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História sem Capítulos

Bruno Nascimento

Um momento.
Por favor, apenas um momento, antes de a narração ser iniciada, pois devo medir
duas formas de princípio, a fim de decidir qual será a melhor para o como pretendo
escrever. Uma, dar o diálogo antes da descrição; outra, o contrário.
A descrição na frente me parece padrão, como as frases de escola, dadas para
análise: o sujeito precedendo a ação. O inverso seria lançar o leitor ao escuro, à
penumbra, para então acender-lhe a luz. Introduzir o leitor ao ambiente claro primeiro
lhe garante segurança e poderá fiar-se em cada palavra minha. Além disso, será dono do
cenário, passeará por ele antes de qualquer coisa, terá conforto, estará preparado para o
porvir; conhecerá os personagens um por um, parte por parte, sabendo os seus trejeitos
sem que tomem movimento, e os sons também. Essa ordem, sinto-a quadrada, todavia.
Implica com a criatividade. Ou melhor, exige uma habilidade de escrita superior, a qual
imagino falhar em ter.
Ora! Como se o outro modo não demandasse superioridade, como se as belas
histórias não viessem somente dos superiores. Se um traz confiança, o outro, por oposto,
desconfiança, e todo o resto sairá espelhado. O leitor chegará depois dos personagens,
no meio ou fim duma conversa. Demorará a entender a cena, quem diz a quem, a
sonoridade das vozes. E será um intruso. Contudo não ficará para sempre sem chão. Aos
poucos, traços e cores se farão presentes, e terá as minhas mãos, ou mesmo os braços,
para que eu o guie pelas linhas.
Não importa como, serei o condutor. A primeira maneira, talvez, traga sensações
de liberdade ou igualdade, como se construíssemos juntos a narrativa, como se
fôssemos um só. Pela segunda, pode ser que houvesse o pensamento de que me adianto,
de que já tenha conhecido o ambiente e seus habitantes, quando, na verdade, sou
conhecedor somente, e de partes, do final. Eu, assim como quem pretende seguir esta
cadeia de palavras, estou no breu. Sei o destino, mas não o trajeto. Obviamente, o
caminho se fará aos meus pés, quando a névoa da incerteza se dispersar.
Ainda indeciso, sem gana de julgar, penso que uma moeda ajudaria. Ou pergunto
a alguém, sem explicar:
— Um ou dois?
— Dois.
Alguns já entendem e querem saber o que de fato foi escolhido. No entanto,
certas vezes, a pergunta me serve para saber o quão inclinado estou a seguir aquela
escolha. Ou seja, nem sempre a resposta indica o que será. E não farei nada disso, pois é
preciso refletir bem sobre o texto, para que valha a leitura. Seguindo o costumeiro
conselho, penso antes de falar. Como o papel e tinta eternizarão o dito ou, neste caso, o
escrito, passeio com as ideias diariamente, na esperança de que se completem de
repente.
Assim, faz-se a pergunta:
— O que é sapoti?
— Uma fruta.
— Como é? É boa?
— Não sei. Só sei que é fruta.
A primeira voz é limpa; a segunda voz, áspera. Diria que próprias da mulher e
do homem, respectivamente, porém mentiria. É mais seguro afirmar que uma soa
feminina e a outra soa masculina. Elisa e Bernardo, apresentando os nomes. Quem
pergunta? Ela. Fazia lembrança duma música que ouvira muitas vezes. Só então,
entretanto, a curiosidade se fez desperta. Ele sabia qual era, a memória vinha igual a
todos.
Não se escutaram mais, em seguida. Emudeceram. Apenas as ruas falavam, em
sua linguagem ruidosa de motores, buzinas e velocidade. Algumas vezes, diálogos
desencontrados, saídos de bocas quaisquer, ou latidos inconvenientes; outras vezes, o
farfalhar das copas e o vibrar da janela. Bernardo, de pé, observava o vasto cenário
através do vidro, da altura do quinto andar. Tudo era gris, o que não era tocado pelos
feixes ocre dos postes. Entreviam-se ainda verdes folhosos. Um segundo e foi assaltado
por um vermelho repentino, passando vagarosamente, vestindo alguém, até sumir atrás
dum edifício fosco, em primeiro plano. Além dele, mal se desenhava a avenida,
revelada pelos rápidos faróis dos carros e ornamentada por sinais cintilantes. Num
ponto, diante dum vasto estacionamento a céu aberto dum mercado, pessoas se
agrupavam, esperavam. Umas entravam, outras saíam dos ônibus que paravam. E
automóveis saíam daqui, entravam ali, seguiam e desapareciam. Na rua do prédio em
que Bernardo estava, visto por cima, um homem tomava distância com seu cachorro
grande e dourado, confortável em sua camiseta branca, bermuda ciana e chinelos.
Passeavam para a praça frondosa, quase desértica. Uns transeuntes sumiam, no alcance
das sombras, dos obstáculos da vista. Ao redor, edifícios brilhosos, alternando luzes e
cores. As estrelas perderam o esplendor. Cobrindo o horizonte feito uma mancha na
imensidão, a serra.
Já Elisa, observava o quarto minuciosamente, cada objeto que o compunha, cada
canto, cada aresta. Buscava os pontos para onde as linhas fogem e acertava os ângulos.
Sentada na beira da cama, com um bloco de papel sobre as pernas, tracejava a bancada à
frente ali, enquanto seus olhos ora miravam o desenho, ora as formas que desejava
captar, com a cabeça levemente inclinada. A ponta do lápis deslizava com cautela,
procurando não derrapar. Notebook, livros, folhas avulsas, cadernos e canetas, e
algumas coisas decorativas, como uma caixinha de madeira e um porta-retratos de
infância: tudo já transposto. Bernardo, arrastado pela morosidade, pisando em silêncio,
foi sentar-se ao lado de Elisa, na cama, e passou a acompanhar a conclusão da mobília,
dada pelo desenho duma perna: estreita e comprida, lateralmente chata. E logo passou a
surgir a cadeira que acompanhava a cômoda, pelo espaldar: um arco no topo, paralelas
caindo de cada ponta e uma reta, embaixo, fechando. De dentro, da parte traseira, um
semicírculo irregular se projetava, de onde saía um tipo de dorso, que encontrava o
assento. Os apoios para os braços, similares à letra T, idem. Dali, da união desses
elementos, descia um cilindro envolto por outros cilindros que se ramificava em cinco
tentáculos com rodas. Completa essa parte, a ilustração ficava pela metade, com muito
mais a acrescentar.
— Está pensando em desenhar a foto? Ficaria bom — Bernardo sugeriu,
aproveitando a pausa de Elisa.
— Não. Sei lá — e encarava a fotografia. — Deve dar trabalho.
— É só dar uma ideia do que é. Não precisa detalhar. Também seria bom colorir.
— É. Mas acho que ela quer assim mesmo, só com sombras.
— Quando foi que ela pediu para desenhar quarto? Devo ter faltado.
— Não sei. Fiquei sabendo pela monitora, que disse que também vale nota.
— Sério? Que merda! Eu não desenhei o meu quarto.
Elisa deitou o lápis no papel e os pôs de lado, na cama. Bernardo se levantou e
deu uns passos à frente, até a bancada, e curvou um pouco o corpo, aproximando o rosto
do porta-retratos. Quem era, sob o infindo céu azul, na extensa areia, com um punhado
nas mãos, deixando-a cair feito ampulheta?
— É você?
— Sim.
Elisa bebê, sentada só, de fralda e chapéu rosa sombreando a face corada e
redonda, com os braços roliços erguidos, atenta à cascata de grãos. Dum lado,
enfileiradas até o infinito, árvores imensas e construções distantes; do outro, o oceano
escuro, completando o horizonte. Uns morros também se apresentavam, ao fundo,
grises. A borda era uma moldura simples em torno do vidro, lisa, como gravetos de
ouro: o limite da lembrança.
Bernardo se demorou, na observação, e Elisa pareceu intrigada com a atenção do
outro à fotografia. Ambos ficaram estáticos, um olhando o outro. Ela, no presente; ele,
no passado que não era seu. Bernardo se virou e encarou os olhos interrogativos de
Elisa. Ele, com certa timidez estampada, deu leves pancadas com os dedos na bancada,
puxou a cadeira próxima, girando-a para si e tomou assento de frente para Elisa. Não se
encaravam mais. Bernardo observava os pés finos e pálidos de Elisa descansando sobre
o assoalho. Distraía-se com os contornos das veias, dos tendões; com a delicadeza das
unhas incolores, pequenas. Havia, escapando da barra do jeans, os maléolos. Seus pés
compridos também eram magros, com tendões e veias avolumando-se na pele cobreada,
e alguns pelos ralos sobre os dedos. Já as unhas não possuíam aquele mesmo cuidado,
além de maiores e naturalmente rosáceas. Quanto ao jeans que vestia, era dum azul
parco, surrado, que deixava revelar os maléolos e pernas pouco mais peludas. As mãos
de Elisa, posicionadas aos lados, prontas para uma impulsão, eram como os pés, salvo
as proporções e as características que distinguem um do outro: delgadas, níveas, com
muitas linhas. O mesmo para as de Bernardo, porém brônzeas, em repouso sobre os
descansos de braço. Ademais, eram grandes. Elisa vestia uma blusa pequena, listrada
em vermelho e branco, que lhe folgava. Os seios faziam pouco volume, como os de
Bernardo, sob a camiseta branca. Ele, no entanto, parecia dedicar-se a uma rotina de
atividades físicas, enquanto ela, pela parte exposta do busto, que a larga gola deixava
ver, era a imagem da decrepitude, de cútis fantasmagórica e ossos salientes, com veias
verdes e azuis ramificando-se pela transparência. Era bonita, ao menos? Para Bernardo,
sim. Se perceber as castanhas de seus olhos movendo-se de cima a baixo, dum lado ao
outro, sem conseguir fitá-la, como quem quer perder-se, e não encontra caminho para
isto, concordará. Aqueles dois olhos negros dela eram dois abismos dum mesmo
destino, precisamente esculpidos naquela face marmórea, cadavérica, de traços tão finos
quanto a ponta dos pincéis. Ele quis falar. Contudo seus grossos lábios entreabertos,
mudos, cedendo espaço à língua, disfarçaram a intenção em bocejo. Ela, então, lhe
sorriu e levantou. O cabelo preto, torcido sobre o ombro, alcançando a altura dos seios,
se desmanchava em rodopio, recuando. Diante de si, vendo-a passar, Bernardo olhava
discretamente para cima, para ela, coçando o nariz mestiço, para cobrir o rosto, para não
evidenciar sua descompostura. Entretanto Elisa apenas passou, indo até a porta, e saiu
do quarto. Como que aliviado, ainda sem ação, Bernardo entrelaçou os dedos por trás da
cabeça, sentindo o cabelo rasteiro, escuro, em toque de carícia.
O corredor, estreito e curto, unia quase todos os cômodos, continuando o
assoalho do quarto anterior ao quarto adjacente e sala, para onde se abria. Cercava-se de
três portas e não possuía qualquer decoração, apenas uma lâmpada fraca, no teto. Bem
de frente a Elisa, havia o banheiro, o qual adentrava. Transpôs a porta e tocou o
interruptor, fazendo surgir uma luz forte do teto, tornando tudo extremamente claro,
naquele ambiente repleto de brancura. E, num estalar de trinco, se trancou. A própria
Elisa era um espectro, cujo reflexo se via. Os azulejos que compunham o chão e a
parede brilhavam alvos. A torneira brilhava argêntea. Alguns frascos brilhavam vítreos.
De sobre o mármore preto e brilhoso da pia, dentre vários cosméticos, apanhou um
cilindro translúcido e desenrolou um fio ceroso, com o qual deu voltas nos dedos. Logo,
com um sorriso desengonçado ou esgar, ia removendo o que havia de sujeira entre os
dentes. Ao terminar, desprendeu-o dos dedos e despejou a linha dentro duma lixeira de
pedal. E, dentre frascos de perfumes, apanhou sua escova e creme dental, de dentro dum
copo plástico branco. Pôs a pasta nas cerdas e escovou, espumando feito cão raivoso.
Terminada essa tarefa de rotina, abriu a torneira, cuspiu a substância na pia, aparou a
água fria com a mão e, curva, enxaguou a boca. Enquanto bochechava, deixava a escova
sob a água corrente, para que não lhe ficasse resíduo algum. Após tudo isso, guardou-a
de volta, apanhou uma toalha de rosto e enxugou os lábios tênues e de pouca cor.
Bernardo esperou e a viu retornar. Não houve demora. Ajeitou-se na cadeira,
novamente com aquele olhar de quem quer ver e não quer ser visto. E não era. Elisa ia
direto ao guarda-roupa, que tomava quase toda parede, daquele lado, da entrada até a
cama, feito de madeira escura e rígida. Abriu a primeira porta e desapareceu da vista de
Bernardo, vasculhando suas roupas.
— Pretende sair que horas? — ele quis saber, quando o silêncio pareceu longo.
— Umas sete. E levantar umas cinco.
— Por que tão cedo?
— Acho que seria mais proveitoso.
— Hm. Eu não estou com sono, agora.
— Também não, mas como só eu dirijo... — e fechou a porta, abraçada a umas
peças de roupa. Olhou para Bernardo com um sorriso gentil e se retirou novamente.
Tão logo ela se foi, ele se levantou e se espreguiçou, esticando bem o corpo,
quase tocando o teto. Relaxou. Sentou-se outra vez. Encolheu-se na cadeira, feito
gárgula à beira de edifício. Com uma das mãos, agarrou a borda da bancada e deu
impulso para a cadeira girar, abraçando os joelhos, em seguida. Fez isso algumas vezes
mais, até Elisa voltar, agora vestida com as roupas que carregara consigo: um conjunto
de tecidos leves, blusa e short, finos e verdes, cujas estampas eram repetição de alguma
planta de folhas pontiagudas, gramínea, em tom escuro.
— Está entediado — ria.
— Não, eu só queria ver se girava bem — e rodopiou novamente, para mostrar.
— Até que é boa.
Parou, pondo os pés no chão. Sorria. Elisa andou até a cama e apanhou o bloco
de desenho, o lápis, e os pôs na cabeceira, próxima à janela. Dali, recolheu o celular —
um pequeno aparelho de frente cereja —, levantou a tampa e digitou: programava o
despertador. Depois, puxou uma cama de sob a primeira, como se abrisse uma grande
gaveta. Da parte superior do guarda-roupa, recolheu um travesseiro branco e um
cobertor xadrez, vermelho, os quais deixou sobre a cama nova. Puxou o edredom de
rosas que cobria sua cama para baixo e se deitou. Levava o celular consigo. Pôs o
telefone ao lado do travesseiro e se cobriu até o pescoço, escondendo os braços.
Bernardo, quieto, observava aquilo tudo.
— Está com tanto frio assim? — perguntou, quebrando o silêncio.
— Não. É mania. E é gostoso.
Bernardo se corcovou até sua mochila, ao pé da bancada, um bolo preto de pano
roto com aroma próprio, que não era forte nem era bom. Dum bolso pequeno, retirou
uma escova de dente. Para abrir, o zíper deslizava. Para fechar, precisou forçar algumas
vezes, tendo o cuidado de não arrebentar o fecho. Travou uma, travou duas e, na terceira
tentativa, correu. Esticou a perna até a porta, erguendo o tronco, e trouxe a outra logo
após, deslizando, e se pôs ereto. Girou a maçaneta, passou para o corredor e, num giro,
puxou a porta para si, com delicadeza, para não fazer barulho. Virou-se para o banheiro.
