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Escrito ao longo de mais de trinta anos por Ludovico

Ariosto e publicado, na sua versão final, em 1532


(com 46 cantos e cerca de 40.000 versos rimados), o
«Orlando Furioso» é uma das mais importantes e
influentes obras da literatura europeia e mundial,
apenas comparável em termos de relevância �ultural
a outras obras-primas da literatura como «A Divina
Comédia» de Dante Alighieri, «Paraíso Per�ido» de
John Milton, ou ao nosso «Lusíadas», do qual, aliás,
foi influência maior.

Misto de romance de cavalaria, que engloba o imaginário


popular e mitológico numa fina ironia renascentista, o
«Orlando Furioso» é um longo poema épico que, tal
como a «Odisseia» ou a <<Ilíada>> pode facilmente ser
lido como um grande romance de aventuras. Foi, aliás,
leitura de entretenimento ao longo dos séculos em
todas as cortes europeias, influenciando gerações de
escritores como o inglês Spencer ou o espanhol
Cervantes, estando ainda presente em obras tão distantes
.no tempo e diferentes no estilo como as de Camões
ou de Cyrano de Bergerac.

@
cava lo de ferro
LUDOVICO ARIOSTO nasceu em Reggio Emília
em 1474 e morreu em Ferrara em 1533. Ao serviço
da rica corte dos d'Este de Ferrara tornou-se, ainda
em vida, num dos maiores autores do renascimento
italiano. Escreveu para o teatro diversas obras trágicas
(Tragedia di Tisbe, La Cassaria, I Supposití), comédias
(Lena, fl Negromante); e também poesia lírica e satírica;
mas foi devido ao «Orlando Furioso», a sua obsessão
de uma vida, que ficou a dever a glória e ganhou
lugar de destaque no panteão da _literatura universal.

GUSTAVE DORÉ, ilustrador e pintor francês, nasceu


em 1822 e morreu em 1883.
É, provavelmente, o maior e melhor ilustrador do
século XIX, tendo realizado ilustrações para quase todos
os grandes clássicos de literatura, bem como para uma
miríade de obras "novas" à altura. Para o «Orlando
Furioso>> realizou mais de 650 ilustrações das quais se
incluem mais de 450 no presente volume.


cavalo de ferro
t.

O MAIOR ÉPICO DE CAVALARIA EUROPEU. UM DOS MONU­


MENTOS DA LITERATURA UNIVERSAL FINALMENTE EM POR­
TUGUÊS, NUMA EDIÇÃO INTEGRAL E FIEL AO ORIGINAL.

.J.,•-1· Carlos Magno e os seus paladinos cristãos preparam os seus exércitos para �ravar
-{;., ,1,

.os avanços do rei sarraceno Agramante. Contudo acabam cercados em Paris


pelos aliados dos infiéis: Marsillio, rei de Espanha e o feroz guerreiro Rodomonte.
Entre os soldados e cavaleiros de Carlos Magno, apenas uma pergunta - Onde
está Orlando, o mais famoso herói da cristandade?
O valoroso cávaleiro, após tantos e magníficos feitos, enlouqueceu ao descobrir

que a bela e casta Angelica recusou o seu amor fugindo para os braços do jovem
cavaleiro sarraceno Medoro. Orlando, louco furioso, erra pela terra destruindo
�t{, com força bruta tudo à sua passagem, tornando-se um perigo para homens,
animais e natureza. A última esperança de Carlos Magno e da cristiandade está
em encontrar um remédio para a loucura do guerreiro.
. ;\ Da Europa à África, por territórios �xóticos ou totalmente fantásticos, cruzando
animais impossíveis e aventuras extraordinárias, batalhas, duelos e viagens à lua,
feiticeiros, criaturas míticas e monstros diabólicos, os feitos heróicos, a honra e
sobretudo o amor, marcam uma das mais apaixonantes e influentes obras da
literatura universal que serviu de inspiração a obras como «Dom Quixote» de
Cervantes ou «Os Lusíadas» de Camões.

1 1 111
ISBN 978-989-623-067-8

9 789896 230678 cavalo de ferro


ORLANDO
FURIOSO
LUDOVICO ARIOSTO

ORLANDO
FURIOSO
ILUSTRADO POR

GusTAVE DoRÉ

INTRODUÇÃO, NOTAS, RESUMO


E TRADUÇÃO EM VERSO
DO ORIGINAL ITALIANO POR

MARGARIDA PERIQUITO

cavalo de ferro
Orlando Furioso

Autor: Ludovico Ariosto

Tradução: Margarida Periquito

Revisão: Raul Lourenço

Capa: Miss Sushie


Paginação: Gabinete Gráfico Cavalo de Ferro

l." edição, Novembro de 2007


Impressão e Acabamento: Offsetmais S.A.
Depósito Legal: 267910/07
ISBN: 978-989-623-067-8

A presente edição contou com o apoio do

Ministcro degli AfEui Estcri Italiano


Direzione Generale per la Promozione e la Cooperazione Culrurale

Todos os direitos para publicação


cm língua portuguesa reservados por:

@ Cavalo de Ferro Editores, Lda.


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sob qualquer forma ou por qualquer pro�
sem a autorização prévia e por escrito do editor,
com exccpção de excertos breves
usados para apresentação e critica da obra.
LUDOVICO ARIOSTO:
A VIDA, O TEMPO, A OBRA.

O
autor do Orlando Furioso nasceu a 8 de Setembro de 1474
em Reggio nell'Emilia, sendo o primeiro dos dez filhos de
Nicolo Ariosto, pertencente a uma família bolonhesa nobre,
e de Daria Malaguzzi Valeri, senhora da alta nobreza de Reggio. Na
altura, o conde Nicolo era comandante da guarnição da fortaleza de
Reggio, ao serviço de Ercole I d'Este, duque de Mântua e de Ferrara.
Nessa cidade, e quase inteiramente dentro das muralhas da fortaleza,
decorre a infância de Ludovico até 1484, ano em que seu pai é chama­
do a ocupar outros cargos em Ferrara, para onde a família se muda,
ocupando uma casa em que o poeta viveria até 1529.
Em Ferrara, Ludovico inicia os seus estudos de Latim e Grego, com
preceptores, o primeiro dos quais foi Domenico Catabene. Entre 1489
e 1494 frequenta, por vontade paterna, o curso de Direito no Studio
de Ferrara, mas consegue por fim sensibilizar o pai para a sua verda­
deira vocação. Abandonando o Direito, dedica-se aos estudos literários
com o humanista Gregorio da Spoleto, homem de grande saber em
quem Ariosto encontra o mestre que ambicionava, e não só: «Deu-me
mais que o meu próprio pai, pois ensinou-me a viver com nobreza,
enquanto meu pai apenas me ensinou a viver entre os mortais» - escre­
veu numa sua ode latina, em 1503.
Em 1498 entra ao serviço de Ercole I, e frequenta as aulas do filó­
sofo Sebastiano dell'Aquila. Além das poesias líricas, epigramas e ele­
gias em latim, e das Rime em vulgar, de inspiração petrarquista, que
compôs na idade juvenil, começa também a escrever comédias para a
companhia de teatro de Ercole 1.
8 ORLANDO FURIOSO

O teatro tinha lugar de relevo na corte de Ferrara. Alguns dos pri­


meiros contributos de Ariosto para as artes cénicas são Tragedia di
Tisbe, La Cassaria e I Suppositi. Muitos anos mais tarde voltaria à
comédia, com as peças Lena (1528) e II Negromante (1529).
Em Fevereiro de 1500, a vida de Ludovico, até aí despreocupada, é
abalada por um acontecimento que a condiciona de modo drástico: a
morte de seu pai. & responsabilidades que caem sobre os ombros do
primogénito são tremendas. Tem de prover ao sustento da numerosa
família administrando uma situação econémica periclitante, e procurar
orientação e encaminhamento profissional para os irmãos e dotes para
casar as irmãs; assume a tutela dos irmãos, ainda menores, e atravessa
uma série interminável de acções judiciais por questões de herança.
Entre 1501 e 1503 exerce o cargo de capitão da guarnição da forta­
leza de Canossa, cargo que requereu por razões económicas. Da fortale­
za, situada em lugar ermo nas montanhas a sudeste de Parma, desloca­
va-se a Reggio para receber o estipêndio e visitar os parentes maternos.
Em Outubro de 1503 regressa de Canossa, e entra ao serviço da
faustosa corte do cardeal Ippolito d'Este, filho de Ercole I, ao qual fica­
ria ligado até 1517. Para poder auferir de benefícios concedidos pelo
Cardeal (rendas de paróquias), Ariosto toma ordens religiosas menores,
sem que isso implique o exercício de funções pastorais, pois não pre­
tende seguir a carreira eclesiástica.
Nesse mesmo ano nasce um seu filho natural, Giovambattista, de
cuja mãe se conhece apenas o primeiro nome, Maria.
Em 1509 nascer-lhe-ia outro filho ilegítimo, Virginio, da sua rela­
ção com Orsolina Sassomarino. Este filho foi muito caro a Ariosto, que
o perfilhou e cujos estudos orientou, e que teve sempre junto de si.
Os seus deveres de cortesão estavam longe de se limitar aos de natu­
reza cultural, através das comédias que escrevia para o teatro da corte e
que lhe granjeavam algum prestígio, pois as funções de um «familiar»
incluíam tarefas muito triviais e, não raro, desagradáveis. Era constan­
temente encarregado de missões diplomáticas de grande responsabili­
dade, algumas delas bastante delicadas, como as que o obrigavam a des­
locar-se em longas viagens a Roma, para resolver ou mediar questões
belicosas entre Ippolito d'Este e o papa Júlio II, e atritos nascidos do
difícil relacionamento do ducado de Ferrara com o Papa. Consta que
este uma vez ameaçou mandar atirá-lo ao Tibre se não lhe desapareces­
se imediatamente da vista.
LUDOVICO AruosTO: A VIDA, o TEMPO, A OBRA. 9

Além dos perigos a que estava sujeito nessas longas e urgentes via­
gens a cavalo, a Roma e a várias outras cidades, era chamado a desem­
penhar tarefas de camareiro, mordomo ou moço de recados, de que
muito se lamentava, concretamente nas suas sátiras.
Foram anos difíceis, ressentindo-se sempre de ser afastado do lar e
da tranquilidade que lhe permitiria dedicar-se à escrita, mas encontrou,
mesmo assim, tempo e concentração para escrever, além do Orlando
Furioso, as comédias, a poesia lírica e as sátiras. Considerava que a sua
obra era o Furioso, tendo descurado a publicação do restante, que dei­
xou em manuscritos dispersos.
Das suas obras menores, as Satire são, sem dúvida, as mais interessan­
tes. Em número de sete, são compostas em tercetos e têm forma epistolar,
dirigindo-se o poeta a familiares e amigos com quem discorre sobre factos
concretos da sua vida ou sobre os seus estados de alma, evoca recordações
pessoais ou caricaturiza alguém, e nas quais por vezes se lamenta, com desi­
lusão ou com humor, do pouco reconhecimento que recebe ou da falta de
liberdade para se dedicar à literatura. Foram compostas entre 1517 e 1525.
No Outono de 1515, Ludovico decidiu dar o seu poema à estampa:
entregou o manuscrito a Giovanni Mazzoco, de Bondeno (cidade pró­
xima de Ferrara), de cuja tipografia saiu em Abril de 1516, a expensas
do autor, com excepção do papel, provido pelo Cardeal. Compunha-se
de quarenta cantos e era dedicado a Ippolito d'Este, o qual não daria o
devido apreço à obra do seu cortesão, que, em vez de louvores, recebeu
dele, dias depois, a pergunta: «Messer Ludovico, dove mai avete trova­
to tante corbellerie?>> («Senhor Ludovico, onde é que foi buscar tantos
disparates?»). A obra, porém, conheceu um sucesso imediato em todas
as cortes italianas, tendo em poucos anos saído da esfera aristocrática e
conquistado público de todos os estratos sociais.
Em 1517, as relações entre Ippolito d'Este e Ariosto conheceram
um corte definitivo. Em Agosto, o Cardeal decide partir para a
Hungria, onde tinha um bispado, ordenando a Ariosto que o acompa­
nhasse. Ludovico recusa-se a fazê-lo, alegando motivos de saúde -
bronquite e problemas de estômago - susceptíveis de se agravarem com
a longa viagem e a transição climática. Foi a ruptura total. Ippolito não
aceitou a sua justificação e afastou-o do seu serviço, retirando-lhe os
honorários e os benefícios eclesiásticos que lhe atribuíra.
Por intercedência de Bonaventura Pistofilo, notário e secretário de
Alfonso d'Este, irmão de Ippolito, em 1518 Ariosto entra ao serviço
10 ORLANDO FURIOSO

deste. Conforta-o o facto de o duque o desviar menos de Ferrara, o que


lhe permite dedicar-se mais à sua obra literária e não se afastar do con­
vívio de Alessandra Benucci, como confessa na Satira III, composta em
Maio desse ano:

II servizio dei Duca, da ogni parte


che ci sia buona, piu mi piace in questa:
che dai nido natio raro si parte.
Per questo i studi miei poco molesta,
né mi toglie onde mai tutto partire
non posso, perché il cor sempre ci resta. 1
(Sat., III, 67-72)

Ariosto foi sempre muito discreto em relação à sua vida amorosa,


mas alguns factos essenciais são conhecidos. A sua relação com Orsolina
Sassomarino, iniciada em 1508, e da qual nascera, no ano seguinte,
Virginio, em 1513 já se esgotara; nessa altura, Ludovico rompeu for­
malmente a ligação, porque se enamorara daquela a quem se uniria
sentimentalmente para o resto da vida. Quis, no entanto, dar uma
posição digna à mãe do seu filho, à qual nunca dedicou um único
verso: arranjou-lhe marido e comprou-lhe uma casa, que até mobilou,
arrumando assim, de forma prática e generosa, a situação.
Alessandra Benucci, florentina, era mulher de Tito Strozzi, impor­
tante mercador da família dos banqueiros Strozzi, de Florença, mas que
habitavam em Ferrara, cuja corte frequentavam, participando dos janta­
res, bailes e outros divertimentos, em que Alessandra era admirada como
a mais bela entre as belas. Ariosto conheceu-a, pois, nesses ambientes, e
a admiração que ela lhe suscitava transformou-se em enamoramento. Em
Junho de 1513, no dia de São João, o poeta estava em Florença para assis­
tir aos festejos daquela cidade, sendo hóspede de Niccolo Vespucci,
amigo do cardeal Ippolito. Alessandra chegou com o marido para as fes­
tas, sendo hóspedes da mesma casa. Nesse dia, Ludovico declarou o seu
amor à mulher que exercia sobre ele o fascínio de uma revelação, como
diz na sua canção Non so s'io ben potei chiudere in rima 2.

1
(O serviço do Duque, de entre todas as partes I boas que tem, na que mais me agrada é nesta: I
que do ninho pátrio raramente se aparta. I Por isso os estudos meus pouco molesta, I nem me tira de
onde separar-me de todo I não posso, pois sempre lá me fica o coração.)
2 («Não sei se fui capaz de guardar em rima»).
LUDOVICO AruosTo: A VIDA, o TEMPO, A OBRA. 11

Teve início entre eles uma relação secreta, mas que havia de perdu­
rar para sempre. Tito Strozzi morreu repentinamente em 1515, mas,
apesar de Alessandra ficar assim livre para casar com Ariosto, ambos
decidiram não o fazer, preferindo conservar as vantagens que o celiba­
to lhes garantia. Alessandra, casando de novo, perderia o usufruto dos
bens do marido e a tutela dos filhos, que eram seis. E Ludovico não
podia renunciar de ânimo leve aos benefícios que adquirira em 1503,
ao tomar as ordens menores. Vivia cada um na sua casa, em Ferrara,
sem nunca terem coabitado. Numa sua elegia, Ariosto dá-nos conta das
cautelas a que era forçado para se introduzir furtivamente em casa de
Alessandra:

Or mi levo, or m'accosto, or faggo or torno,

Tutto nel manto ascoso, a capo basso,


vo per entrar; poi veggio appresso o sento
chi puo vedermi, e m 'allontano e passo.

Che debb 'io for? che poss 'io for tra cento
occhi, e fra tanti usei e finestre aperte? 3

Só muito mais tarde, numa data imprecisa entre 1528 e 1530, cele­
braram, secretamente, matrimónio. Nem os cônjuges nem os poucos
amigos que terão estado presentes à cerimónia secreta revelaram tal
facto, e Ludovico e Alessandra continuaram a viver separadamente.
O Orlando Furioso, entretanto, tinha sido continuamente melho­
rado pelo poeta, que, em Fevereiro de 1521, fez publicar uma segunda
edição revista, esta impressa por Giovan Battista da la Pigna. Não
sofrendo alterações em conteúdo (tinha os mesmos quarenta cantos),
apresentava no entanto enormes melhorias no que respeitava à língua,
expurgada de expressões dialectais regionais, de arcaísmos e latinismos,
muito mais elegante e límpida do que a da primeira versão da obra,
acompanhando os cânones renascentistas. Deixava já prenunciar a per­
feição que viria a observar-se na última edição que o autor faria publi-

3 (Ora me afasto, ora me aproximo, ora fujo ora regresso, / Todo escondido no manto, de cabeça
baixa, / vou para entrar; nisto vejo perto ou oiço / quem me pode ver, e afasto-me e passo. / Que hei­
de fazer? Que posso eu fazer entre cem / olhos, e entre tantas portas e janelas abertas?)
12 ORLANDO FURIOSO

car. Desta segunda edição fizeram-se inúmeras reimpressões, mas sem


quaisquer alterações ao texto.
Em finais de 1521 Ferrara era alvo de novas ameaças de guerra por
parte do Papa, e Alfonso d'Este tomou providências, recrutando exér­
citos e reforçando fortificações, despesas que o obrigaram a cortar nos
gastos menos importantes, considerando supérfluos os estipêndios de
alguns cortesãos, entre os quais Ariosto. Ludovico começou a recear
pelo seu futuro e, em Fevereiro de 1522, disse ao duque que, caso não
provesse às suas necessidades, não podia levar a mal que ele procurasse
o sustento noutro lado. É então que Alfonso lhe propõe o cargo de
governador da província da Garfagnana, que ele não tem coragem de
recusar, compelido pela necessidade. Tratava-se de um território nos
confins do ducado, disputado por Florença e Lucca, perdido no meio
das gargantas dos Apeninos, onde os conflitos e o banditismo grassa­
vam entre os habitantes. Requeria-se um governador com mão de ferro
e um aumento das forças militares. Ariosto sabia que o cargo era difí­
cil e que não se coadunava com o seu temperamento, e pesava-lhe
muito afastar-se de casa e de Alessandra, mas os tempos eram maus e
os honorários generosos. Assumiu-o, pois, tendo demonstrado digni­
dade e firmeza no seu desempenho. Depois de uma viagem de vários
dias, chega a Castelnuovo di Garfagnana, onde permaneceu até Junho
de 1525, fazendo visitas a Ferrara mais ou menos de seis em seis meses,
e voltando a partir sempre amargurado pelo afastamento e por não
poder levar consigo Alessandra. Nos primeiros meses teve a companhia
do filho Virginio. Ali escreveu as Satire iv, vii e vi, que reflectem os seus
sentimentos e preocupações desses tempos, e continuou, sempre, a
«purificar» o Orlando Furioso, o que, aliás, faria até ao fim da vida.
As dificuldades de governação que Ludovico enfrentou na
Garfagnana foram muitas, e não encontravam respostas eficazes nas
directivas do duque, que não atendia as suas sugestões e pedidos nem
colmatava a escassez de forças da ordem com que aquele lutava. Em
1524, Alfonso propõe-lhe o cargo de seu embaixador oficial em Roma,
mas Ariosto recusa. O que mais almejava era a tranquilidade da sua
casa, para se dedicar à escrita e estar perto da família e de Alessandra.
Em 1525, renuncia de livre vontade ao cargo de governador e regressa
a Ferrara. Com as economias que ali fez compra uma casa no bairro de
Mirasole, afastada do centro da cidade e com um grande quintal. Dá
início a obras de restauro, que ele próprio dirige, dispensando enge-
LUDOVICO AruosTo: A VIDA, o TEMPO, A OBRA. 13

nheiros e arquitectos. Sobre a fachada da casa lia-se um dístico em


latim, que ali fora inscrito pelo anterior proprietário, e que Ariosto
conservou: «Parva, sed apta mihi, sed nulli obnoxia, sed non sordida, /
parta meo sed tamen aere domuS>> 4.
Goza finalmente do privilégio de se afastar definitivamente das
empresas militares e das missões diplomáticas dos senhores da corte de
Ferrara, limitando-se a ser um observador distanciado dos factos, um
outsider distraidamente atento que observava os homens e as suas proe­
zas e reveses, sem estar neles imiscuído. Nomeado superintendente dos
espectáculos da corte por Alfonso I, volta a escrever comédias, ensaia as
peças e faz cenografias. Deixou incompleta a comédia I Studenti, que
foi terminada por seu irmão Gabriele e seu filho Virginio.
O seu cuidado e ocupação maior continuava a ser a revisão do
Furioso, de que preparava nova edição. Entre 1521 e 1528 escreveu os
Cinque Canti, cinco novos cantos que planeava acrescentar ao poema,
dando-lhe uma conclusão diferente, mas decerto inferiu que esses
novos enredos não se harmonizavam com os restantes, e pô-los de
parte. Virginio encontrou-os após a morte do pai e veio a publicá-los
em 1545, em apêndice a urna nova edição da obra.
No início de 1529, Ludovico saiu da companhia dos irmãos e
mudou-se para a sua parva domus em Mirasole (hoje, na via Ariosto),
levando consigo apenas Virginio. Ali viveu os seus últimos anos, dispon­
do livremente do tempo, que dividia entre a actividade teatral na corte,
os estudos, a jardinagem e, evidentemente, a pertinaz revisão da sua obra.
Alfonso d'Este chamava-o à corte de vez em quando para conver­
sar com ele, ou para o acompanhar em alguma deslocação, pois era-lhe
grato mostrar-se na companhia do grande poeta, que tanto brilho dava
à sua corte. A obra de Ariosto era conhecida e apreciada através da
Europa, a sua fama corria mundo.
Em Outubro de 153 1, Alfonso d'Este envia Ariosto a Correggio a
fim de sondar as intenções de Alfonso d'Avalos, marquês do Vasto, que
tem ali as suas tropas estacionadas. Ariosto, além de trazer ao duque
notícias tranquilizadoras, vê ser-lhe atribuída pelo marquês urna pen­
são anual de cem ducados de ouro, transmissível aos herdeiros, que o
ajudou a viver mais desafogadamente os seus derradeiros anos.

4 («É uma casa pequena, mas adequada a mim, livre de vínculos e decente, I e adquirida com o meu
dinheiro»).
14 ORLANDO FURIOSO

Em Outubro de 1532 sai da tipografia de Francesco Rosso da


Valenza, em Ferrara, a terceira edição, revista, do Orlando Furioso,
ampliada para quarenta e seis cantos (compreendendo 4842 oitavas,
quase 40.000 versos). Quando pôs de parte os Cinque Canti, Ariosto
decidiu, em vez de acrescê-los ao poema, ampliar este no seu interior,
inserindo novos episódios que se integravam nos já existentes. Assim,
esta terceira edição tinha como novidade, em relação aos quarenta can­
tos das duas anteriores, os episódios de Olímpia, do Castelo de Tristão,
de Marganor, de Leone, e, ainda, a menção às personalidades ilustres
suas contemporâneas, que comparecem no último canto a aguardar, no
cais, a chegada do «navio», metáfora do poema. Ariosto tencionava
ampliar ainda mais a sua obra-prima, conforme declarou a amigos, na
edição seguinte, que já projectava; a vida, porém, não lhe deu tempo
de o fazer.
Em Dezembro de 1532, pouco depois de regressar de uma viagem
a Mântua com o duque para cumprimentar Carlos V, que ia encontrar­
-se com o Papa em Roma, Ludovico adoece com enterite.
Depois de quase sete meses de doença, sobrevêm-lhe complicações
pulmonares e morre a 6 de Julho de 1533, na sua casa, com a idade de
58 anos. No dia seguinte, ao entardecer, o féretro é transportado para
o mosteiro de San Benedetto, onde é sepultado com a maior simplici­
dade. A notícia da sua morte só corre pela cidade nos dias que se
seguem. Actualmente, o mausoléu com as suas ossadas encontra-se na
Biblioteca Comunale Ariostea, em Ferrara, para onde foram transferi­
das por iniciativa do general francês Miollis, em 180 1, quando da ocu­
pação napoleónica da Itália.
0 «ORLANDO FURIOSO»

Génese

E
m 1486 foram publicados, em Veneza, os dois primeiros Livros
do poema Orlando Innamorato, do conde Matteo Maria
Boiardo. O então adolescente Ludovico Ariosto, impressionado
com a obra, começou a dedicar-se à leitura e estudo de histórias de cava­
laria, matéria que estava na génese da obra de Boiardo, e quando este mor­
reu, em 1494, deixando a obra interrompida no Canto IX do Livro III,
Ludovico alimentou a intenção de lhe dar continuidade. Não se sabe ao
certo quando começou a fazê-lo, mas há indicações de que em 1504 o tra­
balho já estava iniciado.
Ariosto retomou as personagens e as respectivas aventuras no ponto
exacto em que Boiardo as deixara suspensas, e incutiu-lhes, de novo,
movimento. Contudo, esse novo movimento revelou-se muito mais fluido
e elegante, percebendo-se, desde a primeira edição, que o Orlando Furioso,
laborando embora na mesma matéria de uma interminável cadeia de
romances cavaleirescos, e tendo como antecessores mais directos no espa­
ço italiano Morgante Maggiore (1483), do florentino Luigi Pulei, que
parodia as canções de gesta, e o já referido poema de Boiardo, era uma obra
original. Ludovico, com a sua extraordinária fantasia, dera uma outra fisio­
nomia às personagens, mais de acordo com a sensibilidade e o gosto renas­
centistas. O mundo cavaleiresco perdia os seus contornos rígidos e passava
a ser um cenário de fundo para figuras que exprimiam livremente toda a
diversidade e contrastes de sentimentos e comportamentos próprios da
natureza humana, sem excluir a nota dissonante da loucura.
Mas a novidade da obra não ficava por aí. Ariosto, em relação aos dois
antecessores citados, burilara a língua com um cuidado e uma perícia que
a colocavam a grande distância da linguagem áspera, rude e pouco maleá­
vel de Pulei e de Boiardo. Numa época em que se buscava, entre tão varia­
dos dialectos, um padrão para a língua culta italiana, Ariosto quis impri­
mir à sua obra a evolução linguística teorizada por Pietro Bembo, que
16 ORLANDO FURIOSO

tinha como modelo o toscano do século XIV, de Petrarca e Boccaccio,


acompanhando assim a fixação do florentino como língua literária, e
sendo o primeiro a usá-la numa obra de grande fôlego. Seguindo essa
linha e a teoria de Bembo, também difusor do petrarquismo como mode­
lo lírico, o estilo de Petrarca está visivelmente presente no Orlando
Furioso, na reprodução de palavras e versos, na sintaxe, na descrição de
paisagens e figuras femininas, etc.
A ottava rima, modelo de estrofe usado pela primeira ve:z por
Boccaccio na Teseida (1340), adquire em Ariosto uma fluide:z e uma
musicalidade novas, e um ritmo propulsor que impele· a narrativa.
Narrativa que é feita com uma grande mestria, num movimento inces­
sante em que estão sempre presentes a malícia, o bom humor e a ironia
de um narrador que não quer ser tomado muito a sério e que é o primei­
ro a divertir-se com a história, fazendo frequentes comentários acerca
daquilo que está a escrever, ou considerações que atestam o seu conheci­
mento dos factos e dos sentimentos humanos. Salta de um episódio a
outro em momentos de maior suspense, ironiza acerca da credibilidade de
quanto narra, fala com o leitor ou com o destinatário da obra - «o senhor»
- no início e no final de cada canto, quando muda de episódio e sempre
que lhe apetece, como um realizador que está sempre presente e que con­
trola toda a acção. Deste modo, cria pausas de desaceleração e de reflexão,
e um distanciamento entre o narrador e o narrado que permite a famosa
«ironia ariostesca», a confrontação do poema com o próprio poema.
Um exemplo dessa sua demonstração de que tem tudo sob controlo
e que maneja com perícia todos os fios do tecido que está a urdir, que­
rendo mesmo evidenciar ao leitor os nós que vai deixando no lado do
avesso, encontra-se nas oitavas 80 e 81 do Canto XIII, quando abandona
Bradamante, presa a um feitiço do mago Atlante, para ir observar o que
se passa no campo sarraceno:

Bradamante deixo, e mal não vos caia


saber que ela ali fica em tal encanto;
pois, quando for tempo que dali saia,
faço-a sair, e Ruggier outro tanto.
Se, a novo pitéu, novo gosto raia,
acho que a minha história, também, quanto
mais variando for aqui e além,
mais gosto em quem a ouvird mantém.
Muitos fios serd preciso dar-me
para tecer esta tela que eu rasouro.
Mas espero que vos agrade escutar-me,
ouvindo o modo como o povo mouro
a mando do rei Agramante se arme;
Ü ÜRLANDO FURIOSO 17

Se alguns passos da obra podem considerar-se menos entusiasman­


tes, são aqueles em que o poeta cumpre o dever de cortesão e faz o
encómio dos seus senhores, tecendo louvores que conferem a Ippolito,
Alfonso e restante família dimensões quase divinas.
O texto é despretensioso, não aspira a um estilo sublimado, camo­
niano. A matéria heróica, como a histórica, é reduzida a um registo
coloquial. Ao contrário de Os Lusíadas, não é uma narrativa sequen­
cial, linear, mas sim um contínuo interromper e reatar de aconteci­
mentos paralelos e cruzados, em que várias histórias vão sendo conta­
das em simultâneo e em cadeia, com recurso frequente ao flashback, e
sem que o próprio tempo, muitas vezes, seja linear. A variação dos tem­
pos verbais dentro da oitava também acentua essa oscilação ou indefi­
nição temporal.
Perante a perfeição expressiva do poema de Ariosto, a obra de
Boiardo foi, na altura, relegada à obscuridade, considerada imperfeita,
escrita num italiano provinciano e grosseiro; contudo, o Innamorato é
uma obra digna de apreço, de um grande espírito inventivo e com sen­
tido de humor, que foi a fonte da quase totalidade das personagens e
das aventuras que deram vida ao Furioso. Ariosto tinha em devido
apreço a obra de Boiardo, por isso dizia modestamente, enquanto o seu
poema não conheceu publicação e não recebeu um título, que ele era
apenas una gionta (um acréscimo) ao Orlando Innamorato.

Enredo e personagens
O argumento do poema tem por fundo as guerras entre Carlos Magno
e os Mouros que invadiram a França, comandados pelo rei Agramante.
Nesse cenário movimentam-se personagens ligadas ao ciclo carolíngio
e ao ciclo bretão, pertencentes à tradição literária dos romances de
cavalaria e das canções de gesta, matéria que fugia já ao gosto classicis­
ta do Renascimento. Mas Ariosto soube moldá-la de modo a torná-la
mais refinada e variada, recorrendo a todo o passo ao simile, com fre­
quência vergiliano, introduzindo-lhe muitas referências clássicas e
mitológicas, novas personagens e novas histórias. Entre as personagens
mais relevantes avulta Orlando, o Roland da Chanson de Roland,
herói de tantas canções de gesta, e a sua paixão por Angelica, que o leva
à loucura, facto central no poema e na sua própria estrutura, pois acon­
tece no Canto XXIII, e que dá título à obra. Ruggiero e Bradamante
são igualmente personagens de primeiro plano na economia do poema,
na medida em que têm como destino dar origem à estirpe d'Este, sendo
eles próprios descendentes do troiano Eneias, através de seu filho
Astíanax.
18 ORLANDO FURIOSO

Naquele tempo, como já nos tempos homéricos, era muito impor­


tante ter uma genealogia ilustre, que fizesse a família descender de um
grande herói, mitológico ou histórico. As cortes italianas tinham todas
uma grande tradição cultural, mas, mais que todas, as de Florença e de
Ferrara. Esta pôde orgulhar-se de por ela passarem, sucessivamente, os
três maiores poetas épicos da Itália: Matteo Maria Boiardo ( Orlando
Innamorato), Ludovico Ariosto ( Orlando Furioso) e Torquato Tasso
( Gerusalemme Liberata). Ercole I d'Este encarregara Boiardo de criar,
no Orlando Innamorato, um antepassado ilustre para a sua família,
tendo o poeta introduzido a figura de Ruggiero no poema com essa
finalidade; no Livro III, que deixou apenas começado, chegou a pro­
porcionar o seu encontro breve com Bradamante, mas não teve tempo
para desenvolver a história dos seus amores, o que acontece no Furioso.
Também a conturbada história de Itália, em especial a do tempo de
Ariosto - empolgando de modo particular as empresas e os reveses dos
governantes de Ferrara - é tema constantemente abordado na obra,
determinando dois planos temporais na narração: o tempo da fábula
cavaleiresca, e o tempo da história político-militar italiana. Não faltam
também episódios picantes e de grande erotismo, que contribuíram
para que o Furioso sofresse acusações de licencioso e imoral, até finais
do século XVIII.
A Ariosto bastam as primeiras quatro oitavas do Canto I para fazer
o exórdio do poema. Define na primeira qual a matéria que vai cantar,
informa na segunda que vai dizer coisas que nunca foram ditas em
prosa ou rima a respeito de Orlando (o qual nunca, em anteriores
obras, atingira a loucura), e invoca a amada, preterindo as Musas ou
qualquer divindade. Na terceira, pede a Ippolito d'Este que se digne
aceitar este tributo do seu humilde servo, criando um desnível entre
quem dá «o que pode» e quem recebe; e na quarta oitava refere o herói
Ruggiero, com o qual sugere que o dedicatário tem uma relação tópi­
ca, usando-a como chamariz para que ele condescenda em que seus
altos pensamentos «cedam» um pouco de atenção aos seus versos, pois
eles cantarão alguém que lhe diz respeito.
Nas estrofes 5 e 6 faz a ponte entre o estado das coisas conforme
tinham ficado no Innamorato, no que respeita à guerra entre Carlos
Magno e os Mouros e à personagem Orlando, e o actual teatro da acção
no Furioso, antecipando, com a adversativa com que abre o último
verso da oitava 6, que estão reservadas contrariedades ao seu herói, pelo
motivo expresso no primeiro verso da oitava 7. Logo a seguir faz uma
das suas intromissões pessoais, que desmontam a acção perante os nos­
sos olhos e que são uma autocrítica do próprio poema: «eis que o juízo
humano amiúde erra!». Nenhum errará tanto, no Furioso, quanto o de
Orlando.
O ÜRLANoo Furuoso 19

Ariosto encadeia os factos de tal maneira que não nos deixa respirar;
logo a seguir, na oitava 10, apresenta-nos Angelica em fuga por bosques
e selvas, o que será nela uma constante, para escapar aos seus muitos e
diversos amadores. E, com Angelica, começamos de imediato a perce­
ber que o tecido do poema é uma selva cerrada e cheia de ciladas, per­
corrida em todos os sentidos por criaturas errantes que se cruzam ou se
desencontram, que se buscam ou se evitam, numa permanente deam­
bulação em demanda de um ser amado ou de um inimigo, de um cava­
lo ou de uma espada, ou simplesmente de uma aventura. O leitor é
constantemente confrontado com o imprevisto, com as súbitas mudan­
ças de cenário, com o jogo de aparições e desaparecimentos e os mais
variados golpes de magia; e é levado pela cadência rítmica marcada pelo
galope dos cavalos, pelo tinir das armas, pela voz do narrador, pelo enca­
deamento das oitavas, frequentemente ligadas por enjambement.
A guerra entre Carlos Magno e os Mouros, sempre presente, a certa
altura transfere-se de França para África, tal como Orlando, enlouque­
cido, atravessa o mar a nado para África. O cerne do poema é, de facto,
o enlouquecimento por amor do seu herói titular, a apresentação do
amor como fonte de loucura para o espírito impreparado. Nas três pri­
meiras oitavas do Canto XXIV, o narrador diz-nos que o amor nada
mais é que insânia, que tem disso experiência própria, e que só o facto
de passar de momento por um intervalo de lucidez lhe permite fazer
esse aviso à navegação.
Orlando segue obsessivamente Angelica, mas nunca mais a encon­
tra, a partir do momento em que Carlos Magno a subtrai à sua compa­
nhia no início do poema, como já se referiu. Ele que era o paladino mais
heróico, mais valoroso e forte do rei de França, seu tio, abandona as hos­
tes francesas a coberto da noite, disfarçado de mouro, no momento mais
crítico: quando Paris está assediada. Parte numa longa e vã demanda por
Angelica, que o leva a outros países e a participar de outros episódios da
trama, e a regressar, muitos meses depois, ao ponto de partida. E é então
que, nos arredores de Paris, Orlando encontra o seu locus infaustus,
num dos cenários mais amenos e oníricos de todo o poema.
Angelica, que ao longo de vários cantos é o motor que impulsiona
e arrasta atrás de si cavaleiros cristãos e mouros, reis e eremitas enfeiti­
çados pelos seus encantos, tudo o que deseja é regressar ao Oriente e
livrar-se definitivamente de todos esses pretendentes. Porém, ninguém
é dono do seu destino, e Angelica tem um encontro fatal: eis que depa­
ra com um jovem soldado mouro, Medoro, louro e belo como um que­
rubim, gravemente ferido. O seu coração empedernido finalmente
amolece e prende-se de paixão pela bela criatura, que trata com carinho
e poções feitas de ervas, cujos benefícios conhece bem. Amam-se,
unem-se, e juntos partem para o Catai. Ariosto escorraça do poema a
20 ORLANDO FURIOSO

sua heroína favorita no Canto XIX, e nas duas últimas oitavas do


Canto XXIX, num breve ataque de misoginia, lamenta mesmo que o
paladino não tenha exercido vingança sobre ela.
No Canto XXIII, Orlando encontra por acaso um lugar aprazível
junto a um rio cristalino, que corre entre prados floridos onde crescem
frondosas árvores, e onde sob um monte há uma gruta. Em redor
vagueiam pastores e rebanhos, e há referências a ninfas. É o espaço
bucólico perfeito, tal como o descrevem Vergílio e Sannazaro.
Pretendendo repousar ali um pouco, começa a aperceber-se de que por
todo o lado há inscrições, nomes e epigramas feitos por Angelica e
Medoro. Recorre a vários estratagemas para se iludir, trava dura luta
com o seu coração e a sua mente, mas recebe o golpe fatal quando se
aloja na casa de um pastor, a mesma em que se alojaram os amantes; ali
ouve contar toda a história, e vê a pulseira que um dia dera a Angelica,
oferecida por ela ao pastor em reconhecimento.
Volta ao lugar aprazível e destrói toda a natureza, despe a armadu­
ra, desfaz-se do cavalo, da espada, das roupas interiores, usa a sua força
bruta para destruir com bestialidade todo o ser que de si se aproxima,
animal ou gente, e daí em diante vagueia ao acaso, nu e irracional,
espalhando destruição. A mente de Orlando não pode entender que
Angelica, uma princesa, o pretira por um pobre soldado mouro, por­
que isso não se inscreve nas regras do mundo cavaleiresco a que ele per­
tence, segundo as quais ela devia querer o mais prestigiado dos paladi­
nos, ele próprio. Por isso, fica louco furioso. Angelica, por seu lado,
parece ter saído precocemente do poema por desestabilizar o mundo
cavaleiresco. Talvez nestes factos esteja implícita uma crítica aos valores
mais rigorosos da cavalaria, uma vontade de causar o desmoronamen­
to desse mundo.
Como atrás ficou referido, Ruggiero e Bradamante são os heróis
que estão presentes no Furioso para conferir prestígio à árvore genea­
lógica da família d'Este. Ariosto arrasta-os, afigura-se-nos, com um
certo desconforto, num desencontro permanente, até ao último canto,
onde por fim lhes celebra o matrimónio, dando cumprimento à von­
tade que já fora transmitida a Boiardo. São personagens menos espon­
tâneas, mas que completam, com as suas personalidades próprias, a
variedade de caracteres humanos que enriquece o poema. Ruggiero é,
originalmente, um cavaleiro sarraceno, e converte-se ao cristianismo
para desposar Bradamente. Se, por um lado, é um guerreiro exemplar
que dá inúmeras provas de bravura e brio, por outro apresenta-se como
um indivíduo leviano e fraco, que esquece facilmente Bradamante, e
que mostra pouco discernimento. Além do que lhe acontece no episó­
dio da ilha de Alcina, podemos observar isso na passagem em que ele
encontra Angelica amarrada ao escolho, prestes a ser devorada pelo
Ü ÜRLANDO FURIOSO 21

monstro marinho, e é ela que tem de insistir para que se apresse a tirá­
la dali, uma vez que ele persiste numa luta ineficaz com o monstro, sem
conseguir matá-lo, deixando-a exposta ao perigo. Assim que a salva,
tem o impulso incontrolável de a possuir. O contraste é enorme, tanto
na valentia como no comportamento, entre ele e Orlando, quando
este, em idêntica situação, mata o monstro e salva Olimpia.
Ruggiero não tem determinação nem força de carácter que lhe
permitam ser senhor de si mesmo, e deixa-se controlar por duas forças
antagónicas, ambas conotadas com a magia e a feitiçaria. Uma, o mago
Atlante, usa todo o tipo de engodos para o afastar do teatro das opera­
ções, com a intenção de o proteger de um destino nefasto que lhe foi
predito; outra, a maga Melissa, esforça-se continuamente para o cha­
mar ao dever e à razão, e para o aproximar de Bradamante, a fim de que
o desígnio de fundador da estirpe d'Este não fique por cumprir. Parece­
nos que por detrás desta imagem, pouco abonatória, daquele que será
a «cepa» da família d'Este, se adivinha o sorriso malicioso de Ariosto.
Quanto a Bradamante, menina-dos-olhos de Carlos Magno e por
ele muito mimada, é uma guerreira forte e feroz que só encontra para­
lelo em Marfisa, mas que, por contraste, se mostra demasiado dócil e
subjugada à autoridade paterna, e excessivamente tolerante e confor­
mada no que respeita aos erros e ausências de Ruggiero. Assistimos aos
seus longos monólogos, carpindo a infelicidade amorosa encerrada no
castelo da família, como quem cumpre um destino que lhe está fatal­
mente traçado.
Além destas personagens, que são centrais no poema, imensas são
as que nele se movimentam e que têm igualmente protagonismo. Mas
outras há com aparições pontuais, acessórias (Ippalca, por exemplo, ou
o mensageiro que traz a Ginevra notícias de Ariodante), e até efémeras,
tendo apenas a função de ligar fios da trama, sem nela terem relevo,
como é o caso da dama lacrimosa que Ruggiero e Bradamante encon­
tram e os conduz ao castelo de Pinabello; nem chegamos a saber o seu
nome. Há personagens divinas que interferem directamente na acção
bélica, como o arcanjo São Miguel, numa leve reminiscência da inter­
venção dos deuses olímpicos em Homero, e há um grupo de figuras do
povo - taberneiros e estalajadeiros, pastores, barqueiros - que sobres­
saem por serem detentoras de saberes tradicionais e grandes contadoras
de histórias. São as figu ras que dão presença à literatura oral, que se
transmite através da palavra falada. Regista-se também a presença, quer
acessória quer relevante, de eremitas, que tanto vestem a pele do santo
como a do pervertido. Entre os reis e guerreiros sarracenos - designa­
ção que abrange também os originários de terras orientais - vários
sobressaem pela sua bravura, mas a figura mais notável é a de
Rodomonte, rei de Argel, que se distingue de modo especial no assalto
22 ORLANDO FURIOSO

a Paris. Em certa medida, pode ser comparado a Orlando, visto que


possui, entre os seus, prestígio, força física e valentia idênticos, sofren­
do também ele um ataque de loucura por amor. Chega a envolver-se
em luta corpo-a-corpo com o paladino francês, quando as mentes de
ambos se encontram obscurecidas.
Há, contudo, uma personagem no Orlando Furioso que merece
atenção especial, por ter a capacidade de aprender com o próprio erro
e de exercer uma função didáctica, e por ser capaz de restabelecer a har­
monia e o equilíbrio do poema: Astolfo, o duque inglês.
Quando o encontramos pela primeira vez, no Canto VI, está trans­
formado em mirto, por se ter deixado enredar nas seduções da feiticei­
ra Alcina. Nesse estado vegetal, tenta transmitir a Ruggiero a sabedoria
que adquiriu com a sua experiência e evitar que de seja vítima da
mesma armadilha, mas debalde: Ruggiero vai cair nas mesmas malhas,
porque não é capaz de aprendizagem. Astolfo, porém, nunca mais
incorre no erro. Atravessa o resto do poema livre das ilusões, ideais e
aspirações que ocupam os outros, sem pretender actos de galhardia,
sem se apaixonar nem seguir as regras da cavalaria. Tem um livro que é
como um manual de instruções para resolução dos problemas que
encontra, tem armas e acessórios mágicos, nunca perde a descontrac­
ção, é cómico e fala de tudo com conhecimento de causa. Montado no
hipogrifo, voa pelos ares a seu bel-prazer, alheado do que se passa cá em
baixo, parecendo não fazer parte do poema e olhá-lo do exterior.
Astolfo visita o Inferno por um capricho de momento, e depois o
Paraíso. Aqui encontra São João Evangelista, que o trata de igual para
igual e que o acompanha até à Lua. Esta viagem interplanetária, realiza­
da no Canto XXXIV, tem como objectivo recuperar o juízo de Orlando,
pois na Lua encontra-se tudo quanto os homens perdem na Terra.
Entre uma imensa parafernália de coisas perdidas pelos homens ao
longo dos séculos, Astolfo encontra a ampola que contém o siso do
paladino; e, de passagem, cai-lhe sob o olhar uma ampola com o seu
nome, que contém uma parte do seu juízo que ele nunca se apercebe­
ra de ter perdido, mas que se apressa a inspirar. Quando regressa à
Terra, Astolfo vem munido de poderes que lhe permitem, entre outras
coisas, devolver a visão perdida ao Preste João, e transformar pedras em
cavalos e folhas de árvores em navios, constituindo um exército e uma
frota no Norte de África que garantem a vitória das forças cristãs sobre
as sarracenas; e devolve a Orlando o siso perdido, diluindo-se na sua
mente qualquer lembrança de Angelica.
Astolfo dá-nos a imagem do louco saudável, porque não leva as coi­
sas demasiado a sério; vai vivendo as situações conforme se lhe depa­
ram, sem querer que a realidade se adapte à sua teoria de vida, como
aconteceu com Orlando, o louco patológico. Enquanto Orlando con-
O ÜRLANoo Furuoso 23

vulsionou o mundo, Astolfo restitui-lhe a ordem e a harmonia. Ariosto


deu asas a Astolfo para que ele se elevasse do mundo material e pudes­
se ter uma percepção distanciada das coisas, tal como o poeta, e fosse
capaz da mesma auto-ironia. Por isso, Astolfo é a projecção do próprio
poeta dentro do poema, ou seja, Astolfo é o alter ego de Ariosto.
Conquanto o Orlando Furioso rejeite os significados absolutos do
código da cavalaria, e esteja mais preocupado em dar vida a uma pro­
fusão de acções, sentimentos e emoções, dos mais nobres aos mais vis,
que ilustram a diversidade de matizes da natureza humana, exprime
também uma certa nostalgia por esse mundo perdido, quando, por
exemplo, condena as armas de fogo (XI:21-28), ou quando, no final do
Canto IX, Orlando destrói e afunda em alto-mar o arcabuz e respecti­
vas munições. Pois o que vale um disparo de espingarda ou de arcabuz,
ao pé dos belos golpes de espada e lança de um cavaleiro que lutava
pelo seu senhor, pela sua dama, pela religião, pelos oprimidos, ou ape­
nas para obter a glória? Que é feito das cortesias que andavam sempre
associadas a esses actos de valentia?
O poeta contemporâneo de um príncipe sem escrúpulos como
César Borja não podia deixar de sorrir de nostalgia enquanto escrevia
sobre Rinaldo e Ferraú - um cristão e outro muçulmano - que se
batiam em duelo por Angelica e que, ao notarem que ela entretanto
fugira, concordam em interromper a batalha, e, dispondo de apenas
um cavalo, o montam juntos para segui-la:

Oh, bondade dos cavaleiros antigos!


Eram rivais, eram de fé diferente,
e, de se infligirem cruéis castigos,
toda a pessoa os dois tinham dolente;
mas, por selvas, atalhos, desabrigas,
juntos vão, sem que a suspeita os atente.
(1:22:1-6)
NOTA DA TRADUTORA

O
Orlando Furioso é uma obra que há muito tempo conheço e
amo. Não esperava, porém, que me viesse a caber a tarefa de
a traduzir para língua portuguesa. A editora Cavalo de Ferro
teve a feliz e louvável iniciativa de publicar a obra-prima de Ludovico
Ariosto, e propôs-me a execução do trabalho.
O tradutor profissional, ao assumir a responsabilidade de um trabalho,
assina um contrato com a editora, que o obriga às cláusulas pelas quais o
mesmo se rege, e tem de executar esse trabalho como quem executa uma
empreitada, sem que o grau de dificuldade ou a busca de mais perfeição
sejam tidos em conta. A mais premente e mais pesada dessas cláusulas é,
invariavelmente, o prazo. O prazo é, quase sempre, um mecanismo assus­
tador, que, qual guilhotina, está suspenso sobre a cabeça do tradutor.
No caso presente, foi-me dado o prazo de um ano para fazer este
trabalho, porque a própria editora estava vinculada a compromissos de
edição que a tal a obrigavam.
Conhecendo bem a obra, não ignorei que o prazo era restricto, porém,
uma vez que me foi dada a liberdade de fazer a tradução como quisesse, ou
seja, em rima, em prosa, em verso branco, com ou sem rigor métrico, acei­
tei. Aceitei, sobretudo, porque era um desafio: ser-me-ia muito difícil ter a
oportunidade de traduzir o Orlando Furioso e descartá-la.
Conhecer bem uma obra, porém, é um facto que perde importân­
cia quando a abordamos com a intenção e os requisitos da tradução.
Tendo feito o primeiro canto em rima, seguindo, tanto quanto era pos­
sível segui-lo à pressa, o modelo de Ariosto, fiz contas e verifiquei que
o tempo não chegaria. Passei a fazer a tradução em decassílabos, para
lhe dar ao menos um ritmo, mas sem rima, e assim cheguei ao Canto
VIII. Olhei para trás, e não reconheci o poema de Ariosto, que, sem
dúvida, encontra o seu ritmo não só na narrativa, mas, acima de tudo,
na rima e na métrica. Retrocedi e refiz todos esses cantos em rima, e da
mesma forma prossegui, sujeita à crescente pressão do tempo que se
escoava e da extensão da obra, privada da possibilidade de um segun-
26 ORLANDO FURIOSO

do olhar ao trabalho que ia ficando feito ou de uma mudança de crité­


rio, tendo, como .preocupação única, avançar, avançar.
Numa tradução perde-se sempre alguma coisa, e creio que em
Ariosto é ainda mais fácil que se perca. Para além da mestria do autor,
há que ter em conta que a língua italiana e, particularmente, a língua
do Orlando Furioso, possui uma ductilidade que a nossa está longe de
possuir. Anima-me o conforto de a minha tradução ser, tanto quanto é
possível sê-lo dentro do espartilho da rima e do decassílabo, e nas con­
dições a que já aludi, fiel ao original, e dar a conhecer o conteúdo da
obra a quem não seja capaz de ler o texto de Ariosto.

O «Orlando» em português
A presente edição é a primeira tradução integral jamais feita deste
poema em língua portuguesa, contemplando os padrões rimático e
métrico da oitava de Ariosto.
Há notícia de uma tradução em prosa, de Salustiano da Silva Alves
de Araújo Susano, publicada no Rio de Janeiro em 1833. E, também
no Brasil, da tradução em oitavas de alguns episódios soltos do
Orlando Furioso, feita por Luiz Vicente De-Simoni, publicada no Rio
de Janeiro em 1843, incluída numa antologia de poetas italianos.
Em Portugal a obra foi sendo lida no original e em traduções, ver­
sões e resumos, em espanhol e francês, que proliferaram nos anos que
se seguiram à publicação da obra em Itália, e o interesse que imediata­
mente despertou está patente não só em várias passagens de Os
Lusíadas como, por exemplo, na obra de T homé Pinheiro da Veiga,
Fastigimia 1 , escrita em 1605 - uma perspicaz e jocosa crónica de cos­
tumes portugueses e espanhóis da época, em que abundam as referên­
cias, entre outros, a Ariosto, e as citações de versos e mesmo de oitavas
inteiras do Orlando Furioso, na língua original.
Fica por fazer um estudo aturado da receptividade e dos ecos que
o poema teve em Portugal e junto dos escritores e estudiosos portu­
gueses, que exigiria de mim tempo de que não dispus.
Em 1895 foi publicada no espaço lusitano, pelo editor David
Corazzi, uma tradução do poema de Ariosto, reduzido a prosa, da
autoria de Xavier da Cunha.
Antes dessa tradução, o poeta Gomes Leal ( 1848- 1921) fez, em
1889, uma versão do Canto I do Orlando Furioso, «vertido em lin­
guagem portuguesa» a partir de uma versão francesa da época.

1 Thomé Pinheiro da Veiga, Fastigimia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1 988 (reprod.
fac-similada da ed. de 1 9 1 1 da Biblioteca Pública Municipal do Porto) .
NOTA DA TRADUTORA 27

Recentemente, em 2002, foi publicada no Brasil uma tradução


parcial, em rima, do poema de Ariosto (os oito primeiros cantos e mais
alguns episódios soltos), da autoria de Pedro Garcez Ghirardi, profes­
sor de Literatura Italiana na Universidade de São Paulo 2 • Trata-se de
uma tradução que respeita a métrica original das oitavas de Ariosto.

Critérios de tradução

Sobre alguns critérios de tradução, gostaria de esclarecer, no tocan­


te a nomes, que os mesmos mantêm a grafia que apresentam no origi­
nal, exceptuando as individualidades históricas com relevância univer­
sal cujo nome já tem uma versão na nossa língua (aplicando-se idênti­
co critério aos nomes geográficos), as figuras mitológicas e bíblicas, e as
figuras da literatura tradicional, como Merlim, Tristão e Isolda, etc.,
que também já possuem· uma versão própria na nossa língua.
Notará o leitor uma dualidade na grafia de alguns dos nomes próprios,
como é o caso de Ruggiero/Ruggier, Pinabello/Pinabel, Grifone/Grifon,
Brunello/Brunel, e outros mais, que reproduz a dualidade que se veri­
fica no original, constituindo um recurso de grande utilidade para a
rima e também para a métrica.
Ariosto faz uso muito frequente do poliptoto, isto é, da repetição
da mesma palavra, com formas gramaticais diversas - ou apenas com
um sentido semântico diverso -, em posição de rima. Alguns casos há
em que recorre à repetição de uma palavra, mesmo sem mudança de
forma gramatical ou semântica, procurando talvez um efeito enfático,
como sucede no Canto VI, oitava 48, em que usa três vezes a palavra
«outros» em posição de rima. Na medida do possível, reproduzi na tra­
dução, no todo ou em parte, esses efeitos.
Nos vv. 1 e 2 da oitava 32 do Canto XLI, separei com hífen, de um
verso para o outro, a palavra «sobrevestes», e no Canto XLIII, oitava
105, separei do mesmo modo, do v. 3 para o v. 4, a palavra «precisa­
mente», reproduzindo idênticos processos do original.
Encontra-se por vezes, em duas oitavas seguidas, a mesma rima,
chegando a ocorrer, nas duas, uma mesma palavra (ex: «mano/mão» em
XV, 81-82, e «allora/hora», em XLIII, 147-148). Há casos esporádicos
de oitavas que têm a mesma rima nos seis primeiros versos: veja-se a
oitava 6, do Canto XXXIII, em que se faz a aproximação a um con­
junto de pinturas murais, representando factos que hão-de acontecer
no futuro; no original, cinco dos seis versos apresentam em posição de

2 L. Ariosto, «Orlando Furioso (cantos e episódios)», lntrod., Trad. e Notas de Pedro Garcez Ghirardi,
Ateliê Editorial, Granja Viana-Cotia-SP, 2002.
28 ORLANDO FURIOSO

rima um particípio verbal com terminação em «ate/adas», e o outro um


presente do conjuntivo, que em italiano tem igual terminação. A insis­
tência nos particípios passados talvez pretenda enfatizar a passividade
que essa forma verbal transmite, uma vez que se trata de factos que
estão «adormecidos», à espera da hora justa para acontecerem.
Esforcei-me para acompanhar, sempre que possível, os efeitos que
atrás referi, bem como outros mais pontuais, pois não são de modo
nenhum despiciendos. Ariosto procura-os deliberadamente, moldando
e sujeitando as palavras e os versos, para conferir ao poema agilidade e
desafectação. Compraz-se em brincar com as palavras e em surpreen­
der o leitor, obrigando-o por vezes a reler, para confirmar a exactidão;
como sucede, por exemplo, no Canto XLIII, oitava 93, v. 8: perché
non ha ne la sua fede fede («que ele não tenha na sua fé fé»).
A forma contínua que dei ao texto, sem separação das oitavas,
segue o modelo da edição da Einaudi (Torino, 1998) que usei na tra­
dução. Esta forma parece-me ser a que melhor acompanha e enfatiza a
fluidez e a despretensiosidade narrativa do texto, acentuadas também
pelo recurso assíduo ao enjambement.
Finalizo, formulando a esperança de que esta tradução chegue a
muitos leitores, e que através dela possam descobrir o génio de Ariosto
e fruir do prazer que a leitura do seu poema proporciona.

Margarida Periquito
NOTA ÀS ILUSTRAÇÕES

Q
ando pensámos em editar o «Orlando Furioso» ocorreu-nos
que seria perfeito incluir as magníficas ilustrações que, no
século XIX, Gustave Doré realizou para esta obra. Mal sabía­
mos, então, as dificuldades que se nos deparariam. Se a nossa intenção
inicial era incluir todas as gravuras existentes, cedo descobrimos a
impossibilidade de tal projecto. Isto porque as mais de 650 gravuras do
famoso ilustrador francês nunca mais foram reproduzidas em livro na
sua totalidade, desde a primeira edição da obra em língua francesa (da
Hachete), datada de 1879, à qual não conseguimos aceder.
A nossa investigação levou-nos a duas outras edições, igualmente
difíceis de encontrar, mas que acabaram por servir de base para a selec­
ção das cerca de 450 gravuras incluídas no presente volume: a edição de
Armando Curcio editore, s.l., de 1957, e a belíssima edição de Fratelli
Treves editori, Milão, 19 14.
Apesar de nenhuma destas edições comportar, mesmo em conjun­
to, a totalidade dos desenhos e gravuras originais de Doré (muitas das
quais continuamos curiosos em um dia descobrir), pensamos que a
selecção por nós feita seja mais que suficiente para completar, com uma
descrição visual dos lugares e personagens imaginados por Ariosto, a
profunda beleza do seu poema.

Os Editores
GUIA À LEITURA

CANTO I

Exórdio (matéria do poema, invocação e dedicatória) - Antecedentes


- Fuga de Angelica - Encontros, desencontros e recontros na flores­
ta (Rinaldo, Ferraú, Sacripante, Bradamante).

CANTO II

Duelo entre Sacripante e Rinaldo - Nova fuga de Angelica -


Encontro com o eremita necromante - Rinaldo a caminho de
Inglaterra - Bradamante, em busca de Ruggiero, encontra-se com
Pinabello - Traição de Pinabello.

CANTO III

Bradamante na gruta de Merlim e profecia do mago - Melissa faz


desfilar ante Bradamante a sua futura descendência e dá-lhe conselhos
para libertar Ruggiero do castelo de Atlante - Bradamante encontra
Brunello.
32 ORLANDO FURIOSO

CANTO N

Bradamante desembaraça-se de Brunello, ilude Atlante e liberta


Ruggiero - Ruggiero é levado pelos ares, montado no hipogrifo -
Rinaldo é arrastado para a Escócia por uma tempestade, e salva Dalinda.

CANTO V

Dalinda conta a Rinaldo a história de Ginevra, condenada à morte


por suposta infidelidade - Rinaldo luta com Polinesso e liberta
Ginevra, anulando a cruel lei da Escócia.

CANTO VI

Ginevra desposa Ariodante - Ruggiero chega à ilha de Alcina -


Diálogo entre Ruggiero e Astolfo, transformado em mirto - Ruggiero
pretende ir para o reino de Logistilla, mas os monstros barram-lhe o
caminho - Ruggiero é seduzido e guiado para o reino de Alcina.

CANTO VII

Depois de derrotar Erifilla, Ruggiero é recebido por Alcina, de cujos


encantos e luxúria fica cativo - Bradamante reencontra Melissa e dá-lhe
o anel mágico, para que liberte Ruggiero - Melissa desmascara Alcina.

CANTO VIII

Ruggiero deixa o reino de Alcina e dirige-se para o de Logistilla -


Rinaldo, em Inglaterra, obtém reforços para Carlos Magno -
Angelica, vítima do eremita, é raptada e levada para a ilha de Ebuda,
para servir de alimento ao monstro marinho - Pesadelos de Orlando,
que parte em demanda de Angelica.
GUIA À LEITURA 33

CANTO IX

Orlando, procurando Angelica, encontra Olimpia e ouve a sua tris­


te história - Orlando derrota Cimosco e liberta Birena - Orlando
afunda o arcabuz em alto-mar - Casamento de Olimpia e Birena.

CANTO X

Birena abandona Olimpia numa ilha deserta -· Lamento de


Olimpia - Ruggiero deixa o reino de Logistilla, regressa ao Ocidente
no hipogrifo e vê a parada dos exércitos perto de Londres - Ruggiero
salva Angelica de ser devorada pelo monstro.

CANTO XI

Angelica foge de Ruggiero graças ao anel mágico, que a torna invi­


sível - Ruggiero prisioneiro no palácio de Atlante - Orlando chega
a Ebuda, mata o monstro marinho e salva Olimpia - Oberto, rei da
Irlanda, desposa Olimpia.

CANTO XII

Orlando aprisionado no palácio de Atlante - Angelica liberta Orlando,


Ferraú e Sacripante do palácio encantado - Duelo entre Ferraú e Orlando,
pelo elmo deste - Angelica parte, só e invisível - Orlando massacra as for­
ças sarracenas - Numa gruta, Orlando descobre uma jovem aprisionada.

CANTO XIII

Isabella narra as suas desventuras a Orlando, que dizima os ladrões


e a liberta - Bradamante reencontra Melissa, que lhe fala das mulhe­
res estenses - Também Bradamante se deixa aprisionar por Atlante.
34 ORLANDO FURIOSO

CANTO XIV

Agramante e Marsilio passam em revista os seus exércitos -


Mandricardo rapta Doralice, noiva de Rodomonte - O arcanjo
Miguel procura a Discórdia, para a enviar para o campo sarraceno -
Paris é assaltada pelos exércitos sarracenos.

CANTO XV

Rodomonte entra em Paris - Salvo por Melissa, Astolfo viaja para o


Ocidente; no Egipto, vence os gigantes Caligorante e Orrilo - Grifone e
Aquilante partem com Astolfo para a Palestina, onde encontram Sansonetto.

CANTO XVI

Grifone parte em busca de Orrigille, que o traiu - Rinaldo,


Zerbino e as forças vindas de Inglaterra desbaratam os Mouros no cerco
de Paris - Dentro da cidade, Rodomonte lança morte e destruição.

CANTO XVII

Carlos Magno e seus' paladinos contra Rodomonte - Grifone,


Orrigille e Martano em Damasco - História de Norandino e Lucina,
vítimas do Orco - Martano e Orrigille tramam cilada contra Grifone.

CANTO XVIII

Rodomonte retira-se de Paris e encontra o anão - Prossegue o


combate em Paris - A Damasco, onde Grifone luta ferozmente, che­
gam Sansonetto, Astolfo, Aquilante e Marfisa - Na batalha de Paris,
Rinaldo mata Dardinello e as forças cristãs levam a melhor - De
noite, Cloridano e Medoro procuram o cadáver de Dardinello.
GUIA À LEITURA 35

CANTO XIX

Cloridano e Medoro surpreendidos quando tentam sepultar


Dardinello; o p rimeiro morre, o segundo é gravemente ferido -
Angelica encontra Medoro, trata-o e enamora-se dele; dirigem-se
ambos para o Oriente - Marfisa e eis companheiros chegam .à terra das
mulheres homicidas.

CANTO XX

Guidone Selvaggio conta a história das mulheres homicidas - Efeitos


mágicos do corno de Astolfo - Fuga para França, deixando Astolfo em
terra - Marfisa separa-se dos outros e encontra Gabrina - Zerbino, ven­
cido em duelo por Marfisa, é obrigado a levar Gabrina consigo.

CANTO XXI

Ermonide da Holanda conta a Zerbino a história da p érfida


Gabrina - Ermonide morre e Zerbino prossegue caminho com
Gabrina.

CANTO XXII

Astolfo regressa ao Ocidente, desfaz o encanto do palácio de


Adante e fica com o hipogrifo - Bradamante e Ruggiero reencon­
tram-se e seguem juntos - Enquanto Ruggiero combate no castelo de
Pinabello, Bradamante reconhece Pinabello, persegue-o e mata-o -
Bradamante e Ruggiero de novo sep arados.
36 ORLANDO FURIOSO

CANTO XXIII

Bradamante encontra Astolfo e regressa a Montalvão - Ippalca


encontra Rodomonte - Gabrina acusa Zerbino da morte de Pinabello
- Orlando salva Zerbino e restitui-lhe lsabella - Duelo entre
Orlando e Mandricardo - Orlando chega ao lugar onde Angelica e
Medoro se amaram e enlouquece.

CANTO XXIV

Fúria destruidora de Orlando - Zerbino condena o traidor


Odorico a levar consigo Gabrina; ele e lsabella encontram os sinais da
loucura de Orlando - Mandricardo apodera-se da espada Durindana,
que Orlando abandonou - Morte de Zerbino - Duelo entre
Mandricardo e Rodomonte.

CANTO XXV

Trégua entre Mandricardo e Rodomonte, para irem em auxílio de


Agramante - Ruggiero salva Ricciardetto, que lhe narra a sua história
com Fiordispina - Do castelo de Agrismonte, Ruggiero e Ricciardetto
vão, com Aldigieri, em socorro de Malagigi e Viviano.

CANTO XXVI

Marfisa participa na libertação de Malagigi e Viviano - Malagigi


explica o significado das imagens da fonte de Merlim - Encontro de
Ruggiero e Ippalca - Duelo de Mandricardo e Marfisa - Rodomonte
e Mandricardo vão no encalço de Doralice - Ruggiero e Marfisa
seguem para Paris.
GuIA À LEITURA 37

CANTO XXVII

Rinaldo sai de Paris, em busca de Angelica - Mandricardo,


Rodomonte, Marfisa e Ruggiero juntam-se às hostes sarracenas que
atacam o campo cristão junto a Paris, mas a Discórdia provoca quere­
las entre os Mouros - Agramante, tentando pôr-lhes termo, propõe a
Doralice que escolha entre Rodomonte e Mandricardo, e ela prefere
Mandricardo - Rodomonte afasta-se, irado, com o propósito de
regressar a África.

CANTO XXVIII

Rodomonte escuta, de um taberneiro, a história picante de


Fiammetta, Astolfo e Jocundo - Rodomonte decide instalar-se num
lugar agradável do litoral, no Sul de França. Ali chega Isabella, levando
o corpo de Zerbino - Rodomonte apaixona-se instantaneamente por
Isabella.

CANTO XXIX

Morte heróica de Isabella, para se subtrair à cobiça de Rodomonte,


que constrói um mausoléu para ela e Zerbino, e uma ponte onde desa­
fia todos os que por ali passam - Orlando, louco, luta com
Rodomonte - Angelica, em fuga com Medoro, cruza-se com Orlando
perto de Barcelona, mas não se reconhecem.

CANTO XXX

Deambulações de Orlando, espalhando morte e destruição; atra­


vessa a nado o estreito de Gibraltar e passa ao continente africano -
Mandricardo morre em duelo com Ruggiero, que fica ferido -
Suspeitas e ciúmes de Bradamante em Montalvão, perante a ausência
de Ruggiero e por sabê-lo em companhia de Marfisa.
38 ORLANDO FURIOSO

CANTO XXXI

Guidon Selvaggio encontra-se com Rinaldo, seu meio-irmão, e


seguem para Paris, onde sabem, por Fiordiligi, da loucura de Orlando
- Agramante, derrotado, retira-se para Arles - Fiordilígi e
Brandimarte reencontram-se; passam pela ponte de Rodomonte e
Brandimarte é feito prisioneiro - Gradasso desafia Rinaldo para um
duelo pela espada Durindana.

CANTO XXXII

Lamento de Bradamante, à espera de Ruggiero - Bradamante


decide partir para Paris; encontra Ullania e os três reis, que transpor­
tam o escudo de ouro da rainha da Ilha Perdida - Bradamante no cas­
telo de Tristão, e as estranhas regras ali em uso para obter alojamento.

CANTO XXXIII

Numa sala do castelo de Tristão estão pintadas, em antevisão, as


incursões dos Franceses em Itália - Bradamante derrota e humilha os
três reis - Duelo entre Rinaldo e Gradasso - Gradasso apodera-se do
cavalo Baiardo e falta à palavra dada - Astolfo� montado no hipogri­
fo, chega à Etiópia, onde liberta Senapo do flagelo das Harpias.

CANTO XXXIV

Astolfo no Inferno - Astolfo no Paraíso terrestre - Astolfo vai à Lua


com S. João evangelista para recuperar o juízo de Orlando, pois na Lua
está tudo o que se perde na Terra - Astolfo visita o palácio das Parcas.
GUIA À LEITURA 39

CANTO XXXV

Astolfo no templo da Imortalidade e do Tempo - Bradamante


encontra Fiordiligi, que lhe pede para libertar Brandimarte -
Bradamante derrota Rodomonte e recupera o cavalo Frontino, mas não
Brandimarte, já enviado para África - Rodomonte, humilhado,
esconde-se numa gruta - Bradamante chega a Arles, desafia Ruggiero
e luta com vários cavaleiros sarracenos.

CANTO XXXVI

Duelo entre Bradamante e Marfisa - Bradamante, Ruggiero e


Marfisa junto ao túmulo de Atlante, cuja voz lhes revela que Ruggiero
e Marfisa são irmãos - Marfisa decide converter-se ao cristianismo e
ir com Bradamante prestar auxílio a Carlos Magno.

CANTO XXXVII

Marfisa, Bradamante e Ruggiero encontram três damas seminuas, ofen­


didas por Marganorre - História de Cilandro e Tanacro - Bradamante,
Marfisa e Ruggiero punem Marganorre e põem fim à sua cruel lei misógi­
na - Ruggiero regressa a Arles, Marfisa e Bradamante seguem para Paris.

CANTO XXXVIII

Carlos Magno organiza os festejos, e Marfisa é baptizada por


Turpino - Astolfo regressa à Terra com poderes especiais, cura a
cegueira de Senapo, apetrecha o seu exército, transforma pedras em
cavalos e vai atacar Bizerta - Em França, concílio dos reis africanos,
que determina um duelo entre Rinaldo (por Carlos Magno) e Ruggiero
(por Agramante).
40 ORLANDO FURIOSO

CANTO XXXIX

Melissa intervém e põe fim ao duelo entre Ruggiero e Rinaldo -


Em África, Astolfo liberta Dudone e dá-lhe o comando de uma frota
que cria, transformando folhas de árvores em navios - Chegada dos
cavaleiros que Rodomonte aprisionara - Orlando é dominado e
Astolfo restitui-lhe o juízo - Agramante foge para África, mas a sua
frota é destruída por Dudone.

CANTO XL

Tomada de Bizerta por Orlando, Astolfo e companheiros - O navio


de Agramante é arrastado para uma ilha pela tempestade - Agramante
propõe a Orlando uma luta decisiva, três contra três, na ilha de
Lipadusa - Ruggiero quer voltar a África para apoiar os Sarracenos, e
trava uma justa com Dudone em Marselha.

CANTO XLI

O navio de Ruggiero é surpreendido por uma tempestade -


Preparativos e partida para a batalha de Lipadusa (Orlando, Oliviero e
Brandimarte contra Agramante, Gradasso e Sobrino) - Ruggiero, a
nado, vai ter a uma ilhota, onde um eremita o catequiza e baptiza -
Profecia do futuro de Ruggiero - Batalha de Lipadusa - Morte de
Brandimarte.

CANTO XLII

Orlando vinga a morte de Brandimarte - Rinaldo parte no encal­


ço de Angelica, passa junto à fonte do desamor, bebe e liberta-se da pai­
xão - Rinaldo conhece o palácio do cavaleiro de Mântua, que lhe pro­
põe que faça o teste do cálice dos maridos enganados.
GUIA À LEITURA 41

CANTO XLIII

Rinaldo recusa beber do cálice - O cavaleiro conta a sua história


- Rinaldo ouve de um barqueiro uma segunda história de infidelida­
de - A batalha já terminou quando Rinaldo chega a Lipadusa -
Lamento de Fiordiligi - Funeral de Brandimarte em Agrigento -
Cura milagrosa de Oliviero, conversão de Sobrino e reencontro com
Ruggiero, na ilhota.

CANTO XLIV

Rinaldo promete a mão da irmã, Bradamante, a Ruggiero, mas, já em


França, os pais opõem-se, preferindo Leone, futuro imperador - Astolfo
regressa a França no hipogrifo, depois de desfazer os encantos - Ruggiero
parte incógnito, para ir lutar ao lado dos Búlgaros contra Costantino, pai
de Leone - O seu valor é admirado pelos aliados e por Leone.

CANTO XLV

Ruggiero, feito prisioneiro pelo imperador, é libertado por Leone;


grato, Ruggiero promete ajudá-lo a conquistar Bradamante, que fez
saber que só desposará o homem que a vencer em duelo - Ruggiero,
disfarçado de Leone, combate com Bradamante e vence-a, e depois
foge e esconde-se - Marfisa e os outros cavaleiros opõem-se ao casa­
mento de Bradamante com Leone.

CANTO XLVI

O navio, metáfora do poema, chega ao porto, e a esperá-lo estão


todos os homens e mulheres ilustres do tempo de Ariosto - Melissa
intervém junto de Leone, revelando a verdade acerca de Ruggiero; Leone
cede-lhe todos os direitos sobre Bradamante - Ruggiero é eleito rei dos
Búlgaros - Núpcias de Ruggiero e Bradamante - Surge Rodomonte,
em busca de vingança. Trava duelo com Ruggiero, que o mata.
Orlando Furioso,
de Messer Ludovico Ariosto
ao Ilustríssimo e Reverendíssimo Cardeal
Dom Ippolito de Este, seu Senhor

CANTO I

Damas, cavaleiros, armas e amores,


cortesias e audazes feitos canto,
do tempo em que o mar Mouros vingadores
passaram, para França molestar tanto,
seguindo a ira e j uvenis furores
do rei de África, Agramante 1 , porquanto
ousou vingar a morte de Troiano
em rei Carlos, imperador romano2 •
2 Direi de Orlando 3 , simultaneamente,
o que nunca foi dito em prosa ou rima:
por amor ficou furioso e demente,
tendo antes de sensato fama opima;
se a que quase me fez o equivalente\
e o pouco engenho sem cessar me lima,
permitir que eu conserve o requerido
para levar a bom fim o prometido.
48 ORLANDO FURIOSO

3 Dignai-vos, hercúlea prole5 generosa, 9 em prémio a prometeu ao mais rapace,


ornamento e esplendor do tempo nosso, que maior cópia, na grande batalha,
Ippolito, aceitar o que vos ousa de Mouros infiéis ceifar lograsse,
e pode dar o húmil servo vosso. e obra feita mostrasse com mais valha.
Parte do que devo, em obra verbosa Mas, o oposto ao que esperavam, dá-se,
a tinta gravada pagar-vos posso; e a gente baptizada em fuga espalha;
de pouco vos dar culpável não sou, com outros viu-se o duque na prisão,
pois, quanto dar-vos posso, tudo dou. ficando ao abandono o pavilhão.
4 Ireis ouvir, entre os dignos heróis 10 Onde, logo que chegara, a donzela
que para citar com louvor me aparelho, que prémio seria para o vencedor,
lembrar Ruggiero6 , de quem neto sois, antes do caso, subira para a sela,
de vossa ilustre prole o cepo velho. e escapou quando houve ocasião melhor,
Seu valor e ilustres gestas, pois, pressentindo que desse dia a estrela
escutareis, dando ouvido a meu conselho, aos cristãos daria enganoso alor;
e se vossos pensamentos cederem penetrou num bosque, e na estreita via
lugar para meus versos neles caberem. um cavaleiro encontrou, que a pé ia.
5 Orlando, que há muito se enamorara 11 Couraça vestida e elmo na testa,
de Angelica7 , e que pelos encantos seus à cintura a espada e no braço o escudo,
na fndia, Média e Tartária8 deixara corria mais ligeiro pela floresta
inumeráveis e imortais troféus, que para vencer páreo 1 2 aldeão desnudo.
com ela ao Ocidente regressara, Tímida pastora nunca tão lesta
onde, cerca dos montes Pirenéus, seu pé virou, ante réptil sanhudo,
com os de França e os da Alemanha, como Angelica o freio contorceu,
Carlos armara as tendas de campanha, logo que o guerreiro reconheceu.
6 para que o rei Marsilio 9 e o rei Agramante 12 Era ele aquele paladim galhardo
pagassem cara a sua ousada chança; filho de Amon, senhor de Montalvão 13 ,
um, porque trouxe de África adiante a quem pouco antes seu corcel, Baiardo 14 ,
o povo apto a usar espada e lança; lhe escapara, coisa estranha, da mão.
e o outro, por levar a Espanha avante A olhar a donzela não foi tardo:
à destruição do reino de França. conheceu, mesmo de longe, a feição,
Orlando chegou quando era exigido, a angélica figura, o rosto belo
mas bem se arrependeu de lá ter ido, que em malhas de amor lograra prendê-lo.
7 pois sua dama ali lhe foi tirada: 13 Dá meia volta a dama ao palafrém,
eis como o juízo humano amiúde erra! e pela floresta o lança a toda a brida;
De Vésper a Eos 1° , em tanta jornada quer pela rala quer pela basta, porém,
ele a defendera, em tão longa guerra, a escolher a via é desprevenida:
e entre gente amiga ora lhe é furtada, pálida, louca, deixa com desdém
sem uso de espada e na sua terra. que a via seja pelo corcel escolhida.
O imperador, que extinguir maquinou Acima, abaixo, pela selva altaneira
um grave incêndio, foi quem lha tirou. tanto girou que achou uma ribeira.
s Nascera havia pouco uma porfia 14 Da ribeira Ferraú 1 5 se abeirara,
entre o conde Orlando e Rinaldo, o primo; todo suado e muito polvoroso.
pois cada um por Angelica ardia Pouco antes, da batalha o apartara
de amoroso desejo no seu imo. desejo de beber e de repouso;
Carlos, que a tenção com maus olhos via, mas depois, contrafeito, ali ficara,
por assim lhe darem menos arrimo, porque, sôfrego e pouco cauteloso,
a donzela, que motivo disso era, o elmo no rio deixara tombar,
deu a guardar ao duque da Baviera 1 1 ; e não o conseguia recuperar.
CANTO I 49

15 O mais alto que era possível, vinha 1s Longo tempo se esforçaram em vão,
a gritar a donzela espaventada. cada um querendo o outro derribar,
Salta, ao ouvir, para a margem ribeirinha pois tanto valor com a arma na mão
o mouro, e no rosto lhe pousa a mirada; tinha, qualquer deles, como o seu par;
e reconhece-a assim que se avizinha, foi primeiro o senhor de Montalvão,
apesar de pálida e perturbada; a o cavaleiro de Espanha alertar,
há muito não tinha notícia dela, como quem tem no peito tanto fogo
mas não duvida: é Angelica bela. que todo arde, sem ter desafogo.
16 Como era cortês, e tanto, talvez, 19 Disse ao pagão: - Crês que só a mim dás
como os primos por ela tinha amor, desaire, mas teu inimigo és;
aquilo que podia fazer, fez: se a luz do novo sol 1 6 teu peito faz
como se elmo houvesse, com pundonor, incendiar, e se algum ganho vês
sua espada empunhou para dar revés em me reter, tu, o que ganharás?
a Rinaldo, a quem não tinha temor. Ao teres-me morto ou preso como crês,
Não só muitas vezes se tinham visto, não será tua a dama mesmo assim,
como em provas de armas tinham registo. pois em fuga se pôs neste interim.
17 Deram início a uma feroz batalha: 20 Quão melhor será, se a amas deveras,
apeados ambos, gládios brandiam; que ligeiro vás na sua peugada,
aos golpes, couraças, cotas de malha, pois para detê-la é melhor se não esperas,
ou mesmo bigornas não resistiam. antes de estar daqui mais afastada!
Mentres cada um o outro trabalha, Tendo-a em poder, com praxes severas
estugando o passo bicho e dama iam; se decide de quem será, pela espada;
incitando o bicho a dar mais à perna, pois nada deve esta contenda ao siso,
por campos e bosques com ele se interna. e dela só colhemos prejuízo. -
50 ORLANDO FURIOSO

21 A proposta ao mouro não desprazeu, 24 Uma vez mais junto à ribeira estando,
e a peleja afrouxou nesse momento; lá onde o elmo na água caiu,
foi tal a trégua que entre eles nasceu, e a dama de encontrar desesperando,
passando o ódio e a ira ao esquecimento, para ter o elmo que lhe esconde o rio
que o pagão ao seu rival ofereceu para o sítio onde tombou vai caminhando,
na sua montada cómodo assento: e desce até à beira do baixio;
de tão instado, sobe para a garupa, mas tão enterrado ele está no leito
e só o rasto da dama os ocupa. que muito apalpará sem ter proveito.
22 Oh, bondade dos cavaleiros antigos! 25 Um ramo de árvore, de folhas mundo,
Eram rivais, eram de fé diferente, serviu-lhe para fazer a longa vara
e, de se infligirem cruéis castigos, com que tenteia o rio até ao fundo,
toda a pessoa os dois tinham dolente; sondando com denodo a água avara.
mas, por selvas, atalhos, desabrigas, Com a maior irritação do mundo,
juntos vão, sem que suspeita os atente. já muito em sua busca se obstinara,
Por quatro esporas o corcel picado, quando do rio se ergueu um cavaleiro
chega a um caminho em dois bifurcado. até à cinta, de aspecto altaneiro.
23 E, uma vez que não sabiam se uma 26 Estava, excepto a cabeça, todo armado,
ou outra via tomara a donzela e mostrava um elmo na destra mão:
(pois em ambas, sem diferença nenhuma, era o mesmo elmo que tão buscado
se via inda fresca a pegada dela) , foi por Ferraú tanto tempo, em vão.
tiraram à sorte, e em seguida ruma Falou a Ferraú em tom irado:
Rinaldo a esta, e o sarraceno àquela. - Ó marrano mentiroso, ó pagão!
Pelo bosque Ferraú muito girou, Por que deixar o elmo aqui não querias,
e, donde partira, outra vez voltou. se de tão longa data mo devias?
CANTO I 51

27 Lembra-te, pagão, que quando mataste 33 Foge por selvas medonhas e escuras,
de Angelica o irmão (que tal sou eu) , lugares desertos, ermos e selvagens.
após as outras armas me juraste De azinhos, faias, abetos, verduras,
que ao rio lançarias este chapéu. o sussurrar de frondes e folhagens
Se ora a Sorte (o que tu não realizaste) fizeram-na por montes e planuras
permite que se cumpra o gosto meu, errar, assustada, em estranhas viagens;
não te amofines; e se amofinares, se em monte ou vale alguma sombra via,
que seja por à promessa faltares. temia ser Rinaldo que a seguia.
28 Se desejo tiveres dum elmo fino, 34 Lembrava juvenil gamo ou gazela
tenta arranjar outro, e com mais honor; que, de entre os ramos do bosque natal,
como o que tem Orlando, o paladino, da mãe tenha visto apertar a goela
ou Rinaldo, talvez inda melhor: o leopardo, em abraço mortal;
um foi de Almonte 1 7 , o outro de Mambrino 1 8 • de selva em selva foge da esparrela,
Conquista um desses dois com teu valor; tremendo e receando sorte igual;
este, que já me devias por preito, e, a cada galho que passando toca,
farás bem em deixar-mo, com efeito. - da ímpia fera já se crê na boca.
29 Ao surgir-lhe o fantasma de improviso 35 Aquele dia e a noite, e mais meio,
da água, seu pêlo todo eriçou-se, cavalgou ao acaso, errando à toa.
e descolorido mostrou o viso; Por fim a um ameno bosque veio,
a voz, que era para sair, encravou-se. que uma leve e fresca brisa abençoa.
E Argalia 1 9 , que em tal sítio preciso De dois claros rios soa o gorjeio,
matara (Argalia identificou-se) , e erva tenra sempre o chão acolchoa.
ouvindo-o de falsa jura acusar, Por entre seixos fluem vagarosas
de ira e vergonha se sentiu corar. as águas, ao ouvido deleitosas.
30 Sem tempo ter para pensar noutra escusa, 36 Parecendo-lhe encontrar-se ali segura,
e bem sabendo que a verdade ouviu, de Rinaldo mil milhas já partida,
calado fica, resposta não usa; exausta de correr e da quentura,
mas tanto opróbrio o peito lhe oprimiu a repousar ali está decidida:
que ali jurou, pela vida de Lanfusa20 , desmonta, deixando a cavalgadura
outro elmo não querer ter, e decidiu pascer-se, já aliviada da brida;
que só lhe convinha o que em Aspramonte2 1 vagueia junto à água o palafrém,
Orlando arrebatara ao fero Almonte. que de erva tenra a margem plena tem.
31 E cumpriu melhor este juramento 37 Não longe, avista um frondoso maciço
que o outro que fizera a Argalia. de rosas vermelhas e pilriteiro:
Dali foi-se embora tão rabujento na margem do caudal colhe o seu viço,
que se mortificou mais do que um dia. oculto do sol por querco altaneiro;
O paladim buscar é seu intento, seu âmago, vazio como um cortiço,
por todo o lado onde que estava cria. dá abrigo discreto e prazenteiro.
Sorte diferente a Rinaldo tocou, Ramos e folhas são tão intricados
que vias diversas deste tomou. que interditam sol e olhares aguçados.
32 Não anda Rinaldo muito e dá fé 38 De tenras ervinhas o chão se cobre,
de que à frente salta o corcel feroz: chamando ao repouso quem aparece.
- Pára, Baiardo meu, detém o pé, Ali, a bela donzela se encobre,
que estar sem ti, para mim, é dano atroz! - depois deita-se e depressa adormece.
O corcel não dá ouvidos, e até Mas eis que resulta seu sono pobre,
mais se afasta, e cada vez mais veloz. pois sons de passos logo reconhece:
Rinaldo, irado, atrás o passo estuga; silente se ergue, e vê que um cavaleiro
sigamos nós Angelica na fuga. armado chegara junto ao ribeiro.
52 ORLANDO FURIOSO

39 Se amigo ou inimigo é, não entende: 45 Se alguém quiser saber, por pertinácia,


temor e esperança o coração lhe agita; quem no rio verte tal choro abundante,
e daquela aventura o fim atende, eu respondo que é o rei da Circássia24 ,
mas nem um suspiro no ar palpita. o que o amor tem ferido, Sacripante25 ;
Para a beira-rio o cavaleiro propende, e direi que da dor a contumácia
e no braço repousa a face aflita; tem por única causa o ser amante:
em tão profundo pensamento medra, é um dos amantes desta donzela,
como se feito de insensível pedra. e reconhecido já foi por ela.
40 Mais de uma hora assim esteve à porfia, 46 Para onde o Sol se põe, por seu amor,
senhor22 , o cavaleiro tão dolente; tinha ele vindo do extremo Oriente;
depois, um som tão pungente emitia, pois na fndia soube, com grande dor,
a lamentar-se mui suavemente, que Orlando ela seguira para Poente;
que pedras, de piedade, quebraria, soubera em França que o imperador
e feroz tigre faria clemente. à parte a pusera da demais gente:
Tanto chorava que dum rio o leito para dá-la àquele dos dois que contra o Mouro
parecia a face, e um Mongibello23 o peito. maior vantagem desse aos Lírios de Ouro 26 •
41 - Tormento (disse) de que gela e arde 47 No campo de batalha ele estivera,
meu coração, e que o corrói e lima, sabendo ali da derrota do Galo27 ;
o que posso eu fazer, se cheguei tarde vestígio de Angelica achar quisera,
e outro fez, antes, do fruto vindima? mas não conseguira ainda encontrá-lo.
Só palavras e olhares tive (cobarde!) É essa a notícia que o desespera
e outro colheu a recompensa opima! e lhe provoca tão profundo abalo,
Se não alcançarei fruto nem flor, fazendo-o lamentar-se, e em tom falar,
por que me dás, coração, tanta dor? capaz de o Sol, de piedade, parar.
42 A pucela é comparável à rosa 4s Enquanto Sacripante se amofina,
que em seu jardim, presa à nativa espina, fazendo dos olhos tépida fonte,
enquanto só e segura repousa, e com mais queixas faz tal serrazina
rebanho ou pastor não a descortina; que necessário não será vos conte,
a brisa suave e a alva orvalhosa, quer o mero acaso da sua sina
a água, a terra, em seu favor se inclina; que Angelica as escute, ali defronte:
jovens e donzelas apaixonados eis que em raro instante o destino tece
o peito e a fronte usam com ela ornados. coisa que em mil anos não acontece.
43 Porém, logo que da materna haste 49 Atentíssima está, de ouvido em riste,
é retirada e de seu caule verde, Angelica ao pranto, à voz e aos modos
favor, graça e beleza, por contraste, daquele que de amá-la não desiste;
que de homens e céu tinha, tudo perde. já escutara dele rogos a rodos,
A virgem a quem sua flor mais baste mas, dura e fria qual coluna, existe
que a sua vida, e os lindos olhos que herde, nela a impiedade que tem por todos;
se um colhê-la deixa, o apreço de antes como quem todos olha com desdém,
fenece no peito de outros amantes. porque digno de si não crê ninguém.
44 Seja para os outros vil, e amada em paga 50 Mas, nesses bosques sozinha andando ela,
por aquele a quem tanto de seu deu. pensa que este podia ter por guia;
Ah, Fortuna cruel, sorte aziaga!, pois quem na água está até à goela,
ganham outros e à míngua morro eu. não pedindo ajuda, tolo seria.
Já minha alma por isso a não afaga? Se esta oportunidade ela protela,
Posso por tal findar o viver meu? não encontra tão fiel companhia:
Quanto melhor será aqui morrer, já antes tivera prova abundante
que viver mais sem amá-la poder! - que era mais fiel que qualquer amante.
CANTO I 53

51 Porém, longe está da sua intenção 57 - Se não soubera o cavaleiro de Anglante30


alívio dar à ânsia do que a ama, desfrutar, por inépcia, o que à mão houve,
ou dar de outros danos compensação a perda é dele, porque de hoje em diante
com o prazer que o amante reclama: Fortuna não deixará que ele tal prove
algum fingimento e persuasão (de si para si dizia Sacripante) ;
nutrindo-lhe a esperança, eis tudo o que trama; intenção de imitá-lo não me move:
nesta falta, usá-lo como reserva; não desperdiço o bem que concedido
depois, voltar a ser dura e proterva. me é, para depois sentir-me arrependido.
52 Qual bela aparição que, ali escondida, 58 Colherei a fresca e matinal rosa
sua evidência súbito retome, que, tardando, frescura perderia.
surge, tal de selva ou gruta saída, Sei que à dama coisa mais deleitosa
Diana ou Vénus sobre o palco assome28 ; e que mais lhe agrade não se faria,
- A paz te assista (diz-lhe de seguida) ; ainda que se mostre desdenhosa,
Deus não permita que manches meu nome chorosa por vezes e fugidia;
e de mim tenhas, sem qualquer razão, não há-de ser falsa repulsa ou pejo
tão errada e tão falsa opinião. - óbice para saciar meu desejo. -
53 Com quanto júbilo e quanto estupor 59 Assim disse; mas, quando se abalança
uma mãe no filho os olhos pousou, ao doce assalto, grande rumor troa
depois de por morto o chorar de dor, e o ouvido lhe fere com intemperança;
crendo que sem ele a hoste voltou, contrafeito, seu intento acantoa,
o assombro e alegria não foi menor e põe o elmo (tinha por usança
do sarraceno, quando contemplou trazer sempre armada a sua pessoa) ,
o belo gesto, o angélico semblante corre para o cavalo, repõe�lhe a brida,
que de improviso lhe surgiu diante. e sobe para a sela de lança erguida.
54 De amoroso sentimento tomado, 60 Eis que do bosque um cavaleiro investe,
acorre à sua dama, à sua deia; de seu semblante homem gentil, guerreiro:
estreita-o ela pelo pescoço enlaçado, alva como a neve é a sua veste,
o que em Catai não faria sem peia. branco penacho no elmo altaneiro.
De ao pátrio reino, ao seu torrão amado Sacripante não se conforma que este
regressar com este ocorre-lhe à ideia; ali faça inoportuno carreiro,
nela renasce o repentino alento impedindo-lhe o prazer prenunciado;
de em breve rever seu rico aposento. olha-o com ar desdenhoso e irado.
55 Dá-lhe ela a conhecer com minudência 6 1 Mal se aproxima, chama-o à batalha,
o que desde que o mandou, ocorreu, fácil crendo derribá-lo da sela.
ao Oriente pedir assistência O outro, que julgo que menos valha
ao rei sericano e ao nabateu29 ; do que ele não tem, e dará prova dela,
e que Orlando a guardou com persistência as ameaças soberbas logo atalha,
e da morte e desonra a protegeu; esporas e lança ajeitando à procela.
que sua flor virginal preservara Rei Sacripante investe com furor,
como do ventre materno a herdara. e embatem-se os rivais de igual ardor.
56 Verdade talvez, porém coisa incrível 62 Leões ou touros, em ferino salto,
a quem do seu bom-senso for senhor; não são na investida tão sanhudos
pareceu a ele facilmente possível, como os guerreiros no calor do assalto,
pois estava perdido em mais grave error. que um ao outro trespassaram os escudos.
O que à luz está o amor torna invisível, O baque sacudiu de baixo a alto,
e o que é invisível faz ver Amor. dos verdes vales aos montes desnudos;
Fé fez; pois o desgraçado se atém por dita tinham arneses perfeitos,
a acreditar em quanto lhe convém. que lhes salvaram ilesos os peitos.
CANTO I 55

63 Os cavalos, desenfreados muito, 69 - Como bem vês, aqui me derribou


de cabeça chocam como carneiros: e lesto partiu (disse Sacripante) ;
o do guerreiro pagão caiu defunto, para que eu saiba quem assim me apeou,
ele, que em vida era um dos primeiros; não me deixes de seu nome ignorante. -
depressa o outro, que lhe caiu junto, E o arauto: - De bom grado te dou
se ergue ao sentir as esporas nos traseiros. as novas que pretendes, de rompante:
O do rei sarraceno ficou teso pois bem, sabe que te tirou da sela
em cima do dono, com todo o peso. a destreza duma gentil donzela.
64 O ignoto campeão que em pé ficou 70 É ainda mais bela que garbosa;
e o outro viu sob o corcel por terra, nem o seu famoso nome te escondo:
achando que de luta já bastou, foi Bradamante3 1 quem fez desonrosa
desinteressou-se de fazer mais guerra; a boa fama que tinhas avondo. -
a via que a selva corta tomou, Isto disse e foi, com pressa fogosa,
e a toda a brida dali se desferra; o sarraceno assim muito indispondo:
e, quando o pagão se desenvencilha, paralisado de fala ou acção,
já ele está dali a mais de uma milha. a face, de pudor, era um tição.
65 Qual camponês atordoado e aflito 71 Após muito no caso sucedido
que se ergue, após o raio ter passado, em vão haver reflectido, e, mormente,
donde estendido o estrépito inaudito por uma mulher ter sido abatido,
o deixara, em meio ao seu morto gado, quanto mais nisso pensa mais dor sente,
e vê, perdida a fronde e o gabarito, monta o outro corcel, emudecido;
o pinheiro de longe tão olhado, sem nada dizer, silenciosamente,
tal se levantou o pagão da arena, Angelica põe na grupa, fruí-la
assistindo Angelica à triste cena. diferindo para hora mais tranquila.
66 Suspira e geme, não de impaciência
ou porque braço ou perna molestara,
mas de vergonha, que em sua existência
nunca teve ou terá tão rubra a cara;
não só por cair, mas porque, em sequência,
do peso do corcel ela o livrara.
Mudo ficava, creio, se, dengosa,
ela não o chamasse à voz e à prosa.
67 - Ora, senhor (diz) , não vos agasteis!
Culpado não sois desta acrobacia,
mas o corcel, que de erva, convireis,
e de folga - e não justa - carecia.
Àquele guerreiro glória não dareis,
pois vencido mostrou ser neste dia:
pelo que sei, a vitória não cobiça
o que primeiro abandonar a liça. -
68 Enquanto anima o sarraceno assim,
de trompa e bornal pendentes no flanco,
surgiu a galope sobre um rocim
um mensageiro de fôlego estanco;
chegou-se a Sacripante o andarim
e perguntou se, com um escudo branco
e com um branco penacho na testa,
viu passar um guerreiro pela floresta.
56 ORLANDO FURIOSO

n Percorrida pouco mais de uma milha, 75 Logo, dócil, a donzela visita,


ouvem troar a selva em seu redor com modo humilde e humano feitio,
com estrondo tal que toda ela fervilha, como em redor do dono o cão saltita,
e estremecer parece ao derredor; quando alguns dias lhe esteve arredio.
eis que surge um corcel abrindo trilha, Dela tem Baiardo lembrança fita,
todo arreado de ouro com primor; pois em Albracca32 o manteve sadio,
salta sarças e rios, e com fracasso no tempo em que por ela era amado
árvores arrasta, e o que lhe veda o passo. Rinaldo, então cruel, desinteressado33 •
73 - Se os intricados ramos e o ar fosco 76 A brida lhe segura com a canha,
(disse a dama) o meu olhar não ofende, com a outra afaga pescoço e peito:
é Baiardo o corcel que ali no bosco aquele corcel, de bravura tamanha,
com tanto fragor seu caminho fende. a ela, como um anho, está sujeito.
É certo que é Baiardo, bem o tosco: Sacripante este bom ensejo apanha:
que bem nossa necessidade entende! Baiardo monta, pica e tem atreito34 •
Sabe que um só rocim para dois não chega, Do seu rocim aliviado, a donzela
e de nos vir ajudar se encarrega. - deixa a garupa e reocupa a sela35 •
74 Desmonta o circassiano e se lhe encosta, 77 Alongando o olhar, um vulto mira
tendo por fito deitar mão ao freio. que vem, as armas tinindo, pelo trilho.
Dá de ancas o corcel como resposta, Toda se inflama de despeito e ira,
volteando-se em célere meneio; pois nele reconhece de Amon o filho36 •
não ferem os coices onde ele aposta: Ele a ela mais do que à vida aspira;
ai do cavaleiro se eram em cheio! foge-lhe ela como a falcão cordilho.
A força de seus coices era tal Antes a odiou mais do que a morte
que estilhaçava um monte de metal. e ela o amou; depois trocaram sorte.
CANTO I 57

78 Disto causa foi uma e outra fonte, 80 - Sou pois (disse o rei, melindrado assaz)
pois efeito vário tem seu licor; de vosso crédito tão pouco digno
nas Ardenas 37 ambas, quase defronte: que me achais inútil e incapaz
uma, a quem lhe beber enche de amor; de vos defender de homem tão maligno?
se a outra escolher, com amor não conte, Das batalhas de Albracca tão fugaz
que ela gelo fará do que era ardor. memória tendes, e quando, benigno,
Duma bebeu ele, e de amor palpita; em vossa defesa, só e desnudo,
ela à outra foi, e Rinaldo evita. contra Agricane e o resto fiz de escudo 38 ? -
79 Essa, que oculta poção adubou, 81 Não responde ela nem sabe o que faça,
que em ódio muda a amorosa ânsia, pois Rinaldo já bem perto aparece,
faz que a dama que Rinaldo avistou e de longe o sarraceno ameaça
no sereno olhar mostre repugnância; quando o cavalo vê e reconhece,
triste e em voz tremente, suplicou e o angélico semblante devassa
a Sacripante com veemente instância dessa que o coração de amor lhe aquece.
que mais perto o guerreiro não pretenda, O que entre os dois soberbos se passar
e que com ela a fuga ora empreenda. para o outro canto quero reservar.

NOTAS

1 6
Agramante: rei africano, filho de Troiano e neto de Ruggiero: guerreiro sarraceno, filho de Ruggiero II de
Agolante, é o comandante supremo das tropas sarracenas Risa (Reggio di Calabria) e de Galaciella, filha do rei
que atravessaram o mar Mediterrâneo para fazer guerra a Agolante. Apresentado como descendente de Heitor de
Carlos Magno. O exército africano desembarcou em Tróia e fundador da estirpe d'Este.
Tortosa, na Catalunha (junto à foz do Ebro), e dali mar­
chou para França através dos Pirenéus (cf. Matteo Maria 7 Angelica: filha de Galafrone, rei do Catai. Bela e
Boiardo, Orlando Innamorato, Livro II, XXIX:23). esquiva, tem inúmeros pretendentes (entre os quais
Orlando e Rinaldo) , que trata com desprezo, tirando
2
Carlos, imperador romano: Carlos Magno (742-8 14), partido dos seus sentimentos quando lhe convém.
filho de Pepino, o Breve, rei dos Francos a partir de 768.
8
Foi coroado imperador do Ocidente, em Roma, pelo Índia: designava de modo genérico a Ásia meridional;
papa Leão III, no dia de Natal de 800. Rodeou-se de Média: correspondia à região a sul do mar Cáspio;
homens doutos que promoveram as ciências e as artes, Tartdria: era a região a ocidente do Catai (nome dado na
dando origem ao chamado Renascimento Carolíngio. Europa à China desde que Marco Polo a visitou, entre
1 275 e 1 292), e é hoje uma república da Federação Russa.
3 Orlando: herói principal das lendas carolíngias com
9
o nome de Roland, era um guerreiro severo e casto, pro­ Marsilio: rei sarraceno de Espanha, irmão de
tótipo ideal do cavaleiro cristão. Tombou na batalha de Galerana, mulher de Carlos Magno, de quem foi, ini­
Roncesvalles (778) . Sobrinho de Carlos Magno por cialmente, aliado. Posteriormente, uniu-se a Agramante
parte da mãe, é o seu mais bravo paladino. No poema de para invadir a França.
Ariosto, como no Orlando Innamorato, aproxima-se
mais do tipo do cavaleiro errante do ciclo bretão, sujeito 10
Vésper a Eos: Vésper é a estrela da tarde, aliás, o pla­
às paixões amorosas. neta Vénus, que surge no Ocidente e simboliza esse
ponto cardeal; Eos é a divindade que personifica a auro­
4 A { .. } equivalente: aquela que quase me fez o mesmo ra e simboliza o Oriente.
(a amada do poeta, Alessandra Benucci) .
11
Duque da Baviera: Namo, duque da Baviera, amigo de
5 Hercúlea prole: o cardeal Ippolito d'Este ( 1 479- infância de Carlos Magno, era o seu mais fiável conselheiro.
1 520) , filho de Ercole I e irmão de Alfonso II, duque de
12
Ferrara. Ariosto estava ao seu serviço em 1 5 1 6, quando Pdreo: corrida a pé, ou a cavalo, em que duas pessoas par­
publicou a primeira edição do poema, que lhe dedicou. tiam a par; o mesmo nome se dava ao prémio de tal corrida.
58 ORLANDO FURIOSO

13
Era [ . .} Montalvão: Rinaldo, primo de Orlando (cf. 26
Lírios de Ouro: elementos do brasão da França. Aqui,
8:2) , senhor do castelo de Montalvão (Montauban), e por antonomásia, a França.
também apaixonado por Angelica. Seu pai, Arnon,
27
duque de Dordonha, é irmão de Milon d'Anglant, pai de Galo: os Gauleses.
Orlando. Pelo nascimento, ambos descendem da casa de
28
Claramonte ( Clainnont). Diana [ . .} assome: Diana, deusa da caça, e Vénus,
deusa do amor, exemplos de aparições em cena, numa
14 Baiardo: cavalo já célebre na literatura cavaleiresca.
alusão às representações mitológicas, muito em voga nas
cortes no final do séc. XV, início do séc. XVI.
1 5 Ferraú: guerreiro sarraceno espanhol, sobrinho do
29
rei Marsilio, também apaixonado por Angelica. Sericano [ . .} nabateu: o vocábulo «sericano» designa
genericamente os povos orientais, isto é, da região da
16
Novo sol: Angelica. seda (latim sericum, t) ; os Nabaceus eram um povo de
origem árabe que se instalou no Noroeste da Arábia nos
17
A/monte: filho de Agolance e irmão de Galaciella, sécs. V-IV a. C. Pecra era a capital do reino, que atingiu o
por conseguinte, cio de Ruggiero. Foi morto em máximo esplendor no séc. I a. C. Foi subjugado pelos
Aspramonte por Orlando, que conservou o seu elmo e Romanos em 1 0 5 .
restantes armas.
18
3
° Cavaleiro de Anglante: Orlando, senhor do castelo de
Mambrino: inimigo de Carlos Magno morto por Anglante; na literatura francesa, seu pai era Milon
Rinaldo, que conservou o seu elmo como troféu. d'Anglanc.
19 31
A rgalia: irmão de Angelica, morto em duelo por Bradamante: filha de Amon, irmã de Rinaldo, e ena­
Ferraú. Este prometera-lhe, na hora da morte, que atira­ morada de Ruggiero.
ria as suas armas ao rio, conservando o elmo apenas
32
alguns dias, após o que lhe daria o mesmo destino; mas Albracca: fortaleza situada perco do Catai, onde
não cumpriu. O fantasma de Argalia vem agora resgatar Angelica, então apaixonada por Rinaldo, cuidara pes­
o elmo. soalmente de Baiardo.
20 33
Lanfosa: mãe de Ferraú. No tempo [ . .} desinteressado: os sentimentos entre
eles desencontraram-se, por terem bebido em fontes
21 Aspramonte: monte da Calábria (Itália) . Junto dele, diferences (cf. 77-78) .
Carlos Magno derrotou os Sarracenos comandados por
Agolante (morto ali por Orlando) ; batalha narrada no 34 Pica e tem atreito: esporear energicamente um cavalo e
poema francês Aspremont, e no italiano Aspramonte, de ao mesmo tempo apertar-lhe o freio firmemente é uma
Andrea da Barberino. técnica equestre comum para amansar um animal rebelde.
22
Senhor: Ariosro dirige-se ao cardeal Ippolito, a quem 35 Do seu [ . .} a sela: Angelica sai da garupa do cavalo e
a obra é dedicada. Fá-lo-á constantemente, ao longo do volta para a sela, antes ocupada por Sacripante (de cujo
poema, conservando assim vestígios do uso, ao tempo peso o animal fica aliviado).
ainda não de todo abandonado, dos cantores cavaleires­
36
cos populares, que se dirigiam com frequência ao seu De Amon o filho: Rinaldo.
auditório.
37
Ardenas: meseta densamente arborizada que se esten­
23
Mongibello: o Ecna. de pela Bélgica, França e Luxemburgo.
24 Circdssia: região russa a noroeste do Cáucaso, junto 38
Das batalhas [ . .} escudo: no Orlando Innamorato,
ao mar Negro. Agricane, rei da Tartária, assediara Angelica em Albracca
para a conquistar pela força, uma vez que ela desdenha­
25 Sacripante: rei da Circássia. Amante fiel e infeliz de va o seu amor. Consegue penetrar na fortaleza com tre­
Angelica, já a defendera no Oriente e seguiu-a até ao zentos cavaleiros; Sacripante, que convalescia de uma
Ocidente, para onde ela se deslocou em companhia de ferida, salta do leito conforme escava, mata os cavaleiros
Orlando. e obriga o rival à fuga.

CANTO II

Injustíssimo amor, por que é tão raro 4 - Estás a mentir ao chamar-me ladrão
fazeres corresponder nossas paixões? (disse o outro, não menos sobranceiro) ;
Por que razão, pérfido, te é tão caro os que a ti tal chamarem falarão
ver a discórdia entre dois corações? (pela fama que tens 1 ) em tom verdadeiro.
Não me levas ao rio tranquilo e claro, Provaremos aqui, com nossa acção,
só no mais fundo e mais escuro me pões: quem da dama e do corcel é herdeiro;
de quem quer meu amor, tu me desvias, mas quanto a ela, é o que disseste já:
e a amar quem me odeia me alicias. outra tão digna no mundo não há. -
2 Angelica a Rínaldo tornas bela, Como às vezes soem dois cães mordentes,
e ele a ela fazes feio e falace; por inveja ou outro ódio movidos,
quando o amava e belo era para ela, aproximar-se arreganhando os dentes,
odiava-a ele com o ódio mais tenace; com olhos turvos e incandescidos,
e, agora, em vão se aflige e se flagela. e depois se mordem, de raiva ardentes,
Desta arte foi igual o desenlace: rosnando, eriçados e entumecidos,
ela odeia-o, e o ódio é de tal sorte ofendem-se, e com espadas estão de fronte
que em vez de o ter preferia ter morte. o da Circássia e o de Claramonte.
3 Rínaldo ao sarraceno, desdenhoso, 6 Um a pé, outro a cavalo: faz tal
gritou: - Desce, ladrão, do meu cavalo! pensar que o sarraceno tem vantagem?
Tirarem-me o que é meu, deixar não ouso, Não tem nenhuma, pois ele assim vale
e a quem o quer faço caro pagá-lo; menos, talvez, do que um ingénuo pagem;
nem contigo a esta dama dou pouso: é que o corcel, de instinto natural,
deixar-ta, seria grande resvalo. não queria ao dono fazer vilanagem;
Corcel tão bom, dama de tal cariz, com mão ou esporas, não pode o circasso 2
com um ladrão julgo que não condiz. - fazer que ele dê a seu jeito um passo.
60 ORLANDO FURIOSO

7 Quando quer que avance, ele finca pé, 13 Pelos anos e o jejum debilitado,
e, se imóvel o quer, ele vai na mecha; um vagaroso jumento montava;
sob o peito a cabeça esconde até, parecia, mais que ninguém, ser dotado
as ancas empina e coices desfecha. de consciência escrupulosa e brava.
Mas vendo o sarraceno que não é Ao avistar o rosto delicado
a hora para domar da besta a pecha, da donzela que dele se aproximava,
as mãos firma no arção dianteiro, embora débil e pouco animosa,
e pelo esquerdo lado ao chão vai certeiro. toda se comoveu, de caridosa4 .
s Assim que o pagão, com ligeiro salto, 14 A dama ao fradeco pergunta a via
se livrou do obstinado Baiardo, por onde chegue a um porto de mar,
ali começou um bem digno assalto pois de abandonar França gostaria,
entre um par de campeões tão galhardo. para de Rinaldo nem ouvir falar.
Tinem um gládio e outro, baixo, alto: Bom conhecedor de necromancia,
de Vulcano o martelo era mais tardo não cessa o frade de lhe afiançar
na fúmea gruta, obrando na bigorna que em breve a liberta de todo o perigo;
os lampos de que Júpiter se adorna. e mão mete ao bornal que tem consigo.
9 Com golpes longos, curtos, e fingidos, 1s Tirou um livro que houve grande efeito:
mostram que mestres são daquele jogo; ainda nem uma folha tinha lido,
ei-los erectos, ei-los encolhidos, sai dele um espírito escudeiro feito,
eis que se cobrem ou se mostram logo; que de suas ordens é instruído.
recuam, ou avançam destemidos, Vai este, ao mágico poder sujeito,
golpes rebatem, ou dão desafogo, onde os cavaleiros duelo renhido
e em volta giram; e, onde um o pé tira, feras combatiam, com contumácia;
logo o outro prontamente o seu estira. e entre eles se mete com grande audácia.
10 Mas Rinaldo em peso, como um colosso, 16 - Diga-me um de vós (disse) , que eu escuto,
de espada em riste Sacripante investe; matarem-se um ao outro de que valha;
oferece-lhe este o escudo, feito de osso, qual é para vossas cuidanças o fruto
que temperada chapa de aço veste. quando terminardes esta batalha,
Trespassa-o Fusberta3 , conquanto grosso: se sem justar, o conde Orlando, astuto,
ressoa, gemendo pela selva agreste. nem da cota romper uma só malha,
A gelo se assemelham osso e aço, rumo a Paris acompanha a donzela
e fica ao sarraceno inerte o braço. por quem aqui lutais fátua procela?
11 Quando notou a tímida donzela
que o fera golpe causou tal ruína,
de temor mudou-se-lhe a face bela,
qual réu que a seu suplício se destina;
sente que ali não deve ficar, se ela
não quer de Rinaldo sofrer rapina;
desse Rinaldo que ela tanto odiava
quanto ele, a ela, desditoso amava.
12 Girando o cavalo, pela selva espessa
o lança, por estreita e íngreme via;
do branco rosto atrás girar não cessa,
parecendo-lhe que Rinaldo a seguia.
Um eremita que um vale atravessa
encontra, inda era há pouco fugidia:
as longas barbas cobriam-lhe o peito,
devoto e vetusto era o seu aspeito.
CANTO II 61

17 Uma milha atrás encontrei Orlando, 1s Havíeis de ter visto os dois turvar-se
que para Paris com Angelica ia, ao ouvir tal e, tristes e espantados,
rindo-se ambos de vós e motejando papalvos e cegos a si chamar-se,
porque debalde lutais à porfia. por serem pelo rival achincalhados;
Talvez mais vos conviesse ir procurando, e Rinaldo ao cavalo aproximar-se,
antes que se afastem, seguir-lhe a via; exalando suspiros inflamados;
se em Paris Orlando a consegue ter, e, de indignação e furor, jurar
não vo-la deixará jamais rever. - a Orlando o coração arrancar.
62 ORLANDO FURIOSO

19 Para onde o seu Baiardo espera passa, 25 E porque do rei de África batalha
monta-o, e só galopar o preocupa; e assédio espera, vai com ligeireza
nem ao que a pé está no bosque e ultrapassa buscando soldados e vitualha,
diz adeus, ou convida para a garupa. fossos cava e a muros dá firmeza.
O corcel fogoso investe e fracassa, Com presteza e azáfama agasalha
picado pelo dono, tudo o que entupa: tudo o que prevê lhe acresça a defesa:
não há fosso ou rio, nem rochedo ou espinho pensa a Inglaterra alguém enviar
que desvie o corredor do seu caminho. que gente traga para a tropa engrossar;
5
20 Que ora vos espante, senhor , não convinha, 26 pois quer regressar de novo à campanha,
se Rinaldo o corcel depressa pilha, voltar a tentar as sortes da guerra.
quando há já dias que atrás dele caminha Envia logo Rinaldo à Bretanha,
sem a mão poder deitar-lhe à presilha. a Bretanha depois dita Inglaterra.
Fez-se o corcel, que humano senso tinha, Ao paladim tal ida muito lanha:
não por birra seguir-se tanta milha, não é que tenha ódio àquela terra,
mas para guiar, para onde a dama ia, mas porque Carlos o manda a correr,
o seu senhor, que nomeá-la ouvia. sem ali parar um dia sequer.
21 Quando ela se escapou do pavilhão, 27 Nunca coisa fez tão contrariado,
Baiardo atenção lhe dava, matreiro, por não ser tal encargo de seu gosto:
sucedendo ter livre a sela então, assim de procurar lhe era vedado,
porque dela descera o cavaleiro girando ao acaso, o sereno rosto;
para combater a pé com um barão, porém, para que o rei fosse contentado,
que em armas como ele era ligeiro; ao caminho se fez que lhe era imposto;
à distância lhe foi seguindo os passos, a Calais em poucas horas chegou,
para a conduzir, do seu senhor, aos braços. e dali no mesmo dia embarcou.
22 Pretendendo levá-lo junto dela, 2s Ignorando os conselhos do barqueiro,
dele foi fugindo pela selva imensa; por ânsia do regresso que almejava,
deixá-lo não queria montar-lhe a sela, fez-se ao mar agitado e altaneiro,
para que a ir por outra estrada o não vença. que forte tempestade ameaçava.
Graças a si, Rinaldo, da donzela, Desprezo de tal modo sobranceiro
duas vezes em vão esteve em presença; ofendeu o Vento, que já soprava;
primeiro, Ferraú foi o estorvante, e o mar em volta com tal raiva ergueu
depois foi, como ouvistes, Sacripante. que até à gávea em água os embebeu.
23 No demónio que a Rinaldo mostrou 29 Descem os espertos homens do mar
da dama a pista de falso cariz, as velas grandes, querendo sem demora
também Baiardo, firme, acreditou, aos portos de onde partiram voltar,
e ao dono dá seus préstimos servis. pois de lá tinham largado em má hora.
De ira e amor aceso, o dono o lançou - Não posso (diz o Vento) tolerar
a toda a brida, direito a Paris; que com tanta ousadia vão embora -;
e de paixão tanto voa que lento e sopra e uiva e naufrágio ameaça,
lhe parece o cavalo e até o vento. e que, onde quer que vão, ele os rechaça.
24 Só de noite dá pausa àquele afã 30 Ora à popa ora à proa, às furtadelas,
que o leva em busca do senhor de Anglante: os fustiga, cada vez mais crescendo;
de tal modo creu na palavra vã para cá e para lá, com as curtas velas
do arauto do cauto necromante. vão girando e o alto mar percorrendo.
Cavalga sem parar tarde e manhã, Mas diversos fios em diversas telas
até ver aparecer Paris diante, mister me são, e urdir todos pretendo;
onde Carlos está, vencido, em apuros, Rinaldo deixo entregue ao seu afã
com as tropas que restam, entre muros. e torno a Bradamante, sua irmã.
CANTO II 63

31 Falo daquela ínclita donzela 32 Foi ela amada por um cavaleiro7


por quem Sacripante no chão jazeu; que de África veio com Agramante;
digna irmã desse cavaleiro é ela, do sémen de Ruggiero o fez herdeiro
que de Amon e Beatrice6 nasceu. a desditosa filha de Agolante8 ;
A grande força e o muito brio daquela ela, que de urso ou de leão grosseiro
não menos gosto à França e Carlos deu não descendeu, não desdenhou o amante;
(pois de mais que uma prova viu rescaldo) mas verem-se e falarem-se uma vez
que o grande valor do irmão Rinaldo. foi tudo de que a sorte os satisfez.
64 ORLANDO FURIOSO

33 Por isso Bradamante buscando ia 36 Por ter no coração aquele ardor


o amado, que o nome do pai herdara, de escutar do facto alheio a novela,
tão segura indo, sem companhia, ao cavaleiro foi de sua dor
como se grande exército a guardara; o motivo perguntar a donzela.
depois que o da Circássia por sua via Tudo lhe revelou em bom rigor,
o rosto da mãe Terra abalroara9 , motivado pelo modo cortês dela
um bosque atravessou e logo um monte, e o ar senhoril, que ao olhar primeiro
e achou em seguida uma fresca fonte. lhe pareceu ser de garboso guerreiro.
34 A fonte corria através dum prado 37 E começou: - Senhor, eu conduzia
que as umbrosas árvores adornavam; peões e cavaleiros para o local
os viajantes, com som delicado, onde Carlos por Marsilio atendia,
a beber e repousar convidavam; para junto ao monte ter estorvo frontal 1 º ;
abrigava-a um monte cultivado uma donzela comigo trazia,
dos raios que ao meio-dia abrasavam. por quem me inflamo de amor sem igual;
Ali, onde os olhos lançou primeiro, quando encontrei, junto a Rodonna 1 1 , armado,
a presença notou dum cavaleiro; um que cavalgava um corcel alado.
35 cavaleiro que à sombra do arvoredo, 38 Logo que aquele, seja mortal ladrão
na margem verde, vermelha, áurea e branca ou alma que ao Inferno se esquivou,
pensativo está, solitário e quedo, vê a eleita do meu coração,
e junto às límpidas águas abanca. como um falcão que para ferir voou,
O escudo e o elmo pendem do folhedo ágil desce e sobe, e, de supetão
da faia que ao cavalo faz de tranca; as mãos estendendo, com ele a levou.
olhos aguados, rosto derrubado, Não dera eu ainda pelo assalto,
mostrava-se dolente e alquebrado. quando o grito dela ouvi lá no alto.
CANTO II 65

39 Tal sói fazer milhafre predador 42 De longe, resplandece como chama:


ao pinto que com a mãe vai peniscando, de terracota ou mármore não parece.
a qual de seu descuido faz clamor, Mais me aproximo daquele panorama,
em vão lhe gritando e cacarejando. e a mais bela obra ali me aparece.
Seguir não posso um homem voador, Hábeis demónios (pude ouvir a fama) ,
entre montes e penedos me achando: chamados por fumos, carmes e prece,
cansado, o cavalo mal os pés muda, com aço o tinham em volta cercado,
e a pedregosa via não o ajuda. no fogo e água do Estige 1 2 temperado.
4o Porque menos cuidados me daria 43 Em aço tão brunido é cada torre
tirarem-me do peito o coração, que ferrugem ou mancha não ostenta.
deixei seguir caminho a companhia, Toda a Terra dia e noite percorre
sem meu comando e sem qualquer guião; ó ladrão, que lá dentro se afugenta.
por mais ou menos alta penedia, Tudo o que ambiciona em suas mãos morre 1 3 ,
de Amor tomei da via a sugestão, e em brados e lamentos não atenta.
para onde me parecia que o rapace A dama (o meu coração) lá retém,
o alento da minha alma transportasse. e esperança de a reaver não me vem.
41 Manhã à noite caminhei seis dias 44 Ai de mim! Que mais posso que mirar
por declives e penhascos estígios, ao longe o monte que meu bem encerra,
onde atalho não há ou outras vias, qual raposa que o filho ouve gritar
nem sinal achei de humanos vestígios; no ninho da águia, na alta serra,
um vale alcancei, entre penedias, e que asas não tendo para se librar,
antros e fraguedos de altos fastígios, o que fazer não sabe e em baixo erra?
que no centro, sobre um monte, um castelo Tão íngreme penhasco e tal castelo,
tinha, robusto e sumamente belo. só quem é pássaro pode acedê-lo.
45 Enquanto ali tardava, chegar vejo
dois cavaleiros e um anão a passo,
que esperança ajuntaram ao meu desejo;
mas esperança e desejo foram fracasso.
Eram guerreiros de grande traquejo:
um, o rei dos Sericanos 1 4 , Gradasso,
e o outro Ruggiero, jovem e forte,
muito prezado na africana corte.
46 «Vêm para de seu valor fazer prova
(disse-me o anão) com o castelão
que, de forma estranha, insólita e nova,
cavalga armado o alado alazão».
«Senhores (disse eu) , piedade vos mova;
de meu caso atroz tende compaixão!
Quando, tal como espero, o vencereis,
peço que a minha dama me entregueis».
47 Como me foi tirada lhes contei,
com lágrimas mostrando minha dor.
Deles, palavras de pesar escutei,
e desceram o escarpado pendor.
Toda a batalha de longe observei,
e a Deus supliquei para eles favor.
Sob o castelo media a planura
uns dois tiros de pedra de longura.
66 ORLANDO FURIOSO

48 Chegados ao sopé da penedia, 54 Dois guerreiros em terra e um no céu


um e outro queria ser o primeiro; batalharam até àquela hora
a Gradasso toca, ou por lotaria, que, ao espalhar-se pelo mundo escuro véu,
ou por ser Ruggiero menos ligeiro. todas as coisas belas descolora 1 5 •
O sarraceno no corno assobia: Assim foi, e nada aumento de meu:
ressoa o monte e o castelo cimeiro; eu vi, eu sei; mas inda hesito agora
e eis que surge o cavaleiro armado, em contá-lo; pois é prodígio tal
fora de portas, no cavalo alado. que mais que veraz parece irreal.
49 Começou pouco a pouco a elevar-se, 55 Com pano de seda tinha, coberto,
como soem as peregnnas gruas, no braço o escudo o cavaleiro celeste.
que fazem corrida antes de librar-se Não sei por que o não teria liberto
acima do chão uma braça ou duas mais cedo o cavaleiro daquela veste,
e, depois de no ar avoaçar-se, porque, no instante em que o mostra aberto,
batem pressurosas as asas suas. quem olhar, por força, entontece preste,
A tal altura o necromante ascende caindo como morto num instante,
que só a águia tão alto o ar fende. e ficando em poder do necromante.
50 Quando lhe pareceu, o corcel virou, 56 Como piropo o escudo resplandece,
que as asas fechou e caiu a prumo, e luz não pode haver mais esplendente.
qual falcão que para a caça se treinou No chão logo o clarão os estarrece,
quando vê pombo ou ganso alçar o rumo. com os olhos toldados e sem mente.
De lança em riste o cavaleiro baixou, De longe, o senso em mim também fenece,
o ar fendendo com ribombo sumo. e, quando me recompus finalmente,
Mal se apercebeu da queda Gradasso, já não vi guerreiros nem vi anão:
já ele lhe golpeava as armas de aço. vazio o campo, e escuros monte e chão.
51 Contra Gradasso o mago a lança rompe; 57 Pensei por isso que o encantador
Gradasso o vento fere e o ar vazio, os dois duma só vez colheu assim,
visto que o volátil não interrompe e que tirou, com uso do esplendor,
o bater de asas, sempre fugidio. liberdade a eles, e esperança a mim.
Ao duro choque, de garupa irrompe E àquele lugar, prisão do meu amor,
sua esbelta égua pelo chão macio. disse adeus, dali partindo por fim.
Tinha Gradasso uma égua, a mais bela Dizei-me pois se de amor pena par
e melhor de quantas usaram sela. a esta minha se pode encontrar. -
52 O voador às estrelas ascendeu; 58 Tornou ele, após fazer tal denúncia
girou e abaixo toste regressou, ao mesmo pranto de antes, sem quartel.
e atacou Ruggier, que por ele nem deu, De Anselmo d'Altaripa, de Mogúncia,
porque a Gradasso cuidados prestou. era este filho, o conde Pinabel;
Ruggiero, ao golpe, todo se encolheu, de sua gente era o de mais fedúncia,
e o corcel mais de um passo recuou, não somente descortês e infiel,
e, quando se voltou para o outro ferir, mas em vícios execráveis excedeu,
longe o avistou, ao céu a subir. mais que igualou, o parentesco seu.
53 Ora Gradasso ora Ruggiero fere 59 A bela dama, com expressão diferente,
na cabeça, nas costas e no peito, quando o mogonciacense 1 6 lhe falou
e as pancadas deles sempre difere, de Ruggiero, tudo escutou silente,
pois, tão ligeiro, é à vista estreito. e de aprazimento se iluminou;
Indo e voltando, amplas rotas desfere, mas, quando o soube de prisão sofrente,
finge a um ir e ao outro vai direito: de amorosa angústia se perturbou;
tanto a qualquer um a vista alucina e uma vez ouvir não a satisfez:
que não podem ver para que lado guina. teve de escutá-lo mais de uma vez.
68 ORLANDO FURIOSO

60 Quando por fim a coisa se fez clara, 66 E deu tal desculpa que o da mensagem
disse: - Cavaleiro, dá-te repouso; pareceu ter ficado contente e quedo.
pode minha presença ser-te cara, Ela o corcel mandou seguir viagem
tornando-te este dia venturoso. com Pinabel, que já não pareceu ledo,
Andemos já para aquela estância avara pois percebeu ser esta da linhagem
que nos esconde tesouro fabuloso; que tanto odeia em público e em segredo;
vã não será esta nossa fadiga, as futuras quezílias já prevê
se a Fortuna não for minha inimiga. - se ela um rnogonciacense nele vê.
61 Responde ele: - Tu queres que atravesse 67 Aos de Mogúncia e Clararnonte ernpeça
de novo os montes e te mostre a via? um ódio antigo e inimizade intensa;
Que passos em vão dê não me aborrece, uns aos outros cortaram a cabeça,
tendo perdido tudo o mais que havia; e sangue verteram em cópia imensa;
mas tu, por tal caminho, até parece o iníquo conde a esse ódio regressa,
que prisão buscas; seja, todavia. e trair a incauta jovem pensa;
Não podes depois queixar-te de mim, ou, se a ocasião surgir primeiro,
pois te avisei e queres ir mesmo assim. deixá-la só, seguindo outro carreiro.
62 E dito isto monta o cavaleiro, 68 E tanto lhe ocupou a fantasia
pois da dama ser guia tem por sorte, o ódio ancestral, a dúvida, o medo
que por Ruggier risco de cativeiro que por desatenção mudou de via;
assim vai correr, ou até de morte. e encontrou-se num escuro arvoredo,
Nisto, chega a correr o mensageiro, em cujo centro um alto monte havia
que: - Espera, espera! - grita em voz bem forte. encimado por áspero fraguedo;
Era o mesmo que disse a Sacripante mas a filha do duque de Dordonha20
quem o estendeu na erva num instante. segue-o perto, e em afastar-se nem sonha.
63 O mensageiro notícias a ela 69 Quando o de Mogúncia se vê no bosco,
de Montpellier 1 7 e de Narbonne 1 8 traz: a abandonar a jovem não resiste.
que alçaram a bandeira de Castela, Disse: - Antes que o céu se faça mais fosco,
e Aigues-Mortes 1 9 não lhe ficou atrás; melhor será que um abrigo se aquiste.
e que Marselha na ausência dela, Por trás desse monte, se bem o tosco,
sem quem a guarde, teme sortes más; um belo castelo no vale existe.
e conselho lhe pede e sua ajuda Espera aqui, que do cimo quero ir perto,
por este correio, para que lhe acuda. para com meus olhos ver bem se estou certo. -
64 Esta cidade e as milhas que partilha, 70 Assim dizendo, à altura superna
que do Var ao Ródano praia são, do despido monte o cavalo enrista,
tinha o imperador doado à filha procurando achar urna via alterna,
do duque Arnon, por sua admiração; para fazê-la perder a sua pista.
pois seu valor com grande maravilha Eis que no monte encontra urna caverna,
contempla, se ela a arma tem na mão. que a trinta braças de fundo se avista.
Agora de Marselha, corno eu disse, Aberta a picão, a direito corta,
veio o arauto pedir que acudisse. e lá em baixo avista-se urna porta.
65 Entre sim e não a jovem hesita; 71 Alta e larga era a porta lá em baixo,
se quer ou não voltar, dúvidas tem: que para um mais amplo aposento dava;
ali, a honra e o dever a incita, corno se houvesse ali aceso facho,
aqui, o amoroso fogo a retém. saía esplendor da montanha cava.
Que Ruggier livrará, por fim cogita, Enquanto o traidor olha, cabisbaixo,
do sítio encantado em que se mantém; a dama, que de longe o acompanhava
ou, não bastando a tal sua bravura, (porque perder o seu rasto temia) ,
ao menos ficar com ele em clausura. já perto da caverna lhe surgia.
CANTO II 69

n Vendo-se o traiçoeiro assim gorar


o intento que maquinara em surdina,
de afastá-la de si ou de a matar,
nova ideia lhe surge repentina.
Saiu-lhe ao encontro, e fê-la trepar
para onde o oco monte mais se inclina;
e disse-lhe que vira lá no fundo
uma donzela de rosto jucundo,
73 que pelo aspecto e pela rica roupagem
aparentava nobre condição;
mas que tão infeliz tinha a imagem
que ali estaria por contradição;
para do caso fazer aprendizagem
já tentara descer o alçapão;
porém, que saiu um da gruta interna
que a compeliu a entrar na caverna.
74 Bradamante, que tanto era animosa
quanto era incauta, no traidor fez fé,
e, de ajudar a outra desejosa,
buscou maneira de lá pôr o pé.
Eis que num olmo de copa frondosa,
erguendo os olhos, longo ramo vê;
puxa da espada, corta o longo troço,
e fá-lo mergulhar naquele poço.
75 A ponta então a Pinabel confia,
e, com afoiteza, o ramo apreende;
adiante os seus pés no poço enfia,
e todo o corpo pelos braços suspende.
Pergunta-lhe Pinabello, e sorria,
como ela salta; e as mãos abre e estende,
dizendo: - Aqui estivesse a tua gente,
para eu vos acabar com a semente! -
76 Não foi como Pinabel pretendeu
daquela donzela inocente a sorte;
porque, precipitando-se, bateu
lá em baixo antes dela o ramo forte.
Despedaçou-se, mas amparo deu,
e com sua ajuda a salvou da morte.
Aturdida a jovem ficou um tanto,
como vos contarei no outro canto.
70 ORLANDO FURIOSO

NOTAS
-&!lfi,:-
1 Pela [. . .] tens: nas canções de gesta, Rinaldo andava 1 1 Rodcnna: cidade de localização imprecisa; talvez
sempre desprovido de dinheiro, não hesitando em recor­ Rhodumna, a sul do Loire, identificada por Ptolomeu na
rer ao roubo e ao saque para colmatar essa carência. sua Geografia.
2 12
Circasso: circassiano. Estige: rio dos Infernos, que tornava invulnerável
tudo o que nele era mergulhado.
3 Fusberta: espada de Rinaldo.
13
4 Embora [. . .] caridosa: a consciência, irónicamente. Em [. . .] morre: vai-lhe parar às mãos.
14
5 Senhor: Ariosto dirige-se ao cardeal Ippolito (cf. nota Sericanos: cf. nota a 1: 55:4.
a 1:40:2) . 1 5 Àquela hora [. . .] descolora: Ariosto reproduz uma das
6 Beatrice: Beatrice di Baviera, mulher de Amon, mãe passagens mais poéticas da Eneida (Vl:271 -272) .
de Rinaldo e Bradamante. 16
Mogonciacense, ou mogoncíaco: da cidade de
7 Um cavaleiro: Ruggiero. Os amores de Ruggiero e Mogoncíaco ou Mogôncia, acrual Mainz ou Mogúncia,
na Alemanha.
Bradamante têm breve início no Orlando lnnamorato.
Conhecem-se, acompanham-se durante um percurso em 17
Montpellier: cidade do Sul de França, capital da
que contam um ao outro as suas histórias, descobrem os região de Languedoc-Roussillon.
rostos e apaixonam-se, mas logo o destino os separa.
18
8 Narbonne: cidade do Sul de França, na costa medi­
Desditosa filha de Agolante: Galaciella, mãe de
terrânica, a sudoeste de Montpellier.
Ruggiero. Casou com Ruggiero II de Risa contra a von­
tade da família, e por isso foi banida. 19
Aigues-Mortes: cidade francesa situada junto ao delta
9 do Ródano, na zona da Camargue.
O da Circdssia [. . .] abalroara: Sacripante, que
Bradamante derrubou da sela. 20
Duque de Dordonha: Amon, pai de Bradamante.
10
Onde [. .. ]frontal: onde Carlos Magno ànha as tropas,
no sopé dos Pirenéus, para interceptar o exército do rei
Marsilio quando este descesse os montes, vindo de Espanha.
-.­
CANTO III

Quem a voz e as palavras me dará


que convenham a tão nobre sujeito?
Quem ao verso asas emprestará
para que voando ele eleve o meu preito?
Maior inspiração me convirá
que venha agora incendiar-me o peito;
pois esta parte ao meu senhor 1 se deve,
que canta a estirpe onde ela origem teve;
2 do que ela, de quantos senhores ilustres,
pelo Céu eleitos para reger a Terra,
não vês, ó Febo2 , dentre os mais industres,
mais gloriosa prole, em paz ou guerra;
nem quem por mais séculos os seus lustres
guardou3 , e guardará (se em mim não erra
o que o profético lume me inspira)
enquanto em redor do pólo o céu gira.
3 E, para lhe dizer todos os louvores,
a cítara te peço, que sobraças,
com que após os gigantescos furores4
ao pai dos deuses tu rendeste graças.
E se de outros arnanhos dador fores,
e para a pedra5 esculpir tu me espicaças,
eu nestas belas imagens me empenho
com todo o esforço e todo o meu en genho.
72 ORLANDO FURIOSO

4 Entretanto, alguns fragmentos miúdos 10 É esta a antiga e famosa gruta


tirarei com meu tosco escopro a eito; que edificou Merlim, o sábio mago
talvez venha, com mais constantes estudos, cuja recordação inda se escuta,
a tornar este trabalho perfeito. onde o enganou a Dama do Lago.
Mas voltemos àquele a quem nem escudos Este é o sepulcro onde jaz corrupta
nem couraças hão-de salvar o peito: a matéria sua; onde ele, aziago,
de Pinabello de Mogúncia falo, para a satisfazer, que lho suplicou,
que a dama creu matar com tal resvalo. vivo se meteu, e morto ficou.
Imaginou o traidor que a donzela 11 Corpo morto e espírito vivo alberga,
no fundo do poço estivesse morta, à espera de soar do anjo a tromba
e pálido se distanciou daquela que clo C:éu o proscreva, ou lá o erga,
triste e por ele contaminada porta; dependendo de ele ser ou corvo ou pombaª .
ligeiro voltou a montar na sela Vive inda a voz; e quão clara se enxerga
e, como não evita a alma torta verás, quando do túmulo retomba:
ao crime outro juntar ou agravá-lo, que as coisas passadas e que hão-de vir
de Bradamante levou o cavalo. sempre responde, a quem lhe vem pedir.
6 Deixemo-lo, que ao ódio dá guarida 12 Já estou há tempo neste cemitério,
e ardil tece, enquanto a morte procura; de terra distante proveniente,
e voltemos à dama que, traída, para que do meu saber grande mistério
quase ali achou morte e sepultura. me tornasse Merlim mais evidente;
Quando do chão se ergueu, entontecida e, porque ver-te foi para mim império,
da queda que findara em pedra dura, mais um mês cá fiquei do que o assente;
a porta atravessou, que acesso dava Merlim, que o certo sempre anunciou,
à outra assaz mais dilatada cava. tua vinda neste dia fixou. -
7 A sala, quadra e ampla, faz lembrar 13 Atónita estava de Amon a filha,
uma igreja devota e majestosa: calada e atenta ao discorrer dela;
colunas de alabastro singular em seu coração há tal maravilha
arquitectura amparam, grandiosa. que não discerne se sonha ou se vela;
Ao centro eleva-se um formoso altar, as suas pálpebras de pudor cilha
que em frente tem candeia luminosa; (pois era muito modesta a donzela)
o esplendor da luz que ali cintilava .e diz: - Mas que mérito tenho eu,
os dois aposentos iluminava. para se profetizar o porvir meu? -
s Humildade a devota dama toca, 14 E, leda da insólita aventura,
ao achar-se em lugar sagrado e pio, ligeira seguiu os passos da maga,
e logo ajoelhando Deus invoca, que a conduziu àquela sepultura
e de alma e boca preces proferiu. que de Merlim alma e ossos afaga.
Nisto, uma porta- que em frente se entoca Era feita a arca de pedra dura,
range e chia, e uma dama6 saiu, tersa e rubra, donde um clarão divaga;
descalça, soltas vestes e melena, tanto que à sala, que o sol não beijava,
que pelo nome a saudou em voz serena. dava esplendor o fulgor que emanava.
9 E disse: - Ó generosa Bradamante, 1 5 Seja de algumas pedras natureza
por divino poder vinda até mim, afugentar as sombras, como velas,
de ti há dias foi vaticinante ou fosse o poder de fumos e reza,
o vidente espírito de Merlim7 , ou o efeito de observar as estrelas
que suas relíquias vinhas, errante, (o que me parece ter mais certeza) ,
visitar por insólito confim; desvelava o esplendor mais coisas belas
e aqui me encontro para os destinos teus de pincel e de escultura que, em torno,
te revelar, tal os querem os Céus. ao augusto lugar davam adorno.
CANTO III 73

16 Mal Bradamante entrou naquela cela 17 O sangue antigo que de Tróia vindo,
e na secreta gruta penetrou, pelas duas melhores vias em ti misto9 ,
do mortal corpo o espírito que vela a suprema jóia irá produzindo,
com voz claríssima pronunciou: de entre as linhagens que o Sol haja visto
- Ó casta e nobilíssima donzela, do Nilo ao Danúbio, do Tejo ao Indo,
tua vida a Fortuna bafejou; e o que entre Antárctico e Arctico avisto.
teu seio abrigará germe fecundo Na tua linhagem terão honores
que a Itália honrará e todo o mundo. marqueses, duques e imperadores.
74 ORLANDO FURIOSO

1s Os capitães e cavaleiros robustos 20 Calou-se aqui Merlim e, circunspecto,


dela sairão, que, com espada e peito, a maga deixou sua arte obrar:
à Itália os antigos honores vetustos a Bradamante queria ela o aspecto
das invictas armas darão, a eito. de todos os seus herdeiros mostrar.
E terão ceptro os senhores justos, Um bando de espíritos tinha afecto,
que ao sábio Augusto e a Numa 1 1 farão preito. não sei se infernais se de outro lugar,
Em seu benigno reinado vindouro os quais todos num sítio estavam postos,
farão regressar a idade do ouro. com vestes várias e diferentes rostos 1 2 •
19 Para que se cumpra a vontade do Céu 21 Chama a donzela de volta à igreja,
no que a ti respeita, que para mulher onde um círculo traçado se via,
de Ruggier desde sempre te elegeu, para que dentro, deitada, se proteja,
que teu caminho sigas é mister; ficando ainda um palmo em demasia.
nada impedirá o desejo teu, Por que a salvo dos fantasmas esteja,
nem logrará teu intuito empecer dum pentáculo lhe dá garantia;
de prostrar dum só assalto por terra diz-lhe que em sigilo fique a olhá-la,
o ladrão que em seu castelo o encerra. - depois abre o livro e aos demónios fala.
CANTO III 75

22 Eis que do primeiro aposento avança 23 - Se de cada um nome e feitos digo


gente que no sacro círculo roça; (dizia a feiticeira a Bradamante)
mas entrar nele, porém, não alcança, destes, que dos espectros ao abrigo,
como se ali houvera muro ou fossa. antes que nasçam já nos estão diante,
À sala que ao sepulcro dá bonança, não sei quando daqui te desobrigo,
que dos ossos do profeta se empossa, que uma noite a tanto não é bastante;
iam os demos que já dado haviam assim, de alguns te farei selecção,
três voltas ao cerco, como deviam. de acordo com o tempo e a conjunção.
76 ORLANDO FURIOSO

24 Olha o primeiro, que a ti é parecido 30 Será do enlace digno por virtude;


no belo semblante e na alegre traça: em sua idade é coisa não mesquinha28
por ti e por Ruggiero concebido, que quase meia Itália em dote mude,
plantará em Itália a tua raça. e, de Enrico primeiro, a sobrinha.
Tornar pelo sangue de Ponthieu 13 tingido Eis de Bertoldo o filho, e se saúde
o chão, é meu augúrio que ele o faça, Rinaldo teu, o qual terá mezinha
assim vingando a afronta e o torto para a Igreja pôr a salvo, como rocha,
daqueles por quem seu pai será morto. do ímpio Frederico Barba-Roxa.
2s Por sua acção há-de ser destronado 31 Eis outro A:zzo, e é o que Verona
o rei dos Longobardos, Desiderio; possuirá com seu bel território;
de Este e de Calaon lhe há-de ser dado também será feito marquês de Ancona
o domínio, por dom do sumo Império 14 • pelo quarto Otão e o segundo Honório29 •
Por teu neto Uberto 1 5 é acompanhado, Tempo leva todos trazer à tona
honra das armas do país hespério 16 ; do sangue teu a quem o consistório
em quem encontrará quem a proteja o pendão dará, e cada peleja
de assaltos bárbaros a santa Igreja. que vencerão pela romana Igreja.
26 Vê Alberto, o invicto capitão
que de troféus tanto templo ornará;
com ele Ugo 1 7 , seu filho, que Milão
para o pendão das serpentes 1 8 ganhará.
O outro é Azzo 1 9 que, depois do irmão,
no país dos fnsubres20 reinará.
Eis Albertazzo2 1 , que a outro alvitrou22 :
de um Berengario e outro23 nos livrou;
27 digno é, se o imperador Otão
de sua filha Alda a mão lhe der24 .
Vê, outro Ugo25 : bela sucessão,
que do paterno valor não difere!
Será este quem, por boa razão,
aos Romanos o alto orgulho fere:
liberta Otão terceiro e o papado,
pondo fim a assédio tão pesado.
2s Este é Folco 26 , que ao irmão, num instante,
o que em Itália tinha tudo deu,
para ir possuir em terra distante,
entre os Alamanos ducado seu;
e da Saxónia foi colaborante,
que sua estirpe varonil perdeu;
por linha de sua mãe ali veio,
e com a sua prole lhe deu esteio.
29 De A:zzo segundo e os filhos é hora,
que mais cortês que guerreiro será;
Bertoldo e Albertazzo 27 vês agora.
Um, Enrico segundo vencerá,
e de sangue alemão ensopa e cora
todo o campo que Parma em torno há;
do irmão a condessa gloriosa,
Matilde, sábia e casta, será esposa.
CANTO III 77

32 Obizzo, Folco, Azzo e Ugo outros há; 38 Vê Rinaldo43 , que resplendor não tole
Enrico pai e filho olha entretanto; ao valor da raça, a não ser que seja,
Guelfos são dois: um a Úmbria terá, por tanta exaltação da tua prole,
e também de Spoleto o ducal manto 30 • ou Morte ou Fortuna capaz de inveja.
Eis quem o sangue e as feridas secará Que Nápoles da dor o eco evole,
de Itália, convertendo em riso o pranto; quando refém por seu pai ali esteja44 .
deste falo (e aponta-lhe Azzo quinto 3 1 ) , Eis Obizzo, que, jovem e fagueiro,
que Ezzelino fará cativo e extinto. deverá ser de seu avô herdeiro45 •
32
33 Ezzelino, o implacável tirano 39 Junta a seu domínio, para o ver maior,
que foi tido por filho do demónio, Reggio alegre e Modena feroz46 •
causará a seus súbditos tal dano, Tal valor terá que para seu senhor
e destruição do país ausónio 33 , o chamarão os povos, a uma voz.
que piedosos são, postos no seu plano, Vê Azzo sexto, o filho: com honor,
Mário, Sila, Nero, Caio e António 34. ao pendão da cruz cristã dará prós;
Federico segundo, imperador, dá-lhe o ducado de Andria em partilha
terá neste Azzo o seu vencedor. Carlos da Sicília, com sua filha.
34 Este reinará com mais feliz ceptro 4o Acolá a excelência em grau supino
a bela terra à beira do rio 35 , de príncipes ilustres se condensa:
onde Febo carpiu com triste plectro Nicolà coxo, Obizzo, Aldobrandino,
o filho, que o carro mal conduziu36 , e de Alberto, tão clemente, a presença.
e o mítico âmbar se chorou, tetro, Para não te deter muito, não te ensino
e Cicno de alvas plumas se vestiu37 ; como a seu reino acrescerão Faenza47 ,
e aquela, de muitas obras mercê, e, por mais tempo, Adria, que nomeia
lhe será dada pela Santa Sé38 • o mar rebelde que o país ladeia48 ;
35 Que direi do irmão, Aldobrandino 39 ? 41 e essa terra que, por ser rica em rosas,
Que para o pontífice defender, belo nome mereceu de gregas vozes49 ,
de Otão quarto e do bando gibelino, e a outra que, no meio das piscosas
ao Capitólio pronto há-de acorrer, águas, teme do Pó ambas as fozes 50 ,
tudo em redor tomando, de contínuo, e onde habitam gentes desejosas
e em Umbros e Picenos40 freio ter; de mar alteroso e ventos atrozes 5 1 •
como para os ajudar não terá tença, Calo de Argenta, Lugo e mais aldeias
forçoso será que a peça a Florença; e vilas, de população tão cheias.
36 não tendo jóia ou valor que se veja, 42 Vê Nicolà 52 , que ainda juvenil,
como garante dará seu irmão4 1 • o povo quer senhor da sua terra,
O seu vitorioso pendão adeja, e anula a ideia de Tideu53 hostil,
por vencer o exército alemão; o qual contra ele as armas aferra.
o trono há-de devolver à Igreja, Há-de ser deste a diversão pueril
dando aos de Celano fustigação; treinar-se nas armas e para a guerra;
mas, ao serviço do sumo Pastor, e dos estudos desses tempos primeiros
findará sua vida ainda em flor. sairá a fina-flor dos guerreiros 54 •
37 Será Azzo, seu irmão, que herdará 43 Dos seus rebeldes por ele será roto
o domínio de Ancona e de Pisauro, o fito, que lhes tornará em dano;
das cidades que desde o Tronto há, usará de estratagema tão noto
do Apenino ao mar, até ao lsauro42 ; que difícil será fazer-lhe engano.
grandeza de espírito e fé terá, Tarde se aperceberá Terzo Oto 55 ,
e maior valor que gemas ou lauro: de Reggio e de Parma cruel tirano,
pois doutros bens a Fortuna é senhora; por ele despojado duma só vez
só a virtude seu poder ignora. do poder e duma vida soez.
78 ORLANDO FURIOSO

44 O bom reino há-de ser sempre crescente, 50 mas porque lhes dará ínclita prole:
sem tirar pé do caminho direito; Alfonso justo e Ippolito 65 benigno,
nem nunca a ninguém dará acidente, modelo dos quais os filhos de escol
se dele antes não receber despeito; de Tíndaro e do cisne é deles digno:
o Grande Motor56 por tal está contente cada um à vez se priva do sol,
e não o tem a limite sujeito: para seu irmão poupar ao ar maligno.
mas que dure e que prospere é mister, Será cada um deles assaz forte
enquanto em esferas o céu se mover. para o irmão salvar, com sua morte66 •
45 Vê Leonello 57 , e o duque primeiro, 51 O grande afecto deste belo par
o ínclito Borso, que foi capaz fará sentir o povo mais seguro
de, em paz ficando quedo, ser obreiro que se Vulcano duplo anel forjar
de mais triunfos que um qualquer pugnaz. de ferro, e dele lhes cercar o muro.
Marte encerrará em escuro telheiro, Alfonso, ao seu saber, tão exemplar
e as mãos ao Furor atará58 , tenaz. bondade acrescerá que, no futuro,
O intento deste príncipe perfeito j ulgar-se-á que do céu regrediu
é que seu povo viva satisfeito. Astreia67 , para onde há gelo e estio68 •
46 Ercole 59 chega, que em rosto lançou 52 Muito lhe valerá o ser prudente,
ao vizinho 60 , enquanto vai manquejando, e no valor ao pai assemelhado;
que as tropas em dispersão lhe salvou pois o assaltarão, falto de gente,
em Budrio, seu peito e cara dando, as legiões venezianas dum lado,
não sendo guerra a paga que esperou, e de outro aquela69 que de justamente
e que o seguisse até Barco o seu bando. madrasta ou mãe chamar tenho hesitado;
Não saberei dizer, deste senhor, se mãe, é como Procne tão ruim
se em guerra ou paz honra terá maior. e Medeia7° , que aos filhos deram fim.
47 Calabreses e Lucanos terão, 53 Dia ou noite, quantas vezes sairá
e os Apulianos, dele memória, com seu povo fiel da sua terra;
por o terem visto ao rei catalão que memoráveis derrotas dará
ganhar, em duelo, a primeira glória6 1 ; aos inimigos, por mar e por terra.
o título de invicto capitão A Romagna, imprevidente, fará
conquistará, com mais de uma vitória; aos vizinhos, outrora amigos, guerra,
à senhoria já tinha direito 62 do seu sangue se tingirá o solo
trinta anos antes, quando foi eleito. entre o Pó, o Santerno e o Zanniolo7 1 •
48 Toda a mercê que uma terra dar possa . 54 Nos mesmos confins há-de comprová-lo
a um príncipe lhe será devida; do Papa o mercenário castelhão,
não porque da palude a desempossa, que lhe tomará com pouco intervalo
e em campo fértil é enriquecida; a Bastia, matando o castelão72
não porque na sua área a engrossa depois de, infractor, aprisioná-lo;
e de muralhas a faz protegida, não restará soldado ou capitão
por templos e palácios ter erguido, que da reconquista e morte geral
e praças e teatros construído; possa levar até Roma sinal.
49 e não porque das garras do audaz 55 Será este, com senso e corri. a lança,
Leão Alado63 lhe dará defesa, que honra terá, nos campos da Romagna,
ou quando a face gaulesa, falaz, de ter dado ao exército de França
houver de fogo toda a Itália acesa, vitória contra Júlio e contra a Espanha73 •
neutral estará, com o seu estado em paz, Submersos os corcéis até à pança,
de temores e de tributos ilesa64 ; em sangue humano nadam pela campanha;
não só por estas obras benfeitoras para os mortos enterrar não bastarão
lhe serão suas gentes devedoras, franco, hispano, grego, ítalo e alemão.
CANTO III 79

56 Aquele que em veste pontifical 57 Alumiará sua progénie bela,


na cabeça purpúreo chapéu toma como o Sol faz à máquina do mundo
é o sublime, bondoso e liberal muito mais que a Lua ou que qualquer estrela;
grande cardeal da Igreja de Roma, pois outro qualquer lume lhe é segundo.
Ippolito, que em prosa, verso ou tal Com poucos a pé e menos em sela
lembrado será, em cada idioma; vejo-o partir flébil, tornar jucundo:
a cuja florida idade o Céu justo quinze galés, que lhe eram ofensivas,
quis dar um Marão, tal como à de Augusto 7' . mais mil naves, à praia traz cativas75 •
80 ORLANDO FURIOSO

58 Dois Sigismondi76 vês passar agora. 64 A audaz dama ali permaneceu


De Alfonso os cinco filhos ora vão; a inteira noite, em parte passada
que sua fama vá pelo mundo fora a falar com Merlim, que a convenceu
montes ou mares jamais obstarão: a Ruggiero socorrer, apressada.
genro do rei de França, passa agora Quando novo lume o ar acendeu,
Ercole segundo 77 ; Ippolito78 , o irmão, a caverna abandonou, confiada,
a seguir, que, com idêntica imagem por um caminho muito tempo cego,
à de seu tio, dará brilho à linhagem. tendo da espiritual dama apego.
79
59 Francesco, o terceiro ; e Alfonsi, a par, 65 Chegaram a um penedo escabroso,
80
vão ali dois • Mas como disse acima, entre montanhas impérvias às gentes;
se toda a tua prole te apresentar, e, todo o dia sem se dar repouso,
cujo valor tua estirpe sublima, transpuseram declives e torrentes.
muitas vezes terá de se apagar Para ser o caminho menos penoso,
e aclarar o céu, para que tos exprima; conversas entretêm entrementes,
já são horas, se não te desagrada, daquelas que, por seu fluir suave,
que os demos despeça e fique calada. - tornavam o percurso menos grave;
60 Assim, com o acordo da donzela, 66 das quais era, porém, a maior parte
a douta feiticeira o livro cerra. as com que a douta maga a Bradamante
Logo correm os espectros para a cela mostrava toda a astúcia e toda a arte
onde a bela arca os ossos encerra. que para salvar Ruggiero era bastante.
Bradamante, quando a palavra dela - Se fosses (dizia) Palas ou Marte82 ,
recuperou, logo os lábios descerra, e de mais tropas houvesses garante
dizendo: - Quem são, qual deles mais triste8 1 , que Carlos e Agramante, não podias
os que entre Ippolito e Alfonso viste? ter contra o necromante regalias;
61 Suspirando iam, olhos no chão, 67 pois, além de ser rodeada de aço
de toda a intrepidez abandonados; a invencível cidadela, e alta;
e vi que desviava cada irmão além de o seu corcel lançar o passo
os passos deles, deles afastados. - para os ares, onde galopa e salta;
Ouvindo esta pergunta, de antemão tem o mortal escudo, que, sem chumaço,
foram da maga os olhos marejados; clarão difunde que os olhos assalta,
gritou: - Desgraçados, a quanta pena da vista os priva, turvando os sentidos,
o instigar de homens vis vos condena! e como mortos nos deixa estendidos.
62 Ó bondosa prole de Ercole bom, 68 E, se acaso imaginas que te valha
não vença o seu erro a vossa bondade, cerrar os olhos enquanto abordoas,
que os vis de vosso sangue têm o tom; como poderás saber, na batalha,
deixai que a justiça ceda à piedade. - quando o evitas ou o abalroas?
E acrescentou falando em baixo som: Mas para escapar ao brilho que embaralha,
- De mais te dizer não tenho vontade. e para que os outros feitiços esmoas,
Guarda na boca o doce, e não te doas sei dum remédio que protecção presta;
se amargar-te não quero as coisas boas. nem há outra no mundo senão esta.
6 3 Ao luzir no céu a primeira luz, 69 Agramante trouxe de África um elo,
vamos pela via que o monte ladeia roubado na f ndia a uma rainha83 ;
e ao belo castelo de aço conduz, deu-o a um barão, um tal Brunello,
em que Ruggiero está em mão alheia. que poucas milhas à frente caminha;
De companheira e guia farei jus, tem tal poder que é só no dedo tê-lo
até que venças esta selva feia; e todo o feitiço logo definha.
depois te ensinarei, à beira-mar, De furtos e ardis, Brunel sabe tanto
tão bem a via que não hás-de errar. - como o que tem Ruggier preso de encanto.
CANTO III 81

70 Este Brunello, sabido e astuto


como digo, foi por seu rei mandado
para que com seu engenho e usufruto
do anel, em tais coisas já usado,
possa tirar Ruggier daquele reduto
em que está; pois disso se tem gabado
e juramento fez ao seu senhor,
o qual Ruggiero estima com fervor.
71 Para veres que Ruggier de ti não se alheia
e sim de Agramante, quando deixar
do encantado cárcere a ameia,
vou-te ensinar a medida a tomar.
Três dias andarás sobre a areia
do mar, que estamos quase a avistar;
ao terceiro, a um albergue contigo
chegará o que o anel tem consigo.
n Para que o conheças, ele de estatura 75 Assim falando, chegaram ao mar,
uns palmos tem; o cabelo pontudo na foz do Garona, de Bordéus perto.
é de negra cor, sendo a pele escura; E, depois de um pouco lacrimejar,
pálido o rosto, em excesso barbudo; apartaram-se as damas por concerto.
protuberante e vesga a olhadura; A filha de Arnon, que para libertar
chato o nariz, o sobrolho lanzudo; o amante da prisão está em aperto,
o traje, pois nada te seja alheio, tanto avançou que uma noite chegou
é estreito e curto como o de um correio. a um albergue onde Brunel achou.
73 De discorrer sobre esse mago a eito 76 Quando vê Brunello, conhece-o logo:
há-de-se apresentar ocasião; sua forma tinha esculpida na mente;
mostra que queres, e assim é com efeito, donde vem, para onde vai, faz-lhe rogo;
com o mago lutar de tua mão; responde ele, mas em tudo lhe mente.
mas que sabes disfarça, com preceito, A dama, prevenida, faz o jogo
que o anel tem que faz o encanto vão. da mentira, simulando igualmente
Dirá que está pronto a mostrar-te a via pátria, nome, fé, sexo e ascendência;
que ao forte leva, e dar-te companhia. e olhares às mãos lhe lança com frequência.
74 Vais atrás dele, e, quando se avizinhe 77 Os olhos às mãos dele vai deitando,
o ponto donde se avista o castelo, sempre receosa de ser roubada;
dás-lhe morte; que o dó não te amesquinhe: nem deixa que ele se vá aproximando,
o meu conselho cumpre com desvelo! da sua vocação bem informada.
Não deixes que o teu intento adivinhe, Juntos deste modo se achavam, quando
e tenha tempo para o anel escondê-lo; aos ouvidos chegou grande atoada.
deixava de estar a teus olhos exposto, Já vos direi, senhor, qual foi a causa,
se o anel na boca tivesse posto. - depois de ao meu cantar dar justa pausa.
82 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 Meu senhor: Ippolito d'Este. 13 Sangue de Ponthieu: o sangue dos senhores do caste­
lo de Ponthieu (lugar de localização incerta) , isto é, da
2
Febo: Apolo, invocado como divindade solar (ilus­ casa de Mogúncia, por quem Ruggiero virá a ser morto.
tres - verbo ilustrar, do latim illustrare, iluminar) e tam­
14 Sumo Império: Carlos Magno dar-lhe-á o domínio
bém como deus da poesia.
daqueles dois castelos do Véneto, como recompensa pela
3
Mais [. . .} guardou: a casa d'Este teve as suas origens sua vitória sobre os Longobardos. Do primeiro deles
no séc. XI, mas Ariosto, ao associá-las a Ruggiero e deriva o nome da casa d'Este.
Bradamante, e com ascendente em Heitor, fá-la remon­
tar aos Troianos. 1 5 Uberto: personagem imaginário. A genealogia da
família d'Este apresentada por Ariosto é, em parte, fan­
4 Gigantescos furores: luta entre Zeus, apoiado pelos tasiada, inexacta ou incerta.
deuses olímpicos, e os Titãs, que tinham tomado o poder
no Olimpo. 16 Pais hespério: a Itália, desi ada Hespéria pelos G os, por
gn reg
lhes ficar a ocidente. Héspero, na mitologia grega, é o génio da
5 Pedra: A escultura como metáfora da história da Estrela da Tarde (planeta Vénus), que simboliza o Ocidente.
família d'Este, que Ariosto se propõe «esculpir».
17 Ugo: personagem histórico. Foi marquês e conde de
6 Uma dama: a maga Melissa, mas Ariosto só desven­ Milão ( 1 02 1) .
dará o seu nome em VII:66:6.
18
Pendão das serpentes: alusão à serpente do antigo bra­
7
Merlim: personagem lendária do Ciclo Bretão a são dos Visconti, que foi depois símbolo de Milão.
quem é atribuída a instituição da Távola Redonda, e
19
que apoiava a resistência do rei Artur contra os Saxões. Azzo: personagem histórico. Alberto Azzo 1.
Em inícios do séc. xiii a sua lenda inseriu-se na do Santo
20
Graal. O mago Merlim construiu uma arca onde o seu fnsubres: antigos habitantes da região da Lombardia,
corpo e o da sua amada, a fada Viviana - irmã da fada no Norte de Itália.
Morgana - , se conservariam invioláveis até ao dia do
21
juízo final, pois uma va. encerrada ninguém a poderia Albertazzo: Alberto Azzo II (996- 1 097) , considerado
abrir. Conhecedora dessa magia, Viviana (a Dama do o verdadeiro fundador da casa d'Este, pois foi o primei­
Lago) , que o não amava, persuadiu-o a entrar na arca e ro a habitar o castelo de onde lhe veio o nome. Era filho
encerrou-o nela para sempre. Do seu interior, Merlim de Alberto Azzo 1.
passou a prever o futuro dos que o vinham interrogar.
22
A outro alvitrou: Ariosto supõe que ele teria sugerido
8
Corvo ou pomba: pecador proscrito ou alma cândida. a Otão i, rei da Germânia, que descesse à península itá­
lica para derrotar Berengario pai e Berengario filho,
9 Em ti misto: pelo matrimónio de Bradamante e livrando deles a Itália.
Ruggiero dava-se a união dos dois melhores ramos de
descendência de Heitor, pois ambos provinham de 23 De um Berengario e outro: Berengario I reinou desde 888
Asdanax, filho de Heitor e Andrómaca. e foi coroado imperador do Ocidente em 9 1 5. Foi assassina­
do em 924. Berengario II foi rei de 950 a 963. Foi destrona­
10
NiÚJ [. . .} Indo: cada um dos rios representa um do por Otão I, que o manteve na prisão até à morre (966).
ponto cardeal (Ocidente e Oriente) .
24 A mão lhe der: fantasia de Ariosto. Na realidade,
1 1 Augusto (63 a. C.- 1 4 d. C.) , imperador: com ele Alberto Azzo II casou com uma irmã de Guelfo III da
teve início a era dos imperadores romanos; Numa: Baviera, de quem teve dois filhos: Polco e Guelfo.
Numa Pompílio (c. 7 1 5-c. 672 a. C.) , o segundo dos
primeiros sete reis de Roma. Segundo a lenda, sucedeu 25 Outro Ugo: filho ilegítimo de Alberto Azzo III. As
a Rómulo. empresas que aqui lhe são atribuídas (aos Romanos o alto
orgulho fere) são imaginadas.
12
Espíritos [. . .] rostos: Melissa, servindo-se dos espíritos
que invocou, vai fazer desfilar perante Bradamante os 26 Polco: marquês d'Este, filho de Alberto Azzo II.
s.eus mais notáveis descendentes (da casa d'Este) , à seme­ Polco não foi para a Germânia, mas sim seu irmão
lhança do que sucede com Eneias quando visita o Guelfo; este, como duque da Baviera, deu continuidade
Averno em companhia da Sibila de Cumas, onde o seu àquela casa, que estava sem descendência.
falecido pai, Anquises, faz desfilar perante ele os seus
descendentes, personagens da história de Roma 27 De Azzo [. . .} Albertazzo: personagens e factos não
(Vergílio, Eneida, Vl:752 ss.). reconhecidos historicamente.
CANTO III 83

28 Sua idade [ . .] mesquinha: Quem efectivamente 41


Como [ . .] irmão: para obter ajuda financeira de
casou com a condessa viúva, Matilde di Canossa, de 43 Florença, deu como refém seu irmão, Azzo VII.
anos, foi Guelfo V da Baviera, de 1 8 anos. A condessa
42
tinha grandes possessões (Toscana, Piacenza, Parma, Tronto [ . .] !sauro (hoje, Foglia) : rios que delimitam
Modena, Reggio, Mântua, Ferrara, parte da Úmbria, a marca de Ancona.
Espoleto, etc.); por isso, quase meia !tdlia (v. 3).
43
Rinaldo: filho de Azzo VII, e não o mesmo Rinaldo
29 Azzo [ . .] Honório: Acontecimentos relativos a dois da oitava 30.
membros da casa d'Este: Azzo VI e Azzo VII. Azzo VI foi
44
senhor de Verona a partir de 1 207, e em 1 208 foi Refém [ .. ] esteja: Rinaldo foi dado pelo pai, como
nomeado marquês de Ancona pelo papa Inocêncio III; refém, a Federico II, rei da Sicília, em 1 239, e morreu
Azzo VII foi eleito marquês de Ancona em 1 2 1 7, pelo envenenado em 1 2 5 1 .
papa Honório III (e não segundo) .
45
Eis [ .. ] herdeiro: Obizzo, filho de Rinaldo, sucedeu
30
Obizzo [ . .] manto: nomes e factos pouco claros. ao avô Azzo VII quando tinha apenas 1 7 anos (jovem e
fagueiro).
31
Azzo V: filho de Obizzo i, morreu antes do pai e
46
pouco se sabe a seu respeito. Quem na realidade fez a Reggio [ . .] feroz: Reggio alegre, pelas recordações de
guerra contra Ezzelino foi Azzo VI, por ele vencido, e infância de Ariosto; Modena feroz, pela sua grande resis­
Azzo VII, marquês de Ancona, que derrotou o tirano. tência.
32 47
Ezzelino: trata-se de Ezzelino III ( 1 1 94- 1 25 9), Faenza: a sudoeste de Ravenna; famosa pelo fabrico de
senhor de Verona, Vicenza, Pádua, Feltre e Belluno. A porcelana de arte, muito exportada para a Europa durante
sua tirania valeu-lhe a fama de filho do demónio. o Renascimento. Do nome da cidade deriva a palavra por­
tuguesa «faiança», que designa esse tipo de loiça.
33
Pais ausónio: a Itália. Ausónia era um dos seus nomes
48
na Antiguidade. Adria [ . .] ladeia: a cidade de Adria deu o nome ao
mar Adriático. Devido aos aluviões do Pó, encontra-se
34
Mdrio [ . .] António: série de personagens da histó­ hoje a cerca de 20 km do mar.
ria de Roma, famosos pela sua crueldade. Caio é
49
Calígula. Essa terra [ . .] vozes: Rovigo, cujo nome antigo,
«Rhodigium», deriva da palavra grega que significa
35
Reinard [ . .] rio: Azzo VII será mais afortunado do «rosa».
que seu pai, Azzo VI, no governo de Ferrara (bela terra à
50
beira do rio - o Pó) . Teme [ . .] fazes: Comacchio, situada entre dois bra­
ços da foz do Pó, rodeada por lagunas ricas em peixe.
36
Onde Febo [ . .] conduziu: segundo a mitologia grega,
51
Faetonte, filho do Sol, pediu um dia ao pai que o dei­ Desejosas [..] atrozes: porque a tempestade faz com que
xasse conduzir o seu carro. Desviou-se, porém, da rota o mar invada as águas palustres e nelas deixe peixes de mar.
por ele indicada, e aproximou-se demasiado da Terra ao
52
descer, e dos astros ao subir, correndo o risco de os quei­ Nico/o: Niccolo III, que sucedeu ao pai, Alberto V.
mar. Para evitar uma calamidade, Zeus foi obrigado a
53
fulminar Faetonte, que caiu no rio Erídano (identificado Tideu: Não se sabe exactamente quem é.
ora com o Pó ora com o Reno) .
54
Fina-flor dos guerreiros: Niccolo III é exercitado nas
37
E o mítico [ . .] vestiu: suas irmãs choraram-no tanto artes da guerra desde tenra idade, o que o torna um guer­
que foram transformadas em choupos pelo deus irado; reiro excepcional.
da casca desses choupos transudavam lágrimas de âmbar.
55
Cicno, amigo de Faetonte, foi, pelo mesmo motivo, Terzo Oto: Ottobono Terzi, morto perto de Rubiera
transformado em cisne. em 1 409, depois de tentar derrubar Niccolo III.
38 56
E aquela [ . .] Santa Sé: a família d'Este recebeu O Grande Motor: Deus.
Ferrara do Papa, como feudo, em 1 267.
57 Leonel/o: filho natural de Niccolo III.
39 Aldobrandino: irmão de Azzo VII. O personagem e
58
os feitos atribuídos são históricos. O ínclito [ . .] atard: Borso, filho natural de Niccolo
III, sucedeu a Leonello em 1 450. Foi o primeiro duque
de Ferrara, título recebido do papa Paulo II. Defensor da
40
Umbros e Picenos: habitantes da Úmbria e do Piceno paz e protector das letras, foi muito amado pelo povo. A
(antiga região junto ao Adriático, que veio a ser anexada imagem de Marte (deus da guerra) e do Furor aprisiona­
à Úmbria) . dos inspira-se em Vergílio (Eneida, i:294-296) .
84 ORLANDO FURIOSO

59 71
Ercole: Ercole I, filho legítimo de Niccolo III, sucedeu Pó [. .. } Zanniolo: rios que delimitam o campo em
a Borso em 1 47 1 . Ariosto nasceu durante o seu reinado. que Alfonso I derrotou ( 1 5 1 1) os da Romagna (outrora
amigos), que lutavam ao lado do Papa, junto à fortaleza
60 Em rosto [. . .} vizinho: lançou em rosto aos de Baseia.
Venezianos (o vizinho) a sua ingratidão. Depois de
Ercole lhes ter evitado a derrota numa batalha perto de 72 Matando o castelão: ainda em 1 5 1 1 , e no mesmo
Budrio, em que foi ferido e ficou coxo, não tiveram pejo local, o exército mercenário espanhol a soldo do Papa
em atacá-lo e persegui-lo até Barco, perto de Ferrara, em tomou a fortaleza de Baseia e matou o comandante.
1 492. Alfonso I reconquistou o forte e mandou matar todos os
ocupantes, como represália.
61
Cal.abreses [. . .} glória: na juventude, Ercole I militou
sob o comando de Alfonso I de Nápoles, rei de Castela 73 Vitória [. . .} Espanha: batalha de Ravenna ( 1 5 1 2). Os
e Aragão, e ali travou um duelo. Franceses, ajudados por Alfonso i, venceram o exército
do papa Júlio II e dos Espanhóis.
62 À senhoria já tinha direito: sendo filho legítimo de
Niccolo III, devia ter-lhe sucedido e assumido o poder 74 Como à de Augusto: tal como Augusto teve, na sua
trinta anos antes, tantos quantos governaram Leonello época, Vergílio (de seu nome Públio Vergílio Marão),
(nove) e Borso (vinte e um), filhos naturais de seu pai. Ippolito terá Andrea Marone (Marão), poeta improvisa­
dor da corte do cardeal.
63 Leão AI.ado: símbolo de Veneza.
75 Quinze [. . .} cativas: espólio de navios apreendido aos
64 Face [. .. } ilesa: manterá Ferrara neutral, por conse­ Venezianos por Ippolito, após a vitória na batalha de
guinte em paz e livre de tributos, quando Carlos VIII de Polesella.
França (face gaulesa) invadir a Itália.
76 Dois Sigismondi: um irmão e um filho de Ercole I.
65
A/fonso justo e Ippolito: filhos de Ercole I. Alfonso I
77 Genro [. . . } segundo: Ercole li casou com Renata de
governa Ferrara quando Ariosto publica o seu poema,
que dedica ao cardeal Ippolito, a cujo serviço se encontra. França, sendo, portanto, genro de Luís xii.
66 Modelo [. .. } morte: serão tão amigos como os gémeos 78 Ippolito: cardeal, tal como seu tio.
Castor e Pólux, filhos de Leda. Zeus, sob a forma de
cisne, uniu-se a Leda e fecundou-lhe um ovo; na mesma 79 O terceiro: terceiro filho legítimo de Alfonso I e
noite, Tíndaro, seu marido, fecundou-lhe outro ovo. Por Lucrezia Borgia.
isso, Castor é mortal e Pólux imortal. Quando Castor
80
morreu numa luta, Pólux recusou-se a ficar no Olimpo, Alfonsi [. .. } dois: filhos naturais de Alfonso I e de
por seu irmão estar nos Infernos. Então, Zeus permitiu Laura Dianti (Alfonso e Alfonsino).
que os irmãos ficassem no Olimpo, entre os deuses, em
81
dias alternados (cada um [. .. } sol) . Quem [. . .} triste: Ferrante e Giulio, irmãos de
Alfonso e Ippolito d'Este. Conspiraram contra os irmãos
67 Astreia: na Idade do Ouro, espalhava entre os e foram condenados à morte, sendo a pena mais tarde
homens virtude e justiça. Quando o mal se espalhou convertida em prisão perpétua.
pelo mundo, Astreia voltou para o céu, onde se tornou a
82
constelação da Virgem. Pai.as [Atena} ou Marte: deuses da .guerra.
68 Para [. . .} estio: para a Terra (onde se alternam as esta­ 83 Roubado [. . .} definha: Brunello, seguindo ordens
ções) . de Agramante, roubou a Angelica, no Oriente, o anel
que tem a propriedade de tornar invisível quem o
69
Aquel.a: a Igreja, sobretudo Júlio II, que se aliou aos meter na boca, e de dar imunidade contra todos os fei­
Venezianos contra Ferrara. Por isso, com justiça, não tiços a quem o tenha no dedo. Agora, Agramante man­
sabe se lhe deve madrasta ou mãe chamar. dou Brunello libertar Ruggiero do castelo do mago,
com a ajuda do anel, pois quere-o a combater no seu
70
Procne [. . . } Medeia: cruéis mães mitológicas, que exército.
mataram os próprios filhos.

