organizar-se, tentam resistir à usura e à corrupção, mas não conseguem. O mundo se corrompe cada vez mais, e
percorre o semicírculo do grande círculo que o conduz à corrupção — é a fase presente — e, em dado momento,
quando se chega ao limite desse movimento, o deus retoma o leme, faz o mundo girar em sentido inverso e o sentido
do tempo produz um rejuvenescimento.

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

Por que são precisos os dois círculos? Não há movimento circular somente no interior de cada um dos círculos. Os dois
círculos fazem parte de outro círculo já que o mundo passa periodicamente e sem cessar da fase de Zeus para a fase de
Cronos e vice-versa, do movimento como o vemos hoje para o movimento que veríamos de maneira inversa e que seria
o verdadeiro movimento. Isso também é um círculo: os dois subcírculos compõem um grande círculo. Então por que são
precisos esses dois círculos? Porque o mundo não poderia ser nem eternamente o mesmo — nesse caso ele seria perfei-
to —, nem mover-se eternamente do mesmo modo, porque esse também seria um mundo de perfeição (269d-e). E pre-
ciso, pois, que haja inversão do movimento, o mundo moven-do-se no outro sentido.

No nosso próximo encontro retomarei aspectos mais particulares do mito. Hoje concluirei com algumas considerações
sobre o porquê dessa digressão, o que ela representa no Político. Porque a justificação que é dada no diálogo em 275b-c
não se sustenta. Essa justificação é que, quando há um pastor e um rebanho, há uma diferença de natureza entre o
pastor e os animais que ele apascenta, portanto o verdadeiro pastor não poderia ser senão um pastor divino. Mas
poder-se-ia dizer isso sem introduzir o mito, dizer que essa definição não se sustentava e passar para outra definição do
político. Ora, não se faz nada disso e entra-se no mito e em seu desenvolvimento. Por quê?

Eu gostaria de sustentar que essa primeira definição do político como pastor só é, de fato, proposta por Platão para
poder contar a história do reino de Cronos. Não é o mito que é introduzido para refutar a primeira definição; é a
primeira definição que é introduzida para que Platão possa trazer o mito, para que haja algo em que pendurar o mito.

E por que quehele trazer o mito? Ora, porque ele quer destruir o pensamento do século V, destruir a antropogonia de
Demócrito, que ele censura em Demócrito, pois a passagem do Mikrós Diakósnios conservada por Tzetzes mostra uma
descrição muito mais elaborada que a que é resumida por Platão aqui como um primeiro estado da humanidade, e de
um progresso rumo a uma melhor auto-organização. A ideia deve ter sido realmente dominante nos espíritos fortes do
século V, como Tucídides, que não é filósofo, mas seguramente um grande espírito e que se baseia nela.

Há pois nos pensadores do século V uma ideia de auto-constituição da espécie humana6. Trata-se, para Platão, de
destruir essa ideia. Com efeito, na antropogonia que ele oferece, como que de passagem, no mito, os seres humanos
seriam destruídos — e aqui ele retorna à antiga mitologia — sem a intervenção de Prometeu, de Hefesto e de Atena (os
deuses que dão as artes). Em compensação, ele deixa cair a parte das dotações divinas que havia na narrativa de
Protágoras7, que sem dúvida era uma parábola em que Platão fala do próprio Protágoras; Zeus dava aos seres humanos,
dividindo-a entre todos, a arte política — tradução da democracia na boca de Protágoras, que sem dúvida é uma
tradução historicamente exata, que corresponde tão bem ao imaginário da democracia ateniense. Portanto, isso ele
deixa cair; são os deuses que permitem aos humanos a sobrevivência, e esses homens fabricaram tudo o que
fabricaram, as cidades etc, não em um ciclo da história do mundo que é um ciclo de progresso ou em um ciclo em que
os processos de desenrolam no sentido bom, mas fazem isso numa fase da história do mundo que se desenrola ao
inverso (que, evidentemente, aos nossos olhos corrompidos, parece desenrolar-se no sentido correto).

Há nisso, por fim, uma maneira de apropriar-se da antropogonia do século V demolindo o seu sentido político e filosó-
fico, demolindo-a como antropogonia que começava a balbuciar a ideia de autocriação da humanidade, para introduzir
a ideia de que o que nos permite sobreviver durante esse período de corrupção não é uma criação humana, mas uma
dotação divina. De qualquer modo, tudo isso pertence a uma série de ciclos que se repetem e dos quais jamais
sairemos, pelo menos enquanto vivermos esta existência terrestre — pois há sempre em Platão a reserva da
imortalidade da alma e de outra vida.” P150-167

“V. As três digressões (continuação)

1. O mito do reino de Cronos

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Eu lhes recordo, primeiramente, um elemento muito importante, com o qual por enquanto não podemos fazer grande
coisa: a vontade de Platão de ancorar a sua narrativa numa tradição popular tecendo — termo do Político, e
precisamente da segunda definição — três elementos dessa tradição:

1) A lembrança de que outrora houve homens que surgiam da terra.

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2) A nostalgia de uma época de ouro, de uma época feliz, do paraíso na terra: o reino de Cronos (elemento de folclore
mais ou menos universal).

3) A ideia, razoavelmente estranha, de momentos de inversão dos movimentos do céu e de todos os fenómenos ter-
restres, do sentido global dos fenómenos — ideia que, na tradição popular, está ligada a uma cólera de Zeus quando
Tieste cometeu uma segunda transgressão e que, ao zangar-se com ele, Zeus inverteu todos os movimentos do céu.

Precisamos parar aqui e refletir sobre o que isso quer dizer, primeiro no texto de Platão e depois em si — segunda
consideração tão importante quanto a primeira.

Vocês se lembram de como as coisas se passam: quando um curso do mundo chega ao seu término, nesse momento há
uma katastrophé, uma passagem brutal, uma inversão, uma reviravolta ao mesmo tempo que uma subversão. Outro
curso do mundo começa então. Um dos cursos do mundo é dominado por Cronos, e é o curso em que o deus se ocupa
do mundo. Durante o outro curso, o de Zeus, o mundo é abandonado a si mesmo, e a humanidade supostamente deve
esforçar-se tanto para lutar contra os animais selvagens como para assegurar a sua própria subsistência material e sua
organização interna.

Mas o que significa essa inversão, se pensamos nela? Naturalmente, falando de modo pouco rigoroso, poderíamos dizer
que há uma inversão do tempo. Mas assim que é pronunciada essa expressão nos trai, pois não há inversão do tempo, e
podemos nos perguntar se a expressão inversão do tempo tem, ela própria, algum sentido. A partir e a respeito desse
texto de Platão, estamos como que no meio do oceano Atlântico, sem salva-vidas, sem mastros nem ilhotas férteis. Sem
nada. O que significa inversão do curso do tempo? Isso é concebível? A que aporias isso nos conduz?

Aquilo de que fala Platão em sua narrativa, e que o tempo todo afaga a ideia de uma inversão do sentido do tempo, não
é a inversão do curso do tempo — ele evita isso. E a inversão dos movimentos, do sentido dos diferentes movimentos.
Para mostrar isso, tomemos dois exemplos de Platão: a esfera celeste e a geração dos indivíduos.

1) A esfera celeste: em vez de girar no sentido habitual, para nós do leste para o oeste, gira no sentido contrário. É uma
inversão do sentido dos movimentos. Mas poder-se-ia dizer que esse sentido de rotação é completamente
convencional. Não há nenhum privilégio intrínseco no sentido de rotação da Terra, diríamos hoje após Copérnico. A
Terra poderia girar no outro sentido, caso no qual, naturalmente, o sol nasceria no oeste e se poria no leste. A mesma
coisa no que diz respeito à direita e à esquerda. É evidente que as orientações espaciais são completamente
convencionais. Mas as orientações antes/ depois, temporais, como as fazemos? Nós as fazemos sempre a partir dê
pontos de referência espaciais: os ponteiros de nossos relógios giram e foi definido um sentido do percurso a partir de
pontos de referência espaciais.

2) A geração dos indivíduos: nesse outro exemplo platónico, a convencionalidade não opera mais. Sob o reino de
Cronos, os homens brotavam, cresciam da terra como velhos e depois rejuvenesciam até o momento em que,
transformados em pequenas crianças e depois em bebés, desapareciam. Uma vez mais, só podemos nos admirar, num
primeiro momento, com o poder de imaginação criadora assim como com a elaboração lógica que a acompanha. Se
deixarmos de lado as narrativas da mitologia tradicional, esse mito de Cronos no Político é a primeira obra de ficção
científica entechnos, escrita com arte — e não uma simples transcrição de um folclore popular - , da literatura universal.
Há, é claro, ficção científica na mitologia, nos Veda, mas, como escrito artificial, a narrativa de Platão é a primeira da
história da literatura [nota: Pode-se acrescentar a isso o início do Timeu e o Crítias (mito da Atlânti¬da) (P. V.-N.).].

Temos então esses homens que nascem velhos e que morrem recém-nascidos. Velhos-nascidos, deveríamos dizer. E
aqui não se pode mais falar de uma convencionalidade do percurso do tempo. Naturalmente, um sofista que levasse ao
extremo uma lógica vazia poderia sustentar que apesar de tudo alguém velho ou jovem é algo convencional. Mas o que
é convencional é o vocábulo. Ao menos no início, porque uma vez que ele exista ele comanda toda uma série de
ligações e de associações. Não se pode trocar velho por jovem, exceto se se modificar uma enorme quantidade de
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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

vocábulos na língua... No início, digamos, logicamente, eles são convencionais. Mas o estado de ser velho ou de ser
jovem nos rernete a uma descrição real. Ela nos parece ligada a um verdadeiro antes/depois que não pode ser invertido
arbitrariamente. Estou elaborando longamente o que pode parecer um truísmo, uma trivialidade. Mas é preciso prestar
atenção porque, precisamente, essas questões sempre estão aí, tanto na filosofia como na física fundamental: há
verdadeiramente tempo? E o que é o sentido do tempo? O que determina o sentido do tempo? Será ele puramente
convencional, como traçar eixos em um quadro? Pode-se colocar o zero aqui, ou ali, e escreveremos os mesmos
teoremas, as mesmas equações, bastará operar corre-tamente as inversões de sinais?

Esse antes/depois que experimentamos em função desse exemplo — capital, na verdade — da inversão
juventude/velhice nos remete a quê? Isso nos remete ao fato de não podermos nos impedir, apesar de todas as físicas e
de todas as filosofias, de considerar que para nós o sentido do tempo resulta de uma espécie de entrelaçamento
intrínseco dos acontecimentos uns a partir dos outros. As coisas parecem desenrolar-se no sentido habitual, do mesmo
modo que acariciamos um gato no sentido do pêlo. E, se o acariciarmos no sentido contrário, sentimos isso na mão e o
gato reage. Há como que um entrelaçamento, um encadeamento dos acontecimentos que nos parece evidente,
necessário. Pode-se pensar nesses conjuntos de panelas que exigem que a menor esteja dentro da maior para que elas
possam ser empilhadas... Portanto, temos aqui como que uma percepção de um encadeamento sustentada
intrinsecamente pelas próprias coisas, como que uma geração interna das sucessões. E é*isso que estamos
acostumados a pensar como tempo.