Lá, quando acendeu a luz, ficou momentaneamente cego. As pálpebras acortinaram os
olhos imediatamente, por reflexo. Bernardo piscava e piscava, tentando recuperar a
vista; então, experimentou enxergar. Olhava ao redor com certa estranheza. Pode ser
que estranhasse como tudo era bem organizado, limpo, cheiroso, ou, talvez, os olhos
estavam feridos. Sua imagem, no espelho, parecia não combinar. Era não pálida; os
trajes, muito opacos. Eram velhos, embora novos; eram sujos, embora limpos. Assim
percebido, agia com delicadeza, tateando o ar, em busca do que queria. Apanhou o fio
dental e cortou um pedaço, enrolando-o nos dedos. Devolveu o cilindro para exatamente
onde estava, sem esbarrar em qualquer coisa. Tomou distância do espelho alguns
passos, até encostar na parede, para evitar que os respingos de sua boca, durante a
limpeza, o alcançasse. Fez uma careta, arreganhando os dentes, e realizou a primeira
parte da higiene com agilidade. Pisou no pedal da lixeira, jogou a linha fora e deixou a
tampa descer, retirando o pé. Pegou o creme dental. Pressionou o tubo já quase acabado
e pôs uma pequena quantidade de pasta na escova, o suficiente para fazer espuma.
Novamente, à parede. Só ia à frente para cuspir dentro da pia e, por fim, enxaguar.
Como se não tivesse visto a toalha pendurada ao lado, enxugou os lábios nas magas da
camiseta e as mãos, na calça. Saiu de lá sacudindo-as.
Elisa ainda não dormia. Talvez pensasse no dia seguinte, enquanto buscava o
sono sob as pálpebras. Por mais inaudível que Bernardo tentasse ser, no abrir e fechar
da porta, ela reagiu a sua entrada, virando-se de lado, fitando-o. Ele se curvava para a
mochila, para guardar sua escova, tendo de lidar outra vez com o zíper ruim daquele
bolso.
— Ansioso para ir à praia?
— Não — olhando por cima do ombro. — Por quê?
— Por nada. Só perguntando.
Bernardo ajeitou a mochila sob a bancada e ficou ereto. Começou a tirar os tênis
com os pés, pisando os calcanhares, e continuava:
— Eu já gostei mais, na infância. Na adolescência, acabei enjoando, porque os
meus pais sempre arranjavam viagens para o litoral e nos arrastavam. Não podíamos
ficar em casa, sozinhos. Um pouco daquela ideia de que família deve estar sempre unida
e muita desconfiança. E nós já moramos perto do mar. Só andar um pouco. Hoje em dia,
sou indiferente.
— Sei como é.
— Eu gosto da estrada, aliás. Acho que, se tivesse carro, viveria perdido no
mundo.
— Há uma satisfação qualquer em ver tudo passar, ficar para trás. Não é?
Bernardo sorriu.
— Precisamos mesmo ir tão cedo?
— Sim. Você pode recobrar o sono na praia.
— Já viu onde ficar?
— Não.
Bernardo ficou calado, sentou na cadeira, puxou as meias dos pés e socou dentro
dos tênis. Levantou. Esvaziou os bolsos da calça, retirando dinheiro, celular e carteira,
pondo dentro da mochila, num compartimento diferente, cujo zíper não emperrava.
Esticou-se para o interruptor do quarto e interrompeu o movimento pouco antes de
apagar a luz.
— Desligo ou deixo acesa?
— Não quer trocar de roupa?
— Não, estou bem. Já acordo pronto para sair. Eu devo demorar para pegar no
sono, posso dormir até mais um pouco. Então?
— Pode apagar.
Desligou a luz. A rua iluminava levemente o quarto. Foi até a janela, desceu a
persiana e se deitou, tateando o caminho até seu lugar com os pés. Pôs uma mão no
colchão, a outra e se deixou esparramar por ele. Virou-se para cima. A cabeça afundou
no travesseiro e, aos poucos, os olhos iam tomando gosto pelo escuro. Bernardo podia
ver sombras sobre sombras. Elisa tinha os olhos selados outra vez, enxergando qualquer
coisa, sob as pálpebras. Os cílios se entremeavam feito cadeados, os lábios se uniam
gentis. Ainda estava de lado. Deitou-se sobre o dorso e permaneceu assim por um
tempo, como se morrera, até virar para o outro flanco, para a parede. Bernardo, que
fitava o teto, virou a cabeça de lado, reagindo ao movimento de Elisa, e tão logo voltou
à distração das luzes da noite que chegavam facilmente pela janela, em tênues feixes
luminosos, vazando pelas brechas da persiana. Nada mais parecia incomodar Elisa, cujo
silêncio se tornara sepulcral. Para Bernardo, insone, o que via era entretenimento. O
lume era vivo, não era estático. Riscava o teto, as paredes; deslizava dum lado ao outro
e desaparecia; ou permanecia, esmorecido. Aos poucos, nada mais se ouvia; até os
ouvidos se aguçarem e buscarem sons distantes. Bernardo pôde ouvir uma porta do
apartamento fechando-se e o tilintar de metal. Lacuna. Carros rasgando o ar. Virou-se,
deitando-se para a direita, e observou o brilho linear sob a porta, bem fraco, um amarelo
diluído, com os olhos voltados para cima e a testa em rugas. A mão direita aconchegava
o rosto, pressionada contra o travesseiro, e a esquerda pendia da cintura. Ambas as
pernas se posicionavam como uma só, com os joelhos levemente flexionados, unidos.
Apenas os pés, embora juntos, não se mantinham iguais: um tomava a frente do outro,
com a sola daquele sobre o peito deste. Não demorou a relaxar o cenho, atraído por um
novo acontecimento: um flash rompia pela persiana. Bernardo se ajeitou na cama,
voltando-se para a janela, e se levantou com leveza, como se levitasse, direto para lá.
Espaçou as tiras com os dedos e perscrutou o céu: era o mesmo de ainda há pouco, de
estrelas espaçadas e quase invisíveis. Examinou também os edifícios ao redor, assim
como tudo abaixo: nada parecia ter mudado. O trânsito dos carros e das pessoas, iguais
a antes; os prédios, feito constelações verticais, idem. Ou um apartamento — ou apenas
alguns cômodos — fora apagado, aqui e ali; ou havia menos pedestres, menos carros?
Se assim era, quanto tempo se passara desde que deitara?
Bernardo deu uns passos até sua mochila e esbarrou na cadeira. Não fez muito
barulho. Segurou o espaldar e se agachou. Agarrou uma das alças e trouxe para si.
Passou um tempo vasculhando os bolsos, tentando encontrar o celular. Mexeu aqui e ali,
apanhando carteira, lápis, canetas, cartões, cadernetas, até, por fim, encontrar o
aparelho. Levantou sua tampa, mas a tela não acendeu; deixou o botão de ligar
pressionado por uns segundos, e nada. A bateria estava sem carga. Guardou o telefone
onde estava. Não se preocupou em recarregá-lo. Como saberia as horas? Retornou à
janela e procurou: dali, nenhum relógio de rua lhe era visível.
Ao longe, surgiu-lhe um caminhão de coleta de lixo, quase todo laranja, parando
próximo a lixeiras de mesma cor, com homens saltando da caçamba de uniformes igual.
Aquilo não lhe ajudaria com o tempo, óbvio. Apenas não conseguia evitar a aparição: o
sinal luminoso era chamativo e a atividade dos garis lhe distraía. As demais pessoas, na
rua, se reduziam, se retiravam de quando em quando do cenário. Não faltaria muito para
que os ônibus ficassem escassos, assim como os outros veículos, no palco das
máquinas.
Novamente, o clarão. Bernardo pôde ver as afiadas serras, feito um rasgo no céu.
Lá, no horizonte encrespado, avolumavam-se nuvens de brilho repentino. Seus olhos se
vidraram. O instante se imortalizara, qual uma fotografia sinistra. A segunda vinda não
demorou e, no alto da serra, não tão ao cimo, revelou um aglomerado de casas ou uma
pousada. Antes de deixar a janela, Bernardo deu um último vistaço e se pôs a deitar,
com os olhos no teto. Os coletores não mais se apresentavam. A ação, agora, pertencia à
massa negra que se rompia toda vez que a luz lhe tocava, voltando a regenerar-se assim
que ela recuava. Era entediante, afinal, assistir a esse embate. À força do tédio, as
pálpebras desceram. Bernardo dormia? Não. Meditava, quem sabe? Não demoraria para
os pensamentos se tornarem sonhos, sem que o sono o embalasse. Bastava estar inerte e
afundar em sua própria obscuridade. Os ruídos ao redor se tornariam uma sinfonia
calma, a inquietude tornada paz, quando a leveza fizesse o corpo pairar no nulo.
Desbotando em cores, o vazio seria a tela cinematográfica de delírios, lembranças,
elucubrações. Não é assim a todos, no entanto. Elisa gostaria de sonhar ou de ter a
certeza de que sonhou.
Insone, a cidade não descansa, apenas desacelera, enquanto muitos repousam.
Há movimento aqui e ali: rodas que percorrem o asfalto imprudentes, faróis que
resplandecem a avenida e se propagam na vidraça dos prédios; um par de pernas que
caminha, outro que espera; corpos fracos, corpos sujos, serenando, no chão; morcegos
de árvores em árvores; cores que não se apagam e estrelas que não se revelam, no alto
painel preto, ofuscado pelo lume terrestre. Enquanto as ações se somam, lá fora,
Bernardo se agita, no colchão. Já Elisa, muito esporadicamente, se mexe. A rua se
imprime e deixa vestígios na câmara escura, que é o quarto; o céu longínquo pisca mais
algumas vezes, fotografando o mundo. A janela volta a vibrar, com o vento, e ninguém
desperta, pois o sonho é um protetor astuto do sono. Nada também se mostra
extraordinário, seguindo o habitual roteiro da madrugada, na qual se espera, pelas
crendices, o incomum, a desordem. Quantos, entretanto, são os vigilantes notívagos, não
por profissão, cuja vigília é limitada? Quantos suportariam a inércia constritora,
introjetando espinhentamente a loucura em si? Não há quietude que não cause delírio.
Não há quem, afundando, não dê braçadas velozes à superfície.
Se não houver cansaço, não haverá descanso. Portanto, para abrandar-se,
existem atividades que sopram o intelecto, que se dispersa feito farelo. É dormir
acordado, é repousar sem fadiga, é esvaziar-se sem meditar. Ou se buscam atividades
que trituram o intelecto até que se torne poeira, como a leitura, a execução duma arte, a
resolução dum problema lógico. Pode ser que, todavia, o prazer pelo que é feito
empolgue e as pálpebras tardem a pesar. Se não houver descanso, não haverá sanidade.
O corpo se debilita, o raciocínio se embaralha. Bem ali, Bernardo se debate. Dorme sem
descansar. Os olhos abertos de repente se espantam com qualquer coisa além do
observável, enquanto todo ele se petrifica. Quando se fecham outra vez, retorna o
tranquilo repouso; até a quietude se romper, ao acordar Bernardo abruptamente,
enchendo os pulmões com os ares deste mundo. Com os braços tesos para trás, as
pernas estiradas, senta-se, apoiado nas mãos. Parece não compreender a realidade.
Circunvê o espaço ao redor, que é o mesmo; a obscuridade, a mesma. Elisa dorme de
bruços, a face para a parede, a respiração suave. Aquela calma acalenta. Naquela
perscrutação apaziguadora, Bernardo amolece. As mãos deslizam sobre o lençol, os
braços se enfraquecem e as costas, lentamente, vão de encontro ao leito. Assim,
desfalecido, o sonhar se reconstrói.
A mente reencontra a paz, os músculos relaxam. A dança das luzes, a corrida das
sombras e o suspiro das ruas dão continuidade à noite morosa que raros teimam em
acompanhar. Mesmice. Sempre. Talvez, por outra janela, vejamos algo interessante,
mas não para este recorte. Alguém já terá escrito sobre os outros, insones ou
sonâmbulos; já terá descrito sonhos ou narrado trajetórias antelucanas. Neste quadro, a
ação é dormir. Os protagonistas perdem a importância e se tornam objetos do cenário.
Não só pela inércia. Elisa e Bernardo são partes das camas, volumes dos edredons. São
a escuridão do quarto. Seus contornos se imiscuem às arestas mil, sem início e sem fim,
cor ou nuances. Lá fora, sim, as formas se destacam, variam.
Conforme os minutos passam, menor é a presença viva e o silêncio cresce. Um
suspiro pode ser ouvido distante. Conforme as horas aumentam, maior é a presença viva
e o silêncio cessa. O respirar se torna imperceptível. As máquinas lançam seu primeiro
rugido do dia, antes mesmo de as lâminas solares cortarem a noite. Bernardo e Elisa,
contudo, continuam imperturbáveis. Apenas às cinco horas da manhã, ao soar do
alarme, há movimento. Primeiro, o celular toca baixo uma melodia suave, com um piar
brando de pássaros, e vai subindo, fazendo-se bem audível. Elisa, por ter o celular ao pé
do ouvido, na cama, logo acorda. Preguiçosamente. As mãos, tontas, arrastando-se para
fora do edredom, tateiam em busca do despertador. Bernardo é acordado, então. Pisca
com demora e a música para, assim que Elisa alcança o aparelho e o desliga, sem ver o
que fez. Quando as pálpebras de Bernardo se unem pela última vez, ele retorna ao
estado de antes. Elisa, segurando o telefone, experimenta a vista, por fim: o negror ainda
é presente. Seus olhos, porém, adaptando-se ao meio, começam a distinguir formas
daquela massa una. Sem pressa, ela se senta, pondo os pés à beira de Bernardo. Com um
impulso sutil, levanta e caminha para a porta, como se fosse uma sombra a cruzar o
quarto, abandonando o celular em meio ao lençol amarrotado.
Foi dali para o banheiro, cuja luz vigorosa resplandecia. Elisa, numa
semicegueira, se despia a passos curtos ao boxe. Seu corpo esquálido, tão branco quanto
os azulejos, quase desaparecia, em tamanha claridade. Correu a porta de vidro e abriu o
chuveiro. As inúmeras linhas aquosas, perpassando Elisa, escorrendo por toda ela, num
caloroso afago, encharcavam o piso, tendo fim no ralo. O cabelo cascateava escuro,
terminando logo acima da parca anca marmórea. Por vezes, Elisa curvava o pescoço
para trás e recebia a água de cara, e as mãos esqueléticas deslizavam do rosto à nuca,
agrupando as mechas para as costas. Dos pés firmes à cabeça dormente, o vapor
ascendia e as paredes suavam. O banho quente, de manhã, era um deleite e, elixir da
preguiça, demorado.
Elisa, muito cuidadosa consigo mesma, não se esquecia de lavar nenhuma parte.
Havia sabonete até nas dobras mais estreitas das orelhas. Por fim, após enxaguar o
corpo, dava mais atenção ao cabelo. Perdia-se do presente, quando lhe aplicava loções e
massageava o couro cabeludo. Primeiro, o xampu. Os dedos penetravam fundo e
carinhosos na cabeleira. A água quente continuava a cair, mas a cabeça ficava de fora.
Então, após muita espuma, lavava o cabelo. O líquido que caía de suas mechas
carregadas daquele produto estalava, ao tocar o chão. Após, vinha o condicionador.