CANTO IV

Conquanto quase sempre reprovável 3 Simula ela também; e assim convém


e de mente maligna dando indícios, com ele que é o pai do fingimento;
já a simulação, é inegável, e, tal como eu já disse, não se abstém
atraiu evidentes benefícios, de lhe olhar as ladras mãos um momento.
o mal e a morte tornando evitável; Nisto, grande ruído sobrevém.
pois nem sempre os amigos são propícios E a dama: - Gloriosa Mãe, que espavento!
nesta, tão mais obscura que serena, Ó Rei do Céu, que coisa será esta? -
vida mortal, toda de inveja plena. E onde o rumor se ouviu, acudiu lesta.
2 Se após desilusões e com fadiga, 4 Do estalajadeiro a prole acorreu
encontrar lograste um amigo vero, à rua ou à janela da saleta,
a quem sem qualquer suspeita se diga ficando de olhos erguidos ao céu,
o nosso pensamento mais austero, como se a ver ou eclipse ou cometa.
que há-de fazer, de Ruggiero a amiga, Viu a dama o prodígio que ocorreu,
com aquele Brunel nem bom nem sincero, que contado tomaria por peta:
todo fingido e todo simulado, vê passar um grande corcel alado,
tal como a maga lho tinha pintado? pelo ar levando um cavaleiro armado.
86 ORLANDO FURIOSO

5 Grandes tinha as asas de tom brejeiro; 11 De monte em monte e dum a outro bosco,
de armadura tersa e resplandecente, dos Pirenéus foram a alturas tais
sentava-se entre elas um cavaleiro donde se vê, quando o ar não está fosco,
que ao corcel dera o rumo do poente. França e Espanha e opostos areais 1 ,
Aos montes baixou, e o estalajadeiro tal do Apenino o mar eslavo e o tosco2 ,
disse e bem falou, pois estava ciente, junto a Camaldoli, nos dão sinais.
que ele era um necromante, e que fazia, Dali, por rude e áspera galeria,
ao largo ou perto, aquela travessia. a um profundo vale se descia.
6 Voando, vai por vezes às estrelas, 1 2 Ao centro um monte tem, cuja eminência
outras vezes a terra quase rasa; é por muralha de aço rodeada;
levando consigo todas as belas ao céu ascende com tal evidência
damas que encontra e que levar lhe apraza; que tudo o mais em volta não é nada.
a ponto das infelizes donzelas, Subi-lo, vã seria a diligência
a quem falta beleza ou extravasa a quem asas não tem para a arrancada.
(pois todas elas lhe servem para o rol), Disse Brunel: - Eis onde prisioneiros
não ousarem mostrar-se à luz do Sol. do mago estão damas e cavaleiros.
7 - Ele tem nos Pirenéus um castelo 13 Quadrangular era, e aparentava
(contava o homem) feito por encanto; a fio de prumo ter sido talhado.
é todo em aço, e tão luzente e belo Atalho ou escada ali não se avistava
que outro não pode haver sedutor tanto. que acesso permitisse, em nenhum lado.
Para ali cavaleiros levou com zelo, Que ninho era ou covil assemelhava,
e que nenhum de lá regresse é espanto; mas próprio só dum animal alado.
o que me faz temer pela sua sorte: Aqui a dama a hora vê chegar
que ele lhes dê cativeiro ou a morte. - de ter o anel, e de Brunel matar.
s Alegra-se ela com o que ouve àquele, 14 Mas acha acto vil ensanguentar-se
pensando que fará, e faz por certo, por homem desarmado e tão abjecto;
tão milagrosa prova com o anel pois pode muito bem apoderar-se
que ficará mago e fortim deserto; do rico anel sem dar-lhe tal decreto.
e diz-lhe: - Arranja-me um dos teus, fiel, Brunello não pensava em resguardar-se:
que o caminho conheça até lá perto; fácil foi amarrá-lo, e tê-lo quieto,
não posso esperar, a ideia afago a um abeto forte e altaneiro;
de travar batalha contra aquele mago. - mas do dedo o anel lhe tirou primeiro.
9 Brunello diz: - Não te faltará guia; 1 5 Às lágrimas, gemidos e lamentos
tenho esboço da estrada, e coisas mais, de Brunello ela ficou indiferente.
que útil te farão minha companhia. - A montanha desceu a passos lentos,
Referindo-se àquelas coisas tais, até ao plaino que há do monte em frente,
ao anel, que não mostrou, aludia; e o corno sopra com fitos intentos
mas por cautela não lhe disse quais. de que à batalha o mago se apresente;
- Grato me é (diz ela) o consórcio teu -, após o toque, em rude gritaria
crente de que assim o anel fará seu. chama-o ao campo e à luta o desafia.
10 O essencial disse, e aquilo ocultou 16 Não demorou muito a sair da porta
que não podia ouvir o sarracino. o feiticeiro, que ouviu corno e voz.
O estalajadeiro um corcel mostrou, O alado corcel pelo ar o transporta
bom para a luta e para a levar ao destino; contra a que lhe parece homem feroz.
comprou-lho e partiu quando clareou A princípio a dama pouco se importa,
do dia seguinte o ar matutino. pois inerme parece o homem veloz:
Num vale entraram, e Brunello adiante lança não usa, nem espada, nem maça,
ou atrás seguia, nunca distante. que fure ou que quebre a sua couraça.
CANTO IV 87

19 Dali o trouxe ele à força de encanto,


e assim que o teve outra coisa não fez:
com arte e aplicação laborou tanto
que lhe deu brida e sela após um mês;
na terra e no ar fê-lo entretanto
girar a bel-prazer, sem rispidez.
Não era obra de encanto como o resto.
Que era natural, era manifesto.
20 Tudo o mais no mago era fingimento:
o vermelho tornava em amarelo;
mas com a dama não teve esse alento
(o falso, com o anel, não pode vê-lo) .
Vai contudo dando golpes ao vento,
manobrando o cavalo sem apelo;
ela bate-se e moureja, aguerrida,
como fora, antes de vir, instruída.
21 Após se ter exercitado um tanto
sobre o cavalo, para o chão desmontou,
para melhor realizar tudo quanto
a prudente maga lhe demonstrou.
Vem o mago fazer o extremo encanto,
aquele a que antes ninguém escapou:
descobre o escudo com a convicção
que o brilho mágico a atira ao chão.
22 Poderia de início descobri-lo,
sem ter que aos cavaleiros dar liçada,
mas amava ver dos golpes o estilo:
os passes com a lança, os jogos de espada;
como se vê que ao esperto gato aquilo
ao rato fazer por vezes agrada;
mas, quando está farto desse prazer,
logo o abocanha e o faz morrer.
17 O escudo da mão esquerda lhe pendia, 23 Que o mago ao gato e que os outros ao rato
todo envolvido em seda carmesim; nas batalhas se assemelham, dizia;
na direita um livro com que fazia, mas já não era a semelhança um facto,
ao lê-lo, prodígio surgir assim: uma vez que a dama o anel trazia.
que atacava com a lança parecia Atenta e fixa estava a todo o acto,
(e a muitos fez tremer como pudim) , a ver se ele vantagem não tomaria;
depois, que estoque ou maça avançava; e, assim que o mago o escudo descobriu,
porém estava longe e nem lhes tocava. fechou os olhos e no chão caiu.
1s Do corcel as feições são naturais, 24 Não que o fulgor do luzente metal,
pois uma égua o concebeu dum grifo; tal como aos outros, a adormecesse;
penas e asas ao pai tinha iguais, mas aquilo fez para que ele afinal
membros anteriores, cabeça e grifo3 ; junto de si do cavalo descesse;
no resto do corpo imitava mais e aquilo que pensou teve em igual,
a mãe, e era o seu nome hipogrifo4 ; pois assim que no chão ela amortece,
raros, nos montes Rifeus5 são criados, acelerando as asas ao voador,
que ficam muito além dos mares gelados. deu largo voo e em terra se veio pôr.
88 ORLANDO FURIOSO

25 O escudo ao arção logo o mago ata 31 A bela fortaleza edifiquei


já coberto, e seus passos acelera para ter Ruggiero em segurança além;
para a dama, que, qual lobo na mata foi preso ele por mim, como esperei
escondido, pelo cabritinho espera. que aqui te iria hoje prender também;
Quando ao alcance o tem, na hora exacta, cavaleiros e damas para ali levei,
lesta se ergue e dele se apodera. que ver irás, e outra gente de bem,
Deixara o triste caído por terra para que, estando impedido de sair,
o livro que fazia toda a guerra, sua presença o possa distrair.
26 e corria, trazendo uma correia 32 De não saírem tenho teimosias,
que à cinta sempre usava para tal fim; mas os demais prazeres lhes satisfaço;
pois de ligá-la intenção alardeia, sons, cantos, trajes, jogos, iguarias
como aos outros fizera em tal motim. de toda a parte há no castelo de aço,
Mas logo ela no chão o estende e peia: e do mundo todas as fantasias
eu desculpo-o se foi dela o festim, à mão sempre têm, sem embaraço.
pois muito era a coisa descondizente: Bem semeei, e bons frutos colhia;
um velho fraco e ela tão potente. mas vieste tu, e adeus harmonia.
21 Tendo intenção de cortar-lhe a cabeça,
a mão vitoriosa depressa alçou;
mas, ao ver-lhe o rosto, suspende à pressa
a mão: baixo gesto a vingança achou;
um velho que no rosto mágoa expressa
é, afinal, quem ela dominou;
pelo rosto rugoso e branca guedelha,
cerca de setenta anos assemelha.
2s - Jovem, por Deus, acaba-me com a vida -,
disse o velho com ira e arrelia;
mas ela estava tão indefinida
quanto ele de ser morto gostaria.
Quis a dama então saber, presumida,
quem era o mago e por que bizarria
o seu forte erigiu em lugar tal,
e vai a todos infligindo o mal.
29 - Ai de mim! Não foi por má intenção
(disse a chorar o velho feiticeiro) .
Não é por avidez que sou ladrão
e a bela fortaleza fiz no outeiro,
mas para salvar da extrema expiação,
e por amor, um gentil cavaleiro;
o qual o Céu me diz que, em tempo breve,
cristão e atraiçoado morrer deve6 .
30 Daqui ao pólo austral não cobre o céu
um jovem tão formoso e tão prestante;
Ruggier se chama, e desde que nasceu
foi criado por mim, que sou Atlante7 .
Glória querer e o cruel destino seu
a França o trouxeram, com Agramante;
e eu, que o amei sempre mais que um filho,
de França hei-de livrá-lo e do sarilho. ', ,�
CANTO IV 89

33 Se igual ao rosto tens o coração, 39 Da donzela o mago se libertou,


não impeças o meu honesto plano! qual tordo que às malhas da rede escapa,
Ofereço-te o meu escudo e o alazão e com o castelo se evaporou,
que voa por todo o céu sem afano; deixando ali a companhia guapa.
mas não te detenhas no torreão; Damas e paladins assim privou
leva um amigo ou dois e não dês dano; do luxo dos salões, muito à socapa;
ou leva os outros todos, que só quero e muitas das damas se lamentaram
que me deixes ficar o meu Ruggiero. que as liberdades seu prazer roubaram.
34 Mas, se estiveres a tirar-mo disposto, 4o Ali está Gradasso, ali Sacripante,
rogo-te que antes de o levares para França, este é Prasildo, nobre cavaleiro
de minha alma soltar me dês o gosto, que com Rinaldo veio do Levante;
desta sua crosta já podre e rança! - com ele Iroldo, amigo verdadeiroª .
Responde-lhe a donzela: - Pois aposto Por fim, achou a bela Bradamante
que o liberto. Se sabes, grasna e dança! Ruggier, tão desejado companheiro,
Nem proponhas oferecer-me esse escudo que, ao fazer dela reconhecimento,
nem o corcel, pois meu, não teu, é tudo; lhe deu apaixonado acolhimento,
35 mesmo que os pudesses dar ou tirar, 41 porque mais que à luz dos olhos lhe queria
tal troca não me convinha fazê-la. que ao seu coração e que à própria vida;
Dizes reter Ruggiero para obstar Ruggiero a amou desde que ela um dia
ao influxo maligno da sua estrela, o elmo tirou, e logo foi ferida9 •
por não poderes saber, ou evitar, Dizer como e por quem longo seria,
sabendo, o que para ele o Céu revela; e quanto, em selva rude e desabrida,
pois se teu mal, que perto está, não vês, de noite e de dia se procuraram;
como o alheio, que há-de vir, prevês? mas só aqui de novo se encontraram.
36 Não me peças a morte: teus pedidos 42 Agora aqui a vê, e tem noção
vãos seriam; mas se quiseres a morte, de que ela o libertou de tais covis;
mesmo que a tal ninguém te dê ouvidos, tanto júbilo lhe enche o coração
por si a pode achar ânimo forte. que ditoso se julga e mui feliz.
Mas, antes que teus dias sejam idos, Descem o monte e àquele lugar vão
aos teus cativos darás passaporte. - em que ela ao mago vergou a cerviz,
Assim falou a dama, e entretanto onde pousado o hipogrifo mudo
para o monte o mago tocava, em quebranto. estava, e no seu flanco, coberto, o escudo.
J7 A sua própria corrente o ligava; 43 O freio a dama lhe quer agarrar,
Atlante ia andando, e a dama ao lado, e ele espera que ela lhe esteja oposta;
pois nele mesmo assim não se fiava, depois suas asas abre pelo ar,
embora mostrasse um ar resignado. e perto vai pousar, a meia encosta.
Havia pouco tempo que o levava, Segue-o ela, e de modo similar
chegaram, junto ao monte, a um alçado, ele se eleva e pouco se descosta;
e aos degraus que em redor do monte giram; tal faz a gralha, aqui e ali pousando,
à porta do castelo, então, subiram. ao cão que apanhá-la em vão vai tentando.
38 Sob a soleira Atlante pedra apanha 44 Ruggier, Gradasso, Sacripante, e os mais
com estranhas figuras, sinais gravados. cavaleiros que juntamente estavam,
Por baixo há panelas de forma estranha, sobem e descem aos lugares nos quais
que dentro ocultam fogos defumados. ver o corcel voador pousar esperavam.
Quebra-as o mago, e logo a montanha Depois de os induzir a passos tais,
fica descampada nos seus costados; subindo ao cume que antes habitavam,
nem torre ou muralha ali aparece, e em vão tantas vezes ao vale descer,
como se castelo lá nunca houvesse. junto a Ruggier por fim se vem deter.
90 ORLANDO FURIOSO

45 Tudo isto foi obra do velho Adante,


pelo seu piedoso desejo levado
de Ruggiero livrar do perigo instante,
pois só nisso pensa e lhe dá cuidado.
Faz que o hipogrifo lhe pouse diante,
para que da Europa o veja afastado.
Ruggier segura o corcel, para levá-lo,
mas ele recusa-se a acompanhá-lo.
46 Então de Frontino 10 o audaz desmonta
(Frontino é nome do seu cavalar) ,
e no outro, que sabe voar, monta,
dando-lhe de esporas para o espevitar.
Ele corre um pouco, e os pés aponta,
e mais ágil aos céus vai a voar
que o gerifalte 1 1 a quem o mestre tira
o caparão, e que à presa se atira.
47 A linda donzela, vendo tão alto
o seu Ruggiero e em tão grande risco,
tão tonta fica que, no sobressalto,
muito tempo o senso lhe foi arisco.
O que Ganimedes 1 2 sofreu de assalto,
de seu reino furtado por um corisco,
teme que possa acontecer àquele,
por não menos gentil e belo que ele.
48 Pelo céu o segue com olhar de espanto
enquanto pode; e quando ele se afasta,
a vista já não pode correr tanto:
segui-lo com o espírito lhe basta.
Mas com suspiros, gemidos e pranto,
não tem paz nem trégua, a dor a devasta.
Quando Ruggier da vista se ocultou,
para o bom Frontino ela os olhos voltou;
49 e fez propósito de não deixá-lo
em prémio a quem passasse, por mercê,
mas consigo levá-lo e depois dá-lo
ao dono, que rever anseia e crê.
Sobe o volátil e Ruggier pará-lo
não pode: lá em baixo a terra vê
tão achatada que toda lhe é estranha,
quer seja planície ou seja montanha.
so Quando tão alto vai que um simples grão
pode julgá-lo quem o vê de terra,
daquela zona toma a direcção
que busca o Sol quando em Câncer se encerra 1 3 ;
vai como nau untada 14 , o alazão,
que no mar com vento propício erra.
Deixemo-lo seguir o seu destino;
voltemos a Rinaldo, paladino.
CANTO IV 91

51 Rinaldo correu outro e outro dia 53 e outros cavaleiros, não só da nova


muito sobre o mar, levado pelo vento, como da velha T ávola, famosas.
que, ou para poente ou contra as Ursas 1 5 , ia O arrojo de seus feitos se renova
sem cessar, noite e dia, um só momento. nos monumentos e glórias pomposas.
Por fim na Escócia o ferro ao fundo envia, Baiardo e as armas Rinaldo comprova,
onde a selva Caledónia há assento; e desembarca nas costas umbrosas;
ali, por entre os carvalhos frondosos ao barqueiro manda avante, e que fique
ouvem-se tinir ferros belicosos. a aguardar seu regresso em Berwick 1 7 •
52 Por ela vagam cavaleiros errantes, 54 Sem escudeiro ter e sem companhia,
bravos guerreiros de toda a Bretanha, vai o cavaleiro pela selva imensa,
de terras próximas e de distantes, tomando ora uma ora outra via,
de França, Noruega e Alemanha. onde mais aventuras achar pensa.
Ali não entre quem não liçou antes, Chegou nessa jornada a uma abadia,
que indo em busca de glória a morte ganha. que grande parte de seus bens compensa
Grandes façanhas ali fez Tristão, dando pousada, no ameno mosteiro,
Lancelote, Artur, Galaaz, Galvão 16 , a dama que ali passe ou cavaleiro.
92 ORLANDO FURIOSO

55 Boa recepção monges e abade 56 Dizem-lhe que, errando pelos bosques escuros,
deram a Rinaldo, que perguntou poderia encontrar muitos acasos;
(não antes de servir-se à saciedade os quais, · como os lugares, são obscuros,
de acepipes vários que ali achou) pouca notícia havendo desses casos.
como é que sempre a sua sociedade - Procura achar (ouviu) aqueles furos
aventuras mil ali encontrou, que de teus feitos não façam ocasos,
por forma a provar, com acção de peso, para que depois do perigo e da fadiga
se um homem merece glória ou desprezo. venha a fama e o que for devido diga.
CANTO IV 93

57 E, se de teu valor quiseres dar prova, 63 Rinaldo reflectiu, e então falou:


tens à tua espera a mais digna empresa - Deverá, pois, morrer uma donzela,
que, na idade antiga ou na nova, só porque em seus braços desafogou
já de algum cavaleiro foi proeza. seu terno desejo o amador dela?
Do nosso rei a filha ora prova Maldito seja quem tal lei ditou;
carestia de ajuda e de defesa, maldito também quem a não debela!
contra um barão que Lurcanio se chama, Justo é que morra aquela que é cruel,
que privá-la quer da vida e da fama. não a que vida dá a amor fiel.
58 Esse Lurcanio ao pai a acusou 64 Que Ginevra recebesse o amante,
(talvez por ódio, mais que com razão) vero ou falso que seja, não contesto;
que um dia à meia-noite a encontrou louvá-la-ia por levá-lo avante,
alçando o seu amante a um balcão. se não tivesse sido manifesto.
A dura lei do reino a condenou Defendê-la, para mim, é imperante:
ao fogo, se não vem um campeão dai-me um que me guie e que seja lesto,
dentro dum mês, e está-se a concluir, para que junto do acusador me leve;
que prove o acusador estar a mentir. em Deus espero salvar Ginevra em breve.
59 A dura lei da Escócia, áspera e pesada, 65 Eu não digo que ela o não tenha feito;
diz que uma mulher, seja de qual sorte, dizer tal sem saber seria error;
que homem acolha sem lhe ser esposada, direi é que por semelhante efeito
se for acusada, receba a morte. não deve ela sofrer tal amargor;
Não se evita que seja justiçada, como direi que louco era o sujeito
a não ser que haja algum guerreiro forte que de lei tão funesta foi autor;
que sua defesa tome, e confesse por iníqua deve ser abolida,
que é inocente e morrer não merece. e por lei mais sensata substituída.
60 O rei, de Ginevra compadecido 66 Se um mesmo ardor e um igual suspirar
(pois assim é chamada a sua filha) , inclina e atrai um e outro sexo
deu ordens para que fosse difundido àquele suave fim do doce amar
que, se algum do caso a desenvencilha, (para o vulgo ignorante acto desconexo) ,
havendo-a da falsa fama eximido por que punir a dama ou censurar,
(e se em nobre família se perfilha) , por a um ou mais dum dar esse amplexo
sua mão terá, e um feudo também, que o homem pode dar a quantas quer,
como dote que a tal dama convém. louvado sendo e sem censuras ter?
61 Mas se ninguém vier dentro dum mês, 67 Para as damas, nesta lei tão desigual,
ou vindo não vença, há que a matar. injustos na verdade são tais factos;
Tal empresa bem mais para ti se fez por Deus, espero mostrar que é grande mal
que pelos bosques andares a errar: que há tanto tempo os tomem por exactos. -
além de glória e fama tens de vez, Rinaldo obtém consenso universal,
para nunca de teu lado se apartar, que os antigos nem justos nem sensatos
a que dentre as mais belas vai florindo, foram, ao consentir lei tão severa;
entre as colunas de Hércules 1 8 e o Indo 1 9 ; e o rei mal faz, pois pode e a não altera.
62 e com ela a riqueza, mais um estado, 68 Ao surgir o brilho ebúrneo e galhardo,
que a viver contente te ajudarão; que abriu o horizonte ao outro dia,
e o favor do rei, se ressuscitado Rinaldo toma as armas e Baiardo;
por ti for seu honor, em perdição. e dão-lhe um escudeiro na abadia,
Tu pela cavalaria és obrigado que lhe serve em muitas léguas de guardo
a desafrontar duma tal traição naquela selva inóspita e sombria,
aquela dama, que, hás-de ouvir dizê-lo, rumando à terra onde se realiza
de castidade e pudor é modelo. - a liça que a dama despenaliza.
94 ORLANDO FURIOSO

69 Tinham, tentando abreviar caminho, 71 Dão às de vila-diogo os birbantes


deixado a estrada e seguido o desvio, logo que o socorro vêem surgir,
quando um choro ouvem ali pertinho, para aquele profundo vale imigrantes.
que toda aquela floresta invadiu. O paladino não os quis seguir;
Baiardo um guia, outro o rocim fuinho, à dama vem, e as razões bastantes
para o vale donde esse grito se evadiu; de tanta punição procura ouvir;
lá, entre dois biltres uma donzela para tempo ganhar, manda que o escudeiro
viram, que ao longe lhes pareceu bela, a leve na grupa, e torna ao carreiro.
10 mas tão lacrimosa e angustiada n E cavalgando nota ser aquela
quanto jamais alguém pudesse estar. de grande beleza e de fino porte,
Junto a ela dois, com a mão na espada, embora ainda abalada estivesse ela,
para com seu sangue a erva avermelhar. por tanto terror que teve da morte.
Com rogos quer ver a morte adiada, Quando ele novamente a interpela
esperando a alguém piedade inspirar. para a causa saber de tão triste sorte,
Rinaldo chega e da cena dá conta: começou em branda voz a contar
com gritos e ameaças os afronta. o que ao outro canto vou protelar.

NOTAS

1
França [ . .} areais: ponto dos Pirenéus de onde, com que lhe deu o actual nome (O. Innamorato, L0 • II,
o ar límpido, se avista França e Espanha e as costas do XVl :56).
Mediterrâneo e do Atlântico.
11
Gerifolte: ave de rapina usada para caçar, à qual se
2
Mar es/,a vo e o tosco (toscano) : o Adriático e o Tirreno, descobria a cabeça (tira o caparão) no instante em que
que se avistam do monte Falterona ( 1 654 m), nos devia ver a presa e atirar-se a ela.
Apeninos, não longe do mosteiro de Camaldoli.
12
Ganimedes: jovem adolescente pertencente à estirpe
3
Grifo (ou grifa) : garra. real de Tróia. Por ser muito belo, foi cobiçado por Zeus,
que o raptou e levou para o Olimpo.
4 Hipogrifa: animal fabuloso, nascido do cruzamento de
13
uma égua com um grifo. Os elementos da constituição do A direcção [ . .} encerra: para ocidente, sobre o Atlântico,
animal encontram-se em Vergílio (Éclogas, VIIl:27), e em seguindo a latitude do trópico de Câncer.
Ovídio (Metamo,foses, VI:713 e IV:785-786).
14 Untada: bem revestida de pez, e, po; isso, bem veda­
5 Montes Rifeus: montes fabulosos da Cítia (cf. Os da e deslizante.
Lusíadas, IIl:7:3).
15
Contra as Ursas: para norte.
6 Cristão [ . .] deve: Ruggiero será morto sete anos
16 Tristão [ . .} Galvão: alguns dos «cavaleiros da távola­
depois de se ter convertido ao cristianismo (cf. XLI:6 1 ) .
-redonda», figuras lendárias do ciclo da Bretanha, cujas aven­
7 Atlante: mago que criou Ruggiero e o amava como a turas constituem o tema da novela de cavalaria A Demanda
um filho; queria a todo o custo protegê-lo do augúrio de do Santo Graal.
morte prematura.
17 Berwick: Berwick-upon-Tweed, na costa leste da Grã­
8 Prasildo [ . . } verdadeiro: Prasildo e Iroldo já no Bretanha, junto à fronteira entre a Inglaterra e a Escócia.
O. Innamorato eram apresentados como modelo de ami­
18
zade. Colunas de Hércules: nome dado na Antiguidade aos
montes que ladeiam o estreito de Gibraltar. Segundo a
9
Ferida: ao tirar o elmo para deixar que Ruggiero lhe mitologia, Hércules separou-os, para criar uma passagem
visse o rosto, Bradamante foi ferida por um sarraceno. do Mediterrâneo para o Atlântico. Representavam o limi­
te ocidental do mundo.
10
Frontino: pertenceu a Sacripante com o nome de
Frontalatte; Brunello roubou-lho e ofereceu-o aRuggiero, 1 9 Indo: rio Indo, como limite oriental do mundo.

CANTO V

Todos os outros animais da Terra,


ou que vivam tranquilos e em paz
ou que entre si façam rixas e guerra,
à sua fêmea o macho não a faz;
a ursa com o seu urso em paz erra,
a leoa perto do leão jaz;
junto do lobo a loba se recreia,
e a novilha o novilho não receia.
2 Que Megera 1 , que peste, que poder
conturbou os humanos corações?
Sempre um ao outro marido e mulher
lançam ofensivas acusações,
os rostos ferem por mútuo malquerer,
de pranto banham conjugais colchões;
não só de pranto, que de quando em vez
de sangue os banha a cólera soez.
3 Não só faz mal, creio que o homem age
contra a natura (é infernal modelo)
sempre que da mulher o rosto ultraje,
ouse ferir ou quebrar-lhe um cabelo.
Mas o que envenena, ou que se avantaje
e para a matar use laço ou cutelo,
que homem seja, não posso crer em tal:
com forma humana, é espírito infernal.
96 ORLANDO FURIOSO

Desses deviam ser os dois ladrões 10 pois tantas vezes ali o fiz vir
que Rinaldo escorraçou da donzela; quanta ocasião Ginevra me deu,
ao vale escuro a levaram, vilões, que de leito mudava para fugir
para que encoberta ficasse a esparrela. do calor ou do frio no apogeu.
Deixei-vos eu quando ia as razões Nunca ninguém o viu ali subir;
transmitir da iníqua sorte dela ter discreta entrada favoreceu
ao paladino, que foi seu amigo; só casas em ruínas ter em frente,
prosseguindo a história, disso vos digo. e dia ou noite lá não passar gente.
Começou ela: - Escuta minhas penas; 11 Muitos dias e meses protegi,
a maior crueldade, e inaudita, secreto entre nós, o amoroso jogo;
que nem em Tebas, Argos ou Micenas2 , o amor cresceu, e tanto nele ardi
ou em mais atroz lugar foi prescrita. que dentro em mim queimava como fogo;
E, se o Sol, ao volver suas melenas, cega fiquei, e não compreendi
este lugar menos que outros visita, que muito amor fingia por arrogo,
é porque aqui de má vontade vem, embora daquele enganoso o ardil
por de tão cruel gente ter desdém. fosse fácil de ver em sinais mil.
6 Que o homem para o inimigo é cruel, 12 Dias depois disse-se apaixonado
muitos exemplos temos, e ancianos; por Ginevra. E se isso então principiava
mas a morte dar a quem te é fiel, ignoro, ou se já antes, disfarçado
fazem-no seres iníquos e insanos. de a mim amar, por ela suspirava.
Para que melhor o caso te desvele, Vê como é arrogante esse malvado:
que levou estes a meus verdes anos sabendo que em meu coração reinava,
querer colher, contra toda a razão, tal me contou, e, sem qualquer pudor,
do início te faço a narração. pediu-me ajuda neste novo amor.
7 Quero que saibas, senhor meu, que, sendo 13 Dizia-me que igual ao meu não era,
eu criança ainda, ao serviço entrei nem seus amores por ela eram reais;
da filha do rei, com quem fui crescendo: mas que, simulando a paixão, quisera
posto elevado na corte alcancei. celebrar legítimos esponsais.
O Amor, a minha sorte apetecendo, O acordo do rei teria, assevera,
tal fez que sua sequaz me tornei; desde que dela tivesse os avais,
de entre os cavaleiros que conheci, pois em nobreza e posses se gabava
achei mais belo o duque de Albany. que só o rei, no reino, o superava.
Mostrando ele a amar-me estar disposto,
eu o amei com todo o coração.
Bem se ouve o falar e se vê o rosto;
do que o peito encerra não há visão.
Crendo e amando, satisfiz meu gosto:
no leito o aceitei, sem dar atenção
que entre as reais câmaras era aquela
a mais secreta de Ginevra bela;
9 onde ela guardava o que mais estimava,
e onde quase sempre também dormia.
Ali, por um balcão mui bem se entrava,
que a descoberto para a rua se abria.
Por ele o meu amado a mim chegava,
e a escada de corda que ele subia
eu mesma da varanda lhe atirei,
sempre que em meus braços o desejei;
CANTO V 97

14 Convenceu-me que, se obra eu lhe fazia 20 Ao duque recomendei amiúde


para que genro do rei viesse a ser que abandonasse aquela empresa vã,
(e claro vejo que isso o elevaria e que não esperasse ele outra atitude
em todo o reino ao mais alto mester) , pois um outro ela tinha por galã.
prémio me dava, pois nunca seria Claramente lhe disse que se ilude,
tão grande benefício para esquecer; porque Ariodante ama com afã,
e da mulher e toda a gente adiante e quanta água há no mar não extinguiria
me punha, por ser sempre meu amante. a chama que em seu coração ardia.
1 5 Eu só lhe queria dar satisfação, 21 De tantas vezes me ouvir Polinesso
nada lhe soube ou não quis recusar; (é o nome do duque) eu dizer-lhe isto,
tudo o que feliz me fazia então que de Ginevra não merece apreço
era seus desejos executar; já tinha bem compreendido e visto;
aproveitava qualquer ocasião não só por à dama não ter acesso,
para falar dele e para muito o louvar; mas por ser, por causa de outro, malquisto,
não me poupei a esforços e a fadiga de soberbo, tão mal tal recebeu
para fazer Ginevra ser dele amiga. que em ira e ódio o amor se converteu.
16 De coração e obras tudo fiz 22 Entre Ginevra e seu amado pensa
o que podia; sabe-o Deus .e eu; tanta discórdia e disputa criar,
mas o amor de Ginevra não condiz e inimizade nascer tão intensa
com o que dela espera o duque meu; que não mais se possam conciliar;
isto, porque ela todo o chamariz e a Ginevra causar afronta imensa,
e todo o seu desejo de amor deu que paz não possa, viva ou morta, achar.
a um cavaleiro gentil, galante, Seu iníquo plano não me contou,
à Escócia vindo dum país distante; nem a ninguém, só para si o calou.
17 que com seu irmão muito jovem veio 23 E depois: «Dalinda minha», me diz
da Itália, para ficar nesta corte; (é assim que me chamo) 3 , «ouve-me bem:
das armas adquiriu um tal maneio tal qual como desponta da raiz
que a Bretanha não tinha outro mais forte. árvore cortada uma vez ou cem,
Amado era do rei, que lhe deu esteio: também este meu anseio infeliz,
em grande cópia lhe ofereceu, em sorte, decepado com tão cruel desdém,
castelos, vilas e jurisdições; de germinar não deixa, pois almeja
e fê-lo um dos grandes entre os barões. realizar o que tanto deseja.
1s Caro era ao rei e ainda mais à filha
o cavaleiro, dito Ariodante,
por seu valor ser uma maravilha;
mas mais, por saber que era seu amante.
Vesúvio, ou Etna na sícula ilha,
ou Tróia, nunca ardeu tão flamejante,
como por seu amor, ela o sabia,
Ariodante o peito consumia.
19 O modo como ela se lhe afeiçoa,
com seu sincero e fiel coração,
fez que pelo duque eu advogasse à toa;
nunca me deu resposta sem senão;
quanto mais fazia elogio e loa,
tentando conquistar sua adesão,
mais ela o censurava e desprezava,
e cada vez menos o suportava.
98 ORLANDO FURIOSO

24 E não tanto por prazer o cobiço 30 Então por que não tens por mim respeito,
quanto por querer vencer este despeito; pela nossa amizade, no dizer teu,
mas não tendo, em verdade, esse derriço, que devo, e que teria com efeito,
já só de imaginá-lo me aproveito. se fosses tu, não eu, o amado seu?
Quando me receberes no passadiço, Não menos que tu para mulher a espreito,
e que Ginevra nua no seu leito apesar de mais rico seres do que eu;
se encontre, tomarás todas as vestes não menos que tu sei que ao rei agrado,
que ela despiu; e com elas te vestes. e mais do que tu sou pela filha amado».
25 No penteado e ornamentação 3 1 «Oh (disse-lhe o duque) , que grande engano
tenta imitá-la, e, o mais que poderás, em que teu amor louco te induziu!
parecer ser ela; e depois ao balcão Como eu, pensas ser dela soberano,
irás, de onde a escada me atirarás. mas os factos dirão quem se iludiu.
Acima irei, na imaginação Do que entre vós se passa faz-me o plano,
que aquela és, cujas vestes terás. que eu todo o meu segredo te desfio;
Espero que assim, a mim mesmo enganando, e aquele que de nós lesado se veja,
vá meu desejo em breve atenuando». que desista, e que de outra se proveja.
2 6 Assim disse. E eu, que fora de mim 32 Pronto estarei, se quiseres que te jure
andava, e como que dali ausente, que ao que contares fecharei bedelho,
nem vi que aquele pedido tão ruim mas quero que tua voz me assegure
era uma fraude4 , e até muito evidente; que o que te conto guardas até velho».
e com as vestes de Ginevra, enfim, Para que entre os dois o pacto se conjure,
a escada lhe atirei frequentemente; vão a mão pousar sobre o Evangelho.
e só compreendi o seu engano Juraram guardar o segredo inteiro,
quando já estava feito todo o dano. e Ariodante falou primeiro.
27 Disse ainda o duque a Ariodante 33 Como, em pormenor ao duque foi dito,
estas palavras ou outras que tais entre ele e Ginevra a coisa surdia;
(amigos tinham sido já, bastante, jurara-lhe ela por boca e por escrito
e por Ginevra ora eram rivais) : que apenas dele esposa ser pretendia;
«Causa-me espanto (disse o meu amante) e, se pelo rei tal fosse contradito,
que tendo-te sempre entre os meus iguais prometia ser sempre fugidia
respeitado, e tendo-te sempre amado, a diversas conjugais companhias,
seja por ti tão mal recompensado. e viver só em todos os seus dias;
2s Sei que não ignoras nem desvirtuas 34 e que tinha esperança, dado o valor
de Ginevra e eu o antigo amor; de que em armas mostrara vasto signo,
hoje mesmo pedir as graças suas, e mais esperava mostrar, pois -honor
e a sua mão, irei ao meu senhor. ao rei e ao reino queria dar condigno,
Por que me agastas? Por que continuas de tal mercê ganhar do seu senhor
a fixar nela em vão o teu fervor? que perante ele fosse achado digno
Eu bem respeitaria o caso teu, daquela sua filha desposar,
se em teu lugar estivesse e tu no meu». sabendo assim a ela prazer dar.
29 «Pois eu (Ariodante retorquiu) 35 Disse ainda: «Neste ponto me vejo,
de ti me espanto ainda maiormente; nem creio que outro queira mais que eu;
pois primeiro a ela o amor me uniu mais que isto não pretendo, e não almejo
que tu a tivesses visto somente; sinal mais evidente do amor seu;
e sabes que entre nós amor floriu mais, só desejo quanto Deus, por pejo,
que mais do que é não pode ser ardente; ao legítimo conúbio cedeu:
sua vontade é ser minha mulher, por ora, dela mais querer era vão,
e sei que sabes que a ti não te quer. pois é mais virtuosa que as mais são».
CANTO V 99

36 Depois de Ariodante lhe ter exposto 42 «Mando-te aviso quando for a hora»,
como espera vir a ser compensado, disse Polinesso e dali andou.
Polinesso, que se tinha proposto Com dois dias, se tanto, de demora,
Ginevra denegrir ao seu amado, o duque novo encontro me marcou.
disse: «É teu fortúnio ao meu muito oposto, Pretendendo desenlear agora
e quero ouvi-lo por ti pronunciado; os nós que armara, o rival avisou
quando conheceres do meu a raiz, para na noite a seguir se ocultar bem
que confesses que só eu sou feliz. nas tais casas onde não há ninguém,
37 Falsa te é, não te ama nem te preza; 43 num lugar que mostrou, mesmo diante
com esperanças e palavras te entretém; daquele balcão a que subir soía.
o teu amor como tolo despreza, Havia suspeitado Ariodante
quando comigo conversa mantém. que o outro o chamara à deserta via
De lhe ser caro eu tenho uma certeza por ali querer armar a seu talante
que mais que a promessas tolas se atém; alguma cilada em que o mataria,
vou contar-ta sob a jura, em segredo, sob o pretexto de lhe demonstrar
inda que melhor fora ficar quedo. aquilo em que não pôde acreditar.
38 Por mês, três, quatro ou seis noites não passo, 44 De lá comparecer tomou partido,
e por vezes até dez, que não esteja mas de forma que ele não seja mais forte;
nu nos braços dela, naquele abraço para que, no acaso de ser agredido,
que o amoroso abrasamento almeja. não ter que sentir receio da morte.
Bem podes ver que o prazer que te traço Um irmão tinha ardiloso e aguerrido,
às lérias que tu ouves faz inveja. Lurcanio, o melhor em armas da corte;
Rende-te, pois, e de outra vai em busca, com ele se sentia mais confiante
pois, como vês, meu mérito te ofusca». que se mais de dez levasse adiante.
39 Ariodante logo respondeu: 45 Chamou-o, e as armas recomendou
«Não creio nisso, e estou certo que mentes; que trouxesse; e à noite o levou também;
tudo não passa dum enredo teu mas o segredo não lhe revelou:
para que desta empresa assim me afugentes; não o diria a ele nem a ninguém.
e a prova de teus ditos põe ao léu, A um tiro de pedra o colocou;
por serem para ela muito nocentes; «Se me ouvires chamar-te (disse-lhe) , vem;
não só que és mentiroso, mas também mas se minha voz não ouvires chamar,
traidor, nada de o provar me contém». se me amas, irmão, deixa-te aqui estar».
4o Responde o duque: «Não seria honesto 46 «Vai e não temas», disse-lhe o irmão.
querermos aqui batalha travar, E assim ficou Ariodante quieto
por algo que te torno manifesto e se ocultou no ermo casarão,
quando quiseres, perante o teu olhar». mesmo em frente do meu balcão secreto.
Turba-se Ariodante ouvindo o resto, Do outro lado chega o intrujão,
e sente-se dum frémito gelar; que a difamar Ginevra era afecto;
se nele acreditasse plenamente, e deu o sinal, tão aliciante
ali tinha morrido de repente. para mim, que da traição era ignorante.
41 Com peito oprimido e pálido rosto, 47 Eu, com alva veste, a fio de ouro ornada
a voz a tremer-lhe e a boca amara, na cinta, e na bainha toda em torno,
respondeu: «Quando tu me houveres exposto na cabeça rede em ouro, enfeitada
à vista a tua aventura tão rara, de vermelhas laçadas, como adorno
prometo deixar essa que é por gosto (rede que só por Ginevra era usada,
para ti tão liberal, para mim avara; por ninguém mais) , ouço o sinal e torno
mas não julgues fazer-me crer em tal, ao balcão, de tal maneira situado
sem com meus olhos ver, ao natural». que me mostrava de frente e de lado.
1 00 ORLANDO FURIOSO

48 Entretanto Lurcanio, receando 54 Procura ela matar, que isso merece,


que algum perigo o irmão ali persiga, e reserva a maior honor tua morte.
ou, por hábito comum, procurando Traição oculta o amor não esmorece;
conhecer algo da alheia intriga, mas agora ódio lhe darás bem forte;
pé ante pé o veio acompanhando, pois com teus olhos vês, e aparece,
e onde há mais sombras escuro se abriga; o quanto é meretriz, e de que sorte.
a menos de dez passos aparecera, A arma que para ti voltaste, apanha,
e no mesmo casebre se escondera. e revela ao rei desonra tamanha».
49 Eu, desconhecendo a sua presença, 55 Quando Ariodante viu chegar o irmão,
no traje descrito à varanda vim; o seu cruel intento pôs de lado;
como antes já viera, sem diferença, mas de a vida cessar a intenção
mais de duas vezes para um bom fim. não perde, tendo-a apenas disfarçado.
Tinha o traje ao luar clareza imensa; Ergue-se e vai, levando o coração
não diferindo Ginevra de mim, por uma angústia extrema trespassado;
nem no seu aspecto nem na estatura, com o irmão finge que aquele furor
pareceu que era dela a minha figura; lhe passou, antes tão devastador.
50 e sendo muito amplo o espaçamento
que entre o balcão e as casas se abrangeu,
aos dois irmãos, que estavam ao relento,
o duque facilmente os convenceu
com o falso. Vê tu que desalento
e que desgosto Ariodante viveu.
Vem Polinesso e à escada deita a mão,
pois lha atirei, e sobe ao balcão.
51 Assim que chega lhe abraço com gosto
o pescoço, pois julgo-me invisível;
beijo-o nos lábios e por todo o rosto,
o que em cada visita era infalível.
A acariciar-me estava mais disposto
que o usual, para a fraude ser mais crível.
E Ariodante essa cena proterva
à distância, boquiaberto, observa.
52 Cai em tal angústia que se dispõe
ali mesmo a da vida se excluir:
logo o punho da espada em terra põe,
a fim de sobre a ponta se ferir.
Lurcanio, que inda mal se recompõe
de ter visto o duque até mim subir,
mas que à distância o não reconheceu,
vendo o gesto do irmão, logo acorreu,
53 impedindo que ele, com a própria mão,
em louco impulso trespassasse o peito.
Se mais longe estivesse de plantão,
tempo não tinha de impedir o efeito.
«Ah, irmão desgraçado, insano irmão
(gritou) , a morte querias por despeito,
por uma mulher, neste vil momento?
Que o demo as leve, como à névoa o vento!
CANTO V 101

56 Na manhã seguinte, sem dizer nada 62 Repetia a si mesmo que o irmão


ao irmão nem a ninguém, conduzido fora só Ginevra quem lho matou,
pelo mortal desespero, fez-se à estrada, pois fora só aquele acto malsão
e nada mais dele foi conhecido. que a viu cometer que à morte o levou;
Só seu irmão e o duque, esta abalada, pela vingança ganhou tal obsessão,
sabiam bem o que a tinha induzido. e tal ira e desgosto o dominou
Na corte sobre ele muito se falava, que a mercê do rei perder já despreza,
e a toda a Escócia o mistério alastrava. e o seu ódio e o do povo não lhe pesa.
57 Ao fim de oito ou mais dias veio à corte 63 Apresentou-se ao rei, quando mais gente
apresentar-se a Ginevra um viajante. na sala com ele estava, e proferiu:
Notícias lhe trazia de má sorte: «Sabe, senhor, que de turvar a mente
que no mar se afogara Ariodante, a meu irmão, o que à morte o induziu,
dando-se de seu livre arbítrio à morte, é tua filha a única nocente,
sem culpa de Bóreas 5 ou do levante6 . pois tanta dor na alma lhe infligiu
Dum rochedo que o mar domina, alto, o tê-la visto tão pouco pudica
mergulhara de cabeça, dum salto. que só morte tal mágoa pacifica.
58 Disse ele: «Encontrei-o antes que o gesto 64 Não encubro que ele era amante dela,
executasse, e quis que eu fosse ver: pois seu amor não era desonesto;
"Vem comigo, para ires dar manifesto de ti por mulher queria merecê-la,
a Ginevra do que me suceder; por seu serviço e valor manifesto;
e diz-lhe também que a razão do resto mas, mentre o tolo cheirava à cautela
que com teus olhos em breve vais ver as folhas, de longe um viu subir lesto
se deu apenas porque vi demais. à árvore que havia preservado,
Feliz sem olhos fora, muito mais!" e roubar-lhe o fruto tão desejado».
59 Encontrávamo-nos no Cabo Baixo7 , 65 E prosseguiu contando que observara
que para a Irlanda se estende no mar. Ginevra ir ao balcão, e atirar dele
Isto dizendo, dum rochedo abaixo uma escada, e que logo ali chegara
logo o vi de cabeça mergulhar. seu drudo, cujo nome não sabe ele,
No mar ficou, e à pressa e cabisbaixo que roupas e cabelos mascarara
vim, para esta notícia apresentar». para que sua pessoa não revele.
Ginevra, aquilo ouvindo, meio morta Acrescentou ele que pelas armas queria
ficou, e coisa nenhuma a conforta. provar ser verdadeiro o que dizia.
60 Deus sabe tudo o que ela disse e fez, 66 Imaginas como fica magoado
quando se encontrou sozinha em seu leito! um pai, quando ouve acusar sua filha;
Rasgou as roupas e feriu a tez ouve dizer o que tinha pensado
e a seus loiros cabelos deu defeito, nunca ouvir, e causa-lhe maravilha;
repetindo as palavras tanta vez porque sabe bem que será forçado
que Ariodante para fim tinha eleito: (se a defesa um guerreiro não partilha,
que ter visto demais era a razão que faça de Lurcanio mentiroso)
de cometer tão fatídica acção. a condená-la à morte, desgostoso.
61 Dele se ouve dizer por todo o lado 67 Creio, senhor, que para ti não é nova
que por desgosto procurara a morte. a lei da Escócia que condena à morte
Por tal tem o rei seu rosto banhado, qualquer dama ou donzela que se prova
e os cavaleiros e damas da corte. unir-se a outro que não o consorte.
Mas seu irmão era o mais enlutado, No prazo dum mês terá de ir para a cova,
e foi tomado duma dor tão forte se não surgir um cavaleiro tão forte
que quase sua vida extinguiu também, que dê por falsa a trama que esse tece,
querendo ao irmão juntar-se no além. provando que ela a morte não merece.
1 02 ORLANDO FURIOSO

68 Tornou público o rei que, para salvá-la 74 à minha escolta deu ordem secreta
(pois pensa que ela em falso é acusada) , para que, tendo-me nesta selva a jeito,
por mulher com bom dote pensa dá-la me dessem como prémio morte abjecta.
a quem limpe a infâmia divulgada. Seu intento seria satisfeito,
Guerreiro que se ofereça, nem se fala: se acaso o meu clamor não te intercepta.
de soslaio, entre si trocam mirada, Vê como trata Amor quem lhe é atreito! -
pois, sendo Lurcanio tão destemido, Ao paladino assim narrou Dalinda,
qualquer guerreiro se sente inibido. enquanto pelo caminho iam ainda.
69 Quis a adversa sorte que Zerbino, 75 Rinaldo dà graças à sua fada
irmão dela, do reino esteja ausente; por haver encontrado esta donzela;
já anda há muitos meses peregrino, pois toda a hist6ria lhe foi desvendada
das artes militares defendente; da inocência de Ginevra bela.
se mais perto estivesse o paladino, E se esperara, mesmo se acusada
ou onde de desdita tão premente com justa razão, poder defendê-la,
o fosse alcançar a tempo a notícia, mais confiante à prova ora se apresta,
a irmã salvaria com perícia. sabendo que é falso o delito desta.
70 Entretanto, o rei quer ver se se inteira, 76 E tendo por destino Santo André8 ,
por provas de diferente qualidade, onde o rei de sua corte partilha,
se falsa é a denúncia ou verdadeira, e onde ia realizar-se o finca-pé
se é justo ela morrer ou se é maldade: que decidiria a sorte da filha,
chama a si uma ou outra camareira Rinaldo avançou sem parar até
que devera conhecer a verdade. estar dali a pouco mais duma milha.
E vi que, se à sua presença eu ia, Cruzou-se, ainda fora da cidade,
para o duque e para mim grande perigo havia. com um pagem que lhe deu novidade:
71 Do palácio fui nessa noite andante, 77 que um cavaleiro estranho lá aparecera,
sozinha, e o meu duque procurei; a defender Ginevra decidido;
e fiz-lhe ver o quanto era importante suas insígnias ninguém conhecera,
para n6s ambos que eu não falasse ao rei. andando ele sempre muito escondido;
Tranquilizou-me e louvou-me bastante; desde que ali estava, ninguém pudera
ante os seus conselhos me despachei o rosto ver-lhe, por estar obstruído;
a albergar-me num castelo seu, mesmo o escudeiro que para ele moureja
na companhia de dois que me deu. afirma, jurando: - Eu não sei quem seja. -
n Já te contei, senhor, de que feição 78 Cavalgaram pouco até que à muralha,
o duque satisfiz com o meu amor; e logo à porta, chegam de imprevisto.
claro vês tu se da sua afeição O receio de avançar Dalinda atalha;
por tal motivo me era devedor. mas vai, porque Rinaldo lhe é benquisto.
Pois vê que tipo de compensação, Ao ver a porta fechada, este ralha
que prémio reservou para tanto ardor; a quem a guarda: - Que quer dizer isto? -
e diz-me se deve, por tanto amar, Que o povo todo (foi-lhe respondido)
uma mulher ser amada esperar; para a batalha ver estava reunido,
73 pois este ingrato, pérfido e cruel, 79 a que Lurcanio e o outro acto dão,
para a minha falsidade ora se inclina: no extremo oposto a este da chegada,
começou a recear que eu revele, onde havia um prado espaçoso e chão;
agora ou mais, sua farsa vulpina. e que a luta já era iniciada.
Fingiu que, para que me afaste e me sele Abriram ao senhor de Montalvão
enquanto a ira do rei não declina, a porta, que de novo foi fechada.
pretendia mandar-me para o seu forte; A cidade atravessa sem paragem,
mas queria dar-me imediata morte: mas Dalinda deixa numa estalagem;
CANTO V 1 03

80 que fique tranquila recomendou, 81 Seis outros cavaleiros 9 no cercado


pois ele a regressar não demorava; estavam, em pé, vestidos com couraça;
e logo para o campo dali marchou, e o duque de Albany 1 ° , este montado
onde um guerreiro o outro trabalhava num possante corcel de boa raça.
havia tempo, e a luta continuou. Como grão-condestável foi-lhe dado
Lurcanio contra Ginevra pugnava; a guarda daquele campo e da praça,
o outro fazia a sua defesa, e, crendo que Ginevra em perigo estava,
com brio levando a cabo a sua empresa. o coração e o olho lhe brilhava.
CANTO V 1 05

82 Rinaldo vai avançando entre a gente; 88 Polinesso, mostrando receança,


abre caminho o bom corcel Baiardo: coração tremente e pálida tez,
quem o seu tropel impetuoso sente, ao terceiro toque enristou a lança.
a desviar-se não é coxo ou tardo. Desejando a festa acabar de vez,
Rinaldo ali se apresenta, eminente, logo Rinaldo contra ele se lança.
entre os cavaleiros o mais galhardo; Para trespassar-lhe o peito o gesto fez,
frente à real tribuna se detém, e não discorda do desejo o efeito,
e acorrem todos para ouvi-lo bem. pois meia haste lhe enfiou no peito.
83 Rinaldo disse ao rei: - Magno senhor, 89 Assim transfixo o faz cair por terra,
não deixes a batalha prosseguir; distante do cavalo umas seis braças.
pois o que morrer, seja aquele que for, Desmonta Rinaldo e pronto lhe aferra
será morte em vão que vais consentir. o elmo antes que se erga, e solta as laças.
Um pensa ter razão, estando em error, Mas ele, que já não pode fazer guerra,
e mente sem saber estar a mentir; humilde, solicita suas graças,
o mesmo engano que matou o irmão e confessa, perante o rei e a corte,
agora lhe pôs a arma na mão. a sua fraude, que o levou à morte.
84 Não sabe o outro se há razão ou torto;
pois só por gentileza e por bondade
quis vir correr o risco de ser morto,
para não deixar morrer essa beldade.
À inocência a salvação transporto,
e o contrário a quem usa falsidade.
Mas antes, manda o duelo parar;
depois, escuta o que te quero narrar. -
85 A autoridade de homem tão digno,
quanto Rinaldo o era de semblante,
comoveu o rei, que logo, benigno,
mandou que não fosse a peleja avante;
depois ao rei, e séquito condigno,
e aos cavaleiros e gente restante,
Rinaldo tornou o ardil expresso
a Ginevra urdido por Polinesso.
86 Depois, para provar pelas armas se oferece
que só a verdade ali veio falar.
Chamam Polinesso, que comparece,
com grande audácia pondo-se a negar;
mas perturbado o rosto lhe aparece.
Disse Rinaldo: - Vamos já provar. -
Estando os dois armados e o campo intacto,
logo passaram a vias de facto.
87 Oh, quanto ao rei e quanto ao povo é caro
provar-se que Ginevra é inocente!
Todos esperam que Deus lhes torne claro
que impudica foi dita injustamente.
Polinesso era tido por avaro,
perverso, fraudulento e insolente;
assim, não é surpresa para ninguém
que tenha tecido este ardil tão bem.
1 06 ORLANDO FURIOSO

90 Em meio a uma palavra a voz se aperta,


e voz e vida ali se lhe esboroa.
O rei, que sua filha vê liberta
da morte e da calúnia nada boa,
rejubila de forma mais aberta
do que faria se, perdida a coroa,
se visse dela de novo empossado;
muito por ele é Rinaldo louvado.
91 Sem elmo se lhe torna conhecido,
pois já antes houvera dele sinal;
ergueu as mãos a Deus, agradecido
por ajuda tão providencial.
Aquele cavaleiro desconhecido,
que a Ginevra acudira em caso tal
e que, armado, por ela ali pugnara,
ficara de lado e tudo observara.
92 Quis conhecer o rei sua linhagem,
ou que ao menos mostrasse a aparência,
para lhe poder prestar sua homenagem
por ter acudido nesta ocorrência.
O elmo só tirou da sua imagem
a muito custo, pondo em evidência
o que noutro canto vou prosseguir,
se grato vos for esta história ouvir.

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NOTAS

1 Megera: uma das três Fúrias infernais. va que Isabella d'Este possuía um exemplar (mais tarde
traduzido para italiano por Lelio Manfredi).
2 Tebas, AJxos ou Micenas: cidades funosas por grandes
delitos (Tebas, pela extrema cruddade de Creonte e pela tra­ 5 Bóreas: deus do vento norte.
gédia de Édipo; Argos, pela história das cinquenta filhas do
6 Levante: vento de leste.
rei Dánao - as Danaides -, que apunhalaram os maridos;
Micenas, pelos crimes de Atreu, Clitemnestra e Orestes). 7 Cabo Baixo: cabo não identificado.
3
Da/inda [. . .] chamo: para compor a figura de 8
Dalinda, Ariosto ter-se-á inspirado em Braugain, cama­ Santo André: St. Andrews, na costa oriental da Escócia.
reira da rainha Isolda, que sacrifica a sua honra para sal­ 9
var a da rainha; contudo, os desfechos são diferentes. Seis outros cavaleiros: as testemunhas, ou padrinhos,
do duelo.
4 Fraude: o plano urdido por Polinesso deve ter sido
1 0 Duque de Albany: Polinesso, que urdira a trama con­
inspirado pelo romance catalão Tirant lo blanch, de J.
Martorell, que Ariosto terá conhecido no original, uma tra Ginevra (cf. 7:8).

CANTO VI

Infeliz o que mal faz e confia


que o malefício há-de ficar oculto;
inda que outros o calem, o anuncia
o ar e a terra onde ficou sepulto;
e Deus faz muita vez que a felonia
descubra aquele que pensa ter indulto:
sem que lho peçam ele a si molesta:
inadvertidamente o manifesta.
2 Pensara o miserável Polinesso
o seu delito poder encobrir,
dando fim a Dalinda como preço,
pois só ela o podia descobrir;
mas, acrescendo ao primeiro outro excesso,
chamou o mal em vez de o diferir;
diferi-lo ou evitá-lo podia,
mas, precipitado, à morte corria;
3 perdeu assim amigos, vida e estado,
e a honra, que dano maior é que esse.
Dizia eu antes que foi muito instado
o cavaleiro, que ninguém conhece.
Por fim, tirando o elmo, o rosto amado
e tanta vez visto aos olhares oferece:
mostrou a todos que era Ariodante,
chorado por toda a Escócia adiante!
1 08 ORLANDO FURIOSO

4 Por quem, j ulgando-o morto, tanto pranto 10 - Ai de mim! (dizia), não poderia
Ginevra e seu irmão vertido havia; saber que por meu mal ela morreu;
e o rei, a corte e o povo chorou tanto, com que amargura a vida findaria,
pela virtude e valor de que esplendia. se antes de mim a visse morrer eu.
Que o peregrino lhes mentira em quanto Minha amada é ainda e minha guia,
veio a seu respeito contar, parecia; é ela que dá luz ao olhar meu.
porém, viu-o de facto cabisbaixo Com ou sem razão, à batalha irei
atirar-se ao mar, do rochedo abaixo. por ela, e no campo morto serei.
5 Mas (como um desesperado que pediu 11 Sei que a razão não defendo; mas seja!
à distância, porque a deseja, a morte, Assim morrerei; só me desconforta
e que ao vê-la de perto desistiu, saber que, por morrer nessa peleja,
por achar mui dura e acerba sorte) tão bela dama deverá ser morta.
quando Ariodante no mar se viu, Um único consolo me sobeja:
já não quis morrer; e, como era forte, se Polinesso de amor a conforta,
hábil, e mais que qualquer outro audaz, a Ginevra dúvida não restou
pôs-se a nadar, e à praia o mar o traz; que a defendê-la não se apresentou;
6 e, por desprezá-lo, chamando estulto 12 e eu, que abertamente ela ofendeu,
ao seu desejo de deixar a vida, há-de ver que para a salvar ali vim.
à via se fez o encharcado vulto, De meu irmão, que este fogo acendeu,
e alcançou dum eremita a guarida. pelo mesmo acto vou vingar-me assim;
Em segredo ali quis ficar oculto, fá-lo-ei sofrer, ao ver que sou eu
até notícia ser por si ouvida: a quem sua crueldade deu fim:
se pelo caso Ginevra se alegrasse, j ulgando ter vingado o seu irmão,
ou se desgostosa e triste ficasse. tê-lo-á morto com a própria mão. -
7 Ouviu primeiro que, pela grande dor, 13 Quando este raciocínio concluiu,
ela correra risco de morrer buscou armas e corcel para o duelo;
(de tal modo se espalhara o clamor sobreveste e escudo negros vestiu,
que em toda a ilha houve que dizer) : ornamentado a verde e a amarelo.
contrário efeito àquele que, por error, Um escudeiro ao acaso lhe surgiu,
cria ante si ter visto acontecer. desconhecido, e a seu lado quis tê-lo;
Soube depois como Lurcanio a tinha e incógnito (como eu tinha narrado)
perante seu pai tornado mesquinha. contra o irmão se apresentou armado.
s Por seu irmão não menos de ira ardeu 14 Já vos narrei como o caso se desse,
como de amor antes por ela ardesse, que foi reconhecido Ariodante.
pois ímpio e cruel acto lhe pareceu, Não menor gáudio teve o rei do que esse
embora por si ele o cometesse. de a filha livre poder ver diante.
Soou-lhe depois que não apareceu Pensou para si que jamais se pudesse
cavaleiro que defesa lhe desse encontrar mais fiel e vero amante;
(sendo Lurcanio tão forte e galhardo, depois de tanta injúria que sofrera,
todos, de o enfrentar, tinham resguardo; contra o seu próprio irmão a defendera.
9 e quem o conhecia o reputava 15 Por sua inclinação (pois muito o amava)
tão prudente, tão sábio e atilado e atendendo aos rogos de toda a corte
que, se vero não fosse o que narrava, e de Rinaldo, aquele que mais instava,
risco de morte não tinha enfrentado; da sua bela filha o faz consorte.
por isso a maioria receava De Albany o ducado a si voltava,
duma falsa causa ser advogado) ; depois que Polinesso achou a morte;
Ariodante muito reflectiu, que em tal hora vague é uma maravilha,
e lutar contra o irmão decidiu. pois em dote pode oferecê-lo à filha.
CANTO VI 1 09

16 Rinaldo para Dalinda implorou graça, 22 Por entre alvos lírios e rubras rosas
que do seu erro assim foi absolvida; que a amena brisa frescos conserva,
a qual, por vocação e por escassa saltam coelhos e lebres airosas;
fé no mundo, a Deus dedicou a vida. o veado sereno e a mansa cerva,
Para a Dácia 1 , para ser monja, se trespassa, sem temor, erguem as frontes garbosas,
deixando a Escócia logo de seguida. ou estão imóveis ruminando a erva;
Mas são horas de a Ruggier regressar, ágeis e esbeltos, o gamo e o cabrito
que no ligeiro animal corre o ar. ali vivem em número infinito.
17 Mostra Ruggier corajoso semblante, 23 Tocando o hipogrifo quase a cerra,
e na tez mantém a coloração, e perigo já não havendo em que salte,
mas não creio não tenha palpitante Ruggi er com pressa a sela desaferra,
como uma folha, dentro, o coração. e seus pés pousa no herboso esmalte;
Para trás deixara, já muito distante, contudo, na mão as rédeas lhe cerra,
toda a Europa e aquele bastião, pois não deseja que para o ar ressalte;
dos navegantes o confim2 , prescrito depois amarra-o, no areal ribeiro,
pelo admirável Hércules invicto. num mirto entre um loureiro e um pinheiro.
1s O hipogrifo, pássaro aprumado 24 Vendo que havia ali perto uma fonte
que pelo ar o arrebata com presteza, rodeada de cedros e férteis palmas,
o ministro 3 teria ultrapassado pousou o escudo e retirou da fronte
que dos lampos transportar tem empresa. o elmo, e desarmou as duas palmas 5 ;
Não cruza os céus outro animal alado o rosto ora para o mar ora pro monte
que a voar se lhe iguale em ligeireza; volvia, para colher as brisas almas
creio que apenas o raio e a flecha que os topos, com rumorejos facetos,
do céu à terra vêm com mais mecha. agitam das faias e dos abetos.
19 Depois de atravessar grande distância 2s Às águas cristalinas vai e banha
em linha recta, sem nunca curvar, os lábios secos, e as mãos nela passa,
farto do ar, começa em alternância para do corpo o calor que se lhe entranha
sobre uma ilha, às voltas, a baixar; expulsar, do interior da couraça.
igual àquela a que, por discordância Que a aborreça não é coisa estranha,
do seu amante e querendo-se ocultar, pois não serviu para se mostrar em praça,
Aretusa4 se fez chegar em vão, mas sim para sem pousar, de armas coberto,
sob o mar indo em cega direcção. três mil milhas correr a céu aberto.
20 Não viu lugar mais ameno ou jucundo,

de todo o ar em que as asas estendeu;


nem, quem haja corrido todo o mundo,
terra mais aprazível conheceu.
Depois de dar amplo giro rotundo,
com Ruggiero o pássaro ali desceu:
verdes planuras, amenas colinas,
margens umbrosas, águas cristalinas.
21 Sedutores bosques, de fresco olor,
de palmeiras e mirtos odorosos,
cedros, laranjeiras com fruto e flor,
dispostos em modos harmoniosos,
abrigavam do férvido calor
com seus ramos folhudos e frondosos;
entre a ramagem, em voo descuidado,
perpassam rouxinóis com seu trinado.
CANTO VI 111

26 Nisto, o corcel, que deixara amarrado 32 Depois viu-se que suava da cortiça,
sob os densos ramos na fresca sombra, como um madeiro do bosque trazido
recua, querendo fugir assustado que ante o calor do fogo se inteiriça,
com não sei quê que no bosque o assombra; depois de ao fogo em vão ter resistido;
tanto verga o mirto a que está atado - Tua cortesia (disse) me atiça
que todo o pé com os ramos lhe ensombra; a que também te torne conhecido
verga o mirto e faz-lhe cair a folha, quem fui antes, e quem de mim fez tal,
mas dele a rédea não desaferrolha. que mirto sou neste ameno areal.
27 Como às vezes um cepo que o miolo 33 Era meu nome Astolfo7 ; e morticínio,
verde ou oco tem, e no lume é posto, paladino de França, fiz na guerra;
e a húmida aragem do seu carolo de Orlando e Rinaldo era consanguíneo,
o forte calor consome com gosto; cuja fama nenhum limite encerra;
dentro silva e assobia um arrolo, e devia ser meu todo o domínio,
até que para sair encontra um posto, após meu pai, Otone, de Inglaterra.
assim arrulha e chia e se encarniça Belo e galante fui, e conquistei
o mirto, até que se lhe abre a cortiça. não poucas damas; e me desgracei.
2s Dali voz débil e triste saiu, 34 Voltando daquelas ilhas extremas
que expedita e mui clara tagarela: que no Levante o mar índico8 lava,
- Se acaso fores tão cortês e pio onde com Rinaldo sofri algemas,
quanto faz crer tua presença bela, fechados numa prisão escura e cava,
da minha árvore solta ao bicho o fio; e donde nos livraram as supremas
basta o meu próprio mal que me flagela, forças e brio do cavaleiro de Brava9 ,
sem outras penas e outros sofrimentos para poente vinha por areais
que, de fora, venham dar-me tormentos. - batidos pelos ventos setentrionais.
29 Ao primeiro som desta voz voltou 35 Seguindo essa via e hostil destino,
Ruggiero o rosto, e ergueu-se de repente; sem saber chegámos uma matina
ao ver que do mirto a voz se soltou, àquele deleitoso areal marino
sua estupefacção foi evidente. que um castelo tem, da possante Alcina1 0 •
A retirar o corcel se apressou, Fora do seu castelo a descortino,
e a vergonha no rosto foi patente: sem companhia, na margem salina;
- Perdoai-me (disse) , quem quer que seja, sem redes nem anzol, ela atraía
espírito humano, ou deusa sertaneja6 • à praia todós os peixes que queria.
30 Só porque não sabia que se esconde 36 Velozes acorriam os golfinhos,
sob a áspera cortiça humano espirto, e o grande atum com sua boca aberta;
ousei perturbar a perfeita fronde os cachalotes e leões-marinhos,
e ofensa fiz ao teu viçoso mirto; aos quais enorme sono desconcerta;
ao meu pedido, te peço, responde: ruivos, alforrecas, salmões, toninhos
diz-me quem és, que num corpo tão hirto vêm aos cardumes, estes alerta;
vives, tendo voz e racional siso; os espadartes, as orcas e baleias,
salve-te o Céu das pedras de granizo. de enormes corpos, chegam às areias.
31 Se alguma vez puder este despeito 37 · Uma baleia surgiu, a maior
com algum benefício compensar-te, que já alguma vez se viu no mar;
pela minha linda- dama te dou preito, onze passos 1 1 teria, sem favor,
aquela que há de mim a melhor parte, acima de água o seu dorso invulgar.
que te darei, com palavra ou com feito, Caímos todos nós no mesmo error,
razão que de mim possas orgulhar-te. - pois estava queda sem se deslocar:
Terminando Ruggier o falar seu, que ela era uma ilhota todos nós cremos,
o mirto do vértice aos pés tremeu. tão distante um do outro tinha os extremos.
112 ORLANDO FURIOSO

38 Alcina com feitiço o peixe engana 41 Rinaldo acenou negativamente,


e com palavras, e ele vem a si. e Dudon também; debalde, porém.
Nasceu ela irmã da fada Morgana, A fada Alcina, toda sorridente,
do mesmo parto, disseram-me aqui. deixando os outros, atrás de mim vem.
Alcina olhou minha figura humana, A baleia, zelosa e diligente,
de que se agradou, nos olhos lho vi; nadando se afastou pelo mar além.
e pensou com astúcia e com talento Do erro depressa me arrependi,
reter-me ali; e cumpriu seu intento. mas já bem longe da praia me vi.
39 Veio ao nosso encontro, de alegre rosto, 42 Rinaldo à água cai em alvoroto
e por entre graciosos cumprimentos para me acudir, e quase sucumbiu,
disse: «Cavaleiros, se vos dá gosto pois levantou-se o furioso Noto 1 2 ,
tomar de minha casa os aposentos, que de sombras céu e terra cobriu.
ireis ver que o meu pescado é composto O que mais lhe aconteceu é-me ignoto.
de peixes vários e de muitos centos: A tranquilizar-me Alcina acudiu;
tenho escamudos, com pêlo e ao léu, todo esse dia e a noite a seguir,
e são mais do que estrelas há no céu. no monstro, através do mar, me fez ir.
40 E, caso queiram ver uma sereia 43 Até que a esta ilha se aportou,
que com seu doce canto aquieta o mar, que de Alcina é em parte, não inteira,
vamos daqui àquela outra areia, porque ela a uma irmã 1 3 a usurpou,
onde por esta hora sói voltar». de quem o pai fez a única herdeira;
E apontava-nos a maior baleia, como filha legítima a herdou,
que eu disse ser a ilha similar. pois (como alguém me disse, em cavaqueira,
Eu que (ai de mim) me precipitei, que ao corrente estava disso e do resto)
logo para cima do peixe saltei. estas duas 14 foram fruto de incesto.
CANTO VI 1 13

44 Enquanto iníquas são e celeradas, 50 Tarde descobri como era inconstante:


e têm todo o vício infame e feio, dois meses ocupei seu coração,
a outra tem virtudes recatadas e meu lugar cedi a novo amante.
e fez da castidade o grande esteio. Rejeitou meu amor com presunção
Contra ela estão estas conjuradas, (amava e desamava num instante) ,
e até de exércitos têm maneio, e do seu favor me deu privação.
para da ilha a expulsar, e em duelos Depois aprendi que igual tratamento
já lhe tiraram mais de cem castelos; dera ela a mil outros, sem merecimento.
45 nem teria já um palmo de terra, 51 E, para que eles não andem pelo mundo
Logistilla (que assim ela é chamada) ; falando de sua índole ligeira,
porém, um golfo deste lado encerra, planta-os por este terreno fecundo,
e do outro uma montanha, a entrada, uns como abeto, outros como oliveira,
tal como está da Escócia a Inglaterra, ou então como palmeira, ou segundo
pelo monte e pela ribeira 1 5 separada; a mim em mirto vês do mar à beira;
pensam Alcina e Morgana, contudo, de alguns fonte faz e de outros faz fera,
tirar-lhe o que resta e ficar com tudo. como mais apraz àquela megera.
46 Pois este par, em vícios primazia, 52 Ora tu, que por insólita via,
odeia a outra, que é pudica e santa. senhor, alcançaste a ilha fatal,
Mas voltando àquilo que te dizia para que outro amante seja, por magia,
para te contar como me tornei planta: mudado em pedra, em onda, ou coisa tal,
Alcina de delícias me cobria, terás de Alcina ceptro e senhoria,
e por mim ardia de paixão tanta; e serás mais feliz que outro mortal;
igual chama o coração me incendiou mas cedo tua hora há-de chegar
a beleza e agrado que mostrou. de em fera, fonte, pedra ou pau mudar.
47 De seu corpo disfrutava, me alembra, 53 De boa vontade foste instruído;
parecendo que nele se encontrava junto não é que eu ache que possa ajudar-te,
todo o bem que para os mortais se desmembra, mas melhor será que vás prevenido
num pouco mais, ou menos, nunca muito; e de seus costumes conheças parte;
nem França ou outra coisa já me lembra, talvez que, como o rosto é diferido,
perdido a contemplar o seu conjunto; o possa ser também o engenho e a arte.
cada pensamento meu ou desejo Saberás, quiçá, evitar o dano,
nela terminava, único almejo. depois de outros mil sofrerem o engano.
48 Por ela eu era tanto ou mais amado: 54 Ruggier, que Astolfo soubera por fama
Alcina já não se ocupava de outros; ser primo de sua amada cavaleira,
os demais amantes tinha deixado, condoeu-se de ver que em planta a dama
que antes de mim houvera muitos outros. mudou sua aparência verdadeira;
Dia e noite me mantinha a seu lado, e por amor daquela que tanto ama,
seu conselheiro e comandando os outros 16 ; e desde que soubesse em que maneira,
em mim cria e só em mim se fiava; lhe acudiria; porém, para ajudá-lo
noite ou dia, com mais ninguém falava. mais não pode fazer, só confortá-lo.
49 Ai! Por que minhas chagas vou tocando, 55 Fê-lo o melhor que soube; e então pediu
se para elas não espero medicina? para lhe indicar a via que o levasse
Por que esse bem que perdi vou lembrando, a Logistilla 17 , por plano ou pendio,
quando aqui sofro extrema disciplina? de maneira que a de Alcina evitasse.
Quando julgava ser feliz, e quando Que outro caminho havia garantiu
pensava que mais me amaria Alcina, o mirto, mas abrupto e mui falace,
o amor que me dera me retirou, pouco mais à frente, à sua direita,
e a outro novo amor se dedicou. subindo o monte ao pico que o enfeita.
1 14 ORLANDO FURIOSO

56 Mas que não deverá pensar que possa 57 Ao cavalo foi para desamarrá-lo
por ela caminho a salvo seguir: e atrás de si pelas rédeas o levou,
lá encontrará gentalha da grossa, para não poder a bel-prazer alçá-lo,
e bravia, para o passo lhe impedir. como antes fizera, quando o montou.
Alcina ali os pôs, qual muro ou fossa, Tem como pensamento, a ocupá-lo,
para quem de seu poder logra fugir. de Logistilla o reino que almejou.
Ruggier ao mirto agradeceu, sentido, Estava disposto a usar toda a obra,
pois dali se vai douto e instruído. para de Alcina evitar a vil manobra.
CANTO VI 115

58 O hipogrifo pensou cavalgar 61 Nunca foi vista tão estranha cambada,


e no ar incitá-lo a novo rumo; tão monstruosas 1 8 caras e aparatos:
mas receou ter um maior azar, alguns têm figura humanizada,
pois com a brida não lhe dava aprumo. e rostos de macacos ou de gatos;
- Por força passarei, se eu não falhar -, de pé caprino alguns deixam pegada;
para si dizia mas em vão, presumo. centauros há também, ágeis e aptos;
Duas milhas andara pela campina, jovens insolentes, velhos estultos,
quando avistou a cidade de Alcina. nus, ou com peles a cobrir os vultos.
59 Ao longe viu uma grande muralha, 62 Num corcel sem freio há um que galopa;
que em torno gira e grande reino encerra; outros, lentos, vão em burros ou bois;
parece que em altura ao céu se espalha, um outro monta dum centauro a gropa,
e que de ouro é, desde o cimo à terra. outro monta avestruz, e águia depois;
gente há para quem o meu parecer não valha, um leva à boca o corno, o outro a copa;
e a julgue alquimia; mas creio que erra; um é macho, outro fêmea, e outro os dois;
ou, porventura, mais do que eu entende. escada de cordà e gancho, alguém os tem,
A mim parece ouro, pois tanto esplende. e barra de ferro ou lima, também.
60 Ao chegar junto aos muros de cintura, 63 O capitão 1 9 do bando apresentava
que o mundo outras não tem da mesma sorte, dilatado ventre, e rosto anafado;
a estrada abandonou que, pela planura, sobre uma tartaruga se sentava,
levava àquele portão de grande porte; a qual andava em passo sossegado.
pela da direita, que era mais segura De cada lado alguém o apoiava,
e ao monte ia, foi o guerreiro forte. pois ébrio estava, rosto pendurado;
Mas logo encontrou a ímpia quadrilha, outros enxugavam-lhe a fronte e o mento,
que lhe interditou com furor a trilha. e abanavam panos para lhe dar vento.
1 16 ORLANDO FURIOSO

64 Um, que de humano tinha pés e ventre,


de cão o pescoço, orelhas e testa,
a Ruggiero ladra querendo que ele entre
na bela cidade que à destra resta.
Diz o cavaleiro: - Não entro, mentre
na minha mão firme segurar esta! -
E faz-lhe ver a espada, cuja ponta
comprida e bem aguçada lhe aponta.
65 O monstro quer feri-lo com uma lança,
mas Ruggier rechaça e sobre ele cai,
e uma tal estocada lhe dá na pança
que pelas costas a espada um palmo sai.
O escudo embraça e a todos se lança,
mas é muito grande o bando que atrai;
um o fere aqui; lá, outro o aferra;
ele vai-se esquivando e fazendo guerra.
66 Um rasga até aos dentes, outro ao peito,
e vai cortando aquela iníqua raça,
da falta de elmos tirando proveito,
e de escudos, de panceira ou couraça;
mas é assediado de tal jeito
que precisaria, para fazer praça
e manter ao largo aquele povo réu,
ter mais braços e mãos que Briareu20 •
67 Se descobrisse o escudo que levava,
o escudo que já foi do necromante
(refiro-me àquele que a vista ofuscava,
que no arção deixara o mago Atlante) ,
com rapidez o bando dominava,
pois lhe cairia, cego, diante;
terá desprezado usar tal ardil,
por querer mostrar virtude viril.
68 Seja como for, antes quer morrer
/ que prisioneiro ser de tão vil gente.
Mas eis que se vê na porta aparecer,
saindo do muro de ouro luzente,
duas donzelas, em cujo parecer
origem não humilde era evidente:
não por pastores criadas, na pobreza,
mas em reais palácios da nobreza.
69 Um licorne cada uma montava,
mais cândido do que o cândido arminho;
o vestido que cada uma usava,
e o porte, mostrava perfeito alinho.
De modo que, se um homem as olhava,
devia possuir olho adivinho
para desmascarar a sua negaça2 1 :
��--·.:::...:.��:-:_ . . .
Beleza uma parece, a outra, a Graça.
CANTO VI 117

70 Ambas àquele lugar foram, no prado, 71 O adorno que aquela porta rodeia,
onde ataca Ruggier vil multidão. que a encima e que lhe avança, adiante,
Logo o bando se desvia para o lado, em toda a sua parte patenteia
e elas ao cavaleiro dão a mão; as mais preciosas gemas do Levante.
o qual enrubesceu, intimidado, Em quatro pontos nos extremos se esteia
e pela ajuda expressou gratidão. em maciças colunas de diamante.
Para seu comprazimento, e por decoro, O olho o dirá falso ou verdadeiro,
com elas regressou à porta de ouro. mas em beleza e graça é o primeiro.
1 18 ORLANDO FURIOSO

n No espaço que entre as colunas se espraia, 74 Ali, com serena e jocosa fronte,
correm brincando lascivas donzelas; parece que ri sempre o ameno Abril;
se à discrição dessem mais atalaia, jovens e damas há: uns junto à fonte,
que à dama convém, seriam mais belas. cantando uma toada pastoril;
Além de usarem todas verde saia, outros, à sombra de árvore ou de monte,
grinaldas coroavam todas elas. brincam, dançam, fazem coisa não viF3 ;
E, pródigas de encanto e de sorriso, também há quem, afastado, ao amado
a Ruggier franqueiam o paraíso: das amorosas penas dê recado.
73 tal se pode chamar àquele lugar, 75 Entre as copas de loureiros e pinhas,
onde creio que Amor terá nascido. de altas faias e abetos desgrenhados,
Em dança ali se está, ou a jogar, voam brincando tenros Amorzinhos24 ;
e de festejos o tempo é nutrido; alguns da vitória gozando agrados25 ,
maduro pensamento assento achar outros dali aos corações espinhos26
aqui não pode, é lazer aborrido; atirando, ou com redes ocupados;
aqui não entram míngua nem inópia: um ao riacho vai, dardos temperar;
de corno cheio, está presente a Cópia22 • outro os aguça em pedra de amolar.
CANTO VI 1 19

76 Um corcel a Ruggier ali foi dado, 79 Não só esse caminho impede assim,
forte, esbelto, pelagem luzidia, que livre seria não fora ela,
do qual o belo arreio era bordado como escorraça por todo o jardim,
a fio de ouro e preciosa pedraria; perturbando ou esta coisa ou aquela.
em custódia foi dado o outro, alado, Sabei que da quadrilha malandrim
que ao velho mouro 27 obedecer soía, que vos assaltou junto à porta bela
a um mancebo que a pequeno espaço muitos seus filhos são, todos sequazes,
de Ruggier o levava, em lento passo. como ela ímpios, hostis e vorazes. -
77 Aquelas duas jovens tão formosas 80 Ruggier respondeu: - Não uma batalha,
que Ruggier do ímpio bando livraram mas por vós estou pronto a fazer um cento;
(o bando de criaturas asquerosas de mim, e de tudo em que eu tenha valha,
que a via da direita interditaram) fazei como vos pede o vosso intento;
disseram: - Senhor, vossas valorosas que a razão por que eu visto cota e malha
obras, que a nossos ouvidos chegaram, não é para ganhar terras nem provento,
ammam-nos a que o amparo vosso mas só para fazer bem ao semelhante,
vos roguemos, para benefício nosso. mormente se é dama bela e galante. -
78 Em breve acharemos um lameirão 81 As damas muito gratas se disseram
que em duas partes faz esta planura. a Ruggiero, de forma lisonjeira;
Erifilla28 , a cruel, tem a função e, conversando, a um lugar vieram
da ponte guardar, e engana e tortura donde avistaram a ponte e a ribeira;
quem de ir à outra margem faz tenção; armada surge ali, como já esperam,
uma giganta é ela na estatura, de ouro e pedraria, a dama altaneira.
com dentes venenosos abocanha, Mas reservo para o outro canto a história
e com longas unhas, qual urso, arranha. do choque entre Ruggiero e a finória.

NOTAS

1 Ddcia: antiga provmc1a romana; faz actualmente 7
Astolfo: filho do rei Otone de Inglaterra e primo de
parte do território da Roménia. Orlando e Rinaldo (seu pai pertencia à família de
Claramonte), é figura tradicional da literatura cavaleires­
2 Confim: as colunas de Hércules, ou seja, o estreito de ca. As aventuras que aqui conta a Ruggiero ocorreram no
Gibraltar. O. Innamorato.
3 8
O ministro: a águia, ministro de Júpiter por lhe Mar índico: não equivale a oceano Índico, mas sim
transportar e precipitar na Terra os raios e relâmpagos. aos mares orientais de forma indefinida, pois fndia era
sinónimo de Oriente.
4 Aretusa: mito associado à ilha de Ortígia, em frente
9
a Siracusa, na Sicília. Transformada em fonte por Árte­ Brava: corresponde à actual Blaye, a norte de
mis, a fim de escapar à perseguição amorosa de Alfeu Bordéus, no estuário do Gironda; já no O. Innamorato
(deus do rio do mesmo nome, situado no Peloponeso, na era considerada feudo de Orlando.
Grécia), a ninfa foi, por caminhos subterrâneos, até
10
àquela ilha. Mas Alfeu conseguiu misturar as suas águas Alcina: irmã da fada Morgana, é invenção de
às dela (por isso, a fuga foi em vão). Boiardo. Idêntica aos seus modelos literários (Circe,
Dido, Calipso, etc.), representa alegoricamente a
5 Desarmou [ . .} palmas: retirou as manoplas (luvas de Luxúria.
ferro).
11
Onze passos: o «passo» dos Romanos equivalia a um
6
Deusa sertaneja: ninfa dos bosques. metro e meio.
1 20 ORLANDO FURIOSO

12 20
Noto: vento de sul, que traz tempestade. Briareu: um dos três Hecatonquiros, gigantes provi­
dos de cem braços e cinquenta cabeças que ajudaram
13
Irmã: Logistilla, símbolo da sensatez e da virtude. Zeus e os Olímpicos na luta para expulsar os Titãs.
1 4 Estas duas: as gémeas Alcina e Morgana. 21
Negaça: o feitiço, que lhes permite encobrir o vício
sob uma aparência de virtude.
15
Pelo monte e pela ribeira: os montes Cheviot e o rio
22
Tweed. Cópia: a Abundância, que, segundo a mitologia
grega, tinha por símbolo um corno repleto de flores e
16
Outros: a repetição desta palavra em posição de rima frutos, a cornucópia.
nos vv. 2-4-6 segue o original. Talvez seja um recurso para
23
Astolfo enfatizar a preferência que Alcina lhe concedeu. Fazem [. . .} vil: não se ocupam de tarefas vulgares,
servis. Apenas de diversão.
17
A via [. . .} a Logistilla: o caminho que conduz ao
reino de Logistilla - a virtude - é de difícil acesso e cheio 24 Tenros Amorzinhos: pequenos Cupidos.
de ciladas, em oposição àquele que conduz a Alcina - o
25
vício -, que é fácil e cheio de seduções. Vitória [. . .} agrados: regozijando-se por terem sido
bem sucedidos.
18 Momtruosas: os monstros apresentados simbolizam
26
os vícios que Ruggiero terá de combater para chegar ao Espinhos: os dardos atirados pelos Cupidos.
reino de Logistilla, isto é, à virtude.
27 Velho mouro: Atlante, que Boiardo, no O. lnnamorato,
19
O capitão: o capitão daquele bando é o Ócio, pai de diz ser originário da cordilheira do Atlas, no Norte de
todos os vícios. A sua figura parece inspirar-se no velho África.
sátiro Sileno, que costuma ser representado montado
num burro e amparado de ambos os lados, por estar 28 Erifilla: fi ra que simboliza a cupidez.
gu
sempre embriagado. O Ócio, porém, monta uma tarta­
ruga, cuja natural lentidão melhor se lhe adapta.
-.­
CANTO VII

Quem se desvia da sua pátria vê


coisas diferentes, que nunca advertira;
quando depois as conta, ninguém crê,
e em sua boca passam por mentira;
pois o vulgo ignorante não faz fé
no que nunca tocara ou nunca vira.
Por isso, bem sei que a inexperiência
fará meu canto ter pouca credência.
2 Que acreditem ou não, não me aborrece;
desprezo dou ao vulgo tolo e ignaro.
Sei bem que a vós mentira não parece,
que tendes do intelecto o lume claro;
pois só para vós, cuidado me merece
que o fruto do meu esforço seja caro.
Deixei-vos junto à ponte e à ribeira
guardados por Erifilla altaneira.
3 Fino metal vestia com desvelo,
de gemas de cor variada retinto:
rubro o rubi, o topázio amarelo,
verde a esmeralda e dourado o jacinto.
Cavalo não monta, mas outro pêlo:
um lobo, que é daquele bem distinto.
O lobo montava, onde passa o rio,
em sela rica como ninguém viu.
1 22 ORLANDO FURIOSO

4 Um tão grande a Apúlia 1 não teria, 6 Logo a giganta, destemida e lesta,


pois mais que um boi era o tamanho deste. o lobo pica e ao arção se cerra;
Não sei como a seu desejo o regia, a meio do caminho a lança enresta,
sem freio que espuma à boca lhe empreste. e faz tremer com seu galope a terra.
Da cor da areia uma capa vestia Porém, ao duro embate, em terra resta,
sobre a armadura, a maldita peste; pois sob o elmo Ruggiero a aferra
tirando a cor, era da mesma sorte e com tal furor a arranca do arção
que um bispo ou um prelado usa na corte. que seis braças voa antes de ir ao chão.
5 Tinha insígnia no escudo e no cimeiro 7 Da espada puxa ele, que tinha à cinta,
de um venenoso sapo façanhudo. para decepar a cabeça proterva;
Mostraram-na as damas ao cavaleiro, fácil lhe seria, pois como extinta
de cá da ponte, e para a justa tem estudo, jazia Erifilla, entre flores e erva.
e para trufar, e cort:u-lhe o carreiro, Gritam as damas: - Basta que ela sinta
como usava fazer muito a miúdo. que a venceste; a sua vida conserva.
Manda Ruggier para trás, em gritaria; Recolhe, gentil cavaleiro, a espada;
ele toma a lança, ameaça e desafia. passemos a ponte, e a seguir a estrada. -
s Por entre um bosque seguem uma via,
a qual, insuave e árdua, não deleita;
à colina, mui íngreme, subia,
e além de pedregosa era estreita.
Mas encontram espaçosa pradaria
que o cimo daquela colina enfeita;
e ali se lhes depara o mais jucundo
e belo palácio que há neste mundo.
9 Alcina sai, e um pouco vem avante
do férreo portão, com seu nobre porte;
Ruggiero acolhe com gentil semblante,
entre a sua graciosa e digna corte.
Todos fazem vénias ao viajante,
e reverências ao guerreiro forte;
outras não fariam se aos sítios seus,
do supremo trono, descesse Deus.
10 O palácio não era tão excelente
por qualquer outro vencer em riqueza,
mas por ter a mais cativante gente
deste mundo e de maior gentileza.
Pouco era um do outro diferente,
e eram de florida idade e beleza:
de todos, só Alcina era mais bela,
tal como o Sol é mais que qualquer estrela.
11 Sua figura era tão bem formada
como em obra de pintor não perlustro;
loura cabeleira traz entrançada:
não cem o ouro mais brilho e mais lustro.
Espargia-se na face delicada
a cor mista da rosa e do ligustro;
a fronte em marfim puro foi esculpida,
e o rosto acaba na justa medida.
CANTO VII 123

12 Encimam dois subtis e negros arcos 13 Logo abaixo, e entre covinhas estreitas,
os negros olhos, ou dois claros sóis, a boca tinta a natural cinábrio;
de suave expressão e a mover-se parcos; duas filas de pérolas perfeitas
como se Amor brincasse nesses dois, surgem, quando se aparta o doce lábio;
suas setas dispara desses marcos, donde se escoam palavras eleitas
os corações trespassando depois; que amolecem o coração mais sábio,
daquele ponto seu nariz descende, e onde se forma tão suave sorriso
e não encontra Inveja onde o emende. que dá na Terra acesso ao paraíso.
1 24 ORLANDO FURIOSO

14 De alva neve é o colo e leite o peito: 16 Cada feição é um laço estendido,


torneado um; cheio, o outro copia se fala, ri, canta, ou andar se digna;
dois verdes pomos, mas de marfim feito, nem espanta ter Ru ggier neles caído,
vão e vêm qual onda na baía, quando em tudo a encontra tão benigna.
quando o mar a suave brisa é sujeito. Ao que ao mirco sobre ela tinha ouvido,
As outras partes Argo2 não veria, que é pérfida e cruel, não se resigna;
mas bem se pode ver que corresponde, pois engano e traição, em seu juízo, ·
ao que fora aparece, o que se esconde. não acompanham tão suave riso.
15 Seus braços têm a medida justa; 17 Mais depressa acredita que por ela
e a cândida mão, que bem se lhe vê, foi plantado Astolfo na praia amena,
longa é bastante e de largura- angusta; por acto ingrato e vil que fez àquela,
nela nem nó nem veia se entrevê. e que é digno desta e de maior pena;
Vê-se por fim dessa figura augusta e tudo o que Astolfo ouviu contar dela
o pequeno, esguio, e macio pé. falso julga, por querer vingança plena,
Angelical feição, vinda do Céu, por rancor e inveja o penitente
ocultá-la não pode nenhum véu. movido, contra a dama, e em tudo mente.
CANTO VII 125

1s A formosa dama3 , que ele tanto amava, 20 Que mesa triunfante e sumptuosa
do coração lhe está desaparecida, de qualquer um dos sucessores de Nino,
pois por seu encanto Alcina lho lava ou aquela, tão célebre e famosa,
de toda a passada amorosa ferida; de Cleópatra4 para o victor latino,
ela só e seu amor nele grava, a esta era par, que a fada amorosa
ficando nele só ela esculpida: pusera na frente do paladino?
por isso desculpar Ruggier se deve, Não creio que uma mesa assim se observe
se aqui se mostrou inconstante e leve. onde Ganimedes Júpiter serve5 •
19 Cítaras, harpas, liras a tocar, 21 Das mesas o espaço desimpedido,
e vários outros aprazíveis sons, fizeram, numa roda, um jogo ledo:
em torno faziam tinir o ar uns aos outros perguntam ao ouvido,
com suave harmonia e concordes tons. a seu bel-prazer, um qualquer segredo;
Muitos davam a ver que para cantar tal foi pelos amantes bem acolhido
de amor gáudios e penas tinham dons, para seu amor confessarem, sem medo:
ou, com suas ficções e poesias, e foi sua conclusão derradeira
representavam gratas fantasias. juntos passarem essa noite inteira.
1 26 ORLANDO FURIOSO

22 Cedo o jogo acabou, e muito antes 2s mas saia ou saiote não envergou,
do que soía ser ali costume; que envolta veio em ligeiro cendal
pagens trouxeram tochas, e em instantes que só sobre a camisa colocou,
as trevas expulsaram com o seu lume. branca e diáfana como cristal.
Atrás e à frente vão acompanhantes, Abraçou-a e do manto a despojou,
que fazem que Ruggiero ao leito rume, e só lhe restou o subtil brial,
num aposento de tão belo efeito que a não cobria à frente nem atrás
que melhor entre todos foi eleito. mais que a rosas e lírios vidro faz.
23 Depois que finos doces e bons vinhos 29 Tão estreitamente não abraça a hera
lhe serviram em oferta cortês, o tronco a que se agarra duma palma;
retiraram-se os outros para seus ninhos, tal o abraço dos amantes era,
e muitas vénias cada um lhe fez; colhendo nos lábios a flor da alma9 ,
Ruggiero entrou nos perfumados linhos, mais odorante que semente dera,
das mãos de Aracne6 saídos, talvez, da Índia ou da Sabeia 1 0 , flor que açalma.
mantendo porém o ouvido atento, Dizer esse prazer a eles toca,
para na chegada da dama ter tento. pois mais que uma língua tinham na boca.
24 Ao mais pequeno rumor que sentia, 30 Esta paixão lá dentro era secreta;
na esperança de vê-la, seu rosto alçava: ou dela, pelo menos, se não falava;
pensava ouvir, depois já não ouvia, saber calar não raro é coisa recta:
e, pelo seu erro dando, suspirava. louvor motiva e pouca gente agrava.
Saía até do leito e a porta abria, Com fino acolhimento e etiqueta
para fora olhava, mas nada avistava; toda a gente ali Ruggiero adulava:
mil vezes maldição lançou à hora, cada um respeitoso se lhe inclina,
que para passar levava tal demora. pois assim quis a enamorada Alcina.
2s A si mesmo dizia: - Aí. vem ela. -, 3 1 Não há deleite que de fora reste;
e começava os passos a contar todos inclui essa amorosa aliança.
que da alcova dela iam àquela Num só dia amiúde trocam veste,
em que ele espera Alcina ver entrar; de acordo com esta ou aquela usança.
mil devaneios faz em sua cela, Todo o tempo em festejo ali se investe,
antes que a dama possa ali chegar. em justas, lutas, cenas, banho ou dança;
Teme que algo secreto se alicerce, ou junto às fontes, e umbrosos abrigos,
que entre o fruto e a mão venha meter-se7 . lêem os ditos de amor dos antigos;
26 Alcina, que aos seus preciosos odores 32 ou por amenos vales e colinas
se entregara sem restrições ou meta, caçam lebres esquivas com o alão;
ao chegar a hora em que de rumores ou, dos restolhos secos das campinas,
sabe que toda a casa já está quieta, com sagazes cães, espantam o faisão;
seu quarto deixa então, por entre olores; aos tordos visco ou laços, pelas matinas,
e silente vai, por via secreta, entre frondosas giestas armar vão;
aonde Ruggier, com temor e esperança, ou com redes, ou com anzóis e isco,
aguardava em forçada temperança. os segredos turbar do peixe arisco.
27 Conforme viu o sucessor de Astolfo 8 33 Estava Ruggier em tal recreio e festa,
aparecer-lhe diante as risonhas estrelas, enquanto Carlos luta e Agramante;
nas veias sente de enxofre um regolfo a sua história não quero por esta
a incendiar-se com o fogo delas. deixar esquecida, e a de Bradamante,
E até aos olhos imerge no engolfo que, amargurada por pena molesta,
dos enlevos e delícias singelas: dias chorou o desejado amante;
salta do leito e recolhe-a nos braços, o qual, por caminhos que o saber esconde,
sem esperar que ela desfaça seus laços; viu ser levado sem saber para onde.
CANTO VII 1 27

34 Desta primeiro que dos outros digo, 36 Que fosse morto acreditar não queria,
que muitos dias procurou em vão pois de homem tão notável a ruína,
por campos sombrios ou sem abrigo, das águas do Hidaspes 1 1 se ouviria
por vilas, cidades, por monte ou chão; até onde o Sol a dormir se inclina.
novas não teve de seu caro amigo, Imaginar não sabe qual a via
que estava em tão distante região. que no céu ou terra segue, e mofina
Ao campo sarraceno também ia, o vai buscando, e só leva consigo
mas notícia de Ruggier não ouvia. suspiros, pranto e da dor o castigo.
35 Perguntas faz por dia a mais de um cento, 37 Pensou por fim em regressar à furna
mas ninguém sabe dar-lhe indicações. que encerra os ossos de Merlim profeta,
Passa de alojamento a alojamento, e rogar tanto junto àquela urna
procurando em tendas e pavilhões. que a pedra fria à pena se remeta;
Pode fazê-lo sem impedimento, e que viva Ruggier ou que a soturna
por entre cavaleiros e peões, e triste Fortuna à morte o submeta,
graças ao anel mágico infalível, ali saber, e depois acatar
que a torna, na boca o tendo, invisível. o conselho que houvesse para lhe dar.
1 28 ORLANDO FURIOSO

38 A caminho se pôs desse confim, 44 Ele o mandara para a ilha de Alcina,


nas florestas vizinhas a Ponthieu, para esquecer as armas naquela corte;
onde a tumba falante de Merlim e como mago de suma doutrina,
por via tão ignota conheceu. que encantos sabia de toda a sorte,
Porém a maga, que no interim o coração daquela fada inclina
de Bradamante nunca se esqueceu ao seu amor com laçada tão forte
(falo daquela que, na linda gruta, que nem se desfaria se, um supor,
para a prole lhe mostrar se deu labuta) , vivesse mais Ruggiero que Nestor 1 2 •
39 aquela boa e sábia encantadora, 45 Voltando agora àquela que pressaga
que protectora desta sempre é, foi do que há-de vir, digo-vos que a via
sabendo que será progenitora tinha tomado em que a errante e vaga
de heróis, e de semideuses até, filha de Amon depois a encontraria.
de seus passos quer ser conhecedora, Bradamante, avistando a sua maga,
e sortes deita por ela com fé; mudou a dor que tanto a afligia
Que Ruggier liberto e desaparecido, em esperança; e a maga lhe revelou
e para as fndias fora, tinha sabido. que até Alcina Ruggiero voou.
4o Bem o vira partir naquele cavalo 46 Ficou a jovem quase como morta,
que não regia, porque desfreado, pois ao sabê-lo longe se compunge;
e percorrer um enorme intervalo e que isso ao seu amor perigo comporta,
por caminho perigoso e desusado; se remédio prontamente o não unge;
sabia-o rodeado de regalo, mas logo a bondosa maga a conforta,
de iguarias e ócio delicado, pondo-lhe o emplastro onde a dor a punge:
sem ter já lembrança do seu senhor, em poucos dias, promete-lhe e jura,
de sua dama nem de seu honor. Ruggiero verá, pode estar segura.
41 E assim a flor de seus juvenis anos 47 - E já que (disse) o anel tens contigo,
poderia em inércia consumir que poder tem contra toda a magia,
o cavaleiro, e nos mesmos enganos sei bem que se lá o tiver comigo,
corpo e alma a um tempo lhe fugir; onde Alcina do teu bem te espolia,
e aquele olor que fica dos humanos destruirei de seu feitiço o perigo
depois do frágil resto se extinguir, e trago a tua doce gelosia.
que do túmulo o liberta e preserva, Parto esta noite, na primeira hora,
feneceria nele qual frágil erva. e chego às Índias ao nascer da aurora. -
42 Mas essa gentil maga, que precata 48 E, continuando, o modo esmiuçou
mais do que o cavaleiro o seu viver, como tinha pensado utilizá-lo,
quer trazê-lo, por via pouco grata, para do lânguido reino a que chegou
à virtude e ao bem contra o seu querer: o tirar, e para França encaminhá-lo.
como médico que com ferro trata, Bradamante o anel do dedo tirou,
e fogo e até veneno, por mister, pois não só tinha vontade de dá-lo,
e que no princípio ofender parece, como o coração daria e a vida
mas no fim a vida se lhe agradece. para que ajuda a Ruggier fosse oferecida.
43 Com ele a maga não era indulgente, 49 O anel lhe entregou, e por si pedia,
sentindo por ele tão imenso amor e inda mais Ruggier lhe recomenda,
que, tal como Atlante, queria somente ao qual por ela saudações envia;
salvar-lhe a vida com todo o fervor. e para a Provença toma nova senda.
Mais depressa queria que longamente Seguiu a feiticeira outra via
ele vivesse, sem fama e honor, e, para que ao plano que urdiu bem atenda,
que com a maior glória que há no mundo à noite faz surgir um palafrém,
perdesse um ano de viver jucundo. que um pé vermelho e o resto negro tem.
CANTO VII 1 29

50 Alichino ou Farfarello 1 3 era ele, 56 Apareceu-lhe na figura de Atlante,


que, julgo, do Inferno em tal forma venha; pois sua semelhança possuía,
solta a veste e descalça monta aquele, tendo o sério e venerável semblante
e a solta juba atrozmente desgrenha; que Ruggiero reverenciar soía,
do dedo, porém, retirou o anel, e aquele olhar irado e ameaçante
para que suas magias não detenha. que já em menino tanto temia;
Tão depressa foi que a manhã raiava - É este (disse) o fruto sedutor
quando ela à ilha de Alcina chegava. que tanto esperei ter do meu suor?
51 Ali, magicamente, transformou-se: 57 As medulas de ursos e de leões
acresceu mais de um palmo de estatura, te dei como primeiros nutrientes;
e em proporção nos membros aumentou-se; por grutas te levei e boqueirões,
por fim reproduziu sua figura menino ainda, a estrangular serpentes,
como pensou que o necromante fosse deixar tigre e pantera sem unhões
(o que criou Ruggiero com ternura) . e ao javali vivo tirar os dentes,
De longas barbas cobriu a queixada, para que, depois de tanta disciplina,
e tornou a pele seca e enrugada. sejas Adónis ou Átis 1 5 de Alcina?
52 Em rosto e palavras, e no semblante,
tanto o imitou que perfeitamente
podia passar pelo mago Atlante.
Depois escondeu-se, e foi tão persistente
que de Ruggiero afastar-se a amante
Alcina viu um dia, finalmente;
Sorte teve, pois ou para estar ou ir
não costuma ela dele prescindir.
53 Sozinho o encontrou, tal como queria,
a manhã gozando, fresco e sereno,
junto ao rio que uma colina descia
para um lago cristalino e ameno.
Com a veste delicada e macia,
de indolência e lascívia estava pleno:
Alcina, com trabalho delicado,
a tinha em seda e ouro entrelaçado.
54 Ricas gemas, num colar feminil,
desciam-lhe do colo até ao peito;
em um e outro braço, antes viril,
luziam pulseiras de belo efeito.
Das orelhas, em fio de ouro subtil,
pendiam brincos em anel perfeito;
os quais duas pérolas suspendiam
como Árabes ou Índios não teriam.
55 Tinha os anéis de cabelo molhados
com suave e requintado perfume;
de amor eram seus gestos repassados,
como em Valência 14 o adamado assume:
seus méritos tinha do mal eivados;
só ao nome o que ele era se resume.
Assim Ruggiero ela encontrou, que tanto
lhe mudara a pessoa aquele encanto.
1 30 ORLANDO FURIOSO

58 Foi isto que as tão estudadas estrelas, 64 O que tem esta, que assim te domina,
entranhas, augúrios, pontos e linhas 1 6 , que não tenham mil outras meretrizes.?
sonhos, oráculos, todas aquelas De tantos outros já foi concubina,
tão exaustivas conjecturas minhas, e bem sabes se os sói fazer felizes.
para ti previram desde sempre, elas, Mas para que bem saibas quem é Alcina,
para estes anos a que te avizinhas : despojada dos seus falsos carizes,
que e m armas tuas obras tão preclaras põe no dedo este anel, vai ter com ela,
deviam ser, e grandiosas e raras? que assim vais poder ver como ela é bela. -
59 É esta a tua inicial lição 65 Ruggiero estava mudo, envergonhado,
para que venhas a ser, de forma lesta, olhando o chão sem achar que dizer;
um Alexandre, um Júlio, um Cipião? 1 7 no mindinho foi-lhe o anel enfiado,
Quem esperava uma coisa como esta, fazendo-lhe ela o senso reaver.
que de Alcina tomasses escravidão? Quando Ruggier se viu recuperado,
E, para que a todos seja manifesta, tal opróbrio sentiu em si crescer
tens no pescoço e braços a cadeia que enterrar-se mil braças desejara
com que ela à sua sedução te peia. só para que mais ninguém lhe visse a cara.
60 Se não te estimulam tuas medalhas 66 A sua antiga forma num instante,
e a excelsa obra a que o Céu te elegeu, assim falando, a maga recupera;
a tua sucessão por que abandalhas, pois já não precisava da de Atlante,
se o bem já te previ mil vezes eu? tendo visto o efeito por que viera.
Por que razão esse ventre amortalhas 1 8 , Que vos diga o que não disse é instante:
no qual o Céu por ti já concebeu Melissa o nome desta maga era,
vida dar àquela gloriosa prole que a Ruggier já se mostra, sem feitiço,
que no mundo há-de brilhar mais que o Sol? e lhe diz porque usou rosto postiço;
6 1 Não negues dar corpo às mais nobres almas 67 mandada foi daquela, de amor plena,
já ideadas 1 9 pelo divino querer; que o deseja sentindo a sua ausência,
vê se de tua progénie as açaimas, para o livrar da grilheta a que o condena
que a raça em ti raiz deverá ter! e constringe essa mágica violência;
Não impeças os triunfos e palmas o
e semblante de Atlante de Carena20
com que, após danos e chagas sofrer, tomara, para sobre ele ter influência.
teus filhos, netos e mais sucessores Mas, como de novo o siso o bafeja,
voltarão a dar à Itália honores. tudo revela para que tudo veja.
62 Chamar-te à razão deveriam tantas 68 - A gentil donzela que te ama tanto,
almas excelsas, em tom iracundo, e que do teu amor digna seria,
que ilustres, claras, ínclitas e santas à qual, se bem te lembras, sabes quanto
irão florir do teu tronco fecundo; a tua liberdade se associa,
mas que te baste um só par dessas plantas: este anel que defende do encanto
Ippolito e o irmão; poucos no mundo te mandou; e o coração mandaria,
como eles houve até aos dias de hoje, tivesse o coração igual virtude
em que a virtude em qualquer grau se poje. à do anel sobre a tua saúde. -
63 Costumava mais destes dois falar-te 69 E continua a falar-lhe do amor
do que dos outros todos em conjunto, de Bradamante, pois isso lhe importa,
porque lhes caberá a maior parte dela louvando também o valor,
das virtudes que em ti havias junto; que por verdade e afecto tanto exorta;
por isso, ao narrar deles vias dar-te usou os termos e o modo melhor
mais falas que de qualquer outro assunto; com que uma mensageira outrem conforta.
vi que deles muito te comprazias, Ruggier odiar Alcina tanto faz
por saberes que sua cepa serias. quanto é costume odiar as coisas más.
CANTO VII 13 1

70 Fez com que a odiasse, apesar de tanto 76 Balisarda22 à cintura então sustém
amá-la antes; e não achem estranho; (este o nome que à espada pertencia) ,
o amor era forçado pelo encanto, e o mágico escudo toma também,
e diante do anel perdeu tamanho. que não s6 os olhos cegar podia
Tornou claro o anel que tudo quanto como a alma entorpecida retém,
Alcina tinha belo era arreganho: parecendo que do corpo se desvia.
falso era tudo, desde o pé à trança; Pega-lhe e, sem lhe retirar a capa,
vai-se a beleza, a fealdade avança. ao pescoço o põe e logo se escapa.
71 Como um menino que um fruto maduro 77 No estábulo faz pôr arreios e sela
abandona, e esquece onde o colocou, ao corcel mais que pez negro, e faceiro,
e ao mesmo sítio voltou no futuro que Melissa indicara, visto que ela
e por acaso o mesmo fruto achou, sabia que a correr era ligeiro.
ficando admirado de o ver tão escuro, Por Rabicano 23 o bicho se interpela,
murcho e podre e já não como o deixou, e foi este que, com o cavaleiro
e, tanto quanto o apreciava, agora agora à beira-mar ao vento exposto24 ,
lhe dá nojo e repulsa e o deita fora: a baleia aqui trouxe, a contragosto.
n assim Ruggier, que graças a Melissa 77 Poderia o hipogrifo igualmente
pôde voltar a ver Alcina, a fada, levar, pois ao lado estava amarrado;
com aquele anel que desenfeitiça mas dissera-lhe a maga: - Tem em mente
e desmancha qualquer obra encantada, que ele é, como sabes, desenfreado. -
e em vez daquela por quem se derriça, No dia seguinte ela, estava assente,
da beleza por ele tão desejada, o levava para fora desse estado,
vê tão decrépita e feia mulher para onde ia receber instrução
como em toda a Terra não há sequer. para ir por todo o lado e ter travão.
73 Vincado e mirrado o rosto mostrava,
o cabelo ralo e embranquecido;
a estatura a seis palmos não chegava
e os dentes da boca tinham caído;
mais que a Cumana e Hécuba2 1 contava,
e mais que outra qualquer tinha vivido.
Pois arte ao nosso tempo ignota tem,
que aspecto belo e jovem lhe mantém.
74 Jovem e bela ela se faz com arte,
e muitos enganou como Ruggiero;
mas o anel o feitiço põe de parte,
que muito já escondeu o que era vero.
Milagre não é, pois, que ora se aparte
de Ruggiero o pensamento sincero
de Alcina amar, agora que descobre
a fraude que o aspecto bem lhe encobre.
75 Seguindo aviso de Melissa, aceita
não mudar o habitual semblante,
e suas armas, que há tempo rejeita,
vestiu de cima abaixo, atrás e adiante;
para não causar em Alcina suspeita,
fingiu provar que inda estava elegante,
provar que seu corpo não se expandira,
ap6s alguns dias que as não vestira.
1 32 ORLANDO FURIOSO

79 Deixando-o ali, suspeitas evita so Aos guardas deu assalto de improviso,


da fuga clandestina que aparelha. entrando entre eles de espada na mão,
Ruggier faz tudo o que Melissa dita, ou ferindo ou dando eterno prejuízo;
que invisível lhe está junto à orelha. a ponte atravessou de supetão,
Assim fingindo o reino desabita, e, antes de Alcina receber aviso,
lascivo e adamado, da puta velha: já longe ia Ruggiero em deserção.
da via que a Logistilla transporta No outro canto a via que tomou
foi-se aproximando, por uma porta. digo, e como a Logistilla chegou.

NOTAS

1 Apúlia: região do Sul de Itália (Puglia) , onde exis­ 14
Valência: cidade espanhola que era famosa pelos seus
tiam enormes lobos. hábitos dissolutos.
2
Argo: figura mitológica provida de cem olhos. 15 Adónis ou Átis: mancebos muito belos, amados, res­
pectivamente, por Afrodite e Cíbele.
3
A formosa dama: Bradamante.
16 Estrelas { . .} linhas: várias formas de adivinhação
4 Nino { . .} Cleópatra: a propósito da mesa de Alcina, (astrologia, aruspicação e geomancia) .
são recordados sumptuosos banquetes de personagens
famosos: Nino (rei dos Assírios) e seus sucessores 17 Alexandre { . .} Cipião: Alexandre Magno, Júlio César
(Semíramis e Sardanapalo), e Cleópatra, pelos banquetes e Cipião, o Africano, grandes figuras da história univer­
que ofereceu a Marco António (victor latino). sal.
5 Onde { . .} serve: no Olimpo. 18
Esse ventre amortalhas: condenas à infecundidade o
ventre de Bradamante.
6
Aracne: jovem exímia na arte de tecer e de bordar;
19
tendo vencido Atena em concurso, a deusa, por vingan­ Almas jd ideadas: de acordo com a doutrina plató­
ça, transformou-a numa aranha que tece continuamente nica, as almas já existem (ideadas pelo divino querer)
o seu fio. antes do corpo, tomando, de quando em quando, for­
ma terrena.
7
Entre { . .} meter-se: Ariosto adapta um verso de
Petrarca, tra la spiga et la man qual muro e messo (Rime, 2
° Carena: monte da cadeia do Adas onde, segundo
LVI:8), que Camões também transcreveu (Os Lusíadas, Boiardo, Adante habitava num castelo.
IX:78, 8) .
21
Cumana e Hécuba: lendários exemplos de velhice; a
8 Sucessor de Astolfo: seu sucessor nos amores de Sibila de Cumas viveu mil anos. Hécuba, mulher de
Alcina. Príamo, rei de Tróia, não viveu tanto, mas o bastante
para ter cinquenta filhos e assistir à destruição de Tróia e
9
Flor da alma: o beijo. de toda a sua família.
10Sabeia: ou Sabá, antigo reino dos Sabeus, no 22
Balisarda: espada que pertencera originalmente a
Sudoeste da Arábia (actual Iémene) . Orlando e lhe fora roubada por Brunello, que depois a
deu a Ruggiero.
11
Hidaspes: rio da Índia, que aqui representa o
23
Oriente. Rabicano: pertenceu a Argalia, irmão de Angelica, e
passou sucessivamente para Rinaldo e Astolfo.
12
Nestor: rei de Pilo; segundo Homero, viveu três gerações.
24
Cavaleiro { . .} exposto: Astolfo, agora plantado à
13
Alichino ou Farfarello: nomes de demónios usados beira-mar sob a forma de mirto.
por Dante (Inferno, XXI: 1 1 8 e 1 23) , e já antes documen­
tados na demonologia medieval.
--­
CANTO VIII

Oh quantas encantadoras e quantos


encantadores há entre nós, secretos,
que de homens e mulheres por seus encantos
amados são, mudando seus aspectos.
Não fazem com espíritos tais quebramos,
nem ao estudo dos astros são afectos:
com mentiras, fraudes, simulações,
prendem com nós cegos os corações.
2 Quem o anel de Angelica, ou, melhor,
quem o da razão tivesse, podia
a todos ver o rosto, que impostor
por arte e arrebique não seria.
O que de bom e belo tem louvor,
sem ouropéis, feio e mau surgiria.
Teve pois Ruggiero a grande ventura
de ver, com o anel, a verdade pura.
3 Ruggier (dizia eu) , dissimulando,
com Rabicano chega à porta armado:
a guarda ali desprevenida achando,
à espada deu para um e outro lado.
Mortos uns e outros feridos deixando,
à ponte vai destruindo o cercado;
ao bosque se avia; mas pouco corre,
que logo um dos servos da fada acorre.
1 34 ORLANDO FURIOSO

4 Empunha o servo uma ave rapace, 7 O cão não quer que o tomem por mais tardo
que em cada dia levava a voar e segue Rabicano, acelerado,
no campo ou na lagoa ali de face, como segue as lebres o leopardo.
onde era certa a presa para caçar; Ruggiero, de fugir envergonhado,
um cão levava, companheiro tenace, aguarda aquele que a pé vem tão galhardo;
e montava um escanzelado muar. armas não lhe vê, somente um cajado,
Bem pensou que Ruggiero ia fugir, com que ao cão a obedecer ensina;
quando com tamanha pressa o viu vir. e para puxar da espada não se inclina.
Vai ao seu encontro, e com ar altivo s Chega-se-lhe ele e com força lhe bate,
indaga o porquê de tal ligeirice. enquanto o pé esquerdo lhe morde o cão.
Ruggiero a responder mostrou-se esquivo, Três ou mais vezes os cascos lhe embate
mais certo ele ficando que fugisse; o rocim, do lado da destra mão.
detê-lo é então o seu objectivo, Volteia o pássaro a dar-lhe combate,
e estendendo o braço esquerdo 1 lhe disse: cravando-lhe as garras como punção;
- Que dirás tu, se aqui te der prisão, o seu crocito o cavalo estarrece,
se contra a ave não tens protecção? - que à mão e às esporas já pouco obedece.
6 Instiga a ave a voar com tal mecha 9 Constrangido, Ruggiero o ferro caça,
que iguala Rabicano na corrida. para fugir à moléstia que o enfada;
Do palafrém logo um salto desfecha, os animais e o vilão ameaça
ao mesmo tempo que o livra da brida. com o fio e com a ponta da espada.
Veloz parte ele, como do arco a flecha, A importuna turba o embaraça:
formidável no coice e na mordida; espalhando-se, ocuparam toda a estrada.
e o servo tão lesto lhe corre atrás Prevê Ruggiero o dano e o contratempo
que parece que fogo ou vento o traz. que lhe advirá, se ali passa mais tempo.
10 Sabe bem que, por pouco que ali fique,
Alcina e seu povo o alcançarão:
de trompa, tambor, sinos a repique,
já pelos vales ecoa a entoação.
A espada usar desdenha no despique
contra um servo sem armas e um cão:
mais breve é pois usar, por eficaz,
o escudo de Adante, que ao lado traz.
11 Tirou o rubro pano, que encoberto
houvera por muitos dias o escudo.
Fez este o efeito tido por certo,
ao ferir seus olhos com brilho agudo:
fica o servo dos sentidos deserto,
cai o cão, a pileca e o penudo;
Ruggiero assim os dá ao abandono,
feliz por vê-los entregues ao sono.
1 2 Alcina fora entretanto avisada
de que Ruggiero ultrapassara a porta,
deixando muita guarda dizimada,
e de dor esteve prestes a ser morta.
Com as vestes rotas e a cara arranhada,
néscia se diz e pelo descuido absorta;
mandou dar alarme imediatamente,
e em torno juntou toda a sua gente.
CANTO VIII 135

13 Em dois grupos os fez, e um mandou 16 Mandou-os Melissa para os seus países,


pela mesma estrada em que Ruggier caminha; com débito eterno de gratidão.
o outro grupo no porto ajuntou, O duque inglês4 , primeiro entre os felizes,
e logo embarcou na margem marinha: adquiriu humana conformação;
tanta vela enfunada o mar turvou. valeu-lhe o parentesco e as directrizes
Com eles embarca Alcina, mesquinha, corteses de Ruggiero em tal acção,
de Ruggiero reaver tão insofrida que a Melissa também deu o anel,
que deixa a cidade desprotegida. para maior ajuda assim dar àquele.
14 Não deixa ninguém de guarda ao seu paço, 17 A pedido pois de Ruggier, refeito
o que a Melissa, que estava disposta foi o paladim em sua forma antiga.
a libertar daquele reino devasso Parece a Melissa nada ter feito,
a gente que em desgraça fora posta, enquanto dar-lhe as armas não consiga,
deu comodidade e desembaraço e a lança de ouro, que, ao primeiro jeito,
para encontrar tudo aquilo em que aposta: em quem toca a cair da sela obriga.
imagens queimar, signos apagar, Foi de Argalia5 , ora é de Astolfo a lança
nós, losangos e espirais 2 desmanchar. que a um e a outro muito honrou em França.
15 Pelo campo em passos acelerados, 1s Encontrou Melissa essa lança de ouro,
à grande chusma de antigos amantes, posta por Alcina em sua morada,
em fontes, feras, plantas transformados, e as outras armas que eram de seu foro
devolveu a forma que tinham antes. e lhe tiraram nessa vil pousada.
Achando os caminhos desempachados, Sobre o corcel do necromante mouro
de Ruggiero foram acompanhantes: montou ela e Astolfo em retirada;
Logistilla os salvou, dali partindo logo a Logistilla se dirigiu,
para a Cítia3, para a Pérsia e Grécia, e para o Indo. e primeiro que Ruggier lá surgiu.
19 Por entre pedras e espinhos seguia
Ruggiero o trilho para a fada virtuosa,
dum penhasco a outro e de via em via,
inóspita, selvagem e penosa;
e só com grande custo a uma baía
chegou, na hora nona6 calorosa,
entre o mar e o monte, para o sul aberta,
ardente, nua, estéril e deserta.
20 Incide o Sol ardente na colina;
e, do calor que para trás reverbera,
de fervor o ar e a areia fulmina,
(com menos já o vidro derretera) .
Moles, à sombra, nem uma ave trina;
só a cigarra a cantar persevera
entre os densos ramos, e a sua prece
vales, montes, mar e céu ensurdece.
21 Ali, o calor, a sede e a fadiga,
por ter de seguir a via arenosa
da praia deserta que o Sol fustiga,
a Ruggier dão companha perniciosa.
Mas, porque não convém que eu sempre diga
ou duma coisa só vos faça prosa,
deixo Ruggiero no meio deste baldo,
e à Escócia vou reencontrar Rinaldo.
1 36 ORLANDO FURIOSO

22 Rinaldo era ali muito considerado 2s Emissários por toda a sua terra
pelo rei, pela filha e por todo o país. mandou, recolher cavalos e gente;
Do motivo que o tinha ali levado navios prepara e munições de guerra,
revelou o paladino o cariz: vitualhas e dinheiro, prontamente.
ficaria seu rei, sendo ajudado Vai Rinaldo entretanto a Inglaterra,
pela Escócia e Inglaterra, mui feliz; e, quando partiu, o rei, cortesmente,
ao pedido de Carlos ajuntou mesmo até Berwick7 o acompanhou;
a justa razão que o justificou. e há quem diga que, ao vê-lo ir, chorou.
23 Sem delongas o rei lhe fez o gosto: 26 Com o vento favorável pela popa,
que, até onde sua força se estendia, diz Rinaldo adeus a todos e embarca;
a ajudar e honrar sempre disposto o mestre, célere, os mastros enroupa,
o rei Carlos e o Império estaria; e chegam onde a salsa onda encharca
e em breve ao seu dispor seria posto o doce Tamisa e ao acre o não poupa8 •
o melhor corpo de cavalaria; Com a maré alta, que mais água abarca,
e só o ser entrado na velhice por caminho seguro navegaram,
vedava que ao comando ele seguisse. e a remos e à vela a Londres chegaram.
24 Não seria porém isso bastante 27 Vinha de Carlos e Otone9 em missão,
para ali ficar, se acaso não tivesse que em Paris estava com Carlos sitiado,
o filho, em força e saber abundante, com suas credenciais, em comissão
digno de que tal comando lhe desse; ao Príncipe de Gales enviado;
embora estando do reino distante, para que o que possa dar a região
esperava que entretanto aparecesse, de infantes e cavalos seja dado,
enquanto aquela tropa reunia; e tudo para Calais mande embarcar,
já reunida o filho a encontraria. para assim a França e Carlos ajudar.
CANTO VIII 137

31 Acendeu-lhe a beleza o coração,


e pôs-lhe em brasa a frígida medula,
mas ao vê-la dar-lhe pouca atenção,
e que a ficar consigo a não estimula,
esporeia o asno sem contemplação;
mas por mais que faça não o açula:
pouco vai a passo, e menos a trote;
pô-lo a galopar, nem com o chicote.
32 E porque muito já ela correu,
e dentro em pouco lhe perdia o rasto,
ao negro antro 1 1 o frade recorreu,
chamando de demónios grupo basto;
e de todo o grupo um deles escolheu,
informando-o logo do seu desgasto;
e fá-lo entrar no corpo do corcel
que a amada dele afasta num tropel.
33 Qual cão astuto, que, ao monte habituado,
à lebre e à raposa dar caça vem,
e que, se vê o bicho ir para um lado,
vai pelo outro, simulando desdém,
indo apanhá-lo em caminho cruzado,
e logo, rasgado, na boca o tem:
assim pelo eremita, em outra estrada,
vá por onde for, vai ser apanhada.
2s O príncipe que eu disse, que na vez 34 Qual é o seu desígnio, bem entendo,
de Otone ocupava o trono real, e vo-lo direi, mas não é agora.
a Rinaldo de Amon tanto honor fez Angelica, nada disso temendo,
que não teria a seu rei feito igual; seguia com mais ou menos demora.
depois os seus pedidos satisfez, No corcel se ia o demónio escondendo,
de modo que a toda a gente marcial como se esconde o fogo em certa hora,
da Bretanha 10 e ilhas que em torno havia o qual tão vivo depois se destapa
para se fazer ao mar fixou o dia. que não se apaga e a mal se lhe escapa.
29 Senhor, devo fazer, tal faz o bom 35 Tinha já a dama achado o caminho
tocador em seu instrumento estudo, junto ao grande mar 1 2 que a Gasconha lava,
que de corda muda e varia o som, e o corcel tinha das ondas vizinho,
procurando ora o grave ora o agudo. buscando o chão que mais firmeza dava;
Enquanto falo do filho de Amon, mas levou-lho o demónio mesquinho
de Angelica me recordo a miúdo, para dentro de água, e já nela nadava.
pois fugindo deste a deixei, aflita, Tudo o que pode a tímida donzela
quando tinha encontrado um eremita. é manter-se firme na sua sela.
30 Um pouco a sua história vou seguir. 36 A brida lhe puxa mas ele não volta,
Disse eu que ela perguntava, interessada, e vai sempre avançando para o mar alto.
como podia até à praia ir; A veste arregaça, no corpo envolta,
pois com Rinaldo estando apavorada, para não a molhar e os pés põe ao alto.
não passando o mar, teme sucumbir; Pelas costas desce a cabeleira solta,
nem na Europa toda está confiada. da brisa sofrendo lascivo assalto.
E o eremita ali a entretinha, Quedaram-se todos os grandes ventos
porque de estar com ela prazer tinha. a tanta beleza, com o mar, atentos.
1 38 ORLANDO FURIOSO

37 Voltava a terra o belo olhar em vão, 40 - Fortuna (diz), que mais fazer te resta
de lágrimas o rosto e o seio pleno, para que de mim te sacies e te fartes?
vendo afastar-se o arenoso chão, Que mais posso ora dar-te senão esta
que assim se ia fazendo mais pequeno. mísera vida? Mas, com tuas artes,
Nadando o corcel para setentrião, a salvá-la do mar foste bem lesta,
dá grande giro e regressa ao terreno podendo bem tirar-ma nessas partes;
entre assustadores penhascos e furnas, é porque esperas ter outros momentos
onde já descem as trevas nocturnas. para dar-me, antes que eu morra, mais tormentos.
38 Quando se viu sozinha em tal deserto, 41 Não creio possas fazer-me mais mal
que só de olhá-lo o medo a desfigura, do que aquele que até hoje me tens dado.
na hora em que no mar Febo encoberto 13 Afastaste-me do trono real,
a Terra, como o ar, tornara escura, que julgo estar-me para sempre vedado;
quedou-se em gesto que tornava incerto, minha honra perdi, perda fatal,
a quem avistasse a sua figura, pois, não tendo na verdade pecado,
se era uma dama viva e verdadeira dou motivo à fama que a mim se aplica:
ou rocha conformada em tal maneira. que ao ser vagabunda sou impudica.
39 Pasma e absorta sobre a areia instável, 42 Que mais pode uma mulher ter de bom,
os cabelos soltos, despenteados, depois de perder sua castidade?
j untas as mãos, a boca inalterável, Mal que à minha beleza traz destom,
e os lânguidos olhos ao céu voltados, quer seja mentira ou seja verdade.
como acusando o Grão-Motor 14 culpável Não agradeço já ao Céu tal dom,
de contra si ter conjurado os fados, do qual só me veio infelicidade:
imóvel ficou e atónita, tanto, meu mano Argalia por tal morreu;
até que língua e olhos solta ao pranto. nem a arma encantada 1 5 lhe valeu;
43 e Agricane, da Tartária sultão,
meu pai, Galafron, levou de vencida 1 6 ,
que do Catai, na Índia, era grão-cão;
por isso à condição fui reduzida
de mudar, todo o dia, habitação.
De haveres, honra, pessoas desvalida
me fazes, e com todo o mal me feres;
que outras dores infligir-me ainda queres?
44 Se afogar-me no mar morte não era
para teu cruel querer satisfação,
não rejeito que mandes uma fera
que me devore, e finde esta aflição.
Qualquer seja o martírio que me espera,
se eu perecer, só sinto gratidão. -
Chorava assim a dama em seu pesar,
quando ao lado o eremita vê chegar.
45 Tinha avistado, do ponto mais alto
duma íngreme falésia, o eremita,
Arigelica, que, ao dar do mar o salto,
na base da rocha ficara, aflita.
Seis dias antes veio, em sobressalto,
que o demo o trouxe por via interdita;
a ela vai, fingindo devoção,
como tivera Paulo ou Hilarião 1 7 •
CANTO VIII 1 39

46 Assim que a dama o começou a ver,


sem o reconhecer sentiu conforto;
e a pouco e pouco deixou de temer,
embora o rosto tenha como morto.
- Misericórdia, padre, se puder
(disse) , que sou chegada a um mau porto. -
Com voz entrecortada pelo soluço
contou-lhe o que para ele já era embuço.
47 Começa o eremita a confortá-la,
palavras belas usando e devotas;
e põe mão atrevida, enquanto fala,
ou no seio ou do choro nas gotas;
depois, mais seguro, quer abraçá-la;
ela desdenha as intenções marotas:
empurra-o com a mão, no peito o atinge,
e, por honesta, de rubor se tinge.
48 Abriu ele o alforge que levava,
retirando uma ampola de licor;
e nos olhos dela, em que cintilava
a mais ardente expressão que haja Amor,
uma gota atirou, numa acção prava,
que para pô-la a dormir teve valor.
Ei-la que estendida na areia jaz
à disposição do velho voraz.
49 Abraça-a ele e a bel-prazer lhe toca,
e ela a dormir não lhe pode pôr termo.
Ora beija o belo peito ora a boca,
sem que alguém o veja em local tão ermo.
Mas seu corcel no assalto embatoca 1 8 ,
que não segue o desejo o corpo enfermo:
impreparado, por ter muitos anos,
quanto mais tentar mais tem desenganos.
50 Todas as maneiras e modos tenta,
mas o rocim, preguiçoso, não salta.
Em vão lhe abana o freio e o atormenta,
mas não logra pôr-lhe a cabeça alta.
Por fim ao lado dela se adormenta,
mas uma nova desgraça a assalta:
quando escolhe para brincar um mortal,
nunca o Destino faz coisa banal.
51 Primeiro, impõe-se que vos narre o caso
que a um desvio me vai obrigar.
Nos mares do Norte, para o lado do ocaso,
após a Irlanda, uma ilha há lugar
chamada Ebuda 1 9 ; onde a Sorte deu azo
ao povo dessa ilha se encurtar:
a orca e mais monstros o destruiu,
quando Proteu20 para ali os conduziu.
1 40 ORLANDO FURIOSO

52 Narra uma antiga lenda, falsa ou vera, 55 chegam a ir às cidades muradas,


que teve esse lugar um rei potente, e por todo o lado lhe dão assédio.
cuja filha de tal beleza era Dia e noite estão as gentes armadas,
e graça tal que pôde facilmente, com temor e desconfortável tédio,
um dia em que na praia aparecera, e ficam as terras abandonadas;
deixar Proteu, em plena água, ardente; procurando por fim achar remédio,
quando este um dia só a encontrou, lá foram a pedir conselho seu
com seu amplexo grávida a deixou. ao oráculo, que lhes respondeu:
53 A coisa foi gravíssima e molesta 56 que era preciso achar uma donzela
para o pai, homem desalmado e severo; que fosse à primeira em beleza par,
a vida com maldade manifesta e a Proteu, ofendido, dar aquela
não lhe poupou, por desdém forte e fero. em troca da morta, à beira do mar.
Nem mesmo vendo-a grávida lhe resta Se, para o satisfazer, a achar bela,
pejo de executar o acto austero; tê-la-á, e não virá perturbar;
e o netinho, que não tinha pecado, se não lhe agradar, que se lhe apresente
fez com que morresse antes de ser nado. outra e mais outra, até que se contente.
54 Proteu marinho, que pasce o armento 57 Assim se iniciou a triste sorte
de Neptuno2 1 , que dos mares é o rei, de quantas mais belas eram de rosto;
sofre pela amada duro tormento; que Proteu cada dia se conforte,
tomado de ira, rompe ordem e lei22 , até que se encontre dama a seu gosto.
e a mandar ir para a terra não é lento À primeira e às demais coube a morte:
orcas e focas, e a restante grei, pois todas a comer se tem disposto
que a bois, ovelhas dão destruição, uma orca, que ficou junto à foz23
e às terras, e a quem cultivava o chão; depois de ter partido o bando atroz.
58 Que a história seja vera ou mentirosa,
a de Proteu (eu não sei que vos diga) ,
ali se conservou coisa odiosa
contra as mulheres, a cruel lei antiga:
que sua carne à orca monstruosa,
em cada dia, ali encha a barriga.
Embora ser mulher em toda a banda
seja desgraça, ali é mais nefanda.
59 Infelizes as damas que transporte
injuriosa fortuna ao lido infausto!
eles pelo mar as apanham, à sorte,
para de estrangeiras fazer holocausto;
pois quanto mais estranhas dão à morte,
menos das suas o número é exausto;
Mas, se pelo vento ali não são depostas,
vão em busca delas por outras costas.
60 Vão procurando por toda a marinha,
em fustas, galês e navios de truz,
em parte distante e também vizinha,
aliviando as suas dessa cruz.
A muitas, força e rapto descaminha,
outras, lisonjas e ouro as seduz;
são trazidas de diversas regiões,
e enchem todas as torres e prisões.
CANTO VIII 141

61 Passando uma sua fusta rente à terra, 64 A bela dama, que o sono retém,
em frente à tal solitária baía, a acorrentar logo o bando se apresta.
onde entre tojos, na herbosa terra, O frade bruxo levaram também
a infeliz Angelica dormia, no barco a abarrotar de gente roesta.
alguns dos marujos vieram a terra, Içada a vela que o mastro sustém,
para procurar lenha e água sadia; seguiu a nave para a ilha funesta.
e dentre as belas a flor mais bonita Ali, a dama encerraram num forte,
encontram, nos braços do eremita. até que o dia lhe calhasse em sorte.
62 Oh tanto cara e tanto excelsa presa, 65 Mas teve o condão, por ser assim bela,
para povo tão bárbaro e tão vilão! de na gente fera inculcar piedade;
Quem pode crer, Fortuna, em tal crueza: e foram diferindo a morte dela,
sobre o que é humano tens tal condão guardando-a para maior necessidade;
que, para alimento dum monstro, a beleza e, enquanto lhes restou uma donzela,
dás que à Índia Agricane em rebelião pouparam essa angélica beldade.
fez vir, através da caucásia porta24 , Ao monstro foi levada finalmente,
ali ficando meia Cítia morta? chorando, a acompanhá-la, toda a gente.
25
63 A beldade pela qual deu Sacripante 66 Quem dirá a angústia, o pranto, os gemidos,
mais que à honra e ao reino o seu empenho; o alarido que para o céu desabrocha?
a beldade por que o senhor de Anglante Estranho é que não se abrissem os lidos,
manchou a clara fama e o alto engenho 26 ; quando foi posta sobre a fria rocha
a beldade que fez todo o Levante em cadeias, todos dela esquecidos,
conturbar-se e obedecer de mau cenho 27 esperando morte abominosa e frouxa.
não tem agora, só e abandonada, Eu não direi, que é tal minha emoção
uma ajuda, uma palavra, nem nada. que a meus versos dou outra direcção,
1 42 ORLANDO FURIOSO

67 tentando achar outros menos plangentes, 69 Essa Paris que entretanto assedia
até meu espírito se recompor; o famoso filho do rei Troiano30 ,
não poderiam esquálidas serpentes, e que chegou a um tal extremo um dia
nem, cioso da cria, tigre em furor, que quase sucumbiu ao africano:
e os venenosos que dos Atlas quentes por sorte o Céu suas preces ouvia,
aos rubros lidos erram28 , ao calor, inundando de negra chuva o plano:
ver ou imaginar sem amargura senão, teria a africana lança
Angelica amarrada à rocha dura. ganho o Império e o grão nome de França.
68 Oh, se em Paris de tal soubera Orlando, 70 O Sumo Criador o olhar volveu
que ali para procurá-la faz prodígios; ao velho Carlos, para recompensá-lo;
ou os dois29 que o frade foi enganando chuva repentina o fogo abateu:
com o arauto dos antros estígios! não podia a força humana apagá-lo.
Mil mortes afrontariam, tentando Sábio é quem sempre a Deus recorreu,
encontrar os angélicos vestígios; pois ninguém melhor podia ajudá-lo.
mesmo que estes achassem, que fariam, Foi o devoto rei conhecedor
se tanto da dama se distanciam? de ao divino auxílio ser devedor.
71 De noite Orlando às incómodas plumas3 1
transmite o seu pensamento veloz.
Para aqui para ali o gira, ou suas sumas
num só reúne, sem deter o algoz,
como em repouso da água as escumas:
se, de lua ou sol, raio as toca após,
nos tectos dão reflexo em grande salto,
à esquerda, à direita, para baixo e ao alto.
CANTO VIII 1 43

n A sua dama, que lhe volta à mente, 75 Que ao menos a pusesse em guarda boa,
sem jamais dela se ter apartado, em Paris ou em cidadela forte.
reacende-lhe e torna mais ardente Que a tenha dado a Namo, bem me soa,
a chama que o dia tinha amainado. foi só para que a perdesse de tal sorte.
Com ele tinha ela vindo para o Poente, Para bem guardá-la, qual melhor pessoa
do Catai, e aqui se tinha eclipsado; que eu? Devera, sim, e até à morte,
não mais vira o rasto dos passos seus mais que aos meus olhos e ao meu coração
desde o revés de Carlos em Bordéus32 • tê-la bem guardado, e não o fiz, não.
73 Por isso Orlando sofria, e consigo 76 Oh, onde, sem mim, minha doce vida,
em vão na sua inépcia repensava. tens paradeiro, tão jovem e bela?
- Amor (dizia) , como vil contigo Como, da luz do dia desprovida,
me comportei! Meu Deus, quanto me agrava, a desgarrada ovelha se acautela,
poder ter-te dia e noite comigo, e, pelo pastor esperando ser ouvida,
pois tua bondade me o não negava, vai balindo desta parte para aquela,
e deixar-te nas mãos de Namo 33 pôr, sendo escutada pelo lobo distante,
por não saber-me a tanta injúria opor! e em vão a busca o pastor, soluçante.
74 Não tinha eu motivo para me escusar? 77 Onde estás tu agora, ó minha guia?
Não me haveria Carlos contrafeito; Será que vais inda sozinha errando?
e, se sim, quem me podia obrigar? Ou tens dos cruéis lobos companhia,
Quem te iria tirar-me, a meu despeito? sem que te guarde o teu fiel Orlando?
Não podia eu ser lesto a pelejar? A flor34 que lugar nos Céus me daria,
Deixar tirar-me o coração do peito? essa flor que intacta fui conservando
Pois nem Carlos, nem toda a sua gente, para não perturbar teu espírito casto,
para tirar-te-me à força era potente. devem já, ai!, tê-la colhido e gasto.
144 ORLANDO FURIOSO

78 Oh, que desgraçado sou! Só me resta 84 Sem pensar que as imagens falsas são
morrer, se a flor sofreu mutilação! quando por medo ou desejo se sonha,
Ó bom Deus, faz que não seja por esta da donzela sentiu tal compaixão,
que eu me doa, mas por outra razão. julgando-a exposta ao perigo ou à vergonha,
Pois, se for, fim ponho à vida funesta, que salta apressado do leito ao chão.
e à alma dou eterna danação. - De malha e couraça todo se enfronha,
Tal dizia, a chorar e suspirando, e foi buscar Brigliadoro37 , o cavalo;
consigo mesmo o infortunado Orlando. o escudeiro, porém, não quis levá-lo.
79 Por toda a parte as lassas criaturas 85 E, para poder passar por todo o lado38
davam repouso aos espíritos cansados, (a tal sua dignidade o aconselha) ,
uns sobre penas, outros pedras duras, não leva o seu emblema esquartelado,
na erva, em mirtos ou faias pousados; distinto pela cor branca e a vermelha,
tu, Orlando, os olhos cerrar procuras, preferindo ir de negro ornamentado:
mas teus pensamentos, duros, pesados, achou que à sua dor tal se assemelha;
nem tão-pouco um sono breve e fugaz tinha-o tirado a um miramolim39
te deixam ao menos gozar em paz. que às suas mãos um dia achara o fim.
80 Parecia a Orlando, numa campina 86 Quando é meia-noite, silente, parte,
de odoríferas flores salpicada, sem despedir-se ou dar palavra ao tio40 ;
ver o belo marfim, e a purpurina mesmo ao fiel amigo Brandimarte4 1
pelas mãos do próprio Amor nele pintada, não dizer que partia preferiu.
e as duas estrelas35 , fonte genuína Mas quando o Sol, que seus raios disparte,
onde a alma de Amor era ateada: da morada de Titono saiu42
falo dos belos olhos e da face e as sombras negras todas expulsou,
que ao coração lhe dão prisão tenace. viu logo o rei que Orlando se ausentou.
81 Sentia todo o prazer, toda a festa 87 Apercebe-se o rei com grande abalo
que sentir pode algum feliz amante; que o sobrinho partiu durante a noute,
mas surge uma tempestade molesta quando devia ali estar e ajudá-lo;
que flores e plantas destrói, fulminante; e à sua cólera não pôs garrote:
não é comum ver semelhante a esta, começa a lamentar-se e a censurá-lo,
quando sopra aquilão, austro e levante36 • com desagradável e duro mote;
Na sua busca vã para se abrigar, faz-lhe ameaças, chegando a dizer
num hostil deserto parecia errar. que o fará do grave erro arrepender.
82 Sem saber como sua dama se some, 88 Brandimarte, que a Orlando amor par
perde-a de vista em meio ao ar revel; tem quanto a si mesmo, não ficou quedo;
por todo o lado faz seu belo nome ou que o pensasse fazer regressar,
ressoar, pelos bosques e pelo vergel. ou por ouvi-lo censurar azedo,
E, enquanto diz: - O astro atraiçoou-me! o tempo apenas se quis demorar
Quem transformou minha doçura em fel? -, para do escuro da noite ir em segredo.
chega-lhe a voz da dama que lhe implora À sua Fiordiligi43 nada disse,
ajuda e protecção, enquanto chora. para que ela o intento não lhe impedisse.
83 Donde lhe soa o grito vai veloz, 89 Era esta a dama a quem ele se unira,
e, dum lado para outro, aflito erra. muito pouco estando na sua ausência;
Oh, quanto é sua dor dura e atroz, usos, graça e beleza a distinguira,
pois sinal do doce olhar não aferra. dotada de bom senso e de prudência;
Eis que ouve então dizer uma outra voz: e, se ora dela não se despedira,
- Não esperes dela alegria na Terra. - foi por esperar rever sua aparência
A este horrível grito despertou, no mesmo dia; porém, sucedeu
e banhado em lágrimas se encontrou. que mais tardou do que era intento seu.
CANTO VIII 1 45

90 Depois de o ter esperado quase um mês


em vão, sem assistir ao seu regresso,
da sua ausência não se satisfez
e sozinha partiu, com fito expresso;
o país percorreu de lés-a-lés,
mas à história teremos novo acesso.
Sobre estes dois não irei ora avante,
pois mais me importa o cavaleiro de Anglante.
91 O qual, depois de as insígnias de Almonte
ter vestido, para o portão avançou,
e, para que o guarda a abri-lo se apronte,
ao ouvido lhe disse: - O conde eu sou44 • -
E, mandando abaixar súbito a ponte,
a direcção sem demora tomou
do campo que ao inimigo é restrito.
O que segue no outro canto é escrito.