E o que nos desvela, nas entrelinhas, a narrativa platónica do mito de Cronos é tudo menos banalidades, trivialidades, já
que se trata de um dos grandes problemas não resolvidos da filosofia e da física fundamental. Pois quando se fica
limitado à grande física tradicional, a saber, a mecânica racional, incluindo a sua forma mais acabada, a relatividade, no
quadro dessas teorias o sentido do tempo é completamente convencional. O exemplo clássico da mecânica, as bolas de
bilhar que se chocam, é eloquente: suponhamos que elas não caiam numa caçapa — pois há, efetivamente, coisas
irreversíveis e filmemos o processo. Depois passemos o filme ao contrário. O que veremos nele 1) está completamente
de acordo com as leis da mecânica racional; e 2) não os surpreende nem um pouco. Deixando de lado o choque inicial.
Todo o desenvolvimento, no que diz respeito ao resto, não os espanta.

Agora, peguem um filme de Carlitos. Ele lhes mostra entrelaçamentos de fatos da vida, isto é, irreversíveis. Vejam-no ao
contrário: Carlitos sobe a escada de costas e muito rápido. E vocês riem porque vocês têm a sensação imediata de que é
impossível; de que há uma inversão do sentido dos processos que não é possível. Por quê? Apesar de tudo, Carlitos
subindo uma escada de ré, com as costas viradas para o alto da escada, não é senão uma bola de bilhar cujo sentido foi
invertido. E se uma bola pode ir da direita para a esquerda, ela também pode ir da esquerda para a direita. Está-se aqui
em cheio no grande problema da existência de processos irreversíveis, que está no centro da termodinâmica e da refle-
xão filosófica. É também a famosa história do ovo: mesmo que mecanicamente não haja nenhum absurdo, se se quebra
um ovo, ele não se reconstituirá sozinho como ovo não quebrado. Há algo nisso que marca a irreversibilidade. E a ten-
tativa de mostrar por que há o irreversível sempre está presente, sempre aberta, sempre sujeita a caução. A única coisa
que os físicos puderam dizer sobre isso foi que a inversão do sentido dos acontecimentos é extremamente improvável.

Não vou me deter nisso porque neste momento não é o que discutimos. Mas ao menos faço esta observação, que está
implicada no texto: O Político, que, com o Timeu, é o primeiro texto em que a questão do tempo é abordada na história
da filosofia, remete a esta interrogação: pode-se ou não conceber um tempo separado de todo conteúdo? Está claro
que, se podemos fazer isso, a convencionalidade do sentido do tempo aparece como infinitamente mais plausível, até
mesmo certa. Se, em compensação, não podemos conceber um tempo separado de todo conteúdo — como eu creio,
junto com Aristóteles —, se não podemos pensar, não podemos viver um tempo senão ao mesmo tempo em que
pensamos e vivemos a produção de um entrelaçamento interno intrínseco de acontecimentos, ou seja, a produção de
acontecimentos ou de fatos uns a partir (apo) dos outros, então, nesse momento, o sentido do desenrolar dos acon-
tecimentos também dá um sentido ao tempo. E o antes/depois temporal não é simplesmente arbitrário. E isso, com
efeito, seria necessário para dar todo o seu valor ao Político e ao mito de Cronos enquanto mito. Em outras palavras,
para sublinhar o fato de que falamos de algo que é impossível, e não apenas inabitual; algo que de fato põe em questão
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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

os constituintes do ser, os constituintes do universo, a saber, a solidariedade interna do desenrolar do tempo com o
desdobramento do ser. Porque é disso que se trata. E é essa ideia de uma solidariedade interna de-desenrolar do tempo
e do desdobramento do ser — para mim, a ideia central nesse domínio — que é radicalmente rejeitada e condenada na
época moderna pela posição kantiana, pela ideia de que a subjetividade produz, cria uma forma pura de intuição que é
o tempo e que, como tal, tem um sentido independentemente de todo acontecimento que se desenrola nele.

Isso é o que está em germe no mito do Político, de maneira extremamente fértil, e que, ao longo do tempo histórico, do
tempo do pensamento, será mais ou menos desenvolvido, mais ou menos explicitado, a partir desse texto.

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

Mas ainda há vários pontos sobre os quais precisamos dizer algumas palavras.

Primeiramente sobre o que Platão desenvolve em 271c: na época dos bons tempos, no tempo de Cronos, quando o
próprio deus dirigia o curso das coisas, o que ocorria? Em relação à nossa visão atual, tudo andava ao contrário: nascia-
se velho e morria-se bebê. Mas encontramos aqui o que Platão disse e redisse, dezenas de vezes em seus diálogos,
sobre a imagem do mundo dada pela filosofia. A filosofia dá o mundo verdadeiro e esse mundo verdadeiro, para o
homem comum, é o mundo invertido. No mundo verdadeiro tal como é desvelado pela filosofia, o que é importante é
inexistente para o homem comum; e o que é fundamental para o homem comum é totalmente indiferente. O que é
verdade é aparência, e o que é aparência é verdade. E isso é redito aqui por Platão de outra forma: no tempo de Cronos,
que é o verdadeiro tempo pois o mundo era realmente dirigido pelo deus, para nossos olhos atuais tudo estava
invertido.

Para nós, isso não pode mudar, é o tempo enquanto tal. E quando Platão inverte os conteúdos velhice é igual a nasci-
mento e infância é igual a morte. Aqui também temos esses dois percursos: os homens brotam velhos da terra e depois
se tornam bebés. Não se sabe exatamente o que se passa, mas é preciso supor — já que para Platão as almas são
imortais — que uma vida continua uma vez que a criança morre, que sua alma passa o tempo necessário "atrás" para
reaparecer ao nascer num velho.

Então o mundo verdadeiro é o mundo de Cronos? Não, não vivemos em um mundo não-verdadeiro, vivemos no período
ruim do mundo, no tempo de Zeus, quando o mundo é abandonado a si mesmo. Mas por que se passa de um mundo
para o outro? A resposta de Platão é um retorno a um pensamento essencialmente grego. É preciso compreender que o
mundo gira, gira, gira, como os giros do ponteiro do relógio, e que ao fim de n giros um tipo de período chega ao seu
termo; a partir disso começa outro período, um segundo ciclo cósmico, que, ao fim de n giros... E a mudança ocorre
(272d) sttslÔt] yap TrávTGJV toútojv xpovoç eTeXecóÔT] «ai u,eTaPo\Tyv è'8ei yíyve&Qai, "quando o tempo
estabelecido para todas as coisas se completou, a mudança teve de se produzir", quando o dinheiro terrestre tinha sido
gasto. Mas esse tempo foi estabelecido por quem? Aqui, é Cronos que dirige e que tem subdi-retores, pastores que
apascentam as diferentes categorias de seres, entre eles os seres humanos. Então quem determina o fim do reino de
Cronos?

Lembrem-se aqui do parentesco, se não da verdade etimológica, Cronos/crirónos: chrónos é o próprio tempo. Há pois
um sobretempo que diz ao tempo: o teu tempo passou. Há

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

uma instância superior que diz a Cronos: agora está terminado, é preclsl^passar para outro ciclo. E essa instância não é
de modo algum uma instância pessoal, são as próprias coisas, é a necessidade das próprias coisas, é uma ananké
superior a toda instância pessoal e a toda divindade.

E nisso Platão permanece profundamente grego: essa concepção está profundamente ancorada na história e no imagi-
nário gregos, sempre presente na mitologia. Há uma ananké de ferro, uma necessidade absolutamente insuperável que
nenhum deus pode deixar de lado, exceder. E isso aparece várias vezes em Platão. No Timeu, por exemplo, quando o
demiurgo fabrica um mundo tão perfeito quanto possível, mas não absolutamente perfeito. O mesmo ocorre no
Político, em 273b: o mundo abandonado por Cronos se organiza do melhor modo possível, eis dunamin. Portanto,
quando a divindade suprema se retira, ela deixa o mundo ao seu heimarmené, ao seu destino, e à sua sumphutos
epithumia, ao desejo que lhe é próprio. Frase surpreendente! E o desejo próprio ao mundo é o que se passa então nessa
fase: o mundo e a humanidade tentam se organizar como podem, mas não conseguem. Pouco a pouco eles se
aproximam da catástrofe, e é então o fim dessa série de ciclos: o deus é obrigado a retomar o leme, a reinstalar-se no
posto de pilotagem e a retificar as coisas. O desejo sumphutos do mundo, co-nativo, que cresce com ele, é ao mesmo
tempo essa necessidade, essa tentativa de se organizar e a impossibilidade de conseguir. Porque o que é mais pesado
no mundo, segundo Platão, é essa tendência à corrupção e à destruição. Se quisermos cometer um anacronismo, pode-
mos falar de pulsão de morte: ou, melhor ainda, de uma luta entre uma tendência à integração e uma tendência à
desintegração. E como é a segunda que é mais forte, no termo de uma série de ciclos, para fazer o mundo sair dela e
para salvá-lo, o deus deve intervir.

Mas o que é toda essa história senão uma enorme teodicéia, uma enorme apologia de deus! Se as coisas são tão ruins,
não é culpa de deus. Ele fez o mundo o melhor que pôde com a matéria de que dispunha. E essa matéria condena o
mundo a uma corrupção gradual. Agradeçamos, porém, à divindade por ter feito o possível, por um lado, e, por outro,
por suas intervenções repetidas e salvadoras (273b-d). Pois o mundo, deixado a si mesmo, degenera numa organização
cada vez mais confusa, pelo fato de conter um elemento corporal, essencialmente ligado à sua antiga natureza, que o
faz perder a memória das Formas que o demiurgo lhe havia imposto. Há pois uma léthé, um esquecimento das Formas
demiúrgicas, e — frase extraordinária — o mundo cada vez mais é dominado por sua paixão rumo à velha desordem, a
desordem de outrora: coMxcrreúei tò Tqç TraXaiãç àvapu.oaTÍaç TráfJoq (273c). Abandonado a si mesmo, na repetição
de ciclos cada vez mais calamitosos, sem a intervenção divina o mundo desembocaria em sua catástrofe. Isso é,
portanto, uma teodicéia.