Despejava-o na mão e se repetia o que foi descrito antes. Por conclusão, fechava o
chuveiro, do qual se desprendiam algumas gotas, que Elisa parecia fazer questão de
receber. Quando não mais lhe caíam, correu a porta de vidro e deixou o boxe, já
apanhando uma toalha dum gancho próximo e enrolando ao redor de si. Foi para diante
do espelho, embaçado, deixando suas pegadas molhadas no pano de chão, que estava ali
para secar os pés saídos do banho. Despiu-se da toalha. Enxugava-se encarando sua
imagem turva, que, ao fim, quis revelar, esfregando o punho no espelho, como se
rasgasse um véu que lhe cobria. Via-se melhor, agora, apesar do rastro de gotículas
sobre o reflexo. Vestiu o pijama, caído em bolo, aos seus pés. Inclinou-se, pondo o
cabelo para frente, e lançou a toalha sobre os ombros, cobrindo as costas, e ficou ereta,
pondo o cabelo para trás, sobre a toalha. Pegou sua escova, pasta e começou a primeira
escovação do dia. Cuspiu a espuma na pia, enxaguou a boca, enxaguou a louça e a
escova. Guardou-a. Apanhou outra escova, para seu cabelo, e se demorou no
desembaraçar, mesmo que seus fios lisos dificilmente se emaranhassem.
Bernardo dormia. Aproveitava aquela lentidão. Elisa, de volta ao quarto, foi
direto a ele. Agachada a seu lado, chamou, chamou e chamou, chacoalhando-o com
delicadeza. Na terceira vez, os olhos vagarosos se abriram, não distinguindo quem era.
Primeiro, houve estranheza e, com o semblante pacífico, Bernardo expirou um “ah”.
Ergueu o torço como se carregasse uma rocha e se sentou. Elisa ficou de pé, fitando
Bernardo, que fitava o chão.
— Bom dia — ela disse.
— Bom dia — Bernardo respondeu meio rouco. — Já tomou banho? — Olhava
para ela, notando o cabelo escorrendo sobre a toalha trazida nos ombros.
— Sim. Vamos levantar?
Então Bernardo se levantou duma vez, espreguiçando-se e, enquanto o fazia,
perguntou, quase gruindo:
— Já tomou café?
— Não. Acordei você para isso.
— Ah! Vamos.
Elisa saiu na frente e ele a seguiu; mas não se encontraram, no corredor, cujo
lume fraco tornava a vista sépia. Via-a passar pela sala, um amontoado de formas
sombrias e mal iluminadas, também tingidas debilmente pela aurora. A parede adiante
se estendia da porta de entrada até a sacada, que se destacava, como que no ar.
Estreitava-se entre o gradeado e a vidraça, que se abria para ali, também separando-a do
ambiente interno. E o espaço se reduzia mais, com a presença duma pequena mesa de
vime, combinando com duas cadeiras iguais, uma de frente para a outra, e uns vasinhos
de planta postos num canto. Bernardo, coçando um dos olhos, foi sentar-se numa
cadeira próxima, a sua esquerda. Ficou de fronte para um mural de fotos de pessoas que
não conhecia e lugares que, talvez, nunca visitara. Cruzou os braços sobre a mesa e se
demorou na observação. Elisa acendeu a luz da cozinha, que resplandecia alva, e a sala
se tornou um pouco mais nítida. Abriu a geladeira e, primeiro com os olhos, selecionou
o que comeriam. Bernardo deixou seu antebraço esquerdo sobre a mesa circular à qual
sentava, pôs o outro por cima do encosto da cadeira e virou o torço para lá. Elisa pousou
duas vasilhas brancas, chatas, sobre a bancada entre os dois, e Bernardo se levantou, e
as apanhou. Elisa voltou à geladeira, recolhendo mais coisas e, quando Bernardo se
virou para a mesa, para largar aquilo ali, Elisa se virou para a bancada com uma garrafa
de suco e um pote de manteiga. E iam assim: enquanto ela colhia o café da manhã, ele
arrumava a mesa. Por fim, Elisa veio sentar-se, trazendo dois pratinhos de cerâmica,
garfos e facas. Todo o resto de que precisavam já estava posto: pães de forma e
franceses ensacados; fatias de presunto e queijo, nas vasilhas brancas; café, na garrafa
térmica; suco de goiaba em caixa; canecas de porcelana e copos de vidro.
Bernardo continuava de pé, quando lhe pareceu vir uma grande ideia ou
lembrança urgente. Num breve “já volto”, apressou-se para o quarto. Elisa, sentada para
o mural de fotos, observou aquilo, esticando o pescoço de lado. Bernardo logo saiu com
uma escova de dente e entrou no banheiro. Elisa esperou, de olho na mesa. Estava
absorta, vagueando em si. Ao som da porta, reavivou-se e sorriu para Bernardo,
chegando, e perguntou:
— Você escovou os dentes antes de comer?
— Sim. Para tirar o gosto ruim da boca.
E se sentou diante dela, no espaço apertado entre a mesa e a parede.
— Eu não peguei tudo. Se quiser mais...
— Não. Está bom, assim.
— Leite, manteiga...
— Não, não. Está bom.
— Certeza?
— Sim, sim. Eu não consigo comer muito, pela manhã. Não sei o que acontece.
Eu até tenho fome, mas mastigo tanto que até perco a vontade de comer.
Então começou a aprontar sua refeição, retirando um pão francês do saco e
abrindo-o com a faca. Com os dedos em pinça, arrancou nacos do miolo e comeu.
Depois, com a ponta da faca, separou uma fatia de queijo e uma de presunto das demais,
e colocou ambas dentro do pão. Elisa agia também, porém sem arrancar o miolo do pão
nem puxar fatias dos frios com a faca. Preferiu os dedos, para tal, destacando as finas
bordas com as unhas. Para beber, Elisa encheu seu copo de suco. Na caneca, Bernardo
pôs café. Então, quase em sincronia, morderam o pão, que já não era mais crocante.
Entre uma mordida e outra, Elisa bebericava o suco. Já Bernardo, deixava o café esfriar,
embora uma golada dele não fosse queimar-lhe os lábios. A fumaça tênue, no entanto,
subia bailarina. E comiam em silêncio, cada qual de seu lado do balcão. Apenas quando
ele terminou de comer, experimentou o café, amargo como apreciava. Elisa se
contentou com só um pão e terminou seu suco. Bernardo, não. Desta vez, abriu a
embalagem do pão de forma e pegou duas fatias. Entre elas, novamente com a faca, pôs
uma fatia de cada frio e comeu. Por fim, bebeu todo seu café com a lentidão que lhe
cabia.
Elisa se levantou, enquanto Bernardo dava suas goladas. Sumiu-lhe da vista, no
corredor, indo ao banheiro. Ele, por sua vez, deixou a cadeira para sentar-se no sofá,
esparramado, diante da televisão robusta, cuja tela refletia a sombra de tudo. Percebeu
que, acima de sua silhueta, um quadro se exibia. Curioso, torceu-se para ver a fotografia
duma floresta sombrosa e raios de sol varando as copas das árvores. Olhou bem atento,
olhou com minúcia. Apenas olhou. Demorou-se por demorar, pois não havia nada de
extraordinário a ser encontrado. Endireitou-se. Voltou-se para a estante, correndo os
olhos pelos diversos bibelôs e presentes de viagens, fotografias e CDs. Estendeu as
pernas, deslizando os pés pela relva bege do tapete. Era macio. Então os esfregou
algumas vezes mais. Os dedos rosáceos da aurora alcançavam as mobília da sala,
vibrando-as em rubor. Principalmente a cristaleira, com seu brilho escarlate.
Elisa retornou e Bernardo continuava no escuro da sala. Ela foi até a mesa e
começou a retirar a louça, e tudo mais que haviam deixado ali. Vendo aquilo, Bernardo
se levantou imediatamente, para ajudá-la.
— Pode deixar, eu lavo a louça — ele disse.
Elisa guardou os pães, os frios, o café e o suco, e se retirou para o quarto.
Bernardo se concentrou na pia. A torrente fosca e fria da torneira fazia os farelos leves
correrem água abaixo, tornando quase tudo absolutamente limpo. Para a limpeza
completa, esfregava a esponja com detergente, criando um amontoado de espuma. E,
novamente, a bica lançava sua torrente fria, feito uma tromba de cromo, enxaguando a
louça, enxaguando as mãos. Bernardo foi ágil, em sua tarefa. Após fechar a torneira,
sacudiu as mãos sobre a pia e caminhou de volta para a sala. Teve tempo para assistir ao
fim do longo espreguiçar da aurora. Ficou diante da porta de vidro da sacada,
observando a fortificação da luz da manhã, o sol que ainda não via, pois nascia atrás dos
prédios atrás de si.
Elisa retornou, nesse ínterim, trazendo uma mochila em cada mão, pelas alças.
Quando Bernardo deu por ela, ouvindo as bagagens pesadas soltas no sofá, virou-se.
Vendo-a sem o pijama, vestida como à noite, perguntou:
— Pronta?
— Sim... — Elisa respondeu, olhando à volta, à procura de algo. Foi ao balcão e
apanhou uma chave de carro, meio escondida, debaixo dumas correspondências, e
enfiou no bolso.
Bernardo se apressou para o quarto e retornou com seus tênis numa das mãos,
enganchados pelos dedos, com as meias dentro. Ele se sentou ao lado das mochilas e
iniciou o ritual de calçar-se. Primeiro, pegou uma das meias brancas de dentro de seu
tênis preto que, apesar da cor, evidenciava sujeira. Um tanto roto, percebia-se que era
velho. Se Bernardo chegou a lavá-lo, fazia anos. Depois de vestir a meia, afrouxou bem
os cadarços e puxou a boca do tênis para trás com delicadeza, esticando o tecido. Dessa
forma, com a ponta do pé enfiada, a meia deslizava todo o resto para dentro e, por fim,
um laço atava o conjunto. Logo mais, o mesmo ocorria com o outro pé.
Elisa já estava calçada, pronta para sair. Enquanto Bernardo terminava, ela pôs a
estufada mochila nas costas e deu mais um vistaço a seu redor, na dúvida de estar
esquecendo algo. Com Bernardo de pé, levando sua mochila pendurada num ombro,
segurando a alça, saíram um após o outro para o corredor mal iluminado do prédio,
onde os apartamentos se enumeram. Elisa puxou a porta com força sem, no entanto,
fazer estrondo. Como a maçaneta não girava por fora, deixou assim, sem trancar com
chave. Bernardo se adiantou uns passos e pressionou o botão do elevador, que, para sua
surpresa, já estava ali. Entraram.
O elevador era quase todo espelhos, criando uma ilusão espacial de que era
maior do que o pouco que era. Uma barra de metal se fixava neles, à altura da cintura,
na qual Bernardo repousava o antebraço, inclinando-se, quase esparramado; e a mochila
pendurada por uma alça só, no ombro elevado. A iluminação corria pelas grades à
beirada do teto e o chão era revestido por um carpete cinza de borracha. Elisa
pressionou o botão para o térreo e ficou ali, quieta, diante do painel de mais de vinte
botões, com sua bagagem nas costas. Bernardo a observava, dissimulado, pelos
reflexos, seus diversos ângulos. O elevador descia lento, seus mecanismos trabalhando
quase em silêncio. Então, também pelo espelho, ela olhou para Bernardo e disse:
— Você está com uma cara...
— É — bocejou. — Não dormi bem. Dormi pouco, tive pesadelo.
O elevador parou e sacolejou levemente, e a porta se abriu, retraindo-se para os
lados. Elisa saiu primeiro. Bernardo olhou para cima, para a câmera, num canto alto,
como se captasse os olhos de seus observadores, e a seguiu, continuando a falar:
— Sonhei que encontrava um bilhete, na rua, dum cara que, supostamente, eu
havia dedurado para a polícia. Ele era assassino. Dizia que estava com uma amiga
minha e viria atrás de mim. Havia um colar de pérolas junto, como prova. Eu comecei a
ficar apavorado. Sei que, contando assim, não parece assustador, mas o ambiente escuro
do sonho, meio filme noir, dava um ar sinistro.
Dali até o estacionamento, seguiram por um corredor claro, com ladrilho na
parede até meia altura, e um grande armário de correio, com um compartimento para
cada apartamento. O carteiro vinha, deixava as cartas com o porteiro e este as separava,
levando-as, depois, para o armário, onde, pelas frestas de cada compartimento, as
depositava. Quando algum morador chegasse, tendo sua chavinha, abria a portinhola
com o número de seu apartamento e levava suas correspondências consigo. O armário
era largo, baixo, feito duma madeira escura e envernizado. Ficava bem ao lado do
elevador de serviço, pelo qual Elisa e Bernardo saíram, de frente para a porta de acesso
à escada.
Elisa estava para fazer um comentário, contudo Bernardo se apressou a fazê-lo:
— O que acho engraçado é que, pelo colar, eu sabia exatamente que amiga era,
sendo que, na realidade, ela não usa pérolas. Bom, sei lá... Faz anos que não a vejo. De
qualquer maneira, não teria como eu saber se era mesmo dela. Porém, de alguma forma,
no sonho, eu tinha a certeza de que era.
— Nem sempre as pessoas do sonho são as mesmas da realidade — Elisa
comentou. — Por exemplo, no seu sonho, a sua amiga pode estar simbolizando outra
amiga. Ou amigo. Ou o seu pai, ou a sua mãe. É preciso analisar a sua vida, pensar nas
coisas que aconteceram no seu dia, para conseguir interpretar bem os sonhos. Eles
podem ser um amontoado de coisas que você experenciou.
Bernardo ficou calado, pensativo. Os dois andavam pelo estacionamento do
prédio, em busca do carro da mãe de Elisa. As luzes, ali, não se apagavam, pois não
havia qualquer abertura para o sol. A iluminação era laranja, misturando-se com o cinza
ambiente, luzindo as várias latarias escuras dos automóveis, em maioria, como vinda de
lugar nenhum. Cada vaga era enumerada a corresponder a cada apartamento, com um
desenho não muito bom, a mão livre, posto no alto da parede, em tinta amarela. As
pilastras seccionavam o espaço. Pararam diante dum automóvel prata comum,
estacionado de ré. Elisa foi para a porta do motorista, Bernardo foi para a do carona. Os
vidros eram escuros e refletiam suas imagens sem nitidez. Era como se suas sombras
tivessem face e os encaravam. Com um único giro de chave, Elisa abriu as quatro
portas, cujos trincos soaram em uníssono. Acomodaram suas mochilas no banco traseiro
e se sentaram na frente. Puxaram os cintos de segurança para si, cruzando o peito, até a
lateral dos bancos, travando-os. Elisa pôs a chave na ignição e o painel, atrás do volante,
acendeu. Soltou o freio de mão, deu a partida e engatou a primeira marcha. Saiu da
vaga, acelerando devagar, e virou à direita. Suas mãos deslizavam pelo volante duro, ao
mesmo tempo em que mantinha a direção firme. Seguiu reto, por uns segundos,
ganhando velocidade. Passou a segunda marcha e virou à esquerda. Parou de frente a
um portão metálico, negro, e baixou o vidro de sua porta pelo sistema eletrônico do
veículo. Estendeu o braço para fora e pressionou um botão vermelho, ao lado, numa
caixinha amarela, metálica, acoplada à pilastra. Dela, um tubo delgado e preto subia até
o teto, por onde continuava até o portão. Ele, ruidoso e lento, se abria. Um sistema de
correntes e engrenagens o arrastava horizontalmente, e a luz do dia invadia o
estacionamento. Começava por uma linha e aumentava em largura, revelando,
parcialmente, árvores, prédios, postes, transeuntes... Tudo aquilo que Bernardo vira,
ontem, em amplidão. Esperaram até haver passagem para o veículo e saíram. Elisa
fechou a janela e ligou o ar-condicionado.