NOTAS

1 Braço esquerdo: a ave de rapina usava-se no braço 13 No mar Febo encoberto: ao pôr do Sol.
esquerdo.
14 Grão-Motor: Deus.
2 Imagens [. .. } espirais: objectos e desenhos usados na
15
arte da magia. Arma encantada: a lança de ouro que agora pertence
a Astolfo (cf. VIII: 1 7- 1 8) .
3
Cftia: antigo nome da actual Tartária, região da
Federação Russa situada a leste de Moscovo. 16 Da Tartária [. . .} vencida: no O. lnnamorato,
Agricane, rei da Tartária, combateu e derrotou
4 Duque inglês: Astolfo. Galafrone, grão-cão do Catai, por lhe recusar a mão da
filha, Angelica.
5 Argalia: irmão de Angelica, morto por Ferraú (cf.
17
nota a I:29) . Paulo ou Hilarião: Paulo, primeiro eremita do
Egipto (Tebas), e Hilarião, primeiro eremita da
6 Hora nona: ou noa; hora canónica correspondente Palestina, dois modelos de santidade.
aproximadamente ao período entre as 1 3 e as 1 5 horas.
18
Corcel [. .. } embatoca: seguindo a tradição literária,
7
Berwick: cf. nota a IV:53. Ariosto utiliza o cavalo como metáfora sexual, expressa­
mente do órgão genital masculino. Aqui e na oitava
8
Salsa onda [. ..} poupa: o ponto onde o mar salgado seguinte, dá expressão à impotência sexual do eremita.
se mistura às águas doces do Tamisa, ou seja, a foz desse
rio. 1 9 Ebuda: ilha a ocidente da Escócia, que se supõe no
actual arquipélago das Hébridas.
9
Otone: rei de Inglaterra, pai de Astolfo.
20
Proteu: Na Odisseia, Proteu é apresentado como um
1 0 Bretanha: Grã-Bretanha. deus do mar, com a tarefa de apascentar os animais mari­
nhos pertencentes a Posídon. Possuía o dom da meta­
1 1 Negro antro: Inferno. morfose, podendo tomar a forma não só de seres vivos,
mas de tudo o que quisesse.
12
Grande mar: o Atlântico.
1 46 ORLANDO FURIOSO

21
Neptuno: Neptuno é o deus romano identificado 34 A flor: a virgindade de Angelica, que ele respeitou, e
com Posídon, deus grego dos mares. que o teria feito feliz como um deus.
22 35
Rompe ordem e lei: rompe a ordem e a lei da nature­ Purpurina [. . .] estrelas: evocação metafórica do rosto
za, levando para a terra os animais marinhos. de Angelica.
23 36
Foz: entrada do porto. Aquilão, austro e levante: ventos que sopram de
norte, sul e leste.
24
Caucdsia porta: passo de Derbent; fortaleza no
37
Cáucaso, destinada a impedir a passagem dos Tártaros. Brigliadoro: cavalo de Orlando.
25 Sacripante: rei da Circássia (cf. 1:4 5). 38
Passar por todo o lado: Orlando disfarça-se de sarra­
ceno, para poder, sem ser reconhecido, penetrar nos
26
Senhor [. . .] engenho: Orlando manchou a clara fama campos- dos Mouros em busca de Angelica.
e o alto engenho, ao abandonar o campo cristão, sitiado
39
pelos Sarracenos, para ir procurar Angelica. Miramolim: califa ou chefe, entre os muçulmanos.
27
Levante [. . .] cenho: todo o Oriente foi conturbado 40 Tio: Carlos Magno. A mãe de Orlando, Berta, era
por causa de Angelica. irmã do imperador.
28
Venenosos [. . .] erram: animais venenosos que erram 41 Brandimarte: grande amigo de Orlando, por ele con­
pelo deserto que, no Norte de África, se estende dos vertido ao cristianismo.
montes Adas ao mar Vermelho (rubros lidos) .
42
Da morada de Titono saiu: o Sol saiu da morada de
29 Os dois: Rinaldo e Sacripante (cf. II: 1 5- 1 7) , ludi­ Titono (marido da Aurora), ou seja, surgiu a oriente.
briados pelo demónio (arauto) que o eremita (frade)
invocara dos Infernos (antros estígios) . 43 Fiordiligi: a esposa de Brandimarte, que o costuma
acompanhar em todas as empresas.
3
° Filho do rei Troiano: Agramante (cf. 1: 1) . 44 O conde eu sou: disfarçado com as armas e insígnias
31
Incómodas plumas: o leito torna-se incómodo a quem que herdou de Almonte quando o matou (cf. nota a
não consegue conciliar o sono. I:28: 5), Orlando teve de se identificar verbalmente para
que a guarda lhe franqueasse a saída.
32
Desde [. . .] Bordéus: cf. 1:9:5-6.
33
Namo: o duque da Baviera (cf. 1:8).
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CANTO IX

O que, a um coração a si sujeito,


faz esse cruel e traidor Amor:
consegue a Orlando apagar do peito
a tanta fé que deve ao seu senhor!
Era sensato e pleno de respeito,
e da santa Igreja era defensor;
agora, por amor, cuidados seus
poucos há por si, pelo tio e por Deus.
2 Mas dou-lhe desculpa, e até me alegro
por ter no meu erro parceiro tal;
também eu sou no bem débil e egro,
mas são e galhardo a seguir o mal.
Vai-se ele embora vestido de negro,
tanto amigo deixar é-lhe banal;
segue para onde de África e de Espanha
a tropa estava, em tendas de campanha;
3 não era em tendas, pois da chuva coito
sob árvores acharam, agrupados
aos dez, aos vinte, quatro, sete e oito;
uns mais longe outros mais perto alojados,
cada um dorme, fatigado e afoito,
uns estendidos, uns à mão apoiados.
Pode matar os que tiver na gana,
porém, nem deita a mão a Durindana 1 •
148 ORLANDO FURIOSO

4 Tem tal nobreza o generoso Orlando 10 À margem não vai mais que aquela marca,
que não ousa ferir gente adormecida. receando que à força ele arremeta.
Ou num ou noutro lado, procurando Orlando implora que na sua barca,
vai o vestígio da sua dama querida. para o passar para a outra margem, o meta.
Se encontra algum de vela, suspirando E ela: - Cavaleiro aqui não embarca,
descreve-a tal como é e está vestida; o qual por sua fé não me prometa
e depois pede que, _por cortesia, que a fazer uma batalha se apresta,
para ir onde ela está lhe indique a via. a mais justa do mundo e a mais honesta.
5 Ao chegar o dia claro e luzente, 11 Se quereis, cavaleiro, transferir
buscou todo o exército mouresco; comigo à outra margem vossa rota,
podia fazê-lo seguramente, prometei-me que, antes de se atingir
tendo vestido o hábito arabesco; do mês que se aproxima a última gota,
e nisto foi ajudado igualmente ao rei de Hibérnia4 vos ireis unir,
por saber o idioma soldadesca; j unto do qual se faz a bela frota
era em africano tão entendido que irá destruir a ilha de Ebuda,
que dir-se-ia em Trípoli nascido. que é de todas que o mar cerca a mais cruda.
6 Ali tudo buscou, numa demora 12 Deveis saber que para lá da Irlanda,
de três dias, e só com este fito; entre outras que há, essa ilha jaz;
depois cidades, burgos delas fora, chama-se Ebuda, e sua lei manda
não espiou só por França e seu distrito2 , que em redor roube o seu povo rapaz;
mas primeiro Auvergne, e Gasconha agora, e quantas mulheres apanham, vianda
viu até ao lugar mais interdito; todas são para um animal voraz
e procurou da Provença à Bretanha, que cada dia ao lido vem comer,
e da Picardia aos confins da Espanha. nova dama achando para se pascer;
7 De fim de Outubro a início de Novembro,
nessa estação em que a frondosa veste
à planta cai e lhe descobre o membro,
até que nua fica ao frio agreste,
e as aves juntas vão, desde Setembro,
Orlando a demanda amorosa investe.
Todo o Inverno não a abandonou,
e nem na nova estação a deixou.
Indo ele um dia, como costumava,
duma terra a outra, um rio3 ali houve
que entre Normandos e Bretões põe cava,
e para o mar vizinho calmo se move;
que então caudaloso e branco espumava,
pela neve mole e o que no monte chove;
a força da água a ponte arrancara,
impedindo o passo a quem lá passara.
9 Olha o paladim um e outro lado
ao longo das ribas, para ver se vê
(visto que não é peixe nem alado)
como há-de pôr na outra margem pé;
nisto um barco vê vir, para si virado,
e uma donzela vem, sentada à ré,
que faz sinal de querer vir junto dele;
mas não deixa vir a terra o batel.
CANTO IX 1 49

13 mercadores e corsários dão razia, 19 Pediu-lhe, da parte duma donzela,


muitas trazem, na maioria belas. que ir até ela não lhe fosse grave;
Podeis fazer a conta, uma por dia, a qual acharia, para além de bela,
quantas morreram, damas e donzelas. mais que outra qualquer, gentil e suave;
Mas se em vós se albergar uma alma pia, se acaso ele preferisse esperar, ela
e não tendes contra o Amor querelas, viria ao seu encontro até à nave;
alegrai-vos por estar entre os eleitos que não quisesse ser mais relutante
que vão provocar tão úteis efeitos. - que qualquer outro cavaleiro errante;
14 Orlando, assim que tudo ouviu contar, 20 pois nenhum outro cavaleiro, que chega
jurou ser o primeiro em tal empresa; por terra ou por mar até esta foz,
nem pode o acto iníquo ouvir contar, a falar com a donzela se nega,
só de escutá-lo o coração lhe pesa; para aconselhá-la no seu caso atroz.
e a pensar vai, aliás, a recear, Ouvindo isto, Orlando não sossega,
que tenham feito de Angelica presa; e logo para a margem salta veloz;
pois, tendo-a procurado em campo vasto, e sendo humano e cheio de cortesia,
dela até hoje não encontrou rasto. onde o velho o levou, seguiu a via.
1s Esta reflexão tanto o confundiu 21 À terra8 foi levado de seguida,
que o fez esquecer a primeira intenção, a um palácio onde, ao subir a escada,
e o mais lesto possível decidiu uma dama viu de luto vestida,
navegar para aquele reino malsão. e pelo luto tendo a face marcada;
Quando o outro sol no mar se sumiu, de negros panos estava revestida
já se encontrava numa embarcação; toda a casa: quartos, salas, arcada;
alçadas as velas em Saint-Mala, após a recepção grata e honesta,
pelo monte Saint-Michel depois passou. fê-lo sentar e disse-lhe em voz mesta:
1 6 Saint-Brieuc e Tréguier deixa à canha,
e vai rasando da Bretanha a terra;
logo às brancas falésias rumo ganha,
que o nome Álbion 5 deram à Inglaterra;
nisto, o vento de sul já não apanha,
e um de poente e de aquilão6 se aferra
com tal força que as velas abater
é mister, e à popa o vento acolher.
17 Quanto o navio para diante avançara
em quatro dias, num voltou para trás;
em alto mar o bom mestre o ampara:
se em terra der, qual vidro se desfaz.
O vento, que quatro dias soprara
em fúria, ao quinto parar se compraz:
deixou, sem se opor, o navio entrar
onde o rio de Antuérpia encontra o mar7 •
1s Assim que na foz entrou o cansado
barqueiro, com estragos no seu navio,
junto a uma terra que no destro lado
do rio havia, um velho descer viu
muito idoso (o cabelo branqueado
disso era indício) , o qual se dirigiu
muito cortês, após a saudação,
ao conde, que tomou por capitão.
1 50 ORLANDO FURIOSO

22 - Quero que saibas, senhor, que nasci 25 Mal Bireno daqui tinha partido
do conde de Holanda, e a ele mui grata (assim se chama o meu fiel amante) ,
(mas dele não fui só eu que floresci, eis que o rei da Frísia 1 1 (a qual, quanto o lido
pois dois irmãos tive por sorte beata) do mar separa o rio, nos é distante) ,
fui: tudo aquilo que a meu pai pedi, querendo tornar seu filho meu marido,
sempre a resposta dele foi cordata. seu único filho, chamado Arbante,
Estando eu assim feliz, aconteceu os dignitários do seu estado manda
que na nossa terra um duque apareceu. pedir-me a mim a meu pai, à Holanda.
23 Duque era da Zelândia9 , e então ia 26 Eu, que ao meu amante fidelidade
para a Biscaia 10 , para os Mouros guerrear. devo, pois, dada, não mais se desata,
A idade e a beleza que nele floria e Amor me tiraria a liberdade
novel amor em mim fez acordar: de o fazer, para não ser a ele ingrata,
num instante cativa me fazia; para o trato não se tornar realidade,
e, por quanto pude nele observar, pois já ia avançada a concordata,
. . .
eu ena e ereto, e ereto crer no vero, digo a meu pai que prefiro, a casar-me
que me amava e ama de amor sincero. com o da Frísia, que mande matar-me.
24 Dias retido pelo contrário vento 27 Meu bondoso pai, que só queria quanto
(contrário aos outros, que a mim foi propício; eu queria, afligir-me não pretendeu;
quarenta foram; para mim, um momento, para me consolar e estancar o pranto
já que correram em veloz bulício) , em que eu estava, o acordo dissolveu;
várias vezes houvemos parlamento, o que ao soberbo rei da Frísia tanto
tendo feito um acordo esponsalício: agravo causou, e de ódio acendeu,
eu a ele, e ele a mim, de matrimónio que veio à Holanda iniciar a guerra,
no seu regresso, demos voto idóneo. e em breve a família toda me enterra.
2a Além de ser robusto, e tão potente
que poucos pares tem na nossa idade,
e tão astuto que torna impotente
nos outros força, argúcia e qualidade,
armas possui ele que a antiga gente
não viu nem, tirando ele, a actualidade:
um tubo com duas braças, em aço,
e uma bola e pólvora por chumaço 1 2 •
29 Com fogo atrás, onde o tubo é fechado,
toca um orifício que mal se vê,
assim como pelo médico é tocado
o ponto da veia que estancar crê;
sai então a bola, ao ser disparado,
e como raio e trovão faz banzé;
tal qual o corisco, por onde passa
queima, derruba, fende e despedaça.
30 O nosso campo duas vezes derrota
com este ardil, e os meus irmãos matou;
um no primeiro assalto: a bola bota
no coração (o arnês lhe atravessou) ;
no segundo ataque o outro, que em frota 1 3
fugiu, do corpo a alma lhe apartou;
pelas costas o atingiu de tal jeito
que fez a bala sair-lhe pelo peito.
CANTO IX 151

31 Refugiado meu pai desse transtorno 37 Dois servos irmãos, por meu pai estimados,
num castelo que tinha por acaso, escolhi devido à sua lealdade:
pois tudo o mais tinha perdido em torno, de grande engenho e coragem dotados,
com golpe idêntico encontrou o ocaso: mas mais ainda de fidelidade,
indo daqui para ali, fez um retorno, pois, na corte crescidos e criados,
acudindo àquele ou a este caso; connosco vivem desde tenra idade;
o traidor fez de longe pontaria tão bem me queriam que até pouco achavam
e no meio dos olhos o atingia. se a vida por minha salvação davam.
32 Mortos irmãos e pai, fiquei sozinha, 38 Comuniquei-lhes a minha intenção,
da ilha de Holanda a única herdeira, e logo os dois tomaram meu partido.
e o rei da Frísia, que vontade tinha Um na Flandres prepara embarcação,
de içar nesse estado sua bandeira, na Holanda comigo outro é retido.
faz-me saber, e à população minha, Enquanto estrangeiros e os da nação
que paz me dará e vida fagueira, para as bodas se convidam, foi sabido
se desta vez quiser ser aceitante que Bireno, na Biscaia, uma armada
de ter por marido seu filho Arbante. tem já contra a Holanda preparada.
33 Eu, não só pelo grande ódio que transporto 39 Pois assim que houve a primeira batalha,
no peito, a ele e a toda a iníqua seita, em que meu irmão teve fim funesto,
por terem meu pai e meus irmãos morto, logo eu à Biscaia um correio, sem falha,
e a minha pátria pilhada e desfeita; levando a notícia a mandar me apresto;
como àquele outro trair não suporto, enquanto Bireno para vir trabalha,
a quem a promessa já estava feita, o rei da Frísia conquistou o resto.
que homem não havia que desposasse, Bireno, que de tal nada sabia,
enquanto ele de Espanha não regressasse: para nos socorrer ao mar se fazia.
34 «Por cada mal que sofro, quero um cento 4o Tal ouvindo o frísio de um mensageiro,
sofrer (respondo) , e arriscar todo o resto; do matrimónio seu filho encarrega;
ser morta, queimada viva e ao vento com sua armada ao mar se faz ligeiro,
as cinzas esparsas; mas isso ,contesto.» encontra o duque e vence-o na refrega,
Tenta a minha gente de tal intento e, quer Fortuna, fá-lo prisioneiro;
tirar-me: suplicam, fazem protesto; porém disto a nós notícia não chega.
a terra e eu entregar-lhe se ultima, Desposa-me entretanto o filho, e impõe
para razão não dar a que n os oprima. que nos deitemos quando o Sol se põe.
35 Quando os protestos e an 1eaças em vão 41 Por detrás das cortinas esconder ouso
viram ser, e que eu não lhe. s cederia, o meu fiel, que nada se mexeu
com o frísio se acordaram, , e, em mão, antes de ver vir até mim o esposo;
eu e os muros lhe deram, cc >mo queria. e nem tempo de se deitar lhe deu:
O frísio, sem fazer-me acto vilão, com um machado e o braço valoroso,
de vida e reino me dá garanda, por detrás a cabeça lhe fendeu,
se na minha decisão eu ceder · e privou-o da palavra e da vida;
e concordar ser de Arbante mulher. e a garganta eu lhe abri, numa investida.
36 Vendo-me eu assim forçada, desejo 42 Tal como no açougue o boi cai no chão,
para lhe sair das mãos perder .a vida; cai o mal-nado filho, para desdém
mas se antes me não vingo, 1cenho pejo, do rei Cimosco 14 , mais que os mais vilão;
por quanta injúria me foi in fligida. tal fama o ímpio rei da Frísia tem,
Tenho pensado; e com triste:z.a vejo que me matara um e outro irmão
que só simulando terei saída: e o pai, e, para mais domínio também
finjo que o desejo, e não que me maça, ter do meu estado, queria-me por nora;
que me perdoe e sua nora me faça. e talvez me matasse sem demora.
1 52 ORLANDO FURIOSO

43 Antes que alguém por ali apareça, 44 Não sei se o rei da Frísia mais sofrente
levando o que vale e é menos pesado 1 5 , pelo filho morto ou mais enraivecido
ao mar o meu fiel me desce à pressa, contra mim ficou, quando foi presente,
suspensa dum cabo à janela atado, ao outro dia, ante o acontecido.
lá onde o irmão, atento, regressa, Soberbo voltava com sua gente,
no navio na Flandres aparelhado. trazendo Bireno preso e vencido;
Dando ao vento as velas, à água os remos, crendo que vinha para a boda e para a festa,
salvámo-nos e a Deus o agradecemos. encontrou a cena tetra e funesta.
CANTO IX 153

45 A dor do filho e a füria enraivecida 46 Todos quantos sabia ou lhe disseram


contra mim não o deixam noite e dia. que eram meus amigos, e aqueles meus,
Mas como o pranto aos mortos não dá vida, que para me salvar ajuda me deram,
ao passo que a vingança o ódio esfria, matou, queimou os bens ou fé-los réus.
a parte da ideia que era devida Quis matar Bireno, pois para mim eram
ocupar-se em suspiros e agonia as dores maiores que havia sob os céus.
prefere que ao ódio se una e investigue Depois achou que, se vivo o mantinha,
como, deitando-me a mão, me castigue. para me apanhar a rede na mão tinha.
47 Mas apresenta-lhe cruel e dura
condição: o prazo lhe dá de um ano,
ao fim do qual atroz morte lhe jura,
se ele antes pela força ou pelo engano,
com parentes e amigos não procura,
com seu saber, traçar o melhor plano
para a ele me entregar: assim, a sorte
de ele se salvar será a minha morte.
48 Já usei para o livrar vários ardis;
excepto perder-me, eu tudo tentei.
Dos castelos na Flandres me desfiz:
o pouco ou muito valor que lucrei,
dando-o a pessoas de astuto cariz
para os guardas comprar, parte dissipei;
outra parte, para ao traidor causar danos,
gastei-a com Ingleses e Alamanos.
49 Os astutos, ou porque não puderam
ou porque o dever foi para eles goro,
em vez de acções só palavras me deram:
ignoram-me, pois já têm o ouro;
o prazo os dias quase perfizeram,
após o qual nem forças nem tesouro
chegarão a tempo, para que da morte
possa ser salvo o meu caro consorte.
50 Por ele meu pai foi, e um e outro irmão,
mortos, e o reino me foi usurpado;
por ele dos bens o pequeno quinhão
que para me sustentar tinha restado
dissipei, para tirá-lo da prisão;
nada mais há que possa ser usado,
a não ser ao cruel ir-me entregar,
para que assim ele o venha a libertar.
5 1 Se outra coisa fazer, pois, não me resta,
nem existe para salvá-lo outro amparo
senão dar esta minha vida, esta
minha vida por ele dar me é caro.
Mas um único temor me molesta:
não posso fazer acordo tão claro
que me garanta não pense o tirano,
tendo-me na mão, levar-nos no engano.
1 54 ORLANDO FURIOSO

52 O meu receio é se, ao ter-me cativa 5s Não pretende ele que ela seja dada
e com torturas várias me desfaça, ao inimigo para salvar Birena:
a libertar Birena ele se esquiva, os dois há-de salvar, se a sua espada
para não ter do meu sacrifício a graça; e todo o seu valor usar em pleno.
que tão vilão, e cheio de raiva altiva, No mesmo dia se fazem à estrada,
só de matar-me não se satisfaça, que o vento é de feição e o ar sereno.
e o que a mim fizer, cheio de veneno, Tem pressa o paladino, pois almeja
tal e qual faça ao infeliz Bireno. ir à ilha do monstro dar peleja.
53 Ora, o motivo de eu contar a vós 59 Vira ora a uma ora a outra banda,
este meu caso, e de contá-lo a quantos pelos fundos canais, o barqueiro a vela:
senhores, cavaleiros vêm a nós, entre as ilhas da Zelândia ciranda;
é só para que, falando disto a tantos, uma atrás fica e outra se desvela.
algum me queira garantir que, após Pisa Orlando ao terço dia a Holanda,
eu ser àquele cruel levada em prantos, na nave ficando a que tem querela
Bireno em ficar preso não incorra, com o rei frísio: Orlando, que ele foi morto,
nem queira ele, morta eu, que ele morra. quer que ela saiba antes que desça ao porto.
54 A alguns pedi para estarem comigo 60 Armado, o paladino desembarca
quando ao rei da Frísia eu me entregar; num corcel que era cinzento e trigueiro,
mas que prometa, qual leal amigo, criado em Flandres, nado em Dinamarca,
que a troca será feita em tal andar e mais possante era do que ligeiro;
que, entregue eu, Birena desobrigo; porque deixara, ao meter-se na barca,
para que, quando o tirano me matar, na Bretanha o corcel seu companheiro,
morra contente, porque a minha morte esse Brigliadoro belo e galhardo,
a vida terá dado ao meu consorte. que paralelo só tem em Baiardo 16 •
55 Ninguém inda se quis comprometer, 61 Chega Orlando a Dordrecht 17, onde comprova
e com seu juramento afiançar-me que muita guarda armada há junto à porta;
que, se ao ser-lhe eu entregue, não quiser sim, porque sempre, mas mais quando é nova,
por troca aquele rei Birena dar-me, a dominação suspeitas comporta;
não deixará que contra o meu querer e porque pouco antes chegara a nova
fique presa: temor lhes causa alarme, que, da Zelândia, frota armada aporta,
devido à arma a que se crê não possa de gente e navios que um primo traz
resistir armadura, por mais grossa. daquele senhor que em prisão ali jaz.
56 Se não for vosso valor desconforme 62 Orlando pede a um da guarda armada
do vosso altaneiro e hercúleo aspecto, que diga ao rei que um cavaleiro errante
e quereis dar-me ou reter-me, conforme com ele se quer bater com lança e espada;
o seu proceder seja ou não correcto, mas, antes, pacto de honra irá avante:
peço que comigo venhais, a pôr-me se for Orlando a parte derrotada,
em suas mãos: que assim não me inquieto, a dama entrega que matou Arbante,
tendo-vos comigo, que apesar de eu que se encontra em lugar e condição
morrer, não morrerá o senhor meu. - de sem demora lhe ser posta em mão;
57 Aqui a dama o seu falar calou, 63 por outro lado, quer que o rei prometa
por pranto e suspiros interrompido. que, se for o rei a parte vencida,
Orlando, quando ela a boca fechou, livre logo Birena da grilheta
ele, que a fazer bem era compelido, e permita que vá à sua vida.
nada em palavras com ela gastou, Depressa o soldado faz de estafeta;
pois nelas era, de si, comedido; mas o rei, que virtude só fingida
mas prometeu, e a palavra concede, conhece, dirigiu o seu intento
que fará mais que quanto ela lhe pede. à fraude, ao engano e ao traimento.
CANTO IX 1 55

64 Pensa que, tendo em mão o cavaleiro, 67 Aquele que caça pássaros tem vivos
terá a dama que o tinha ofendido, os primeiros que apanha, por pretender
se tê-la em seu poder é verdadeiro ainda muitos mais fazer cativos,
e se o soldado bem tinha entendido. se voar ou cantar estes fizerº ;
Trinta homens mandou tomar carreiro o rei Cimosco usou tais atractivos,
outro que a porta em que ia dar-lhe ouvido, mas não quis Orlando como esses ser
os quais, depois que ocultos prosseguiram, que à primeira se deixam apanhar,
nas costas do paladino surgiram. e rompeu o cerco que vm armar.
65 Entretanto o traidor o entretém 68 O cavaleiro de Anglante, onde avistou
com palavras, até avistar quantos mais gente e armas, apontou a hasta;
homens fez sair, como lhe convém; e um, outro e outro nela empalou,
pela porta sai então, com outros tantos, como se feitos duma fina pasta;
tal como o caçador cercadas tem seis nela couberam e segurou
no bosque as feras por todos os cantos; todos na lança, a qual porém não basta
e como em Volana 1 8 os peixes, na charca, para o sétimo, que assim fica de fora,
o pescador com longa rede abarca; mas que morre da ferida sem demora.
66 assim o rei da Frísia, com denodo, 69 Do mesmo modo, nas margens de areia,
para que ele não fuja se precavê. de rãs vemos, nos canais e nas valas,
Quere-o vivo ter, e não de outro modo, pelo hábil archeiro a flecha ser cheia,
e consegui-lo facilmente crê, pelos flancos ou pelo dorso a empalá-las;
pois do raio terrestre 1 9 com que a rodo e só quando o ferro encheu, em cadeia,
gente matou ora não se provê; de ponta a ponta, começa a tirá-las.
não lhe parece que para aqui convenha, A pesada lança para longe espalha
pois em prender, e não matar, se empenha. Orlando, e de espada vai à batalha.
1 56 ORLANDO FURIOSO

70 Partida a lança, empunha aquela espada 74 que rola pedras e ramos estilhaça,
que nunca foi brandida em vão duelo; e, para onde volta a altiva fronte,
o fio ou a ponta, em cada estocada, ruído faz, que se crê despedaça
para homem montado e a pé é flagelo: a selva em volta e vem abaixo o monte.
onde toca, dá cor avermelhada2 1 Cimosco espreita, para ver se não passa
a verde, azul, negro, branco e amarelo 22 • Orlando sem que seu castigo afronte.
Lamenta Cimosco o tal tubo e o fogo23 Mal aparece, ao orifício acode
não ter à mão, para lhe dar desafogo. com a chama, e o ferro logo explode.
71 Pede com voz grossa e ameaçadora 75 Atrás reluz, qual fulmíneo clarão,
que lhos tragam, mas não lhe dão ouvido; à frente estoira e o trovão entoa.
pois quem de se salvar achou ser hora Tremem muros, e sob os pés o chão;
prefere na cidade estar recolhido. o céu ribomba quando o estrondo soa.
O rei frísio, os outros vendo ir embora, A seta em fogo, que não dá perdão,
também de se salvar toma partido: e destrói tudo aquilo que abalroa,
corre à porta e a ponte24 quer alçar, assobia, sibila, mas sem ferir
mas bem lesto é o conde a lá chegar. quem o assassino queria atingir.
n O rei volta as costas e deixa Orlando 76 Ou seja porque a pressa a mão lhe tolha,
senhor da ponte, e das portas também; e a ânsia de o matar o faça errar;
e foge, à frente de todos passando, ou que o coração trema como folha,
por ser mais veloz o seu palafrém. fazendo mãos e braços vacilar;
Ao conde não interessa o gentio bando; ou porque o divino querer não acolha
só do vilão a morte lhe convém; a vontade de essa vida ceifar,
mas o corcel não é bom para correr: o tiro para o corcel se desviou;
parece estar quieto, e o outro asas ter. da terra nunca mais se levantou.
73 Mudando de via, foge da vista 77 À terra vão cavalo e cavaleiro:
ao paladino; mas regressa logo a um mal toca, outro para sempre peia;
com novas armas que entretanto aquista levanta-se o conde, ágil e ligeiro,
e tem consigo: o ferro oco e o fogo2 5 ; o qual mais força e vigor alardeia.
escondido, espera lhe faz imprevista, Tal como o líbio Anteu27 , que mais guerreiro
como faz o caçador o seu jogo, ficava sempre que tocava a areia,
com os cães armados 26 e a lança, à espera assim pareceu que sua força, quando
do javali, destruidora fera; a terra tocou, dobrou em Orlando.
78 Quem tenha visto do céu vir o fogo
que Júpiter com atroz som descerra28 ,
e entrar em sítio onde, sem desafogo,
carvão, enxofre e salitre se encerra29 ;
que assim que chega, mal lhe toca, e logo
parece arder o céu e mais a Terra,
quebra muralhas, mármores esventra,
e voam pedras onde o céu se adentra,
79 imagine30 tal coisa acontecendo
quando o paladino a terra tocou:
um semblante tão feroz e horrendo,
de fazer estremecer Marte, mostrou.
Assustado, o rei da Frísia, torcendo
toda a brida, para fugir se voltou;
a persegui-lo Orlando se projecta,
mais veloz do que sai do arco a seta;
CANTO IX 1 57

80 e aquilo que primeiro não pudera 83 Este povo 35 sempre fora inimigo
fazer a cavalo, agora a pé faz. do rei da Frísia e todo o seu sequaz,
De quem não viu, toda a ideia supera porque lhes matara o seu rei antigo,
a velocidade em que vai, tenaz. e porque era injusto, ímpio e rapaz.
Alcança-o, ergue a espada e dilacera Foi Orlando mediador, como amigo
o elmo de forma tão eficaz de ambas as partes, e entre elas fez paz;
que lhe abre a cabeça até ao pescoço unidas, não deixaram frísio vivo
e ao chão o manda, feito num destroço. ou que, vivendo, não fosse cativo.
81 Nisto, erguer-se na cidade se sente 84 As portas dos cárceres rebentadas
novo tumulto e som de espadeirada; são, sem incómodo de achar a chave.
porque o primo de Bireno3 1 e a gente Palavras de gratidão repassadas
que de sua terra trouxera embarcada, Birena ao conde diz, em tom suave.
ao encontrarem a porta patente, Dali, juntos e com várias brigadas,
na cidade entraram de revoada; vão aonde Olimpia36 espera, na nave;
correm-na toda sem ter estorvo algum, assim se chama aquela que da ilha,
pois medo ao paladim tem cada um. por seu direito, o domínio perfilha;
82 Debanda o povo à toa, pois quem são 85 essa que Orlando até ali trouxera
estas gentes não sabe, ou quem as manda; sem suspeitar que ele faria tanto;
mas pelas vestes e a fala vendo vão pois que morrer bastar lhe parecera
que são zelandeses, e o medo abranda: para aliviar seu amado do pranto.
paz pedem, e carta branca32 lhes dão, Todo o povo a reconhece e venera.
rendendo-se ao capitão que os comanda; Demorado seria contar quanto
querem contra o Frísio33 lutar também, Bireno a ela e ela a ele afaga,
que o seu duque34 em prisão aqui mantém. e as honras que prestam ao conde37 , em paga.
86 O povo senta no trono paterno
a dama, e fidelidade lhe jura.
Ela a Birena, a quem com laço eterno
Amor a ligou com cadeia dura,
do reino e de si confia o governo.
E ele, que seus cuidados não descura,
dos castelos e de toda a nação
seu primo deixa como guardião;
87 pois à Zelândia voltar pretendia,
levando consigo a fiel consorte;
e aqui no reino dizia que queria
com a Frísia tentar a sua sorte38 ;
pois disso em mão tinha uma garantia,
um penhor que ele achava muito forte:
a filha do rei da Frísia ficara
entre os cativos, que muitos contara.
88 E diz que por mulher um seu irmão
mais jovem recebê-la idealizou.
O senador romano39 parte, então,
nesse dia em que Bireno zarpou.
Nos despojos que tinha não pôs mão,
entre tantos e tantos que ganhou,
a não ser no tormento semelhante,
como se disse, ao raio fulminante.
CANTO IX 159

89 Mas, ao levá-lo, seu único intento 92 Tanto desejo o paladino oprime


não foi para o usar em sua defesa; de saber se ali se encontra a donzela
pois acha cobarde procedimento (que não há no mundo quem tanto estime,
com vantagem tratar qualquer empresa; nem vive urna hora feliz sem ela)
quer num sítio deixar aquele invento, que receia de Hibérnia se aproxime
onde se saiba que a mais ninguém lesa; e nova aventura o afaste dela,
de pólvora e bolas levou quantia, e depois o faça dizer: - Maldição!,
tudo o que àquela arma pertencia. por que ao passo não dei mais impulsão? -
90 Após sair daquele braço de mar 93 Nem escala em Inglaterra ou na Irlanda
e em águas profundas se tendo achado, deixou fazer, nem no oposto lido4 1 •
onde já nada podia avistar Mas deixerno-lo ir aonde o manda
quer do direito quer do esquerdo lado, Amor, por quem seu coração foi ferido.
pegou-lhe e disse: - Para não evitar Dele ora não falo, e vou à Holanda,
mais alguém, por ti, de ser arrojado40 , e a lá voltar comigo vos convido;
nem quanto vale o bom, por ti se gabe pois, corno eu, não gostaríeis vós
o mau de valer, tua vida acabe! que aquelas bodas se dessem sem nós.
91 Ó maldito, ó engenho abominável, 94 Sumptuosas e belas elas são;
que fabricado no Tártaro fundo mas não tão sumptuosas e tão belas
foste, à mão, por Belzebu execrável, corno em Zelândia dizem que farão.
que pensou por ti destruir o mundo, Mas não desejo que venhais àquelas,
devolvo-te ao Inferno, miserável! - pois novos incidentes se darão
Tal disse e o atirou ao mar profundo. para perturbá-las; mas notícias delas
As velas enfunadas vai o vento no outro canto vos vou transmitir,
dirigindo para a ilha do tormento. se ao outro canto me vierdes ouvir.

---.--
NOTAS

1
Durindana: a espada Durindana, famosa na literatu­ 7 Onde [. .. ] mar: foz do no Escalda, que banha
ra cavaleiresca. Orlando obteve-a de Almonte, mas ori­ Antuérpia.
ginalmente pertencera a Heitor.
8 Terra: cf. 1 8:3.
2
França e seu distrito: refere-se a Íle-de-France, região
9
do Norte de França cuja capital é Paris, e é atravessada Zelândia: ilha dinamarquesa.
pelos rios Sena, Oise e Mame.
10
Biscaia: província do Norte de Espanha, na região
3 Um rio: o rio Couesnon, que separa a Normandia da do País Basco, cuja capital é Bilbau.
Bretanha e desagua na baía do Mont-Saint-Michel.
4 Hibérnia: era o nome latino da Irlanda. 11
Frísia: corresponde hoje à parte setentrional da
Holanda, da qual estava separada apenas pelo rio Reno
5 Álbion: nome antigo e poético da Inglaterra, deriva­ no seu ponto mais largo, isto é, junto à foz.
do da falésia branca (lat. alba) de Dover, no canal da
12
Mancha, que se avista de França. Um tubo [. . .] chumaço: trata-se do arcabuz, usado
pela primeira vez no séc. XJV, ou seja, cinco séculos após
6 De poente e de aquilão: de oeste e norte («aquilão» Carlos Magno. Há vários anacronismos deste género no
designa a região boreal) . poema. Neste caso, talvez seja uma oportunidade para
condenar as armas de fogo.
1 60 ORLANDO FURIOSO

13 Em frota: em grupo. 28
Do céu [. . .] descerra: raios e relrunpagos.
14 29
Cimosco: o rei da Frísia. Sítio [. . .] encerra: um paiol de pólvora.
15 Vale e é menos pesado: coisas de pouco peso e volume, 30
Imagine: o sujeito encontra-se no v. 1 da oitava ante­
mas de grande valor. rior (quem tenha visto) .
16 31
Baiardo: o cavalo de Rinaldo. Primo de Bireno: cf. 6 1 :5-8.
17 32
Dordrecht: cidade do Sul da Holanda. Carta branca: documento em branco, em que o ven­
cedor pode registar livremente as condições da rendição.
18
Volana: situa-se num dos braços do delta do Pó, rico
33
em peixe. O Frfsio: o rei da Frísia e seus sequazes, que agora
dominavam a Holanda.
19
Raio terrestre: o arcabuz.
34
O seu duque: Bireno.
20
Se voar [. . .] fizer: métodos para capturar pássaros.
35
Mantendo uma ave atada a um fio, ela esvoaça e atrai Este povo: os Holandeses.
outras; também uma ave canora, numa gaiola, atrai
36
outras com os seus trinados. Olimpia: só agora Ariosto revela o nome da donzela
que é legítima herdeira do trono da Holanda.
21
Avermelhada: de sangue.
37
Conde: Orlando.
22
liérde [. . .] amarelo: cores das insígnias nas armaduras
38
dos adversários. Frísia [. . .] sorte: tentar a sua sorte na conquista do
reino da Frísia.
23
Tubo e o fogo: o arcabuz.
39
Senador romano: título que já no O. Innamorato era
24
Ponte: a ponte levadiça, sobre o fosso que rodeava os atribuído a Orlando.
castelos.
40
Para não evitar [. .. } arrojado: para que, por te temer,
25
Oferro oco e ofogo: o arcabuz e a mecha para lhe dar fogo. mais nenhum cavaleiro deixe de mostrar sua coragem.
26 41
Armados: com coleiras de bicos. Oposto lido: a costa do lado oposto, isto é, a França.
27
Anteu: gigante que habitava a Líbia, filho de Posídon
e de Geia (a Terra) . Em contacto com a mãe, era invul­
nerável. Para o matar, Héracles teve de erguê-lo do chão.

CANTO X

Dos que amor, fidelidade no mundo 2 e que com tantos e claros sinais
acharam, entre os corações constantes, de tal tornou o seu Bireno certo,
e dentre os que, em tempo triste ou jucundo, que nenhuma mulher pode dar tais,
por provas 1 foram famosos amantes, mesmo de peito e coração aberto.
mais o primeiro lugar que o segundó E, se almas tão devotas e leais
dou a Olimpia; e, se maior houve antes, são dignas dum amor de igual acerto,
mantenho que, entre o antigo e o recente, Olimpia é digna que amor mais pequeno
amor maior que o seu não se consente; sinta por si que por ela Bireno;
1 62 ORLANDO FURIOSO

3 e de por ele não ser abandonada s assim fazem esses jovens, que, enquanto
por outra mulher, inda fosse aquela para eles fordes esquivas e protervas,
que Europa e Ásia pôs alvoroçada2 , vos amam e galanteiam com quanto
ou outra que seja ainda mais bela; ardor o faz quem serve sem reservas;
antes a vista lhe seja tirada, mas tão depressa da vitória o canto
ouvido, gosto e fala, mas não ela, podem entoar, de damas a servas
e sua vida e a fama gloriosa, vós passareis, sendo-vos retirado
ou coisa porventura mais preciosa. seu falso amor, que a outra será dado.
4 Se Bireno a amou do modo exacto 9 Mas não vos proíbo (seria asneira)
como ela o amou, se foi tão fiel que vos deixeis amar, pois sem amante
como ela foi, se para outra, de facto, seríeis como uma estéril videira,
não virou a proa do seu batel, sem planta em que se apoie ou pau montante.
ou se a tal lealdade foi ingrato, Apenas à tal penugem primeira
se para tão fiel amor foi cruel, deveis fugir, volúvel e inconstante,
digo, e espero de pasmo conseguir colhendo os frutos não verdes e duros,
fazer-vos boca e sobrolho franzir. mas também não demasiado maduros.
s E depois que revelada vos seja 1 0 Uma filha, mais atrás vos dizia,
qual foi da sua bondade a mercê, do rei frísio foi ali encontrada;
damas, que nenhuma de vós esteja que, segundo eles disseram, seria
em jura de amor pronta a fazer fé. por Bireno ao irmão, para mulher, dada.
O amante, para obter o que deseja, Mas a verdade é que ele a apetecia,
esquecendo que Deus tudo ouve e vê, pois era iguaria bem delicada:
engendra promessas e juramentos, e achava que era cortesia louca,
que mais tarde pelos ares levam os ventos. para dá-la a outro, tirá-la da boca.
6 Os juramentos e promessas são 11 A rapariga ainda não passava
levados pelo vento, que os dissipou catorze anos, bela e virginal,
logo que os amantes satisfação como uma rosa que mal despontava
tiveram para o fogo que os inflamou. do verde botão ao sol matinal.
Sede a seus rogos e imploração Bireno não só de paixão se agrava;
mais cautas, pelo exemplo que vos dou. pois lenha nunca ardeu com fogo tal,
Felizes aquelas, caras senhoras, nem mãos invejosas e m1m1gas
que de astúcias tais são conhecedoras. o atiçaram às maduras espigas,
7 Guardai-vos desses que o rosto acontece 12 como se inflamou instantaneamente,
imberbe terem, que a idade o permite; como até às medulas ele ardia,
neles lesto nasce e lesto fenece, quando junto ao pai morto a viu dolente,
como fogo em palha, cada apetite. e o pranto seu belo rosto cobria.
Tal qual o caçador que não esmorece, Como acontece, se água fria sente
sem que frio, calor, monte e vale evite; aquela que antes ao fogo fervia3 ,
quando a lebre apanha já não lhe interessa: assim por Olimpia o primeiro ardor
só enquanto atrás corre o passo apressa; nele foi extinto pelo seu sucessor4 •
CANTO X 1 63

13 Não só farto está, mas tão enfadado 1s A agitação do mar e a tremura


de Olimpia que mal a suporta ver; que dias sem dormir deram a esta,
pela outra o desejo é tão inflamado e o encontrar-se ora em terra, segura,
que morrerá, se muito o suspender; distante dos rumores da floresta,
mas, até que chegue o dia aprazado e porque nem pensamento ou agrura,
para o seu desejo, enfim, satisfazer, tendo o seu amante ao lado, a molesta,
Olimpia finge adorar, não amar, deram a Olimpia um sono tenaz,
e só o que lhe agrada desejar. como não tem urso nem arganaz5 •
14 Se acaricia a outra (pois não pode 19 O falso amante, a quem a vilanagem
evitar fazê-lo mais que o devido) , mantinha acordado, vendo-a dormir,
não há ninguém que de maldoso o apode: devagar sai do leito, e da roupagem
à piedade e dó é atribuído; faz uma trouxa, em vez de se vestir;
pois quem ao desafortunado acode, sai do pavilhão; e como se alagem
e consola o aflito pela dor ferido, recebesse, para pelos ares se evadir,
ralho não ouve mas louvor frequente; vai aos seus, acorda-os, e sem ruído
inda mais uma donzela inocente. fazem-se ao mar, abandonando o lido.
15 Sumo Deus, como os juízos humanos 20 Para trás ficou o lido e a infeliz
se deixam ofuscar por véu obscuro! Olimpia, que dormiu sem despertar
Os gestos de Bireno, tão profanos, até que a Aurora a geada quis
tomados por piedosos, de homem puro. com as douradas rodas6 dissipar,
Iam os marinheiros insulanos e os Alcíones7 ouviu, nos alcantis,
remando, longe do lido seguro, seu antigo infortúnio lamentar.
levando, ledos, pelos canais saleiros, Meio acordada, ela estendeu a mão
à Zelândia o duque e os companheiros. querendo abraçar Bireno, mas em vão.
16 Para trás tinham ficado já perdidos 21 Não o acha, e a si a mão retira;
de vista todos os confins da Holanda tenta de novo, e não acha ninguém.
(para a Frísia evitar, mais protegidos Um braço para cá, outro para lá gira,
seguiam junto à Escócia, à esquerda banda), e ambas as pernas gira em vão também.
quando pelo vento são surpreendidos, O receio lhe abre os olhos e mira:
e o barco à deriva três dias anda. ninguém. Não mais no calor a retém
Surgiu ao terço, da noite já perto, o viúvo tálamo: eis se arremessa
uma ilha: sítio inculto e deserto. para fora do leito e da tenda à pressa:
17 Depois de entrarem num golfo pequeno, 22 e corre para o mar, e o cabelo arranca,
Olimpia veio a terra; e satisfeita, pressaga, certa já, da sorte sua8 •
acompanhando o infiel Bireno, Arrepela o rosto e seu peito espanca,
jantou feliz sem ter qualquer suspeita; e vai olhando (pois brilhava a Lua) ,
depois com ele, onde em lugar ameno tentando ver além da praia branca;
uma tenda armaram, logo se deita. mas para lá dela nada se desnua.
Todos os mais companheiros voltaram Bireno chama: em resposta ouve só
para os seus navios, onde repousaram. a voz dos Antros, que sentiam dó.
1 64 ORLANDO FURIOSO

23 Na ponta da praia havia um rochedo, 29 Receio, e ver já creio com alarme


pelas ondas feito com bater frequente, leões e ursos da selva sair,
oco por baixo, de arco um arremedo; tigres, e mais que a natureza arme
pelo mar avançava, curvo e pendente. de dentes e garras para me ferir.
Olimpia sobe-o célere, sem medo Mas que feras cruéis poderão dar-me
(impelida pelo desespero urgente) , pior forma que tu de sucumbir?
e vê ao longe as enfunadas velas Dar-me uma morte a elas bastará,
do seu cruel senhor, que foge nelas: mas mil mortes tua traição me dá.
24 vê-as ao longe, ou parece-lhe ver, 30 Mas pressinto que estará para chegar
pois a manhã não era ainda clara. barqueiro que por dó daqui me leve;
Deixou-se cair, toda ela a tremer, e a lobos, ursos, leões me esquivar,
mais branca e fria que neve na cara; e à fome, e outras formas de morte breve;
e, quando sente forças para se erguer, à Holanda acaso me irá levar,
direito às naves o grito dispara: se a guarda dos portos a ti se deve? 9
várias vezes chamou em voz bem forte, Levar-me-á à terra onde nasci,
gritando o nome do cruel consorte; se por tua fraude já a perdi?
25 e, quando lhe faltava a débil voz, 31 Tu, o que era o meu reino, com pretexto
valia o pranto e o bater palma a palma. de parentesco 1 0 e de amor me tiraste.
- Para onde foges, cruel, tão veloz? A pôr lá tuas gentes foste lesto,
Esta carga o teu navio não açaima. e assim mais o domínio asseguraste.
Leva-me ainda: quanto custa a vós Voltarei à Flandres? Vendi o resto
que leve o corpo, se transporta a alma? - de que vivia, pouco e quanto baste
E, com os braços e as vestes à solta, para te ajudar a sair da prisão.
vai acenando, a ver se a nave volta. Ai de mim! Onde irei? Qual o meu chão?
26 Mas os ventos que levavam as velas 32 Talvez para a Frísia, onde poderia,
pelo alto mar, desse jovem infido, e por ti não aceitei, ser rainha?
levavam as súplicas e querelas O que de meus irmãos e pai seria
da infeliz, e o pranto e o alarido; a ruína, e de tudo o mais que tinha.
três vezes pôr fim às suas procelas Tudo quanto por ti fiz eu não queria,
meditou, debruçando-se do lido; ingrato, pôr-te em cara e ladainha
ergue-se por fim, sem que a tal se afoite, fazer: tão bem quanto eu o saberás;
e volta para onde passara a noite. mas vê a recompensa que me dás.
27 Estende-se no leito e oculta neste 33 Mas não queria ser, pelos que corso fazem,
o rosto que o banha de pranto, e diz: apanhada e vendida como escrava!
- Se ontem em ti dois juntos recebeste, Lobo, leão ou urso mais me aprazem,
que juntos se erguessem por que não quis? ou tigre ou qualquer outra fera brava,
Ó pérfido Bireno, ó dia agreste que me dilaceram e me desfazem,
e tão maldito que me deu matriz! e morta me levam para a sua cava. -
Que faço? Aqui só, que posso fazer? Diz, e leva as mãos aos loiros cabelos,
Quem ajuda e consola meu viver? madeixa por madeixa a retorcê-los.
2s Homem aqui não vejo, nem sinal 34 Corre de novo até ao fim da praia,
donde conclua que aqui haja gente; girando e espalhando ao vento as melenas;
navio não vejo que deste areal parece louca e que em cima lhe caia
me leve, e minha via siga em frente. não um demónio, mas sim às dezenas;
À míngua morrerei; sem que coval ou que, como Hécuba, em raiva descaia,
alguém me dê, e os olhos me acalente; morto Polidora de atrozes penas 1 2 •
se sepulcro em seu ventre me não derem Senta-se numa pedra, olhando o mar;
os lobos, ai!, que em tal selva estiverem. tal qual uma pedra, a uma pedra par.
CANTO X 165

35 Fica a doer-se até que eu ali torno 13 , 36 Enquanto a sede, e do andar a fadiga
pois falar-vos de Ruggiero quisera; pela areia funda, e a deserta via
a meio do dia, num calor de forno, lhe faziam, por essa praia imiga,
cavalga o lido e a fadiga o lacera. enfadonha e molesta companhia,
Bate o sol na colina e faz retorno: à sombra encontrou duma torre antiga,
a areia miúda é como se ardera. que das águas, junto à margem, saía,
Para serem de fogo, pouco faltava, três damas que, pelos gestos e pelas saias,
como foram 1 4 , às armas que endossava. viu que da corte de Alcina eram aias.
1 66 ORLANDO FURIOSO

37 Tendo tapetes persas como ninhos, 39 Uma delas chegou-se-lhe ao cavalo,


gozavam fresca sombra com prazer, segurando o estribo para que descesse;
entre muitos jarros de vários vinhos com taça de espumante a convidá-lo
e doces da melhor espécie que houver. veio outra, que a sede lhe engrandece;
Brincando com os balanços marinhos, mas Ruggiero não foi naquele embalo,
aguardava-as junto à praia um escaler, porque, qualquer demora que tivesse,
que esperava para a vela a boa hora, tempo de o alcançar dava a Alcina,
pois nem leve fio de ar soprava agora. que o persegue e já quase o descortina.
38 Vendo vir, pela areia que ao passo cede, 40 Nem fino salitre ou enxofre puro 1 5 ,
Ruggiero, à sua viagem adstrito, ao chegar-se-lhe o fogo, assim se inflama;
que tinha nos lábios impressa a sede, nem assim freme o mar, quando o obscuro
e pleno de suor o rosto aflito, furacão desce e em seu seio se acama;
começam a dizer-lhe que se excede, como, ao ver que Ruggiero tão seguro
tendo ao caminho o intento tão fito segue o seu caminho pela areia em chama,
que à doce e fresca sombra não se renda, dando-as ao desprezo (e achavam-se belas),
e restaurar seu corpo não pretenda. arde de furor a terceira delas.
4 1 - Tu não és nem gentil nem cavaleiro
(diz-lhe gritando, quanto pode, forte) ;
armas e corcel roubaste a terceiro,
pois teus não podiam ser de outra sorte;
e, como isto que digo é verdadeiro,
queria ver-te punir com digna morte:
queimado, esquartejado ou enforcado,
ladrão, soberbo, vil, vilão malvado! -
42 Além destas, palavras lhe teceu
inj uriosas aquela megera,
às quais Ruggiero não lhe respondeu,
que de tão vil querela honra não espera;
com as irmãs ela lesta correu
para o barco que ali estava e delas era;
remando apressada, vai-lhe na pista,
junto à costa, sem o perder de vista.
43 De ameaças e maldições o encharca,
que ofensas sabe dar por todo o lado 1 6 •
Entretanto, ao estreito que o reino marca
da fada mais bela eis que ele é chegado;
onde um velho barqueiro a sua barca
vê soltar da margem, como avisado
e já prevenido ali se encontrasse,
à espera que Ruggiero ali chegasse.
44 Parte o barqueiro assim que a vir o vê;
de o transportar mostra feliz aspecto:
se do coração o rosto faz fé,
muito bondoso seria e discreto.
Ruggiero no navio põe o pé,
a Deus agradecendo; e pelo mar quieto
conversando ia com o remador,
que era experiente e muito sabedor.
CANTO X 1 67

45 Louvava Ruggiero que assim tivesse 47 Vai-te ensinar estudos mais elevados
sabido a Akina escapar, e antes que banhos, odores, danças, iguarias;
que o cálice encantado ela lhe desse, e que os pensamentos mais bem formados
que no fim dera a todos os amantes; se elevam às altas periferias;
e que a Logistilla se remetesse, e como a glória dos beatificados,
onde eram santos costumes reinantes, no corpo mortal, em parte avalias. -
beleza eterna e graça nobre e pia Assim vai dizendo o barqueiro avante,
que o coração pasce, e nunca sacia. da segura margem inda distante,
46 - Esta (dizia) pasmo e benquerença 48 quando nisto vê surgir na marina
induz na alma, quando se aproxima. navios e barcos, para o seu dirigidos.
Depois contempla bem sua presença: Num deles vem a ofendida Alcina;
outros bens parecem de pouca estima. e muitos dos seus estão a ela unidos,
O seu amor dos outros faz diferença: para levar o reino e ela à ruína
ânsia e temor noutros o peito lima; ou reconquistar os amores perdidos.
neste, o desejo nada mais te pede, O amor é, para tal, razão nada leve,
e o vê-la satisfação te concede 1 7 • mas não menos a injúria que prescreve.
1 68 ORLANDO FURIOSO

49 Desde que nasceu, raiva não sentiu 55 Alcina foge, e sua infeliz gente
tão grande como esta que agora a rói; presa ou morta é, queimada ou submersa.
e os remos sobre as águas tanto urgiu De Ruggiero perder ela se sente
que a ambas as margens a espuma foi 1 8 • mais que de qualquer outra coisa adversa:
Mar e margem grande estrondo emitiu, dia e noite por ele amargamente
e Eco 19 , ressoando, se condói. geme, e lágrimas abundantes versa;
- Descobre o escudo, Ruggier, que é preciso; para pôr fim ao martírio que a atormenta,
ou tens, de morte ou prisão, prejuízo. - de não poder morrer mui se lamenta.
50 O barqueiro de Logistilla disse; 56 Morrer a uma fada não é possível,
e, além de dizer, tirou de repente se Sol e céu não sofrerem desvio.
a coberta, para que o escudo surgisse, Dout..-0 modo, o desgosto era plausível
mostrando o brilho claro e evidente. para apressar Cloto a enovelar-lhe o fio24 ;
O grande esplendor, como se aturdisse, ou, qual Dido2 5 , com ferro perecível;
os olhos feriu com força potente ou do Nilo a rainha26 , que dormiu
que fez ficar cega cada pessoa, mortífero sono, imitar podia;
e os fez tombar ora à popa ora à proa. mas morrer, para as fadas, é fantasia.
51 Um, que estava de guarda numa roca, 57 Ao que de eterna glória nada trave
da frota de Alcina se apercebeu; voltemos; e Alcina fique a penar.
e logo o sino martelando toca, Ruggiero, depois de sair da nave,
e pronto o socorro ao porto acorreu. em mais firme areia27 pôde pisar;
A artilharia20 prontamente esboca grato a Deus por não ter achado entrave
contra quem a Ruggiero acometeu; ao seu plano28 , deixou para trás o mar;
de todas as partes há quem lhe acuda, e, apressando o passo em terreno enxuto,
e a vida salvou com tão grande ajuda. dirigiu-se ao castelo, resoluto.
52 Quatro senhoras às águas estão rente, 58 Noutro mais forte e belo não encalha
mandadas ali ir por Logistilla: olho mortal, ou próximo ou distante29 •
a tenaz Andronica e a prudente Menos valor tinha sua muralha
Fronesia e a justíssima Dicilla, se feita de piropo ou diamante.
e a casta Sofrosina, competente De ge01as assim cá em baixo30 há falha:
mais que as outras 21 a agir, se perfila. quem conhecer quiser, tem que diante
Este exército22 no mundo sem par destas vir; não creio que em outra parte,
sai do castelo, e avizinha-se ao mar. senão talvez no Céu, haja tal arte.
53 Sob o castelo, na tranquila foz, 59 O que faz com que a elas vénia dê
de muitos navios estava uma armada, qualquer gema é que, mirando-se nessas,
a um toque de sino, a uma voz, um homem até à alma se vê;
dia e noite à batalha preparada. os vícios e as virtudes vê expressas
E assim foi a luta dura e atroz, de forma que em lisonjas já não crê,
em terra e sobre a água iniciada23 ; e a censuras injustas pede meças:
a qual pôs todo o reino em polvorosa, faz-se, ao olhar-se no espelho luzente,
que à irmã roubara Alcina viciosa. ele mesmo, ao conhecer-se, prudente.
54 De quantas batalhas fim sucedeu 60 A sua luz, que como o Sol quer ser,
diferente do esperado, e bastante! difunde tanto brilho em seu redor
Não só Alcina não apreendeu, que uma tendo, onde e sempre que quiser,
como julgava, o fugitivo amante; pese a Febo, do dia tem-se a cor3 1 •
mas os navios, com tantos guarneceu Não só as gemas têm tal parecer;
antes o mar que não dava vazante, pois as matérias e o fino lavor
e ao fogo que a todos, feroz, alapa, competem entre si, e avaliar
com um barquito só, mísera, escapa. a excelência maior, só por azar32 •
CANTO X 169

61 Sobre os altíssimos arcos, que amparos 62 Árvores assim nobres e dilectas


parecia que do céu fossem, ao vê-los, não existem fora destes jardins,
havia jardins tão extensos e raros nem rosas como estas ou violetas,
que até no chão era difícil tê-los33 • nem lírios, amaramos ou jasmins.
Verdejavam arbustos de odores caros Noutros sítios, num dia as silhuetas
· (das ameias o brilho a guarnecê-los) , erguem-se, inclinam-se, e atingem seus fins:
a que singelas flores de Inverno e Verão viúvos ficam seus caules ao léu,
e frutos maduros adorno dão. sujeita a flor ao variar do céu;
1 70 ORLANDO FURIOSO

63 mas ali era perpétua a verdura, 69 Assim partiu Ruggier, mas não voltou
perpétua das flores a beleza eterna; pelo caminho que fez contrariado:
não é a amenidade da Natura sobre o mar hipogrifo o conservou
que tão temperadamente as governa: e da terra esteve sempre afastado;
Logistilla com seu saber as cura, mas agora a seu jeito o manobrou,
sem que dependa da regra superna34 para aqui, para ali, mas sempre a seu agrado;
(conquanto aos outros pareça impossível), tal como os Magos, outra via fez,
mantendo a Primavera imperecível. para assim darem a Herodes revés.
64 Logistilla demonstrou muito agrado 70 À ida fora, saindo de Espanha,
por receber um tão gentil senhor; encontrar a Índia em rota direita,
deu ordens para que fosse bem tratado, aonde o mar oriental a banha,
e que cada um lhe prestasse honor. e onde uma fada a outra é contrafeita37 •
Já antes tinha Astolfo ali chegado, Agora foi por uma rota estranha
e, ao revê-lo, Ruggier mostrou calor. àquela em que Éolo os ventos aleita38 ;
Dentro de dias todos chegarão, assim completou o giro rotundo,
aos quais Melissa deu normal visão35 • para ter, como o Sol, contornado o mundo 39 •
65 Depois de repousarem mais que um dia, n E assim o Catai e também Mangiana
procurou Ruggiero a fada prudente viu, o grande Quinsai sobrevoando40 ;
com Astolfo, que tal como ele queria passou sobre o fmavo, e Sericana4 1
licença para regressar ao Poente. estava à direita; e, sempre declinando
Melissa à fada por ambos pedia, da Cítia hiperbórea42 à onda hircana43 ,
fazendo-lhe súplica humildemente chegou às bandas de Sarmácia44 , e, quando
que os vá aconselhando e assistindo, a Ásia da Europa se dividiu,
para que regressem donde tinham vindo. Russos, Prussos e Pomerânia45 viu.
66 Disse a fada: - No caso pensar quero; n Embora Ruggier tivesse desejo
dentro de dois dias serão expedidos. - de regressar a Bradamante em breve,
Só, medita depois como Ruggiero com prazer aproveitou tal ensejo
e o duque Astolfo serão assistidos: de observar o mundo, e não se deteve
decide que o corcel alado e fero sem Polacos e Húngaros no adejo
leve o primeiro aos aquitanos lidos36 ; olhar também e Alemães, ao de leve,
mas primeiro quer que se faça um freio, e o resto daquela boreal terra;
que a travar e virar lhe dê maneio. por fim chegou à distante Inglaterra.
67 Mostra-lhe como fazer, se quiser 73 Não crede porém, senhor, que sempre ia,
que no ar esteja, ou fazê-lo pousar; todo o caminho, sobre o animal:
como um giro completo descrever, cada noite na estalagem dormia,
como ir veloz ou só no ar pairar. tentando evitar alojar-se mal.
Todos os jeitos que o cavaleiro quer Passou dias e meses nesta via,
ao bom cavalo em terra firme dar, de ver terra e mar tendo prazer tal.
Ruggiero no ar ao corcel de penas Perto de Londres chega uma manhã,
conseguiu dar, em instantes apenas. j unto ao Tamisa indo a terra chã.
68 Depois de estar de tudo esclarecido, 74 Ali, nos prados à cidade afins
Ruggiero da fada se despediu, viu, juntos, homens de armas e infantes,
a ela ficando para sempre unido que ao som de trompas e de tamborins
por grande amor, e do país saiu. atrás iam, garbosos e marchantes,
Falo ora dele, em boa hora ido, do bom Rinaldo, honra dos paladins;
depois direi como Astolfo partiu, o qual, se se recordam, disse eu antes
e como alcançou, com maior fadiga, que a mando de Carlos aqui viera
o magno Carlos e sua corte amiga. buscar ajuda, que ele em França espera.
CANTO X 171

75 Chegou Ruggiero quando se fazia 77 Tu vês ali uma bandeira grande,


a parada, fora daquela terra46 ; com a flor-de-lis e os leopardos:
e para lhe contar tudo ele pedia o comandante é que no ar a brande,
a um paladim, mas primeiro aterra; e os outros atrás não lhe serão tardos.
e aquele, muito amável, lhe dizia Seu nome, que nestas bandas se expande,
que da Escócia, de Irlanda e de Inglaterra, é Leonetto, o maior dos galhardos,
e de outras ilhas, eram as fileiras duque de Lencastre e mestre o direi
que ali ostentavam tantas bandeiras; na guerra, e sobrinho do nosso rei.
76 findando a parada ali alinhados, 78 A primeira, junto ao pendão real,
até à beira de água marcharão, que ao vento tremula direito ao monte,
para sulcar o oceano são esperados asas brancas em campo verde é tal,
pelos navios que no porto já estão. Ricardo de Warwick a tem defronte.
Os Francos, em Paris assediados, Do duque de Gloucester é o sinal
esperam que estes para socorrê-los vão. com dois cornos de cervo e meia fronte.
- Mas, para que tu te informes plenamente, Do duque de Clarence o ígneo facho,
eu vou-te distinguir toda esta gente. e do de York a árvore, mais abaixo.
1 72 ORLANDO FURIOSO

79 Ali há uma lança partida em três, 85 O conde de Athol de dourada barra


que do duque de Norfolk é o toque. em seu azul estandarte faz alardo.
Do duque de Kent o raio é jaez, De Moray o duque a bandeira agarra
e o grifo é o do conde de Pembroke. que apresenta enjaulado um leopardo.
Do de Northumberland grinalda vês; Com muitas cores e pássaros, bizarra,
do de Suffolk a balança a reboque. olha a insígnia de Alcabrun galhardo,
Vês o jugo que as cobras associa: que não é duque, conde nem marquês,
é o conde de Essex que ele anuncia. mas sim um chefe no país escocês.
80 O conde de Arundel é o que liberto 86 Do duque de Strafford é o brasão
exibe o barco que no mar se afunda. da ave com o olhar no Sol parado.
Vês o marquês de Berkeley, que, perto, Lurcanio48 , conde, tem de Angus temão,
de Richmond e March os condes secunda: leva o touro que os galgos tem ao lado.
mostra o primeiro em branco um monte aberto, O duque de Albany49 , vê, tem o chão
outro a palma, outro o pinho em água funda. pelas cores azul e branco assinalado.
Olha de Dorset e Hampton os condes: Esse abutre que o verde dragão pisa
a eles, ao carro e à coroa respondes. do conde de Buchan é a divisa.
81 As asas o falcão para o ninho inclina: 87 O ousado Armano, de Forbes patrão,
Raimondo, conde de Devon, segura. branca e negra mostra a sua bandeira;
Negro-amarelo o de Worcester guina; tem o conde de Errol à destra mão,
de Derby cão, de Oxford urso, a figura. que leva em campo verde uma tocheira.
A cruz que ali avistas, cristalina, Olha os irlandeses, no plano estão:
do prelado de Bath é bordadura. são duas esquadras, delas a primeira
Fendida cadeira o cinza reflecte: pelo conde de Kildare é comandada;
é de Ariman, duque de Somerset. ao conde de Desmond a outra é dada.
82 Os homens de armas e archeiros montados 88 No pendão do primeiro um pinho ardente;
quarenta e dois mil em número são. do outro, em branco uma vermelha banda.
Mais cento, menos cento, são dobrados Não leva socorro a Carlos somente
aqueles que a pé para a batalha vão. a terra inglesa, a Escócia e a Irlanda;
De cinza, amarelo e verde corados da Suécia e Noruega vem gente,
vês, e a negro e àzul listado um pendão: de Thule5°, e também da remota Islanda5 1 :
Gofredo, Enrigo, Ermante e Odoardo de toda a terra, enfim, que tem presteza
guiam peões, qual deles mais galhardo. de gente guerreira por natureza.
83 De Buckingham o duque soberano, 89 Dezasseis mil são, se eu não estiver manco,
e Enrigo, que é de Salisbury conde; saídos de cavernas e florestas;
de Monmouth é Ermante, o veterano; têm peludo o rosto, peito e flanco,
de Shrewsbury Odoardo a conde responde. costas, braços e pernas, como as bestas.
Aqueles que a levante estão no plano Em volta do seu pendão, todo branco,
são ingleses. Vê onde o Sol se esconde: estas bandas estão de lanças infestas:
trinta mil escoceses que o paladino Moratto, o chefe, assim o leva exangue52 ,
filho de seu rei comanda, Zerbino47 • para lá o tingir de mourisco sangue. -
84 Vê entre os unicórnios o leão: 90 Enquanto Ruggier dessa gente bela
espada de prata na mão lhe floriu; que para socorrer França se prepara
aquele é do rei da Escócia o pendão; conhece as insígnias, e tagarela,
Zerbino, o filho, ali está arredio. e dos britânicos o nome aclara,
Tão belo não há entre os que aqui estão: alguns para junto dele, para ver aquela
a Natura o fez e o molde partiu. besta que monta, única e tão rara,
Duque é de Ross, e nenhum irradia acorrem com pasmo, em espantado jeito;
assim graça, valor e valentia. em breve em torno um cerco lhe foi feito.
CANTO X 1 73

91 Para causar inda mais admiração, 97 Nos belos olhos os olhos pousando,
e o bom Ruggier com tal se divertir, a sua Bradamante recordou.
deu um pouco de rédea ao alazão E, de piedade e de amor se alagando,
e esporas no flanco lhe fez sentir: o pranto em seus olhos mal evitou;
voou ele pelos céus em digressão, à donzela com doçura falando,
e todos com espanto fez reagir. disse, depois que o seu corcel travou:
Depois Ruggier, que duma a outra banda - Ó senhora, digna só das cadeias
vira os Ingleses, voou para a Irlanda. que Amor usa para a seus servos pôr peias,
92 E viu Hibérnia fabulosa, onde 98 deste mal ou doutro imerecedora;
aquele santo velhinho 53 abriu a cava, quem é o cruel que vos prende assim,
que tanta graça parece que esconde que, de apertá-las, com manchas descora
que o homem de sua culpa desagrava. dessas belas mãos o puro marfim? -
Sobre o mar, o corcel faz ir aonde De ouvi-lo assim falar, por força cora,
ele a mais pequena Bretanha54 lava: qual marfim aspergido com carmim,
e ao passar viu, deitando abaixo o olho, por aquelas partes que nuas tem,
Angelica amarrada ao calvo escolho. belas, que a vergonha cobre porém.
93 Ao calvo escolho, na ilha do pranto 99 Teria o rosto com as mãos escondido,
(pois ilha do pranto ela era chamada) , se presas não estivessem ao rocado;
essa que por feroz, e cruel tanto, mas de pranto, que não lhe era impedido,
e desumana gente era habitada, cobriu-o, e tentou mantê-lo abaixado.
que (como vos disse no outro canto) E, após alguns soluços, comedido,
lidos vários percorria, em armada, seu falar soltou, baixo e entrecortado;
as damas e donzelas depredando, logo parou, pois dentro o fez ficar
para do monstro serem manjar nefando. o grande rumor que se ouviu no mar.
94 Foi atada ali naquela manhã, 1 00 E eis que o enorme monstro aparece,
e para comê-la viva ali viria meio metido no mar e meio saído.
o monstro enorme, em seu sôfrego afã, Qual longo navio que o porto apetece,
que o execrável manjar deglutia. vindo por austro ou bóreas 58 impelido,
Como a raptaram disse, em terra chã, assim vem ao pasto que se lhe oferece
os que a encontraram quando dormia, a besta horrenda; o tempo é reduzido.
do eremita necromante ao lado, Meio morta de medo a dama está;
que a tinha por encanto ali levado. nem o falar dele conforto lhe dá.
95 A gente feroz, inóspita e crua, 1 0 1 Não tinha Ruggiero enristada a lança,
à besta cruel junto ao mar expôs mas a prumo, e assim golpeava a orca.
a lindíssima donzela, tão nua Não vejo que tenha outra semelhança,
como a própria natureza a compôs. senão grande massa que avança e aborca;
Nem um véu lhe puseram, que dilua só cabeça de animal tem, não pança,
dos lírios e rosas as cores 55 , que após olhos e dentes para fora, qual porca59 •
Julho ou Dezembro costumam cair, Ruggier na fronte a feria entre os olhos,
mas no seu corpo estão sempre a florir. mas parecia tocar em ferro ou escolhos.
96 Pensaria Ruggier estátua aprazível 1 02 Como aquela investida pouco vale,
de alabastro ou de mármore polido volta para melhor fazer a segunda.
ser, e que atada ao escolho, era plausível, A orca, que na água vê sinal
um escultor caprichoso houvesse querido; das asas, para cá e para lá secunda
se lágrima não visse, e bem visível, a sombra60 ; a presa certa ao litoral
das rosas e ligustros 56 ter caído, deixa, e segue a incerta, furibunda:
suas verdes pomas 57 indo orvalhar, atrás dela volteando se gira,
e a brisa seus cabelos ondular. e Ruggiero desce e golpes lhe atira.
CANTO X 1 75

1 03 Como do alto a águia vir costuma, 10s Luta idêntica faz a mosca audaz
quando entre as ervas avistou a bicha, contra o mastim, no poeirento Agosto,
ou na rocha ao sol posição assuma ou no mês antes ou no seu sequaz62 ,
para as escamas dourar, e ali se anicha; um o das espigas e o outro o do mosto;
para apanhá-la, àquela parte não ruma olhos lhe pica e focinho mordaz,
em que a venenosa assobia e esguicha6 1 ; voa-lhe em roda e não lhe sai do rosto;
por trás vai, e seu voo de modo embala muito faz ele soar o dente em vão,
que ela não possa virar-se e picá-la: mas, se a agarra, paga a reinação.
104 assim Ruggier com a lança e a espada, 1 06 No mar bate ela a cauda com tal força
não onde os dentes lhe armavam a boca, que a água até ao céu faz levantar;
mas atrás das orelhas a estocada, nem sabe ele se no ar as asas esforça
ou nas costas, ou na cauda coloca. o seu corcel, ou se nada no mar.
Se a fera se volta, ele muda estrada, O desejo de ir para terra reforça,
e para baixo ou para cima se desloca; pois, se aquele borrifo muito durar,
mas, como se batesse em pedra dura, teme as asas molhar do hipogrifo,
a casca córnea e áspera não fura. e em vão querer ali ter ou bóia ou esquifo63 •
1 76 ORLANDO FURIOSO

1 07 Tomou outra decisão, a melhor: 1 13 Não seguiu a via que programou


vencer com outras armas o cascudo; antes, de sobrevoar toda a Espanha;
quer encandeá-lo, com o esplendor na primeira costa o corcel pousou,
encantado do encoberto escudo. onde ao mar entra a pequena Bretanha.
Voa ao lido; e, para não fazer error, Bosque umbroso de carvalhos achou,
à dama amarrada ao rochedo rudo que o choro de Filomela69 acompanha;
deixa ficar, no mindinho da mão, tinha no meio um prado e uma fonte,
o anel que torna todo o encanto vão; e em cada lado um solitário monte.
10s digo o anel que Bradamante havia, 1 14 O cavaleiro ansioso ali deteve
para Ruggier soltar, tirado a Brunel; seu voo audaz, e no prado desceu;
para livrá-lo de Alcina e da magia as asas ao cavalo então susteve,
por Melissa à Índia o mandara àquele. mas não ao outro que mais as estendeu70 •
Melissa (como eu atrás vos dizia) Apeou-se, e a custo se conteve
para o bem de muitos usou o anel; de outro montar7 1 : apenas o tolheu,
depois a Ruggiero o restituiu, por ter de o tirar, o pesado arnês,
e do seu dedo nunca mais saiu. que ao seu desejo impedimento fez.
1 09 Dá-o a Angelica, pois ora teme 115 De um lado e do outro, à pressa entretanto,
que possa impedir do escudo o fulgor, e em confusão, suas armas tirava.
e para que os olhos dela não blasfeme64 , Cria nunca lhe ter custado tanto,
que já lhe armaram laço sedutor. pois, se um laço soltava, dois atava.
À margem vem, e sob o ventre preme Mas muito longo, senhor, vai o canto,
bem meio mar o monstro assustador. e, talvez, mais ouvir já vos pesava:
Ruggiero está a postos, alça o véu65 , por isso defiro esta minha história
e crê-se que nasça outro Sol no céu. para ocasião mais propiciatória.
1 1 0 O encantado esplendor os olhos feriu
daquela fera, e fez como é costume.
Qual truta ou perca a flutuar no rio
que o montanhês turvou com um betume66 ,
assim na espuma das ondas se viu
boiar o monstro, com o baixo para o cume67 •
Ruggiero arremete-o pelo corpo todo,
mas de feri-lo não encontra modo.
1 1 1 A bela dama pede todavia
que a dura escama mais não fira em vão.
- Volta, por Deus, e minhas mãos deslia
(chorava) , antes que a orca tenha acção;
leva-me e dá-me no mar agonia68 ,
em vez de ser do monstro refeição. -
Ruggiero, pelo seu grito comovido,
desligou-lhe as mãos e ergueu-a do lido.
1 12 Picado, o corcel faz força na areia,
e saltando no ar pelos céus galopa;
às costas o cavaleiro acarreia,
vai a donzela na garupa, à popa.
Assim foi privado o monstro da ceia,
e tão delicado manjar se poupa.
Ruggiero vai-se virando, e mil beijos
são, em seu peito, latentes desejos.
CANTO X 1 77

NOTAS

1 Por provas: por provas de amor dadas. 17


Ânsia [. . .} te concede: o outro tipo de amor mói
(lima) o coração, com a ânsia e o temor, enquanto neste
2
Aquela [. . .} alvoroçada: Helena, que provocou a (o de Logistilla) o coração se compraz com a simples
longa guerra entre Gregos (Europa) e Troianos (Ásia) . visão dela.
3 18
Água fria [. . .} fervia: se deitarmos água fria naquela Ambas [. . .} foi: Ruggiero navega num estreito, que
que está a ferver, esta perde a fervura. tem, portanto, duas margens.
4 Ardor [. . .} sucessor: a paixão por Olimpia foi extinta 19
Eco: ninfa dos bosques e das fontes que amou
pela nova paixão. Narciso, por quem foi sempre rejeitada. Depois de
morta restou a sua voz, que repete incessantemente os
5
Urso [. . .} arganaz: animais sujeitos ao longo sono da sons que ouve.
hibernação.
20
Artilharia: as máquinas que lançavam pedras e outros
6
Douradas rodas: as rodas do carro dourado da Aurora. projécteis.
7 21
A/clones: Aldone, filha de Éolo, rei dos ventos, des­ Casta [. .. } outras: Sofrosina, que representa a castida­
posara Ceíce, filho do Astro da Manhã, formando um de, tem aqui um papel mais importante a desempenhar
casal muito feliz. Tal felicidade irritou os deuses, que os junto de Ruggiero, depois da incontinência representada
transformaram em pássaros. Alcíone fazia o ninho à por Alcina.
beira-mar e as vagas destruíam-lho, o que despertou a
22
compaixão de Zeus e o levou a ordenar aos ventos que se Exército: as quatro damas, que representam as virtu­
acalmassem durante os dias em que ela chocava os ovos. des cardeais.
São os chamados «dias do aldone», no solstício de
23
Inverno, em que não há tempestades. E assim [. . .} iniciada: há quem considere esta batalha
uma incoerência, uma vez que Ruggiero já tinha posto
8 E corre [. . .} sua: o episódio da fuga de Bireno aban­ os adversários fora de combate com a ajuda do escudo
donando Olimpia, e o lamento desta, decalcam o episó­ mágico, ou que haja uma troca na ordem das oitavas.
dio do abandono de Ariadne por Teseu na ilha de Naxos, Contudo, pode-se pensar que, tendo o escudo sido reco­
adormecida junto ao mar. Quando acorda apercebe-se berto, os inimigos tenham recuperado os sentidos, sendo
da traição e avista ao longe as velas do navio de Teseu (cf. a batalha necessária para os expulsar.
Ovídio, Heróides, X:7-24). Também Catulo abordou este
24
tema no seu poema LXIV, e Vergílio colheu nele inspi­ Apressar [. . .}fio: Cloto é uma das três Parcas (Átropo,
ração para o lamento de Dido, abandonada por Eneias Cloro e Láquesis), divindades romanas do Destino iden­
(Eneida, IV:584 ss.). tificadas com as Meras gregas, que regulavam a duração
da vida dos mortais com a ajuda de um fio. A primeira
9
A ti se deve: são guardados a mando dele, visto que fiava, a segunda enrolava e a terceira cortava, quando a
Olímpia entregou a Bireno o governo do reino (IX:86:5). vida terminava. Apressar Cloto a enovelar-lhe o fio signifi­
ca apressar o fim da vida de Alcina.
10 Parentesco: matrimónio.
25
Dido: rainha de Cartago, que se apunhalou quando
11
Que corso fazem: corsários. Eneias a abandonou.
12 26
Hécuba [. . .} penas: Hécuba, rainha de Tróia, vendo o Do Nilo a rainha: Cleópatra, que se suicidou fazen­
cadáver de seu filho Polidoro, enlouqueceu e transfor­ do-se morder por uma áspide.
mou-se numa cadela raivosa (Ovídio, Metamorfoses,
27
XIIl:399-575) . Mais firme areia: do lado da virtude e segurança
(reino de Logistilla) , o chão que pisa é firme, ao passo
13
Até que eu ali torno: até que eu volte à história de que o que pisava no reino de Alcina (vício e inseguran­
Olimpia. ça) não o era (cf. 36: areia fonda, e 38: areia que ao passo
cede) .
14
Como foram: como no dia em que foram feitas.
28
Pl,ano: de alcançar o reino de Logistilla.
15 Salitre [. . .} puro: pólvora.
29
Próximo ou distante: próximo ou distante no tempo.
16
Ofensas [. . .} lado: ofensas que ferem todos os pontos
vulneráveis. 3
° Cd em baixo: entre nós, no reino dos mortais.
178 ORLANDO FURIOSO

31
Uma tendo [. . .] a cor: quem tiver uma daquelas 51 Manda: forma usada na tradução em vez de Islândia,
gemas tem a luz do dia onde e quando quiser, mesmo por semelhança com Irlanda, Holanda, etc.
contrariando o Sol (Febo) .
52
O leva exangue: leva o estandarte pálido (branco),
32
Excelência [. .. ] azar: só ao acaso se pode dizer se é sinal de que não tinham ainda participado em nenhuma
maior a excelência das gemas ou a do trabalho artístico. empresa de guerra.
33 53
jardim [. .. ] tê-los: jardins suspensos. Santo velhinho: São Patrício, que, segundo a lenda,
cavou um poço no None da Irlanda (Hibérnia) que lava­
34 Regra superna: os movimentos astrais, que determi­ va as culpas a quem nele se banhasse, porque comunicava
nam o ciclo das estações. com o purgatório.
35 54
Melissa [. ..] visão: a quem Melissa restituiu o aspecto Pequena Bretanha: Bretanha francesa.
normal, quebrando o encanto a que estavam sujeitos.
55 Llrios [. .. ] cores: os tons da carnação de Angelica des­
36
Aquitanos lidos: costas da Aquitânia, antigo nome da critos à maneira petrarquista, processo que se repete na
região francesa da Gasconha. oitava seguinte.
37 Fada [. .. ] contrafeita: Alcina e Logistilla, que litigam 56
Rosas e ligustros: o rosto de Angelica.
entre si.
57
i&rdes pomas: os seios, pequenos e rijos como maçãs
38
Rota [. .. ] aleita: evitou o mar, onde Éolo solta os seus verdes.
ventos.
58
Austro ou bóreas: ventos de sul e de norte, respectiva­
39
Assim [. .. ] mundo: à ida, Ruggiero partira da Europa mente.
para ocidente, até à Índia; agora, em vez de voltar para
59
trás pelo mesmo caminho, continua para ocidente e, Porca: javali-fêmea.
sobrevoando a Ásia, chega à Europa, completando uma
60
volta ao mundo no mesmo sentido do Sol. A orca [. . .] sombra: a cena de Angelica presa ao
rochedo e o combate de Ruggiero com o monstro (que
40
Catai [. .. ] sobrevoando: viu o Catai (a none) e a persegue a sombra do cavalo alado) lembram o episódio
Mangiana (região a sul do Catai, descrita por Marco Polo), da libertação de Andrómeda por Perseu (Ovídio,
quando sobrevoava Quinsai (região central da China e Metamorfoses, IV:663 ss.).
cidade com o mesmo nome, descritas por Marco Polo).
61 Àquela parte [. ..] esguicha: a águia assalta a serpente
41 Ímavo, e Sericana: os Himalaias e o reino de (venenosa) pelo l�o oposto à cabeça, para não ser mordida.
Gradasso, na China.
62 Mês
antes [. .. ] sequaz: em Julho (das espigas) ou
42
Cltia hiperbórea: Cítia setentrional (Sibéria) . Setembro (do mosto).
43 63
Onda hircana: mar Cáspio. O nome deriva de Bóia ou esquife (esquife) : objecto flutuante que o
Hircânia, região do Cáspio. impeça de se afundar.
44 64
Sarmdcia: região a oriente do Cáspio. Pam que [. ..] blasfeme: para que não ofenda os ollios dela
45 65
Pomerânia: região do Noroeste da Polónia, junto ao Véu: cobertura do escudo mágico.
mar Báltico.
66
Betume: nos Apeninos, os montanheses deitavam cal
46
Terra: cidade (Londres). nos rios para fazer os peixes vir à tona e os apanharem
(método ilegal).
47
Zerbino: filho do rei da Escócia e irmão de Ginevra
67
(cf. V:69) . Com o baixo para o cume: revirado, de ventre para o ar.
48
Lurcanio: irmão de Ariodante, já referido nos cantos 68 Dd-me no mar agonia: afoga-me.
V e VI, no episódio de Ginevra.
69
Filomela: donzela transformada pelos deuses em rouxinol.
49 70
Duque de Albany: Ariodante, que casou com Asas [. .. ] estendeu: susteve as asas ao hipogrifo, mas
Ginevra, a qual herdou este ducado após a morte de não ao outro (seu apetite sexual), que mais as estendera.
Polinesso (c( VI: 1 5) .
71
A custo [. .. ] montar: teve de conter a custo o seu dese­
50 jo de possuir Angelica.
Thule: ilha lendária d o mar d o Norte.
--ê$,-­

CANTO XI

Embora débil freio em pleno curso 4 É este o anel que ela levou para França
detenha o cavalo, inda que fogoso, a primeira vez que viu tal confim,
mais raro é que a razão haja recurso com seu irmão, que então levava a lança3
para dar à lasciva fúria repouso, que foi depois de Astolfo, o paladim.
com o prazer à mão; tal qual o urso Anel com que aos encantos fez esquivança,
que do mel já não se afasta, guloso, de Malagigi, à beira de Merlim4 ;
se lhe chegou ao nariz seu odor com ele Orlando tinha, uma matina,
ou duma gota tomou o sabor. furtado aos encantos de Dragontina5 ;
2 Qual o motivo que Ruggier refreia 5 com ele saiu invisível da torre
para de tal coisa não tirar proveito, onde um velho celerado a prendeu.
tendo Angelica nua, qual sereia, Mas por que todas as provas me ocorre,
no solitário bosque tão a jeito? se vós as sabeis tão bem como eu?
Já Bradamante lhe saiu da ideia, Que Brunel lho tirou já se discorre,
que costumava ter fixa no peito: pois Agramante tais ordens lhe deu.
mesmo que ainda se lembrasse dela, Desde então a Fortuna a desdenhou
néscio era se não estimasse aquela; sempre, e tanto que o reino lhe tirou.
3 com ela nem teria aquele crudo 6 Ora que o vê, como disse, na mão,
Xenócrates 1 sido tão continente. fica de espanto e alegria tão plena
Para o lado atirara a hasta e o escudo, que quase teme estar sonhando em vão:
e o arnês retirava impaciente; de crer em seus olhos não se asserena.
quando, passando pelo corpo desnudo Tirando-o do dedo com brusquidão,
a dama os olhos, vergonhosamente, na boca o põe; e, instantânea e lena,
no dedo o mágico anel se destaca dos olhos de Ruggier desaparece,
que lhe tirara Brunello em Albracca2 • como o Sol quando a nuvem o escurece.
1 80 ORLANDO FURIOSO

7 Ruggiero em toda a volta procurava, 13 Ruggiero entretanto, após longamente


e à roda se girava estupefacto; em vão esperar que ela se revelasse,
mas depois do anel se recordava, compreendeu seu erro finalmente,
sentindo-se frustrado e insensato; que ali não estava e que era já fugace;
pela imprudência sua blasfemava, para onde o corcel estava, competente
e a dama condenava por tal acto para a terra e para o céu, caminha tenace:
ingrato e descortês, compensação e descobriu que ele soltara a brida
que dava a quem lhe deu a salvação. e pelo ar subia, em livre corrida.
- Donzela ingrata (dizia) , é assim 14 Grave acréscimo foi ao outro dano
que de meu gesto tão cortês me preitas? ver-se agora privado do corcel,
Preferes então o anel tirar de mim que não menos que o feminino engano
a que eu to dê? E por que não aceitas lhe oprime o peito; mais que este e que aquele
o mágico escudo, o alado andarim, o oprime, e faz sentir em grande afano,
e eu próprio, pois assim meu uso enjeitas? ter ficado sem o precioso anel;
Por que teu belo rosto assim me escondes? não tanto por ter virtude estupenda,
Sei que ouves, cruel, e não respondes. - como por ser de sua dama oferenda.
9 Assim dizendo, à volta da nascente 15 Voltou a vestir, mui desalentado,
andava, tacteando como cego. a armadura e pôs o escudo ao peito;
O ar ia �braçando à sua frente, deu costas ao mar e pelo verde prado
esperando da donzela o aconchego. dirigiu-se a um vale nada estreito,
Mas ela, que dali já estava ausente, onde, através dum bosque sombreado,
à frente achou duma gruta o sossego, seguia um atalho largo e direito.
que sob um monte tinha amplo assento; Pouco avançara, quando à destra sente
e ali encontrou algum alimento. um estrépito, onde a selva é mais florente.
10 Um velho pastor que grande rebanho 16 Estrépito e assustadora entoação
tinha de éguas, achara ali recato. de armas que se chocam; e logo avança
Pasciam-se as bestas no vale tamanho, por entre o bosque, e encontra dois que estão
das tenras ervinhas junto ao regato; num espaço apertado em bélica dança.
na gruta abrigo, ao lado destro e canho, Atacam-se sem piedade ou perdão,
do sol do meio-dia era-lhes grato. para de alguma coisa fazer vingança.
Angelica um dia ali fez detença, Um é gigante e de aspecto grosseiro;
mas não foi notada sua presença. o outro era um garboso cavaleiro.
1 1 Ao anoitecer, fresca se sentiu, 11 E este, com o escudo e com a espada,
e achando-se já repousada assaz, saltando de cá para lá se defende
com uns trapos grosseiros se cobriu, da maça, pelas duas mãos agarrada,
muito diversos da roupa vivaz com que o gigante feri-lo pretende.
que, em tempos idos, sempre possuiu, Morto jaz o seu cavalo na estrada.
verde, amarela, azul, rubra, lilás. Ruggiero pára e à batalha atende;
Mas a humilde saia não encobre começa a tomar partido, e deseja
que mui bela dama ela é, e nobre. que vencedor o cavaleiro seja.
12 Calem louvores a Fílidas, Neera, 1s Mas lá por isso não lhe dá demão,
Amarílis, Galateia fugaz6 ; ficando apartado, apenas a ver.
nenhuma delas tão formosa era, Nisto, o mais membrudo, com o bastão,
Títiro e Melibeu, se vos apraz7 • o elmo a duas mãos do menor fere.
A linda dama entre todas soubera Do baque, o cavaleiro vai ao chão;
a égua escolher, que mais a compraz. o outro, que aturdido o vê jazer,
E, então, uma vez mais8 a ideia teve para lhe dar morte o elmo lhe escancara,
de ao Oriente regressar em breve. e faz com que Ruggier lhe veja a cara.
CANTO XI 18 1

19 Ruggiero vê da sua doce e bela 20 e levando-a às costas, a transporta


e tão querida donzela, Bradamante, como o lobo leva um pequeno anho,
descoberta a face; e vê que é a ela ou a àguia, preso na unha torta,
que quer dar morte o bárbaro gigante; um pombo ou pássaro de igual tamanho.
logo o outro desafia à querela, Ruggiero vê que a sua ajuda importa,
e com a espada nua faz-se avante: e a correr vem em passo não tacanho;
mas aquele, que não quer mais embaraços, o outro em grandes passadas prossegue,
toma a dama atordoada nos braços; e Ruggier com os olhos mal o segue.
1 82 ORLANDO FURIOSO

21 Correndo assim, e segui-lo tentando 27 Por ti foram para debaixo da cerra,


Ruggier por atalho sombrio e fosco, e hão-de ir, senhores e cavaleiros tantos,
que de largura ia sempre aumentando, antes que acabada esteja esta guerra
num grande prado saíram do bosco. que o mundo, e mais a Itália, pôs em prantos,
Calo agora deste e volto a Orlando, que como disse, e o meu dito não erra,
que aquele raio9 que foi de Cimosco só o mais ímpio e mais cruel de quantos
deitara ao mar, onde ele é mais profundo, inventores o mundo já conheceu
para que mais mal não fizesse no mundo. tal engenho execrável concebeu.
22 Pouco se alegrou: o inimigo infido
da humana raça, o qual inventou
tal arma, como exemplo tendo tido
o raio, cujo efeito copiou,
com pouco menor dano que o sofrido
quando Eva com a maçã enganou,
fez com que o encontrasse um necromante,
quando era nosso avô quase reinante 10 •
23 A máquina infernal, que mais de um cento
de passos de água cobriu muitos anos,
à tona veio por encantamento;
levada foi à mão dos Alamanos,
que fizeram um ou outro experimento,
enquanto o demo, para nos dar mais danos,
lhes foi espevitando mais a mente:
seu uso descobriram finalmente.
24 Itália e França, e onde quer que se ande,
todo o mundo aprende a cruel empresa.
Um o bronze em cavas formas expande,
já liquefeito na fornalha acesa;
outro a boca fura; e, pequeno ou grande,
faz-se o bojo que mais ou menos pesa:
um, morteiro se chama, outro arcabuz,
canhão duplo ou simples, e lança obus;
25 diz-se sacre, falcão ou colubrina,
conforme o nome ao seu autor agrada;
que ferro e mármore abre e arruína,
e, por onde passa, à força abre estrada.
Leva, infeliz soldado, à oficina 1 1 ,
as armas que tiveres, e até a espada,
e ao ombro põe arcabuz ou morteiro;
sem ele, eu sei, não ganharás dinheiro 1 2 •
26 Como pudeste, invenção aborrida,
no humano coração ter favor?
A glória militar foi destruída,
das armas o ofício perdeu honor;
foi virtude militar reduzida,
podendo o mau parecer que o bom melhor;
por ti, bravura e determinação
já não têm em campo avaliação.
CANTO XI 1 83

28 E espero que Deus, para que a punição 34 Porque está longe e o rosto tem pendido,
eterna seja, aquela alma maldita quem ela seja não consegue ver.
encerre no mais fundo boqueirão Aos remos dá, com vigor desmedido,
de Averno, que Judas traidor habita 1 3 • desejoso de melhor conhecer.
Mas sigamos Orlando, campeão: Nisto, ouve o mar emitir um mugido,
para chegar a Ebuda se agilita, trovão grutas e selvas percorrer;
onde as damas belas e delicadas incham-se as ondas, e o monstro aparece:
são, para seu alimento, ao monstro dadas. sob o seu peito o mar quase esvanece.
29 Quanto mais pressa tinha o paladino, 35 Qual nuvem que se ergue de escuro vale,
menos parecia que a tivesse o vento. grávida de tempestade e de chuva,
Sopre do lado destro ou do esquerdino, que mais que cega noite tudo embale,
ou que sopre à popa, é sempre tão lento deixando a Terra do dia viúva,
que não ajuda a chegar ao destino; assim a fera porção cobre tal
por vezes perdia todo o alento; de mar que se crê que todo o enluva.
ou então adverso a soprar se obstina, Freme o mar. Orlando olha-a, concentrado,
e o faz regredir ou ir à bolina. sem que arrojo ou rosto tenha alterado.
30 Queria Deus que a demora o impedisse 36 E, como tinha firme a intenção,
de antes de o rei de Hibérnia 14 lá chegar, o que queria fazer, depressa fez;
para que com mais destreza conseguisse para que à donzela desse protecção
o que em poucas páginas vou contar. e a fera atacasse, duma s6 vez,
À ilha chegados, Orlando disse põe entre uma e outra a embarcação,
ao seu barqueiro: - Podes fundear e a espada não retira do arnês;
e dar-me o batel, que s6 eu procedo, a âncora e a corda em mão tomou,
sem mais companhia até ao rochedo. e com afoiteza o monstro aguardou.
31 E a maior corda quero que me dês, 37 Quando a orca se aproximou e viu
e a âncora maior que há no navio; no esquife Orlando a tão pouco intervalo,
a razão para as levar tu depois vês, para engoli-lo tanto a boca abriu
quando eu defrontar o monstro bravio. - que um homem entrar podia a cavalo.
Consigo o escaler desceu do convés, Orlando entrou, na goela imergiu
e o mais que para seu plano era atavio. levando a âncora, e, se não resvalo 18 ,
As armas deixou, com excepção da espada, o bote até; e a âncora cravou
e direito ao escolho se fez à estrada. entre o palato e a língua, e lá ficou:
32 Puxa os remos ao peito, e vira à proa 38 de modo que de cima já não cai,
as costas, para o lado a que se destina 1 5 ; nem sobe de baixo a queixada avara.
tal qual como do mar ou da lagoa Como quem nas minas o ferro extrai,
sai o caranguejo à seca marina. a terra, à medida que avança, ampara;
Era na hora em que a Aurora a coroa e assim à derrocada se subtrai,
dos áureos cabelos para o Sol inclina, enquanto tranquilo o trabalho encara.
parte descoberto e parte ocultado 16 , De um gancho ao outro a âncora é tão alta
com desdém de Titono, enciumado 17 • que Orlando não lhe chega, se não salta.
33 Chegando junto ao escolho, tanto quanto 39 Colocada a escora, e estando seguro
um tiro de pedra de um robusto braço, que o monstro não pode fechar a boca,
parece e não parece ouvir um pranto, agarra a espada e aquele antro escuro
tão fraco aos ouvidos lhe chega, e lasso. com cortes e pontadas todo toca.
Todo ele se revira para o esquerdo canto, Como se já dentro estiver do muro
pousando os olhos da onda a um passo: o imigo, do forte a defesa é pouca,
nua como nasceu, vê uma dama assim defender-se a orca podia
presa a um tronco; a seus pés o mar brama. do paladim, que a goela lhe enchia.
1 84 ORLANDO FURIOSO

40 Vencida pela dor, sobre o mar avança, 41 E com ela vem nadando depressa
e os flancos e o escamoso dorso acciona; para o rochedo; onde, já com firme pé,
depois nele se imerge, e com a pança a âncora puxa que a boca empeça
a. areia do fundo faz vir à tona. e fere com os ganchos, qual polé.
Sentindo a água o cavaleiro de França De seguir a corda a fera não cessa,
tão abundante, a nado se abandona: que a força que a puxa faz fincapé;
deixa fixa a âncora, da qual pende força que mais puxa com um esticão
a corda, que da mão ele não desprende. que em dez um cabrestante dá tracção,
CANTO XI 1 85

42 Qual touro selvagem que sente o corno 48 Um com funda, o outro com arco armado,
apanhado por repentino laço, outro com hasta ou espada ao lido atende;
salta, cai, ergue-se e volteia em torno, e da frente e de trás, de todo o lado,
sem conseguir livrar-se do baraço; de longe ou perto, quem mais pode o ofende.
assim, fora do natural contorno 1 9 , O ver-se irracionalmente atacado,
a orca forçada por esse braço, ao paladino muito surpreende:
contorce-se, salta, e a corda segue, que ao matá-la injúria fez ora vê,
porque livrar-se dela não consegue. embora esperasse glória e mercê.
43 Da boca o sangue sai com tal fartura 49 Como o urso que às feiras sói trazer
que o mar Vermelho este hoje é, a fingir; o Russo ou o Lituano pela mão,
de tal maneira as ondas ela fura e que pela rua passa sem temer
que até ao fundo se vêem abrir; o ladrar de qualquer pequeno cão,
a água ao céu vai, e a luz torna escura sem sequer se dignar olhar para o ver,
do claro Sol: tanto ela a faz subir. assim não temia o povo vilão
Ribombam, ao som do local fragor, o paladino que, apenas soprando,
selvas, montes e praias em redor. poderia derrubar todo o bando.
44 Do fundo do mar sobe Proteu20 , quando 50 E logo em redor de si abriu praça,
tanto rumor faz com que a gruta deixe; tomou Durindana e uma volta fez.
vendo entrar na orca e sair Orlando, Tinha julgado, aquela louca raça,
.
e para a praia puxar o enorme peixe,
. que nele encontrava pouca altivez,
para o alto oceano foge, olvidando por nem vestida lhe ver a couraça,
o grege; para que do rumor se queixe, nem escudo no braço nem outro arnês;
Neptuno os golfinhos ao carro atrela, desconhecia que dos pés em diante
e a ida à Etiópia21 não protela. a pele tinha mais dura que diamante.
45 Melicertes 22 pega em lno, chorando; 51 O que nenhum a Orlando fará,
as tranças das Nereides23 a espalhar-se; ele aos outros de o fazer nada impede.
Glaucos, Tritões24 e outros vão buscando, Trinta matou; estocadas contará
de cá para lá, onde possam salvar-se. dez ao todo; se mais, em pouco excede.
O horrendo peixe ao lido trouxe Orlando, Num instante em seu redor ninguém há,
e mais não precisou de afadigar-se; e para acudir à dama retrocede,
dos ferimentos e da grande tareia quando outro tumulto e novo alarido
morreu, inda antes de chegar à areia. faz ressoar dum lado ao outro o lido.
46 Da ilha não poucos a correr vão 52 Enquanto o paladino nesta banda
para verem a batalha desumana; os bárbaros mantivera entretidos,
os quais movidos por culto pagão, sem impedimentos, os da Irlanda
a tão santa obra25 chamam profana; por toda a ilha foram repartidos;
diziam que Proteu nova razão e, sem piedade, matança nefanda
teria para atiçar a ira insana, iam fazendo daqueles infidos;
trazendo de novo o grege para a terra, fosse injustiça, ou fosse crueldade,
e retomando aquela antiga guerra; não olhavam a sexo nem idade.
47 e que será melhor pedir a paz 53 Não se defendem os ilhéus do jogo;
ao ofendido, ou o pior virá; não só porque eles chegam de improviso,
tal só se cumprirá, quando o audaz, mas poucos têm o seu desafogo,
para o aplacar, lançado ao mar será. e esses poucos nada devem ao siso.
Como um facho outro fogo pegar faz, Os bens pilham; às casas põem fogo;
e em breve a aldeia toda alumiará, o povo tem da morte o prejuízo;
de voz em voz a ira vai passando o que era muro, foi tudo arrasado;
que quer atirar às ondas Orlando. nem um único vivo foi deixado.
1 86 ORLANDO FURIOSO

54 Orlando, não considerando sua 57 Tenho de agradecer-vos se de um preço


a batalha, seus passos não detinha; de morrer me livrastes tão disforme;
vai junto àquela que na pedra nua que hediondo seria, reconheço,
devia comer a orca marinha. se no sujo ventre chegasse a pôr-me.
Olha a donzela e bem averigua, Mas não morrer, porém, não agradeço,
pois lhe parece, quando se avizinha, pois só a morte pode recompor-me;
parece-lhe Olimpia, e é bem verdade: agradeço, sim, se a quiserdes dar-me:
tal paga teve a sua lealdade! só ela toda a dor pode tirar-me. -
55 Infeliz Olimpia! Após a ofensa 58 Depois, em grande pranto lhe contou
que Amor lhe fez, também Sorte sanhuda como por seu esposo fora traída;
corsários levou à sua presença, que adormecida na ilha a deixou,
que a transportaram para a ilha de Ebuda. e como ali foi raptada em seguida.
Que é Orlando vê ela, sem diferença, Enquanto falava, se acomodou
quando ele se chega; mas, porque desnuda, na mesma posição em que é esculpida
baixa a cabeça; e não só nada diz ou é pintada Diana, junto à fonte,
como de erguer os olhos se interdiz. lançando a Actéon água na fronte26 ;
56 Orlando perguntou que iníqua sorte 59 escondendo quanto pode o peito e o ventre,
a pôde à ilha maldita trazer é mais liberal com os rins e o lado.
de onde ele a deixara, com seu consorte, Quer Orlando que no porto a nave entre,
tão feliz quanto se pode dizer. pois, tendo-a já das cadeias soltado,
- Não sei (disse ela) se vos devo a morte uma veste lhe queria dar. Em mentre,
de que me livrastes agradecer, Oberto já se tinha aproximado;
ou se, por vossa causa, lamentar Oberto, rei de Hibérnia, já soubera
minha pena aqui não ver terminar. que estava estendida na praia a fera;
CANTO XI 1 87

60 que a nado um cavaleiro tinha ido 66 Na chama dos olhos o dardo amorna
meter-lhe na goela âncora grave; e depois, no pranto, o calor lhe tira,
e que assim a arrastara para o lido, que entre rubras e brancas flores 27 se entorna;
tal contra a corrente se puxa a nave. assim temperado, com força o atira
Oberto queria ver se tinha ouvido contra o jovem28 , que escudo não contorna29 ,
toda a verdade, ou se alguém o aldrave; nem dupla cota ou dura pele vestira;
e até lá vai; sua gente, entretanto, enquanto olhos mira e cabelos vê,
de Ebuda faz ruína em cada canto. dói-lhe o coração sem saber porquê.
61 O rei de Hibérnia, vendo assim Orlando 67 As belezas de Olímpia eram daquelas
todo encharcado e de sangue tingido, que mais raras são; não a fronte apenas,
do sangue que agarrado trouxe quando olhos, faces e boca tinha belas,
saiu da orca em que estava metido, nariz, pescoço, ombros e melenas;
pelo conde apesar disso o foi tomando; mas abaixo das pomas eram elas,
pois tinha por si só já deduzido, as que costumam estar de roupas plenas,
logo que da façanha ouviu a nova, de uma tal excelência que talvez não
que só Orlando faria tal prova. achassem no mundo comparação.
62 Conhecia-o porque na corte p agem 68 A pura neve em brancura venciam,
de França fora, e no ano anterior e mais macias eram que marfim;
dali partira, porque, por linhagem, as redondas tetas leite pareciam,
do pai que morreu fora sucessor. dos cinchos saído, como um pudim30 •
Não tinham conta as vezes que a imagem Espaço entre elas havia, que as faziam
dele vira, e dele fora auditor. como colinas que vemos assim,
Correu para o abraçar e fez-lhe festa, com vales entre elas, na Primavera
depois de afastar o elmo da testa. cobertos ainda de neve austera.
63 Não menos Orlando ficou contente 69 Os seus flancos salientes e as ancas,
de ver o rei que o rei de o ver a ele. e, mais liso que espelho, o ventre plano,
Depois que a se abraçarem novamente, pareciam feitos, e as coxas brancas,
mais de uma vez a amizade os impele, por Fídias3 1 no torno, ou método arcano.
Orlando a Oberto tornou patente Devo falar dessas partes estancas,
a traição feita à jovem, por aquele que em vão ocultava com tanto afano?
que menos que outro devia fazê-lo: Digo e resumo: da cabeça ao pé,
Bireno, da falsidade modelo. tudo quanto se vê beleza é.
64 As provas lhe narrou ter ela dado 70 Se tivesse sido, no monte lda32 ,
infindas vezes de a ele ter amor: vista pelo pastor frígio33 , não sei quanto
sem parentes e bens tinha ficado, Vénus, elas34 levando de vencida,
e a vida daria ao usurpador; mais do que esta pudesse ter encanto;
que ele mesmo havia testemunhado nem para Esparta tinha dado partida,
muitas, das quais podia dar penhor. para ir violar o hospício santo35 ;
Enquanto falava, os olhos serenos antes diria: - Com Menelau resta,
da donzela estavam de pranto plenos. Helena; eu não quero outra senão esta. -
65 Seu belo rosto muito se parece 11 E se em Crotona36 esta um dia estivera,
com o céu, por vezes, na Primavera, quando a im agem37 Zêuxis38 quis fazer,
quando a chuva cai e o sol aparece, a qual devia pôr no templo de Hera39,
e o véu nebuloso afasta e supera. e tantas belas desnudas quis ver40 ;
Como o rouxinol, que cantigas tece · e, porque uma perfeita fazer espera,
e dos ramos da árvore se apodera, parte a uma e a outra vai colher;
assim, Amor, em lágrimas se banha, não escolheria outra, só aquela,
enquanto a clara luz dos olhos ganha. pois toda a beleza se via nela.
1 88 ORLANDO FURIOSO

n Eu não creio que Bireno desnudo 78 deteve-se um só dia na Irlanda,


aquele corpo visse; pois estou certo não há rogo para ficar a que atenda;
que nunca teria sido tão crudo, Amor, que atrás de sua dama o manda,
capaz de deixá-la naquele deserto. não quer que mais tempo ele ali se prenda.
Oberto enamorou-se, não me iludo, Parte, mas de ao rei lembrar não abranda
e já não consegue tê-lo encoberto. o prometido, e Olimpia recomenda;
Quer consolá-la, e esperança lhe dá: não era preciso, pelo contrário:
o mal que a oprime a bem passará; há-de cumpri-las mais que o necessário.
73 promete que vai com ela à Holanda; 79 Em poucos dias tropas recolheu,
e enquanto ao reino a não fizer voltar, e a ele se ligou o rei de Inglaterra
e com vingança justa e memoranda com o da Escócia, e logo reaveu
o infiel traidor não castigar, Holanda, e da Frísia tirou-lhe a terra44 ;
tudo o que possa fazer a Irlanda mesmo a Zelândia contra ele torceu,
fará, não deixando de se apressar. e por terminada não deu a guerra
Mandava entretanto buscar nas casas sem o matar; contudo não foi tal
saias e outras femininas gazas. a pena que ao seu crime fosse igual.
74 Sair da ilha para encontrar saias 80 Oberto Olímpia por mulher tomou,
não precisa, que ali as acharia; e de condessa a fez grande rainha.
havia as das damas que nestas praias Vejamos Orlando, que desfraldou
para o monstro eram diária iguaria. as velas e noite e dia caminha;
Depressa acharam sedas e cambraias depois no mesmo porto45 as amainou,
com que Oberto a nua donzela avia; onde antes as soltara na marinha.
vestiu Olímpia, porém lamentou O seu Brigliadoro montou armado,
que a veste não fosse a que desejou. e atrás deixou ventos e mar salgado.
75 De tão bela seda ou tão fino ouro 81 Naquele Inverno coisas terá feito
nunca os Florentinos4 1 fizeram pano, dignas de que se lhes fizesse o ponto;
e quem borda, jamais bordou tesouro, mas ficaram escondidas de tal jeito
a que deu tempo, habilidade e afano, que culpa não tenho se não as conto;
que ele achasse ter bastante decoro porque Orlando, de seu virtuoso feito,
(feito embora por Minerva42 ou Vulcano43) mais que falar, a fazê-lo está pronto.
para cobrir da dama o corpo tão belo, Nunca foi sucesso seu descoberto,
que lhe parece ainda estar a vê-lo. se não havia testemunhas perto.
76 Várias razões o paladim reúne 82 O resto do Inverno passou tão quieto
para ter por tal amor satisfação; que não se ouviu dele coisa sincera;
pois além do rei não deixar impune mas quando o Sol, no animal discreto
Birena, pela sua grande traição, que Frixo levou, aclarou a esfera46 ,
também ele assim ficaria imune e Zéfiro47 voltou, suave e faceto,
a grave e delicada interdição: trazendo-nos a doce Primavera,
não foi por Olímpia que ele aqui veio, de Orlando surgiram ousadas provas,
mas por à sua dama querer dar esteio. com as gentis flores e ervinhas novas.
77 Que ela aqui não estava teve o conforto, s3 Do plano à montanha, do campo ao mar,
mas não soube se aqui fizera estada; mortificado e dolente seguia,
pois tudo o que era humano estava morto, quando, ao entrar num bosque, ouviu gritar,
nem um restou de tão grande brigada. alto lamento que o ouvido feria.
No dia seguinte largou do porto, Pica o cavalo, a mão à espada a dar,
e juntos foram, numa só armada. e donde o som lhe vem lesto se avia;
Para a Irlanda também Orlando avança, mas tal deixo para contar doutra vez,
que fica em caminho para ir para França; se de o saber tiverdes avidez.
CANTO XI 1 89

-.-.
NOTAS

1 Xenócrates: austero filósofo grego, discípulo de Platão, 8


Uma vez mais: Angelica já mostrara desejo de o fazer
famoso por ter resistido à sedução de Frine. (cf. 1:54 e 11: 1 4) .
2 Tirara [. .. ] Albracca: cf. nota a III:69. 9
Aquele raio: o arcabuz d e Cimosco, rei d a Frísia (cf.
IX:90-9 1 ) .
3 A lança: a lança de ouro que foi de Argalia (seu
10
irmão) e agora pertence a Astolfo (cf. VIIl: 1 7) . Quando [. . .] reinante: quase no tempo dos nossos
avós. Talvez Ariosto aluda ao frade alquimista alemão
4 À beira de Merlim: junto à gruta d e Merlim. Factos Bertold Schwarz (séc. XIV), que aperfeiçoou máquinas de
narrados no O. Innamorato. artilharia.
5 Com ele [. . .] Dragontina: com a ajuda do anel, 11
À oficina: à forja, para que sejam derretidas.
Angelica libertara Orlando de Dragontina, feiticeira que
capturava os cavaleiros e os fazia perder a memória. 1 2 Ao ombro [. . .] dinheiro: discurso irónico contra a
artilharia e as armas de fogo.
6 PI/idas [ .. ]fagaz: ninfas que aparecem nas éclogas de
13
Vergílio e de outros poetas pastoris. Fundo [. .. ] habita: Dante, na Divina Comédia, colo­
ca Judas no lugar mais profundo do Inferno, o círculo
7 Se vos apraz: «com vossa licença», pois Títiro e Melibeu dos traidores (Inferno, X:58-59) .
são pastores que louvam essas ninfas nas referidas éclogas.
1 90 ORLANDO FURIOSO

1 4 Antes [. . .} Hibérnia: cf. IX: 1 1 . 33


Pastor frigio: Páris, a quem, no monte Ida, foram
apresentadas a mandado de Zeus as três deusas, Hera,
15
Costas [. . .} destina: avança de costas, como o caran­ Atena e Afrodite, para que ele decidisse qual delas era a
guejo. mais bela, visto que os deuses não conseguiam enten­
der-se quanto à questão. Cada uma delas lhe fez pro­
16
Aurora [. . .} ocultado: quando o céu se tinge de ama­ messas em troca do título. Afrodite limitou-se a prome­
relo-laranja e o Sol começa a ver-se. ter-lhe o amor de Helena de Esparta, casada com Menelau
e considerada a mais bela das mortais. Páris não hesitou
17
Titono, enciumado: Titono é o velho marido da e escolheu Afrodite ( Vénus) como a mais bela das três
Aurora, famosa pelas suas aventuras amorosas. Quando deusas.
se apaixonou por ele, que era mortal, pediu a Zeus que
34
o tornasse imortal, mas esqueceu-se de pedir a eterna Elas: as outras duas deusas.
juventude. Titono envelheceu tanto e ficou tão encar­
quilhado que a Aurora acabou por transformá-lo em 3 5 Esparta [. . .} santo: Páris violou as regras da hospitali­
cigarra. dade, que eram sagradas na Antiguidade. Aproveitando­
se de uma ausência de Menelau, seduziu Helena, que
18 E se não resvalo: e se enganado não estou. fugiu com ele para Tróia. Este incidente deu origem à
Guerra de Tróia.
19
Natural contorno: elemento natural (neste caso, a
36
água) . Crotona: cidade da Magna Grécia (Sul de Itália).
20 37
Proteu: cf. nota a VIIl:5 1 . A imagem: o retrato de Helena.
21 38
Neptuno [. . .] Etiópia: diz a tradição que os deuses se Zêuxis: pintor grego (c. 464 a. C.-c. 398 a. C.).
reuniam na Etiópia (ou no Egipto). Além disso, Proteu
39
passava a maior parte do tempo junto à embocadura do Hera: deusa grega a que corresponde a deusa roma­
Nilo. na Juno, que tinha um templo em Crotona. Em vez de
Juno, como está no original, preferiu-se Hera na tradu­
22
Melicertes: filho de lno; quando ele morreu, a mãe ção por razões de rima.
afogou-se com o desgosto, levando consigo o seu cadá­
40
ver. Tantas [. .. } ver: para pintar o retrato de Helena,
Zêwcis quis observar cinco belas jovens nuas, tendo esco­
23
Nereides: as cinquenta filhas de Nereu e Dóris, nin­ lhido a parte mais bela de cada uma para conseguir um
fas do mar. retrato de grande perfeição.
24 41
Glaucos, Tritões: divindades do mar. Florentinos: célebres pelas artes de tecelagem da seda,
da lã, etc.
25
Santa obra: a obra de Orlando, matando o monstro
42
e acabando com o cruel rito. Minerva: a correspondente romana da deusa grega
Arena; além de deusa da Razão e de guerreira, era uma
26
Diana [. . .} fronte: Arremis (a Diana romana) banha­ excelsa tecedeira e bordadeira.
va-se nua numa fonte quando foi surprendida por
43
Actéon, que por isso foi vítima da cólera da deusa. Vulcano: identificado com o deus grego Hefesto, é o
Atirando-lhe água ao rosto, transformou-o em veado, e deus do Fogo. Hábil ferreiro, tinha a sua oficina numa
em seguida açulou contra ele a sua matilha de cinquen­ gruta subterrânea na ilha de Lemnos. Na mitologia
ta cães, que o devoraram. romana, a sua oficina situa-se sob o Etna, na Sicília.
27 44
Rubras e brancas flores: as faces de Olímpia. Tirou-lhe a terra: reconquistou a Bireno a Holanda e
a Frísia.
28
O jovem: Oberto, rei da Irlanda (Hibérnia).
45
Mesmo porto: Saint-Malo (cf. IX: 1 5) .
29
Contorna: protege.
46
Sol [. . .} esfera: quando o Sol iluminou a Terra (esfera)
30
Leite [. .. ] pudim: leite que coalhou nos cinchos, a partir da constelação de Carneiro (na Primavera). Os
tendo a forma de um pudim. irmãos Frixo e Hele foram transportados num carneiro
alado, com o velo em ouro, enviado por Zeus para os sal­
31
Fidias: célebre escultor grego do séc. V a. C. Por var dos pais, que os queriam sacrificar àquele deus. No
vezes, os escultores antigos faziam trabalhos no torno caminho Hele caiu ao mar e morreu, mas Frixo chegou
(especialmente em marfim). são e salvo à Cólquida.
32 47
Ida: monte da Tróade onde Páris, filho de Príamo, Zéfiro: personificação mitológica da suave brisa da
rei de Tróia, foi criado. Primavera.
�­

CANTO XII

Voltando Ceres da mãe, do monte Ida,


e à pressa indo àquele vale solitário 1
em que a montanha do Etna trucida
Encélado 2 , o gigante, em seu calvário,
a filha não achou, onde entretida
deixou, fora de todo o itinerário3 ;
depois que peito, olhos, faces lesou
e a crina, dois pinheiros arrancou;
2 no fogo de Vulcano4 os acendeu,
e de não se apagar lhes deu feitiço;
com um em cada mão, no carro seu,
em que serpentes faziam serviço 5 ,
selvas, campos, montes, vales correu,
os rios, lagos, torrente ou abisso,
terra e mar; e, corrido todo o mundo
onde o Sol luz, foi ao tartáreo fundo6 •
3 Tivesse Orlando tido um poder par
ao da deusa de Elêusis7 , como tinha
desejo, para Angelica encontrar
correria campo, selva, marinha,
vale, monte ou planície, terra ou mar,
o céu, e à terra do olvido 8 vinha;
mas, como carro igual não possuía,
ia-a buscando o melhor que podia.
1 92 ORLANDO FURIOSO

4 Buscou-a em França, e já se aparelha s leva no braço, e no arção de diante,


para a buscar na Itália e na Alemanha, à força, uma desolada donzela.
na nova Castela e também na velha, Chora, debate-se, e faz um semblante
e passar para a Líbia pelo mar de Espanha. de grande dor; e por socorro apela
Nisto pensando, chega-lhe à orelha ao valoroso príncipe de Anglante;
uma voz que chora de forma estranha; que, assim que olha aquela jovem bela,
avança e vê surgir diante dele crê ser a mesma por quem toda a França
um cavaleiro, montando um corcel; correra, noite e dia, sem parança.
CANTO XI I 1 93

6 Não digo que fosse ela, mas parecia 12 Em vão procuram, e culpa lhe dão
Angelica gentil que ele tanto ama. e acusam de algum furto que lhes fez:
Ele, que sua dama e sua deusa via do corcel roubado, um, de ser ladrão;
levar à força (e lágrimas derrama) , um que a dama perdeu, desfaçatez;
de ira tomado, em alta vozearia outros de outras coisas, e todos são
e grande füria o cavaleiro chama; incapazes de sair do xadrez;
chama o cavaleiro e ameaça-lhe a vida, muitos lá estão, do engano fregueses,
e Brigliadoro lança a toda a brida. alguns há semanas, outros há meses.
7 Não pára aquele vilão, nem dá resposta, 1 3 Quatro ou seis vezes percorreu Orlando,
à sua presa, à sua caça atento; buscando, toda a estranha moradia,
e tão veloz vai por aquela encosta e para si dizendo: - Aqui demorando,
que a muito custo o seguiria o vento. o meu tempo e fadiga em vão perdia:
Foge um, persegue o outro, e a selva posta por outra porta o ladrão abalando,
em volta faz soar alto lamento. com ela muito longe já iria. -
Correndo chegaram a um grande prado, Assim pensando, foi para o verde prado
que ao centro tinha um palácio instalado. de que todo o palácio era cercado.
s De várias pedras, com rico decoro9 14 Ao circundar a casa campesina,
fora erigido o palácio altaneiro. mantendo o rosto para a terra inclinado
Pela porta entrou, que era esmaltada a ouro, procurando pegada, ou da esquerdina
com a donzela presa o cavaleiro. ou da destra, de passo há pouco dado,
Não muito depois chegou Brigliadoro, duma janela alguém o denomina;
levando Orlando indignado e guerreiro. ergue o olhar, e aquele falar amado
Em estando dentro, Orlando os olhos gira: parece ouvir, e pensa ver o rosto
já nem cavaleiro nem dama mira. que tão vário do que era o tinha posto.
9 Desmonta logo e, veloz como o raio, 1 5 Pensa Angelica ouvir, que suplicando
corre às salas que belo tecto coroa; e a chorar diz: - Acode de seguida!
para cá e para lá anda, e de soslaio Por minha virgindade estou rogando 1 1 ,
toda a casa com o olhar aguilhoa. mais que pela alma ou que pela própria vida.
Já desvendado todo o piso espraio 1 0 Pois, na presença do meu caro Orlando,
sem os dois ver, pela escadaria voa; por tal ladrão me há-de ser subtraída?
mas não menos perde naquele soalho Mais vale que tua mão me dê a morte
do que em baixo perdeu tempo e trabalho. que deixar-me entregue a tão triste sorte. -
10 Leitos ornados de ouro e seda vê; 16 Estas palavras uma e outra vez
das paredes nem um pouco aparece; o levam a fazer pela casa estança;
nelas e no chão onde põe o pé com paixão e muita fadiga o fez,
rica tapeçaria comparece. porém temperada por grande esperança.
Volta abaixo e acima e tudo revê, Pára e a voz ouve, com nitidez,
mas a alegria os olhos não lhe aquece: que à de Angelica tem tal semelhança;
Angelica não vê, nem o rapace se ele aqui está, ela soa acolá,
que lhe ocultou a delicada face. e para achá-la não sabe aonde vá.
1 1 E enquanto aqui e ali movia o passo, 1 7 Mas voltando a Ruggier, que deixei quando
perdido em pensamentos agoireiros, ia, por atalho sombrio e fosco,
Ferraú, Brandimarte e o rei Gradasso, o gigante e a donzela encalçando,
rei Sacripante e outros cavaleiros e num grande prado saiu do bosco,
encontrou, que, correndo o mesmo espaço, direi que chegou aqui onde Orlando
não menos que ele eram vãos caminheiros; antes chegou, se é que o lugar bem tosco.
queixavam-se do invisível raptor, Aquela porta o gigante atravessa;
o qual daquele palácio é senhor. Ruggiero, atrás, à mesma se endereça.
CANTO XII 195

18 Assim que dentro dela põe o pé, 24 Gostaria de Orlando ou Sacripante


o grande pátio e arcadas mira; ter por companhia; mas não estimou
já nem gigante nem donzela vê, mais o primeiro ou o segundo amante;
e aqui e ali em vão os olhos gira. pelo contrário, um e outro desprezou;
Volta abaixo e acima e tudo revê, mas devendo, até chegar ao Levante,
mas não acontece aquilo a que aspira: passar cidades e fortes, pensou
não percebe como em curto interim ser bom de um protector ter vizinhança,
gigante e dama sumiram assim. e em ninguém, mais que neles, tem confiança.
19 Quatro ou cinco vezes correu asinha 2s Tanto um como o outro andou procurando,
todos os quartos, salões e arcadas; mas notícia ou sinal não lhe surtia,
vai mais uma vez, e então esquadrinha nem em cidades ou vilas nem quando
até os espaços sob as escadas. bosques passava ou qualquer outra via.
Pensando que estão na selva vizinha, Por fim a Fortuna, onde está Orlando,
sai; mas uma voz chega das sacadas, Ferraú e Sacripante, a envia,
que, como a Orlando, a ele chamou; e Ruggiero e Gradasso, e ainda tantos
e logo no palácio reentrou. que Atlante envolvera em estranhos encantos.
20 Uma mesma voz e a mesma pessoa 26 Entra, pois não poderá vê-la Atlante,
que Angelica parecera a Orlando, e tudo busca, oculta pelo anel;
qual dama de Dordonha 1 2 a Ruggier soa, Orlando e Sacripante tem diante,
que o seu coração ia devassando. procurando-a em vão naquele hotel.
Se com Gradasso ou com outro arrazoa, Vê que sua falsa imagem o farsante
desses que andavam pelo palácio errando, usa, fazendo fraude a este e àquele.
parece a todos que tal coisa seja Qual deles vai levar, muito revolve
o que cada um para si mais deseja 1 3 • no seu pensamento, e não se resolve.
21 Este era um novo e desusado encanto 27 Não sabe qual para ela é o melhor,
composto por Atlante de Carena 14 , se o conde Orlando ou o rei circassiano.
para que Ruggiero se ocupasse tanto Orlando a poderá com mais valor
dessa busca e da sua doce pena salvar dos perigos do que o soberano;
que afastasse dele o cruel quebranto, mas se o faz de si guia, faz senhor,
aquele que a morrer jovem o condena. e não vê como dar-lhe desengano
Após do castelo de aço o fim triste, quando, dele já farta, fizer esquivança,
e após Alcina, Atlante ainda insiste. ou lhe der ordem de voltar para França.
22 Não só ele, mas sim todo o paladim 28 Já o circassiano, quando lhe apraz
que em França de valor tenha mais fama, depõe, tendo-o embora erguido ao Céu 16 •
para que às suas mãos não encontre o fim, Só por isso o prefere para seu sequaz,
incluir neste encanto Atlante trama 1 5 • e lhe mostra o crédito e afecto seu.
E enquanto os força a estar neste confim, O anel tira da boca e assim desfaz
para ver se da ração nenhum reclama, a Sacripante do feitiço o véu.
tão bem aprovisionou o castelo Pensou a ele só mostrar-se, mas, nisto,
que eles e elas estão em refestelo. Orlando e Ferraú tinham-na visto.
23 Voltemos a Angelica, que traz 29 Surgiram ali Ferraú e Orlando;
consigo o anel que é milagroso tanto tanto um como o outro andava à deriva,
que na boca a quem olha cego faz, acima, abaixo, e fora procurando
e no dedo protege-a do encanto; por ela, que para ambos era a diva.
na caverna achou tudo o que a compraz: Correm os três para Angelica, quando
comida, montada, vestes e quanto nenhuma magia ali estava activa:
necessitava; e tomou decisão pois, tendo ela o anel posto na mão,
de à Índia voltar, à sua nação. tornou o feitiço de Atlante vão.
196 ORLANDO FURIOSO

30 Couraça usavam, e elmo cobria 33 Não sabe nem pode Atlante impedir
dois destes guerreiros que eu aqui canto; que os guerreiros retomem sua sela,
nunca os tiraram, de noite ou de dia, para os lindos olhos negros perseguir
desde que estão no palácio de encanto; e a áurea cabeleira da donzela,
usavam-nas com a mesma louçania que fustiga a jumenta para fugir;
que uma veste, por habituados tanto. porque não estava na intenção dela
Como eles estava Ferraú armado, ter os três amantes por companhia:
excepto o elmo, por ele não desejado, um após outro, talvez, escolheria.
31 até poder ter o que o paladino 34 E estando o palácio já afastado
tirou ao que era de Troiano irmão 17 ; bastante, para que já não se acautele
esta jura fez, quando o elmo fino nem tema que o encantador malvado
de Argalia no rio buscou em vão; exerça a sua magia cruel,
com Orlando aqui o pôs o destino, cerrou, como em apertos do passado,
mas Ferraú não lhe deitou a mão; entre os rosados lábios o anel:
aconteceu que não se conheceram logo da vista lhes fugiu, e pô-los
durante os dias em que ali estiveram. como se fossem insanos e tolos.
32 Tal encanto aquele palácio embaraça 35 Tal como fora seu primeiro desejo
que reconhecerem-se não podiam. consigo ter Orlando ou Sacripante,
De noite e de dia, espada e couraça de ao reino acompanhá-la dando ensejo,
e escudo do braço não removiam. de Galafron 1 8 , no último Levante;
Os seus cavalos, que a sela enchumaça, de repente, por ambos sentiu pejo,
com as rédeas de rojo, se pasciam e mudou de vontade num instante:
numa estância próximo da saída, sem ter de se obrigar a este e àquele,
de palha e cevada bem fornecida. mais que os dois lhe valia o seu anel.
CANTO XII 197

36 Giram pelo bosque aqui e além, à pressa, 39 Voltai para trás ou tomai outra via,
ludibriados, o rosto abismado; se não quereis encontrar aqui a morte;
como se lebre ou raposa travessa nenhum de vós pense que companhia
o cão houvesse na caça enganado, para amar minha dama, ou seguir, suporte. -
por de repente numa moita espessa, Orlando disse ao rei 1 9 : - Que mais diria,
ou toca, ou fosso, se ter ocultado. se por vis mulheres da mais baixa sorte
Deles se ri Angelica, proterva, nos houvesse tomado, ou cortesãs
que sem ser vista seus gestos observa. que já de rocas extraíram lãs? -
37 Pelo meio do bosque vê-se uma só estrada: 40 Depois, para Ferraú: - Homem bestial,
pensam os cavaleiros que a donzela se eu não te visse aí sem elmo haver,
à frente vá, por ela encaminhada, o que disseste, se foi bem ou mal,
pois mais via não há senão aquela. sem delongas te dava a perceber. -
Corre Orlando, e Ferraú menos nada, Disse o espanhoFº : - Se não me importa tal,
e Sacripante esporeia e dá trela. por que preocupações hás-de tu ter?
Angelica a brida mantém mais presa, Eu, contra os dois, capaz de fazer sou
e vai atrás deles com mais lenteza. o que disse, sem elmo como estou. -
3s Chegados ao sítio em que os carreiros 41 - Ouve (disse Orlando ao rei circassiano) ,
se perdiam para dentro da floresta, faz-me o favor e o elmo a esse empresta,
começam a buscar os cavaleiros, e verás como a loucura lhe esgano,
para ver se pegada a erva molesta; pois outra nunca vi igual a esta. -
Ferraú, que era o rei dos altaneiros, Diz-lhe o rei: - Quem seria mais insano?
deles podendo usar coroa na testa, Mas se tal petição achas honesta,
voltou-se com mau modo aos outros dois empresta-lhe o teu; pois eu não me apouco,
e gritou-lhes: - Para onde vindes, pois? tal como tu, de castigar um louco. -
1 98 ORLANDO FURIOSO

42 Voltou Ferraú: - Loucos são vocês, 48 Terás tido, senhor, conhecimento


pois se usar elmo fosse meu agrado, que Ferraú era todo fadado 25 ,
sem eles vós estaríeis já talvez, menos no ponto onde o primeiro sustento
que os vossos já vos teria tirado. o infante toma26 , no ventre encerrado;
Pois fiquem a saber que tal arnês e, até que o escuro limo houvesse assento
não uso na cabeça colocado, em seu rosto27 , aquele lugar sempre armado
porque só usarei o elmo fino usou, onde risco corria a vida,
que pertence a Orlando, o paladino. - com sete chapas de têmpera acrescida.
43 - Quer dizer (diz-lhe o conde sorridente) 49 Era também o príncipe de Anglante
que até sem elmo pensas ser bastante, todo fadado, excepto numa parte:
e fazer como Orlando fez, és crente, nas plantas28 , onde isenção não garante;
em Aspramonte ao filho de Agolante? 2 1 protege-as ele com grande estudo e arte.
Pois eu acho que se o visses na frente, No resto, são mais duros que diamante
de alto a baixo lhe tremias diante; (se a verdade não está da fama à parte);
não só o elmo ignoravas: darias mas ambos andam, mais para estar ornados
espontaneamente as armas que vestias. - que por necessário, para a luta armados.
44 Diz o fanfarrão espanhol: - Tanta vez, 50 Encrudesce e inflama-se a batalha,
mas tanta, já tive Orlando apertado medonha de ver e assustadora.
que facilmente todo o seu arnês, Ferraú, quando fere e quando talha,
não só o elmo, teria tirado; não desfere golpe que se perca fora;
não o fiz, porque não me satisfez cada lance de Orlando ou cota ou malha
fazê-lo então, mas estou ora interessado: arranca, rompe, abre, e nenhum se gora.
antes não quis, ora quero e desejo Angelica, invisível, tem em mente
que se me apresente depressa ensejo. - estar sozinha ao espectáculo presente.
45 Não pôde ter mais paciência Orlando; 51 Entretanto Sacripante, julgando
gritou: - Mentiroso22 , infiel marrano, que pouco adiante Angelica fugia,
em que terra e lugar te achaste, e quando, quando lutando Ferraú e Orlando
com armas na mão do que eu mais soberano? viu, decidiu seguir aquela via,
O paladim de que te estás gabando pois crente estava que a donzela, quando
sou eu23 , que longe crias: teu engano. desapareceu, por ela seguia;
Agora vê se o elmo vais tirar-me, por isso, só de Galafrone a filha
ou se serei eu que a ti te desarme. como testemunha a pugna partilha.
46 Nem quero ter a mínima vantagem. - 52 Por horrível como era e pavorosa,
Assim dizendo, o elmo retirou, a olhá-la se pôs de parte um tanto,
que perto suspendeu numa ramagem, e pareceu-lhe ser assaz perigosa
e a um tempo Durindana empunhou. tanto para um como para outro canto;
Mas Ferraú não perdeu a coragem: de fazer mais desfeitas desejosa,
puxando da espada, um lugar buscou o elmo29 quis levar, só para ver quanto
onde, com ela e tendo erguido o escudo, fariam os guerreiros, não o vendo;
pudesse cobrir o crânio desnudo. mas muito tempo tê-lo não prevendo.
47 E logo os dois guerreiros começaram, 53 De dá-lo ao conde tem a intenção,
os cavalos girando, a voltear-se; mas quer primeiro algum divertimento.
nas junturas das armas24, onde acharam O elmo apanha e põe-o no arção,
mais raro o ferro, com o ferro a tentar-se. e observa os cavaleiros um momento.
Em todo o mundo dois não se juntaram Depois afasta-se, sem dar sermão30 ;
que como estes devessem defrontar-se: e já longe ela ia em andamento,
pares eram em vigor e ousadia; antes que algum de tal desse notícia,
nem um nem outro ferir-se podia. atentos a medir sua perícia.
CANTO XII 199

54 Ferraú, que para ali olhou primeiro, 56 como à estrada da esquerda o conde aponte,
afastou-se de Orlando e assim falou: para um vale, que o circassiano seguiu,
- Vê como de nós fez o cavaleiro escolheu Ferraú outra, junto ao monte,
néscios e tolos, e aqui nos deixou! onde Angelica fizera desvio.
Que prémio agora há para o melhor guerreiro, Angelica entretanto a uma fonte
se o belo elmo ele daqui levou? - chegara, de aprazível atavio,
Recua Orlando e ao ramo os olhos gira: que quem passa à sua sombra convida,
não vê o elmo e todo ele arde em ira. e obriga a beber antes da partida.
55 À opinião de Ferraú cedeu, 57 Pára Angelica junto à clara onda,
que o cavaleiro que com eles estava pensando que ali não virá ninguém;
o levara; logo a brida torceu, e, desde que o mágico anel a esconda,
e esporas em seu Brigliadoro crava. sabe que nenhum mal lhe sobrevém.
Vendo Ferraú que ele se escafedeu, Logo que chega, numa verde fronda
foi atrás, e, no sítio em que se achava na margem do arroio o elmo sustém;
na erva o sinal que os rastos revela depois, onde a erva mais tenra sente,
feitos pelo circassiano e pela donzela, a égua prende para que se apascente.
200 ORLANDO FURIOSO

58 O cavaleiro de Espanha que sua pista 62 temperou a dor em que lhe arde o peito,
vinha seguindo, chega àquela bica. de não ter tal desejo consolado,
Assim que Angelica lhe põe a vista, com ter do elmo a posse satisfeito,
desaparece e a jumenta pica. que de Orlando tomar tinha jurado.
O elmo ora da dama muito dista: Pelo conde foi procurado a preceito,
do ramo caiu, e na erva fica. quando dos factos ficou inteirado;
Quando o pagão dela se apercebeu, o elmo ao mouro nunca mais tirou,
cheio de alegria para ela correu. senão quando entre as pontes o matou32 •
59 Desapareceu-lhe ela, disse eu, diante, 63 Angelica, invisível se remete
como um fantasma ao despertar se esvai. a seu caminho com turvada fronte;
Procura em todo o lado o seu semblante, no elmo que deixara ora reflecte,
mas seu triste olhar nela não recai. por pressa abandonado junto à fonte:
Praguejando a Maomé e Trivigante3 1 , - Por querer fazer o que não me compete,
e de seu credo a todo o mestre e pai, fiz com que o conde com elmo não conte;
voltou Ferraú à fonte, e viu onde com tal acto quis dar compensação
na erva jazia o elmo do conde. por quanto lhe estou em obrigação.
60 Reconheceu-o logo que o olhou, 64 Com boa intenção (e sabe-o Deus) ,
por letras que tinha escritas no bordo, embora alcançasse um diferente efeito,
dizendo onde e quando Orlando o ganhou, o elmo levei; os pensamentos meus
e de quem o teve em silente acordo. eram só de pôr fim àquele pleito;
Com ele colo e cabeça ornamentou, e não que por mi.m os desejos seus
pois o desgosto não o fez balordo; o bruto espanhol apanhasse a jeito. -
desgosto por ela desaparecer Assim para si se ia lamentando,
como costumam fantasmas fazer. por ter de seu elmo privado Orlando.
61 Depois de o elmo afivelar à testa, 65 Irritada e triste seguiu a via,
para total consolo ter, estabelece como melhor achou, para o Oriente.
que só Angelica encontrar lhe resta, Sua presença esconde ou denuncia,
que como um raio surge e desvanece. conforme é oportuno, entre a gente.
Por ela buscou na alta floresta, Depois de terras ver em demasia,
e, quando toda a esperança lhe fenece chegou a um bosque, onde cruelmente,
de poder achar seus sinais subtis, entre companheiros mortos estendido,
volta ao campo espanhol, junto a Paris; encontrou um jovem no peito ferido.
66 Mas de Angelica não vou mais adiante,
que de outros falar vontade me anima;
nem vou a Ferraú ou Sacripante
por muito tempo dedicar mais rima.
Deles me afasta o príncipe de Anglante,
que merece que antes de outros exprima
as fadigas e a ânsia que passou
por Angelica achar, e não achou.
67 Na primeira cidade a que ele chega,
e porque andar disfarçado procura,
de novo casco a cabeça carrega,
sem querer saber se a têmpera é fraca ou dura:
seja o que for, qualquer coisa o sossega,
de tal modo a encantação é segura.
Assim coberto, prossegue a demanda;
noite, dia, chuva ou sol não a abranda.
CANTO XII 20 1

68 Era na hora em que Febo do mar 74 Quando Alzirdo viu Orlando defronte,
os orvalhados cavalos ergueu, que em valor não havia par no mundo,
e a Aurora começava a espalhar com tal semblante e tão soberba fronte,
áureas e rubras flores por todo o céu; parecendo o deus da guerra a si segundo,
as estrelas deixaram de bailar, pasmou, por perceber a quanto amonte
e para partir já tinham posto o véu; o olhar altivo, o porte furibundo;
quando, junto a Paris um dia andando, calculou ser guerreiro poderoso,
de seu valor deu grande prova Orlando. mas de o provar foi demasiado ansioso.
69 Encontrou dois esquadrões: um, Manilardo33 75 Era jovem Alzirdo, e arrogante,
regia, o sarraceno encanecido, pela força e coragem apreciado.
rei de Norizia, em seu tempo galhardo, Para justar fez seu cavalo ir avante:
mas hoje mais conselheiro que destemido; mais valia em formação ter ficado;
o outro tinha do pendão resguardo no choque com o príncipe de Ariglante,
do rei de Tlemcen34 , cavaleiro tido ao chão foi de coração trespassado.
por perfeito pelas africanas gentes: Foge o seu cavalo, de terror cheio,
Alzirdo foi chamado pelos parentes. sem ter em cima quem lhe tome o freio.
70 Estes e o outro exército pagão 76 Levanta-se um grito súbito e horrendo
tinham passado do Inverno o rigor, que por todo o ar em torno se alteia,
uns mais perto da cidade35 , outros não, quando o jovem cai, de seu peito vendo
nas vilas e cidades em redor; espirrar o sangue de tão grossa veia.
tendo gasto o rei Agramante em vão A turba para o conde corre, fremendo
mais que um dia, para de Paris dispor, desordenada, e já o ar golpeia;
por fim, montar-lhe assédio decidia, e maior turba, com penudos dardos3 8 ,
pois de outro modo não a tomaria. ataca a flor dos cavaleiros galhardos.
71 Dispunha para o fazer de muita gente; 7 7 Com tal alarido a frota porcina
pois junto àquela que com ele viera, os montes desce ou pelas campinas corre,
e a que de Espanha fora, obediente se sai da toca a matilha lupina,
ao pendão que o rei Marsilio trouxera, ou se urso esfomeado ao plano acorre,
a soldo em França outra arranjou suplente; e de tenro leitão fazem rapina,
36
de Paris ao rio que em Arles impera , que com grunhidos seu lamento escorre,
excepto uns fortes, a Gasconha a eito, tal qual a horda infiel desacata,
tudo a ele já se encontrava sujeito. correndo ao conde a gritar: - Mata! Mata! -
n Começando ora os gelados ribeiros 78 Mil lanças, setas, espadas a couraça
a liquefazer-se em tépidas ondas, recebeu, e não menos houve o escudo;
de ervas cobertos, prados e lameiros, as costas uns atacam com a maça,
e as árvores ganhando novas frondas, ou frente ou lado com ferro pontudo.
reuniu Agramante os companheiros Mas ele, que nunca temeu ameaça,
37 calcula as armas e o povo sanhudo,
que seguiam suas felizes rondas ,
por o exército querer revistar tal no escuro calcula lobo hostil
e de melhor forma o organizar. o número de ovelhas que há no redil.
73 O rei de Tlemcen, lá, para esse efeito, 79 Na mão tem nua a fulminante espada
com o de Norizia se dirigia, que a tanto sarraceno deu má sorte.
querendo ir a tempo: do esquadrão o preito, Contar os caídos desta brigada,
mais ou menos bom, ali se aferia. quem quiser tem tarefa dura e forte.
Disse eu que Orlando ali passava a jeito, Vermelha de sangue corria a estrada,
e encontro fez com esta companhia, que não continha os que tiveram morte;
em busca andando, como costumava, porque nem casco nem broquei defende
daquela que ao Amor o aguilhoava. da fatal Durindana, onde ela fende,
202 ORLANDO FURIOSO

84 Aturdido, da sela ao chão esvoaça,


e Orlando nem se volta para revê-lo;
os outros corta, fende, fere e amassa,
e a todos parece nas costas tê-lo.
Como pelo ar, que é para ele larga praça,
foge o estorninho do falcão, ao vê-lo,
assim daquele esquadrão desbaratado
um foge, outro cai, ou está alapado.
85 Não deu repouso à ensanguentada espada,
sem ter de viva gente livre o couto.
Hesita Orlando antes de seguir estrada,
bem que lhe seja todo o país noto.
De à esquerda ou à direita dar guinada,
seu pensamento está sempre remoto43 :
Angelica buscar na errada via
teme, ou na estrada de onde é arredia.
39
80 nem vestes de algodão cheias , nem telas 86 O seu caminho (por ela inquirindo)
que a cabeça envolvam em voltas mil40 • pelos campos e pelas selvas o levou;
Não vão pelo ar gemidos e querelas: como fora de si estava, saindo
braços, pés, cabeças sem gorgomil. foi da estrada, e a um monte chegou;
Pelo campo a morte, errante entre as mazelas, e ali à noite, duma gruta vindo,
vai deixando nos rostos seu perfil; uma luz trémula ao longe avistou.
e diz para si: - De Durindana os coices Orlando foi-se abeirando da gruta,
podem mais do que cem das minhas foices. - para ver se Angelica nela perscruta.
81 Uma estocada a segunda é avessa4 1 • 87 Tal como num bosque que o zimbro cobre,
Em breve começaram a fugir; ou no restolho da campina aberta,
e quanto para atacar vinham à pressa procuramos a lebre que se encobre
(pois estando só, queriam-no engolir) , por entre sulcos e por via incerta,
agora nenhum para escapar se empeça, e a cada moita vamos ou alfobre,
nem espera pelo amigo para partir: ver se acaso ela ali está encoberta,
um a pé foge, outro a cavalo voa, assim buscava Orlando com cuidado
e nenhum pergunta se a estrada é boa. sua dama, onde pela esperança era guiado.
82 Virtude ali girava com seu espelho, 88 Para aquele sítio o conde se aventura,
que deixa ver na alma qualquer ruga; chegando onde na selva a luz se espalha
nenhum lá se mirou senão um velho, daquele monte, por estreita fissura,
cujo sangue idade, e não ardor, suga42 • que uma grande gruta em si agasalha;
Vê este que a morte é melhor conselho encontra ali intrincada moldura
que, para sua desonra, pôr-se em fuga; de espinhos e silvas que o passo atalha,
falo do rei de Norizia, que a lança para ocultar os que na gruta estão
enristou contra o paladim de França. e qualquer malefício tornar vão.
83 E rompeu-a no rebordo do escudo 89 À luz do Sol achada não seria,
do nobre conde, que nem se moveu. mas à noite com luz está descoberta.
Tinha ele a postos o ferro desnudo, O que aquilo será Orlando avalia,
e Manilardo entretanto ofendeu. mas quer saber a coisa pela certa.
Fortuna o salvou; pois o ferro crudo Amarrou Brigliadoro à penedia,
na mão de Orlando para baixo volveu; e silente foi à gruta encoberta;
nem sempre a estocada é dada à tabela, entra pela brecha, entre a ramagem densa,
mas foi bastante para o tirar da sela. sem chamar alguém para pedir licença.
CANTO XII

90 Por muitos degraus se desce à caverna


em que gente viva está sepultada.
Não pouco espaçosa era a parte interna,
que a golpes de escopro fora talhada;
pouca luz tinha a entrada da cisterna,
mas em baixo era mais iluminada;
bastante pelo buraco penetrava
duma janela, que à mão destra estava.
91 No meio da espelunca, junto à lareira,
estava uma jovem de jucundo viso;
quinze anos, talvez, estaria à beira,
foi o que ao conde pareceu de improviso;
era tão linda, que aquela pedreira
fazia assemelhar ao paraíso;
os olhos,. de lágrimas fontanais,
eram de dor manifestos sinais.
92 Uma velha com ela discutia
(como costuma ser feminil uso),
mas, como o conde na gruta surgia,
o seu altercar deram por concluso.
Orlando saudou-as com cortesia
(como é com damas costume difuso),
e elas ergueram-se imediatamente,
correspondendo delicadamente.
93 Viu que nas faces se estampou o espanto, 94 Solta a custo a donzela suas prosas,
ouvindo de repente aquela voz, embargada por soluços ardentes,
e por armado verem, entretanto, que dos corais e pérolas44 preciosas
ali entrar um homem tão feroz. fazem sair os doces sons frementes.
Orlando perguntou quem era tanto Lágrimas banhavam lírios e rosas45 ,
injusto, descortês, cruel e atroz, algumas de seus lábios abluentes.
para manter naquela gruta sepulto Ouvi, senhor, no outro canto o resto,
um tão gentil e aprazível vulto. pois para pôr termo a este já me apresto.

NOTAS

1 Geres [. . .] solitdrio: a deusa Ceres, regressando de 4 Fogo de Vulcano: a sua oficina sob o Etna.
uma visita à mãe no monte Ida, foi procurar a filha que
deixara no vale junto ao Etna, a colher flores. 5 Serpentes [. . .} serviço: o seu carro era puxado por serpentes.

2 Encélado: gigante sobre o qual a deusa Acena preci­ 6 Ao tartdreo fondo: ao Inferno, onde encontrou a
pitou a montanha do Etna. filha, que fora raptada por Hades, deus dos Mortos.
3 Fora de todo o itinerdrio: afastada de caminhos fre­ 7 Elêusis: cidade grega famosa pelo culto à deusa
quentados. Deméter (Ceres), em honra da qual se realizavam feste­
jos (mistérios de Elêusis).
204 ORLANDO FURIOSO

8 28
Terra do olvido: o Inferno, onde corre o rio Lete, rio Plantas: plantas dos pés. Orlando era invulnerável
do esquecimento. em todo o corpo, excepto nas plantas dos pés (cf.
XI:50:7-8).
9
Decoro: ornamento.
29
O elmo: o elmo de Orlando, que estava pendurado
10
Piso espraio: rés-do-chão. num ramo.
11 30
Por [. . .] rogando: a virgindade de Angelica é uma Sermão: palavra.
obsessão de Orlando (cf. VIII:77-78) .
31
Trivigante: divindade adorada pelos pagãos e pelos
12
Dama de Dordonha: Bradamante, filha do duque de muçulmanos na literatura medieval. Dada a sua compo­
Dordonha (cf. ii:68) . sição (tri + vagant, ou seja, «três vezes deambulante») , a
palavra poderá designar a tríplice divindade de Selene,
13 Parece [. . .] deseja: aquela voz soa, a cada um, como a que no céu é a Lua, na Terra é Ártemis (Diana), e no
voz que cada um deles mais deseja ouvir. mundo das sombras é Hécate. Recorde-se que Trívia é o
sobrenome de Diana.
14
Atlante de Carena : ver nota a VII:67.
32
O elmo [. . .] matou: previsão que não se concretiza no
15
Para que [. . .] trama: Adante enclausura também os O. Furioso. É no Mo rgante Maggiore, de Luigi Pulei
paladinos no palácio encantado, por recear que Ruggiero (XXIV: 1 6) , que Orlando mata Ferraú numa ponte deli­
encontre a morte às mãos deles. mitada por duas portas (pontes) .
16 Tendo [. . .] Céu: apesar de lhe ter dado o privilégio da 33
Manilardo: rei d e Norizia, país d e África não identi­
sua companhia. ficado.
17
Até [. . .] irmão: até se apoderar do de Orlando, que 34 Tlemcen: cidade do Noroste da Argélia.
fora de Almonte (de Troiano irmão) , e que Ferraú jurou
35
que havia de ser seu (cf. i:30). Cidade: Paris.
18 36
Galafron: pai de Angelica. Rio [. . .] impera: o rio Ródano, que banha Arles.
19
Rei: Sacripante, rei da Circássia. 37 Felizes rondas: bem sucedidas empresas.

20 38
Espanhol: Ferraú, sarraceno de Espanha. Penudos dardos: flechas ornamentadas com penas.
2 1 Filho de Agolante: Almonte. 39
De algodão cheias: vestes acolchoadas usadas pelos
soldados, que facilitavam mais os movimentos do que a
22
Mentiroso: no O. lnnamorato, Ferraú lutou com armadura e protegiam das flechas e dardos.
Orlando, mas não o venceu nem mostrou mais valor.
40
Telas [. . .] mil: turbantes.
23
Sou eu: Ferraú não tinha reconhecido Orlando; no
palácio de Adante, o encanto não permitia que se conhe­ 41 Uma [. . .] avessa: basta uma estocada para matar, não
cessem (cf. 32), e agora, Orlando tem o rosto coberto é necessário segunda.
pelo elmo e não usa as suas insígnias, pois partira em
42
busca de Angelica sob disfarce (cf. VIIl:85) . Sangue [. . .] suga: desgastou-o a idade, e não o ardor
da luta.
24
]unturas das armas: nas articulações da armadura,
onde há menos resistência. 43 À esquerda [. . .] remoto: como não sabe onde pro­
curar Angelica, tanto lhe faz virar à esquerda como à
25
Terds [. . .]fadado: no O. lnnamorato diz-se que Ferraú direita.
era invulnerável em todo o corpo, excepto na barriga.
44 Corais e pérolas: lábios e dentes.
26
Ponto [. . .] toma: umbigo.
45
Lírios e rosas: as cores da face. Tal como no v. 3, a des­
27
Escuro [. . .] rosto: até que a negra terra o cobrisse (até crição do rosto feminino segue o modelo petrarquista.
morrer) .

CANTO XIII

Venturosos foram os cavaleiros


daqueles tempos em que nos fundões,
em escuros antros, bosques e atoleiros,
tocas de cobras, ursos e leões,
achavam o que em paços altaneiros
pouco hoje acham sábias opiniões:
damas que, na sua mais fresca idade,
mereçam ter título de beldade.
2 Em cima vos contei que nessa gruta
tinha Orlando encontrado uma donzela,
e perguntou quem tivera a conduta
de ali a pôr; agora conto que ela,
depois de ser por soluço interrupta,
na sua voz suave e tão singela
ao conde a sua história fez audível,
com a brevidade que foi possível.
206 ORLANDO FURIOSO

3 - Embora saiba (disse), ó cavaleiro, 9 Assim que teve fim a grande festa,
que de meu falar colherei suplício, o meu Zerbino à Escócia regressou.
pois penso que ao que foi meu carcereiro, Se conheces o amor, sabes que mesta
esta irá dar desta conversa indício, fiquei, e em minha ideia ele ficou;
estou disposta a contar-te o verdadeiro, e estava certa que também molesta
deitando a minha vida ao precipício. chama seu coração acompanhou.
E que mais posso eu esperar que ocorra, Ao seu desejo ele não pôs barreira,
senão que ele um dia queira que eu morra? e de ter-me consigo achou maneira.
4 lsabella sou eu, e fui do rei 10 Sendo diferente a nossa religião
da Galiza filha, desse infeliz. (cristão ele é, e sarracena eu sou),
Bem disse fui, pois dele não serei, não pode a meu pai pedir minha mão,
mas da dor, da ânsia e tristeza vis. e levar-me por furto planeou.
Culpa de Amor: de outrem não poderei Fora da nossa rica possessão,
queixar-me mais que de seu mau cariz; que à beira-mar verde campo cercou,
pois no início docemente aplaude, um belo jardim numa praia estava,
e às escondidas tece engano e fraude. de onde as colinas e o mar se avistava.
Gozava minha sorte tão contente, 11 Parece-lhe estar tal lugar disposto
jovem, gentil, honesta, rica e bela; a dar-nos o que a fé nos intercepta;
vil e pobre ora sou, e descontente; e faz-me saber que havia composto
e, se pior sorte houver, minha é ela. o modo de termos vida dilecta.
Mas quero que conheças a semente Perto de Santa Marta dera encosto,
que originou o mal que me flagela; com gente armada, a uma galé secreta,
inda que não me dês ajuda expressa, à guarda de Odorico de Biscaia,
conforto me dará que te entristeça. mestre de guerra no mar e na praia 1 •
6 Meu pai fez uns torneios em Baiona, 12 Em pessoa tal levar a efeito
cerca de doze meses deve haver. não podia, porque seu velho pai
A sua fama trouxe à nossa zona ao rei de França o mandara dar preito;
cavaleiros de fora para combater. sobre Odorico a tarefa recai,
De todos (talvez porque Amor o abona, entre todos os amigos eleito
ou por o seu valor patente ser), o mais fiel e que mais o atrai:
Zerbino, que do rei da Escócia é filho, e tal devia ser, se os benefícios
achei ser o que tinha maior brilho. para conquistar amigos são propícios.
7 Quando fazer provas em campo o vi, 13 Viria ele sobre um navio armado,
maravilhosas de cavalaria, no dia aprazado buscar-me a mim.
de amores me tomei; só me apercebi, Assim chegou o dia desejado,
quando dona de mim não me sentia. e fiz-me encontrada no tal jardim.
Sendo por seu amor que sofro aqui, Vindo Odorico à noite, acompanhado
gosto de alimentar a fantasia por quem é bom marujo e espadachim,
que meu amor não pus em sítio imundo, num rio ali vizinho desmontou,
mas no mais digno e belo que há no mundo. e ao meu jardim em silêncio chegou.
s Zerbino de beleza e de valor 14 Levada fui à galé bem pichada2,
era de todos o mais eminente. antes que aviso levassem à corte.
Mostrou e creio que me tinha amor, Da criadagem nua e desarmada,
que menos do que o meu não era ardente. uns fugiram, a outros deram morte,
Não nos faltou quem do comum ardor parte, cativa, foi também levada.
entre um e outro fosse confidente, Minha terra deixei e fui à sorte,
pois, tendo sido da vista apartados, com quanto gáudio não te sei dizer,
ficámos sempre em espírito ligados. esperando em breve o meu Zerbino ver.
CANTO XIII 207

15 Mongia3 havíamos deixado para trás, 16 Era inútil baixar velas, ou estais
quando se levantou do esquerdo lado ao mastro dar, ou castelo6 abater;
um vento de turvar o ar capaz, pois íamos, malgrado nossos ais,
e o mar turvou e pôs encapelado. em La Rochelle nas rochas embater.
Salta um mistral4 que de través nos traz, Se não nos ajuda o que pode mais,
e cresce a toda a hora desbragado, só contra a terra nos vamos deter.
e cresce desbragado com tal força O vento cruel sopra com mais mecha
que não serve alternar poja com orça5 . que jamais do arco saiu a flecha.
208 ORLANDO FURIOSO

17 O biscainho7 viu o perigo, e a ele 23 Almonio, que daí nada temia,


remédio opôs que muito tem falido: sem delongas ao caminho se volve,
de imediato recorreu ao batel; para a cidade, que não se distancia
ele e eu dentro, o batel foi descido. mais de seis milhas e que o bosque envolve.
Vieram mais dois; viria um quartel, Odorico a vontade malsadia
se esses dois o tivessem permitido; ao outro descobrir por fim resolve;
com a espada os mantêm afastados, porque o tinha de ter na vizinhança,
cortam a corda e vamos apressados. e nele tinha grande confiança.
1s A salvo à praia fomos em viagem, 24 Corebo de Bilbau era chamado
nós, que tínhamos dado uso ao escaler; esse que connosco permaneceu;
com o navio perdeu-se a marinhagem, de pequeno com ele fora criado
e o mar nossos aprestas quis sorver. nas mesmas casas, e com ele cresceu.
À Eterna Bondade rendi menagem: Poder comungar o intento malvado
as mãos ergui para Lhe agradecer, com ele, disso o traidor se convenceu,
porque a füria do mar não impedisse pensando que ele, mais que ser honesto,
que o meu Zerbino de novo eu revisse. o prazer do amigo encobria, lesto.
19 As minhas vestes no navio deixei, 25 Corebo, que gentil era e cortês,
as jóias e riqueza similar; não o pôde ouvir sem sentir desdém;
de ver Zerbino a esperança alimentei, chama-lhe traidor, e o plano soez
e o resto não me importa o tenha o mar. com palavras e factos lhe contém.
Onde aportámos sinais não achei Grande ira a um e outro o caso fez,
de caminho, nem em torno há solar; o que, de espadas nuas, mostram bem.
só o monte, que o cume sempre o vento Ao puxar dos ferros medo senti,
fustiga, e tem no mar o seu assento. e pela obscura selva me fugi.
20 Aqui, cruel tirano Amor, que sói 26 Odorico, que mestre era de guerra,
ser às suas promessas desleal, em pouco tempo à vantagem chegou;
e estuda e atenta, e por fim destrói deixou Corebo aturdido por terra,
todo o nosso desígnio racional, e em meu encalço caminho tomou.
de modo vil os ânimos corrói: Deu-lhe Amor, se a minha crença não erra,
o alívio muda em dor, meu bem em mal; asas com as quais até mim voou;
pois o amigo, em quem Zerbino crê, e ensinou muitas lisonjas e rogos,
em desejo ardeu e gelou em fé. para que lhe aceite os amorosos jogos.
21 Talvez me desejasse mar afora,
mas de demonstrá-lo tivesse pejo,
ou começasse o seu desejo agora
que o solitário sítio dava ensejo;
ali decidiu sem qualquer demora
dar satisfação ao sujo desejo;
antes, de um dos dois livrar-se quis ele
que connosco vieram no batel.
22 Da Escócia sendo Almonio, tal sujeito,
que leal era a Zerbino se entendeu;
considerado guerreiro perfeito
foi por ele, quando a Odorico o deu.
Disse este a ele que era grande defeito
levar-me a La Rochelle pelo pé meu;
e pediu-lhe que adiante quisesse ir,
para com um rocim ao encontro vir.
CANTO XIII 209

27 Tudo é debalde, pois eu, firme e certa, 31 só para de como eu sou terem abono:
antes morria que o satisfizesse. virgem sendo, esperam vender-me bem.
Todo o rogo e toda a lisonja experta Findo é o mês oitavo, e vem o nono,
e ameaça fez, sem que eu pena tivesse, que este povo sepulta aqui me tem.
e à força se entregou de forma aberta. De Zerbino toda a esperança abandono;
Vão era que rogando eu lhe dissesse pelo que aqui ouvi dizer alguém,
da fé que Zerbino nele pusera, fizeram de mim venda a um mercante
e que eu pensara em suas mãos houvera. que a um sultão me leva, no Levante. -
2s Quando viu que rogas fizera em vão, 32 Assim contava a formosa donzela;
e que de ajuda eu não tinha concurso, muitos soluços e suspiros dava
chegou-se-me, mais cúpido e vilão que interrompiam a infeliz novela,
que se a mim viesse faminto urso; que até víboras de piedade agrava.
defendi-me com o pé e com a mão, Enquanto o seu sofrer assim revela,
e às unhas e aos dentes fiz recurso: ou, quem sabe, de suas mágoas se lava,
pelei-lhe o queixo, dei-lhe arranhadelas, uns vinte homens entram na pedreira,
e os meus gritos chegavam às estrelas. armados de espeto e de podadeiraª.
29 Não sei qual foi o caso: ou os meus gritos 33 O que era o chefe, homem de feroz rosto,
que se faziam a uma légua ouvir, um só olho tem, e olha de esguelha;
ou quando com navios haja conflitos o outro por um golpe foi deposto,
tenham o hábito de à praia vir, que o cortou do nariz à sobrancelha.
sobre o monte surgiram expeditos Vendo que o paladim tomou encosto
alguns, para ao mar e a nós se dirigir. junto à donzela, naquela quartelha,
Quando o biscainho ali os topou, disse aos outros: - Temos pássaro novo;
deixou-me e para fugir se preparou. sem rede lhe estender cá o encovo. -
30 Com aquela multidão me satisfiz 34 E disse ao conde: - Nunca um homem vi
contra o traidor, mas daquela maneira mais útil do que tu e a meu favor.
que às vezes em provérbio o vulgo diz: Não sei se adivinhaste, ou estás aqui
cair-se da panela para a braseira. porque por outro foste sabedor
É certo que não fui tão infeliz, que tão belas armas apeteci,
.nem eles malvados sobremaneira, e essa bela capa de escura cor.
que violassem a minha pessoa; A tempo tu chegaste, na verdade,
mas não por sua virtude, ou acção boa; de acudir à minha necessidade. -

... . �- . . .
. ..... -....... ....,..·-. §.
210 ORLANDO FURIOSO

35 Pondo-se em pé, sorriu com amargor 37 Na caverna uma mesa existe até,
Orlando, e deu resposta ao malandrão: dois palmos grossa, espaçosa e em quadro,
- As armas te vendo por um valor apoiada em grosseiro e sujo pé,
que nenhum mercador tem no razão9 • - que leva toda a família do ladro.
Do fogo, mesmo ao lado, foi raptor Com aquela agilidade que se vê
de fumegante e ardente tição; os Espanhóis lançar a cana 1 1 no adro,
o malandrim no ponto atingir quis Orlando a grande mesa de si esgalha
em que confinam sobrolho e nariz. para onde em conjunto está a canalha.
36 Ambos os olhos o tição colheu, 38 A uns o peito, outros o ventre, a testa
mas maior dano fez no esquerdo lado: atinge, ou pernas ou braços amassa,
aquela única parte lhe tolheu um de tal morre, outro trôpego resta;
por onde o dia não lhe era vedado. quem menos sofreu, fugir ameaça.
Mas não só de cegá-lo se aprazeu: Assim também uma pedra molesta
fê-lo para aquele lugar ser despachado lados, costas, cabeças despedaça,
em que Quíron tem, com seus companheiros, lançada sobre um monte de serpentes
os espíritos em ferventes ribeiros 1º . que após o Inverno ao sol se estão, dolentes.
CANTO XIII 211

39 Casos há vários, não sei dizer quantos: 42 A velha, que era amiga dos malsãos,
uma morre, outra sem a cauda fica, assim que viu que estavam todos extintos,
para a frente outra não vai, e em quebrantas chorando e às melenas levando as mãos,
em vão a sua çauda encolhe e estica; escapou-se por silvestres labirintos.
outra, que teve propícios os santos, Depois de correr trilhos e desvãos,
nas ervas serpenteia e se barrica. em árduos passos de terror retintos,
Foi grande o choque, mas não admirando, na margem dum rio num guerreiro esbarra;
pois quem o fez foi o valente Orlando. mas quem ele é noutro canto se narra;
40 Os que pouco ou nada ofendeu a mesa 43 regresso à outra, que se recomenda
(escreve Turpino 12 que eles foram sete) ao paladim, e dele não se isola:
aos pés recomendam sua defesa; diz-lhe que o seguirá em qualquer senda.
mas na saída o paladim se mete, Orlando com cortesia a consola;
e, depois de apanhá-los sem braveza 13 , dali, quando adornada se desvenda
ao nó da corda suas mãos submete; de rósea grinalda e purpúrea estola
da corda ao seu serviço consentânea a branca Aurora, ao usual destino,
que ali achou, na casa subterrânea. partiu com lsabella o paladino.
41 De rojo vão para fora da espelunca, 44 Sem encontrar qualquer anomalia,
onde fazia sombra um velho sorvo 14. por muitos dias juntos caminharam;
Orlando com a espada os ramos trunca, por fim um cavaleiro na mesma via,
e eles pendura para que os coma o corvo. que cativo fora feito, encontraram.
Corrente não requer, de ponta adunca, Quem era não digo, pois me desvia
pois, para purgar o mundo de tal estorvo, agora alguém, de quem ouvir esperaram:
a árvore seus ganchos lhe emprestou, a filha de Amon 1 5, que eu deixei atrás 16,
onde pelo queixo Orlando os pendurou. de amorosa pena dolente assaz.
212 ORLANDO FURIOSO

45 A bela dama, desejando em vão 51 - Quando chegares (disse) àquela parte


que Ruggiero a si fizesse retorno, que fica perto da casa encantada,
estava em Marselha, onde ao bando pagão o mago surgirá para encontrar-te;
todos os dias causava transtorno; para creres que é Ruggier não falta nada,
o qual a monte e vale deitava a mão, e far-te-á parecer, com sua arte,
de Languedoc 17 e da Provença 18 em torno: que um mais forte lhe dá sova pesada,
fazia bem o ofício verdadeiro para que tu vás, por lhe querer dar defesa,
de sábio duque e de óptimo guerreiro19 • onde com os outros ficarás presa.
46 Aqui estando, e já muito tempo havendo 52 Para que dos enganos, de que penante
que a si deveria ter regressado tanta gente fez, estejas advertida,
o seu Ruggiero, e nem tão pouco o vendo, mesmo que de Ruggier rosto e semblante
vivia em temor de um caso azarado. te pareça, não sejas impelida
Um dia, de lágrimas guarnecendo a crer que é ele; conforme ele avante
seu rosto, viu que lhe surgia ao lado para ti vem, priva-o da indigna vida;
a que levou no anel a medicina não temas Ruggiero matar assim:
que o peito curou, ferido por Alcina20 • ao que te contraria porás fim21 •
47 Porque regressar sem o seu amante, 53 Bem sei como para ti será errado
tanto tempo após, a seu lado a vê, matar quem de Ruggier tem a feição;
fica pálida, treme, e nesse instante ao olho não dês fé, pois ofuscado
falta-lhe a força para estar em pé; o encanto o tem, e oculta-lhe o que é são.
põe-se-lhe a maga tão gentil diante, Convence-te antes que te leve ao prado,
e ri, pois do grande temor dá fé; para que depois não mudes de intenção;
com seu rosto jucundo lhe dá paz, Ruggiero para sempre te será esquivo,
como costuma quem boa-nova traz. se fores cobarde e o mago deixares vivo. -
48 - Não temas (disse) por Ruggier, donzela, 54 A valorosa jovem tomando esta
que é vivo e são, e sabes que te adora; decisão de eliminar o revel,
em liberdade não está, pois aquela a pegar armas e a seguir é lesta
teu inimigo a tirou sem demora; Melissa, que sabe que lhe é fiel.
e é preciso que montes tua sela A qual, por sementeira ou por floresta
se o queres ter, e que me sigas agora; a guia, caminhando sem quartel;
se me seguires, abro-te o caminho aliviar-lhe tentava, todavia,
para que Ruggiero tires do seu ninho. - com falar grato a cansativa via.
49 E continuou, tendo-lhe contado 55 Lembrava-lhe assim, em falas frequentes,
o mágico truque que urdira Adante: que dela e Ruggier a estirpe provém
tendo dela o semblante simulado, daqueles príncipes tão excelentes,
parecendo ser cativa do gigante, e gloriosos semideuses também.
atraíra-o ao palácio encantado, Para Melissa eram coisas evidentes,
onde depois a não vira diante; pois os segredos dos deuses detém;
e que ele atrai, com a mesma trapaça, todas as coisas predizer sabia
dama ou cavaleiro que por lá passa. que daí a séculos se veria.
50 A todos parece, o mágico olhando, 56 - Ouve, ó minha escolta, sábia mulher
olhar o que para si quer cada um: (dizia à maga a ínclita donzela),
dama, escudeiro, amigo; recordando que anos antes me deste a conhecer
que o desejo humano não é comum. minha descendência viril tão bela22,
Depois, todo o palácio vão buscando duma dama me queria comprazer,
com fadiga, sem ter fruto nenhum; da minha estirpe, se é que alguma nela
e tão grande é o desejo e a sua esperança por bela e virtuosa lugar tem seu. -
que dali já não fazem mais andança. E a maga cortês assim respondeu:
CANTO XIII 213

57 - De ti sairão mulheres exemplares, 58 E, se eu te narrar sobre cada uma


mães de imperadores e de majestades, que na tua estirpe tal valor tem,
reparadoras, sólidos pilares muito será; pois vejo que nenhuma
de ilustres casas, nobres propriedades; olvidar no silêncio me convém.
que menos dignas não são, pois são pares Deixa que a três ou quatro me resuma,
dos cavaleiros em suas qualidades, doutro modo o meu conto ao fim não vem.
em piedade, coragem e prudência, Por que na gruta tal não me pediste?
e suma e incomparável continência. Só por isso sua imagem não viste.
214 ORLANDO FURIOSO

59 De tua estirpe há-de sair aquela 65 De outras não falo; pois, como já disse,
de obras ilustres e de artes amiga, difícil será de tantas contar;
que não sei se mais graciosa, se bela, embora cada uma em si reunisse
ou se instruída e virtuosa eu a diga, razões para merecer heróico cantar.
liberal e magnânima lsabella23 , De Bianche, Lucrezie, calo a ledice,
que dia e noite em sua luz abriga Costanze e outras, que governar
a terra que junto ao Menzo cresceu, esplêndidas casas em Itália vão,
à qual a mãe de Ocno seu nome deu24; e restauradoras e mães serão.
60 onde honroso e deslumbrante certame 66 Mais que as outras, as estirpes que perfilhas
fará com seu digníssimo consorte, serão de suas damas venturosas;
para ver qual deles virtudes mais ame, não o serão mais com as suas filhas
e à fidalguia melhor abra a corte. que na honestidade das esposas.
Se ele no Taro e no reino25 se proclame, E notícia de tal também partilhas,
por livrar dos Gálios a Itália, forte, se de quanto Merlim me contou gozas;
ela, qual Penélope, que viveu contou-me talvez para me dar ensejo
casta, não menos que Ulisses valeu. de a ti dizer, saciando meu desejo.
61 Grandes e muitas coisas eu ouvi 67 Primeiro, de Ricciarda39 vou falar,
dessa dama, e muitas para trás desleixo, exemplo de força e de honestidade:
que, no tempo em que do vulgo fugi26, ficará viúva, jovem, por azar
me revelou Merlim do cavo seixo27• que aos bons a Fortuna dá sem piedade.
Se em tão grande mar a vela abro aqui, Os filhos, deixando o paterno lar,
Tífis a vogar muito para trás deixo28 • verá desterrar para estranha cidade,
Concluo enfim que ela terá, por dom jovens, pelos adversários exilados;
da virtude e do Céu, tudo o que é bom. mas verá por fim os males sanados.
2
62 Em Beatrice 9, a irmã, tem matiz, 68 Da alta estirpe de Aragão antiga
a quem tal nome assenta muito bem: a ilustre rainha40 se descortina;
não só dos bens da Terra imperatriz, tão sábia e tão pudica não abriga
mas perfeição na curta vida obtém; como ela a história grega ou a latina,
e será capaz de fazer feliz nem quem tenha a Fortuna tão amiga:
entre os duques o que a seu lado tem; pois há-de ser pela Bondade divina
o qual, depois de ela deixar o mundo, eleita mãe, para parturir a bela
conhecerá do infortúnio o fundo30 • prole: Alfonso, lppolito e lsabella.
63 Moro, Sforza e de Visconti as serpentes, 69 Será esta a ilustre Eleonora,
vivendo ela, formidáveis serão31 , que em tua árvore se manifesta.
da neve a norte, aos rubros lidos32 quentes, Que hei-de dizer-te da segunda nora41 ,
do Indo aos montes que para teu mar dão33 ; que é a próxima sucessora desta?
morta ela, aos Ínsubres aderentes34 , Lucrezia Borgia, de quem de hora em hora
com grave dano para a Itália irão a beleza, a virtude, a fama honesta
para a servidão3 5; sem ela, só o acaso e a fortuna crescerá, nada menos
à suma prudência terá dado azo. que jovens plantas em macios terrenos.
64 Outras haverá como ela chamadas, 70 Como o estanho à prata e o cobre ao ouro,
muitos anos antes, qual mais idónea: a papoila silvestre à nobre rosa,
uma há-de ter as madeixas ornadas o pálido salgueiro ao verde louro,
com a coroa da fecunda Panónia36; ou vidro pintado a gema preciosa,
outra, depois de as terrenas estradas tal a ela, que antes de nascer douro,
haver deixado, será na Ausónia37 comparo alguma até aqui famosa
colocada no número das divas, por singular beleza ou por prudência,
terá incensos e imagens votivas38• ou por qualquer louvável excelência.
CANTO XIII 215

71 E sobre os seus demais ínclitos dons, n Não é de silêncio que aqui Renata
que lhe serão, ou viva ou morta, dados, de França, nora desta, se acompanha,
louvá-la-ão porque de régios tons42 de Luís, duodécimo Rei, nata45,
Ercole e os outros43 foram dotados, e da perpétua glória da Bretanha.
e porque lhes deu predicados bons Toda a virtude que houve dama, inata,
de que se ornarão em toga e armados44 ; desde que fogo queima e água banha,
não há odor que logo se derreta e o céu em torno gira e o Sol desloca,
que em novo vaso, mau ou bom, se meta. para Renata adornar vejo que é pouca.
216 ORLANDO FURIOSO

75 · E Bradamante de novo aconselha,


tal como mil vezes já tinha feito,
deixando-a ir só por aquela quelha.
Duas milhas andou no atalho estreito;
nisto, vê um que a Ruggiero assemelha,
e dois gigantes de cruel aspeito
apertando-o de maneira tão forte
que perto estavam de lhe darem morte.
76 Assim que a donzela em tal perigo vê
aquele que Ruggiero tanto parece,
logo �rn suspeita muda a sua fé,
e seus bons desígnios todos esquece.
Que Melissa deteste Ruggier crê,
porque ódio estranho nela amadurece,
e procure urdir desusada trama
para que a morte o leve dela, que o ama.
77 Dizia a si: - Não é Ruggier aquele,
que o coração sempre vê, e ora o olho?
Se não o vejo e não conheço a ele,
pois que outra coisa com meus olhos colho?
Por que a opinião de outrem me impele
a não crer no que em meu olhar recolho?
Mesmo sem olhos, pode o coração
saber se está longe ou se está à mão. -
78 Enquanto assim pensava ouviu a voz
pedir socorro, à de Ruggier parecida;
e ao mesmo tempo aquele vê, veloz,
que o cavalo esporeia e lhe dá brida,
e um inimigo e outro que feroz
o segue, para o alcançar na corrida.
De os seguir a dama não se impediu,
e à casa encantada se conduziu.
73 De Alda de Saxónia46 longo seria 79 Da qual assim que a porta atravessou,
narrar, ou da condessa de Celano47 , submersa se achou no comum error.
ou, da Catalunha, Bianca Maria48 , Em vão em cima e em baixo o procurou
ou sobre a filha do rei siciliano49 , e fora e dentro, com todo o rigor;
ou Lippa de Bolonha50, em louçania nem de noite nem de dia parou
famosa; e outras, mas, se aqui me explano o encanto forte do encantador;
e de todas te falo e as exorto, Ruggier vê ela e com ele conversa:
entro num mar onde não acho porto. - não o reconhece, nem vice-versa.
74 Depois de lhe contar a maior parte so Bradamante deixo, e mal não vos caia
da sua estirpe com todo o vagar, saber que ela ali fica em tal encanto;
mais e mais vezes lhe falou da arte pois, quando for tempo que dali saia,
que Ruggier no palácio fez entrar. faço-a sair, e Ruggier outro tanto.
Melissa parou quando o baluarte Se, a novo pitéu, novo gosto raia,
já estava perto, do mago sem par; acho que a minha história, também, quanto
achou ser melhor não ir mais adiante, mais variando for aqui e além
temendo ser vista pelo velho Adante. mais gosto em quem a ouvirá mantém.
CANTO XIII

81 Muitos fios será preciso dar-me


para tecer esta tela que eu rasouro.
Mas espero que vos agrade escutar-me,
ouvindo o modo como o povo mouro
a mando do rei Agramante se arme;
o qual, ameaçando os lírios de ouro51 ,
o manda juntar para nova revista,
para de quantos restam ser calculista.
82 Além de cavaleiros e peões,
dizimados em infinita cópia,
faltavam capitães, e dos brigões,
da Espanha, da Líbia e da Etiópia;
e os exércitos das várias nações
erravam, por ter de chefia inópia;
para chefe e ordem a cada um dar,
para a revista as tropas tem de juntar.
83 Preencheram o povo dizimado
nas batalhas e nos feros conflitos,
em Espanha o rei, e outro foi mandado
a África, que tem muitos inscritos52 •
Cada um foi em ordem colocado,
a seus chefes todos foram adstritos.
·-·- - --
�- --�- - Deferirei, senhor, com a vossa graça,
ao outro canto a revista na praça.