Há, no momento em que o deus "toma novamente o leme", uma frase incidente para justificar a sua intervenção: o
mundo está na aporia, perto de sua ruína, e é preciso evitar que ele mergulhe, que ele se dissolva no "oceano sem fim
da dessemelhança", eiq tòv Tqq cWolju3lótt]to<; aTreipov óvtcí ttóVtov. Sobre essa frase, poder-se-ia facilmente
escrever quatro volumes! A dessemelhança, a alteridade. Efetivamente, esse "oceano de dessemelhança" é apeiros,
infinito, interminável, inexpe-rirhentável, impensável, em última análise. Pode-se, com efeito,

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imaginar um grupo ou um conjunto de coisas que seriam todas perfeitamente dessemelhantes, sob todos os pontos de
vista, umas em relação às outras? Impensável. Ser é ser idêntico a si primeiramente ricxtempo; e ser é participar do
universal. Ser é ter alguma outra coisa que se pareça consigo. E isso pode ser tomado sob todos ospontos de vista. Por
exemplo, sob o ponto de vista mais concreto da humanidade ou da biologia: não se pode ser cão soziriho, não apenas
porque é preciso que haja cadelas, mas também porque é preciso que haja carne que passeie sob a forma de lebre. Mas
também se pode tomar isso — e isto é capital — no nível mais filosófico: o absolutamente heterogéneo é um limite do
pensamento. O mundo do tempo de Zeus se torna cada vez mais desordenado, portanto cada vez mais heterogéneo,
logo cada vez menos pensável; e justamente por isso ele participa cada vez menos do ser.

Ao intervir, Cronos salva ao mesmo tempo a existência real, efetiva, do mundo, salva a universalidade do ser e o meio
de dizer a heterogeneidade. Porque, para dizer a heterogeneidade, é preciso certa base de homogeneidade. Para poder
dizer o outro, é preciso ter o mesmo. Para poder dizer sob que aspecto o outro é outro; mas para dizer que ele é outro
disto aqui, é preciso que o b que é outro de a, é preciso que ambos, em certo sentido, de certo ponto de vista, sejam
colocados no mesmo nível. Isso não é possível de outro modo.

Terceiro ponto, 274b: essa nova antropogonia, a maneira pela qual os primeiros homens selvagens puderam sair da sel-
vageria e criar pouco a pouco uma vida civilizada. Resumo aqui o que expus longamente no nosso último encontro. O
mito da antropogênese ou da antropogonia que temos aqui — falamos aqui do círculo de Zeus —, o que se diz a
respeito do ser individual, pode ser dito de toda a humanidade. O seu nascimento ainda não é a infância, mas é um
estado primitivo, ele caminha para uma espécie de civilização. Essa ideia de antropogonia e a descrição que Platão faz
dela opõem-se efetivamente àquilo que havia como fundo na tradição grega, a saber, a ideia de uma época de ouro,
que aqui é a época de Cronos. A época de Cronos é o nome grego para época de ouro, para tempo paradisíaco, o Éden.
Esse era o fio de Platãch Mas, desde o século V, pensadores como Demócrito, Protágoras e Tucídides — sem mesmo se
darem ao trabalho de dizer: isso tudo são tradições, bobagens populares, mitos — afirmam que deve ter havido um
estado primitivo, um estado menos avançado tecnicamente e do ponto de vista da civilização do que o que existe hoje.
E essas são explicações que florescem no século V e que também andam junto — creio que isso é implicitamente certo
tanto para Demócrito como para Tucídides — com a ideia, que não é formulada deste modo, mas que é a ideia da
autoconstituição da espécie humana. Uma espécie humana que realmente se forjou com a força dos punhos. A ênfase
de Demócrito e de Tucídides nas invenções materiais também é muito forte. Desse ponto de vista eles antecipam Marx,
que não inventou muita coisa: todo o procedimento material pelo qual se sai do estado selvagem é destacado por
Demócrito e na Arqueologia de Tucícides. Há pois essa ideia, que já existia no século V e que se difundia, de uma
autoconstituição da espécie humana — mesmo que ela não fosse designada com estes termos.

Ora, o que faz Platão com esse mito? Em primeiro lugar, ele retoma a ideia de uma antropogonia e, ao mesmo tempo,
retira dela o caráter histórico que muito claramente tinha em Demócrito e, sobretudo, em Tucídides, mergulhando-a em
um

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número infinito de ciclos que se sucedem. Tudo isso não passa de uma eterna repetição, ora num sentido, ora no outro.
Em segundo lugar, por mais que se faça — veremos isso detalhadamente quando discutirmos a grande digressão central
—, con-segue-se apenas uma pobre aproximação do que podia ocorrer no tempo de Cronos. Mas com isso, nessa
apresentação delibe-radarpente a-histórica, encontra-se a vontade de Platão — manifesta na República e sobretudo nas
Leis — de parar, de fixar a história, de pôr fim a essa mudança nas cidades, a essa adoção de novas formas. Mais
precisamente, se nas Leis e na República essa tendência se manifesta sobretudo como uma vontade de não mudar a
Constituição da cidade, ou então de modo completamente excepcional aqui no Político, é simplesmente uma
constatação, mais que uma vontade: não se trata mais de parar a história, pois em certo sentido a história já parou. E
desde sempre, já que ela só se desenrola em dois tipos de repetição que se reproduzem constantemente, girando seja
num sentido, seja no outro. Não há história, há apenas ciclos eternos que se desenrolam nesse tempo que, conforme
Platão disse no Timeu, foi criado por deus no final de sua demiurgia do mundo como imagem móvel da eternidade. Esse
tempo que é apenas uma imagem da eternidade é então forçosamente circular, pois o círculo, o ciclo, é a figura que
melhor lembra a identidade: ele pode girar sobre si mesmo sem que nada mude.

Há também, naturalmente, a reintrodução (274c-d) mais crua de uma heteronomia completamente mítica. Aqui, Platão
retoma a tradição mitológica: não foram os homens que inventaram ferramentas, cidades, muralhas, embarcações,
como a tradição democriteana retomada por Tucídides ensina. Não, para Platão foram novamente Prometeu-Hefesto-
Atena que deram aos homens as artes de que tinham necessidade para sobreviver no momento em que estavam
ameaçados de extinção porque os animais selvagens eram muito mais poderosos que eles.

Assim, essa espécie de reconhecimento embrionário mas razoavelmente seguro em sua inspiração, que surgiu no século
V, de um tipo de autoconstituição, de autocriação da humanidade, essa consciência embrionária que aparece através
das reconstituições de uma primeira fase da história da humanidade nas antropogonias de Demócrito, de Protágoras, na
Arqueologia de Tucídides e até mesmo em outros, em certo sentido, na Oração fúnebre de Péricles, essa consciência
embrionária é aqui destruída pela reintrodução de uma heteronomia cosmológica. Ela é destruída, portanto, no nível
mítico, cosmológico, no nível de uma cosmologia que não tem outros fundamentos senão o imaginário de Platão. E ela
também será destruída na primeira digressão à qual chegaremos, isto é, na ideia de que de fato o que os homens
puderam inventar para se salvaguardar no círculo de Zeus é algo completamente inferior e sem comparação com a arte
do verdadeiro pastor dos rebanhos humanos.

.«. Última observação sobre esse mito antes de entrar na principal digressão. O que aparece como objetivo do Político?
Introduzir por trás do pensamento político de Platão, por trás dos magistrados das Leis, o que se poderia chamar de
"reservas estratégicas" no nível da filosofia, no nível da ontologia, no nível da cosmologia. Assim, Platão argumenta,
discute, nas Leis para mostrar que são precisos magistrados assim ou assado; e na República o que deve ser a classe dos
filósofos que dirige, governa. A cada vez, ele tenta justificar tudo isso dis-cursivamente. Mas o mito do Político intervém
no mesmo

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sentido e de uma maneira muito mais profunda, justamente contando que no verdadeiro estado de coisas, no tempo de
Cronos, a humanidade era dirigida pelos pastores divinos. E não é senão como second best, segunda solução menos boa,
que durante o tempo de Zeus os homens governam a si mesmos. Mas vamos agora à segunda digressão.

2. Segunda digressão: a forma dos regimes

Platão retoma a distinção entre as formas dos regimes já utilizada por Heródoto, depois Xenofonte, e o próprio Platão
na República quando, mesclando considerações de filosofia política, de sociologia e de antropologia, distingue os
diferentes tipos de regimes políticos, que, por outro lado, permaneceram clássicos na filosofia política. Essa discussão é
retomada várias vezes no Político, mas o que mais nos interessa é que a respeito dessa distinção dos tipos de regimes
intervém a famosa digressão concernente à lei e ao fato de que não é a lei mas a ciência que deve prevalecer na cidade.
Essa ciência é possuída pelo político, e nunca pode ser adequadamente depositada em ou representada por leis.

Essa digressão vai de 292a até 300c. Ela começa colocando uma primeira base em 292c na qual o Estrangeiro diz: mas
será que tudo isso é realmente sério, tentar distinguir as constituições das cidades a partir do fato de que são alguns
que dominam, ou muitos, ou a totalidade; que há liberdade ou coação; que são os ricos ou os pobres? Já que afirmamos
que a política é uma ciência, não é em relação a essa ciência que devemos operar as nossas distinções? Evidentemente,
o jovem Sócrates responde que é impossível fazer outra coisa.

A questão que se põe agora é pois necessariamente esta: em qual dessas Constituições se realiza a ciência do governo
dos homens [...] a maior que seja possível adquirir?

Lembremo-nos de que isso, aqui, reproduz, repete essa espécie de petição de princípio que foi introduzida com negli-
gência no início do diálogo, sem que pudéssemos realmente prestar atenção nela naquele momento. Petição de
princípio que parece ser evidente, mas que é altamente contestável: a política é uma ciência, uma epistéme no sentido
forte do termo. Isso foi dito no início do diálogo, partiu-se disso, ninguém contestou, disse-se um monte de coisas,
agora chega-se à descrição dos diferentes regimes como geralmente as pessoas os descrevem. Há democracias, há
oligarquias; há regimes em que os ricos dominam, outros regimes em que os pobres são mais fortes. .. E, de repente, o
xenos, homem sério, diz: Mas o que estamos contando? Não tínhamos dito que é a ciência que determina a política? E,
se isso for verdade, é a partir da ciência que é preciso determinar o resto e a relação com a ciência. Com efeito, você
tem razão, responde o jovem Sócrates: "Isso nós não podemos não querer". E embarca-se então nessa terceira digres-"
são referente à ciência. Mas para sair dela quase imediatamente, em 292e, e com base em uma observação ultra-
empírica, completamente contingente, material, e de uma natureza totalmente diferente das considerações a priori
precedentes:

Pois bem, será que, em uma cidade, pergunta o Estrangeiro, a multidão seja capaz de adquirir essa ciência política?

E preciso chamar a atenção para a extraordinária retórica — desonestidade? — de Platão. Considerações como "a

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

política é unia ciência", que parecem lógicas, filosóficas, a priori, passam assim. Contudo, é uma ideia que de saída se
situa num nível muito elevado, ideia que parece profunda — e que é, aliás — e que levanta, mesmo sendo falsa ou
contestável, uma imensidade de problemas. A política pertence ao domínio do fazer, o fazer é uma atividade
consciente. Há uma noção do "bem fazer" ou do "mal fazer"? Claro que sim. Se há um lado consciente no fazer, o bem-
fazer só pode estar ligado a esse lado consciente. Logo, quanto mais consciente se é, melhor se faz. Limite: o saber
absoluto garante o fazer correto? Talvez. Mas, aqui, como é que se chega a essa afirmação de que é somente a epistéme
que pode gerar a boa política? Quem definiu a Ideia de política? Pois há sempre essa tendência em Platão de deslizar da
norma para o ser: a boa política é a política. A má política não é política. Assim como a má filosofia não é filosofia, é
sofística. E a má política não é senão uma variedade da sofística, ou seja, tráfico de ídolos, de imagens. Seria preciso, por
outro lado, perguntar-se até onde pode ir essa espécie de confusão: será que um mau cavalo não é mais um cavalo?
Bom, mas isso está claro para Platão, pelo menos no domínio das faculdades.