Outro portão, mais à frente: aberto, verde, gradeado com hastes pontifícias, para
dificultar a passagem de qualquer salteador. Chegavam até ali por um caminho de
pedras portuguesas. À direita de Bernardo, uma parede granulada coberta por heras e
um canteiro de plantas; à esquerda de Elisa, a portaria, um casebre cúbico, branco, de
porta de vidro e janela panorâmica, espelhadas, pelas quais o porteiro podia ver sem ser
visto. O chão, do edifício até as grades do portão estreito, por onde os pedestres
passavam, era de extensos azulejos beges e ásperos. Seguindo, cruzaram a calçada até o
asfalto. Havia carros estacionados ao meio-fio. Elisa manobrou para a esquerda.
Bernardo tinha o cotovelo sobre a borda da janela, repousando a cabeça no punho
fechado. Com o vidro suspenso, não era um apoio firme. O cotovelo escorregava, com
um balanço mais forte. Mais, o sono remanescente vinha dobrando-o, aos poucos. De
repente, ajeitando-se no assento, deixando as mãos sobre as pernas, fitou Elisa e
perguntou:
— Como você tem certeza, se nunca sonhou?
— Quê? — Elisa lançou um olhar confuso a Bernardo, brevemente, e voltou a
atenção à rua.
— Sobre os sonhos...
— Sobre os sonhos? Ah! — riu. — Ficou pensando nisso?
— Não. Só me ocorreu que você não sonha. E como você saberia como os
sonhos funcionam?
— Eu estudei sobre isso — respondeu, virando à direita e parando sob o sinal
vermelho — Eu tenho um livro de interpretação dos sonhos, se quiser emprestado. — O
que você deveria fazer, aliás, é anotar os sonhos.
— É uma boa — Bernardo ficou pensativo. — Eu poderia escrever como se
fossem contos insólitos.
— Adoraria ler!
Bernardo virou o rosto para a janela de seu lado, para a concessionária que se
acendia, e pessoas que iam, e vinham, ao redor. O dia começava a encher-se de
movimento e som. Com os olhos, acompanhou um pequeno grupo ir dali até a praça,
que se via pela janela de Elisa. Sobre as faixas brancas do asfalto, cruzavam com um
grupo menor; e ambos, após atravessarem a rua, se dispersaram. Então o sinal abriu e
Bernardo voltou a falar, com o olhar para adiante, enquanto Elisa os conduzia para a
avenida, numa curva à direita:
— Como é que alguém não sonha, se os sonhos refletem os nossos dias?
— Pode ser que eu só não me lembre.
— Você deita e, de repente, está acordada? Não tem a sensação de tempo
passado?
— Não sei. Eu sinto a passagem do tempo, só não crio memória de sonho
nenhum. Nem sensação de ter sonhado.
— Se alguma coisa marca o seu dia, você devia sonha com isto. Não?
— Talvez nada me seja marcante — sorriu para Bernardo, que lhe devolveu o
gesto.
Seguiram direto, até um canal de água lodosa. A vegetação da margem se
destacava, no cenário urbano. Era o que sobrara da terra antiga. Árvores bem crescidas
cobriam os postes cujos sensores, enganados, os faziam luzir dia e noite. Debaixo do
viaduto erguido sobre o canal, indo para a esquerda, retornavam para a avenida, em
sentido oposto. Passaram em frente a um shopping de prédios baixos e azuis: um
pequeno centro comercial, bem limpo e arborizado, fechado por grade. Ainda não era o
horário. O ponto de ônibus ao pé da larga escadaria de acesso estava quase desértico.
Em seguida, um edifício largo, espelhado, escuro. Uma faixa vermelha, metálica,
ornava o topo. Parecia anexo de outro shopping, continuando o caminho, amarelo. De
telhado vermelho e dois andares, quase todas as lojas eram visíveis, da rua. Projetando-
se para frente, uma torre de mesma cor e telhas ostentava o nome do lugar. De fora,
entrevia-se o pátio central, de verde vivo e fresco. Ali também, em ambas as
construções, o gradeado não permitia a entrada de ninguém. E assim era com o mercado
ao lado.
O que não era comercial era residencial. Se não havia grade, havia muro, cerca
elétrica, cancelas, vigias, câmeras. Mas nem tudo se fazia desse jeito. Alguns
estabelecimentos se satisfaziam com o simples trinco de suas portas. Novamente
parados pelo sinal, Bernardo, como carona, relaxava, com a atenção dispersa pela
cidade. Elisa, no entanto, não. Seu foco era a frente, podendo olhar brevemente os
espelhos e os lados, mesmo com o carro parado, pois não ficaria ali por muito tempo
nem poderia demorar a sair, ou as buzinas rudes dos que vinham logo atrás soariam.
Elisa consultou a cor do semáforo e Bernardo começou a falar, fazendo-a olhar para
fora, para a direita, pelo para-brisa:
— Eu ia ali bastante, quando mais novo, com a família — Bernardo apontava
para um restaurante próximo a um posto de gasolina.
Elisa observou o lugar, em silêncio. Era escuro, pouco chamativo, quase
escondido. O posto se sobressaía. Ela não tinha nada a dizer. Bernardo prosseguiu:
— Hoje em dia, vive cheio. E é caro.
Nesse instante, o vermelho, no alto, se apagava e o verde se acendia. O carro
voltou a andar e Bernardo ficou olhando para fora com uma expressão saudosista,
talvez. Letreiros, de quando em quando, o distraíam. Elisa ligou o rádio, trazendo
Bernardo a si. De canto de olho, ele viu aquela mão delgada indo de botão a botão. A
música soava por alguns segundos e logo outra a interrompia; ou uma propaganda, que
durava menos tempo ainda.
— Você não gosta de nada? — Bernardo perguntou.
— Não. Não sei o que quero ouvir. Pode escolher.
Bernardo deslizou o indicador pelos botões, em busca de alguma estação que
agradasse aos dois. Parou de selecionar, quando ouviu uma canção brasileira antiga,
amorosa, comum de muitos sambas. Então deixou ser, atento à expressão de Elisa. Ela,
de imediato, exclamou:
— Ah, eu gosto dessa!
Bernardo sorriu, feliz por ter acertado seu gosto ou por ouvi-la, em contida
animação, acompanhar a música. Não tinha nenhuma aptidão para canto, porém sua voz
era de pequeno agrado. Quando a música terminou, dando vez ao locutor, ela corou um
pouco e sorriu. Olhou para Bernardo uma vez e outra, incerta com a rapidez do primeiro
olhar. Ele continuava a sorrir-lhe.
— O que foi? — Elisa perguntou, claramente sem graça.
— Nada — ria gentil.
— Aquela música é muito boa. A construção dela... Não sei explicar. É muito
bem feita a combinação de palavras. Fico impressionada.
— É. Eu sinto um pouco de inveja. Queria ter escrito uma música assim. Um
poema. A mudança de ordem das palavras é genial, conforme ela segue. Dá para
perceber a transformação do personagem.
— Sim.
— Eu gosto de muita coisa dele. Até pouco tempo, eu só ouvia as suas músicas,
várias vezes, sempre as mesmas. Eu cheguei a ter um sonho meio ruim com uma voz de
fundo dumas das canções.
— Você e os seus sonhos...
— Sério! Dava um ar sombrio, parecia lamúria. E a minha mãe estava nele.
Sempre chorando — Bernardo se calou por uns segundos. — Acho que tinha a ver com
o divórcio dela. Enfim...
— Você é um prato cheio para a psicanálise. Viu como os sonhos refletem o
real? — Elisa continuou, depois dum curto silêncio.
— Verdade — e Bernardo ficou imediatamente em silêncio, alheio.
Elisa, notando-o assim, instigou:
— Quer falar mais sobre?
— Não.
— Está tudo bem?
— Sim. Eu só estava pensando em como a música se relaciona com a minha
mãe. Talvez o desatino, o despertar numa manhã cinzenta, as cores se desbotando... É
um pouco forçado, na verdade. Poderia ser metáfora para qualquer relação fracassada.
— E como ela está, agora?
— Bem. Eu acho.
Bernardo ficou introspectivo, com o semblante neutro. Elisa voltou a concentrar-
se no tráfego dos carros, como devia ser. Apenas o rádio tinha a palavra. O trânsito
corria agradável e já quase não paravam à luz vermelha dos sinais. A paisagem
monótona fazia as pálpebras de Bernardo piscarem, demorando mais e mais, a cada
piscada, até não haver mais força para se manterem suspensas. Além disso, quantas
vezes ele já seguiu aquele trajeto, de casa até a universidade, e vice-versa? Já Elisa,
parecia muito bem descansada. Ainda que um bocejo se lhe anunciasse, a postura
permanecia firme. O sol, em seu trajeto ascendente, garantiria sua retidão. Deixemos
que Bernardo recubra o que não dormiu, se é que há algum conforto em adormecer
assim, sentado, a cabeça meio dependurada, escorada na janela, e o cinto de segurança
constringindo seu corpo. A consciência de Elisa é mais importante, ainda que suas ações
estejam limitadas à condução do automotor. Com a certeza de que Bernardo dormia,
deixava-se cantar com entusiasmo maior; sem despertá-lo, todavia.
Na fluidez da pista central, sempre no limite de velocidade das placas, Elisa, já
tendo visto tudo aquilo também, se tornava o próprio automóvel, que é parte do fluxo,
que é o cenário. As árvores, que nunca se destacaram, nesse meio, igualmente o
compunham. Espalhadas pelo que chamamos de canteiro central, estavam como
decoração, num espaço onde a engenharia e arquitetura se enamoram. Tudo reto. Tudo
quinas e ângulos. Tudo possível de ser esquadrinhado. Os galhos não seguiam qualquer
ordem, apenas sua ordem natural. Torciam-se para o céu, em reverência ao sol. A relva
crescia aqui e ali, invadia espaços entre blocos de concreto, deixava crescer outra
vegetação, como se fosse sua, e outros seres se proliferavam por ela.
Alguns pássaros desciam das copas para ciscar a terra, bicar os frutos caídos;
outros chegavam para comer o que ainda estava no pé ou apanhavam insetos, no ar.
Havia vezes em que alguém, pela calçada, se descuidava e deixava cair um grão de
pipoca, um pedaço de biscoito ou alimento qualquer, e os pombos, que preferem a
urbanidade, se aventuravam entre os pés apressados do povo. As aves que voavam mais
alto eram mais ambiciosas: buscavam alimentos maiores. Volteavam o céu, com visão
de quase todo ser abaixo de si, do mar sem fim às serras sem nitidez do horizonte. Era
até possível ver a curva do mundo. Na planície cinzenta, daquele ponto, as enormes
construções eram grãos e corriam, entre si, múltiplos brilhos metálicos, como o carro
prata que Elisa conduzia. Nem tudo, no entanto, era dessa monotonia: uma dança
verdejante permeava a cidade. O que, de dentro, se via como decoração, de fora, era a
base deste mundo, na qual a cidade se espalhava feito câncer.
Num momento, a avenida subia e Elisa se encontrava à margem dum terminal de
ônibus, onde havia uma grande concentração de pessoas. Do lado oposto, via-se um
monumento de forma estranha e cores mortas. Chamava mais a atenção pelo tamanho e
o aspecto de abandono. Embora fosse uma casa de espetáculos, raramente se encontrava
alguém, ali. Além, na continuidade do percurso, chegando ao topo da elevação, um
bosque se apresentava, abaixo, saindo de trás daquelas paredes gigantes. Estando num
nível superior, Elisa era quase capaz de enxergar cada árvore daquela selva habilmente
montada para o divertimento de seus visitantes. E, como não podia deixar de haver, uma
grande cerca envolvia toda área. Ninguém deve estar dentro, quando a noite cair.
Até aqui, a viagem levara de dez a vinte minutos. Sim, o destino é distante, mas
não levariam a manhã toda até ele. Chegariam antes do meio-dia, com uma ou duas
horas de sobra. Entretanto, se Bernardo dormiu tão mal assim, durante a noite, seria
possível não ver mais nada do caminho, até Elisa o acordar. Isso se o assento lhe
garantisse o conforto necessário, o que nós sabemos não ser possível. Mais provável
aumentar seu cansaço, prolongando o sono. Elisa bocejava, de quando em quando,
apesar de ter tido um bom repouso. A prontidão é exaustiva para a mente e a retidão da
postura cansa o corpo. Não seria agora, não obstante, que cederia.
Havia, nela, satisfação em ver Bernardo cochilar, quando desviava seus olhos
para ele, que dormia tranquilo, quase imperturbável. Inconscientemente, ajeitava-se no
banco, vez ou outra. Havia momentos em que parecia despertar. Então retornava à
profundidade de si mesmo.
Mais dez minutos de viagem e uma nova elevação se mostrava. Agora, Elisa era
capaz de ver serras próximas, à direita, cintilando sob a imensidão ciana. Num nível
inferior, não tão distante, um conjunto de telhados vermelhos se destacava, feito um
aglomerado de cogumelos na grama. À esquerda, enormes prédios brancos, com
detalhes pretos, se espaçavam entre pinheiros, preenchendo o vazio entre as
construções, através dos quais Elisa entrevia o oceano escuro, uma tênue faixa azul
costurada ao céu. À beira da avenida, um shopping deixava revelar partes de
monumentos turísticos de outros países, saltando de seu circular muro branco; e tudo
isto era ofuscado, na descida, por um mercado erguido a sua frente. Voltando a vista
para o outro lado, um pequeno agrupamento de prédios baixos e amarelos ocultava a
vegetação vasta de além. Nem mesmo o céu era notado.
Conforme seguiam adiante, o ambiente ia aparentando menos urbano, embora
não mais arborizado. Pedras enormes, morros, davam mais à vista, pois as construções
também diminuíam em dimensão. O fluxo de pessoas era escasso. Os automóveis
tinham mais espaços, nas pistas. Os transportes públicos eram menos frequentes. Tudo
isso dava um aspecto de outro lado da cidade, mesmo não estando tão longe de seu
centro. Contudo o tempo de viagem até lá era o mesmo duma viagem para outro
município, devido a suas ruas tortuosas e congestionadas. Graças ao horário, Elisa e
Bernardo evitavam o fluxo intenso de carros; e cada vez mais distante de casa, menor
era o tráfego.
O sol se suspendia, magnânimo, fazendo todas as cores vibrarem, tornando o
cenário vivo, suspirante. Elisa, cujo espírito era a música do rádio, sorria para a
paisagem. Embriagada por contentamento, desligou o ar-condicionado e deixou o
frescor de fora entrar, baixando o vidro de seu lado, com um simples pousar de dedo
num botão.