NOTAS

1 No mar e na praia: no mar e em terra. 9 Razão: livro de contabilidade, onde se lançam os
valores a crédito e a débito.
2
Bem pichada: bem untada com piche, ou pez, e por
isso mais deslizante. 'º Mas não só [. . .} ribeiros: não só o cegou, como o
matou, tendo-o despachado para o círculo dos violentos
3 Mongia: provavelmente Mugia, aldeia entre o cabo contra o próximo (Dante, Inferno, XII), que se encon­
Finisterra e A Corunha. tram mergulhados num rio de sangue fervente, vigiados
constantemente pelos centauros, cujo chefe é Quíron.
4 Mistral: vento frio que sopra no Sul de França no
11
final do Inverno. Lançar a cana: o jogo de lançamento da cana (lança
fina e furada, como uma cana) foi introduzido em Itália
5 Alternar[. . .} orça: oferecer ora um lado ora outro da pelos Espanhóis, e era praticado em festas pelos cavalei­
embarcação ao vento. ros nobres.
6 12
Castelo: castelo de popa ou de proa, estruturas que se Turpino: ao longo de todo o poema, Ariosto atribui
podiam abater para aliviar a nave. ironicamente a Turpino as situações que parecem menos
credíveis. Já Boiardo fazia o mesmo no O. lnnamorato.
7
Biscainho: Odorico de Biscaia. Turpino é um lendário arcebispo de Rheims, a quem se
atribuía uma crónica da vida de Carlos Magno, que acom­
8 Espeto [. . .} podadeira: utensílios que eram usados panhou em algumas campanhas. Hoje crê-se que essa cró­
como armas pelos ladrões. nica foi composta por diversos autores, no séc. XIII.
218 ORLANDO FURIOSO

13
Sem braveza: sem oferecerem resistência. 33
Indo [...} dão: do Oriente (Indo) ao Ocidente (montes,
junto a Gibraltar, que abrem caminho para o teu mar (o mar
14
Sorvo: sorveira (sorbus domestica), árvore de madeira de Bradamante, isto é, o Mediterrâneo, que banha Marselha).
muito resistente e frutos (a sorva) comestíveis.
34
Aos [. . .} aderentes: juntamente com os fnsubres (anti­
15
Filha de Amon: Bradamante. gos habitantes da Lombardia) .
16 35
Deixei atrds: no canto VIl:49. Para a servidão: cairão nas mãos dos Franceses.
17 36
Langu,edoc: região do Sul de França a oeste do Ródano. Uma [. . .} Pan6nia: Beatrice, filha de Aldobrandino
III, casou com André II, rei da Hungria (Pan6nia) .
18
Provença: região do Sul de França a leste do Ródano.
37
Aus6nia: Itália.
19
Oficio [. . .} guerreiro: Carlos Magno conferira a
38
Bradarnante funções governativas e militares em Marselha Outra [. . .] votivas: a beata Beatrice, filha de Azzo
(cf. 11:64). VII, morta em 1 262 e venerada no mosteiro de Santo
António, em Ferrara, onde foi monja.
20
A que [. . .} Alcina: Melissa, que com o anel libertou
39
Ruggiero do feitiço de Alcina. Ricciarda: filha do marquês de Saluzzo, casou com
Niccolà III d'Este. Seus filhos Ercole e Sigismondo foram
21 Não [. . .]fim: não receies estar a matar Ruggiero, pois exilados para a corte de Nápoles e privados da sucessão
estarás a pôr fim à vida de Adante (o que te contraria), do ducado de Ferrara. Só após a morte de Borso, filho ile­
disfarçado de Ruggiero. gítimo de Niccolà III, a linha legítima de sucessão foi res­
taurada e Ercole assumiu o poder (cf. IIl:47) .
22
Anos antes [. . .} bela: cf. canto IIl:23-59.
40
Rainha: Leonor de Aragão, mulher de Ercole I e mãe de
23
Isabel/a: Isabella d'Este, filha de Ercole I e Leonor de Alfonso i, Ippolito e Isabella d'Este. Ariosto chama-lhe rainha
Aragão, irmã do duque de Ferrara, Alfonso I, e do cardeal por ela ser filha do rei de Nápoles, Fernando I de Aragão.
Ippolito. Mulher de grande cultura, casou com Francesco
41
II Gonzaga, marquês de Mântua. Teve relações de amiza­ Segunda nora: Lucrezia Borgia foi segunda nora de
de com Ariosto, com quem trocou cartas; ele leu-lhe par­ Leonor de Aragão, porque quando Alfonso I casou com
tes do Orlando Furioso antes da publicação da obra. ela já era viúvo de Anna Sforza.
24 42
Terra [. . .} deu: Mântua, banhada pelo rio Mincio Régios tons: educação de acordo com a sua condição.
(Menzo) . Ocno é um herói etrusco, ligado também à
43
lenda de Bolonha. Sua mãe é Manto. Os outros: os outros filhos.
25 44
No Taro e no reino: Francesco II participou na batalha Em toga e armados: na corte e na guerra.
de Fornovo, junto ao rio Taro (afluente do Pó), e na de
45
Atella, no reino (de Nápoles), para expulsar os Franceses. Luís [. . .} nata: Renata era filha de Luís xii de França
e de Ana, duquesa da Bretanha. Ariosto faz um jogo de
26
Tempo [. . .} fagi: no tempo em que se isolou na gruta palavras com o nome (di Luigi il duodecimo Re nata) .
de Merlim.
46
Aida de Sax6nia: terá sido mulher de Alberto Azzo
27
Cavo seixo: túmulo de Merlim. II, segundo Ariosto (cf. III:27) .
28 47
Se [. . .} deixo: se percorresse os factos da vida de Condessa de Celano: provavelmente, mulher de Azzo VI
Isabella, faria viagem muito mais longa que os d'Este.
Argonautas (Tífis foi timoneiro do navio Argo) .
48
Bianca Maria da Catalunha: filha de Afonso de Aragão
29
Beatrice: Beatrice d'Este desposou Ludovico Sforza, e mulher de Leonello d'Este.
il Moro.
49
Filha [. .. } siciliano: Beatrice, filha de Carlos II de
30
Depois [. . .} fando: após a morte de Beatrice, Anjou, mulher de Azzo VIII.
Ludovico, il Moro, conhecerá a derrota e morrerá prisio­
50
neiro dos Franceses. Lippa de Bolnnha: segunda mulher de Obizzo III d'Este.
31 51
Moro [...} serão: enquanto Beatrice for viva, Ludovico, Lírios de ouro: insígnias da bandeira francesa, valen­
il Moro, o nome dos Sforza, e Milão (de Visconti as ser­ do aqui pela própria França.
pentes, símbolo de Milão), serão poderosos e famosos.
52
O rei [. . .] inscritos: o rei Marsilio mandou buscar
32
Neve [. . .} lidos: do Pólo Norte ao mar Vermelho. tropas a Espanha, e Agramante a África, onde havia mui­
tos soldados já recrutados.
--&$,.­

CANTO XIV

Nos muitos assaltos, cruéis conflitos Com esses, que estiveram com decoro
tidos entre França, África e Espanha, muito perto do derradeiro apelo,
muitos morreram e foram prescritos derrotastes as ricas landes de ouro4 ,
ao lobo, ao corvo ou à águia grifanha; rasgastes o pendão rubro e amarelo5,
estavam contudo os Francos mais aflitos, e a vós se deveu o triunfal louro
por terem perdido toda a campanha, do lírio não ter sofrido atropelo.
mas queixavam-se mais os Sarracenos, Uma outra fronde vos adorna a coma:
por barões e príncipes terem menos. Fabrizio ter restituído a Roma6 •
2 Vitórias tiveram, mas sanguinosas, Essa Coluna7 do nome romão,
e pouco houveram de que se alegrar. que prendestes e guardastes inteira,
E se as modernas coisas às saudosas mais vos honra que se por vossa mão
puderem, invicto Alfonso, ter par, tivesse caído a ufana fileira,
a grande vitória' , que às virtuosas toda a que engorda o ravenano chão8 ,
obras vossas tanta glória há-de dar, e toda a que partiu sem a bandeira9
pela qual em pranto sempre permanece de Navarra, de Aragão, e Castela,
Ravenna, mui com esta se parece: pois estacas e carros foram à vela 1 0 •
3 quando, cedendo Mórinos, Picardos2 , 6 Essa vitória foi mais de conforto
o exército normando e o aquitano, que de alegria; porque muito pesa
vós no meio atacastes os resguardos no nosso contentamento ver morto
do quase vencedor imigo hispano, o capitão de França e da empresa 1 1 ;
seguindo-vos esses jovens galhardos e ter com ele essa procela absorto
que mereceram, por seu ânimo lhano, os príncipes ilustres, que em defesa
de vós receber insígnias honradas: de seus reinos, de seus confederados,
punho, guarda-mão, e esporas douradas3 • atravessaram os Alpes gelados.
220 ORLANDO FURIOSO

7 Nossa saúde, nossa vida nesta 13 Stordilano, Tesira e Baricundo,


vitória decidida se conhece, um após outro mostram sua gente:
que impede que o Inverno, que tempesta a um Granada, Lisboa ao segundo,
por Júpiter irado, nos empece 12 : Maiorca ao terceiro é obediente.
gozar não podemos nem fazer festa, Foi de Lisboa rei, quando do mundo
sabendo a grande dor que comparece partiu Larbin, Tesira, seu parente.
nas escuras vestes, e triste lembrança Depois Galiza, que seu guia, em vez
que as viúvas choram por toda a França. de Maricoldo, Serpentino fez.
s Terá que abastecer o rei Luís 13 14 Os de Toledo e os de Calatrava,
de novos capitães suas esquadras, de que Sinagon já teve a bandeira,
que pela honra da áurea Flor-de-lis 14 com toda aquela gente que se lava
punam as mãos violadoras e ladras no Guadiana e bebe da ribeira,
de freiras, frades de todo o cariz, o audace Matalista governava;
e esposas, filhas, mães em suas quadras 15 ; Bianzardin das Astúrias em fileira
deitaram Cristo do sacrário ao chão, com os de Salamanca e de Plasência,
para levar o argênteo pavilhão. de Ávila, de Zamora e de Palência.
9 Ó mísera Ravenna, era conselho 1s Daqueles de Saragoça e da corte
que ao vencedor não desses resistência; de Marsilio tem Ferraú governo:
deverias ter Brescia como espelho, está toda a tropa bem armada e forte.
não a Faenza e Rimini dar ciência 16 • Entre eles Malgarino, Balinverno,
Manda, Luís, o bom Trivulzio 1 7 velho, Malzarise e Morgante, a quem a sorte
que ensine a estes teus mais continência, fizera habitar em país externo;
e diga quantos, por tais desconfortos, pois, quando seus reinos tinham perdido,
ficaram por toda a Itália mortos. Marsilio os tinha no seu acolhido.
10 Como de capitães precisa agora 16 Também lá está de Marsilio o bastardo,
que o rei de França seu campo proveja, Follicon de Almeria, e Doriconde,
também reis Marsilio e Agramante ora, Bavarte e Largalifa e Analardo,
para que seu arraial em ordem esteja, mais Archidante, de Sagunto conde,
do sítio onde no Inverno fez demora e Lamirante e Langhiran galhardo,
quer que venha, e no campo se reveja; e Malagur, que tanta astúcia esconde,
assim, vendo onde necessidade há, e tantos mais de quem eu penso os feitos
guia e governo a cada hoste dá. vos narrar, em momentos mais eleitos.
11 Primeiro Marsilio, depois Agramante, 17 Tendo passado o exército de Espanha
revistaram fileira por fileira. aprumado diante de Agramante,
Os catalães vão dos outros adiante, com suas hostes surge na campanha
de Dorifebo seguindo a bandeira. o rei de Orão2 1 , que era quase um gigante.
Depois vêm sem seu rei Folvirante, Por Martasin a próxima se lanha,
a quem Rinaldo deu morte certeira 1 8 , o qual lhe foi morto por Bradamante22 ;
os de Navarra; o rei hispano lhes deu doem-se por ter sido uma mulher
Isoliero para comandante seu. que o rei dos Garamantes23 fez morrer.
12 Balugante a milícia de Leão, 1s Segue a terceira força, de Marmunda24,
e a do Algarve Grandonio perfilha; que Argosto abandonou, morto em Gasconha:
de Falsirone, de Marsilio irmão, a esta um chefe, tal como à segunda
a da menor Castela 1 9 segue a trilha. e à quarta, é necessário que se imponha.
De Madarasso seguem o pendão Porém rei Agramante não abunda
os vindos de Málaga e de Sevilha, em capitães, mas finge ter e sonha:
de Cádis até Córdova fecunda, Buraldo, Ormida e Arganio elegeu,
das verdes margens que o Bétis inunda20 • e a quem não tinha chefes ele os deu.
CANTO XIV 221

19 A Arganio deu os da Libicana25 , 25 Os de Bellamarina40, que guiava


que o negro rei choravam, Dudrinasso. Gualciotto, agora guia o rei de Argel
Brunello guia os seus, da Tingitana26 , e da Sárcia41 , Rodomonte: chefiava
de rosto sombrio e olhar madraço; de novo homens a pé e de corcel;
pois, desde que na floresta serrana, que, enquanto o Sol nebuloso ficava
onde Atlante o castelo tinha de aço, no centauro e aos cornos foi fiel42,
o anel lhe subtraiu Bradamante, a África o mandou ir Agramante,
caíra em desgraça para Agramante: de donde há três dias fora emigrante.
20 se o irmão de Ferraú, Isoliero, 26 Não tinha o campo de África mais forte,
que o encontrou à árvore amarrado, nem sarraceno mais audaz que aquele;
ao rei não fizesse prova do vero, as portas de Paris temem sua sorte,
um pulo na forca já tinha dado. e razão tinham para o temer a ele
Mudou de ideia o rei, menos severo, mais que a Marsilio, Agramante, e à corte
estando já pelo pescoço pendurado: a que em França estes dois davam quartel:
mandou-o retirar, mas reservá-lo e, mais que qualquer que ali punha o pé,
para ao primeiro erro enforcá-lo; era ele inimigo da nossa fé.
21 tinha assim motivos para vir Brunel 27 Eis Prúsias, das Alvaracchie43 sultão;
de cabeça baixa, cara mofina. depois o de Zumara44, Dardinello.
Depois vinha Farurante, e atrás dele Não sei se gralhas ou corujas terão,
cavalos e infantes da Maurina27 • ou sinistro volátil paralelo,
Perto vinha Libanio, o rei novel, de algum telhado, fronde ou torreão,
e com ele as gentes de Constantina28 ; augurado aos dois futuro flagelo;
a sua coroa e o ceptro de ouro pois no outro dia o Céu diz que é hora
lhe deu o rei, que eram de Pinadoro29 • que um e outro do mundo vá embora.
30 2s Em campo já não falta comparecer
22 Com a gente da Hespéria , Soridano;
e com os de Ceuta Dorilon vem; a não ser os de T lemcen e Norizia45 ;
com os Nasamões31 vinha Puliano. não se via na parada aparecer
Os de Amonia32, rei Agricalte os tem; sinal deles, nem dar de si notícia.
Malabuferso aos de Fez dá afano. Não sabendo Agramante o que dizer,
Finadurro a outra hoste detém, nem que pensar desta sua estultícia,
que das Canárias e Marrocos veio; um escudeiro por fim se lhe acercou,
aos de Tardocco Balastro dá esteio33 • do rei de Tlemcen, que tudo narrou.
23 Dois contingentes, de Mulga e Arzila34: 29 E contou-lhe que Alzirdo e Manilardo
esta conserva o seu senhor antigo, com muitos outros jaziam no campo.
a outra não; o rei vai atribuí-la - Senhor (disse ele), o cavaleiro galhardo
a Corineo, que é seu fiel amigo. que os matou teu arraial num relampo
Também deu Caico à gente de Almansilla35 , dizimava, se a fugir fosse tardo
que Tanfirion já não tem consigo; mais que eu, que só agora aqui me acampo.
os da Getulia36 deu a Rimedonte. Faz o mesmo aos peões e cavaleiros,
Com os de Cosca37 surge Balinfronte. que o lobo faz às cabras e carneiros. -
24 Na outra hoste vem de Bolga38 a gente: 30 Poucos dias antes viera avante
rei é Clarindo, já foi Mirabaldo. ao campo do rei de África um senhor;
Eis Baliverzo, e crê que tens na frente, não tinha o Poente, nem o Levante,
de todo o magote o maior ribaldo. um com mais força nem com mais ardor.
Não creio que em todo o campo se apresente Grandes honras lhe fazia Agramante,
bandeira que tropa com tal respaldo por ser aquele o filho e sucessor
cubra como a que leva o rei Sobrino39 , do rei tártaro, Agricane galhardo:
nem outro sarraceno com mais tino. era seu nome o feroz Mandricardo.
222 ORLANDO FURIOSO

31 Por espantosos feitos era famoso, 33 Ao escudeiro foi perguntar como era
e a sua fama todo o mundo enchia; a sobrevesce daquele cavaleiro.
mas mais que tudo tornava-o glorioso - Era toda negra (ele respondera),
no castelo da fada de Soria46 negro era o escudo, e sem tufo cimeiro48 • -

o arnês ter adquirido, luminoso, E foi, senhor, sua resposta vera,


que Heitor troiano há mil anos cobria47 , pois Orlando não vestira o quarteiro49 ;
por estranha e formidável aventura, tendo o espírito dentro tão dolente,
que dela falar já é pena dura. quis também fora a dor tornar patente.
32 Encontrando-se, pois, este presente 34 Marsilio a Mandricardo tinha dado
a tal conversa, ergueu a cara ousada; um corcel cor de casca de castanha,
e dispôs-se a ir imediatamente pernas e crina negras; fora nado
achar o guerreiro, indo na peugada. de frísia mãe, e era seu pai de Espanha.
O seu pensamento ocultou na mente, Para cima salta Mandricardo armado,
ou porque em algum não confiava nada, e segue galopando pela campanha;
ou porque teme, se a ideia revela, jura não regressar àquela tropa,
que outro antes dele se apodere dela. se o campeão de armas negras não topa.
CANTO XIV 223

35 Muita encontrou da temerosa gente 38 Um dia e outro meio segue, incerto,


que do feroz Orlando ia fugida, o cavaleiro de negro em demanda.
ou pelo irmão, ou pelo filho sofrente, Chega a um prado de sombras coberto,
que na sua frente perdera a vida. que tão fundo e largo rio ciranda
Ainda a estupefacta e triste mente que deixa só um breve espaço aberto,
no pálido rosto tinham esculpida; em que a água curva para a outra banda.
do terror sentido por tal acção, Lugar parecido, com torcida onda,
pálidos, mudos e aturdidos vão. o Tibre em Otricoli arredonda.
36 Muito não andara quando encontrou 39 Onde entrar se podia50 , de couraça
espectáculo cruel e desumano, havia muitos cavaleiros armados.
que os factos espantosos testemunhou Pergunta o pagão quem ali os faça,
que foram ditos ao rei africano. e para que efeito, estarem agrupados.
Um e outro morto olhou, e virou, Respondeu-lhe o capitão, pois engraça
e de suas chagas mediu o plano, com o senhoril aspecto e os ornados
movido por estranha inveja que sente do arnês, em ouro e gemas tão industre
do guerreiro que matou tanta gente. que o revelava cavaleiro ilustre:
37 Como lobo ou mastim chega atrasado 40 - Chamou-nos o nosso rei de Granada,
ao boi deixado morto pelos vilães, para a sua filha darmos companhia,
só de ossos, cornos, unhas faz achado, que ao rei da Sárcia51 sua mão foi dada,
que o resto saciou pássaros e cães, mas notícia de tal inda é sombria.
e em vão olha o esqueleto, esfomeado: Quando perto da noite, sossegada
assim faz o bárbaro em seus vaivéns. a cigarra estiver, que inda cicia,
De dor pragueja, e mostra inveja acesa junto do pai e do hispano uniforme52
por chegar tarde a uma tão rica mesa. a levamos; entretanto, ela dorme. -
224 ORLANDO FURIOSO

44 A audácia do tártaro é tão ousada


que vai contra. aqueles em desvantagem,
gritando: - Quem me quer vedar a estrada? -
E com a lança faz-lhes abordagem.
Uns baixam hasta, outros puxam espada;
a toda a volta tolhem-lhe a passagem.
Entre eles fez grande e cruel matança,
antes que se quebrasse aquela lança.
45 Vendo-a quebrada, o seu grande bastão,
que inteiro ficou, com ambas aferra;
com ele mata de gente tal porção
que nunca foi vista tão cruel guerra.
Como entre os Filisteus o hebreu Sansão53 ,
com a mandíbula que ergueu da terra,
escudos, elmos quebra, e golpes certeiros
apagam cavalos e cavaleiros.
46 Correm para a morte cada um à vez,
nem por cair um outro de andar cessa;
porque a maneira de morrer talvez
seja mais amarga que a morte expressa.
Não se conformam com a morte soez
de um pedaço de hasta que os atravessa,
e que de bastonadas tão vilãs54
sejam mortos, como cobras ou rãs.
41 O pagão, que a todos desprezar tende, 47 Mas quando à própria custa deram conta
decide fazer de súbito a aposta, que mau de qualquer modo era morrer,
se aquela gente ou bem ou mal defende quando a dois terços de mortos amonta,
a dama, que à sua guarda foi posta. todo o restante se pôs a correr.
Disse: - Ela, por quanto se depreende, Como se àquilo que é seu dessem afronta,
é bela; e disso quero ter resposta. não pode o sarraceno conceber
Conduz-me a ela ou manda-a aqui vir, que algum daquela turba espavorida
que a outra parte tenho pressa de ir. - dali se afaste conservando a vida.
42 - És decerto louco mais que ninguém -, 48 Como não resiste restolho em eira,
disse o de Granada, e o resto calou. nem sibilante cana em seca vala,
Para o ferir o tártaro lesto vem: ao sopro de bóreas55 e à fogueira
com a hasta baixa, o peito lhe passou; que o cauto lavrador juntos propala,
como a couraça o golpe não retém, quando a chama errante subtil se esgueira,
à terra caiu e morto ficou. e pelos sulcos corre, e assobia e estala;
De Agricane o filho retira a hasta, também aqueles contra a fúria acesa
pois outra não possui e esta lhe basta. de Mandricardo hão pouca defesa.
43 Não usa espada nem bastão, pois quando 49 Logo que ele viu que estava a entrada,
das armas de Heitor se tornou patrão, que mal guardada foi, sem defensor,
que a espada faltava verificando, pela recente via que assinalada
teve de jurar (e não foi em vão) na erva estava, e pelos gritos de dor,
que enquanto não tirasse essa a Orlando quis ir ver se a donzela de Granada
não punha noutra espada a sua mão; em formosura à fama faz honor:
Durindana, que Almonte assaz estimava, avança entre os corpos da gente morta,
ora usa Orlando, antes Heitor usava. onde lhe abre, torcendo-se, o rio porta.
CANTO XIV 225

50 E Doralice em meio ao prado vê 56 Com a presa o tártaro se contenta,


(pois assim a donzela nome havia), que fortuna e valor lhe pôs diante;
que, debruçada sobre o antigo pé encontrar o da negra .vestimenta58
dum freixo silvestre, sua dor exprimia. já não parece ser tão importante.
O pranto, como nascente maré Antes corria, agora a marcha é lenta;
de viva veia, no seio caía; achar alojo é pensamento instante:
e o rosto mostra que da vida alheia quer encontrar cómodo desafogo,
se condói, e que pela sua receia. para exalar tanto amoroso fogo.
51 Cresceu o temor, quando vir o viu 57 Entretanto conforta Doralice,
ensanguentado, rosto ímpio, cruel, que o rosto banhado de pranto tem:
e o grito até ao céu pelo ar subiu, muitas coisas compõe e finge, e disse
dela e da sua gente por medo dele; que pela fama há muito que lhe quer bem;
não só cavaleiros, mas um gentio e que sua pátria, seu reino feiice,
da bela infanta a protecção compele: que tão grande é que os outros deixa aquém,
maduros anciãos, damas e donzelas abandonou, não para ver Espanha ou França,
do reino de Granada, e das mais belas. mas só para contemplar sua linda trança.
52 Quando o tártaro viu seu belo viso, 58 - Se há-de o homem por amar ser amado,
o qual não tem rival em toda a Espanha, mereço vosso amor, pois vos amo eu:
que em pranto (ora o que não seria em riso?) se por estirpe, quem melhor que eu foi nado?
de Amor o envolveu em teia tamanha, O potente Agricane foi pai meu;
ignora estar na Terra ou paraíso; se por riqueza, algum mais abastado?
nem da vitória outra coisa ele ganha, Pois em domínio só Deus me venceu;
senão ficar à sua prisioneira se por valor, já hoje demonstrei
preso, e sem que saiba de que maneira. que por tal ser amado merecerei. -
53 A ela porém não se verga tanto 59 Estas palavras e outras, que Amor
que do seu sofrimento lhe dê fruto56 ; a Mandricardo de sua boca dita,
embora chorando ela mostre quanto vão consolando e dando algum alor
possa dama mostrar, de dor e luto. à donzela, de medo tão aflita.
Ele, esperando transformar-lhe o pranto Cessa o temor, e depois cessa a dor
em alegria, estava resoluto que à sua alma dava tal desdita.
a levá-la; e num branco cavalinho Começa ela, com mais paciência,
a fez montar, e retomou caminho. a dispensar-lhe mais grata audiência;
54 Damas, donzelas, velhos e outra gente 60 depois respostas muito mais corteses,
que com ela viera de Granada, mostrando-se doce e afável, lhe deu,
a todos dispensou benignamente, não lhe negando no rosto por vezes
dizendo: - Ora é por mim acompanhada; fixar piedosa luz do olhar seu:
eu camareiro, guardião, servente ele, que do dardo de Amor já reveses
serei para ela; e agora, adeus, brigada. - antes tivera, a certeza colheu,
Não podendo fazer-lhe oposição, e não só esperança, que a dama formosa
chorando e suspirando lá se vão; do seu amor não seria desdenhosa.
55 entre si diziam: - Que doloroso 61 Com tal companhia, ledo e ditoso,
será para o pai, quando a tal caso atenda! a qual tanto o satisfaz e o deleita,
Quanta ira e quanta dor para o seu esposo! estando próxima a hora em que ao repouso
Ai, como há-de fazer vingança horrenda! a fria noite os animais aleita,
Mas por que é que em momento tão gravoso vendo já baixo o Sol e um pouco umbroso,
não está perto, para que a este apreenda deu início a passada mais escorreita;
o sangue ilustre do rei Stordilano57 , até que ouviu tocar gaitas e canas59 ,
antes que mais longe o leve o tirano? - e viu fumegar casas e cabanas.
226 ORLANDO FURIOSO

62 Eram só pastoris alojamentos, 65 A alta fantasia, que um só trilho


melhor casa e mais cómoda que bela. não quer que eu siga sempre, ora me guia,
Onde o cortês guardião dos armentos levando-me onde o mourisco fervilho6 1
honrou o cavaleiro e a donzela, de rumor e gritos França anuvia,
que lhe agradeceram com cumprimentos; ao pavilhão do de Troiano filho:
não é em vila nem em cidadela, de Roma o Santo Império desafia,
mas inda por tugúrios e redis, e o audaz Rodomonte se lhe gaba
que achamos por vezes homens gentis. que Paris queima e que Roma desaba.
63 O que depois fosse feito no escuro 66 A Agramante chegara conselho,
por Doralice e o filho de Agrican que os Ingleses tinham passado o mar;
para vos contar não me sinto seguro: por tal, Marsilio e o rei do Garbo62 , o velho,
dê cada um a seu juízo afã. e os outros capitães mandou chamar.
Que se acharam de acordo é o que eu apuro, Alvitram que se faça um aparelho,
pois estavam mais alegres de manhã; de forma a Paris poder expugnar.
Doralice agradeceu ao pastor Podem estar certos que a não tomarão,
que em seu abrigo lhe fizera honor. se antes cá chega o inglês batalhão.
64 Dum lado para outro lá vão errando, 67 Já várias escadas para esse fim
até que um rio acham em seu corrume, mandou buscar nos lugares em redor,
que em silêncio para o mar vai deslizando, e tábuas, traves, cestos, coisa afim,
e se vai ou se está mal se presume; que para vários usos têm valor,
é tão límpido e claro que, mirando, barcos e pontes; dizia outrossim
sem embaraço ao fundo leva o lume6° . que importante ao assalto era dispor
Na margem, a uma sombra fresca e bela, primeira fila e segunda, e quer estar
dois cavaleiros há e uma donzela. entre os que a cidade vão assaltar.
CANTO XN 227

68 O imperador63, no dia que a batalha 74 E muitas outras foram nesse instante


precedeu, mandou missas em Paris por tais correios levadas ao Céu;
celebrar no interior da muralha, ouvindo as almas santas66 o narrante,
por padres negros, brancos, e mongis; encheu-se de piedade o rosto seu;
quem confessara toda a sua falha, olharam todas o Eterno Amante,
livre estando dos infernais covis, pondo-lhe os comuns desejos ao léu:
que comungasse, não se desse o acinte que à oração tão justa Ele acuda,
de vir a morrer no dia seguinte. do povo cristão, que pedia ajuda.
69 E ele, entre barões e paladinos, 75 E a inefável Bondade, que em vão
príncipes, prelados, na catedral, ouviu jamais um coração fiel,
com devoção nesses actos divinos ergue os olhos piedosos, e com a mão
participou, dando exemplo formal. acena a chamar o arcanjo Miguel.
De mãos juntas e olhos ao céu supinos, - Vai (disse-lhe) ao exército cristão
disse: - Senhor, sou cruel e brutal, que em frente à Picardia a vela impele67 ,
mas por meus erros não seja mister e leva-o junto aos muros de Paris
que teu fiel povo venha a sofrer. sem que cal notem as hostes hostis.
70 Se for tua vontade o povo ferir, 76 Primeiro ao Silêncio, da minha parte,
e dar a nosso errar dignos castigos, diz que contigo quero vá também;
encontra outro modo de nos punir pois ele proverá, com óptima arte,
que não seja às mãos dos teus inimigos; a tudo aquilo que prover convém.
porque se a nós matar lhes competir, Depois disso, vai logo àquela parte
que fama temos de ser teus amigos, onde o seu assento a Discórdia tem:
os pagãos dirão que tu nada podes, diz-lhe que o fuzil e o rastilho leve,
pois aos teus partidários não acodes. e no campo mouro o fogo soleve68 ;
71 E, por um que a ti se tornar infiel, 77 e que entre os que ali são ditos mais fortes
cem tal se tornarão em todo o mundo, tanta cizânia espalhe, e alaridos,
e assim a crença falsa de Babel64 que entre si combatam; e que haja mortes,
tua fé vencerá, mandando-a ao fundo. alguns prisioneiros e outros feridos,
Protege este teu povo, que é aquele outros abandonem as mouras cortes,
que teu sepulcro tornou livre e mundo para que seu rei muitos tenha impedidos. -
dos cães infiéis, e a tua santa Igreja, Em resposta a tal, palavra não soa
que não tem vigário que a não proteja. do bendito arcanjo, que do Céu voa.
n Nossos méritos, sei, aptos não são 78 Onde asas bate o arcanjo Miguel,
para compensar nosso débito um nada; fogem as nuvens, serena-se o céu.
nem devemos esperar de ti perdão, Um dourado aro o cerca, como aquele
se olharmos nossa vida tão errada; que a Terra vê relampejar no breu.
se nos deres de tua graça fruição, Vai pensando onde é bom que o voo cancele,
a nossa dívida será saldada; o celeste correio, onde entendeu
teu auxílio dispensar não podemos, esse inimigo da palavra69 achar,
desde que tua piedade lembremos. - pois vai procurá-lo em primeiro lugar.
73 Assim dizia o imperador devoto, 79 Medica onde ele more, quais os seus usos,
com humildade, contrição e dor. e por fim pensamentos faz certeiros:
Mais preces fez e condizente voto só entre frades e monges reclusos
com sua necessidade e seu esplendor. o achará, em igrejas e mosteiros;
Não teve o seu rezar efeito boto, pois são os falares ali cão exclusos
pois o seu génio, o seu anjo melhor65, que o Silêncio, onde cantam os salceiros,
pegou nas preces, as asas abriu, e onde dormem, e tomam o sustento,
e para as narrar ao Salvador subiu. e em toda a sala, por fim, toma assento.
228 ORLANDO FURIOSO

80 Julgando ali achá-lo, agitava 83 Viu que era, por vestir de cores um cento,
as asas douradas com mais presteza; em tiras desiguais e assaz sortidas,
que Paz e Caridade lá morava, que a cobrem ou não; os passos e o vento
além do Sossego, tinha a certeza. lhas abriam, pois não eram cosidas.
Crença que ser falsa verificava As crinas tinha cor de ouro e de argento,
ao aterrar no claustro, com surpresa: negras, cinza, entre elas desentendidas;
não está Silêncio ali; e foi-lhe dito umas em trança, outras em fitas postas,
que ali já não habita; só por escrito. algumas para o peito e muitas para as costas.
81 Nem Piedade, Sossego ou Humildade, 84 De intimações e de pareceres alheios,
nem Amor aqui vê, e nem Paz mira. interrogatórios, deliberações,
Já lá moraram, na antiguidade; as mãos trazia e o regaço cheios,
expulsaram-nas Gula, Avareza e Ira, e enormes maços de leis e de acções;
Soberba, Inveja, Inércia e Crueldade. por causa dos quais nunca estão os meios
De tal novidade o anjo se admira: garantidos dos pobres aldeões.
andou olhando aquela turba brava, Tinha atrás e à frente, e de ambos os lados,
e viu que a Discórdia também lá estava. notários, procuradores, advogados.
82 Aquela que dissera o Pai Eterno 85 Miguel a si a chama e a comanda
que, após o Silêncio, encontrar devia. para que entre os Sarracenos se introduza,
Pensava encaminhar-se para o Averno70 , e arranje motivos que a memoranda
julgando que entre os danados estaria, discórdia, e a guerrear-se, os induza.
e veio achá-la neste novo Inferno Depois, do Silêncio lhe faz demanda:
entre ofícios e missas (quem diria?). quem sabe nova dele lhe foi difusa,
Achou estranho Miguel ela ali estar: já que ela vai sempre fogos atear
pensara muito andar para a encontrar. daqui para acolá, por todo o lugar.
230 ORLANDO FURIOSO

86 Responde a Discórdia: - Não tenho em mente 92 Há na Arábia uma valada amena,


tê-lo já encontrado alguma vez; que perto não tem burgo nem cidade,
ouvir falar dele é coisa frequente, à sombra de dois montes, e que é plena
e muito gabá-lo pela sagez. de faias e abetos com muita idade.
Mas a Fraude, uma aqui da nossa gente, Em vão ali o Sol o dia ordena:
que companhia às vezes já lhe fez, lá não penetra a sua claridade,
creio que dele possa contar novela -; tanto a basta verdura a via trunca;
e apontando uma, disse: - É aquela. - sob a terra ali se abre uma espelunca.
87 Tinha boa cara, vestir honesto, 93 Sob a escura floresta uma capaz
um olhar humilde e um andar grave, e espaçosa cave entra pelo penedo,
um falar tão bondoso e tão modesto da qual a fachada a hera vivaz
que a Gabriel parecia dizer: Ave7 1 • contorna com seu sinuoso enredo.
Era feia e disforme em todo o resto; O pesado Sono em tal quarto jaz;
mas a esses defeitos punha entrave o Ócio dum lado, anafado e quedo,
com veste longa e larga, sob a qual doutro a Preguiça, que no chão se senta,
tinha sempre, envenenado, um punhal. pois não pode andar nem de pé se aguenta.
88 Pergunta a ela o anjo por qual via 94 O deslembrado Olvido está à porta:
deve seguir para o Silêncio encontrar. não deixa entrar nem conhece ninguém;
Disse a Fraude: - Em tempos idos soía não escuta embaixada nem a reporta;
entre a virtude apenas habitar, quem quer que seja, afastado mantém.
quando era novidade a abadia, O Silêncio gira e com paz conforta;
de Benedito e de Elias o lar72 ; botins de feltro e escuro manto tem;
esteve em escolas à conversa interditas, e aos que vê chegar acena com a mão
no tempo de Pitágoras e Arquitas73 • que partam, pois não têm recepção.
89 Idos esses filósofos e santos 95 Chega-se-lhe ao ouvido, e suavemente
que o compeliam ao caminho recto, diz o anjo: - Deus quer que tu dês norte,
desses honestos costumes e cantos, até Paris, a Rinaldo e essa gente
levou para a malvadez o seu trajecto. que seu senhor vem ajudar na sorte;
À noite com amantes pelos recantos mas que o faças tão silenciosamente
andou, e com ladrões em acto abjecto. que aos Mouros não chegue algum grito forte;
Com a Traição muito ele se entretém, por forma a que, antes que a Fama os previna,
e com o Homicídio o vi também. cheguem aqueles para lhes dar chacina. -
90 Com quem moeda falseia há usança 96 Doutro modo o Silêncio não falou:
de se abrigar em qualquer cave escura. com a cabeça disse que o faria;
De companhia e pouso faz mudança, obediente, atrás dele marchou,
e encontrá-lo será para ti ventura; e num só voo chegam à Picardia.
contudo, de ajudar-te tenho esperança: Os tão bravos esquadrões Miguel guiou,
tu à meia-noite chegar procura tornando-lhes breve uma longa via;
à casa do Sono, sem intervalo74, num só dia a Paris os conduziu,
e ali (onde dorme) vais encontrá-lo. - e nenhum que era milagre inferiu.
91 Costuma a Fraude dizer só bojarda, 97 Ocupado o Silêncio em sua escolta,
mas seu falar parece verdadeiro, na frente das tropas ia e em torno,
e o anjo nela crê; e, assim, não tarda fazendo girar grande névoa em volta;
a levantar voo daquele mosteiro. todo o resto, do dia, tinha adorno;
Acerta o bater de asas; está em guarda a espessa névoa não deixava à solta,
para chegar a tempo ao fim do carreiro, que fora ouvissem, som de trompa ou corno;
pois na casa do Sono (que sabia depois aos pagãos foi dar desconchego:
bem onde era) o Silêncio encontraria. cada um deles tornou surdo e cego.
CANTO XIV 23 1
232 ORLANDO FURIOSO

98 Enquanto Rinaldo pressa trazia, 1 04 Paris situa-se em grande planura,


parecendo pelo arcanjo conduzido, no umbigo de França, ou no motor82 ;
e num tal silêncio que não se ouvia o rio entre as muralhas se aventura,
no campo sarraceno algum ruído, e corre e sai depois para o exterior.
rei Agramante tinha a infantaria Antes faz uma ilha, e assegura
em volta de Paris distribuído, da cidade uma parte, e a melhor;
no fosso junto aos muros sob ameaça, outras duas (três partes tem a terra83)
para que o sumo esforço esse dia faça. de fora o fosso e dentro o rio encerra 84.
85
99 Quem de contar o exército é capaz, 105 A Paris, que muitas milhas regira ,
que contra Carlos moveu Agramante, pode dar-se assalto de muito lado;
também de toda a planta as contas faz come só duma parte assaltar mira,
em que o Apenino é tão abundante; que o exército não quer dispersado,
dirá quantas ondas, com mar roaz, para lá do rio Agramante retira,
banham os pés do mauritano Atlante75 ; para poente, onde o assalto será dado;
e até por quantos olhos76 o Céu espreite assim, não tem cidade nem campanha
dos amantes o furtivo deleite. atrás que não seja sua, até Espanha.
100 Dos sinos se ouvem, como de martelo, 106 Toda a área que o grande muro abraça
muitas e assustadoras badaladas; de fortificações Carlos proveu,
nos templos mãos se elevam em apelo, aterros reforçou com argamassa,
e bocas estão em preces ocupadas. túneis cavou, casamatas ergueu;
Se o tesouro parecesse a Deus tão belo onde para fora e para dentro o rio passa,
como é para as nossas ideias estouvadas, grossíssimas correntes estendeu;
todo o santo consistório77 , este dia, mas, mais que qualquer parte, fez prover
a estátua em ouro na Terra teria78 • onde tinha mais razão para temer.
101 Ouvem-se lamentar os velhos justos 107 Com olhos de Argo86, o filho de Pepino87
de que a vida os poupou para tais afanos, previu onde ia assaltar Agramante;
e chamar felizes aos sacros bustos79 , e nada planeou o Sarracino
sepultos na terra há já muitos anos. a que não se tivesse dado obstante.
Mas os animados jovens robustos, Com Ferraú, lsolier, Serpentino,
que não pensam nos iminentes danos, Grandonio, Falsirone e Balugante,
desprezando as falas dos mais maduros, e os que de Espanha tinha transportado,
daqui e de acolá correm para os muros. se encontrou Marsilio no campo armado.
88
102 Havia duques, condes, paladinos, 108 Sobrino à sua esquerda, junto ao Sena,
reis, cavaleiros, marqueses, barões, com Puliano89 e Dardinel90 de Almonte,
soldados forasteiros e citadinos80 , e o rei de Orão9 1 , o de gigante empena,
dispostos a morrer e não poltrões; que mede seis braças dos pés à fronte.
para cair em cima dos Sarracinos, Mas por que sou eu mais lento com a pena
ao seu rei pedem que baixe os pontões. do que aqueles com as armas, lá de fronte?
Orgulha-se ele do ânimo audaz, O rei da Sárcia, cheio de ira e desdém,
mas deixá-los sair não o compraz. grita e blasfema e já não se contém.
103 Dispõe-os nos indicados lugares, 109 Como atacar os pratos pastoris
para impedir aos bárbaros a via: ou os doces restos dos seus convivas
para ali contenta-se que vão uns pares, costumam, num estridor de asas hostis,
e acolá não basta uma companhia; mofinas moscas em tardes estivas,
alguns tomam conta dos luminares8 1 , ou pássaros em bandos nos hastis
ou das máquinas, conforme varia. de amadurecidas uvas fruitivas;
Carlos de cá para lá não se detém, assim vinham, entre gritos e estouros,
e vai socorrendo onde mais convém. lançados ao ferino assalto os Mouros.
CANTO XIV 233

110 Sobre os muros o exército cristão 1 16 Apoiam-se ao mesmo tempo mil escadas,
com lanças, machados, pedras e fogo, que dois ou mais sustêm por degrau.
defende Paris sem apreensão, Os de trás aos da frente dão pisadas,
pouco alarmado com o bárbaro jogo; que um terceiro os empurra mais um grau.
e, onde Morte aqui e ali dá vazão, Por virtude ou por medo são escaladas:
não falta quem o posto ocupe logo. todos têm de passar este vau;
Tombam sarracenos das amuradas, porque, se algum hesita, o rei de Argel,
por força das feridas e das pancadas. Rodomonte, fere ou mata, cruel.
1 1 1 Não é só o ferro que ali se emprega, 1 17 Cada um, pois, se esforça para subir
mas alvenaria e merlões perfeitos, aos muros entre fogo e arremessos.
muros partidos com muita refrega, Mas atentos olham, para ver surgir
telhados de torres e parapeitos. um local que lhes dê melhores acessos;
Água a ferver, que do alto derrega, só Rodomonte faz questão de vir
inflige aos Mouros ardentes despeitos; por onde os caminhos são mais revessos.
não há quem a esta chuva resista, Quando algum outro em desespero esteja,
que inunda o elmo e faz cegar a vista. a Deus reza, mas ele a Deus pragueja.
112 Esta quase mais que o ferro lesava; 11s Armado estava de forte couraça,
e o efeito da névoa de calcina? que já foi de dragão escamosa pele.
E o que de ardentes vasos se esperava, Do peito e das costas fora chumaça
com óleo, enxofre, pez e terebintina? do seu avô, que edificou Babel,
No paiol roda ardente92 não ficava, para do celeste assento a Deus dar caça,
que a toda a volta tem em chama a crina: e ficar rei do estrelado dossel;
estas, lançadas a todas as faldas, o elmo e o escudo teve tão perfeito,
dão 'aos Sarracenos cruéis grinaldas. e a espada também, só para esse efeito.
1 13 O rei da Sárcia tinha aproximado 1 1 9 Não é menos que Nemrod o seu neto97
das muralhas a fileira segunda, indómito, soberbo e furibundo;
por Buraldo e Ormida acompanhado, para ao Céu ir, a noite não espera quieto,
um garamante93 , e o outro de Marmunda94 • desde que o caminho encontre no mundo;
Clarindo95 e Soridano96 estão ao lado, nem repara se quebrado ou completo
e a estes o rei de Ceuta secunda; o muro está, ou se a água tem fundo:
os de Marrocos e Cosca também, a fossa passa, voando sobre ela,
para que seu valor se conheça bem. chafurdando na água até à goela.
114 Na bandeira, de rubro colorida, 120 Enlameado e a escorrer água, avança
tem Rodomonte da Sárcia um leão, entre fogo e pedras, arcos, balestas,
que a feroz boca abrir a uma brida como pelos pantanais fazem andança,
que uma dama lhe dá, não diz que não. na nossa Mallea98 , as porcinas bestas99 ,
Aquele leão nele mesmo tem vida; que com as presas, o focinho e a pança
e, na dama que lhe dá sujeição, vão abrindo, em toda a parte, amplas frestas.
só Doralice está representada, Com o escudo ao alto o Mouro, seguro,
filha de Stordilan, rei de Granada; o Céu despreza, quanto mais o muro.
115 a que levada foi, como eu contava, 121 Mal pisou terra enxuta Rodomonte,
por rei Mandricardo, e disse onde e a quem. sentiram-no chegar à serventia 100
Era aquela que Rodomonte amava que, dentro dos muros, fazia ponte
mais que seu reino, e seus olhos também; por onde a tropa francesa seguia.
brio e valor por ela alardeava, Vê-se despedaçar mais de uma fronte,
sem saber que em seu poder outro a tem: coroas maiores que as dos frades abria,
tivesse-o ele sabido, e então faria voavam braços, cabeças; no fosso
aquilo que depois fez, outro dia. caía do muro um rio rubro e grosso.
234 ORLANDO FURIOSO

122 Atira o escudo, e a duas mãos a espada 12s A uns encoraja, outros repreende,
cruel ergue, atingindo o duque Arnolfo. à frente os leva quer queiram quer não:
Era ele do ponto onde dá entrada deste o peito, deste a cabeça fende,
a água do Reno no salso golfo l01 • se os vê para fugir mudar direcção.
Melhor não se defendeu da estocada Uns aperta, outros empurra, outros prende
que o enxofre a que o fogo dá engolfo; pelos cabelos, pescoço, braço ou mão:
cai por terra dando o último tombo, e para baixo tantos deles empoça
decepada a cabeça a meio do lombo. que para todos conter é estreita a fossa.
1 23 Dum golpe oblíquo matou dum sacão 1 29 Enquanto o bando de infiéis se embala,
Artselmo, Oldrado, Spineloccio, Prando: aliás, mergulha, para o perigoso fundo,
o lugar estreito e a grande multidão e logo tenta, por diferente escala,
fez a espada um giro dar ondulando. ascender ao baluarte segundo,
Os primeiros à Flandres perda dão, o rei da Sárcia (como se houvesse ala
os dois últimos ao povo normando. em cada membro) elevou o rotundo
Orghetto de Mogúncia, neste mentre, corpo todo armado, como um colosso,
fendeu da fronte ao peito e até ao ventre. lançou�se e de um salto transpôs o fosso.
102
1 24 Artdropono e Moschino duma ameia 130 Pouco menos de trinta pés, ou tanto,
lança ao fosso; o primeiro é sacerdote, que como um galgo ele atravessou lesto,
ao segundo só o vinho recreia, e estrépito ao tocar o chão fez quanto
e barris já bebeu, de um piparote. faria se em feltro fizesse o gesto;
Como sangue viperino receia e a um e a outro vai cortando o manto 105 ,
a água, e foge-lhe como a chicote; como se feito de metal modesto,
agora tombou, e o que o aborrece e não de ferro; como de cortiça,
é perceber que na água perece. tal é a espada e a força que a iça!
125 Em dois cortou o provençal Luigi,
passou o peito ao de Toulouse, Arnaldo.
De Tours, Oberto, Claudio, Ugo e Dionigi
a alma exalam com o sangue, em caldo;
a mais quatro, de Paris, morte inflige:
Gualtiero, Satallone, Odo e Ambaldo,
e muitos outros; só que eu não saberei
dizer de cada um o nome e a grei.
1 26 A turba atrás de Rodomonte, lesta,
escadas apoia e sobe em sítios vários.
O parisiense aqui já não faz testa,
pois a muralha e o fosso são sumários.
Sabem que aos inimigos muito resta
dentro fazer, se forem bons operários;
pois entre o muro e o baluarte segundo
cava-se um fosso horrível e profundo.
127 Embora os nossos façam a defesa
de baixo para o alto l03 , e mostrem valor,
nova gente foi chamada à empresa,
lutando no terrapleno interior;
lanças e setas desfere com certeza
sobre a turba que vem do exterior,
cujo número seria mais pequeno,
se não fosse o filho do rei Ulieno104 •
236 ORLANDO FURIOSO

131 Mas nesse entretanto os nossos 106, de quem 133 A chama esparsa numa só se acua:
armadilhas houve a fossa profunda, entre um bordo e outro o espaço está pleno;
que estopa e ramos com fartura tem, e tanto em altura sobe que à Lua
em redor dos quais muita pez abunda pode em breve secar seu seio ameno.
(nem um pouco dela se vê porém, Escura nuvem no alto o céu debrua,
bem que em dois lados esteja dela imunda, que o Sol oculta, afastando o sereno.
do escuro fundo quase até à borda), Ouve-se estalar contínua explosão,
e de vasos escondidos uma horda, lembrando longo e assustador trovão.
132 tal com salitre, um com azeite, tal 134 Rude concerto, horrível harmonia
com enxofre, ou com símil combustivo; por berros, gritos, urros constituída,
os nossos entretanto, para que mal da pobre gente que ali perecia,
resulte ao Sarraceno o assalto altivo, por culpa do guia 1 07 perdendo a vida,
pois estavam no fosso e o outro beiral, que estranhamente concordar se ouvia
escadas trepando, era o seu objectivo, com o brutal som da chama homicida.
ao sinal combinado foram logo Mais não, ó senhor, mais não deste canto;
aqui e acolá atiçar-lhe o fogo. estou rouco já, repouso-me entretanto.

NOTAS

1 Grande vitória: na batalha de Ravenna, em 1 5 12, em 1 1 Capitão [ .. ] empresa: Gaston de Foix, morto ao per­
que Alfonso d'Este se aliou aos Franceses contra os seguir os Espanhóis em fuga.
Espanhóis (c( IIl:55). Ravenna (em pranto permanece)
foi saqueada pelos Franceses. 12 Impede [ .. ] empece: a vitória sobre os Espanhóis evi­
tou que o papa Júlio II (Júpiter) fizesse pagar caro a
2 Mórinos e Picardos: antigos povos do Norte de Alfonso d'Este (nos empece) o apoio dado aos Franceses.
França (Artois e Picardia) que combateram em Ravenna.
13
Rei Luís: Luís XII de França.
3
Punho { .. } douradas: insígnias dos cavaleiros.
14
Áurea Flor-de-lis: por antonomásia, a França.
4
Landes de ouro: um carvalho com as !andes em ouro
15
era a insígnia do papa Júlio II, que ali era aliado dos Punam { .. } quadras: punam os soldados franceses
Espanhóis. que cometeram excessos de toda a ordem no saque de
Ravenna, roubando e violando em casas (quadras) e con­
5 Pendão rubro e amarelo: bandeira espanhola. ventos.
6 Uma outra { .. } Roma: outra glória honra Alfonso 16
Deverias [ . .] ciência: deveria ter visto o exemplo
d'Este: ter libertado e restituído a Roma Fabrizio (espelho) de Brescia, que já fora saqueada pelos Franceses,
Colonna, comandante das forças do pontífice, que tinha em vez de ter servido de exemplo (ciência) a Faenza e
feito prisioneiro. Rimini, as quais depois se entregaram pacificamente e
não sofreram tal violência.
7
Coluna: alude a Fabrizio Colonna, jogando com o nome.
17
Trivulzio: quando era governador francês de Milão,
8
Toda [ .. ] chão: toda a que está sepultada nos campos em 1 500, teve de fugir e ceder o lugar a Ludovico Sforza,
de Ravenna. por suscitar a hostilidade da população, devido às suas
extorsões - lição que os Franceses deviam ter aprendi­
9 Sem a bandeira: em debandada. do (que emine) .
10 18
Pois { . .} vela: por não lhes ter servido de nada as suas Rinaldo { . .} certeira: Boiardo, Orlando lnnamorato
trincheiras, feitas com carroças e estacas. (L0 • II, XXIV: 3 1 -32) .
CANTO XIV 237

19 43
Menor Castela: Castela-a-Velha. Alvaracchie, ou Ilhas Afonunadas, segundo Boiardo ( O.
Innamorato, L0• II, XXII: 1 3), que se supõe serem as Canárias.
° Cddis [ . .] in unda: os que vêm das reg10es que o
2
44
Guadalquivir (Bétis) banha, entre Córdova e Cádis. Zumara: calvez Azemmour, na costa de Marrocos, a
sul de Casablanca.
21
Orão: cidade do litoral noroeste da Argélia.
45
Tlemcen e Norizia: os reinos de Alzirdo e Manilardo,
22
Morto por Bradamante: no Orlando Innamorato (L0 • mortos por Orlando (cf. xii:69) .
III, VI: 1 0- 1 4) .
46
Soria: a Síria.
23
Garamantes: antigo povo africano.
47 Arnês [ . .] cobria: no O. Innamorato, Mandricardo
24
Marm unda (ou Marmonda): região africana, calvez a obtém, no castelo da fada de Soria, as armas que foram
oriente da Cirenaica. do troiano Heitor, à excepção da espada, que fica em
poder de Almonte. Quando matou Almon�e, Orlando
25
Libicana: região da Líbia. apoderou-se das suas armas, incluindo essa espada que
Mandricardo ambiciona ter (cf. 43).
26
Tingi,tana: região vizinha de Tânger ( Tingis, em latim).
48
Tufo cimeiro: penacho ou bandeirola sobre o elmo,
27
Ma urina: região da Mauritânia. com as insígnias do cavaleiro.
28 49
Constantina: cidade do Norte da Argélia. Quarteiro: divisa de Orlando, dividida em quatro
quadrados alternadamente brancos e vermelhos, que ele
29
Pinadoro: o anterior rei de Conscantina, morto por não envergou quando iniciou a demanda de Angelica,
Ruggiero no O. Innamorato (L0 • III, II:32) . preferindo ir disfarçado (cf. viii:85).
30 50
Hespéria (terra mais a ocidente, onde se põe o Sol) : Onde [ ..]podia: na faixa de cerra que dá acesso àque­
calvez Cabo Verde. le prado, pequena península desenhada por um meandro
do rio.
31
Nasamões: tribo do Norte de África.
51
Rei da Sdrcia: Rodomonte (cf. 25).
32
Amonia: Amónio, oásis do deserto da Líbia onde se
52
situava o templo de Júpiter Árnon. Camões ( Os L usíadas, Hispano uniforme: tropas espanholas.
vii:48:2) escreve Amon por conveniência de acento
53
métrico. Sansão: juiz de Israel de 1 1 1 6 a 1 096 a. C., dotado
de grande força. Massacrou os Filisteus usando uma
33
Tardocco [ . .] esteio: Balastro comanda as tropas que mandíbula de burro.
antes eram de Tardocco.
54
Tão vilãs: cão impróprias de um combate entre cava­
34
Mulga (cidade do Norte da Argélia) e Arzila (cidade leiros.
marroquina, a sul de Tânger) .
55
Bóreas: vento norte.
35
Almansilla: Numídia, antiga região do Norte de
56
África. Sofrimento [ . .] fruto: que lhe dê a liberdade, tocado
pelo seu sofrimento.
36
Get ulia: cerra dos Geculos, tribo nómada do interior
da Líbia. 57 Sangue [ . .] Stordilano: a filha (sangue) do rei de
Granada, Stordilano.
37
Cosca: região africana não identificada.
58
O [ ..} vestimenta: Orlando.
38
Bolga: região de África não identificada.
59
Gaitas e canas: gaitas-de-foles e flautas.
39
Sobrino: rei africano, de Garbo, é o principal conse­
60
lheiro de Agramance. L ume: olhar.
40 61
Bellamarina: litoral da Argélia e Tunísia. Fer vilho: multidão.
41 62
Sdrcia: região da Argélia não identificada. Rei do Garbo: Sobrino (cf. 24) .
42 63
Enq uanto [ . .] fiel: enquanto o Sol permaneceu nas O imperador: Carlos Magno.
constelações de Sagitário (centa uro) e Capricórnio (cor­
64
nos), isto é, de 2 1 de Novembro a 2 1 de Janeiro. Babel: Babilónia, centro do poder muçulmano.
238 ORLANDO FURIOSO

65 86
Seu [. . .} melhor: o seu anjo da guarda. A rgo : figura mítica que possuía cem ou mais olhos.
66 87
Almas santas: os santos da corte celeste. Filho de Pepino: Carlos Magno era filho de Pepino, o
Breve.
67
Exército [. . .} impele: exército dos Ingleses e
88
Escoceses, que já se encontra junto à costa francesa. Sobrino: cf. nota a 24 e 66.
68 Fogo soleve: propague o fogo da discórdia. 89
Puliano: cf. 22.
69 90
Inimigo da palavra: o silêncio. Dardinel: cf. 27 (Dardinello).
70
Averno: lago na região da Campânia, Itália, onde os 9 1 Rei de Orão: cf. 1 7.
poetas situam uma das entradas do Inferno.
92
Roda ardente: a roda de fogo (uma espécie de girân­
71
Falar[. . .} Ave: uma voz tão bondosa e suave como a dola em chamas).
do arcanjo S. Gabriel ao fazer a anunciação a Maria.
93
Garamante: Buraldo, rei dos Garamantes (cf. 1 7).
72
Benedito[. . .} lar: ordens beneditina (inspirada em S.
94
Bento) e carmelita (com origem nos montes Carmelo, De Marm unda: Ormida (cf. 1 8).
em Israel, inspirada nas acções religiosas do profeta
Elias). 95 Clarindo: cf. 24.

73 96
Escolas [. . .} Arq uitas: nas escolas pitagóricas Soridano: cf. 22.
(Arquitas foi um matemático discípulo de Pitágoras)
97
eram proibidas aos alunos as disputas verbais pelo perío­ Avô[. . .} neto: Nemrod é referido na Bíblia como o
do de cinco anos. descendente de Noé que fundou Babel, Nínive e muitas
outras cidades, e foi «poderoso caçador diante da face do
74 Sem intervaÚJ: àquela hora exacta. Senhor» (Génesis, 1 0:8- 1 2). Ariosto, como Boiardo, con­
sidera-o antepassado de Rodomonte e construtor da
75 Atlante: Adante ou Atlas (maciço montanhoso do torre de Babel. Com esta, pretendia expulsar Deus do
Noroeste de África). assento celeste e ficar senhor dos astros. Para esse fim
mandara construir armas perfeitas, as mesmas que
76
Olhos: estrelas. Rodomonte usa.
77 98
Santo consistório: conjunto de todos os santos e bea­ Mallea: região palustre das proximidades de Ferrara,
tos da assembleia celeste (cf. Dante, Paraíso, XXIX:67). junto ao rio Pó.
78 99
Se o teso uro[. . .} teria: cada santo e beato teria neste Porcinas bestas: javalis.
dia a sua estátua em ouro como oferta votiva, se a rique­
100
za (teso u ro) fosse apreciada por Deus como é pelos mor­ Serventia: passagem, corredor.
tais.
101
Era [. . .} golfo : onde o Reno desaguava no golfo de
79
Sacros b ustos: os venerados defuntos. Os romanos Zuidersee, hoje fechado (território holandês).
chamavam «busto» (latim bustum, i) ao lugar onde se
1 02
queimavam ou sepultavam os mortos, e, por extensão, Andropono e Moschino: o primeiro, diz Ariosto que é
aos restos mortais. um sacerdote. Moschino é a alcunha de Antonio
Magnanino, famoso beberrão da corte de Este, que
8
° Forasteiros e citadinos: estrangeiros e franceses. Ariosto conheceu.
81 1 03
L uminares: fogueiras. De baixo para o alto: dum plano inferior ao da mura­
lha principal, que está a ser transposta pelos atacantes.
82
Motor: coração.
I 04
Filho do rei Ulieno: Rodomonte.
83 Terra: Paris.
1 05
Manto: armadura.
84
Antes[. . .} encerra: dentro das muralhas o Sena parte­
1 06
se em dois braços, formando uma ilha (a parte melhor). Os nossos: é o sujeito desta oitava e da seguinte (reto­
As outras duas partes da cidade ficam confinadas entre mado em 1 32:3).
cada um dos braços do rio e o fosso das muralhas.
IO? Guia: Rodomonte.
85
Regira: tem de perímetro.
-.­
CANTO XV

Vencer foi desde sempre coisa honrosa,


quer se vença por sorte ou por empenho;
verdade é que a vitória sanguinosa
ao capitão dará menos engenho;
mas é eternamente gloriosa,
e divino honor tem pelo desempenho,
quando, poupando os seus a qualquer dano,
faz com que fuja o inimigo ufano.
2 A vossa, senhor meu, foi de louvar,
quando ao Leão 1, que é no mar tão feroz,
e ocupara uma e outra beira-mar
do Pó, de Francolino2 até à foz,
tal fizeste que, se outra vez rosnar,
desde que vos veja, não temo a voz.
Como vencer se deve, o demonstraste:
mataste o inimigo e a nós salvaste.
3 O que o pagão, para seu mal tão audaz,
fazer não soube; ao fosso os seus deitou,
onde a fogueira súbita e voraz
não perdoou ninguém, todos matou.
Para todos conter não era capaz
o fosso, mas o fogo os apertou;
apertou-os e a pó os reduziu,
e assim lugar a todos garantiu.
240 ORLANDO FURIOSO

4 Onze mil e vinte e uns oito mais 10 É hora de eu voltar onde deixara
foram parar àquele buraco ardente, o aventureiro Astolfo de Inglaterra,
todos contrariados por demais; que o seu exílio longo já declara,
assim quis seu chefe pouco prudente. e arde de saudade da sua terra;
Ali morreram entre chamas tais, disso muita esperança lhe despertara
e o voraz lume neles meteu dente; aquela que Alcina venceu na guerra7 •
e Rodomonte, causa do seu mal, Que o manda voltar, ela se assegura,
escapou ileso ao tormento mortal; pela via mais rápida e mais segura.
5 ao inimigo e à borda mais interna li E assim uma galé foi preparada,
tinha passado, em milagroso salto. das que os mares já sulcaram a mais fina;
Se houvesse descido àquela caverna3 , e, duvidando que em toda a jornada
para ele era o fim de qualquer assalto. não perturbe a sua viagem Alcina,
O olhar deitou àquela vala inferna, quer Logistilla que com forte armada
e quando o fogo viu subir tão alto, Andronica acompanhe e Sofrosina;
e dos seus o pranto ouviu e o bramido, a fim de no mar árabe e no golfo
ao Céu praguejou em feroz rugido. dos Persas navegar a salvo Astolfo.
6 Entretanto, rei Agramante havia 12 Que perto costeasse, ela preferia,
atacado com ímpeto uma porta; os Citas, Índios, reinos nabateus,
pois, enquanto a cruel batalha ardia e depois fosse, por tão longa via,
onde tanta gente está ferida e morta, a passar pelos Persas e os Eritreus
aquela ele desprevenida cria sendo ao mar boreal a nave arredia8 ,
da guarda, que em luta julgava absorta. onde há sempre vento e obscuros céus,
Com ele está Bambirago, o rei de Arzila4, e pobres de sol algumas estações,
e Baliverzo5, que vício destila; que alguns meses duram nessas nações.
7 e Corineo de Mulga e o rico rei 13 Depois de a fada ter tudo aferido,
Prúsias, o das Ilhas Afortunadas; ao duque deu licença para partir,
e Malabuferso, que tem a grei tendo-o antes ensinado e instruído
de Fez6, onde o Verão faz longas estadas; de coisas mil, que custo a repetir;
outros senhores e pessoas, direi, para vedar que por magia atraído
peritas na guerra e mui bem armadas; seja, para de onde não possa fugir,
e muitos sem valor, de armas desnudos, um livro muito útil lhe tinha dado,
a quem nada valeriam mil escudos. que devia manter sempre a seu lado.
Encontrou o oposto à ideia que fez 14 Como o homem pode evitar encantos
naquela parte, o rei dos Sarracinos; diz o livrinho que ela lhe ofereceu:
lá estava o chefe do Império, o francês para os assuntos achar sem atarantos,
rei Carlos, e alguns dos seus paladinos: de índice e de rubricas o proveu.
Salamone e Uggiero, o dinamarquês, Outra oferta lhe fez, que mais que quantos
dois Guidi e dois Angelini contínuos, dons já houvera em vantagem excedeu:
o duque de Baviera e Ganelone, de horrível som, foi a oferta um corno
e Berlengier, Avolio, Avino e Otone; que faz fugir qualquer que o oiça em torno.
9 muita gente também de pouca monta, 1 5 Digo eu que o corno é de um horrível som,
dos Francos, dos Alamães e Lombardos; que onde se oiça faz fugir a gente:
presente o senhor, cada um se apronta não há no mundo um ânimo tão bom
para fama ganhar entre os mais galhardos. que deixe de fugir assim que o sente;
Disto em outra parte vos darei conta, nada são, comparados com seu tom,
que este duque não deixo entre os mais tardos: som de vento, trovão, terra tremente.
de longe me grita e de longe acena, Agradecendo, despedidas fez,
pedindo que o não guarde em minha pena. e da fada se partiu o inglês.
CANTO XV 241

16 Deixando o porto e as águas mais tranquilas, 22 e encontrar dessa longa costa o fim 17,
com propícia brisa que à popa expira, que faz pensar que as águas são diversas;
pelas facundas e populosas vilas e correr os litorais e o confim
da odorosa Índia o duque gira, de ilhas indianas, árabes e persas 18 ;
encontrando à esquerda e à destra filas vejo outros de Hércules deixar enfim
de ilhas dispersas; e avançando mira a esquerda e direita margens adversas,
a terra de São Tomás9; e o barqueiro do Sol seguindo o caminho rotundo
mais para norte a seguir ruma o cruzeiro. e encontrar novas terras, novo mundo 19 •
10
17 O áureo quersoneso quase roça 23 Vejo a santa cruz, vejo o imperial
a bela armada, o oceano cortando; brasão, na verde margem bem direitos20 ;
o lido costear faz que ver possa vejo uns que as naves guardam no areal,
o Ganges, o mar muita vez branqueando 1 1 ; e outros para tomar as terras eleitos2 1 ;
12 13
vê Taprobana , e Comorin se esboça, vejo dez espantar mil22 , vejo o total
o mar entre os dois lidos se estreitando. dos reinos da Índia23 a Aragão sujeitos;
Depois de muito andar viram Cochim, de Carlos quinto vejo os capitães
e das Índias deixaram o confim. ser das terras achadas guardiães.
1s Correndo o duque o mar com tão fiel 24 Quis Deus que desconhecida fosse esta,
e tão segura escolta, diligente e por mais tempo seja oculta a via;
pergunta a Andronica se daquele e só venha a saber-se quando a sexta
lado do mundo, que ao Sol é poente, e a sétima era já se anuncia24 ;
jamais nave que remo ou vela impele quer torná-la no tempo manifesta,
aparecera nos mares de Nascente; em que ao mundo dará a monarquia,
e se pode ir, sem nunca tocar terra, sob o mais sábio imperador, e justo,
quem de Índia sai, para a França ou Inglaterra. que já houve e haverá depois de Augusto.
19 - Tu deves saber (responde Andronica) 25 Do sangue de Áustria e de Aragão, eu vejo
que o mar abraça a terra em todo o lado; na margem esquerda do Reno nascer
e a água uma com a outra comunica, um príncipe, a cujo valor ensejo
seja onde o mar é quente ou é gelado; nenhum outro tem de se parecer25 •
mas porque aqui em frente se amplifica, Reinou de novo Astreia26 a seu desejo,
e o mar muito para sul tem ocupado ou antes, de morta a fez reviver;
a Etiópia, a Neptuno, foi dito, virtudes que perdeu quando a baniu,
passar por esse ponto é interdito 14 . ao mundo devolveu seu poderio.
20 Por isso, do nosso índico Levante 26 Por tal mérito, a Bondade Suprema,
nenhuma nave para a Europa parte; não só do grande império foi seu plano
nem da Europa parte navegante que houvesse também ele o diadema
que de chegar aqui queira ter arte. de Augusto, Severo, Marco, Trajano27 ;
O ver tão longa terra por diante mas de terras que, duma à outra extrema,
faz com que dela cada um se aparte; nelas se não punha o Sol nem o ano28 ;
pois todos julgam, vendo-a assim tão longa, e deseja que sob este imperador
que ao outro hemisfério ela se prolonga. um só rebanho haja, e um só pastor.
21 Mas daqui a anos vejo sair, 27 E, para que sejam mais bem sucedidos
das terras mais extremas que há a poente, os planos no Céu desde sempre escritos,
novo Tífis e Argonautas, e abrir a suma Providência, como adidos,
a estrada ignorada até ao presente 1 5 ; deu-lhe em terra e mar capitães invictos.
vejo contornar África, e seguir Vejo Hernán Cortés29, por quem submetidos
ao longo da costa da negra gente, novos povos são, e ao império adstritos,
passando aquele ponto onde o Sol parece e reinos tão remotos no Oriente
deixar Capricórnio, e que a nós regresse 16 ; que os ignoramos nós, indiana gente.
242 ORLANDO FURIOSO

28 Vejo Prospero Colonna30 , e de Pescara 34 Estes, ou qualquer que sua pátria tenta
vejo um marquês3 1 , e perto não ignoro de livre tornar serva ruborize;
um jovem de Vasto32, que fazem cara e, onde o nome de Doria se aventa,
parecer a bela Itália aos Lírios de Ouro33 ; de olhar homem nos olhos não se guise.
vejo que a ultrapassar se prepara Vejo Carlos que o galardão lhe aumenta:
o terceiro os outros, para ter o louro; além da que quer que ele em comum pise44,
como o cavalo que em último parte dá-lhe a rica cidade que aos Normandos
e de ser primeiro a chegar tem arte. dará azo a na Apúlia terem mandos45 •
29 Vejo tanto o valor, e vejo a fé 35 Não só a este capitão cortês
tão grande de Alfonso (seu nome atesto), deve o magnânimo Carlos mostrar-se,
que com tão pouca idade (mais não é mas a todo o que ilustre empresa fez,
que além do vigésimo ano o sexto) e de seu sangue dar não fez disfarce.
o imperador a tropa dar-lhe vê; Cidades poder dar o satisfez
a qual, salvando, não só salva o resto, a um fiel; mais o vejo alegrar-se
mas de tornar o mundo obediente, por o fazer a quem tal merecer,
com este capitão estará assente34. que de impérios e reinos rico ser. -
30 Como com estes, aonde ir por terra 36 Assim das vitórias, as quais passado
se possa, aumentará o império antigo, grande número de anos, tudo indica,
também por todo o mar que entre si cerra os capitães a Carlos terão dado,
Europa lá, cá o africano abrigo3 5 , com o duque discursava Andronica;
será vitorioso em toda a guerra, enquanto os ventos do nascente lado
pois de Andrea Doria36 será amigo. vai ela moderando e os domestica;
O Doria, que aos piratas deu enfado faz que ou um ou outro propício seja,
e os correu deste mar, por todo o lado. e amplia-os e abranda-os, como deseja.
31 Não foi Pompeu37 tanto como este digno, 37 Entretanto o mar pérsico observaram,
embora aos corsários desse <lesares; e como se estende em amplos alagos;
porque eles, ao império mais condigno e logo do golfo se aproximaram
que já houve, não podiam ser pares38 ; que teve nome dos antigos Magos46 •
mas desse Doria o engenho consigno, Aqui a porto foram, e atracaram
pois com sua força purgará os mares; de popa para a frente os navios vagos;
de Gibraltar ao Nilo, onde aparecer dali, salvo de Alcina e sua guerra,
seu nome, toda a costa vai tremer. Astolfo tomou caminho por terra.
32 Vejo Carlos, que com sua escolta aporta 38 Passou mais do que um bosque e um terreno,
(desse tal capitão nomeado atrás) por montes e vales foi caminhante;
a Itália, sendo ele a abrir-lhe a porta, onde, na escuridão e no sereno,
para vir tomar a coroa que o compraz39 • ladrões teve por trás e por diante.
Vejo que o prémio que daí reporta Viu leões, dragões cheios de veneno,
não é para si, à pátria prenda faz: e outras feras, em seu caminho errante;
pede e obtém que seja libertada40, mas, assim que levava à boca o corno,
quando outro a teria a si sujeitada. fugiam, não lhe dando mais transtorno.
47
33 Essa devoção que ele à pátria esboça 39 Vem pela Arábia que é dita Feliz ,
merece mais louvor que uma batalha rica em mirra e em odoroso incenso,
que em África ou Espanha, ou na terra vossa, que a fénix única48 para poiso quis,
ou França ou Tessália, Júlio41 amealha. escolhendo-o entre todo o mundo imenso;
Nem o grande Octávio, ou quem lhe faz mossa, às ondas chegou, pelos Hebreus hostis
seu par António42, tem que ele mais valha ao Egipto, por divino consenso:
pelos feitos seus; que o louvor não reforça Faraó e todos seus submergiu49 •
o ter usado contra a pátria a força43• Para a Terra dos Heróis5 0 depois seguiu.
244 ORLANDO FURIOSO

40 Ao longo do rio Trajano51 cavalga 43 Não irás mais que seis milhas adiante,
no corcel que não tem no mundo par, e acharás a sanguinosa parança
que com tal ligeireza corre e galga em que se alberga um horrível gigante,
que na areia não grava o seu pisar; o qual em estatura oito pés avança.
erva não calca, neve não amalga, Não tenha cavaleiro nem viajante
com os pés enxutos passaria o mar; de se separar dele vivo esperança,
e tanto é veloz e vai com tal mecha que alguns degola, e há quem ele esfole,
que ultrapassa o vento, o raio e a flecha. e outros esquarteja ou vivos engole.
41 É este o corcel que foi de Argalia; 44 Prazer, entre outras maldades, recebe
pela chama e pelo vento foi concebido; duma rede que tem, mui bem tecida:
sem feno e sem cevada, se nutria pouco distante do tecto a embebe,
do ar; por Rabicano é conhecido. e no meio do pó está tão bem escondida
O duque vem seguindo a sua via, que quem já não souber não se apercebe,
onde pelo Nilo é tal rio52 recebido; tão fina é, tanto a fez à medida;
e, antes que tivesse chegado à foz, com gritos os viajantes ameaça,
viu um navio que a si vinha, veloz. e cheios de medo com a rede os caça.
42 Vem à popa, com sua barba comprida 45 E, às gargalhadas, enrolados nela
e branca, navegando um eremita, os arrasta para dentro do coberto;
que para o navio o paladirn convida, nem cavaleiro poupa nem donzela,
e: - Meu bom filho (de longe lhe grita), seja seu mérito certo ou incerto;
se não tens em ódio tua própria vida, comida a carne, os miolos desvela,
se não queres hoje da morte ter visita, suga-os e dá os ossos ao deserto;
digna-te vir pisar este outro chão, e de peles humanas, toda em torno,
que essa via é para a morte direcção. tem sua morada macabro adorno.
46 Toma, filho, esta via que eu te digo,
que daqui até ao mar é segura. -
- Agradeço-te, pai, mas eu prossigo
(responde o duque com desenvoltura),
porque pela honra não receio perigo,
a qual mais que a vida me dá agrura.
Falas-me em vão, que o rio não passo nunca;
vou em frente, ao encontro da espelunca.
47 Se fugir, vou com desonra salvar-me;
mais que à morte, a tal salvação me esquivo.
Se lá for, o mais que pode achacar-me
é ficar, corno os mais, da vida privo;
mas querendo Deus com as armas ajudar-me,
para que ele morto fique e eu fique vivo,
a mil tornarei segura esta via:
será maior que o dano a regalia.
48 Assim, a morte de um só é consolo,
pois dá salvação a gente infinita. -
- Vai em paz, filho, mais não apostolo;
para defender tua vida, Deus permita,
venha o anjo Miguel do sumo pólo. -
Disse, e benzeu-o, o simples eremita.
Astolfo junto ao Nilo seguiu estrada,
mais confiante no som53 que na espada.
CANTO XV 245

49 Há, entre o fundo rio e o lameiro54 , 53 Assim que o paladino a vir o vê,
pequeno atalho na borda arenosa; pára o corcel, por ter cerco respeito,
a erma casa interrompe o carreiro, não vá nos seus laços meter o pé,
do humano comércio silenciosa 55 • tal como o bom velhote achara jeico56 •
Cabeças e membros têm poleiro Do seu mágico corno aqui dá fé,
em torno, de gente tão desditosa. e este ao soar produz o usado efeito:
Não há janela nem relevo algum ao gigante, que o ouve, medo faz
em que pendente não se veja um. tal que volta com seus passos atrás.
50 Como em aldeias alpinas não reles 54 Astolfo sopra, girando a mirada,
sói caçador, em grande perigo incurso, sempre com medo que a rede o invista.
pregar nas portas as hirsutas peles, Foge o vilão em incerta passada,
horríveis patas e cabeças de urso, pois com a coragem perdera a vista.
cal fazia o cruel gigante àqueles Tal é o temor que não vê a estrada,
que eram mais honrosos para o seu percurso. e nas próprias armadilhas se enrista:
De muitos mais estão espalhados os ossos; na rede cai; logo ela se descerra,
de sangue humano estão cheios os fossos. enrola-se nele e deita-o por terra.
51 Caligorante está em pé à porta, 55 Astolfo vê cair o grande peso,
que é este o nome do monstro cruel e corre à pressa, já com confiança;
que orna a sua casa com gente morta, desmonta, empunha a espada, e com desprezo
como outros de ostro e dourado dossel. vai para fazer de mil almas vingança.
De alegria, este a custo se comporta Mas pensa que quem mata um que está preso
quando ao longe vê o duque e o corcel; de poltrão mais que herói tem semelhança;
pois já dois, quase três meses havia, tão atados tem pés, braços, pescoço
que um cavaleiro não ia àquela via. que nem mover-se pode aquele colosso.
52 Para a palude, que estava em escuro envolta 56 Aquela rede fizera Vulcano
pelas muitas canas, ele à pressa vai; de fino fio de aço, mas com cal arte
conjectura que, correndo-lhe em volta, que vão teria sido todo o afano
nas costas do paladim depois sai; para desmanchar a mais pequena parte;
da rede oculta ali fará recolca, era a mesma que já em tempo arcano
convencido de que ele nela cai, de pés e mãos ligou Vénus e Marte;
como fizera aos outros peregrinos, fê-la o ciumento para aquele efeito:
que ali tinham marcados seus destinos. para ambos enredar juntos no leito57 •
246 ORLANDO FURIOSO

57 Mercúrio ao ferreiro a rede ladroa,


para Clóris apanhar com tal anzol;
Clóris tão formosa, que pelo ar voa
atrás da Aurora, ao aparecer do Sol,
e que do seu regaço espalha à toa
lírios, violetas, rosas, girassol.
Mercúrio esta ninfa tanto esperou
que um dia no ar com a rede a apanhou.
58 Onde o rio etíope no mar tem topo58 ,
parece que a deusa voando fosse.
Depois, de Anúbis no templo, em Canopo59 ,
por séculos a rede conservou-se.
Três mil anos depois, o misantropo
Caligorante desse templo a trouxe:
da rede o ladrão houve propriedade,
saqueou o templo, deu fogo à cidade.
59 E adaptou-a de tal modo à areia
que todos quantos a quem dava caça
nela caíam; mal tocada a teia,
pescoço, pés e braços embaraça.
Dela tirou Astolfo uma cadeia,
e as mãos atrás àquele vilão enlaça;
de bem ligar-lhe o tronco não desleixa,
para não soltar-se; e então erguê-lo deixa,
60 não sem antes de outros nós desprendê-lo, 63 Não era grande o Cairo nessa hora,
pois estava mais dócil que uma donzela. como na nossa era que é se diz:
Pensa levá-lo e dar a conhecê-lo, que não cabia o povo que ali mora
por vilas, aldeias, levado à trela. em dezoito mil burgos de um país;
Quer inda a rede, pois que ela martelo que as casas têm três pisos, mas fora
ou lima jamais fez coisa mais bela: inda assim muitos dormem, pelos lancis;
carrega-a aquele que leva pela cadeia, e que o sultão habita num castelo
e que em triunfo atrás de si passeia. de espantoso tamanho, rico e belo;
61 O seu elmo e o seu escudo deu-lhe até, 64 e que tem quinze mil dos seus vassalos,
como a escudeiro, e seguiu seu caminho, sendo eles todos cristãos renegados61,
espalhando alegria onde põe o pé, com mulheres, com família e cavalos,
pois seguro ora vai viajor sozinho. debaixo dum só tecto arrebanhados.
Astolfo vai andando, até que vê Astolfo quer ver do Nilo os resvalos,
que aos sepulcros de Mênfis é vizinho; e quanto entra no mar daqueles lados
Mênfis pelas pirâmides é famoso, de Damieta; pois, ouviu dizer,
e em frente tem o Cairo populoso60 • quem o passa há-de ser preso ou morrer.
62 O povo todo a correr atraía, 65 Pois na margem do Nilo, junto à foz,
para ver o gigante desmesurado. se abriga um ladrão dentro duma torre,
- É possível (um a outro dizia) para os viajores e estrangeiros feroz,
que o pequeno tenha o grande ligado? - que para os roubar dali ao Cairo corre.
Astolfo só a custo andar podia, Ninguém lhe resiste, e diz essa voz
tanto a gente o aperta de todo o lado; que tirar-lhe a vida a ninguém ocorre;
e, como cavaleiro de alto valor, mais de cem mil feridas lhe têm feito,
todos o admiram e rendem honor. mas de o matar ninguém teve o proveito.
248 ORLANDO FURIOSO

66 Para ver se pode a Parca subtraí-lo n Duas damas discretamente ornadas,


a seu fio, que assim a vida lhe nega62, de branco uma, outra de negro vestida,
Astolfo vai ao encontro de Orrilo que daquela luta eram as culpadas,
(assim se chama), e a Damieta chega; estavam observando a dura investida.
e, chegado onde entra no mar o Nilo, Eram estas duas bondosas fadas
vê que na margem grande torre se apega, que aos filhos de Olivier deram guarida,
na qual tem abrigo a alma encantada depois que em pequenos foram raptados
que dum gnomo nasceu e duma fada. pelas garras de dois animais alados67 ,
67 Ali encontra uma cruel batalha63 73 que os raptaram a Gismonda fecunda,
entre Orrilo e dois guerreiros acesa. e levaram para terra inadvertida.
Orrilo, só, os outros dois trabalha, Mas não é preciso que eu mais difunda,
que com muito custo encontram defesa, que a história é de todos bem conhecida;
e, quanto em armas um e outro valha, embora o autor no pai se confunda,
a todo o mundo mostra com clareza. que em vez do verdadeiro outro apelida68 •
Os filhos de Oliviero tinha diante: Fazem ora os dois jovens o duelo,
o branco Grifone, e o negro Aquilante64 • porque as damas pediram para fazê-lo.
68 É verdade que o necromante viera 74 O lugar já do Sol não tinha adorno
à batalha com uma grande vantagem; (alto ainda nas ilhas da Fortuna69) ;
pois consigo em campo tinha uma fera65 as sombras tudo encobriam em torno,
que só se encontra naquela paragem; e muito indecisa a Lua se enfuna,
nas margens e no rio ela se gera, quando Orril ao seu forte faz retorno,
é o corpo humano a sua pastagem: uma vez que à irmã branca e à bruna
das pessoas míseras e incautas, comprazeu protelar esta porfia
dos infelizes viajantes e nautas. até que surja o sol do novo dia.
69 A besta já na areia junto ao porto, 75 Astolfo, que Grifone e Aquilante,
pela mão dos dois irmãos morta, jazia; pelas insígnias e_ pelo ferir galhardo,
por tal, para Orril não é desconforto tinha reconhecido muito ante,
se ao mesmo tempo cada um o feria66 • para os saudar não foi altivo nem tardo.
Muito o tinham mutilado, não morto, Vendo eles que o que trazia o gigante
nem mutilando-o matar se podia; era o senhor do brasão do leopardo
se uma mão ou perna cortada lhe era, (assim na corte o duque é conhecido),
de novo a punha, como se de cera. com igual afecto foi recebido.
70 A cabeça até aos dentes lhe abriu 76 As damas levaram os cavaleiros
Grifone, e Aquilante até ao peito. para repousar num palácio vizinho.
Dos seus golpes ele apenas se riu, Ao encontro donzelas e escudeiros
e exaltam-se eles por não ter efeito. com tochas vieram, a meio caminho.
Quem argento-vivo verter já viu Os corcéis deram aos palafreneiros,
(foi pelos alquimistas mercúrio eleito) desarmaram-se e, num jardim de azinho,
seus fragmentos separando e juntando, mesa posta encontraram para cear,
ao ouvir isto, vá-se dele lembrando. onde uma amena fonte tem lugar.
71 · Se a cabeça lhe cortam, ele se inclina 77 Mandam ligar o gigante à verdura,
e vai apalpando até encontrá-la; com mais uma cadeia muito grossa,
pelos cabelos lhe pega ou pela narina, a um carvalho que há muito ano dura,
e ao pescoço não demora a colá-la. e ao qual ele não pode causar mossa;
Grifone ora lhe pega e à marina dez serventes lhe farão de moldura,
a lança, mas Orril nada se rala: para que de noite soltar-se não possa,
mergulha até ao fundo como um peixe ir atacá-los, e causar-lhes mal,
e traz a cabeça, sem que se queixe. quando repousam sem guarda pessoal.
CANTO XV 24 9

78 Na abundante e sumptuosa mensa, 84 O tonto, que o facto não percebeu,


onde mais que comer prazer se expande, tacteava o chão, procurando a testa;
grande parte do falar se dispensa ouvindo que o outro o passo estendeu,
a Orrilo, e àquele milagre grande, levando-lhe a cabeça para a floresta,
que parece um sonho a quem em tal pensa, sem delongas para o cavalo correu,
que braço ou cabeça ao chão se lhe mande, montou-se nele e a correr se apresta.
que o apanhe e de novo dele se muna, Queria gritar-lhe: - Espera, volta, volta! -,
e mais feroz à luta se reúna. mas tem-lhe o duque a boca e não a solta.
70
79 Astolfo, no livro que tinha a jeito , 85 Que dos pés não lhe haja tolhido o passo
lera (o que a quebrar encantos ensina) já se consola, e segue a toda a brida.
que a Orrilo não sai a alma do peito Para trás o deixa ficar grande espaço
enquanto um pêlo fatal tem na crina; Rabicano, tão ágil na corrida.
sendo arrancado ou cortado, a preceito Astolfo entretanto vai pelo cachaço,
a alma do corpo se lhe elimina. desde a nuca à sobrancelha franzida,
Tal diz o livro, mas não a maneira buscando à pressa se o pêlo fatal
de achar o cabelo em tal cabeleira. reconhece que Orril torna imortal.
80 Da vitória Astolfo se comprazia, 86 Numa cabeleira tão basta e forte,
como se houvesse já levado a palma; nenhum cabelo é mais longo e riçado:
e com poucas estocadas esperança havia irá pois Astolfo escolher à sorte
de ao necromante tirar pêlo e alma. o pêlo que há-de ser eliminado?
Porém aquela empresa, prometia, - Melhor (disse) é que todos puxe ou corte. -
para a resolver só ele a força açaima. Sem navalha ou tesoura ter ao lado,
Orril mata, desde que satisfaça recorre à sua espada sem mais peia,
aos dois irmãos que ele esta justa faça. que tão afiada é que até barbeia.
a1 Dão-lhe de boa vontade a empresa, 87 Tendo a cabeça pela bossa nasal,
certos de que ele irá cansar-se em vão. atrás e à frente toda a descabela.
Já outra aurora ao céu dava clareza, Cortou por acaso o pêlo fatal:
quando Orrilo dos muros veio ao chão. a cara faz-se tetra e amarela,
Entre ele e o duque houve batalha acesa, revira os olhos, e mostra sinal
um com a maça, outro de espada em mão. de se ter apagado a sua estrela;
Espera Astolfo dar-lhe um golpe entre mil, e o corpo que cortara pelo pescoço
que arranque o espírito do corpanzil. cai da sela, num último alvoroço.
82 Ora lhe decepa o punho com a maça,
ou um ou outro braço com a mão;
vai-o cortando através da couraça,
e fazendo ir seus pedaços ao chão;
mas recolhendo sempre vai, da praça,
os seus membros Orrilo e fica são.
Se em cem pedaços o tivesse feito,
em pouco tempo o veria perfeito.
83 Ao fim de mil golpes um lhe acertou
onde o queixo aos ombros faz ligamento:
o elmo e a cabeça lhe arrancou,
e a desmontar não foi que ele mais lento.
A sangrenta cabeleira agarrou,
e subiu para o cavalo num momento;
levou-a, correndo de encontro ao Nilo,
para que não a recuperasse Orrilo.
CANTO XV 251

88 Astolfo, para as damas e cavaleiros 94 Mas, antes de iniciarem a viagem,


voltou, e a cabeça na mão trazia, cada um de provisões se socorre,
que sinais de morte dava certeiros, carregando o gigante com a bagagem,
e o corpo apontou que longe jazia. que até podia levar uma torre.
Não sei bem se a olharam prazenteiros, No final do caminho áspero e selvagem,
embora lhe mostrassem cortesia; dum alto monte à sua vista ocorre
pois a roubada vitória, talvez, a santa terra, onde o Supremo Amor
no peito dos irmãos inveja fez. lavou com o seu sangue o nosso error.
89 E que este fim tal batalha alcançasse, 95 Encontram à entrada da cidade
creio que não fosse às duas damas grato. um jovem gentil, um seu convivente:
Estas, para que mais tempo se afastasse Sansonetto de Meca, mais que a idade,
dos dois irmãos o doloroso facto na flor da juventude, era prudente;
que em França parece que os esperasse, como bom cavaleiro e pela bondade
instigaram Orril ao desacato, famoso, e assaz respeitado entre a gente.
com a esperança de ali os entreter Orlando à nossa fé o converteu,
até o mau augúrio fenecer. e o baptismo com sua mão lhe deu.
90 Logo que o castelão de Oamieta 96 Ali quer construir, para que se afronte
se certificou da morte de Orrilo, o egípcio califa, uma fortaleza;
uma pomba soltou que, qual estafeta, e quer circundar o Calvário monte
na asa leva a carta para servi-lo. dum muro em duas milhas de longueza.
Para o Cairo voou, donde outra gazeta Acolheu-os ele com aquela fronte
outra ave levou, como é ali estilo; que dá do interno amor grande clareza,
e em poucas horas no Egipto é sabido e mandou-os entrar e, mui cordial,
que Orrilo, o vilão, tinha falecido. alojou-os em seu paço real.
91 O duque, terminada a sua empresa, 97 Governava ele a cidade, e em vez
aconselhou os nobres rapagões, de Carlos73 regia o império justo.
os quais já na ideia tinham firmeza, O duque Astolfo a ele oferta fez
sem precisar conselho ou aguilhões, daquele tão desmesurado busto74,
a da santa Igreja fazer defesa, que para carregar pesos vale por dez
e do Romano Império, das razões, bestas de carga, tanto era robusto.
deixando as batalhas do Oriente Deu-lhe Astolfo o gigante, e deu também
para procurar glória entre a sua gente7 1 • a rede com que o fizera refém.
92 Grifone e Aquilante recebeu
cada um de sua dama cedência;
a elas muito custou e doeu,
mas não souberam opor resistência.
Com eles Astolfo à destra volveu,
pois decidiram fazer reverência
aos lugares santos, de Deus a morada;
fica a França para depois relegada.
93 Podiam seguir a via esquerdina,
que era mais agradável e mais plana,
e nunca se afastavam da marina;
mas foram pela direita, mais tirana,
que à alta cidade da Palestina72
menos seis dias que essa o rumo aplana.
Água e erva se encontram nesta via;
de tudo o mais, porém, há carestia.
252 ORLANDO FURIOSO

98 Em paga Sansonetto ao duque deu 1 02 Em Constantinopla a tinha deixado


para a espada uma correia rica e bela; prostrada por uma febre severa.
e deu esporas para um e outro pé seu, Agora vê-la, quando regressado,
que de ouro tinham roseta e fivela; e sua companhia gozar, espera,
o par ao cavaleiro pertenceu que para Antioquia, ouve o desgraçado,
que libertou do dragão a donzela75 : com seu novo amante ela se movera,
em Jaffa com muito espólio as ganhou achando mais não dever consentir
Sansonetto, quando Jaffa76 tomou. ter de, em tão fresca idade, só dormir.
99 Num mosteiro das culpas refrigério 1 03 Desde que lhe deram a triste nova,
tiveram, que era em exemplos famoso, suspirava Grifone noite e dia.
da paixão de Cristo cada mistério Prazer, que os outros alegre e comova,
contemplando; em todos os templos pouso a ele ainda mais entristecia
fizeram, que os Mouros com vitupério (pense-o aquele em quem Amor faz prova
usurparam de modo tão forçoso. de seus dardos, e sua têmpera avalia).
Europa em armas a guerra deseja E mais que outro martírio lhe pesava
em toda a parte, e não onde se almeja. que de seu mal contar se envergonhava.
1 00 Enquanto o espírito tinham devoto, 1 04 Isso, por antes já ser muito instante
em perdões e cerimónias penitentes, em repreendê-lo por tal amor
um grego viajante, de Grifon noto, o seu mais prudente irmão Aquilante,
notícias lhe deu graves e pungentes, que o quisera desse amor desertor;
de seu actual plano e antigo voto em sua opinião, estava perante
muito desconformes e divergentes; a que entre as mulheres vis era a pior.
tanto elas o coração lhe inflamaram Defende-a Grifon se o irmão a dana;
que a oração da ideia afastaram. cada um por vezes a si se engana.
101 Amava Grifone, por desventura, 105 E pensou para si, sem nada dizer
uma donzela de nome Orrigille; a Aquilante, sozinho ir direito
com rosto mais belo ou melhor estatura a Antioquia, e de lá trazer
outra não se encontraria entre mil; aquela que tem gravada no peito;
por vilas e aldeias, de tal natura achar o que lha tirou, e fazer
se procurardes, desleal e vil, vingança tal que ganhe fama o feito.
e na terra firme e ilhas do mar, Direi como essa ideia resolveu,
não creio que uma acheis que seja par. no outro canto, e quanto sucedeu.

NOTAS

1 7 Aq uela { .. }
Leão: Veneza, por antonomásia. guerra: Logistilla.
2 Francolino: povoação da margem direita do Pó, pró­ 8 Que perto { . .} arredia: Logistilla prefere que Asrolfo
xima de Ferrara. regresse ao Ocidente costeando a China, a fndia, e atra­
vessando o oceano fndico até ao golfo Pérsico, a que
3 Caverna: fosso. venha pelo Norte, através do oceano Glacial Árctico.
4 Bambi 9 Terra de São Tomds: costa do Malabar, perto de Madrasta,
rago { ..} Arzi'4: cf. xiv:23.
mas aqui é confundida com outro Malabar, na penínsu­
5 Baliverzo: cf. XIV:24. la do Camboja.
6 10 Qµersoneso: península (palavra de ori m grega). Refere­
Corineo { . .} Fez: já referidos no Canto xiv (Corineo ge
em 23, Prúsias em 24, e Malabuferso em 22). -se à península de Malaca, rica em jazidas de ouro (áureo).
CANTO XV 253

28 Terras [. . .] ano: eram tão vastos os domínios de Carlos


110 Ganges [. . .] branqueando: vai passando pelas vá-
rias fozes do Ganges, que branqueiam o mar com a sua V que neles nunca se punha o Sol e, portanto, não ocor­
espuma. riam os ciclos anuais.
2 29
1 Taprobana: nome clássico da ilha de Ceilão. Herndn Cortés: conquistador espanhol. Participou
na conquista de Cuba (1 5 1 1 ), e em 1 5 1 8 conquistou o
13
Comorin: cabo Comorin, na costa indiana oposta a México, pondo termo ao Império Azteca.
Ceilão.
30
Prospero Colonna: príncipe romano que se associou
14
Se amplifica [. . .] interdito: como a África (Etiópia) se primeiro aos Franceses e depois aos Espanhóis.
estende muito para sul, diz-se que o mar (Neptuno) ali
31
encontra um obstáculo que não permíte ir mais além. Pescara [. . .] marquês: Francesco d'Avalos, marquês de
Pescara, um dos comandantes de Carlos V contra os
15
Terras [. . .] presente: alude às viagens dos navegadores Franceses. Casou com Vittoria Colonna, ilustre poetisa e
portugueses ao longo da costa africana, e depois até à amiga de vários artistas, entre os quais Miguel Angelo.
Índia.
32
jovem de Vasto: Alfonso d'Avalos, marquês de Vasto
16
Passando [. . .] regresse: indo além do trópico de e de Pescara, capitão de Carlos V contra os Franceses.
Capricórnio (onde, após o solstício de Inverno, o Sol Recebeu Ariosto como enviado de Alfonso d'Este,
parece retroceder). A corte de Ferrara recebia da tendo-lhe dado uma pensão vitalícia extensiva aos seus
Península Ibérica os mapas e cartas de navegação que herdeiros. Ariosto ofereceu-lhe uma das três primeiras
reproduziam essas viagens e as terras descobertas, aos cópias do seu poema.
quais Ariosto tinha acesso.
33
Cara [. . .] Ouro: os capitães de Carlos V tornaram
17
E encontrar [. . .] fim: o cabo da Boa Esperança, difícil (cara) aos Franceses a conquista de Itália.
dobrado por Bartolomeu Dias.
34
A qual [. . .] assente: salvando o exército, conserva
18
E correr [. . .] persas: ir até à fndia (Vasco da Gama). aquilo que já tem (o resto) e conseguirá que todo o
mundo se lhe subjugue, graças a este capitão.
35
0 mar [. . .] abrigo: o Mediterrâneo.
19
Vejo outros [. . .] mundo: vê outros que partem dei­
36
xando para trás as opostas margens do estreito de Andrea Daria: almirante genovês, que esteve primei­
Gibraltar. Fala da viagem de Cristóvão Colombo para ro do lado dos Franceses e depois se passou para os
ocidente, partindo de Sevilha pelo Guadalquivir, que o Espanhóis. Famoso por ter dado caça aos piratas no
levou à América (novo m undo) . Mediterrâneo.
20 37
Imperial [. . .] direitos: as insígnias do imperador espa­ Pompeu: Pompeu, o Magno, foi encarregado pelo
nhol, Carlos V. senado romano de expulsar os piratas do Mediterrâneo,
no séc. I a. C.
21
�jo uns [. . .} eleitos: enquanto uns ficam a guardar os
38
navios, outros vão apoderar-se das terras descobertas. Porque [. . .] pares: porque os piratas não podiam
competir com as forças do poderoso império, que esta­
22
Dez espantar mil: dez europeus provocavam a fuga vam à disposição de Pompeu. Ao passo que Doria lutou
de mil indígenas. apenas com os seus meios e força.
23 39
Índia: fndias Ocidentais, nome que designou as ter­ Carlos [. . .] compraz: para vir receber a coroa de Itália,
ras descobertas por Colombo, devido à sua convicção de Carlos V foi transportado até Génova por Andrea Doria
que tinha chegado à fndia por ocidente. no seu navio e sob sua escolta.
24 40
Sétima [. .. } anuncia: sete séculos separam as eras de O prémio [. . .] libertada: como compensação, Carlos
Carlos Magno e de Carlos V. V concedeu a Doria o principado de Génova. Este, em
vez de sujeitar a cidade, deu-lhe a liberdade, constituin­
25 Mais sdbio [. . .] parecer: Ariosto faz o elogio de Carlos do-a república.
V, imperador da Alemanha e rei de Espanha (Carlos i),
41
que governou o maior império europeu desde Carlos Júlio: Júlio César.
Magno, em extensão, população e riqueza. Era filho de
42
Filipe da Áustria e de Joana de Aragão. Octdvio [. . .] António: Octaviano Augusto e seu rival
Marco António.
26
Astreia: deusa da justiça e da virtude.
43
Louvor [. . .] força: o terem usado violência contra a
27
Augusto [. . .] Trajano: Augusto, Septímio Severo, pátria através da guerra civil retira mérito aos seus feitos.
Marco Aurélio e Trajano, imperadores romanos.
254 ORLANDO FURIOSO

44 61
Além [ . .} pise: além de Génova, que partilha com os Quinze [. .. } renegados: os mamelucos, ex-cristãos ou
seus cidadãos. filhos de cristãos convertidos ao islamismo, numa pri­
meira fase escravos, e que depois constituíram a guarda
45
Cidade [..} mandos: dá-lhe a senhoria de Melfi, na pessoal do sultão.
Basilicata, cidade de onde partiu Guilherme, o Normando,
62
para conquistar a Apúlia e a Sicília. Parca [. .. } nega: as três Parcas (Atropo, Cloto e Láquesis)
regulavam a duração da vida de cada humano através de
46
Golfo [. . .} Magos: baía do Bahrein, no golfo Pérsico, um fio que a primeira fiava, a segunda enrolava e a ter­
que na Antiguidade recebeu o nome de uma antiga tribo ceira cortava.
persa, os Magos.
63
Batalha: já iniciada no O. Innamorato. Boiardo dei­
47
Ardbia [. .. } Feliz: o Norte da Arábia. xou a cena no ponto em que um cavaleiro se aproxima.
Ariosto retomou o episódio, fazendo de Astolfo esse
48
Fénix única: ave mitológica que vivia muitos séculos. cavaleiro.
Por ser a única da sua espécie não se podia reproduzir; ao
64
sentir aproximar-se o fim dos seus dias, reunia plantas Grifone [. .. } Aqui/ante: irmãos gémeos, filhos de
aromáticas e incenso que fazia arder, imolando-se, e re­ Oliviero e de Gismonda: a Grifone chamavam o branco,
nascia das cinzas. por ter sido criado por uma fada vestida de branco, e a
Aquilante o negro, porque a sua fada protectora vestia de
49
Ondas [ .. } submergiu: o mar Vermelho, que se negro.
fechou sobre os Egípcios depois de se abrir para deixar
65
fugir o povo hebreu. Fera: crocodilo, o qual já fora morto no lnnamorato.
50 66
Terra dos Heróis: Heroópolis, cidade do antigo A Orril [. .. } feria: não está em desvantagem,' porque
Egipto, no golfo de Suez. trouxera o crocodilo.
51 67
Rio Trajan_o: canal que unia o Nilo ao mar Vermelho, Dois animais alados: uma águia e um grifo, deles
e que foi restaurado pelo imperador Trajano. derivando os nomes dos irmãos.
52 68
Tal rio: o canal Trajano. A história [ .. } apelida: Ariosto alude a um poema do
séc. xv, Uggeri il Danese, que refere este episódio mas dá
53
No som: no som do corno mágico. outro nome ao pai dos cavaleiros. Ele, porém, mantém o
nome atribuído por Boiardo.
54
Lameiro: terras alagadas devido às cheias do Nilo.
69
Alto [. .. } Fortuna: nas Canárias (ilhas Afortunadas),
55
Do humano [. .. } silenciosa: privada de presença ou mais a ocidente, ainda era dia.
actividades humanas.
70
Livro [. .. } jeito: o livro que lhe deu Logistilla à parti­
56
Tal [. .. } jeito: como o eremita achara provável. da (cf. 14).
57 71
A mesma [. .. } leito: Vulcano fabricou uma rede com A sua gente: a cristandade.
a finalidade de apanhar no leito a mulher, Vénus, com
72
Marte, seu amante (Homero, Odisseia, VIIl:272 ss.) . Alta [. . .} Palestina: Jerusalém.
58 Onde [. .. } topo: na foz do Nilo. 73 Em vez de Carlos: por nomeação de Carlos Magno.

59 Templo [. .. } Canopo: em Canopo (perto de Alexandria, 74


Desmesurado busto: o gigante Caligorante
junto a um dos braços do delta do Nilo), no templo de
75
Anúbis, deus egípcio com cabeça de chacal que vigiava Cavaleiro [. .. } donzela: S. Jorge.
os túmulos.
76
jajfa: cidade israelita do litoral, hoje integrada na
60
Mênfls [. ..} populoso: Mênfis, capital do antigo Egipto, zona urbana de Telavive.
fica na margem esquerda do Nilo, onde se encontram as
pirâmides de Quéops, Quéfren e Miquerinos, enquanto o
Cairo se situa na margem oposta do rio.

CANTO XVI

Graves penas se sofrem por amor,


delas já padeci a maior parte;
as que a meu dano foram, sei de cor,
dessas posso falar por minha arte.
Por tal, se faço ou se antes fiz clamor,
em viva escrita ou em falado aparte,
que um mal é leve, um outro amargo e fero,
façam fé porque o meu juízo é vero.
2 Digo, disse, e direi enquanto viva
que, quem se encontra em digno laço preso
e vê que a si a sua dama é esquiva,
em tudo adversa ao seu desejo aceso,
se bem que Amor da recompensa o priva,
dando o seu tempo e fadiga ao desprezo,
se em digno objecto pôs seu coração,
que definhe e morra, mas chorar não.
3 Chorar deve aquele que foi feito servo
duns olhos vagos e bela madeixa,
os quais escondam um coração protervo,
que pouco tem de puro e muita pecha.
Quereria fugir, mas como cervo
ferido, para onde for, transporta a flecha.
De si e de seu amor tem vergonha,
não ousa contá-lo, e em vão sarar sonha.
4 Encontra-se Grifone neste caso,
não pode emendar-se e o erro não mede;
vê que seu coração deu ao acaso,
à infiel Orrigille que mal procede;
o uso ao mal a claudicar deu azo,
e o livre arbítrio assim à paixão cede:
sendo embora pérfida, ingrata e má,
forçado é a buscá-la onde ela está.
2 56 ORLANDO FURIOSO

Digo-vos, sua história retomando, 11 Enquanto de Nicósia estava à espera,


que a cidade deixou secretamente, onde tu foste, àquela grande corte,
sem ousar dizer ao irmão, lembrando que voltasses, pois com febre severa
que a chamá-lo à razão foi diligente. me tinhas deixado, em risco de morte,
À sinistra, para Rama 1 declinando, soube que à Síria passar te aprouvera,
tomou a via mais plana e corrente. o que me causou sofrimento forte;
Damasco da Síria fez em seis dias; modo de seguir-te não encontrei,
para Antioquia tomou outras vias. e quase meu coração trespassei.
6 Após Damasco encontra o cavaleiro 12 Mostra Fortuna ter, com dupla graça,
a quem Orrigille dera seu amor; por mim aquilo que não tens: ternura;
era em costumes seu digno parceiro, meu irmão mandou (este que aqui passa)
como combina a erva com a flor; para que eu venha de minha honra segura;
um e outro de coração ligeiro, e agora quer que o bom encontro eu faça
um pérfido como o outro e traidor; de ti, que estimo mais que outra ventura;
e encobria um e outro o seu defeito, e bem a tempo o faz; pois, mais tardando,
outrem lesando sob cortês aspeito. morreria, a ti, senhor, desejando. -
7 Como vos digo, o cavaleiro ia 13 E continua a donzela impudente,
num grande corcel e com pompa armado; que em acções mais que a raposa descai,
a pérfida Orrigille por companhia, as suas queixas tão astutamente
com vestido azul, a ouro bordado, que faz que a culpa em Grifone recai.
e dois escudeiros, dos quais se servia Faz-lhe crer que o outro é mais que parente,
para levar elmo e escudo, tinha ao lado; que ossos e sangue tem do mesmo pai;
como quem para si os olhares cobiça, seus enganos tão bem tecidos são
ia a Damasco justar numa liça. que faz parecer Lucas falso e João2 •
Uma esplêndida festa, que fazer 14 Não só da perfídia não repreende
mandou o rei de Damasco esse dia, Grifon a dama, iníqua mais que bela,
era o motivo de ali comparecer não só a vingança não empreende
cada um mais ornado que podia. naquele que era adúltero daquela,
Assim que a rameira vê aparecer mas muito acha que faz, se se defende
Grifone, teme insulto e felonia: de que todas as culpas lhe dê ela;
sabe não ser seu amante tão forte como se a um cunhado verdadeiro,
que em luta com o outro escape à morte. muito cordial é para o cavaleiro.
9 Mas sendo tão astuta e tão matreira, 15 Com ele segue, sem que mais se importe,
embora por dentro de medo trema, para a porta de Damasco, e ele lhe diz
afeiçoa o rosto e a voz amaneira, que ali em grande festa tinha a corte
parecendo que coisa nenhuma tema. o rei da Síria, de rica matriz;
Com o drudo combina a maroteira, e que para todos, não importa a sorte,
corre e, fingindo uma alegria extrema, seja cristão seja de outro cariz,
os braços abertos a Grifon estende, tem dentro e fora a cidade segura,
deita-lhos ao pescoço e dele pende. por todo o tempo que esta festa dura.
10 Depois, juntando afectuoso gesto 16 Porém de prosseguir não tenho intento
à suavidade e ternura da voz, a história da fraudulenta Orrigille,
disse a chorar: - Senhor meu, tão modesto que em seus dias não só um traimento
prémio por tanto amar tenho de vós? fizera aos amantes, mas mais de mil,
Só, sem ti, há um ano e mais o resto sem voltar a ver um cento e outro cento,
que estou, e a ti não te parece atroz? ou mais do que as faúlhas do brasil
Se estivesse a esperar-te com porfia, por eles ateado, que junto aos muros
não sei se chegaria a ver tal dia! de Paris causavam danos e apuros.
25 8 ORLANDO FURIOSO

17 Deixei-vos eu, quando assaltando estava 23 Aquilo que o tigre ao rebanho faz
Agramante uma porta dessa terra, no campo que Hircânia7 ou Ganges abrange,
que sem guarda estaria, acreditava; ou a cabras e ovelhas lobo voraz
mas, mais do que ali, nada o passo cerra, no monte que Tifeu pisa e constrange8 ,
pois em pessoa Carlos a guardava, assim fez o pagão, àquele fugaz
e tinha consigo os mestres da guerra: esquadrão não direi, não direi falange,
dois Guidi e Angelini, um Angeliero, melhor é dizer vulgo e populaça,
Avino, Avolio, Otone e Berlingiero. que antes de nascer já a morte ameaça.
1s Perante Carlos, e o rei Agramante, 24 A nenhum dos que encontra vê a fronte,
um grupo e outro quer-se fazer ver, de tantos que corta, fende e golpeia.
pois louvor e recompensa abundante Pela rua que se dirige para a ponte
se pode ganhar, cumprindo o dever. de Saint Michel, que de povo vai cheia,
Dos Mouros o valor não foi bastante corre o feroz e cruel Rodomonte,
que paga do seu dano possam ter; e a espada sangrenta em redor meneia:
deles são muitos a quem morrer toca, não respeita nem servo nem senhor,
para os outros exemplo de audácia louca. nem poupa o justo mais que o pecador.
19 A chuva de setas lembra granizo 25 A religião não salva o sacerdote,
que do muro ao inimigo disparte. e no garoto a inocência não estrova;
O amplo grito é do terror aviso nem em dama ou donzela encontra dote
que faz a nossa e a contrária parte. de belo rosto ou olhos que o demova;
Carlos e Agramante deixar preciso, não há velho a quem não zurza ou enxote;
que eu vou cantar o africano Marte, o Sarraceno aqui não dá mais prova
Rodomonte, que, terrível e horrendo, de valor que de grande crueldade:
pela cidade de Paris vai correndo. não distingue sexo, classe ou idade.
20 Não sei, senhor, se inda estais recordado
deste sarraceno de si seguro,
que seu bando morto tinha deixado
entre o baluarte segundo e o muro;
pelas chamas rapaces foi devorado,
jamais houve espectáculo tão obscuro.
Disse eu que ele entrou de um salto na terra3,
passando o fosso que a cinge e encerra.
21 Já conhecido o sarraceno atroz,
'
pelas estranhas armas, pela escamosa pele4 ,
os velhos e o povo menos feroz5
atentos estavam a notícias dele;
ergueu-se um pranto, um grito, uma alta voz,
um bater de mãos que às estrelas se impele;
quem pôde fugir fora não ficou,
nos templos e nas casas se fechou.
22 A feroz espada a poucos dá mercê,
em roda a girando o Mouro robusto.
Aqui fica com meia perna um pé,
lá uma cabeça salta do busto;
depois cortar um pelo meio se vê,
da cabeça à cinta outro fender justo;
de tantos que mata, fere e separa,
a nenhum deles assinala a cara6 •
260 ORLANDO FURIOSO

26 Não só ao sangue humano a ira estende 2s Enquanto aqui com a espada, o maldito,
o ímpio rei, que é dos ímpios senhor, e com o fogo, fazia tal guerra,
mas às casas, nas quais fogos acende, se fora Agramante viesse ao conflito9 ,
como aos templos, de que é profanador. perdia-se em tal dia aquela terra;
As casas tinham, por quanto se entende, mas não conseguiu; tal foi-lhe interdito
quase todas da madeira o vigor: pelo paladim que vinha de Inglaterra,
assim seria, que em Paris, agora, e gente inglesa e escocesa trazia,
cada seis em dez inda assim vigora. que o Silêncio e o arcanjo conduzia.
27 Não pareça, embora já tudo arda, 29 Quis Deus que ao ter entrado Rodomonte
que tão grande ódio assim saciar-se possa. em Paris, que tanto fogo ali fez,
Vê onde prender as mãos, estando em guarda junto aos muros a flor de Claramonte,
para tombar uma casa a cada mossa. Rinaldo, chegou com o grupo inglês.
Senhor, não duvideis que uma bombarda Três léguas atrás passara ele a ponte,
nunca em Pádua vistes assim tão grossa caminho à esquerda tomando, de viés;
que possa deitar tanto muro ao chão, para, querendo ele os bárbaros investir,
como o rei de Argel num só abanão. o rio disso o não pudesse impedir.
30 Mandara seis mil infantes archeiros
sob o altaneiro pendão de Odoardo 1º ,
e dois mil cavalos ou mais, ligeiros,
sob o comando de Ariman galhardo 1 1 ;
dissera que fossem pelos carreiros
que levam de Paris ao mar picardo 12,
e a porta Saint Martin e Saint Denis 13
entrassem, em socorro de Paris.
31 Carruagens e mais impedimentos
mandou que levassem por essa estrada.
Ele, com todo o resto dos regimentos,
fez, rodeando o alvo, a caminhada.
Levavam naves, pontes, instrumentos
para passar o Sena, de larga alçada.
Passado o rio, abatem os pontões;
de Ingleses e Escoceses fez esquadrões.
32 Mas primeiro Rinaldo, os comandantes
e barões tendo em redor reunido,
nas margens, do que o plano mais bojantes,
e em que por todos era visto e ouvido,
disse: - As mãos a Deus erguei, viajantes,
por vos ter até aqui conduzido,
para, depois de muito escasso suor,
mais que a qualquer nação vos dar honor.
33 Por vós serão dois príncipes salvados,
se a cidade livrais do assédio forte:
o vosso rei, o qual sois obrigados
a defender da servidão e morte,
e um imperador entre os mais louvados
que alguma vez no mundo houveram corte;
e mais reis, duques, marqueses, barões,
senhores, cavaleiros de mais nações.
CANTO XVI 261

34 Salvando uma cidade, não apenas 40 Sem estrépito algum, sem qualquer rumor,
os Parisienses gratos serão, faz a tropa tripartida avançar:
que, muito mais do que pelas próprias penas, junto ao rio a Zerbino dá o honor
temerosos e apoquentados estão de primeiro os bárbaros atacar;
por suas mulheres, crianças pequenas, os da Irlanda, com desvio maior,
que idêntico perigo correndo vão, pel�s campinas devem atravessar;
como as santas virgens enclausuradas, cavaleiros e infantes de Inglaterra,
por não serem de seu voto privadas 14 : com o duque de Lencastre, ao meio cerra.
35 digo eu, salvando vós esta cidade, 41 Tendo indicado a todos seu destino,
não são só de Paris os obrigados, cavalga o paladim junto à ribeira,
mas toda a terra da proximidade. e passa à frente ao bom duque Zerbino,
Não falo só dos povos mais chegados; que vai comandando a sua fileira;
pois todas as terras da cristandade em breve ao rei de Orão e ao rei Sobrino 1 7
cá têm cidadãos seus deslocados; e restantes companheiros se abeira,
por isso, vencendo, em obrigação que estão a meia milha dos de Espanha,
mais terras que a França vos ficarão. de guarda àquele lado da campanha.
36 Se davam os antigos uma coroa 42 O exército cristão, que companhia
a quem salvava a um cidadão a vida, fiel e segura houvera por escudo,
pois que digna mercê a vós se doa, tendo o Silêncio e o anjo como guia,
salvando multidão tão desmedida? já não foi capaz de manter-se mudo.
Se, por inveja ou tibiez, tão boa Vendo o inimigo, fez gritaria,
e tão santa obra for impedida, das trompas fez ouvir o som agudo,
acreditem: tomado aquele muro, e, com grande barulho e atropelo,
nem Itália nem outro está seguro; aos ossos dos Sarracenos deu gelo. 1 8
37 nem Alemanha, ou parte onde se adora 43 Rinaldo para a frente o cavalo impele,
aquele que quis por nós na cruz ter morte. e, para a usar, já sua lança enresta,
Nem penseis que os Mouros se vão embora, os Escoceses deixando para trás dele;
nem que o mar torna vosso reino forte: tanto a demora em lutar o molesta.
pois se outras vezes saíram para fora Como uma rajada que o vento expele
de Gibraltar, do hercúleo suporte 1 5, e atrás de si a tempestade alesta,
para ir buscar presas às ilhas vossas, tal se adianta o cavaleiro galhardo,
que farão, se donos das terras nossas? dando esporas ao seu corcel Baiardo.
38 Mas, mesmo que nem honra, nem nenhum 44 Ao aparecer o paladim de França,
proveito vos animasse esta empresa, mostram os Mouros grande agitação:
um socorrer outro é dever comum vê-se em todas as mãos tremer a lança,
de quem fizer de uma Igreja a defesa. nos estribos os pés, as coxas no arção.
Que o inimigo não vençamos, um Só em rei Puliano 1 9 não há mudança:
de vós não tema; e com pouca despesa 1 6 ; de Rinaldo não conhece a feição;
parecem-me todos impreparados, sem pensar que tão grande estorvo tope,
sem força e coragem, e mal armados. - a ele incita o cavalo a galope;
39 Pôde com estas, e melhores razões, 45 ao partir, toda ao corpo a lança cinge,
com seu falar expedito e clara voz e sobre si dobra a sua pessoa;
incitar os magnânimos barões o corcel com duas esporas atinge,
Rinaldo, e aquele exército feroz; e as rédeas à vontade lhe afeiçoa.
Foi, qual provérbio, tocar aguilhões A outra parte o seu valor não finge,
ao bom corcel que já corre veloz. mostrando em actos o que o nome soa:
Findo o discurso, mandou as fileiras quanto na justa tem graça e tem arte
avançar devagar sob as bandeiras. o filho de Amon, ou melhor, de Marte20 •
262 ORLANDO FURIOSO

46 No apontar dos golpes foram pares, 52 Cada um deu ímpeto ao seu cavalo
levando ambos os ferros à cabeça; ao chegar perto; e fechou de repente
em virtude e armas, dissimilares: o espaço breve, o pequeno intervalo
um morto fica, outro o passo não cessa. que ali havia entre uma e outra gente.
Do valor há que dar mais claros ares Estranho era tal baile e estranho dançá-lo,
do que a lança querer enristar à pressa; pois feriam os Escoceses somente:
bom é também da sorte ter sinal; somente os pagãos eram destruídos,
sem ela o valor pouco ou nada vale. como se a morrer ali conduzidos.
47 O paladim a lança recupera, 53 Mais frio que gelo está cada pagão,
e contra o rei de Orão logo a embica, e cada escocês mais quente que a chama.
pessoa em quem coragem não impera, Crêem os Mouros que cada cristão
mas que é em ossos e carne bem rica2 1 • como Rinaldo seus golpes derrama.
Entre os bons golpes este se enumera, Fez avançar Sobrino o seu esquadrão,
mesmo se ao fundo do escudo o aplica; sem aguardar que algum arauto brama;
quem o não louvar, de culpa o exima, esta esquadra que a outra era melhor
pois não podia chegar mais acima. em capitão, em armas e valor.
48 O escudo não impede que o golpe entre, 54 De África esta era a mais valiosa gente,
embora de aço fora, e dentro palma, embora grande coisa ela não valha.
nem que do corpanzil faça pelo ventre Avança Dardinel seu contingente,
sair a desigual, pequena alma. mal armado e pouco usado à batalha;
Crera o corcel levar tal peso, mentre apesar de ele usar elmo luzente,
durasse o dia; dele se desaçalma, e também couraça e cota de malha.
e a Rinaldo mentalmente agradece, Eu creio que a quarta melhor seria,
que assim desse fardo o desentorpece. que com lsoliero22 atrás aparecia.
49 Rota a hasta, Rinaldo o corcel volta 55 Trason, duque de Moray23, inflamado,
tão ágil que parece que asas veste; que esta ocasião para ter glória agarra,
e onde vê a multidão mais envolta passando aos seus guerreiros tal recado,
impetuoso o paladim investe. para que vão à luta levanta a barra,
Gira Fusberta sanguinosa em volta, logo que viu ter na batalha entrado
parecendo que em vidro os golpes asseste: Isolier, com os homens de Navarra.
têmpera de ferro a ela não se esquiva, Ariodante24 traz seu soldadesca,
sem que atrás vá achar a carne viva. duque de Albany nomeado de fresco.
50 Acha pouca têmpera e férrea barreira 56 O alto rumor de trompas e farromba,
a espada cortante, em oposição; de tambores e bárbaros instrumentos
mas escudos, ou de couro ou de azinheira, que se repercutem por vale e comba,
turbante e chumaçado jaquetão. de arcos, rodas, máquinas e tormentos25 ,
Não admira que Rinaldo à poeira e aqueles, pelos quais o céu mais ribomba,
mande, e fure e corte onde deita a mão; gritos, tumultos, gemidos, lamentos;
à espada não têm mais resistência produzem um alto som que parece
que erva à foice ou cevada à inclemência. quando o Nilo, ao cair, tudo ensurdece26 •
51 Estava a primeira frente destroçada, 57 Grande sombra em redor o céu ajeira,
quando Zerbin e a retaguarda chega. das setas que se entrecruzam no ar;
O cavaleiro, em frente à grande armada, hálito, vapor do suor, poeira,
já na sua lança enristada pega. fazem no tetro céu névoa pairar.
A gente ao seu pendão associada Um exército se afasta, outro se abeira;
com não menor denodo se lhe agrega: um segue o outro que se quer escapar;
eram como lobos, quais leões eram, há quem no sítio ou não longe ficou
que atacar cabras e ovelhas vieram. morto, onde há pouco o inimigo matou.
CANTO XVI 263

58 Onde um esquadrão já cansado se afasta, 59 Zerbino dava do seu valor prova,


outro avança que ali não estava antes. como nunca dera um varão tão jovem;
A gente armada é cada vez mais basta: às hostes pagãs dá morte e dá sova,
mais cavaleiros lá, aqui infantes. destruindo as que em torno de si chovem.
A terra onde se luta é rubra pasta: Ariodante à sua gente nova
cor mudaram os prados verdejantes; mostra toda a arte, para que a comprovem;
onde amarelas flores e azuis havia, temor e admiração por si desvela
homens e cavalos mortos se via. nos homens de Navarra e de Castela.
264 ORLANDO FURIOSO

60 Chelindo e Mosco, os dois filhos bastardos 64 Deixou o cavalo, e, embora tencione


do morto Calabrun, rei de Aragão, escapar rastejando, não conseguiu,
e Calamidor, noto entre os galhardos, pois deu-se o caso de o duque Trasone
que Barcelona tinha por nação, passar sobre ele, e assim o comprimiu.
para trás deixaram seus homens, mais tardos; Ariodante e Lurcanio, onde se entrone
e, crendo ganhar glória e galardão espessa gente que Zerbino engoliu,
por Zerbin matar, foram atacá-lo; com mais cavaleiros vão ter com ele,
e nos flancos lhe feriram o cavalo. ajudá-lo a montar outro corcel.
61 Passado por três lanças morto cai, 65 Brandia Ariodante a espada em giro:
mas Zerbino dum salto põe-se em pé; deu a Artalico e Margano lição;
para o seu cavalo morto vingar, vai mais pnrém Etearco e Casimiro
para onde aqueles que o mataram vê: sentiram a força daquela mão:
primeiro Mosco ao caminho lhe sai, feridos, os primeiros fazem retiro,
jovem ingénuo que apanhá-lo crê; os outros dois, mortos, jazem no chão.
fere-o de ponta, trespassa-lhe o flanco, Lurcanio, fazendo ver quanto é forte,
e da sela o faz cair, frio e branco. fere, esmurra, derruba e leva à morte.
27
62 Ao ver assim cair, tão de repente, 66 Não pensai, senhor , que com menos sanha
Chelindo seu irmão, de furor pleno, se luta nos campos que junto ao rio,
chegou-se a Zerbino a fazer-lhe um rente; nem que para trás o exército se acanha,
o freio este tomou do sarraceno, que o duque de Lencastre dirigiu.
deixando o cavalo no chão assente: Assaltou este as bandeiras de Espanha,
não comeu mais cevada nem mais feno; e muito equilíbrio a luta surtiu:
Zerbino com tal força golpeou infantes, cavaleiros e capitães,
que dum só corte ele e o dono matou. eram de seu honor bons guardiães.
63 Quando Calamidor tal golpe admira, 67 À frente vem Oldrado e Fieramonte,
volta a brida para se afastar daqui; de Gloucester duque e de York, aliás;
Zerbino por trás estocada lhe atira, também Ricardo, Warwick é sua fonte,
dizendo: - Espera, traidor, espera aí! - e o duque de Clarence, Enrigo audaz28 •
Não vai o golpe aonde fez a mira, Matalista e Follicon hão defronte,
porém não se afasta muito dali; e Baricundo e todo o seu sequaz.
não lhe acertou, mas o corcel colheu Reina o primeiro Almeria, o segundo
sobre a garupa, e no chão o estendeu. - Granada, e tem Maiorca Baricundo29 •
266 ORLANDO FURIOSO

68 A fera luta andou um tempo par, 74 Ali não demora; a espada volteia,
distinguindo-se ali pouca vantagem. cortando elmos e cotas de malha;
Viam-se uns e outros ir e voltar, frontes aqui, faces ali golpeia,
como em Maio as searas com a aragem, aqui cabeça, além um braço talha;
e como na praia se move o mar, a este e àquele sangue e alma escaceia,
que vai e vem em sua dupla viagem. e daquele lado põe fim à batalha,
Depois que a Fortuna um pouco brincou, onde a ignóbil e assustada frota
nociva aos Mouros por fim se tornou. fugia em desordem, desfeita, rota.
69 O bom duque de Gloucester se adestra, 75 Entrou na batalha o rei Agramante,
e Matalista faz voar do arção; para se mostrar e à gente fazer estrago;
ferindo Follicon na espádua destra tem com ele Baliverzo, Farurante,
Fieramonte, atirou-o este ao chão; Prúsias e Soridano, e Bambirago3 1 •
este pagão e aquele se sequestra, E gente sem nome há também bastante,
e entre os Ingleses se lhes dá prisão. poderão fazer com seu sangue um lago;
Pelo duque de Clarence, Baricundo melhor eu contaria cada folha,
no mesmo instante abandona este mundo. quando as árvores o Outono desfolha.
10 Começam os pagãos a assustar-se, 76 Agramante, do muro, grande banda
mas entre os fiéis o ardor a florir; de infantes e cavalos traz por escolta,
vêem-se os primeiros a acanhar-se, os quais com o rei de Fez32 logo manda
a desorganizarem-se e a fugir, que atrás dos pavilhões dêem a volta,
e os segundos com ímpeto a lançar-se, para irem fazer frente aos da Irlanda,
ganhar terreno, pressionar, seguir. cuja hoste via mui desenvolta,
Se auxílio não lhes tivesse aparecido, após grandes voltas e enrolamentos,
desse lado estava o campo perdido. a vir ocupar os alojamentos.
11 Mas Ferraú, que sempre esteve à beira 77 O rei de Fez a executar foi lesto,
do rei Marsilio, ao seu lado direito, que a demora prejuízo traria.
quando viu fugir aquela bandeira, Reúne entretanto Agramante o resto;
e o seu exército já meio desfeito, divide os esquadrões, que à batalha envia.
pica o cavalo e, onde viu mais guerreira Ele vai ao rio, onde é manifesto
a batalha, lá foi; chegou a jeito que sua presença se requena;
de ver do cavalo cair por terra, pois já dali um mensageiro acorre
de testa aberta, Olimpo da la Serra, do rei Sobrino, a ver quem o socorre.
n um mancebo que com seu doce canto, 78 Levava consigo mais de metade
ao da cítara cornuda30 parecido, de todo o exército, e só do rumor
um coração enternecia tanto, tremeram os Escoceses de ansiedade,
mas era como pedra endurecido. abandonando a ordem e o honor.
Feliz fora, se lhe bastara quanto Zerbin, Lurcanio e Ariodante há-de
honor tal lhe dava, e houvesse esquecido ser quem enfrenta a sós este furor;
escudo, arco, flecha, cimitarra e lança, Zerbin, estando apeado, morreria,
que o fizeram morrer jovem em França! se Rinaldo a tempo não lhe acudia.
73 Quando assim Ferraú o viu tombar, 79 O paladim já tinha, mais à frente,
muito o amando e tendo em muita estima, feito fugir de fileiras um cento.
mais de dor se sentiu amargurar Agora que a notícia lhe é patente
que por outros mil a quem morte oprima; que Zerbin está em perigo, é seu intento
quem o matou não tarda a atacar: juntar-se-lhe entre a cireneia gente33 ,
fende o elmo desde a parte de cima, onde está sem ter do exército alento;
atravessa a fronte, os olhos e a cara, volta o cavalo, e onde o povo escocês
até ao peito; morto, no chão pára. viu fugir, para lá caminho fez.
CANTO XVI 267

80 Onde os Escoceses em fuga correndo 85 Enquanto fora com cruel batalha,


vê, pára, e grita: - Mas para onde andais? de ódio, raiva, furor, tudo se ofende,
Por que tal cobardia em vós estou vendo, Rodomonte em Paris o povo talha,
que a tão vil gente o campo abandonais? as casas e os sacros templos acende.
São estes os troféus com que pretendo Carlos, que em outra parte a luta atalha,
ver que ao regressar vossa igreja ornais? tal não vê, nem nova disso apreende;
Qual honra e glória tereis conquistado, Odoardo e Arimanno entram Paris35 ,
se o filho do rei deixais só e apeado? - com gente de britânica raiz.
81 Dum seu escudeiro uma grande hasta aferra, 86 Chega-se um pagem de pálido vulto,
vendo perto Prúsias, o soberano que quase não respira de cansado.
das Alvaracchie, e a hasta lhe enterra, - Ai de nós, senhor, ai! - diz em tumulto,
e do arção o leva morto ao plano. antes de outra coisa ter pronunciado;
Morto, Agricalte e Bambirago aterra; - Hoje o Romano Império, hoje é sepulto,
depois fere asperamente Soridano; Cristo hoje tem seu povo abandonado:
ter-lhe-ia como a outros dado a morte, o demónio do Céu quis descer hoje,
se fosse no ferir a lança mais forte. para que nesta cidade Ele não se aloje.
82 Fusberta empunha, que a hasta rompeu, 87 Satanás36 (pois mais ninguém pode ser)
e atinge Serpentino da la Stella. destrói e arruina a cidade infeliz.
Armas fadadas tinha; recebeu Volta-te, para os rolos de fumo ver,
porém tal golpe que o tirou da sela. dos quais a grande chama é geratriz,
Assim ao duque dos Escoceses deu e escuta o pranto para o céu a crescer;
à sua volta ampla largueza e bela; e façam fé no que o servo vos diz.
e já à vontade um corcel podia É um só que a destrói a ferro e fogo,
montar, dos que tinham sela vazia. e dos que encontra a nenhum escuta rogo. -
83 E mesmo a tempo montado se achou, 88 Como alguém que primeiro ouve o tumulto,
que talvez não montasse, se tardava; dos sacros sinos o bater constante,
Agramante e Dardinello chegou, e veja o fogo, a nenhum outro oculto
34
Sobrino o rei Balastro acompanhava. senão a si, para quem é mais tocante;
Mas ele, que na hora certa montou, assim é Carlos, ao saber do insulto,
para cá, para lá, a espada manejava, e vendo-o de seus olhos adiante:
mandando este e aquele para o fundo Inferno, logo a força da sua melhor gente
levar notícias do viver moderno. manda para onde o grande rumor sente.
84 O bom Rinaldo, que a deitar por terra 89 Dos paladinos e guerreiros mais dignos,
os mais perigosos não queria ser tardo, Carlos leva consigo grande parte,
contra o rei Agramante a espada aferra, e faz para a praça encaminhar os signos37 ,
que lhe parecia feroz e galhardo pois o pagão fora para aquela parte.
(sozinho, mais que mil fazia guerra); Ouve o rumor, vê os horríveis signos38
a atacá-lo se lança com Baiardo: da barbárie que humanos membros parte.
enquanto o fere empurra-o de través, Mais ora não: que volte uma outra vez
mandando-o com o cavalo ao revés. quem esta história ouvir não contrafez.
268 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 21
Rama: Ramla, pequena cidade da Síria. Em ossos [. . .] rica: cf. XIV: 1 7 (era q uase um gigante) .
2 22
L ucas [. . .} João: S. Lucas e S. João, evangelistas. lsoliero: cf. XIV: 1 1 e 20.
3 23
Terra: Paris. D uq ue de Moray: cf. X:85.
4 Escamosa pele: de dragão, ou serpente (cf. XIV: 1 1 8). 24 Ariodante: cf. VI: 1 5 e X:86.

5 Povo menos feroz: que não combatia (velhos, mulhe­ 25 Mdq uinas e tormentos: estruturas para escalar e assal­
res e crianças). tar, e para arremessar pedras.
6 Nenh um [. . .} cara: porque todos estão em fuga, a 26
Quando [. .. ] ens urdece: as cataratas do Nilo produ­
todos fere pelas costas. zem ruído ensurdecedor.
7 27
Hircânia: província do Norte da Pérsia, junto ao Senhor: cf. nota a 1:40, Ariosto dirige-se de novo ao
mar Cáspio. cardeal Ippolito.
8 Monte [. . .} constrange: monte da ilha de lschia, que 28
À .frente [. . .] a udaz: personagens já identificadas em
esmaga T ifeu, ser monstruoso que atacou Júpiter. X:78.
9 29
Fora [. . .] conflito: se apertasse o cerco no exterior. Matalista [. . .] Baric undo: já referidos em XIV: 14, 16
e 1 3, respectivamente. Note-se que, ali, Ariosto atribuía
10
Odoardo: cf. X:83. diferentemente os reinos.
11
Harriman galhardo: cf. X:8 1 . ° Citara corn uda: porque as extremidades são encurva­
3

das como cornos.


12 Mar picardo: da Picardia.
31
Baliverzo [. .. ] Bambirago: já citados em XIV:24, 2 1 ,
13
Porta [. . .} Denis: portas orientais de Paris. 27, 22, e XV:6, respectivamente.
14 Santas [. . .] privadas: as monjas em clausura nos con­ 32
Rei de Fez: Malabuferso (cf. XIV:22).
ventos, por não verem violado o seu voto de castidade.
33
Cireneia gente: da Cirenaica, península da Líbia.
1 5 Hercúleo s uporte: colunas de Hércules (Gibraltar).
34 Rei Balastro: cf. XIV:22.
16
Po uca despesa: pouco dispêndio de esforço.
35 Odoardo [. ..] Paris: cf. 30.
17
Rei [. .. ] Sobrino: cf. XIV: 1 7 e 24, respectivamente.
36 Satands: Rodomonte.
18
Aos ossos [. .. ] gelo: fê-los gelar de medo até aos ossos.
37
Sign os: insígnias.
19
Puliano: rei dos Nasamões (cf. XIV:22).
38
Sign os: sinais.
20
A o u tra [. . .] Marte: Rinaldo não encena o gesto,
como o mouro parece fazer, usando apenas a sua bravu­
ra, comparável à do deus da guerra (Marte).

CANTO XVII

1 O justo Deus, se a nossa iniquidade 4 a quem parece não bastar a fome,


da remissão já passou o sinal, e que em seu ventre caiba tanta carne;
para demonstrar ter igual à piedade outros chamam, de entre quem melhor come,
a justiça, chega a dar pedestal de longes bosques, para que nos descarne8 .
a tiranos de atroz monstruosidade, Do Trasimeno as ossadas se some
e engenho lhes dá para fazer o mal. às de Canne e às de Trebbia9, e se escarne
Por isso Mário e Sila pôs no mundo, o que são ao pé daquelas que grassam
dois Neros e um Caio furibundo, onde Adda, Mella, Ronco e Taro passam 1°.
1
2 um Domiciano e o último Antonino ; 5 Permite Deus que sejamos punidos
e trouxe das imundas plebes gebas, por povos talvez do que nós piores,
ao império o elevando, Maximino2 ; pelos nossos muitos e descomedidos
mas antes fez nascer Creonte3, em Tebas; nefandos, e vergonhosos errores.
e Mezêncio deu ao povo agilino4, Tempo virá que a depredar seus lidos
que com sangue humano engordou as glebas; iremos nós, se então formos melhores,
e em tempos mais recentes deu a rodos e seus errores a ponto vão também
Itália, aos Hunos, Lombardos e Godos. de à Eterna Bondade darem desdém.
3 O que direi de Átila5 ? E do iníquo 6 Devia ter seu excesso e indecoro
Ezzelin da Roman6 , e outro cento, de Deus perturbado a serena fronte,
que, após um longo andar sempre em oblíquo7 , pois sua terra invadiu o Turco e o Mouro,
manda Deus para castigo e para tormento? fez que estupro, morte, e rapina afronte;
Não só no tempo antigo houve profícuo mais que outros danos, provocou mais choro
exemplo; hoje temos claro experimento: o fruto do furor de Rodomonte.
a nós, grege inútil de mal-nascidos, Disse eu que Carlos dele notícia ouviu,
dá por guardas lobos enraivecidos e à praça onde estava se dirigiu.
270 ORLANDO FURIOSO

7 Vê pelo caminho gente espedaçada, 9 Para ali viera muito populaça,


casas queimadas, os templos desfeitos, esperando ajuda, buscar acoiteza;
grande parte da terra desolada: pois mui forte em paredes era o paço,
nunca se viram tão cruéis efeitos. dando abrigo para uma longa defesa.
- Por que fugis vós, ó gente assustada? Rodomonte, de ira louco e relasso,
Não há ninguém que vingue seus despeitos? sozinho toda a praça tinha presa:
Que cidade, que refúgio vos resta, com uma mão, que em fúria se encarniça,
quando houverdes, cobardes, perdido esta? roda a espada, com a outra o fogo atiça.
Pois um só homem na cidade preso, 10 Da casa real 12, tão alta e sublime,
fechado em muros, sem fugir poder, fere e faz ressoar a grande porta.
dela partirá escorreito e ileso, Atira a gente tudo o que a encime,
depois de todos vós fazer morrer? - ameias, torres, e já se dá por morta.
Tal dizia Carlos, que, de ira aceso, Do paço estragar ninguém se reprime;
em tanta vergonha não queria crer. madeiras, pedras, tudo se deporta,
E chegou ao ponto em que, junto à corte, lajes, colunas e traves douradas,
viu o pagão dando à sua gente a morte. que por seus avós foram tão estimadas.
CANTO XVII 271

11 À porta está o rei de Argel, luzente 17 Mas agora, senhor, descansarei


de aço claro a cabeça armada e o busto, de falar de ira e de cantar a morte;
como das trevas saída serpente, que por agora muito já falei
após lá deixar seu couro vetusto 13, do sarraceno tão cruel e forte;
do novo orgulhosa, e que assim se sente pois hora é de voltar onde deixei
cheia de vigor no corpo robusto; Grifone, em Damasco, perto da corte,
três línguas vibra e tem nos olhos fogo; com Orrigille traidora e o vilão,
por onde passa, tudo foge logo. de facto seu amante e não irmão.
12 Pedra, ameia, trave, arco ou catapulta, 1s Que é das mais ricas terras do Levante,
tudo o que sobre o sarraceno caia, das mais populosas e ornamentadas,
para a sangrenta mão deter não resulta dizem de Damasco; a qual é distante
que a porta não corte, espedace e extraia; de Jerusalém bem sete jornadas,
tanta janela no palácio avulta e em planície fértil e abundante
que a ver e a ser visto o olhar se espraia fica, sem ter estações diferenciadas.
pelos rostos tingidos da cor da morte, A ela é negado o raio primeiro
dos quais se encontra cheia toda a corte. da aurora, por ter perto um outeiro.
13 De gritos ressoar se ouvem efeitos 19 Dois cristalinos rios pela cidade
pelos altos tectos, feminis, plangentes: vão regando, por diversos canais,
mulheres aflitas, que batem nos peitos, de jardins uma grande infinidade,
correm pelas salas, pálidas, dolentes; de flores e frondes privados jamais.
beijam ombreiras e nupciais leitos, Mover moinhos, diz-se, a quantidade
que em breve vão deixar para estranhas gentes. podia que ali há de águas florais;
A tal perigo tinha a coisa chegado quem pelas ruas vai, das casas para fora,
quando o rei surgiu, com os barões ao lado. sente vir cheiros que com gosto odora.
14 Olhou Carlos para os ânimos agrestes,
que a trabalhos já se acharam defronte.
- Não vos lembrais que comigo estivestes
contra Agolante (disse), em Aspramonte? 14
São já vossas forças tão pouco prestes
que, se aquele matastes, Troiano e Almonte, -�
mais cem mil, um só ora receais,
tendo ele aos outros sangue e raça iguais?
15 Por que devo ver ora menos forte
vosso ardor do que vi naquela hora?
Mostrai a este cão o vosso porte,
a este cão que aqui homens devora.
Coração heróico não teme a morte,
se bem morrer, a morte não deplora.
Duvidar não posso, se aqui vos vejo:
sempre convosco a vitória festejo. -
16 Findo o falar, esporeia o alazão,
e de hasta baixa ao sarraceno vai.
O paladino Uggiero toma acção,
e Namo; e Oliviero não se retrai;
Avino, Avolio, e Berlingier lá vão,
com Otone 15 (um sem outros não me sai);
todos feridas deram a Rodomonte,
no peito, flancos, braços, e na fronte.
272 ORLANDO FURIOSO

20 Toda coberta a rua principal 23 Foi-lhes contando que o rei Norandino,


está de panos de alegre colorido; de Damasco e da Síria senhoria,
de erva odorosa e vário matagal mandou o conterrâneo e o peregrino 1 7 ,
está a terra e cada muro escondido. que ordem tivesse de cavalaria,
Às portas e janelas um estendal para o torneio convidar que, matutino,
de tapetes e de fino tecido. no dia a seguir na praça faria;
E muitas belas damas de cambraias se valor tinham igual ao semblante,
e gemas ornadas, e lindas saias. podiam mostrar sem ir mais adiante.
21 Não se vê porta em que não se recorte 24 Embora Grifon não para essa acção
festas ou bailes, ou outros regalos; ali viesse, ao convite se atém;
pelas ruas o povo de melhor sorte16 pois, quando se apresenta ocasião
passeia bem arreados cavalos; de valor mostrar, nunca desconvém.
mais gosto de olhar dava a rica corte Depois perguntou-lhe qual a razão
de senhores, de barões e de vassalos, daquela festa e se ela sobrevém
de pérolas, de ouro e de gemas cheia, todos os anos, ou se é coisa nova
da Índia e das costas da Eritreia. do rei, que os seus queira ver fazer prova.
22 Vinha Grifone e sua companhia 25 Responde o cavaleiro: - A bela festa
dum lado e de outro a mirar tudo bem, há-de ser feita em cada quarta lua
quando um cavaleiro os parou na via das que vierem a começar desta,
e os convidou para o palácio que tem; que esta é a primeira que se efectua.
por ser seu hábito, e por cortesia, É em memória de ter salvo a testa
fez que tivessem tudo o que convém. tal dia o rei, por grande sorte sua,
Após tomarem banho os. banqueteia após quatro meses em dores e pranto
com suculenta e sumptuosa ceia. ter estado, vendo a morte perto tanto.
CANTO XVII 2 73

26 Mas, para contar-vos tudo plenamente: 2s Os pavilhões montámos, e as sombrinhas


Norandino, o rei, que assim se interpela, entre as árvores estendemos, muito ledos.
muitos anos nutriu amor ardente Preparam-se as fogueiras e as cozinhas,
pela graciosa, e mais que todas bela, tapetes, mesas, entre os arvoredos.
filha do rei de Chipre; e, finalmente, Enquanto o rei, pelas valadas vizinhas
tendo-a desposado, partiu com ela: andava a ver, e nos bosques mais quedos,
cavaleiros e damas de companhia se encontrava cabras, gamos ou cervos;
levando, a caminho da Síria ia. levando o arco, iam com ele dois servos.
27 Depois de já estarmos a plena vela 29 Enquanto à espera estamos, discorrendo,
longe do porto, no Cárpato iníquo 18 , que o rei regresse de caça provisto,
levantou-se uma tão grande procela vimos o Orco20 para nós vir correndo
que assustou até o mestre conspícuo 1 9 • à beira-mar, terrível e imprevisto.
Noites e dias errámos naquela Deus vos guarde, senhor, que o rosto horrendo
água temível por caminho oblíquo. do Orco jamais foi por olhos visto:
Demos à costa cansados, molhados, só pela fama conhecê-lo é mais certo
entre verdes colinas, frescos prados. do que para vê-lo chegar-se-lhe perto.
30 Não sei a que o tamanho é paralelo,
por ser desmesuradamente grosso.
Em vez dos olhos tem, qual cogumelo,
de ambos os lados sob a fronte um osso.
À beira-mar começámos a vê-lo,
para nós avançando como um colosso.
Tem presas salientes, como o porco2 1 ,
longo nariz, de baba o peito porco.
274 ORLANDO FURIOSO

31 Vem em corrida, e o focinho traz 37 Logo os barqueiros o avistam no lido,


como o cão de caça ao achar a pista. e o bote mandam a terra buscá-lo;
Cada um que o vê conforme é capaz quando por Norandino foi ouvido
foge, pálido, sem destino em vista. que o Orco ali viera para roubá-lo,
O vê-lo cego pouco nos compraz, sem hesitar, logo toma partido
pois, só farejando, é maior artista de, esteja onde estiver, ir procurá-lo.
que outros capazes de ver e cheirar, Perder Lucina dá-lhe angústias tais
e asas são precisas para lhe escapar. que ou a encontra ou não quer viver mais.
32 Mas fugir dele pouco nos satisfez, 38 Onde vê marcada ao longo da areia
pois mais que o vento sul era apressado. a fresca pegada, segue-a com a pressa
Éramos quarenta, e apenas dez
.
com que a amorosa raiva o espore1a,
.
se salvaram, para o navio indo a nado. e à gruta que eu disse chega depressa;
Com alguns sob o braço um molho fez, na qual com terror se espera e receia
e o peito não deixou desocupado; que o Orco de novo ali apareça:
encheu também a bolsa que trazia, cada som que nos chega faz lembrar-nos
como um pastor; de lado lhe pendia. que vem, esfomeado, para devorar-nos.
33 Levou-os para o covil o monstro cego, 39 Fortuna ao rei a ida facilita,
no antro junto ao mar, em penedia. pois a mulher sozinha em casa caça.
De mármore tão branco é o aconchego «Ó desgraçado, foge (ela lhe grita)!
como uma folha de escrita vazia. Ai se te apanha o Orco (ela ameaça)!»
Uma matrona em doloroso ofego «Apanhe (disse) ou não, já não se evita
e rosto sofredor ali vivia; que de mim miserável ele faça.
com ela estavam damas e donzelas Desejo me traz, não erro de via,
de idade e classe vária, feias, belas. que só com minha mulher morrer queria» .
34 Havia, perto da gruta em que estava, 40 Pediu depois que notícias lhe desse
junto ao cimo do penedo superno, dos que o Orco apanhou em comitiva;
idêntica àquela uma outra cava, de Lucina antes dos mais lhe dissesse
onde dos rebanhos tinha governo. se estava morta ou se a tinha cativa.
Tantos tinha que nem se enumerava, Diz-lhe a mulher, e um pouco se enternece,
sendo ele o pastor de Verão e de Inverno. que sossegue, que Lucina está viva;
Soltava-os e fechava a bel-prazer, nem receio há que morra em qualquer hora,
para se distrair, não para lucro ter. pois o Orco fêmea nunca devora.
35 A carne humana melhor lhe sabia, 41 «Testemunho disso em mim própria vês,
o que antes mostra de ao antro chegar; e em todas estas que aqui estão comigo;
pois três dos jovens que com ele havia nunca a mim e a elas mal ele fez,
come, engolindo-os sem os matar. desde que não saiamos deste abrigo.
Vai ao curral e uma rocha desvia: Quem tenta fugir fá-lo uma só vez,
tira o rebanho, e ali nos dá lar. pois ele lhe aplica fatal castigo:
Pascê-lo vai onde encontra ervas moles, ou enterra-as vivas ou encadeia,
enquanto toca uma gaita-de-foles. ou põe-as nuas ao sol sobre a areia.
36 Nosso rei, tendo à praia regressado, 42 Quando hoje para aqui trouxe a tua gente,
não tarda que seu dano compreenda; as mulheres dos homens não separou;
pois encontra silêncio em todo o lado, assim como os trouxe, confusamente
vazios abrigo, pavilhão e tenda. dentro da gruta todos os guardou.
Não percebe quem o tenha roubado, Sentirá pelo cheiro o sexo diferente.
e à praia o caminho, com medo, emenda; Que elas não morrem a certeza dou;
seus marinheiros vê que se encarniçam: os homens, sim, não têm escapadela:
levantam âncora e as velas içam. quatro ou seis por dia enfia na goela.
CANTO XVII 275

43 Levá-la é ideia que não perfilho 49 Guardado o rebanho, o Orco a nós vem;
nem te aconselho; podes contentar-te primeiro atrás de si a entrada fecha.
de não haver para a sua vida sarilho: Todos fareja; dois na mão sustém:
como nós aqui viverá, de igual arte. para cear, de carne já se apetrecha.
Mas vai-te, por Deus, vai-te embora, filho; Quando tal lembrança me sobrevém,
se o Orco aqui chega, vai devorar-te. inda o tremor e o suor não me deixa.
Chegando aqui, toda a parte fareja: Sai o Orco, e o rei a veste arregaça
sente até um rato que em casa esteja». de carneiro, e à sua dama abraça.
44 Responde o rei dali partir não querer 50 Em vez de sentir prazer e conforto
sem primeiro ter visto a sua Lucina; de aqui o ver, só aflição sentia:
e que mais queria ao pé dela morrer vê que ele vem para onde há-de ser morto,
que de viver longe dela ter sina. e de ela morrer não evitaria.
Quando ela viu nada poder dizer «Com todo o mal (dizia) que eu suporto,
que o demovesse da ideia mofina, senhor, maior era a minha alegria
para o ajudar pensa uma nova astúcia, por tu não te encontrares junto de nós
na qual põe muito empenho e muita argúcia. quando hoje nos raptou o Orco atroz.
45 Mortas em casa, tinha com fartura 51 Pois se o destino, que para mim pressinto
cabras, ovelhas, anhos a granel; de morte ter, era desgraça forte,
dela e das outras eram comedura, ter-me-ia, como é natural instinto,
do tecto pendendo mais que uma pele. doído só da minha triste sorte;
Deu a mulher ao rei muita gordura mas ora, que também serás extinto,
que um grande carneiro da tripa expele, mais me custa a tua que a minha morte».
com a qual se untou dos pés à cabeça, Mostrava anseio muito mais tirano
para que o seu cheiro já não se conheça. pelo de Norandino que pelo seu dano.
46 Depois que o mau cheiro ter lhe pareceu, 52 «A esperança (disse o rei) cá me fez vir
a que o fétido carneiro lhe sabe, que de tu e os outros salvar carrego;
deu-lhe a pele e nela ele se meteu, mais vale morrer se não o conseguir
pois é ela tão grande que ele bem cabe. do que sem ti, meu sol, viver eu cego.
Em tão estranha vestimenta o escondeu, tal como vim, também posso partir,
e de quatro no chão faz que ele acabe; e todos a vir comigo congrego,
levou-o para onde a pedra encobria se não tiverem, como não tive eu,
da sua dama a face que ver queria. horror a cheiro de animal sandeu».
47 Norandino obedece, e para a entrada 53 A fraude contou que, contra o nariz
da gruta vai esperar, por tempo vasto, do Orco, lhe ensinou a mulher dele;
para com o rebanho entrar na malhada; peles vestíssemos, caso a cerviz
todo o dia esperou sem ter desgasto. ao sairmos da gruta apalpasse ele.
Ouve à noite, enfim, da gaita a balada, Depois que cada um aderir quis,
convidando a deixar o fresco pasto quem lá estava, deste sexo e daquele,
as ovelhas, e a voltar ao curral; todos carneiros para matar escolhiam,
atrás delas vinha o pastor brutal. dentre os mais velhos e que mais fediam.
48 Calculem do coração o tremor, 54 Os corpos ungimos com a gordura
quando sentiu que o Orco regressava, que achámos no intestino e no umbigo,
e o rosto feroz viu, cheio de horror, e das peles fizemos cobertura.
apressar-se para a entrada da cava; O dia saiu do seu áureo abrigo;
pôde mais a devoção que o temor: à gruta voltou à primeira alvura
vejam se a sério ou se a fingir amava. do Sol o pastor, e a gaita consigo;
Avança o Orco, a pedra ergue e afasta: e, dando espírito à sonora cana,
e ele entre cabras e ovelhas se arrasta. o rebanho fez sair da cabana.
276 ORLANDO FURIOSO

55 Põe a mão junto ao buraco da choça, 61 Manhã e noite o infeliz amante


para nós não sairmos com o rebanho; pode ver como ela se aflige e chora;
toca-nos e, quando pêlo ou lã roça, pois entre as cabras passa-lhe diante,
vai deixando sair sem arreganho. se de ir para o pasto ou recolher é hora.
Homens, mulheres deixam a estranha fossa, Ela, com rosto triste e suplicante,
vestidos com o hirsuto couro estranho; faz-lhe sinal para que se vá embora
a nenhum de nós o Orco impediu, porque ali sua vida corre perigo,
e então Lucina com temor saiu. e a ela não poderá dar abrigo.
56 Lucina, porque ela não quis talvez 62 A mulher do Orco ao rei também pede
ungir-se como nós, por aversão; que se vá embora, mas tudo é vão;
ou por no lento andar ter trepidez, ir, deixando Lucina, não concede,
que do bicho a fingir não é feição; cada vez mais forte na decisão.
ou que o Orco ao tocar-lhe impressão fez, Nesta servidão fazem que ele se quede
e gritasse pela sentida aflição; Piedade e Amor, em tão longa missão,
ou se lhe tenha soltado o cabelo; que aconteceu darem por ali passo
sentida foi; como, não sei dizê-lo. o filho de Agricane22 e o rei Gradasso.
57 la cada um concentrado em si, 63 Tal estes fizeram com tanta audácia
e para lá não estava o olhar virado. que libertaram a bela Lucina:
Voltei-me ao grito dela, e o monstro vi foi mais por sorte que por eficácia;
que a pele hirsuta lhe tinha tirado, ao pai a levam, à margem salina,
e que na gruta a meteu percebi. o qual a esperava ali com contumácia;
Nós, bem escondidos no fato emprestado, mas deu-se isto na hora matutina
no meio do rebanho, com o pastor em que Norandino com o grege estava,
fomos até um verde prado em flor. a ruminar23 dentro daquela cava.
58 Esperamos até que à sombra estendido
o narigudo Orco se adormeça.
Para o mar ou monte foi tudo evadido,
só Norandino a fugir não se apressa.
No amor de sua dama tem o sentido,
e só regressar à gruta lhe interessa:
dali não partirá até à morte,
se não recuperar sua consorte;
59 quando a vira voltar para o antro intruso,
onde presa ficava sem mais gente,
quase se atirava, pela dor confuso,
para a goela do Orco, de repente;
ao focinho trepou com grande abuso,
pouco faltou para lhe cair no dente;
mas para o rebanho o fez voltar a esperança
que tinha de a livrar de tal possança.
60 Quando à noite o grege à gruta acareia
o Orco, e que nós fugimos pressente,
e que se encontra privado de ceia,
Lucina chama, que julga nocente,
e condena a que fique pela cadeia
presa para sempre ao penhasco eminente.
Vendo-a o rei por sua culpa sofrer,
desespera-se, mas não quer morrer.
CANTO XVII 277

64 Quando clareou foi aberta a barra, 70 Passam tocando tambores e trombetas,


e soube o rei que ela tinha partido vão-se juntando os cidadãos na praça.
(que a mulher do Orco tudo lhe narra), Depois de ouvir cavalos e carretas
e como a coisa tinha sucedido; e gritos ribombar da populaça,
dá graças a Deus e ao voto se agarra Grifon suas armas veste completas,
que, de tal desgraça tendo saído, que são daquelas de mui rara traça;
chegue a lugar onde, por petição, eram impenetráveis e encantadas,
tesouro, ou armas, tenha quitação. pela fada branca feitas e temperadas.
65 Com letícia vai com a companhia 71 O de Antioquia26 , entre os vis o mais vil,
de ovino gado até ao almargeal; também se armou e fez-lhe companhia.
e ali espera até que, à sombra macia, Preparara-lhes o hospedeiro gentil
o monstro adormeça no matagal. robustas lanças, de boa armaria,
Parte, e caminha de noite e de dia; e, dentre a parentela senhoril,
já sem temer do Orco ir para o bornal, comitiva; e com eles também ia;
em Antália24 num navio embarcou, e escudeiros a cavalo e a pé,
e há já três meses que à Síria chegou. aptos a tal serviço, deu até.
66 Em Rodes, Chipre, em campo e em cidade, n Chegando à praça, puseram-se à parte,
e em África, no Egipto e na Turquia, não querendo participar na parada,
de Lucina o rei buscou novidade; para ver melhor tanta gente de Marte27,
até anteontem dela não sabia. a um, a dois, a três, em desfilada.
Do sogro anteontem soube que em verdade Há quem, com cores combinadas com arte,
de que em Nicósia com ele faz estadia, alegria ou dor mostre à sua amada;
após dias de vento e de procelas, ou na cimeira ou no pintado escudo
que oposição deram às suas velas. exiba Amor: se o tem benigno ou crudo.
67 Muito contente com tal boa-nova, 73 Tinham os Sírios nesse tempo usança
prepara o nosso rei a rica festa; de se armarem à moda do Poente.
e quer que em cada quarta lua nova Talvez induzidos pela vizinhança
uma se faça, em tudo igual a esta: que dos Franceses tinham permanente:
da memória não quer que se remova do sacro lugar tinham governança,
os quatro meses que em veste funesta no qual habitou Deus omnipotente;
passou no rebanho; e um dia, o qual que os soberbos e míseros cristãos
amanhã é, que escapou desse mal. tinham deixado nas mãos dos pagãos.
6s São contos parte vistos, parte ouvidos 74 Quando deveriam abaixar a lança
a quem a tudo se encontrou presente; e lutar pela expansão da santa fé,
o rei de luto calendas e idos25 ferem-se entre si no peito e na pança,
esteve, até que hoje o rosto tem ridente; destruindo a pouca gente que crê.
se à história ouvirem dar outros sentidos, Vós, gente hispânica, e vós, de França,
dizei que esse contar não é coerente. - dirigi, e vós, Suíços, o pé,
O fidalgo a Grifone narrou assim e vós Alemães, para mais digno aquisto,
qual era o motivo para tal festim. que o que aqui28 procurais é já de Cristo.
69 Grande parte da noite se dispensa 75 Se a ser cristianíssimos aspirais,
dos cavaleiros a tal divagamento; e vós outros católicos chamados29 ,
concluem que amor e piedade imensa os homens de Cristo por que matais?
mostrou o rei, com grande experimento. E por que de seus bens são despojados?
Foram, depois de deixarem a mensa, Por que Jerusalém não conquistais,
aonde tinham grato alojamento. que vos foi tirada pelos renegados30?
Na seguinte manhã, dara e serena, Por que Constantinopla, e deste mundo
acordam aos sons da festiva cena. a maior parte, ocupa o Turco imundo?
278 ORLANDO FURIOSO

76 Não tens tu, Espanha, a África vizinha, 82 Era o prémio da justa uma armadura
que muito mais que a Itália te ofendeu31 ? de que em oferta o rei foi aceitante,
Porém, para massacrares esta mesquinha, a qual na estrada encontrou por ventura,
esqueces o primeiro inimigo teu. quando voltava da Arménia, um mercante.
Fétida sentina em vícios rainha, O rei, duma magnífica textura,
Itália ébria, teu brio se perdeu, sobreveste lhe juntou, e diamante,
para que ora desta ora daquela gente, pérolas, gemas lhe bordou e ouro,
tuas servas antes32, sejas servente? que a fizeram valer grande tesouro.
77 Se o medo de morrer é a razão, 83 Se reconhecido as armas houvesse,
Suíço33 , à fome, que à Itália te traz, mais as estimaria o rei que outro arnês;
e entre nós buscas quem te dê o pão, nem de em prémio dá-las teria interesse,
ou quem com morte dela te dê paz, embora mui liberal e cortês.
as riquezas do Turco tens à mão; Longo seria a quem contar quisesse
da Europa sair, ou da Grécia34, o faz: quem as desprezou com insensatez,
melhor poderás do teu jejum tirar-te, e no meio da estrada assim as deixou,
ou tombar com mérito em qualquer parte. à mercê de quem por ali passou.
78 Ao vizinho alemão o mesmo ensino 84 Sobre isso vos falarei mais à frente;
que a ti digo; que ele as riquezas tem, digo ora de Grifone que à chegada
que vos trouxe de Roma Constantino: lanças quebradas achou já presente,
levou o bom, e o resto deu35 também. e dados mais de um corte e uma estocada.
Pactolo e Hermo36 , onde se acha ouro fino, Oito, entre a que era ao rei mais fiel gente,
Migdónia37 e Lídia, e o país bom38 , que é bem, tinham-se ali associado em brigada;
por louvores e histórias, a todos noto, jovens, em armas práticos, industres,
não é, querendo lá ir, muito remoto. todos senhores de famílias ilustres.
79 Tu, grande Leão39 , que as chaves do Céu 85 Justavam estes na restrita praça,
carregas aos ombros com peso atroz, cada dia, um por um, com todo o mundo,
não permitas que se entregue a Morfeu primeiro com lança, depois espada e maça,
Itália, a quem seguras os bandós. e até ao rei vê-los era jucundo;
És pastor, e Deus o bordão te deu e chegavam a furar a couraça:
e escolheu para ti nome tão feroz, por jogo o faziam, enfim, segundo
para que tu rujas e os braços estendas, costumam os inimigos, excepto
e assim dos lobos o grege defendas. que o rei os separava, a seu dilecto.
80 Duma fala a outra, tão afastado 86 O de Antioquia, homem sem razão
estou do caminho que eu atrás fazia? (Martano o cobarde se nomeou),
Não me parece estar tão extraviado comparável a Grifone campeão,
que não possa reencontrar tal via. por com ele estar, se considerou,
Dizia eu que na Síria era usado e audaz se inscreveu na competição;
armar-se como aos de França aprazia; à espera num canto se colocou
por isso em Damasco era bela a praça, que terminasse um combate violento
com gente armada de elmo e de couraça. que dois iniciaram nesse momento.
40
81 Gentis damas lançam das galerias 87 O senhor de Selêucia , que lutava
rubras e amarelas flores aos valetes, com um dos oito que eu disse primeiro,
que, ao som das trompas, em acrobacias era quem com Ombruno batalhava,
fazem saltar e voltear os ginetes. e no rosto lhe deu golpe certeiro;
Pior ou melhor, cada um mestrias deu-lhe morte, o que o povo lamentava,
quer mostrar, e esporeia e faz joguetes: pois era tido por bom cavaleiro;
o que faz que a alguns se aplauda e louve; além do valor, outro mais cortês
também há quem risos e gritos ouve. no país não houvera alguma vez.
CANTO XVII 279

88 Vendo aquilo, Martano houve vileza, 94 Com a lança avança Grifone outra vez,
medo que golpe assim um lhe infligisse; pois inteira e firme a recuperara;
e, regressando à sua natureza4 1 , no topo do escudo a quebrou em três,
começou a pensar como fugisse. que ao senhor de Lodicea44 mirara.
Grifone, a quem dissera ter destreza, Quase cair quatro vezes o fez,
impeliu-o, pois tanto fez e disse, mas estendido na garupa ficara;
contra um guerreiro que entrara na liça, equilibrou-se ele e a espada tirou,
tal como contra o lobo o cão se atiça: e direito a Grifone se lançou.
89 tendo-o dez ou vinte passos à frente, 95 Grifon, vendo-o na sela, e que não basta
mais não avança e a ladrar aguarda, tão fero encontro para que à terra vá,
vendo arreganhado o ameaçador dente, disse para si: - O que não fez a hasta,
e como nos olhos o fogo lhe arda. cinco ou seis golpes de espada o fará. -
Estando ali príncipes e o rei presente, Na têmpora logo um golpe lhe empasta,
e tanta gente tão nobre e galharda, direito, do céu vindo se dirá;
Martano, tímido, a pugna evitou: e um outro lhe deu, mais outro a seguir,
freio e cabeça à direita virou. até o entontecer e à terra ir.
90 A culpa poderia dar ao cavalo 96 De Apamia45 ali estavam dois irmãos
quem ousasse fazer sua defesa; não habituados a sofrer derrota,
mas logo há com a espada tal resvalo Tirse e Corimbo; mas ambos às mãos
que não queria Demóstenes a empresa42 • do filho de Uliver46 dão cambalhota.
Não de metal, mas de papel armá-lo De um os arções permaneceram vãos47 ;
parece o arnês, tanto aos golpes se enviesa. em cheio com o outro a espada se adopta.
À fuga se dá, e a ordem perturba, Por comum juízo já se tem certo
ficando a rir-se dele toda a turba. que de vencer a justa este está perto.
91 O bater de mãos, os gritos em torno, 97 Na liça tinha entrado Salinterno,
a populaça lhe deu em tributo. o qual prefeito era e escudeiro régio,
Qual lobo escorraçado, fez retorno que de todo o reino tinha o governo,
Martano, muito à pressa, ao seu reduto. e de sua mão era guerreiro egrégio.
Sente Grifone para si ser transtorno, Não gostando ele que um guerreiro externo
do companheiro o gesto tão corrupto: venha a ter deste prémio o privilégio,
preferiria estar no meio do fogo, pega na lança e, em alta gritaria,
em vez de participar neste jogo. com ameaças Grifon desafia.
n Arde dentro, e no rosto ruboriza, 98 Com robusta lança ele lhe dá resposta,
como se tal vergonha em si conflua; a melhor que entre dez havia eleito,
pois obra sua, de idêntica guisa, e, a fim de não errar, no escudo aposta,
o povo pensa que se apropmqua; e trespassa-o, e a couraça, e o peito:
mais clara que uma lâmpada ora giza passa o ferro cruel de costa a costa,
como mostrar toda a virtude sua; e na espádua sai um palmo perfeito.
uma unha ou dedo de erro que faça, O golpe, excepto ao rei, muito foi caro:
pela má impressão, parecerá uma braça. todos odiavam Salinterno avaro.
93 Já sobre a coxa tinha posta a lança 99 Perto deste, Grifone à terra deita
Grifon, que errar em armas pouco usava; dois de Damasco, Ermofilo e Carmundo.
pica o cavalo e a toda a brida avança, A milícia real um assujeita;
ao mesmo tempo que a lança enristava; grande almirante do mar é o segundo.
no choque com tal força se abalança Ao embate um logo a sela rejeita;
que o barão de Sidonia43 estatelava. sobre o outro cai o peso rotundo
Todos admirados em pé se ergueram, do seu cavalo, que não resistiu
que o contrário daquilo pretenderam. ao impulso com que Grifone o feriu.
280 ORLANDO FURIOSO

1 00 O senhor de Selêucia continuava 1 02 Feriu o de Selêucia na viseira


a ser melhor guerreiro que os outros sete; Grifon também, com um golpe de espanto;
e a sua valentia acompanhava quebrá-la-ia, não fora a maneira
com armas perfeitas e um bom ginete. como toda era feita, por encanto.
Onde no elmo a viseira se crava, Perda de tempo é a sua canseira:
cada um no choque a hasta arremete; duro é o arnês dele em todo o canto;
mas Grifon golpeou com mais assanho: já lhe rompeu Grifone a armadura,
fê-lo perder o pé no estribo canho. pois toda a sua estocada é segura.
101 Rejeitam das hastas quebrado troço, 1 03 Todos podiam ver como inferior
assaltando-se com os gládios desnudos. a Grifone o de Selêucia bem era;
Sofreu o pagão o primeiro destroço, se nãv os apartasse o seu senhor,
de um golpe como os há dos mais sanhudos. o que pior está a vida perdera.
Com ele se viu fender o ferro e o osso Norandino a guarda mandou dispor
de um que fora escolhido entre mil escudos; de modo a separar a tenção fera.
não fora duplo e bem temperado o arnês, Assim um do outro foi separado,
a coxa feria onde descida fez. e o rei pela sua acção muito louvado.
CANTO XVII 28 1

104 Os oito encarregados da empresa, 1 06 Grifone entretanto tinha voltado


que não a aguentaram contra um, ao aposento, cheio de raiva e ira:
fizeram de sua parte má defesa, mais por Martano estava envergonhado
e do campo sair foi-lhes comum. que alegre pela vitória que adquirira.
Os que com eles queriam fazer proeza Para ser de tal opróbrio aliviado,
viram-se assim sem adversário algum, Martano logo recorre à mentira;
tendo Grifon, sozinho, feito intróito a astuta e mentirosa meretriz
no que todos queriam fazer com oito. corrobora-o em tudo o que ele diz.
105 E assim durou tão pouco aquela festa: 1 07 Quer o jovem ou não acreditasse,
em menos de uma hora a tinham feito; a desculpa aceitou, por ser discreto;
mas Norandino a alongá-la se apresta, e, para ser para bem dele o desenlace,
para que até à noite durasse o efeito; decide partir, tácito e secreto,
desce à praça, e manda esvaziar esta, temendo que, se o povo o encontrasse,
e a hoste em duas divide a preceito; Martano houvesse de enfrentar seu repto.
conforme o sangue e a marcial prova, Seguindo uma via escondida e torta,
formou pares e fez uma justa nova. da cidade atravessaram a porta.
282 ORLANDO FURIOSO

108 Grifone, ou que ele ou que o cavalo fosse 114 Muito ornado alojamento lhe deu
cansado, ou desse o sono arremetida, na corte, e muitas honras deu também
no primeiro albergue que achou quedou-se, a Orrigille; donzelas recebeu,
pouco mais de uma milha percorrida. e cavaleiros para guardá-la tem.
Tirou o elmo e, todo, desarmou-se; Porém já são horas que me ocupe eu
ao cavalo fez tirar sela e brida; de Grifon, que, nem dele nem de alguém
depois no seu quarto só se fechou, temendo engano, tinha adormecido,
e, nu, para ir dormir no leito entrou. e até à tarde esteve recolhido.
109 Mal a cabeça pôs no travesseiro, 1 15 Quando acordou e da hora tardia
cerrou os olhos e o sono o venceu, se apercebeu, logo o seu quarto enjeita,
como texugo nunca tão ligeiro, e onde o falso cunhado e a companhia
ou arganaz, assim adormeceu. deixara vai, mais o resto da seita;
Martano e Orrigille, por um carreiro, não os vê, e, notando que arredia
a um jardim foram que ali cresceu; está sua armadura e vestes, suspeita;
e um engano urdiram, o mais insano e mais desconfia de falcatruas
que jamais inspirou espírito humano. vendo as insígnias dele em vez das suas.
1 10 Martano planeou ter o corcel, 1 16 Vem o hoteleiro, e do outro narra
vestes e armas, de Grifone enfeite; que tempo há que, todo em branco armado,
e ante o rei se apresentar em vez dele, com a dama e o resto da bandarra,
que ali tanto justara com deleite. tinham todos para a cidade voltado.
Tal como o pensou assim o fez ele: Grifone pouco a pouco a pista agarra
tirou o corcel mais alvo que o leite, que Amor tinha até então ocultado;
escudo, cimeira, armas, sobreveste, e vê com grande dor que aquele vilão
e as insígnias de Grifon todas veste. de Orrigille era amante e não irmão.
111 Dirige-se com a dama e com o escudeiro 117 De ser tão néscio ora em vão se lamenta;
para onde o povo ainda está, na praça; tendo do peregrino51 o vero ouvido,
chegou quando acabavam no terreiro deixou-se enganar pela voz fraudulenta
as provas de lança, de espada e maça. de quem muita vez o tinha traído.
Ordena o rei que se ache o cavaleiro Não se vingou então da odienta,
em cujo elmo pena branca esvoaça, quer ora punir o imigo fugido;
tem branca veste .e branco corredor48 ; e é forçado a usar, com grande abalo,
não sabia o nome do vencedor. desse vil homem armas e cavalo.
1 12 Aquele que uma pele alheia envergava, 118 Melhor fora sem armas ir, desnudo,
tal como o burro usara a do leão49 , que a indigna couraça vestir possa
chamado apresentou-se, tal esperava, ou pôr no braço o execrável escudo,
a Norandin, com alheia feição. e no elmo a insígnia que ouviu troça;
O rei tão cortês, que já em pé estava, mas, de seguir a meretriz e o drudo,
abraça-o, beija-o, leva-o para o balcão; o desejo mais que a razão se esboça.
não lhe basta honrá-lo e fazer louvor, Ainda tinha, ao chegar à cidade,
quer que corra a fama do seu valor. o dia uma hora de claridade.
113 E manda proclamá-lo, pelo trombeta50 , 1 1 9 Junto à porta a que Grifon foi chegado,
vencedor do torneio daquele dia. fica à esquerda um grandioso castelo,
Quer que em toda a parte a voz arremeta que, mais que forte e às guerras adaptado,
que indigno nome diz pela cercania. abunda em ricas salas, muito belo.
Que a seu par cavalgue a figura abjecta O rei da Síria e todo o seu senado,
quer o rei quando ao palácio seguia; com nobres damas, num balcão singelo,
e tanta mercê com aquele reparte celebravam em gentil assembleia
como se fora Hércules ou Marte. a real, sumptuosa, alegre ceia.
284 ORLANDO FURIOSO

120 Aquele balcão da muralha saía, 126 do que até me sinto contaminado,
com alta torre, acima da cidade; e no peito será eterno peso,
longa distância ali se descobria se, do mester de armas envergonhado,
de vastos campos, estradas, à vontade. tiver de o ver partir daqui ileso;
Vestindo armas de opróbrio e vilania, em vez de o deixar ir, para meu agrado,
à porta chega e, por casualidade, antes seja duma ameia reteso;
foi visto por desventurosa sorte é obra louvável e senhoril,
não só pelo rei como por toda a corte: para ser espelho e exemplo a todo o vil. -
121 tomado por de quem insígnias tinha, 127 Martano em Orrigille não teve entrave
causa em damas e cavaleiros riso. para de si ser confirmadora lesta.
O vil Martano, que o rei acarinha, - Não é (disse o rei) obra assim tão grave,
a seu lado tem assento no friso, em meu parecer, para o pendurar pela testa.
e a dama digna dele é-lhe vizinha; Quero só, para que o seu pecado lave,
aos quais Norandino, com ledo viso, que repita para o povo a mesma festa. -
pergunta quem será aquele cobarde E a um seu barão, que mandou chamar,
que de tão pouco honor fazia alarde; ordens lhe deu para tudo executar.
122 que, após a triste e vergonhosa prova, 12s Muita gente armada o barão seguiu,
ali lhe aparecia com tal desplante. que para a porta da cidade os levou;
Dizia: - Isto parece coisa nova, ali em silêncio todos reuniu,
que, sendo vós guerreiro digno e prestante, e a chegada de Grifone aguardou;
tenhais tal companheiro, que comprova tão de improviso à vinda o obstruiu
como poltrão não ter par no Levante. que entre as pontes52 a salvo o apanhou;
Talvez o façais para mostrar maior, e reteve-o, com troça e zombaria,
por tal contraste, vosso alto valor. num quarto escuro até ao outro dia.
123 Pelos eternos deuses dou garantia: 129 O Sol apenas a dourada crina
não fora o respeito a vós que me impele, erguera do colo da ama antiga53 ,
a pública ignomínia lhe faria e começava da cimeira alpina54
que uso fazer aos parecidos com ele. a expulsar a sombra e torná-la abriga,
Como inimigo sou da cobardia, quando Martano a recear se inclina
lembrança eterna levava na pele. que Grifon de sua justiça diga,
Mas saiba que, se sem castigo parte, e volte a culpa aonde era merecida;
é porque com vós veio a esta parte. - despediu-se, e apressou sua partida,
124 Aquele que foi de todo o vício vaso 130 desculpa idónea dando ao rogo régio,
respondeu: - Majestade, não saberia por não estar presente ao festivo acto.
dizer quem é; achei-o por acaso De outros dons merecedor o rei elege-o,
pelo caminho, vinha eu de Antioquia. pela vitória, que não é sua, grato;
Foi só o seu semblante que deu azo e sobretudo um amplo privilégio,
a que o achasse digna companhia; em altas honras e louvores mui lato.
prova não tinha visto nem ouvido Deixemo-lo ir; faço-vos promessa
antes do triste caso hoje ocorrido. que recompensa terá que mereça.
125 Tanto me desgostou que faltou pouco 131 Levam Grifon envergonhado à praça,
que, para punir sua extrema vildade, quando ela estava mais cheia de gente.
eu não lhe desse ali tão cabal troco Tirado lhe foi o elmo e a couraça,
que lança ou espada tocar mais não há-de; apresentando-se em gibão, vilmente;
para o não ter feito só respeito invoco como se fosse levado para a maça55 ,
a este sítio e a vossa majestade. numa carroça seguia, eminente,
Nem quero que a ele venha algum ganho, que tiravam, mui lentas, duas vacas
porque um dia ou dois eu o acompanho; pela longa fome esquálidas e fracas.
CANTO XVII

132 Iam em volta da ignóbil quadriga 134 Em todos os lugares foi exibido,
velhas desonestas e arruaceiras, diante de templo, oficina e casa,
de que era ora uma ora outra auriga, onde todo o nome mau e atrevido
todas elas em ofensas grosseiras. lhe chamam, que a sua ira atenaza.
Punham-no os garotos em maior briga: Para fora da cidade conduzido
além de infames palavras e asneiras, foi pela turba, para que se compraza
com pedras morte lhe teriam dado, a expulsá-lo ao som de pancadaria,
não fora dos mais cautos o cuidado. visto que quem ele era não sabia.
133 As armas, que eram do seu mal culpadas, 135 Porém, mal lhe desferraram o pé,
e haviam dado dele errado indício56 , e libertaram uma e outra mão,
pela cauda do carro eram arrastadas, o escudo tomar e empunhar se vê
no chão sofrendo o devido suplício. a espada, que regou de sangue o chão.
As rodas ante a tribuna paradas, Lanças ou paus contra si não prevê,
ouviu ali do alheio malefício pois sem armas vinha o povo malsão.
a ignomínia, na sua cara dita Para o outro canto quero o final reste;
pelo pregoeiro que tais coisas grita. já é tempo, senhor, de acabar este.