Portanto, é retórica essa afirmação abrupta que nos diz que a política é uma ciência. Mas é retórica também a maneira
pela qual ela é interrompida por esta consideração de natureza completamente diferente, consideração perfeitamente
empírica, material, do Estrangeiro:

— Sobre isso, a multidão é capaz de adquirir essa ciência política?

— Como seria possível?

— Mas, em uma cidade de dez mil cidadãos, será que cem ou até mesmo cinquenta cidadãos possuem essa ciência?

Aqui, o jovem Sócrates intervém para pronunciar muito mais que as cinco ou seis palavras de adesão que ele diz habi-
tualmente:

De acordo com isto, a política seria a mais fácil de todas as artes. Já seria muito difícil encontrar, em dez mil cidadãos,
cinquenta ou cem que soubessem jogar bem os dados. Então, para esta arte que é a mais difícil de todas, se houvesse
um cidadão para possuí-la, já seria um milagre!

Nessas condições, retoma o Estrangeiro, é a esse raro cidadão, se ele realmente possui a ciência política, que pertence
exercer o orthè archè, o bom comando. E aqui Platão, numa tirada retoricamente muito bela, mas perfeitamente atroz,
tira as consequências do que acaba de ser dito e que justifica o absolutismo do poder: "Esses indivíduos, quer eles
governem ou não com o consentimento dos cidadãos, segundo grammata •ou sem grammata, quer sejam eles ricos ou
pobres, é preciso dizer que são eles os verdadeiros soberanos". A sua autoridade se conforma a uma arte.

E o Estrangeiro tenta aumentar a sua vantagem recorrendo a uma comparação perfeitamente sofística com o médico.
Manobra que apenas reforça o aspecto decididamente retórico de toda a argumentação. Pois o arsenal retórico de
Platão é completo e, se ele sabe utilizar a apresentação do plausível como prova do verdadeiro, ele também usa bem a
estratégia do diversionismo. E é elementar: desloque-se o ponto de interesse

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do auditório e com isso o jogo está quase ganho. Caso você se esforce para demonstrar algo com raciocínios, números...
Basta ao seu adversário gritar: "E a Nicarágua! E a Polónia! E as nacionalizações!" para que a multidão comece a berrar...

Portanto comparação-diversionismo, razoavelmente evidente já que introduzida por um "por outro lado":

Se tivéssemos um médico, por outro lado, diríamos que ele é menos médico por ser rico ou pobre? Diríamos que ele é
mais ou menos médico porque age de acordo com regras escritas ou sem regras escritas?

Vocês diriam que uma prescrição médica é falsa porque o doente se recusa a segui-la? É evidente que não. O que nos
remete ao Górgias, à maneira pela qual Platão vê a relação entre a techné médica e a retórica. Górgias nos diz que seu
irmão é médico, que ele conhece boas receitas para curar, mas que não sabe, não é capaz de convencer o seu doente a
obedecê-lo. E então papel do retor, portanto, de Górgias, persuadir esse doente. Aqui, no Político, o verdadeiro médico,
quer ele saiba ou não persuadir e quer o doente seja convencido ou não, tem razão de nos purgar, de cortar nossa
carne, de queimar, de operar, na medida em que ele age de acordo com o bom discurso, orthós lógos.

O mesmo pode ser dito do político, portanto. O que é dito sem ser dito, e aí está todo o contrabando. 293c:

Entre os regimes políticos, as diferentes politeiai, a única verdadeira e boa politeia será aquela na qual os governantes
possuírem autenticamente o justo saber, serão epistèmones, sábios no domínio político.

E esses governantes terão razão, quer eles ajam de acordo com as leis ou contra as leis e quer eles governem sujeitos
que concordem ou não em ser governados, e governados assim.

Platão sabe como defender o seu ponto. Ele tem um filão muito forte do qual tentará tirar as consequências mais extre-
mas. E durante essa tentativa, após um discurso de aparente rigor total e de várias aprovações do jovem Sócrates, este
último recalcitrou novamente: "Tudo isso é muito bonito, mas ha uma coisa que me incomoda no que dissemos; é essa
história de segundo as leis ou contra as leis". Então o Estrangeiro retomará, e será a ocasião de criticar a lei. Pode-se
aqui, a justo título, pensar em Napoleão e em Clausewitz, na estratégia, mas transposta para o domínio do discurso:
quando uma vitória é conseguida, é preciso explorá-la a fundo, ignorar os objetivos secundários, aumentar a vantagem.
Portanto, o Estrangeiro continua: não apenas contra as leis, mas também ele pode matar ou exilar cidadãos, uma vez
que age ep' aga-thôi, para o bem da cidade, uma vez que tem o saber, portanto sabe o que é bom para a cidade. Isso
realmente é a legitimação do poder absoluto, é o secretário do PC que sabe o que é bom para a classe trabalhadora. E
as pequenas precauções que Platão toma são um tanto divertidas: soxrTrsp cív, enquanto, na medida em que;
STruTTTT|p/f) Koà T(p ÔLKaítp Trpoaxpwu.evoi a(p£oVTe<; (293d-e), utilizando a ciência e o direito para salvar a cidade
fazendo-a, de pior que ela era, melhor... Então, nessas condições, temos aqui o verdadeiro político, portanto a
verdadeira politeia. E todas as outras são imitações bastardas, bizarras, falsificações...

A esse poder absoluto justificado pelo saber político não há nenhuma limitação além da resultante de seu próprio sa

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ber. Ou então da natureza das coisas. Mas, neste último caso, nada é precisado. O que é essa natureza das coisas?
Visivelmente, não se pode obrigar as pessoas a andar de ponta-cabe-ça, mas além disso não há mais nada. Quem
poderia dizer ao homem régio: você está ultrapassando o que pode fazer? Em nome de que ciência? Com que direito? É
ele que possui o conhecimento.

, o jovem Sócrates toma a palavra um pouco longamente:

Sobre todos os outros pontos, Estrangeiro, a sua fala me parece completamente judiciosa (metriôs). Mas no que diz
respeito à obrigação de governar sem leis, eis uma coisa com a qual nos sentimos desconfortáveis ao ouvir falar nela.

E de fato, para um grego, isso é absolutamente inconcebível. Recordemos, em Heródoto, a fala do espartano trânsfu-ga
a Xerxes, que chegou à Grécia com seu grande exército. Xerxes está seguro de sua vitória porque os gregos não têm
nenhum soberano para conduzi-los na batalha. E Demarato responde: "Você se engana, ó Rei, porque eles têm um
soberano que temem infinitamente mais que os persas temem a ti. — E quem é?, pergunta Xerxes. — O no'mos!".

Mais de um século depois disso, o jovem Sócrates reage do mesmo modo: essa história de que o político pode governar
sem leis é inaceitável. E o Estrangeiro: você faz bem em levantar essa objeção, eu já esperava por isso, ia perguntar-lhe
se você aceitava todas essas coisas que eu disse ou então se, entre elas, há alguma asserção que o incomoda. E "nossa
intenção será agora a de expor a questão da retidão de um governo sem leis". E ele começa então esta famosa
passagem, muito bela e verdadeira. Pôr leis é uma função régia. Recordemos o enorme abuso de linguagem cometido
por Platão no Político ao identificar constantemente o homem político com o homem régio. O que é uma
monstruosidade para a Grécia, mesmo a do século IV, porque o rei é o Grande Rei dos persas, é o déspota asiático.
Ninguém mais é rei nessa época, e até mesmo os tiranos sicilianos não ousam se fazer chamar assim. Quanto a Esparta,
os seus "reis" não são realmente reis. E, contudo, Platão fala francamente: o homem político é o rei!

O Estrangeiro: "Já que a arte do legislador é uma parte da arte régia, isto é, da arte política, o que digo é que o melhor
não é que as leis sejam soberanas, mas andra ton meta phro-nèseôs hasilikon — o homem régio que age com
phronèsis". E a phronèsis não é a prudência, é o julgamento no que ele tem de criador. Não é apenas, como diz Kant, a
capacidade de submeter os casos a uma regra nem mesmo a de encontrar a regra comum por meio de diversos casos. A
phronèsis é encontrar, a partir de um caso único, uma regra original que se aplica a esse caso e, talvez, a outros casos
que ainda ocorrerão. O caso que surge sendo único, não é subsumível numa lei já existente. O homem político, o
hasilikós, deve governar. Por quê? Porque a lei não se aplica:

— A lei jamais poderá, seguindo o melhor e o mais justo para todos, ordenar o mais perfeito, pois as dessemelhanças
dos homens e dos atos, e o fato de que quase nenhuma coisa humana jamais está em repouso não permitem enunciar
nada de absoluto que valeria para todos os tempos e para todos os casos em nenhuma matéria e em nenhuma ciência.
Estamos de acordo sobre isso?

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— Sem dúvida!

— Ora, a lei tende justamente a isso [isto é, a impor em todos os lugares e através de todas as circunstâncias a mesma
regra], como um homem presunçoso, arrogante e ignaro (ánthropon authadè kai amathè) que não permite que nin-
guém faça algo contra as suas ordens, nem mesmo fazer-lhe perguntas, nem mesmo, se algo novo ocorresse, fazer me-
lhor fugindo das regras que ele prescreveu (294b-c).

O homem arrogante, presunçoso, ignaro, é a lei. Eu disse de uma vez por todas: ponham a sua capa de chuva! Mas está
fazendo sol... Eu disse o que eu disse. A lei disse de uma vez por todas e ela permanece no que disse, ela não aceita nem
discussão nem objeção.

Essa passagem, que condensa toda uma série de outros desenvolvimentos de Platão sobre o mesmo assunto, notada-
mente no Górgias — até uma coletânea sobre esse assunto já foi feita —, também está no início do que Aristóteles
desenvolverá no quinto livro da Ética a Nicômaco sobre o conceito de equidade'. E essa ideia também está no âmago,
no fundamento, de todas as críticas de Hegel contra o que ele chama de "universal abstrato". Todas as críticas
hegelianas contra Kant, por um lado, contra a filosofia do universal abstrato em geral, estão contidas aqui. E tudo isso
coincide com um motivo muito profundo da filosofia platónica, motivo aliás contraditório — estamos aqui, mais uma
vez, em plena turbulência. Motivo contraditório porque, por um lado, se tem esse tema que aparece aqui em relação à
lei, o tema de que a lei repete sempre a mesma coisa; e que pode ser retomada sob mil e uma formas; é preciso ao
menos suplementar, completar a lei com a equidade. E aí pode-se dar a essa crítica da lei a forma socialista: a lei, por
exemplo, proíbe com o mesmo rigor aos ricos e aos pobres dormir sob os viadutos... Ou a lei proíbe roubar. Recor-
demo-nos dos Miseráveis: um homem morre de fome, ele rouba um pão... e recebe cinco anos de trabalhos forçados.