Como é feliz o mundo, quando se está em êxtase! Como se regozija a alma,
quando se está em paz! O vento esvoaçante, para ela, chegava como cafuné. Seu corpo
cadavérico se revitalizava, o rubor amaciava sua tez marmórea. Bernardo, se a visse,
quais bons sonhos teria? Talvez não quisesse sonhar de modo algum. No entanto, já em
encontro com o sossego, tinha seu prêmio. Igualmente, o sol lhe banhava, aquecendo-
lhe com ternura. O vento que vinha do lado de Elisa levava o aroma dela para si,
inspirando-lhe candura. Quais bons sonhos ele estaria tendo? Seu semblante exprimia
um prazer sutil. Breve. Entrando num túnel, a música esmorecia, até tornar-se chiado
estático. O vento que invadia o automóvel não agradava tanto, trazendo um cheiro
grosseiro para dentro. Ainda assim, a janela continuava aberta. Aquela escuridão não
duraria muito. Apesar disso, dessa mudança de ambiente, era possível ver um quase
sorriso, nos lábios de Elisa, quando o lume das lâmpadas altas a tocavam. Sim,
escuridão, apesar das lâmpadas e faróis. Quando se deixa o sol para dentro dum
rochedo, não há qualquer outra fonte luminosa que dê a este novo ambiente o aspecto de
clareza. Ademais, o interior era gris, bruto, no qual a luz branca pouco resplandecia.
Logo o brilho celeste se reapresentava, anunciado pelo retorno paulatino da música,
podendo reaver seus corpo e acalentá-los, em seus raios, soprando bons ventos.
Após uma cegueira momentânea, Elisa pôde ver novas construções à frente, um
outro centro comercial. Havia uma sensação de estrangeirismo, como se tivessem ido
muito além de onde moravam, mesmo não tendo cruzado os limites da cidade. Ali, tudo
parecia mais simples. Ou mais informal. Havia tanta gente, na rua, num espaço tão
pouco, que seria possível imaginar um congestionamento de pedestres. As pessoas iam
e vinham de diversos estabelecimentos, cada qual uma grande loja de pisos únicos. Às
vezes, havia um segundo ou terceiro, subindo. Elisa não via shoppings, cercas nem
edifícios altos. A estrutura de quase tudo era rústica, envelhecida. Pelas pistas ou pelas
calçadas, não se encontrava vegetação, tampouco no centro da rotatória, da qual se
aproximavam, um grande cimentado plano; apenas em torno de tudo, aparecendo por
trás dos muros de alguns estabelecimentos ou em terreno baldio.
Não levou muito tempo para transporem esse lugar, já que não se estendia
demais. Assim que saíram dali, uma mata alta surgiu. Não havia mais calçada. A rua
estreita, principal, se abria largamente para uma estrada, onde os carros corriam
livremente, sem haver qualquer pedestre para o qual parar. Elisa acelerava, mas se
mantinha numa velocidade segura. Não iria além do necessário. Dali adiante, era mais
fácil de enxergar os pássaros, que pareciam tão velozes quanto os automóveis,
sobrevoando campos vastos. As árvores, à beira da estrada, eram poucas; porém se
assomavam em bosques, a distância.
Bernardo, quando acordou, parecia perdido: seu olhar estranhava a estrada, o
verdor robusto, o azul vibrante. Ajeitou-se no banco e viu Elisa sorrindo-lhe, novamente
no breve momento em que se desconcentrava da estrada.
— Dormiu bem? — perguntava em meio ao bocejo de Bernardo.
— Sim e não. Podia ter dormido mais. Estamos chegando?
— Não. Deu uma hora, mais ou menos, até aqui. Acho que devemos ficar mais
duas horas, ou quase, na estrada.
— Parece que dormi bem mais tempo.
— É, achei que só acordaria lá.
Bernardo sorriu e fitou a mata, distraído com os campos e morros. Em alguns,
via casas rústicas, pasto próximo, com gado por ali; em outros, grandes formigueiros ou
uma vaca desgarrada. Percebendo que a janela de Elisa estava aberta, baixou seu vidro
também. Então aumentou o volume do rádio, pois o vento, com força maior, abafava a
música. Ficou em silêncio, por um tempo, com um olhar perdido para fora, como o de
quem acaba de acordar e continua com o cansaço no corpo. Começou a falar, mas a voz
falhou. Assim, elevando-a, Bernardo dizia:
— Eu estava pensando: será que as pessoas não vão para outros lugares? Eu não
vejo nenhum caminho para lá.
— Onde?
— Aquelas casas — apontava.
Elisa olhou ao redor e além o quanto podia, e não viu saídas. A estrada era
contínua e só permitia desvios para edifícios à beira de si, como restaurantes e postos de
gasolina. Dali, poderia fazer o retorno, se quisesse, cruzando a pista para o outro lado.
— É, não sei. Eles devem viver de subsistência.
— Sempre tive curiosidade em saber como se chega lá. Podíamos visitar uma
casa dessas. O que acha?
— Pode ser. Quando estivermos mais perto da praia. Ou se aparecer algum
desvio.
As moradias distantes que ambos viam ora eram de madeira, ora eram de
concreto, ou similar. A maioria tinha sobre si sombras de árvores e se escondiam pela
mata, afastadas mais de quilômetro umas das outras. Os estabelecimentos da estrada
eram melhor estruturados, como se esperava, e só apareciam de quando em quando, ao
longo do caminho. Placas advertiam a que distância estaria o próximo. Tanto Elisa
quanto Bernardo estavam atentos aos anúncios, e ela decidiu parar num desses lugares.
A seta começou a piscar para a direita e assim Elisa foi, desacelerando, deixando a pista.
Bernardo parecia curioso. Aproximavam-se duma casa alta, de três andares, ao estilo
alemão, de séculos passados. O telhado era bem alto e agudo. As janelas eram todas de
madeira, as folhas abertas para fora, assim como a porta dupla, que permitia dois
passarem lado a lado. O arcabouço vermelho, de madeira envernizada, cruzava as
paredes caiadas. Elisa estacionou ao lado dum dos carros dali, de frente. Puxou o freio
de mão e disse:
— Banheiro.
— Ah! Melhor eu ir também.
Fecharam as janelas com a pressa que o mecanismo eletrônico permitia. Elisa
desligou o rádio, o ar-condicionado; saíram e, com um único giro de chave, as portas
foram trancadas. Bernardo, de pé, se espreguiçou com vontade, enquanto Elisa se dirigia
para a entrada. Percebeu, nesse ínterim, uma copa frondosa sobre o edifício, como se
brotasse das telhas. Aquilo, entretanto, não passava de ilusão de óptica e, também tendo
percebido isto, começou a andar. Era um restaurante. À direita, havia um balcão alto,
onde ficava uma caixa registradora e sua operadora, que só se via do busto para cima:
uma jovem loira, com cabelo preso em coque, de estatura mediana, tão magra quanto
Elisa, vestindo o que seria o uniforme dali, dum azul marítimo e abissal, com retas
ígneas formando a gola e a borda das mangas curtas. Ao lado, um bar vazio, sem
ninguém à bancada, de ambos os lados. Apenas uma prateleira abarrotada de bebidas.
De quando em quando, alguns garçons saíam ou entravam por uma porta ali, próxima,
de acesso à cozinha. Mais alguns subiam ou desciam a escada, projetada num canto
aposto à entrada. Nem sempre carregavam bandejas ou, se carregavam, nem sempre
havia algo nelas. Quando Bernardo alcançou Elisa, ela perguntava à mulher:
— Posso usar o banheiro?
— Sim — e apontou para um canto distante, de onde saía alguém.
Elisa fez o percurso por entre pilastras, mesas e cadeiras. A maioria vazia, pelo
horário. Havia dois casais e um grupo maior, acompanhado de crianças, que comiam.
Outros ou aguardavam para comer, ou já haviam findado a refeição. A maioria estava
posicionada à janela, tendo uma boa iluminação do sol. No entanto, como a luz diurna
não iluminava todo o salão, uns candeeiros elétricos luziam. Não se via a fiação, que,
supostamente, adentravam a madeira das pilastras cúbicas, onde esses objetos se
penduravam. O teto era alto, caiado, e deixava ver traves de madeira, também cúbicas,
vermelhas e envernizadas. O piso era de taco, encerado de modo que brilhava e não
causava escorregões. Bernardo, estando por perto, indicou à balconista que viera pelo
mesmo, com um gesto manual, apontando Elisa. Ou indicava que estavam juntos. Ou as
duas coisas. A mulher apenas assentiu com a cabeça e ele a seguiu. E foi o primeiro a
retornar. Ficou do lado de fora, esperando, observando a região. Recostou-se contra a
parede do restaurante, ao lado da porta dupla, e deixou o corpo escorregar um pouco,
flexionando os joelhos levemente. As mãos batucavam as coxas, baixo, num ritmo
desencontrado. Os veículos iam velozes, espaçados. Havia alguns rodopios de pássaros,
no ar. Às vezes, com um vento mais forte, as árvores altas e esguias da vasta planície
chicoteavam. Não demorou muito para Elisa aparecer, chamando-o:
— Vamos?
— Sim.
Bernardo impulsionou o corpo para frente, desgrudando-se da parede, e entraram
no carro. Bateram as portas quase simultaneamente. Puseram o cinto de segurança e,
antes que Elisa desse a partida e manobrasse de volta para a estrada, lembrou-se de algo.
Primeiro, tateou os bolsos da calça. Depois, virou-se para trás, para as mochilas, para
sua, e começou a vasculhar seus compartimentos. Bernardo ignorava, a princípio; até
que se mostrou curioso e perguntou:
— O que foi?
— O meu celular. Acho que deixei em casa.
Ela continuou a busca e Bernardo observava. Então, convencida de que não o
encontraria ali, perguntou:
— Você trouxe o seu?
— Sim. Precisa ligar? Está sem bateria.
— É... Bom...
Olharam um para o outro e abandonaram o assunto. Bernardo ligou o rádio e
Elisa fez os vidros das janelas descerem, com a mesma lentidão eletrônica de antes,
pressionando os botões de sua porta. O vento veloz e robusto retornou com força a
preencher o carro, revolvendo o cabelo de Elisa. Bernardo olhava para fora, quieto, os
olhos semicerrados, como se embriagado pelo frescor que lhe enchia os pulmões. Não
havia nada de extraordinário a ser visto, o cenário era monótono, mas era belo. Ela
acompanhava a música murmurando, sorrindo, e Bernardo sorria junto, desviando sua
atenção para ela, e virava o rosto para o outro lado, para fora. Pelo retrovisor, de seu
lado, via o restaurante minúsculo e o morro aos fundos, a poucos metros afastados, de
cujo capinzal saía uma goiabeira solitária, que iludira os olhos de Bernardo,
anteriormente. Voltou-se para trás e a imagem se agigantou e diminuiu, de pouco em
pouco, até uma curva surgir, e Bernardo se virou para frente. Elisa se animou com a
nova música, porém comedidamente, batucando o volante, ao ritmo da canção, e
remexendo o corpo, numa dança discreta. Bernardo riu.
— O quê? — ela perguntou, endireitando-se.
— Nada.
— Eu me empolguei um pouquinho — corou risonha.
— Achei engraçado. Eu nunca vi você assim. Eu não vejo você muito, na
verdade. Não fazia ideia de como seria passar o dia com você.
— Às vezes, faço isso.
— Não precisa ficar com vergonha, prometo que não rio mais. Eu sou meio
bobo.
— Ah, é? Não parece, não.
— Se reparar bem, eu sou. E sozinho. Digo, eu fico pensando num monte de
coisas. Algumas vezes, fico tão imerso nos pensamentos que tenho uma resposta real
para eles. Se me vir rindo à toa, do nada, é isso.
— E no que você tem pensado?
— Nada de mais. Só estou mesmo distraído com a paisagem, com a música, com
você. Há uma sensação boa em tudo, que não sei descrever. É um pouco de saudosismo
alegre e paz. É como se a vida fosse apenas isto. Ou só me bastasse isto. Não sei
explicar — Bernardo ficou em silêncio por uns segundos. Antes mesmo que Elisa
pudesse fazer algum comentário, perguntou-lhe: — E você, no que tem pensado?
— Em nada. Eu acho. Não dou muita atenção aos meus pensamentos — ficou
um tempo reflexiva. — Estou mais presa à música, meio fora de mim. Estou mais
focada na estrada. E está tudo tão calmo que é como se eu não estivesse dirigindo.
De fato, a estrada não exigia muito de Elisa. O cuidado estava nas curvas ou
ultrapassagens, quando necessárias. Fora isso, não havia com o que preocupar-se. Nem
com a proximidade dos veículos, semáforos ou pedestres. A velocidade com que
conduzia era quase constante.
— Você não tem vontade de dirigir? — Elisa continuou.
— Não. Eu cheguei a fazer autoescola, mas o instrutor me desmotivou. Achei
muito estressante. Melhor ficar só de carona. Eu fiz a prova prática duas vezes e
reprovei.
— É. No início, é estressante. Principalmente nos centros urbanos. Eu consegui
passar de primeira, ainda bem!
— Sim. Olhando agora, até parece relaxante. Ou não é?
— Um pouco cansativo. Quando chegarmos, quero ficar estirada na areia. Ou no
mar, boiando.
— Eu, com certeza. Poderíamos até deixar para ver algum lugar para ficarmos
depois. O que acha?
— Pode ser.
— Você se lembra bem de lá?
— Mais ou menos.
— Das vezes que fui, nunca andei pela cidade. Só conheci as ilhas e os
restaurantes dos portos. Não sei se existe algum hotel ou pousada.
— No centro, deve existir. Uma outra ideia seria acampar.
— Ah, não!
— É legal! Podemos acampar, na próxima.
— Sei lá... Acho que passo. Gosto de conforto.
Nesse instante, ignorando a desfeita, Elisa elevou o volume do rádio, fazendo
coro com a nova música que começava. Era o mesmo artista de quem falavam, mais
cedo, na viagem. Bernardo sorriu, surpreso com aquele gesto repentino, observando-a
calado. Quando a canção terminou, dando sequência à outra, Elisa diminuiu o volume e
ele comentou:
— Eu adoro as músicas dele. Fico impressionado como são boas. Acho
engraçado que, como escritor, ele é terrível. Não que escreva mal, só que escreve dum
jeito que não dá para continuar a leitura.
— A minha mãe tem um livro.
— Sobre uma viagem que ele faz? Digo, o personagem. Sei qual é.
— Nunca li. Eu não tenho lido muito, na verdade.
— Eu tenho lido bastante, até. Deixo um livro na mochila, para as viagens de
ônibus; um no quarto, que leio antes de dormir, geralmente; e um no banheiro.
— No banheiro? — Elisa ria.
— Sim. É um livro de curiosidades. Leio um capítulo para cada vez que sento na
privada.
Riram juntos. Brevemente. E logo deram espaço ao silêncio, com a graça
esmiuçando-se em seus rostos. Bernardo retornava a seu estado meditativo e Elisa
punha mais tento na condução do veículo. O cenário ainda se repetia, pelas retas e
curvas da estrada. O sol, sorrateiro, subia e o azul se tornava mais vibrante, sendo a cor
mais quente do dia. Quando um vento distante soprava, as árvores altas acenavam,
inclinando-se para um lado e para o outro, e os pássaros se perseguiam de lá para cá. A
velocidade do carro, ali, já não tinha o efeito reconfortante de antes, pois nada indicava
que a chegada estava próxima. Talvez, por isso, uma motocicleta tenha passado por
todos rasgando o ar, o motor rugindo mais do que uma trovoada; ou, talvez, fosse o
desejo de adrenalina do motociclista, fazendo ultrapassagens perigosas. Bernardo e
Elisa se espantaram no mesmo segundo, e a imagem daquele desaparecia, ao longe.
— Caralho... Doidinho para morrer — Bernardo comentava. — Eu tenho muito
medo de andar de moto. Já peguei carona, uma vez, e fiquei apavorado.