NOTAS

1 Mdrio [ . .] Antonino: imperadores romanos muito 10 Adda [ . .] passam: nomes de rios italianos, junto aos
cruéis. Os quatro primeiros já haviam sido referidos em quais se travaram sangrentas batalhas ganhas pelos
III:33. Franceses.
2 Maximino: Maximino I (c. 1 73-238) era filho de um 1 1 Por que { . .] morrer: a admoestação de Carlos Magno
pastor trácio e foi o primeiro imperador romano a sair aos seus homens, nas oitavas 7-8, praticamente decalca
das fileiras do exército. as palavras de Mnesteu aos Troianos em fuga da cidade
(Vergílio, Eneida, IX:78 1 ss.).
3
Creonte: tirano de Tebas, irmão de Jocasta, mãe de
12
Édipo. Da casa real { . .] : todo o episódio do assalto de
Rodomonte ao palácio real se inspira no assalto ao palá­
4 Mezêncio { . .] agilino: Mezêncio era um rei etrusco cio de Príamo, rei de Tróia, executado por Pirro
muito cruel, de Cere (chamada Agylla pelos Gregos) . (Vergílio, Eneida, II, 469 ss.).
Atava os vivos aos mortos para que morressem nesse
macabro abraço (Vergílio, Eneida, viii:478-488) . 13 Como [ . .] vetusto: como serpente que ressurge à luz
do dia depois de se ter despido da sua velha pele (couro
5 Átila: cruel rei dos Hunos (de 434 a 453) . vetusto) .
6 Ezzelin da Roman: cf. III:32-33. 14 Agolante { . .] Aspramonte: cf. nota a 1:30.

7 Sempre em oblíquo: fora das rectas vias. 15 U iero { . .] Otone: já referidos, juntos, em XV:8 e
gg
67.
8
Não só { . .] descarne: Ariosto alude aos poderosos de
Itália que, não satisfeitos com a sua própria exploração, 16 De melhor sorte: os mais abastados.
chamam estrangeiros para o país.
17
O conterrâneo e o peregrino: os da terra e os forasteiros.
9 Trasimeno { . .] Trebbia: lugares (um lago e um rio,
18
respectivamente) onde Aníbal derrotou os exércitos Cdrpato iníquo: canal de Cárpato, entre a ilha do
romanos. mesmo nome e a de Rodes, no mar Egeu.
286 ORLANDO FURIOSO

19 37
Mestre conspíc uo: o respeitável (idoso) mestre do Migdónia: Frígia, de que Mígdon era rei (Eneida,
nav10. 11:342).
20 38
O Orco: figura inspirada no ciclope Polifemo, perso­ País bom: talvez se refira à Pérsia ou à Arménia.
nagem da Odisseia.
39
Grande Leão: Leão X (Giovanni dei Mediei), papa
21
Porco: javali. entre 1 5 1 3 e 1 52 1 .
22 40
Filho de Agricane: Mandricardo (e( XIV:30, 38 ss.). Selêucia: cidade costeira da Síria.

2 3 Ruminar: a pensar em possibilidades de salvação 41


Sua natureza: de homem cobarde, depois de ter
para ambos. arvorado audácia por estar ao lado de Grifone.
24 Antália: cidade da costa turca, em frente a Chipre. 42 Não { . .} empresa: Demóstenes (orador grego de
grande eloquência) recusaria fazer a sua defesa.
25 Calendas e idos: vários meses, uma vez que as calen­
43
das eram, para os Romanos, o primeiro dia de cada mês, Sidonia: Sídon, antiga capital da Fenícia, hoje Saida,
e os idos eram o dia 1 5 dos meses de Março, Maio, Julho cidade portuária do Líbano.
e Outubro, e o dia 1 3 dos restantes meses.
44 Lodicea: Laodiceia, antigo nome do porto sírio de
26
O de Antioq uia: o amante de Orrigille. Latáquia.
27
Gente de Marte: os guerreiros. 45 Apamia: Apameia, cidade da Frígia.

28 Aq ui: em Itália. Ariosto insurge-se uma vez mais 46 Filho de Uliver (Oliviero): Grifone.
contra a invasão de Itália por estrangeiros.
47
Vãos: vazios.
29
Se { . .} chamados: «cristianíssimos» era título usado
48
pelos reis de França, e «católicos» pelos de Espanha. Corredor: cavalo.
30 49
Renegados: alusão aos mamelucos, milícias compos­ B urro [ . .} leão: referência a uma fábula do grego
tas por cristãos renegados (e( XV:64). Esopo.
31
África { .} ofende u : refere-se à invasão da Península 50 Trombeta: pregoeiro público.
Ibérica pelos Mouros.
51
Peregrino: cE XV: 1 00.
32
Tuas servas antes: províncias do Império Romano.
52 Entre as pontes: entre as pontes levadiças; a cidade era
33
Suíço: alude aos mercenários suíços chamados pelo rodeada por dois fossos.
papa Júlio II após a batalha de Ravenna.
53
Ama antiga: Geia (a Terra), de quem o Sol (Hélio)
34
Turco { . .} Grécia: os Turcos invadiram a Grécia descende; ao nascer, o Sol ergue-se da Terra, a oriente.
depois de tomarem Constantinopla ( 1 453).
54 Cimeira alpina: o cimo de cada montanha, ou alpe.
35
O resto de u : tal como Dante (Inferno, XIX: 1 1 5-1 1 7),
Ariosto crê na cedência de bens à Igreja (ao papa 55 Para a maça: para o matadouro, onde matavam os
Silvestre I) pelo imperador Constantino, que o huma­ animais a golpes de maça.
nista Lorenzo Valia demonstrou ser falsa.
56 As armas [ . .} indicio: identificando-o erradamente,
36
Pacto/o e Hermo: rios auríferos da Lídia, referidos por fizeram recair sobre si a vergonha.
Vergílio (Eneida, X: 142 e Vll:72 1).

CANTO XVIII

Excelso senhor meu, todo o vosso acto


de mim com razão teve e terá laudo,
se bem que com estilo tosco e mal apto,
parte da glória vossa vos defraudo.
Mais que as outras uma virtude acato,
que com o coração e a língua aplaudo:
se em vós todos acham grata audiência,
não encontram porém fácil credência.
2 Em defesa do criticado ausente
bem vos ouço dar uma ou outra escusa,
ou ao menos ter, até que, presente,
diga de si, num ouvido a recusa;
e sempre, antes de condenar a gente,
ver-lhe a cara e ouvir que razão usa;
diferir até dias, meses, anos,
antes de julgar os alheios danos.
3 Se Norandino semelhante houvesse
feito a Grifon, não teria o que fez.
A vós, útil e honor sempre acontece;
Denegriu-lhe ele a fama mais que pez.
Por ele, sua gente morte padece,
pois Grifone em dez cortes e em dez
golpes que deu, cheio de ira e bizarro•,
fez que trinta tombassem junto ao carro.
288 ORLANDO FURIOSO

4 Correm à toa os outros em devassa, 7 Muitos temeram que Grifon, o fero,


para aqui, para ali, pela estrada, pela herdade; sobre a muralha houvesse dado um salto.
e quem de ir paar a cidade ideia abraça, Não se veria tanto desespero,
à porta cai morto sobre o confrade. se a Damasco o sultão fizesse assalto.
Grifon nada diz e não ameaça; Corre gente, traz de armas um exagero,
Mas, longe deixando toda a piedade, e ouvem-se almuadens gritar do alto,
em torno volteia a espada fulmínea, e de tambores um som misto e de tromba,
e faz vingança da sua ignomínia. de que o mundo ensurdece e o céu ribomba.
5 Dos que primeiro alcançaram a porta s Mas quero para outra vez diferir
(quem com mais rapidez os pés apronte), a narração do que daqui advém.
alguns, porque seu esteio mais lhe importa O bom rei Carlos ora vou seguir,
que o dos amigos, ergueram a ponte; que encontrar Rodomonte à pressa vem,
chorando vão, com aparência morta, o qual tanta gente estava a extinguir.
fugindo sem voltar para trás a fronte, Disse-vos que o rei companhia tem
e pela cidade e em todo o arredor do dinamarquês2, Namo e Oliviero,
ergueram gritos, tumulto e rumor. Avino, Avolio, Otone e Berlingiero.
6 Grifon galhardo pega dois no instante 9 Oito choques de lança, que com a força
em que a ponte se ergueu, para sua agrura. dos oito guerreiros fizeram estouro,
Aos miolos dum pelo chão dá vazante, sustem a pele escamosa que reforça
pois bateu-o contra uma pedra dura; o peito armado do cruento mouro.
pelo peito agarra o outro que, voante, Como nave endireita quando torça
passa o muro e na cidade desmura. a vela o mestre que sentiu o Coro3,
Chega o gelo aos ossos do povo incréu, lesto assim se recompôs Rodomonte
quando aquele se vê cair do céu. do golpe que virar podia um monte.
CANTO XVIII 289

10 Guido, Ranier, Ricardo, Salamone, 13 Todas as defesas, toda a cidade


Ganelon traidor e Turpin fiel, foi ficando a toda a volta deserta;
Angioliero, Angiolino, Ughetto e Ivone, pois na praça, onde há mais necessidade,
Marco e Matteo do monte Saint-Michel, pusera Carlos toda a gente alerta.
e os oito que mais para trás eu mencione, A praça acorre com velocidade
rodeiam todos o mouro cruel, a turba, a quem a fuga não liberta.
Arimanno e Odoardo de Inglaterra, A pessoa do rei o brio espicaça:
há pouco chegados àquela terra. ânimo e armas cada um sobraça.
11 Não treme assim sobre o penedo alpino 14 Como na jaula fechada a cadeia,
de bem fundada torre alta parede, de velha leoa habituada à guerra,
quando ao furor de bóreas ou garbino4
. .
porque assim o povo mais se recreia,
.
abeto ou freixo nas montanhas cede, o touro indómito às vezes se encerra,
como freme de orgulho o sarracino vendo os leõezinhos que pela areia
de aceso desdém e sanguínea sede; mugindo, soberbo e animoso erra,
tal raio e trovão a um tempo avança, e não tendo visto cornos tamanhos,
também do ímpio a ira e a vingança. num canto estão assustados e estranhos;
12 Dá na cabeça do que tem mais perto: 15 mas se a ferina mãe a ele se lança,
Ugo de Dordonha é quem abalroa; e na orelha ferra o cruel dente,
ao chão vai até aos dentes aberto, também querem do sangue haver festança,
e era o seu elmo de uma têmpera boa. e juntam-se-lhe corajosamente,
Ao mesmo tempo foi o mouro coberto mordendo-lhe uns o dorso, outros a pança:
de muitos golpes em toda a pessoa; assim contra o pagão faz essa gente.
como agulha a bigorna abalo dão, Dos telhados, janelas, e mais perto,
pois tem em torno o escamoso dragão5 • chovem-lhe armas em cima com acerto.
16 De cavaleiros e de infantaria
dificilmente ali cabe a remessa.
A multidão que vem por cada via
como um enxame de abelhas é espessa;
se desarmada e nua, poderia
melhor que couve ou nabo cortar essa,
mas não podia como está, em monte,
fazê-lo em vinte dias Rodomonte.
17 Ao pagão, que não sabe como possa
dar solução, já o jogo aborrece.
Se do sangue de mil no chão faz poça,
pouco em torno a multidão emagrece.
Mas já o fôlego tanto lhe engrossa
que entende que, se não desaparece
enquanto tem vigor e o corpo são,
há-de querer fugir e há-de ser em vão.
1 s Os cruéis olhos volve, tendo em mente
que a toda a volta a fuga é interdita;
mas, dando fim a infinita gente
a fuga abrirá tornando-a expedita.
Eis que vem vibrando a espada fendente
aquele ímpio, aonde o furor o incita,
atacando de Arimanno e Odoardo
o novo esquadrão inglês tão galhardo.
290 ORLANDO FURIOSO

19 Quem já viu quebrar na praça o ripado, 23 E três vezes tanto a ira o atinge
enquanto a multidão lhe ondeia em torno, que estando já longe volta para trás,
o touro bravo que foi atiçado, a espada de sangue de novo tinge,
sujeito a aguilhão e a todo o transtorno, e mais de cem de matar foi capaz.
do povo que dele foge assustado, Por fim a razão a raiva restringe,
ora um ora outro erguer com o corno, e, antes que a Deus chegue o fedor vivaz
pense que assim foi tanto ou mais terrível da morte, decidiu buscar abrigo:
ao partir o africano irascível. lançou-se à água, saindo do perigo.
20 Uns quinze ou vinte cortou de través, 24 Estando todo armado ao rio se meteu,
outros tantos sem cabeça deixou, como se em torno houvesse flutuantes.
todos dum golpe, a direito ou revés, África, em ti como ele ninguém nasceu,
como quem vide ou salgueiro podou. se bem que Anteu6 e Aníbal tiveste antes.
Cheio de sangue da cabeça aos pés, Mas quando a terra chegou, desprazeu,
crânios abriu, braços e mãos cortou, olhando essa cidade por instantes,
espáduas, costas, pernas, ventres abriu que, tendo ponta a ponta percorrido,
o fero pagão, e por fim partiu. não tinha feito arder nem destruído.
21 Da praça vai e ao rosto não lhe acorre 25 E tanto o rói a soberba e a ira
sinal que mostre haver por medo agrura; que, para voltar outra vez, se retarda:
vai em pensamento a ver se discorre do fundo do peito geme e suspira,
onde há para sair via mais segura. não quer ir dali sem fazer com que arda.
Por fim chega ao sítio onde o Sena corre Mas junto ao rio, no meio da fúria, mira:
junto à ilha, e de Paris se desmura. vê vir quem ódio extingue e a ira tarda.
A gente de armas e o povo, ora audaz, Quem era, vos dou em breve a saber;
vai-lhe no encalço, não lhe dá paz. mas quero antes outra coisa dizer.
22 Como na Numídia ou Massília hostil 26 Vou falar-vos da Discórdia altaneira,
vai escorraçada a indómita fera, a quem o anjo Miguel encarregara
que conserva, fugindo, ar senhoril, de incitar à luta e sanha guerreira
e lenta se afasta e sempre severa; os mais fortes que Agramante arranjara.
tal Rodomonte, sem acto servil, Os frades deixou na noite primeira,
cercado por estranha, avessa atmosfera, onde outra com suas funções ficara:
entre hastas, espadas e volantes dardos, deixou a Fraude ali fazendo o jogo,
para o rio se afasta em passos longos, tardos. mantendo, até voltar, aceso o fogo7 •
CANTO XVIII 291

27 E parecendo-lhe que mais poder tem, 30 O Ciúme o ladrão tinha encontrado,


se a Soberba também a acompanhasse, e, da razão de vir vendo a justeza,
como na mesma sala se entretém, pusera-se a caminhar a seu lado,
nem se maçou para que a outra encontrasse. parecendo-lhe ser útil para a empresa.
A Soberba aceitou, mas quis também O Ciúme encontrar foi do agrado
que outra por si no mosteiro ficasse: da Discórdia; mais, ao ter a certeza
nos poucos dias que estaria ausente, que a razão para ele ali vir podia
a Hipocrisia era lugar-tenente. ser de grande ajuda ao que fazer queria.
2s A implacável Discórdia em companhia 31 Para inimizar com Rodomonte o filho
da ufana Soberba foi ao destino, do rei Agrican8 , parece dar jeito:
e verificou que pela mesma via para os outros achará outro sarilho,
ia também para o campo sarracino para inimizar estes, este é perfeito.
o Ciúme, a quem aflição premia; Vai com o anão até onde o rastilho
com ele trazia um anão pequenino, do fero pagão pôs Paris em respeito;
de Doralice vindo, por vontade, Chegaram mesmo a tempo junto à ria,
ao rei da Sárcia trazer novidade. quando ele a nado da água saía.
29 Quando Mandricardo lhe deitou mão 32 Assim que reconheceu Rodomonte
(como foi e onde eu já vos contei), este da dama a trazer-lhe mensagem,
tacitamente encarregou o anão a ira extinguiu, serenou a fronte,
de levar a notícia àquele rei. e do coração ouviu a linguagem.
Ela esperou que tal não fosse em vão: Qualquer coisa ele espera que lhe conte,
que proezas faria, concebei, menos que alguém com ele fez vilanagem.
para reavê-la com cruel vingança Chega-se ao anão, e diz em voz branda:
do ladrão que a tirar-lha se abalança. - Que é da nossa dama? E onde te manda? -
33 Respondeu o anão: - Nem tua nem minha
dama direi aquela que outro tem.
Um cavaleiro que ontem na via vinha
no-la roubou, e com ele a mantém. -
Ao ouvir tal, logo o Ciúme asinha,
frio como cobra, abraçado o retém.
Prossegue o anão, e conta de que sorte
um só lha tirou, e aos outros deu morte.
34 No fuzil a Discórdia então pegou,
e na pederneira, e esfregou um pouco;
a Soberba a mecha lhe apresentou,
e logo de fogo nasceu um foco;
este a alma de tal modo inflamou
do sarraceno que o pôs como louco:
freme e sopra, faz terrível caraça,
e ao Céu e elementos grita e ameaça.
35 Tal como o tigre que os filhos pretende
ver na toca vazia onde em vão gira,
e que suas crias por fim compreende
lhe foram tiradas, e se enche de ira,
e de tanta raiva e furor se acende
que nem monte, nem rio, nem noite o vira,
nem longa via ou granizo refreia
o ódio que atrás do predador o ateia;
292 ORLANDO FURIOSO

36 assim se enfureceu o mouro bizarro9, 42 Começavam hostes a retirar,


que: - Toca a andar! -, ao anão dizia, dos Sarracenos; e todas teriam,
sem pôr-se à espera de cavalo ou carro, dispersas, partidas, querido escapar,
nem dar palavra à sua companhia.
. .
e nunca ma.ts se reagrupanam;
Vai do que o lagarto com mais desgarro, mas Grandonio e Falsiron eis chegar,
quando o sol queima, a atravessar a via. que piores batalhas já conheciam,
Corcel não tem; o primeiro não desdenha, e Balugante e Serpentin feroz,
seja de quem for, que ao encontro venha. e Ferraú dizendo em alta voz:
37 A Discórdia, que ouviu tal pensamento, 43 - Eh grandes valentes, eh companheiros,
olhou a rir a Soberba, e então disse eh irmãos meus, ficai no posto vosso.
que queria achar-lhe um cavalo para assento Os inimigos serão só carneiros,
que mais rixas causasse e futriquice; se não faltarmos nós ao dever nosso.
da via ia afastar o movimento, Vêde quanto valor e honores guerreiros,
para que esse só no caminho surgisse; vencendo, nos porão em alvoroço;
e já tinha pensado onde encontrá-lo. vêde a vergonha e o extremo dano
Mas estes deixo e ora de Carlos falo. que, vencidos, farão o imigo ufano. -
38 Depois que, partindo o mouro, extinguiu 44 Enristando entretanto a grande lança,
Carlos em volta aquele perigoso fogo, logo a Berlingiero se atira afoito,
todo o seu povo à ordem reduziu. que contra Largaliffa se abalança,
Alguns deixou, para darem desafogo, e no elmo à hasta já dera coito:
e o resto contra os Mouros impeliu, lança-o ao chão e com a espada avança,
para dar xeque-mate e ganhar o jogo 10 ; e junto dele faz cair mais oito.
mandou-os ir pelas portas em redor, Por cada golpe ao menos que ele ferra,
da de Saint-Germain à de Saint-Victor' 1 • tombar faz sempre um cavaleiro por terra.
39 Recomendou que na de Saint-Marcel'2, 45 Noutra parte Rinaldo dera morte
que de grande terreiro se acompanha, a tantos pagãos que não sei contá-los.
todos juntos formassem um cartel Diante dele não era a ordem forte,
que em si reunisse toda a companha. pois ele se encarregava de espaçá-los.
Cada um incitou que ao infiel E Zerbino e Lurcanio de igual sorte,
morte dê tal que eterna fama ganha; tanto fazem que mister é lembrá-los:
por ordem mandou formar as bandeiras, a Balastro um morte tinha infligido,
e dar sinal de batalha às fileiras. o elmo o outro a Finadur fendido.
40 O rei Agramante entretanto à sela,
para mal dos cristãos, regressado era;
e com o enamorado de lsabella 1 3
travava luta perigosa e severa;
Lurcanio com o rei Sobrino martela;
Rinaldo, só, contra uma hoste opera;
com seu valor e com sorte a subjuga,
investe, abre, arruína e põe em fuga.
41 Achava-se a batalha neste estado,
assalta o imperador a retaguarda,
pelo lado em que, por Marsilio chefiado,
o escol de Espanha está à sua guarda.
Peões no meio e cavaleiros ao lado,
rei Carlos conduz sua hoste galharda,
com tal ruído de tambor e tromba
que em redor o mundo todo ribomba.
CANTO XVIII 293

46 A hoste de Djerba 14 tinha o primeiro, 50 Ficai, peço, por minha tenra idade,
que pouco antes pertencia a Tardocco; na qual grande esperança haveis geralmente;
o outro era das hostes timoneiro não vos deixai morrer em quantidade
de Zamor, de Safi e de Marroco 1 5 • que a África não nos torne a semente.
- Não há um africano cavaleiro Todo o caminho fechado estar há-de,
que saiba dar, com lança ou espada, troco? -, se não formos unidos estreitamente:
perguntarão. A resposta eu releixo; muito alto muro e muito larga fossa
nenhum digno de glória para trás deixo. monte e mar são, para que voltar se possa.
47 O rei de Zumara aqui não se esquece 51 Melhor morrer aqui do que aos castigos
(o nobre Dardinel, filho de Almonte), destes cães nos darmos, à discrição.
que Uberto de Mirford com a lança aquece, Aguentem firmes, meus fiéis amigos;
Claudio dal Bosco, Elio, Dulfin dal Monte; tudo o mais será só remédio vão.
Anselmo de Stanford sua espada conhece, Mais vida não terão os inimigos;
e, de Londres, Raimondo e Pinamonte; uma alma têm, uma e outra mão. -
deita-os por terra (e no entanto eram fortes): Enquanto assim dizia, o jovem forte
há dois zonzos, um ferido, e quatro mortes. ao conde de Atholl ali deu a morte.
48 Mas, com todo o valor que de si mostra, 52 A lembrança de Almonte a altivez
não pode ter tão firme a sua gente; da hoste antes em fuga renovou;
menos firme que a nossa, à qual se prostra, já defender-se mais os satisfez,
que em número é menor mas mais valente. que antes a fuga os entusiasmou.
Tem mais arte de espada e o demostra, Guglielmo de Burnich era o inglês
e de tudo o que à guerra é pertencente. maior, e Dardinello o encurtou,
Vão os de Zumara em fuga sumária, aos outros ficando igual; perto talha
e os de Ceuta, Marrocos e Canária. a cabeça a Aramon da Cornualha.
49 Mas os de Djerba fogem mais que todos, 53 Caiu morto este Aramon num coval,
aos quais o jovem fizera despeito; e a correr veio o irmão dar-lhe ajuda:
com ameaças, ou suaves engodos, mas Dardinello abriu-o pela espinal,
tenta repor-lhes ânimo no peito. até onde o tronco em pernas se muda.
- De Almonte a memória quer outros modos, Furou o ventre a Bogio da Vergalle,
e espero poder ver em vós efeito: livrando-o duma promessa maçuda:
quero ver se podeis a mim, seu filho, seis meses após, à mulher jurara,
abandonar em tão grande sarilho. se fora vivo para ela voltara.
294 ORLANDO FURIOSO

54 Não longe viu vir Dardinel galhardo 60 Rei Norandino com sua corte armada,
Lurcanio, que por terra depusera vendo o povo pela cidade a fugir,
Dorchin, na goela trespassado, e Gardo, à porta foi em batalha ordenada,
o qual da cabeça aos dentes fendera; e aquela fez à sua hoste abrir.
e que Alteo quis fugir-lhe, mas foi tardo, Grifone entretanto, tendo afastada
Alteo, que ele em tanto afecto tivera; de si a turba néscia, quis vestir
atrás do pescoço um golpe lhe deu a armadura tinta de vileza,
Lurcanio fero, de que faleceu. admitindo precisar de defesa;
55 Na hasta pega para fazer vingança, 6 1 junto dum templo bem murado e forte,
dizendo a Maomé (se ouvir podia) e rodeado por uma funda fossa,
que, se morto Lurcanio à terra lança, no cimo dum pontão fez o seu forte,
à mesquita a armadura vai, vazia. para que fechá-lo em torno ninguém possa.
Pelo campo então muito veloz avança, Nisto, gritando e ameaçando forte,
e com tal força no flanco o gladia pela porta sai uma tropa bem grossa.
que todo o passa até à outra banda; O fogoso Grifon dali não sai,
e aos seus em seguida que o dispam manda. e nenhum medo o seu semblante trai.
56 Não há que perguntar-me se sofrido 62 Vendo para si avançar essa tropa,
teria Ariodante, seu irmão; seguiu ao seu encontro pela estrada,
se para as almas danadas tinha querido e muitos massacrou à queima-roupa
mandar Dardinello, com sua mão; (girando com duas mãos sempre a espada);
mas chegar junto dele é-lhe impedido do seu pontão se põe de novo à popa,
pelo baptizado como pelo pagão. onde algum tempo os tinha sob a alçada;
Queria porém vingar-se, e com a espada depois saía, e outra vez voltava,
vai aplanando aqui e ali a estrada. e sempre terríveis marcas deixava.
57 Fere, abre, derruba, retalha, fende 63 Ora a direito ora de enviesado
qualquer um que o impede ou se lhe opõe. lança peões e cavaleiros a terra.
E Dardinel, que o seu desejo entende, Todo o povo, contra ele revoltado,
a pretendê-lo saciar se dispõe; cada vez mais atiça aquela guerra.
mas é grande a multidão que contende Teme Grifon ser pela turba engolfado,
ora com ele, e aos planos se interpõe. pois cresce o mar que em cada lado o encerra;
Se mouros um mata, o outro a escocês no ombro e na coxa esquerda está ferido,
dá morte, ou a inglês ou a francês. e sente quase o fôlego exaurido.
58 Fortuna aos dois sempre a via atalhou, 64 Mas Virtude, que os seus fiéis socorre,
todo o dia houve entre eles anteparo. faz com que Norandin lhe dê perdão.
Para mais famosa mão o reservou: O rei, que à liça duvidoso acorre,
fugir o homem ao destino é raro. vê que mortos ali já muitos estão;
Eis que Rinaldo para ali caminhou, tais chagas vê que por Heitor, discorre,
para que para a vida de um não haja amparo; pareciam feitas; testemunho dão
Rinaldo vem, pela Fortuna guiado: de que antes infligira indignamente
dá-lhe o honor de Dardinel ter matado. vergonha a um cavaleiro excelente.
59 Mas por agora bastante contei 65 Quando mais perto chega, e vê defronte
das façanhas gloriosas do Poente. quem aos seus dera morte desumana,
Tempo é que volte onde Grifon deixei, dos quais em frente tinha horrível monte,
que, todo de ira e de desdém ardente, cujo sangue o fosso e a água profana,
terror espalhava sem conhecer lei parece-lhe que vê naquela ponte
entre a confusa e desvairada gente. Orazio só contra toda a Toscana16 •
Rei Norandino acorre à inferneira, Por sua honra, e pelo grande enxovalho,
trazendo mil armados em fileira. retira a tropa: o que nem deu trabalho.
296 ORLANDO FURIOSO

66 E levantando a mão sem arma e nua, n Perguntou-lhe Aquilante se pretexto


sinal antigo de trégua e de paz, tal fora de conversa a seu irmão;
disse a Grifon: - Só a mim se atribua como ele confirmou, deduziu o resto:
este erro, que tanto me descompraz; por que tinha partido e a razão.
Meu mau juízo, e de outrem falcatrua, Que ele Orrigille seguiu é manifesto,
me fez cair em falta tão falaz. a Antioquia, com a intenção
O que julguei estar fazendo ao mais vil de a subtrair às mãos do seu rival,
guerreiro do mundo, fiz ao mais gentil 17 • com inesquecível vingança e mal.
67 E apesar de à injúria e à vergonha 73 Por sem si não tolerar Aquilante
que hoje feita te foi, por ignorância, seu irmão aquela empresa encetasse,
o valor que aqui mostraste se oponha, tomcu :umas e atrás foi num instante;
ou, aliás, supere em abundância, mas ao duque pediu que a ir tardasse
compensação entendo que se imponha, a França, ao paterno lar viajante,
com minha competência em consonância, até que de Antioquia voltasse.
logo que eu saiba quais os teus desvelos: Vai a Jaffa e embarca, por julgar
se queres ouro, cidades ou castelos. mais breve e melhor a via por mar.
6B Podes pedir do meu reino metade: 74 Teve um vento de sul muito potente
estou para fazer-te dele possuidor; no mar, e a seu favor tão bem disposto
não só tal por valor e qualidade que a cidade de Tiro 1 8 tem na frente
mereces; meu coração em penhor um dia após, Saffetto 1 9 a seguir posto.
te dou: a mão me dá, para lealdade Passa Beirute e Djebel, e ali sente
testemunharmos e perpétuo amor. - à esquerda o ar de Chipre no seu rosto.
Tal dizendo, do cavalo desceu, Trípoli e Tortosa20, de Laodiceia
e a Grifone a mão direita estendeu. vai ao golfo de Laiazzo21 , em cadeia.
69 Vendo Grifone o rei assim benigno, 75 Aí, a leste vira o mestre a fronte
que de mão estendida se aproximou, do navio, que segue ágil e veloz;
deixou espada e o ânimo maligno, então dirigiu-se para o rio Oronte22,
e os joelhos humilde lhe abraçou. colheu boa maré e entrou na foz.
Vendo o rei de duas feridas o signo, Mandou Aquilante baixar a ponte,
mandou logo vir quem o medicou; e armado saiu no corcel feroz;
e à cidade o levou sem mais prefácio, contra o rio23 estrada a direito levou,
para repousar no seu real palácio. e em breve a Antioquia chegou.
70 Onde ferido ficou tempo bastante, 76 De Martano buscou informação,
até as armas poder envergar. e soube que a Damasco tinha ido
Ali o deixo, e ao irmão Aquilante com Orrigille (que ali uma tenção
e Astolfo, à Palestina, vou voltar; solene havia), pelo rei requerido.
que por Grifon, depois que ele emigrante Pensa também ir, porque seu irmão,
dali foi, andaram a indagar tem a certeza, tê-lo-á seguido;
de Jerusalém nos lugares devotos, no mesmo dia deixa Antioquia,
e até muitos da cidade remotos. mas já por mar viagem não seguia.
24
71 Porém nem um nem outro é adivinho, 77 Por Lídia e Larissa caminho faz;
para calcular onde Grifon estaria; logo adiante Aleppe25 , rica e plena.
mas o grego peregrino sozinho Deus, para mostrar que aqui justiça traz,
em conversa uma pista lhes daria, que ao bem dá mercê, e ao oposto pena,
dizendo que Orrigille tomou caminho junto a Mamuga26 Martano, o fugaz,
para a Síria, à cidade de Antioquia; a encontrar Aquilante condena.
que um novo drudo, por quem se interessara À sua frente traz em evidência
e era daquele lugar, acompanhara. o prémio que da vitória é credência.
CANTO XVIII 297

78 Pensou Aquilante, ao vê-lo surgir, 84 Podia com astúcia dar encanto:


que o torpe Martano seu irmão fosse; aquele facilmente o acreditaria;
enganaram-no as armas, e o vestir fora tirar-lhe armas, corcel e quanto
mais branco que neve que o céu já trouxe; de Grifon tinha, mal não lhe faria,
e com o oh!, que costuma exprimir se não houvesse aperfeiçoado tanto
alegria, começou; mas calou-se, a desculpa que a mentira associa:
mudou rosto e fala, quando já perto que era boa em tudo, e apenas malsã
viu que o irmão ele não era decerto. no dizer que a mulher é sua irmã.
79 Suspeitou que, por embuste de quem 85 Em Antioquia Aquilante, surpreso,
estava com ele, morte tivesse dado soubera que amante é, por muitas gentes;
a Grifon; e gritou: - Donde provém, e então gritou-lhe, de furor aceso:
tu que és um ladrão e traidor chapado, - Falsíssimo ladrão, sei bem que mentes! -
essa armadura, e o bom palafrém Um murro lhe atirou com tanto peso
que é de meu irmão, em que vens montado? que pela goela lhe enfiou dois dentes;
Diz-me se meu irmão é morto ou vivo; e, sem mais espera, puxou-lhe os dois braços
como as armas e o corcel tens cativo? - para trás das costas e atou-os com laços;
80 Quando Orrigille ouviu a irada voz, 86 e a mesma coisa fez a Orrigille,
para trás o corcel para fugir volveu; embora desculpas desse com guais.
mas foi que ela Aquilante mais veloz Levou-os por aldeia e alcantil,
e, quisesse ela ou não, interrompeu. até Damasco não os largou mais;
Martano, à ameaça tão feroz e por milhares de milhas vezes mil
do outro, que de surpresa o colheu, os levaria com penas e ais,
pálido treme, como ao vento folha; até que houvesse achado seu irmão,
nem sabe que resposta para dar escolha. que àqueles dois daria solução.
81 Grita Aquilante, a quem a raiva enfesta, 87 Aquilante seus escudeiros levou
e junto à garganta lhe põe a espada; e bagagem, e assim Damasco alcança;
ameaçador lhe jura que sua testa de Grifon famoso o nome encontrou,
e a de Orrigille lhes será decepada, por onde quer que pela cidade avança:
se toda a verdade não manifesta. pequenos, grandes, cada um contou
Martano engole em seco e não diz nada, como tão bem manejava ele a lança;
pensando a maneira de reduzir e o amigo, com traição de permeio,
sua culpa; depois começa a referir: lhe subtraíra a glória do torneio.
82 - Sabei, senhor, que minha irmã é esta, 88 Todo o povo, de Martano inimigo,
nascida de boa e virtuosa gente; um ao outro o aponta e o descobre.
porém, levada à vida desonesta - Não é este o patife que ao amigo
por esse Grifon, vergonhosamente; (diziam) rouba a glória e obra encobre?
e sendo-me tal infâmia molesta, E a quem de boa fé lhe dá abrigo
e sem que em vigor me achasse potente de sua infâmia e seu opróbrio cobre?
para tirá-la a um de força tamanha, E não é aquela a mulher ingrata,
quis reavê-la com astúcia e manha. que trai os bons e os maus muito bem trata? -
83 Com ela acertei, pois queria fugir 89 Outros diziam: - Que bem juntos estão,
e regressar a mais honrada vida, os dois da mesma marca e mesma raça! -
que, quando Grifon estivesse a dormir, Um os maldiz, outros apupos dão,
. secretamente encetasse a partida. grita-se: - Enforca, queima, despedaça! -
Assim fez ela; e para ele impedir Comprimem-se para os ver, ao empurrão,
de nos seguir, gorando a teia urdida, correm pelas ruas, vão até à praça.
deixámo-lo sem armas nem cavalo, Chegou a nova ao rei, que deu sinais
conforme já pudeste constatá-lo. - de em vez de outro reino apreciá-la mais.
298 ORLANDO FURIOSO

90 Sem muitos escudeiros atrás e adiante, 93 Amarram-no (não entre flores e erva)
conforme estava, saiu sem tardança na outra manhã, para a sova ferina.
para vir encontrar-se com Aquilante, Quanto a Orrigille, presa se conserva
que do seu Grifon fizera vingança; até que regresse a bela Lucina,
cumprimenta-o, com seu gentil semblante, a cujo sábio parecer se reserva,
e convida-o para o paço, onde descansa; ou leve ou dura, a sua disciplina.
com seu acordo, a dar ordens acorre Ali esteve Aquilante a recrear-se,
para prender os dois traidores na torre. até que o irmão, são, pudesse armar-se.
91 Junto ao leito de Grifon o levou, 94 Rei Norandino, o qual aprendizagem
donde inda não saíra por estar ferido, de sensatez fez com seu grande error,
que ao ver o irmão se ruborizou, no coração sentia a vilanagem,
calculando seu erro ter sabido. cheio de arrependimento e de dor,
Aquilante com o irmão motejou, que Grifon houvera em vez de homenagem,
e depois quis tomar com ele partido tão digno sendo de mercê e honor;
de dar àqueles dois justo castigo, por isso noite e dia tinha em mente
entregando-os nas mãos do inimigo. fazê-lo consigo ficar contente.
92 Quer Aquilante e quer o rei que em mil
pedaços sejam feitos; Grifon não.
Não ousando falar só de Orrigille,
quer que um e outro recebam perdão.
Muito falou em jeito senhoril,
respostas teve, e ao fim, em conclusão,
Martano ao carrasco foi condenado,
não para morrer, mas para ser açoitado.
CANTO XVIII 299

95 Determinou, em pública presença 101 A cortesia à lembrança lhe veio


da cidade, a quem a culpa abrangia, de quando no Catai o teve à beira30 :
com a maior glória que um rei dispensa chamou-o pelo seu nome, e do arreio
ao cavaleiro perfeito que a merecia, despiu a mão e ergueu a viseira;
destinar-lhe o prémio que, com ofensa, veio abraçá-lo em alegre meneio,
o traidor de o dar impedido havia; embora fosse mais que outra altaneira.
por isso no país publicar fez Por seu lado, não menos reverente
que havia outra justa dentro de um mês. foi o paladim com a dama excelente.
96 Preparativos solenes reclama, 1 02 Um ao outro inquiriu qual a sua via;
bem adequados à pompa real; e quando Astolfo primeiro respondeu,
com suas velozes asas a Fama informando-a de que a Damasco ia,
por toda a Síria disso deu sinal; onde quem em armas tiver troféu
e na Fenícia e Palestina aclama, o rei da Síria quer ver em tal dia,
e Astolfo assim veio a saber de tal; para as obras valorosas pôr ao léu;
fez com o vice-rei27 combinação sempre pronta a mostrar sua destreza,
para que ao dito torneio juntos vão. disse: - Quero ir convosco a essa empresa. -
97 Como guerreiro de valor e nomeada, 1 03 A Astolfo muito grata foi esta
Sansonetto a vera história agiganta. companheira de armas, e a Sansonetto.
Orlando o baptizou; por Carlos dada Estão em Damasco um dia antes da festa,
foi a governação da Terra Santa. e fora das muralhas acham tecto;
Com ele e a tralha28 Astolfo fez-se à estrada, e até à hora em que do sono alesta
para ir até aonde a Fama canta, Aurora o velhote, seu ex-dilecto3 1 ,
dela estando cheia qualquer orelha, mais confortável lá foi seu repouso
que em Damasco o torneio se aparelha. do que se no palácio houvessem pouso.
98 Cavalgando agora pela campina 1 04 Quando do novo sol os raios brilharam
em troços curtos, cómodos e lentos, fortes e claros, por planos e outeiros,
para frescos chegarem uma matina a bela dama e os guerreiros se armaram,
a Damasco, e ir para os festejamentos, e à cidade enviaram mensageiros;
no sítio onde uma estrada outra confina os quais ao regressar os informaram
viram quem, pelo vestir e os movimentos, que, para ver quebrar faias, freixieiros32,
homem parecia, porém mulher era, rei Norandino fora para o lugar
e em batalha espantosamente fera. onde ia o fero jogo realizar.
99 Virgem Marfisa ela se nomeava, 1 05 Sem mais demora para a cidade vão,
de tal valor que, com a espada em mão, pela rua principal e à grande praça,
muitas vezes fez ao senhor de Bravà29 onde aguardando o real sinal estão,
a fronte suar, e ao de Montalvão; aqui e ali, guerreiros de boa raça.
armada dia e noite sempre andava, Os prémios que nesse dia se dão
procurando por monte e plano chão a quem vence é uma adaga e uma maça
com cavaleiros errantes pelejar, ricamente ornados, e um corcel, qual
para gloriosa e imortal se tornar. adequada oferta a um senhor tal.
1 00 Assim que viu Astolfo e Sansonetto, 106 Decide Norandino com fervor:
envergando armas até ao pescoço, primeiro prémio e segundo também,
bons guerreiros os achou pelo aspecto: ·e das duas justas o sumo honor
ambos eram grandes e de bom osso; só Grifone, o branco, direito tem;
de os pôr à prova fez o seu projecto, para dar-lhe tudo o que homem de valor
e ao cavalo havia já dado esboço, devera ter, como a ele se convém,
quando, melhor fixando o olho felino, a esta liça junta em privilégio
reconheceu o duque paladino. a adaga, a maça e o corcel egrégio.
CANTO XVIII 301

107 As armas que pela tenção antes feita 113 Pica o cavalo, e aquela turba tola
a Grifon se deviam, que a venceu, com a hasta baixa corre a atacar;
e que usurpara com triste desfeita a um golpeia o peito, a outro a gola,
Martano, que o outro ser pretendeu, e no impulso outros mais faz tombar;
mandou o rei expor em parte eleita; depois com a espada um e outro assola,
a adaga ornamentada ali prendeu e faz alguns sem cabeça ficar;
e a maça o arção do corcel guarnece, a outros a abre, ou então o flanco,
para que Grifone um prémio e outro houvesse. a um braço corta, outro deixa manco.
1 08 Mas que fosse cumprido esse projecto 114 Astolfo e Sansonetto, estando a jeito,
evitou a magnânima guerreira como ela vestindo couraça e malha,
que, com Astolfo e o bom Sansonetto, embora não vindos para tal efeito,
à praça ora chegara mui ligeira. vendo que estava renhida a batalha,
Vendo ela logo das armas o aspecto, a viseira baixaram e a preceito
a reconhecê-las foi bem certeira: a lança também, para aquela canalha;
suas já tinham sido, e muito caras, e a seguir vão, com a cortante espada3 5 ,
como nos são coisas boas e raras; por aqui, por ali, abrindo estrada.
109 deixara-as um dia à beira da estrada, 1 15 Os cavaleiros das outras nações,
para que não lhe causassem embaraço, que para justar aqui se deslocaram,
quando, para reaver a boa espada, vendo as armas dar tais mutilações
perseguira Brunel, digno de laço33 • e que os jogos em luto se mudaram
Não creio que a história outra vez contada34 (porque da ira da plebe as razões
deva ser; por isso, silêncio faço. muitos dentre eles não as alcançaram,
Só quero que entendam de forma precisa nem que ao rei fizeram ofensa ingrata),
como aqui achou as armas Marfisa. tinham confusa a mente e estupefacta.
1 1 0 Entendereis que logo que as havia 116 Por isso há quem corra a ajudar a turba,
reconhecido por claros sinais, do que em breve sente arrependimento;
por tudo o que há no mundo, não teria ou a quem estranho e cidadão conturba
deixado de as vestir um dia mais. igualmente, a separá-los intento;
Se um modo ou outro melhor permitia ou quem, mais prudente, não se perturba,
reavê-las, não teve ideias tais: ficando a ver de quem sai a contento.
chega-se de repente, sua mão estende, Entre os primeiros Grifon e Aquilante,
e sem cerimónias dali as desprende; para vingar as armas, foram avante.
111 e, pela pressa com que o fez, acontece 1 17 Vendo eles que o rei de irado veneno
que parte agarrou, parte foi à terra. e sangue injectados os olhos tinha,
O rei, a quem grande ofensa parece, e porque instruídos estavam em pleno
com um só olhar declara-lhe guerra; dos motivos da discórdia mesquinha,
o povo, a quem toda a injúria aquece, o seu que o do rei não menos pequeno36
para o vingar lanças e espadas aferra, achou Grifon, e já nada o detinha,
já esquecido de quanto, dias antes, os dois se haviam armado de lança
sofreu devido a cavaleiros errantes. e galopando vinham, à vingança.
1 1 2 Nunca entre azuis, rubras e brancas flores 1 18 Astolfo, de Rabicano no arção
um amoroso, na estação da esperança, vinha, a esporear, de todos adiante,
nem dama tão linda como os amores com a lança de ouro encantada na mão,
com tal gosto esteve entre sons de dança, que abate, ao toque, qualquer pelejante.
como entre corcéis e de armas clangores Com ela deixou estendidos no chão
e golpes de flecha e pontas de lança, Grifon primeiro, e depois Aquilante;
onde se esparge sangue e se dá morte, no escudo lhe deu um toque ligeiro,
esta se sente, mais que em tudo forte. mas deixou-o de borco no terreiro.
302 ORLANDO FURIOSO

119 Cavaleiro que de valor já deu prova, 12s Mas um que entende estar ali Marfisa,
ante Sansonetto todo ao chão vem. que pelo mundo tem fama de ser forte,
O povo todo da praça desova, volta o cavalo e Norandino avisa
e o rei arde de raiva e de desdém. que, se hoje não quer perder sua corte,
Com a primeira couraça e a nova, providencie, que perigo se divisa,
Marfisa entretanto, e os elmos também, para subtraí-la a Tisífone39 e à Morte;
quando viu todo o povo em retirada pois foi Marfisa realmente quem
vencedora vai para a sua pousada. na praça as armas tirou com desdém.
120 Astolfo e Sansonetto de repente 126 Ao ouvir rei Norandino o seu nome,
seguem-na, sendo breves a chegar que tão temido era em todo o Levante
junto ao portão (porque ali toda a gente que os cabelos põe em pé, e consome
alas abriu) e à cancela37 alcançar. de medo até quem dela está distante,
Aquilante e Grifon, com dor patente teme que a situação má feição tome,
por ver-se numa justa derrubar, como aquele diz, se lhe não dá garante;
com tanta vergonha, pelo paladino, por isso os seus homens, em quem a ira
não ousam ir junto de Norandino. a medo passara, para trás revira40 •
41
121 Procuram e montam os seus cavalos, 127 Os filhos de Oliviero por seu lado,
seguindo os inimigos sem parança. com Sansonetto, e de Otone o varão42,
Segue-os o rei com muitos seus vassalos, a Marfisa suplicam com cuidado,
todos prontos para a morte ou para a vingança. e termo põem à cruel tenção.
Grita a néscia turba: - Toca a caçá-los! -, Marfisa ao rei, com altaneiro enfado,
mas longe fica e dali não avança. disse: - Não sei, senhor, por qual razão
Chega Grifon quando voltam a fronte queres dar armas que não te pertencem
os três companheiros, tomada a ponte. em prémio a quantos tua justa vencem.
122 Conhece logo de Astolfo a figura, 12s Minhas são elas e, no meio da via
e as mesmas divisas que apresentou, que da Arménia vem, um dia as deixei,
e o mesmo cavalo, e a mesma armadura, porque seguir a pé então devia
no dia em que Orrilo fatal matou38 • um que me ofendeu, um fora-da-lei:
Nem lhe dera atenção à catadura, de tal seja minha insígnia valia,
quando na praça com ele batalhou; que espero conheças e mostrarei. -
reconhecendo-o, saudou-o; e, após, E mostrou-lha, na couraça gravada:
quis saber da companhia feroz, era uma coroa em três partes quebrada.
123 e por que as armas jogaram a terra, 129 - Certo é (disse o rei) que me foram dadas
mostrando ao rei tão pouca reverência. há pouco por um arménio mercante;
A companhia o duque de Inglaterra se por ti me fossem solicitadas,
deu a conhecer com toda a evidência; tuas ou não, dava-tas nesse instante;
das armas que originaram a guerra, o facto de a Grifon estarem doadas,
disse que delas tinha pouca ciência; confio e sei que não seria obstante,
mas, como com Marfisa ali fez escala, para permitir que eu as armas te desse,
Sansonetto e ele foram ajudá-la. a devolver-me o que em prémio merece.
124 Estando ali com Grifone o paladino, 130 Não precisa alegar, para fazer fé
chega Aquilante e conhece-lhe o rosto, que tuas são, que hão o emblema teu;
ao vê-lo com o irmão em trato fino: basta dizer, pois tanto em ti se crê
muda intenção, já não está mal disposto. que o outro testemunho esmoreceu.
Chegavam muitos dos de Norandino, Que as armas sejam tuas se prevê,
mas perto deles não se tinham posto; pois teu valor maior prémio mereceu.
tanto mais que, vendo seus parlamentos, Agora as tens, e mais não se contenda;
calados estavam, à conversa atentos. e Grifon terá de mim maior prenda. -
CANTO XVIII 303

131 Grifon, que pouca estima às armas tinha, 137 O odor pesado que o pântano exala
mais desejando o rei satisfazer, para o navio ali estar causa transtorno.
disse: - Compensação para mim advinha Partem com nordeste que a vela embala,
maior, sabendo de a vós comprazer. - e para a direita vão, de Chipre em torno,
Para si disse Marfisa: - A honra minha chegando a Pafo47 , onde fizeram escala;
satisfeita está -; e, para receber descem ao lido tão cheio de adorno,
de Grifon as armas, cortês expressão uns para mercar, e outros só para ver
lhe fez, recebendo-as da sua mão. a terra de amor plena e de prazer.
132 À cidade com paz e com amor 13s Do mar a umas seis milhas, pouco a pouco
voltaram, onde a festa renovou. se vai subindo para o outeiro ameno.
Depois fez-se a justa, de que o honor Mirto, cedro, laranja, maçaroco,
e prémio Sansonetto conquistou; e de outros suaves arbustos está pleno.
que Astolfo, os dois irmãos e a melhor Tomilho, manjerona, rosa e croco
que eles, Marfisa, não participou; espargem daquele odoroso terreno
quiseram, por amizade e respeito, tanta fragrância que no mar sentir
que Sansonetto tivesse o proveito. faz qualquer vento que da terra expire.
133 Tendo ali estado em grande gozo e festa 139 De límpida nascente, toda aquela
com Norandino oito dias ou dez, colina vai regando rio fecundo.
porque a saudade de França os molesta, Dizer-se pode que é de Vénus bela
e a longa ausência já os contrafez, o lugar, tão prazenteiro e jucundo:
despedidas fazem; Marfisa, que esta cada dama ali de facto, ou donzela,
via almejava, companha lhes fez. é mais louçã do que outras há no mundo;
Marfisa ambicionava esses destinos jovens, velhas, faz a deusa de amor
para ir medir-se com os paladinos, arderem até ao último alor.
134 e saber pela experiência se o efeito 140 Ouvem aqui o mesmo já ouvido
correspondia a tão grande nomeada. na Síria, acerca do Orco e Lucina,
Por Sansonetto um outro foi eleito e que, para ela voltar para o marido,
para Jerusalém ficar governada. em Nicósia tudo bem se combina.
São estes cinco um grupo tão perfeito Por fim o mestre (era homem mexido,
que poucos assim o mundo arrecada; e porque o vento a favor se lhe inclina)
do rei Norandino se despediram, a âncora levanta e gira a proa
e para Trípoli, à beira-mar seguiram. para poente, e cada vela afeiçoa.
135 Uma nave ali esperando encontraram 141 Ao vento noroeste as velas a nave
que mercancia para Poente reúna. içou de feição, rumo ao alto-mar.
Para si e para os cavalos se acordaram Um de oés-sudoeste que suave
com um velho patrão que era de Luna43 • pareceu até ao declínio solar,
Pelo tempo limpo se certificaram mas que ao entardecer se tornou grave,
que iam navegar com boa fortuna. num fero assalto fez o mar se alçar;
Ao zarpar tinham aragem serena, e o céu, com tanto trovão e fulgor,
e de bom vento cada vela plena. dir-se-ia arder e fender-se em redor.
44
136 A ilha sacra da amorosa deia 142 Estendem as nuvens tenebroso véu,
deu-lhes, com seu miasma, primeiro porto, que sol já não deixa aparecer nem estrela.
que não só ao homem vigor cerceia, Por baixo o mar, por cima muge o céu,
como o ferro corrói, e cedo é morto. o vento a toda a volta, e a procela
Um pântano é razão; e essa potreia com chuva cerrada e pedra e griséu
a Famagusta45 dá tal desconforto os navegantes míseros flagela;
por perto estar de Constança46 maligna, e a escuridão cada vez mais avonda
quando no resto Chipre é tão benigna. sobre a irada e formidável onda.
304 ORLANDO FURIOSO

143 Os navegantes vão mostrando o efeito 149 Venho para comprovar, se tu me atendes,
das artes para as quais cada um tem dom: se bem guardas o signo rubro e branco;
um com o apito faz ver com preceito pois, se aqui contra mim o não defendes,
aos outros o que a fazer há, com o som; contra Orlando nem darás um arranco. -
põe outro âncoras de reserva a jeito; E Dardinello: - Pois agora aprendes
um a amainar e o outro à corda é bom; que o uso, e a defendê-lo não sou manco;
um outro o leme, outro o mastro segura, e não só brigo, mas de honra me cubro,
outro a coberta liberta assegura. com o paterno signo branco e rubro.
144 Cresceu o temporal em toda a noite, 150 Lá por eu ser rapaz, tu não me alarmas,
caliginosa e mais escura que o Inferno. nem o quadriculado te darei:
Procura o mar fundo o patrão, que acoite a vida me tiras, se me desarmas,
menos rebentação, melhor governo; mas espero em Deus que o contrário terei.
e vira aqui e ali contra o açoite Haja o que houver, ninguém com estas armas
do mar a proa, e do fatal Averno, verá que da estirpe eu degenerei. -
na esperança sempre que, vindo a manhã, Assim dizendo, com a espada na mão
cesse a borrasca ou se torne mais chã. atacou o senhor de Montalvão.
145 Não cessa nem amaina, e mais furor 151 Aos Africanos todos oprimiu
mostra de dia, que é dia funesto, o coração de gelado temor,
a que o contar das horas dá rigor, ao verem que Rinaldo ali surgiu
visto que por luz não foi manifesto. com tanta raiva contra aquele senhor
Ora, com menos esperança e mais temor, quanta no prado já leão sentiu,
dá-se ao poder do vento o patrão mesto: vendo um touro que inda não sente amor50 •
dá a popa às ondas, e o mar cruel Quem primeiro feriu foi o sarracino,
correndo vai, levado ao sabor dele. mas em vão foi, no elmo de Mambrino5 1 •
146 Quando a Sorte no mar estes trabalha, 152 Rinaldo riu: - Pois agora experimenta,
não deixa repousar quem está em terra, se eu sei melhor que tu achar a veia. -
quem está em França, onde mata e retalha Com esporas e brida o cavalo alenta,
Sarracenos o povo de Inglaterra. e a direito com tal força golpeia
Ali Rinaldo assalta, abre e baralha que a ponta, que pelo peito lhe apresenta,
hostes adversas, bandeiras aterra. do lado das costas se patenteia.
Disse eu que impeliu o corcel Baiardo Tirou-lhe, ao puxá-la, a alma com o sangue:
ao encontro de Dardinel galhardo. caiu da sela o corpo frio e exangue.
147 Rinaldo o quadriculado altaneiro 153 Morre assim purpúrea e lânguida flor
viu, que era orgulho do filho de Almonte; que o arado quando passa elimina,
calculou-o galhardo e bom guerreiro, ou, abatida por chuva maior,
para que a insígnia com o conde confronte48 ; no campo a papoila a cabeça inclina:
perto chegando, viu ser verdadeiro, fugindo de seu rosto toda a cor,
pois em torno homens mortos tinha ao monte. em Dardinello a vida se fulmina;
- Melhor será (gritou) que eu este aterme, adeus diz à vida, e dizem adeus
antes que maior se torne tal germe. - à coragem e ardor todos os seus.
148 Para onde o rosto vira o paladino, 154 Como água que humano engenho mantém
todos se afastam e dão larga estrada; represada por vezes e reclusa,
menos não desvia que o sarracino, quando se rompe o dique que a sustém,
tão respeitada é a famosa espada49 • com estrondo precipita e terras cruza;
Rinaldo, além de Dardinel ladino, juntos estavam os de África também,
mais nenhum vê, e vai-lhe na peugada. com coragem por Dardinello infusa;
- Rapaz (diz), meteu-te em grande atoleiro espalham-se ora por esta parte e aquela,
quem te deixou de tal insígnia herdeiro. tendo-o visto cair morto da sela.
CANTO XVIII 305

155 Quem quer fugir Rinaldo não rechaça, 159 Aquela parte a quem calhou derrota
e quem está firme põe em debandada. nem tromba escutou, tambor ou sinal:
Caem todos onde Ariodante passa, foi tão grande o medo e tal a chacota
idêntico a Rinaldo na caçada. que ao Sena muitos dão salto mortal.
Outros Lionetto, outros Zerbino amassa, Quer Agramante reunir a frota,
os dois a dar provas à desgarrada. e com Sobrino recolhe o pessoal;
Faz Carlos seu dever, e Oliviero, e os outros comandantes para o abrigo
Turpino, Guido, Salamone, Uggiero. seus esquadrões tentam levar consigo.
156 Esse dia os Mouros correram perigo 1 60 Mas nem o rei, nem Sobrino, ou algum,
de não regressar à Pagânia52 testa; com rogos, ameaças, ou sermão;
mas o sábio rei de Espanha53 consigo um terço reúne, ou quase nenhum,
leva dali a tropa que lhe resta. e os esquadrões muito desfalcados vão.
Ter algum dano acha menor castigo, Mortos ou em fuga são dois, para um
pois tudo perder muito mais molesta. que restou; porém, mesmo esse malsão:
Melhor retirar com alguma tropa uns estão feridos atrás, outros à frente,
que ficar e perder até a roupa. mas cada um exausto e descontente.
157 Para o arraial as insígnias envia, 161 Com grande esforço fazem seu transporte,
que a salvo estavam por barreira e fossa, levando-os às portas do alojamento;
com Stordilan, com o rei da Aridaluzia e aquele lugar achavam pouco forte,
e o rei ponuguês54 , numa esquadra grossa. e obras boas tinha de salvamento
Manda pedir ao rei da Berberia5 5 (agarrar pelos cabelos57 sabe a Sorte
que retire dali o melhor que possa; rei Carlos, quando ela lhe vira o mento);
se nesse dia pessoa e lugar até que a noite com as trevas chegou,
puser a salvo, tem que se gabar. que a luta impediu e tudo aquietou,
15s Aquele rei, crendo-se já vencido, 1 62 pelo Criador apressada talvez,
pensando nunca mais rever Bizerta56, com pena das gentes por si criadas.
de rosto tão horrível e aborrido Ondeou o sangue pelo campo, e fez
não tendo até ali da Sorte oferta, um grande rio que inundou as estradas.
gostou de Marsilio ter reduzido De oitenta mil número se perfez,
parte do campo a segurança certa; passados nesse dia a fio de espadas.
a retirar começou e a trazer Ladrões e lobos saíram das tocas
pendões, e fez tocar a recolher. para os despojar e para saciar as bocas.
306 ORLANDO FURIOSO

1 63 Carlos na cidade já não se encerra, 1 69 Quero ir, para que não esteja insepulto,
contra o inimigo fora quer ficar, ao meio da campina, procurá-lo;
e as suas tendas em assédio cerra, talvez Deus permita que eu passe oculto,
grossos e altos fogos manda atiçar. e o campo de rei Carlos circunvalo.
Previne-se o pagão cavando a terra, Tu ficarás: se à minha vida indulto
para fossos e bastiões edificar; o Céu não der, podes depois narrá-lo;
inspecciona a guarda que fica alerta, se Fortuna impedir tão belo gesto,
nenhum da armadura se liberta. que o torne a fama ao menos manifesto. -
1 64 Toda essa noite pelos alojamentos 1 70 Espanta-se Cloridano com o fervor
dos inseguros Mouros oprimidos do jovem rapaz, e a dedicação;
se vertem prantos, gemidos, lamentos, faz tentativa, porque tem-lhe amor,
mas muito abafados e reprimidos. de o desviar dessa louca intenção;
Por parentes e amigos sofrimentos, de nada vale, porque tão grande dor
por mortos estarem, ou porque estão feridos não tem alívio nem consolação.
eles próprios, e por sua dor gemem; Medoro dispunha-se ou a morrer
mais ainda porque o amanhã temem. ou seu senhor de túmulo prover.
165 Entre os outros, dois mouros ali estavam 1 71 Vendo que o não dobra nem o demove,
de estirpe incerta, mas de Tolomitta 58 ; Cloridano diz-lhe: - Vou também eu;
que uma história rara que apresentavam quero também que minha honra se prove,
de vero amor merece ser descrita. e morte ter que mereça troféu.
Cloridano e Medoro se chamavam, O que mais pode haver que em mim renove
os quais na sorte boa ou na maldita alegria, sem ti, Medoro meu?
sempre tinham amado Dardinello, Pelas armas morrer contigo é melhor
e a França o acompanharam com desvelo. que, ficando sem ti, morrer de dor. -
1 66 Cloridano, caçador toda a vida, 1 72 Assim dispostos, esperaram os dois
era de robusta e ágil figura; sucessivas guardas, e embora vão.
Medoro5 9 tinha a face colorida, Passam fossos, paliçadas, depois
plena de alegre e juvenil candura; passam pelos nossos que alheados estão.
entre a gente a esta empresa acorrida, Extinto o fogo, tudo dorme, pois
face não havia mais bela e pura: dos Sarracenos não temem acção.
olhos negros, na cabeça anéis de ouro, Entre os carros e as armas estão reversos,
mais parecia um anjo do sumo coro60 • em sono e vinho totalmente imersos.
1 67 Estavam estes dois sobre o baluarte
com outros, guardando os alojamentos,
quando a Noite, passada meia parte61 ,
olhava o céu com olhos sonolentos.
Medoro de seu senhor não desparte
a sua ideia, falas e lamentos,
chorando por Dardinello de Almonte,
que insepulto no campo está, a monte.
1 6s Ao companheiro disse: - Ó Cloridano,
dizer quanto me dói não sou capaz
que sirva meu senhor, ali no plano,
de manjar a lobo e corvo voraz.
Pensando em como foi para mim humano,
se minha alma do corpo se desfaz
em seu penhor, mesmo assim não compenso
nem lhe pagarei meu débito imenso.
CANTO XVIII 307

173 Parou um pouco Cloridano, e disse: 176 Avança depois até onde jaz
- Não se devem perder as ocasiões. apoiado ao barril o triste Grillo:
Neste bando, que meu senhor maldisse, tinha-o esvaziado; pensava que em paz
não haverei de fazer destruições? gozaria um sono calmo e tranquilo.
Para que ninguém de surpresa surgisse, Cortou-lhe a cabeça aquele mouro audaz:
olhos e orelhas bem alerta pões; sai o sangue e o vinho pelo mesmo hilo,
eu prometo fazer-te, com a espada, do qual no corpo tinha bem uma pipa;
entre os inimigos espaçosa estrada. - seu sonho é com vinho; o mouro o dissipa.
174 Assim disse ele, e logo se calou, m Perto de Grillo um grego e um tudesco
indo para onde o douto Alfeu dormia, também apaga, Andropono e Conrado,
que há um ano a esta corte chegou, que tinham gozado da noite o fresco,
médico, mago, cheio de astrologia: entretidos com a taça e o dado;
coisa que desta vez o não salvou, felizes, se houvessem o pitoresco
pois tudo mentira dito lhe havia. Sol nascente despertos aguardado.
Previsto tinha ele que, de anos cheio, Para os homens impotente era o destino,
morria de sua mulher no seio, se para o futuro ver houvessem tino.
175 e agora vem o cauto sarracino, 1 7s Qual leão esfomeado em redil cheio,
que a sua espada lhe mete na goela. que longa fome abatera e chupara,
A outros quatro dá igual destino, que mata, esgana, come o grege alheio
e a palavra no goto lhes debela; com que, desprotegido, se depara;
menção de seus nomes não faz Turpino62 , assim o pagão trucida sem freio
e o tempo notícias deles cancela; nossa gente que o sono dominara.
Palidon da Moncalieri a seguir, De Medoro a espada também guerreia,
que entre dois cavalos estava a dormir. mas desdenha ferir gente plebeia.
308 ORLANDO FURIOSO

1 79 Foi aonde o duque de Albret estava 185 À sua oração, a Lua apareceu
com uma dama dormindo abraçado; (seria o acaso ou a muita fé),
e um ao outro tanto se chegava bela como era quando se ofereceu
que entre eles não teria o ar passado. nua a Endímion66, para que amor lhe dê.
Aos dois Medoro a cabeça cortava. Com sua luz saiu Paris do breu,
Oh morte feliz! Oh ditoso fado! e um campo e outro; monte e chão se vê:
Como abraçados os corpos, avento Montmartre à destra deixa que se enxergue,
que as almas voaram para o seu assento. enquanto Montlhéry à canha se ergue.
1 80 Ardalico e Malindo ambos matou, 186 Refulgiu seu esplendor muito mais claro
do conde de Flandres filhos os dois; onde o filho estava de Almonte-o-velho67 •
Carlos cada um cavaleiro armou, Medoro a chorar foi, ao senhor caro,
e às armas os lírios63 aditou, pois conhecendo o quartel branco e vermelho;
ambos de sangue inimigo observou o seu rosto inundou de pranto amaro,
trazerem as espadas tintas; depois, em cada olho um rio tendo parelho;
terras na Frísia tinha prometido, com tão doce gesto e triste lamento
o que por Medoro foi impedido. que, ouvindo-o, podia parar o vento,
181 Perto estavam já os ferros sanguinos 187 mas sem rumor fazer, em voz sumida;
dos pavilhões que montaram em volta não por querer evitar fazer-se ouvir
do pavilhão do rei os paladinos, por estar em temor pela própria vida,
de que em redor à vez faziam escolta, já que a odeia e dela quer sair:
quando a carnificina os sarracinos só por temer que lhe seja impedida
interromperam, dando viravolta; a humana obra que aqui o fez vir.
duvidavam que, entre tão grande turma, Foi o morto rei sobre os ombros preso
um não se possa encontrar que não durma. dos dois, entre si dividindo o peso.
182 Bem podiam ir de saque carregados, 1 88 Ligeiros dão ao local abandono,
mas salvos irem já é bom celeiro. sob o amado corpo que os ensombra.
Seguindo os que acha seguros traçados Já estava a chegar quem da luz é dono,
vai Cloridano, e atrás o companheiro. do céu tira as estrelas, da Terra a sombra,
Chegam ao campo onde, entre arcos, terçados, quando Zerbino, a quem do peito o sono,
escudos e lanças, num rubro atoleiro, sendo preciso, o seu brio desassombra,
jazem pobres, ricos, reis e vassalos, e aos Mouros de noite deu dissabores,
entrelaçados homens e cavalos. ao campo voltava aos primeiros alvores.
183 Onde dos corpos a ignóbil mistura,
de que cheia estava a campina em torno,
vã podia tornar a fiel procura
dos dois, até ter o dia retorno,
se não tirasse duma nuvem escura,
aos rogos de Medoro, a Lua o corno.
Medoro com devoçio no céu fixou
seus olhos, na Lua, e assim falou:
184 - Ó santa deusa, que as antigas gentes
mui justamente disseram triforme64 ;
que Terra, céu, Inferno ver consentes
tua vária forma de beleza enorme, ·
e pelas selvas caças ferinos entes,
seguindo-lhes a marca pediforme;
mostra-me onde meu rei jaz entre tantos,
que em vida seguiu teus hábitos santos65. -
CANTO XVIII

1s9 E uns cavaleiros consigo trazia, 191 Os cavaleiros, na disposição


que viram de longe os dois companheiros. que eles se rendam ou deixem morrer,
Cada um que para ali se dirigia, em toda a volta se espalham, e vão
esperava encontrar despojos guerreiros. os locais de saída preencher.
- É preciso, irmão (Cloridan dizia), Deles pouco afastado, o capitão
largar o corpo e ter os pés ligeiros; maior vontade de os seguir faz crer;
seria escolhimento um tanto torto pois, vendo como temem grande perigo,
perder dois vivos para salvar um morto. - certo é que são do exército inimigo.
190 E largou a carga porque pensava 192 Havia ali então uma selva antiga,
que, tal como fez, Medoro fizesse; basta de umbrosas árvores e arbustos;
mas aquele, que o seu senhor mais amava, qual labirinto em atalhos se intriga
de todo o peso seus ombros guarnece. que só bichos correm, e mui angustos.
O outro cheio de pressa se afastava, Querem os pagãos que ela seja amiga,
como o amigo a par ou atrás tivesse. escondendo-os entre seus ramos vetustos.
Se soubera que o deixara a tal sorte, Mas quem achar no meu canto deleite,
mil esperaria, e não uma só morte. espero que uma outra vez escutá-lo aceite.

NOTAS
--ê$r-

1 Bizarro: vocábulo cujo significado original é «coléri­ 14 Djerba: pequena ilha no golfo de Tunis.
co, irado»; deriva de bizza (ira).
1 5 Zamor[. . .] Marroco: cidades de Marrocos; identifica­
2
Dinamarq uês: Uggiero (cf. X:V: 8). da a segunda, Safi, cidade portuária a sul de Casablanca.
3
Coro: vento de noroeste. 16 Orazio[. . .] Toscana: Horácio Códice, herói romano
que defendeu sozinho uma ponte, contra os Etruscos.
4 Bóreas o u garbino: ventos fortes de norte e sudoeste. Ariosto reproduz um verso de Petrarca, do seu Trionfo
dei/a Fama (v. 4 1): «Orazio sol contra Toscana tutta».
5 Escamoso dragão: a pele de dragão ou serpente.
17 Gentil: na linguagem cavaleiresca significa «nobre,
6
Ante u: o gigante africano já referido em IX:77. de grande valor».
7 O fogo: da discórdia. 18 Tiro: antiga cidade fenícia, hoje Sur, no Líbano.

8 19
O filho do rei Agrican: Mandricardo. Sajfetto: de identificação incerta.
9 Bizarro: cf. nota a IIl:7. 20
Tortosa: antiga cidade da Síria, é hoje Tartus.
10 21
Dar [. . .] jogo: o jogo do xadrez era muito praticado Golfo de Laiazzo: actual golfo de Alexandreta, ou
na corte de Ferrara. Iskenderun.
1 1 Da de [. . .] Saint-Victor: a porca de Saint-Germain 22
Oronte: rio da Síria, que banha Antioquia (actual
era a oeste, e a de Saint-Victor a sudeste. cidade turca de Antakya).
12 23
De Saint-Marcel: esta porca era a sul. Contra o rio: subindo da foz até Antioquia.
13 Enamorado de Isabel/,a; Zerbino. 24 Lidia e Larissa: cidades antigas entre Antioquia e
Damasco, nas margens do Oronte.
310 ORLANDO FURIOSO

25 48
Aleppe: Aleppo, entre o Oronte e o Eufrates, cidade A insígnia [. . .} confronte: a insígnia de Dardinello
comercial muito povoada. (quartéis brancos e vermelhos) era a mesma de seu pai,
Almonte. Orlando (o conde) usava a mesma insígnia, de
26
Mamuga: cidade não identificada. que se apropriara quando matou Almonte.
27 49
Vice-rei: Sansonetto (cf. XV:95). Famosa espada: Fusberta, espada de Rinaldo.
28
Tralha: a sua bagagem. 50 To uro [. . .} amor: um touro muito jovem.

29 51
Brava: actual Blaye, era feudo de Orlando (cf. Mambrino: ver nota a 1:28.
VI:34) .
52
Pagânia: terra dos pagãos (Mouros), de modo gené­
30
À lembrança [. . .} à beira: aventuras narradas no O. nco.
lnnamorato.
53
Rei de Espanha: Marsilio.
31
Seu ex-dilecto: que ela já amara, quando ele era jovem
54
(ver nota a XI:32) . Stordilan [. . .} port uguês: Srordilan era o rei de
Granada (cf. XIV: 1 3) . Os reis de Andaluzia e de
32
Faias, freixieiros: as lanças, que eram, na maioria, fei­ Portugal eram Madarasso e Tesira (cf. XIV: 12 e 1 3) .
tas dessas madeiras.
55
Berberia: costa setentrional d e África (Magrebe) ,
33
Digno de laço: merecedor da forca. cujo rei é Agramante.
34 56
O utra vez contada: já contada por Boiardo no Bizerta: cidade costeira da Tunísia, capital do reino
Innamorato: Marfisa repousava à beira da estrada quan­ de Agramante.
do Brunello lhe roubou a espada. Para o perseguir com
57
mais ligeireza, despiu e deixou ali a armadura completa. Agarrar pelos cabelos: como se cria que a Fortuna só
tinha um tufo de cabelos na parte da frente da cabeça,
35
A seguir[. . .} espada: pois já teriam quebrado as lanças. agarrá-la pelos cabelos significava tê-la virada para nós.
36 58
O se u [. . .} peq ueno: porque parte das armas já eram Tolomitta: Tulmaythah, antiga Ptolemais, na
suas por direito (as do primeiro torneio). Cirenaica, península da Líbia.
37 Cancela: da paliçada de madeira que cercava estes 59
Cloridano [. . .} Medoro: Niso e Euríalo (Eneida,
recintos. IX: 1 76 ss.) foram os modelos para Cloridano e Medoro.
38 60
Orrilo [. . .} mato u : cf. XV:79 ss. Sumo coro: o coro dos Serafins, primeira jerarquia
dos anjos.
39
Tislfone: uma das Fúrias infernais (aqui identificada
61
com Marfisa) . Passada meia parte: ia a meio.
40 62
A medo [. . .} revira: faz voltar para trás os que, por Turpino: cf. nota a XIII:40.
medo, se tinham afastado.
63
Lírios: os lírios de ouro, brasão da França, passavam
41
Os filhos de Oliviero: Aquilante e Grifone. a ser incluídos nas suas insígnias (armas), privilégio con­
cedido aos cavaleiros mais corajosos.
42
De Otone o varão: Astolfo.
64
Triforme: no céu é a Lua, na Terra é Diana, deusa da
43
L una: antiga cidade da Toscana, na foz do rio Magra. caça, e no mundo das sombras (Inferno) é Hécate, que
preside à magia e aos feitiços.
44
Ilha [. . .} deia: Chipre, consagrada a Vénus, deusa do
65
amor. Segui u [. . .} santos: foi caçador.
45 66
Famagusta: porto cipriota. Endimion: jovem e belo pastor pelo qual a Lua
(Selene) se apaixonou.
46
Constança: antiga cidade cipriota que ficava numa
67
zona pantanosa (maligna). Filho [. . .} velho: Dardinello.
47
Pafo: Paphos ou Baf, cidade de Chipre onde existia o
principal templo de Vénus.
-.­
CANTO XIX

Quem no cimo da roda está pousado


não pode saber por quem amado é;
falsos e fiéis amigos tem ao lado,
e todos lhe mostram a mesma fé 1 •
Se depois passa a triste o feliz estado,
a turba aduladora gira o pé;
quem leal no amor é fica, forte,
e o senhor ama mesmo após a morte.
2 Pudesse o peito como a cara expor:
quem na corte é grande e os outros molesta,
e quem nas graças não está do senhor,
veria sua sorte mudar lesta.
O mais humilde seria o maior,
o grande iria para a turba modesta.
Voltemos a Medor, grato e fiel,
que em vida e na morte amou Dardinel.
3 la buscando na intrincada via
o jovem triste modo de salvar-se;
mas o carrego que às costas trazia
todos os esforços fazia lograr-se.
Desconhecendo a zona, o pé desvia,
e no meio de silvas vai enredar-se.
Longe ia em segurança o companheiro,
com as costas e o passo mais ligeiro.
312 ORLANDO FURIOSO

4 Cloridano chega onde já não sente s Cloridan como ajudá-lo não sabe,
de quem o segue estrépito e rumor; porém quer juntar-se a ele na morte,
mas, quando se vê de Medoro ausente, mas não sem antes que sua vida acabe
do coração se sente perdedor. dar a mais que um dos outros igual sorte;
- Mas como fui (disse) tão negligente, no arco faz que aguda flecha encabe,
como me dominou tanto o terror, e, escondido, tão bem lhe dá transporte
que sem ti, meu Medoro, aqui cheguei, que a um escocês os miolos esfarela,
sem saber quando ou onde eu te deixei! - fazendo-o cair sem vida da sela.
s Assim dizendo, à retorcida via 9 Voltaram-se os outros para aquela banda
da intrincada selva outra vez passa; donde tinha vindo o dardo homicida.
por onde viera a voltar se avia, Entr�::;:i nto o sarraceno outro manda,
e da sua morte o caminho traça. para que o que estava ao lado perca a vida;
Inda cavalos e gritos ouvia, enquanto a um e a outro faz demanda
e uma voz 1mm1ga que ameaça; sobre quem disparou e se elucida,
por último seu Medoro ouve e vê o dardo chega e pãssa-lhe a goela,
entre muitos montados, só, e a pé. e no meio a palavra lhe cancela.
6 Uns cem a cavalo lhe estão em torno: 10 Zerbino, o capitão, tal desaforo
Zerbin dá ordens para que seja preso. já não pôde aceitar com paciência.
Gira o jovem infeliz como um torno, Com ira e furor chegou-se a Medoro,
tentando como pode achar defeso: dizendo: - Farás tu a penitência. -
de carvalho, olmo e faia faz contorno, Deitou a mão àquela crina de ouro,
mas não se separa do amado peso. e puxou-o para si com violência;
Finalmente pousa-o na erva, quando mas o olhar no belo rosto pousou,
já não aguenta, e vai-lhe em torno errando: piedade sentiu e não o matou.
7 qual ursa que o montanhês caçador 11 Pedido fazendo, o jovem infiel
sua rochosa toca ataca e invade, lhe disse: - Cavaleiro, pelo Deus teu,
está junto aos filhos com incerto humor, não me impeças, não sejas tão cruel,
e freme num som de raiva e piedade: de sepultar o corpo do rei meu.
pela ira é incitada, e o furor Para mim não peço outro favor que aquele,
a sangrar boca e garras a persuade; nem de viver mais vontade me deu;
o amor a enternece e a retém na vida um só desejo em mim perdura:
a proteger os filhos, com desdém. poder dar ao meu senhor sepultura.
12 Se feras e aves quiseres pascer,
se o furor tens do tebano Creonte2,
que o meu corpo lhes queiras oferecer,
deixando enterrar o filho de Almonte. -
Belos modos mostrou no requerer,
com fala capaz de mover um monte;
assim Zerbino tanto comovia,
que de amor e piedade todo ardia.
13 Neste momento, um cavaleiro vilão,
que tinha ao seu senhor pouco respeito,
feriu com a lança, pondo ao alto a mão,
ao suplicante o delicado peito.
Desaprovou Zerbino o acto malsão;
tanto mais que viu cair de tal jeito
o jovem, mostrando tal desconforto,
que por tudo julgou que estava morto.
CANTO XIX 313

14 De tal maneira sentiu fúria e dor 17 Apareceu por acaso uma donzela,
que disse: - Não ficará sem vingança! - usando pastoril e humilde veste,
E voltou-se cheio de ira e furor mas de nobre presença e face bela,
para o cavaleiro que abusou confiança; finos modos que o decoro reveste.
preveniu-se este, levando a melhor: Há tanto tempo que eu não falo dela
desviou-se e fugiu sem mais tardança. que, quem é, talvez não se manifeste:
Cloridano, ao ver Medoro por terra, se não sabeis, era Angelica airosa,
saltou do bosque e fez aberta guerra. do Cão do Catai a filha orgulhosa.
15 O arco enjeita e, cheio de danação, 1s Depois que o anel ela reaveu,
entre o inimigo a espada regira, que Brunel tirara com mão furtiva,
mais para morrer do que com intenção tanto em soberba e orgulho cresceu
de fazer vingança adequada à ira. que ser parecia a todo o mundo esquiva.
Do próprio sangue vê vermelho o chão, Sozinha vai, para companheiro seu
de tanta espada, e pelo seu fim suspira; rejeitando o mais famoso que viva:
sentindo que a força toda se esvai, com desprezo lembra que seu amante
exangue ao lado de Medoro cai. já nomeou Orlando, ou Sacripante.
16 Pela selva os escoceses fazendo coro 19 Tinha-se mais que tudo arrependido
vão com o guia, a quem raiva norteia, do bem que já a Rinaldo quisera,
depois de deixar um e outro mouro, achando ter-se muito envilecido
um todo morto, outro com vida meia. porque para tão baixo os olhos volvera.
Jazeu muito tempo o jovem Medoro, Tanta arrogância tendo Amor sentido,
deitando sangue de uma larga veia, por mais tempo tal coisa não tolera:
e o fim de sua vida atingiria, onde jazia Medoro fez marco,
se não chegasse quem o salvaria. e esperou-a, com o dardo no arco.
20 Quando Angelica dele viu o aspecto,
definhando ferido, perto da morte,
e de seu rei, que jazia sem tecto3,
mais que do próprio mal lamenta a sorte,
de insólita dor o peito repleto
sentiu, trazida por estranho transporte,
que o duro coração lhe enterneceu,
e mais quando o caso lhe descreveu.
21 E relembrando na memória a arte
que na Índia aprendeu de cirurgia
(consta que esta ciência nessa parte
é nobre e digna e de muita valia;
e não é que muitos estudos encarte,
pois de pai para filho se transmitia),
com suco de ervas decidiu tratá-lo,
e a mais adulta vida reservá-lo.
22 Recordou-se de ter visto na areia
certa erva, numa planície amena;
fosse ditamno, fosse panaceia,
ou sei lá qual, de tal efeito plena
que estanca o sangue, e da ferida mais feia
afasta o espasmo e a dolorosa pena.
Perto a encontrou, e assim que a colheu
para onde Medoro estava volveu.
3 14 ORLANDO FURIOSO

23 Ao regressar encontrou um pastor 29 A sua chaga mais se abre e mais cresce,


que pela floresta a cavalo seguia, quanto mais a outra cerra e aperta.
duma bezerra procurando o error, Cura-se o jovem mas ela elanguesce
que em fuga ao rebanho há dois dias ia. duma febre ou gelada ou quente, incerta.
Levou-o onde Medoro o vigor, Dia a dia a beleza dele floresce;
junto com sangue do peito, perdia; definha a pobre: qual neve referta
e de tanto estava o terreno tinto fenece, que extemporânea caiu,
que estava prestes a ficar extinto. e em sítio abrigado o sol descobriu.
24 Do palafrém a dama desmontou, 30 Para que a morrer de desejo se oponha,
e com ela o pastor também desceu. terá de achar remédio sem demora;
Esmagou com pedra a erva em que pegou, parece que, para aquilo com que ela sonha,
e com as brancas mãos suco espremeu; se espera convite em nada melhora.
pôs na ferida uma parte, outro espalhou E, pondo de lado toda a vergonha,
pelo peito, pelo ventre, e à anca o estendeu; mais que os olhos usa a língua e perora:
e teve tal virtude aquele licor para a sua ferida suplicou mercê;
que o sangue estancou, voltando o vigor; não tarda que ele, sem bem saber, lha dê.
25 e deu-lhe força para poder subir 31 Ó conde Orlando, ó tu, rei da Circássia5 ,
para o cavalo que o pastor conduziu. vosso índito valor, dizei, que prova?
Porém Medoro não quis dali ir Vosso alto mérito será falácia?
enquanto enterrado o seu rei não viu. Que paga vossa devoção comprova?
Com ele, Cloridan mandou sepelir, Indiquem-me, para a vossa pertinácia,
e depois para onde ela quis seguiu. uma só cortesia, velha ou nova,
E, por piedade, no humilde lar em recompensa recebida dela,
do cortês pastor quis com ele ficar. depois de quanto sofrestes por ela.
26 Até que ele voltasse à sanidade 32 Ó Agricane6, se de novo vivo
não partia: tal foi por ele a estima, te achasses, tinhas dura provação!
tanto se enternecendo de piedade, Já ela te mostrou modo tão esquivo,
desde que o encontrou da terra em cima. com cruel e desumana aversão.
Vendo depois seus gestos e beldade, Ó Ferraú, ó outros mil que arquivo,
no peito sentiu roer áspera lima; que tantas provas fizestes em vão
roer sentiu o coração, e, logo, por esta ingrata; que amargo vos fora,
todo inflamado de amoroso fogo. se nos braços dele a vísseis agora!
21 Tinha o pastor morada boa e bela
no bosque, entre dois montes ocultada,
mulher e filhos; e havia aquela
de novo feita e há pouco acabada.
Ali a Medoro foi, pela donzela,
em poucos dias a chaga sarada;
e em menor tempo sentiu de maior
ferida no coração o grande ardor.
2s Ferida muito maior e mais profunda
de invisível seta, no esquerdo lado,
dos olhos e crina de ouro oriunda,
dali lançada pelo Archeiro alado4.
Sente-se arder, e sempre o fogo abunda,
e mais que o seu o mal dele tem curado:
de si não trata; a mais não está atenta
do que a sarar quem a fere e atormenta.
CANTO XIX 315

33 Angelica a Medoro a inicial rosa 36 Entre prazeres, onde uma árvore lisa
deixou colher, jamais antes tocada: via dar sombra a fonte ou ribeiro puro,
não houve pessoa tão venturosa com gancho ou faca logo ela era incisa;
que em tal jardim houvesse tido entrada. e o mesmo com rochedo menos duro;
Para completar, tornar a coisa honrosa, por fora a casa é escrita à mesma guisa,
a santa cerimónia foi celebrada também por dentro o sendo em cada muro:
do matrimónio; foi padrinho Amor, Angelica e Medoro, em vários modos
e foi madrinha a mulher do pastor. entrelaçados, unidos em todos.
34 A boda fez-se sob o humilde tecto 37 Quando achou ali já ter feito estada
. com a solenidade que podia dar-se; mais que bastante, fez resolução
mais dum mês gozaram viver dilecto de à Índia8 , ao Catai, voltar à morada,
os dois amantes, sempre a recrear-se. de seu reino a Medor dar coroação.
Do jovem tinha seu olhar repleto Pulseira de ouro de gemas ornada
a dama, sem dele conseguir saciar-se; usava no braço, em atestação
embora a ele estando sempre abraçada, do bem que o conde Orlando a estimava;
de o desejar nunca estava saciada. e havia longo tempo que a usava.
35 Se em casa à sombra, ou se dela saía, 38 Tinha-a dado Morgana a Ziliante9,
dia e noite o jovem tinha a seu lado: no tempo em que no lago oculto o teve;
manhã e tarde de um rio ou outro ia e aquele, quando a seu pai, Monodante,
à procura, ou de qualquer verde prado: graças a Orlando tornou em breve,
a meio do dia uma gruta os cobria, deu-a a Orlando: Orlando, que era amante,
lugar talvez tão cómodo e estimado a pôr no braço o círculo se atreve,
como o que abrigou Eneias e Dido7, porque tinha feito intenção de dá-lo
de seu segredo testemunho fido. à sua rainha, de quem vos falo.
316 ORLANDO FURIOSO

39 Menos por amor ao paladim quanto 43 De Marfisa, de Astolfo e de Aquilante,


por ser valiosa e de artifício egrégio, de Grifone e dos outros vou contar,
apreço lhe dera a donzela tanto que massacrados, com a morte diante,
quanto se dá a um objecto régio. mal se podiam proteger do mar;
Pôde-o conservar na ilha do pranto 10 , cada vez mais soberba e arrogante
não sei já dizer com que privilégio, era a borrasca, e seu irado esgar;
lá onde exposta foi ao monstro nua, três dias já durara o temporal,
pela malvada gente inóspita e crua. e de se aplacar não dava sinal.
40 Não dispondo ela ali de outro troféu 44 Castelo e coxia rompe e assujeita
que ao bom pastor e à mulher oferecesse, a onda adversa, o vento traiçoeiro;
que com tanta bondade os recebeu se a borrasca parte deixa direita,
desde o dia em que ali os levou esse, corta-a e ao mar a oferece o barqueiro.
tirou do braço o círculo e lho deu, Está um para a bússola inclinado à espreita,
para que por seu amor o recebesse. no mapa achando do barco o carreiro,
Dirigiram-se depois para a montanha à luz duma lanterna pequenina;
onde se divide a França da Espanha. outro com tocha ao porão se destina.
41 A Valência ou então a Barcelona 45 Um homem à popa e um outro à proa
em poucos dias julgaram chegar, têm na sua frente uma ampulheta;
pensando um bom navio naquela zona à meia hora cada um razoa
que para o Levante rumasse apanhar. quanto andaram e onde aponta a vareta:
Avistaram o mar junto a Gerona, e, com seu mapa em mão, cada pessoa
dos montes chegados ao calcanhar; ao meio da nave com outros decreta,
seguem, pelo sinistro lado do lido, onde os marinheiros em reunião
para Barcelona o trilho mais batido. recebem instruções do capitão.
11 12
42 Lá não chegaram sem que um tresloucado 46 Diz um: - Não longe de Limassol estamos,
vissem estendido na extrema da areia, parece-me a mim, dos bancos de areia. -
qual porco, cheio de lodo, e enlameado Outro: - Junto a Trípoli 1 3 aos escolhos vamos,
no peito, nas costas, na cara feia. onde o mar quase sempre a nave arreia. -
Arremeteu como um cão enraivado E outro: - Em Antália14 nos tresmalhamos,
que a estranhos assalto desencadeia; onde muito mestre chora e anseia. -
e molestou-os, quase lhes fez mal. Cada um a seu parecer argumenta,
Mas de Marfisa volto a dar sinal. mas a todos temor preme e atormenta.
47 Ao terço dia, com maior despeito
assalta o vento, e o mar mais bravo freme;
quebra e leva o traquete um, sem respeito,
o outro o timão e quem estava ao leme.
Terá de ter forte e marmóreo peito,
mais duro que aço, quem ora não teme.
Marfisa até ali confiante veio;
nesse dia não negou ter receio.
48 Foi prometido mandar peregrino
ao Sinai, à Galiza, a Chipre, a Roma,
ao Santo Sepulcro, à Virgem de Ettino 1 5 ,
e mais qualquer lugar que se lhes soma.
Ao céu eleva a onda a nave a pino,
e, após, a pique o chão do mar retoma;
da qual por cautela manda o patrão
ao mastro da popa dar serração.
318 ORLANDO FURIOSO

49 Embrulhos, caixas, e tudo o que é grave 55 Para o largo não pode retroceder,
deita da proa, da popa e do lado; pois vergas e mastros estavam perdidos;
de cabines, porões, tudo o que entrave, tábuas, barrotes estavam, pelo bater
ao mar o rico artigo é atirado. do mar, desconjuntados ou partidos.
Outro às bombas corre e alivia a nave Aportar ali era querer morrer,
de água importuna: ao mar, mar entornado; ou ficar à servidão reduzidos;
corre outro ao porão, para verificar pois morta ou serva a pessoa se faz
que tábua de tábua afastou o mar. que aqui error ou má fortuna traz.
50 Nesta fona estiveram, nesta pena, 56 Perigo grande era ali estar indeciso,
quatro dias, sem ter mais protecção; pois gente em navios viria de terra
esteve para ter o mar vitória plena, que ao seu daria grande prejuízo,
se um pouco mais durasse a agitação; pouco apto para o mar, quanto para a guerra.
mas esperança lhes deu de aragem serena Estando o mestre sem achar bom juízo,
a luz de santelmo, ansiado clarão, foi-lhe perguntado pelo de lnglaterra 1 9
que à proa se veio pôr numa fasquia, o que o fazia estar preocupado,
pois mastros e vergas já não havia. e por que não tinha ainda aportado.
51 A vista da bem-vinda chama faz 57 Contou-lhe o mestre que essa costa habita
ajoelhar todos os navegantes, uma seita de mulheres, homicida,
que rezam por um mar tranquilo e paz, por cuja lei, quem lá ir se permita,
com olhos flébeis, vozes vacilantes; para sempre fica escravo ou perde a vida;
a cruel procela, que pertinaz e que tal sorte somente a evita
até ali foi, não foi mais como antes: quem luta com dez homens e os liquida;
vento contrário já não os molesta, e concedem-lhe que à noite se deite
só o de sudoeste agora resta. com dez donzelas em carnal deleite.
52 Resta ainda este no mar tão potente, 58 E se ele a primeira prova vencer,
com tal força a negra boca o exala 16 , mas a segunda não cumprir depois,
e com ele é tão rápida a corrente, é morto, e quem está com ele irá ser
do agitado mar que lesto embala, ou cavador ou guardador de bois.
que transporta a nave mais velozmente Se numa e noutra coisa provas der,
que pelo ar falcão peregrino abala; ganharão liberdade todos, pois.
teme o mestre que até ao fim do mundo Mas ele não, pois tem de ser marido
a leve, ou a quebre, ou a meta ao fundo. de dez mulheres, depois de as ter escolhido.
53 Remédio para isso o bom mestre achou, 59 Astolfo ri quando ele verbaliza
mandando pela popa lançar faxina 1 7 da terra vizinha o rito malsão.
e âncora flutuante, e verificou Chega Sansonetto, e depois Marfisa,
que dois terços da corrida domina. depois Aquilante, e com ele o irmão.
Este recurso muito os ajudou, De igual modo o mestre pormenoriza
e o bom augúrio que a proa ilumina: de não querer aportar qual a razão:
salvou á nave, que talvez perecesse, - Antes (disse) no mar quero-me afogar
e fez que pelo m�r segura corresse. que à servidão ter de me subjugar. -
54 Pelo golfo de Aiazzo18 para a Síria ia, 60 Opiniões às do mestre similares
e uma grande cidade se descerra; tinham os outros todos neste apuro;
tão próximo já estava que surgia contrários eram Marfisa e seus pares,
um castelo e outro que o porto cerra. que o lido mais que o mar criam seguro.
Percebendo o mestre qual era a via Mais que cem espadas, ver irados mares
que fizera, logo seu rosto emperra, a toda a volta era para eles duro.
porque aportar ali não desejava, Pensavam neste, ou num lugar qualquer
nem estar ao largo, e dali não escapava. em que armas se usam, não ter que temer.
CANTO XIX 319

61 Querem os guerreiros a porto ir, 64 O porto em forma de lua se aduna,


e o que mais insiste é o duque inglês; e mais de quatro milhas gira em torno:
pois sabe que assim que o corno20 se ouvir seiscentos passos de boca a laguna,
desaparecem todos duma vez. um castelo em cada ponta do corno21 •
Para o porto uma parte quer já partir, Não teme que algum temporal a puna,
a outra é contra, e discussão se fez; só se de África vem lhe dá transtorno.
mas a mais forte o patrão pressionou, Em anfiteatro em volta se estende
que, contrariado, para o porto avançou. a cidade em cerco, e para o monte ascende.
62 Assim que seu navio foi avistado, 65 Quando o navio chegou, um grupo absorto
e pela cruel cidade descobertos, (a notícia já correra pela terra)
viram que um lenho bem apetrechado, de seis mil mulheres esperava no porto,
com grande chusma e marinheiros expertos, com arcos na mão, em traje de guerra;
vinha direito ao seu desconchavado para da fuga impedir todo o conforto,
navio, confuso de pareceres incertos; entre um castelo e o outro o mar se encerra:
que a alta proa à sua baixa popa por navios e correntes foi recluso,
ligando, com este pelo mar galopa. que tinham preparados para tal uso.
63 Entraram no porto a reboque, e à força 66 Urna, que igual à Curnana de Apolo
de remos, não tendo as velas papel, em anos seria, e à mãe de Heitor22 ,
porque à bolina navegar os torça ao mestre perguntou, por protocolo,
e os haja obrigado o vento cruel. se era da vida cada um dador,
Entretanto a armadura reforça ou se preferiam pôr jugo ao colo,
os cavaleiros, e a espada fiel; segundo o costume ali em vigor.
e ao mestre e a todos que sentem receio Um dos dois, todos tinham de escolher:
não cessam dar com seu conforto esteio. ficar todos cativos, ou morrer.
320 ORLANDO FURIOSO

70 O patrão foi portador da resposta,


primeiro acordada em comum conselho:
tinham quem capaz era, à sua aposta,
de na praça e no leito dar trambelho.
Cessam ofensas, o barqueiro se acosta,
e para atracar atira o aparelho;
desce a ponte, pela qual os cavaleiros
com os corcéis saem, vestindo arneiros.
71 A cidade atravessam na montada,
e encontram as donzelas altaneiras
cavalgando de veste assertoada,
e na praça a lidar como guerreiras.
Não calça aqui esporas, nem toma espada
o homem, couraças, elmos, viseiras;
a não ser dez à vez, em cumprimento
do uso de que dei conhecimento.
n Os outros ao tear, à roca, ao fuso,
à dobadoura, ao pente estão atentos,
em vestes feminis que lhes vão juso
até ao pé, e os tornam moles, lentos.
Alguns usam grilhões, para estar a uso
de arar a terra ou guardar os armemos.
Poucos são, por mil mulheres nem cem,
que aldeias, cidades, e campo tem.
67 - Verdade é (disse) que se um se encontrasse 73 Queriam escolher os cavaleiros à sorte
entre vós tão corajoso e tão forte qual deverá, para comum salvação,
que contra dez homens nossos ousasse a uma dezena na praça dar morte,
batalhar, e que a todos desse a morte, e a outra ferir em diferente acção;
e para com dez mulheres fazer bastasse na escolha não punham Marfisa forte,
por uma noite ofício de consorte, achando que a tolheria travão
esse ficaria príncipe nosso; naquela justa que à noite se faz:
vós podíeis ir ao caminho vosso. de vitória ter não era capaz.
68 Seria de vosso arbítrio também 74 Mas ela também quer ser sorteada,
ficar, todos ou parte; mas com pacto e é mesmo nela que recai a escolha.
de, quem quiser ficar, livre porém, - Antes a vida (diz) quero ceifada
marido ser para dez mulheres bem apto. do que por vós a liberdade eu colha;
Mas, ficando o vosso guerreiro aquém com esta aqui (e aponta-lhes a espada)
dos dez com quem lutará num só acto, vos garanto, e dúvida não vos tolha,
ou que a segunda prova não forneça, que as tramas todas findo duma vez
que escravos sejam queremos; que ele pereça. - como ao górdio nó Alexandre fez23 •
69 Onde a velha esperava achar temor 75 Mais não se queixarão os forasteiros
nos cavaleiros, encontrou confiança; desta terra, enquanto este mundo dura. -
cada um se tinha por pugnador Incapazes foram os companheiros
tal que uma e outra cumprir tinha esperança; de impedir o que escolhera a ventura.
mesmo a Marfisa não faltava alor, Que tudo ela perca, ou que aos cavaleiros
embora não apta à segunda dança; liberdade dê, fica à sua cura.
mas no que a não ajudasse a natura Ela, de armadura vestida e malha,
com espada supria, estava segura. apresentou-se ao campo de batalha.
CANTO XIX 321

76 Circular praça há no alto da terra,


fechada, em degraus para assento profusa;
que só para justas e idêntica guerra,
duelos, lutas, e nada mais se usa;
com quatro portas de bronze se cerra.
Ali uma grande multidão confusa
de mulheres belicosas se juntou;
Marfisa chamaram, e ela entrou.
77 Monta Marfisa um corcel matizado,
de tom cinzento, com manchas, rodelas,
pequena cabeça, olhar animado,
de soberbo andar e aparências belas.
Por maior, mais bonito e arrebatado,
dos mil que tinha com bridas e selas,
em Damasco Norandino escolheu-o,
e a Marfisa, com rico adorno, deu-o.
24
78 Do lado meridião, pela porta de austro
entrou Marfisa; com rigor de horários,
aproximar e ressoar pelo claustro
ouviu de trombas sons claros e vários;
e viu entrar, do lado do frio plaustro25 ,
os dez cavaleiros seus adversários.
O primeiro deles que vinha adiante
de valer pelo resto tinha semblante.
79 Num grande cavalo entrou no terreiro, 82 Ao primeiro abriu de tal modo o peito
que, fora a fronte e o pé do esquerdo flanco, como faria estivesse ele desnudo;
era, mais que o corvo, negro e trigueiro: passou-lhe a couraça e o sobrepeito27 ,
na fronte e pé tinha algum pêlo branco. mas antes bem temperado e grosso escudo.
E da cor do cavalo o cavaleiro Das costas lhe saiu, de um braço em jeito,
vestido, queria dizer: como manco o ferro nu; tanto o golpe foi rudo.
de claro era o escuro, o era outro tanto Nele deixa ficar cravada a lança,
o riso dele a comparar com o pranto26 • e para os outros a toda a brida avança.
80 Assim que o sinal para a batalha vem, 83 Colisão deu a quem vinha em segundo,
nove campeões hastas viram para o chão; e outra terrível ao terceiro que vem,
mas o de negro ao sinal dá desdém: de espinha partida sair do mundo
aparta-se, justar não faz menção. fez um e outro, e da sela também;
Mais violar a lei que o reino tem, o impacto foi tão forte e profundo
que a sua cortesia, faz tenção. porque a frota mui junta se mantém.
De parte fica a ver, e não se move, Bombardas já vi eu à mesma guisa
o que uma só hasta faz contra nove. abrir esquadrões, como àquele fez Marfisa.
81 O corcel, que andar tinha ágil e suave, 84 Nela quebram lanças sem fazer furo;
a donzela lesto ao recontro ajeita, pois tanto àqueles golpes ela abana
que a correr enrista a lança tão grave como num jogo de vaivém um muro,
que para quatro homens seria empreita. com as batidas das bolas, se dana28 •
Já a levava ao desmontar da nave, Tinha a couraça de ferro tão duro
entre muitas como a mais forte eleita. que nenhum golpe ou pancada o profana;
O fero semblante com que avançou foi por encanto no fogo do Inferno
corações fez saltar, faces branqueou. cozido, e temperado em água do Averno.
322 ORLANDO FURIOSO

85 No fim do campo o cavalo volveu 89 Com a mão fez-lhe sinal de querer, antes
e um pouco parou; veloz o lançou de mais nada, alguma coisa dizer;
contra os outros e o grupo dissolveu, e, sem pensar que tão viris semblantes
e a espada até ao punho ensanguentou. uma donzela estavam a esconder,
Um a cabeça, outro um braço perdeu; disse: - Cavaleiro, hoje de bastantes
outro de um modo com a espada cortou já te cansaste, e os fizeste morrer;
que o peito ao chão foi com cabeça e braços, e se eu desejar, mais do que estás já,
e ventre e pernas na sela dão passos. cansar-te, descortesia será.
86 Digo que ela o partiu a meia altura, 90 Que repouses até ao dia novo,
das costas e das ancas na fronteira, e então voltes ao campo, te concedo.
e fê-lo ficar com meia figura, Não me honra, se contigo hoje me provo,
como, diante de imagem santeira, pois cansado e lasso estares é meu credo. -
as vai pôr de prata e de cera pura - O cansaço de lutar não me é novo,
a gente da terra e a forasteira, e nem por tão pouco à fadiga cedo
para agradecer e para pagar promessa (disse Marfisa); e espero à tua custa
das graças pias que obtiveram dessa. fazer-te, de tal, demonstração justa.
87 Um que fugia, logo o perseguiu, 91 Tua oferta cortês eu ultrapasso,
e antes do meio da praça o alcançou; pois a fadiga inda não me empeçonha;
cabeça e colo a modo lhe cindiu e tem ainda o dia tanto espaço
que o médico nunca mais lhos juntou. que todo ao ócio dá-lo é uma vergonha. -
Um ap6s outro, enfim, os extinguiu, Responde-lhe ele: - Pudesse eu dar sedaço
ou tanto feriu que o vigor lhes tirou; a tudo com que o meu coração sonha,
certificou-se que erguer-se da terra como satisfazer-te; vê, porém,
não mais podiam para fazer-lhe guerra. se o dia, antes que penses, se detém. -
88 Ficara o cavaleiro sempre a um canto, 92 Logo à pressa mandou trazer, e aceita,
que a dezena à praça tinha trazido; duas grandes lanças que graves são;
pois avançar contra um só, tendo tanto deixou Marfisa escolher sua eleita,
ascendente, pareceu-lhe descabido. ficou com outra e tomou posição.
Ora, que uma só mão viu dar quebranto Prontos se encontram, e apenas à espreita
à companhia em tempo tão sumido, do som que à luta dá iniciação.
para mostrar que a espera foi cortesia E nisto a Terra, o ar e o mar ribomba,
e não temor, do seu canto saía. quando vão ao primeiro som da tromba.
93 Mexer-se, a boca abrir, pestanejar
não se via nenhum observador:
todos ver quem a palma vai ganhar
dos dois campeões, aguardam com fervor.
Marfisa, para do arção ver tombar,
e não mais se erguer, o da negra cor,
a lança enrista; o de negro, mui forte
não menos a Marfisa quer dar morte.
94 As lanças eram de seco salgueiro,
em vez de serem de azinho verdento,
e só o cabo lhes ficou inteiro;
para os corcéis foi o choque tão violento
que a ambos parecia ter um ceifeiro
tirado, às pernas, dos nervos sustento.
Caíram ambos; mas os dois campeões
lestos foram a sair dos arções.
CANTO XIX 323

95 Já mil cavaleiros em sua vida, 101 A batalha durou a tarde inteira,


ao primeiro embate, Marfisa fez sem de qual o melhor dar nitidez;
tombar da sela, mas ela abatida não saberiam, já com luz ligeira,
nunca fora; mas foi-o desta vez. como esquivarem-se ao golpe soez.
Do estranho caso não só estarrecida, Caída a noite, à ínclita guerreira
como atordoada está de estranhez. falou primeiro o cavaleiro cortês:
Estranhou também o cavaleiro de escuro, - Que faremos, se com igual fortuna
para quem assim cair foi prematuro. nos alcançou a noite inoportuna?
96 O chão ao cair mal tinham tocado, 1 02 Acho melhor que prolongues a vida,
e logo em pé renovaram o assalto. ao menos até ao amanhecer.
Cortes, golpes com furor desusado Só posso permitir seja acrescida
apara-os o escudo, ou lâmina, ou salto. uma pequena noite ao teu viver.
Quer se dê golpe em vão ou acertado, E por a vida não teres mais comprida,
o ar faz zunir e ressoa ao alto. que eu sou culpado não deves dizer:
Aqueles elmos, couraças e escudos a culpa deves dar à lei hereje
mais do que bigornas eram massudos. do feminil sexo que o lugar rege.
97 Se da feroz dama é pesado o braço, 1 03 Que me doo de ti e teus co-réus
o do seu rival também não é leve. sabe-o aquele para quem nada é obscuro.
Muito parecido é dos dois o compasso: Comigo podes ficar, e os teus:
o que um dá, outro a retorquir é breve. para vós outro lugar não é seguro;
Quem quiser duas almas bravas, de aço, pois a turba, a quem os maridos seus
para além destes dois procurar não deve, mataste, quer encurtar teu futuro.
nem buscar mais destreza ou mais possança, Cada um desses a quem deste a morte,
pois toda quanta há nos dois se entrança. tinham-no dez mulheres por consorte.
98 As damas, que vêem e que revêem 1 04 Do dano que tu hoje lhes causaste
o prosseguir da luta tão brutal, noventa mulheres farão desfeita;
e nos cavaleiros surgir não vêem ficares em minha casa é quanto baste
de cansaço ou fadiga algum sinal, para ao assalto escapares que te espreita. -
que os melhores cavaleiros são, prevêem, - Aceito a hospedagem que ofertaste
que há por onde o mar estende o seu caudal. (disse ela), certa de que é tão perfeita
Se não fosse cada um mais que forte, em teu coração bondade e honor
só de cansaço teriam tido morte. como são tua bravura e valor.
99 Para si pensando, dizia Marfisa: 1 05 Se te aborrece teres de me extinguir,
- Bom foi para mim que este não se movesse; também te pode aborrecer o contrário.
pois, se com os outros viesse em frisa, Não tens ainda motivos para rir,
risco teria havido que eu morresse, por ser que tu menos duro adversário.
já que mais não posso que, desta guisa, Queiras pugna seguir ou desistir,
responder aos golpes que ele me oferece. - fazê-la a um ou outro luminário29 ,
Assim diz Marfisa que, desenvolta, ao primeiro sinal pronta30 me terás,
não pára de girar a espada em volta. como em cada vez que desejarás. -
1 00 - Bom foi para mim (dizia o outro agora) 1 06 Assim ficou adiada a tenção
ele repousar-se não ter concordado. até do Ganges3 1 chegar novo alvor,
A custo me posso defender ora, e sem se ter chegado à conclusão
que da primeira luta está cansado. qual dos dois guerreiros era o melhor.
Se ao dia seguinte houvesse demora, Ter com Aquilante e Grifone vão,
como era, com o vigor restaurado? aos quais e aos outros o cortês senhor
Sorte tive eu, quanta se pode ter, pediu que, até surgir o novo dia,
por não querer o que lhe quis oferecer. - quisessem estar em sua companhia.
324 ORLANDO FURIOSO

1 01 Aceitam o convite sem suspeita: 10s Maravilhada, a donzela maquina


ao esplendor de brancas tochas ardentes, como um mancebo em armas tanto valha;
sob real tecto cada um se ajeita fica o outro espantado ao ver a crina,
em aposentos ricos e atraentes. por descobrir com quem travou batalha;
Estupefactos, cada qual o outro espreita no nome saber cada um se obstina,
quando os elmos tiram, os combatentes, e a dar resposta nenhum se atrapalha.
que o cavaleiro, por quanto parecia, Mas qual o nome que tinha o rapaz
ainda dezoito anos não excedia. no outro canto ouvi, se vos apraz.

NOTAS

1
Quem [ . .] fé: quem está no topo da roda da sorte 17
Faxina: feixes de ramos que, flutuando atrás do
tem muitos amigos, falsos e leais. navio, lhe reduzem a velocidade.
2 18
Creonte: tirano de Tebas (cf. nota a XVIl:2); não per­ Aiazzo: no golfo de Alexandreta.
mitiu que fosse dada sepultura aos Gregos mortos junto
às muralhas da cidade, entre os quais Polinices, seu 1 9 Pelo de Inglaterra: por Astolfo.
sobrinho.
20
O corno: o corno que lhe deu Logistilla (cf. XV: 14- 1 5).
3
Sem tecto: sem sepultura.
21
Cada ponta do corno: cada extremidade da baía.
4 Archeiro alado: Cupido.
22
Cumana [ . .] Heitor: a Sibila de Cumas e Hécuba (cf.
5 Rei da Circàss ia: Sacripante. nota a VII:73) .
6 A icane: rei da Tartária (cf. nota a 1:80) . 23 Como [ . .]fez: Alexandre M o, não conseguindo des­
gr agn
fazer o nó feito pelo rei frísio Górdio, cortou-o com a espada.
7 O q ue [ . .] Dido: a gruta em que Eneias e Dido se
24
abrigaram da tempestade e onde começaram a amar-se Do [ . .] a ustro: do lado sul.
(Eneida, IV: 1 60 ss.).
25
Frio pla ustro: o carro gelado da Ursa Menor, para
8
Índia: sinónimo de Oriente. indicar o Norte.
9 Tinha-a [ . .] Ziliante: no Orlando Innamorato, 26
E da cor [ . .] pranto: tal como nas suas vestes abun­
Ziliante, cativo da fada Morgana, foi libertado por dava o negro e faltava o branco, na sua alma abundava o
Orlando. Mas a oferta da pulseira é invenção de Ariosto. pranto e faltava o riso.
10
Ilha do pranto: Ebuda (cf. X:93) . 27
Sobrepeito: plastrão.
11 28
Treslo ucado: trata-se de Orlando, louco furioso, irre­ Como [ . .] dana: tal como um muro não abana num
conhecível (cf. XXIX: 58 ss.). «jogo de vaivém», popular na época de Ariosto: vários
jogadores alinhados atiram bolas ao muro, e ela é-lhes
12
Limassol: cidade da costa meridional de Chipre. devolvida pelo impulso, sendo vencedor quem durante
mais tempo prosseguir, sem deixar ir a bola ao chão.
13
Tripoli: cidade costeira no Norte do Líbano.
29
Fazê-la [ . .] lumindrio: fazê-la à luz do Sol ou da Lua.
14 Antdlia: cf. nota a XVII:65:7.
30
Pronta: distracção de Ariosto. O adjectivo no feminino
15
Ettino: lugar não identificado. revela o sexo da guerreira, ainda encoberto ao adversário.
16 31
Negra [..] exala: vento que sopra de África (negra boca). Ga nges: indica o Oriente.

CANTO XX

As damas antigas coisas espantosas


fizeram com as armas e as sacras musas;
de suas obras belas e gloriosas
grandes luzes no mundo são difusas.
Harpálice e Camila1 são famosas,
no batalhar experientes e profusas;
Safo e Corina2, porque foram doutas,
esplendem ilustres e para sempre notas.
2 As damas atingiram a excelência
em toda a arte a que deram factura;
e quem da história tiver advertência
ouve sua fama, inda não obscura.
Se o mundo há muito mostra sua ausência,
é mau influxo que nem sempre dura;
talvez tenham escondido seus louvores
inveja e o não saber de historiadores.
3 Parece-me ver nesta era distinta
grande valor que entre as damas emerge,
que obra pode dar em papel e tinta,
a qual para futuros tempos converge;
para que seja, odiosas línguas, extinta
vossa injúria, que o seu valor submerge:
seu louvor aparecerá de tal guisa
que passará em muito o de Marfisa.
326 ORLANDO FURIOSO

4 A ela voltando, aquela donzela, 10 Quando, após vinte anos, foram isentos
ao cavaleiro que foi tão cortês, de Tróia os Gregos (pois durou o assédio
de sua pessoa tudo revela, dez, mais outros dez pelos contrários ventos
se ele se revelar por sua vez. foram pelo mar agitados com tédio),
Desembaraçou-se a responder-lhe ela, suas mulheres viram para os tormentos
para o nome dele ouvir com rapidez: da longa ausência ter tido remédio:
- Eu sou Marfisa (disse) -; e foi bastante, tinham jovens amantes por eleitos,
que em todo o mundo se sabe o restante. para não arrefecerem sós nos leitos.
5 Começa o outro, pois que toca a ele, 11 Cada grego de filhos de outros tem
com mais proémio a narrar-lhe seu conto: cheia a casa; mas, por parecer comum,
- Creio que a nenhum de vós é novel às mulheres perdoam, pois sabem bem
o nome da minha estirpe, que aponto; que não podiam ter um tal jejum;
não só em França e Espanha sabem dele, quanto aos filhos dos amantes, convém
pois na Índia, Etiópia e no frio Ponto3 que seu sustento procure cada um;
não há quem não conheça Claramonte, pois tolerar não querem os maridos
donde saiu o que matou Almonte4 , que sejam à sua custa nutridos.
6 e aquele que a Chiariello e ao rei Mambrino 12 Uns são expostos 1 1 , outros são ocultos
a morte deu5, e seu reino desfez. das suas mães e mantidos com vida.
Desse sangue, onde se junta ao Euxino6 Em vários grupos, os que eram adultos
o Istro7, com oito cornos ou dez, para aqui e para acolá deram partida.
com o duque Amon, que qual peregrino Uns armas seguem, outros estudos cultos
ali se encontrou, minha mãe me fez8 ; e artes; por outros a terra é florida;
e há já um ano que a deixei, dolente, ou servem na corte, ou guardam o grege,
para ir a França encontrar minha gente. conforme determina a que aqui rege.
7 Mas não pude acabar minha viagem, 13 Entre outros jovens um daqui partiu,
que aqui me trouxe um tempestuoso Noto9 • filho de Clitemnestra, a má rainha,
Mais de dez meses hou aqui paragem, fresco lírio ou rosa que se cindiu
e cada dia e cada hora anoto. da sua planta: dezoito anos tinha.
Guidon Selvaggio é a minha linhagem, Corsário se fez com seu bom navio,
pouco experiente ainda e pouco noto. e pôs-se a depredar pela marinha;
Cá matei Argilon de Melibeia 10 , por companhia cem jovens perfeitos
mais dez vindos com ele em assembleia. levou também, por toda a Grécia eleitos.
Passei também na prova das donzelas: 14 Os Cretenses, nesse tempo, o malvado
para meu prazer dez delas tenho ao lado; Idomeneu 12 destituído haviam,
deram-me, à minha escolha, as mais belas, e, para segurança do novo estado,
e também as mais gentis deste estado. de homens e armas recolha faziam;
Sobre estas reino e as outras todas; delas pagando bem, fizeram seu soldado
o governo e o ceptro me foi confiado; Falanto (que seu nome assim diziam),
o mesmo darão a outro que a Sorte e ele, com os mais que trazia em barda,
ajude a levar a dezena à morte. - à cidade de Dicteia 13 deu guarda.
9 A Guidone fazem inquirição: 1 5 Entre cem cidades que havia em Creta,
por que tão poucos homens há ali, Dicteia era a mais rica e mais fagueira,
e se às mulheres têm sujeição, em damas belas e ternas vedeta,
como elas a eles fora dali. de manhã à noite em jogos brejeira;
Respondeu ele: - Muita vez a razão e, como de cortês tinha a faceta,
de tal ouvi, desde que estou aqui; bem recebia a gente forasteira:
ser-vos-á, como por mim foi ouvida, tal fez com estes, que dentro de dias
se desejais sabê-la, referida. de suas casas tinham senhorias.
CANTO XX 327

16 Eram jovens e belos de verdade 22 As mulheres, que assim se viram traídas


(Falanto o escol da Grécia tinha eleito), pelos amantes em quem confiança haviam,
pelo que às belas damas, com brevidade, ficaram por dias tão estarrecidas
lhes roubaram os corações do peito. que imóveis estátuas junto ao mar pareciam.
Além de belos, tinham qualidade Mas vendo que de gritos e doridas
de serem bons e galhardos no leito, lágrimas nenhum proveito teriam,
tornando-se delas tão apreciados puseram-se a pensar com diligência
que mais que qualquer bem eram amados. como ajudarem-se, em tanta carência.
17 Terminada que foi de acordo a guerra 23 Propostas fazendo em seus desesperos,
para a qual Falanto dera contributo, queriam umas a Creta regressar,
logo o estipêndio militar se encerra, porque antes ao arbítrio dos severos
não colhendo os jovens daí mais fruto, pais e ofendidos maridos voltar
e, por tal, desejam deixar a terra; que pela deserta praia ou bosques feros
as mulheres de Creta fazem mais luto, de fome e de outros males acabar.
e vertem por isso pranto maior Outras achavam que era mais honesto
que por morte de pai teriam dor. afogar-se no mar que ter tal gesto;
1s As damas aos jovens fazem bastante, 24 e que menor mal era meretrizes
para que eles lá fiquem, imploração; pelo mundo ir, ou mendigas ou escravas,
mas como eles não cedem, vão avante que ao castigo dobrarem as cervizes,
com eles, deixando pai, filho, irmão, de que eram dignas pelas obras pravas.
de ricas gemas e de ouro abundante Isso e mais ideias as infelizes
fazendo à família depredação; propunham, mas todas duras e bravas.
e foi toda a manobra tão secreta Uma Orontea que entre elas havia,
que a fuga não sentiu nenhum em Creta. de Minos descendente, ao fim se erguia;
19 Foi tão propício o vento, e tanto a hora 25 que as outras era mais jovem e bela
acertada que Falanto escolheu e sensata: a que menos tinha errado 1 5;
que há muito tempo tinham ido embora tinha amado Falanto, e a ele pucela
quando em Creta o dano se percebeu. se dera, e por ele tinha o pai deixado.
A esta praia, então deserta, aflora No rosto e na fala mostrava aquela
o grupo que a tempestade colheu. o dócil coração de ira inflamado;
Ficando aqui em sossego absoluto, aos ditos das outras não dando preito,
melhor do seu furto viram o fruto. deu seu parecer, e fez seguir-lhe o efeito.
20 Durante dez dias esta foi estância 26 Pareceu-lhe aqui ficarem ser melhor;
de prazeres amorosos toda plena. viu ser fecunda a terra e a aragem sã,
Mas não raro acontece que a abundância de muitos rios ter límpido licor,
o coração jovem desasserena: em selvas rica, a maior parte chã;
prescindir das mulheres em consonância aos portos, fozes, o mar, com o furor
decidiram, livrar-se de tal pena; da borrasca, trazia gente vã,
não há carrego de levar pesado que de África e do Egipto ali levava
como uma mulher ter, contrariado. coisas várias, de que se precisava.
21 Estando eles de tesouros e rapinas 27 Ali ficar pensou, e dar vingança
desejosos, e de dispêndio parcos, ao viril sexo que as ofendeu tanto:
e para sustentar tantas concubinas todo o navio que ali faça parança,
precisando de mais que hastas e arcos, pelo vento trazido até esse canto,
abandonaram aqui as mofinas, só saque, morte e fogo se lhe afiança;
carregaram seu tesouro nos barcos, que nem um só da vida guarde o encanto.
e na Apúlia fundaram, não invento, Assim se disse e assim foi concluso,
à beira-mar a terra de Tarento 14 • e instituiu-se a lei e pôs-se em uso.
CANTO XX 329

28 Ao sentir que o ar se turvava, armadas 34 Nem um criariam, se isso diferença


as mulheres acorriam à marinha, não fizesse para conservar a raça.
pela implacável Orontea guiadas, É esta a piedade e dó que dispensa,
que a lei lhes fez e delas foi rainha; mais aos próprios que aos de fora, a lei crassa;
e às naves nestas praias naufragadas para todos de fora há igual sentença;
impunham fogo e rapina mesquinha, e só nesse ponto a lei se relassa 17 ,
não deixando homem vivo que novela não sendo já a seu início fiel,
fosse contar, nesta parte ou naquela. em que os matavam elas a granel.
29 Assim sós viveram, ano após ano, 35 Se dez ou mais pessoas cá chegavam
cruéis imigas do sexo viril; duma vez, para a prisão ir era usança;
mas depois viram que seu próprio dano e a uma por dia, à sorte, cortavam
buscavam, se não mudassem de ardil: a cabeça, sendo feita a matança
se não propagam o género humano, no templo horrível para onde a levavam,
em breve a lei seria vã e vil; por Orontea erigido à Vingança;
faltará na infecunda nação, e a um dos dez à sorte o cru ofício
quando torná-la eterna era intenção. davam de executar o sacrifício.
30 Assim, temperando um pouco o seu arrogo, 36 Passados anos, à costa inclemente
escolha fizeram, quatro anos inteiros, veio ter ao acaso um jovem rapaz
de quantos cá houveram desafogo; que era do bom Alcides 1 8 descendente,
dez belos e galhardos cavaleiros, chamado Elbanio, em armas mui capaz.
que para enfrentar o amoroso jogo De surpresa o agarram de repente,
daquele cento fossem bons guerreiros. sem suspeitar do mal que aqui o traz;
Eram elas um cento; e instituído em estreito quarto o fecharam, recluso,
para cada dezena foi um marido. com outros guardado para o cruel uso.
31 Foram antes muitos decapitados 37 Tinha ele um rosto belo e jucundo,
que deram provas de ser pouco fortes. era em modos e costumes prendado;
Os dez por bom desempenho aprovados, e de um falar tão doce e tão facundo
no leito e governo foram consones; que uma áspide o teria escutado;
fazendo-os jurar que, se a estes lados por tal, como coisa rara no mundo,
mais homens chegassem em seus transportes, foi o seu ser em breve mencionado
seriam eles que, sem compaixão, a Alessandra, filha de Orontea,
os matariam com a espada na mão. ainda viva e de bons anos cheia.
32 Engravidando e filhos tendo prestes, 38 Orontea era viva; e falecidas
as damas começaram a recear as com ela vindas para este clima;
que, muitos nascendo do sexo destes, dez vezes mais aqui foram nascidas,
deles não se podiam abrigar; que em força cresceram e maior estima;
e ao fim veriam tomado por estes para dez forjas, sempre mui carecidas,
o governo, que quenam conservar; não dispunham de mais do que uma lima 19 ;
fixaram que, em idade inda infantil, poFém, dez cavaleiros com mão dura
se impedisse que algum lhes fosse hostil. davam aos chegados cruel ventura.
33 Para que o sexo viril as não revogue, 39 Alessandra, desejosa de ver
cada mãe um deixa essa lei horrenda o jovem, a quem não há que não louve,
que conserve; os outros, ou que os afogue, a sua mãe tal pessoal prazer
ou que fora do reino os troque ou venda. tanto roga que Elbanio vê e ouve;
Vão para locais diversos, com quem jogue: e, ao dele se partir, permanecer
que traga, dizem a quem os pretenda, sente o coração com quem o comove;
mulheres, se de trocá-los há vias; sente prender-se e não sabe defesa,
ou que ao menos não traga as mãos vazias 16 • e do seu prisioneiro fica presa.
330 ORLANDO FURIOSO

4o Elbanio disse-lhe: «Se de piedade, 46 Alessandra àquilo só respondeu


senhora, houvesse aqui notícia ainda, com suspiros, deixando a cela obscura;
como há em toda a parte, na verdade, mil amorosas pontadas escondeu
que a luz do Sol ilumina e alinda, no coração, bem fixas e sem cura.
ousaria, por vossa alma beldade À mãe sua vontade esclareceu
que os espíritos gentis a amá-la guinda, de a Elbanio não dar mortal agrura,
pedir-vos em dom minha vida, e, após, se fizesse prova de ser tão forte
de pronto e honorado a daria a vós. que, sozinho, aos outros dez desse a morte.
41 Mas, sendo aqui, em irracional tom 47 A rainha Orontea fez reunir
os corações humanos tão malsãos, o seu conselho, e disse: «A nós convém
não vos pedirei minha vida em dom, o melhor que encontramos compelir
pois bem sei que meus rogos serão vãos; a nossos portos, costas, guardar bem;
mas como cavaleiro, mau ou bom, para saber quem escolher, quem excluir,
deixai que morra com as armas nas mãos, prova se faz, quando a ocasião vem,
e não, qual criminoso, executado, para a nosso dano não fazermos torto,
ou, como um bruto animal, imolado» . reinando o vil, e o de valor ser morto.
4 2 O olhar d e Alessandra patenteia 48 Parece-me, se achais, que instituído
por aquele jovem grande piedade; seja que, de futuro, o cavaleiro
e diz: «Se mais nesta terra campeia, que a tempestade traga ao nosso lido
que jamais noutra se viu, crueldade, não se imole no templo sem primeiro,
não permito porém que aqui Medeia20 sozinho, se ele for desse partido,
todas sejam, como crês ser verdade; contra os dez dar batalha no terreiro;
e, ainda que todas sejam assim, se para todos vencer for competente,
do número quero excluir-me a mim. que guarde o porto e comande outra gente.
43 E embora no passado eu tenha sido 49 Falo assim, pois temos um na prisão
ímpia e cruel, às outras semelhante, que para vencer dez parece se ofereça.
certo é que sujeito por quem sentido Se só, contra tantos, ele for campeão,
piedade houvesse nunca tive diante. digno é que de morrer se o impeça.
Mas pior era que tigre aguerrido, De igual modo sofrerá punição
meu coração mais duro que diamante, quando se ufane e gabe e se engrandeça».
se de mim não afastasse a dureza Orontea o discurso interrompeu,
teu donaire, valor e gentileza. a que uma das mais velhas respondeu:
44 Não fora mais do que eu nossa lei forte, 50 «A principal razão para nosso empenho
contra os forasteiros instituída, no comércio de homens ter aparecido
não hesitaria, com minha morte, não foi por, para a defesa, o desempenho
em resgatar tua mais digna vida. deles ser de algum modo requerido;
Mas cá ninguém tem poder de tal sorte para tal fazer, brio temos e engenho
que de ajudar-te não seja impedida; nós mesmas, força e ânimo aguerrido:
e o que pedes, embora pouco seja, assim sem eles pudéssemos passar
mui difícil é que obter se preveja. para não deixarmos de nos propagar!
45 Mas eu tentarei que para ti se obtenha 5 1 Mas, não tendo isso sem eles fluidez,
que venhas a morrer a teu contento; uns tomámos, poucos, para companhia,
contudo temo que daí te venha, para nunca haver mais que um por cada dez
prolongando a morte, maior tormento». não podendo ter de nós senhoria.
Disse-lhe Elbanio: «Quando em frente eu tenha Para deles conceber isso se fez,
dez armados, sentirei tal alento não porque para a defesa falta havia.
que de salvar minha vida estou certo, Seu préstimo só nisso é manifesto,
não tendo eles nada a descoberto2 1 ». indolentes e inúteis são no resto.
CANTO XX 33 1

52 Ter connosco um homem que seja forte 58 Lá o deixou com Alessandra bela,
opõe-se em tudo à primeira intenção. que depois nome a esta terra deu22,
Se um só consegue a dez homens dar morte, herdeiro seu, para respeitar aquela
quantas mulheres não tinha em sujeição? lei, bem como todo o sucessor seu:
Se os nossos dez fossem da mesma sorte, quem for trazido por sua má estrela
ao reino deitariam logo a mão. a esta terra por turvado céu,
Para dominar não é via prudente possa escolher em sacrifício dar-se,
pôr armas na mão doutro mais potente. ou contra dez guerreiros, só, provar-se.
53 Põe inda na mente que, dando ouvidos 59 E se os homens ele matar de dia,
Fortuna a este, e se ele os dez matar, que à noite com as mulheres se prove;
as cem mulheres de quem são maridos, e quando nisso também lhe sorria
sem eles ficando, ouvirás gritar. a sorte, que vencedor se comprove,
Se quer escapar, proponha outros partidos, do feminil bando príncipe e guia
e não dez jovens querer assassinar. seja, e à escolha a dezena renove,
Mas se é bom para fazer com cem mulheres com a qual reine, até que outro cative,
o que fazem dez, perdoa-o se queres». mais forte que ele e que da vida o prive.
54 De Artemia cruel foi o parecer 60 Por dois mil anos aquele ímpio uso
(seu nome era); não se deveu a ela foi conservado, e ainda se mantém;
que Elbanio ao templo não fosse morrer, poucos dias há que, no templo, infuso
aos cruéis deuses cortando-lhe a goela. não seja o sangue de algum que ali vem.
Mas Orontea, a mãe, que comprazer Se contra dez algum de armar-se abuso,
quis sua filha, replicou àquela como Elbanio (inda vivo), tem também,
outras e mais razões, e modo achou o primeiro golpe a vida lhe rechaça;
que no senado o seu parecer ganhou. nem um em mil à outra prova passa.
55 O ter Elbanio beleza e encanto, 61 Sempre passam alguns, mas muito raros:
mais que outro qualquer cavaleiro no mundo, com os dedos da mão os adiciono.
no coração das jovens peso tanto, Argilon foi um, mas anos avaros
ali presentes, teve e tão profundo foi com sua dezena aqui o dono;
que o parecer das velhas pôs ao canto, para aqui me trouxeram ventos amaras,
que, como Anemia, queriam segundo e os olhos lhe fechei com eterno sono.
a velha ordem; pouco decorrido Com ele houvesse morrido eu tal dia,
Elbanio foi por mercê absolvido. em vez de aqui viver em serventia.
56 Ao fim concluiu-se ser perdoado, 62 Pois os prazeres do amor, e o riso, e o jogo,
mas se para os outros dez tivesse alento que amar costumam os da minha idade,
e no outro assalto fosse aprovado as púrpuras, gemas, e o desafogo
bom para dez mulheres, e não para um cento. de ser o primeiro em sua cidade,
Do cárcere o outro dia foi tirado; que alegria darão, vos interrogo,
tendo armas e cavalo a seu contento, ao homem privado da liberdade?
contra dez guerreiros, só, avançou, E o nunca mais daqui poder sair
e um após outro na praça matou. julgo ser longo e pesado servir.
57 À noite à outra prova deu começo, 63 Ver assim consumir meus melhores anos,
contra dez donzelas só e desnudo; a flor da vida, de modo aviltante,
nela teve seu ardor tal sucesso o coração me oprime em vãos afanas,
que com todas elas provou de tudo. e todo o prazer me é irrelevante.
Assim conquistou as graças e apreço Da minha estirpe a fama corre os planos
de Orontea, que de mãe lhe deu escudo; por todo o mundo, até ao céu distante;
deu-lhe Alessandra mais as outras nove boa parte dela talvez gozasse,
com quem de noite boas provas houve. se junto aos meus irmãos estar lograsse.
332 ORLANDO FURIOSO

64 Parece o destino dar-me desdém, 70 Disse ela a Guidon: - Vem connosco embora,
tendo-me para tão vil serviço eleito; que à viva força daqui sairemos. -
qual cavalo que à parte se mantém Respondeu-lhe ele: - Tua esperança gora
por mostrar nos pés ou olhos defeito, de daqui ir, percamos ou ganhemos. -
ou, por qualquer outra pecha que tem, Ela acrescentou: - Nunca me apavora
às armas e a bons usos não afeito; de uma coisa acabar que iniciemos;
só esperando eu por morte de tal pejo nem sei encontrar mais segura estrada
libertar-me, só a morte desejo. - que aquela a que me guia a minha espada.
65 Guidone fim a seu discurso deu, 71 Na praça o teu valor já vi provado,
e de raiva ao dia deu maldição e contigo arrisco qualquer empresa.
que, os cavaleiros vencendo, recebeu Quando amanhã em volta do estacado
o reino e as esposas em galardão. a turba sentada aguarda a proeza,
Astolfo escutou e o nome escondeu, vamos dizimá-la por todo o lado,
até certificar-se com razão quer tente fugir quer fazer defesa,
que, tal como afirmou, este Guidon lobos e abutres deste paradeiro
era filho do seu parente Amon. terão os corpos, e a terra o braseiro. -
66 Depois disse-lhe: - Eu sou o duque inglês, n Retorquiu-lhe Guidon: - Ter-me-ás pronto,
o teu primo Astolfo -; e logo o abraçou e que a teu lado morrerei garanto,
e, num gesto afectuoso e cortês, mas não esperes resistir ao confronto:
não sem lágrimas verter o beijou. vingar-nos-emos um pouco entretanto;
- Meu caro parente, mais nitidez quase sempre dez mil na praça conto
tua mãe com sinal não te doou; de povo feminino, e outro tanto
para acreditar que dos nossos nasceste está de guarda ao porto, castelos, muro;
basta aquilo que com armas fizeste. - não há para fugir caminho seguro. -
67 Guidon, que noutra parte faria festa 73 Disse Marfisa: - E que mais sejam elas
por encontrar tão chegado parente, que os homens que Xerxes2 5 com ele trazia,
aqui o acolheu com expressão mesta, que as almas rebeldes26, cujas mazelas
porque de ali o ver ficou dolente. do Céu baniram com eterna heresia;
Se viver ele, Astolfo escravo resta, se a meu lado estiveres e não daquelas,
e tal está para o dia seguinte assente; havemos de as matar todas num dia. -
se livre Astolfo, para si é fatal: Guidon disse: - Não sei maneira alguma
portanto o bem de um é do outro o mal. que nos possa valer, se não for uma.
68 Dói-lhe que os outros cavaleiros ainda 74 Só nos salvamos, se bem sucedido
tenha, vencendo, de à escravidão dar23; o que vou dizer, que me veio à ideia.
e, mesmo se a lutar a vida finda, A não ser às mulheres, é proibido
que escravos sejam não pode evitar; à beira do mar pôr o pé, na areia;
pois se a primeira prova ela deslinda, numa das damas sou compelido
mas na segunda vai embatucar, a que em sua fidelidade creia,
Marfisa inutilmente o vencerá24 : pois de amor já me deu prova patente,
São escravos eles, e ela morrerá. maior que a que quero dê no presente.
69 Por outro lado, tinha a verde idade 75 Não menos que eu quer tirar-me, dizia,
do rapaz, a cortesia, o seu feito, da servidão, se comigo a carrego;
de amor enternecido e de piedade pois assim espera, sem a companhia
tanto, a Marfisa e companhia, o peito das outras rivais, ter meu aconchego.
que, com a morte dele a liberdade Fustas ou bergantins pôr na baía
haverem, era para eles despeito; mandará, enquanto o ar inda é cego,
e se Marfisa solução não tem que vossos marujos encontrarão
senão matá-lo, quer morrer também. prontos a navegar, assim que vão.
CANTO XX 333

76 Irão atrás de mim, num grupo estreito, 82 Do duro rosto da Terra inda o Sol
cavaleiros, mercantes, marinhagem, não tirara o véu obscuro e sombrio;
que sob o meu tecto me destes preito mal começara de Licáon a prole
de albergar-vos, em sã camaradagem; a levar pelo céu seu carro tardio28 ,
ampla via tereis de abrir com o peito, quando para ver a batalha29 escapole,
se no caminho nos fazem paragem; enchendo o anfiteatro, o mulherio,
com nossas espadas, espero com vontade qual enxame de abelhas que à entrada
poder tirar-vos da cruel cidade. - se apinha, para ir para nova morada30 •
77 - Tu faz como achares (disse Marfisa), 83 De trombas, de tambores, de som de corno
que eu, que daqui saio, tenho a certeza. o povo ressoar faz céu e Terra,
Mais fácil é ver que a gente agoniza querendo que seu senhor faça retorno,
por minha acção, dentro da fortaleza, para terminar a iniciada guerra.
que veres-me fugir, ou que de outra guisa Aquilante e Grifon tinham adorno
alguém duvide da minha afoiteza. das armas, e o duque de Inglaterra,
À força de armas vou sair, de dia; Guidon, Marfisa, Sansonetto e todos,
de outro modo opróbrio me pareceria. a cavalo e a pé, sabiam os modos.
78 Se eu como mulher fosse conhecida, 84 Para descer do palácio ao mar e ao porto,
das mais teria tratamento egrégio; forçada era pela praça a travessia:
e muito bem seria recebida, que outro trilho não há, direito ou torto,
talvez entre as primeiras do colégio; assim disse Guidone à companhia.
mas, como com eles vim incluída, E, depois de lhes dar muito conforto,
não quero ter mais que eles privilégio. sem causar nenhum rumor fez-se à via;
Grande error era que eu aí andasse e na praça, onde o povo se juntou,
livre, e eles em servidão deixasse. - com mais de cem guardas se apresentou.
79 Estas e mais palavras pronunciando, 85 Os seus companheiros muito apressava
mostrou Marfisa que só o respeito Guidone à outra porta para sair:
que tinha pelos companheiros (pensando mas a grande multidão que ali estava
que seu ardor lhes daria mau jeito) em volta, armada e sempre pronta a ferir,
a impedia de com memorando pensou, quando percebeu que levava
sinal de arrojo levar tudo a eito; consigo os outros, que queria fugir;
por isso deixa a Guidon nesta altura e toda a um tempo os arcos armou,
que escolha a via que acha mais segura. e parte à saída se perfilou.
80 Guidon à noite a Aleria fala 86 Guidone e os mais cavaleiros galhardos,
(era o nome da sua mais fiel), e acima de todos Marfisa forte,
nem muito tendo de solicitá-la: a puxar das armas não foram tardos,
está disposta a fazer tudo por ele. tentando ali passar de qualquer sorte;
Escolheu a nave e mandou prepará-la, mas com tal cópia caíam os dardos,
e as ricas vestes levou no farnel, aos companheiros dando ferida e morte,
fingindo que queria ao romper da aurora chovendo de cima e a toda a volta,
com as amigas fazer corso27 fora. que dano temeram ter na revolta.
81 Ela mandara para o palácio antes 87 De todos perfeita a armadura era;
levar espadas, lanças, couraças, escudos, não fora e muito houveram a temer.
com que armar se pudessem os mercantes De Sansonetto o cavalo morrera;
e marujos, que estavam meio desnudos. veio o de Marfisa igual sorte a ter.
Uns dormindo, e os outros vigilantes, Disse a si Astolfo: - O que estou à espera
partilharam os ócios e os estudos; que mais que o corno me possa valer?
olhando em volta, cada um armado, Vou ver, já que de nada serve a espada,
espreita se o nascente se faz rosado. se com o corno consigo abrir estrada. -
334 ORLANDO FURIOSO

88 Corno faz sempre que o perigo se extreme, 91 O pranto e o grito até ao céu subia,
procura ajuda e leva o corno à boca. com ruína misturado e fracasso.
Parece que em redor o mundo treme Onde quer que o som do corno se ouvia,
quando o horrível som no ar desemboca. A turba aterrada apressava o passo.
Tanto o temor os corações lhe preme Se ouvirdes dizer que sem valentia
que a gente em fuga toda se desloca se mostra a vil plebe, e de ânimo baço,
do teatro, apavorada e aflita, não vos admireis, visto que é natura
e a guarda da porta se precipita. da lebre sofrer medo com fartura.
89 Corno às vezes se lança e corre perigo 92 Mas que direis se o brio que foi tão fero
de janela ou telhado, em desafogo, de Marfisa e Guidone é vilanagem?
a assustada família que o abrigo E dos dois jovens filhos de Oliviero,
vê cercado a toda a volta pelo fogo, que já tanto honraram sua linhagem?
que, enquanto dormia, teve o castigo Já de cem mil haviam feito zero,
de pouco a pouco tanto crescer logo; e em fuga agora vão sem ter coragem;
assim, sem ver na vida algo de bom, corno coelhos, ou tímidos pombos
todos fugiam ao medonho som. quando perto de si ouvem ribornbos.
90 Daqui, dali, de cá, de lá, perdida 93 É que lesava os bons corno os vilãos
surge a turba, que só fugir procura, a força que o corno tinha encantada.
mais de mil à vez em cada saída: Sansonetto, Guidone e os dois irmãos
caem, e a gente toda se arnontura, fogem atrás de Marfisa assustada;
e em tão grande aperto há quem perca a vida. mesmo fugindo são seus esforços vãos,
De balcão, janela, urna se desrnura3 1 , tendo à mesma a orelha atordoada.
mais que um braço se parte e urna cabeça, Corre Astolfo a terra por toda a parte,
urna se estropia, outra a morte apressa. pondo no sopro cada vez mais arte.
CANTO XX 335

94 Ou descem ao mar ou sobem ao monte; 97 Ao encontro dos companheiros vem


uma ou outra nos bosques se ocultou; o duque, pensando achá-los no molhe.
até houve quem, sem virar a fronte, Gira em volta e não avista ninguém
a fugir dez dias se conservou; na areia deserta, por mais que olhe.
há quem em tal ponto caiu da ponte Ergue o olhar, e ao largo vê bem
que em vida sua nunca mais voltou. a nave a velas soltas que os acolhe;
Praça, templos, casas se repudia, tem assim de fazer outro desvio,
ficando a cidade quase vazia. uma vez que partido é o navio.
95 Marfisa, o bom Guidone e os dois irmãos 98 Deixemo-lo ir; não vos dê receio
e Sansonetto, brancos e ofegantes que, só, tanto caminho tenha feito,
fugiam para o mar, e atrás mais fuãos, de infiéis e bárbaros passa em meio,
que eram os marinheiros e mercantes; onde tudo o que se encontra é suspeito:
Aleria encontram nos cais meãos, não há perigo a que não dê remedeio
que tinha aparelhado a nave antes. com seu corno, que já mostrou o efeito;
Assim que muito à pressa os embarcou, aos seus amigos demos atenção,
remos deu à água e velas içou. que a tremer de medo pelo mar se vão.
96 Dentro e fora tinha o duque a cidade 99 A toda a vela para longe fugiram
escorraçado das colinas ao mar; daquela cruel e sangrenta praia;
as ruas deixara em inanidade: mas, quando já bem longe não ouviram
todas fogem dele e vão-se agachar. o assustador som que lhes deu tal vaia,
Muitas se viram, idas, por vildade, vergonha tão insólita sentiram
nos locais mais imundos se aninhar; que nos seus rostos o rubor se espraia.
outras, que esconderijo não acharam, Cada um para o outro olhar não se atreve:
pelo mar foram a nado e se afogaram. calado e de olhar baixo se manteve.
337 CANTO XX 337

100 Passa o barqueiro, ao seu percurso atento, 1 06 A belicosa dama seguir vou,
Chipre e Rodes, e em toda a onda egeia32 antes, senhor, que destes mais vos diga.
vê de si fugir de ilhas mais de um cento, Durance, Ródano, Saône passou36 ,
e o tão perigoso cabo de Maleia33; chegando ao pé de uma montanha abriga.
apanha propício e constante vento, Aqui, ao longo dum rio avistou
para trás lhe ficando a grega Moreia34; em negra veste uma mulher antiga,
gira a Sicília, e vai pelo mar Tirreno que cansada vinha da longa via,
costeando da Itália o lido ameno; porém inda mais de melancolia.
101 até que por fim a Luna35 chegou, 1 07 Era a velha que soía valer
onde deixara da família a telha. aos malandrins no monte cavernoso37 ,
A Deus grato porque o mar navegou onde alta justiça fez aparecer
sem pior mal, para atracar se aparelha. e dar-lhes morte o conde valoroso.
O grupo um barqueiro ali encontrou, A velha, que tem medo de morrer
que a ir com ele para França os aconselha: por razões que mais tarde vos descoso,
no seu lenho nesse dia embarcaram, segue há dias por erma via avessa,
e a Marselha em pouco tempo aportaram. evitando encontrar quem a conheça.
102 Bradamante não estava, que ali mora 1 0s Pareceu-lhe um estrangeiro pela aparência
e que governa o país marselhês; Marfisa, pelo vestir e pelo adorno;
pois, se estivesse, ficar sem demora nem sequer fugiu, como com frequência
consigo os faria em modo cortês. fugia dos que habitavam em torno;
Desembarcaram, e na mesma hora até com confiança e displicência
dos cavaleiros despedida fez a esperou no vau sem sentir transtorno:
Marfisa, e da senhora de Guidone, no vau do riacho, onde a encontrou,
de seu caminho quer ser cicerone, veio-lhe ao encontro a velha e a saudou.
103 pois diz que não é coisa lisonjeira 1 09 Depois pediu-lhe daquela ribeira
com tantos cavaleiros fazer monta: na garupa a levasse à outra banda.
em bandos, pombo, estorninho, boieira Marfisa, desde que nasceu, fagueira,
e cervo vão, bicho que se amedronta; leva a velha e aquela margem demanda;
mas o audaz falcão, a águia altaneira, e mais à frente a leva sem canseira,
o que com a ajuda alheia não conta, para ver se por melhor caminho a manda,
urso, tigre, leão, a sós vagueiam, passada a lama; e no fim do carreiro
pois nenhuma força maior receiam. viram vir ao encontro um cavaleiro.
104 Nenhum dos outros foi de tal talante, 1 10 O cavaleiro em muito rica sela,
e assim ela sozinha deu partida. de armas luzentes, bela veste ornado,
Pelo meio do bosque e da via ignorante, para o rio caminhava, duma donzela
seguiu caminho só e em si metida. e um único escudeiro acompanhado.
O branco Grifone e o negro Aquilante A dama com quem vinha era mui bela,
vão com os outros pela estrada batida, mas de semblante altivo e pouco agrado;
chegando a um castelo ao outro dia, mostrava-se enfadada e orgulhosa,
onde os receberam com cortesia. de tal cavaleiro bem meritosa.
105 Digo cortesia mas na aparência, 111 Dos condes de Mogúncia, Pinabel
pois logo sentiram contrário efeito; era o cavaleiro que a acompanhava;
do castelo o senhor, benevolência o mesmo que meses antes, cruel,
fingindo, recebeu-os com respeito: Bradamante atirou para a funda cava38 •
mas à noite, quando sem reticência Os suspiros, soluços cheios de fel,
dormiam, assaltou-os em seu leito; o pranto farto que quase o cegava39 ,
não os largou sem os fazer jurar eram por esta que consigo vinha,
uma prática perversa aceitar. e que então o necromante retinha.
338 ORLANDO FURIOSO

1 12 Mas quando do monte desapareceu 1 15 Marfisa opõe-se e grande lança aferra,


o mago castelo do velho Adante e à viseira do rival a arremessa;
e cada um seu destino escolheu, tão aturdido o faz cair por terra
por obra e virtude de Bradamante40 , que leva uma hora a erguer a cabeça.
esta, que aos desejos sempre acedeu Marfisa, que é vencedora da guerra,
cegamente de Pinabel, o amante, manda a jovem despir aquela peça
voltou para ele, e em sua companhia e dos seus ornamentos prescindir,
de um castelo para outro agora ia. dizendo à velha para o que tem despir;
1 13 E, como era trocista e insolente, 1 16 e das juvenis roupas fez questão
assim que viu a velha de Marfisa que se cobrisse sem estar mais à espera;
não conseguiu conter tapado o dente, do palafrém a fez montar no arção,
e logo se ri dela e ironiza. que até aqui a donzela trouxera.
A recta Marfisa, que não consente Com a velha segue, tendo a noção
insultos junto a si de qualquer guisa, que mais enfeitada mais feia era.
cheia de ira respondeu à donzela Três dias seguiram pela longa estrada,
que a velha era mais bonita do que ela; sem fazer coisa para ser mencionada.
1 14 e que ao seu cavaleiro ia prová-lo, 1 17 Um cavaleiro acham ao quarto dia,
com a condição de ficar com a saia que galopando só à pressa vem.
e o palafrém que tem, se do cavalo Se querer saber quem é vos alicia,
o seu cavaleiro fizer que caia. é Zerbino, que um rei por seu pai tem4 1 ,
Pinabel, que tem de mostrar abalo, exemplo de beleza e galhardia;
resposta dar com armas logo ensaia: vem-se roendo de ira e de desdém,
agarra o escudo e a hasta, o corcel gira, por não ter podido fazer vingança
e a assaltar Marfisa vem com ira. de um que impediu um acto de temperança42 •
CANTO XX 339

1 18 Zerbino em vão por toda a selva andou 1 24 Retorquiu Marfisa: - Com teu despeito,
atrás daquele que fez vilanagem; que a podes levar dá prova patente.
mas tão bem ele a tempo se escapou Não permito que tão mimoso aspeito
e soube no fugir ganhar vantagem, tu vendo ou outro, tirar-mo não tente. -
tanto o bosque e tanto a névoa o ajudou, Respondeu Zerbin: - Não sei para que efeito
que ao matinal raio cobriu a imagem, um homem perigo corra e se atormente,
que à mão de Zerbino escapou com jeito para uma vitória ter de tal estranheza:
até lhe abandonar a ira o peito. premeia o vencido e o vencedor lesa. -
1 19 Não pôde Zerbino, ainda que irado, 125 - Se tal proposta bem não te soou,
conter ao ver aquela velha o riso; outra te faço, a qual não se contesta
o corpo, de juvenil veste ornado, (disse a Zerbino Marfisa): se eu sou
contrastava com o feio e antigo viso; por ti vencido, ficarei com esta;
e a Marfisa, que lhe seguia ao lado, se te venço, por força que ta dou.
disse: - Guerreiro, tiveste juízo, Provemos então quem sem ela resta:
pois dama levas de tal jarretice se perdes, nunca mais podes fugir
que não temes achar quem ta cobice. - de acompanhá-la aonde quiser ir. -
43
120 Teria (se a cortiça encarquilhada 1 26 - Pois seja - (Zerbino disse); e volveu
indício certo dá) mais que a Sibila44 , para fazer espaço logo o seu cavalo.
parecendo uma mona assim ataviada, Nos estribos se elevou e recolheu
que para provocar o riso desfila; firme o corpo no arção; com grande abalo,
mais feia é agora, de ira exaltada, em pleno escudo a donzela colheu:
que dos olhos a fúria lhe destila: dum monte de metal sentiu o estalo;
à mulher não se faz maior despeito colheu-o ela no elmo por seu lado,
que de velha ou feia lhe dar defeito. e da sela o mandou atordoado.
121 Fingiu ofensa a ínclita donzela, 1 27 A Zerbin pouco agradou ter caído,
para gozo ter do caso, como fez; que em nenhum embate lhe acontecera
a Zerbin respondeu: - A dama é bela, e em mais de mil já se tinha batido;
muitíssimo mais do que és tu cortês; um perpétuo revés tal considera.
embora eu creia que o que dizes dela No chão se deixou estar emudecido;
não iguala o que no íntimo vês: inda mais lhe custa quando pondera
tu só finges não ver sua beleza que prometera, e obrigado seria,
para encobrir tua grande vileza. ter a velha horrível por companhia.
122 E qual seria o cavaleiro que esta, 1 28 Junto dele a vencedora, na sela,
tão jovem e tão bonita, encontrasse disse-lhe a rir: - A dama te apresento;
sem outra companhia na floresta, quanto mais a vejo gentil e bela,
e fazê-la sua não experimentasse? - mais que ela seja tua me contento.
- Tão bem (disse Zerbin) em ti se encesta Agora és por mim o defensor dela;
que mau seria se algum ta levasse; que a tua palavra não leve o vento:
eu por mim não serei tão indiscreto com tua escolta e guia ela é levada
que dela te prive: podes estar quieto. (como prometeste) onde mais lhe agrada. -
123 Se outras contas queres acertar comigo, 1 29 Sem resposta querer, o corcel esporeia
do que valho estou pronto a dar-te prova; e logo pela floresta se arremessa.
mas não sou cego, por esta não brigo: Que um cavaleiro é, Zerbin tem ideia,
desse voto nada há que me demova. e à velha diz: - Faz com que eu o conheça. -
Feia ou bonita, que fique contigo: E a verdade ela não lhe regateia,
amizade tão grande não se estrova. que de veneno e ira o enfureça:
Bem estão um para o outro, até juraria: - Foi golpe dado por mão de donzela
ela em beleza e tu em galhardia. - o que te fez voar (disse) da sela.
340 ORLANDO FURIOSO

130 Pelo seu valor esta devidamente 136 E tanta vez pintara de Zerbino
usurpa aos cavaleiros escudo e lança; o belo rosto e proezas que afronte
aqui chegou vinda do Oriente, que, ouvindo ora falar o paladino,
para pôr à prova os paladins de França. - e melhor lhe erguendo os olhos à fronte,
Zerbino ouvindo-a tal vergonha sente viu ser aquele por quem tão peregrino
que não só pelo rosto o rubor lhe avança, tinha ela o coração no cavo monte;
mas pouco faltou para ficar tingido de não o ver mais ela se queixava
de rubro o arnês que tinha vestido. do que de ser dos salteadores escrava.
13 1 Monta a cavalo e a si mesmo reprova 137 Dando a velha às palavras audiência,
não ter sabido as coxas unir bem. que com desdém e dor Zerbino versa,
A velha ri sozinha e já renova percebe ter ele a falsa credência
desejo de o provocar com desdém. de que lsabella foi pelo mar submersa;
Lembra-o de que é sua companha nova, e embora tendo da verdade ciência,
e Zerbin sabe que obrigação tem: para o não alegrar, aquela perversa
baixa orelha, qual corcel resignado do que ledo o punha segredo faz,
com o freio na boca e esporeado. e diz-lhe apenas o que lhe despraz.
132 Suspira e diz: - Ó Sorte, que mazela! 13s - Ouve cá (disse-lhe ela), tu que tanto
Que troca é esta que tu me fizeste? soberbo és, e me dás troça e desdém,
Da outra, que entre as belas é mais bela o que sei dessa te daria espanto
e comigo queria, me empobreceste. que julgas morta, e tratar-me-ias bem;
Achas tu que para substituir aquela45 em vez de contar prefiro, garanto,
deva ter esta que agora me deste? me esganes ou cortes em mais de cem;
À míngua estar seria menor mal fosses tu mais gentil, menos azedo,
que uma troca fazer tão desigual. tinha-te talvez contado o segredo. -
133 Aquela, que em beleza e predicados 139 Como o mastim que com fúria se aventa
não teve nunca nem há-de ter par, sobre o ladrão, e a aquietar-se é lesto
afogada entre os escolhos aguçados se aquele pão ou queijo lhe apresenta,
aos peixes deste e aos pássaros do mar; ou se lhe atém com encantado gesto;
e esta, que os vermes alimentados assim Zerbin logo humildade ostenta,
devera ter, quiseste preservar e vem suplicar que lhe conte o resto
mais dez ou vinte anos do que o devido, da que por morta chora, e com malícia
para o meu penar tornar mais insofrido. - a velha diz que sabe dar notícia.
134 Zerbino assim disse; tão desgostoso 1 40 Para ela se volta com melhor cara
em palavras e semblante parecia, e roga-lhe, suplica-lhe, esconjura
com este novo prémio tão odioso, pelos homens e por Deus, que torne clara
como de não ter a dama a quem queria. a nova, boa ou má seja a ventura.
A velha não vira Zerbino airoso - A notícia que ouvirás não te ampara
antes; mas, por aquilo que dizia, (disse-lhe a velha, pertinaz e dura):
que ele é o mesmo de quem, logo ajuíza, não está, como tu crês, morta lsabella;
lhe falava lsabella da Galiza. mas, como vive, só morrer anela.
46 Desde que dela nova te não chega,
135 Se a história ainda tendes no ouvido , 141
a velha da tal caverna deriva de mais de vinte se encontra em poder;
onde lsabella, que Zerbino ferido mesmo se a ti aquela alguém entrega,
de amor tinha, foi guardada cativa. vê se inda esperas sua flor colher. -
Muita vez ela lhe tinha referido Ai, velha maldita, como aconchega
como à paterna corte fora esquiva, a mentira, consciente de o fazer!
e como da tempestade cruel Embora por mais de vinte raptada,
se salvara ao largo de La Rochelle47 • por nenhum fora contudo violada.
CANTO XX 34 1

1 42 Onde a tinha visto lhe perguntou


Zerbino, e quando, mas nada extrai dela;
que a velha obstinada não ajuntou
ao que disse mais nenhuma parcela.
Zerbin com doçura primeiro falou,
depois ameaçou cortar-lhe a goela;
mas é em vão que pela língua lhe puxa:
não consegue fazer falar a bruxa.
1 43 Deixou finalmente a língua em repouso
Zerbino; usá-la de pouco serviu;
pelo que ouvira ficou tão ciumoso
que o coração dentro saltar sentiu,
de lsabella encontrar tão desejoso
que no fogo entraria sem desvio;
mas só onde a velha quer ir precisa,
pois promessa de tal fez a Marfisa.
144 Por isso, por caminho ermo e casual
que a velha escolheu, Zerbin foi levado;
quer subissem monte ou descessem vale,
palavra ou olhar não mais foi trocado.
Após meio-dia, quando o Sol frontal
já não era, o silêncio foi quebrado
por um cavaleiro em tal via fito.
O que seguiu no outro canto é descrito.