Mas essa crítica da lei como regra imutável, cega, surda, se encontra com outro tema muito frequente em Platão, que
corresponde completamente ao que ele pensa, a saber, a crítica do escrito pelo discurso vivo.

O texto fundamental sobre isso é o Fec/ro. A sétima Carta, também, que, penso eu, não é autêntica, mas cujas
passagens filosóficas foram escritas por alguém que conhecia muito bem o assunto platónico... Portanto, o escrito fixa
de uma vez por todas o pensamento, enquanto na palavra viva, no diálogo, quando falo posso me retomar, corrigir um
erro. Uma vez que um livro é escrito, ele é um decreto. Ele está aí de uma vez por todas, não pode ser modificado. Por
outro lado, o argumento desenvolvido,no Fec/ro é perfeitamente justo: a Theuth, o deus egípcio, que, para ajudar os
homens em sua tendência a esquecer, inventou as letras e as deu a eles, o sábio egípcio responde: "O Theuth tão
astucioso, você pensava encontrar um remédio para o esquecimento dos homens e acabou inventando um veneno para
a sua memória porque agora eles têm as letras e eles se fiarão nelas em vez de fiar-se em sua própria lembrança". E isso
é perfeitamente verdadeiro: se algum dia vocês passarem por um período de ilegalidade, vocês ficarão surpresos com a
sua capacidade de memorizar 200 números de telefone.

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 26 DE MARÇO DE 1986

Enquanto em tempos de normalidade, vocês olharão sem parar a sua caderneta para encontrar o telefone de ura(a)
namorado(a). A partir do momento em que se sabe que algo está escrito, fiamo-nos nisso, e descarregamos a nossa
memória. É totalmente normal, e é fisiológico. Outro exemplo: diante de um tribunal, quanto mais uma testemunha é
analfabeta, mais ela reconstitui com exatidão o que aconteceu no dia 4 de agosto de 1985 entre Albertville e Val-d'Isère,
de que cor era o carro...

Há pois esse tema da crítica do escrito, da crítica da lei, da crítica de um pensamento abstrato e simbolizado por opo-
sição a um pensamento vivo que passa pelo discurso — tema do qual Derrida em La Voix e le Phénomène tirou muito e
que, em geral, pode ser ligado com toda uma visão que antecipa ali concepções muito ulteriores, que quase antecipa
santo Agostinho e todo o imaginário cristão, como em muitos pontos Platão faz: a verdade é a subjetividade viva. O que
é verdadeiro é essa voz que vibra, o trabalho do pensamento que vem, a autocorreção, a invenção, essa luz que passa
entre os olhares quando se discute... O resto, o papel escrito, os traços escritos, são espécies de resíduos mortos que a
vida deixou atrás de si uma vez que ela passou. Eu pensava, eu estava na verdade do pensamento — que é uma
atividade subjetiva, que é o diálogo da alma consigo mesma, como diz Platão diversas vezes —, e depois eu consignei
alguns aspectos desse pensamento agora morto, desse diálogo da alma consigo mesma, numa folha de papel, numa
lápide de mármore, num papiro, num pergaminho. Isso não é a verdade.

Pode-se ver que em torno disso há uma inspiração filosófica/que continua a alimentar até mesmo Kierkegaard, sobre a
verdade da subjetividade como fonte por oposição a toda obra da subjetividade e notadamente em relação ao escrito,
mas não só. Essa crítica da obra enquanto oposta à subjetividade também é, com o enorme anacronismo que isso impli-
ca, a crítica da alienação que comporta toda objetivação: o criador que produz uma obra aliena nela um pouco de seu
próprio ser, perde nela a sua substância, mais do que ganha em imortalidade. E isso não apenas porque perco minha
vida desgastando-me em minha obra, mas porque minha obra é menos verdadeira que o que sou nas faculdades do
meu pensamento, de minha atividade pensante viva. Essa ideia já está tanto na passagem do Político como na crítica do
escrito do Fec/ro, e ela aparece constantemente em Platão.

E quando digo que estamos mais uma vez na turbulência e em uma contradição muito profunda é porque para o
próprio Platão essa ideia contradiz a pedra angular de sua filosofia, isto é, que o ser é eidos. Que o ser é Forma, que o
verdadeiro ser são as Ideias. E as Ideias não são sujeitos. Talvez haja algo de não permitido em querer a todo preço
colocar frente a frente e fazer "coerir" essas correntes em Platão. Por outro lado, há uma atenuação da antinomia numa
espécie de ponto supremo de convergência das duas coisas, que seria precisamente essa famosa ideia da República que
é o agathon, o bem, que não é uma ousia, uma essência, que não é uma Ideia, mas que está além da ousia ou da Ideia,
e do qual se poderia dizer que é o que outorga ao mesmo tempo a essência e a cognoscibilidade das Ideias, como uma
meta-Idéia ou um metassujeito no qual as duas se combinam. Tudo isso permanece uma análise puramente enigmática,
que não leva a nada. Imediatamente abaixo disso temos uma cisão que se traduz pelo fato de que, por um lado, todo
sujeito, mesmo o mais elevado deles como o demiurgo

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SOBRE O POLITICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 23 DE ABRIL DE 1986

do Timeu, é impotente em relação à materialidade do dado, mas, por outro lado, ele próprio está submetido às regras
que formam as eidé, as Ideias, as Formas. Cisão entre a afirmação de que o ser verdadeiro é isso, é o que é sempre
idêntico a si mesmo, a Forma, e o outro aspecto no qual — ao menos no que diz respeito ao domínio humano, e que
talvez também atenue um pouco as antinomias — Platão afirma constantemente que a verdade está do lado do sujeito
vivente e falante e não do lado do que o sujeito produziu. A verdade está no discurso e não no escrito, a verdade está
no saber e no querer do homem régio e não nas leis. Por que é preciso, contudo, na falta de homem régio, apoiar as
leis? Veremos isso no nosso próximo encontro.

Vê-se mais uma vez, desse ponto de vista, como tinha razão Whitehead quando dizia que o conjunto da filosofia
ocidental podia ser compreendido como uma série de anotações marginais tiradas do texto de Platão. E verdade que eu,
Castoriadis, não seria capaz de tirá-las se outros não as tivessem tirado antes, e tirado nas loucuras que lhes eram
próprias, tirado em certas direções. Mesmo que o próprio Platão tenha chegado às extremas consequências desta ou
daquela coisa, isso não impede que, apesar de tudo, é lá que todo esse movimento encontra seu ponto de partida, uma
infinidade de germes que puderam se desenvolver desse modo.” P171-P198

“Mas aqui o jovem Sócrates diz: tudo o que você disse até agora, Estrangeiro, é excelente, exceto uma coisa que me
parece mais difícil de entender, de "engolir", diríamos nós. E é o fato de que se possa governar até mesmo sem leis. Ao
que o Estrangeiro responde: você se adiantou a mim, porque eu ia lhe perguntar precisamente se você realmente
aprovava todas essas reflexões. Portanto, examinemos agora essa questão: pode haver governo justo com ou sem leis?
Mas para isso, continua o Estrangeiro, primeiramente é preciso afirmar que a arte dc estabelecer leis é, de certa
maneira, uma parte da arte régia — tès basilikès esti tropon tina hè nomothetikè. E o melhor é que governem não as
leis, mas o homem régio dotado de prudência — andra ton meta phronèseôs basilikon. Isso parece uma redundância
porque é de se perguntar o que seria um homem régio que não tivesse phronèsis, a qual aparece como um ingrediente
absolutamente central da arte régia. Deixemos isso de lado. Mas por que se deve preferir o homem régio a um regime
de leis? Segue-se a passagem da qual afirmei que é esplêndida e completamente verdadeira. Leiamos:

A lei jamais poderá, seguindo exatamente o que é o melhor e o mais justo para todos, ordenar o que é mais perfeito,
pois as dessemelhanças dos homens e dos atos e o fato de que quase nenhuma coisa humana jamais está em repouso
não permitem enunciar nada de absoluto que valeria para todos os tempos e para todos os casos em nenhuma matéria
e para nenhuma ciência [...] Ora, vemos que é justamente a isso que a lei quer chegar, ou seja, enunciar absolutos
valendo para todos e para todos os casos, como um homem arrogante e ignaro que não permite que ninguém faça nada
contra suas ordens, nem fazer-lhe perguntas, nem mesmo, se algo novo ocorresse, fazer melhor que o que postula a lei
fugindo de suas prescrições (294a-b).

Vocês podem ver que essa passagem é extremamente forte e que à primeira vista ela está isenta de sofística. É simples

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 23 DE ABRIL DE 1986
mente, em certo sentido, a oposição, enunciada pela primeira vez em Platão com essa força, entre o universal abstrato
e o concreto. O universal abstrato não pode, evidentemente, cobrir, corresponder, ser congruente a, estar próximo em
relação ao que é concreto, ao que é real. E Platão utiliza essa esplêndida metáfora, ánthropon authadè kai amathè, um
homem arrogante e ignaro que, o que quer que lhe seja dito, responde sempre a mesma coisa: não é isso que importa.
Mas as crianças estão morrendo! Mas o inimigo está na cidade! Mas a casa está queimando! Não, não, repete ele, o que
importa é isto, não aquilo. A lei é como um disco riscado.

Platão oferece também outra formulação, muito bonita: não é impossível que se encontrem em boa relação o que
nunca é simples e absoluto e o que definitivamente é simples ou absoluto? É uma outra formulação da necessidade da
lei. Então por que, nessas condições, é necessário fazer leis já que a lei não é a coisa mais correta que possa ser
concebida? "Precisamos encontrar a razão disso" (294d). Depois de diferentes exemplos que não nos interessam tanto
aqui, o Estrangeiro propõe o dos professores de ginástica: eles não podem leptour-gein, entrar na "minúcia dos casos
individuais", mas dão os princípios gerais de treinamento, chegam até mesmo a escrevê-los, sem entrar em detalhes.
"Eles impõem a todo um grupo de sujeitos as mesmas fadigas [... ] ou em todos os demais exercícios" (294d-e), sem
formular prescrições individuais. Princípio de economia, portanto: visar a melhor regra para a maioria dos casos e dos
sujeitos. O universal abstrato como economia. Esse tema, que se tornará muito importante na história da filosofia e da
epistemologia, está presente quase em toda parte quando tentamos pensar de maneira cortante: procura-se chegar a
um número menor de leis, a reduzir todos os teoremas a uma pequena quantidade de axiomas etc.

Portanto, dá-se uma regra geral a todos aqueles que treinam no ginásio. E é a mesma coisa em relação à lei, diz ele. Pois
como um homem régio, um governante, poderia ordenar o que é preciso fazer com rigor a todos os que estão sub-
metidos a ele, em todo lugar e sempre? Ele precisaria passar todo tempo na cabeceira de cada um deles,
parakathèmenos, e prescrever-lhes o que devem fazer. Pois é assim que se deve compreender o que deveria fazer o
homem régio. E é para remediar essa impossibilidade que é preciso pôr leis.