— Nunca andei nem tenho vontade.
— Eu já levei tanto tombo de bicicleta, e uns idiotas... Imagine cair de moto.
Àquela velocidade, ele deve ficar muito fodido. Uma vez, voltando para casa, a corrente
da bicicleta soltou e se enroscou na roda. Eu tive o reflexo de saltar, para não cair. A
bicicleta foi parar no meio da pista. Eu tive sorte de não estar passando nenhum carro,
na hora.
— Acho que só caí de bicicleta quando estava aprendendo.
— É, né? Você quase não tem cicatrizes. Eu tenho um monte. Nos joelhos,
principalmente. Lembro de já derrapar com a bicicleta e ralar o joelho no asfalto. Foi
maior sangueira.
Elisa olhou para Bernardo com uma expressão de dor, como se sentisse em si o
que havia acontecido. Ele ria, em contrapartida, lembrando com graça:
— Estava pedalando no meio da rua e vi um carro vir na minha direção. Eu
estava muito rápido, então freei e joguei a bicicleta de lado, para desviar. Derrapei. Foi
mais por reflexo. Aí, vejo que o carro apenas entrou na rotatória, que estava na minha
frente. Eu me ralei à toa!
E assim que terminou a fala, ficou um tanto disperso. Seus olhos vislumbravam
algo não presente ali ou em qualquer espaço até o horizonte. Elisa não continuou a
conversa. Bernardo abriu um sorriso singelo e seguiu a falar:
— Eu andava muito de bicicleta. Morava num condomínio e ficava rodando para
lá e para cá, fazendo vários trajetos diferentes, sozinho. Apesar de sempre ver as
mesmas coisas, eu não me enjoava daquilo. Sinto falta, às vezes, daqueles momentos.
— E por que não volta?
— Estou sem bicicleta. Quer dizer, até tenho, só que está toda enferrujada.
Fiquei muito tempo sem usar, preciso de outra. Quando der, eu compro. Ou conserto a
minha. O que for mais em conta.
— Também não tenho usado a minha, mas está boa. Eu acho. Bem de vez em
quando, vou até a praia com ela.
— Bem de vez em quando mesmo, né? — Bernardo ria.
— O quê? Ah! Não. Sou branca assim de nascença — Elisa sorriu.
— Eu sei, estou brincando. Também não sou assim por estar sempre na praia.
Entraram na sombra dumas árvores à beira da estrada, em ambos os lados. A via
subia sutil e, aos poucos, percebiam um penhasco formando-se, à esquerda. Nesse
ponto, o caminho era estreito, cabendo dois veículos, lado a lado, um subindo e outro
descendo. Rapidamente as copas das árvores deixaram de cobrir o automóvel e a pista
seguia em ascensão. Quase no pico, surgindo pelo lado de Bernardo, avistaram uma
rocha enorme, amparada por outras, bem menores, no declive do morro. Dava a
impressão de que rolaria a qualquer momento. Bastava um sopro, o peso do pouso duma
borboleta. Bernardo estava como deslumbrado ou espantado, olhando para ela, assim
que lhe passaram por debaixo.
— Eu não me lembrava dessa pedra. Como ainda não rolou?
— Pois é. Passar aqui em dia de chuva deve dar medo.
Então, para tirar-lhes a tensão, como se tivessem ultrapassado um guardião
terrível, a estrada começou a dobrar para a direita e descer, fazendo-os ver, à frente, o
mar infindo e duas ilhas em seu azul cristalino. Semioculta pelo mato da borda do
precipício, a cidade se revelava. O alívio no rosto de Bernardo era notável. Elisa
mantinha a frieza de seu olhar.
— É ali? — ele perguntou.
— Sim.
— Mais meia horinha?
— Acho que sim. Ainda há um tanto de estrada.
A cidade foi desaparecendo, conforme a mata crescia, e a via escurecia. Estavam
sobre uma ponte firme, bem alta, que cruzava o topo de árvores enormes. A densidade
das copas não permitia enxergar o que estava abaixo, se havia rio ou apenas chão.
Entreviam-se, contudo, as ilhas longínquas, quase no horizonte. A ponte terminava num
túnel sinistro, muito mais escuro do que qualquer outro túnel pelo qual já tinham
viajado, devido à má iluminação. Ao menos, não era longo. O temor de correr dentro
daquela obscurescência não lhes tocou. Na verdade, Elisa mantinha sempre aquele
semblante tranquilo, quando não lhe cativava alguma canção. Por oposto, Bernardo
tinha os olhos agitados. Mostrava espanto, alegria, insegurança. Quando saíram do
túnel, piscaram, incomodados com a luz repentina de fora, e o rádio, cujo sinal se havia
dissipado, voltou a cantar. Elisa, no entanto, continuava a mesma. Não respondia mais
às músicas. Bernardo tomou o turno e começou o coro, acompanhando baixinho.
— Você conhece um professor que faz vários trabalhos com bambu? —
Bernardo se interrompeu, quando um bambuzal se mostrou à vista.
— Não.
— Ele fez umas tendas só com bambu, lá perto do campo de futebol, depois do
laboratório de informática. Sabe onde é?
— Sim. Aquilo é o quê?
— Dão aula lá. Esse professor e outra professora não deixam os alunos usarem
tecnologia eletrônica nenhuma para os trabalhos. Você tem de escrever os relatórios
tudo a mão. Nas apresentações, só prancha; e não pode haver nenhuma fotografia. Se
precisar mostrar algo, você desenha.
— Nossa!
— É. Um amigo já foi aluno dela. Ele disse que sua casa tem nada elétrico. A
iluminação é de lamparina, o fogão é a lenha...
— Maluquice. Para que viver assim?
— É igual a acampar.
— Acampar é só de vez em quando, é diferente. Não quero viver o tempo todo
no mato, dormindo no chão, tomando banho sei lá onde. Eu só preciso sair um pouco do
ambiente urbano, não para sempre.
— A tecnologia está aí, facilitando nossas vidas. Não entendendo essa vontade
de retroceder. Eu gosto dumas velharias, mas isso é demais!
— Gosta? Tipo o quê?
— Máquina de escrever. Aliás, o meu avô me deu a dele. Levei para
manutenção, porque a fita estava sem tinta, e ficou novinha. Eu gosto do som das teclas,
acho charmoso escrever a máquina.
— Você também escreve?
— Sim. Contos e poemas. Também tenho interesse em roteiro, só que não
entendo bem disto, os detalhes. Eu só sei, mais ou menos, das peças que já li.
— Você não pode cadastrar uma matéria de outro curso?
— De roteiro? Acho que não. Deve ser específica. Eu poderia conversar com
algum professor e assistir de ouvinte. É... — Bernardo ficou pensativo, por um instante,
e concluiu: — Vejo isso depois, quando tiver um semestre tranquilo. Às vezes, eu quase
não durmo.
E, nesse ponto, Elisa bocejou. E Bernardo riu. E riram juntos.
— O que foi? — Elisa, contendo o riso.
— Falei em dormir e você bocejou.
— Não é? Foi um bocejo implícito, o que desencadeou o meu bocejo.
— Já, já nós chegamos, para você cair na cama e dormir profundamente.
— Não. Quero ir logo para o mar.
— E afundar profundamente.
Sorriram um para o outro. Dali, não viam mais a costa, pois morros margeavam
a estrada, e o vento deixava rastros pelo capim que os revestiam. Conforme avançavam,
depois de os morros próximos baixarem, a impressão que ficava era a de que estavam
cada vez mais distantes do litoral. Se houvesse mais de um caminho a ser seguido, seria
possível o pensamento de que se perderam. O caminho era único, no entanto, havia
muito tempo. Todo o redor, agora, era uma planície imensa, inabitada, com bosques
cobrindo o horizonte. Até que, por fim, começaram a descer. Primeiro, declinaram
quase que imperceptivelmente; então a descida se acentuou e as embarcações aportadas
deram à vista, balançando com a marola. As ilhas, por aquele ângulo, se mostravam
maiores e mais próximas, e a cidade era um amontoado de casas, cujas ruas não se
viam, ao longe. Quando mais próximos, Bernardo viu uma passagem terrosa, à direita,
levando a uma área de mata fechada. Apesar disso, uma trilha de pneus era nítida. A
grama tentava ainda cobrir o trecho inúmeras vezes marcado pelos automóveis, todavia
sem sucesso.
— Ali! — Bernardo apontou. — Vamos por ali. Só ver até onde vai.
— E se for muito longe?
— Não deve ir, não. Se demorar muito, voltamos.
Elisa pegou o desvio sem dar importância. Eram os únicos seguindo por ali.
Logo suspenderam uma poeira densa atrás de si, e o veículo chacoalhava, no terreno
irregular, fazendo com que os dois quicassem nas poltronas constantemente. Bernardo
bateu a cabeça algumas vezes no teto do carro, embora Elisa conduzisse com cautela.
Entraram numa grande sombra, quando as árvores se acercaram, e feixes de sol
atravessavam as brechas nas copas para iluminar o caminho. Bernardo ficou de lado, no
banco, e olhou para trás: não via a estrada, não via qualquer outro carro. A poeira
dificultava a visão e já haviam tomado uma boa distância da estrada. O rádio, no
momento, apenas chiava e Elisa o desligou. Bernardo se ajeitou no assento e disse:
— Acho que já estamos longe, mas não faz muito tempo.
— Não. Para voltar, agora, só de ré.
Nisso, a mata passou a murchar e descolorir. As árvores diminuíam, secavam. A
trilha se perdeu, com tanta folha morta por cima. Havia galhos caídos também.
Chegaram a uma floresta morta e era muito mais complicado dirigir por ali. Elisa parou
e olhou a sua volta, por um instante.
— Melhor voltarmos — disse.
Bernardo ficou calado. Ela começou a manobrar. O carro virou para a esquerda,
a roda foi por cima da ponta dum galho e o restante deu uma pancada robusta no para-
choque. Elisa insistiu, arrastando o que havia debaixo, até que os pneus começaram a
patinar em algo e foi preciso refazer a manobra. Nisso, Bernardo, distraído com a
paisagem, entreviu uma casa solitária, depois de arbustos secos e troncos pontiagudos,
altos e baixos, sem uma folha sequer, com muitos de seus galhos partidos.
— Eu vi uma casa, ali — Bernardo apontou.
Elisa parou, por um instante, e olhou.
— Acho que está vazia. Deve estar abandonada.
— Vamos?
— Aonde?
— Lá. Quero dar uma olhada.
Elisa não disse nada. Observava ainda o que Bernardo lhe apontara. Não levou
um segundo, no entanto, para decidir-se. Desligou o motor. Bernardo já desafivelava o
cinto de segurança e saíram. Elisa ficou para trás. Cuidou de trancar as portas, ainda que
não houvesse mais ninguém, além dos dois. Por costume. Bernardo estava bem à frente;
ela, atrás. Suas pisadas trituravam folhas secas e estalavam galhos caídos. Não era
possível manter silêncio, mas de que isto importava? Bernardo parou diante da casa,
quase à porta, e aguardou Elisa. Via-a caminhar devagar.
— O que você acha que aconteceu? — ela perguntou.
— Sei lá! Incêndio?
— Não parece.
Bernardo fitou o chão. Espalhou folhas e galhos com o pé, querendo ver o solo,
e não encontrou nada de incomum. Observou bem à volta e tudo era secura. Causada
pelo quê? Não havia marcas de fogo, não havia cinzas. A terra estava desnutrida?
— Pois é, não parece mesmo — ele concordou.
Ficaram em silêncio, olhando para lá e para cá. Nem o vento sussurrava.
Bernardo se adiantou mais um passo e Elisa perguntou:
— Quer entrar?
Bernardo afirmou com a cabeça e continuou. Elisa permaneceu onde estava,
indiferente. A casa era simplória: uma porta na frente, centrada, acompanhada de duas
janelas de tábuas justapostas. Havia uma tinta azul que se decompunha na madeira, e o
branco da parede amarelava e esverdeava tudo mais. Um telhado baixo, tomado por
todo tipo de sujeira, fechava o topo. Era inteiramente baixa. Bernardo parou diante da
porta entreaberta, fitando um negrume denso. A estranheza lhe cobriu o rosto. Olhou
para os lados e se pôs a andar, contornando a singela construção, seguindo pela direita.
Mais uma janela, também fechada, compunha a lateral. Nos fundos, encontrou outra
porta, uma janela de tábuas e um basculante de vidro com arestas enferrujadas. Notou
que, não muito distante dali, havia um poço de pedras, do qual um emaranhado de
galhos saía. Um balde preto, ruço, estava caído, ao lado. Terminou a volta, vendo outra
janela lateral e encontrou Elisa no mesmo lugar, encarando-o inexpressiva.
— E aí? — ela perguntou.
— Só janelas e outra porta, nos fundos.
— Fechada?
— Sim. Ou encostada. Não conferi. Parece abandonada mesmo.
Elisa olhou para o céu, perscrutando a borda, como se medisse seu perímetro, e
disse:
— Sabe o que percebi? Estamos num descampado.
Bernardo fez o mesmo e constatou que não havia árvores por perto, apenas
folhas secas por todo o chão. Pôs uma mão sobre a face, sombreando os olhos, e mirou
logo abaixo do sol, que brilhava com força. Havia tanta área sem sombra, devido à falta
de copas, que não percebera que estavam numa clareira. Os troncos desfolhados não
traziam a memória de que já foram frondosos.
— Quer entrar? — perguntou à Elisa.
— Para...?
— Só olhar. De repente, dá para ficar aqui — brincou.
— Não mesmo!
Bernardo riu e sorriram um para o outro. Retornaram ao silêncio. Continuavam
olhando para cada ponto daquele cenário estranho, despretensiosamente. Às vezes,
Bernardo dava uns passos para lá, para cá, tentando enxergar algo melhor, ou se
agachava, a fim de examinar algo a seus pés. Elisa acompanhava sua inquietude com os
olhos, intrigada.
— O que você está fazendo?
— Eu queria saber o que aconteceu.
— Alguém deve saber, no centro.
Bernardo anuiu com um meneio de cabeça, parecendo convencido de que não
encontraria nada de relevante.
— Vamos voltar — Elisa sugeriu.
— Não! Calma. Vamos entrar.
— Isso deve estar cheio de mofo.
Bernardo deu de ombros e Elisa continuou:
— Para que você quer entrar?
— Curiosidade.
— Pode ir! Eu espero. Doido...
Elisa arfou, mostrando-se um tanto aborrecida e impaciente. Continuou ali,
contudo, com os olhos fixos em Bernardo. Certo do que queria, por fim, ele entrou.
Alcançou a porta e a afastou com as pontas dos dedos, fazendo-a recuar delicadamente.
Ela se abriu toda para dentro, leve, como se as dobradiças fossem novas. Chocou-se sem
força contra a parede e ficou. Agora, com a claridade de fora entrando, Bernardo pôde
enxergar o interior um pouco melhor. O piso era escuro, recoberto de terra, folhas e
gravetos, e não se estendia muito. À direita, havia um sofá de três assentos, roto e
magro, com a madeira à mostra e bem marcada, sob o estofado florido. A cor original
parecia ser branca, com arabescos prateados formando botões e pétalas, completamente
tomada pela imundice. Olhando para aquilo, Bernardo coçou o nariz com o nó dos
dedos, como se estivesse para espirrar. Virou-se para a janela daquele lado, cujas frestas
luziam, e tentou abri-la. Primeiro, puxou o trinco de cima, e este só desceu com muito
esforço; então puxou o trinco de baixo, que não subia. Os dedos de Bernardo doíam,
tremenda era a força que aplicava àquilo. Desistiu. Virou-se para o restante da sala e
observou. Do outro lado, havia uma estante larga, cinzenta, quase vazia. Dava a altura
certa da parede divisória. Bernardo também notou que não havia teto; que as paredes
externas seguiam as linhas do telhado; que as internas não, havendo comunicação dum
cômodo para o outro por cima delas.