NOTAS

1 6 Euxino: antigo nome do mar Negro.


Harpdlice e Camda: Harpálice, filha de Harpálico,
rei da Trácia, foi educada nas artes militares, tornando-se
grande guerreira (recordada em Eneida, 1:31 6-7). Camila 7 lstro: nome clássico do Danúbio, que desagua no
é heroína vergiliana (Eneida, VII: 803 ss., e Xl:432 ss.). mar Negro através de um delta muito ramificado.
Filha de Métabo, rei dos Volscos, cometeu grandes proe­
zas guerreiras como aliada de Turno contra Eneias. 8 Amon [. .. } fez: Amon é pai de Rinaldo; logo, este
cavaleiro é seu meio-irmão.
2 Safo e Corina: as poetisas gregas Safo, da ilha de
Lesbos (sécs. VII-VI a. C.), e Corina, de T ánagra (sécs. 9 Noto: cf. nota a VI:42.
III-II a. C.).
10 Melibeia: cidade da Tessália.
3 Ponto: região da Ásia Menor na costa sudeste do mar
11
Negro. Expostos: abandonados ao ar livre para que morram
ou alguém os recolha; era uma prática comum.
4 O q ue { .} A/monte: Orlando, descendente da casa de
.
Claramonte. 12 Jdomene u: rei de Creta, neto do rei Minos e filho de
Deucalião. Participou na Guerra de Tróia, tendo prome­
5 Aq uek [. . .} deu: Rinaldo (também descendente da tido que, se sobrevivesse, sacrificaria aos deuses o pri­
casa de Claramonte) matou os irmãos Chiariello e meiro ser humano que visse ao regressar ao reino. Esse
Mambrino, no O. Innamorato. ser foi seu filho, que ele não hesitou em matar. Para apa-
34 2 ORLANDO FURIOSO

28
ziguar os deuses, que por esse acto castigavam Creta, os De Licdon [. . .] tardio: a filha de Licáon, Calisto, trans­
Cretenses baniram Idomeneu. formada por Júpiter na Ursa Maior. Só ao aproximar-se a
aurora ela desaparece do firmamento (carro tardio).
13
Dicteia: cidade cretense.
29
Batalha: final da batalha entre Marfisa e Guidone,
14
Tarento: cidade do Sul de Itália, no golfo do mesmo interrompida na noite anterior.
nome. Segundo a lenda, foi fundada por Falanto, mas
30
Ariosto acresce muita fantasia à lenda, fazendo até de Qy,al enxame [...} morada: como quando, na Primavera,
Clitemnestra mãe de Falanto. as abelhas procuram outra morada: apinham-se à saída da
antiga colmeia e partem juntas, num denso enxame.
15
Menos tinha errado: porque não traíra o marido,
31
visto ser solteira (pucela). Uma se desmura: os sujeitos são todos do género
feminino, pois a cidade é habitada por mulheres.
16 Não
traga [. . .] vazias: traga dinheiro ou outro bem
32
em troca. Onda egeia: mar Egeu.
17 33
Só [. . .} relassa: a única alteração feita à lei inicial é Ma/eia: cabo de Maléas, no extremo sudeste do
cada mãe poder conservar um filho varão por motivos de Peloponeso.
procriação.
34
Moreia: Peloponeso, ou península da Moreia.
18
Alcides: Hércules.
35
Luna: cf. nota a XVIII : 1 35.
19
Dez forjas [. . .} lima: para cada dez mulheres havia
36
apenas um homem. Durance [. . .]passou: o Durance e o Saône são afluen­
tes do Ródano.
20
Medeia: cf. nota a Ill:52.
37
Era a velha [. . .} cavernoso: cf. XIII:42.
21
Não [. . .} descoberto: totalmente cobertos de armas,
38
sem um ponto vulnerável. Bradamante [. . .} cava: cf. II:69 ss.
22
Nome [. . .] deu: Alexandreta, ou Iskenderun. 39
Os suspiros [. . .} cegava: cf. Il:37 ss.
23 40
Vencendo [. . .] dar: mesmo que ele vença (matando Mas [. . .] Bradamante: cf. IV:38 ss.
Marfisa em combate), não pode evitar que os outros
41
fiquem cativos. Rei por seu pai tem: é filho do rei da Escócia.
24 42
Marfisa [. . .] vencerd: ainda que Marfisa vença a prova Um que [. . .} temperança: o seu soldado que feriu
do combate, não vencerá a segunda (a prova amorosa Medoro (cf. XIX: 1 2 ss.).
com as dez mulheres), e terá vencido (e matado) Guidone
43
inutilmente, pois será morta (por falhar a segunda prova) Cortiça : pele enrugada.
e os companheiros reduzidos à escravidão.
44
Mais que a Sibila: mais anos que a Sibila de Cumas
25
Xerxes: rei da Pérsia (c. 5 1 9-465 a. C.) que invadiu a (cf. VII:73) .
Grécia por terra e por mar com um enorme exército.
45
Aquela: Isabella (cf. XIII:4 ss.).
26
Almas rebelaes: os anjos rebeldes, expulsos do Céu
46
com eterna infâmia. História [. . .} ouvido: cf. Xll:9 1 -92 e XIII:42.
27 47
Corso: pilhagem, pirataria. Muita [. . .} Rochelle: cf. XIII: 13 ss.

CANTO XXI

Nenhuma corda creio que constrinja


um fardo assim, e una tábuas um prego,
como a fé que uma bela alma cinja
com seu tenaz e inquebrável nó cego.
Nem pelos antigos consta que se finja
Fidelidade com outro conchego:
toda coberta de um branco cendal,
sem que o suje alguma mancha ou sinal.
2 A promessa não deve ser corrupta,
feita a um só, ou a um tempo a mil;
quer seja numa selva ou numa gruta,
longe de aldeia, de lugar civil,
ou perante o tribunal que recruta
testemunhas, atestado e apostil,
sem jurar ou usar forma mais expressa,
basta ter-se uma vez feito a promessa.
3 Aquela cumpriu, tal como se deve
em cada caso, o cavaleiro Zerbino;
e bem demonstrou em que conta a teve,
quando se desviou do seu destino
para que a que o aborrece ao lado leve,
como se levasse morbo mofino
ou a morte, até; mais tinha podido
que o desejo o que havia prometido.
344 ORLANDO FURIOSO

4 Disse eu dele que, só porque devia 7 Quando mais perto o cavaleiro se espelha
escoltá-la, tanto o peito se lhe oprime naquele rosco que odioso lhe era:
que, de raiva, nada a ela dizia; - Para combater comigo te aparelha
taciturnos vão, sem que algo os anime; (gritou em voz ameaçadora e fera),
e disse eu que o silêncio interrompia, ou abandona a defesa da velha
quando o Sol de seu carro o mundo exime 1 , para a morte ter que merece, a megera.
um cavaleiro aventureiro e errante Se por ela combates, serás morto,
que no caminho lhes surgiu diante. como acontece a quem se agarra ao corto. -
5 A velha conheceu o cavaleiro, s Zerbin com cortesia lhe responde
que se chamava Ermonide de Holanda, que seu desejo é de má e vil sorte,
e por insígnia no escudo trigueiro que il c:>valari::i não corresponde
tem, atravessada, uma rubra banda; procurar dar a uma mulher a morte:
depõe o orgulho e o semblante altaneiro, mas, se quiser combater, não se esconde;
e, humilde, a Zerbin protecção demanda, mas primeiro considere o que importe
recordando-lhe quanto prometeu que um cavaleiro como ele é, gentil,
à guerreira que nas mãos lhe a meteu. queira as mãos pôr em sangue feminil.
6 Pois seu inimigo e de sua gente 9 Estas e mais palavras disse em vão,
era o guerreiro que ao encontro vinha: e por fim foram a vias de facto.
tinha-lhe matado o pai inocente, Depois de entre eles porem muito chão,
e o único irmão que no mundo tinha; a toda a brida correm de imediato.
e fazer o mesmo ao remanescente Lestos não saem foguetes da mão,
que aos outros fez o traidor acarinha. que aos dias alegres dão aparato,
- Enquanto teu guarda eu permanecer como foram os cavalos ligeiros
(diz Zerbin), nada receies, mulher. - a levar ao embate os cavaleiros.
10 Ermonide de Holanda apontou baixo,
e trespassar-lhe o destro flanco esperou;
mas a sua fraca lança foi-se abaixo,
e o cavaleiro escocês pouco magoou.
Já o outro golpe não foi tão relaxo:
rompeu o escudo e a espádua lhe apanhou,
trespassando-lha de um ao outro lado,
e fez Ermonide tombar no prado.
11 Zerbino, convencido que o matara,
cheio de piedade chegou-se-lhe perto
e o elmo tirou da pálida cara;
e o outro, como do sono desperto,
sem palavra dizer Zerbino encara;
e depois disse: - Não me desconcerto
por me abateres, pois mostram teus semblantes
seres tu a flor dos cavaleiros errantes;
12 o que me custa é que isto por questão
duma pérfida velha sobrevém,
da qual é estranho que sejas campeão;
coisa que ao teu valor nada convém.
, E se tu conhecesses a razão
que para vingar-me dela me sustém,
ao recordares isco terias afano
por me teres, para a defender, feito dano.
CANTO XXI 345

13 Se espírito bastante eu hei no peito 16 Mas não resiste ao ímpeto marinho


para te dizer (mas o contrário temo), o Acroceráunios4 de maldito nome,
farei com que vejas que para todo o efeito nem ao vento norte se opõe o pinho
celerada é esta a um ponto extremo. que mais de cem vezes copa retome
Tive um irmão que veio, jovem escorreito, e, quanto sai da terra, no seu ninho
da Holanda, nosso país maremo, de raízes igual tamanho come5,
e fez-se de Heraclio2, imperador quanto meu irmão aos rogos e mandas
dos Gregos, cavaleiro de muito honor. desta, que é berço de vícios nefandos.
14 Tornou-se grande amigo e quase irmão 1 7 Como é uso em cavaleiro destemido
de um mui cortês barão daquela corte, combate buscar e achá-lo por certo,
que no confim da Sérvia tinha então numa justa foi o meu irmão ferido,
em sítio ameno um castelo bem forte. do castelo do amigo muito perto,
Argeo se chamava esse castelão, onde, estando Argeo lá, ou já partido,
e era desta iníqua mulher consorte; sem convite lhe estava o acesso aberto;
Tanto a amou ele que ultrapassou a marca ali se deteve para repousar,
que a dignidade de um como ele demarca. até da sua ferida se curar.
15 Mas esta, mais volúvel que uma folha 1s Enquanto ele ali estava, precisou
que está no Outono privada de humor, de se ausentar por um negócio Argeo.
quando o frio vento as árvores desfolha, Logo esta descarada procurou
arrastando-as3 pelo chão com seu furor, meu irmão, e a seu modo procedeu;
com afecto o marido já não olha, ele, leal, ao caso se esquivou,
ao qual algum tempo tivera amor; e ao infame convite não cedeu,
o seu desejo daí em diante escolhendo, para em nada ser traidor,
foi ter meu irmão como seu amante. de vários males o que achou menor.
346 ORLANDO FURIOSO

19 Escolheu o mal que achou menos molesto: 25 E, como bem conhecia o local,
deixar de Argeo a amizade conspícua; para o encontrar fez pouca digressão;
tão longe ir que não fosse manifesto que o meu irmão, sofrendo do seu mal,
seu nome nunca mais a esta iníqua. lento caminhava sem suspeição;
Sendo embora duro, era mais honesto abreviando: num lugar casual,
que satisfazer-lhe a vontade oblíqua, para dele se vingar lhe deitou a mão.
ou que acusar a mulher ao senhor, Não tem meu irmão desculpa que valha,
que tinha o coração pleno de amor. e Argeo por força quer com ele batalha.
20 De suas feridas inda padecente, 26 Um estava são e a ferver de desdém;
as armas veste e do castelo parte; enfermo o outro, e vendo nele o amigo;
no ânimo tem firme e bem assente pouca defesa assim meu irmão tem
nunca mais regressar àquela parte. do companheiro tornado inimigo.
De que vale? De defender-se impotente Filandro, a quem tal sorte não convém
o torna Fortuna com nova arte: (é do infeliz jovem que te digo:
eis que o marido regressa entretanto, tal se chamava), não sustendo o peso
encontrando a mulher desfeita em pranto, de tão fera batalha, ficou preso.
21 despenteada e com a face rubra; 27 «Permita Deus não me conduza a tal
pergunta-lhe com o que está perturbada. meu justo furor e teu desacerto
Primeiro que ela a resposta descubra, (disse-lhe Argeo), que a ti dê fim mortal,
mais que uma vez por ele se faz instada, pois que te amava; e tu a mim decerto,
e como possa, entretanto lucubra, embora acabes de o demonstrar mal;
vingar-se por ter sido repudiada: mas quero a todos pôr a descoberto
com a índole volúvel que ela tem, que, tal como o fui no tempo do amor,
depressa transforma amor em desdém. também no ódio sou que tu melhor.
22 «Por que (enfim disse) o erro não difundo 28 Doutro modo punirei teu resvalo,
que cometi, senhor, na tua ausência? sem minhas mãos mais no teu sangue pôr».
Pois, mesmo que o esconda de todo o mundo, Tal dizendo, mandou sobre o cavalo
esconder não posso da minha consciência. com verdes ramos um leito compor,
Sentindo a alma seu pecado imundo, e quase morto nele transportá-lo
sofre dentro de si tal penitência para o castelo e numa torre o depor,
que os outros corporais martírios passa6, onde o inocente, como punição,
que possam vir-me de outro erro que eu faça; condenou a perpétua reclusão.
23 se é que erro é o que à força se faz: 29 Sem que porém mais nada lhe faltasse
seja como for, a língua destranco; que a liberdade, que assim viu tolher;
depois com a espada tu separarás pois no resto, como se solto andasse,
do imundo corpo o esprito puro e branco, mandava e fazia-se obedecer.
e minha luz para sempre apagarás; Mas inda não perdera esta rapace
ao menos que, após tão infame tranco, vontade da ideia satisfazer,
andar com os olhos baixos não se imponha, e quase diariamente à prisão vinha;
por de todos que eu veja ter vergonha. à vontade a abria, pois chaves tinha;
24 Minha honra teu companheiro destruiu: 30 e ao meu irmão assaltos sempre dava,
este meu corpo pela força violou; e cada vez com maior ousadia.
temendo que eu te contasse fugiu «Tal lealdade em que te desagrava,
o vilão; sem adeus se retirou». se por perfídia é tida (lhe dizia)?
Assim falando a odiar o induziu Que gloriosos triunfos te alinhava?
aquele a quem mais que outro ele estimou. Que ricos despojos, que tomadia?
Argeo acreditou e, sem tardança, Grande mérito daí te resulta,
as armas leva e corre para a vingança. se, como a traidor, cada um te insulta!
CANTO XXI 347

31 Com quanto proveito e com quanto honor 34 Assim frequentemente a dama insiste
me terias dado o que de ti quis! em tentar Filandro, sem ter proveito.
Desse teu tão obstinado rigor Mas no cego desejo, que persiste
recebes agora os prémios hostis: em ter do celerado amor efeito,
na prisão estás, e não sais para o exterior, mais fundo do que as saias não desiste
se primeiro não dobrares a tua cerviz. de seus vícios esgravatar a preceito.
Se me satisfizeres, farei uma trama Pensamentos faz de toda a maneira,
para reconquistares liberdade e fama». até num deles fixar a craveira.
32 «Tuas esperanças (disse-lhe ele) contém 35 Esteve seis meses que não pôs o pé,
de que possa mudar a minha fé, como fazia antes, na prisão;
embora eu veja que daí me advém o infeliz Filandro espera e tem fé
injustamente tão dura mercê, que a mulher já não lhe tenha afeição.
e que o mundo de mim não pensa bem; Mas a Fortuna, que do mal é ré,
basta-me que ante aquele que tudo vê a esta perversa deu ocasião
e me poderá dar a eterna graça, de a fim levar, com memorável mal,
a minha inocência clara se faça. o seu cego apetite irracional.
33 Se não basta que Argeo preso me tenha, 36 Velha inimizade tinha o marido
que me prive da dolorosa vida. com um barão, dito Morando, o belo,
Talvez no Céu o prémio até mim venha que em ausência de Argeo era atrevido,
da minha acção, aqui cão aborrida. e chegava a penetrar no castelo;
Talvez ele, que por culpa me desdenha, estando Argeo, daí tirava o sentido,
quando minha alma daqui for partida, nem a dez milhas punha o tornozelo.
depois se aperceba que me fez torto Para fazer com que ele ali apareça,
e chore o fiel companheiro morto». diz que a Jerusalém vai em promessa.
348 ORLANDO FURIOSO

37 Disse que ia e ao partir faz que bem 43 Promessa fiz, embora não para dar
. .
o veJam, e sua viagem anuncia:
. (feito por medo, nulo é o contrato);
sua ideia, além da mulher, ninguém foi minha intenção apenas vedar
pode saber, pois só nela confia. que ali o fizesse em forçado acto.
Volta ao castelo quando o escuro vem, Facto é: só tu podes malograr
e a coberto da noite ali se enfia; que minha honra entregue ao desbarato
com outras insígnias7, ao vir da aurora, e a do meu Argeo, que de igual jeito
sem que ninguém o veja sai para fora. disseste ter, ou mais que a tua, a peito.
38 Vai por aqui e por ali errando, 44 E se isto me negares, direi então
e o seu castelo volteando em torno, que não és tão leal quanto apregoas;
para ver se, estando crédulo, Morando que só por maldade disseste não
fizesse, como usava, ali retorno. a minhas súplicas e me magoas,
Passava o dia na floresta,- e, quando e não por respeitar Argeo, razão
no mar via cair do Sol o adorno, pela qual me disseste o não atraiçoas.
voltava ao castelo, e por escusa entrada Ficaria entre nós a coisa oculta;
o recebia a esposa simulada. mas com este, aberta infâmia resulta».
39 Todos crêem, excepto a mulher infiel, 45 Dispensável (disse Filandro) é tal
que muitas milhas Argeo está distante. prólogo, pois por Argeo estou disposto.
Ela aproveita da ausência dele Diz-me aquilo que entenderes, que eu tal
e ao meu irmão vai de novo insinuante. sempre fui, sempre ser tenho proposto;
De lágrimas fingidas a granel, embora daí me resulte mal,
dos olhos ao seio vem uma vazante. a culpa disso não lhe tenho posto.
<<Onde posso (dizia) achar ajuda, Por ele estou pronto a ir até à morte,
que a preservar minha honra me acuda? contra mim esteja o mundo e a minha sorte».
40 Com a minha, a honra de meu marido, 46 Responde a ímpia: «Que à tua mão tenha
pois se ele aqui estivesse eu não temia. morte o que nossa desonra procura.
Tu conheces Morando, e se impedido Não temas que algum mal daí te venha,
por homem ou deus, sem Argeo, seria. pois eu mostrar-te-ei a via segura.
Pede e ameaça desinsofrido, A mim ele volta quando sobrevenha,
e todos os servos ele agracia na hora terceira8 , a noite mais escura;
para ao seu desejo poder subjugar-me; fará sinal como foi instruído,
não sei se serei capaz de esquivar-me. e eu meto-o cá dentro sem ser sentido.
41 Sabendo que não está cá meu consorte, 47 Não te importarás de primeiro o esperar
e que no regressar não será lesto, na minha câmara, onde não luza,
atreveu-se a entrar na minha corte até que as armas o faça tirar
sem ter desculpa e sem outro pretexto; e quase nu à tua mão o conduza».
se cá estivesse o meu senhor por sorte, Julgo que assim ia a mulher levar
não só não teria o audacioso gesto, o seu marido à armadilha abstrusa;
como nem se sentiria seguro se mulher por direito esta se chama:
de chegar-se a três milhas deste muro. mais que Fúria infernal o mal derrama.
42 Do que por mensageiro tem tentado 48 Quando essa maldita noite caiu,
fez-me ele hoje pedido cara a cara, armado deixou sair meu irmão;
e com tais modos que perigo elevado na escura câmara o introduziu,
corri de desonra e vergonha amara; até que regressasse o castelão.
se com voz doce não tenho falado, Como ela preparou, tudo surdiu,
igual vontade aparentando clara, que o desejo do mal raro é em vão.
teria à força ali cobrado o audaz Assim Filandro o bom Argeo golpeou,
o que espera, disse-lhe eu, ter em paz. pois que ele era o tal Morando pensou.
CANTO XXI 349

49 Com esse golpe abriu cabeça e colo, 53 Como o navio no alto-mar à toa,
não tendo ele sequer do elmo amparo. por dois ventos batido e dominado,
Chegou Argeo assim, como um tijolo9, que um para diante o empurra, e o abalroa
de sua infeliz vida ao fim amaro; o outro, e por ele para trás é levado,
e o amigo o matou, sem pressupô-lo e tendo-o virado à popa e à proa,
nem tê-lo imaginado: oh caso raro! pelo mais potente enfim é empurrado;
Pensando ajudá-lo, fez ao amigo assim Filandro, entre uma e outra ideia,
o que se faz ao pior inimigo. veio a decidir-se pela menos feia.
50 Quando Argeo, não conhecido, abateu, 54 A razão demonstrou-lhe o risco grande,
meu irmão a Gabrina deu a espada. não só da morte, mas da infâmia dela 10,
Gabrina é o nome desta, que nasceu se pelo castelo o seu crime se expande,
para trair quem cruzar a sua estrada. e de tal pensamento se acautela.
Ela, que o vero até ali escondeu, Queira ou não queira, convém-lhe que mande
ora quer que Filandro se persuada, o amaríssimo cálice pela goela.
com luz na mão, quem foi que assassinou: Por fim, no seu coração angustiado,
e o seu companheiro Argeo lhe mostrou. foi que a firmeza o medo mais pesado.
5 1 Depois ameaça-o que, se não consente 55 O temor do suplício infame e bruto
seu longo desejo satisfazer, fez que prometesse, com mil esconjuros,
tornará claro a toda aquela gente que a Gabrina dava total desfruto,
o que fez, sem poder contradizer; se daquele lugar partissem seguros.
e fá-lo-á ignominiosamente Assim por força teve a ímpia o fruto
como traidor e assassino morrer; desejado, e deixaram esses muros.
e lembra-lhe que desprezar a fama E Filandro regressou à Holanda,
não deve, mesmo se a vida pouco ama. deixando na Grécia infâmia nefanda.
52 Cheio de medo e de desgosto ficou 56 Levou seu companheiro no coração,
Filandro, ao perceber sua vil acção. o qual matara por vontade alheia,
Com o primeiro furor pouco faltou para contrariado dar satisfação
para matar esta, e teve hesitação; a uma Procne cruel, a uma Medeia u .
mas em casa do inimigo se achou Se a lealdade ao juramento não
e isso o deteve (valeu-lhe a razão); o houvesse amarrado com dura peia,
senão, outra arma não tendo disposta, quando em liberdade morto a teria;
com os dentes a rasgava, posta a posta. mas tenaz ódio por ela sentia.
57 Nunca mais desde aí a rir foi visto:
só lúgubres palavras pronunciava,
e do peito o suspiro era previsto;
a um novo Orestes se assemelhava,
depois que a mãe matou e o ímpio Egisto,
e as vingadoras Fúrias aturava 12 •
E, sem mais cessar, tanto o afligiu
este desgosto que enfermo caiu.
58 Esta meretriz, que medita e pensa
quão pouco pelo seu segundo é estimada,
muda a chama que foi de amor intensa
em ódio, ira e raiva desenfreada;
menos sanha a meu irmão não dispensa
que por Argeo nutria, a celerada;
e decide para si tirar do mundo,
como o primeiro marido, este segundo.
350 O RLAN D O FURIOSO

59 Um médico encontrou, de astúcias pleno, 61 a mão lhe tomou quando ele já lhe dava
apto e instruído para o seu intento, a taça com o veneno disfarçado:
mais competente a matar com veneno «Teu desagrado (disse) injusto achava,
que ao doente dar com xarope alento; se temo por quem tenho tanto amado.
prometeu-lhe soldo bem mais ameno Quero estar certa que bebida prava
do que ele pediu, depois que a seu contento lhe não darás, nem suco envenenado;
tivesse, com seu mortífero licor, não deixo que lhe dês a beberagem,
feito desaparecer o seu senhor. se de prová-la não tiveres coragem».
60 Comigo e outra gente em reunião, 62 Como pensas, senhor, que se sentiu
chegou com o veneno o velho injusto, o ruim velho alarmado em tal hora?
dizendo que era uma boa poção A brevidade do tempo o oprimiu,
para pôr de novo o meu irmão robusto. e pensar não pôde o que melhor fora;
Mas Gabrina teve nova intenção; para suspeitas não causar, decidiu
para que o enfermo o não tomasse a custo, o cálice à boca pôr sem demora:
ou se livrar do cúmplice bandido, e o enfermo ganhou tal confiança
ou não dar-lhe o que tinha prometido, que todo o resto bebeu sem tardança.
63 Como o falcão que tendo na gadanha
a perdiz, para a comer já preparado,
pelo cão que julgava fiel campanha
gulosamente se vê espoliado;
tal o médico, que com o mal ganha,
donde esperava ajuda é contrariado.
Notai de suma audácia o exemplo raro!
Que tal suceda a qualquer outro avaro!
64 Feita a acção, já o velho regressa
à rua para casa querendo ir ligeiro,
para tomar qualquer remédio depressa
que o salvasse do veneno certeiro;
mas Gabrina a isso se mostra avessa,
e diz-lhe que não vai dali primeiro
que no estômago o suco já digesto
faça ver seu efeito manifesto.
CANTO XXI 35 1

65 Não vale pedido ou promessa de oferta, 66 e seguiu com sua alma aquela que era
que a faça deixá-lo dali partir. de meu irmão e já partira adiante.
Desesperado ele, porque vê certa Nós circunstantes, que a coisa sincera
a morte sem dela poder fugir, antes ouvimos do executante,
aos presentes a trama torna aberta; agarrámos esta execrável fera,
nem esta foi capaz de a encobrir. mais cruel que da selva o habitante;
E assim o que fez aos outros a esmo, em lugar tétrico a cerrámos logo,
o bom médico ao fim fez a si mesmo: para a condenarmos ao merecido fogo. -
352 ORLANDO FURIOSO

67 Tal disse Ermonide, e inda mais queria 10 Não demorou que Zerbino partisse,
contar, como ela da prisão escapou; pois prometeu que com ela viaje;
mas a ferida tanta dor produzia para si mesmo todo o dia a maldisse,
que pálido na erva se encostou. que o fez fazer àquele barão ultraje.
O par de escudeiros que ele trazia E ora que tanto mal dela lhe disse
com ramos um leito lhe fabricou: quem conhece, e sabe como ela age,
nela Ermonide se deixou deitar, se antes lhe dava enfado e desprazer,
pois só assim dali pode abalar. tanto a odeia que a não pode ver.
68 Com o cavaleiro Zerbino se escusa: 71 Sabendo ela Zerbino de ódio pleno,
lamenta tê-lo ferido com dureza; não querendo que lhe ganhe, o mal requinta;
mas que, como entre cavaleiros se usa, nem um nico o seu ódio é mais pequeno:
da que trazia fazia a defesa; recebe em quarta, retribui em quinta 13 •
doutro modo sua fé seria abstrusa, Tem inchado o coração de veneno,
pois, desde que à sua guarda estava presa, mas o rosto, com outras cores o pinta.
prometeu com sua força salvá-la E assim, nesta concórdia que vos digo,
de todos que viessem perturbá-la. seguiam caminho pelo bosque antigo.
69 E se algum favor podia prestar-lhe, n Quando do dia já o fim se espera,
estava à sua inteira disposição. eis que gritos e estrépito se ouvia,
Respondeu o outro querer recordar-lhe dando sinais duma batalha fera
que faça da velha separação, que a julgar pelo rumor perto seria.
antes que algo ela possa maquinar-lhe Zerbino, para observar o que era,
de que se doa e arrependa em vão. direito ao rumor à pressa se avia;
Gabrina em baixo teve a vista posta, não foi lenta Gabrina a imitá-lo.
pois à verdade não se dá resposta. Do que ocorreu no outro canto falo.

NOTAS

1
Quando [ . .] exime: ao entardecer, quando o carro do 7 Com [ . .] insí ias: para não ser reconhecido.
gn
Sol se afasta.
8
Hora terceira: três horas após o crepúsculo.
2
Heraclio: anacronismo de Ariosto; Heraclio I foi
9
imperador de Constantinopla mais de um século antes Como um tijolo: sem esboçar um movimento.
de Carlos Magno.
1 0 Da infâmia dela: da morte aviltante que lhe dariam
3
Arrastando-as: arrastando as folhas. no castelo, sabendo-o assassino do seu senhor.
4 Acrocerá unios: cadeia montanhosa do Epiro, que se 11
Procne [...] Medeia: modelos de cruddade (cf. nota a III:52).
prolonga no mar em perigosos escolhos (maUito nome).
12 Novo Orestes [ . .] aturava: Orestes, por ter matado a
5 Pinho [ . .] come: o pinheiro que já mudou de folhas mãe, Clitemnestra, e o amante desta, Egisto, era perse­
mais de cem vezes e tem tanto em altura como em pro­ guido pelas Fúrias, deusas violentas cuja função era vin­
fundidade de raízes (centenário e resistente). gar o crime contra a própria família.
6
Passa: excede. 13 Quarta [ . .] q u inta: alusão às linhas altas ou paradas
da esgrima.
-ê:1$­

CANTO XXII

Corteses damas fiéis ao amante,


a quem um amor único contente,
certo estou que em tal número, abundante,
raras são as que têm esta mente;
que o que eu disse antes não vos desencante,
quando contra Gabrina fui ardente,
nem se ainda gastar mais algum verso
condenando o seu espírito perverso.
354 ORLANDO FURIOSO

2 Ela era assim; como os meus padroeiras' 4 Entre dois montes foi por um canal
me impõem, não preterirei o vero. donde o grito vinha, pouco adiante,
Lá por isso não escondo os verdadeiros tendo chegado onde, em fechado vale,
honores de quem tem coração sincero. um cavaleiro morto achou diante.
Esse que o Mestre por trinta dinheiros Direi quem é; mas de França total
aos judeus deu, não lesou lanni ou Piero2 ; ausência antes faço, e vou para o Levante
nem de Hipermestra a fama é menos sã3 , à procura de Astolfo, o paladino
sendo, embora, das iníquas irmã. que para o Poente tomara destino.
3 Por uma que canto com desapreço Deixei-o eu na cidade cruel
(a ordem da história assim o requer), onde, com o som do formidável corno,
compensando, para cem louvar me ofereço, tinha feito fugir o povo infiel
sua virtude, qual Sol, dando a ver. e grande perigo eliminar em torno,
Mas, voltando ao lavor vário que teço, e içar velas os amigos dele,
que a muitos, grato sou, sói dar prazer, dali fugidos em grande transtorno.
do cavaleiro da Escócia eu dizia Voltando a ele, digo se encaminhou
que, perto, um alto grito ouvido havia. para a Arménia e aquele país deixou.
6 Na Anatólia ficou mais que um dia,
e para Bursa4 seu caminho seguiu;
dali, continuando na sua via,
passado o mar, para a Trácia prosseguiu5 •
Ao rés do Danúbio andou pela Hungria;
seu corcel, qual volátil fugidio,
Morávios, Boémios passou em pleno
em vinte dias, Francónia6 e o Reno.
7
7 Pela selva das Ardenas, a Aquisgrana
8
chegou e Brabante ; em Flandres embarca.
A brisa, que para ocidente emana,
a vela de tal modo à proa abarca
que ao meio-dia a Inglaterra insulana
Astolfo vê; no lido desembarca.
Monta a cavalo, o qual tanto esporeia
que em Londres nessa tarde inda se apeia.
s Do velho Otone9 ali ouviu menção
que há já vários meses em Paris está,
e praticamente todo o barão
ao seu nobre exemplo imitação dá;
de ir para França tomando a decisão,
regressa ao porto do Tamisa já,
onde as velas para zarpar afeiçoa,
direccionando para Calais a proa.
9 À proa soprava um leve ventinho
que o lenho tinha encaminhado ao mar;
cresce pouco a pouco o vento marinho,
tanto que ao barqueiro vem a sobrar.
Por fim ao vento à popa dá alinho,
senão contra a costa os há-de atirar.
O navio pelo canal vai ao comprido,
tendo o caminho inicial diferido.
CANTO XXII 355

10 Ora corre à destra, ora à canha mão, 12 Ainda a água a boca não encalça,
para aqui, para ali, para onde o vento o impinge, quando um aldeão ali perto escondido
e à terra vai por fim junto a Ruão 1º; sai duma moita, ao corcel solta a alça,
e, tão depressa a suave costa atinge, monta dum salto e parte desabrido.
a Rabicano manda pôr o arção, Astolfo ouve o ruído e o rosto alça,
e todo se arma e a sua espada cinge. e, vendo o seu dano tão esclarecido,
Faz-se ao caminho, e tem consigo o corno deixa a fonte, saciado sem beber,
que vale mais que mil homens em torno. e atrás lhe vai correndo a bom correr.
11 E chegou, através duma floresta, 13 O ladro não usou todo o recurso,
junto a uma colina a uma clara fonte, senão desaparecido teria logo;
na hora em que o rebanho dorme a sesta ora abrandando, ora apressando o curso,
no seu curral, ou sob um cavo monte. do galope e do trote faz o jogo.
Pelo grande calor e sede molesta Saem do bosque após longo percurso;
vencido, o elmo retirou da fronte; e um e outro ao fim vai ter desafogo
prendeu o corcel às mais bastas frondas, no sítio onde tantos nobres barões
e depois foi beber nas frescas ondas. prisioneiros eram sem ter prisões 1 1 •
356 ORLANDO FURIOSO

14 O aldeão no palácio se recata, 20 Ruggier, Gradasso, Iroldo, Bradamante,


e o corcel que mais que o vento fustiga 1 2 . Brandimarte, Prasildo e outros guerreiros,
Forçado é Astolfo, que o escudo empata, com o novo encanto fizeram-se avante
elmo e mais armas, a que ao longe o siga. para matar o duque, de ira altaneiros.
Mas chega também, e o rasto de pata Mas lembrou-se ele do corno nesse instante,
que viera seguindo ali se desliga; e fez baixar os ânimos grosseiros.
nem Rabicano nem o ladrão vê, Não lembrasse ele que tal som tinha à mão,
e em vão gira os olhos e apressa o pé: morto era o paladim sem compaixão.
15 apressa o pé e vai buscando em vão 21 Mas assim que ele leva o ·corno à boca
por câmaras, salão ou galeria; e em torno faz ouvir o som horrendo,
mas, para achar o pérfido vilão, tal fazem os pombos mal desemboca
de tal fadiga fruto não colhia. o tiro, vão os cavaleiros correndo.
De Rabicano não acha a prisão, Também ao necromante fugir toca,
que mais que outro animal veloz corria; que do covil sai não menos temendo;
todo aquele dia andou em viravolta pálido, aturdido, dali se afasta,
para baixo e para cima, lá dentro e em volta. até que o som tremento o não agasta.
16 Confuso e cansado de girar tanto, 22 Fogem guarda e cativos; de imediato
percebeu que o lugar era encantado; das cavalariças fogem cavalos
e do livrinho para si sacrossanto, seguindo os donos através do mato,
que por Logistilla lhe fora dado pois corda não bastava para amarrá-los.
para que, caso caísse em novo encanto, Em casa não ficou gata nem rato,
tivesse socorro, foi recordado: ao som que dizer parece: é matá-los!
ao índice correu e viu asinha Com os outros iria Rabicano,
em que folha remédio para tal vinha. mas sai e ao duque se chega, mui lhano.
17 O palácio encantado era difuso 23 Astolfo, depois de correr com o mago,

no livro, e escrito como se deslaça da soleira tirou o pedregulho,


o feitiço e o mago deixa confuso, e encontrou debaixo dele uma imago,
enquanto os prisioneiros desembaraça. e escuso de falar do outro entulho:
Um espírito sob a soleira infuso de tudo o que encontrou ali fez estrago
fazia tais enganos, tal trapaça; e do grande encanto desfez o embrulho,
levantando a pedra onde está sepulto, tal qual como o livro a fazer ensina;
em fumo fará do palácio o vulto. e o palácio fez-se em fumo e neblina.
1s Desejando levar a bom efeito 24 Ali viu que a uma corrente de ouro
o paladino a gloriosa empresa, o corcel de Ruggier estava ligado;
não tarda que ao braço não dê o jeito falo daquele que o necromante mouro
para experimentar quanto o mármore pesa. para o mandar a Alcina havia dado;
Vendo Adante ele às mãos fazer trejeito ao qual Logistilla então fez em couro
para tirar à sua obra a firmeza, o freio, tendo a França nele voltado,
receoso do que possa acontecer, voando desde a Índia à Inglaterra
com novos encantos vai para o prender. sobre todo o lado destro da Terra 1 3 •
19 E fê-lo, com diabólico bruxedo, 25 Não sei se vos lembrais que ele a presilha
ter diferente aspecto do que soía: à árvore amarrara, naquele dia
de gigante e aldeão arremedo, em que dele fugiu a desnuda filha
ou cavaleiro de cara bravia. de Galafrone, dando-lhe arrelia.
Cada um, como viu no arvoredo O corcel voador, para maravilha
o mago, igualzinho o paladim via; de quem viu, ao dono regressaria;
e para reaver o que ele lhe tirou, e com ele se deixou permanecer
cada um ao paladim se atirou. até o encanto perder o poder.
358 ORLANDO FURIOSO

29 De amar Rabicano tinha razão:


melhor não tinha para justar com lança;
e nele veio da extrema região
da Índia, a cavalgar até à França.
Pensa muito e ao fim toma a decisão:
melhor dá-lo a um amigo em herança
que deixá-lo ali sozinho na estrada,
para qualquer que ali faça caminhada.
30 Estava a olhar para ver se via vir
pelo bosque um aldeão ou caçador,
pelo qual se pudesse fazer seguir
com Rabicano, até lugar melhor.
Durante todo o dia, e até surgir
o seguinte, em vão foi observador.
Mas de manhã, inda o ar estava fosco,
pareceu vir um cavaleiro pelo bosco.
31 Mas é preciso, para contar o resto,
primeiro achar Ruggiero e Bradamante.
Quando o corno se calou, indo presto,
o par deste lugar escava distante;
Ruggiero olhou, e a conhecer foi lesto
o que até ali ocultara Adante:
escondera-os Aclante até essa hora,
e os dois só se reconhecem agora.
26 Não poderia ficar mais jucundo 32 Ruggiero olha para Bradamante, e ela
com outra sorte Astolfo que com esta; olha-o, e no rosto o espanto se espelha,
pois para correr a terra e o mar, segundo por tantos dias ofuscar aquela
tinha desejo, para ver o que resta, ilusão de sua vista a centelha.
e em poucos dias girar todo o mundo, Ruggiero abraçou a linda donzela,
o hipogrifo é a adequada besta. que mais que rosa se tornou vermelha;
Sabia bem que era para o levar apto, e de seus lábios as primeiras flores 14
pois antes o experimentara de facto. colhendo vai de seus beatos amores.
27 Na Índia o experimentou, quando foi solto 33 Vão renovando o seu abraçamento
pela sábia Melissa da tal prisão mil vezes, mantendo-se sempre estreitos
da fada malvada, que havia envolto os amantes, e só contentamento
em mirto silvestre a humana feição; lhes enche e a custo lhes cabe nos peitos.
e viu como pela brida foi absolto Lamentam-se por ter do encantamento
o defeito da falta de travão na enganosa casa havido efeitos,
por Logistilla, e que foi ensinado não tendo um o outro reconhecido;
Ruggier a andar com ele por todo o lado. tantos ledos dias tinham perdido.
2s Levar o hipogrifo decidiu, 34 Bradamante, pronta a dar-lhe os tributos
e pôs-lhe, pois bem perto estava, a sela; que uma virgem prudente dar ensaia
e com bocados de freios que uniu a um amador, para que de seus lutos 1 5 ,
fez-lhe uma forte e resistente trela: sem a honra macular, o subtraia,
cada cavalo que dali fugiu disse a Ruggier que, se aos últimos frutos 1 6
os arreios abandonou sem tutela. não quer que com firmeza se retraia,
Rabicano lhe vem ao pensamento, bom arauto mande, para que autorize
de levantar voo sendo impedimento. seu pai Amon; mas que antes se baptize.
CANTO XXII 359

35 Ruggier, que tomaria não somente 41 Fugi eu de lá para não ter de ver
a religião cristã por amor desta, tal crueldade: vivo o queimarão;
tal qual a tem seu pai, e antigamente nem modo me podia mais doer,
teve o avô e toda a estirpe honesta, de a tão belo jovem dar destruição;
mas, para lhe agradar, imediatamente nem poderei jamais sentir prazer,
daria a própria vida que lhe resta: que logo não se torne em aflição,
- Não só na água (diz), até no fogo, por recordar-me da chama cruel
a cabeça por ti poria logo. - que haja queimado os belos membros dele. -
36 Para se baptizar e depois por esposa 42 Bradamante ouve e parece que trema
ter a dama, Ruggiero fez-se à via, com tal história, que muito a entristece;
guiando Bradamante a Vallombrosa 17 dá a ver que por ele não menos tema
(assim foi chamada aquela abadia que se um seu irmão no lugar estivesse.
rica e bela, e não menos religiosa, Nem sem razão ela tinha tão extrema
e amável para quem ali aparecia); apreensão, como após aparece 18 •
encontraram, ao sair da floresta, Disse a Ruggiero: - Parece se preste
uma dama no rosto muito mesta. para usar nossas armas em favor deste. -
37 Ruggiero que humano e cortês nasceu 43 E diz à dama chorosa: - Eu te exorto
para todos, mas para as damas com mais gosto, a ver se nos muros temos entrada;
quando das lágrimas se apercebeu que se o jovem não estiver inda morto,
que regavam o delicado rosto, não hão-de matá-lo, está descansada. -
teve piedade e de desejo ardeu Ruggiero, vendo de piedade absorto
de conhecer seu mal, e a tal disposto, o peito da dama preocupada,
após saudação cortês perguntou-lhe sentiu todo inflamar-se do desejo
por que tanto pranto o seu rosto molhe. de o jovem da morte não ter ensejo.
38 E ela, erguendo os belos olhos chorosos, 44 E àquela dama a quem de pranto o viso
humanissimamente respondeu, coberto está, disse: - Mas o que esperamos?
e o motivo de seus apuros penosos, Aqui, socorro e não choro é preciso:
já que lhe perguntou, não lhe escondeu. faz com que onde ele está nós nos metamos.
- Gentil senhor (disse), tão lacrimosos De mil lanças e espadas, de improviso
olhos e rosto como vês tenho eu, entrando, te prometo que o salvamos;
pois grande dor por um jovem suporto, mas estuga bem o passo, para que tarda
que hoje num castelo aqui perto é morto. não chegue a ajuda e entretanto ele arda. -
39 Amando uma gentil jovem e bela, 45 A nobre fala e a determinança,
que de Marsilio, rei de Espanha, é filha, daquele par de audácia destemida,
sob um véu branco e feminil farpela, foram capazes de dar força à esperança,
aos olhos e à voz dando mascarilha, onde ela já estava toda perdida;
todas as noites dormia com ela, mas porque a dama, mais do que a andança,
sem a família de tal ter partilha; temia encontrar a via impedida,
mas ninguém ser tão secreto consegue assim a tendo percorrido em vão,
sem que, com tempo, a vê-lo alguém não chegue. indecisa ali estava em suspensão.
40 Apercebeu-se um, e deu conta a dois; 46 Depois disse: - Tomando nós a via
os dois a outro, e ao rei conto foi feito. que vai direita e plana àquele lugar,
Um fiel do rei dois dias depois, creio que a tempo lá se chegaria,
os amantes faz apanhar no leito; antes que a fogueira fossem atear;
o qual na fortaleza os fechou, pois outra é bom tomar, torta e arredia,
cada um a prisão ficou sujeito; e o tempo de um dia não vai bastar
creio que antes deste dia acabado para lá chegar; e quando chegaremos,
o jovem de dor morre, torturado. temo que o jovem já morto encontremos. -
360 ORLANDO FURIOSO

47 - E por que não iremos pelo mais belo? 53 Pinabel, com semblante assaz cortês,
(disse Ruggiero) - E a dama respondeu: no castelo que eu disse os acolheu.
- Pois dos condes de Ponthieu 19 um castelo No leito à noite surpresa lhes fez
nessa via está, no qual estabeleceu e deu prisão; e não os desprendeu
um ímpio costume que é um flagelo, sem os fazer jurar que um ano e um mês
que a cavaleiros e damas azar deu (foi este o prazo preciso que deu)
Pinabello, o pior homem que viva, ali estariam, para pilhar prestantes
filho do conde Anselmo d'Altariva20 • os que aparecessem, cavaleiros errantes;
48 Por tal, nem cavaleiro nem dama passa, 54 e as donzelas que viessem com eles
que não haja a sofrer injúria e danos: a pé deixariam e sem roupagem.
apeados ficam ambos; desembaraça Jurar;itn e ora é obrigação deles
de armas o guerreiro, a dama dos panos. cumprir, inda se contrariados agem.
Melhor cavaleiro lança não sobraça, Não consta até aqui que contra aqueles
nem sobraçou em França há muitos anos, alguém tenha lutado com vantagem:
que quatro que juraram no castelo e já ali passaram infinitos,
em vigor ter a lei de Pinabello. a quem tais castigos foram prescritos.
49 Como a usança (que só é profíqua 55 Está estabelecido que aquele que à sorte
há três dias) começou, vou narrar; primeiro sai, só ele vai batalhando;
e vereis se foi direita ou oblíqua mas se encontrar inimigo tão forte
razão que os cavaleiros fez jurar. que o atire ao chão, na sela ficando,
De Pinabel a dama é tão iníqua, os outros a seguir até à morte
tão bestial que no mundo não tem par; a liça são obrigados, em bando.
que indo com ele, não sei por onde, um dia, Vê tu, sendo tão bom cada barão,
de um cavaleiro sofreu zombaria. o que deve ser quando juntos estão.
50 O cavaleiro21 foi por ela mofado, 56 Sendo do tempo a duração angusta,
por uma velha que levava atrás; não podemos ter empate ou demora
justou com Pinabel, que era dotado para que vós combatais naquela justa;
de pouca força e em soberba audaz; creio teríeis vitória sonora,
venceu-o e fê-lo desmontar no prado, pois vossa presença a cal bem se ajusta,
e viu se ela era coxa ou eficaz: mas a coisa não se faz numa hora:
apeada a deixou; fez que a saia dela e grande perigo há que o jovem arda,
passasse a vestir a velha donzela. se a socorrê-lo este dia se tarda. -
51 A que ficou a pé tão desgostosa, 57 Disse Ruggier: - De nós não há protesto:
de vingança sedenta e furibunda, façamos o dever da nossa parte;
unida a Pinabel que aquela irosa, quem no Céu está se encarregue do resto,
sendo para mal fazer, sempre secunda, ou a Fortuna, caso Ele se descarte.
nem de noite nem de dia repousa, Com esta justa verás manifesto
e diz jamais se sentirá jucunda, se para salvar o jovem temos arte,
se mil guerreiros e damas de alimária que por razão tão débil e tão leve,
não privar, e de armas e indumentária. como disseste, hoje queimar se deve. -
52 No primeiro dia a sorte lhe trouxera 58 Sem mais resposta lhe dar, a donzela
quatro bons cavaleiros à moradia; logo à mais curta via se transporta.
de remotas terras o grupo viera, Mais de três milhas não foram por ela,
chegado a estas partes pouco havia; e na ponte se encontraram e à porca
de tal valor, que não há nesta era onde se perdem armas e farpela,
outros tão bons para a guerreira porfia: e salvar a vida risco comporta.
Aquilante, Grifone e Sansonetto, Mal lá chegam, da torre desemboca
e um tal Guidon Selvaggio, mui faceto22 • alguém que o sino duas vezes coca.
362 ORLANDO FURIOSO

59 E logo da porta a sair não tarda, 65 Da fortaleza onde estavam restritos,


trotando num rocim, um velho astuto, com Pinabel surgiram uns peões,
o qual vinha gritando: - Aguarda, aguarda! para as armas levar prontos e expeditos
Para aqui passar há que pagar tributo; dos guerreiros tombados dos arções.
se acaso o uso que aqui vos retarda Davam-se encontro os cavaleiros peritos,
não sabeis, a narração executo. - levando em riste os seus grandes lanções,
E começou a contar-lhes a usança dois palmos grossos, em carvalho perro,
de que Pinabello ali faz cobrança. idênticos até à ponta em ferro.
60 E ordens começou a dar em chorrilhos, 66 Mais de uma dezena tem semelhante,
como fazia aos outros cavaleiros: que ali mandou cortar dos cepos vivos
- Mandai despir a dama (disse), filhos23; Sansonetto, na selva logo adiante,
corcéis e armas ficam prisioneiros; e dois trouxe para a justa alternativos.
e não vos queirais meter em sarilhos Escudo e couraça há que ter de diamante,
e travar luta com quatro guerreiros. para que àqueles golpes possam ser esquivos.
Sempre achareis vestes, armas, corcéis, Tinha mandado dar, quando chegou,
só vossa vida outra não tereis. - um a Ruggier, e outro para si ficou.
61 - Basta (disse Ruggier), basta; que eu estou 67 Com eles, que bigornas trespassavam
de tudo informado, e só aqui vim (tão bem ferradas suas pontas são),
para provar que de facto tão bom sou um e outro para os escudos apontavam,
tal qual no íntimo penso de mim. e a meio do percurso choque dão.
Vestes, armas, corcéis a ninguém dou, O de Ruggier, que os demónios suavam
se só houver ameaças e chinfrim; para o fazer, não teme do golpe a acção:
e sei que se só palavras houver, falo do escudo feito por Atlante,
meu companheiro as suas dar não quer. de cujo poder já falei bastante.
62 Mas, por Deus, que eu veja depressa a fronte 68 Já vos disse que com tal força afaga
dos que querem tirar-me armas, cavalo; o encantado esplendor, e os olhos fere,
temos inda de passar aquele monte, que ao decobrir-se toda a vista apaga,
não podendo fazer muito intervalo. - e aturdido o homem faz desfalecer:
Diz o velho: - Eis que vem passando a ponte caso carência a situação não traga,
quem vem fazê-lo. - E não estava a enganá-lo: coberto o usava por assim ser.
um cavaleiro surgiu que se reveste Crê-se até que impenetrável seria,
de rubra, e flores brancas, sobreveste. pois ao ser golpeado nem se movia.
63 Bradamante a Ruggier muito requer 69 Feito o outro por menos bom perito,
que, por favor, deixe a ela o assunto ao pesado golpe não resistiu.
de o cavaleiro da sela abater, Como se de raio sofresse atrito,
que às flores em seu vestir dava conjunto; ao ferro cedeu e pelo meio se abriu;
mas não o convenceu, e foi mister cedeu ao ferro, que por baixo fito
fazer como Ruggier já tinha ajunto. ficou no braço que mal se cobriu;
Da empresa quis ser executor, deste modo Sansonetto foi ferido,
e Bradamante foi só espectador. e da sela, contrariado, cuspido.
64 Ruggiero ao velho perguntou quem fosse 70 Foi este o primeiro, entre os companheiros
esse primeiro que deixava a porta. que ali cumpriam usança perversa,
- É Sansonetto (disse); porque trouxe que os despojos não ganhou dos guerreiros
a veste rubra que alvas flores recorta. - e que teve a figura ao chão reversa.
Um de cá, outro de lá ajeitou-se Sucede chorar, aos que eram fagueiros,
sem falar, e demora não suporta; pois a Fortuna às vezes é adversa.
com ferros baixos a encontrar-se acorrem, Vai o da torre repetindo o toque,
e em veloz passo os dois cavalos correm. para que os restantes campeões convoque.
CANTO XXII 363

71 Chegara-se Pinabello entretanto 74 Entre ameaçá-lo e deitar mão à espada


a Bradarnante, para saber quem fosse o tempo foi só um, e a acometê-lo;
aquele, que com mestria e valor tanto mas antes de tudo cortou-lhe a estrada,
ao campeão do seu castelo deu couce. e assim não pôde fugir para o castelo.
A justiça de Deus, para dar-lhe quanto A esperança de tal refúgio é tirada,
ele merecia, até ali o trouxe, como à raposa a toca, a Pinabello.
no cavalo que há tempos o birbante Ele, a gritar e sem lhe fazer testa,
tirara por traição a Bradamante. foi a fugir esconder-se na floresta.
72 Passara justamente o oitavo mês 75 Pálido, em pânico, o vilão esporeia,
que, ela tendo encontrado em sua via, esperança tendo de que em fuga se estreme.
este, dos de Mogúncia, que é má rês, A dama de Dordonha25 não refreia
para a gruta de Merlino a lançaria24 ; o ferro lhe tem nos flancos e o preme:
da morte um ramo defesa lhe fez, segue-lhe ao lado, dele não se alheia.
ou o seu destino que viva a queria; Grande rumor, o bosque em torno geme.
que morta e sepulta estava, crente ele, No castelo inda tal não se apreende,
dali levou consigo aquele corcel. pois cada um só a Ruggiero atende.
73 Conhece Bradamante o seu cavalo, 76 Os outros guerreiros da fortaleza
e através dele o conde reconhece; saído tinham, deixando o covil;
e ouvindo-lhe a voz, e a pouco intervalo com eles vinha a que com tal torpeza
com atenção olhando a fronte desse: impusera ali o costume vil.
- Este é o traidor (disse), certo falo, A cada um dos três, que morrer preza
que procurou fazer com que eu morresse; mais que ter de levar vida servil,
eis como o seu pecado o conduziu vergonha queima o rosto, o peito dó,
onde o prémio terá de quanto urdiu. - por irem tantos a assaltar um só.
364 ORLANDO FURIOSO

77 A cruel meretriz, que fez o acto 83 Tirando estas três vezes, todo o resto
de impor aquela usança e de observá-la, o teve sob um véu aconchegado;
o juramento lhes recorda e o pacto mas a descobri-lo seria presto,
que com ela fizeram, de vingá-la. se de ajuda fosse necessitado.
- Se só com esta lança eu os abato, Neste combate dele tinha apresto,
por que com outras queres acompanhá-la? como eu já vos disse, e tão animado
(dizia Guidon): e, se acaso minto, que os três cavaleiros que adiante via
corta-me a cabeça e alegre me sinto. - como a três criancinhas os temia.
78 Tal dizia Grifone e Aquilante. 84 Ruggier Grifon golpeia, onde a borda
Lutar sol a sol voto era .:omum, do escudo fica da vista à altura.
e de prisão ou morte ter garante, Para um e outro lado ele transborda,
em vez de contra um só lutar mais que um. e longe do cavalo se desmura.
Dizia-lhes ela: - Para quê constante Grifon o escudo com a lança aborda,
discurso fazeis sem proveito algum? mas de través, não a direito, fura:
Para a ele tirar as armas aqui estais, e, como era liso e bem amaciado,
não para que outra lei ou pacto façais. resvalou e fez efeito trocado29 •
79 Quando presos vos tinha era de dar-mas, 85 Rompeu o véu e rasgou, que cobria
essas desculpas; não ora, já tardas. o assustador e encantado clarão,
Vossas conversas vãs deveis poupar-mas, perante o qual por força se caía
cumprir minhas ordens sem atoardas. - com olhos cegos, sem ter salvação.
Ruggier gritava: - Vejam estas armas, Aquilante, que a par do irmão seguia,
corcel com nova sela, novas bardas; rasgou o resto, e ao escudo deu função.
as vestes da dama vejam também; Os olhos dos irmãos feriu o brilho,
se vós as quereis, o que inda vos retém? - e de Guidon que lhes ia no trilho.
80 Pela dama do castelo pressionados, 86 Para aqui, para ali, todos caem por terra;
doutro lado Ruggier que os apeçonha, o escudo não só olhos atrapalha,
acabam por sentir-se estimulados, que os outros sentidos também emperra.
mas inflamado o rosto de vergonha. Ruggier o efeito não viu da batalha30 ;
Os dois filhos adiante colocados vira o cavalo, e ao voltar-se aferra
vêm do nobre marquês de Borgonha26 ; sua espada que tão bem fere e talha,
Guidon, que tem mais pesado cavalo, mas não vê ninguém vir ao seu encontro;
atrás deles vem, com pouco intervalo. todos tombaram ao primeiro recontro:
81 Com aquela mesma hasta que havia 87 os cavaleiros e os outros que a pé
Sansonetto abatido, Ruggier vem, haviam saído, e as mulheres também;
a coberto do escudo que saía e cada cavalo em tal estado vê
nos Pirenéus Atlante ter também: que o estertor da morte, parece, tem.
falo do encantado, que esplendia Primeiro se espanta, depois entrevê
tanto que humana vista o não sustém; que o véu pendurado a seu lado vem:
a que Ruggier, como último recurso, digo, o véu de seda, no qual guardada
nas situações mais graves dava curso. soía a luz estar, do caso culpada.
82 Apenas três vezes foi imperioso, 88 Gira-se então, ao girar procurando
em grandes perigos, usar o seu lume: com o olhar a sua amada guerreira;
duas, quando do reino voluptuoso vai até onde ela ficara, quando
se mudou para mais louvável costume27 ; tinha começado a justa primeira.
a terça ao deixar o dente sequioso Julga que já foi (não a encontrando)
à orca do neptunino cardume, evitar que o tal jovem na fogueira,
que ia devorar a bela despida por falta de ajuda rápida, arda,
que ao salvador foi mal agradecida28 • enquanto ali a lutar se retarda.
CANTO XXII 365

89 Entre tantos que jazem vê a dama 93 O poço é fundo e até acima cheio;
(a dama que os tinha até lá guiado). pesado o escudo e a pedra que o susteve.
No seu corcel, aturdida, a acama, Só parou quando do fundo houve esteio;
e segue, cavalgando perturbado. fechou-se em cima o licor suave e leve.
Com o manto que o vestido recama O nobre gesto não ficou alheio
cobre depois o seu escudo encantado; à Fama errante, que o espalhou em breve;
e os sentidos sem demora lhe apura, seu eco divulgou, tocando o corno,
quando ao brilho adverso deu cobertura. por França e Espanha e províncias em torno.
90 Dali se vai Ruggier com face rubra 94 Quando de voz em voz se tornou esta
que, de vergonha, levantar não ousa; estranha aventura em todo o mundo nota,
crê não haver ninguém que não descubra muitos guerreiros foram em requesta,
que teve vitória pouco gloriosa. de terra vizinha e parte remota;
- Que emenda poderei fazer, que encubra mas não sabiam qual era a floresta
uma culpa de tal modo oprobriosa? onde em água o escudo deu cambalhota;
Que tudo o que venci foi por favor pois a mulher que divulgou a acção
de encantos, dirão, não pelo meu valor. - não indicou nem poço nem região.
91 Enquanto em seus pensamentos deriva, 95 Depois de Ruggier partir do castelo
por acaso acha aquilo que procura; onde vencera com pouca batalha,
na estrada a aproximar-se não se esquiva tendo os quatro campeões de Pinabello
dum poço que ali está de grande altura. deixado ficar como homens de palha,
Pérto um rebanho, na quente hora estiva dali levou com o escudo o flagelo
repousa, pois comera com fartura. da luz que olhos e espírito embaralha;
Disse Ruggier: - Preciso é que te ponha, e os que como mortos estavam caídos,
ó escudo, onde não me dês mais vergonha. do sono acordaram surpreendidos.
92 Não vou mais andar em tal companhia; 96 Todo o dia um ao outro se interpela
mais vergonhas não vou passar no mundo. - acerca de tão estranho e raro caso,
Assim dizendo, desmonta na via: e como foi que cada um àquela
num pedregulho pega, bem rotundo, horrível luz ficara no chão raso.
amarra-o ao escudo, e aos dois envia Enquanto falam, nova se desvela
pelo alto poço até cair no fundo; que Pinabello atingiu seu ocaso;
e diz: - Deixa-te estar aí sepulto; de que ele morreu a notícia recebem,
contigo fique meu opróbrio oculto. - mas quem lhe deu a morte não percebem.
366 ORLANDO FURIOSO

97 Bradamante entretanto acuamento 98 Quis regressar onde deixado tinha


a Pinabello dera em espaço estreito; Ruggier; não foi capaz de achar a estrada.
com a espada cravara mais dum cento Por vale e por monte não se detinha,
de golpes nos flancos, costas e peito. e quase toda a área foi palmada.
Livre o mundo do fedor pestilento Não deixou mais a fortuna daninha
de que toda a região sofria efeito, que achasse a via por ele palmilhada.
ao bosque cúmplice as costas voltou, Ao outro canto espero ouvidos deite
com o corcel que um dia ele lhe tirou. quem com as minhas histórias se deleite.

NOTAS

1 17
Padroeiros: talvez se refira ironicamente aos senhores Vallombrosa: nome talvez inspirado numa abadia
d'Esre, ou apenas à estrutura do poema. fundada na Toscana no séc. XII.
2 18
Esse [. . .] Piero: Judas, com o seu gesto traidor, não Como após aparece: como depois se verá.
manchou os apóstolos João ou Pedro ( lanni ou Piero) .
19
Ponthieu: cf. nora a III:24.
3
Hipermestra: a única das 50 filhas do rei Dánao que
20
não decapitou o marido (Linceu) na noite de núpcias, Altariva: Ariosro usa, em alternância, as formas
como o pai lhes ordenara que fizessem, por vingança. «Alraripa» e «Altariva». A tradução acompanha essa alter­
nância.
4 Bursa: cidade turca da Ásia Menor, perto do mar de
21
Mármara. O cavaleiro: Marfisa (cf. XX: 1 1 0 ss.).
5 Passado [. .. } prosseguiu: atravessou o estreito de 22
Aquilante [. . .} faceto: cf. XX: 1 04- 1 05.
Dardanelos para o lado ocidental.
23 Filhos: dirige-se a Ruggiero e a Bradamante, toman­
6
Francónia: região histórica da Alemanha, que acrual­ do esta por um cavaleiro.
mente faz parte da Baviera.
24
Passara [. .. } lançaria: cf. II:69 ss.
7
Aquisgrana: do 1arim Aquae Granni: Aix-la-Chapelle.
25
Dama de Dordonha: Bradamanre (cf. II:68).
8
Brabante: antigo ducado germânico; território hoje
26
partilhado pela Bélgica e Países Baixos. Marquês de Borgonha: Oliviero, pai de Grifone e
Aquilanre.
9 Otone: rei de Inglaterra, pai de Asrolfo.
27
Duas [. .. } costume: ao passar do reino v1c1oso de
10
Ruão: cidade francesa, na Normandia. Alcina para o virtuoso de Logisrilla, usou duas vezes o
brilho do escudo (cf. VIII: 1 0- 1 1 e X:50).
11
Prisioneiros [. .. } prisões: presos por encantamento no
palácio de Arlanre. 28 A bela [. . .} agradecida: Angelica, que se furtou aos
seus impulsos amorosos (cf. XI:7-8).
12
Mais [. .. } fustiga: Rabicano (o cavalo de Astolfo) é
29
mais veloz que o vento. Lança [. . .} trocado: a lança, em vez de produzir dano
a quem foi atacado, provocou-o ao atacante (ao pôr a
13 Ao qual [. . .} Terra: cf. X:66 ss. descoberto o escudo).
14 Primeiras flores: beijos (cf. VII:29). 30
Ruggier [. .. } batalha: não viu que, como efeito do
embate, a cobertura do escudo se rasgou e os adversários
15
Lutos: contrariedades. foram fulminados pelo brilho.
16
Últimos frutos: o prazer sensual coral.
· ----
- . -�:.

-.-­
CANTO XXIII

Queira-se o bem alheio; é raro alguém


bem ter feito, sem bençáo ter obtido;
inda que não, daí não sobrevém
morte ou mal, nem é opróbrio sofrido.
Quem outro ofende, tarde ou cedo vem
a pagar o débito não esquecido.
Diz o velho provérbio: os homens vão,
enquanto as montanhas paradas estão.
2 Vejamos o que a Pinabel sucede
por ter-se comportado iniquamente:
sofre por fim o castigo que pede
e que merece a sua injusta mente.
E Deus, que mui raramente concede
que injustamente sofra o inocente,
salvou a dama; e salva qualquer um
que de mal fazer se encontre em jejum.
3 Julgava Pinabel que esta donzela
estava morta e lá no fundo sepulta;
voltar a vê-la não cria, só que ela
de seus erros tinha a cobrar a multa.
Nem o estar em terras da parentela
de seu pai, em salvação lhe resulta.
Altaripa entre estes montes nasceu,
perto do território de Ponthieu.
368 ORLANDO FURIOSO

4 Anselmo d'Altaripa foi a fonte 10 Por acaso encontrou-o quando à testa


de que teve origem este malvado, do elmo o paladino alívio deu;
o qual, para escapar à de Claramonte1 , por isso, assim que saiu da floresta,
de ajuda dos amigos foi privado. Bradamante o primo reconheceu.
A dama àquele traidor ao pé de um monte De longe o saudou e, com grande festa,
tirou a indigna vida sem enfado, para o abraçar lesta para ele correu;
. pois a mais defesa ele não deitou mão, dizendo-lhe o nome, ergueu a viseira,
senão a gritos e a pedir perdão. e quem era deixou ver sem fronteira.
5 Após ter morto o falso cavaleiro 11 Não podia Astolfo encontrar pessoa
que a ela já pensara dar a morte, com quem Rabicano melhor deixasse,
quis ir onde Ruggier deixou primeiro, que lhe proporcionasse guarda boa,
mas não lho permitiu a dura sorte, e no seu regresso lho entregasse,
fazendo-a extraviar por um carreiro do que a prima que ali o abalroa;
por onde era mais espesso e de mais porte, até lhe pareceu que Deus lha mandasse.
e mais estranho e mais solitário, o bosco, Com prazer sempre encontrá-la soía,
deixava o Sol já o mundo ao ar fosco. mas mais ora que a carência o premia.
6 Não podendo abrigar-se noutra parte, 12 Duas, três vezes voltaram depois
um pouso para a noite ali se garante; com fraternal afecto a abraçar-se,
sono e vigília até manhã reparte, e um do outro desejaram os dois
sob os ramos, sobre a erva pujante, os factos da vida ouvir sem disfarce;
dormindo ou olhando Saturno e Marte, Astolfo disse: - Se pretendo, pois,
Júpiter, Vénus, todo o deus errante; ao céu dos voadores fazê-lo alçar-se,
mas sempre, vele ou durma, com a mente já demoro. - E abrindo-lhe o pensamento,
contemplando Ruggier, como presente. do corcel voador deu conhecimento.
7 Do mais fundo do coração suspira, 13 Ficou ela pouco surpreendida
pungida pela dor e arrependida, quando o corcel as asas abrir viu;
por ter mais que o amor podido a ira. pois de outra vez3, segurando-lhe a brida,
- Por ira estou do meu amor perdida Atlante, o mago, para ela investiu;
(dizia); devia ter melhor mira, dos olhos e cílios ficou dorida,
para depois da empresa estar cumprida tanto a segui-lo no voo os franziu,
saber voltar ao sítio de onde vim; no dia em que Ruggier dela afastado
memória e olhos fugiram de mim. - foi, por caminho distante e ignorado.
Estas e mais palavras não calou, 14 Astolfo disse-lhe que a ela queria
e muitas mais falou seu coração. dar Rabican, que a correr se projecta
Dos suspiros o vento se associou tanto que, se com o arco se movia4 ,
à chuva de lágrimas em cachão. costumava deixar para trás a seta;
Após longa espera, enfim alvejou e também as armas, todas que havia,
a oriente o almejado clarão; pois quer que a Montalvão5 ela as remeta,
e ela o corcel tomou que em torno ia, e que as conserve até ao seu retorno;
pascendo-se, e caminhou contra o dia2 • não precisa agora de as ter em torno.
9 Não muito andou até achar saída 15 Querendo a voar pelo ar seguir seu trilho,
do bosque, onde era o palácio encantado devia estar quanto podia leve.
em que fora alguns dias escarnecida, Tem da espada e do corno o empecilho,
pelos enganos do mágico malvado. que para algum perigo o corno bastar deve.
Astolfo encontrou, que já tinha a brida Bradamante, a lança que foi do filho
para o hipogrifo com jeito arranjado; de Galafron6 , também à guarda teve;
tinha ora Rabicano em pensamento, de todos a quem golpeia, esta lança
não sabendo onde dar-lhe alojamento. suas selas esvazia sem tardança.
CANTO XXIII 369

16 Montando Astolfo no corcel volante, 22 Esteve um tanto a pensar e resolveu


fá-lo pelo ar mover-se, lento, lento; que a Montalvão voltar as costas queria;
depois tanto o pica que Bradamante e a Vallombrosa seus passos volveu,
o perde de vista num só momento. pois daqui conhecida lhe era a via.
Do porto assim, com o piloto adiante7 , Mas quis, alegre ou triste, o fado seu
parte o barco que teme o escolho e o vento; que, quando inda pelo vale ela seguia,
depois que o porto e as costas para trás espaça, seu irmão Alardo ali encontrasse,
enfuna as velas e o vento ultrapassa. sem lhe dar tempo para que se ocultasse.
17 A dama, depois do duque partir, 23 Estivera a repartir alojamentos
ficou em grande trabalho da mente: na zona a cavaleiros e infantes;
como irá a Montalvão conduzir pois instando Carlos, mais regimentos
armadura e corcel do seu parente; formara nessas terras circunstantes.
sente o peito roer e consumir Abraços e fraternos cumprimentos
a grande vontade e o desejo ardente e bom acolhimento deram antes;
de Ruggier rever; se não for primeiro, depois, de muitas coisas par a par
que seja em Vallombrosa, no mosteiro. falando, a Montalvão foram parar.
1s Estando ali suspensa, quis a ventura 24 Entrou a linda dama em Montalvão,
que lhe surgisse diante um aldeão, onde a tinha, com lacrimosa cara,
o qual fez recolher a armadura mui desejado Beatrice9 em vão,
e pô-la de Rabicano no arção; e buscá-la em toda a França mandara.
depois, que ele atrás leva, se assegura, Agora os beijos e apertos de mão
um corcel carregado, outro leve, à mão. de irmãos e mãe sentiu ser coisa amara,
Dois já ela tinha: um não quis perdê-lo, depois de trocar com Ruggiero amplexos
quando o outro tirou a Pinabello. de que tem na alma eternos reflexos.
19 Para Vallombrosa pensou seguir estrada, 25 Como não podia ir, pôs em mente
pois de encontrar Ruggiero esperança tem; que a Vallombrosa outro alguém mandaria
mas qual a melhor ou mais encurtada avisar Ruggiero imediatamente
não sabe, e de ir à toa se contém. da razão que de ir lá a impedia;
Tinha o camponês ciência acanhada e pedir-lhe (se disso era exigente)
da região, e errará também. por amor baptismo houvesse esse dia,
Inda assim, ir à sorte resolveu, vindo depois ao que estava sujeito
na direcção que melhor lhe pareceu. para que se desse ao matrimónio efeito.
20 Para aqui e para ali girou, sem pessoa 26 Pelo mesmo mensageiro fez questão
encontrar a quem inquirisse a via. de mandar a Ruggiero o seu cavalo,
Ao sair do bosque à hora da noa8 , por ele tanto estimado, e não em vão,
um castelo ali perto se entrevia, que boas razões tinha para apreciá-lo;
a um pequeno monte dando coroa. não se encontraria em toda a nação
Olhava-o e Montalvão lhe parecia: dos Sarracenos, nem do senhor galo 1º ,
era sim, sem dúvida, Montalvão; melhor cavalo que este ou mais galhardo,
lá estava sua mãe e algum irmão. à excepção de Brigliador e Baiardo.
21 Quando a dama conheceu o lugar, 27 Ruggiero, no dia em que audaz subida
entristeceu-se mais que sei dizer: no hipogrifo fez e ao céu voou 1 1 ,
será descoberta, se ali parar, deixou Frontino, e Bradamante a brida
e de novo partir não vai poder; lhe segurou (Frontino ele se chamou);
o amoroso fogo, se ali ficar, para Montalvão foi; e boa comida
tanto a consome que a fará morrer: teve e trato, e ninguém o cavalgou,
não verá Ruggiero, e fica adiado senão em percurso e espaço macio;
em Vallombrosa o que foi combinado. nunca esteve tão gordo e luzidio.
370 ORLANDO FURIOSO

28 Cada sua dama e cada donzela 34 Tinha jurado que o primeiro cavalo
consigo lesta, em lavor delicado, por força tinha, com que se cruzasse.
sobre seda nívea e escura modela Foi este o primeiro, e ele é um regalo:
fina bordadura com fio dourado, à sua medida o melhor que achasse;
com o qual ornamenta a brida e a sela mas julga infâmia à donzela tirá-lo;
do corcel; e chama uma de lado, contudo quer tê-lo, e está num impasse.
de Callitrefia, a ama, descendente, Mira-o, contempla-o, e diz com estupor:
de seus segredos fiel confidente. - Mas por que não está com o seu senhor? -
29 Como Ruggier no coração impresso 35 - Estivesse ele aqui! (respondeu-lhe Ippalca),
tinha, àquela contara com clareza; que mudavas de ideias te assevero.
a ela enaltecera com apreço Mais vale do que tu quem com ele encalca,
sua virtude, modos e beleza. no mundo outro não há como ele tão fero. -
Esta chamou e disse: - Não conheço - Quem é (disse-lhe o mouro) que assim calca
melhor mensageiro para esta empresa; o alheio honor? - Responde ela: - Ruggiero. -
que tu nem mais fiel nem mais sensato Ajunta ele: - Então quero o cavalo,
embaixador, Ippalca, há para tal acto. - que a Ruggier, bom campeão, vou tirá-lo.
30 Ippalca esta donzela se chamava. 36 Se verdade é poder-se creditar-lhe,
- Vai -, diz-lhe, e ensina-lhe onde deve ir; como dizes, tal força e tanta valha,
e informação completa lhe alinhava não só cavalo, a viagem a pagar-lhe
do que ao seu senhor tem a transmitir; estou pronto, e a seu arbítrio seja a talha 1 3 •
de não se apresentar se desculpava, Que Rodomonte eu sou, hás-de narrar-lhe,
no mosteiro: mas não foi por mentir; e se comigo quiser ter batalha,
a Fortuna, que sobre nós podia me achará; esteja onde estiver, reclama,
mais que nós mesmos, culpar-se devia. far-me-á aparecer a minha fama.
31 Fá-la montar num rocim, e, a mão, 37 Onde eu for, vestígio tão grande resta
com a brida de Frontin lhe guarnece; que o raio não deixa rasto maior. -
e se acaso algum tão louco ou vilão Falando assim, passara sobre a testa
encontrasse que tirar-lho quisesse, as douradas rédeas do corredor;
para de uma só palavra pô-lo são, salta-lhe em cima, e lacrimosa e roesta
de quem era o cavalo lhe dissesse; fica Ippalca, que levada pela dor
cavaleiro não havia tão fero Rodomonte ameaça e insulto arrima;
que não tremesse ao nome de Ruggiero. não a ouve ele e vai pelo monte acima.
32 Muitas coisas lhe recomenda ainda 38 Vai pela via que lhe indica o anão:
que trate com Ruggiero em sua vez; Mandricardo e Doralice achar quis;
as quais assim que Ippalca bem deslinda, Ippalca atrás vem, com separação,
sem mais demoras à via se fez. e praguejando vai sempre e o maldiz.
Por estrada, campo, escura selva infinda Do que seguiu, noutra parte há lição.
cavalgou ela milhas mais de dez; Turpino14, que toda esta história diz,
não encontrou quem desse desatino desvia-se, e à terra retorno faz
nem que quisesse saber seu destino. em que o de Mogúncia foi morto atrás 1 5 •
33 A meio do dia, no sopé de um monte, 39 Mal virara as costas àquele lugar
numa estreita e desajeitada via, a filha de Amon 16, que com pressa ia,
ao seu encontro vê vir Rodomonte; quando Zerbino foi ali parar,
com um anão armado a pé seguia 12 • tendo da falsa velha a companhia;
O mouro ergueu sua altaneira fronte, no vale o corpo morto foi achar
e praguejou à Eterna Herarquia, do cavaleiro, que desconhecia;
porque tão bom corcel, e bem ornado, e porque era cortês e mui piedoso
com cavaleiro, não tinha encontrado. tocou-o o caso atroz e doloroso.
CANTO XXIII 37 1

4o Jazia Pinabello sem alento, 46 Passado pouco chegou o caixão,


o sangue vertendo por tantas feridas; à luz de tochas e de castiçais,
deviam ser tantas, como se um cento e ouviu-se mais forte a lamentação,
de espadas para o matar fossem unidas. e o bater de mãos subiu ao céu mais;
Da Escócia o cavaleiro não foi lento, também com maior abundância vão
seguindo as marcas há pouco esculpidas, pelas faces correndo águas lacrimais;
a pôr-se à aventura, a ver se podia mas mais que os outros sombrio e nublado
saber quem o homicídio feito havia. era o rosto do pai desconsolado.
41 Diz a Gabrina que ali se assujeite, 47 Enquanto aprontam com solenidade
que sem demora lá fará retorno. exéquias e pompas por quem morrera,
Ficar junto ao cadáver tendo aceite, segundo os usos da antiga idade
passa-lhe os olhos fixamente em torno; que a passagem dos tempos sempre altera,
pois, se coisa ele tiver que a deleite, vem da parte do senhor novidade,
não quer que um morto tenha vão adorno, a qual do povo o estrépito modera:
sendo ela assim, entre as outras tão rara, promete grande prémio a quem reporte
por mais que qualquer mulher ser avara. quem a seu filho terá dado a morte.
42 Se de levá-la sorrateiramente 48 De dito em dito e de uma a outra orelha,
tivesse maneira, deitava a mão aquele pregão pela terra teve curso,
à sobreveste feita ricamente, até ouvi-lo a celerada velha
e àquelas belas armas sem excepção. que em malvadez excedeu o tigre e o urso;
Tira o que pode esconder facilmente, para a Zerbin dar ruína se aparelha;
apertando-lhe o resto o coração. o ódio que lhe tem teve concurso,
Entre o mais um belo cinto tirou, ou então quis ser, mais que outra alma viva,
que aos flancos entre as saias apertou. quem com a barbaridade mais priva;
43 Logo após chegou Zerbino, que havia 49 ou talvez fosse para ganhar o prémio.
seguido em vão de Bradamante os passos: Foi à procura daquele senhor mesto,
o atalho em certo ponto se partia, e, após seu verosímil proémio,
a subir e a descer, em vários braços; disse que Zerbin fez o mortal gesto;
já pouco mais o dia duraria, o cinto que roubara, nisto espreme-o,
e ao escuro não queria estar em tais espaços; e o triste pai a conhecer foi lesto;
para procurar abrigo deixou lesto, ao ver a prova, e ouvindo o ofício
com a iníqua velha, o vale funesto. da velha, tomou como claro o indício.
44 Andadas duas milhas, encontraram 50 E, a chorar ao céu elevando as mãos,
um grande castelo, dito Altariva, promete que o filho há-de ter vingança.
onde para passar a noite pararam, Manda cercar o albergue 17 aos aldeãos,
que era por toda a parte imperativa. o povo todo erguendo sem tardança.
Mal chegados, lamentação escutaram, Zerbin, que longe os amigos malsãos
que aos ouvidos lhes chegava aflitiva; crê, e não conta com a desconfiança
lágrimas vêem em todos os olhos, do conde Anselmo, que ora em desabono
como se a causa a todos desse escolhos. o tem, é preso no primeiro sono;
45 Inquiriu Zerbino, e foi satisfeito: 51 e aquela noite em tenebrosa parte
que o conde Anselmo recebera aviso às cadeias e ao cepo foi sujeito.
que entre dois montes, num caminho estreito, Inda o Sol a sua luz não reparte,
jazia seu filho, de morte inciso. e o injusto castigo já está feito:
Zerbino, para não se tornar suspeito, naquele lugar em postas se disparte 1 8 ,
fez-se de novas, abaixando o viso; em que o acto atribuído houve efeito.
pensou porém que sem dúvida era Mais nenhuma pesquisa se fazia:
o que na via morto conhecera. bastava que o senhor assim o queria.
372 ORLANDO FURIOSO

52 Na outra manhã, quando a bela Aurora 58 - Soltai esse cavaleiro, ó canalha


branco, rubro e amarelo fez o céu, (disse ele aos vilãos) ou vos decapito. -
todo o povo, gritando: - Fora!, fora! -, - Quem é este que tantos golpes talha?
vem para punir Zerbin de erro não seu. (respondeu um, querendo ser mais expedito).
O néscio vulgo infrene desarvora: Se de cera fôramos ou de palha,
a pé, a cavalo, todo acorreu; e ele de fogo, bastava aquele grito. -
e o cavaleiro escocês, baixo o semblante, E avançou contra o paladim de França;
acorrentado vem, num rocinante. Orlando para ele inclinou a lança.
53 Mas Deus, que às vezes o inocente ajuda, 59 Ao de Mogúncia, o luzidio arnês
e nunca abandona quem nele se fia, (tinha-o tirado de noite a Zerbino)
tal defesa mandou para que lhe acuda que vestira, defesa não lhe fez
que perigo não há que morra esse dia: contra o áspero choque do paladino.
que Orlando ali chegue esse dia estuda, Na destra face o ferro foi à tez:
e à via da salvação lhe foi guia. o elmo não passou porque era fino20 ;
No plano em baixo Orlando viu a gente mas a pancada deu-lhe tal destroço
que ia dar morte ao cavaleiro dolente. que a vida apagou, quebrando o pescoço.
54 Acompanhava-o a mesma donzela 60 Na mesma corrida, inda enquanto enresta
que encontrara na montanheira gruta 19 , a lança, outro trespassa a meio do peito:
do rei da Galiza a filha, lsabella, ali a deixou, e a mão teve lesta
que às mãos dos malandrins sofreu recruta, para Durindana: onde o grupo é mais estreito2 1,
depois de haver perdido na procela ou ao meio os abre a partir da testa,
a nave, que houve com o mar labuta; ou as cabeças lhes corta a direito;
a que mais junto ao coração havia a muitos fura a goela; e, num momento,
Zerbino, que a alma que nele vivia. matou ou pôs em fuga mais de um cento.
55 Orlando a levara em sua companha, 61 Mais de um terço matou, e outros aguilha
desde que da caverna a resgatou. e corta e fende e fere e fura e trunca;
Ao ver tanta gente em baixo ela estranha: deixam o escudo, o elmo que empecilha,
que turba era, Orlando interrogou. o espeto e a podadeira, e o chão se junca;
- Não sei - disse ele; deixando-a na montanha, caminho torto ou direito se trilha,
veloz para a planície se deslocou. ou se escondem no bosque ou em espelunca.
Zerbino viu e, ao primeiro olhar fito, Orlando, toda a compaixão perdida,
achou ser barão de alto gabarito. não quer ali deixar um só com vida.
56 Chegando-se-lhe perto, perguntou-lhe 62 Em cento e vinte (Tllrpin subtraiu
por que razão e aonde o levam preso. a conta), a oitenta deu morte a eito.
A cabeça Zerbino desencolhe Finalmente Orlando se retraiu
e, com as palavras de Orlando surpreso, para onde a Zerbino pulsava o peito.
a verdade respondeu; e narrou-lhe Se ao vê-lo voltar feliz se sentiu,
tão bem que não vai ficar indefeso. não se pode em versos narrar com jeito.
Pelo que ouviu o conde ficou ciente Para lhe agradecer ter-se-ia prostrado;
que sem culpa morria: era inocente. mas estava sobre o rocinante atado.
57 Ao entender que foi do estranho gesto 63 Enquanto Orlando, que o desamarrou,
autor o conde Anselmo d'Altariva, o ajudava a pôr as armas em torno
que era injustiça foi-lhe manifesto: que ao capitão da milícia tirou,
do vilão boa coisa não deriva. que para seu mal delas tomara adorno,
Além disso, eram um do outro infesto, Zerbino o olhar a lsabella voltou,
pelo antigo ódio que se cultiva que sobre a colina tinha contorno,
entre a prole de Mogúncia e Claramonte, e, agora que a luta ao final chegara,
que de morte, ofensa e dano era fonte. suas belezas mais aproximara.
CANTO XXIII 373

64 Quando Zerbino aparecer viu de perto 67 Chegaram taciturnos a uma fonte;


a donzela que tinha amado tanto, lá desmontaram fazendo demora.
e que, devido a mensageiro incerto, O conde o elmo tira, porque o afronte,
cria afogada e pela qual verteu pranto, e quer que Zerbino o seu tire agora.
sentiu, como gelo, no peito um aperto; Vê a donzela o seu amor defronte,
dentro sente gelo e treme entretanto, e repentino gáudio a descolora;
mas logo o frio se vai, e em seu lugar depois, é como flor húmida e mole
está de amoroso fogo a incendiar. após a chuva, ao aparecer do sol.
65 De lesto abraçá-la só o retém 6B E, sem demora e sem outro respeito,
a reverência pelo senhor de Anglante22 ; corre ao amante e seu pescoço abraça;
por ter pensado, e como certo o tem, não pode tirar palavra do peito,
que Orlando seja da donzela amante. mas a face e o seio o pranto repassa.
Grande pena a pouco e pouco lhe vem, Orlando, atento ao amoroso efeito,
e o gáudio que sentiu já é migrante: sem que mais evidência se lhe faça,
saber que ela é de outro pior suporta todo o indício torna manifesto
que ter ouvido antes que estava morta. que só pode a Zerbin dever-se o gesto.
66 E que ela pertença, mais o molesta, 69 Quando a voz recuperou lsabella
ao cavaleiro a quem ele tanto deve; (ainda a lágrima em seu rosto dança),
porque tirar-lha não crê coisa honesta, a muita cortesia lhe revela
nem seria decerto empresa leve. que usou consigo o paladim de França.
Alguém deixar de ao pé de si com esta Zerbino, para quem estava esta donzela
presa partir, de modo algum se atreve: com sua vida a par numa balança,
mas tem tal dívida ao conde que até lança-se aos pés do conde, e o adora,
o deixa pôr-lhe no pescoço o pé. por duas vidas lhe dar numa hora.
CANTO XXIII 375

70 Agradecimentos, muitas ofertas 76 Mas quando bem me houveres visto o rosto,


continuavam entre os cavaleiros, ao segundo desejo atende então:
mas sons lhes chegam das vias cobertas ao outro motivo farás o gosto,
de umbrosos ramos de faias, salgueiros. que para aqui me seguires deu razão;
Nas cabeças, que tinham descobertas, verás meu valor, se igual ou oposto
elmos põem e aos corcéis vão ligeiros; ao semblante a que dás abonação. -
e surge um cavaleiro e uma donzela, - Vamos (disse o outro) ao remanescente,
mal acabavam de subir para a sela. satisfiz o primeiro inteiramente. -
n Este guerreiro era aquele Mandricardo23 77 Porém o conde da cabeça ao pé
que a seguir Orlando à pressa partiu, o pagão percorre com a mirada;
para nele vingar Alzirdo e Manilardo, olha os flancos, olha o arção; não vê
que o paladim com tanto valor feriu; pender daqui ou dali maça ou espada.
contudo, foi a segui-lo mais tardo, Pergunta-lhe de que armas se provê,
pois Doralice para si adquiriu; caso aconteça falhar a lançada.
que com um tronco de carvalho perro24 Respondeu ele: - Tal não te dê cuidado;
tirara a cem guerreiros cheios de ferro. já assim tenho muitos assustado.
n Não sabia o sarraceno, de resto, 78 De espada não cingir fiz juramento,
que quem seguia era o senhor de Anglante; enquanto Durindana eu não aponte27 ;
indício tinha e sinal manifesto o conde procuro a cada momento,
de que era um grande cavaleiro errante. para que mais que uma dívida desconte.
Mirou-o mais do que a Zerbino, e lesto, Jurei tirar-lha (se assim te contento)
de cima abaixo o mirou num instante; quando com este elmo cobri a fronte,
e os sinais indicados encontrando, o qual, e as outras armas que transporto,
disse: - És aquele que ando procurando. era de Heitor, há já mil anos morto.
73 Já lá vão dez dias (acrescentou) 79 Só falta a espada para que bem me arme;
que venho seguindo o teu chamariz25 ; como roubada foi, não sei dizer.
tal é a fama que me estimulou, Que o paladim a tem, vieram contar-me;
que de ti há nos campos de Paris, daí a bravura que ele mostra ter.
quando a custo um só vivo ali ficou, Penso, se com ele venho a defrontar-me,
por mil idos para os infernais redis; forçá-lo a o que é devido devolver.
a razia contou, que com perícia Buscando-o vou, de vingar desejoso,
infligiste aos de Tlemcen e Norizia26 • o que meu pai foi: Agrican famoso.
74 Não fui, assim que o soube, a seguir lento, 80 Foi Orlando que à traição lhe deu morte:
para ver-te e teu valor ter aferido; nem podia ser de modo diferente. -
e, como · me informei do ornamento Não se conteve o conde, e gritou forte:
que cobre as armas, que ele és não duvido; - Pois tu, e outro qualquer que o diga, mente.
inda que o não soubesse, e se entre um cento Mas o que procuras calhou-te em sorte:
para de mim fugir te houvesses metido, Orlando eu sou; matei-o justamente28 ;
teu semblante altaneiro deixaria e esta é aquela espada que procuras;
claramente ver que és quem eu seguia. - tê-la-ás, se para a conquistar te apuras.
75 - Não se pode (disse Orlando) dizer 81 Conquanto minha seja por direito,
que guerreiro não és de alto valor; por gentileza entre nós se contenda;
não creio que tão magnânimo querer não quero que ela seja neste pleito
em coração servil houvesse alor. mais minha ou tua; da árvore penda.
Se vens até aqui por me querer ver, Daqui a levarás para teu proveito,
quero me vejas dentro e o exterior: quer tua força me dê morte ou prenda. -
levantarei este elmo da cabeça, Tal dizendo, Durindana agarrou,
para que esse teu desejo nada impeça. dum ramo a meio do campo a pendurou.
376 ORLANDO FURIOSO

82 Já cada um para longe se baldeia 85 Como acharia o sarraceno um gesto


(espaço igual a meio disparo de arco); para vencer seu desafio atrevido?
já um contra o outro o corcel esporeia, Perder tempo assim achava funesto,
e nenhum deles a dar rédea é parco; pois mais magoa o feridor que o ferido.
já um e outro grande golpe arreia Corpo a corpo se agarraram, e presto
onde da vista o elmo tem o marco. pelo pagão foi Orlando acometido:
Pareciam gelo as hastas a quebrar-se, ao peito o apertando, fazer-lhe creu
que para o céu em mil fragmentos se esgarce. o mesmo que Hércules fez a Anteu29 •
83 Forçoso é que uma e outra se espedace, 86 Prende-o com ímpeto de atravessado:
pois não querem dobrar-se os cavaleiros; ora o impele ora para si o estira;
voltam com os tacos a fazer face, em süa i ra esd tão mergulhado
que junto aos punhos ficaram inteiros. que onde a brida se encontra não remira.
Sendo um e outro com ferros pugnace, Orlando, à defesa, está empenhado
quais aldeões por despeito altaneiros em ter vantagem, e à vitória aspira:
no dividir águas, extremas de prados, com cauta mão à cabeça estendida
ora lutam feros, com paus armados. do cavalo, faz-lhe tombar a brida.
84 Não resistem as hastas quatro embates, 87 O sarraceno em força é laborioso,
falham quando tem mais fúria a acção. para ver se o sufoca ou se o desatrela;
Parte a parte encarniçam-se os combates; de os joelhos apertar o conde é cioso:
outra arma não resta: só a mão. desta parte não pende nem daquela.
De placas e cotas rompem remates, Mas tanto o pagão puxa que é forçoso
se as agarram e fazem preensão. que a cilha deixe desprender a sela.
Não desejem, por ser mais eficaz, Orlando a terra vai sem estar alerta:
martelo mais grave ou dura tenaz. pés tem nos estribos, as coxas aperta.
88 Como um saco de armas que ao chão degrade,
ressoa o conde quando em terra toca.
O corcel que a cabeça em liberdade
tinha, a que ele tirara o freio da boca,
sem ver se por bosque ou estrada se evade,
em inepta corrida desemboca;
para aqui, para ali o impele o temor cego,
tendo Mandricardo como carrego.
CANTO XXIII 377

89 Doralice ao observar que o seu guia 95 Foge ele pela selva, e consigo transporta
deixa o campo, saindo-lhe de perto, a velha, cujo medo não tem cura,
de ali ficar sozinha não se fia, por vales, montes, via recta e torta,
e atrás dele ao seu rocim dá aperto. por fossos, penedias à aventura.
O pagão ao corcel, em gritaria, Falar mais desta agora não me importa,
com as mãos e os pés dá-lhe um enxerto; pois de Orlando prefiro ir à procura,
como se besta não fosse o ameaça: que na sua sela o que foi estragado
quer detê-lo, e inda mais o escorraça. bem acomodou, sem ser perturbado.
90 Como a besta era assustadiça e brava, 96 Voltou a montar, mas ali ficou
sem ver onde vai, corre de través. à espera que o sarraceno voltasse.
Correra três milhas, e outra encetava, Não o vendo aparecer, por fim pensou
se um fosso não topasse a dar revés; caber a si que o outro procurasse;
colchão ou coxim, no fundo não estava, mas o bom costume e uso imperou:
e os dois lá tombaram, para cima os pés. antes que o paladim se retirasse,
Mandricardo sofreu grande pancada, com amável falar, grato e cortês,
mas não moeu nem partiu a ossada. as despedidas dos amantes fez.
91 Aqui o corcel por fim se confina,
mas não se pode guiar: freio não tem.
Segurava-o o tártaro pela crina,
estando cheio de furor e .desdém.
Pensa, mas no que fazer não atina.
- Põe nele a brida do meu palafrém
(dizia a dama); o meu não se revolta,
ou esteja com o freio ou esteja à solta. -
92 Parecia ao pagão ser descortesia
de Doralice aceitar a oferta;
mas freio o fará ter, por outra via,
Fortuna, aos seus desejos muito aberta:
a celerada Gabrina lhe envia.
Depois que de Zerbin deu falso alerta,
fugia, qual loba que os caçadores
e os cães ouvia vir nos arredores.
93 Tinha ainda vestida a tal farpela,
e aqueles mesmos juvenis floreados
que haviam sido à trocista donzela
de Pinabel, para lhe vestir, tirados;
tinha também o palafrém daquela,
dos bons do mundo e dos avantajados.
Junto ao tártaro, nisto, a velha trava,
sem ter antes visco que ele ali estava.
94 De Stordilano30 a filha acometida,
e o tártaro, ante a veste, são pelo riso,
encarando a velha que é tão parecida
com babuíno ou macaco no viso.
O sarraceno quer tirar-lhe a brida
para o seu corcel, e fá-lo de improviso.
Tirado o freio, assusta o palafrém,
grita-lhe, ameaça, e nada o detém.
378 ORLANDO FURIOSO

97 Zerbin por deixá-lo estava infeliz, 1 03 Angelica e Medoro em mil laçadas


e de comoção chorava lsabella: juntos ligados, em cem lugares, vê.
com ele queriam seguir, mas ele não quis Quantas são as letras, quantas picadas
sua companhia, se cara e bela; com que Amor fere seu peito sem mercê.
a razão para querer outra directriz Procura o pensamento mil jogadas
é que infâmia maior não há que aquela: para não crer em quanto, mau grado, crê:
quando o guerreiro o inimigo desvenda, outra Angelica (para crer se encarniça)
levar quem o auxilie e defenda. seu nome escreveu naquela cortiça.
98 Se o sarraceno, pediu, comezinho, 1 04 Depois diz: - Mas na letra sou versado;
com eles antes fizesse junção, quantas eu tenho delas visto e lido.
dissessem que Orlando estava vizinho Pode este Medoro ser inventado:
por mais três dias naquela região; talvez me tenha dado este apelido. -
depois disso, seguiria caminho Com tal jogo da verdade afastado,
direito aos lírios de ouro do pendão3 1 , que a si próprio enganava convencido,
para junto à hoste de Carlos estar, na esperança esteve o descontente Orlando,
que assim, precisando, o possa chamar. que soube ir em si mesmo alimentando.
99 Prometeram tal fazer p·razenteiros, 105 Mas cada vez mais se acende e renova
e algo mais de que lhes dê comando. o que ignorar quer, e acha tão suspeito;
Fazem diversa via os cavaleiros, qual ave que de imprudência dá prova,
para cá vem Zerbino e para lá Orlando. e em rede ou visco vai bater com o peito:
O conde, antes que tome outros carreiros, quanto mais bata as asas e se mova
à árvore vai, a espada recuperando; para se libertar, mais o aperto é estreito.
e aonde o pagão provável pensou Orlando chega onde se encurva o monte,
encontrar, o cavalo encaminhou. formando um arco junto à clara fonte.
1 00 O estranho curso que fez o cavalo 1 06 Sobre a entrada o lugar tinha adorno
do sarraceno, pelo bosque sem via, de heras contorcidas, vides errantes.
fez Orlando dois dias procurá-lo Ali, nas horas que o dia é um forno,
em vão: não o achou, sinal não via. abraçados estavam os dois amantes.
Um rio cristalino estava a esperá-lo, Os nomes gravaram, dentro e em torno,
em cujas margens um prado floria, mais que em outros lugares circunstantes;
de várias cores naturais pintado, ora com carvão escrito ora com gesso,
por muitas árvores belas ornado. e até com pontas de facas impresso.
101 À hora merídia era grata a aragem 107 Ali o triste conde se apeou;
ao forte armento e ao pastor desnudo; viu sobre a entrada da gruta, em frente,
não sentia Orlando qualquer friagem, palavras que com sua mão gravou
pois vestia couraça, elmo e escudo. Medoro, parecendo escrita recente.
Para se repousar ali fez paragem; Dos prazeres que na gruta gozou,
mas abrigo encontrou funesto e crudo, inscrição em versos deixou presente.
e, o mais que é possível, cruel estadia, Em sua língua o fez, estou convencido;
naquele tão malfadado e infeliz dia. tinha na nossa o seguinte sentido:
102 Olhando a toda a volta, viu inscritos 1 08 - Ledas plantas, verde erva, água que deu
muitos arbustos na margem umbrosa. frescura e grata sombra a esta arcada,
Quando os olhos neles deteve fitos, onde a bela Angelica que nasceu
reconheceu da sua diva a prosa. de Galafron, e muito em vão amada,
Era este lugar um dos já descritos, nua em meus braços tanta vez jazeu;
onde vinha, de Medoro amorosa, da felicidade que aqui me foi dada
da casa do pastor ali vizinha, eu, pobre Medoro, recompensar-vos
a bela dama, do Catai rainha. não posso de outro modo que louvar-vos;
CANTO XXIII 379
380 ORLANDO FURIOSO

109 e pedir a cada senhor amante, 115 Com tão escassa e tão infundada esperança,
cavaleiro ou dama que aqui conflua, o espírito anima com certo alor;
quer seja desta terra ou viandante, a Brigliadoro o ventre preme, e avança,
por vontade aqui vindo ou Sorte sua, já o Sol à irmã cede o andor.
que a ervas, sombras, rio e gruta cante: Avista adiante, na vizinhança,
benignos vos sejam o Sol e a Lua, dos tectos sair do fogo o vapor;
e das ninfas o coro não permita ouve cães ladrar e mugir o armento;
que o rebanho o pastor aqui admita. - alcança uma casa e alojamento.
1 10 Em árabe estava escrito, que o conde 116 Inerte desmonta, e dá Brigliadoro
percebia tão bem como latim; a um discreto moço, que o segura;
entre muitas línguas a que responde, outro as armas lhe tira, as esporas de ouro
presente tinha aquela o paladim; leva outro para polir, e a armadura.
evitou-lhe muita vez danos, onde Era esta a mesma casa onde Medoro
foi entre os Sarracenos andarim; ferido jazeu e achou sua ventura.
mas não se gabe se disso houve fruto; Deita-se Orlando, nem pensa em cear,
que ora um dano tem, que ao resto dá luto. de dor saciado e não de outro manjar.
111 Três vezes, quatro, seis leu o inscrito 1 17 Quanto mais procura ter quietação,
o infeliz, mas procurando em vão mais o perturba o tormento e a pena:
que ali não estivesse o que estava escrito; as paredes, da odiosa inscrição,
e cada vez via tudo mais chão, e cada porta e janela vê plena.
sentindo fria mão no peito aflito Quer perguntar; decide depois não;
apertar sempre mais o coração. teme que se torne coisa terrena
Ficou por fim com os olhos e a mente e clara, aquela que ele quer nebulosa,
fixos na pedra, dela não diferente. pois fosca será menos dolorosa.
112 Esteve para abandoná-lo o sentimento, 11s De pouco serve fingir-se enganado,
pois todo ao poder da dor está sujeito. pois, sem perguntar, alguém disso fala.
Crede em quem de tal já teve experimento: O pastor que ao vê-lo tão angustiado
como o maior sofrer este é eleito. com tanta tristeza, queria aliviá-la,
Cabeça baixa, privada de alento, a história de amor que havia contado
o queixo lhe tombara sobre o peito; desse par, a quem quisesse escutá-la,
nem encontrou (a dor o ocupou tanto) e que a muitos foi prazenteiro ouvir,
para se queixar voz, ou humor para o pranto. iniciou sem licença lhe pedir:
1 13 A impetuosa dor dentro se envasa, 119 como ante os rogos de Angelica bela
querendo sair com demasiada pressa. em sua casa Medoro alojou,
Assim uma vasilha de água rasa, que estava gravemente ferido; e que ela
que tem largo o ventre e estreita a cabeça, sua ferida em poucos dias sarou;
quando ao invés se vira não extravasa: e ele em seu peito uma maior que aquela
o líquido a sair tanto se apressa, ferida de Amor lhe fez; e lhe atiçou,
e na angusta saída engarrota, com pequena centelha, vivo fogo
que só a custo sai e gota a gota. que a consumia, sem ter desafogo;
114 Depois recompõe-se, porque lhe assome 120 E, sem se intimidar porque ela fosse
cogitar que não seja a coisa vera: filha do maior rei que há no Levante,
que alguém pretenda difamar o nome pelo muito amor levada sujeitou-se
de sua dama crê, deseja e espera; a tornar-se mulher dum pobre infante.
ou fazer que tão grave peso o tome A história do final aproximou-se,
do fero ciúme, que o dilacera; quando o pastor lhe pôs a jóia diante
e, quem quer que seja aqui haja estado, que à partida, pelo bom acolhimento,
muito bem tenha a mão dela imitado. Angelica lhe dera em pagamento.
CANTO XXIII 38 1

121 Esta conclusão foi a machadada 127 Estes, que indício dão do meu tormento,
que a cabeça lhe separou do colo; suspiros não são, que não são assim.
com ela, após lhe dar tanta pancada, Tréguas têm eles; o meu lamento,
o carniceiro Amor sentiu consolo. em meu peito, nunca tem interim.
Tenta ocultar Orlando a dor, mas nada Amor que me queima faz este vento,
seu mal vence, e custoso é não expô-lo: quando bate as asas dentro de mim.
lágrimas, suspiros, de olhos e boca, Com que milagre, Amor, meu coração
querendo ou não querendo, ao fim lhe desemboca. em fogo tens, sem dar consumação?
122 Quando o travão à dor pôde soltar 12s O que no rosto pareço não sou:
(estando só, não tem de guardar respeito), o que Orlando era, morto é, sob a terra;
dos olhos, depois das faces banhar, sua dama ingratíssima o matou;
cai-lhe um rio de lágrimas sobre o peito; atraiçoando-o, declarou-lhe a guerra.
suspira e geme, e o corpo a voltear, Sou seu espírito, que dele se soltou,
para cá, para lá, vai tenteando o leito; que atormentado neste inferno erra,
mas mais duro que pedra, e mais pungente para sua sombra, que sozinha avança,
que se de urtigas fora feito, o sente. ser exemplo a quem no Amor põe esperança. -
123 No meio da acre angústia lhe ocorreu 129 Toda a noite do bosque houve horiwnte;
que, nesse mesmo leito em que jazia, e, quando despontou a diurna flama,
a ingrata dama com o amante seu, levou-o o seu destino àquela fonte
sempre que queriam, ali se estendia. onde Medoro esculpiu o epigrama.
Não menos tal colchão aborreceu, Ver a sua injúria escrita no monte
nem dele se eleva com menor fobia, tanto o irou que nele não ficou grama
que da erva aldeão que se deitara que não fosse ódio, raiva, ira assanhada;
para dormir, e com a cobra depara. mais não esperou: desembainhou a espada.
124 Aquele leito, a casa e o pastor, 130 Cortou inscrito, pedra, e até ao céu
em tanto ódio os teve de imediato fez subir voando cada fragmento.
que, sem esperar da Lua ou do alvor Pobre gruta e árvores que pareceu
do novo dia poder ter ornato, terem de Angelica e Medoro assento!
armas toma e corcel, e para o frescor Ficaram de modo a sombra ou aléu
do bosque sai, onde é mais denso o mato; não mais darem a pastor ou armento;
quando vê que se encontra em solidão, e a fonte, que fora tão clara e pura,
com gritos, urros, à dor dá vazão. contra tanta ira não foi segura;
125 Com choros e gritos se manifesta;
de noite ou de dia não se dá paz.
Vilas, burgos evita; na floresta,
sobre o chão duro a descoberto jaz.
Causa-lhe espanto que tenha na testa
uma nascente de água tão vivaz,
e como é capaz de suspirar tanto;
e consigo mesmo a si diz no pranto:
126 - Não são lágrimas já, este licor
que dos meus olhos verto em quantidade.
Não acompanharam elas a dor:
acabaram, ia a dor em metade.
O fogo ora impele o vital humor,
que pela via dos olhos escapar há-de;
é ele que verto, e simultaneamente
à dor e à vida dará fim urgente.
382 ORLANDO FURIOSO

13 1 ramo, pedra, terra, tronco arrancou, 133 Aqui fica o elmo, além fica o escudo,
nem parou de atirar para a onda funda; longe os arneses, mais longe a couraça;
de alto a baixo tanto a água turvou as suas armas, em conclusão, tudo
que nunca mais foi nem clara nem munda. aqui e acolá o bosque devassa.
Cansado enfim, o suor o encharcou; Rasgou os panos, e mostra desnudo
resposta não dando a força iracunda o ventre, o peito e as costas onde passa;
ao desdém, ódio fundo e acesa ira, começa a grande insânia, e tão horrenda
por terra cai, e olhando o céu suspira. que outra maior que esta se não desvenda.
132 Cansado e angustiado ao fim cai na erva, 134 De tanta raiva e furor foi tomado
fixa os olhos no céu e não se move. que fica ofuscado todo o seu senso.
Sem comer nem dormir, tal se conserva De empunhar a espada está deslembrado,
até que o Sol três vezes se renove. pois coisas espantosas faria, penso.
De crescer não parou a dor proterva, Mas nem dela, nem de serra ou machado
que por fim todo o tino lhe remove.
. . .
necessrtava o seu vigor imenso.
Ao quarto dia, pelo furor movido, De seus grandes feitos prova mostrou:
de chapas e malhas ficou despido. um alto pinho à primeira arrancou;
CANTO XXIII 383

1 35 e depois deste arrancou muitos mais, 136 Os pastores que ouviram o fracasso,
tal fossem funchos, ébulos, anetos; deixando o grege à solta na floresta,
fez o mesmo a carvalhos ancestrais, daqui, dali, todos em largo passo
olmos, faias, azinheiras, abetos. ali chegam, para ver que coisa é esta.
Como um passarinheiro, para aos pardais Mas estou num ponto que, se o ultrapasso,
as redes montar, limpa de gravetos podia ser-vos tal história molesta;
o chão, de juncos, restolhos e urtigas, antes prefiro a história protelar
fazia a azinhos, plantas antigas. que vir-vos, de tão longa, a enfastiar.

NOTAS

1 Claramonte: casa a que pertence Bradamante. 16
Filha de Amon: Bradamante.
2 17
Contra o dia: ao encontro do dia, para oriente. Albergue: zona do castelo onde se albergavam os via­
jantes.
3
De o u tra vez: cf. IV: 16 ss.
18
Em postas se disparte: é esquartejado.
4
Se[. . .] movia: se começasse a correr no instante em
19
que se disparasse o arco. Donzela[. .. } gr uta: cf. Xll:9 1 ss.
5 Montalvão: castelo na Gasconha pertencente à famí­ 2
° Fino: de boa qualidade.
lia de Bradamante.
21 Onde[. .] estreito: onde o grupo está mais aglomerado.
.
6 A lança[. . .] Galafron: lança fadada, que pertenceu a
22
Argalia e foi dada a Astolfo por Melissa (cf. VIII: 1 7) . Senhor de Anglante: Orlando.
7 23
Piloto adiante: piloto d a barra, que guia o s navios na Mandricardo: cf. XIV:30 ss.
saída ou entrada do porto.
24
Tronco[. .. } perro: lança de madeira de carvalho resis­
8
Noa: hora canónica entre as 14 e as 16 horas, sensi­ tente (perro).
velmente.
25
Chamariz: rasto.
9
Beatrice: sua mãe.
26
Tlemcen e Norizia: cf. XIl:69 ss.
10
Galo: Carlos Magno.
27
De espada[. .. ] aponte: cf. XIV:43.
11
Ruggier[. . .] voo u : cf. IV:46 ss.
28
Matei-o j ustamente: no O. Innamorato, Orlando
12 Rodomonte[. .. } seguia: cf. XVIIl:36-37. matou Agricane em duelo regular.
13 29
Talha: remuneração (neste caso, o que Rodomonte O mesmo[. . .} Ante u : cf. nota a ix:77.
haverá a pagar, se perder) .
30
Stordilano: o rei de Granada, pai de Doralice.
14
Turpino: cf. nota a XIII:40.
31
Direito[. .. } pendão: em direcção a França.
15
O de [. . .] atrás: Pinabello (cf. XXIl:97) .
-.­
CANTO XXIV

Quem mete o pé no amoroso visco,


tente tirá-lo, e as asas não entale;
o amor insânia é, ou dela é isco,
a julgar pelo saber universal;
quem não for, como Orlando, ao tino arisco,
loucura mostra por outro sinal.
E qual é de insânia sinal mais expresso,
que perder-se por outro amar em excesso?
2 Efeitos vários tem quem desvaria,
mas uma só insânia os faz nascer.
É como uma grande selva, onde a via
quem lá entrar por força há-de perder:
para cá, para lá, para aqui, para além transvia.
Em conclusão final vos vou dizer:
quem no amor persiste, se atormente,
e haja pena no cepo e na corrente.
3 Podiam bem dizer-me: - Irmão, não vás
mostrando o de outrem, sem ver teu resvalo. -
Respondo eu que compreendo assaz,
ora que tenho um lúcido intervalo;
cuidado tenho (e espero ser capaz)
de aliviar-me o amor, e de esquivá-lo;
que seja já, como queria, não posso,
pois o mal penetrou-me até ao osso.
386 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXIV 387

4 Senhor, no outro canto vos dizia s Poderíeis sentir como ribomba


que o enlouquecido e furioso Orlando alto ruído nas vizinhas vilas,
pelo campo espalhara as armas que havia, de gritos, cornos, e a rústica tromba,
vestes rasgou, à espada deu desmando; e, mais do que os outros, o som de esquilas;
arrancou plantas e ecoar fazia com hastas, arcos, flechas, funda romba,
as cavernas e as altas selvas; quando dos montes veríeis descer as filas,
uns pastores, ao som, trouxe àquele lado e outras tantas subir do baixo ao alto,
sua sorte, ou qualquer grave pecado. para dar ao louco um rusticano assalto.
Vendo o feito incrível do louco conde 9 Tal como a onda o salso lido inunda,
de mais perto, e o seu enorme vigor, pelo vento sul movida em brincadeira,
voltam-se para fugir; não sabem onde, maior do que a primeira é a segunda,
como sucede em súbito terror. e com mais força se segue a terceira;
O louco, atrás, ao seu fugir responde: cada vez mais a onda em água abunda,
agarra um; a cabeça melhor e mais estende na areia a sua esteira:
lhe arranca do que um outro qualquer esgarça tal contra Orlando a turba ímpia cresce,
da árvore a maçã, ou flor à sarça. que sai dos vales e dos montes desce.
G Por uma perna o seu tronco empunhou, 10 Fez morrer dez pessoas e mais dez,
usando-o como uma maça para o resto; que impreparadas lhe foram à mão;
adormecido, em terra um par deixou: tal facto clara a evidência fez
talvez no juízo final faça um gesto. que estar longe dele era a salvação.
Dos outros, deserto o sítio ficou, Ninguém tira sangue daquela tez,
que a decisão e o pé tiveram lesto. pois fere-o e bate-lhe o ferro em vão.
Não que o louco fosse a segui-los lento, Ao conde o rei do Céu tal graça deu,
mas tinha-se voltado para o armento. para guardar sua fé o protegeu.
7 Os lavradores, pela gente alertados, 11 Em perigo esteve de morrer Orlando,
deixam no campo arado, enxada, foice; tivesse sido de morrer capaz.
de casas, templos, sobem aos telhados Aprendia o que era, a espada enjeitando
(das árvores a segurança foi-se), e desarmado, ter de ser audaz.
de onde essa fúria vêem abismados: A turba porém foi-se retirando,
a murro, à dentada, à unhada, a coice, ao ver todo o seu golpe ser falaz.
cavalos e bois rebenta e esfarrapa; Vendo Orlando que mais ninguém assoma,
só quem muito bem corre dele escapa. para uma aldeola caminho toma.
388 ORLANDO FURIOSO

12 Dentro, não achou pequeno nem grande: 1 s Zerbin, depois de Orlando ter partido,
tinham por medo a aldeia deixado. tardou um pouco, e seguiu o carreiro
Comida humilde por ali se expande, que o paladino tinha antes batido,
condizente com o pastoril estado. e em passo lento ao corcel deu roteiro.
Sem discernir o que é pão e o que é glande, Duas milhas talvez não tivesse ido,
pelo jejum e pelo ímpeto levado, e viu trazer ligado um cavaleiro
as mãos e os dentes deitou distraído sobre um rocinante, de cada lado
ao que primeiro achou, cru ou cozido. guardado por um cavaleiro armado.
13 Depois por todo aquele lugar errou, 16 Zerbino conheceu-lhe logo o rosto
a homem e a fera dando canseira; ao chegar perto, e também lsabella:
correndo pelos bosques, também caçou era Odorico, o Biscainho 1 ; posto,
o esbelto cabrito e a corça ligeira. como a ovelha lobo, à guarda dela.
Com muito javali e urso lutou, Tinha-o a tantos amigos preposto
à mão lhes dando morte derradeira; Zerbino, para confiar-lhe a donzela,
e sua carne, com pele, pêlo e osso, esperando que leal, como no resto
com voraz fome lhe serviu de almoço. fora sempre, fosse ora neste gesto.
14 Para cá, para lá, para baixo e cima corre 17 Como tinha tal coisa acontecido
a França; e numa ponte faz paragem, vinha lsabella a fazer descrição:
sob a qual, largo e pleno de água, escorre que no escaler a tinha recolhido,
um rio que tem alta e abrupta passagem. antes de à nave o mar dar destruição;
Ao lado estava erigida uma torre, como ele à força a tinha submetido,
que ao longe e em volta mostrava a paisagem. e como a levaram para o cavernão.
O que aqui fez, direi noutro lugar; Ainda o conto não narrara inteiro,
de Zerbino primeiro vou narrar. quando o malfeitor viu vir prisioneiro.
1 s Os que Odorico traziam consigo
de lsabella a história sabiam vera;
e conheceram que dela o amigo,
e senhor seu, o que ali estava era;
tanto mais que no escudo o signo antigo
de sua nobre estirpe lho assevera:
e viram, olhando-o melhor na face,
que esse seu supor não era falace.
19 Para o chão cada um se desembaraça,
indo a correr para junto de Zerbino;
abraçam-no onde o maior se abraça2,
de cabeça nua e joelho quino.
Zerbin cada um na face devassa:
Corebo é um, de Biscaia genuíno,
Almonio o outro3 ; tinha-os ele mandado
com Odorico, no navio armado.
20 Almonio disse: - Se a Deus aprazeu
(por mercê) lsabella estar contigo,
posso bem compreender, ó senhor meu,
que nenhuma novidade te digo,
se a razão te disser de este sandeu
aqui veres amarrado vir comigo;
pois dessa, que foi a mais ofendida,
a história toda já terás ouvida.
390 ORLANDO FURIOSO

21 Como pelo traidor eu fui escarnecido, 25 Do bosque à cidade mandei levá-lo,


quando ele me afastou, deves saber; a um hospedeiro que é meu amigo,
e como depois Corebo foi ferido, que em pouco tempo conseguiu sará-lo,
quando esta dama queria defender. com arte e cura de um médico antigo.
Mas, após meu regresso, o sucedido Depois, obtidas armas e cavalo,
não pôde a dama nem ouvir nem ver, de Odorico procurámos o abrigo;
de modo a ter-to podido contar: de Alfonso de Biscaia o achei na corte,
essa parte, portanto, vou narrar. e com ele travei batalha forte.
22 Da cidade para o mar lesto eu marchava, 26 A permissão que desse rei me vem

com cavalos que ali tinha arranjado, para ali pugnar com ele; e a razão,
sempre atento para ver se lobrigava e além da razão Fortuna também,
esses, que muito atrás tinham ficado. que na vitória tem intervenção,
Sigo sempre, e à beira me encontrava me ajudaram: mais força que eu não tem
do mar, no sítio onde os tinha deixado; este traidor, e ali lhe dei prisão.
olho, mas deles nada mais se avista: O rei, sabida a falta, concedeu
apenas, na areia, a recente pista. que dele eu dispusesse a prazer meu.
23 A pista segui, que me conduziu 27 Não quis dar-lhe morte nem libertá-lo,
ao bosque agreste; e nem muito avancei, mas, como vês, trazer-to acorrentado;
quando um som os ouvidos me atingiu pois desejo que caiba a ti julgá-lo,
e, estendido por terra, este encontrei. se deve ser morto ou aprisionado.
Perguntei-lhe onde a dama se sumiu Por saber-te com Carlos, a apoiá-lo,
e Odorico; e quem o feriu indaguei. e querendo achar-te, vim para este lado.
Fui-me dali, conhecendo os indícios, Grato a Deus sou por fazer nesta parte,
em busca do traidor pelos precipícios. onde menos esperava, ora encontrar-te.
24 Muita volta dei, porém nesse dia 2s Grato sou também, por com lsabella
outro vestígio não me foi mostrado. eu ver (como, não sei) que junto vais;
Voltei para onde Corebo jazia, por obra do traidor, cria que dela
que junto o chão tinha tão encarnado notícia não se devesse ouvir mais. -
que, se mais tempo ali permanecia, Zerbino Almonio escuta e não querela,
mais necessário seria um fossado, fixando em Odorico olhares frontais;
e padres e frades para o enterrar, não tanto por ódio: é por lhe custar
que médicos e um leito para o curar. ver tanta amizade assim acabar.
29 Quando Almonio pôs fim ao seu sermão,
Zerbino ficou muito perturbado,
por ser, por quem para tal menos razão
tinha, tão expressamente atraiçoado.
Mas quando a essa longa admiração
foi, suspirando, por fim arrancado,
se era vero, indagou ao prisioneiro,
o que dissera dele o cavaleiro.
30 O desleal, os joelhos em terra
deixou cair, e disse: - Senhor meu,
quem vive neste mundo peca e erra;
não há diferença entre o bom e o sandeu,
senão que um é vencido em qualquer guerra
que lhe move um qualquer desejo seu;
o outro às armas corre e se defende:
se é forte o inimigo, também se rende.
CANTO XXIV 391

31 Se tu me tivesses posto à defesa 37 Zerbin manda reter a ímpia velha,


de um teu castelo, e ao primeiro assalto até pensar o que lhe há-de fazer:
fossem alçadas, por minha fraqueza, cortar-lhe o nariz e uma e outra orelha
as bandeiras .do inimigo ao alto, pensa, e exemplo de malfeitores ser;
de cobardia, ou traição, que mais pesa, acha depois melhor se a aparelha
na testa o nome teria em ressalto; para de sua carne abutres pascer.
mas se eu cedesse à força, censurado Punições várias a pensar revolve;
não seria, mas sim glorificado. até que finalmente se resolve.
32 Sempre que o inimigo é mais potente, 38 Aos outros diz: - É minha opinião
mais é aceite de quem perde a escusa. que o infiel seja da morte isento;
Guardar devera eu a fé igualmente pois, se não merece total perdão,
à fortaleza por muros reclusa; também não merece o cruel tormento.
assim, com quanto senso e quanta mente Concedo-lhe a vida e libertação,
foi pela suma prudência em mim infusa, porque o Amor dá à culpa sustento;
tentei guardá-la; mas, por fim vencido e facilmente a desculpa se admite,
por assalto fatal, fui submetido. - se for o Amor quem a culpa transmite.
33 Assim disse Odorico, e acrescentou 39 Amor já muita vez tornou revesso
(para tudo vos narrar muito labuto) tino mais forte do que o que este tem,
que grande tentação o impulsionou, e já levou a muito maior excesso
e que houve estímulo não diminuto. do que este, que a nós deu tanto desdém.
Se já algum rogo a ira apagou, A Odorico a culpa eu desvaneço:
se humilde fala alguma vez deu fruto, punido devo eu ser, que não vi bem;
seria aqui; com tudo o que remove ao dar-lhe a empresa, não tive em mente
ira do peito Odorico o comove. que o fogo queima a palha facilmente. -
34 Fazer de tanta injúria alta vingança, 40 Depois, olhando Odorico, dizia:
Zerbino em sim e não fica confuso; - Há-de ser do teu erro a penitência
pensar na má acção vontade avança teres desta velha um ano a companhia,
de que o vilão seja da vida excluso; sem que um instante gozes dela ausência;
lembrando da amizade a aliança onde quer que vás, de noite ou de dia,
que tivera entre os dois tão longo uso, nem uma hora dela hajas carência;
água de piedade a ira acendida até à morte lhe darás defesa,
lhe apagou: quer-lhe a mercê concedida. contra qualquer que lhe faça torpeza.
35 Enquanto Zerbino estava indeciso, 41 Mais: se por ela te for ordenado,
se libertá-lo ou se o deixar cativo, farás contra quem for contenda ou guerra;
ou se ao desleal dava prejuízo serás durante esse tempo obrigado
de morte, ou se mantê-lo em pena vivo, à França percorrer de terra em terra. -
chegou nitrindo o corcel, de improviso, Tal dizia Zerbin; pelo seu pecado
de Mandricardo, sem ter freio activo4; merecendo o outro ir para baixo da terra,
e ali trouxe a velha que, só por sorte, assim lhe punha diante uma fossa,
não tinha a Zerbino causado a morte. sorte sendo que esquivar-se-lhe possa.
36 O palafrém, que ao longe houve audição 42 Tantas mulheres, tantos homens traído
destes outros, para eles tinha vindo, tinha a velha, tantos os acusantes,
trazendo a velha consigo, que em vão que quem a acompanhar é compelido
chorando vinha e auxílio pedindo. a assaltos ter dos cavaleiros errantes.
Quando Zerbino a viu, ergueu a mão Assim, um e outro será punido:
ao Céu, consigo benigno o sentindo, ela, pelos erros que praticou antes,
por dois lhe dar, para ali serem julgados, ele, porque em sua defesa absorto;
que só podiam ser por ele odiados. longe não irá sem que seja morto.
392 ORLANDO FURIOSO

43 Que observe tal, Zerbin sentença lê


a Odorico, em juramento forte,
na condição de, se quebrar a fé,
ou que à frente lhe apareça por sorte,
sem rogos escutar nem ter mais mercê,
o fará morrer da mais cruel morte.
Diz a Corebo e a Almonio então
que Odorico libertem de prisão.
44 Corebo, Almonio assentindo, soltou
por fim o traidor, mas em lenta dança;
pois a um e a outro desagradou
ser impedido de fazer vingança.
Parte o traidor e, tal Zerbin ditou,
a maldita velha a seu lado avança.
Não se lê em Turpin que aconteceu,
mas um autor já vi que mais escreveu5•
45 Escreve esse autor, em cujo nome embaço,
que não foram além duma jornada,
e Odorico, já farto do embaraço,
quebrando o pacto e a palavra dada,
ao colo da velha amarrou um laço,
e que num olmo a deixou enforcada;
daí a um ano (onde foi não disse)
fez a ele Almonio a mesma meiguice.
46 Zerbino, que vinha seguindo a trilha
do paladino, e perdê-la não queria,
manda notícias à sua quadrilha6,
que em grandes cuidados por si estaria:
Almonio manda e muito lhe chorrilha,
mas tudo aqui contar longo seria;
Almonio manda, e Corebo também;
fica com lsabella, mais ninguém.
47 Tanto era grande o amor que Zerbino, 49 Avista ao longe algo que é luminoso,
e não menor que o seu o que lsabella e a couraça do conde vê a monte;
dedicava ao virtuoso paladino; encontra o elmo; não aquele famoso
muito de saber que ele achou anela que já cobrira o africano Almonte7 •
esse tal sarraceno peregrino, Na selva o corcel em sítio frondoso
o qual ao cavalo o arrancou e à sela, ouve nitrir, e ao som eleva a fronte;
e ao seu exército não voltaria, e vê Brigliador pascer-se na erva;
até ter passado o terceiro dia, do arção pendentes, rédeas conserva.
48 o prazo que Orlando esperar predisse 50 Durindana procurou pela floresta,
pelo cavaleiro que não usa espada. e fora da bainha a viu caída.
Não há um lugar que o conde invadisse Da sobreveste só farrapos resta,
que Zerbino igualmente não invada. em cem lugares pelo conde distribuída.
Chegou por fim às árvores em que disse lsabella e Zerbin, com face mesta,
a dama ingrata amor, fora da estrada; vão olhando com expressão surpreendida:
e tanto a fonte como a gruta perto, podiam pensar qualquer coisa, excepto
tudo ele achou em total desconcerto. que Orlando perdera o seu intelecto.
CANTO XXIV 393

51 Se algum sangue ali houvesse patente, 57 Zerbino as armas qual troféu reuniu,
teriam crido que estivesse morto. e sobre um pinheiro lhes deu destino;
Vêem depois ao longo da corrente que outro a elas não desse uso preferiu,
vir chegando um pastor pelo medo absorto. cavaleiro dali ou peregrino;
Tinha visto, da montanha adjacente, no verde cepo uma inscrição esculpiu:
do infeliz da fúria o desconforto; «Armadura de Orlando paladino»;
como as armas tirou, rasgou os panos, como a dizer: não lhe mexa ninguém,
pastores matou, e fez mil outros danos. se com Orlando a combate não vem.
52 Pede Zerbino que aquele lhe dê 58 Tendo cumprido a louvável acção,
informação de tudo isso e do resto. tornava a montar aquele cavaleiro;
Zerbino admira-se e a custo crê, chega Mandricardo de supetão,
contudo tem indício manifesto. que, ao ver das armas ornado o pinheiro,
Verdade ou não, Zerbino vai a pé, lhe pede dos factos dê explicação:
cheio de pena, lacrimoso e mesto, narra-lhe ele o que ouviu, o verdadeiro.
e recolhendo vai por todo o lado Contente, o rei pagão logo faz estrada
as relíquias que ele tinha espalhado. até ao pinheiro, e retira a espada,
53 Do palafrém também desce lsabella, 59 dizendo: - Ninguém me pode acusar;
que aquelas armas apanhando treme. já não é de hoje o meu direito a ela;
Eis que ali aparece uma donzela e em qualquer parte poderei tomar
de triste olhar, que do coração geme. com inteira justiça posse dela.
Se alguém me perguntar quem é, por que ela Orlando, por defendê-la recear,
tanto se aflige, e qual a dor que a preme, fingiu-se louco e perdeu-lhe a tutela;
que é Fiordiligi8 tenho a informar, mas, por assim esconder a cobardia,
que vestígios do amante anda a buscar. o meu firme direito não se esfria. -
54 Nada lhe disse Brandimarte, e afoito, 60 Zerbino gritava-lhe: - Usurpador
em Paris deixou-a e. foi-se a cavalo; serás, se a levas sem competição.
ela ali esperou seis meses ou oito, Se assim obtiveste as armas de Heitor,
e, quando por fim não viu regressá-lo, por furto as ganhaste e não com razão. -
dum mar ao outro foi, e sem intróito, Sem mais, cada um se torna agressor,
dos Pirenéus aos Alpes procurá-lo; iguais no denodo e na decisão.
a toda a parte foi, só não chegou Já de cem golpes o som ribombou,
ao palácio em que Atlante os encantou. ainda a batalha mal começou.
55 Se tivesse ido àquele solar de Adante, 61 Em presteza Zerbino é como a flama,
tê-lo-ia ali visto andar errando de Durindana a esquivar a pancada:
com Gradasso, Ruggiero e Bradamante, para cá, para lá, saltar como uma gama
e também com Ferraú e Orlando; faz seu corcel, onde é melhor a estrada.
mas, ao correr Astolfo o necromante E bem convém que lá não deixe um grama;
ao som do corno horrível e nefando, pois irá, se lhe toca aquela espada,
Brandimarte para Paris tomou via; ao encontro dos amorosos espirros
mas isto Fiordiligi não sabia. que enchem a selva dos umbrosos mirtos9 •
56 Como eu dizia, chegou por acaso 62 Tal como o veloz cão o porco assalta
junto aos amantes Fiordiligi bela; que deixa a vara, e no campo se enlapa,
reconheceu as armas sem atraso, e o vai cercando, e ali e acolá salta,
e Brigliador, com as rédeas na sela. mas fica à espera a ver se o porco assapa:
Viu com seus olhos lamentável caso, assim, se vem a espada ou baixa ou alta,
e ouviu contar a notícia singela; está Zerbino a estudar como lhe escapa;
também a ela o pastor descreveu para vida e honra salvar a um tempo,
como observou que Orlando enlouqueceu. atento está, e fere e foge a tempo.
394 ORLANDO FURIOSO

63 Pelo seu lado, onde quer que o sarracino 69 Zerbin, que olhar tem lesto como a mente,
a espada vibre, ou em cheio ou em vão, presto o cavalo à direita volveu;
parece entre os montes um vento alpino mas não tão lesto que a espada fendente
que em Março à selva dá forte abanão: houvesse esquivado: o escudo colheu.
que ora para o chão lhe dobra o tronco quino, De cima a baixo o abriu igualmente,
ora os ramos quebrados pelo ar vão. e o braçal por baixo também rompeu;
Zerbino a muitos golpes se esquivou, feriu-o no braço e depois o arnês
mas por fim houve um a que não escapou. rasgou, e na coxa um lanho lhe fez.
64 Não pode evitar um grande fendente 70 Zerbino procura uma qualquer via,
que entre espada e escudo lhe entra no peito. não a que deseja mas a que obtém;
Grossa era a couraça e muito eficiente pois a armadura, a qual ele feria,
a armadura, e o panceiro perfeito; nem a mais pequena marca retém.
mas não se opuseram, e, igualmente, O rei da Tartária tal primazia,
à espada cruel houveram defeito. e tal vantagem, sobre Zerbin tem
Onde ela caiu, corte certo fez: que em sete ou oito partes já o feriu,
a couraça, o arção, e até o arnês. tirou-lhe o escudo, e meio elmo lhe abriu.
65 Se não fosse o golpe escasso, garanto 71 Entretanto ele vai perdendo sangue;
que ao meio o fendia como uma cana; falta-lhe a força, mas inda se aguenta:
mas entra na carne só aquele tanto, o vigoroso coração não langue;
que pouco mais além que a pele profana; tão forte é que o débil corpo sustenta.
a não profunda chaga é longa quanto A sua dama, de temor exangue,
não se media com uma mão plana. então a Doralice se apresenta;
Pelas armas luzentes seu sangue escorre pede-lhe, suplica, e por Deus implora,
até ao pé, e em rubro rego corre. que ponha fim à luta sem demora.
66 Assim por vezes um purpúreo nastro n Tão cortês quanto bela, Doralice,
já vi atravessar tela prateada, sem do facto ter certo o resultado,
pela branca mão, mais branca que alabastro, faz pressurosa o que Isabella disse,
que a meu peito aponta assídua frechada. e à paz e trégua convence o amado.
Pouco vale a Zerbino o bom cadastro Também lsabella a ira interdisse
de guerreiro, e a intrepidez ousada; no peito de Zerbino, apaziguado;
porque em excelência de armas e em possança e a via toma como ela deseja,
o rei da Tartária em muito o avança 10 • sem que da espada termine a peleja.
67 Foi esse golpe do pagão maior 73 Fiordiligi, que viu fraca defesa
em aparência do que no efeito; para a espada que da luta fora fonte,
faz que lsabella o coração de dor ressentida fica, e tanto lhe pesa
sinta fender-se no gelado peito. que de ira chora, batendo na fronte.
Zerbino, pleno de raiva e de alor, Coubesse a Brandimarte aquela empresa!
todo se inflama de ira e de despeito; Assim que o encontrar e que lhe conte,
e, com quanta força a duas mãos pode, crê que Mandricardo não arrecada
o elmo ao tártaro em cheio sacode. durante muito tempo aquela espada.
68 Para o pescoço do corcel inclinou-se, 74 Fiordiligi procura em puro engano
pela dura pancada, o pagão soberbo; o seu Brandimarte, a jornada inteira;
e, se o seu elmo encantado não fosse, quanto mais longe vai, maior o dano,
abrir-lhe-ia a cabeça o golpe acerbo. pois em Paris já ele tinha trincheira.
Com pouca demora dele vingou-se; Tanto ela caminhou, por monte e plano,
nem disse: vê que teu acto exacerbo; que em certo sítio, junto a uma ribeira,
sobre o elmo a espada ergueu de tal jeito viu e reconheceu o paladino;
que esperava cindi-lo até ao peito. mas vejamos o que foi de Zerbino;
CANTO XXIV 395

75 por perder Durindana há tanto abalo 81 Disso, meu coração, teu medo afasta;
que disso, mais que outros males, padece, que eu vou seguir-te no Céu ou no Inferno.
embora mal se aguente no cavalo, Nossos espíritos, um o outro arrasta,
pelo sangue vertido e que inda esvaece. juntos convém que estejam no eterno.
A dor cresce, após pequeno intervalo, Ver que se fecham teus olhos me basta:
pois da ira o calor já não o aquece; ou me há-de matar o tormento interno,
cresce-lhe a dor tão impetuosamente ou, prometo, se não der esse efeito,
que a cada instante a vida fugir sente. passar hoje com esta espada o peito.
76 A fraqueza não o deixou seguir, 82 Dos nossos corpos esperança me alumia,
e assim junto de uma fonte fez estada. que mortos, mais que em vida, hajam ventura.
Não sabe o que fazer ou sugerir Talvez, aqui passando, alguém daria
para o ajudar a dama enamorada. a ambos, por piedade, sepultura. -
Vê-o a morrer por ninguém lhe acudir; Assim dizendo, as relíquias colhia
qualquer cidade está muito afastada, derradeiras, que a morte ao corpo abjura;
e ali não há médico a quem recorra, todas recolhe com sua boca mesta,
que por piedade ou dinheiro o socorra. enquanto uma mínima aura resta.
77 Em vão deixa que o lamento a devaste, 83 Zerbino, sua débil voz reforçando,
chama a fortuna e a Céu ímpio e cruel. disse: - Peço e suplico, minha diva,
- Por que, maldição (diz), não me afogaste, por aquele amor que mostraste, quando
quando ao mar me meti naquele batel? - por mim de teu pai foste fugitiva,
Sem que os lânguidos olhos dela afaste, e, se ordenar posso, te dou comando
a Zerbin mais dói que ela se flagele que enquanto Deus queira continues viva;
que o padecimento tenaz e forte nunca nada te permita olvidar
que o conduziu já às portas da morte. que te amei quanto é possível amar.
78 - Coração meu, possas tu (lhe dizia), 84 Deus te dará sua ajuda talvez,
depois de eu morrer, ser minha amadora; para te livrar de qualquer mal ou dano,
apenas o deixar-te me angustia, como fez ir à gruta, aquela vez,
não por morrer, mas por estares só agora; para libertar-te o senador romano 1 1 •
se em parte segura me acontecia Também para te salvar mercê te fez
acabar da vida a última hora, no mar, e do Biscainho profano;
ledo e contente, e de alegria cheio porém, se acaso tua morte deseja,
morreria, pois morro no teu seio. então, que como menor mal se eleja 1 2 • -
79 Porém o meu destino iníquo e duro 85 A voz nestas palavras se lhe obstrói
me faz deixar-te, em mãos não sei de quem; tanto que não creio fosse entendido;
por essa boca e esses olhos juro, finou-se como débil lume sói,
pelas madeixas que me prenderam bem, quando de óleo ou de cera é carecido.
que em desespero vou para o fundo escuro Quem poderá dizer quanto se dói,
do Inferno, no qual me sobrevém, por vê-lo ali tão pálido estendido,
por assim te deixar, maior tormento a jovenzinha, e tão frio como o gelo,
que outra qualquer pena que lá enfrento. - o seu Zerbino, em seu braço a sustê-lo?
so A isto a infelicíssima Isabella, 86 Sobre o sangrento corpo se amontoa,
inclinando sua face lacrimosa e de lágrimas copiosas o banha;
e conjugando a sua boca àquela tantos gritos dá que em redor ressoa
de Zerbino, lânguida como rosa, muitas milhas, pelo bosque e pela campanha.
que, não colhida na estação mais bela, Nem ao rosto nem ao peito perdoa,
empalidecerá na sebe umbrosa, pois um e outro fustiga e arranha;
disse: - Não deves pensar, minha vida, e arranca, injusta, o cabelo dourado,
fazer sem mim a última partida. chamando sempre em vão o nome amado.
396 ORLANDO FURIOSO

87 Em tanta raiva e desgosto submersa 89 E fez-lhe depois ver que não havia,
pela sua dor estava que facilmente senão em Deus, vero contentamento,
teria a espada contra si reversa, e que era transitória e fugidia
ao amante nisto pouco obediente; a esperança humana, e de curto momento;
se um eremita, que à amena e tersa tanto lhe disse que a fez arredia
fonte fazia visita frequente, ao seu cruel e obstinado intento;
pois tinha não distante a sua cela, e para a vida futura quis carreira
não chegasse e evitasse o acto dela. que ao serviço de Deus a desse inteira.

88 O venerável ser, que alta bondade 90 Não que de seu senhor queira deixar
tinha aliada a natural prudência, o grande amor e a relíquia mortal;
e que era dotado de caridade, deseja onde for consigo o levar,
rico de bons exemplos e eloquência, e noite e dia tê-lo no local.
a donzela sofredora persuade, Assim, com o eremita a ajudar,
com razões convincentes, de paciência; que para a idade era forte e jovial,
e diante lhe coloca, como um espelho, sobre o triste corcel Zerbin pousaram,
mulheres do Testamento Novo e Velho. e muitos dias pelas selvas andaram.
CANTO XXIV 397

91 Não quis o cauto velho ter consigo, 93 Vários dias grande espaço de terra
sozinho e sozinha, a jovem tão bela, percorreram, por lugares mais incultos;
onde, escondida em selvagem abrigo, pois, estando . em todo o lado tudo em guerra,
tinha não longe a solitária cela; queriam quanto possível ir ocultos.
dizia para si: levo, e corro perigo, Até que um cavaleiro a via cerra,
a palha mais o fogo para acendê-la. que os ultrajou com pesados insultos;
Não se fia na idade ou na prudência, deste vos falarei numa outra área;
para se submeter a essa experiência. pois agora volto ao rei da Tartária.

92 Para levá-la à Provença fez carreiro, 94 Depois de ter tido fim a batalha
não longe de Marselha, a um castelo13, como já disse, o jovem se acolheu
onde de santas mulheres um mosteiro à água límpida que frescor espalha;
mui rico havia e de edifício belo; ao corcel sela e freio recolheu,
e, para levar o morto cavaleiro, o qual as tenrinhas ervas retalha,
num caixão o puseram com desvelo, pelo prado pascendo-se a prazer seu;
que a caminho, numa aldeia se fez, pouco depois, porém, ao longe viu
longo e espaçoso, fechado com pez. um cavaleiro a descer o pendia.
398 ORLANDO FURIOSO

95 Conheceu-o, assim que alçou a fronte, 96 Como um falcão que pato ou galinhola,
Doralice, e contou a Mandricardo, perdiz, pombo, ou pássaro semelhante
dizendo: - Eis o soberbo Rodomonte, ao longe vê, que ao seu encontro evola,
se ao longe não é meu olhar bastardo. ergue a cabeça animado e expectante;
Para contigo batalhar desce o monte: tal Mandricardo está, certo que assola
muito útil te será seres galhardo. Rodomonte, e faz massacre abundante;
Ficar sem mim, por grande ofensa tem, alegre e seguro o cavalo monta,
que era sua noiva; a vingar-se vem. pés nos estribos, e brida na mão pronta.
CANTO XXIV 399

97 Perto já estando, puderam escutar 103 Mas, como um arco forte e eficaz,
palavras que trocavam altaneiras; de bom, pesado aço, e bem temperado,
com as mãos e as cabeças a ameaçar, quanto mais se estica e puxa para trás,
o rei de Argel começou em berreiras, · mais por guinchos e alavancas esforçado,
gritando ao outro que ia lamentar com mais impulso inversa via faz
que, por temeridades prazenteiras, ao ser solto que quando é retesado:
não se coibisse de provocá-lo, assim o africano veloz regressa,
e que ia vingar-se com grande abalo. e ao imigo duplo golpe arremessa.
98 Respondeu-lhe Mandricardo: - Em vão tenta 1 04 Onde houve Rodomonte o golpe aposto,
quem me quer meter medo ameaçar-me; o filho de Agricane ele golpeou.
assim mulheres e garotos espaventa, Com isso não pôde ferir-lhe o rosto,
ou alguém que, por não saber, não se arme; que de armas troianas defesa achou;
não eu, que a batalha mais me acalenta mas ficou de tal modo descomposto
que o repouso; estou pronto a digladiar-me que se hoje era, ou ontem, se mareou.
montado, a pé, com armas, desarmado, O irado Rodomonte desembesta,
quer seja na campina ou no cercado. - para o outro avança e aponta-lhe à testa.
99 Entregam-se à ofensa, ao grito, à ira, 105 O cavalo do tártaro, que aborre
ao puxar da espada, ao ferro a tinir; a espada a assobiar que cai do alto,
como o vento que de início suspira, o dono, para seu próprio mal, socorre,
logo freixo e carvalho faz cair, pois para lhe fugir recua de um salto:
depois poeira escura pelo céu gira, pelo meio da cabeça a espada o percorre,
árvores arranca e faz casas ruir, que ao seu senhor, não a ele, dava assalto.
no mar mergulha, e tempestade alesta Não tinha o infeliz elmo de Tróia,
que o grege esparso mata na floresta. como o dono: mortalmente, destrói-a 1 5 •
100 Os dois pagãos, a quem ninguém aterra 1 06 Cai ele, e Mandricardo em pé se aguenta,
o coração audaz e a força ingente, já recomposto, e Durindana gira.
assaltam-se com golpes e uma guerra Ver morto o corcel, dentro o aferventa;
que bem condiz com tão feroz semente. e por fora arde em grande incêndio de ira.
Com amplo, horrendo som estremece a terra, Contra ele o outro o corcel aventa;
quando as espadas cruzam conjuntamente; mas Mandricardo não mais se retira
lançam as armas faíscas pelos ares, que da onda um escolho: e verificou-se
ou lâmpadas acesas aos milhares. que o corcel caiu, mas ele aguentou-se.
101 Sem ter repouso ou fôlego renovado, 1 07 Faltar-lhe o cavalo o africano sente;
entre os dois reis se prolonga a batalha, os estribos deixa e no arção faz ponta,
tentando ora deste ora daquele lado caindo firme em pé, muito agilmente:
abrir as chapas, penetrar na malha. de igual para igual, um outro defronta.
Um não perde, nem outro ganha prado 1 4 ; Torna-se a pugna mais que nunca ardente,
como cercados por fosso ou muralha, e o ódio e a ira e a soberba monta;
ou cara fosse uma unha de chão, e avante iria, mas eis que ali pára,
num círculo angusto e apertado estão. à pressa, um mensageiro que os separa.
102 Entre mil, um golpe o tártaro solta 1 08 Era um mensageiro do povo mouro,
com duas mãos na fronte ao rei de Argel, dos muitos que por França eram mandados,
que fez a este ver girar-lhe em volta aos próprios estandartes chamando em coro
luzes e estrelas em grande tropel. os capitães e os cavaleiros privados;
Como perdida a força, em giravolta, pois pelo imperador dos lírios de ouro 1 6
Foi-lhe a cabeça à grupa do corcel: já estavam seus quartéis assediados;
perde equilíbrio e, diante daquela e, se o socorro não lhes chegar lesto,
que tanto ama, quase cai da sela. são exterminados: é manifesto.
CANTO XXIV 401

111 Entre os guerreiros ela se vai pôr,


e a eles diz: - Fazei o que vos mando,
pois bem sei que me dedicais amor:
a espada guardai para outro desmando,
e de imediato acorrei em favor
do campo sarraceno, agora, quando
está sujeito a constrição tão austera,
e auxílio urgente ou ruína espera. -
1 12 Então o arauto descreve o sarilho
dos Sarracenos; tudo disse em pleno;
e fez entrega de cartas do filho
do rei Troiano ao filho de Ulieno 1 7 •
Por fim, decisão toma o andarilho
que os dois guerreiros, esquecido o veneno,
tréguas juntos façam, até ao dia
que acabe o cerco que o Mouro assedia;
1 13 e sem mais demoras, quando livrado
tiverem do assédio a sua gente,
findará o armistício acordado,
reinando a guerra e inimizade ardente,
até que pelas armas seja aclarado
quem a dama terá merecidamente.
Ela, em cujas mãos cada um jurou,
do juramento garante ficou.
1 09 Conhece os guerreiros o mensageiro, 1 14 Ali estava a Discórdia impaciente,
pelas suas insígnias e sobreveste, inimiga de toda a trégua e paz;
pelo girar da espada e o golpe certeiro: e a Soberba também, que não consente
nenhuma outra mão há que assim asseste. se cumpra o acordo que ali se faz.
Pelo meio dos dois porém não faz carreiro: Mas mais que elas pode Amor, lá presente,
segurança não espera se lhe preste cujo valor é muito mais tenaz;
por ser correio do rei; nem o acalenta e para trás fez ficar, com suas setas,
saber que embaixador tem pena isenta. a Discórdia e a Soberba, discretas.
1 10 Vai ter com Doralice, e a ela narra 115 Concluíram-se as tréguas com decoro,
que Agramante, Marsilio e Stordilano, como bem quis quem ali mais podia.
com poucos, em pouco segura barra, Embora cavalo tivesse o mouro,
do povo cristão têm cerco e dano. morto o do tártaro no chão jazia;
Descrito o caso, com rogos a amarra chegou ali a tempo Brigliadoro,
para que aos guerreiros tudo torne plano, que junto ao rio de ervinhas se pascia.
e os ponha de acordo, e pela salvação Mas vejo que este canto já está pronto;
do seu povo os conduza à guarnição. e aqui faço, com vossa mercê, ponto.
402 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1
Odorico, o Biscainho: cf. XIII: 1 1 - 1 2. 9 Amorosos [ .. ] mirtos: Vergílio coloca as almas dos
enamorados no bosque de mirtos (cf. Eneida, VI:440-4) .
2
Onde o maior se abraça: ond� se abraçam as pessoas
10
notáveis (nos joelhos) . Excelência [ . .] avança: Mandricardo é superior a
Zerbino nas lides guerreiras, devido à excelência das
3 Corebo [ . .] outro: cf. XIIl:22 e 24. armas (que foram de Heitor) e à força bruta.
4 De [ .. ] activo: cf. XXIII:94:7-8. 11
Senador romano: Orlando (cf. IX:88).
5 Autor [ . .] escreveu: autor imaginário. 12 Menor malse eleja: a morte será menor mal que a desonra.

6 Zerbino [ .. ] quadrilha: às suas tropas, das quais se 13


Castelo: burgo.
afastara para seguir o homem que feriu Medoro, em deso­
bediência às suas ordens (cf. XIX: 13-14 e XX: 1 1 7- 1 1 8). 14 Prado: terreno.