Já vemos as múltiplas armadilhas que se escondem nessa passagem. A comparação com o ginásio, naturalmente; mas
sobretudo a predefinição do homem régio como aquele que tem a epistéme. Isso não é praticável pois seria preciso que
esse homem régio ficasse constantemente na cabeceira de cada um ou sentado ao seu lado. Mas o parakathèmenos
grego remete à imagem do doente deitado em sua cama. O médico chega, senta-se ao seu lado, toma o pulso, a
temperatura, olha a língua... Ele está sentado ao lado: não se vê outro uso para o termo parakathèmenos. Mas o que
significa essa comparação senão que cada ser humano que compõe a cidade está doente! O que nos indica que ele está
doente? Isso está implícito no texto. E daí provém a necessidade de um médico que estaria sentado à sua cabeceira o
tempo todo. Como não podemos ter um médico sentado à nossa cabeceira o tempo todo, aceitamos uma prescrição
médica: quatro aspirinas por dia. E é tudo. E o second best, a segunda navegação, ho deuteros plous.

Segue-se a isso uma elaboração dessa comparação na qual Platão realmente "força" porque faz uma longa comparação

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 23 DE ABRIL DE 1986
para, ao mesmo tempo, reforçar a sua ideia de que as leis não são mais que uma solução menos má (e jamais uma boa),
mas para dizer que apesar de tudo, apesar de ser menos má, ela é uma solução. Ele ainda elaborará, no terceiro grau,
essa comparação. Suponhamos que um médico ou um ginasta deva viajar ao estrangeiro. Temendo que o que ele disse
a seus doentes ou a seus alunos seja esquecido, negligenciado, ele lhes escreve o que devem fazer. Ele não poderia
fazer nada além disso. Suponhamos ainda, diz o Estrangeiro, que as coisas não tenham ocorrido como se esperava e que
o médico tem de voltar antes do que imaginava. Ele deixara instruções para seis meses, mas volta em três. Ele vai ver o
doente e lhe diz: a sua situação evoluiu, é preciso mudar o tratamento. O que pensaríamos do doente que dissesse: Ah,
não! Por nada neste mundo! Já que as receitas foram escritas para seis meses, eu vou segui-las durante seis meses.
"Seria absolutamente ridículo", assegura o jovem Sócrates. Então, se é assim, é preciso julgar do mesmo modo o que se
refere ao justo e ao injusto, ao belo e ao feio, ao bom e ao mau, uma vez definidos, escritos para os rebanhos humanos.
Se aquele que fez as leis quer mudá-las, ele legitimamente pode impor as novas regras sem preocupar-se em convencer
os habitantes da cidade. E o mesmo ocorrerá se, um século depois, aparecer outro grande homem, um homem
basilikós, parecido com o primeiro. E parecido com ele não segundo as aparências, mas de jure, de direito. Ele terá o
direito e até mesmo o dever de prescrever outras regras. "Naturalmente", confirma o jovem Sócrates.

E o Estrangeiro explora a sua vantagem. Nessas condições, é preciso refutar o que é dito comumente pelos gregos, isto
é, que se alguém conhece leis melhores que as que existem deve tentar persuadir a sua cidade a adotá-las. Mas se não
consegue então é preciso que se abstenha. É realmente muito bonito: Platão mostra sem cessar, mas negativamente e
como que zombando, quais eram os verdadeiros princípios da prática democrática, o que era consciência comum,
evidente. E, por outro lado, o jovem Sócrates fica um pouco surpreso: então não é verdade o que se diz?

— Eles não têm razão?

— Talvez, diz o Estrangeiro. Mas se alguém, forçando o outro, prescindindo de seu consentimento, impõe-lhe o que é
correto, responda-me, como você chamará essa violência? (296a-b)

Por exemplo, quando se força uma criança a fazer o que deve fazer, mas ela ignora. Ou quando se obriga um doente a
seguir um tratamento etc. Então o jovem Sócrates é obrigado a convir que seria correto. Ora, é a mesma coisa para a
política: aquele que violenta uma cidade indo contra o que está escrito e contra as pátria, isto é, contra as tradições que
vêm dos ancestrais — falarei um pouco sobre as pátria mais adiante —, seria completamente ridículo reclamar daquele
que a violenta para obrigar os cidadãos a fazer algo mais justo, melhor, mais belo. E não teria importância alguma se ele
fosse rico ou pobre, se se preocupasse ou não em persuadir.

A mesma coisa vale para o capitão de um navio. Nessa passagem também há uma frase muito bela e atroz; tudo isso é
muito ambíguo, retornarei à interpretação. O que faz, como bom marinheiro, o capitão de um navio, dramatizemos um
pouco: um navio em plena tempestade e submetido a regula

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mentos imbecis? Ele dará ordens que eventualmente serão contrárias a esses regulamentos, que em todo caso não
impõem essas ordens nem as respeitam, e, ao fazer isso, "ele oferece a sua arte como lei", tèn technèn nomon
parechomenos. Bela frase que antecipa, em um certo sentido — mas tudo isso permanece implícito e não é explicitado
por ninguém —, a terceira Crítica de Kant. Pois o que diz Kant na Crítica do juízo é exa-tamente isso, tèn technèn nomon
parechomenos. Isto é, a obra de génio fornece uma lei unicamente a partir de sua arte, arte aqui significando a
capacidade de ligar imaginação e entendimento. E isso já está aqui.

Recordemo-nos de Whitehead: a totalidade da filosofia ocidental como comentário marginal do texto de Platão. E não
apenas comentário marginal porque aqui ocorre algo semelhante ao que ocorreu com as provas do livro de Proust:
havia uma frase sobre uma possível festa na casa da senhora Verdurin no final do livro, que se transforma em volumes à
medida que as provas voltam do impressor. E a mesma coisa para a filosofia: retira-se algo aqui e depois isso se avoluma
porque é a potencialidade do texto.

Portanto, com a cidade ocorre o mesmo que com o navio, diz o Estrangeiro. Aqui, por outro lado, a simples repetição
substitui a ausência de força da argumentação: a multidão jamais poderia participar dessa ciência e, portanto, governar
meta nou, com inteligência, com espírito, um navio nem uma cidade. E, portanto, só a cidade governada por um homem
político, por um homem régio, é a cidade justa, correta, todas as outras não sendo senão mimèmata, imitações. Grande
tema, sempre presente em Platão, tema ontológico: o mundo é uma imitação do vivente eterno, as outras cidades são
imitações...

Se é assim no que diz respeito às outras cidades, disso resulta que, já que elas não têm esse homem régio, elas fazem
bem em utilizar as leis escritas para salvar-se e em não permitir que ninguém as transgrida. Essa é uma segunda maneira
de fazer bem. Segue-se então uma espécie de digressão na digressão, de incidente na digressão, que é uma espécie de
carga, visivelmente irónica, contra a democracia, e contra a democracia ateniense em particular.

Mas eu disse que é preciso fazer um comentário sobre a noção de pátria, sobre essas leis de nossos pais (ver Finley).
Porque, no século IV e já no final do século V, contrariamente ao que se pode crer, as pátria, em Atenas, são a
democracia. Não é um antigo regime antes da revolução, não é algo aristocrático que teria ocorrido antes de Clístenes e
mesmo antes de Sólon. O dêmos, quando se revolta contra o regime oligár-quico de 411 ou, mais tarde, contra os Trinta
Tiranos, restaura a pátrios politeia, o regime de nossos pais, isto é, a democracia. E quando Platão ataca a ideia de que o
regime de nossos pais, enquanto regime de nossos pais, é algo intocável, ele tem toda a razão: não é por ser o regime
de nossos pais que ele é intocável. Só que, com efeito, o que ele entende por "regime de nossos pais" é a democracia.
Mas então vê-se ao mesmo tempo o quanto Platão, mesmo sendo autoritário, absolutista — o termo totalitário seria
anacrónico e ridículo nesse contexto —, é radical, não é absolutamente conservador. Não somente porque as pátria são
a democracia, mas também porque ele não quer de modo algum restaurar um regime aristocrático em Atenas.
Qualquer aristocrata bem constituído, de boa raça, com boa educação, pertencente ao bom clube de Atenas, teria
recuado horrorizado diante das propostas políticas de Platão. Platão é um radical e seu projeto não tem nada a ver com
essa "utopia reacionária" de que falou Mannheim. Ele não quer restaurar o tempo passado, e isso não só por saber que
esse tempo passado continha — e isso é muito importante — os germes de sua própria destruição. Essa é a lição, na
República, da passagem sobre a sucessão dos regimes. Parte-se de um regime que é aproximadamente bom, mas esse
regime se corrompe, passa-se à oligarquia, à democracia, e depois à tirania, e os ciclos se repetem. O esforço de Platão
— nisso ele é radical ao mesmo tempo que algo muito diferente de reacio-nário — é o de encontrar e de fixar um
regime que detenha a história. Que suspenderá a passagem do tempo, que reterá o quanto possível a autocorrupção
imanente aos regimes humanos. É esse o regime da República, esse também é o regime das Leis, com algumas
concessões para torná-lo mais suave, portanto para permitir que sobreviva melhor, que se adapte sem mudar no fluxo
do movimento histórico.

Retorno à passagem que começa em 298a, nesse ataque irónico contra a democracia ateniense, que começa com "Su-
ponhamos".. . E o Estrangeiro de Eléia retoma suas duas imagens, a do capitão e a do médico. Suponhamos então que
as pessoas se reúnam e decidam sobre o que se deve fazer tanto na navegação como na medicina, sem

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necessariamente dar maior atenção ao que dizem, dentro da multidão, aqueles que são médicos ou capitães. Toma-se
uma decisão, vota-se e o que foi votado é escrito em esteias, passa-se a chamar isso de costumes ancestrais e exige-se
doravante, talvez sob pena de morte, que os médicos ou os navegadores se conformem ao que a ekklèsia decidiu. O
jovem Sócrates fica estupefato: "Você está dizendo absurdos". Mas o Estrangeiro prossegue: Tudo isso não é nada,
porque a cada ano será sorteado um magistrado para observar a execução do que assim foi decidido. O jovem Sócrates:
"Cada vez mais absurdo!" Mas veja o que ainda está por vir, retoma o Estrangeiro:

[... ] Quando cada magistrado terminar o seu ano, será preciso fazer se sentarem no tribunal juízes (dikastai) sorteados,
seja entre os ricos, seja de uma lista preparada de antemão, seja diretamente entre todo o povo, levar diante deles os
chefes que deixam seu cargo para prestar contas, e qualquer um que tiver vontade os acusará de não ter, ao longo de
seu ano, governado os navios seguindo a letra escrita ou seguindo os velhos costumes dos ancestrais. O mesmo será
permitido contra aqueles que curam os doentes e, para aqueles que forem condenados, os juízes fixarão a pena a ser
sofrida ou a multa a ser paga (299a).