Bernardo saiu da casa e encontrou Elisa parada, de pé, com os braços cruzados,
mas não lhe deu atenção. Fitava o chão, em busca de algo, revolvendo as folhas. Deu
uns passos apressado até uma pedra, agachando-se, e a apanhou. Aproximou-a do rosto;
girou a coisa, atento a cada cratera e relevo; levantou-se e voltou para dentro. Era uma
pedra rígida, rosácea, que enchia a mão e sobrava, que Bernardo usou para desemperrar
o trinco da janela, batendo-o para cima. Foi difícil, pois o parapeito se tornou um
obstáculo, não permitindo espaço para um bom balanço. Elisa ouviu as pancadas e
entrou apressada, curiosa com o que estava acontecendo. Foi o momento em que
Bernardo deu seu último golpe contra o trinco, fazendo-o ceder. Ele largou a pedra no
chão e abriu a janela, empurrando as abas para fora. Havia mais luz, agora, e os detalhes
se evidenciavam. Ainda assim, Bernardo abiu a segunda janela, porém sem a
dificuldade de antes, e a sala ficou mais clara.
— Nossa! O tapete... — Elisa se surpreendeu.
— Tapete?
Bernardo olhou para ela e acompanhou seus olhos até o mesmo ponto: à base do
sofá, havia um tapete tão sujo que mal se distinguia do chão. De que era feito, qual era
sua estampa, era impossível saber. Não deu importância àquilo, no entanto. Enquanto
Elisa se atentava para as manchas do tempo na parede ruinosa, Bernardo ia até a estante
solitária. Pouca coisa a ornava: um cisne de porcelana, em pose de descanso, curvando o
pescoço para trás, estava no centro, coberto por um véu de poeira. Em cima, no topo,
três patos amarelos de gesso posavam lado a lado: um da ponta espreitava o chão, outro
esticava o pescoço para a frente e o do centro parecia grasnar para o ar. Bernardo
apanhou um deles, à altura de sua cabeça, e olhou mais de perto: um laço amarelo se
fixava na base do pescoço dos patos, atrás; e estavam todos tão empoeirados quanto o
cisne. Bernardo devolveu aquele a seu lugar e reparou que seus dedos ficaram sujos.
Roçou uns nos outros, todavia sem êxito. A solução foi esfregá-los na calça.
— Está vendo o que aí? — Elisa se aproximou.
— Uns patinhos — Bernardo apontou com a cabeça. — Levaram tudo, menos
isso — e se agachou, vendo as portinholas da estante, abaixo. Abriu uma: nada. Abriu a
segunda: nada. Apenas um pouco de poeira e uns picotes de papel.
Pelas laterais, havia três gavetas. Bernardo fez questão de inspecionar todas,
uma a uma, e encontrou dois clipes, um grampo de cabelo e uma moeda de um centavo,
ao todo. As gavetas, por dentro, também estavam sujas. Os dois clipes eram de plástico,
pretos. O grampo era metálico, bem fino, e perdia a cor original para a ferrugem. A
moeda era cobreada e estava em processo de esverdeamento. Bernardo largou aquelas
coisas sobre qualquer prateleira da estante, fechou as gavetas e se pôs de pé, ainda de
olho no móvel.
— Já viu o que queria? — Elisa perguntou.
— Não. Nem sei o quero ver.
— Nada, né?
— Eles deixaram a estante com esses patos. E o sofá — Bernardo apontou,
virando-se para ele. — Devem ter deixado mais coisas — e andou para o corredor,
curto, tendo adiante a cozinha. Desviou a atenção para duas portas, as quais se
antecipavam pelas laterais. Bernardo, sem cerimônia, abriu primeiro a da direita.
A porta precisou de força, pois se agarrava ao chão. Bernardo deu três
empurrões, até conseguir abri-la toda. Elisa vinha em seguida, para observar. Não havia
folhas ou galhos pelo chão, porém estava tão sujo quanto o cômodo anterior, com as
paredes encardidas e porosas. O guarda-roupa estava a sua direita, à parede que fazia
divisa com a sala, e uma cama singular se estendia sob a janela, à frente, de lá até cá,
acompanhando a outra parede divisória. O espaço era pouco, só se via aquilo. Querendo
iluminar o quarto, Bernardo correu as mãos pelas paredes adjacentes, em busca de
algum interruptor, e comentou consigo mesmo:
— Ah, é! A casa não tem eletricidade.
Assim, foi até a janela, passando entre o guarda-roupa e a cama, tendo de apoiar
o joelho esquerdo no colchão, para alcançar o trinco de cima, forçando-o para baixo.
Não foi fácil: rotacionava para lá e para cá, enquanto, aos poucos, deslizava. O de baixo
foi pior, pois necessitou das duas mãos, quando mal se conseguia envolvê-lo com um
dedo só. Com a claridade de fora entrando, Bernardo se virou para o quarto. Elisa,
parada à porta, no corredor, se iluminava: toda sua pele marmórea contrastando com o
ambiente negro e cinzento, feito uma aparição, um ser etéreo. Entrou no quarto e parou
ao pé da cama. Bernardo tirou seu joelho do colchão amarelado que a compunha, com
uma mancha marrom, terrosa, repartindo o centro longitudinalmente. Era um colchão
fino, cuja espuma não se recuperara do peso dos corpos que ali deitaram. Afundava na
armação de madeira, que se puiu há muitos anos. Os pés fendiam em rachaduras. Se
alguém se deitasse ou sentasse, o leito poderia desmoronar. Bernardo, como era
esperado, fuçou o guarda-roupa, que parecia tão mal quanto a cama. Era todo branco e
suas quinas esfarelavam. Algumas partes se separavam de outras, deixando ver os
pregos que debilmente as uniam. Bernardo tentou correr uma das portas, que emperrou,
e o solavanco causado quase fez toda a estrutura vir abaixo. Espantado, exclamou um
palavrão.
Tentou correr a outra porta, mas estava tão engessada quanto a primeira. O
guarda-roupa chacoalhou outra vez e Bernardo cessou a força.
— Por que não deixa isso quieto? — Elisa se aproximou
Bernardo continuava analisando as portas de cima a baixo. Não respondeu.
Espalmou bem as mãos sobre uma delas, reposicionou os pés e forçou. Nada. Seguiu
forçando até que, depois de alguns segundos, cedeu. E correu com violência, saindo do
trilho. A porta ainda teria tombado para frente, sobre Elisa, se Bernardo não mantivesse
as mãos ali. O guarda-roupa vibrou mais, contudo se manteve de pé. Elisa recuara dois
passos e Bernardo apoiou a porta contra o guarda-roupa. Aquilo revelava metade do
interior, e ele via mais prateleiras sujas e vazias, e uma trave sem cabides. Não contente,
posicionou-se lateralmente e puxou a outra porta para si. Uma, duas, três vezes, até
conseguir arrastá-la e ver o mesmo da outra metade: vazio. Pôs as mãos na cintura e
olhou para cima, observando o telhado, toda sua estrutura. As telhas, vistas daquele
ponto, pareciam ser a parte mais limpa da casa.
— Que foi?
— Nada. Esse padrão é até bonito.
Se Elisa concordava ou não, guardou para si. Apenas olhou mais uma vez para lá
e foi saindo do quarto. Nisso, Bernardo se ajoelhou, levou a cabeça até o chão, apoiado
nos braços, e olhou para debaixo da cama. Talvez por ser o ponto que o sol não
alcançava, a impressão era de que a sujeira se havia acumulado mais ali. E era só o que
Bernardo conseguia enxergar. Ficou de joelhos, sentado sobre os calcanhares, pensativo.
Elisa se virou para ele, sob o umbral, e perguntou:
— Então?
— Sujeira — Bernardo respondeu, voltando-se a ela, encontrando seus olhos em
si. — Só isso. Está tudo morto. Nem sinal de inseto.
— Isso é bom.
Bernardo se levantou e saiu do quarto. Elisa se pusera de lado, dando-lhe
passagem. Pôs a mão na maçaneta e, antes de girá-la, olhou para Elisa, por cima dos
ombros, como se aguardasse sua aprovação. Ela deu de ombros.
— Só para termos certeza.
— Eu já tenho certeza.
Abriu a porta. O quarto parecia o mesmo de antes, fora a cama de casal, que
tornava o espaço entre si e o guarda-roupa mais estreito. Imediatamente, Bernardo foi
até a janela. Para tal, engatinhou sobre o colchão desforrado, que ainda era robusto e
macio. Os trincos não sendo tão resistentes quanto os demais, a luz do dia pôde entrar
sem demora. De joelhos, com as mãos no parapeito, Bernardo perscrutava aquela
secura, cujos limites não se enxergavam. Elisa o acompanhara, a contragosto, morosa.
Parada à borda da cama, logo à entrada, observava Bernardo em sua curiosidade quase
felina.
— Você não acha estranho o lugar assim? — ele a indagava.
— Sim, é. Mas não ligo.
Bernardo se debruçou sobre o parapeito, aproximando o rosto do solo. Não
encontrando qualquer outra coisa mais intrigante do que o nada, retornou e se sentou na
cama.
— Você não queria vir?
Ambos se encararam por alguns segundos, seus semblantes indecifráveis.
Bernardo desviou seus olhos do olhar sólido de Elisa, sem jeito, para fora.
— Está tudo bem? — Elisa perguntou.
— Sim — respondeu, virando-se para ela. — Estava reparando que não dá para
ver a área verde. Nós entramos muito?
— Não. Eu acho. Deve ser ruim mesmo de ver, daqui. Este ponto deve ser um
pouco mais alto.
— Nós pegamos caminho subindo? — Bernardo pareceu confuso.
— Não. Sei lá. É só palpite. Se estivéssemos baixo, daria para ver algum morro
ou copa de algumas árvores.
Bernardo se virou para o guarda-roupa logo a sua frente, gêmeo do outro, e se
levantou. Moveu as portas com displicência, porém sem aquela dificuldade de antes.
Ali, as coisas pareciam melhores; no entanto, as prateleiras caíam. Duas delas estavam
desalinhadas. De qualquer forma, Bernardo não deu muita importância em vasculhar o
guarda-roupa. Provavelmente, já imaginava que sua busca seria infrutífera. Fazia o que
fazia apenas pela curiosidade e teimosia. Depois do momento em que começou, deveria
ir até o fim. Assim, olhou debaixo da cama também, para ver o que já havia visto
debaixo da outra.
— Pronto — ele disse, ao ficar de pé. Elisa saiu do quarto e se adiantou para a
cozinha. Em vez de abrir as janelas e a porta de fundo, parou ao fim do corredor, que
media alguns poucos passos, da sala até ali. Bernardo se aproximou e parou a seu lado.
Ficaram assim, mudos, por um momento, contemplando aquele cômodo mal iluminado.
— Então? — Elisa indagou, olhando para ele com um sorriso debochado.
Bernardo lhe sorriu de volta, aceitando o escárnio, e andou para a porta dos fundos.
Como a da frente, estava encostada. Puxou-a com leveza, até sua maçaneta tocar a
parede. Assim, a luz invadiu o recinto, rechaçando as sombras para revelar um ambiente
baço.
Contando as coisas presentes, a cozinha era um pouco maior do que a sala. À
esquerda, ao lado da porta, havia um fogão a lenha de metal escuro com a portinhola
aberta e suas três gavetas fechadas. Ao lado, havia uma pia sem torneira. Nem mesmo
um espaço para uma. A bacia de alumínio tinha algumas poucas folhas, bem pequenas,
dentro. Ainda que estivesse opaca, ostentava brilho. Acima, uma janela fechada, como
as outras, para a qual Bernardo se dirigia. Seria a última que ele escancararia,
completando o ritual de iluminação. E foi assim, com facilidade e satisfação no olhar,
que puxou os trincos e fez as dobradiças rangerem, empurrando as abas para fora. O sol
fez todo metal tocado luzir mais e revelou os danos do tempo causado no armário ao
lado, à esquerda de Bernardo. Era escuro e duma madeira forte. Havia manchas claras,
manchas escuras, arranhões, rasgos pequenos e rasos, talvez feitos por cupins. Quem o
criou não pensou em floreios, pois era simples, extremamente retangular e liso.
Bernardo pegou em sua pequena maçaneta e abriu as portas com leveza. Viu prateleiras
após prateleiras, umas sobre as outras, suportando nada mais, além de sujeira. Duma, na
altura dos olhos, Bernardo apanhou um pedaço de embalagem plástica, amarela dum
lado e branca do outro. Na parte colorida, havia umas letras miúdas, difíceis de ler,
verdes. Enquanto ele tentava decifrar a mensagem, Elisa deu um passo para a mesa que
havia a seu lado, em frente à pia e ao armário, e puxou uma cadeira, sentando de frente
para Bernardo, que lhe estava de costas. A mesa e as cadeiras eram de madeira
rusticamente trabalhada, tão simplórias quanto o armário. Sobre a mesa, em outro
momento, talvez houvesse uma toalha, para disfarçar sua feiura.
Bernardo deixou o pedaço de plástico onde o encontrou e deu um passo para
trás, inclinando a cabeça de lado, mais o torso, tentando enxergar as prateleiras mais
baixas. Elisa apoiou o cotovelo na mesa, ficando de lado, e deitou a cabeça sobre o
punho semiaberto, cruzando as pernas. Voltou os olhos para fora, pela janela,
observando o luminoso céu azul e a galhada das árvores desfolhadas. Por fim, Bernardo
se agachou e tateou a base do armário até o fundo, trazendo sua mão empoeirada. Olhou
para ela, levantou e limpou a sujeira na calça, estapeando a coxa. O som trouxe a
atenção de Elisa de volta para dentro, para ele. Não disse nada. Ambos se olharam e
permaneceram mudos. Bernardo foi até ela e puxou uma cadeira, sentando-se de costas
para a janela. A sua frente, a mesa pressionava outra cadeira contra a parede e, ao lado
aposto de Elisa, um assento era estreitado pelo armário. Bernardo se recostou e esticou
as pernas sob a mesa, enquanto suas mãos relaxavam sobre ela.
— Ali, deve ser o banheiro — Elisa comentou, apontando, com a cabeça, para a
porta que ainda não haviam aberto.
Bernardo acompanhou seus olhos desinteressado, talvez adivinhando o nada.
Ficou parado, observando a porta, calado. Começou a batucar levemente a mesa,
alternando os dedos numa ordem confusa, e só. Elisa se levantou. No mesmo instante,
Bernardo recolheu as pernas e se ergueu também. Elisa andou sem entusiasmo até o que
supuseram ser o banheiro e Bernardo a acompanhou, ficando atrás. Ela tocou a
maçaneta e torceu para baixo, empurrando a porta, que se abria sem resistência.
— Banheiro — disse.
Era estreito. Chuveiro, privada e pia o compunham, sem divisões. Ali, as paredes
e o chão estavam muito mais rachados e mofados. Em compensação, a poeira e as
folhas de fora não entraram. O chuveiro ficava diante da entrada, um tanto baixo. O
chão se inclinava para um canto, onde, na parede, havia um orifício, pelo qual,
possivelmente, escorria a água. A pia se localizava na parede oposta, ao lado da porta.