7
Não aquele [ ..] A/monte: o elmo de que Ferraú se 1 5 Destrói-a: destrói a cabeça do cavalo.
apoderou (cf. XII:59-60) .
16
Imperador [ . .] ouro: Carlos Magno.
8 Fíordíligí: cf. VIIl:88 ss.
17
Filho [ .. ] Ulíeno: o filho de Troiano é Agramante, e
o de Ulieno é Rodomonte.
-ê$'i'z­
CANTO XXV

Que conflito, para um jovem guerreiro,


sede de glória e ímpeto de amor!
Nem qual mais vale é de saber certeiro;
ora um ora o outro é superior.
Tanto num como noutro cavaleiro
peso tiveram dever e honor;
foi a lide amorosa interrompida,
para ser a sua hoste socorrida.
2 Mas mais o teve Amor; pois, se não era
ter dado à donzela inspiração tal,
não se desfazia a batalha fera,
sem que um tivesse o louro triunfal;
e em vão Agramante a esperar estivera
a grande ajuda de cada rival.
Portanto, Amor nem sempre desconvém:
se faz mal por vezes, outras faz bem.
404 ORLANDO FURIOSO

3 Um e outro cavaleiro pagão, 9 Ruggier, mal lhe pousou o olhar na cara,


que diferiu todos os seus litígios, que para o chão tombada e chorosa estava,
leva ao seu exército a salvação, de ver Bradamante ilusão tem clara,
acompanhando a dama os seus prodígios, tanto a ela o jovem se assemelhava.
a Paris; e com eles vai o anão Cada vez mais a ela ele o compara,
que do tártaro seguiu os vestígios, quanto mais o rosto e a figura olhava;
até que ali pusera fronte a fronte e para si disse: - Ou esta é Bradamante
com ele o enciumado Rodomonte. ou não sou eu Ruggiero neste instante.
4 Num prado a que chegam estão, em recreio, 10 Talvez tenha por ardor decidido
cavaleiros na margem de um ribeiro, do condenado fazer a defesa;
sem armas dois, dois de elmo tendo freio, e, por lhe ter sido mal sucedido,
com uma dama de rosto fagueiro. terá sido, como estou vendo, presa.
Quem são eles mais à frente alardeio, Por que se apressou, sem ter permitido
pois de Ruggier quero falar primeiro; que com ela eu estivesse nesta empresa?
do bom Ruggier, de quem vos foi contado Agradeço a Deus que aqui me fez vir,
que o escudo para o poço tinha atirado. ainda com tempo para lhe acudir. -
5 Vê vir muito apressado um andarilho, 11 Sem mais demora a espada manuseia
do poço uma milha não estava andada, (quebrara no outro castelo a lança);
desses que manda de Troiano o filho sobre o vulgo inerme o corcel esporeia,
para que a irem dar-lhe ajuda persuada; colhe-os pelo peito, pelos flancos, pela pança.
dele ouve dizer que em grande empecilho Faz girar a espada, e a uns golpeia
Carlos tem a moura gente apertada; fronte, goela, face, e faz matança.
que, se não for depressa socorrida, Foge o povo a gritar; e a grande frota
ali vai deixar a honra ou a vida. mutila ou deixa de cabeça rota.
6 Vários pensamentos hesitação 12 Qual bando de aves que sobrevoasse
dão a Ruggier, por todos assaltado; tranquilo o charco em busca de comida,
nem tempo tem para tomar decisão, se, nisto, do céu um falcão rapace
nem o lugar para tal é adequado. desce, e um abate ou leva na subida,
Ido o correio, ao freio deu torção, espalha-se e cada um à fuga dá-se,
seguindo o trilho pela dama indicado 1 ; pensando apenas em salvar a vida;
a qual ele constantemente apressava, assim podíeis ver fazer aqueles,
e tempo para demoras não lhe dava. logo que Ruggiero caiu sobre eles.
7 Seguindo aquele caminho, enfim chegou 13 Quatro ou seis são das cabeças desfeitos
(já declinava o Sol) a uma terra por Ruggier, porque a fugir complacentes;
que o rei Marsilio em França conquistou, outros tantos cindiu até aos peitos,
furtada à mão de Carlos nesta guerra. até aos olhos mais e até aos dentes.
Nem na ponte nem na porta parou, Admito que elmos não tinham perfeitos,
pois ninguém lhe nega o passo ou lho cerra, só toucas de bom ferro e bem luzentes;
bem que em torno do fosso e vedação mas se bons elmos tivesse encontrado,
homens e armas visse em profusão. tal os teria, ou quase assim, cortado.
Porque era conhecida dessa gente 14 A força de Ruggier não era qual
a donzela que tinha em companhia, se encontra hoje em cavaleiro moderno,
deixaram que ele entrasse livremente, nem em urso, leão ou animal
sem tão-pouco perguntarem onde ia. inda mais fero, dos nossos ou externo.
Chegou à praça, e de fogo luzente Talvez o Terremoto fosse igual,
e gente feroz cheia logo a via; ou Grande Diabo; não o do Inferno,
e viu, no centro, o rosto angustiado mas do meu senhor2, que vai com seu fogo
do jovem que à morte foi condenado. por céu, terra e mar dando desafogo.
CANTO XXV 405

15 De cada golpe seu nunca caía 1s Ele, de tão ofendido, logo tenta
menos de um homem ou um par na arena; exercer vingança naquela gente;
até quatro ou cinco matar soía, famoso por ter força se apresenta:
e assim se chegou em breve à centena. reputado é corajoso e valente.
Cortava o aço a espada que trazia, Nas douradas rodas já se afugenta
como se manteiga ele fosse ou pena. o Sol dentro da onda, a ocidente,
Para dar morte a Orlando, Falerina quando Ruggiero vitorioso e o belo
fez no jardim de Orgagna a arma ferina3• jovem deixam as portas do castelo.
16 De havê-la feito, bem se arrependeu, 19 Quando o rapaz, tendo segura a vida,
pois ela a seu jardim deu fim funesto. com Ruggier se viu fora do portão,
Vejam agora quanto estrago deu, fez-lhe homenagem mui reconhecida,
manejada por guerreiro tão lesto! com gentis modos e com gratidão,
Se alguma vez Ruggier se enfureceu, por, sem o conhecer, dar-lhe guarida
se jamais foi seu valor manifesto, com risco de morrer na ocasião;
aqui o foi, aqui o deu a ver, e pediu-lhe que o nome lhe dissesse,
pois julgava sua dama defender. para saber a quem tal favor devesse.
17 Qual faz a lebre quando o cão a caça, 20 «Vejo (diz-se Ruggier) a face bela,
tomava a turba contra ele reparo. a linda figura, o gentil semblante;
Muitos houveram de morte desgraça, mas esta voz que eu ouço não é dela:
outros na fuga buscaram amparo. mais doce é a da minha Bradamance;
Entretanto a dama ao jovem deslaça nem é forma de agradecer aquela
as mãos, que tinha presas por um aro; que deva usar com seu fiel amante.
e, como melhor pôde, logo o armou: Se Bradamante é, como, num momento,
uma espada e um escudo lhe arranjou. lhe caiu meu nome no esquecimento?»
406 ORLANDO FURIOSO

21 Para o certo saber, cuidadosamente, 2s E, se não vos aborrece escutar-me,


Ruggier lhe disse: - Vi-vos noutro lado; uma coisa de espantar contaria,
mas já muito pensei, e infelizmente que me aconteceu por assemelhar-me:
onde foi que vos vi não estou lembrado. martírio ao fim, o que fora alegria. -
Dizei-mo vós, se vos vier à mente, Ruggiero, para quem mais gracioso carme
e o nome, também, que me seja dado; ou mais doce história não haveria
para saber a quem minha protecção do que alguma que referência fizesse
à vida, do fogo, deu salvação. - à sua dama, pediu que a dissesse.
22 - Haver-me visto, possível seria 26 - Sucedeu há pouco por estes lados;
(respondeu), mas não sei onde nem quando; minha irmã por estes bosques seguia;
também pelo mundo ando dia a dia, foi ferida por sarracenos ousados
sempre aventuras raras procurando. que sem elmo a encontraram pela via;
Uma irmã minha também ser podia, foram-lhe então os cabelos cortados,
que veste armadura e vai espada usando; pois só assim a ferida sararia
é minha gémea, e tanto se parece que tinha na cabeça, mui molesta;
que até a família nos não conhece. e com tal cabelo errou pela floresta.
23 Não sois primeiro, segundo, nem quarto, 21 Errando chegou a uma umbrosa fonte;
entre os que erraram em tal confusão: e, porque aflita e cansada encontrou-se,
nem pai, nem irmãos, nem quem de um só parto desceu do corcel, desarmou a fronte,
nos deu à luz sabe dar distinção. e nas tenras ervas adormentou-se.
Certo é que este cabelo curto e farto não creio que outra fábula se conte
que eu uso, como usa todo o varão, que mais bela do que esta história fosse.
e o dela em longa trança que a coroava, Fiordispina4 de Espanha ali chegou,
em grande medida nos diferenciava; que para ir caçar pelo bosque passou.
24 mas desde que ela foi um dia ferida 2s Encontrando a minha irmã lá deitada,
na cabeça (mui longo era contar), coberta de armas, o rosto excepção,
por um servo de Jesus socorrida, e que em vez de uma roca usava espada5,
que os cabelos teve de lhe cortar, pensou de um cavaleiro ter visão.
a diferença entre nós foi abolida; Pela face e o ar viril tão encantada,
só sexo e nome pode diferençar. sente conquistado o seu coração;
Ricciardetto sou eu, Bradamante ela, convida-a para a caça e, sob fresca fronde,
e Rinaldo é irmão de mim e dela. longe dos outros com ela se esconde.
29 Tendo-a consigo em solitário choco,
onde não teme que alguém apareça,
com actos e palavras, pouco a pouco,
descobre o amor que o coração lhe empeça.
De olhos ardentes e um suspirar louco,
abre-lhe a alma de desejo possessa.
Ora pálida ora ruborizada,
um beijo por fim lhe rouba apressada.
30 A minha irmã percebera a verdade:
que ela com outro a tinha confundido;
não podia contentar-lhe a vontade,
e num sarilho se tinha envolvido.
«Mais vale (pensava) dar contrariedade
ao criado engano, tão descabido,
mostrando ser feminina e gentil,
que deixar-me tomar por homem vil».
CANTO XXV 407

31 Razão tinha; era vilania expressa, 34 Quem houvesse seu lamento e seu pranto
própria de homem empedernido e zuco, ouvido então, choraria também.
mulher tão bela estar por ele possessa, «Que tormentos (dizia) houve tanto
cheia de doce e de nectáreo suco, cruéis que os meus mais não sejam porém?
e ele, enquanto conversando com essa, De qualquer outro amor, maldito ou santo,
manter baixas as asas como o cuco. podia esperar o prémio que convém,
De modo certo conversa fez ela, e a rosa dos espinhos bem separar;
vindo a dizer-lhe que era uma donzela; só meu desejo não hei-de acalmar!
32 que glória, como Hipólita e Camila6, 35 Se querias, ó Amor, dar-me tormento,
busca nas armas; em África dada porque invejavas o meu feliz estado,
foi à luz, perto do mar, em Arzila, noutro martírio teu contentamento
a escudo e a lança de pequena usada. achavas, noutros amantes usado.
Contudo, nem uma centelha vacila Nunca entre os homens, nunca entre o armento,
da fogueira da dama enamorada. achei fêmea que fêmea tenha amado:
Para a grande chaga foi remédio tardo: não acha a mulher outra mulher bela,
tão fundo Amor já mergulhara o dardo. nem cerva, cerva; ou gazela, gazela.
33 Isso não torna menos belo o rosto 36 Em terra, no ar, no mar, sou só eu
ou o olhar, menos belos os gestos; que tal castigo sofro à tua mão;
não faz o coração voltar, que posto e assim fizeste para que o erro meu
já estava nos queridos olhos honestos. seja em teu reino única aberração.
Ao vê-la assim vestida, sente o gosto A mulher do rei Nino7 pretendeu
de seus desejos satisfazer lestos; amar o filho, desejo malsão,
mas depois, quando que ela é mulher pensa, e Mirra seu pai, e a cretense o touro8 ;
suspira e geme e mostra pena imensa. mas, mais que esses, o meu é desaforo.
408 ORLANDO FURIOSO

37 Fizeram elas nos homens empenho, 43 Como o enfermo febril e sedento,


e o fim desejado obtiveram todo: que com esse desejo se adormenta,
Pasífae entrou na vaca de lenho, no inquieto e leve adormecimento,
outras com outros meios e de outro modo. toda a água que viu se lhe apresenta;
Mas se voasse a mim com seu engenho esta, ao desejo dar contentamento,
Dédalo9, não desfaria o engodo é a imagem que o sono representa.
feito pelo mestre que é tão diligente, Vai acordando e vai estendendo a mão,
Natura, entre todos o mais potente». e vai percebendo que o sonho é vão.
38 Assim se queixa e se consome e anseia 44 De noite, orações e promessas fez
a bela dama, e nunca mais se amansa. a Maomé e a muito deus variado:
Bate no rosto, a crina despenteia, com ...p�rente ou real solidez,
e contra si mesma quer ter vingança. fosse aquele sexo para melhor mudado!
Minha irmã por piedade se pranteia, Mas nem um rogo se lhe satisfez,
com tanta dor sentindo-se em aliança. e dela o Céu, talvez, tinha troçado.
Tenta apagar de tal desejo o efeito, Passa a noite; e o louro Febo do fundo
mas não consegue e fala sem proveito. do mar emerge, para dar luz ao mundo.
39 Ela que ajuda quer, e não conforto, 45 Nascido o dia, saíram do leito,
não há nada que a acalme e a console. e de Fiordispina aumenta o arquejo;
Já se mostrava o dia quase morto, Bradamante para partir tomou jeito:
ao ocidente já chegando o Sol; de deixar tal impasse tem desejo.
hora oportuna para voltar ao porto, Tinha a dama já um ginete eleito,
para quem à noite no bosque não bole; que oferecer-lhe à partida tem ensejo,
a dama então convidou Bradamante a ouro adornado, e uma sobreveste
para a sua terra, ali pouco distante. por si bordada, que afeição ateste.
4o Não lho soube negar a minha irmã, 46 Fiordispina um bocado a encaminha,
e assim juntas chegaram ao lugar depois para trás a chorar toma a via.
onde a turba celerada e malsã A minha irmã tão depressa caminha
me iria, se não chegasses, queimar. que a Montalvão chegou no mesmo dia.
Fiordispina mandou, com muito afã, Nós, seus irmãos, e nossa mãe mesquinha,
minha irmã com cortesia tratar; fizemos festa com grande alegria;
e, vestida com feminil mister, sem dela saber, tivéramos forte
fez ver a todos que ela era mulher. preocupação, temendo a sua morte.
41 Porque, reconhecendo que nenhum 47 Vimos (tirado o elmo) a curta crina
ganho tirava do viril aspecto, que em redor a cabeça guarnecia;
não julgou conveniente que de algum também aquela veste peregrina
reparo, por tal, viesse a ser objecto; nos fez admirar, que vestida havia.
fê-lo também, pois do mal tinha um E toda aquela história discrimina
hábito viril sido o arquitecto; do início ao fim, tal como eu vos dizia:
agora, vendo-a com outro indumento, como a feriram no bosque, tendo pena
vai tentar tirá-la do pensamento. de, para sarar, cortar sua melena;
42 Embora à noite o mesmo leito as estreme, 48 e que à beira de água se adormentou,
muito diferente houveram seu repouso; e a bela caçadora ali surgiu,
pois uma dorme, outra chora e geme a quem sua falsa parecença agradou;
por sentir seu desejo mais fogoso. e para longe dos outros a atraiu.
Se o sono às vezes os olhos lhe preme, O lamento da outra não calou,
é um sono breve, todo imaginoso: que de piedade nossas almas feriu;
crê que o Céu a seu desejo deu nexo, que a hospedou, e o mais e menos belo
Bradamante mudando em melhor sexo. que fez, até regressar ao castelo.
CANTO XXV 409

49 Fiordispina conhecia bem eu, 51 Faço-o? Não faço? Tomo a decisão


que em Saragoça a vira já e em França, de dever fazer o que dá agrado.
e muito mereceram apreço meu A ninguém conto tal cogitação,
seus belos olhos e sua linda trança; nem quero que conselho me seja dado.
meu desejo nela não se prendeu, À noite vou aonde as armas estão
pois vã fantasia é amar sem esperança. que tinha a minha irmã antes tirado:
Mas, agora que a ocasião se oferece, levo-as, levo o corcel, e vou-me embora,
logo a antiga chama reaparece. nem fico à espera de romper a aurora.
50 Dessa esperança tece amor os nós todos 52 À noite me vou (Amor nos induz)
(pois doutra forma urdi-los não podia) ao encontro da bela Fiordispina;
em que me enfeia; e mostra-me os modos cheguei quando ainda não tinha a luz
de poder obter da dama o que eu queria. do Sol desaparecido na marina.
Fáceis de armar seriam os engodos; Feliz aquele que a correr se conduz
como outros antes enganado havia a dar novidade à nobre menina,
a parecença entre mim e Bradamante, esperando dela, pela boa notícia,
talvez para iludi-la fosse o bastante. obter as graças e oferta propícia.
410 ORLANDO FURIOSO

53 Todos no engano facilmente entalo, 59 Direi primeiro a causa de ir-me embora,


tal qual contigo, que sou Bradamante; e a do meu regresso ouvireis também.
para mais, trazia as vestes e o cavalo Se o vosso ardor arrefecer, senhora,
com que na véspera dali foi andante. pudera, ficando de vós refém,
Vem Fiordispina, com pouco intervalo, sem vós não quereria estar uma hora:
que com festas me recebe radiante, só morrer queria após servir-vos bem;
e com tão feliz rosto e tão jucundo quanto era a vós molesto o meu estar vi;
que mais alegria não há no mundo. por não poder mais dar, ir-me escolhi.
54 Ao meu pescoço os seus braços projecta, 60 Fortuna me desviou do caminho,
a si me aperta e beija-me na boca. no meio de um bosque de ramagem fita,
Imagina como de Amor a seta, onde ouço um grito ressoar vizinho,
com tal, meu coração em cheio toca. como dama que ajuda solicita.
Toma-me a mão, para o quarto me acarreta; Acorro e, junto a um límpido laguinho,
e ela sozinha (mais ninguém convoca) vejo um fauno que tem no anzol restrita,
do elmo às esporas as armas me tira; no meio da água, uma donzela nua,
não deixa que mais ninguém interfira. que se preparava para comer crua.
55 Mandou trouxessem uma sua veste 61 Para lá corri e, de espada na mão
de adorno rico, e com a mão lhe pega: (não podia dar ajuda diferente),
como se eu fosse uma mulher me veste, tirei a vida ao pescador vilão:
e em rede de ouro a crina me aconchega. saltou ela para a água, de repente.
Grande modéstia meu olhar reveste; «Não me prestaste (disse) ajuda em vão:
que mulher sou, nenhum meu gesto o nega. serás por tal premiado, e ricamente,
A voz, que me podia denunciar, desde que o saibas pedir, pois sou ninfa,
bem usei, e ninguém fez suspeitar. e vivo dentro desta clara linfa;
56 Fomos para a sala onde estava reunido
grande grupo: há cavaleiro e há dama;
com honor fui como ela recebido,
qual rainha fosse ou nobre madama.
De alguns me ri ali, mui divertido,
que não sabendo aquilo que se açama
sob a saia, galhardo e agressivo,
me seduziam com olhar lascivo.
57 Quando a noite se foi adiantando,
parte da mesa fora levantada;
de iguarias antes abarrotando,
segundo a estação, esteve apetrechada;
não espera a dama que eu vá demandando
o que razão dera à minha chegada:
convida-me, por sua cortesia,
que passe a noite em sua companhia.
58 Já damas e donzelas dispensadas,
pagens e camareiros que havia em torno,
nós no leito, das roupas despojadas,
com as tochas que de luz davam contorno,
disse: «Não vos espante minhas passadas
tão depressa a vós fazerem retorno;
estaríeis vós talvez imaginando
não me rever sabe Deus até quando.
CANTO XXV 411

62 meu poder maravilhas empreende, 6s Nem rumor de tambores ou som de trombas


sujeita os elementos e a natura. deram início ao amoroso assalto;
Pede, que até onde o poder se estende, apenas beijos, que imitavam pombas,
ao que pedires poderei dar feitura. mandavam ou seguir ou fazer alto.
Do céu a Lua ao meu cantar descende, Setas, fundas não usámos, nem bombas.
gela o fogo, e a aragem faz-se dura10 ; Sem escada sobre a fortaleza salto,
e tenho às vezes, só com palavreado, planto o estandarte de uma só estocada,
movimentado a Terra, e o Sol parado». e deixo a inimiga subjugada.
63 Não lhe peço para à sua oferta unir 69 Se aquele leito, na noite antes, prantos
tesouros, dominar povos e a Terra, ouviu, suspiros e lamentos graves,
nem mais virtude ou vigor adquirir, não esteve naquela sem outros tantos
nem vencer com glória nenhuma guerra; risos, festas, e brincadeiras suaves.
só poder vosso desejo assistir, Com menos nós os flexíveis acantos
podendo aceder a onde ele se encerra; às colunas se abraçam, e às traves,
nem mais um lhe peço do que outro efeito, que aqueles com que nós unimos, estreitos,
mas toda ao seu juízo me sujeito. colos, flancos, braços, pernas e peitos.
64 Mal a minha petição foi exposta, 70 A coisa estava secreta entre os dois,
na água a vi de novo mergulhada; e por alguns meses nos comprazeu;
nem deu ao meu pedido outra resposta, porém, alguém se apercebeu depois,
do que aspergir-me com a água encantada: e o rei para meu mal tudo conheceu.
a qual, assim que ao rosto se me encosta, Tu, que do fogo me salvaste, pois
eu (não sei como) sou toda mudada. na praça a fogueira para mim ardeu,
Eu vejo, eu sinto, e custo a acreditar: pudeste ali compreender o resto;
de mulher, para homem estou a mudar. mas Deus sabe como estou triste e mesto. -
65 E se não fora que aqui sem demora 71 Ricciardetto a Ruggier assim narrava,
podeis comprovar, falso ia parecer-vos; e a nocturna via era menos grave,
tal como no outro sexo, no de agora a qual para um monte se alcantilava,
meu desejo está pronto a obedecer-vos. precipitoso, cavernoso, insuave.
Ordenai pois, e serão nesta hora Por entre pedras, íngreme se alçava,
e sempre meus instintos vossos servos». abrindo-se com fatigosa chave.
Assim lhe disse, e fiz de modo que essa No cimo um castelo, dito Agrismonte;
achasse, com a mão, a verdade expressa. guardava-o Aldigier de Claramonte.
66 Como sucede se não ter se teme n Era ele de Buovo12 filho bastardo,
coisa pela qual o pensamento anseia, irmão de Malagigi e de Viviano;
quem dela for privado primeiro geme, quem legítimo o disse de Gherardo,
depois mina-se, mói-se e desnorteia; dá testemunho atrevido e leviano.
se a vem a ter depois, tanto lhe preme Fosse lá o que fosse, era galhardo,
ter tanto tempo semeado em areia11 , prudente, liberal, cortês e humano;
e ao seu desespero criou tal uso, e guardar fazia o fraterno muro
que em si próprio não crê, e está confuso; de noite e de dia, com grande apuro.
67 assim a dama, quando toca e vê 73 O cavaleiro acolheu cortesmente
aquilo que tanto tempo a fez languir, Ricciardetto, seu primo, com preceito,
no tacto, nos olhos, em si não crê, que amava como irmão; e igualmente
e desconfia que esteja a dormir; bem recebeu Ruggier, por seu respeito 13 •
boa prova precisou, para fazer fé Mas não o abraçou tão alegremente
que sentia o que parecia sentir. como era usado, e sim com triste aspeito,
«Faz, Deus (dizia) se sonho isto for, pois nesse dia notícia tivera
para sempre eu durma um sono sonhador». que rosto e coração lhe entristecera.
CANTO XXV 413

74 A seu primo, depois de o ter saudado, 75 Desde que Ferraú os apanhou,


disse: - Irmão, recebi recado adverso. dá-lhes ela em escuro lugar flagelo,
Fui por correio de confiança informado: até que o vil contrato combinou
Bertolagi de Baiona, o perverso, com esse de quem o conluio revelo.
com Lanfusa cruel 14 está combinado; Mandar-lhos amanhã já acertou,
a ela ele oferece espólio diverso, num sítio entre Baiona e um seu castelo.
e ela nossos irmãos dá ao tirano, Vem ele em pessoa pagar a fiança
o teu Malagigi e o teu Viviano. que compra o melhor sangue que há em França.
414 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXV 415

76 Nosso Rinaldo avisei mesmo agora; 82 Poderia noutra ocasião ser crido
mandei ir a galope o mensageiro; que pela religião fosse instigado;
mas creio que só possa chegar a hora mas ora, que tem de ser socorrido
que tarda seja, que é longo o carreiro. Agramante, que se encontra sitiado,
Não tenho gente para batalhar fora 15: mais fácil crerem que tenha temido,
o ânimo é bom, mas o vigor zoupeiro. e a cobardia haja o acto ditado,
Se aquele traidor os tem, fá-los morrer; que ele outra fé tenha querido escolher;
não sei que faça, nem sei que dizer. - tal de Ruggiero o peito agita e fere.
77 A notícia a Ricciardetto despraz, 83 Também de partir se desassossega
e assim sendo desagrada a Ruggiero; sem despedir-se da sua divina18 •
vendo ele um e outro nada loquaz, Ora um pensamento ora outro lhe chega,
e que sua decisão era zero, que o coração diversamente inclina.
disse-lhes com grande ardor: - Dai-vos paz; Gora lhe saíra a certeza cega
ter a meu cuidado esta empresa quero; de achá-la no castelo de Fiordispina,
minha espada de mil terá bondade onde, eu já disse, tinham o projecto
para a vossos irmãos dar a liberdade. de irem ambos socorrer Ricciardetto.
78 Não quero mais gente, nem outra mão; 84 Lembra-se então que fizera promessa
creio sozinho bastar para tal facto; de em Vallombrosa com ela encontrar-se.
quero um só que me dê orientação Pensa lá tenha ido ela, e por nessa
ao lugar onde se cumpre este pacto. o não encontrar, depois admirar-se.
Juro que aqui os gritos ouvirão Carta ou mensageiro pudesse a essa
de quem estiver presente ao vil contrato. - enviar, para não ter de lamentar-se
Assim disse, e não era coisa nova de, além de não lhe ter obedecido,
para um deles, que disso vira prova. ter inda, sem nada dizer, partido.
79 O outro não escutava, senão quanto 85 Depois que muitos pensamentos teve,
se ouve a quem diz muito, com pouco jeito ; 16
pensa escrever-lhe a contar a jornada;
mas Ricciardetto disse-lhe entretanto embora não sabendo como deve
como ele do fogo o salvara a preceito; a carta enviar para ser bem receptada,
estava certo que mais, ao menos tanto, quer escrevê-la; pois quem sabe se em breve
do que apregoava se veria o efeito. fiel portador encontra na estrada.
Deu-lhe ouvidos então, de modo expresso, Sem mais demoras, do leito se alheia;
respeitou-o e deu-lhe grande apreço. pede papel, tinta, pena e candeia.
80 Depois à mesa, onde a Cópia entornou 86 Os servos, com presteza e discrição,
seu corno , honras de seu senhor lhe deu.
17
a Ruggiero trazem o que comanda.
Sem mais ajuda, ali se combinou, Começa ele a escrever, e a saudação
que os irmãos salvar era caso seu. (como é devido) no princípio manda;
Chegou entretanto, e os olhos cerrou depois narra-lhe a recomendação
o ocioso Sono ao senhor e ao plebeu, vinda de seu rei, que auxílio demanda;
excepto a Ruggier; mantém-no desperto e que, se sua partida não for lesta,
um pensamento que o molesta, certo. morre ou em poder do inimigo resta.
81 O assédio de Agramante, que esse dia 87 Diz depois que estando ele tão desvalido,
pelo correio soube, disso é causador. e que a si por socorro se dirigia,
Percebe que a mais pequena estadia calculasse o opróbrio desmedido
que de ajudá-lo o impeça é desonor. se a negar-lhe esse auxílio se atrevia;
Quanta infâmia e descrédito seria e que ele, devendo dela ser marido,
com os inimigos estar do seu senhor! proteger-se de qualquer mancha queria;
Por vilania e por grande delito, pois, tão honesta sendo, não convinha
baptizando-se ora, será proscrito! associar a ela coisa mesquinha.
416 ORLANDO FURIOSO

88 E se já antes tinha um nome claro, 93 Fechada a carta, foi também cerrado


com boas obras, tentado ganhar, o olhar; e no leito encontrou repouso;
e, tendo-o ganho e tido como caro, o Sono espargiu-lhe o corpo cansado
o procurara sempre conservar, com um ramo, do rio Lete19 orvalhoso;
do seu bom nome se tornara avaro, dormiu até que um véu branco e rosado
pois com ela tinha de o partilhar; de flores se espalhou pelo campo ditoso
sua mulher e ele deviam dois do alegre Oriente, de onde se expandia,
corpos ser numa só alma depois. do áureo lar saindo o novo dia.
89 E como por boca já tinha feito, 94 E quando, para saudar a nova luz
também lho dizia por carta agora: as aves pousam nos ramos louçãos,
findo o tempo em que lealdade e respeito Aldigier, que quer ser o que conduz
devia ao rei (se a morte o não aflora), Ruggiero e o outro até àqueles chãos
que cristão se fará para todo o efeito, onde o querer impedir a ir induz
como era de seu querer a toda a hora; que Bertolagi tenha os dois irmãos,
e que ao pai e a Rinaldo e a quem houver pôs-se a pé primeiro; e, assim que o sentiram,
a mandará pedir para sua mulher. os outros dois de seus leitos saíram.
90 Quero (juntava), com vossa acordança, 95 Quando já bem vestidos, bem armados,
do assédio ao meu senhor tirar o peso, com os primos Ruggier meteu-se à via,
para o ignorante vulgo não ter chança depois de em vão lhes dar tantos recados
de dizer, para vergonha e meu desprezo: que esta empresa para si sozinho queria;
enquanto Agramante teve bonança, mas eles, com os irmãos preocupados,
nunca Ruggiero o deixou indefeso; e por tal lhes parecer descortesia,
ora que a Carlos Fortuna o sujeita, mais firmes que rochas, não assentiram;
ele ao lado do vencedor se ajeita. que fosse sozinho não permitiram.
91 Quinze ou vinte dias são suficientes 96 No dia chegam em que se devia
para que eu faça uma só aparição, trocar os irmãos pela rica carrada.
que permita que as africanas gentes Era uma ampla campina que jazia
do assédio se livrem pela minha acção. pelos apolíneos raios toda banhada.
Buscarei entretanto convenientes Ali, nem louro nem mirto se via,
motivos para a vós fazer regressão. nem cipreste, freixo, faia, nem nada;
Por minha honra isto vos requesto: só saibro nu e algum pobre rebento:
todo vosso é de minha vida o resto. - nunca de arado ou enxada houve alento.
92 Em palavras tais Ruggier se exprimiu; 97 Os destemidos guerreiros pararam
para todas dizer-vos não tenho meio; onde um caminho cortava a planura;
muitas mais escreveu, e não concluiu um cavaleiro que chegava olharam,
enquanto não viu todo o papel cheio; que ornada a ouro tinha a armadura;
dobrou-a e na sobrecarta a inseriu, por insígnia, em campo verde notaram
e sigilada a introduziu no seio, a rara ave que mil anos dura20 •
esperando no dia a seguir se apresente Senhor, mais não, chegado ao fim me vejo
quem a leve à dama secretamente. deste canto, e só repousar-me almejo.
CANTO XXV 417

NOTAS
--ii!lffer-
1 Pela dama indicado: cf. XXII:36 ss. 1 ° Faz-se dura: solidifica.

2 Terremoto[. . .} meu senhor: nomes de peças de artilha­ 11 Semeado em areia: ter esperado infrutiferamente.
ria de Alfonso d'Este (meu senhor), que estavam nelas gra­
vados. Uma das suas bombardas chamava-se Giulia, por ter 12 Buovo: irmão de Amon (pai de Ricciardetto,
sido fabricada com o bronze da estátua do papa Júlio II. Bradamante e Rinaldo).

3 Para[. ..} ferina: cf. VIl:76. 13 Por seu respeito: por respeito a seu primo, que o

acompanhava.
4 Fiordispina: filha do rei de Espanha, Marsilio.
14 Lanfasa cruel: mãe de Ferraú.
5 Em vez[.. .} espada: em vez da roca, objecto de uso
feminino, usava uma espada. 15 Batalhar fora: batalhar em campo aberto.
6 Hipólita e Camila: a rainha das Amazonas e a heroí­ 16 Com pouco jeito: com pouco senso.
na vergiliana (cf. XX: 1) .
17 Onde[. . .} corno: onde a Abundância estava presente.
7 Mulher do rei Nino: Semíramis.
18 Da sua divina: da sua deusa, Bradamante.
8 A cretense o touro: Pasífae, mulher do rei Minos, de
Creta, amou um touro (dessa união nasceu o Minotauro). 19 Lete: rio infernal do esquecimento.

9 20
Dédalo: construiu a vaca de madeira que Pasífae Rara[. . .] dura: a fénix (cf. nota a X:V:39).
usou para copular com o touro.
-B:fli,-­

CANTO XXVI

Corteses damas teve a antiga idade:


virtude, não riqueza, era-lhes caro;
no nosso tempo, as que dão prioridade
a algo que não seja o ganho, é raro.
Mas aquelas que por real bondade
não seguem, como as mais, o estilo avaro,
vivas, são dignas da mais feliz sorte;
gloriosas e eternas após a morte.
2 De imortal louvor digna é Bradamante,
que não amou nem poder nem dinheiro,
mas a virtude, o ânimo prestante,
a cortesia de Ruggier fagueiro;
e bem mereceu que fosse seu amante
tão valoroso e gentil cavaleiro,
e que ele para lhe agradar fizesse tanto
no futuro, coisas de causar espanto.
3 Ruggier, como eu disse em outro folheto,
com os de Claramonte fez excursão;
digo com Aldigier, com Ricciardetto,
para os dois irmãos libertar de prisão.
Disse eu também que, com soberbo aspecto,
um cavaleiro fez aparição,
que ostentava a ave que se renova,
e que única no mundo se comprova.
420 ORLANDO FURIOSO

4 Quando dos cavaleiros se apercebeu, 7 Queria eu num golpe ou dois digladiar-me


que prontos estavam para a luta frontal, convosco, só para ver o valor vosso;
fazer a prova logo concebeu mas quando à custa de outros demonstrar-me
se ao seu aspecto era a virtude igual. o quereis, já basta, pedir mais não posso.
- Algum de vós (disse), tal como eu, Rogo às vossas armas deixeis juntar-me
deseja provar qual de nós mais vale, com o meu elmo e este meu escudo de osso;
usando quer a espada quer a lança, mostrar espero, se com vós me congresso,
para ver quem fica em sela ou dela dança? - que a vosso lado estar não desmereço. -
5 - Faria (disse Aldigier), se quisesses, Pareceu-me que alguém saber gostaria
liça com espada em cerco, ou correr hasta; o nome deste, que para lutar junto
mas outra empresa que, se aqui estivesses, com Ruggiero e os outros se oferecia,
podias ver, da tua nos afasta; companheiro de armas no grave assunto.
para falar contigo (mais vale se esqueces Esta (e já não este, como eu dizia)
justas agora), o tempo mal nos basta: era Marfisa, que fez o conjunto
de seiscentos homens à espera estamos, do infeliz Zerbin com a ardilosa
com quem à viva força lutar vamos. Gabrina, do mal sempre desejosa.
6 Para reaver dois nossos que em grilhões 9 Os dois de Claramonte e o bom Ruggiero
cá trarão, moveu-nos piedade e estima. - bem a aceitaram na sua fileira,
E prosseguiu, narrando-lhe as razões pensando que era um cavaleiro fero,
que os fizeram vir com as armas em cima. e não donzela, nem de tal craveira.
- T ão justa é a desculpa que me opões Pouco depois avistou Aldigiero,
(disse o guerreiro) que a anuir me intima; e aos restantes mostrou, uma bandeira
e posso dizer, sem medo de errar, que o ar fazia tremular revolta,
que todos cavaleiros sois sem par. e que trazia muita gente em volta.
10 E quando deles já estavam mais perto,
e melhor notaram o hábito mouro,
que eram sarracenos houveram certo,
e ao centro os cativos vinham em coro,
sobre rocins ligados com aperto,
para os darem aos de Mogúncia, por ouro.
Disse-lhes Marfisa: - O que é que inda resta,
se aqui já estão, para começar a festa? -
11 Ruggier respondeu: - Não todos agora
estão os convidados, falta uma parte.
Grande baile vamos ter nesta hora;
para ser solene, usemos toda a arte;
já não podem fazer grande demora. -
Viram, logo que ele disse este aparte,
os traidores de Mogúncia aproximar-se:
começaram para o baile a preparar-se.
1 2 Os de Mogúncia vinham duma via,
trazendo consigo as mulas carregadas
de ouro, vestes, rica mercadoria;
da outra, entre lanças, arcos e espadas,
os irmãos presos, que a dor invadia,
vendo-se perto das sujas jogadas ;
Bertolagi, seu imigo vilão,
ouvem falar ao mouro capitão.
CANTO XXVI 421

13 O filho de Buovo e o de Amon 1 , que bem 16 Salta ora para esta banda ou para aquela
viram Bertolagi, não podem esperar: Ruggiero, e dez ou vinte são ceifados;
a lança em riste um e outro já tem, outros tantos são, pela mão da donzela,
e um e outro o traidor vai atacar. dum lado e doutro também apagados.
Passa-lhe um o arção, a pança também, São tantos a cair mortos da sela
o outro trespassa-o pelo maxilar. quantos pelas afiadas espadas tocados;
Assim se fossem todos os malvados, a elmos, couraças dão desafogo,
como Bertolagi, aos golpes bem dados. como no bosque à lenha seca o fogo.
14 Marfisa com Ruggiero a este signo 17 Se alguma vez ter visto vos recorda,
avança, sem esperar outra trombeta; ou fama no ouvido se vos encerra,
não deixa quebrar seu lenho condigno, como, quando o enxame se discorda,
sem que três de seguida ao chão remeta. e pelo ar as abelhas fazem guerra,
Da hasta de Ruggiero o pagão digno entra a gulosa andorinha na horda,
foi, que trouxe os mais: morte lhe decreta; e muitas mata, fere, come, aferra;
e para ter companhia, a mesma hasta podeis imaginar similarmente
mais dois com ele ao reino escuro arrasta. Ruggiero e Marfisa entre aquela gente.
15 Isto gerou erro entre os investidos, 1s Ricciardetto e seu primo, por seu lado,
que lhes veio a causar total ruína. entre os dois grupos não variavam dança:
Por um lado, os de Mogúncia traídos tendo os Sarracinos abandonado,
se julgaram pela gente sarracina; com os de Mogúncia fazem festança.
por outro os Mouros, de tal modo feridos, O irmão de Rinaldo mui dotado
chamavam à outra gente assassina; de ânimo, de coragem e possança,
e entre eles se iniciou violenta dança, as qualidades aqui lhe dobrava
fazendo uso de arco, de espada e lança. o ódio que a tal gente dedicava.
19 Fazia parecer, a mesma razão,
feroz leão o bastardo de Buovo,
que com sua espada dá destruição
aos elmos, que esborracha como um ovo.
E quem não haveria tanta ardição
e lembrar não faria um Heitor novo,
tendo Marfisa e Ruggiero no rol,
que dos guerreiros eram flor e escol?
20 Marfisa, sem descanso combatendo,
para os seus companheiros os olhos voltava;
de sua força demonstração vendo,
encantada, todos eles louvava;
porém de Ruggiero o valor, estupendo
e sem par no mundo lhe assemelhava;
por vezes pensava que fosse Marte,
do quinto Céu descido àquela parte.
21 Olhava aquelas horríveis acossas,
via que era sempre certeiro o estalo;
parecia que de Balisarda2 as mossas
a papel, não ferro, davam abalo.
Cortava os elmos e as couraças grossas,
fendia os homens até ao cavalo;
em partes iguais tombavam no prado,
metade para um e para o outro lado.
422 ORLANDO FURIOSO

22 Prolongando o seu corte com denodos, 25 De quatro bastou ânimo e valor,


também o corcel com o dono matava. para um e outro esquadrão deitar abaixo.
Cabeças dos ombros cortava a rodos, Não tinha quem fugia arma melhor
e das ancas os bustos separava. que aquela que se leva mais em baixo5 •
Mais de cinco dum golpe matou todos; Feliz quem tem cavalo corredor,
por recear penseis que aqui se aldrava, pois o chouto ou o trote aqui rebaixo;
que o verdadeiro parece improviso, e o que não tem cavalo, esse é que vê
mais não digo; menos dizer preciso. como o mester de armas é triste a pé.
23 O bom Turpin3 , que diz o verdadeiro, 26 Aos vencedores ficou o campo e os ouros,
deixando o homem crer o que lhe apraz, pois ninguém lá resta daquelas pestes.
de proezas de Ruggier pregoeiro Os de Mogúncia para lá, para cá Mouros
é tal que, ouvindo-o, parece falaz. fogem: reféns aqueles, ouro estes
Parecia de gelo cada guerreiro deixam. Vão6 com semblantes bem-vindouros
com Marfisa, e ela chama vivaz; Malagigi e Viviano soltar prestes;
não menos Ruggiero para ela olhou menos diligentes não são os pagens
que ela o alto valor dele observou. a soltar e pôr no chão as bagagens7 •
24 E, se ela a Marte comparado o havia, 27 Tinham boa quantidade de argento,
talvez ele a comparasse a Belona4, estando em diversas formas modelado;
se que ela mulher era ele sabia, também algum feminil vestimenta,
pois o aspecto do oposto a abona. com muito esmerado lavor bordado;
Emulação entre eles já nascia, para aposentos reais um paramento
não boa para aquela gente poltrona: em ouro e seda, na Flandres lavrado,
na sua carne e osso e sangue e nervo, e mais ricas coisas em profusão;
queriam mostrar qual era o mais protervo. garrafões de vinho, comida e pão.
CANTO XXVI 423

28 Tirando os elmos, todos perceberam 34 Depois via-se, com imperial louro


que os tinha auxiliado uma donzela: sobre os cabelos, um cavaleiro vir
pelas áureas melenas a conheceram, com três jovens a par, que os lírios de ouro
e pela face mui delicada e bela. bordados tinham no real vestir;
Com muita mesura, o nome quiseram, com eles, e usando o mesmo decoro9,
de glória digno, conhecer; e ela, via-se um leão 1 0 contra o monstro ir;
que para os amigos sempre era cortês, de alguns o nome a cabeça reveste,
a seu respeito segredo não fez. doutros está escrito na fímbria da veste.
29 Não conseguem saciar-se de observá-la, 35 Um, que até ao punho tinha na pança
tendo-a visto assim agir na batalha. a espada imersa da maligna fera,
Ela olha só Ruggier, e com ele fala: Francisco primeiro (escrito) de França,
mais nenhum preza ou parece que valha. Maximiliano de Áustria ao lado, era;
Entretanto os servos vão convidá-la e Carlos quinto imperador, com a lança,
para gozar com a campanha a vitualha, do monstro a goela trespassar pudera;
que prepararam perto duma fonte, outro lhe atravessa com seta o peito:
que protegia do sol estivo um monte. é de Inglaterra, Henrique oitavo eleito.
30 De Merlim o manancial cristalino, 36 Décimo o Leão tem escrito no dorso,
dos quatro que em França fez para deleite, e ao monstro crava os dentes nas orelhas;
era cercado de mármore fino, tanto o atormentou que já reforço
liso, brilhante, mais branco que o leite. recebeu de outros e ajudas parelhas.
Ali, gravadas com lavor divino, Do mundo o medo afastara aquele esforço;
Merlim fizera de imagens enfeite: e, para emendar as estultícias velhas,
pareciam respirar, e se cativas nobre gente acorria, muita não,
não fossem de voz, julgar-se-iam vivas. que da besta matar tinha intenção.
31 Uma besta8 parecia da floresta 37 Os cavaleiros queriam, e Marfisa,
sair, de olhar cruel, odiosa e bruta; conhecer aqueles por cujos gestos
tinha orelhas de burro, e tinha a testa a besta fora mortalmente incisa,
e dentes de lobo, e de fome enxuta; que os lugares tornara tetros e mestos.
de leão as garras; e aquilo que resta, Embora gravados na pedra lisa
tudo raposa; a correr resoluta seus nomes, não lhes eram manifestos.
França e Itália, Espanha e Inglaterra, Entre si pediam que, se soubesse
Europa e Ásia e, enfim, toda a Terra. algum a história, aos outros a dissesse.
32 A toda a volta gente ferida, e morte, 38 Volveu Viviano a Malagigi o olhar,
da baixa plebe aos soberbos mandões; o qual os ouvia em silêncio, imoto:
parecia até fazer estrago mais forte - A ti (disse) toca a história contar,
a reis, príncipes, sátrapas, barões. pois dela és, segundo penso, douto.
Pior fizera na romana corte, Quem são os que setas, espadas a usar
matando papas, cardeais, deões; e lanças, dão morte ao animal boto? -
tinha contaminado a bela sé Respondeu Malagigi: - Não é história
de Pedro, e feito escândalo na fé. de que até hoje autor tenha memória.
33 Parece que diante da besta horrenda 39 Sabei que destes, cujos nomes estão
cai todo o muro ou protecção que toca. no mármore, o mundo ainda é obscuro;
Não se vê cidade que se defenda: dentro de sete séculos viverão,
perante ela o castelo se derroca. para honra grande do tempo futuro.
Parece que honra divina rescenda, Merlim, o sábio encantador bretão,
e que é adorada por gente louca, esta fonte fez no tempo de Arturo 1 1 ;
e até que as chaves se arrogue de ter e com coisas que ao mundo ainda hão-de vir
do Céu e do Inferno em seu poder. mandou-a por bons artistas esculpir.
424 ORLANDO FURIOSO

4o Esta besta cruel saiu do fundo 43 A fera tão cruel um mais molesto
do Inferno, quando limites exactos não terá que Francisco, rei dos Francos;
aos campos se deu, e de quando oriundo bom é que outros exceda neste gesto;
é peso e medida, e escritos contratos. nenhum melhor tem, poucos a seus flancos 13 ;
Não atingiu de início todo o mundo, tanto em esplendor real como no resto,
deixando muitos países intactos. em virtude outros fará parecer mancos
Hoje em dia, muito lugar conturba; que antes bons pareciam; tal qual fenece
mais ofende os populares, a vil turba. outro esplendor quando o Sol aparece.
41 Desde o princípio, de forma distinta, 44 No primeiro ano do feliz reinado,
até hoje cresceu e irá mais crescendo; ainda mal tendo a coroa na fronte,
no crescimento tanto se requinta passará os Alpes, tendo logrado
que o maior monstro será, mais horrendo. o plano a quem o espera além do monte'\
O outro, Píton'2, que em papel e tinta por nobre e justo desdém estimulado;
se diz ter sido horrível e tremendo, pois espera ainda que se desafronte
deste não chegou sequer a ser meio, o que, da fúria de pastores saído,
nem tão abominável nem tão feio. o exército francês terá sofrido15 •
42 Fará cruel matança, e tudo em bloco 45 E dali descerá ao plano chão
arruina, infecta, contamina a eito; da Lombardia, o escol da França em torno,
quanto mostra a escultura é só um pouco e tanto o Suíço esmagará que em vão
de seu nefasto e execrável efeito. pensará outra vez alçar o corno.
Ao mundo, de mercê pedir já rouco, À Igreja e Espanhóis dando humilhação
estes, que o nome aqui têm perfeito e aos Florentinos, que lhes dão contorno 16,
e que como piropo hão-de luzir, o castelo expugnará, no passado
na maior falta virão acudir. sempre inexpugnável considerado 17 •
CANTO XXVI 425

46 Mais que outra arma, para expugná-lo muito 52 Do generoso, ilustre e claro sangue
lhe valerá aquela honrosa espada d'Avalo, dois, com o monte no brasão,
com que matará, com o monstro, o intuito que, da testa aos pés de cobras, é cangue
seu de toda a Terra ver depravada. para o ímpio Tifeu manter em prisão22 •
Forçoso é que ante ela fuja fortuito Nenhum destes dois, para deixar exangue
todo o estandarte, ou derrota arrecada; o monstro, do outro avança fracção:
não há fosso, abrigo ou grossa muralha um é Francesco di Pescara invicto,
que para cidade salvar dela valha. outro Alfonso del Vasto aos pés tem escrito.
47 Esse príncipe há-de ter a excelência 53 Mas Consalvo Ferrante23 , onde deixado
que um hábil comandante ter devia: foi o hispano honor, tão prezado era
o ânimo de César, a prudência que por Malagigi foi tão louvado,
que no Transimeno e Trebbia 1 8 havia, e poucos pares nesse grupo tivera?
e de Alexandre 19 a sorte, cuja ausência Guglielmo di Monferrato agrupado
todo o desígnio em fumo desfaria. era aos que tinham morto a bruta fera;
Será tão liberal que eu o contemplo poucos, à vista dos descomedidos
sem lhe ver comparação ou exemplo. - que por ela foram mortos ou feridos.
48 Tal disse Malagigi, e assim provê 54 Em conversas, gracejos e folias,
de desejo os outros de ter certeza após comer, passou-se o dia morno,
do nome de algum mais que morte dê estendidos em finas tapeçarias
à besta infernal, a matar aveza. entre os arbustos que o rio tinha em torno.
Um Bernardo20 entre os primeiros se lê, Malagigi e Viviano de armarias,
que Merlim no seu escrito muito preza. para os outros proteger, tinham adorno;
- Este fará (disse) nota Bibbiena quando uma mulher viram vir sozinha,
quanto a vizinha Florença e Siena. - que para eles se dirigia asinha.
49 Aqui ninguém adiante põe a mão 55 Era ela aquela Ippalca a quem tirado
a Sismondo, Giovanni, Ludovico: Frontino, o corcel, foi por Rodomonte.
um Gonzaga, um Salviati, um de Aragão, Tinha o outro dia atrás dele andado,
cada um do monstro grande inimico. pedindo e praguejando naquele monte;
Francesco Gonzaga, e em comunhão sem conseguir, para trás tinha voltado,
consigo sempre o filho Federico; para encontrar Ruggiero em Agrismonte.
o cunhado e o genro aqui descortino, Pela via ouviu (de quem, já não completo)
um de Ferrara, outro duque de Urbino. que ali o acharia com Ricciardetto.
50 De um destes, o seu filho Guidobaldo 56 Conhecendo bem o lugar (vezeira
não quer que ninguém para trás o remeta. era a vir ali), logo de ir fez fito
Com Otobon dal Flisco, Sinibaldo ao riacho; onde daquela maneira
caça a fera; a pressa é de ambos a meta. os encontrou, como acima está escrito.
Luigi da Gazolo um ferro, em saldo, Mas, como boa e cauta mensageira,
no pescoço lhe dera de uma seta que melhor faz até do que lhe é dito,
que houve de Febo com o arco, quando quando viu o irmão de Bradamante,
Marte da espada lhe deu o comando2 1 • de não conhecer Ruggier fez semblante.
51 Dois Ercoli, dois Ippoliti d'Este, 57 Para Ricciardetto toda se voltou,
outro Ercole e outro Ippolito ao lado, tal como se para ele se dirigisse;
da Gonzaga e de' Mediei, que preste reconhecendo-a, ele se encaminhou
seguem o monstro, tendo-o já cansado. para ela, e quis saber aonde seguisse.
Nem Giuliano do filho creio que reste, Ela que tinha, pois tanto chorou,
nem Ferrante do irmão, atrasado; rubros os olhos, suspirando disse;
nem menos pronto Andrea Doria; ou deixe disse com força, para tornar aberto
Francesco Sforza que um outro o releixe. a Ruggier seu dizer, que estava perto.
426 ORLANDO FURIOSO

58 - Trazia comigo (disse) pela brida, 60 Todo ontem e hoje lho pedi; quando
como por tua irmã recomendado, os rogos e ameaças vi ser em vão,
um cavalo belo, e bom de corrida, com muitos insultos e praguejando,
que ela ama muito, Frontino chamado; não muito atrás fiz dele separação;
mais de trinta milhas fizera de ida, onde ele e o corcel, muito se esforçando,
para Marselha, aonde em dia aprazado defesa tenta, com a arma na mão,
ela vai, e me disse que a esperasse de um guerreiro que mostra tal possança
até ao dia em que ela ali chegasse. que espero que faça por mim vingança. -
59 T ão confiante estava do crer meu 6 1 Ruggiero àquele falar saltou em pé,
que não esperava que aquele, como uma fera, pois a conversa mal pudera ouvir;
ousasse tirar-mo, dizendo-lhe eu a Ricciardetto vai, e, por mercê
que o corcel da irmã de Rinaldo era. e prémio e galardão de o bem servir,
Mas o que esperava não aconteceu: mil vezes lhe roga licença dê,
que o mouro o levasse não estava à espera; e com a dama sozinho o deixe ir,
nem por de quem Frontino era eu dizer, para lhe ser o sarraceno mostrado,
o induzi a querer-mo devolver. que o corcel da mão lhe tinha tirado.
62 A Ricciardetto, muito descortês
a outro conceder lhe pareceu
reparar ofensa que a si se fez;
porém, ao querer de Ruggiero cedeu;
despediu-se com muita polidez,
e com Ippalca à via se meteu,
deixando nos que ficavam estupor,
não só maravilha, pelo seu valor.
63 Dos outros afastando-se entretanto,
por Ippalca tudo lhe foi narrado:
tinha-a enviado aquela que tanto
em seu coração o havia gravado;
sem mais disfarces, revelou-lhe quanto
sua ama lhe tinha recomendado,
e que, se antes dera à fala outro aspecto,
fora pela presença de Ricciardetto.
64 Disse que aquele que o corcel tirou fero
também lhe dissera, com altivez:
- Por saber que o cavalo é de Ruggiero,
ainda to tiro com mais levez.
Dá-lhe a saber (pois esconder-lho não quero),
se reavê-lo quiser outra vez,
que sou Rodomonte, cujo valor
por todo o mundo mostra o seu esplendor. -
65 Escutando, Ruggier mostra no semblante
quanto desdém no coração sentia;
um, porque queria a Frontino bastante,
dois, porque sua dama lho remetia,
três, porque tirar-lho era humilhante;
descrédito e vergonha a si viria
se a Rodomonte o não tira depressa,
fazendo vingança que ele não esqueça.
CANTO XXVI 427

66 Ela Ruggier guia e não amodorna, 69 Marfisa, a pedido dos outros, punha
pois quer pôr-lhe o sarraceno defronte; de mulher vestes, jóias de valor,
chegam onde a estrada em duas se entorna: daquelas que para Lanfusa supunha
uma vai para o plano, outra sobe o monte; mandar o de Mogúncia, aquele traidor;
mas ao vale uma e outra depois torna, muito raramente se testemunha
onde havia deixado Rodomonte. Marfisa sem armadura a rigor;
A via do monte era áspera e breve; nesse dia a tirou; e, qual mulher,
mais longa era a outra, mas plana e leve. em saia por eles se deixou ver.
67 Pelo grande desejo que anima Ippalca 10 Assim que o tártaro avista Marfisa,
de ter Frontino e vingar vilanagem, tem a certeza que há-de ali ganhá-la,
ela o caminho da montanha calca, e em recompensa e por troca precisa
por onde era bem mais curta a viagem. com Doralice, a Rodomonte dá-la;
Mas o rei de Argel a outra socalca, Amor que assim se rege desta guisa,
com o tártaro e toda a equipagem; que sua dama vender ou permutá-la
na via plana e fácil se mantém, possa o amante, nunca se contrista,
e com Ruggiero nem encontro tem. pois quando uma perder, outra conquista.
68 Foram suas querelas diferidas 71 Portanto, para provê-lo de donzela
enquanto Agramante se socorria (e para si assim a outra consigna),
(já sabeis); e hão de suas colhidas Marfisa, parecendo-lhe airosa e bela,
a razão, Doralice, em companhia. para qualquer cavaleiro mulher digna,
Agora, ouçam do acaso as partidas. como para ele terá esta ou aquela
Para aquela fonte eles seguem a via, apreço igual, oferecer-lha designa;
onde Aldigier, Ricciardetto e Marfisa, e todos os que ali estão, à porfia,
Malagigi e Vivian confraterniza. ao duelo e à batalha desafia.
n Malagigi e Vivian, que armas vestiam,
por estar à guarda e defesa do resto,
de onde estavam sentados já se erguiam,
um e outro para batalhar mui lesto,
pensando que com os dois justariam;
mas o africano, para tal nada presto,
não deu sinais nem movimento algum;
e assim a justa foi dois contra um.
73 Primeiro Viviano com brio se move,
e ao avançar abaixa uma hasta grossa;
o rei pagão, para que sua fama prove,
do lado oposto maior força esboça.
Enrista um e outro, e o golpe promove
onde julga que há-de fazer mais mossa.
Viviano o elmo ao pagão fere em vão:
nem o dobra, quanto mais ir ao chão.
74 O rei pagão, cuja hasta era mais dura,
o escudo de Vivian fez parecer gelo;
fora da sela, no meio da verdura,
das flores no colo caiu sem apelo.
Vai Malagigi tentar a aventura
de seu irmão vingar num atropelo;
mas tão depressa no chão o alcança
que lhe fez companhia, e não vingança.
428 ORLANDO FURIOSO

75 Antes do primo, o outro irmão destino 78 Como outro cavaleiro não se apresenta,
buscou com as armas, no corcel montado; que ao pagão para combater mostre a fronte,
tendo desafiado o sarracino, pensa ele que já ganhou com a tenta
assaltou-o a toda a brida lançado. a dama, e chega-se-lhe, junto à fonte;
Cai o golpe a meio do elmo fino disse-lhe: - Teu novo senhor te enfrenta,
do pagão, abaixo da vista um dado; se outro não há que por ti sela monte.
voou a hasta feita em quatro ao céu, Não podes recusar, nem pedir escusa,
mas do choque o pagão nem se moveu. pois por regra de guerra assim se usa. -
76 Feriu-o do lado esquerdo o pagão; 79 Marfisa, erguendo com ar altaneiro
e, porque o golpe com tal força dê, o rosto, disse: - O teu juízo erra.
nada o escudo, e a couraça também não, Admito que digas o verdadeiro:
lhe valeu: como casca abrir-se vê. tua seria por regra de guerra,
Trespassou-lhe o ombro o cruel farpão: quando meu senhor fosse, ou cavaleiro,
Aldigier fez vergar da proa à ré; algum desses que deixaste por terra.
entre flores e ervas se viu composto, Sua eu não sou, e não sou senão minha;
rubro nas armas, pálido no rosto. quem me quiser, comigo se engalfinha.
77 Vem Ricciardetto com intrepidez, 80 Escudo e lança sei usar também eu,
e ao vir enrista uma tão grande lança, e em terra mais que um já por mim foi posto. -
mostrando, como mostrou muita vez, - Dai-me as armas (disse) e o cavalo meu -,
que dignamente é paladim de França; aos pagens que obedeceram com gosto.
isso manifesto ao pagão não fez, Tirou a saia, em gibão apareceu,
por não estar equilibrada a balança; e o seu corpo formoso e bem disposto
pois cambalhota deu, porque o cavalo deixou ver que em cada uma sua parte,
caiu-lhe em cima, não pôde evitá-lo. salvo no rosto, assemelhava a Marte.
81 Depois da armadura, a espada cingiu,
e no corcel montou dum leve salto;
para cá, para lá, três vezes o impeliu,
e fê-lo também empinar-se ao alto;
desafiando o pagão, comprimiu
a grossa lança e começou o assalto.
No campo troiano, Pentesileia, 24
contra Aquiles, assim fez epopeia.
82 Até ao punho as lanças se quebraram
ao soberbo impacto, como cristal;
mas os que as empunhavam nem dobraram
um só dedo, que se desse por tal.
Marfisa quer ver se a tal se comparam
corpo a corpo as forças do seu rival;
estudando a resistência do pagão,
para ele se volta de espada na mão.
83 Maldisse Céu e elementos o crudo
pagão, quando ficar a viu na sela;
ela, que pensava quebrar-lhe o escudo,
não menos desdenhosa o Céu flagela.
O ferro na mão os dois têm desnudo;
contra as armas fadadas se martela:
armas fadadas cada um vestia,
'' nunca tão úteis como naquele dia.
CANTO XXVI 429

84 T ão boa é a chapa, e também a malha, 90 E entregou-lhe a carta que tinha escrito


que lança ou espada não a corta: aflora; em Agrismonte, e que levou no seio;
prosseguir podia a dura batalha de viva voz muito mais lhe foi dito,
todo aquele dia e outro, como agora. pedindo-lhe que fosse um bom correio.
Mas entre os dois Rodomonte se encalha, Ippalca, na memória tudo fito,
e, censurando o rival pela demora, despediu-se e ao corcel virou o freio;
diz: - Se batalha podeis fazer vós, e sem parar, a boa mensageira,
findemos a iniciada entre nós. à noite, em Montalvão findou carreira.
85 Fizemos, bem sabes, trégua com pacto 91 Ruggiero seguiu o mouro mesquinho
de ir prestar socorro à nossa milícia. pelo rasto que no carreiro aparecia;
Não se deve, antes de solver tal facto, mas não o alcançou, até que, vizinho
outra batalha iniciar ou perícia. - à ribeira, com Mandricardo o via.
Para Marfisa, respeitoso no acto, Tinham prometido que pelo caminho
se volta e dá da mensagem notícia; coisa estranha um ao outro não faria,
e conta-lhe como até ali veio, nem até que dessem ao campo esteio,
para lhes pedir para Agramante esteio. a que Carlos quase pusera o freio.
86 Pede que faça não só o favor 92 Chegado Ruggier, Frontin conheceu,
da batalha deixar ou diferir, e por ele conheceu quem o montava;
mas que dar ajuda com seu valor enquanto sobre a lança se encolheu,
ao filho de Troiano queira vir; o africano à luta desafiava.
assim sua fama com maior alor Rodomonte ali mais que Job sofreu25,
até ao céu pode fazer subir para dominar sua soberba brava;
que, por querela de curto momento, recusou a pugna, na circunstância,
a tal desígnio dar impedimento. quando sempre a buscava com instância.
87 Marfisa, que foi sempre desejosa 93 Primeira e última vez que se opunha
de os de Carlos provar à espada e à lança; o rei de Argel ao combate, de resto;
nem mais nada a fizera vir, curiosa, mas, sendo tanto o desejo que punha
de tão distante região até França, em socorrer seu rei, achou honesto
senão para ter certeza se famosa que, embora crendo ter Ruggier na unha,
era a fama deles com segurança, como a lebre o leopardo tem presto,
depressa com eles ir resolveu, não queria atrasar a sua passada
que a precisão de Agramante entendeu. por trocar com ele dois golpes de espada.
88 Ruggiero entretanto tinha seguido 94 Sabia ser Ruggiero aquele guerreiro
em vão Ippalca pela via do monte; que por Frontin com ele queria batalha;
e viu, ao chegar, que tinha partido tão famoso que nenhum cavaleiro
por diferente caminho Rodomonte; há que a par dele em glória se equivalha;
pensando que longe ele não era ido, muito queria saber, se em verdadeiro
e que o caminho ia direito à fonte, confronto, tanto em armas ele valha;
trotando apressado a segui-lo ia, contudo, recusa aceitar a empresa:
pelas pegadas inda frescas na via. tanto o assédio do seu rei lhe pesa.
89 Quis que Ippalca para Montalvão tomasse 95 Trezentas milhas teria ele andado,
a estrada, a um dia dali pertinho; se assim não fosse, para justar tal lide;
porque, se à ribeira ela regressasse, mas, tivesse-o Aquiles desafiado,
desviava-se do direito caminho. mais não faria do que ora decide;
E disse-lhe que já não duvidasse tanto tinha já em cinza abafado
que Frontino tiraria ao mesquinho; o fogo de seu furor que o elide.
e que em Montalvão, ou noutro lugar, Conta a Ruggier porque a pugna recusa,
essas novas lhe haviam de chegar. e diz-lhe que à mesma empresa se induza;
430 ORLANDO FURIOSO

96 pois, fazendo-o, fará aquilo que deve 1 02 Que a minha insígnia abusivo transportes,
fazer a seu senhor campeão fiel. já antes to disse, e não teve efeito.
Depois que aquele assédio se soleve, Crês, louco, que eu, porque assim te comportes,
tempo terão para destilar o fel. alguma vez por ti tive respeito?
Ruggiero responde: - Ser-me-á leve Mas, uma vez que ameaças tão fortes
adiar a pugna, até que se acautele tal loucura não te tiram do peito,
das forças de Carlos rei Agramante, vou-te mostrar quão melhor tinha sido
porém Frontino quero neste instante. de imediato me teres obedecido. -
97 Que fizeste grande erro hei-de prová-lo, 103 Como aquecido pau, já seco bem,
e acção bem indigna de um homem forte, que a pequeno sopro logo se acende,
tirando a uma mulher o meu cavalo; tal se inflama de Ruggiero o desdém,
se queres que isto adie até estar na corte, ao primeiro som que do outro apreende.
larga Frontino, que eu quero guardá-lo. - Pensas (disse) que obediência me atém,
Não penses que doutro modo eu suporte porque este também comigo contende?
que esta batalha entre nós se defira, Mostrar-te-ei que consigo depor
ou de trégua uma hora te confira. - ele do corcel, tu do escudo de Heitor.
9s Enquanto Ruggiero assim faz demanda 1 04 Já outra vez por tal motivo estive
(quer Frontino ou batalha nessa hora), contigo em batalha, pouco é passado;
e aquele para trás das costas tudo manda, porém de matar-te então me contive,
não querendo o corcel dar, nem ter demora, por ver que espada não tinhas ao lado.
vem Mandricardo duma outra banda, Estes são factos; antes, sinais tive30 ;
e em campo apresenta outra lide agora: o pássaro branco não te é adequado,
viu que o brasão de Ruggier tem por lei que é antiga insígnia da minha gente:
o pássaro que dos outros é rei26 • tu usurpaste; eu uso-o justamente. -
99 Em campo azul a águia branca tinha, 105 - Tu é que usurpaste a insígnia minha! -,
que dos Troianos foi insígnia bela: gritou Mandricardo, a espada puxando;
como Ruggier por origem provinha aquela que antes, por loucura, tinha
do grande Heitor, também usava aquela. abandonado na floresta Orlando.
Mandricardo tal saber não detinha; Ruggier, que as leis da cortesia asinha
e não admite, e ofensa revela, recorda e sempre segue e cumpre, quando
por em seu escudo outro ser portador viu que o pagão tinha tirado a espada,
da águia branca do famoso Heitor. deixou sua lança cair na estrada.
1 00 Usava Mandricardo similmente 106 E ao mesmo tempo Balisarda tira,
a ave que Ganimedes raptou27 • a boa espada, e mais o escudo embraça;
Teve-a naquele dia como presente o africano3 1 ao centro o corcel atira,
no perigoso castelo, onde a ganhou; e também Marfisa lhes faz negaça;
penso que a história guardareis na mente, Tem ele um, ela o outro tem em mira,
de como aquela fada lho ofertou28 , rogando ambos que luta não se faça.
com todas as mais armas que Vulcano Rodomonte diz que rompeu o pacto
tinha já dado ao cavaleiro troiano. duas vezes Mandricardo, e é facto.
101 Já batalha quase tinham travado 1 07 Primeiro, por querer conquistar Marfisa,
Mandricardo e Ruggier, em duelo presto; por mais de uma justa fora ocupado;
o motivo por que foi atalhado ora, para privar Ruggier da divisa,
não digo, pois já vos é manifesto29 • por Agramante está pouco em cuidado.
Não se tinham desde então defrontado, - Se afinal (dizia) ages desta guisa,
senão agora; e Mandricardo lesto, acabemos o duelo começado32 ,
vendo o escudo, voz de ameaça emitiu, mais conveniente e legítimo, aliás,
e disse a Ruggier: - Eu te desafio! que estes outros dois em que és contumaz.
CANTO XXVI 431

1 08 Com tal condição foi estabelecida 114 Mas se acudir devemos a Agramante,
a trégua, e um acordo entre nós feito. acuda-se, e entre nós não se contenda. -
Tendo a pugna contigo resolvida, - Por mim, nada impede de irmos avante
pelo corcel respondo a este sujeito. (disse Ruggier), dando ao corcel emenda.
Tu, do teu escudo, se ficares com vida, Ou dê-me o cavalo, e assim é bastante
no fim resolverás com ele o pleito; falar, ou então de mim o defenda:
mas tanto te dou que fazer que, espero, ou aqui morto hei-de ficar, ou eu
muito não há-de sobrar para Ruggiero. - ao campo volto no cavalo meu. -
1 09 - A parte em que pensas, não a terás 115 E Rodomonte: - A segunda contesto,
(respondeu Mandricardo a Rodomonte); mas a primeira conseguir é leve33 • -
eu vou-te dar mais do que esperarás, E prosseguiu: - Eu te faço protesto
e far-te-ei suar desde os pés à fronte; que, se algum dano nosso rei já teve,
e sobrar-me-á inda para dar assaz será culpa tua; eu bem me apresto
(tal como nunca falta água na fonte) a fazer tudo o que fazer-se deve. -
a Ruggiero e a mil que traga consigo, Ruggiero àquele protesto pouco liga;
e a todos que queiram ver-se comigo. - em fúria a espada agarra, pronto à briga.
1 1 0 Iam crescendo palavras e ira, 1 1 6 Ao rei de Argel, qual javali, se esgalha,
tanto deste como daquele lado; e nele embate com o escudo e o lado;
para Rodomonte e para Ruggier se vira de tal modo o confunde e o atrapalha
ao mesmo tempo Mandricardo, irado; que um pé do estribo a sair é forçado.
Ruggiero, que ultrajes nunca engolira, Mandricardo grita-lhe: - Ou a batalha
não quer acordo, à liça motivado. adias, ou também eu sou achado. -
Marfisa anda deste para aquele canto e, cruel e falso o mais que podia,
para acalmar, mas sozinha não faz tanto. Ruggier no elmo, ao falar, agredia.
1 1 1 Qual aldeão, a quem o rio inunde 1 1 7 Ruggiero ao colo do corcel se inclina,
as altas margens buscando outra estrada, e quando se quer reerguer não pode;
apressado, para ver que não lhe afunde pois chega junto dele e o arruína
os verdes pastos e a verde cevada, o filho de Ulieno34 , que o sacode.
fecha uma via e outra, e se confunde; Se não fosse de têmpera adamantina,
pois, se aqui lhe deixa a via tapada, o elmo fendia até ao bigode.
ali vê tombar os seus diques lassos Abre Ruggiero as mãos com a pancada:
e a água irromper com diversos braços; duma a brida lhe cai, da outra a espada.
1 1 2 assim, entre Ruggiero e Mandricardo 1 1 8 Pelo campo fora o carrega o corcel,
e Rodomonte há grande agitação; e atrás lhe fica em terra Balisarda.
cada um quer mostrar-se mais galhardo, Marfisa, esse dia companha dele
e ter que o companheiro mais razão; de armas, parece que de raiva arda,
Marfisa para os acalmar dá resguardo, por só, entre os dois, se ter visto aquele;
cansa-se e desperdiça tempo e acção; e, como era magnânima e galharda,
assim que um afasta e dali retira, vai a Mandricardo e, com o seu poder
os outros dois vê que crescem em ira. que a ira aumentou, na cabeça o fere.
113 Marfisa, que queria pô-los de acordo, 119 Rodomonte atrás de Ruggier se lança:
dizia: - Escutai meu conselho amigo: Frontino ganha, se outra assim lhe aplica;
bom é que adiem as pugnas, recordo, mas Ricciardetto com Viviano avança,
até que Agramante não corra perigo. e entre Ruggiero e o sarraceno fica.
Se teima cada um em ser balordo, Um sobre Rodomonte se abalança,
também eu com Mandricardo me intrigo; e este, à força, de Ruggiero abdica;
quero ver se é capaz de me ganhar, o outro, Viviano, a Ruggier, já são,
como diz, por bem saber armejar. foi sua espada meter-lhe na mão.
432 ORLANDO FURIOSO

1 20 Assim que Ruggiero se recupera, 1 22 A Discórdia, certa de não poder


e que Viviano a espada lhe apresenta, mais aqui haver que rixas e briga,
de a ofensa vingar não fica à espera, nem de lugar jamais voltar a ter
e já direito ao rei de Argel se aventa, paz ou trégua, disse à irmã e amiga36
como um leão que nos cornos estivera que podiam de novo ir conviver
do touro, e a dor o não atormenta: com os monges37 , para que com ela siga.
tal ódio, ira e ímpeto o abalança, Pois que vão; fiquemos nós onde a fronte
o estimula e o impele para a vingança. Ruggiero tinha ferido a Rodomonte.

121 Ruggier no elmo ao sarraceno assesta; 1 23 Deu-lhe o golpe Ruggier com tal alento
e se com sua espada se encontrasse, que fez sobre a garupa de Frontino
se o outro (disse eu), no início desta tombar elmo e o duro revestimento
batalha, à traição o não desarmasse, de que armava o seu dorso o sarracino;
estou certo que para defender a testa e oscilou três vezes num movimento
de Rodomonte, o elmo não bastasse; que quase o forçou a fazer o pino;
o elmo feito para o rei de Babel, e também teria perdido a espada,
quando guerra aos Céus pensou fazer ele35 • se acaso à mão não estivesse ligada.
CANTO XXVI 433

1 24 A Mandricardo Marfisa entretanto 1 26 Ruggiero, vendo que tinha caído


suar fizera a fronte, o rosco, o peito, a donzela, de ajudá-la fez esboço;
e ele a ela tinha feito outro tanto; teve ocasião, pois o outro aturdido
mas era o metal de ambos cão perfeito pelo seu embate, afastara-se um troço.
que não o romperam em nenhum canto, Feriu no elmo o tártaro; e partido
e até agora escavam pares no efeito; ter-lhe-ia a cabeça, como um caroço,
mas voltou seu corcel com exagero, se Ruggier Balisarda manobrasse,
e Marfisa precisou de Ruggiero. ou Mandricardo elmo mais fraco usasse.

125 O corcel de Marfisa ao volcear-se 1 27 O rei de Argel ressente-se do gesto;


em espaço estreito, em chão enlameado, vê Ricciardetto quando o olhar divaga:
escorregou sem poder equilibrar-se, lembra-se de que ele lhe fora molesto
caindo em cheio sobre o destro lado; dando ajuda a Ruggier, para si aziaga.
e, ao pretender à pressa levantar-se, Vai para ele, e teria sido lesto
por Brigliador de través abalroado a dar-lhe dessa acção bem cruel paga,
foi, por acção do pagão não cortês, se, com grande arte e encanto, depressa
que o obrigou a cair outra vez. Malagigi não se opusesse a essa.
CANTO XXVI 435

1 2s Malagigi, que magia tão bem 1 33 Ruggiero não quer deixar indecisa
sabe como qualquer mago excelente, com o rei de Argel a questão do cavalo;
mesmo se o livro consigo não tem, o tártaro largar não quer Marfisa,
que para o Sol parar era competente, visto que a gosto não pôde prová-lo.
a esconjuração com que o poder vem Deixar sua querela desta guisa
para comandar demos tinha na mente: a um e a outro causa grande abalo.
logo um para o corpo do rocim expeliu Fazem de comum acordo ameaços
de Doralice, e com fúria o impeliu. de quem os ofendeu seguir os passos.
1 29 No manso cavalote em que seguia 134 No campo sarraceno os acharão,
montada a filha do rei Stordilano, se antes a distância os não aproxima;
um anjo de Minos38 introduzia para levantar o assédio ali irão,
com palavras o irmão de Viviano; antes que o rei de França tudo oprima.
e ele, que a avançar não se atrevia, Assim, directamente para lá vão,
senão obedecendo ao seu soberano, onde achá-los de certeza se estima.
deu de repente ora no ar um salto, Mas não se afasta Ruggier tão depressa
de trinta pés longo e dezasseis alto. que dos companheiros se não despeça.
130 Foi grande o salto, mas não de tal sorte 135 Assim, Ruggier para aquele lado parte
que por isso alguém caísse da sela. em que de sua dama está o irmão,
Quando no alto se viu, gritou forte e profere-se dele em qualquer parte
(por pensar que ia morrer) a donzela. amigo, em boa ou em má situação;
O rocim, que do diabo tem desnorte, depois roga (o que faz com muita arte)
após o salto, dali vai com ela, que leve à irmã sua saudação;
que grita por socorro, com tal mecha disse-lho de maneira tão perfeita
que o não teria alcançado uma flecha. que nele e em ninguém levantou suspeita.
131 O filho de Ulieno da batalha 1 36 De Viviano e Malagigi quis
partiu, logo que ouviu aquela voz; despedir-se, e ainda de Aldigier ferido.
e, para onde ouve que o palafrém ralha, Todos se lhe proferiram servis,
para a dama socorrer corre veloz. e cada um se disse agradecido.
Mandricardo também dali tresmalha, Marfisa tanto queria ir para Paris
de Marfisa e Ruggier não mais algoz; que os amigos saudar tinha esquecido;
sem que paz ou trégua, aliás, pedisse, Malagigi e Viviano tanto andaram
persegue Rodomonte e Doralice. que embora de longe ainda a saudaram;
132 Marfisa entretanto ergueu-se da terra, 137 e Ricciardetto; Aldigiero, porém,
e abespinhada de desdém e ira, tem de estar deitado contra vontade.
pensa fazer sua vingança, e erra, Aqueles dois39 , e ora estes40 também,
pois já bem longe o inimigo mira. para Paris foram com celeridade.
Ruggiero, vendo tal fim ter a guerra, Senhor, no outro canto ouvireis bem
ruge como um leão, fundo suspira. contar a sobre-humana actividade,
Com seus corcéis Frontino e Brigliadoro que aos homens de Carlos deu tanto abalo,
apanhar, sabem que é intuito goro. destes dois pares de que aqui te falo.
436 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 O filho [. . .] Amon: Aldigiero e Ricciardetto. 22 O monte{. . .] prisão: monte Epomeo, na ilha de


Ischia, que esmaga o gigante Tifeu (cf. nota a XVI:23),
2 Balisarda: espada de Ruggiero. cujos pés eram formados por grupos de serpentes..
3 Turpin: ou Turpino (cf. nota a XIIl:40). 23 Consalvo Ferrante: capitão de Fernando, o Católico,
que foi vice-rei de Nápoles.
4 Belona: deusa romana da guerra.
24 Pentesikia: rainha das Amazonas. Acorreu em auxí­
5 Mais em baixo: os cavalos ou os pés. lio dos Troianos, e foi morta em combate por Aquiles.
6 Vão: o sujeito é «os vencedores». 25 Mais [. . .] sofreu: teve mais do que a proverbial
paciência de Job.
7 As bagagem: as mercadorias que 1am ser trocadas
pelos prisioneiros. 26 Pdssaro [. . .] rei: a águia.

8 Uma besta: a qual, como a loba dantesca (Inferno, 1:49 27 A ave [. . .] raptou: a águia (cf. nota a IV:47).
ss.), representa a cobiça, estando-lhe associados os piores
vícios, simbolizados pelos traços físicos: ignorância (ore­ 28 Creio [. . .] ofertou: cf. nota a XIV:3 1.
lhas de burro); insaciabilidade (testa [. . . ] enxuta); cruelda­
de (de kão as garras); astúcia e fraude (tudo raposa). 29
O motivo [. . .] manifesto: no Orlando Innamorato
(L0 • III, Vl:39 ss.), Ruggiero e Mandricardo iam dar iní­
9 Decoro: distintivo. cio a um duelo por causa da insígnia da águia, mas foram
interrompidos por Gradasso, que encetou uma disputa
10 Leão: o papa Leão X, Giovanni de' Mediei (cf. 36: !).
com Mandricardo por causa da espada Durindana, que
ambos queriam tirar a Orlando.
1 1 Arturo: o rei Artur.
30 Estes[. . .] tive: agora é a sério; antes, não se chegou a
12 Píton: monstro que foi morto pelas flechas de Apolo.
vias de facto.
13 A seus flancos: a par consigo. 31 O africano: Rodomonte.

14 Plano[. . .] monte: plano de Prospero Colonna, que o 32 Duelo começado: o duelo iniciado entre Mandricardo
esperava numa passagem dos Alpes, enquanto ele os e Rodomonte, interrompido pelo mensageiro, era pe!a
atravessou por outra. posse de Doralice.
15 Da faria [. . .] sofrido: derrota infligida aos Franceses 33 A segunda [. . .] leve: a primeira condição de Ruggiero
pelos Suíços (pastores) em Novara, em 15 13. (aqui morto hei-de ficar) é fácil (/,eve)de se dar, mas não a
segunda (ao campo[. . .] meu).
16 Que [. . .] contorno: que são aliados do papa Leão X e
de Fernando de Aragão. 34 O filho de Ulieno: Rodomonte.

17 O castelo [. . .] considerado: o castelo de Milão. 35 Rei { . .] ek: cf. nota a XIV: 1 18.

18 Prudência [. . .] havia: a prudência mostrada por 36 Irmã e amiga: a Soberba.


Aníbal no lago Transimeno e no rio Trebbia, lugares
onde derrotou os Romanos. 37 Com os monges: cf. XIV:8 1-82.

19 Alexandre: Alexandre Magno. 38 Anjo de Minos: um demónio, pois Minos (rei de Creta),
depois de morrer, foi juiz infernal.
20 Bernardo: o cardeal Bernardo Dovizi, de Bibbiena,
protector das artes e das letras. 39 Aqueks dois: Rodomonte e Mandricardo.

21 Luigi [. . .] comando: Luigi Gonzaga, conde de 40 Estes: Ruggiero e Marfisa.


Gazolo, poeta (Febo) e homem de armas (Marte).

CANTO XXVII

Tem a dama intentos de melhor tom


de improviso, que da ideia saídos;
pois esse é um especial e próprio dom
entre tantos a elas atribuídos.
Já do homem, mal pode um sair bom:
só os maduramente reflectidos,
em que tenha pensado com empenho
algum tempo, com muito estudo e engenho.
2 Pareceu, mas não teve a ideia brilho
de Malagigi, embora seu projecto
(como eu disse) tivesse de sarilho
libertado o seu primo Ricciardetto.
De levar dali Rodomonte e o filho
de Agricane, ao espírito deu decreto,
sem reflectir que, onde iam ser levados,
os cristãos eram por eles esmagados.
438 ORLANDO FURIOSO

3 Se tempo para pensar tivesse tido, O rocim que tinha o demónio ao flanco
pode julgar-se que tinha igualmente levou a espavorida Doralice,
dado a seu primo o auxílio devido, sem que algum pedregulho, rio, barranco,
sem danos provocar à cristã gente. valado, bosque ou pântano o impedisse;
Ao diabo ordenar tinha podido até que ao meio do campo inglês e franco,
que, para os lados de levante ou poente, e de toda a multidão que seguisse
tanto tivesse afastado a donzela as insígnias de Cristo, a viu confiada
que em França não se soubesse mais dela. aos cuidados do pai, rei de Granada.
4 Pelos amantes teria sido seguida, 6 Rodomonte foi em perseguição
como foi para Paris, para qualquer parte; com Mandricardo um só dia atrás dela,
mas foi esta advertência inadvertida1 tendo das costas ao longe visão;
por Malagigi, ao usar sua arte; mas de vista acabaram por perdê-la,
e a Maldade, que do Céu foi banida, e seguiram-lhe o rasto, como o cão
e só sangue, morte e fogo reparte, cabrinha ou lebre segue e ao fim desvela;
tomou a via que Carlos lesou, só se detiveram no sítio onde
porque nenhuma o mestre lhe indicou. souberam que ela com seu pai se esconde.
CANTO XXVJI 439

7 Guarda-te, Carlos; desenha-se o esboço 11 Pensou que em Anglante ou então em Brava6


de tanto furor que não vejo escampo: a desfrutasse Orlando em grande festa;
não só estes, Gradasso em alvoroço uma casa e a outra visitava,
e Sacripante visam o teu campo. mas não a achou nem naquela nem nesta.
Fortuna, para te ferir até ao osso, A Paris novamente regressava,
a um tempo te tira um e outro lampo2 pensando que agora já pouco resta
de força e saber, que te tinha apego; para o paladino lhe surgir na frente;
e, em trevas tu ficando, ficas cego. não podia estar tanto tempo ausente.
s De Orlando e Rinaldo falo do error; 12 Um dia ou dois na cidade reside
um, que se encontrava louco e furioso, Rinaldo; porém, Orlando não via,
ao sereno, à chuva, ao frio e ao calor, e a Anglante ou a Brava reincide,
percorre, nu, chão plano e montanhoso; para ver se dele novidade ouvia.
o outro, com senso pouco maior, A noite e o dia a cavalgar progride,
quando dele precisas é-te faltoso; ao fresco alvor e ardente calmaria;
Angelica em Paris não encontrando, e, tanto à luz do Sol como à da Lua,
parte, e vai seus vestígios procurando. duzentas vezes tal via efectua.
9 Um feiticeiro velho e fraudulento3 13 Mas o velho adversário7 , que fez Eva
fê-lo (como a princípio eu vos dizia) à maçã interdita alçar a mão,
crer, por um fantástico encantamento, a Carlos os lívidos olhos leva,
que Angelica com Orlando seguia; quando Rinaldo andava em digressão;
por isso, com o coração ciumento, e, entendendo que a derrota se deva
o mais que um amante sentir podia, dar em tal ensejo ao povo cristão,
foi para Paris, e, ao aparecer na corte, o escol de guerreiros que o mundo viu
ir à Bretanha lhe tocou em sorte4. entre os Sarracenos lá conduziu.
10 Ora, feita a batalha onde alcançou 14 Ao rei Gradasso e ao bom rei Sacripante,
a honra de ter cercado Agramante 5 , que um do outro foi acompanhador
tornou a Paris; conventos buscou, deixando a mágica casa de Atlante,
casas e fortalezas, perseverante. de vir em socorro lhes deu alor
Se numa coluna não se entaipou, das gentes sitiadas de Agramante,
tê-la-ia achado o curioso amante. para destruir Carlos imperador;
Por fim, não achando ela nem Orlando, e através de incógnitas cumeadas
os dois ao mesmo tempo vai buscando. escoltou-os e ajeitou-lhes as estradas.
440 ORLANDO FURIOSO

15 E outro seu encarregou do negócio 17 Os quatro primeiros o ponto alcançam


de apressar Rodomonte e Mandricardo, onde se avistava os alojamentos
para seguir a via em que o outro sócio das hostes sitiadas e os que as amansam,
a levar Doralice não é tardo. e as bandeiras batidas pelos ventos.
Manda ainda um outro para que no ócio Conferenciaram; e por fim afiançam,
não estejam Marfisa e Ruggier galhardo; em conclusão dos seus arrazoamentos,
mas quem guiou este par refreou ajudar, a Carlos causando abalo,
a brida, e depois dos outros chegou. Agramante, e do assédio tirá-lo.
16 Para Marfisa e Ruggiero houve um arranjo 1s Em conjunto avançam, abrindo a via
para meia hora mais tarde chegarem; pelo meio dos alojamentos cristãos,
porque com muita astúcia o negro anjo, dizer,do «África» e «Espanha» em gritaria,
para na derrota aos cristãos não falharem, e assim revelaram que eram pagãos.
quis evitar que houvesse desarranjo Pelo campo «às armas» ressoar se ouvia,
por na luta pelo cavalo teimarem; mas primeiro ouviu-se lutar com as mãos;
fá-lo-iam, lá chegando, querer quero, e da retaguarda uma grande frota,
a um tempo Rodomonte e Ruggiero. antes de atacada, foge em derrota.
19 O exército cristão, posto em tumulto,
dispersa-se sem saber por que efeito.
Pensam alguns ser um assalto estulto
que por suíços ou gascões é feito.
Mas, sendo à maior parte o caso oculto,
cada um junta os seus em grupo estreito,
uns a som de tambor, outros de tromba,
com tal rumor que até ao céu ribomba.
20 O magno imperador, excepto a testa,
armado está, e os paladins tem perto;
e vem para inquirir que coisa é esta
que deu aos seus esquadrões tal desconcerto;
ameaçando, um ou outro admoesta;
a muitos vê o rosto e o peito aberto,
outros sangram da cabeça ou da goela;
a alguns, braço ou mão levou cutela.
CANTO XXVII 441

21 Vai mais adiante e vê muitos revoltas 23 Não tinha ainda às trincheiras chegado
em terra, ou antes, num vermelho lago, do rei de África esta primeira força,
no próprio sangue horrivelmente envoltos: já com Marfisa chega de outro lado
já não lhes vale médico nem mago; o intrépido Ruggiero, que os reforça.
e vê os bustos da cabeça soltos Tendo duas vezes o olhar girado
e braços, pernas, em cruel imago; o digno par, com exactidão orça
e encontra, desde o primeiro pavilhão qual a mais breve via para acudir
ao último, homens mortos em porção. ao rei sitiado, e começou a agir;
22 Por onde passara o pequeno bando, 24 Como quando se chega fogo à mina,
de clara fama eternamente digno, pela pólvora, que em longo sulco segue,
no seu longo trilho fora deixando impetuosa chama corre e fulmina,
aquele para sempre memorável signo. que só muito a custo o olho persegue;
O morticínio Carlos vai mirando e tal se ouve depois grande ruína
espantado, e cheio de furor maligno, que o rochedo ou paredão desagregue,
como quem em casa um raio lhe entrou, assim Ruggiero e Marfisa seguiram,
e vai seguindo o rasto que deixou. e a batalhar com tal rumor se ouviram.
2s A direito e de través começaram
a cabeças cortar, e braço e fronte,
dos que à veloz fuga não se entregaram
para que o caminho se lhes desafronte.
Os que as tempestades já observaram,
quando uma parte dum vale ou dum monte
derrubam e outra deixam, têm ideia
da via que o par entre eles clareia.
26 Aqueles que ao furor de Rodomonte
e dos primeiros foram subtraídos,
cada um grato era a Deus porque conte
com boas pernas, pés desimpedidos;
mas ao embaterem de peito e fronte
em Marfisa e Ruggier, desiludidos
viam que o homem, parado ou a andar,
ao seu destino não pode escapar.
442 ORLANDO FURIOSO

27 Quem a um perigo escapa, ao outro não, 29 Cornos, trombetas e tambores moirescos


e com a vida paga pena forçosa. o céu enchem de fortes entoações;
Assim com os filhos na boca do cão no ar a estremecer aos ventos frescos
cai, esperando escapar, tímida raposa, vêem-se bandeiras e gonfalões.
pois é corrida do velho alçapãoª Do outro lado os capitães carlescos 10
pelo seu vizinho, que a julga culposa9, juntam-se com Alemães e Bretões,
e eficazmente com fumo e com fogo com os de França, Itália e Inglaterra;
de seu refúgio lhe dá desafogo. e tem início a sanguinosa guerra.
2s Nas trincheiras entrou dos Sarracinos 30 A força do terrível Rodomonte,
Marfisa, com Ruggier, em salvamento. mais a de Mandricardo furibundo,
Todos com os olhos no céu peregrinos, a de Ruggiero, de virtude fonte,
graças deram por tal sucedimento. do rei Gradasso, famoso no mundo,
Ora já não temem os paladinos: e de Marfisa a intrépida fronte,
o mais vil pagão desafia um cento; com o circassiano, a nenhum segundo,
e decidem que, sem fazer repouso, farão chamar S. João e Dinis
o campo outra vez tornem sanguinoso. o rei de França, e voltar para Paris.
31 Dos ditos cavaleiros e de Marfisa
o arrojo invicto e a força que destroça
não foram, senhor, de sorte ou em guisa
de imaginar, ou descrever se possa.
Quanta gente morreu, pois, se improvisa,
nesse dia, e que grande e cruel mossa
sofreu Carlos. Junte-se-lhes depois
Ferraú, e um mouro famoso ou dois.
32 Com a pressa alguns se afogaram no Sena
(não comportava a ponte tanta gente),
e desejaram, como Ícaro, a pena 1 1 ,
pois a morte tinham atrás e à frente.
Excepto Uggiero e o marquês de Viena'2,
mais nenhum paladim foi resistente.
Tinha Oliviero na espádua uma ferida,
e Uggiero tinha a cabeça partida.
CANTO XXVII 443

33 E se, como Rinaldo e como Orlando, 34 Das viúvas os gritos e o choro,


Brandimarte houvesse fugido ao jogo, de órfãos pequenos, velhos enlutados,
de Paris Carlos iria chorando 1 3 , aonde Miguel 15 no eterno coro
se vivo saísse do grande fogo14. estava, subiram desses ares turvados;
Brandimarte fez o que pôde, e quando e bem viu os fiéis do seu pelouro
já não pôde, o inimigo avançou logo. por lobos e corvos ser devorados,
T ão bem Fortuna Agramante dispôs de França, de Inglaterra e da Alemanha,
que outra vez a Carlos assédio pôs. deles ficando coberta a campanha.
444 ORLANDO FURIOSO

35 O rosto do anjo ficou corado, 38 Com a ponta duma cruz lhe deu após:
achando que foi mal obedecido cabeça, costas e braços lhe amassa.
o Criador, e disse-se enganado Pede mercê a falsa em alta voz,
pela pérfida Discórdia, e traído. e os joelhos do santo núncio abraça.
De guerra acender entre os pagãos dado Miguel não lhe dá descanso e, veloz,
ordens tinha, e tal não fora cumprido; para o campo do rei de África a escorraça;
tudo ao contrário parecia ter feito depois disse-lhe: - A :oisa inda piora,
de suas ordens, ao ver-se o efeito. se volto a ver-te deste campo fora. -
36 Qual servo fiel, que mais em amor 39 Embora tendo a Di�córdia maleita
que em memória abunde, e admirado esteja nas costas e braços, porém temendo
por ter descurado o que, com primor, outra vez a tais golpes ser sujeita,
quanto alma e vida requer se proteja, aplicados com um furor tremendo,
à pressa pensa em emendar o error, os foles vai buscar em breve feita,
para não deixar que o seu senhor o veja; e aos fogos acesos lenha acrescendo,
assim o anjo a Deus subir não quis, e acendendo outros, depressa conspira
sem dar ao seu trabalho outro cariz. nos corações um grande incêndio de ira.
37 Do mosteiro, onde já noutra jornada 4o Rodornonte e Mandricardo e também
a Discórdia achou, tornou direcção. Ruggiero tanto inflama que ao rei mouro
Viu-a estar no capítulo sentada, os faz ir, ora que Carlos não tem
dos oficiais a ver a eleição; vantagem para impedir aquele foro.
e os breviários via, deleitada, As divergências contam, donde vem
que um ao outro atirava cada irmão. o motivo que ali os traz em coro;
As mãos lhe deita logo o anjo à crina, depois, do rei aguardam o parecer
e a soco e a pontapé a amofina. sobre quem primeiro o campo vai ter 16 •
41 Também Marfisa seu caso revela,
e afirma que a pugna quer concluir
que iniciou com o tártaro; porque ela
foi por ele provocada a competir;
para às outras dar lugar, não queria aquela
um dia, nem urna hora, diferir;
em ser primeira faz grande insistência,
pede o tártaro à lide com urgência.
42 Também quer Rodornonte o primeiro campo
para terminar com seu rival a empresa,
que para acudir ao africano campo
interrompeu, e até aqui está presa.
Põe Ruggier suas palavras em campo,
e diz que suportar muito lhe pesa
que Rodornonte o seu cavalo tenha,
e que à pugna com ele primeiro não venha.
43 Para mais complicar, o tártaro arranca,
negando que Ruggier tenha o direito
de ostentar a águia da asa branca;
e de ira e de furor tem tal despeito
que, se nenhum dos três houver retranca,
quer as questões todas lutar a eito.
Os outros três não teriam oposto,
se o rei a tal se tivesse disposto.
CANTO XXVII 445

44 Rei Agramante roga e aconselha 47 Perto de Paris havia para o jogo


quanto pode, para que a paz se consiga; um sítio com uma milha de contorno;
mas quando todos fazem surda orelha, em volta alta cerca lhe dava afogo,
e à paz ou à trégua ninguém instiga, tendo à maneira de um teatro adorno.
vai magicando como os aparelha Um castelo ali houve, e a ferro e fogo
para que um após outro para o campo siga; paredes, tectos, caíram em torno.
e a solução que lhe ocorre mais forte Um semelhante pode ver na estrada,
é cada um tirar o campo à sorte. quem de Parma a Borgo faz caminhada20 •
45 Fez quatro senhas: uma Mandricardo 48 Foi nesse lugar que a arena foi feita,
e Rodomonte juntos encadeia; com curtos paus toda em volta reclusa,
a outra diz Ruggiero e Mandricardo; quadra e justa cerca, à lide perfeita,
Rodomonte e Ruggiero outra nomeia; com duas portas, tal como se usa.
a última, Marfisa e Mandricardo. Ao chegar a data pelo rei eleita,
E ao arbítrio da caprichosa deia 17 e os cavaleiros não buscando escusa,
mandou tirar: da Sárcia era o senhor'8, foram junto às portas, de ambos os lados,
com Mandricardo, primeiro lutador. contra as cercas, os pavilhões montados.
46 Mandricardo e Ruggier foi no segundo; 49 No pavilhão que é do lado poente
no terceiro foi Ruggiero e Rodomonte; está o rei de Argel, que é quase um gigante.
Marfisa e Mandricardo foi para o fundo, Vestem-no, com a pele que foi de serpente2 1 ,
o que à donzela fez turvar a fronte. o bravo Ferraú e Sacripante.
Ruggier não pareceu mais que ela jucundo: O rei Gradasso e Falsiron potente
sabe que dos primeiros a força amonte no outro estão, do lado do levante:
para que concluam a sua lide'9, em guisa armas troianas vestem com labor
que a não tenham para si nem para Marfisa. àquele que de Agricane é sucessor.
50 Sentava-se em ampla tribuna erguida
o africano rei, com o hispano à mão;
depois Stordilano, e a gente subida,
prezada pelo exército pagão.
Feliz quem em árvore tem guarida,
ou em sucalco que o alça do chão!
A multidão é grande, e em cada lado
o povo ondeia em volta do cercado.
5 1 De Castela a rainha no meio brilha
de rainhas, princesas, nobres donas
de Aragão, de Granada e de Sevilha,
e de hercúleas terras outras colonas22 ;
entre elas de Stordilan estava a filha23 ,
com a saia de duas ricas lonas:
uma de um rubro deboto, outra verde;
quase branca a primeira, que a cor perde.
52 Vestido cintado usava Marfisa,
apropriado a uma dama guerreira.
Termodonte talvez daquela guisa
teve Hipólita e as outras à beira24.
Com a cota de armas, usando a divisa
de Agramante, pelo campo se aligeira
o arauto que as regras dita e proíbe
acto ou palavra, e assim o povo inibe.
446 ORLANDO FURIOSO

53 A espessa turba aguarda, desejando 59 Modo, antes, de a ganhares aparelha,


a pugna, e protesta por já ser tardo para a usares depois contra Rodomonte.
o aparecimento dos guerreiros; quando Primeiro arma comprar é usança velha,
se ouve, do pavilhão de Mandricardo, antes que a batalha o guerreiro afronte. -
grande ruído ir-se multiplicando. - Mais doce som não me chega à orelha
Ora, senhor, sabei que o rei galhardo (respondeu o tártaro erguendo a fronte)
de Sericana25 e o tártaro potente do que quando à batalha algum me tenta;
o grito e o rumor fazem que se sente. que Rodomonte consinta, experimenta.
54 Havendo armado o rei de Sericana 60 Faz por seres primeiro, e que para si tenha
com sua mão, todo, o rei da Tartária, o rei da Sárcia a batalha segunda;
para pôr-lhe no flanco a espada soberana e não imagines que eu me contenha
vinha, que de Orlando foi tributária, sem dar, a quem for, resposta rotunda. -
quando no punho escrito «Durindana» Gritou Ruggiero: - Quero que se mantenha
vê, e de Almonte a insígnia partidária o pacto, que o sorteio não se confunda:
que ao infeliz tirada numa fonte ou Rodomonte ao campo primeiro sai,
foi, pelo jovem Orlando, em Aspramonte. ou depois da minha batalha vai.
55 Vendo-a, teve a certeza ser aquela 61 Caso a ideia de Gradasso compraza,
a tão famosa do senhor de Anglante, de adquirir a arma antes de usá-la,
pela qual com grande armada, e a mais bela também minha águia da branca asa
que jamais fez partida do Levante, tu não usarás, sem me conquistá-la;
tinha sujeito o reino de Castela, mas como eu aceitei a outra vaza28 ,
e a França depois levado por diante; minha sentença não quero mudá-la;
mas na sua ideia não se desenha que seja a segunda a batalha minha;
como Mandricardo em poder a tenha. primeira a do rei de Argel, que a já tinha.
56 E perguntou-lhe se à força ou por pacto 62 Se vós perturbais a ordem em parte,
do conde a obtivera, e onde e quando. perturbo-a eu inteira, sem demora.
Disse Mandricardo por ela um acto Eu não tenciono o meu escudo deixar-te,
de batalha ter feito com Orlando; se o não disputas comigo esta hora. -
que louco se fingira, não de facto, - Se um ou o outro de vós fosse Marte
assim esconder o seu temor esperando, (respondeu Mandricardo, irado agora),
«por ter de prosseguir guerra comigo, nem um nem o outro me privaria
para a boa espada conservar consigo». da boa espada e da nobre armaria. -
57 Disse ter ele imitado o castor, 63 E, levado pela cólera, aventou-se
que a si próprio os seus genitais expele de punho em riste ao rei de Sericana;
quando é perseguido pelo caçador26 , e na mão direita deu-lhe tal couce
pois sabe que outra coisa não quer dele. que o obrigou a largar Durindana.
Gradasso, sem ouvir todo o teor, Gradasso, não julgando que ele fosse
diz: - Não ta dou, nem a este ou àquele; duma audácia tão louca e tão insana,
tanto ouro, canseiras e tanta gente foi de surpresa e descuido apanhado,
me custou que minha é justamente. e viu-se da boa espada usurpado.
58 Procura, pois, arranjar outra espada, 64 Tão humilhado de vergonha e de ira,
que esta eu quero, e não te pareça estranho. no rosto cora e quase deita fogo;
Louco ou são, por Orlando abandonada, mais o caso o aflige e mal lhe inspira,
tenciono tê-la, onde quer que a apanho. por dar-se ali, em total desafogo29 •
Foi sem testemunhas que tu na estrada Desejando vingança se retira,
a usurpaste: eu, com liça ta ganho. a buscar a cimitarra, ali logo.
A razão dirá minha cimitarra, Mandricardo em si tanto se confia
e o julgamento faremos na barra27 • que Ruggiero a um tempo desafia.
CANTO XXVII 447

65 - Vinde já vós os dois em assembleia, 69 la-os tentando aplacar Agramante,


e que venha o terceiro, Rodomonte, e com um e com o outro discorria;
África, Espanha, toda a humana aldeia, do pavilhão outro, entre Sacripante
que nenhum haverá que eu não defronte. - e Rodomonte outra rixa se ouvia.
Assim falando, o que nada receia O rei circassiano (disse há um instante)
em torno regira a espada de Almonte; a preparar Rodomonte atendia,
o escudo embraça, desdenhoso e fero, e ele e Ferraú vestem-lhe a rigor
contra Gradasso e contra o bom Ruggiero. as armas de Nemrod, progenitor3 1 •
66 - Deixa seja eu (dizia Gradasso) 70 E foram aonde o corcel austero
que à imbecil loucura deste valha. - fazia, ao mordê-lo, o freio espumoso;
- Por Deus (disse Ruggier), não ta trespasso, falo de Frontino, pelo qual Ruggiero
por força esta há-de ser minha batalha. - estava aceso e mais que nunca furioso.
- Vai-te daqui! - Vai-te tu! - nem um passo Sacripante, que o cavaleiro fero
se afastando, cada um grita e ralha; apadrinhava, mirava curioso
e começou a batalha em terceto, se bem ferrado e arreado e pronto
que acabaria por ter estranho aspecto, estava o corcel como é dever, no ponto.
67 se muitos não se houvessem interposto 71 E ao olhar-lhe assim com mais minudência
àquele furor, com muito desabrigo; os sinais, o talhe de corredor,
pois quase aprenderam, ao ter-se exposto, teve a certeza, com toda a evidência,
que a outros acudir é grande perigo. que era Frontalatte, do qual senhor
Nem todo o mundo os teria composto, fora, pelo qual teve tanta preferência,
se não vem o rei de Espanha, e consigo e por cuja falta foi sofredor;
de Troiano o filho30 , ante cujo aspeito desde que lho tiraram sempre quis
todos mostraram mesura e respeito. a pé ir, por ser sem ele infeliz.
68 Fê-los Agramante a razão expor n Perto de Albracca lho tinha Brunel
desta nova querela tão ardente, subtraído, no dia em que transtorno
e muito se afadigou por dispor a Angelica deu, tirando-lhe o anel,
que, para aquela jornada unicamente, e ao conde Orlando Balisarda e o corno,
fosse a Mandricardo a espada de Heitor e a espada a Marfisa; e depois aquele
cedida por Gradasso cortesmente, tinha, ao fazer a África retorno,
e à áspera rixa se dava armistício, junto com Balisarda a Ruggier dado,
que entre ele e Rodomonte houvera início. o qual Frontino lhe tinha chamado32 •

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448 ORLANDO FURIOSO

73 Não tendo já razão para duvidá-lo, 76 Mas pelo convívio nestes dias feito,
o da Circássia ao de Argel informou: camaradagem de novel lhaneza,
- Sabei, senhor, que este é o meu cavalo, permito-me ter-te em tanto respeito
que em Albracca um dia alguém me furtou. que te aconselho a adiar essa empresa
Teria testemunhas para prová-lo; até da batalha veres o efeito,
mas, porque muito longe delas estou, entre mim e o tártaro em breve acesa;
se alguém o negar, eu vou defender com a qual um exemplo mostrar-te espero
de armas na mão o que ouviste eu dizer. que a dizer te leve: «O corcel não quero!» -
74 Contente estou pela boa companhia 77 - Tua cortesia é como a do vilão
que entre nós estes dias tem havido; (diz Sacripante, que a ira incendeia);
que hoje o cavalo te dê serventia, mais forte e clara te faço a alusão:
pois vejo que sem ele estás perdido; desse cavalo tira a tua ideia;
desde que seja a minha senhoria de ti o defendo, enquanto na mão
e o meu empréstimo reconhecido; a vingadora espada se bandeia;
senão, não penses ser dele cavaleiro, e até o defendo à unha e ao dente,
ou se por ele não lutarmos primeiro. - se não puder ser de modo diferente. -
75 Nenhum mais que Rodomonte orgulhoso 78 Passaram das palavras à contenda,
jamais existiu, que para a guerra se arme; aos gritos e ameaças e à batalha;
e como ele um tão forte e corajoso parece que a ira em muitos se acenda
desde os antigos não posso lembrar-me, mais depressa do que pelo fogo a palha.
respondeu: - Fosse outro tão audacioso, Rodomonte tem da armadura a venda33 ,
Sacripante, como tu a falar-me, Sacripante não tem chapas nem malha;
à sua custa de imediato aprendia mas, porque tão bem a esgrimir manobre,
que ter nascido mudo bom seria. parece até que a espada todo o cobre.
CANTO XXVII 449

79 Não era a robustez e a dureza 85 Marfisa que aos gritos também correra,
de Rodomonte, ainda que infinita, enquanto a história do cavalo ouvia,
maior do que a prudência e a destreza turvou-se-lhe o rosto, pois lhe ocorrera
com que Sacripante sua força incita. que a espada perdera no mesmo dia;
Não volteou nunca com mais presteza e aquele corcel que ter asas parecera
a mó que no moinho o trigo brita, ao fugir dela, ali reconhecia35 ;
como Sacripante com a mão e o pé, também reconheceu naquele instante,
para aqui, para ali, onde preciso é. que antes ignorara, o rei Sacripante.
80 Ferraú, Serpentino, destemidos, 86 Os que estavam em torno, e que gabar-se
sacando a espada entram no desaforo, disto Brunel escutaram muita vez,
por Grandonio e Isoliero seguidos, com ele começaram a revoltar-se,
e por muitos senhores do povo mouro. e a ver a culpa dele com nitidez;
Eram esses os barulhos que ouvidos Marfisa suspeita, e, para informar-se,
foram no outro pavilhão com estouro, a quem perto tinha perguntas fez,
pelos que queriam pôr de acordo o soberano, até que veio a concluir que aquele
com o tártaro e Ruggiero, sericano34 • que lhe tirara a espada era Brunel;
81 Alguém a notícia ao rei Agramante 87 e soube que, pelo furto que o tornava
trouxe de que, por causa do corcel, digno de ao pescoço ter nó corrido,
tinha com Rodomonte Sacripante o rei Agramante T ânger lhe dava,
iniciado um áspero assalto e cruel. como rei (caso insólito) assumido.
O rei, de tanta disputa observante, Marfisa, que seu ódio refrescava,
disse a Marsilio: - Vê se o aranzel decidiu vingar-se ali do impunido,
entre estes não se torna mais agudo, dos chistes que nesse dia, na estrada,
enquanto à outra desordem acudo. - lhe dissera além de roubar a espada.
82 Rodomonte que o rei, seu senhor, mira, 88 O seu escudeiro o elmo abotoou,
refreia o orgulho e recua o passo; que das outras armas estava provida.
com menos respeito não se retira Sem couraça dez vezes eu não dou
o que com ele exercitava o braço. por ela ter sido vista na vida,
Pergunta Agramante a causa da ira, desde o dia em que a usá-la habituou
com nobre atitude e grave compasso; sua pessoa, por demais destemida.
e tenta, depois de tudo entendido, Posto o elmo foi onde, entre os primeiros,
conciliá-los; mas é tempo perdido. estava Brunel nos assentos cimeiros.
83 O rei da Circássia o corcel não quer 89 Chegando-lhe perto, logo o agarra
que com o rei de Argel mais tempo reste, pelo meio do peito, e do chão o elevou,
se com palavras humildes não vier como elevar sói, com a adunca garra,
cortesmente pedir que lho empreste. a águia quando o frango arrebatou;
Rodomonte a soberba não digere, e para onde a questão se desamarra
e diz-lhe: - Nem o Céu, quanto mais este, perante Agramante, assim o levou.
faria que a alguém ficasse grato Brunello, o qual em maus lençóis se vê,
por algo que pela força eu arrebato. - chora e não cessa de pedir mercê.
84 Pergunta-lhe o rei que jurisdição 90 Mais que os rumores, clangor, gritaria
tem sobre o bicho e como foi tirado; que enchiam o campo completamente,
Sacripante faz total narração, Brunel, que piedade e ajuda pedia,
e ao narrar fica no rosto corado, acima de todo o ruído se sente,
quando lhe conta que o subtil ladrão, e aos seus lamentos e ais acudia,
que o colhera em pensamento ocupado, e em volta se juntava, toda a gente.
a sela em quatro estacas apoiou Chegada ante o rei de África, Marfisa,
e o cavalo de baixo lhe levou. com rosto altivo, falou desta guisa:
450 ORLANDO FURIOSO

91 - Desejo este ladrão, que é teu vassalo, 95 Não é que o preze ou que lhe tenha amor,
com minhas mãos pela goela pendurar, aliás, há dias que o tem odiado;
pois no dia em que furtou o cavalo de enforcá-lo já fora conjector,
a este, minha espada foi roubar. desde que o anel lhe fora tirado37 •
Caso alguém ache que mentira falo, Mas acha acto indigno do seu honor,
faça-se avante para me ripostar; e só de nele pensar fica corado.
porque perante ti quero defender Pensa, em pessoa, atrás dela correr,
que esse mente, e que faço o meu dever. e vingar-se com todo o seu poder.
92 Como talvez se poderia imputar-me 96 Mas Sobrino, o rei, que estava presente,
que o quis fazer quando há tanta contenda dessa iniciativa muito o dissuade,
e todo o famoso guerreiro se arme dizendo que era pouco conveniente
para a todas as disputas dar emenda, para a alteza da sua majestade,
três dias estou disposta a demorar-me; embora vencedor fosse ciente
tu entretanto, ou outro, que o defenda; que ele era, com toda a credulidade:
depois disso, não tendo impedimento, mais que honra, era vergonha, que se diga
com ele às aves dou contentamento36 • que uma mulher ele venceu com fadiga.
93 A três léguas daqui, para aquela torre 97 A honra era pouca e muito era o perigo
vou que fica em frente a um arvoredo; que à batalha a dama desafiasse;
comigo esse caminho só percorre e que lhe dava um conselho de amigo:
um escudeiro e uma aia: assim procedo. que Brunel fosse enforcado deixasse;
Se algum se atreve a pensar que socorre e, se erguer o sobrolho é desobrigo
este ladrão, vá lá; espero-o sem medo. - bastante para que da corda o livrasse,
Assim disse; e logo para lá tomou que o não erguesse, para não impedir
caminho, e pela resposta não esperou. que a justiça se viesse a cumprir.
94 Põe sobre o pescoço do palafrém 9s - Podes mandar quem a Marfisa alegue
Brunel, que sempre pelas crinas segura. (dizia) que disso juiz te faça,
Chora o mísero e grita, e os de quem com promessa de que ao ladrão se pregue
ajuda espera pelo nome procura. ao colo, como ela quer, a baraça;
Tal confusão a Agramante advém e mesmo que ela obstinada to negue,
destes enredos que não se afigura que seja: o seu desejo satisfaça:
como resolvê-los; e o menos leve Brunel dê à forca, e todo o ladrão,
é que Marfisa Brunello assim leve. mas não se desfaça a vossa afeição. -
99 Agramante de bom grado se ateve
ao parecer de Sobrino, cauto e ciente:
ir atrás de Marfisa não se atreve,
nem outro mandar, para ser-lhe oponente;
nem pedido fazer vontade teve;
tolerou, Deus o sabe, estoicamente,
para poder aquietar rixas maiores,
e calar no campo tantos rumores.
1 00 Riu-se disso a Discórdia de má raça,
que paz ou trégua já pouco temia.
Corre de cá para lá por toda a praça,
e em nenhum lugar encontra alegria.
A Soberba faz com ela arruaça,
enquanto ao fogo mais lenha acrescia;
tanto grita que ao reino celestial
chega a Miguel da vitória sinal.
CANTO XXVII 451

101 Estremeceu Paris e turvou-se o Sena 1 07 Depois, o acordo escrito se fazia


àquela voz e àquele grito daninho; entre o rei e os pretendentes famosos,
ribombou até à floresta ardena38 , e à donzela o seu gosto se inquiria.
fazendo sair as feras do ninho. Baixou ela os olhos envergonhosos,
Ouvem os Alpes, Cévennes39 serena, e disse que o tártaro preferia:
de Arles, Blaye, Ruão o lido marinho, todos acharam os factos espantosos;
o Ródano, Saône, Garona e Reno; Rodomonte, de surpresa e desgosto,
puxa a mãe ao seio o filho pequeno. nem conseguia levantar o rosto.
102 Cinco guerreiros têm fixa a ideia 10s Mas, assim que a ira apagou aquela
de primeiro solver o desentendido; vergonha, de que tinha a face tinta,
um no outro de tal modo se enleia acha falsa e injusta a sentença dela;
que Delfos40 os não tinha resolvido. e a espada empunhando, que tinha à cinta,
Começa Agramante a delir a teia diz ao rei e aos outros que quer que ela43
da primeira questão que tinha ouvido, essa causa lhe confirme ou desminta,
a qual, pela filha do rei Stordilano, e não o arbítrio de mulher leve44,
havia entre o tártaro e o africano4 1 • que sempre se inclina para o que não deve.
103 Andou Agramante tentando acordo 1 09 Reagiu Mandricardo ao desconforto,
aqui e além, entre este e aquele, dizendo: - Será como te agradar -;
e de um para outro voou como um tordo viu-se que para o navio chegar ao porto
alvitrando, rei justo e irmão fiel; era preciso sulcar muito mar;
mas vê estar cada um em desacordo mas Agramante a Rodomonte torto
com seu parecer e, indómito e revel, disse ser; pois não pode desafiar
nenhum queria ficar sem a donzela já Mandricardo para aquela querela;
que está na origem dessa querela; e àquele furor fez abaixar a vela.
104 por fim decide ser melhor partido, 1 10 Rodomonte, que vergonha sofreu
para assim contentar ambos os amantes, ante os senhores, por dupla zombaria
que da linda dama seja marido, (do rei, a quem por respeito cedeu,
de eles os dois, o que ela escolher antes; e da sua dama, tudo num só dia),
e que o que por ela for estabelecido naquele local não mais permaneceu;
tenha efeitos para os dois determinantes. de entre toda a turba que o envolvia
A um e a outro agrada a solução, levou consigo apenas dois escudeiros,
cada um esperando ter eleição. e deixou os mouriscas paradeiros.
105 O rei da Sárcia, que antes desta esgrima 111 Como touro triste partir costuma,
com Mandricardo Doralice amava, que a bezerra cedeu ao vitorioso,
e ela o pusera dos outros acima, e por bosques solitários se abruma
como uma dama casta costumava4 2 , longe dos pastos, ou ermo arenoso,
que a seu favor tal coisa conte, estima, e à sombra ou ao sol seu brado avoluma,
na decisão que feliz o tornava; sem aplacar seu rancor amoroso;
e essa convicção não tinha ele só, assim vai, pela grande dor confundido,
pois todo o mourisco bando era pró. o rei de Argel, por sua dama excluído.
106 Todos sabiam o que ele tinha feito .1 1 2 Para o corcel recuperar avançou
por ela de justas, duelos e guerra; Ruggier, que para isso já estava armado;
e, ao ver Mandricardo ao acordo atreito, mas de Mandricardo se recordou,
concluem que o tártaro sonha e erra. com o qual à batalha era obrigado;
Mas ele, que oculto tanta vez a jeito não seguiu Rodomonte; atrás voltou
com ela esteve quando o Sol se enterra, para com o rei tártaro ir para o cercado,
sabendo o que de certo tinha em mão, antes que entrasse o rei de Sericana,
ria do popular juízo vão. que outra lide tinha por Durindana.
452 ORLANDO FURIOSO

1 13 Ver levar-lhe Frontin muito lhe pesa, 1 17 Com suspiros de fogo o ar acendia,
ante seus olhos, sem poder obstá-lo; por onde passava, o mouro dolente;
mas, quando puser fim a esta empresa, Eco45 , pela piedade que dele havia,
tem intenção firme de recuperá-lo. dos antros dava resposta frequente.
Já Sacripante, a quem pugna não lesa, - Ó índole feminil (ele dizia),
como a Ruggier, que possa interditá-lo, como viras e mudas facilmente,
e mais nada tem a fazer que aquilo, e a fidelidade em ti se desdiz!
vai atrás de Rodomonte a segui-lo. O que em ti crê mísero é e infeliz!
1 1 4 Iria apanhá-lo, se não se abeira 1 1 s Nem longa servidão, nem grande amor
de um estranho caso que encontrou na via que te foi por mil provas manifesto,
e que até à noite lhe deu canseira, para o coração te prender houve alor
perdendo assim a pista que seguia. ou para não se mudar assim tão presto.
Encontrou uma mulher que na ribeira Não porque a Mandricardo eu inferior
do Sena caíra, e ali perecia te parecesse, privado de ti resto;
se a dar-lhe ajuda rápido não fosse: nem acho outra razão para o meu revés
saltou para a água e para a margem a trouxe. a não ser esta: porque mulher és.
1 15 Quando à sela quis de novo subir, 1 1 9 Creio te tenha Deus e a Natura
por ele não quis esperar o seu cavalo, posto, ó malvado sexo, neste mundo
e até à noite teve de o seguir, para do homem seres um peso, uma agrura,
não sendo coisa fácil apanhá-lo; o qual sem ti seria mais jucundo;
por fim conseguiu, mas já não soube ir tal como criou a serpente impura,
ao carreiro que deixou para encalçá-lo; o lobo e o urso, e torna o ar fecundo
muitas milhas errou por plano e monte, em moscas, vespas, tavões, e semeia
até de novo encontrar Rodomonte. por entre o trigo o joio e a aveia.
1 1 6 Onde o achou e houve combate teso, 1 20 Mas por que não fez a Natura fida
desvantajoso assaz para Sacripante, que o homem nascesse sem o teu esteio,
que perdeu o cavalo e ficou preso, como, por gesto que sua mão envida,
não digo ora; pois conto já adiante de pereiro, macieira, o mundo está cheio?
como, pela raiva e pela ira aceso Não pode ela fazer sempre à medida46 :
contra a dama e contra o rei Agramante, aliás, se eu reparar como a nomeio,
do campo Rodomonte se afastou, vejo que não fará coisa perfeita,
e o que contra um e outro pronunciou. pois Natura ao feminino é sujeita.
121 Mas, mulheres, não sede ufanas, vaidosas,
porque o homem vosso filho se observa;
vede que dos espinhos nascem as rosas,
e o lírio nasce de fétida erva;
importunas, soberbas, despeitosas,
estéreis de amor, lealdade, reserva,
tontas, falsas, más, desagradecidas,
para eterno flagelo em Terra nascidas. -
1 22 Com tais censuras e clamor conexo,
o rei da Sárcia caminho seguia,
ora pensando, num falar reflexo47 ,
ora num tom que de longe se ouvia,
ofensa e censura ao feminil sexo,
e da razão sem dúvida fugia;
pois, por uma ou duas que encontras más,
deves crer que cem boas acharás.
CANTO XXVII 453

1 23 Embora entre as que eu até hoje amei 1 25 Tinha o sarraceno igual aversão
nunca tenha encontrado uma fiel, contra o seu rei, como contra a donzela;
falsas e ingratas todas não direi, tanto passando as marcas da razão
prefiro culpar meu destino cruel. censurando ele, como censurando ela.
Que muitas há, e mais já houve sei, Deseja ver sobre a sua nação
que não dão causa para que se querele; cair tamanho mal, tanta praceia,
mas quer minha sina que se entre um cento que cada casa em África moleste,
uma houver má, em suas mãos me avento. e que pedra sobre pedra não reste;
1 24 Mas procuro enquanto a vida não finda, 1 26 e, corrido do reino, em dor e luto
ou antes que a crina mais me embranqueça, viva Agramante, mísero mendigo;
um dia dizer que para mim ainda e de tudo ele lhe volte a dar desfruto,
alguma haja que os votos não esqueça. e torne a pô-lo no seu trono antigo,
Se acontecer (pois a esperança me guinda mostrando da fidelidade o fruto;
a tal), que minha força não esmoreça, e o faça ver que um verdadeiro amigo,
para torná-la, quanto eu possa, gloriosa com razão ou não, deve ser preposto,
com palavra e tinta, em verso e em prosa. esteja-lhe embora todo o mundo oposto.
454 ORLANDO FURIOSO

1 27 E, assim girando ora ao rei ora à dama 1 29 As provisões para carros e jumentos
o coração dolente, o sarracino eram tiradas dos navios, das arcas,
jornadas cavalga, sem ir à cama, que, escoltados, levavam suprimentos
e pouco deixa repousar Frontino. onde não se podia ir com as barcas.
Um dia ou dois depois, o panorama Cobriam as margens gordos armemos,
junto ao Saône vê, pois fez destino para ali trazidos de diversas marcas48 ;
ao mar da Provença, com a intenção e os seus condutores ao longo do rio
de a África voltar, à sua nação. a noite passavam, no casario.
1 2s De barcas e navios ágeis, de um lido 130 O rei de Argel, porque lhe sobreveio
ao outro o rio encontrava-se pleno; aqui a noite de um céu negro e cego,
para o exército estar abastecido, aceitou o convite que lhe veio
provisões tinham, de vário terreno; dum vendeiro local para ter aconchego.
porque ao poder mouro foi submetido Tratado o corcel, houve à mesa o esteio
desde Paris ao litoral ameno de pratos vários, vinho corso e grego;
de Aigues-Mortes e, na direcção da Espanha, ama o sarraceno a mounsca mesa,
toda a terra que à direita se apanha. mas os vinhos quis beber à francesa.
CANTO XXVII 455

1 31 O vendeiro, com boa mesa e bom viso, 1 36 Pois como a fénix, que não tem matriz,
tentou fazer a Rodomonte honor; não há mais do que uma no mundo viva,
pois do seu aspecto tirou aviso nem mais do que um que com justiça diz
que era homem ilustre e de valor; que à traição de sua mulher se esquiva.
mas encontrando-se ele de si diviso, Cada um julga ser aquele feliz
e sendo o seu coração desertor e único que tal ventura cultiva.
(mau grado seu fora reconduzido Como lhe poderá chegar algum,
à dama que o feriu), estava emudecido. s e no mundo não pode haver mais de um?
132 O bom vendeiro, dos mais diligentes 1 37 Já me encontrei no erro em que vós sois,
que em França jamais foram recordados, que mulher casta mais que uma existisse.
porque entre inimigas e estranhas gentes Um fidalgo de Veneza depois,
a estalagem e os seus bens viu salvados, que a minha sorte fez que aqui surgisse,
para ali dar serviço, alguns seus parentes exemplos verdadeiros me deu, pois,
chamara, para o mester bem preparados; e da ignorância fez que eu saísse.
porém, nenhum deles falar ousava, Gian Francesco Valerio49 era chamado;
tão mudo e pensativo o mouro estava. seu nome não foi por mim olvidado.
1 33 Dum pensamento a outro vagueando, 138 As fraudes que as mulheres e as amigas
de si o pagão estava muito fora; usam, sabia tintim por tintim;
com a cara no chão, nem sequer alçando sobre isso histórias modernas e antigas,
os olhos, a ninguém o rosto aflora. e experiências próprias, tinha sem fim,
Após muito estar quedo, suspirando, onde vi que mulheres ou raparigas
como se tivesse acordado agora, castas não há, rica ou pobre ou afim;
estremeceu e, regressando à vigília, e se uma mais casta que outra parecia,
o olhar ergueu ao homem e à família. assim pareceu porque melhor escondia.
1 34 O silêncio rompeu, e com semblantes 1 39 Entre as outras (pois tantas me contou
mais amenos, rosto menos toldado, que nem um terço posso recordar),
ao vendeiro e aos outros circunstantes mais uma na mente se me gravou
perguntou se tinham mulher ao lado. que se em mármore mandasse cinzelar;
Que o estalajadeiro e os acompanhantes teria pensado, quem a escutou,
as tinham, foi em resposta informado. o que delas continuo a pensar.
Pede ele a cada um que lhe revele E, senhor, se não vos despraz ouvi-la,
se crê que a sua mulher lhe é fiel. para vergonha delas vou referi-la. -
135 Salvo o vendeiro, deram-lhe resposta: 1 40 Responde o mouro: - Que podes contar-me,
- Que elas são castas temos convicção. - que no presente mais prazer me faça,
E o vendeiro: - Cada um no que gosta que uma história ou algum exemplo dar-me
crê; eu sei que haveis falsa opinião. que meu próprio juízo satisfaça?
A vosso néscio crer faço eu aposta Para melhor eu ouvir, e tu narrar-me,
de que nenhum de vós tenha razão; senta-te em frente, para ver tua traça. -
a si, senhor, igual ideia arranco, No canto a seguir narro o conto inteiro
para não fazer passar preto por branco. que a Rodomonte disse o taberneiro.
456 ORLANDO FURIOSO

NOTAS
--&!lfix--
1 25
Advertência inadvertida: paranomásia também pre­ Rei [. . .} Sericana: Gradasso.
sente no original.
26
Quando [. . .} caçador: os antigos criam que os genitais
2
Lampo: fulgor (de força e saber) que eram, para ele, do castor tinham propriedades medicinais.
Orlando e Rinaldo.
27
Na barra: dentro do cercado.
3
Um [. . .} fraudulento: cf. II: 12 ss.
28 Vtiza: cartas que saíram na jogada.
4 Ir [. . .} sorte: cf. 11:26.
29
Em total desafogo: à vista de todos.
5 A honra [. . .} A amante: cf. XVI:28 ss., e XVIII: 1 46 ss.
gr
30
Rei [. .. } filho: Marsilio, rei sarraceno de Espanha, e
6
Anglante [. . .} Brava: castelos de Orlando. Agramante, o rei africano.
7 31
Velho adversário: Satanás. Armas [. . .} progenitor: cf. nota a XIV: 1 1 8- 1 1 9.
8 32
Alçapão: toca. Perto [..} chamado: o nome original do cavalo, Frontalatt.e,
derivava da mancha branca como leite (latte) que tinha
9
Vizinho [. . .} culposa: o lavrador em cujas terras ela na fronte.
tem a toca.
33
Venda: cobertura.
1 ° Carlescos: de Carlos.
34
Soberano [. . .} sericano: Gradasso.
11
Como [. . .} pena: ter asas, como fcaro teve.
35 Aquele [...} reconhecia: reconhecia em Frontino o cava­
12
Marquês de Viena: Oliviero. lo que Brunello montava quando lhe roubou a espada.
13 36
De [. . .} chorando: seria forçado a abandonar Paris. Com [. . .} contentamento: dou o seu corpo aos corvos.
14 37
Grande fogo: sangrenta batalha. Anel [. . .} tirado: por Bradamante (cf. IV: 14) .
15 38
Miguel: o arcanjo. Floresta ardena: floresta das Ardenas.
16 39
Quem [. . .} ter: quem vai travar o primeiro combate. Cévennes: cordilheira francesa, no baixo Ródano.
17 40
Caprichosa deia: a Fortuna. Delfos: o oráculo de Apolo, em Delfos.
18 41
De Sárcia [. . .} senhor: Rodomonte. O tártaro e o africano: Mandricardo e Rodomonte.
19 42
Sabe [. . .} lide: sabe que esgotarão as forças, ou mor­ Como [. . .} costumava: concedendo-lhe apenas os
rerão, no primeiro combate. favores que uma dama casta concedia.
20 44
De [. . .} caminhada: na estrada entre Parma e Borgo Leve: leviana.
San Donnino.
43
Ela: a espada.
21
Vestem-no [. .. } serpente: vestem a Rodomente a sua
45
couraça feita de pele de serpente ou dragão (cf. nota a Eco: a deusa Eco (cf. nota a X:49) .
XVIIl: 1 2) .
46
À medida: convenientemente.
22
Hercúleas [. . .} colonas: habitantes das proximidades
47
das colunas de Hércules (Gibraltar) . Falar reflexo: interiorizado.
23 48
De Stordilan [. . .}filha: Doralice. Marcas: regiões.
24 49
Termodonte [. . .} beira: talvez o rio Termodonte tenha Gian Francesco Vtilerio: fidalgo veneziano, amigo de
visto assim vestidas Hipólita (rainha das Amazonas) e as Ariosto (cf. XLVI: 1 6) , que aparentemente tinha ideias
companheiras, à sua beira. misóginas.

CANTO XXVIII

Damas, e vós, que as tendes em apreço,


por Deus, afastai desta história a orelha,
que para contar, em vosso desapreço
e vossa infâmia, o vendeiro se aparelha;
não dando embora nódoa ou adereço
língua tão torpe, e sendo usança velha
que o vulgo vil a todos repreenda,
e que mais fale do que menos entenda.
2 Deixem este canto, pois bem sem ele
a história passa, sem ser menos clara.
Turpino o incluiu, e a tal me impele,
mas rancor ou aversão não declara.
Que vos amo, a língua a dizer compele,
que de vos celebrar não é avara:
já vos demonstrei, e demonstrar posso
que sou e que só poderei ser vosso.
3 Passe, quem quiser, sem ler em sequência,
três, quatro folhas; ou, dando atenção,
dedique-lhe aquela mesma credência
que dedica à fábula e à ficção.
Mas atrás voltando, quando a audiência
viu à espera de ouvir a descrição,
dando-lhe posto em frente ao cavaleiro,
iniciou a história o taberneiro.
458 ORLANDO FURIOSO

4 - Astolfo,rei dos Lombardos, aquele 7 «Direi (respondeu Fausto) que segundo


a quem deixou o irmão monge o trono, aquilo que vejo, e dos outros zunzum,
tanta beleza em jovem teve ele tens em beleza poucos pares no mundo;
que poucos houve dignos desse abono. e esses poucos reduzo só a um:
Custaria a tal fazer a pincel é um irmão meu, chamado Jocundo.
Apeles, Zêuxis 1 , ou outro mais prono. Tirando ele, creio que mais nenhum
Belo era, e cada um belo o achava, possa haver que em beleza te ultrapasse;
mas muito mais ele se considerava. só este julgo que te iguale e passe».
s Menos valor dava a que, pela alteza Pareceu ao rei impossível de ouvir,
do cargo, tudo fosse que ele menor; que a palma até então levado tem;
nem também que, pelas gentes e a riqueza, e grande desejo de descobrir
dos reis vizinhos fosse ele o maior, esse jovem tão gabado lhe vem.
como ter, em presença e em beleza, Tanto instou com Fausto para fazer vir
no inteiro mundo o primeiro honor. o irmão, que dele promessa obtém;
Deleite tinha de ouvir-se louvar, embora convencê-lo a tal visita
o maior que ouvir algo pode dar. custoso fosse, e a razão lhe debita:
6 Tinha entre outros na corte com agrado 9 seu irmão era homem que em andança
Fausto Latini, cavaleiro romão; nunca de Roma saíra na vida;
pelo qual muitas vezes sendo louvado, a qual, do bem que a sorte lhe afiança,
pelo belo rosto, ou pela linda mão, calma e sem cuidado tinha nutrida:
e, tendo-o certo dia interrogado riqueza que do pai houve em herança,
se já vira, nessa ou noutra região, nem fora aumentada nem diminuída;
outro homem como ele tão bem constituído, e mais distante iria achar Pavia2
contra o esperado foi-lhe respondido. do que ir ao rio Don3 a outrem parecia.
10 Seria a dificuldade maior
conseguir afastá-lo da mulher,
à qual o ligava tão grande amor
que, não querendo ela, ele não pode querer.
Mas para lhe obedecer, que é seu senhor,
disse ir, e mais que o possível fazer.
Deu-lhe o rei tantas prendas para o irmão
que para recusas não deixou razão.
11 Partiu, e em poucos dias se encontrou
chegado a Roma, no paterno lar.
Ali, ao irmão tanto suplicou
que a Pavia o convenceu a viajar;
e conseguiu (mas difícil achou)
levar sua cunhada a concordar,
mostrando-lhe o bem que daí viria,
e sempre agradecido ficaria.
12 Jocundo para a partida fez contorno:
a cavalos e servos deu adianto,
mandou fazer roupas com muito adorno
(pode acrescer beleza um belo manto).
De noite ao lado a mulher, e em torno
de dia, com os olhos rasos de pranto,
diz que não sabe como vai sofrer
tanta separação, e não morrer;
CANTO XXVIII 459

13 só de tal pensar, sente da raiz 19 Pensa na escusa, e depois vem-lhe à mente


o coração soltar, do lado canho. que não será aceitável nem boa
«Ai, minha vida, não chores (lhe diz mande escudeiros ou mande outra gente,
Jocundo, e dentro é seu pranto tamanho); se ele próprio não for lá em pessoa.
assim me seja a viagem mui feliz, Pára e ao irmão diz: «Vai lentamente
e daqui a dois meses cá me apanho; até Baccano4, e à estalagem aproa;
nem um dia tal termo passar há-de, tenho por força a Roma de voltar,
mesmo que ele me dê do reino metade». espero inda no caminho te apanhar.
14 Mas nem assim a dama se conforta, 20 Não pode outro por mim fazer desvio,
e diz que tão longa ausência a aguilha; mas breve de novo junto a ti chego».
e, se ao voltar a não encontrar morta, Cavalgando a trote se despediu,
será caso para grande maravilha. sem de algum servo querer ter aconchego.
Pela dor que noite e dia a desconforta Começava já, ao passar o rio5 ,
não prega olho, comida não rilha; diante do Sol a fugir o ar cego.
com dó tem-se Jocundo arrependido Chega a casa, vai ao leito, e a consorte
de a seu irmão, que ia, ter prometido. encontra entregue a um sono mui forte.
. .
1s Do colo um colar ela desprendeu, 21 A cortina afastou muito pacato,
que uma cruz cravada de gemas tem, e vm o que ver menos esperana:
e santas relíquias que recolheu a casta e fiel mulher no recato
um boémio peregrino, aqui e além; das cobertas com um jovem jazia.
seu pai, que em sua casa este acolheu Reconheceu o drudo de imediato,
doente, ao voltar de Jerusalém, pelo longo trato que com ele havia;
ao morrer em herança lha deixou; de sua família era ele garção,
tirou-a, e ao marido a ofertou. por si criado, de húmil condição.
16 E que por seu amor a use ao peito 22 Se atónito ficou e descontente,
pede, para que a lembre com perseverança. mais vale pensar e a outros dar ouvido
O marido aceitou-a satisfeito; que jamais ser, por experiência, ciente
não porque precise de ter lembrança, da grande dor que este terá sentido.
pois tempo e ausência não dão defeito, Pela raiva tomado, quis de repente
boa ou má seja a sorte que o alcança, com sua espada ambos ter destruído;
à memória que dela sempre forte mas o amor que à ingrata tem, faz
tem gravada, e terá após a morte. que de tal gesto não seja capaz.
1 7 A noite passada antes dessa aurora 23 Nem o deixou, esse velhaco Amor
que foi o prazo extremo para a partida, (vejam como o tinha feito vassalo),
nos braços dele a morte quase aflora, acordá-la, para não lhe causar dor
por dele em breve estar desguarnecida. por ser por ele apanhada em resvalo.
Não dorme, e antes do dia uma hora Saiu sem fazer o menor rumor,
fez o marido última despedida. desceu a escada, montou a cavalo;
Montou e foi-se embora, com efeito; picado ele de amor, tanto o picou
deitou-se a mulher de novo no leito. que antes do albergue o irmão apanhou.
1s Jocundo duas milhas não andara, 24 A todos pareceu mudado na face,
quando, nisto, da cruz foi recordado, e que seu coração não tinha ledo;
que sob a almofada à noite pousara, mas não há um que a verdade devasse,
tendo-a por esquecimento ali deixado. podendo penetrar no seu segredo.
«Diabo! (disse) não se me depara Pensaram só que deles se afastasse
pretexto que lhe seja apresentado, para a Roma ir, e a Corneto6 foi, tredo.
que não ache ela que eu pouco credito Que amor é causa, cada um divisa;
o seu amor por mim, que é infinito!» mas o que nenhum sabe é de que guisa.
460 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXVIII 461

2s A Fausto não só consome o desvelo


por vê-lo a tal condição reduzido,
mas custa tê-lo gabado com zelo
ao príncipe, parecendo ter mentido;
prometeu trazer-lhe o homem mais belo,
e o mais feio afinal terá trazido.
Contudo, prosseguindo a sua via,
conseguiu chegar com ele a Pavia.
29 Não quer que o rei o veja de improviso,
para tal não ser de seu tino lesivo;
por carta lhe manda adiante aviso
de que seu irmão a custo vem vivo;
e que ao aspecto do seu belo viso
um mal de coração fora nocivo,
a que uma febre má fez companhia,
não parecendo já aquele que soía.
30 Grata foi a chegada de Jocundo,
quanto ao rei fosse por amigo ter;
pois não tinha desejado no mundo
outra coisa, como podê-lo ver.
Gosta até que ele lhe seja segundo,
por em beleza atrás permanecer;
mas reconhece que, não fora o mal,
lhe seria superior ou igual.
25 Imagina o irmão que a dor o toca, 31 Logo que chega aloja-o no seu paço,
por a mulher deixar abandonada; visita-o sempre, e ouve informação;
pelo contrário, dor e raiva o sufoca tudo dispõe para que esteja relasso,
por estar demasiado acompanhada. com gosto busca que tenha atenção.
Cenho pesado e saliente boca, Jocundo enlanguesce: o espectro devasso
infeliz está, no chão pousa a mirada. que tem da mulher é sua obsessão;
Fausto, para animar, todo o modo segue; nem jogos ver, ou músicas ouvir,
por não saber a causa, não consegue. um grão da dor pode diminuir.
26 Com o remédio oposto lhe unta a chaga, 32 Seus aposentos, que são junto ao tecto,
e, querendo tirá-la, a dor faz crescer; acesso têm de uma sala antiga.
em vez de a fechar, mais abre e alaga: Aqui, só (porque tudo o que é faceto,
isso lhe faz ao lembrar-lhe a mulher. e toda a companhia é-lhe inimiga),
Não dorme à noite: o sono se lhe apaga se recolhia, ao seu sofrer secreto,
e o apetite, sem reacender; em pensamento, acrescendo a fadiga;
e a face, que primeiro era tão bela, e aqui encontrou (quem tal julgaria?)
tanto muda que já nem parece ela. quem o curou da chaga doentia.
27 Parecem esconder-se os olhos na testa; 33 Numa ponta da sala, onde é mais escuro
do rosto magro o nariz lhe saía: (que ali não se usa as janelas abrir),
da beleza já tão pouco lhe resta nota que o soalho não se liga ao muro,
que à do outro comparar vão seria. deixando um ar mais claro dali sair.
A dor lhe trouxe febre tão molesta Ali espreita, e vê aquilo que duro
que no Arbia e no Arno7 fez estadia: de crer seria, se o fosse referir:
se algo restava da feição formosa, ninguém lho conta, ele mesmo o vê;
ficou tal fica ao sol colhida rosa. e até nos seus próprios olhos não crê.
462 ORLANDO FURIOSO

34 Ali, da rainha vista desfruta 36 E da sua mulher, que ele perplexo


da mais secreta câmara e mais bela, mais que todas condenava, lembrou-se,
a qual nenhuma pessoa perscruta que àquele rapaz se unira em seu amplexo;
se por muito fiel não a tiver ela. e ora achava que desculpável fosse.
Dali olhando viu que em estranha luta Não era culpada, mas o seu sexo,
um anão enlaçado estava nela; que de mais que um homem tem de ter posse;
e aquele minorca tal arte tinha e, tendo todas o mesmo defeito,
que por baixo tinha posto a rainha. a sua ao menos não quis um mal feito.
35 Atónito, Jocundo, e estupefacto, 37 E no dia seguinte, à mesma hora,
ali esteve a pensar ser sonho seu; àquele mesmo lugar vai e espreita:
mas quando percebeu que era de facto, com a rainha o anão colabora,
e não em sonho, nos seus olhos creu. eis que ao rei fazem a mesma desfeita.
«Pois a um monstro corcunda e mal apto No outro dia vê que se labora,
esta (disse para si) se submeteu, e no outro; descanso não se aceita;
se por marido um com tão belo rosto, e a rainha (o que lhe faz confusão)
tão gentil e grande rei tem? Que gosto!» reclama que pouco a ama o anão.
CANTO XXVIII 463

38 Num desses dias esteve ele a ver que ela 44 Se ao rei pareceu aquele acto indecente,
estava indisposta e com melancolia; o julgareis, sem que eu o encareça.
duas vezes fez chamar pela donzela Quase ficava raivoso ou demente;
o anão, mas ele não aparecia. nas paredes quis bater com a cabeça;
Terceira vez mandou, e ouviu aquela quase grita, quase a jura desmente;
que: «Senhora, ele joga (referia); mas a boca fecha e cumpre a promessa,
e, para num tostão não ficar roubado, e a sua ira engole, amara e acra,
recusa-se a vir a vós, o malvado» . porque jurara sobre a hóstia sacra.
39 Com tão raro espectáculo, Jocundo 45 «Que faço eu, irmão? De algo me persuade
recompõe a fronte e os olhos e o viso; (disse a Jocundo), já que tu não deixas
como era o nome, tornou-se jucundo que, com digna vingança e crueldade,
de facto, e mudou o seu pranto em riso. esta ira extravase, e minhas queixas. »
Fez-se alegre, robusto, rubicundo, «Esqueçamos (disse ele) sua indignidade;
parecia um querubim do paraíso; vejamos se as outras são tão releixas:
o rei, o irmão, toda a ordenança, com mulheres doutros, façamos a eles
ficam admirados com tal mudança. o mesmo que a nós fizeram aqueles.
40 Se queria de Jocundo o rei ouvir 46 Somos ambos jovens, e em beleza
donde lhe veio aquele súbito alor, não será fácil achar a nós par.
não menos Jocundo o queria referir, Que mulher usará connosco aspereza,
e da injúria o rei fazer sabedor; se os feios não conseguem rejeitar?
mas não queria, mais que ele próprio8 , punir Se juventude não chega, e lindeza,
quisesse o rei a mulher pelo error; o nosso dinheiro deve chegar.
para lho contar sem a ela dar dano, Não voltaremos, sem teres tu e eu
sobre o agnus dei9 jurou o soberano. de mil mulheres alheias o troféu.
41 Fê-lo jurar que ou por coisa contada, 47 A longa ausência, sítios vários ver,
ou que mostrada sendo o desagrade, e a convivência com mulheres de fora,
e embora vendo que prejudicada faz desafogar e desvanecer
directamente é sua majestade, a paixão que o coração acalora».
jamais aquela acção será vingada; Concorda o rei, e nem protelar quer
e diz-lhe ainda que calar ele há-de, a ida; e em pouco mais duma hora,
para jamais vir a saber a culposa com dois escudeiros, e na companhia
que o rei sabe, ou por acção ou por prosa. do cavaleiro romão, faz-se à via.
42 O rei, que qualquer coisa e nunca esta 48 Disfarçados, batem Itália, França,
podia crer, jurou-lhe inteiramente. as terras de Flamengos e de Ingleses;
Jocundo o motivo lhe manifesta e todas que viam de bela trança
pelo qual esteve tantos dias doente: eram às suas pretensões corteses.
porque tinha encontrado a desonesta Davam, depois faziam a cobrança,
mulher sua nos braços dum servente; e recuperavam o gasto às vezes.
e que essa pena ao fim o teria morto, A tantas solicitaram aqueles,
se mais tardasse a chegar-lhe o conforto. como as que os solicitaram a eles.
43 Pois tinha visto, ao seu palácio vindo, 49 Um mês uma cidade, outra depois
algo que à dor lhe dava atenuação; visitando, puderam pôr à prova
pois, embora no opróbrio caindo, que são as outras como as suas, pois
de não estar só tinha a consolação. que castas e fiéis não são se comprova.
Assim dizendo, e àquela fresta indo, Após algum tempo enjoou aos dois
deixou-o ver o feíssimo anão andar à procura de coisa nova;
que na jumenta alheia está montado, que, em porta alheia sempre entrando ariscos,
a esporeia e lhe faz dar ao costado. corriam de morte inúmeros riscos.
CANTO XXVIII 465

so Melhor será ter uma, a qual em graça 51 Tendo uma, sem esforçar nosso poder,
e em modos aos dois agradável seja; quando só pelo desejo compelidos,
que a ambos de igual modo satisfaça, alegres gozaremos e em prazer,
para que um do outro nunca tenha inveja. sem sermos por desavenças movidos.
«E por que (disse o rei) crês mais me maça Nem creio que ela se deva doer:
contigo a ter que com outro que eleja? pois qualquer uma, tendo dois maridos,
Sei bem que em toda a feminina gente mais que a um só, seria a dois fiel;
uma não há a quem um só contente. talvez nem houvesse tanto aranzel».
CANTO XXVIII 467

52 Tudo o que o rei disse satisfação 54 Levam a rapariga, e prazer hão


pareceu provocar ao Jovem romano. com ela à vez, em bom acordo e paz,
Com ideia firme em tal pretensão, como alternadamente foles dão
buscaram muito monte e muito plano; sopro à fornalha para a manter vivaz.
por fim acharam, para a sua intenção, Para ver toda a Espanha dali se vão,
a filha dum estalajadeiro hispano querendo ir depois ao reino de Sifaz 1 1 ;
dum albergue, no porto de Valência 10 , no dia em que de Valência abalaram,
agradável de modos e aparência. em Játiva, não longe, se albergaram.
53 Floria ainda nela a Primavera, 55 Os patrões vão ver ruas e edifícios,
mostrando tenra e quase acerba idade. os lugares públicos e os divinos;
O homem de muitos filhos pai era, hábito têm de tais benefícios
muito apertado pela necessidade; em cada terra a que vão, peregrinos;
para o convencer não estiveram à espera fica a moça com os moços de ofícios 1 2 •
que a filha lhes desse em propriedade; Uns camas preparam, outros equinos,
onde quisessem podiam levá-la, outros cuidam para os senhores ao voltar
pois tinham prometido bem tratá-la. terem a mesa posta para cear.
468 ORLANDO FURIOSO

56 No albergue um moço havia, ajud�te, 62 Pensa ela um pouco, e depois diz que venha
que já em casa da jovem morou quando estiver certo que tudo dorme;
ao serviço do pai, e dela amante, baixo lhe diz como fazer convenha,
que de seus amores iniciais gozou. para à ida e à volta fazer conforme.
Bem se olharam, disfarçando o semblante, O Grego, tal como ela lhe desenha,
pois ser notado cada um receou; quando sente que o sono é uniforme,
mas, logo que patrões e serviçais à porta vai, empurra-a, e abre-se ela:
espaço lhes deram, foram mais liberais. manso entra, de pé à apalpadela.
57 Perguntou-lhe o rapaz onde ela ia, 63 Dá longos passos, e no pé de trás
e qual dos senhores ela acompanhava. se firma, parecendo o outro avançar
Contou Fiammetta a dupla mancebia como quem vidro embater lhe despraz,
(ela tal, e ele o Grego se chamava). e não chão, mas ovos, esteja a pisar;
«Quando pensava, raios!, que podia de igual modo à frente com a mão faz,
viver contigo (o Grego reclamava), tacteando até o leito encontrar;
Fiammetta, minha vida, vais-te embora, do lado onde os outros tinham o pé,
nem sei se te vejo depois de agora. avança ele, com os seus pés à ré.
58 Amargos vejo meus sonhos fagueiros, 64 Entre uma perna e outra de Fiammetta,
pois de outrem és, e vais para outros lados. que jaz de costas, faz direito piso;
Eu tencionava, tendo alguns dinheiros chega-lhe à face e a ela se acolcheta,
com canseira e muito suor poupados, e até à alva nela está inciso.
que dos salários pus nos mealheiros, Cavalgou forte, sem fazer estafeta 14 ,
e adiafas de fregueses saciados 13 , que de besta mudar não lhe é preciso:
voltar a Valência, e solicitar pois acha ele que esta trota tão bem
a teu pai licença para te esposar». que por toda a noite debaixo a tem.
59 A rapariga seus ombros constringe, 65 Tinha Jocundo e tinha o rei sentido
e responde que foi tardo a aparecer. o cavalgar que o leito sacudiu;
Chora o Grego e suspira, e em parte finge: um e outro, pelo erro confundido,
«Então assim me queres deixar morrer? ao seu companheiro o atribuiu.
Meus flancos ao menos abraça e cinge, Tendo o Grego sua viagem cumprido,
deixa tanto desejo comprazer; assim como veio se escapuliu.
antes de partires, qualquer momento Soltou o Sol do horizonte os raios;
que esteja contigo me dá contento». Fiammetta alçou-se e fez entrar os aios.
60 Responde-lhe a piedosa rapariga: 66 Disse o rei ao amigo, motejando:
«Pensas que menos do que tu me inflamo; «Irmão, muito caminho tu fizeste;
mas nem tempo nem lugar se !obriga, mais tempo deves repousar-te, quando
tendo aqui de tantos olhos açamo». a cavalgar toda a noite estiveste».
Ajuntava o Grego: «Se a mim te liga Jocundo respondeu-lhe, retrucando:
um terço só do amor com que eu te amo, «Devia eu dizer o que me disseste.
hás-de esta noite arranjar algum choco Toca a ti repousar, e bem te faça,
para juntos podermos gozar um pouco». pois toda a noite cavalgaste à caça».
61 «Como posso eu (a rapariga adverte), 67 «Também eu (disse o rei) verdade falo:
se no meio dos dois a noite passo, meu cão deixar correr ser-me-ia grato,
e um ou outro comigo se diverte, se me houvesses emprestado o cavalo
e tenho sempre de um ou de outro o abraço?» para meus fins alcançar, o tempo exacto».
«Para ti nada é que se não conserte Jocundo replicou: «Sou teu vassalo,
(disse o Grego); livrar-te do embaraço, fazes comigo ou quebras qualquer pacto:
de entre eles sair, podes se quiseres: não precisas subterfúgios usar;
deves querer, se pena de mim tiveres». bastava me dissesses: deixa-a estar».
CANTO XXVIII 469

68 Um replicava, o outro acrescentava, 74 Assim concluindo, chamar fizeram


e a zanga parece entre eles se extreme. por Fiammetta em pessoa o seu amante;
Da palavra à ofensa se passava, e na presença de muitos lha deram
que ser escarnecido a cada um preme. por mulher, e dote que foi bastante.
Chamam Fiammetta (que longe não estava, Montaram, e o seu caminho estenderam,
e ser descoberta da fraude teme), em vez de poente, ora para levante;
para na cara de um e outro referir e para as suas mulheres ambos voltaram,
o que, negando, pareciam mentir. com as quais desgostos não mais passaram. -
69 «Diz-me (disse o rei, com ar alteroso), 75 O estalajadeiro à história fim deu,
sem que nada temas de mim nem deste; a qual foi com muita atenção ouvida.
quem toda a noite foi o audacioso O mouro 15 ouviu e não interrompeu
que te gozou, sem que ao outro te empreste?» uma palavra, até estar exaurida.
Crendo um provar que o outro é mentiroso, Por fim: - Feminis fraudes, creio eu,
esperam ambos que a resposta ela preste. ocultas estão em cópia desmedida;
Fiammetta aos seus pés se lançou, incerta a milésima parte não podia
de mais viver, vendo-se descoberta. escrever-se, se todo o papel se enchia. -
70 Pediu-lhes perdão, porque pelo amor 76 Um homem mais idoso, que mais recta
que a um jovem tinha fora movida; ideia tinha, astúcia e decisão,
e, por pena dum peito sofredor não suportando ouvir que tão abjecta
que por ela tinha ansiado, vencida, toda a mulher fosse em tal opinião,
tinha de noite feito tal error; voltou-se ao que contara a historieta
e aclarou, sem dizer coisa fingida, e disse: - Ouve-se tanta narração
que entre eles deitada a esperança tivera que em si não contém verdade nenhuma;
que ambos cressem que o companheiro era. a tua fábula dessas é uma.
71 Jocundo e o rei olharam-se no viso, 77 Àquele que te a narrou não dou credência,
de admiração e espanto confundidos; mesmo evangelista sendo no resto;
nem recordam jamais ter tido aviso que mais opinião do que experiência
de serem outros dois tão iludidos. de mulheres tenha o faz ser imodesto.
Depois explodiram igualmente em riso: Por numa ou duas ver malevolência,
de boca aberta e olhos comprimidos; todas censura, o que não é honesto;
mal podendo tomar fôlego no peito, se a ira lhe passar, tu escuta-o bem,
para trás se deixaram cair no leito. que em vez de as censurar, só louvores tem.
n Depois de tanto rirem, que doer
sentiam o peito e chorar os olhos,
disseram-se: «Como podemos ter
cuidado que a mulher nos não dê escolhos,
se não basta entre dois esta meter,
apertada, como entre dois abrolhos?
Mais que pêlos, olhos haja o marido,
e não pode impedir de ser traído.
73 Mil experimentámos já, e todas belas;
delas nenhuma nos opôs contraste.
Se outras provarmos, igual farão elas,
mas como última prova esta nos baste.
As nossas menos fiéis do que aquelas
não são, ou castas, para que nos agaste:
se elas como todas as outras são,
para elas voltar é melhor acção».
470 ORLANDO FURIOSO

78 E, se louvar quiser, terá maior 84 Para o discurso ilustrar tinha o isento


o campo do que para dizer mal teve: e justo velho exemplo preparado,
de cem pode falar dignas de honor, de mulheres que em acção ou pensamento
contra uma que censurar se deve. o seu pudor jamais tinham lesado.
Não condenar todas, mas dar valor, Mas o mouro, que ao vero era odiento,
e a bondade de tantas se releve; ameaçou-o com ar assanhado,
falou Valerio de modo diferente, e fez com que por temor se calasse;
mas foi só por ira, e não pelo que sente. mas não fez que de opinião mudasse.
79 Digam-me cá: há, entre vós, algum 85 Pondo fim à conversa e à discussão,
que fiel a sua mulher se vê? o rei pagão levantou-se da mesa;
Negam aqui que não vos é comum e para dormir estendeu-se no colchão,
a outras ir, e inda lhes dar mercê? até dissipar da noite a escureza;
Julgam que em todo o mundo encontram um? mas da dama a ofensa ocupação
Quem o diz mente, e louco é quem o crê. maior lhe deu que do sono a moleza.
Encontrais vós alguma que vos chame? Quando surge do novo dia o brilho,
(não falo da que é pública e infame). planeia num navio seguir seu trilho.
80 Conheceis algum vós que não deixasse 86 Sendo porém tocado pelo respeito
sua mulher, inda que fosse bela, que o cavaleiro ao corcel tem sincero,
para seguir outra dama, se esperasse por aquele17 belo e bom que com despeito
depressa e facilmente obter aquela? levara de Sacripante e Ruggiero,
Que faria se lhe solicitasse, e mais de dois dias tinha sujeito
ou prendas lhe desse, dama ou donzela? a esforço imerecido com exagero,
Para lhes agradar, ou este ou aquele, a metê-lo numa barca se apressa,
estou certo que lá deixaria a pele. e para alcançar o porto mais depressa.
81 Aquelas que os seus maridos deixaram 87 Sem delongas ir à água o barqueiro
as mais das vezes tiveram razão. manda, e remar, abandonando a praia.
Daquilo que em casa têm enjoaram, Não muito grande e com peso ligeiro,
e fora, desejosos de outras são. pelo Saône abaixo a barca se espraia.
Amar deviam, se amor desejaram, De Rodomonte se mantém certeiro
e tê-lo na medida que lhes dão. o pensar, sem que água ou terra o distraia:
Faria eu (fosse eu legislador) encontra-o seja à proa seja à popa,
lei a que ninguém se pudesse opor. e leva-o na grupa enquanto galopa.
82 A lei seria que à mulher colhida 88 No coração de assento se provê,
em adultério fosse dada a morte, e todo o conforto exterior lhe cerra.
se não provasse que uma vez na vida Defesa o infeliz para si não vê,
adúltero tinha sido o consorte; pois o imigo dentro em si encerra.
se o pudesse provar era absolvida, Não sabe de onde lhe venha mercê,
sem temer o marido nem a corte • 16
se são os seus os que lhe fazem guerra;
Nos seus preceitos, deixou Cristo a nós: de noite ou dia, está sempre a atacá-lo
não fazei o mal que não quereis para vós. esse cruel que devia ajudá-lo.
83 Incontinência é o mal que se aponta 89 O dia e a noite navega em frente
às mulheres, porém a todas não tacha. Rodomonte, e há no peito ânsia grave;
Mas nisso, quem a pior nota conta? não pode a ofensa afastar da mente,
Pois continente nem um só se acha. que da dama e do rei lhe deu entrave;
E mais razões tem se cora e se afronta, o mesmo desgosto e a mesma dor sente,
pois em blasfémia e roubo se relaxa, que a cavalo sentia, agora em nave;
fraude, usura, homicídio e o que há pior nem na água pode o fogo apagar:
o homem; raro é terem outro autor. - seu estado não muda ao mudar lugar.
CANTO XXVIII 471

90 Como o doente que, exausto e prostrado 96 Quem ela é, e o monge com quem ia,
pela febre ardente, lado vai mudando, e quem transportam, deve ser-vos claro.
e espera sentir melhorar seu estado lsabella decerto vos parecia,
se para cá e para lá se vai voltando, levando morto o seu Zerbino caro23 •
mas dos dois igualmente é massacrado, Quando para a Provença se dirigia,
à destra ou à canha não repousando, escoltada a deixei pelo monge preclaro,
tal o pagão, para o mal de que é enfermo, que a tinha persuadido a todo o resto
na terra ou na água não acha termo. a Deus votar do seu viver honesto.
91 Para na nave andar já não tem paciência, 97 No rosto mui pálida e combalida
e a terra manda acostar Rodomonte. ia a jovem, cabelo solto em fios;
Passa em Lião, em Viena e em Valência 1 8 , dos suspiros é contínua a saída
e vê em Avignon a rica ponte19 ; do peito arfante, e os olhos são dois rios;
estas e mais cidades obediência, e outros mais testemunhos duma vida
que entre o rio há e o celtibero monte20 , triste e infeliz não estão arredios;
devem a Agramante e ao rei de Espanha porém, de tanto encanto inda é dotada
desde que estes venceram a campanha2 1 • que, com as Graças, a Amor dá morada.
n Para Aigues-Mortes à direita volveu, 98 Quando o sarraceno viu a donzela
pensando a Argel passar de seguida; surgir, mandou o pensamento ao fundo
junto a um rio numa aldeia embateu, que tinha sempre, de odiar aquela
por Baco e Ceres mui favorecida22 , raça gentil que tanto adorna o mundo.
mas, pelos muitos assaltos que sofreu E bem digna lhe pareceu lsabella
da tropa, dali fugiu toda a vida. de lhe dedicar seu amor segundo,
Dum lado o imenso mar, doutro à abriga dando ao primeiro total desapego,
do vale vê ondear a loura espiga. como da tábua sai prego com prego.
93 Sobre um outeiro, encontra de surpresa
uma capela há pouco edificada,
que, desde que a guerra foi perto acesa,
pelos sacerdotes foi abandonada.
A Rodomonte deu morada ilesa;
pois pelo sítio, e por estar tão afastada
da moura gente, pois não queria vê-la,
agradou-lhe, e trocou Argel por ela.
94 O intento de ir para África repele,
tão cómodo o lugar achou e belo.
Os servos, carruagens e corcel,
todos ali encontram refestelo.
Que perto é de Montpellier vê ele,
e de um ou outro rico e bom castelo,
aquela aldeia ao lado da ribeira;
por isso, tem à mão tudo o que queira.
95 Um dia, estando o mouro ali pensoso
(no que estava quase sempre ocupado),
viu que vinha pelo meio dum prado herboso,
por um pequeno atalho atravessado,
uma donzela de rosto formoso,
na companhia de um monge barbado;
e atrás carrregado ia um corcel,
coberta a carga por negro dossel.
472 ORLANDO FURIOSO

99 Foi-lhe ao encontro, e com o mais dengoso 101 O monge que a tal estendia a orelha,
falar que soube, e o melhor semblante, para socorro dar à jovem incauta
mostrou-se de seu estado mui curioso; (que a não reconduzam à via velha),
ela, sua intenção lhe pôs diante; sentado ao leme, qual prático nauta,
que ia deixar este mundo maldoso, de alimento espiritual aparelha
e Deus honrar de modo edificante. lesto uma mesa sumptuosa e lauta.
Ri, altivo, o pagão que em Deus não crê, Mas o mouro, que nasceu com mau gosto,
imigo da religião e da fé. mal a provou, logo lhe deu desgosto;
100 Diz que é intenção impensada e leve, 102 depois que em vão o monge interrompeu
e que ela sem dúvida muito erra; e não conseguiu que ele se calasse,
mais que o avaro censurar se deve, o tra,ii.0 da p'lciência rompeu:
que o valioso tesouro soterra: deitou-lhe as mãos com um furor rapace.
para si benefício nenhum prescreve, Mas podia parecer o contar meu
e do uso dos outros o encerra. excessivo, se mais ora contasse;
Fecha-se o leão, ursos e serpentes, termino o canto; e sirva-me de espelho
não as coisas belas e inocentes. o que por muito falar houve o velho.

NOTAS
--&$'r-
1 12
Apeles e Zêuxis : célebres pintores gregos da Moços de oflcios: serviçais da estalagem.
Antiguidade.
13
Saciados: satisfeitos.
2
Pavia: era capital do reino da Lombardia.
14
Sem fazer estafeta: sem mudar de cavalgadura.
3
Don: rio da Rússia, que desagua no mar de Azov.
15
O mouro: Rodomonte.
4 Baccano: hoje Valle di Baccano, aldeia entre Orvieto
16
e Perugia. Cor te: tribunal.
5 Rio: o Tibre. 17
Aquele: Frontino.
6 18
Corneta: hoje Tarquínia, no litoral toscano. Ariosto Lião, Viena e Valência: cidades francesas; a primeira,
faz, nomeando esta povoação, um jogo de palavras ade­ na confluência do Saône com o Ródano; Vienne e
quado à situação de infidelidade conjugal. Valence, a sul da primeira, banhadas pelo Ródano.
7 Arbia [ . .] Arno: rios da Toscana. Valem aqui pelas 19
Em [ . . } ponte: anacronismo. Refere-se à célebre
cidades de Siena e Florença. ponte de Avignon, que só foi construída no séc. XII.
8 Mais qu.e ele próprw: mais do que ele próprio punira a sua. 2° Celtibero monte: os Pirenéus.

9 21
Agnus dei (cordeiro de Deus): a hóstia sagrada. Campanha: contra Carlos Magno.
10 22
Valência: cidade famosa na época pela licenciosidade Por Baco [ .. } favorecida: rica em vinha e searas.
de costumes.
23
Isabel/a { .. } caro: cf. XXIV:92-93.
11
Reino de Sifaz: Numídia, de que Sífax foi rei (séc. III a. C.).

CANTO XXIX

Ó dos homens fraca e volúvel mente!


Como está pronta a variar intenção!
Qualquer ideia mudam facilmente;
mais, as que dita a amorosa paixão.
Vi eu há pouco o mouro tão ardente
contra as mulheres, a passar da razão,
que não só ódio apagar, pensei mais:
que o não deixaria afrouxar jamais.
2 Gentis damas, por quanto em desdém vosso
falou sem dever, ofendido estou,
e enquanto com seu mal eu não lhe esboço
o grande error que fez, não lhe perdoo.
Com tinta e pena farei o que posso
para que todos vejam quanto ele errou
em não calar-se, e que devia em vez
morder a língua, a falar como o fez.
3 Mas, que falou como ignorante e tonto,
a experiência claramente o avença.
Contra todas o punhal teve pronto
da ira, sem entre elas ver diferença;
mas um olhar de lsabella foi ponto
bastante para o fazer mudar sentença.
Em vez da outra, já esta deseja;
mal a viu, e inda nem sabe quem seja.
474 ORLANDO FURIOSO

4 Como o novo amor o pica e incendeia, 6 E a ira cresceu tanto que o pescoço
usa argumentos que dão pouco fruto lhe apertou à mão, como uma turquês;
para nela apagar a sólida ideia depois de duas voltas dar ao osso,
de a vida ao Criador dar em tributo. pelo ar, direito ao mar, voar o fez.
Mas o monge, que a protege e refreia Que foi feito dele, dizer não posso;
para manter seu propósito incorrupto, muito boato, e pouca nitidez:
com mais certa e firme dissertação, que ficou desfeito na penedia,
o mais que pode, dá-lhe defensão. e o pé da cara não se diferencia;
Depois do pagão sofrer muito aperto, 7 dizem outros que foi cair no mar,
com grande tédio, do eremita audaz, a mais de umas três milhas de extensão,
e de em vão lhe dizer que ao seu deserto e que morreu por não saber nadar,
sem ela pode ir assim que lhe apraz, depois de rogos e orações em vão;
e que o incomoda de modo aberto, outros, que um santo veio para ajudar,
e com ele não fará trégua nem paz, e à praia o trouxe com visível mão.
a mão com ira ao queixo lhe estendeu, Seja em qual for que vós acreditais,
e tanta lhe pelou quanta prendeu. a minha história dele não fala mais.