Irónico, o jovem Sócrates diz que seria preciso ser realmente louco para aceitar um cargo de magistrado nessas con-
dições. E isso continua durante quase três páginas: um longo trecho (298a-300a) no qual Platão caricatura
grotescamente a democracia ateniense, assimilando-a a um regime que decidiria em todo domínio científico-técnico
particular segundo procedimentos reservados ao debate político. Como se os atenienses tivessem sonhado em decidir
majoritariamente sobre os diagnósticos médicos, o governo dos barcos, a maneira de conduzir uma batalha ou a
verticalidade das colunas do Partenon! Eles jamais tomaram uma decisão como essa. Fídias e Ictinos fizeram o Partenon,
e isso é tudo. Isso não foi discutido e Platão sabe disso muito bem: essa é toda a discussão do Protágoras. E é o
argumento do próprio Protágoras, o grande sofista, que precisamente faz a distinção entre os assuntos de interesse
geral e os saberes específicos, técnicos, as technaí, para as quais há uma competência. E se alguém que não conhece
nada sobe na tribuna para aconselhar os atenienses sobre a construção de navios, eles rirão dele, they will laugh him
down, de tal modo que o fulano desistirá porque todos sabem que ele não é especialista. Mas se um técnico da
construção de navios sobe à tribuna ele será ouvido respeitosamente.

Em compensação, se se trata de assuntos políticos gerais, qualquer um falará e todos ouvirão porque, nesse caso, não
há nenhuma techné particular, específica. Protágoras diz isso no maravilhoso mito segundo o qual Zeus repartiu a
techné polítiké entre todos por igual. E Platão, naturalmente, sabe de tudo isso. Ele ao menos sabe que há um
problema. E deve saber ainda mais que há um problema no fato de que esse problema é potencialmente sustentado por
sua crítica da lei. Crítica que também tem um sentido: não há saber universal, não há saber discursivo concernente aos
assuntos humanos. Mas então o que é esse epístèmôn que conhece sempre o que é preciso fazer em cada caso
particular, qualquer que seja o domínio de que se trate? Problema.

De qualquer modo, aqui, desliza-se sobre este problema: é, ao mesmo tempo, a teatralidade, a retórica e a sofística de
Platão. Isso não é realmente examinado. E a democracia ateniense é apresentada mais ou menos como Dassault, quinze
anos atrás, nos teria apresentado a autogestão — graças a Deus hoje não se fala mais de autogestão! Cada um voltou ao
seu lugar, e todos reencontraram o bom senso. Mas para Dassault a autogestão é: Queremos ser operados por criadas
nos hospitais! E são assembleias gerais que reúnem os cirurgiões, as enfermeiras, o tesoureiro, a assistente social e as
serventes que decidirão, por meio do voto, que o doente tem uma apendicite erh vez de uma bronquite! E exatamente
isso que Platão diz da democracia ateniense porque ela decide por meio do voto. Em que domínio esse voto intervém,
isso está oculto.

Uma vez terminado esse ataque, ele chega, apesar de tudo, à justificação de sua segunda navegação, de seu deuteros
plous. Para dizer que a situação seria ainda pior se — quando há grammata, leis escritas na cidade — se permitisse aos
magistrados eleitos ou sorteados fazer o que lhes desse na telha:

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Aquele que ousar fazer isso cometerá um erro cem vezes pior [pior que a sujeição à letra escrita da prática médica,
njarinha e... política] e aniquilará toda atividade de modo ainda mais certo que o que fazia a letra escrita (300b).

Assim, a crítica e o ataque foram longos e detalhados, mas, de repente, a justificação da segunda escolha, da menos
ruim das soluções, é rápida, surge sem estar realmente fundada nem elaborada. O que diz o Estrangeiro? Que há "leis
que resultam de múltiplas tentativas e das quais cada artigo não foi posto pelo povo senão graças ao conselho e à
exortação de conselheiros bem-intencionados" (300b); que elas são "imitações

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 23 DE ABRIL DE 1986
da verdade, traçadas do modo mais perfeito possível sob a inspiração daqueles que sabem" (300c).

Em relação a tudo o que acabamos de ler, primeira novidade: leis feitas a partir de uma grande experiência e depois de
numerosas tentativas! Portanto, essa lei não foi escrita ao acaso ou porque choveu muito em 506, no tempo de
Clístenes. Não, mas é a partir de múltiplas tentativas e de uma grande experiência, ek peiras pollès. Naturalmente,
encontra-se apesar de tudo a injustiça: não é a multidão que, sozinha, estabeleceu essas leis; foi preciso que
conselheiros hábeis, conhecedores e bem-intencionados a convencessem. E, depois de muito cansaço e de persuasão, o
povo finalmente fez boas leis.

Entre parênteses, a estranha combinação de uma longa experiência e de bons conselhos pressupõe ao menos: 1) que a
multidão seja capaz de distinguir o mau do bom conselho, 2) e que depois de tentativas e experiências ela seja capaz de
aprender. Duas coisas que estão totalmente em desacordo com o que foi dito anteriormente... Mas deixemos isso de
lado.

Dado que fazer leis subjuga a realidade, portanto que é um erro, transgredir essas mesmas leis seria um erro ao quadra-
do, hamartèmatos hamartèma pollaplasion. É por isso que é preciso aceitar a segunda navegação. Quando as leis são
postas, ninguém deve agir contra elas, mesmo que, em todos os domínios, elas não sejam senão a imitação da
realidade. É por isso que dissemos que o verdadeiro político — que não se satisfaz com imitações, mas está em relação
direta com a realidade — não se preocupará com as leis, mas ele as porá de acordo com o que ele pensar ser bom.

Platão conclui essa passagem e passa a tratar da tipologia dos regimes dizendo que cada um deles será tanto melhor
quanto as leis, os grammata, tiverem sido postas por verdadeiros conhecedores da política e das coisas humanas. Eis
uma recordação que creio ser completamente indispensável para a compreensão da argumentação essencial dessa
passagem. Mas seria preciso, primeiro, explicitar os postulados implícitos que sustentam o todo e que são enormes. Há
pelo menos dois deles.

Primeiro postulado: existe uma e uma única orthè politeia. Isso é tão evidente que não é objeto de discussão em
nenhum lugar em Platão. E quase não é discutido nos filósofos políticos: nenhum deles discute o fato de que existe uma
e uma única orthè politeia, mas avança a sua própria orthè politeia. Podem existir exceções, naturalmente: um pouco
em Aristóteles, em Montesquieu (correspondência do melhor regime com as condições "geográficas"...). Mas na
maioria deles, e nos de primeira linha, existe uma politeia justa e correta, e uma única.

Segundo postulado em Platão: essa orthè politeia é definida por uma única característica, um único traço, a epistéme
daquele que dirige. É o saber, a sapiência, a sabedoria, mas não a sabedoria no sentido suave do termo, é o saber
daquele que dirige.

„, Esses dois postulados estão completamente ligados e conduzem ao mesmo paradoxo: se não há apenas uma única
politeia justa é porque todas as outras são imitações mais ou menos ruins da realidade. A partir de então, somente o
homem régio dotado dessa epistéme poderá defini-la e fixá-la. Mas que epistéme?

Retornemos ao primeiro postulado. Essa orthè politeia é única porque todas as outras não poderiam ser senão sistemas
de leis. Leis que padecem ao mesmo tempo de não serem senão mimèmata, imitações em vez das verdadeiras coisas, e
de esgotarem-se sempre ao querer "cobrir" a realidade. Não se pode fixar no papel, e sobretudo de uma vez por todas,
características como a comunidade dos bens e das mulheres (A República) ou a igual divisão inicial das propriedades (As
Leis). Todas essas coisas são sempre e em todo lugar diferentes. Não se entra jamais duas vezes no mesmo rio, uma
cidade nunca permanece parecida consigo mesma, um indivíduo jamais é duas vezes o mesmo. Portanto, não se poderia
pôr duas vezes a mesma regra. Mas, justamente, todo o problema consiste na distância que existe entre todo esse fluxo,
esse múltiplo, e a regra universal. E o sofisma de Platão aqui é a absolutização dos termos. Aristóteles verá isso tanto na
Política como no livro V da Ética a Nicômaco: a oposição entre o universal abstrato e a realidade concreta, o fluxo
heraclitiano, digamos, é apresentada como absoluta, totalmente incompatível. Visto que uma regra universal abstrata
jamais pode ser perfeitamente côngrua com uma realidade porque as coisas sempre mudam, Platão quer concluir disso
que ela não pode sê-lo nem sequer durante quinze anos, nem quinze semanas, nem mesmo quinze dias. Ela não pode
sê-lo radicalmente, e não há recurso possível.

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SOBRE O POLÍTICO DE PLATÃO SEMINÁRIO DE 23 DE ABRIL DE 1986
Ora, isso não é exato. Em primeiro lugar, naturalmente, há a possibilidade de mudar a lei. Em segundo lugar, há toda a
teoria da equidade que será introduzida por Aristóteles no livro V da Ética a Nicômaco1. A teoria da equidade de Aristó-
teles corresponde ao seguinte: há sempre uma separação entre as leis escritas e o que os juristas chamam de
consistência concreta do caso. Formalmente, a lei pune alguém que matou outra pessoa. Mas, na realidade, nunca é
"alguém" que mata "outra pessoa". E, por exemplo, Fulano que, exasperado com a senhora Beltrano, a decapitou. Ou
então é Fulano que, ao descobrir arsénico em sua sopa, estrangula a senhora Beltrano. Mas é sempre algo diferente do
que é descrito pela lei. Só que essa separação essencial entre a regra e o caso concreto não é absoluta, e é o juiz que vai
preencher esse vazio. Esse é o sentido da equidade. Ela restaura o universal no singular, ela restabelece o espírito geral
da lei no caso concreto. A famosa frase de Aristóteles é que o juiz decide da maneira pela qual o legislador teria
decidido se ele tivesse vindo a saber, se ele estivesse presente. O juiz se coloca no lugar do legislador.

O que significa que numa sociedade, num Estado de direito e de leis — recordemo-nos de que é no Político que aparece
pela primeira vez uma definição de um Estado de direito, de um Estado de leis —, o legislador não é o único a ser
legislador. E essa é outra enorme fraqueza da argumentação de Platão. O juiz também é legislador: ele necessariamente
deve suplementar a lei, que, efetivamente, é como que um "homem ignorante e brutaLque repete sempre a mesma
coisa enquanto a realidade é sempre diferente. E isso foi previsto pela própria legislação ao estabelecer cortes,
dikastèria, e ao dar a essas cortes não somente o direito, mas também o dever de interpretar a lei. E, por trás da
interpretação da lei, esconde-se de fato uma posição de regras. Por fim, em certo sentido, pode-se dizer que não apenas
o juiz mas todo indivíduo põem leis. A partir do momento em que há uma lei que diz: cada um tem o direito de agir na
esfera que lhe é reconhecida individualmente... Um exemplo trivial: um café, mesas vazias, cadeiras. Sento-me numa
dessas cadeiras. Faço assim uso de meu direito, que passa por toda uma série de regras, de sentar-me nessa cadeira. A
partir do momento em que me sentei nessa cadeira, criei uma situação jurídica. Não podem me dizer: saia daí. Sento-
me porque o lugar está livre, porque não há outros lugares. A concretização do sistema jurídico vai até e inclui os atos
concretos pelos quais, ao agir na rede de direitos e de deveres que me confere a legislação, eu os concretizo. Se alguém
quisesse invadir esta sala neste momento e dizer: decidimos fazer, ao meio-dia e meia, um seminário sobre sânscrito,
ele estaria cometendo uma infração. Porque toda a pirâmide que começa com a Constituição e que vai até o re-
gulamento desta escola, tudo isso faz parte do sistema jurídico que, neste momento, organiza e protege, cobre o que
fazemos.