Era uma simples bacia de porcelana. Apenas. Sobre ela, um espelho tão embaçado que
não se distinguiam reflexos. À parede que completava os fundos, a privada, com a
tampa suspensa, se mostrava seca e embolorada. E, bem alto, próximo ao telhado,
naquela mesma parede, um basculante de arestas enferrujadas transluzia, apesar da
sujeira nos vidros.
Bernardo olhava tudo com curiosidade, por cima de Elisa, que não havia entrado
mais do que um pé. Voltou os olhos para a pia da cozinha e, de novo para o banheiro,
comentou:
— Sem torneiras — ficou pensativo por uns segundos. — Faz sentido. Devem
pegar tudo do poço.
— E o chuveiro? — Elisa quis saber.
— Pois é. Não sei. Caixa d’água?
— E você viu alguma, lá fora?
— Não — e olhou para cima. — É, não. Daria para ver de dentro mesmo.
Ficaram com as caras interrogativas e deixaram o lugar. Bernardo zanzou pela
cozinha e Elisa se apressou pelo corredor, cruzou a sala e saiu da casa. Bernardo,
percebendo aquilo, foi atrás, ainda mais veloz do que ela, para alcançá-la. Quando pôs
os pés para fora, Elisa estava a uns passos quase junto ao carro. Bernardo parou e seguiu
a passos tranquilos, sem pressa. Elisa já empunhava a chave do carro, estava para abri-
lo, quando um estalo assustador se fez ouvir, tão alto era. Ambos encolheram seus
pescoços nos ombros. Elisa viu um furo na lataria da porta e se agachou, virando-se
para Bernardo, apavorada. Ele, por sua vez, se virou para trás, para de onde veio o som,
e congelou. Elisa voltou sua atenção para a mesma coisa. À quina da casa, pela
esquerda, do ponto de vista dos dois, surgira um homem de pele clara, um tanto
amarela, de olhos fundos e negros, rosto bastante enrugado. Não parecia ter mais do que
cinquenta anos, entretanto. O cabelo lhe era escuro e rasteiro, praticamente careca,
assim como a barba. Não era alto nem baixo, e muito magro. A roupa, nele, folgava.
Vestia uma camisa branca: os botões do topo abertos, revelando o peito esquelético, e as
mangas enroladas até os cotovelos. Um cinto de couro em degradação apertava bem o
jeans a sua cintura, tanto que sobrava um pedaço comprido. Os pés calçavam botinas
pretas, borrachudas, poeirentas. Todo o homem era sujo, amarrotado e suava. Embora o
aspecto decadente, empunhava uma espingarda com firmeza, mirando Elisa, com suas
mãos cadavéricas, pelas quais se via veias e tendões salientes. A arma era velha ou se
sujara junto ao dono. Seu cano escuro mal refletia o brilho do sol.
Com um meneio de cabeça, indicou a casa. Ambos Elisa e Bernardo não se
mexeram; e o estranho disse, com sua voz aguda, carregada de sotaque interiorano:
— Vamos entrando.
Soava calmo. Elisa deu os primeiros passos, receosa, fitando o chão. Bernardo,
ouvindo-a chegar, desviou os olhos do sujeito para ela, e os dois adentraram a casa, um
após o outro. Elisa, sem encarar ninguém, entrou por segunda. Então, relaxando os
braços, com a espingarda baixa, repousando-a à frente, entrou aquele. Fechou a porta
atrás de si. Bernardo e Elisa ficaram parados, de pé, no meio da sala, enquanto o homem
ia, pacientemente, fechar as duas janelas. Elisa continuava de cabeça baixa, os braços
cruzados, seus dedos cravando a carne feito garras. Bernardo acompanhava o estranho
com os olhos, impassível. Atentou-se a um volume nas costas daquele, sob a camisa, na
cintura. O homem se virou para eles e, vendo-os ali, parados, disse:
— Vocês podem sentar.
Elisa foi imediatamente para o sofá e Bernardo se sentou a seu lado. O outro se
aproximou e parou diante deles. A espingarda, agora, repousava ao lado, suspensa pela
mão direita, que a envolvia bem após o guarda-mato, com o cano apontando para o
chão. Olhou para Elisa, que mantinha os braços cruzados e os olhos para o tapete, e para
Bernardo, que lhe devolveu o olhar. Voltou a falar, perguntando:
— Não são daqui?
— Não — Bernardo respondeu seco.
— São da cidade?
— Sim, da capital.
— A moça é tímida? Não fala?
Ninguém respondeu. O estranho e Bernardo olhavam para Elisa; este, de canto
de olho, e aquele a encarava. Deu um passo mais à frente e se agachou, com o joelho
esquerdo no chão. Pousou a arma no colo e se curvou todo para o lado, e o pescoço
mais ainda, até enxergar os olhos de Elisa, que se esquivaram. O rapaz riu e ficou de pé.
Olhou para Bernardo, como se lhe esperasse alguma explicação ou riso. Ele apenas se
manteve sério.
— Vieram aqui fazer o quê? — perguntou a Bernardo.
— Estávamos de passagem. — Bernardo respondeu e, após uma pausa
demorada, perguntou: — A casa é sua?
— É não. Não tenho casa, estou foragido. Mas podia ser — olhou bem ao redor.
— Você faz um favor e fecha a outra porta, as janelas?
Bernardo relutou. Era evidente que não queria sair dali e deixar Elisa a sós com
aquele sujeito. Que escolha tinha, no entanto? O estranho aguardava uma resposta com
uma calma aterradora. Bernardo foi lento. Ou não muito lento. O silêncio parecia
demais. Levantou-se vagaroso e deixou o local. Aos poucos, o interior da casa se
escurecia mais e mais, e a vista ia acostumando-se com a sombra densa, que envolvia
tudo. Bernardo fazia o tal favor, mas sem a preocupação de usar os trincos. Apenas
encostava as abas e a porta dos fundos. Enquanto isso, o outro aproveitou o lugar vago
para sentar no sofá. Repousou a espingarda ao lado, escorada na parede, e pôs sua mão
sobre a coxa de Elisa.
— A moça está com medo, é? Precisa ter medo não — e sorria.
Elisa estava petrificada. Como não havia muito a ser feito, Bernardo foi breve,
em sua tarefa, e já retornara. Quando chegou à sala, deparou-se com o homem
aproximando o rosto ao de Elisa. Parecia cheirá-la. Bernardo ficou quieto, por um
segundo, e começou a aproximar-se deles num andar de gato. Contudo foi percebido. O
desconhecido se ajeitou no sofá, olhou para Bernardo, pousou a mão na espingarda e
disse:
— Você pode ir embora.
Bernardo não se mexeu. Parecia querer contestar, mas não pronunciou palavra.
Olhou para Elisa, que seguia encarando o chão, e voltou os olhos para o sujeito, que o
fitava. Como Bernardo não se decidia, o homem se levantou e, cara a cara, pressionou:
— Então, como é?
Bernardo continuou calado. Aquela tranquilidade do outro, de repente, sumira.
Impaciente, empurrou Bernardo, fazendo-o dar um passo para trás. No mesmo instante,
o cano da arma subia, apoiada pela mão esquerda. Quase na mira, Bernardo se
aproveitou do desequilíbrio e se esquivou para sua esquerda, ao mesmo tempo em que a
mão canhota agarrava o cano da espingarda, saindo do alvo e desviando a pontaria para
longe de si. Impulsivamente, houve um disparo, que assustou Elisa, assim que o punho
destro de Bernardo acertou o nariz do oponente, num soco veloz. A cabeça chicoteou
para trás e o sangue lhe brotou pelas narinas. As mãos afrouxaram a pegada e os olhos
se embaçaram, com as lágrimas. Bernardo tinha o poder de fogo, agora. Elisa, vendo
aquilo, se pôs de pé. Havia, nela, um misto de espanto com alegria. Furioso, o estranho
saltou para cima de Bernardo, agarrando a espingarda, o que resultou num encontrão.
Ambos caíram e seguravam a arma com força. Nenhum dos dois queria ceder. Era uma
luta sem socos e com pernas agitadas. O estranho, sem jeito, desferiu duas joelhadas
impotentes contra Bernardo, que tentava desvencilhar-se dos golpes. O homem esteve
por cima o tempo todo, pesando sobre Bernardo. Aquilo, no entanto, não lhe ajudaria a
retomar a espingarda, que esmagava o peito de seu oponente. Bernardo, então, recolheu
as pernas e, erguendo o quadril, virou para o lado, fazendo o outro cair. A pistola que
ele levava às costas se desprendeu da cintura. A arma pela qual brigavam, contudo,
ainda os unia. Elisa não via mais o homem, pois rolara para o corredor, de volta àquela
escuridão, mas via a outra arma, no chão. Estava atenta, apreensiva. Não deu sequer um
passo à frente. Bernardo se pôs de joelho, pronto para levantar, e o desconhecido deu
um puxão na espingarda, fazendo Bernardo cair por cima de si, sumindo da vista de
Elisa. Foi o momento em que ela ameaçou avançar, e hesitou. Bernardo voltou a ficar de
joelhos, ao lado do homem. Parecia estar em vantagem. Aquele, exasperado, tendo as
pernas livres, aplicou uns chutes contra as costas de Bernardo, também sem efeito. Por
fim, passou uma perna por cima da cabeça dele, segurou um de seus punhos com as
duas mãos, como se não quisesse mais a arma, e forçou Bernardo para trás, pelo
pescoço. Iniciara uma chave de braço. Enquanto Bernardo ia, ele vinha, sentando. E se
lançou para trás, deitando, fazendo alavanca no braço de Bernardo, que afrouxou a
pegada duma mão, que correu pelo cano, tateou o gatilho e disparou.
Elisa se assustou outra vez, ao ouvir o tiro. E, desta vez, não congelou: apressou-
se para apanhar a pistola caída. Era uma massa negra, quadrangular, que mal se
distinguia das sombras da escuridão. Empunhou-a ligeira e apontou para o corredor,
com as mãos trêmulas. Os dois estavam no chão, ambos irreconhecíveis, naquele
negrume mórbido. Porém uma face ensanguentada, aberta, se destacava, assim como a
poça que se formava feito piche. Um se mexia, livrando-se do peso do morto sobre si.
Empurrava uma perna para cima, que lhe cobria o rosto, com uma mão. E a outra ainda
na espingarda. Virou-se de lado para levantar-se. Elisa, vendo isso, se espantou com a
cena. O morto lhe causara muita impressão e lhe trouxera um choro ofuscante. Quando
a espingarda se moveu, no entanto, disparou. E chorava copiosamente. O dedo puxou o
gatilho até não haver mais munição. Quão precisa foi não se sabe, mas aquele que
pretendia levantar-se sucumbira. Os braços de Elisa fraquejaram, de repente. Baixou-os
e a pistola deslizou dos dedos até o chão. Ela soluçava, de tanto pranto. Deu um passo à
frente e as pernas tremeram. Mais um e os joelhos se dobraram. Foi o suficiente para
estar próxima e reconhecer os corpos. As lágrimas inundavam o rosto rubro e pálido.
Não via mais nada. Era como se tivesse submergido no oceano. Deixou-se afundar.
Pairava como que sem vida, curvada, murcha. Era um fantasma miserável, suplicante. O
cabelo lhe fazia um véu fúnebre.
Subitamente, reergueu-se. Os braços, revigorados, empurravam o chão e as
pernas se desdobravam, uma após a outra. Elisa passou a mão no rosto e ajeitou o
cabelo para trás. Virou-se, caminhou até a porta da frente, abriu-a num puxão e saiu. A
luz viera de rompante e agrediu seus olhos, provocando-lhe uma careta. Tão logo, a
luminosidade não lhe fazia mal e continuou seu caminho. Andou até o carro, mas o
ignorou. Passou direto, seguiu em passos determinados, estalando folhas e gravetos,
para longe dali. Foi assim e deixou a terra morta. A mata começou verdejar, a seu redor,
e o solo se reavivava. Havia sombras frondosas, som de seres miúdos, canto de aves,
farfalhar do vento. Prosseguiu com o semblante duro, sempre adiante, reta. Quando
chegou à estrada, rumou para a cidade, acompanhando o acostamento. O que lhe
salgava o rosto, agora, era suor.
Aos poucos, o sol lhe amaciava o corpo, a pisada amolecia e o suor se imprimia
na roupa. Havia brisa, havia o vento dos veículos que lhe perpassavam, e ainda assim
seu corpo abrasava. Sua pele cintilava tal qual o mar, que surgia próximo, enquanto se
descia a estrada curva. À borda, inúmeras embarcações pálidas — como as diversas
construções da cidade —, com velas e sem velas. E, não distante, uma ilha verdejante.
Morro acima ou à beira-mar, casas de telhados vermelhos ou lajes cinza, de paredes
chapiscadas ou tijolos descobertos. Elisa parou, um instante. Estava cansada. Arfava. O
peito crescia e diminuía em ritmo lento. Não procurou sombra, não se sentou, apenas
parou. Seu olhar estava longe. Não demorou e sua respiração ritmava brandamente.
Então, retomou a marcha, era preciso. Seguiu sem descanso por mais uma hora, até
chegar a seu destino.
As ruas eram estreitas e de paralelepípedos. O máximo que se alargavam,
serviam para dois automóveis, um indo e outro vindo, apenas. Os transeuntes eram
poucos. Na cidade, Elisa andava sem rumo. Olhava para os homens dum bar, para o
momentâneo entra e sai dum restaurante, para as vitrines dum shopping pequeno, para a
porta dum hotel. Não cruzou nenhuma. Avistou um cão vadio, preto, ao longo da
calçada da praia e se direcionou para lá. Porém não estava atrás do cachorro, que
desaparecera entre os carros estacionados ao longo da via. Elisa foi até um banco,
desses compridos, e se sentou, recostando-se. Bem debaixo da sombra duma
amendoeira. Ao redor, pela calçada, muito de seus frutos caídos. Alguns, na areia, um
nível abaixo de onde estava, sempre úmida, pois as marolas a cobriam inteira. Adiante,
as escunas aportadas ondulavam. Elisa se perdeu do tempo. Distraía-se com o tráfego
marinho em torno da ilha. Ali, ela era invisível, inalcançável. Ninguém se aproximava,
ninguém seguia por aquela calçada. Os carros próximos estavam como abandonados, as
vozes que ouvia estavam longínquas demais para entender algo. Era todo ouvidos ao
banhar do oceano, à água encontrando as rochas, as traves das docas etc., e retornando,
assim como as lágrimas aos olhos. Ficaria ali o quanto quisesse, o quanto necessitasse.
Convenhamos: que paz lhe poderia haver? Apenas a morte. E queria morrer?
Tinha gana de qualquer ação? Talvez, inerte, a vida lhe escapasse. Aos poucos. Bem
pouco. Não demorava, contudo, para ser similar a um cadáver. Estava já qual um corpo.
Despetalando feito flor sem água. Secava. Rachava. Estava inundada, pesada. Náufraga.
Afundava em si mesma, era difícil respirar. Descia, e descia, e fazia-se sal, no mais
fundo do abismo. Até que o obscuro lhe cobrisse, cegasse, não permitindo que visse ou
fosse vista. Elisa se esquecia de si, desaparecia, assim como um fechar de livro.

S-ar putea să vă placă și