Mas isso significa o quê? Significa que nenhum sistema humano pode viver — retornarei a isso mais longamente, e é
aliás, como vocês talvez saibam, um de meus grandes temas na crítica do totalitarismo e até mesmo da burocracia fraca
— se não postular, mesmo na escravidão, uma capacidade mínima de autonomia nos sujeitos. E essa é precisamente a
contradição final dos sistemas heterônomos, ao menos a partir do momento em que esses sistemas não são
completamente interiorizados pelos sujeitos. Enquanto o escravo, nos Estados Unidos do Sul, colhe o algodão com
devoção porque é assim, porque isso para ele é quase que uma missão divina, a hetero-nomia prospera. Mas no
momento em que ele se diz: eu colho o algodão para esse proprietário salafrário, a partir desse momento, acabou, já há
antinomia no sistema. Com efeito, essa interiorização total existiu. É outro trabalho o de ver onde e quando e até que
ponto. O fato é que ela chega a se romper em certas sociedades a partir de certo momento.

Portanto, Platão, ao absolutizar a distinção, a separação entre o universal abstrato e o particular concreto, não vê a ne-
cessária participação de cada um na concretização da lei. Mas tampouco vê, certamente, outras coisas. E aí vocês se
quiserem podem se divertir observando a servidão absoluta dos pseu-domodernos em relação a Platão, e uma das
razões pelas quais eles passam seu tempo tentando refutar Platão, contra o logo-falo-algo-centrismo. Barthes: toda
linguagem é fascista\ Por quê? Porque não posso falar dizendo "Brum-bram-grum". É preciso que eu pronuncie fonemas
de uma língua qualquer e é preciso que eu os diga no encadeamento de fonemas imposto pela fonética dessa língua.
Também é preciso que esses encadeamentos de fonemas formem palavras que estejam no léxico daquela língua. E é
preciso que essas palavras estejam arranjadas de acordo com aquela determinada sintaxe. Paramos por aqui porque em
relação à semântica nem mesmo Barthes ousaria dizer que ela é fascista. Ora, de onde vem essa asneira de que "toda
linguagem é fascista" — que é, de resto, tipicamente um paradoxo provocador e estúpido a partir de uma fase de
Jakobson? Precisamente da impossibilidade de ver qqe o ser social do homem (anthropos) implica ao mesmo tempo
uma regra e um distanciamento em relação a ela. Uma vida na qual teríamos regras que estariam ajustadas a nós como
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roupas ajustadas por um excelente alfaiate seria efetivamente a escravidão total. Seria a prisão ideal. Mas é
precisamente na dupla existência de uma regra e de certa separação em relação a essa regra que se estabelece o que
podemos ter como autonomia enquanto seres sociais. Separação, em primeiro lugar, por que como a regra não pode
cobrir todos os casos ela nos obriga a encontrar o nosso caminho em situações concretas não apenas indiferentes
juridicamente, mas até mesmo importantes, pertinentes juridicamente, nas quais não há nenhuma prescrição. E
separação, em segundo lugar, porque, precisamente, a regra não podendo jamais ser adaptada à realidade, somos cha-
mados de tempos em tempos a pô-la em questão. Mas para pôr a regra em questão é preciso que haja regra. E para que
sejamos capazes de pôr em questão a regra é preciso que não sejamos a regra, ou é preciso que a regra não seja nós.
Não é preciso que ela se cole em nós como a túnica de Nesso se colou em Hércules. E Hércules morre disso porque é
uma túnica envenenada. É realmente essa a imagem: seria uma túnica envenenada. Não poderíamos nos livrar das
regras senão arrancando a nossa própria pele. É nessa separação e por ela que podemos viver social e individualmente.
É isso que está totalmente ausente do texto de Platão e que ainda hipoteca, durante séculos até hoje, a filosofia em
geral e a filosofia política em particular. Isso está ligado a questões muito profundas, como toda a questão da criação e
da criatividade do ser humano singular e da sociedade considerada como um todo.

Chego agora ao segundo postulado implícito: essa orthè politeia única é definida pela epistéme. Mas pode-se perguntar:
que epistéme? Dado o caráter das coisas públicas, é mais ou menos claro que essa epistéme é, ao menos potencialmen-
te, uma epistéme da totalidade. Aliás, isso é dito mais ou menos explicitamente no diálogo, já que se trata, afinal de
contas, de ter um saber que decide sobre a arte particular que deve entrar em ação, em que momento, sob que
condições; um saber, como diz Platão, epitaktikè, que ordena os outros.

É aqui que o Estrangeiro insere o corolário, aparentemente evidente, mas de fato perfeitamente falacioso, de que se é
assim então é impossível essa epistéme ser partilhada pela totalidade ou pela maioria. Recordemo-nos da comparação,
completamente intolerável logicamente, com a arte de tocar lira. E com a medicina ou a navegação. Comparação
intolerável não tanto por causa do voluntário ou do involuntário do paciente, como diz um pouco desajeitadamente
Diès, mas por causa da inexistência de uma techné que é reconhecida no Protágoras por Platão e ocultada aqui quando
ele fala dessa separação entre o universal e o particular — ocultada na tese principal.

Portanto epistéme do todo. Mas a que remete essa ideia de epistéme do todo? Estamos aqui em pleno caos, em pleno
abismo. Afinal essa ideia de epistéme do todo contradiz o que é, apesar de tudo, uma tese central de Platão e o que é o
resto grego em Platão, admitido no Timeu, que retorna no Político a respeito dessa história da lei, do universal abstrato,
e do concreto. Isto é, a ideia de que há uma matéria ineliminável, chamada de chora no Timeu, o aei ginomenon, o devir
eterno, o sempre devindo, ou o apeiron no Fileho, ou o não-ser no Sofis-ta. Ou.seja, o reconhecimento de uma parte
enorme de indeterminação no que é. Portanto, contradição entre essa epistéme do todo e essa chora, essa parte
incognoscível da matéria.

Não vou voltar ao aspecto metafísico, ontológico propriamente dito, disso, do qual já falamos. Os dois elementos estão
presentes desde o início no imaginário grego: a ideia de um saber total, a ideia de uma matéria como parte rebelde a tal
saber. E isso dará duas grandes opções na tradição filosófica já a partir dos pré-socráticos. Uma dessas opções, a opção
par-menidiana, será a de dizer: a matéria, o indeterminado, não é.

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Somente é o que é; e o que é é o que é inteiramente determinado. Isso será retomado por Platão. Mediante isso, a
outra via, a tradição heraclitiano-democrítico-sofista, será mais ou menos deixada de lado em toda a história da
filosofia. Mas tanto Platão como Aristóteles ainda guardarão esse traço grego. Em sua ontologia há uma parte
irredutível de matéria, isto é, uma parte incognoscível. Isso pode ser formado, é formado, aliás, pelo demiurgo, mas é
formado na medida do possível. Não foi o demiurgo que criou a matéria, ele simplesmente a formou (Timeu). Resta
então algo indeterminado ou irracional. Veremos depois disso as lutas desesperadas da teologia cristã com tudo isso e
suas tentativas para a sua eliminação.

Mas o paradoxo aqui, e é até mesmo um duplo paradoxo, é que:

1) Essa epistéme do todo, que é reconhecida em geral em Platão e em particular aqui, nas entrelinhas, como de fato
impossível, irrealizável, torna-se apesar disso medida para definir o regime correto, a orfríè politeia.

2) E o outro paradoxo é que a epistéme desse anèr hasi-likos, o saber desse homem régio, que o torna superior à lei e
que faz com que ele ofereça a sua techné como lei, é precisamente um saber do singular e do concreto. Isto é,
exatamente o contrário do que se pensava como epistéme.

Certamente, Platão não diz, como depois Aristóteles, que não há ciência senão do universal. Mas a ideia já está nele. É a
definição socrática do saber, que pode ser encontrada no Teeteto, por exemplo: é preciso sempre procurar contrair num
único eidos a pluralidade das coisas. No Teeteto a discussão é: o que é a epistéme? Teeteto, embora inteligente,
responde estupidamente enumerando o saber disto, o saber daquilo... E Sócrates o repreende: bom, mas eu não lhe
perguntei quantos saberes há, mas qual é o sentido do saber e o que faz com que todos os saberes que você está
enumerando sejam saber. O que buscamos é o eidos, a Ideia do saber.

Segundo paradoxo, portanto: enquanto, segundo o próprio Platão, não há saber senão do eidos, aqui o político nos é
apresentado como alguém que é epistèmôn precisamente em virtude do fato de poder abarcar cada situação singular.

São as dificuldades de Platão, que não são resolvidas na República, anterior ao Político, e que não serão resolvidas nas
Leis, que lhe é posterior. Elas simplesmente serão encobertas pelo reconhecimento do fato de que não pode haver na
realidade ou que é muito improvável que possa haver algum dia um regime ideal; que, portanto, não pode haver senão
uma aproximação, uma mímesis. E ele diz isso claramente nas Leis e, à luz do Político, seria até mesmo verdade para A
República.

Quero dizer que, do ponto de vista da política, o pensamento de Platão daria o regime absolutamente inacessível do
Político, no qual um indivíduo, esse epistèmôn, estaria na cabeceira de cada um para dizer-lhe o que fazer. Não é sequer
uma ficção coerente — enquanto a República, essa sim, é uma ficção coerente —, mas é relativamente a essa ficção
não-coe-rente que é julgada a realidade. Esse é o pecadilho de toda filosofia idealista — constrói-se uma ficção não-
coerente e diz-se: o mundo real é falso, mau, insuficiente em relação a esta ficção não-coerente. Ademais, há duas
outras ficções, coerentes, com efeito, mas muito improváveis. A primeira, A República, é impossível segundo o próprio
Platão. Quanto às Leis,

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o regime que elas descrevem é ainda menos próximo do Estado perfeito que o da República. Mas essas dificuldades,
essas aporias do pensamento de Platão tal como são centralmente expostas no Político — que as pessoas em geral não
vêem, preferindo ver A República ou As Leis — são simplesmente recobertas pela "solução" dada anteriormente, na
República, e depois, nas Leis. Ainda falaremos dessa história. Ainda tenho algumas coisas para lhes dizer sobre O
Político, mas me detenho por aqui para abrir espaço à discussão.” P211-232

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