-·-======- - - -
- - -- -- . ___
���-- --·----··
-�------=--�---
- -=--- -
CANTO XXIX 475

Rodomonte cruel, quando aliviado 14 Pelo prazer que dá tão curto momento,
se sentiu daquele galrão eremita, e de que tanta abundância há no mundo,
voltou-se, com rosto menos turvado, não desprezes um perpétuo contento,
para a donzela tão triste e tão aflita; um gáudio que a nenhum outro é segundo.
com o falar pelos amantes usado, Tu poderás sempre encontrar um cento
chamava-lhe coração, favorita, de mulheres, ou mil, de rosto jucundo;
e seu consolo, e sua grande esperança, mas alguém que este meu dom te dará,
e outros nomes que dizer é usança. no mundo nenhum ou poucos haverá.
Mostrava-se tão respeitoso agora 15 Sei de uma erva, que encontrei nascida
que não lhe deu de força algum sinal. no atalho que me trouxe, aqui prestes,
O semblante gentil que o enamora a qual, com hera e arruda, fervida
dilui e apaga o orgulho usual: em fogo de madeira de ciprestes,
podendo seu fruto colher embora, e após, por mãos inocentes espremida,
não quer ir além do superficial; se desse licor teu corpo revestes
acha que não será bastante bom, três vezes, de tal modo o enrijece
se dela o não receber como dom. que com ferro ou com fogo não perece.
18 E que assim disporia pouco a pouco 16 Digo: quem três vezes nessa se enrola
a seu favor lsabella ele cria. um mês invulnerável se comprova.
Ela, que num lugar tão só e louco, Há que usar todos os meses a ampola,
como o rato ao pé do gato se via, para que o seu efeito não se remova.
a fogueira aceitaria por troco; A água eu sei fazer, e vou compô-la,
e dentro o pensamento revolvia, e ainda hoje verás disso a prova;
tentando achar uma maneira apta se não erro, há-de ser mais apreciado
a escapar dele imaculada e intacta. que se a Europa houvesses conquistado.
11 Forma no seu íntimo o pensamento 17 Em recompensa disso peço um gesto:
de com sua própria mão se dar morte que por tua fé jures em verdade
antes que o bárbaro cumpra o intento, que, tanto em ditos como acções, molesto
o que razão de errar seria forte, jamais serás à minha castidade. -
contra o que exalara o último alento Assim falando, Rodomonte honesto
em seus braços, por impiedosa sorte; fez ser de novo; pois tanta vontade
ao qual, com seu pensamento devoto, lhe veio de se tornar inviolável
fez de castidade perpétuo voto. que mais prometeu que o indispensável:
12 O apetite vê crescer sem recato 18 que cumprirá, até ver que é um facto
do rei pagão; não vê como livrar-se. da água milagrosa a experiência;
Bem sabe que quer chegar ao vil acto, e esforçar-se-á para não fazer acto,
e dele não tem maneira de guardar-se. ou melhor, nem um sinal, de violência.
Depois de muito discorrer com tacto, Mas depois pensa não manter o pacto,
por fim achou o modo de abrigar-se porque não tem temor nem reverência
e de salvar a sua castidade, a Deus e aos santos; faltar a promessas
por forma a lembrá-la a posteridade. é coisa a que à África pede meças 1 •
13 Ao bruto mouro, que já investia 18 A Isabella, o rei de Argel fez jura
com outras palavras e outros preceitos, de não a molestar mais de mil vezes,
isentos da tão grande cortesia desde que faça a água que assegura
que mostrara nos primeiros efeitos: não ter, qual Cicno e Aquiles2 , reveses.
- Se fizeres que eu segura (dizia) Ela por fragas e vales procura,
sinta minha honra, com teus respeitos, longe de aldeias, por sítios monteses,
algo em paga te dou que mais valor muitas ervas colhendo; e o sarraceno
tem que privares-me do meu honor. de perto a segue, por todo o terreno.
476 ORLANDO FURIOSO

2s Depois de colher de ervas o bastante, 26 Deu ela três saltos, e ouviu-se clara
com raízes umas, outras ausência, voz dela sair, chamando Zerbino,
tarde voltaram à casa distante; para o qual seguir ela encontrou tão !:ara
onde aquele exemplo de continência maneira de escapar ao sarracino.
da noite passou a parte restante Ó alma, a quem fieldade foi mais cara,
a cozer as ervas, com muita ciência; e o nome, quase ignoto e peregrino
daquele trabalho e todo aquele mistério, no tempo que corre, da castidade,
o rei de Argel, cada passo, confere-o. que a tua vida e tua verde idade,
21 Pois gastando o resto da noite em jogo 27 vai em paz, alma tão beata e tão bela!
com alguns servos dos quais tinha apego, Tivessem meus versos tal fortaleza,
sentia, ao calor do vizinho fogo para o que me esforçarei com toda aquela
encerrado em tão angusto aconchego, arte que a palavra orna e embeleza,
tal sede que, a beber com desafogo, que por mil e mais anos a novela
esvaziou dois barris de vinho grego, ouvisse o mundo que o teu nome reza.
que tinham tirado alguns dias antes Vai em paz até ao supremo templo;
os seus escudeiros a uns viandantes. deixa às outras de fieldade o exemplo.
22 Não é com vinho o mouro libertino
(para a religião sua é coisa má);
mas depois de o provar, licor divino
o crê, melhor que néctar ou maná;
e, ignorando o rito sarracino,
por copos e garrafas fim lhe dá.
Fez o vinho a todos, passando em torno,
girar suas cabeças como um torno.
23 A donzela, que entretanto a caldeira
tirou do lume, onde as ervas cozeu,
disse a Rodomonte: - Para que maneira
tenha de provar que o vero disse eu,
e assim distinguir o sério da asneira,
podendo convencer o povo incréu,
a experiência te faço sem demora,
não noutro corpo mas no meu, agora.
24 Quero eu o licor em primeiro lugar
provar-te que está de virtude pleno,
não fosses tu porventura pensar
que este continha algum mortal veneno.
Com ele o meu corpo aqui vou banhar;
a cabeça, o pescoço e o seio dreno;
depois, a força e a espada em mim experimenta:
se isto tem vigor ou se ela ensanguenta. -
25 Banhou-se como disse, e leda fez
oferta ao pagão do colo desnudo.
Incauto, e cego pelo vinho talvez,
contra o qual nada vale elmo nem escudo,
o bruto nela creu, e com rudez
tal uso deu à mão e ao ferro crudo
que a bela cabeça, onde Amor morou,
dos ombros e do peito separou.
CANTO XXIX 477

28 Ao acto incomparável e estupendo, 31 Aplacar, ou em parte honrar pensou


do Céu o Criador o olhar volveu a alma beatíssima de lsabella,
e disse: - Mais que aquela te encomendo se, depois que o corpo à morte levou,
que, ao morrer, Tarquínio o reino perdeu3 ; desse ao menos vida à memória dela.
por isto, nova lei fazer pretendo, Para que assim fosse, o meio que encontrou
como outras que o tempo não dissolveu; foi transfigurar aquela capela,
a qual, pelas invioláveis águas juro, onde habitava e onde ela achou morte,
não há-de mudar no tempo futuro. num sepulcro; dir-vos-ei de que sorte.
28 Quero que no futuro quem tiver 32 De toda a parte em torno mandou vir
teu nome seja de sublime engenho, pedreiros, ou por gosto ou por temor;
bela, gentil, cortês, sábia mulher, depois de seis mil homens reunir,
e em honestidade de todo o empenho; de rochas priva os montes em redor,
possa a escritores matéria fornecer e manda grande mole construir,
para de seu digno nome dar desenho; que tinha, do cimo à parte inferior,
como Parnaso, Pindo e Helicon4, noventa braças; e encerrou lá dentro
que de Isabella sempre se oiça o som. - a igreja, e os dois amantes no centro.
38 Deus tal disse, e o ar fez sereno em torno, 33 Quase imitava essa soberba mole
e o mar o mais calmo que conseguiu. de Adriano, na margem tiberina7 •
Ao Céu terço5 sua alma fez retorno, Faz que alta torre ali se desenrole,
e aos braços de Zerbin se conduziu. onde habitar algum tempo destina.
Na Terra ficou, com pejo e transtorno, Quer que uma ponte sobre o rio evole,
o novo Brehus6, impiedoso e frio; estreita e longa como uma serpentina.
que depois do vinho ter digerido Longa era a ponte, mas o piso justo:
seu erro lamentou, entristecido. só dois cavalos cabiam a custo;
34 só dois cavalos caminhando a par,
ou um para cá, outro para lá, cruzados;
berma ou muro não tinha a resguardar,
e era fácil cair de ambos os lados.
Quer ele que custe caro ali passar,
a guerreiros pagãos ou baptizados;
pois dos despojos deles bom troféu
promete à que habita no mausoléu.
35 Em menos de dez dias se fazia
a obra da ponte que passa o rio;
já a do sepulcro foi mais tardia,
e a torre o seu cume não atingiu;
mas tão alta estava que de vigia
um guarda por hábito ali se viu,
que, de cavaleiro que viesse à ponte,
com o corno avisava Rodomonte.
36 Depois de se armar, ele ali acorre:
numa margem ou noutra faz estadia;
vindo o guerreiro do lado da torre,
ao lado oposto o rei de Argel corria,
pois a ponte é o campo onde se corre8 ;
se um pouco o corcel da linha saía,
ao rio tombava, que era bem profundo;
perigo assim não existia no mundo.
CANTO XXIX 479

37 O sarraceno tinha imaginado 43 Naquele instante uma gentil donzela


que, por correr o risco de tombar chega do rio à ponte respectiva,
da ponte ao rio de pés para o ar virado, elegante o vestir, no rosto bela,
e muita água por força tomar, e nos modos prudentemente esquiva.
da falta a que foi pelo vinho levado, Era (se vos lembrais, senhor) aquela
escorreito e mundo viesse a ficar: que em todo o lado buscava à deriva
que a água apague o vinho, e dê extinção de Brandimarte, seu amor, sinal,
ao erro que causou de língua ou mão. menos onde estava, na capital 1 0 .
38 Em poucos dias, muitos lá chegaram: 44 Quando Fiordiligi chegou à ponte
alguns, via normal os conduziu, (tal se chama a donzela viandeira),
pois, para os que Itália ou Espanha demandaram, Orlando atracava-se a Rodomonte,
melhor caminho não se descobriu; que pretendia atirá-lo à ribeira.
outros arrojo, pois mais caro acharam Conhecendo ela bem do conde a fronte,
honor que vida, à prova os induziu. percebeu-lhe a aparência verdadeira:
Todos pensando lá levar a palma, e ficou cheia de consternação,
armas deixavam, e muitos a alma. por louco e nu andar em digressão.
38 Dos que abatia, se fossem pagãos, 45 Fica parada para ver definir
com armas e saque se contentava; o fim da luta entre dois tão potentes.
nas armas os nomes dos cidadãos Para um da ponte outro fazer cair,
escrevia e no túmulo as pendurava; no uso da força são competentes.
mas em prisão conservava os cristãos, - Como pode um louco assim resistir? -
que para Argel, creio, depois mandava. murmura o fera pagão entre dentes;
Não estava inda a obra acabada, quando para cá e para lá se volta e se gira,
por ali apareceu o louco Orlando. pleno de desprezo, soberba e ira.
48 Foi por acaso que o conde de fronte 46 Com uma e outra mão vai procurando
se foi encontrar da grande ribeira, agarrá-lo onde mais vantagem vê;
onde, como eu já disse, Rodomonte vai entre as pernas desequilibrando
tentava acabar de veloz maneira ou com o destro, ou com o canho pé.
túmulo e torre; pronta, só a ponte; Lembra Rodomonte, à volta de Orlando,
completa armadura, salvo viseira , 9
o urso casmurro que arrancar crê
envergava o pagão como atavio a árvore donde tombou; como se ela
quando Orlando chegou à ponte e ao rio. culpa tivesse, odeia-a e flagela.
41 Orlando (a quem sua fúria espicaça) 47 Orlando, que o senso tinha submerso,
salta a cancela e sobre a ponte corre. onde, não sei, e só a força usava,
Rodomonte, com irada caraça, a força extrema à qual no universo
que em pé se encontrava em frente da torre, nenhum, ou quase, a palma lhe levava,
de longe lhe grita e lhe faz ameaça, da ponte se deixou cair reverso,
nem com a espada ao encontro lhe acorre: abraçado ao pagão tal como estava.
- Estouvado aldeão, não vás mais adiante, Caem no rio e ao fundo vão unidos:
ó atrevido, importuno e arrogante! a água sobe, a margem dá gemidos.
42 Para senhores, cavaleiros fiz há pouco 48 A água os separa instantaneamente.
a ponte, e não para ti, ó besta imunda. - Orlando está nu, nada como um peixe:
Mas Orlando avança, de ouvido mouco, dá aos pés e braços para trás, para a frente,
pois trazia a mente meditabunda. e à margem vem; conforme a água deixe,
- É preciso que eu castigue este louco - a correr partiu, sendo-lhe indiferente
disse o pagão; com vontade iracunda se por tal alguém o louve ou se queixe.
vinha de o fazer mergulhar na onda, O pagão, pelas armas atrapalhado,
não pensando encontrar quem lhe responda. à margem voltou mais tarde e cansado.
480 ORLANDO FURIOSO

48 Em segurança, a donzela entretanto 55 O outro agarra-se a uma saliência


a ponte sobre o rio atravessara; que da rocha sai, para acima ascender;
procurou no sepulcro em cada canto, pois espera que, atingindo a eminência,
se de Brandimarte sinal se aclara; do louco se consiga proteger.
como dele não encontra armas nem manto, Mas pelos pés este (que não tem clemência)
para noutro sítio buscar se prepara. o agarra quando as pernas vai erguer;
Mas deixem que do conde o resto conte, e quanto mais pode afastar os braços,
que para trás deixa rio, torre e ponte. afasta, e esquarteja-o em dois pedaços;
58 Louco serei, se loucuras de Orlando 56 daquela maneira que às vezes temos
eu prometer contar-vos uma a uma; feito a uma garça, feito a um galo,
tantas elas foram que não sei quando quando as suas entranhas pretendemos
acabaria; vou escolhendo alguma a falcão ou açor dar, para saciá-lo.
solene e própria para narrar cantando, Por não ter morrido, sorte tivemos,
e que oportuna para a história presuma; o que arriscou ter partido o gargalo!
uma delas, espantosa, contarei, A outros tal façanha descreveu,
que após Toulouse, nos Pirenéus, sei. e Turpino ouviu e no-la escreveu.
51 Percorrera o conde muito horizonte, 57 Esta e outras coisas que causam espanto
sendo, pelo seu furor, de andar faminto; fez, enquanto atravessava a montanha.
e encontrou-se por fim naquele monte Por fim desceu, depois de girar tanto,
que torna o Francês do Espanhol distinto11 , na direcção sul, para terras de Espanha;
levando sempre dirigida a fronte caminho à beira-mar toma entretanto,
para o lado onde vemos o Sol ser extinto; que junto a Tarragona a terra banha:
e ali alcançou uma angusta via, e, seguindo a loucura que o norteia,
que sobre um profundo vale pendia. morada quis fazer naquela areia,
52 Com ele ali se encontraram na estrada 58 onde do sol um pouco se proteja,
dois jovens lenhateiros, que adiante tendo-se na areia fina envolvido.
um burro levavam, com uma carrada; Assim estava, quando o acaso enseja
e, tendo percebido pelo semblante que Angelica ali chegue, e seu marido,
que a cabeça de são não tinha nada, que, como em outra parte se coteja,
gritaram-lhe, com voz ameaçante, desceram do monte ao hispano lido12 •
que atrás ou para o lado faça desvio, A menos de um braço a ele se chegou,
deixando-lhes o caminho vazio. porque a sua presença não notou.
53 Orlando a tal dito não tem respeito, 58 Que Orlando era, não lho sugere nada:
e em resposta com fúria um pé levanta, muito difere do que ser soía.
atingindo o jumento em pleno peito Desde que a loucura foi declarada,
com sua força, que todas suplanta; à sombra ou ao sol, roupa não vestia;
tão alto o faz erguer que tem o jeito nascesse na Assuão ensolarada,
de um pássaro que no céu voa e canta. ou onde o Garamante a Ámon pedia 1 3 ,
Cai depois no cimo duma colina ou nos montes donde o Nilo se expele,
que a uma milha do vale ergue a crina. e não teria tão queimada a pele.
54 Depois, direito aos dois jovens se aventa, 68 Quase escondidos os olhos pela testa,
dos quais um, mais que tino, por ventura, a face magra e como um osso enxuta,
da ravina se atira, que quarenta a crina revolta, horrenda e funesta,
ou cinquenta braças tinha de altura. a barba medonha, grande e hirsuta.
A meio caminho achou, mole e opulenta, Assim que o viu, Angelica foi lesta
uma moita de sarças e verdura, a afastar-se, pelo terror induta;
que só lhe arranhou o rosto indefeso; toda a tremer e em grande gritaria,
no resto ficou escorreito e ileso. protecção procurou junto ao seu guia14 .
CANTO XXIX 481

61 Quando dela deu conta, Orlando, estulto, 67 Não fiquem a pensar que não granjeia
para lhe chegar ergueu-se de repente; novo muar; e sigamos Orlando,
tanto gostou do delicado vulto, o qual seu ímpeto e raiva alardeia
tanto o desejou imediatamente. porque Angelica se está ocultando.
De por ela ter tido amor e culto, A besta seguia pela nua areia,
nenhuma lembrança tinha na mente. indo-se sempre mais aproximando:
Foi atrás dela, da mesma maneira já nela toca, já lhe agarra a crina,
que o cão seguiria a caça matreira. e já o freio, e por fim a domina.
62 O jovem que o louco segui-la vê, 68 Apanha-a com festa descomedida,
de o pisar com o cavalo faz esboço, como outro que apanhasse uma donzela;
e ao mesmo tempo bate sem mercê, ajeita-lhe bem as rédeas e a brida,
apanhando-o nas costas e pescoço. dá um salto e fica em cima da sela;
Que a cabeça arranca dos ombros crê; e muitas milhas lhe dá de corrida,
mas a pele achou dura como o osso, sem repousar nesta parte ou naquela;
mais que o aço até; Orlando, maciço, sempre a sela e o freio lhe conserva,
invulnerável era por feitiço. não a deixa provar feno nem erva.
63 Orlando, ao sentir baterem-lhe atrás, 68 Querendo saltar por cima duma fossa,
voltou-se, e ao voltar-se o punho fechou; faz o bicho voar por cima dela.
com força mais que todas eficaz Não sentiu o choque, nem lhe fez mossa,
bateu no corcel, que o mouro expulsou. mas o bicho no fundo se estatela.
A cabeça qual vidro se desfaz Não vê como dali tirá-lo possa;
de tal modo que o cavalo matou; por fim sobre os ombros o refastela,
e para trás se girou no mesmo instante, da fossa sai, e à carga dá estafeta
atrás dela, que lhe corria adiante. pelo espaço de três disparos de seta.
64 Impele Angelica à pressa a jumenta: 78 Sentindo depois que muito pesava,
com chicote e esporas, toca e retoca; em terra a pôs, querendo levá-la à mão.
naquela aflição, parecia-lhe lenta, Lenta o seguia ela e coxeava;
mas como uma flecha ela se desloca. dizia Orlando: - Anda! -, mas em vão.
Nisto, ao anel que tem no dedo atenta, Mesmo se a galope ela atrás lhe andava,
e que a pode salvar, mete-o na boca: não bastava ao seu desejo malsão.
e o anel, que não perde o seu costume, Da cabeça então tirou-lhe o cabresto,
dá-lhe sumiço, como um sopro ao lume. e amarrou-o ao pé direito com esto;
65 Ou fosse o medo, ou fosse que tomasse 71 assim a vai arrastando, e a conforta
desequilíbrio ao mudar o anel, que o pode seguir com melhor efeito.
ou então, que a jumenta tropeçasse, Uma o pêlo arranca, outra o couro corta,
pois não posso afirmar este ou aquele, das pedras que tinha o caminho estreito.
no mesmo momento em que faz o passe A maltratada besta acabou morta
do anel que a desaparecer compele, por fim, de esgotamento e de mau jeito.
levanta as pernas e cai do arção, Orlando não lhe liga, nem a olha,
e dá por si estendida no areão. e segue caminho sem que isso o tolha.
66 Mais curta dois dedos fosse a descida, n Mesmo morta, atrás de si a carreia,
no louco enrodilhada ficaria, prosseguindo o curso para ocidente;
que com o choque lhe tirava a vida; aldeias, casas que encontra saqueia,
mas a sorte a ajudou na acrobacia. se necessidade de comer sente;
De novo ao furto será compelida, de pão, carne, frutas se banqueteia,
como fizera, para ter montaria15 ; roubando; usa a força com toda a gente:
pois esta não mais vê de qualquer guisa, um deixa morto, o outro estropiado;
que em frente ao paladim a areia pisa. pouco se demora, segue apressado.
482 ORLANDO FURIOSO

73 Coisa igual ou pouco menos faria 74 Não essa apenas, toda a geração
à sua dama, se não se ocultava, que hoje há, às mãos de Orlando fosse em dom;
que o negro do branco não distinguia, pois sem dúvida ingratas todas são,
e fazer bem, mal fazendo, julgava. entre elas não se acha um grama de bom.
Maldito seja o anel que trazia, Mas antes que as cordas em exaustão
e o cavaleiro que, ao dar-lho, a salvava 1 6! ao canto tornem desigual o som,
Faria Orlando, sem tal contratempo, melhor é diferi-lo a outra vez,
vingança própria e de outros, a um tempo. para quem ouve o achar menos soez.

NOTAS

1 À África pede meças: está ao nível de toda a África. Os 8 Onde se corre: onde se «corre a lança», onde se com­
Romanos diziam: «é mais falso e mentiroso do que se bate.
tivesse nascido em África».
9
Viseira: elmo, do qual a viseira faz parte.
2 Cicno e Aquiles: heróis invulneráveis.
10 Na capital: em Paris (cf. XXlV:74).
3 Aquela { . .] perdeu: Lucrécia, heroína romana que se
11
suicidou depois de ter sido violada por um filho do rei Monte { . .] distinto: Pirenéus.
Tarquínio, o Soberbo, o que originou uma revolta popu­
lar que depôs o rei (foi o último rei de Roma). 12 Como { . .] lido: cf. XIX:4 1-42.

4 PamdSo { . .] Helicon: Parnaso, Pindo e Hélicon são mon­ 13 Onde { . .] pedia: na terra dos Garamantes (antigo
tanhas da Grécia, consideradas morada das musas. Usada a povo africano), que adoravam Júpiter Ámon.
forma Helicon, para desviar o acento méaico para a úlàma síla­
ba (cf Camões, écloga «Cantando por um vale docemente»). 14 Seu guia: Medoro.

5 1 5 De novo { . .] montaria: esta era a jumenta que


Céu terço: terceiro Céu (de Vénus).
Angelica furtara ao pastor (cf. XL: 10- 12).
6 Brehus: personagem dos romances bretões que odia­
16
va as mulheres. Cavaleiro { . .] salvava: Ruggiero, que deu o anel a
Angelica quando a salvou na ilha de Ebuda (cf. X: 107).
7
Mole { . .] tiberina: Cascel Sant'Angelo, em Roma, na mar­
gem do Tibre, concebido para ser o mausoléu de Adriano.

CANTO XXX

Quando vencer pelo ímpeto da ira


se deixa a razão, que não se defende,
e se o furor cego tão longe atira
mão e língua que os amigos ofende,
mesmo se depois se chora e suspira,
isso não faz com que o erro se emende.
Raios! Arrependo-me em vão de quanto
disse irado no fim do outro canto.
2 A um doente me assemelho agora,
que depois de muita e muita paciência,
quando para a dor já não encontra escora,
cede à raiva e recorre à insolência.
Se passa a dor, o ímpeto evapora,
que à língua a dizer mal dava fluência;
reflecte, arrepende-se e fica aflito,
mas não pode o dito dar por não dito.
3 Espero, damas, por vossa cortesia,
ter de vós perdão, pois estou a rogá-lo.
Desculpareis, se por mesquinharia,
levado por rude paixão, resvalo.
Minha imiga1 culpai da grosseria,
a qual me faz estar em tão grande abalo,
e coisas dizer que depois reclamo:
se errada está, Deus sabe; ela, que a amo.
484 ORLANDO FURIOSO

4 T ão fora de mim estou, tal qual Orlando, E, como nada bem como uma lontra,
e não menos que ele sou digno de escusa; no rio entra e à outra margem deriva.
que ora pelos montes e praias errando, Ali um pastor a cavalo encontra,
o reino de Marsilio2 em parte cruza, que ao rio vai para matar-lhe a sede viva.
muitos dias a jumenta arrastando Aquele, embora Orlando lhe vá contra,
morta, sem que isso embaraço lhe aduza; como está só e nu, não se lhe esquiva.
mas, chegado onde um rio entra no mar, - Queria com o teu rocim (disse o louco)
foi-lhe forçoso o cadáver largar. e a minha jumenta fazer um troco.
6 Daqui, se queres, posso-ta mostrar, s Salta a cavalo e por variada estrada
que além, na outra margem, morta jaz; vai errando, e muita gente saqueia.
depois, podes mandá-la medicar; Não come o rocim feno nem cevada,
por outro defeito não me despraz. e daí a poucos dias baqueia;
Rocim e algo mais me podes dar; porém Orlando arranja outra montada:
desmonta, por obséquio, que me apraz. - cavalo é coisa que não lhe escasseia;
O pastor ri e, sem outra resposta, pois pôs a uso todos que encontrou,
para a água vai, dele se desencosta. mas antes disso seus donos matou.
7 - Quero o teu cavalo; não ouves, não? -, 9 Chegou por fim a Málaga, e mais dano
juntou Orlando, e em fúria se moveu. ali fez que tinha até ali feito;
Com nós grossos, duros, tinha um bastão pois, além de infligir saque tirano
o pastor, e no paladim bateu. ao povo, a quem tirou todo o proveito,
A raiva e ira alcançou proporção não se refazendo esse e o outro ano,
tal no conde que mais feroz pareceu. tanta gente o louco matou a eito,
Na cabeça ao pastor o punho enterra, destruiu e incendiou tanta casa,
quebra-lhe o osso, e morto cai em terra. que mais de um terço dessa terra arrasa.
486 ORLANDO FURIOSO

10 Dali ido, numa cidade aterra, 14 Foi ao fundo, e a carga levaria,


Algeciras dita; fica no estreito se Orlando à flor de água não se aguentasse.
de Zibeltarro, ou então Zibelterra3 , As pernas e as duas palmas mexia,
pois tanto um como outro nome é eleito; soprava, e afastava água da face.
viu que uma barca zarpava de terra Suave era a brisa, o mar calmaria;
cheia de povo à diversão atreito, e bem precisou que ele se acalmasse;
que, aproveitando a brisa matinal, estivesse o mar um pouco mais ladino,
seguia pelo tranquilo litoral. na água morreria o paladino.
11 Começa o louco a gritar forte: - Pára! -, 15 Mas a Fortuna, que dos loucos cura,
pois teve desejo de andar de barco. do mar ao lido de Ceuta o endereça,
Mas em vão gritos e berros aclara; a uma praia distante da amura
T ê-lo por carga era o desejo parco. como quem duas setas arremessa.
Pela água o navio com pressa dispara, Junto ao mar, muitos dias à aventura
como andorinha que busca outro marco. para levante andou a correr à pressa;
Orlando o corcel esporeia e castiga, até que encontrou, no lido acampado,
e à água ir com o chicote o obriga. um negro exército desmesurado.
12 Forçoso é que na água o cavalo entre, 16 Deixemos ir errando o paladino;
que em vão discorda e debalde se esforça; de falar dele temos ocasião.
molha os joelhos, a garupa, o ventre, Qual foi, senhor, de Angelica o destino
logo a cabeça à tona mal se escorça. depois que do louco escapou da mão,
Que para trás volte não se espere, mentre e como voltou ao seu reino chino
a vara entre as orelhas der com força. com bom navio e tempo de feição,
Desgraçado! Ou terá de se afogar, e da Índia a Medoro deu o ceptro,
ou até África passar o mar. talvez outro o cante com melhor plectro.
13 Orlando já não vê do navio vulto, 17 Tanta coisa dizer é meu intento
que ao mar o levara do lido enxuto; que mais esta seguir pena não vale.
muito longe já se encontra, e oculto Tenho ora de volver o pensamento
dos olhos baixos pelo ondear hirsuto; ao tártaro, que afastado o rival,
ao cavalo não pensa em dar indulto, gozava a beleza, com prazimento,
que a o mar atravessar está resoluto. que em toda a Europa não tem igual
O corcel, de água cheio e alma vazio, agora que Angelica já partiu,
a vida e o nado acabou sem brio. e que a casta lsabella ao Céu subiu.
488 ORLANDO FURIOSO

18 Da sentença Mandricardo altaneiro, 24 Um simples rapaz na urna meteu


que a seu favor a bela dama deu, a mão, uma tirou, e quis o acaso
não pode fruir o deleite inteiro, ser de Ruggiero o nome que se leu;
pois de outras lides disputa o troféu. resta o sericano no fundo raso.
De uma, Ruggiero é o outro guerreiro, Alegria indizível recebeu
porque a águia branca lhe não cedeu; Ruggier, quando se ouviu tirar do vaso,
de outra, o famoso rei de Sericana, tristeza o sericano por seu lado;
que dele quer a espada Durindana. se o Céu manda, tem de ser acatado.
19 Cansa-se Agramante, sem discorrer, 25 Toda a sua atenção o sericano,
nem Marsilio tão-pouco, este prurigo; para ajudar e dar alento, situa
também não os consegue convencer em Ruggiero, para que seja soberano;
a quererem um do outro ser amigo; e o que estudara para vantagem sua,
e que Ruggiero a Mandricardo obter como à espada ou ao escudo dar abano,
permita o escudo do troiano antigo, que estocada é em falso e qual actua,
ou Gradasso a espada não lhe intercepte, quando risco correr, quando evitá-lo,
para que uma disputa e outra se aquiete. tudo à mente lhe vem, a intervalo.
20 Não quer Ruggier mais pugna realizada 26 O resto de horas desse dia vão,
com o seu escudo; e Gradasso rejeita depois do acordo e que a sorte se lança,
que, salvo contra si, ele use a espada passar os amigos a dar menção
que o glorioso Orlando usualmente enfeita. a cada guerreiro do que é usança.
- Vamos lá ver quem a sorte arrecada O povo, querendo ver a oposição,
(disse Agramante), e que acabe a maleita; para ocupar lugar à pressa avança;
Vejamos o que a Fortuna dispõe, não basta a muitos ir ao alvejar:
e seja preposto o que ela prepõe. preferem toda a noite ali passar.
21 E, se mais prazer conceder-me quereis, 27 A turba néscia desejosa atende
e que agradecido vos seja bem, que os dois bons cavaleiros façam prova;
como ireis combater sorteareis; e mais além não vê, nem compreende,
mas na condição de ao primeiro a quem que aquilo que ante seus olhos comprova.
calhar, ambas questões na mão poreis: Mas Sobrino e Marsilio, e quem entende
de modo que, ao vencer, vença também e vê o que mal traz e o que inova,
pelo companheiro; e um de vós perdendo, condena esta batalha, e Agramante,
também para os dois valha tal referendo. por este permitir que vá avante.
22 Entre Gradasso e Ruggier penso seja 28 Não param de lembrar-lhe o grande dano
a diferença nula, ou de pouca essência; que dali vem para o povo sarracino,
e, seja qual for o que a sorte eleja, Ruggier morra ou o tártaro tirano,
sei que em armas mostrará excelência. como traçado estiver pelo destino;
Depois, que a vitória do lado esteja a falta de um só dará mais afano
que quiser a divina providência. para se oporem ao filho de Pepino,
Ao cavaleiro a culpa não se aduna, que de dez mil com que fiquem em dom,
pois tudo se imputará à Fortuna. - entre os quais é custoso achar um bom.
23 Calaram-se às palavras de Agramante 29 Tal reconhece Agramante que é vero,
Ruggiero e Gradasso; acordo fazendo mas negar não pode o que prometeu.
que aquele que dos dois for litigante Bem pede a Mandricardo e ao bom Ruggiero
decidirá um e outro diferendo. que lhe devolvam o que concedeu;
Em duas senhas de cor semelhante tanto mais que essa zanga vale zero,
e forma, os nomes se foram escrevendo; nem pelas armas merece querer troféu;
numa urna foram depois fechadas, e, se tal não quiserem acatar,
e bem agitadas e misturadas. queiram ao menos a pugna adiar.
CANTO XXX 489

30 Cinco ou seis meses a singular guerra, 36 Se não tens para ti próprio cara a vida,
mais ou menos, seja adiada, quanto e preferes uma águia feita a tinta,
baste para Carlos privar desta terra, ao menos por mim te seja ela querida:
e assim do ceptro, da coroa e do manto. não seja uma sem a outra extinta.
Cada um a obedecer se aferra, Contigo, morte não terei sofrida:
mas fica imóvel, teimoso, a um canto, vida e morte juntos se me consinta;
pois tal acordo acha ser aviltante mas não queria morrer tão descontente,
para o primeiro que dele for aceitante. se antes de mim morte se te consente. -
31 Mais que o rei ou outros que por engano 37 Com essas palavras e outras mais,
ao tártaro falam para o convencer, ao mesmo tempo que chora e suspira,
a bela filha do rei Stordilano não cessa essa noite os rogos e ais
suplica e queixa-se para o demover; para ver se o amado à paz se retira;
pede que obedeça ao rei africano, sugando ele dos húmidos fanais
aceitando o que todo o campo quer; o doce pranto, e a dor que ela expira
queixa-se porque ele lhe dá razão dos seus lábios, que as rosas mais vermelhos,
para que se encontre sempre em aflição. responde-lhe a chorar com seus conselhos:
32 - Deus! (dizia) quando terei ensejo
de algo que para tranquilizar-me valha,
se ora com um ou com outro desejo
terás de vestir armadura e malha?
Que sossego para meu coração vejo
no ter sido cancelada a batalha,
que por mim com aquele tinhas marcada,
se outra não menor já está preparada?
33 Ai de mim!, que em vão andava altaneira,
por um digno rei, cavaleiro forte,
por mim estar pronto a perigosa e grosseira
batalha fazer, com risco de morte,
e ora vejo, por razão tão ligeira,
não menos expor-se a idêntica sorte.
Foi do coração o feroz ardor
que te instigou, mais do que o meu amor.
34 Se o teu amor é mesmo aquele modelo
que te esforças para mostrar toda a hora,
por ele te peço, e pelo grande flagelo
que me atormenta a alma e me adolora,
não te dê a branca ave desvelo,
que no seu escudo aquele Ruggiero arvora.
Não vejo para ti, bem ou mal, que importa
se ele a insígnia abandona ou se a porta.
35 Pouco lucro sair, má viravolta,
da pugna pode, que em breve farás;
quando a águia a Ruggier já tiveres solta,
pouca mercê de tal risco haverás;
porém, se a Fortuna as costas te volta
(e presa pelas crinas não a terás4),
um dano causas, que só pensar basta
para sentir que o coração se me agasta.
CANTO XXX 491

38 - Não te dê, vida minha, essa aflição, 44 E assim faria; mas, logo que a Aurora
oh não, por Deus, por coisa não perigosa; o Sol a sair com a escolta exorta,
se Carlos e o rei de África, e o que hão o brioso Ruggier, que se aprimora
ambos aqui de gente belicosa, para mostrar que a águia com razão porta,
contra mim levantassem seu pendão, e de actos e palavras mais demora
mesmo assim não devias estar receosa. não querendo, apressar a liça lhe importa;
Em pouca conta assim me mostras ter, onde rodeia o povo o paliçado,
se um Ruggier contra mim te faz temer. tocando o corno se apresenta, armado.
39 Devia fazer lembrar-te inda quando 45 Assim que ouviu, o tártaro soberbo,
(e espada eu não tinha nem cimitarra), que à batalha alto som o desafia,
com um toco de lança, a um grande bando do acordo não quer ouvir mais verbo,
de armados guerreiros rompi a barra5 • do leito salta, armas em gritaria
Gradasso, embora com pejo execrando, pede; e mostra semblante tão acerbo
no entanto, a quem lho pergunta, narra que Doralice já não se atrevia
ter sido na Síria meu prisioneiro6 ; a mais falar-lhe de trégua ou de paz:
e olha que em fama a Ruggiero é primeiro. que a batalha se faça é contumaz.
40 Igualmente não nega o rei Gradasso, 46 Arma-se à pressa, e espera impaciente
e sabe-o Isoliero e Sacripante dos escudeiros o serviço devido;
(do espanhol e do circassiano espaço), depois o corcel monta de repente
e o famoso Grifone, e Aquilante, (do defensor de Paris tinha sido7) ;
e mais de cem que nesse mesmo passo vai a correr para a praça conveniente,
em prisão se encontraram no Levante, onde qualquer litígio é resolvido.
maometanos e gente baptizada, Chega o rei e a corte em cima da hora,
no mesmo dia por mim libertada. e para começar foi curta a demora.
41 Não cessou inda a sua admiração
pela grande proeza que fiz tal dia,
maior do que se a moura guarnição
e o franco exército me acometia.
Poderá Ruggiero, em experiência vão,
lutando de um para um dar-me arrelia?
Ora que Durindana e que de Heitor
tenho as armas, dá-te Ruggier temor?
42 Mas por que fazer prova não fui eu,
se ganhar-te pelas armas tinhas visto?
Tanto demonstraria o valor meu
que o fim de Ruggier terias previsto.
Enxuga as lágrimas do rosto teu,
não me augures tal fim, que me contristo;
,
e crê que fui pelo meu honor levado,
não pelo pássaro no escudo pintado. -
( ·,
43 Assim disse ele; e, em refutação,
tão bem falou a dama que carpia
que, além de o fazer mudar de intenção,
uma coluna até removeria.
Já quase obtinha dele a rendição,
armado ele, ela que saias vestia;
levara-o a dizer, se o rei lhe fala
mais em acordo, que ia contentá-la.
492 ORLANDO FURIOSO

47 Os brilhantes elmos em cada testa 50 Ferem a viseira ao primeiro impacto;


lhes puseram, e deram-lhes a lança. não intentaram, para deitar por terra,
A dar o sinal a trombeta é lesta, dar aos corcéis morte, o que é um mau acto,
e em mil faces a palidez avança. pois eles não têm culpa da guerra.
Em riste a hasta cada um assesta, Quem pensa que para tal fizeram pacto
e o seu cavalo esporeia na pança; não sabe o uso antigo, e muito erra:
com tal ímpeto avançam a ferir-se, mesmo sem pacto, vergonhoso abalo
parece o céu cair, a terra abrir-se. e eterno para quem ferisse o cavalo.
48 Dos dois lados vem o pássaro branco 51 Ferem a viseira, que dupla era,
que a Júpiter dá viagens serenas8 ; e a tanta fúria a custo resistiu.
na Tessália também em mais que um anco Um golpe após outro, mal se enumera;
foi visto às vezes, com diferentes penas9 • nunca granizo tão espesso caiu:
Quanto um e outro é destemido e franco, folhas, ramos e espigas dilacera,
vê-se pelo porte das fortes antenas 1 0 , a esperada seara já destruiu.
e por mais firmes no choque violento Que Durindana ou Balisarda talha,
que rochas ao mar, e torres ao vento. bem sabeis, e quanto nestas mãos valha.
49 Vêem-se lascas a ascender ao céu: 52 Digno golpe inda não foi desferido,
escreve Turpin, fiel nesta passagem, tanto um do outro bem se precavia.
que dois ou três trouxeram fogaréu, Foi por Mandricardo o primeiro expedido;
que à esfera do fogo fizeram viagem. do efeito, Ruggier quase morria:
À espada os guerreiros não dão aléu, com um golpe, deles bem conhecido,
e, porque os dois sem qualquer temor agem, o escudo pelo meio lhe dividia,
de novo arremetem; e, à vez primeira, abrindo por baixo dele a couraça;
ambos de ponta ferem a viseira. até à viva carne a espada passa.
53 Gelou o golpe o coração no peito,
temendo por Ruggiero, aos circunstantes,
que se percebia ser o eleito
dos mais, ou dt todos os observantes.
Pois pudesse a Fortuna dar efeito
àquilo em que eram todos concordantes,
já Mandricardo morto ou prisioneiro
estava: o golpe ofendeu o campo inteiro.
54 Creio eu que algum anjo se interpôs
para Ruggier poupar ao golpe severo.
Mas sem demora um lhe contrapôs,
mais ameaçador que nunca, Ruggiero.
À cabeça do outro a espada impôs;
mas o golpe saiu tão brusco e fero,
com tanta ira que o não calunio
se o golpe não deu para cortar a fio.
55 Se Balisarda lhe desse a direito,
o elmo de Heitor era encantado em vão.
Ficou Mandricardo pouco escorreito,
deixando a brida escapar-lhe da mão.
Três vezes parece a cair atreito,
enquanto correndo em volta do chão
vai Brigliador, que bem tendes presente,
da mudança de carga ainda dolente 1 1 •
CANTO XXX 493

56 Calcada serpente nunca alentou, 62 E ao meio a viseira lhe dilacera;


nem leão ferido, tanto ódio e furor para sua sorte, do rosto desvia;
como o tártaro, quando recuperou vai depois ao arção, que ferrado era
da perda de sentidos e torpor. com dupla chapa, o que nada valia;
E quanto a ira e soberba aumentou, chegou-lhe ao arnês, o qual como cera
assim cresceu sua força e valor; abriu, e à perneira o mesmo fazia:
fez com que Brigliadoro desse um salto na coxa Ruggier feriu gravemente,
direito a Ruggier, pondo a espada ao alto. estando muito tempo convalescente.
57 Erguendo-se nos estribos, pontaria 63 De um e do outro, a armadura tornou-se
ao elmo lhe fez; e estava bem crente rubra do sangue que em dois fios irriga;
que até ao peito essa vez o abriria; diferente parecer por isso formou-se
mas foi Ruggiero que ele mais diligente; sobre qual levara a melhor na briga.
enquanto para ele o braço descia, Mas a tal dúvida Ruggier fim trouxe,
por baixo lhe espeta a espada pungente; com essa espada que tantos castiga:
e na malha ampla janela burila, de ponta investe, e dá o golpe crudo
que lhe protegia a direita axila. onde o outro se privara do escudo.
58 E Balisarda ao retirar-se trouxe 64 Fura à esquerda a couraça num arranco,
o tépido e rubro sangue consigo, e para ao coração ir encontra a estrada;
e Durindana impediu que lhe fosse entra mais de um palmo acima do flanco;
cair em cima com tão grande perigo; e a Mandricardo já não resta nada
sobre a garupa, contudo, dobrou-se da razão para querer o pássaro branco,
Ruggier, que os olhos cingiu, pelo castigo. ou para possuir a famosa espada;
Se elmo tivera menos consistente, nem da própria vida ele é já senhor,
para sempre o golpe guardava na mente. que mais que à espada e escudo tinha amor.
59 Ruggiero ao cavalo dá impulsão, 65 Não morreu o triste sem ter vingança;
e a Mandricardo encontra o destro lado. pois, no mesmo instante em que foi colhido,
Aqui, do metal a refinação a espada, não sua, ainda balança;
e a boa têmpera dão pouco cuidado o rosto a Ruggier tinha destruído,
àquela espada, que não desce em vão; não lhe houvesse antes tirado a possança
encantada não foi para outro fado, Ruggier, e o seu vigor diminuído:
senão que para seus golpes nada valha possança e vigor antes lhe abateu,
chapa encantada e encantada malha. quando sob o destro braço o colheu.
60 Cortou quanto encontrou, e duma vez 66 Mandricardo a Ruggier quis dar destroço
o tártaro deixou no flanco ferido. no instante em que este lhe tira a vida;
O Céu maldiz, treme de malvadez, tanto que uma anilha de ferro grosso
mais que o mar pela borrasca acometido; foi, como a touca de malha, fendida.
agora, à força extrema apelo fez: Durindana cortou-lhe a pele e o osso;
o escudo com a águia colorido, na cabeça, de dois dedos, fez ferida.
levado pelo ódio, longe atirou, Ruggiero, aturdido, ao chão cai inerte,
e a espada com duas mãos agarrou. e da cabeça um rio de sangue verte.
61 - Ah! (disse Ruggiero) só isto baste 67 Ruggier foi primeiro a cair por terra;
para provar não mereceres o distintivo; e demorou o outro a cair tanto
deita-lo fora, e antes o cortaste; que a quase todos pareceu que da guerra
não podes dizer que é teu exclusivo. - Mandricardo houvesse vitória e canto;
Tal dizendo, forçoso é que se engaste Doralice, que como os outros erra,
nele Durindana com furor excessivo; e nesse dia alternou riso e pranto,
com peso colossal lhe cai na fronte: as mãos ao céu ergueu agradecida
com mais leveza cairia um monte. por ser assim a pugna resolvida.
494 ORLANDO FURIOSO

68 Mas quando se lhes torna manifesto n Digo talvez, pois não lhe fiz inquérito,
quem vivo está, e estar sem vida o morto, mas fácil era ter esse talante,
dos apoiantes logo muda o gesto: tal a beleza, costumes e mérito
dum lado tristeza, doutro conforto. de Ruggiero eram, e o seu semblante.
O rei, barões, cavaleiros e o resto, Ela, pelo que já vimos no pretérito,
quando Ruggier deixa de estar absorto, de pensamento mudava bastante;
com alegria a abraçar-se vão, e, para não se ver privada de amor,
e glória infinita e honor lhe dão. em Ruggier a ideia podia pôr.
69 Cada um com Ruggier se alegra, e sente 73 Para ela era bom vivo Mandricardo,
no coração quanto diz sua boca. mas de que lhe servia após a morte?
Só Gradasso tem ideia diferente Convém-lhe arranjar outro que galhardo
de quanto a língua para fora desboca: noite e dia a assista, e seja forte.
mostra gáudio no rosto e, ocultamente, Entretanto a chegar não fora tardo
da gloriosa conquista inveja o toca; o mais perito médico da corte,
e maldiz o destino ou o acaso, que vendo de Ruggier, bem, cada ferida,
que primeiro tirou Ruggier do vaso. como certa lhe garantira a vida.
70 Que direi da gratidão tão flagrante, 74 Muito diligente, o rei Agramante
que com festas afáveis, verdadeiras, na sua tenda ter Ruggier pretende,
mostrava a Ruggier o rei Agramante, pois quer dia e noite tê-lo diante,
o qual ao vento dar suas bandeiras tanto amor e cuidado lhe despende.
não quis, sem ter de Ruggiero o garante, Do leito as armas e o escudo, zelante,
para de África trazer suas fileiras? que foram de Mandricardo, suspende;
Por de Agricane extinguir a semente 12 , suspende todas, menos Durindana,
preza-o mais que do mundo toda a gente. que foi deixada ao rei de Sericana.
71 Não só os homens por Ruggiero são, 75 Para Ruggier as armas e o espólio bom
também as damas eram do seu flanco, de Mandricardo são; também lhe é dado
que de África e Espanha entre a guarnição Brigliador, bom corcel de lindo tom,
tinham vindo, para o território franco. que Orlando louco tinha abandonado.
Mesmo Doralice, que em aflição Depois Ruggiero ao rei dele fez dom,
chorava o amante pálido e branco, por ver que ele muito o tinha apreciado.
talvez com as outras número fizesse, Já chega disto; voltar é mister
se de vergonha um freio não tivesse. a quem em vão suspira por Ruggier.
76 Os amorosos tormentos que tem
Bradamante, à espera, devo narrar.
A Montalvão Ippalca sobrevém,
com novas do amado a lhe contar.
Primeiro, o que a Frontino com desdém
Rodomonte fez há-de-se queixar;
depois de Ruggíer, que encontrou na fonte,
com Ricciardetto e os irmãos de Agrísmonte;
77 e que com ele ela tinha partido,
com esperança de encontrar o sarracino,
que pela falta merecia ser punido
de a uma dama tirar seu Frontino;
mas fora o seu plano mal sucedido,
pois tomara outro trilho por destino.
Depois contou-lhe também a razão
por que Ruggier não vinha a Montalvão;
CANTO XXX 495

78 e referiu-lhe as palavras em cheio, 84 Dizia a dama ao seu Ruggiero ausente


que em sua escusa Ruggier lhe encareceu. estas e mais palavras, lacrimando,
Retirou depois a carta do seio, não uma vez: de forma pertinente.
que para ela lhe dar ele lhe deu. Ippalca lá a ia confortando
Mostrando no seu rosto algum receio, que Ruggier guardaria inteiramente
Bradamante tomou a carta e leu; lealdade; e que esperasse ela, quando
a qual, não estivesse ela já à espera fazer mais não pode, até que alvoreça
de ver Ruggiero, mais grata lhe era. o dia em que Ruggier diz que regressa.
79 O ter esperado Ruggiero, e, ao invés, 85 Com os confortos de Ippalca, e a esperança
ver que de um escrito lhe fazia preito, que dos amantes sói ser companhia,
turvar a expressão de seu rosto fez, o temor e o grande desgosto amansa,
pelo temor, pelo orgulho e pelo despeito. pelo qual Bradamante tanto carpia;
Beijou a carta dez vezes e dez, por isso, de Montalvão não avança:
com o coração ao escritor sujeito. até o prazo acabar esperaria,
O pranto que sobre a carta espargiu, prazo que foi prometido e jurado,
que ardesse com suspiros impediu. e depois por Ruggier não observado.
80 A carta foi umas seis vezes lida, 86 Mas que ele à sua promessa faltasse,
e quis que as mesmas vezes a mensagem não faz que seja culpado de facto;
por Ippalca lhe fosse repetida, pois um caso e outro houve desenlace
que uma e outra trouxera da viagem, que não deixou que ele cumprisse o pacto.
chorando sempre; e creio que insofrida Foi forçoso que de cama ficasse,
continuaria, sem fazer paragem, e mais dum mês nela estivesse chato,
não houvesse tido a consolação com vida em risco; tanto o mal cresceu
de Ruggiero ter visto de raspão. depois que com o tártaro se bateu.
81 Em quinze ou vinte dias tinha intento 87 A jovem namorada o aguardou
de regressar, Ruggier tinha afirmado todo esse dia, esperando-o em vão;
a Ippalca, fazendo juramento, nada mais soube, só o que contou
promessa a que não teria faltado. Ippalca, e depois também seu irmão,
- Quem o livra, ai de mim, de um mau momento? que lhe narrou que Ruggier o salvou,
(dizia ela); dão-se em todo o lado, e a Malagigi deu libertação
mas mais nas guerras; e se algum transtorna e a Viviano. Nova que apreciava,
o plano a Ruggier, e nunca mais torna? mas que de certo amargor se toldava:
82 Ai, Ruggiero! Que desconcerto este! 88 pois de Marfisa em seu discurso ouvido
Que mais que a mim mesma te tendo querido, o grande valor e beleza havia;
tu mais que a mim, não outrem, mas pudeste e que Ruggier dali tinha partido
amar teu inimigo tão infido! com ela, e que dali iam, dizia,
Devias oprimi-lo, e ajuda deste; para onde, em mau sítio e mal defendido,
quem mais te quer é por ti oprimido. Agramante cercado resistia.
Quererás culpa ou louvor atrair, T ão digna companhia a dama louva,
sem saber o que é premiar e punir? mas não se alegra com tal, nem aprova.
83 Troiano matou (devias sabê-lo) 89 Nem é pequena a suspeita que a preme;
o teu pai 1 3 ; até as pedras o sabem; se é Marfisa bela, como tem fama,
de Troiano o filho, queres protegê-lo dando-se que um do outro não se estreme,
de mal ou dano que sobre ele desabem. é de admirar se Ruggiero a não ama.
Pois é assim que vingado queres vê-lo? Mas recusa-se a crer, e espera, e teme;
E a quem14 de o vingar os méritos cabem e o dia em que arderá do amor na chama
tal prémio dás, que eu, sendo do seu sangue, triste aguarda, por Ruggier suspirando,
de dor e martírio estou quase exangue? - de Montalvão nunca se retirando.
496 ORLANDO FURIOSO

90 Estando ela ali, o príncipe, o senhor n Onde soube que foram libertados,
de seu castelo, o seu primeiro irmão e os adversários mortos, destruídos,
(não digo em idade, mas em honor, Marfisa e Ruggier sendo os denodados
porque mais velhos do que ele dois são), que os fizeram a tal ser reduzidos;
Rinaldo, o qual em glória e em esplendor que seus irmãos e primos regressados
lhes deu, como às estrelas o Sol, clarão, a Montalvão eram, juntos e unidos;
um dia, à hora nona 1 5 , ali chegou, pareceu uma hora, um ano demorar
e apenas um pagem o acompanhou. a lá encontrá-los para os abraçar.
91 Razão dessa vinda foi que de Brava 1 6 93 Assim chega Rinaldo a Montalvão,
para Paris voltando um dia, em engano e mãe, mulher, irmãos, filhos abraça,
(como já vos disse que ia e voltava, e os primos que estiveram em prisão;
Angelica buscando com afano), parecia, ao chegar junto à sua raça,
ouvira contar a notícia prava passarinhos que com sofreguidão
do seu Malagigi e do seu Viviano, vêem a mãe que traz no bico a caça.
a que o de Mogúncia 1 7 a mão deitaria; Depois de um dia ou dois ali ter estado,
e para Agrismonte tomou a via. partiu, por outros sendo acompanhado.
CANTO XXX 497

94 Ricciardo, Alardo, Ricciardetto, e ainda 95 Verdade falou, que estava doente,


o filho mais velho de Amon 1 8 , Guicciardo, mas não por febre ou por corporal dor:
Malagigi e Viviano, a estada finda, era o desejo, para a alma mordente,
armados vão com o paladim galhardo. fazendo-a sofrer turbação de amor.
Bradamante fica, na espera infinda De Montalvão Rinaldo é já ausente,
do dia que a seu desejo é já tardo; com ele indo de sua raça a flor.
enferma disse aos irmãos se sentia, Que de Paris se apropinquou, e quanto
e por isso com eles não seguia. Carlos ajudou, diz o outro canto.

NOTAS

1 Minha imiga: a mulher que ama e que o faz sofrer. 10


Antenas: lanças compridas.
2 Reino de Marsilio: a Espanha. 11
Da { .. ] dolente: ainda ressentido da separação do seu
cavaleiro, Orlando.
3 Zibelterra: Gibraltar, Gibilterra em italiano (do árabe
12
gebel al- Tariq, «monte de Tariq»). Por { .. ] semente: por matar Mandricardo, filho e
sucessor de Agricane.
4 Fortuna { .. ] terds: cf. XVIII: 16 1:5-6.
13
Troiano { .. ] pai: Troiano, pai de Agramante, marou
5 Quando { .. ] barra: cf. XIV:39 ss. o pai de Ruggiero (O. Innamorato) .
6 Ter{ ..]prisioneiro: factos narrados no Orlando Innamorato.
14 E a quem: aos cristãos, que mataram Troiano em
7 O corcel { . .] sido: o cavalo que era de Orlando, Aspramonte (cf. XVIl: 14).
Brigliadoro.
1 5 Nona: o mesmo que «noa» (cf. nota a XXIII:20, 3).
8
Pdssaro { .. ] serenas: a águia, ave de Júpiter, que em
algumas representações é transportado por ela. 16 Brava: Blaye (cf. nota a Vl:34).

9 Tessdlia { .. ] penas: alusão a batalhas dos Romanos e 17 O de Mogú,ncia: Bertolagi (cf. XXV:74 ss.).
à águia da respectiva insígnia, que inicialmente era
18
negra, depois foi branca e, posteriormente, dourada Amon: o pai de Rinaldo, de Bradamante, e dos res­
(diferentes penas) . tantes mencionados nos vv. 1 e 2.

CANTO XXXI

Algum mais doce e mais jucundo estado


há que o do coração de um amador?
Que viver mais feliz e abençoado
do que encontrar-se em servidão de Amor?
Se não fosse o homem atormentado
pela suspeita cruel e pelo temor,
por aquele martírio, por aquele lume,
por essa peste chamada ciúme.
2 Se qualquer amargor tiver assento
no meio desta doce delicadeza,
é um acréscimo, aperfeiçoamento
que amor conduzirá a mais fineza.
À água dá sabor mui suculento
a sede, o pão pelo jejum mais se preza;
não conhece a paz, e não a aprecia,
quem primeiro de guerra não se sacia.
3 Não vendo embora os olhos o que vê
o coração, em paz tal se suporta.
Se longe se está, quando se revê,
quanto mais longo foi, mais reconforta.
Se se está em servidão sem mercê
(desde que a esperança nunca esteja morta),
suporta-se: o prémio por bem servir
há-de chegar, inda que tarde a vir.
4 O desdém, a repulsa, e finalmente
todo o tormento de amor, toda a pena,
é pela sua lembrança que se sente
com mais gosto um prazer que nos serena.
Mas se a infernal peste 1 a fraca mente
infecta, contamina e envenena,
inda que após haja festa e alegria,
apático, o amante não a aprecia.
500 ORLANDO FURIOSO

É esta a crua e envenenada chaga, 7 Não falo do que Hipalca e seu irmão
à qual poção nada vale, nem emplastro, lhe deixaram no coração gravado,
feitiçaria ou imagem pressaga, mas de outro anúncio cruel e malsão
nem observar algum benigno astro, que poucos dias depois lhe foi dado.
nem todas as experiências de arte maga Aquele nada era, em comparação
fez jamais seu inventor, Zoroastro2 ; com o que direi daqui a bocado.
chaga da qual a dor maior decorre De Rinaldo falo primeiramente,
para o homem, que desesperado morre. que vai para Paris com a sua gente.
6 Incurável chaga, que encontra tecto s Na tarde a seguir, à via lhes viera
no peito do amador e nele se imprime, um cavaleiro e uma dama ao flanco;
por falsa suspeita ou por vero repto! o escudo e a sobreveste negra era,
Chaga que o homem cruelmente oprime, atravessada por um traço branco.
que a razão lhe ofusca e o intelecto, A Ricciardetto liça propusera,
e de seu antigo semblante o exime! que aspecto tinha de guerreiro franco;
Ó iníquo ciúme, assim, por torto, ele, que a não evita nenhuma vez,
a Bradamante roubaste o conforto! girou-se, e em corrida espaço fez.
CANTO XXI 501

Sem mais dizer, ou informação dar-se 13 Disse-o para si, mas sem ter sido ouvido,
um do outro, iniciam o recontro. que aos outros faria ofensa e transtorno.
Rinaldo e os companheiros vão colocar-se Um e outro tinha espaço adquirido,
de modo a observarem o encontro. e agora faziam feroz retorno.
- Este depressa ao chão há-de virar-se, Rinaldo não foi por terra estendido,
se eu com ele não tiver desencontro -, pois valia por quantos tinha em torno;
pensava Ricciardetto a seu respeito; qual vidro, as lanças se despedaçaram,
mas contra o pensamento foi o efeito: mas os cavaleiros não recuaram.
10 porque sob a viseira o golpeou 14 Um ao outro cavalo abalroou-se,
tão brusco o cavaleiro inusitado e com a garupa no chão bateu.
que o fez voar da sela, e o deixou Baiardo de súbito endireitou-se,
duas lanças do corcel distanciado. pouco sua corrida interrompeu.
Para o vingar, repentino se apressou O outro caiu mal e magoou-se:
Alardo, que se encontrou estatelado, ombro e espinha ao mesmo tempo fendeu.
aturdido e magoado; pois tão crudo O cavaleiro o corcel morto vê,
foi o choque que lhe quebrou o escudo. larga os estribos e fica pronto em pé.
11 Impaciente, Guicciardo em riste estica 15 E ao filho de Amon, que já para ele ia
a hasta, ao ver os dois irmãos por terra, sem ter na mão arma, assim recebeu:
embora Rinaldo lhe grite: - Fica! - Senhor, este corcel muito valia,
Quero que seja minha a terça guerra. - pois caro me foi enquanto viveu,
. .
Mas inda ele o elmo à cabeça aplica, e em grande dívida lhe ficaria,
já Guicciardo em corrida se desferra; se assim morresse sem o vmgar eu;
não mais que os outros se soube aguentar, prepara-te pois o melhor que possas,
pois depressa no chão se foi estampar. para prosseguirmos as batalhas nossas. -
12 Quer Ricciardo, Malagigi e Viviano, 16 Disse Rinaldo: - Se o cavalo morto,
um antes do outro, à justa ir agora; e nada mais, é razão para batalha,
mas Rinaldo põe fim ao seu afano um dos meus te darei, para teu conforto,
antes deles avançando, e perora: que menos que o teu não penso que valha. -
- Chegarmos a Paris é nosso plano; O outro ajuntou: - Tu deves ver torto,
e grande seria a nossa demora, se pensas que um cavalo me atrapalha.
se esperasse até não faltar nenhum Mas se não entendes a minha escolha,
de vós para ser abatido, um a um. - leitura mais clara faço da folha.
502 ORLANDO FURIOSO

17 Quero eu dizer que incerta era a balança, 23 Vai pensando Rinaldo a toda a hora
se à espada não te estudasse também, quem seja o estranho cavaleiro tão forte,
e não soubesse se nessa outra dança que em valentia e força se aprimora
tu me és par, ou estás aquém ou além. e o põe muita vez em risco de morte;
Escolhe: ou a pé, ou a cavalo, avança; e tanto se afadiga e encalora
de mãos a abanar não venhas, porém; que chega a temer desta liça a sorte;
estou disposto a toda a vantagem dar-te, gostaria até, sem que honra manchasse,
tal o desejo de à espada provar-te. - que aquela pugna depressa acabasse.
18 Rinaldo muito não o fez esperar, 24 O cavaleiro estranho também não
dizendo-lhe: - A batalha será feita; tinha do rival nenhuma notícia:
e para seres afoito, e não te picar que aquele era o senhor de Montalvão,
dos que comigo estão qualquer suspeita, esse tão famoso em toda a milícia,
vão andando até eu os alcançar; que tinha à frente, de espada na mão,
fica apenas um pagem, que sujeita mostrando-lhe tão pouca inimicícia;
me tenha a montada. - E a seguir disse via que de homem de maior excelência
à sua companhia que partisse. não podiam dar as armas credência.
19 A cortesia do campeão galhardo 25 Quereria da liça estar arredio,
gabou o cavaleiro misterioso. que ao seu cavalo daria vingança;
Rinaldo desmontou, e de Baiardo e se pudesse, sem sofrer desbrio,
as rédeas deu ao seu pagem zeloso; retirava-se da perigosa dança.
quando dos outros já não tem o guardo, Estava o mundo já tão escuro e sombrio
pois levam já intervalo espaçoso, que os golpes se davam sem segurança;
o escudo embraça e empunha a espada fria, pouco ferir, menos aparar, podiam,
e o rival à batalha desafia. que as espadas a custo nas mãos se viam.
20 E ali se iniciou uma batalha, 26 Rinaldo foi o primeiro a dizer
mais fera do que a qual nunca foi vista. que não se deve batalhar no escuro,
Não crê nenhum que o outro tanto valha e sim a liça ali interromper,
que muito longamente lhe resista. até girar a preguiçosa Arcturo3 ;
Ao ver que um tão bem como outro trabalha, está pronto a na sua tenda o acolher,
já nenhum mais se alegra ou se contrista, onde tanto como ele estará seguro,
e, pondo o orgulho e o furor de parte, e servido e honrado e protegido
para ter vantagem usam toda a arte. como em qualquer lado onde tivesse ido.
21 Ouvem-se os golpes severos e crudos 27 O barão cortês não se fez rogado,
ribombar em torno com som horrendo, aceitando de Rinaldo o convite.
ou os cantos quebrando aos grossos escudos, Vão até onde já estava acampado
ou placas soltando e malhas fendendo. o grupo que é de Montalvão elite.
Não se precisa aqui de muitos estudos Rinaldo ao pagem tinha encomendado
para bem ferir, mas mais para aparar, querendo um bom corcel, que bom jaez agite,
estar um do outro a par; que eterno mal à espada, à lança, a toda a prova bom,
um erro pode dar, a cada qual. do qual àquele cavaleiro fez dom.
22 Durou a justa uma hora e metade; 28 Veio a saber o guerreiro peregrino
o Sol já mergulhara no oceano, que era Rinaldo que ia ao lado dele,
e da noite as sombras em liberdade pois, antes de chegarem ao destino,
do horizonte enchiam todo o plano; seu nome por acaso disse aquele.
pausa não dão ou inactividade Sendo o guerreiro irmão do paladino,
aos golpes feros do duelo insano doçura um e outro no imo impele,
os guerreiros, que não ira ou rancor no peito havendo do afecto o calor;
às armas levou, mas sede de honor. e choraram de gáudio e de amor.
504 ORLANDO FURIOSO

29 Guidon Selvaggio era este guerreiro, 33 Para me certificar que sois da nossa
que de Marfisa e Sansonetto, aliás, antiga estirpe um ramo verdadeiro,
e os filhos de Olivier4, foi companheiro não há testemunho que dar-se possa
por mar viajando, disse eu atrás5 • melhor que o vosso valor de guerreiro.
De ter a família visto primeiro, Se pacífica e calma fosse a vossa
devido a Pinabel, fora incapaz, têmpera, ia julgar-vos um trapaceiro;
que o impediu e o manteve em prisão, pois a corça não concebe o leão,
para defender sua vil intenção6 • nem as pombas a águia ou o falcão. -
30 Que este era Rinaldo ouvindo ele dizer, 34 Não, por andar, de conversar deixando,
o capitão que mais fama produz, nem de seguir, por conversar, a via,
e mais desejo ele tinha de ver aos p«vi!hões chegam; onde, narrando
que o cego de ver a perdida luz, o bom Rinaldo à sua companhia
com gáudio disse: - Como pode ser ser ele Guidon, que conhecer ansiando
que Fortuna a combater me conduz estavam, tendo por fim tal regalia,
com quem tão longamente amei e amo, grande júbilo àquele grupo atrai;
e, acima de todos, honrar reclamo? todos acharam parecer-se com o pai.
31 Costanza à luz me deu, onde é tangente 35 Calo como a acolhê-lo foi fagueiro
à terra o mar Euxino7 : eu sou Guidon, Alardo, Ricciardetto e os outros dois;
concebido da ínclita semente, Viviano e Aldigiero hospitaleiro,
tal como vós, do generoso Amon. Malagigi, irmãos e primos, depois;
De vos ver, e os restantes igualmente, cada senhor o foi, e cavaleiro;
desejo foi para vir motivo bom; o que entre eles disseram calo, pois;
e, meu propósito sendo o de honrar-vos, mas digo em conclusão que finalmente
vejo que afinal vim a injuriar-vos. foi bem recebido por toda a gente.
32 Mas peço me desculpeis de errar tanto, 36 Guidone caro aos seus irmãos seria
sem conhecer de vós e eles o aspeito; muito em qualquer altura, estou convicta;
se emenda pode haver, dizei-me quanto mas por precisão deu mais alegria
devo fazer: para tal nada rejeito. - do que vindo em tempo menos aflito.
Repetindo os abraços entretanto, Assim que o novo Sol do mar saía,
depois que um do outro afastou o peito, de seus luminosos raios crinito,
Rinaldo disse: - Não vos dê desvelo Guidon, irmãos e primos em fileira
comigo desculpar-vos pelo duelo: seguem todos, sob a mesma bandeira.
CANTO XXI 505

37 Tanto num dia e noutro caminharam 43 O que foi causa do estranho, maligno
que a Paris, ao sitiado contraforte, e grave acidente não sei narrar-te.
a menos de dez milhas se chegaram, Espada e outras armas, de modo indigno,
junto ao Sena; e, por acaso da sorte, vi eu que ele espalhou por toda a parte;
Grifone e Aquilante ali encontraram, e um cavaleiro cortês e benigno
os dois guerreiros da armadura forte8 : as foi recolhendo com muita arte,
Grifon branco e Aquilante negro são e um arbusto com elas guarneceu,
de Oliviero e Gismonda geração9 • como se fosse um pomposo troféu12 •
38 Com eles conversava uma donzela, 44 A espada nesse dia foi levada
de nobre condição, saltava à vista; pelo filho de Agrican, com despotismo.
com saia branca de sedosa tela, Tu podes calcular como é lesada
ornada em volta de dourada lista; com esta perda a gente do baptismo,
muito era graciosa e no rosto bela, por estar mais uma vez apetrechada
embora de pranto a face se vista; com Durindana, a espada, o paganismo 13 •
mostrava nos gestos e no semblante Junto às armas à solta Brigliadoro
que falava de algo muito importante. errava, e também o levou o mouro.
39 Os irmãos conheceu, e eles também, 45 Há poucos dias vi Orlando errando
Guidon, que os vira poucos dias antes 10 ; sem vergonha e sem juízo, desnudo,
e a Rinaldo disse: - Que estes dois, tem gritos e urros assustadores dando:
o mundo em valor poucos mais possantes; dizendo que enlouqueceu, digo tudo;
e, se ajudar Carlos cada um vem, não teria, em meus olhos não confiando,
os Mouros deixarão de ser reinantes. - acreditado num caso tão crudo. -
Rinaldo a Guidon confirma o conceito: Depois contou que o viu cair da ponte
era um e outro um guerreiro perfeito. ao rio, sempre abraçado a Rodomonte.
40 Também ele os tinha reconhecido, 46 - A todo o que eu creia não ser imigo
pois sempre assim andavam ataviados: de Orlando (juntou) vou disto falar,
um de negro, outro de branco vestido para que algum de tantos a quem o digo,
sobre a armadura, e ambos muito ornados. tocado pelo caso triste e invulgar,
Tinham por seu lado eles discernido procure a Paris, ou lugar amigo,
Guidon, Rinaldo, e irmãos, agrupados; levá-lo, para o cérebro lhe purgar.
e abraçaram Rinaldo como amigo, Se Brandimarte de tal houver nova,
pondo de lado todo o ódio antigo. sei que para o ajudar se põe à prova. -
41 Houveram-se um tempo em grande despeito, 47 Fiordiligi era a formosa donzela,
por Truffaldin1 1 ; longo é para que o refira; a Brandimarte mais cara que a vida;
mas com afecto fraterno no peito para o encontrar, a Paris vinha ela;
se abraçaram, esquecendo toda a ira. da espada foi a história prosseguida,
Rinaldo olhou Sansonetto a direito, que originara discórdia e querela,
que a aproximar-se um pouco diferira, pelo sericano e o tártaro mantida;
e acolheu-o com o devido honor, e com ela ficara, após fracasso
pois estava a par do seu grande valor. da vida ter Mandricardo, Gradasso.
42 Quando mais da donzela se avizinha 48 Um tão invulgar e triste acidente
Rinaldo, e que era ele teve a certeza Rinaldo de grande dor acomete;
(conhecimento dos paladins tinha), e derreter o seu coração sente,
notícia lhe deu que lhe fez tristeza; assim como o gelo ao sol se derrete;
disse: - Senhor, teu primo, que mantinha e está disposto, e tem fixo na mente,
Igreja e Império em tanta defesa, que Orlando, onde estiver, buscar promete,
o antes tão sábio e honrado Orlando, com esperança que, depois de tê-lo achado,
louco ficou, e vai pelo mundo errando. consiga da raiva vê-lo curado.
506 ORLANDO FURIOSO

49 Mas se o seu grupo conseguiu unir, 55 Segue-o Guidon, que menos que ele não faz,
ou por vontade do Céu ou ventura, e assim também os filhos de Oliviero,
quer antes os Mouros fazer fugir, e Alardo, Ricciardetto, e irmãos atrás;
deixando entre muros Paris segura. Sansonetto a espadeirar é severo;
Mas o assalto aconselha a diferir, a Aldigiero e Viviano compraz
por ver vantagem, sendo noite escura, mostrar como é cada um deles fero.
para o terceiro ou quarto turno de guarda, Faz ver, cada um que segue o estandarte
quando água do Letes o Sono albarda14. de Claramonte, que é guerreiro com arte.
50 Fez toda a gente alojar-se no bosco, 56 Rinaldo setecentos dele tinha,
que todo o dia lhes fez de contorno; em Montalvão e aldeias em redor,
mas quando o Sol deixou o mundo fosco, como os que Aquiles em Tróia mantinha,
fazendo à primordial ama retorno15 , às armas feitos, ao frio e ao calor.
e urso, cabra, serpente, e todo o tosco Qualquer deles tanta força detinha
bicho e fera ao céu conferiu adorno16 , que cem de mil não teriam temor.
que estavam ocultos pela maior luz, Muitos podiam ser considerados
Rinaldo a hoste silente conduz; melhores que os cavaleiros afamados.
5 1 com ele Grifone e o irmão Aquilante, 57 E apesar de Rinaldo muito rico
Alardo, Viviano e Guidone vão, não ser em cidades nem em tesouro,
e Sansonetto, dos outros adiante, era em modos e palavras pudico,
em silencioso passo e sem sermão 1 7 • repartindo com eles o seu foro;
Achou dormindo a escolta de Agramante; nunca ninguém lhe levou um no bico
todos matou; nem a um deu prisão. por lhe oferecer maior quantia em ouro.
Chegou junto da outra moura gente, De Montalvão ele nunca os tirava;
sem que a presença tornasse evidente. só se a necessidade o obrigava.
52 Do campo de infiéis, logo à chegada, 58 Para o Magno Carlos ajudar agora,
a guarda que ali estava, de improviso, deixou com pouca guarda o seu castelo.
Rinaldo fez ficar tão desfalcada Entre os Africanos sua hoste ora,
que um não sobrou: a matar foi conciso. essa hoste de que eu vos tagarelo,
Com a primeira linha já esmagada, fez como ao rebanho lanzudo outrora,
não tinham os Mouros razão para riso; junto ao Galeso18 , o lobo fez flagelo,
sonolentos, inertes, sem presteza, ou junto ao Cinífio 19 , ao grege barbado20 ,
de tais guerreiros não tinham defesa. o leão a fazer era avezado.
53 Mandou Rinaldo, para maior espavento 59 Carlos, que aviso de Rinaldo houvera
dos Sarracenos, ao fazer o assalto, de que perto de Paris se encontrava,
aos cornos e às trombetas dar vento, e que o campo incauto à noite pudera
e, gritando, seu nome dizer alto. assaltar, em armas e pronto esperava;
Picou Baiardo, a reagir não lento; e, quando chega a hora, mais não espera:
sobre as paliçadas passou de um salto, vai com os paladins; também levava
tombou cavaleiros, pisou peões, o que é filho do rico Monodante,
e derrubou tendas e pavilhões. e é de Fiordiligi o fiel amante,
54 Não houve um forte entre o povo pagão 60 que ela muitos dias, por longa via,
a quem as crinas não se arrepiaram, por toda a França procurara em vão.
quando os nomes «Rinaldo e Montalvão», Vendo as insígnias que ele usar soía,
nomes temidos, no ar ecoaram. teve ela dele ao longe percepção.
Os de África e os de Espanha em fuga vão, Quando à distância Brandimarte a espia,
nem com bagagem se preocuparam; deixa a guerra, tornando-se loução,
não querem mais esperar por tal furor: corre a abraçá-la, e, de amor tomado,
já basta ter-lhe tomado o sabor. mil ou mais beijos lhe deve ter dado.
CANTO XXI 507

61 De suas damas e suas donzelas 67 Brandimarte resposta ao altaneiro,


fiavam-se muito, na idade antiga. outra não quis dar senão a da lança.
Por montes, vales, podiam ir elas, Pica Batoldo, seu corcel fagueiro,
e terra estranha, sem ter escolta amiga; e ao mouro com tal furor se abalança
na volta as têm por boas e belas, que mostra poder estar, como guerreiro,
sem que suspeita jamais os persiga. no mundo com qualquer um na balança;
Fiordiligi narrou ao seu amante e Rodomonte, com a lança enristada,
que louco ficara o senhor de Anglante. pela estreita ponte avança em cavalgada.
62 Brandimarte, uma tão estranha e má nova, 68 O seu corcel, que tinha muito uso
a custo de outro crer teria podido; de andar na ponte e aos outros passar rente,
mas é Fiordiligi que lho comprova, e a uns e a outros fazer cair juso,
de quem coisas maiores já tinha crido. para a liça corria seguramente;
Diz que não teve pelo ouvido a prova, o outro, pelo piso estranho confuso,
com os próprios olhos tinha sabido vinha hesitante, tímido e tremente.
(pois conhece, pelo seu convívio, Orlando, Treme a ponte também, cair parece;
como um dos outros), e disse onde e quando. além de estreita, de berma carece.
63 E dá-lhe nova da ponte perigosa 69 Os cavaleiros, de liça ambos mestres,
que Rodomonte dos outros defende, que tinham lanças grossas como traves,
onde uma tumba adorna e faz pomposa, tal qual como eram nos cepos silvestres2 1 ,
com vestes e armas dos que ali prende. deram-se golpes que eram pouco suaves.
Diz que Orlando louco viu, vergonhosa, Serem possantes, aos bichos equestres
coisa horrenda fazer que surpreende; de pouco serviu ante os golpes graves,
que com o mouro ao rio foi, reverso, pois ambos soçobraram sobre a ponte
com grande risco de ficar submerso. e com eles os donos, num só monte.
64 Brandimarte, que o conde amava quanto 70 Ao quererem erguer-se em veloz trejeito,
se pode amigo, irmão ou filho amar, que o picar dos flancos insta e requer,
disposto a procurá-lo e fazer tanto, da ponte o tabuleiro foi tão estreito
sem canseira nem perigo recusar, que espaço não há onde os pés meter;
que por obra de médico ou de encanto aos dois à água ir, com o mesmo efeito,
àquele furor se possa cura dar, tocou; grande baque aos céus fez erguer,
tal como estava armado sobre a sela, como aquele que subiu do nosso rio,
pôs-se a caminho com a linda donzela. quando o mau condutor nele caiu22 •
65 Para os lados onde a dama a louca fronte 71 Os cavalos, com o peso rotundo
do conde viu, seus passos endereçaram dos seus cavaleiros firmes na sela,
um dia após outro, até que na ponte foram buscar no rio, até ao fundo,
guardada pelo rei de Argel se encontraram. se ele escondia alguma ninfa bela.
O guarda deu sinal a Rodomonte, Nao é primeiro salto, nem segundo,
e a um tempo os escudeiros lhe tiraram que da ponte dá o pagão naquela
armas e cavalo; e ele a postos estava água, montado no corcel audaz;
quando Brandimarte na ponte entrava. por isso sabe o que no fundo jaz:
66 Em voz a condizer com seu furor, n sabe onde é rijo e onde mais abranda,
diz ele a Brandimarte, em gritaria: sabe onde a água é baixa e onde é alta.
- Quem quer que tu sejas, que, por error Do rio, cabeça, peito, ancas desanda,
de via ou de mente, a sorte aqui guia, e Brandimarte em vantagem assalta.
desce e tira as armas; e faz honor Brandimarte à toa na corrente anda;
delas ao sepulcro, ou te mataria o corcel na areia, que o fundo esmalta,
para às almas por vítima te oferecer: todo se enterra, sem poder sair,
fá-lo-ei sem sequer te agradecer. - com risco de ambos nela submergir.
508 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXI 509

73 A corrente os eleva e os revira, 79 Quem este era, depois hei-de narrar-vos;


e para onde é mais profunda os transporta; que primeiro a Paris vou voltar eu,
Brandimarte em baixo do corcel gira. e da derrota aos Mouros conta dar-vos
Fiordiligi da ponte, aflita, exorta; que Rinaldo e Malagigi lhes deu.
lágrimas, votos e rogos suspira: Quantos fugiram eu não sei contar-vos,
- Ah Rodomonte, por essa que morta nem quantos o rio Estige23 recolheu.
tu veneras, não sejas sobranceiro, A conta a Turpin vedou o ar escuro,
deixando afogar ·um tal cavaleiro! que de os contar tinha encargo seguro.
74 Ai, cortês senhor, se tu já amaste, 80 O primeiro sono no pavilhão
por mim, que o amo, piedade te venha. dorme Agramante; um guerreiro se apresta
Dá-lhe prisão, por Deus, e que te baste; a acordá-lo, dizendo que prisão
que o monumento a sua insígnia tenha, o espera, se a fuga não fizer lesta.
e de todo o espólio que ali guardaste Olha em torno o rei, vendo a confusão
tão digna outra não há que te convenha. - entre os seus, que fogem sem fazer testa24
Tão bem soube falar que embora sendo para aqui e para ali, inermes, desnudos,
cruel o pagão, foi-se comovendo; sem tempo ter nem para pegar nos escudos.
75 e o seu amado lesto socorreu, 81 Confuso e de ideias ao desabrigo,
sob o corcel no fundo sepultado, enquanto lhe vestiam a couraça,
o qual a vida já quase perdeu, chegou Falsiron e o filho consigo,
por tal água sem sede ter tomado. Grandonio, Balugante e aquela raça25 ;
Porém antes socorro não lhe deu, e ao rei Agramante mostram o perigo
sem espada e elmo lhe ter retirado. de morto ou preso ser naquela praça;
Já meio morto da água o tirou, e dizer pode, se salva a pessoa,
e ir para a torre com os mais mandou. que Fortuna lhe foi propícia e boa.
76 Ficou a dama de alegria isenta, 82 O mesmo, Marsilio e o bom Sobrino
quando viu seu amante preso ser; e os outros o dizem a uma voz,
mas com isso sempre mais se contenta que perto está dele um cruel destino,
do que se o visse no rio perecer. por perto estar Rinaldo, e vem veloz;
Só de si, de mais ninguém se lamenta, já se espera que chegue o paladino
que razão deu para ali ele acorrer, com muitos mais; dum guerreiro tão feroz,
por lhe narrar que o conde pela fronte podem esperar ser o rei e os amigos
reconhecera, na perigosa ponte. ou mortos ou presos pelos inimigos.
77 Dali partiu, achando ser correcto 83 A Arles ou Narbonne dirija a proa,
trazer ali Rinaldo, o paladino, levando a gente que inda tem em torno;
ou Selvaggio Guidone, ou Sansonetto, uma e outra terra para a guerra é boa,
ou outros mais da corte de Pepino: por ter de fortes muralhas contorno;
um cavaleiro à terra e à água afecto, quando a salvo tiver sua pessoa,
para poder defrontar o sarracino; poderá vingar-se deste transtorno,
se não mais forte, mais afortunado refazendo o exército a preceito,
do que Brandimarte tinha mostrado. com o qual a Carlos dará despeito.
78 Muitos dias anda, antes que se embata 84 Rei Agramante ao seu parecer se ateve,
num cavaleiro que tenha semblante embora segui-lo lhe fosse duro.
de ser como ela quer, para que combata Para Arles seguiu, e em tempo tão breve
com o mouro e liberte o seu amante. que quase voou pelo trilho seguro.
Após muito buscar pessoa apta Além dos guias, vantagem obteve
ao seu desejo, um lhe aparece adiante, em partir a coberto do ar escuro.
de sobreveste mui rica e ornada, Foram vinte mil que de África e Espanha
toda a troncos de cipreste bordada. a Rinaldo escaparam da artimanha.
510 ORLANDO FURJOSO
CANTO XXI 511
512 ORLANDO FURIOSO

85 Os que ele matou, e os que os seus irmãos, 91 Tinha o rei muito tempo desejado
e os que os dois filhos do senhor de Viena26 , (creio que já lestes a tal respeito28 )
os de quem foram imigos vilãos usar a boa Durindana ao lado,
os setecentos que Rinaldo ordena, e cavalgar aquele corcel perfeito.
os que apagou Sansonetto, e os pagãos E com mais de cem mil viera armado
que ao fugirem se afogaram no Sena, para França, somente para esse efeito;
quem os contasse, contava sem falha já a Rinaldo desafio fizera
o que em Abril Zéfiro e Flora espalha27 • por aquele corcel, para batalha fera;
86 Há quem diga que Malagigi parte 92 e para a beira do mar se dirigiu,
na vitória teve, daquela noite; onde a pugna se iria decidir;
não que, por ele, o sangue os campos farte, mas Malagigi tudo diferiu,
ou que ele a esmagar cabeças se afoite; que o primo fez, mau grado seu, partir,
mas que os anjos infernais com sua arte e num navio pelo mar o conduziu.
chamou dos antros onde o mal se acoite, Toda a história era longo repetir.
com tantas bandeiras e tantas lanças Daí para cá achou cobarde e vil
que não lhes bastariam duas Franças; sempre Gradasso o paladim gentil.
87 e de tantos metais fez ouvir estalos, 93 Gradasso, agora, que é Rinaldo entende,
e sons de tambores e vários trovões, este que assalta o campo, e isso o alegra.
tantos nitridos como de cavalos, As armas veste e a égua pretende,
tanto grito e tumulto de peões e vai procurá-lo na noite negra;
que por montes e vales fez soá-los, todos com quem se encontra no chão estende;
ouvindo-se nas distantes regiões; sem distinção, deixa achacada e egra
aos Mouros, assim, tal medo meteu a gente, quer da Líbia quer da França:
que cada um dali se escafedeu. todos trata igualmente a sua lança.
88 O rei de África não esqueceu Ruggiero, 94 Para cá e para lá o vai procurando,
cuja ferida inda estava em estado grave. chamando-o muito e cada vez mais forte,
Sobre um corcel o mandou pôr com esmero, e sempre para aquele lado caminhando
que tinha o andar pausado e suave; onde mais gente está que achou a morte;
depois de pelo trilho menos severo por fim espada com espada o defrontando,
o transportar, mandou-o pôr na nave pois ambas as lanças da mesma sorte
e até Arles levar comodamente, em mil pedaços sobem, nesse açoite,
onde ia recolher-se toda a gente. até ao carro estrelado da Noite.
B9 Quem de Rinaldo e Carlos se afastou 95 Quando Gradasso o paladim galhardo
(foram uns cem mil que deram arranco), conhece, e não porque a insígnia veja,
por campos, bosques, montes procurou mas pelos golpes horríveis, e Baiardo,
a fuga das mãos do exército franco; que todo o campo parece que peja,
grande parte a via fechada achou, a reprovar-lhe, aos gritos, não é tardo,
e tornou rubro o que era verde e branco. a indignidade que mostrou sobeja:
Assim não fez o rei de Sericana, no dia aprazado não comparecer
que deles tinha afastada a cabana; onde os dois um duelo iam ter.
90 ao invés, assim que ouve que o senhor 96 E acrescentou: - Talvez tivesses esperança
de Montalvão é este que os assalta, de poderes-te esconder, daquela vez,
sente no coração um tal alor de modo a nunca mais termos chegança
que de alegria daqui para ali salta. no mundo; mas achei-te, como vês.
Dá louvores e agradece ao seu Factor, Crê: se no estígio abismo houveres parança,
por nessa noite lhe ocorrer tão alta ou se ao Céu ascendesses, ao invés,
e rara ocasião para conquistar sigo-te, se houveres do corcel apego,
Baiardo, aquele corcel que não tem par. à suprema luz ou ao mundo cego.
CANTO XXI 513

97 Se te falta para pugnarmos o alor 103 Gradasso, que anular não pretendeu
e sabes que não podes estar-me a par, pela questão segunda a questão primeira,
e estimas mais a vida que o honor, a desculpa de Rinaldo acolheu,
é coisa que se pode remediar, duvidando se é falsa ou verdadeira.
desde que em paz me dês o corredor; Já de Barcelona não se escolheu,
se amas viver, vivo podes ficar, como a outra vez, a areia costeira;
mas a pé: corcel não se concilia no dia seguinte, de manhãzinha,
com quem vitupera a cavalaria. - encontram-se numa fonte vizinha,
98 Àquela fala encontrou-se presente 104 onde Rinaldo terá o cavalo,
Ricciardetto, com Guidone a seu lado; que será posto comummente ao meio:
ambos espadas puxaram igualmente, se o rei Rinaldo mata ou faz vassalo,
para a Gradasso mostrar como era ousado. o corcel levará sem mais receio;
Mas Rinaldo opôs-se imediatamente, mas se for do rei Gradasso o resvalo,
pois não suportava ser ultrajado, que ali exale o último gorjeio,
dizendo: - Quer dizer que sem vocês ou, por mais não poder, que a ele se renda,
não respondo a quem ofensa me fez? - que Rinaldo Durindana apreenda.
99 Em seguida voltou-se para o pagão, 1 0s Com enorme espanto e profunda dor
e disse: - Ouve Gradasso, quero dar-te, (como eu disse), tinha Rinaldo ouvido
se me escutares, clara explicação contar Fiordiligi que, de furor,
de que à beira-mar fui para encontrar-te; seu primo o juízo tinha perdido.
depois confirmo, com arma na mão, Também das armas ouvira o teor,
que a verdade te disse em toda a parte; e da pugna que se tinha seguido;
cada vez que o disseres mentes mais, e que usava Gradasso a palmatória30
que à cavalaria eu faltei jamais. que a Orlando deu tanta e tanta glória.
100 Mas peço-te que, antes que luta acesa 106 Depois do acordo feito, regressado
entre nós se dê, claramente entendas foi Gradasso para a sua companhia,
minha justa e verdadeira defesa, embora pelo paladim fosse instado
para que de novo não me repreendas; a aceitar a sua hospedaria.
Baiardo após, como na outra empresa, Nascido o dia, o rei pagão armado,
desejo que a pé comigo contendas, tal como Rinaldo, logo aparecia
apenas nós em solitário lado, onde ambos iam, perto da fontana,
tal como fora por ti ordenado. - combater por Baiardo e Durindana.
101 Era cortês, o rei de Sericana, 1 07 O recontro que Rinaldo ia ter
como sói ser o nobre coração, com Gradasso, os dois a sós, nesse canto,
estando pronto a ouvir a coisa plana, os seus amigos pareciam temer,
e como o paladim quer ter razão. e antes de tempo faziam o pranto.
Juntos vão até onde o Sena mana, Gradasso audácia, vigor e saber
e ali Rinaldo, em simples narração, tinha, e a espada que valia tanto,
à história vera retirou o véu, do filho de Milon3 1 , usava ao lado;
e por testemunha invocou o Céu; branco estava cada um, aterrado.
mandou ali vir o filho de Buovo29 , 108 Mais que os outros de Viviano o irmão
32
102
que tal facto sabia em pormenor, parece que a pugna receie e tema,
e ponto por ponto contou de novo e de boa vontade punha a mão
o seu encanto, sem tirar nem pôr. para dar fim, por magia, a tal dilema;
Acrescentou Rinaldo: - Isto que eu provo mas não deseja que o de Montalvão
com testemunho, as armas com rigor venha a tê-lo em inimizade extrema;
agora, ou quando mais a ti te apraz, ainda pela outra lhe tem fastio,
quero que prova façam mais veraz. - que lhe impediu, metendo-o num navio.
514 ORLANDO FURIOSO

1 09 Que tenham receio, temor, cuidado; 110 De lado oposto um e outro apareceu,
Rinaldo segue, contente e seguro, chegando ao mesmo tempo junto à fonte,
esperando da culpa ver-se purgado, tanta festa fazendo que pareceu,
pois tê-la sem razão achava duro; pela tão serena e amistosa fronte,
que os de Hautefeuille e de Ponthieu33 calado que ou o sangue ou a amizade prendeu
tenha para sempre, agora e no futuro. o rei Gradasso àquele de Claramonte.
Vai com afoiteza e muita confiança Como depois se foram agredir,
de guardar dessa vitória lembrança. para outra ocasião quero diferir.

-..-
NOTAS

1 17
Infernal peste: o ciúme. Sem sermão: sem conversação.
2
Zoroastro: nome helenizado de Zaratustra (628-5 5 1 1 8 Galeso: rio que corre perto de Taranto, onde abun­
a. C.), reformador da religião persa que estabeleceu no dam os rebanhos de ovelhas.
Irão o masdeísmo ou zoroastrismo, declarando-se envia­
19
do de Ahura Mazdah, «o Senhor Sábio e Deus único». Cinifio: rio africano.
3 20
Até [...}Arcturo: até ser dia. Arcturo é a estrela mais bri­ Grege barbado: rebanho de cabras.
lhante do Boieiro. Por estar perto do pólo terrestre (junto
21
à cauda da Ursa Maior), o seu movimento aparente é Tal [. .. ] silvestres: troncos em bruto.
muito lento (preguiçosa).
22
Nosso [. . .] caiu: o rio Pó, quando nele caiu Faetonte
4 Filhos de Olivier: Aquilante e Grifone. (cf. nota a IIl:34:3-4) .
5 Disse eu atrds: cf. XX:92 ss. 23
Rio Estige: rio do Inferno.
6 24
Devido [. .. ] intenção: cf. XXIl:52 ss. Testa: oposição.
7
Euxino: cf. nota a XX:6:3. 25 Chegou [. . .] raça: personagens identificadas em
XIV: 12. O filho de Falsiron é Ferraú.
8 Armaduraforte: eram ambas fadadas (cf. XVIl:70:5-8).
26
Senhor de Viena: Oliviero, pai de Grifone e
9
Grifon [. . .] geração: cf. XV:67 e 72-73, e respectivas noras. Aquilante.
10 27
Vira [. . .] antes: no castelo de Pinabello (cf. nota a Em Abril [. . .] espalha: os amantes Zéfiro e Flora
29:6-8) . enchem a Terra de flores na Primavera.
11 28
Houveram-se [. . .] Trujfaldin: Truffaldino alimentara Creio [. . .] respeito: episódio contado por Boiardo no
o ódio entre eles ( O. lnnamorato) . Orlando lnnamorato.
12
Cavaleiro [. . .] troféu: Zerbino (cf. XXIV:49 ss.). 29
Filho de Buovo: Malagigi (cf. XXV:72) .
13 30
Mais uma vez [. . .] paganismo: pois pertencera ao sar­ Palmatória: espada.
raceno Almonte (cf. nota a IX:3:8) .
31
Filho de Milon: Orlando, filho de Milon d'Anglant
14
Quando [. . . ] albarda: quando o esquecimento (Letes) (cf. nota a 1: 57) .
torna o sono mais pesado.
32
De Viviano o irmão: Malagigi.
1 5 À primordial [. . .] retorno: ao pôr-se no mar, morada
33
de Tétis, esposa de Oceano, que teve dele mais de três Hautefeuille e Ponthieu: feudos não identificados,
mil filhos, que são todos os rios do mundo. propriedade dos «de Mogúncia», inimigos dos da casa de
Claramonte.
16
Urso [. . .] adorno: surgiram no céu todas as constela­
ções com nomes de animais.

CANTO XXXII

Lembrei-me que cantar eu vos devia


(já prometi, mas fugiu-me da mente)
uma suspeita de que padecia
a bela dama de Ruggier, dolente,
do que a outra mais grave e doentia,
com mais agudo e venenoso dente,
que, por quanto ela ouviu a Ricciardetto,
roendo-a, em seu peito encontrou tecto.
2 Devia, e outro canto comecei,
porque Rinaldo no meio apareceu;
depois a Guidon muita atenção dei,
que pelo caminho que fazer lhe deu.
De uma em outra coisa me demorei,
e Bradamante quase me esqueceu:
lembrei-me e dela falo, antes que o passo
vos cante de Rinaldo e de Gradasso.
516 ORLANDO FURIOSO

3 Mas, antes que dela fale, me obrigo 4 Em todo o reino recruta Marsilio
a falar-vos um pouco de Agramante, gente a pé e a cavalo, má e boa.
que em Arles deu às relíquias abrigo, Em Barcelona, navio que auxílio
que escaparam da nocturna agravante, dê, livre e à força, à guerra se afeiçoa.
pois podia recolhê-las sem perigo Agramante faz diário concílio,
nesse sítio que provisões garante: e a esforços e gastos não se perdoa.
tem África em frente, e a Espanha vizinha, Muitas e pesadas contribuições
e está junto ao rio e à costa marinha. dão às cidades de África opressões.
CANTO XXXII 517

s Já mandou oferecer a Rodornonte, 11 Naquela dura espera, às vezes pensa


para que ele volte (o que não lograria), que Pírois e Éton4 coxos estão;
urna prima sua, filha de Alrnonte, ou que a roda avariou tem a crença,
e em dote o reino de Orão lhe daria 1 • e mais demora a dar a rotação.
Não quis o soberbo deixar a ponte, Mais longo o dia é que quando a imensa
onde tanta arma e sela vazia fé do justo hebreu lhe deu detenção5,
juntou, dos que ali fizeram passagem, mais que a noite que Hércules geraria6,
que ao sepulcro já dão total roupagem. cria ser cada noite, cada dia.
6 Mas não quis Marfisa imitar o feito 12 Por vezes sentiu inveja, assevero,
de Rodomonte; logo que informada de urso, arganaz, texugo, dessa classe!
que Agramante por Carlos foi desfeito, Pois todo aquele tempo num sono austero
sua gente morta, presa, saqueada, queria passar, sem que nunca acordasse;
e a Arles com o resto estava afeito, nada mais ouvir, até que Ruggiero
sem convite aguardar, fez-se à jornada: do seu profundo sono a arrancasse.
correu em auxílio da sua coroa, Tal não pode fazer, corno também
oferecendo-lhe os haveres e a pessoa. de sono uma hora à noite não tem.
7 Levou-lhe Brunello, do qual lhe fez 13 Girando, várias posições assume
livre oferta, não o tendo magoado; no enfadonho leito, e não repousa.
dez dias o tivera, e noites dez, Abrir a janela tem por costume,
sempre no temor de ser enforcado; para poder ver se de Titono a esposa7
vendo que, quer com rogos quer rudez, espalha, antes do matutino lume,
para defendê-lo não houve interessado, o branco lírio e a vermelha rosa;
em tão abjecto sangue desdenhou de igual maneira, quando o dia é nado,
sujar as altivas mãos, e o soltou. anseia o céu ver de estrelas ornado.
Das ofensas antigas o absolveu,
e a Agramante, a Arles, foi levá-lo.
Calculem que alegria recebeu
o rei, por ali ela ir ajudá-lo;
todo o respeito que ela lhe mereceu,
através de Brunello quis mostrá-lo;
aquilo que ela dissera urna vez,
que o queria enforcar, de bom grado ele fez.
9 O carrasco, em lugar inculto e ermo,
pasto a corvos e abutres o deixou.
Ruggiero, que urna vez a tal pôs termo2,
e o laço do pescoço lhe tirou,
quis a justiça de Deus que ora enfermo
estivesse, e por isso não o salvou;
quando soube, tinha já ocorrido;
e assim Brunello não foi socorrido.
10 Estava-se Bradamante lamentando
que tão longos os vinte dias vê,
os quais chegariam ao termo quando
Ruggiero voltasse a ela e à fé3 .
Quem do exílio ou prisão está esperando
o fim, que o tempo se detenha crê,
para liberdade ter, ou da amada
pátria vista jucunda e desejada.
518 ORLANDO FURIOSO

14 A quatro ou cinco dias do inteiro 16 Pensando-o encontrar, um dia armou-se,


tempo passar, aguardava com esperança desceu do monte para o terreno chão;
a toda a hora vir um mensageiro não o encontrando, pensou que fosse
que lhe dissesse: - Eis Ruggiero que avança. - por uma outra via até Montalvão;
Subia a um torreão sobranceiro, com o desejo que seus passos trouxe
que os bascos bosques e a campina mansa para fora, voltou ao castelo em vão.
mostrava em redor, e parte da via Não o encontrou, passando entretanto
que de França a Montalvão conduzia. esse prazo que ela esperara tanto.
15 Se ao longe o brilho de armaduras vê, 17 E além do prazo passou um, dois dias,
ou algo que a cavaleiro assemelha, três dias, e dez e vinte em tormentos;
que é o seu desejado Ruggier crê, sem ver o noivo e dele profecias
e asserena os olhos e a sobrancelha; não tendo, começou com tais lamentos
se desarmado, ou viandante a pé, que dó fariam, nas infernais vias,
que é seu correio acende-se a centelha; às Fúrias de serpentis ornamentos8 ;
e quando verifica que era falsa, ultraje fez aos seus olhos divinos,
logo uma outra e depois outra encalça. ao branco peito, aos áureos crespos crinos.
1s - Será (dizia) que assim me convenha,
que um procuro que me foge e se esconde?
Devo então estimar um que me desdenha?
Devo pedir a quem não me responde?
Que quem me odeia meu coração tenha?
Um que em suas virtudes tanto abonde
que seja preciso descer do céu
deusa que acenda de amor fogaréu?
19 Sabe esse altivo que o amo e adoro;
não me quer para amante nem para serva.
Sabe o cruel que por ele sofro e choro,
e para morta me acudir se reserva.
De meu pranto não querendo ouvir o coro,
que iria dobrar-lhe a gana proterva,
de mim foge, como a serpente faz:
para ser cruel, canto ouvir não lhe apraz9 •
20 Detém, Amor, esse que tão asinha
se antecipa à minha passada estreita;
ou restitui-me a condição que eu tinha,
não estando a ti nem a ninguém sujeita!
Ai, como é néscia e vã a esperança minha:
meu rogo piedade em ti não aleita;
o que te alimenta, e te compraz tanto,
é arrancar dos olhos rios de pranto!
21 Mas quem devo culpar, pobre de mim,
senão o meu desejo irracional?
Que alto me eleva, e tanto subo assim
que as asas queimo no calor sideral;
não me sustém depois, e caio enfim
do céu; mas não termina aqui o mal;
volta a dar-mas e a queimá-las, e eu
não vejo fim para o precipício meu.
CANTO XXXII 519

22 Aliás, mais que o desejo, devia 2s Encontrou ela um cavaleiro gascão,


culpar-me a mim, pois que lhe abri o seio; que do campo mouro vinha expedito;
à razão usurpou a moradia, desde aquele dia houvera ali prisão,
e mais que a minha vontade tem esteio. que houve junto a Paris grande conflito.
De mal para pior sempre ele me guia, Travou com ele longa conversação,
sem poder refreá-lo: não tem freio; até que ao fim chegou que tinha fito.
dá-me a certeza de levar-me à morte, Perguntou por Ruggiero, e mais não teve
para que na espera a dor seja mais forte. argumento, pois nesse se deteve.
23 Mas por que hei-de a mim dar condenação? 29 O cavaleiro informações prestou,
Que erro, senão amar-te, se me aponta? pois conhecia bem aquela corte:
Que admira se feminil emoção, contou que Ruggier duelo travou
frágil e delicada, sofre afronta? duma só mão com Mandricardo forte;
Por que devia usar de protecção e que o matou, mas que depois ficou
para a tua beleza não ter em conta, ferido mais de um mês, perto da morte;
teu porte nobre e palavra erudita? e, fosse a sua história assim conclusa,
Infeliz é quem ver o Sol evita! a Ruggiero daria toda a escusa.
24 E além do meu destino, fui levada 30 Mas ele acrescentou que uma donzela
por palavras de alguém em quem se crê; no campo estava, chamada Marfisa,
sublim� ventura me foi pintada, que era, não menos que galharda, bela,
que teria deste amor em mercê. e em armas perita, de toda a guisa;
Se me foi tal persuasão simulada, que ela amava Ruggiero e este a ela;
se falso é o que Merlim para mim prevê, que ele dela, ou ela dele divisa
tenho motivos para dele queixar-me, raro era, tendo todos convencido
mas de amar Ruggier não posso privar-me. que um ao outro se tenham prometido;
25 De Merlim posso e Melissa igualmente 31 e que, assim que Ruggiero esteja são,
queixar-me, e será meu lamento eterno, o matrimónio realizar-se deve;
os quais os frutos da minha semente e todo o rei, ou príncipe pagão,
mostraram, com espíritos do Inferno, com alegria e prazer o subscreve,
para desta falsa esperança dependente pois, do valor dos dois a dimensão
eu ser; mas seu motivo não governo; bem conhecendo, esperam ter em breve
que invejosos pudessem ser, não nego, uma descendência de homens para a guerra,
do meu doce, firme e almo sossego. - a mais galharda que se viu na Terra;
26 Tanto a ocupa a dor que não alcança 32 (cria nisso o gascão, não sem coerência;
consolo, nela, algum lugar eleito; pois tal era, no exército dos Mouros,
mas, apesar disso, renasce a esperança, firme opinião e geral credência,
que procura alojar-se no seu peito, e em público se ouvia em tons sonoros.
reavivando também a lembrança Os muitos sinais de benevolência
do que ao partir Ruggier lhe disse em preito, entre eles criavam estes agouros;
e que a faz, contrariando a aparência, pois lesta, boa ou má fama que saia
aguardar sempre o fim da sua ausência. duma boca, sem limites se espraia.
27 Foi dessa esperança que se sustentou, 33 Para aos Mouros dar ajuda ela ter ido
além dos vinte dias, mais um mês; com ele, e estar-lhe sempre em companhia,
por isso a grande dor não se agravou, tinha esta convicção estabelecido;
como o faria sem tal solidez. e ainda mais firmeza lhe daria
Um dia em que pela estrada se afastou por, depois de ter do campo partido
buscando Ruggier, como tanta vez, levando Brunel, como eu vos dizia 10,
ouviu notícia a triste, que bem presto sem ter sido por ninguém convidada,
a esperança fez fugir, atrás do resto. fora, só para ver Ruggier, regressada.
520 ORLANDO FURIOSO

34 Só para visitá-lo, que gravemente 40 Cruel, qual é o mal de que te queixas,


ferido jazia, ao campo vindo tinha, se destruir quem te ama não lamentas?
não uma só vez, mas frequentemente; Se a palavra cumprir tanto desleixas,
passava o dia e partia à noitinha; que peso no coração tu aguentas?
e ainda mais que falar dava à gente Como tratas o imigo, se deixas
por, de tão altiva que se adivinha, que eu, que tanto te amo, viva em tormentas?
achando que a si todo o mundo é vil, Direi que justiça o Céu não afiança,
só com Ruggier ser benigna e gentil); se tardar a ver a minha vingança.
35 afirmando o gascão que isso é verdade, 4 1 Se mais que outro pecado, o pesadelo
Bradamante foi ferida por tal pena, da ímpia ingratidão o homem agrava,
tomada por dor de tal acuidade e por isso do Céu o anjo mais belo
que a colapso fatal quase a condena. foi banido para parte escura e cava;
O corcel a virar, muda, persuade, se a grande erro cabe grande flagelo,
de ciúme, de ira e de raiva plena; quando a emenda o coração não lava,
e, já de si fugida toda a esperança, cuida que algum flagelo não te ofenda,
para sua casa furibunda avança. por seres ingrato e não buscares emenda.
36 Sem desarmar-se, na cama se deita: 42 Também de furto, o vício mais ateu,
de rosto para baixo, ficou estendida não tens, cruel, de queixar-me impedido.
para não gritar e assim não dar suspeita, Que tens meu coração, não digo eu;
na boca a coberta tinha metida; quero que disso sejas absolvido;
recordando toda a descrição feita digo de ti, que te fizeste meu,
pelo cavaleiro, a dor foi tão sofrida e andas contra a razão de mim fugido.
que, sem que a pudesse mais suportar, Rende-te, iníquo, a mim; pois sabes bem:
teve de dizer, para a desafogar: não se salva quem o que é de outro tem.
37 - Ai de mim! Em quem mais posso crer eu? 43 Tu, Ruggiero, deixaste-me; eu não quero,
Pois todo o mundo é pérfido e cruel, nem, deixar-te querendo, serei capaz;
se és pérfido e cruel, Ruggiero meu, mas, para livrar-me do meu desespero,
que julguei tão bondoso e tão fiel. meus dias findar posso e me compraz.
Que crueza, que engano fariseu Só não morrer-te em graça me é severo;
houve em grega tragédia com tal fel, concedessem-me os deuses mais atrás
que não seja menor, se tiveres tento ter eu morrido, quando te era grata,
no teu débito ao meu merecimento? nunca morte haveria tão beata. -
38 Por que, Ruggier, como outro não existe 44 Assim dizendo e a morrer disposta,
mais destemido e com maior beleza salta do leito e, de raiva inflamada,
que tu, ou que valor igual registe, no peito, ao lado esquerdo a espada encosta;
nem iguais costumes, nem gentileza, mas dá-se conta que está toda armada.
por que não queres que também se aliste O �njo da guarda faz-lhe proposta,
entre tuas virtudes a firmeza? à alma falando: - Ó donzela nada
Que digam que tens lealdade firme, de linhagem nobre, achas razoável
que mais que as outras virtudes se afirme? a vida findar de modo culpável?
39 Não sabes que não brilha, sem aquela, 45 Não será melhor se à batalha vais,
nenhum valor, nenhum nobre costume? onde se pode morrer com honor?
Como nenhuma coisa (inda que bela) Se suceder que em frente a Ruggier cais,
não pode ver-se onde não brilhe o lume. talvez por tua morte sinta dor;
Fácil foi enganares uma donzela mas que outra morte te contenta mais
de quem eras senhor, ídolo e nume, que sua espada tirar-te o vigor?
que com palavras podias levar Que te prive da vida é coisa justa:
que o Sol é escuro e frio a acreditar. por causa dele tanto viver te custa.
CANTO XXXII 521

46 Quem sabe até se, enquanto viva fores, 52 Uns Perdida e outros Islândia à ilha
farás vingança daquela Marfisa, dão nome, da qual a rainha dessa,
que com fraude e desonestos amores que em beleza mais que as mais maravilha
Ruggier tem, matando-te desta guisa. - (beleza assim o Céu deu só a essa),
Tais pensamentos pareceram melhores manda o escudo a Carlos que vês na cilha;
à donzela, que logo uma divisa mas com o pacto e a condição expressa
nas armas pôs, a qual queria dizer de ao melhor cavaleiro o dar, segundo
desespero e vontade de morrer. o seu parecer, que existe hoje no mundo.
47 A sobreveste era daquela cor 53 Ela, que se supõe, e é verdadeiro,
com que fica a folha quando fenece, a dama mais bela que há entre a gente,
por ser colhida ou porque aquele humor queria assim encontrar um cavaleiro
que à planta dá vida desaparece. mais que qualquer outro forte e valente;
Tinha de troncos bordado lavor, pois tem pensamento fixo e certeiro,
de cipreste, que não mais reverdece que a mil abanões será resistente,
depois de sentir o duro machado: que aquele que em armas tem maior honor
com sua dor o traje é combinado. venha a ser seu amante e seu senhor.
48 Levou o corcel que Astolfo soía 54 Espera que em França, na famosa corte
ter, e a lança de ouro que, só tocando, de Carlos Magno, o cavaleiro se ache,
cair da sela o cavaleiro fazia 1 1 • que de ser o mais valente e o mais forte
Porque lha deu Astolfo, e onde e quando, tenha dado prova com toda a praxe.
e de quem ele recebido a havia, Vês ali três reis a dar-lhe suporte,
não acho necessário ir replicando. e digo-te onde cada um despache:
Levou-a ela, porém não sabendo Suécia, Gótia 15 Noruega, um por um,
que o valor que tinha era tão estupendo. que em armas, pares, poucos hão ou nenhum.
49 Sem escudeiro e sem qualquer companhia 55 Estes três, cuja terra não vizinha,
do monte desceu, e tomou destino mas mais próxima é, da Ilha Perdida
direito a Paris, pela mais recta via, (assim dita por tal zona marinha
para onde estava o campo sarracino; de poucos mareantes ser conhecida),
pois a notícia ainda não sabia eram e são amantes da rainha,
que a hoste fez Rinaldo, o paladino, disputando-a em contenda renhida;
com Malagigi e Carlos a ajudar, e para agradar-lhe coisas têm feito
o seu assédio a Paris levantar. que, enquanto o céu girar, terão respeito.
50 De Quercy já se encontrava afastada, 56 Mas ela nem estes nem outro quer,
e de Cahors 1 2, e todo aquele monte que ela em armas não julgue estar no cimo.
onde nasce o Dordonha 13 , e já mirada «As provas dadas (costuma dizer),
tinha de Monferrante e Claramonte14, em lugares próximos, pouco estimo;
quando avistou, vindo na mesma estrada, se um, como o Sol entre as estrelas, estiver
uma dama ostentando nobre fronte, entre os outros dois, muito eu o sublimo;
que um escudo tinha pendente do arção; mas não creio possa sentir-se ufano
e três cavaleiros ao lado vão. de estar que todos em mais alto plano.
51 De pagens e damas um agregado 57 A Carlos Magno, que estimo e honoro
vinha, atrás e à frente, em longa fileira. como o mais sábio rei que o mundo guia,
De um indagou que lhe passou ao lado, estou para mandar um rico escudo de ouro,
Bradamante, quem era a caminheira; na condição que o dê, em regalia,
- Ao franco imperador (foi-lhe informado) ao cavaleiro que ali tenha o louro
esta dama, mandada mensageira e a fama de primeiro em galhardia.
de além do Árctico Polo, remetida Seja ele seu vassalo ou de outro rei,
foi por longo mar, da Ilha Perdida. o parecer de Carlos acatarei.
522 ORLANDO FURIOSO

58 Tendo Carlos o escudo recebido, 64 Com maior pressa faz mover o pé


e tendo-o dado ao mais valente e forte, ao seu cavalo; e, muito não andou,
que melhor que qualquer um tenha crido, quando o campo deixar um pastor vê,
quer esteja na sua ou em outra corte, que seu rebanho já arrecadou.
se algum de vós três tiver conseguido Com muita instância pede que lhe dê
o escudo conquistar-lhe, e mo transporte, sinal de albergue que seja bom ou
meu desejo darei e o meu amor mau, pois não lhe dará pior abrigo
a esse, meu marido e meu senhor». que fora sofrer da chuva o castigo.
59 Fizeram tais palavras aqui vir 65 Disse o pastor: - Não sei lugar nenhum
estes três reis, desse mar tão distante, que possa indicar na imediação,
que o escudo ter ou a vida delir pois só a quatro ou seis léguas sei de um,
às mãos do que o tiver, deram garante. - que se chama castelo de Tristão.
Bradamante atenta esteve a ouvir Mas ter abrigo ali não é comum;
o que disse o escudeiro tão falante, pois é preciso, com a lança na mão,
que a correr partiu; tanto esporeou que seu abrigo conquiste e defenda
o corcel que a companhia alcançou. o cavaleiro que abrigo pretenda.
60 Atrás não lhe galopa nem lhe corre 66 Se, quando chega um cavaleiro, a alcova
ela, que a lenta seguir é propensa, livre estiver, o castelão o aceita;
e entretanto muitas coisas discorre, mas quer, se depois chegar gente nova,
que hão-de acontecer: em resumo, pensa lhe prometa que justa será feita.
que, por causa do escudo, em França ocorre Não vindo, não precisa que se mova;
discórdia e rixa, e inimizade imensa se vem, a vestir armas se sujeita
entre paladins e mais, se escolher e a justar; e quem tem menos acerto
Carlos o melhor, e lho oferecer. cede o lugar, dormindo a céu aberto.
6 1 Oprime-lhe o coração tal cuidado;
e oprime e consome de pior guisa
o outro, de Ruggier lhe ter tirado
seu amor e tê-lo dado a Marfisa.
Tem o sentido aqui tão embrenhado
que o caminho não olha, e não divisa
para onde vai, nem se encontra adiante
cómodo albergue e noite repousante.
62 Como nave da margem fugitiva,
que pelo vento ou outra razão foi solta,
sem barqueiro e sem governo à deriva
vai, para onde a leva a corrente em volta;
tal vai a jovem amante evasiva,
com seu Ruggier em pensamento envolta,
onde Rabicano quer; distraída
vai a mente que virar deve a brida.
63 Ergue os olhos por fim e o Sol repara
que às cidades de Boco 16 as costas deu;
para lá de Marrocos já mergulhara,
qual mergo, no seio de onde nasceu;
se pensa que sob o céu a ampara
o bosque, tem pensamento sandeu;
pois sopra frio o vento, e o ar não leve
chuva ameaça nessa noite ou neve.
CANTO XXXII 523

67 Se dois, três ou mais guerreiros primeiro 73 Em armas, melhores poucos havia,


ali chegam, albergue em paz terão; mas entre esses poucos ela era um;
pior para o que depois vem, sem parceiro, de modo nenhum ao frio ficaria
porque justar com os mais o farão. naquela noite, molhada e em jejum.
E se um primeiro vai, sem companheiro, Da janela, o resto da companhia
alojar-se, com ele liçar quererão observa a liça ao luar, pois algum
dois, três ou mais que cheguem de viagem; por entre as pesadas nuvens se expande,
tendo ele grande valor, terá vantagem. embora a chuva que cai seja grande.
68 Não menos, se ali ou dama ou donzela, 74 Como se alegra um muito ardente amante
com ou sem companhia, desemboca; que doces furtos vai colher na alcova,
se outra chega depois, é da mais bela e o ferrolho, após espera agonizante,
o albergue, e à que é menos estar fora toca. - que suavemente é aberto comprova;
Onde fica, Bradamante interpela; assim tão desejosa Bradamante
e o bom pastor não só diz com a boca, de aos cavaleiros de si fazer prova
mas com a mão lhe aponta para diante: se alegrou, ouvindo as portas abrir,
é cinco ou seis milhas dali distante. descer a ponte, e fora os ver surgir.
69 Embora Rabicano a andar se afoite, 75 Assim que da ponte os guerreiros viu
não pode ela porém esforçá-lo tanto, juntos sair, ou com pouco intervalo,
por via que covas e lama amoite voltou-se, ganhou espaço e investiu,
(a estação chuvosa levava adianto), lançando a toda a brida o bom cavalo,
que ao sítio chegue antes que a cega noite e enristando a lança que lhe forniu
do mundo torne escuro todo o canto. seu primo, que sempre causa resvalo,
A porta achou fechada; e a quem fazia pois da sela é forçoso que desloque,
guarda disse que alojamento queria. Marte ele fosse, o guerreiro em que toque.
70 Diz-lhe não ter vagas a hospedeira; 76 O da Suécia primeiro se moveu,
damas, guerreiros vieram adiante, e primeiro também caiu ao chão:
que estavam à espera junto à lareira com tal força no elmo lhe bateu
que lhes pusessem o jantar diante. a hasta, jamais abaixada em vão.
- Para esses não o fez a cozinheira, Depois o rei da Gótia se abateu,
se o não comeram até este instante de pés para o ar longe do alazão.
(disse a dama); vai lá, que aqui atendo; O terceiro foi de borco virado,
sei o uso, e respeitá-lo pretendo. - em água e lama meio sepultado.
71 Parte o guarda, levando o provimento 77 Assim que com três golpes viu os três
aos cavaleiros que estão na indolência, as cabeças baixar e os pés alçar,
não teve deles bom acolhimento, foi para o castelo onde, por sua vez,
pois que saiam ao frio faz exigência, abrigo queria; mas, antes de entrar,
e começara a chover no momento. que sairia alguém jurar a fez,
Erguem-se e as armas tomam, sem urgência; sempre que fosse chamada a justar.
dentro outros ficam; e, com lentidão, O senhor da casa, que o seu valor
onde a dama os aguarda juntos vão. apreciou, presta-lhe grande honor.
n Três cavaleiros, qual mais denodado, 78 Assim faz a dama ali acolhida,
como no mundo poucos se achariam: que dos outros três era companheira,
os mesmos eram que esse dia ao lado como vos disse, da Ilha Perdida
da mensageira pela estrada seguiam, mandada ao rei de França mensageira.
que na Islândia se tinham gabado Ao ser saudada, cortês e polida,
que de França o escudo outra vez trariam; pois era muito graciosa e fagueira,
porque seus cavalos mais esporearam, vai-lhe ao encontro e, com expressão macia,
antes de Bradamante ali chegaram. toma-lhe a mão e para a lareira a guia.
524 ORLANDO FURIOSO

79 Começando a donzela a desarmar-se, 81 Já lhe cresceu e com tanta longueza


o escudo e o elmo tinha já tirado; a cabeleira que o frade cortara 17 ,
mas uma touca de ouro, em que apertar-se que atrás a pode usar na nuca presa,
soía o cabelo, e o tinha ocultado, porém como era dantes não ficara.
vem com o elmo, fazendo-o espalhar-se Que ela é Bradamante, tem a certeza
pelas costas, tendo logo revelado (que em outras ocasiões a fitara)
que ela era sem dúvida uma donzela, o senhor do castelo; e mais ainda
quanto em armas brava, no rosto bela. lhe mostra o seu respeito e que é bem-vinda.
80 Como ao subir o pano um arrebol 82 Sentam-se ao lume, e com jucundo e honesto
de mil lâmpadas nos surge na cena, diálogo apascentam a orelha,
de arcos, e mais que uma soberba mole, enquanto, para restaurar inda o resto
de ouro, de estátuas e pinturas plena; do corpo, outro repasto se aparelha.
ou como sói dentre as nuvens o Sol Pede ela ao dono torne manifesto
mostrar a face límpida e serena; se esta usança de albergue é nova ou velha,
assim, ao retirar o elmo do viso, quando houve início e quem a prescreveu;
pareceu que desvendasse o paraíso. e o cavaleiro assim lhe respondeu:
CANTO XXXII 525

83 - No tempo em que reinava Fieramonte 18 , 89 Tristão, que por ela pouco se interessa,
Clodion, seu filho, tinha uma amiga, pois só Isolda tem o interesse seu
elegante e fina, quanto se conte (que outra não deixa que ame, ou o enterneça,
de qualquer uma dessa idade antiga; a poção encantada que bebeu20) ,
a qual ele tanto amava que a fronte mas porque vingar-se da forma avessa
dela não tirava, mais que se diga deseja, com que o outro o recebeu:
que a tirasse de lo o seu pastor, «Julgo que grande erro seria (disse)
porque tinha igual ao ciúme o amor19 • se tal beldade do abrigo saísse.
84 Aqui a tinha; este lugar em dom 90 E se dormir só Clodion enfastia,
houve do pai, e dele pouco saía; ao relento, e companhia demande,
dez cavaleiros aqui estavam com uma jovem trago, bela e sadia,
ele, entre os melhores que em França havia. embora não de beleza tão grande.
Aqui estando, cá apareceu o bom Que esta fora vá não me contraria,
Tristão, com uma dama em companhia, e que obedeça a tudo o que ele mande;
a qual ele libertara pouco adiante, mas a mais bela, acho que é certo e justo
quando à força a arrastava um gigante. que esteja com o de nós mais robusto».
85 Tristão chegou quando o Sol já voltado 91 Clodion, expulso de casa, em tormento
tinha as costas às margens de Sevilha; andou bufando toda a noite em volta,
e pediu para ser aqui hospedado, como se àqueles que no alojamento
que outro albergue não há em muita milha. dormiam cómodos fizesse escolta;
Mas Clodion, amante enciumado, e, muito mais do que a chuva e o vento,
acautelando-se, a ideia perfilha custava-lhe da dama estar à solta.
que forasteiro, seja ele quem for, De manhã Tristão, dele sentindo pena,
não entre onde estiver o seu amor. entregou-lha, e logo a dor se asserena;
86 Como os pedidos não lhe satisfez, 92 pois disse-lhe, de modo claro e certo,
negando abrigo, disse o cavaleiro: que como a encontrou lha devolvia;
«Aquilo que com rogos não se fez, merecendo ser de vergonha coberto,
farás de modo menos prazenteiro». por lhe ter feito tal descortesia,
Desafiou Clodion mais os dez bastara-lhe deixá-lo a céu aberto
que ali tinha, e com um grito altaneiro toda a noite: desse modo o punia;
propôs-se, com lança e espada na mão, nem desculpa aceitou que houvesse Amor
provar-lhe ser descortês e vilão; sido o motivo para tão grave error;
87 com condição de, dando-lhe aluimento 93 Deve Amor tornar gentil um vilão,
e aos dez, mantendo-se na sela forte, e não ao gentil dar contrário efeito.
no castelo, só, ter alojamento, Depois de ter ido embora Tristão,
deixando os outros fora, à sua sorte. Clodion a novo tecto foi direito;
Para não sofrer tão grande aviltamento, mas primeiro o castelo pôs na mão
corre o filho do rei risco de morte; de outro cavaleiro, a quem era atreito,
pois gravemente ferido cai por terra, na condição que ele, e quem mais viesse,
como os outros, e Tristão fora os cerra. este modo de albergar mantivesse:
88 Entrado no castelo, encontra aquela 94 que aquele cavaleiro mais denodado,
que eu disse ser a Clodion tão cara, e a dama mais bela, sempre se aloje;
e que tinha, mais que outra, feito bela que do quarto saia o que é derrotado,
Natura, a dar beleza tão avara. durma na erva, ou noutra parte poje.
Conversam, enquanto queima e flagela Fez assim que fosse o uso implantado,
o amante, lá fora, paixão amara; conforme inda dura nos dias de hoje. -
que evitar mandar rogos não consegue Enquanto o cavaleiro isto contara,
a Tristão, para que a dar-lha não se negue. o trinchador a mesa pôr mandara.
526 ORLANDO FURIOSO

95 Tinha-a mandado pôr na sala grande, 1 01 Empalidece e altera-se seu viso,


não conhecendo o mundo outra mais bela; pois tal sentença ouvir pouco lhe agrada.
vem buscar, à luz das tochas que brande, Mas Bradamante com sábio juízo,
as belas damas que conduz àquela. por pena que ela seja rejeitada,
Ao entrar, Bradamante o olhar expande, respondeu: - Não julgo ser de bom siso,
e igual gesto faz a outra donzela; nem decisão justamente tomada,
sobre as paredes total cobertura se primeiro não se deixa que negue
podem ver de magnífica pintura. ou afirme a parte, e razões alegue.
96 Tanta beleza orna o salão inteiro 1 02 A defender esta causa me arrojo:
que, olhando-o, a ceia quase olvidaram, mais ou menos bela do que ela eu seja,
apesar de aos corpos ser prazenteiro, não entrei como mulher, nem entojo
que da jornada cansados ficaram; que como mulher em vantagem esteja.
lamenta o trinchador e o cozinheiro, Quem dirá, se toda não me despojo,
porque a comida arrefecer deixaram. se a ela igual sou, como se deseja?
Mas disse alguém: - Mais vale apascentar O que não se conhece, não se diz,
o ventre primeiro, e depois o olhar. - e, ainda mais, se alguém torna infeliz.
97 Sentados, já ao pasto a mão se expande, 1 03 Muitos há que a crina longa também
quando olha o senhor, e a certeza adquire, têm como eu, homens sendo no resto.
que alojar duas damas erro é grande: Se como dama o quarto, ou se, porém,
uma fica, outra convém se retire. como guerreiro obtive, é manifesto;
A menos bela para fora se mande, que eu seja mulher, pois, donde provém
com chuva a molhar e vento a zunir. a ideia, se masculino é meu gesto?
Como não chegaram à mesma hora, Diz a lei sejam damas despedidas
uma fica e a outra vai-se embora. por damas, não por guerreiros vencidas.
98 Chama dois velhos, e algumas das suas 1 04 Vejamos mais: se, como vos parece,
mulheres de casa, para dar opinião; mulher sou (o que porém não admito),
olham as donzelas e, para das duas mas se beleza menor eu tivesse
achar a mais bela, há comparação. que a desta, não creio que o requisito
Foi parecer de todos, sem falcatruas, do meu valor por isso desmerecesse,
ter Bradamante maior perfeição; só por ser meu rosto menos bonito.
não só em beleza a outra vencia, Injusto é perder por menor beleza
como mais que os cavaleiros valia. o que às armas ganhei com mais nobreza.
99 À dama da Islândia, a quem abstruso 105 E admitindo que fosse a usança tal,
e muito suspeito pareceu o gesto, que quem perde em beleza devesse ir,
disse o senhor: - Que observemos o uso, eu queria ficar, viesse a bem ou mal
só deveis, senhora, achar que é honesto. a minha obstinação a conseguir.
Aqui, o alojamento é-vos excluso, Por isso, que há disputa desigual
pois a todos é claro e manifesto entre mim e a dama devo inferir:
que esta dama em beleza e em feições competindo em beleza, ela perdia;
vos supera, mesmo sem guarnições. - se mais bela, eu pelas armas venceria.
1 00 Assim como de súbito uma obscura 1 06 Se para ganhar e perder há destom
nuvem se vê subir do vale ao céu, entre as partes, injusto é o partido;
e a face, que do Sol antes tão pura assim, que a ela por razão ou dom
estava, cobre com tenebroso véu, especial, não seja o abrigo impedido.
assim a dama, ante a sentença dura E se alguém, para dizer que não é bom
que ao frio e à chuva a fará estar ao léu, meu juízo e certo, for atrevido,
mudar se vê, e nem parece aquela estou pronta a demonstrá-lo, a seu prazer:
que antes parecia tão jucunda e bela. bom é o meu, e falso o seu parecer. -
528 ORLANDO FURIOSO

107 A filha de Amon, cheia de piedade 1 09 A ceia, que lhes fora posta diante,
por esta gentil dama, sem razão, mas não tocada, foi comida em festa,
ter de ficar à chuva e frialdade, sem que de novo cavaleiro errante
onde tecto não há nem um galpão, a vinda fosse para eles molesta.
o castelão do albergue persuade, Gozaram-na os outros, não Bradamante,
com razões e com falar sabichão, que, como usava, estava triste e mesta;
mas mais com o seu último argumento, o temor e o traimento suposto,
a quieto estar e esquecer seu intento. que a acompanhavam, tiram-lhe o gosto.
10s Como sob o ardente calor estivo, 1 10 Finda que foi a ceia (talvez fosse
desejosa de beber está a erva, mais longa, se não estivessem à espera
a flor, a que faltava o incentivo de os olhos pascer), Bradamante alçou-se,
daquele humor que a vida lhe conserva, e a mensageira seu gesto reitera.
sente a chuva e assume um ar festivo; O senhor acenou, e um apressou-se
de igual modo, quando a defesa observa a alumiar de imediato muita cera,
que dela se fazia, a mensageira que iluminou da sala todo o canto.
de novo se fez bonita e fagueira. Narro o que se seguiu, no outro canto.

--.-
NOTAS

1 Reino [. . .] daria: cujo trono estava vago porque 11 O corcel [. . .] fazia: Rabi cano e as armas que Astolfo
Rinaldo matou o rei anterior (cf. XVI:47-48) . lhe deu a guardar (cf. XXIII: 14- 1 5) .
2 12
Ruggiero [. . .] termo: Ruggiero livrara-o da forca no Quercy [. . .] Cahors: região do Sul de França e respec­
Orlando lnnamorato. tiva capital (a norte de Montalvão) .
3 E à fé: à sua prometida conversão ao cristianismo 13
Onde [. . .] Dordonha: nasce no Maciço Central.
(cf.XXII:36) .
14 Monferrante e Claramonte: cidades da região de
4 Pírois e Éton: dois dos quatro cavalos que puxam o Auvergne, que se uniram no séc. XVII, formando a actual
carro do Sol (os outros são Eoo e Flégon) . Clermont-Ferrand.
5 Justo [. . .] detenção: o israelita Josué ordenou ao Sol 1 5 Gótia: provavelmente Gotland, ilha e condado da
que se detivesse, para ter tempo de obter uma vitória Suécia no mar Báltico.
sobre os inimigos.
16
Cidades de Boco: a Mauritânia, de que Boco foi rei.
6 Noite [. .. } geraria: Na noite em que Zeus se uniu a
17
Alcmena, para mais longamente desfrutar do seu amor, O .frade cortara: cf. XXV:24.
ordenou ao Sol que não se erguesse durante três dias.
18
Dessa união nasceu Hércules. Fieramonte: rei dos Francos, de quem a lenda diz ter
sido o primeiro rei que atravessou para a margem esquer­
7
De [. . .] esposa: a Aurora (cf. nota a VIII:86:6) . da do Reno.
8 Fúrias [. . .} ornamentos: as Fúrias o u Erínias - Alecto, 19
lo [. . .] amor: lo, amada por Zeus, foi alvo do ciúme
Tislfone e Megera -, tinham os cabelos entremeados de Hera. Para a salvar, Zeus transformou-a em vitela,
de serpentes. mas Hera exigiu que o animal lhe fosse dado e confiou­
-o à guarda constante de Argo dos Cem Olhos.
9
Para [...] apraz: a serpente, para continuar a ser cruel,
20
recusa-se a ouvir o som do encantador. Tristão [. . .] bebeu: Tristão, personagem lendária do
ciclo bretão, bebeu por engano o filtro amoroso que a mãe
1
° Como [. . .] dizia: cf. XXVII:93-94. de Isolda preparara para seu marido, o rei da Cornualha,
ficando para sempre apaixonado por ela.
-ê:lfo­

CANTO XXXIII

Timágoras, Parrásio, Polignoto,


Protógenes, Timantes, Apolodoro,
Apeles, destes todos o mais noto,
Zêuxis, e outros desses tempos de ouro 1 ,
dos quais a fama (contrariando Cloto 2 ,
que os corpos extinguiu e as obras de louro3)
ficará, enquanto houver narrativa,
por obra dos escritores, no mundo viva;
2 e neste tempo, os que existem agora,
um Leonardo, um Mantegna, um Gian Bellino,
dois Dossi, e aquele que esculpe e colora,
Michel, mais que mortal, anjo divino4 ;
Bastiano, Rafael, Tizian, que honora
Cador, quanto eles Veneza e Urbino5;
e os demais, de quem tal obra se vê,
como dos antigos se lê e crê;
3 estes que pintam hoje, e os Rafaéis
que há mil anos pintaram com apuro,
as coisas que ocorreram com pincéis
fizeram, quer na tábua quer no muro.
Mas não constou que antigos, nem novéis,
j amais houvessem pintado o futuro;
porém, histórias se têm encontrado,
pintadas antes que se tenham dado.
530 ORLANDO FURIOSO

4 Mas que não se gabe de fazer tanto 7 Todas as guerras que os Francos farão
pintor antigo nem pintor moderno, para lá dos Alpes, com bom ou mau fim,
e que sua arte ceda ao encanto mil anos além da sua geração,
que seduz mesmo os espíritos do Inferno. pôs nesta sala o profeta Merlim;
O salão que eu disse no outro canto, o qual foi mandado pelo rei bretãoª
Merlim fez com o livro, no lago Averno6 ao franco rei, de Marcomir delfim9;
consagrado ou nas grutas de Norcia7 , por que o mandou, e por que executante
pintar pelos demos da noite para o dia. Merlim foi dela, digo num instante.
5 Esta arte, em que deram os de outrora s Foi Fieramonte o primeiro soberano
provas prodigiosas, está hoje extinta. que o Reno passou com a tropa franca;
Mas, voltando onde me aguardam agora depois da Gália ocupar, tinha o plano
os que a sala vão ver ornada a tinta, de à soberba Itália pôr uma tranca.
sinal um pagem houve e, sem demora, Tal pensava, porque o Império Romano
tochas acendeu; e a noite, indistinta tinha a passada cada vez mais manca;
pelo grande esplendor, logo se esquecia; por isso com Artur fez aliança 1 0 ;
dia fosse, e melhor não se veria. pois houveram no tempo vizinhança.
6 Disse o senhor: - Quero-vos informadas 9 Artur, que empresa fazer, sem parecer
de que as guerras que aqui estão retratadas, do profeta Merlim, não foi capaz
até hoje, poucas foram travadas; (digo Merlim, filho de Lucifer,
foram, antes de ser feitas, pintadas. o que do futuro antevia assaz),
Por quem pintou foram adivinhadas. soube por ele, e o perigo fez saber
Quando haverão vitória, ou derrotadas a Fieramonte, que a risco pugnaz
em Itália serão as nossas gentes, exporá sua gente, se entrar na terra
todos os casos aqui estão patentes. que Apenino parte e o Alpe e o mar cerra 1 1 •
CANTO XXXIII 531

10 Deu-lhe Merlim a ver que os escolhidos 13 Assim disse, e de as levar fez mister
que o ceptro de França após ele haverão, ao início da história; e Singiberto 13
pela espada os exércitos destruídos, lhes mostra que vai, para tesouro haver,
ou pela fome ou pela peste, ali verão; que o imperador Maurício14 deu por certo.
curtas alegrias, lutos compridos, - Ei-lo do monte de Jove 1 5 a descer
pouco proveito e enorme perdição ao chão pelo Ambra e pelo Ticino aberto16 •
trarão de Itália; pois não se prediz Vejam Eutar'7, que não só o expulsou,
que o Lírio 12 , em tal terreno, crie raiz. mas o pôs em fuga e o derrotou.
11 Rei Fieramonte nele fez tanta fé 14 Vejam Clodoveo 18 , que traz mais de um cento
que a outro sítio dirigiu a armada; de milhares de gente a passar o monte;
e Merlim, que qualquer coisa bem vê, e vejam o duque de Benevento,
que há-de vir, como se já realizada, que com número díspar lhes dá a fronte.
a pedido do rei, como se crê, Aqui finge deixar o acampamento,
nesta sala, por magia pintada, mas com engodo: morte no horizonte
dos Franceses todo o futuro gesto, para a gente francesa, que ao vinho corre
como se ocorrido, fez manifesto. como o peixe ao anzol: pela boca morre19 •
12 Para que quem lhe suceder bem entenda 15 Eis Childiberto20 , para Itália, quanta
que, assim como obterá vitória e honor gente de França e capitães envia;
quando a defesa de Itália empreenda não mais que Clodoveo se gaba e canta
contra outro qualquer bárbaro furor, de saquear e vencer a Lombardia;
também sempre que danejá-la entenda, pois a espada do céu desce e faz tanta
para pôr-lhe o jugo e dela ser senhor, morte entre os seus que ocupam toda a via;
entenda, digo, e disso esteja certo, desinteria e calor os dizimou;
que além dos Alpes tem sepulcro aberto. - menos que um em cada dez se salvou. -
532 ORLANDO FURIOSO

16 Mostra Pipino, e mostra Carlos2 1 perto, 22 e a gente que de França ali aporta
que cada um de Itália segue a senda, é atraída onde a rede está tesa32 ,
um e outro de sucesso coberto, com o conde Armagnac; a escolta os transporta
pois a ela não vem para que a ofenda; directamente à infeliz empresa.
um, para ser o papa Estêvão liberto; Por todo o campo essa gente jaz morta,
outro, para que Adriano e Leão22 defenda: ficando alguma em Alessandria presa;
Astolfo23 um doma, outro vence e captura e, mais de sangue que de água engrossado
o herdeiro, e a honra do Papa assegura. pelo Tanaro33 , o Pó torna-se encarnado.
17 Mostra-lhes perto outro jovem Pipino24 , 23 Um, dito da Marca, e três anjouinos34
que parece cobrir, com sua gente, lhes aponta um após outro, e diz: - Estes,
desde as Fornaci25 ao lido pelestino26 ; aos de Abruzos, Calábria, e Otrantinos
com grande despesa e lavor ingente, e Apúlios vemos dar tratos agrestes.
de Malamocco a ponte eis que ergue a pino Mas nem dos Francos vale, nem dos Latinos,
até Rialto, para que o assalto tente. ajuda que evite que se vão prestes;
Aqui foge, o exército afogado; eis como são expulsos do reino, quando
mar e vento a ponte tinham levado. ali vão, por Alfonso e por Fernando35 •
1s - Eis Luís de Borgonha, que propende 24 Vejam Carlos oitavo36 , que descende
para onde vencido é e prisioneiro, dos Alpes, e com ele o escol da França;
e vê-se que o faz jurar, quem o prende, passa o Liri37 e todo o reino apreende,
que aqui não voltará como guerreiro. sem espada empunhar ou abaixar lança,
Mas ei-lo que o seu juramento ofende, salvo o rochedo que a Tifeu se estende
e de novo cai no laço embusteiro; sobre os braços e o peito e sobre a pança38 ;
eis que os olhos cá deixa e, qual toupeira, o bom sangue de Avalos lhe resiste:
levam-no os seus, dos Alpes pela fronteira27 • contra lnico dei Vasto não insiste39 • -
19 Vejam de Hugo d'Arles os grandes feitos,
e que de Itália os Berengari corre;
duas ou três vezes por ele desfeitos,
pois sempre um Huno ou Bávaro os socorre.
Mais tarde é forçado a ceder direitos
ao inimigo, e pouco depois morre;
pouco a ele sobrevive o herdeiro,
e a Berengario cede o reino inteiro.
20 Vejam outro Carlos: para dar confortos
ao Papa, a Itália traz fogo renhido28 ;
duas batalhas, dois reis deixou mortos:
Manfredi, por Coradino seguido.
Eis seus homens, que com mil desconfortos
mantêm o novo reino oprimido:
aqui e ali, pelas cidades espalhados,
todos ao som do vespro29 aniquilados. -
21 Mostra depois (mas havia intervalo
de muitos, muitos lustros, não só anos)
que desce os montes um capitão galo30 ,
para fazer guerra aos Visconti soberanos;
com gente francesa a pé e a cavalo,
a Alessandria impõe cerco e danos;
mas dentro a guarnição tem preparada
o duque3 1 , e fora armara a emboscada;
CANTO XXXIII 533

25 O senhor do castelo, que assim ia 31 - Eis Ludovico que já vê o perigo


esta história apontando a Bradamante, de, para Culos lá entrar, convidá-lo;
quando lhe mostrou lschia, disse: - Queria, só para importunar o émulo antigo47
antes de vos mostrar mais para diante, o tinha chamado, e não para expulsá-lo;
dizer-vos o que a mim dizer soía no seu regresso mostra-se inimigo,
meu bisavô, quando eu era um infante, aliado a Veneza, para capturá-lo48 •
e aquilo que igualmente me narrava Eis que o rei francês com sua lança ameaça,
e que já de seu pai também escutava; abre caminho e, seu mau grado, passa.
26 e seu pai de outro, fosse pai ou fosse 32 Mas a sua gente, que defesa empresta
avô, e de um para outro até àquele ao novo reino, tem contrária sorte;
a cujo ouvido a voz do próprio trouxe, Fernando, com a ajuda que lhe presta
que estas imagens criou sem pincel, o senhor de Mântua49 , volta tão forte
que aqui vedes sem que o tempo as destroce: que em poucos meses ninguém dela resta,
quando esse castelo ao rei mostrou ele, em terra ou mar, que não conheça a morte;
que ora aqui vedes no escolho altaneiro, mas, por um hom� que é morto à traição,
disse o que vos vou narrar por inteiro. de vencer não mostra a satisfação. -
27 Contou que no lugar de que dialogo, 33 E diz-lhe, enquanto o marquês a faz ver,
daquele bom cavaleiro que o defende Alfonso di Pescara50 : - Este italiano,
com tal brio que despreza até o fogo quando mais de mil empresas fizer,
que a toda a volta e até ao Faro esplende40 , que o tornarão maior do que um soberano,
nascerá pouco após, ou mesmo logo eis a insídia que lhe vai estender,
(até o ano e as calendas entende), com jogo duplo, um vilão africano:
um cavaleiro, ao qual será segundo por uma seta, esganado perece
qualquer outro que já houve no mundo. o melhor sangue que essa era conhece. -
2s Não foi Nireu tão belo, ou tão potente
41

Aquiles; mais que Ulisses se atreveu42 ,


foi mais veloz que Lada43 , e mais prudente
que Nestor44 , que tanto soube e viveu; /
nem tão liberal foi e tão clemente r ( e
.: 1 )
César, tal como a fama o descreveu; {,, I

ante o homem que em lschia nascer deve, (•' /, I


desses, qualquer vanglória será leve.
1 ,
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29 E se se gloriou a antiga Creta,


porque o sobrinho de Ceo45 lá nasceu,
Baco e Hércules fez Tebas faceta,
e Delos dos gémeos se envaideceu46 ,
não deverá esta ilha ficar quieta,
sem se exaltar e se elevar ao céu,
por nela nascer o grande marquês,
que em graças terá o Céu tão cortês.
30 Merlim disse que estava, e repetiu,
destinado a nascer naquela idade
que o Romano Império mais oprimiu,
para com ele conquistar a liberdade.
Como algumas das gestas que cumpriu
vos mostrarei, esperar não vos enfade. -
E ao ponto da história voltou onde iam,
que as ínclitas acções de Carlos viam.
534 ORLANDO FURIOSO

34 Depois mostra o duodécimo Luís, 4o Aqui a França e, além, o campo engrossa


que com escolta italiana passa os montes, a gente hispana62 ; e a batalha é grande.
arranca a Amora e planta a Flor-de-lis Tomba gente e de sangue a terra empoça,
onde eram dos Visconti os horizontes51 • e por igual dos dois lados se expande.
Manda os seus ir de Carlos pelos carris52 , De sangue humano se enche cada fossa;
e construir no Garigliano pontes; hesita Marte onde a vitória mande.
mas já sua gente vencida e dispersa Graças a um Alfonso63 , ao fim sucede
perto se vê, morta, e no rio submersa. que o Franco fica e o Hispano cede,
35 - Vejam na Apúlia, morticínio igual 4 1 e Ravenna sofre depredação.
do exército francês em fuga posto; Morde o Papa o lábio de orgulho ferido,
Consalvo Ferrante53 , hispano oficial, e faz dos montes, como um furacão,
de dupla cilada lhes mostra o gosto. descer à pressa tudesco rugido64
E quanto aqui turvado, fraternal a que o Francês não dá oposição,
mostra, Fortuna, ao rei Luís o rosto, para lá dos Alpes parecendo ter ido;
no rico plano que só Adria elide, e de Amoreira um rebento plantou,
e entre Apenino e Alpe o Pó divide54. - no sítio onde os Lírios de Ouro arrancou65 •
36 Dito isto, a si próprio repreende 42 Eis que volta o Francês: e é derrotado
por ter o que ia contar atalhado; pelo Helvécio infiel, que tinha sido
voltando atrás, um que o castelo vende pelo jovem rei com risco contratado,
mostra, que seu senhor lhe havia dado55; pois já seu pai tinha preso e vendido66 •
aponta o traidor suíço, que prende Eis de novo o exército regressado,
quem a defesa lhe tinha confiado56 : que fortuna adversa havia sofrido;
essas duas coisas, sem brandir lança, com ele o novo rei67 , que se prepara
a vitória deram ao rei de França. para vingar a derrota de Novara68 ,
37 E aponta Cesar Borgia57 , que o favor 43 e com melhor auspício aqui retorna.
deste rei fez ser em Itália grande; Vejam o rei Francisco à dianteira;
parece que em Roma todo o senhor eis como os Suíços ele humilha e escorna,
a si sujeito para o exílio mande. quase lhes dá destruição inteira69 ;
E aponta o rei, mandando fora pôr assim, não mais o título os adorna,
de Bolonha a Serra, e impôr a Lande58 ; que usurpará sua vilã bandeira:
depois os Genoveses põe em fuga «opressores de príncipes e defesa
(rebeldes lhe eram), e a terra subjuga. da Igreja Católica» nela reza.
3s - Observem (diz depois), de gente morta, 44 Despreza a liga70 e Milão apreende,
em Ghiara d'Adda59 , coberta a campina. com o jovem Sforza fazendo aliança.
Ao rei as cidades abrem a porta, Vejam Bourbon7 1 , que a cidade defende
e só Veneza a custo se lhe obstina. do furor tudesco, pelo rei de França.
Eis que ele o desejo do Papa aborta: E vejam que enquanto Francisco atende
que, indo além de onde a Romagna confina, a outra empresa, e noutra parte avança,
Modena ao duque de Ferrara tire, ignorando a arrogância e crueldade
impedindo-o também de mais extorquir; que usam os seus, usurpam-lhe a cidade.
39 porém, o rei Bolonha ao Papa tira, 45 Eis um outro Francesco72, comparado
e a família Bentivoglio regressa. ao avô no nome, como em valor;
Eis o exército francês que se atira reavê, tendo os Gauleses expulsado,
a conquistar Brescia, e ao saque se apressa; a pátria, da Igreja havendo o favor.
quase a um tempo, de Felsina60 retira Torna ainda o Francês, mas, refreado,
o exército papal, e o arrevessa. não corre a Itália com o usado alor;
Eis que um e outro exército se ordena o duque de Mântua73 , junto ao Ticino74 ,
depois, na planície junto a Ravenna6 1 • corta-lhe o passo e impede-lhe o destino.
CANTO XXXIII 535

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536 ORLANDO FURIOSO

Federico, cujo rosto inda afiança 50 Mas aquela que nos faz como o vento
78
46
a flor da juventude, glória há-de ao árido pó, que em volta o regira,
ter eterna, por haver com sua lança, o leva até ao céu e, num momento,
mas mais com diligência e habilidade, à terra o faz regressar, de onde o tira,
salvo Pavia do furor da França, leva a crer que em Pavia um regimento
e ao leão do mar75 contrariado a vontade. de cem mil homens o rei reunira;
Vejam dois marqueses, ambos terror pois conta o que do bolso lhe saiu,
da nossa gente, e ambos de Itália honor, não se a tropa cresceu ou diminuiu.
47 ambos de um sangue e de um ninho nascidos. 5 1 Por culpa dos seus ministros avaros,
Do marquês Alfonso é filho o mais velho76 , e bondade do rei, que neles se fia,
do que, às mãos do negro de dois partidos, os reunidos sob os pendões são raros
vistes que o terreno tornou vermelho. quando à noite às armas se desafia;
Observem quantas vezes são corridos e assaltar vemos os seus anteparos
de Itália os Francos pelo seu conselho. o sagaz espanhoF9, que, tendo por guia
O outro, com ar benigno e feliz, dois d'Avalos, até seria ousado
é marquês do Vasto e Alfonso se diz. para o Céu e o Inferno ter assaltado.
48 Este é o bom cavaleiro que eu dizia, 52 Vejam aqui da nobreza de França
quando a ilha de Ischia mostrei atrás, o melhor escol, no campo destruído.
do qual profetizando dito havia E vejam quanta espada e quanta lança
Merlim a Fieramonte muito e assaz: por todo o lado o rei têm cingido;
que o seu nascimento só se daria vejam que aqui ao corcel dão matança:
no tempo em que ajuda mais eficaz mas não se rende nem dá por vencido,
exigia Itália, a Igreja e o Império, embora só ele vise e para ele corra
contra todo o bárbaro vitupério. o inimigo, sem que alguém o socorra.
49 Este, atrás do seu primo de Pescara, 53 O rei galhardo defende-se apeado,
com Prospero Colonna desta vez, e do hostil sangue todo se banha;
vejam que a Bicocca77 faz sair cara por fim, por tanta força é subjugado.
ao Helvécio, e ainda mais ao Francês. Eis o rei80 preso, e ei-lo já em Espanha;
Eis de novo França que se prepara vê-se aqui ser ao de Pescara dado,
para emendar empresas que mal fez: e ao de Vasto, que sempre o acompanha,
um exército o rei leva à Lombardia, as primeiras honras e distinção
e outro para tomar Nápoles envia. por vencer o rei e lhe dar prisão.
CANTO XXXIII 537

54 Derrotada uma hoste, a outra, que era 60 Perto da alva os olhos fecha, tardios,
para Nápoles conquistar, pelo caminho e parece-lhe ver o seu Ruggiero,
se vai ficando, como, quando a cera o qual lhe diz: - Por que tais desvarios,
ou óleo falta, fica o luzeirinho. acreditando no que não é vero?
Eis que o rei deixa na prisão ibera Antes verás correr para trás os rios
os filhos, e regressa ao franco ninho; que eu em outra pensar, to assevero.
aqui, enquanto à Itália faz guerra, Se eu não te amasse, amor também não tinha
eis que outros lha fazem na sua terra. ao meu coração nem à vista minha. -
55 Vejam os homicídios e as rapinas, 61 Parece juntar: - Para aqui fiz desvio,
por toda a parte de Roma dolente ; 81
para vir baptizar-me e cumprir promessa;
eis que incêndios e estupros às divinas e tanto tardei, porque me impediu
e profanas coisas dão igualmente. ferida profunda, mas não de amor essa. -
O exército da liga 82
olha as ruínas Fugiu-lhe nisto o sono, e não mais viu
de perto, e os prantos e lamentos sente; Ruggiero, que como ele se foi depressa.
e, em vez de avançar, para trás se desleixa, Renova seus lamentos a donzela,
e o sucessor de Pedro prender deixa. e dentro de sua mente assim diz ela:
56 Manda Lautrec o rei, com novas esquadras, 62 - O que agradou foi falso sonho; o lado
não para na Lombardia dar peleja, que me atormenta é insónia real.
mas para tirar das mãos ímpias e ladras O bem foi sonho depressa apagado,
o chefe e outros membros da Igreja; mas não é sonho o martírio infernal.
já não encontra o Papa em escuras quadras, Por que é oculto ao meu senso acordado
pois teve a liberdade de bandeja • 83
o que à ideia pareceu natural?
Assedia a cidade onde sepulta Fechados, meus olhos vêem o bem;
está a Sereia84 , e todo o reino insulta. abertos, só o mal vêem porém.
57 Eis que a armada imperial 85 já mareia, 63 O doce sono prometeu-me paz,
para dar socorro à cidade assediada; com a amarga insónia voltou a guerra:
e eis o Doria86 , que a via lhe cerceia, mostrou o doce sono ser falaz,
por ele submersa, desfeita e queimada. mas a amarga vigília, essa não erra.
Eis como Fortuna muda de ideia, Se amarga o vero, e o falso tanto apraz,
que aos Franceses sempre fora afeiçoada; que o vero de mim se afaste na Terra;
de febre os mata agora, e não de lança: se dormir dá gáudio, velar tormento,
entre mil não há um que volte a França. - durma eu, sem despertar um momento.
58 A sala esses triunfos e reveses, 64 Felizes animais, que em sono forte
e mais, que seria longo contar, seis meses estão, sem os olhos abrir!
continha, em coloridos entremezes; Que seja esse sono idêntico à morte,
podia-os, pelo tamanho, comportar. e esta insónia à vida, não quero adir;
Tornam a vê-los duas e três vezes, sendo às outras oposta a minha sorte,
sem vontade de deles se apartar; morte acordada tem, vida a dormir;
relêem muitas vezes o que a ouro mas se a tal sono a morte se assemelha,
estava escrito sob o belo tesouro. ó Morte, vem, e meus olhos engelha! -
59 As belas damas e outros convidados, 65 Do horizonte, o Sol o rubor trouxe
olhando e comentando a tal respeito, às extremas partes, diluindo em torno
são pelo senhor a repousar levados, as nuvens, e não parecia que fosse,
pois a fazer as honras estava afeito. como o dia anterior, deste o contorno;
Estavam todos há muito adormentados, desperta estando, Bradamante armou-se,
quando recolheu Bradamante ao leito; para fazer ao seu caminho retorno,
para um e para outro lado se amapha, graças tendo rendido àquele senhor
mas não dorme para a destra nem para a canha. pelo bom albergue e o recebido honor.
538 ORLANDO FURIOSO

66 E pôde ver que a dama mensageira, 69 mas sem imaginar que é uma donzela,
com as suas aias e os seus escudeiros, pois nenhum gesto de donzela havia.
saíra do castelo, indo ligeira Bradamante recusa, pois na sela
para onde a aguardavam os três guerreiros, ia apressada e demorar não queria.
que, com a hasta de ouro, sem canseira, Mas de tal maneira insistiram que ela
ao chão mandara com golpes certeiros, sem desonra recusar não podia;
e a noite passaram com desconforto a hasta baixou, e todos por terra
à chuva e ao vento, sob o céu torto. deixou caídos: e acabou-se a guerra,
67 Acresce o mal, de barriga vazia 70 pois sem se voltar partiu, qual meteoro,
terem eles e os cavalos ficado, deles rapidamente se afastando.
batendo os dentes, na lama macia; Eles, que para ganhar o escudo de ouro
e mais inda lhes custa e dá enfado, vieram de tão longe caminhando,
e os envergonha, que a dama diria, sem falar, ergueram-se com decoro,
quando dos outros casos der recado o falar, com o brio, no chão deixando;
à soberana, que a primeira lança estupefactos, pareciam ter antolhos:
os abateu que encontraram em França. para Ullania não erguiam os olhos;
68 E, prontos a morrer ou fazer já 71 pois, com ela seguindo em seu destino,
vingança aqui pela desconsideração, tinham-se de si gabado, arrogantes:
a fim de a mensageira, que nome há que não há cavaleiro ou paladino
Ullania, aquela tão má opinião que ao mais fraco deles resistisse antes.
que deles na lembrança ter poderá A dama, para que tivessem mais tino,
vir a desenraizar do coração, e para que não fossem tão petulantes,
para a liça Bradamante desafiam, deu-lhes a saber que era uma donzela,
quando a sair da ponte já a viam; não um paladim, que os tirou da sela.

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CANTO XXXIII 539

n - O que haveis (dizia-lhes ela), quando 78 Porém desta não quero falar tanto
uma mulher assim vos abateu, que não me ocupe dos dois cavaleiros
de pensar o que é Rinaldo, ou Orlando, que de acordo amarraram, entretanto,
dos quais fama não sem razão correu? junto à fonte os seus cavalos ligeiros87 •
Se um deles o escudo houver, vos demando, A sua pugna, que para aqui transplanto,
se melhores do que quanto transpareceu não é por impérios, terras, dinheiros,
contra a dama, contra esses sereis? mas para que Durindana o mais galhardo
Não creio eu, nem vós, julgo, o crereis. venha a ter, e possa montar Baiardo.
73 Que isto vos baste, e nenhum se disponha 79 Sem que trompa ou outro sinal soasse
a de seu valor dar mais clara prova; para que início lhe dessem, sem maestro
aquele de vós que, temerário, sonha que os golpes lícitos lhes recordasse,
de seu brio dar em França amostra nova, e lhes incutisse na alma o estro,
só procura acrescer dano à vergonha um e outro a seu ferro dá deslace
pela qual ontem passou e hoje renova; e parte para o assalto, ágil e destro.
a não ser que ache utilidade e honor Os golpes a ouvir-se começaram,
morrer às mãos de homens de tal valor. - muitos, pesados, e as iras escaldaram.
74 Quando convictos os guerreiros fez 80 Doutras espadas não sei, para prova eleitas,
Ullania, que aquela era uma donzela, como estas firmes, sólidas e duras,
a qual tornara mais negra que pez resistindo, a golpes destes sujeitas,
a fama deles, que antes era bela, mais agrestes que todas as agruras;
e uma bastando, porém mais de dez na têmpera eram estas tão perfeitas,
vozes confirmaram o dizer dela, e por tanta experiência tão seguras
quase contra si viraram as espadas, que bem podiam juntas defrontar-se
tanto eram a dor e a raiva assanhadas. com mil estocadas, sem despedaçar-se.
75 E, pelo desdém e pela fúria levados, 81 Aqui e ali Rinaldo muda o passo,
despem as armas que tinham vestidas; com muita destreza, saber e arte
nem as espadas deixam presas aos lados, travando de Durindana o ameaço,
e ao fosso do castelo são expelidas; pois sabe bem como ela o ferro parte.
juram, sendo por mulher derrotados, Maiores pancadas dava o rei Gradasso,
que ao chão os mandou com três investidas, mas no ar acertava a maior parte;
que, para expiar tal erro, iam andar quando acertava, acertava em lugar
um ano inteiro sem armas usar; que pouco podia danificar.
76 e que a pé andarão por qualquer via, 82 Com mais perícia o outro a espada inclina,
quer suba ou desça a estrada que lhes calha; dando ao braço deste entorpecimento;
e, mesmo quando um ano passaria, e às vezes no flanco, ou onde confina
não cavalgavam nem vestiam malha, a couraça com o elmo, dá tormento;
se novas armas e outra montaria mas encontra a armadura adamantina,
não ganhassem à custa de batalha. e não rompe uma malha ou ligamento.
Sem armas, pois, para punir seu resvalo, Se dura e forte ele a encontra tanto,
a pé foram, e os outros a cavalo. é por ela ser feita com encanto.
77 Bradamante num castelo ao serão, 83 Sem repouso estiveram ocupados
na estrada de quem para Paris se mova, muito tempo em batalha, nos seus postos,
de Carlos e Rinaldo, seu irmão, os olhos nunca voltando para os lados,
que Agramante venceram ouve a nova. fixos estando nos excitados rostos;
Teve ali mesa e acomodação, nisto, por outra luta perturbados
mas desse ou doutro bem-estar pouco prova; foram, e seus grandes furores depostos:
pouco ela come e não repousa assaz, voltaram o rosto, ao grande tumulto,
pois em parte nenhuma encontra paz. e viram Baiardo em perigo de vulto.
540 ORLANDO FURIOSO

84 Baiardo com um monstro em luta estava, 90 A partir da fonte, seguem a via


maior do que ele e era bicho ninhego; onde ervas pisadas são manifestas.
três braças só o bico apresentava, Baiardo deles já se distancia,
e as outras feições eram de morcego; e as pernas para o seguir são pouco lestas.
como tinta a plumagem negrejava, Gradasso, que perto a sua égua havia,
e de enormes garras tinha aconchego; dum salto montou e entrou pelas florestas,
olhar cruel, os olhos fogarelas, deixando muito atrás o paladim,
as asas tão grandes pareciam velas. que nunca tão triste se viu assim.
85 Seria pássaro, mas não sei onde 91 Rinaldo o rasto perde em poucos passos
ou quando outro tenha existido igual. do seu corcel, que fez estranha viagem,
Jamais vi, nem algum livro responde, e buscou por rios, matas e agraços,
só em Turpin, de idêntico animal; o lugar mais espinhoso e mais selvagem,
leva-me isso a acreditar que se esconde para fugir daquela garra aos ameaços,
naquela ave um demónio infernal, que do céu descia em cruel massagem.
que Malagigi em tal forma ocultasse, Rinaldo, após cansar-se inutilmente,
para que a batalha com ele perturbasse. foi esperá-lo para junto da nascente,
86 Rinaldo o mesmo creu, e admoestou 92 a ver se Gradasso ali o trazia,
Malagigi depois com rebeldia. como entre os dois antes se combinou.
Mas ele tal coisa não lhe confessou; Mas vendo que pouco fruto colhia,
e, porque de culpas livrar-se queria, triste, para o campo cristão caminhou.
pelo lume que dá lume ao Sol jurou Voltemos ao outro, a quem sucedia
que culpas neste caso não havia88 • o inverso do que a Rinaldo calhou.
Fosse anjo ou demónio, o monstro pousara Não por razão, mas por sorte decerto,
em Baiardo e com a garra o atacara. ouviu nitrir o cavalo bem perto;
87 As rédeas o corcel, que era potente, 93 e foi encontrá-lo na gruta cava,
logo rompeu e, com raiva e com ira, pelo medo que sentiu tão oprimido
contra o pássaro usa coices e dente, que sair ao ar livre não ousava;
mas aquele, veloz, pelo ar se retira; a tê-lo, o pagão estava decidido.
depois regressa, e com a unha pungente Da combinação bem se recordava:
lhe vai batendo, e em torno lhe regira. à fonte deveria ser conduzido;
Baiardo atacado e sem ter abrigo, mas já não está disposto a observá-la,
depressa foge, para escapar do perigo. e consigo mesmo, calado, fala:
88 Baiardo para a selva foge e não espera, 94 - Que o tenha quem quiser com lide e guerra;
na direcção da mais ramuda fronde. eu, por querê-lo com paz, não sou sandeu.
Pelo ar o persegue a penuda fera, Duma extremidade à outra da Terra
fixando a via por onde ele ronde; já vim, só para tornar Baiardo meu.
mas o bom corcel tanto persevera, Agora que o tenho na mão, bem erra
até que numa gruta enfim se esconde. quem pensa que entregá-lo queira eu.
Depois do alado lhe perder o rasto, Se Rinaldo o quiser, não desconvém
ao céu volta, e demanda novo pasto. se, como aqui vim, ele à Índia vem.
89 Rinaldo e Gradasso, vendo partir 95 Segurança terá em Sericana,
a razão que a tal batalha os amarra, como em França duas vezes me foi dada. -
concordam em a mesma diferir, Assim dizendo, pela via mais plana
a fim de Baiardo salvar da garra chegou a Arles, e encontrou a armada89 ;
que pela cerrada selva o faz fugir; e dali, com Baiardo e Durindana
combinando que, quem primeiro o agarra, partiu, numa embarcação bem pichada90 •
àquele lugar sem demora o devolve, Isto, para outra vez; ora, Gradasso,
onde a sua liça então se resolve. Rinaldo e toda a França para trás passo.
542 ORLANDO FURIOSO

96 Asto lfo s igo, que com sela e brida 99 Por Marro cos, Fez, Orão , Bôn e voa,
fazia an dar, qual corcel em terreno , Argel, Bo ugie, qual delas mais soberba,
pelo ar o hipo grifo em tal corrida to das ten do de o utras cidades coro a91 ,
que águia ou falcão tinham voo mais ameno. mas de ouro , e não de ramos de erva acerba.
Após to da a França estar percorrida Para Bizerta e Tunis depo is aproa;
de mar a mar, dos Pirenéus ao Reno, avista Gabes e a ilha de Djerba92 ,
dirigiu-se a po ente, e à montanha e Trípo li, Bengazi e To lo mitta93 ,
que a terra fran cesa aparta da Espan ha. até onde o Nilo a Ásia limita.
97 Passo u Navarra e depo is Aragão , 1 00 Entre a marin ha e a silvosa ameia
causando em quem o via maravilha. dos rudes Atlas, viu cada coutada.
Tarragona fico u-lhe à esquerda mão, As costas deu à Carena cadeia,
Biscaia à direita e Castela trilha. e so bre a Cirenaica94 fez estrada;
Viu Galiza e de Lis bo a a nação , e, atravessando as extensões de areia,
depo is virou para Córdova e Sevilha; no con fim da Núbia viu Albaiada.
lito ral ou interior tudo apan ha, Para trás ficou o túmulo de Bato9 5
não há cidade que n ão visse em Es pan ha. e o templ o de Ámon 96 , que houve desbarato.
98 Viu Cádis e as metas que perto pôs 101 Depo is a uma o utra T lemcen chegou97 ,
ao s n avegantes Hércules in victo. que de Mao mé também segue o estilo.
A voar so bre África se dis pôs, Para os o utros Etío pes asas voltou,
des de o mar de Atlante aos con fins do Egipto. que contra estes estão , para lá do Nilo.
As Baleares tão famosas transpôs , Para N úbia9 8 uma linha recta traçou
e viu Ibiza, do grupo já dito. entre Do baya e Cnoad, sem vacil o.
Virou o freio em direcção a Arzila, Estes cristãos, e aqueles , mo uros são ;
pas san do o mar que após Es panha cin tila. e armados na fronteira sempre estão .
---- -- - -- ---·· - --- - -- 1 02 Senapo, imperado r da Etiópia,
�- . -�":�:i:._ :��;_�-::_�=l:-;;;�� :.:..=__ da cruz e não do ceptro tem os prós ;
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-- -- �-.:..:..·.:: :..-:-:: �.- -- ·- --::· : __ __ : --� � .':"'"" ..:.:......:.:..--- - - --
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tem de gente, cidades e ouro cópia,

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, � . .,-=:- ....-,'.;;" ,-fL.Vr.� �:... po dendo salvá-lo da pena atro z99 •
· li/ \....-,. /4" ""' Creio que é aqui, no entanto me interrogo ,
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--;"=-·,l:!ttii' , �J!i!/ �(� � - �� que para se baptizar us am o fogo.
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544 ORLANDO FURIOSO

105 Por paredes, tectos, soalhos espalhado, 111 Deus reprimiu-lhe o temerário querer,
pérolas e preciosas gemas tem. e um anjo enviou àquela baderna,
Nasce o bálsamo aqui e, comparado, o qual cem mil deles fez perecer,
pequena porção tem Jerusalém. tendo o rei condenado à noite eterna.
O nosso almíscar daqui é levado, Depois, à sua mesa fez comparecer
e o âmbar daqui nos chega também; o monstro horrendo da infernal caverna,
vêm, em suma, as coisas deste canto que lhe rouba e contamina o manjar,
que nos nossos países valem tanto. sem que lhe permita sequer provar.
1 06 Conta-se que o sultão, rei do Egipto, 1 1 2 E ao contínuo desespero o sujeita
a tal rei dá tributo e está sujeito, um, que já lhe tinha profetizado
por poder do caminho que está escrito que a sua mesa não seria atreita
desviar o Nilo, dando-lhe outro leito, à rapina e ao odor empestado,
deixando o Cairo e todo o seu distrito quando se visse que pelo ar se ajeita
à fome e míngua, se sofrer despeito. um cavaleiro num cavalo alado.
O nome Senapo é o que lhe dão Mas ele, pensando que tal não existe,
os súbditos; para nós é Preste João 100 • a esperança perdera e vivia triste.
1 07 De todos os reis que teve a Etiópia, 1 1 3 Agora, que admirada vê a gente
o mais rico foi este e o mais potente; sobre toda a muralha e alta torre
mas, com poder e ouro em tanta cópia, o cavaleiro vir, imediatamente
os olhos perdeu desgraçadamente. alguém ao rei da N úbia a contar corre,
Mas que outras essa era menor inópia: ao qual a profecia torna à mente;
era muito mais triste e mais nocente olvidando o fiel bastão que o socorre,
que, embora por riquíssimo se tome, jubiloso vai, com as mãos adiante,
torturado era por perpétua fome. tacteando, até ao cavaleiro volante.
10s Se a comer ou beber esse infeliz 1 1 4 Astolfo, no terreiro do castelo,
era levado por grande vontade, em largos círculos ao chão desceu.
chegava o bando de infernal cariz, Quando junto dele vieram trazê-lo,
as nefandas Harpias 101 , que à maldade, ajoelhou-se e as mãos juntas estendeu:
com os bicos e as garras hostis, - Ó novo Messias, anjo singelo
os manjares comiam à saciedade; (disse), vê se perdão não mereço eu,
e o que no ventre voraz não cabia, se todo o homem para pecar propende,
conspurcado deixavam, e fedia. e vós para perdoar quem se arrepende.
1 09 Isto, porque quando em idade acerbo, 1 1 5 De meu erro consciente, não almejo
e vendo-se elevado a tanto honor, nem pedir ousaria os velhos lumes 1º2 •
pois além de tão rico era no verbo, Que o possas fazer, creio de sobejo,
na força e na coragem o melhor, pois caros a Deus sois, beatos numes.
tornou-se, como Lúcifer, soberbo, Para martírio me baste que eu não vejo;
e pensou fazer guerra ao seu Factor. por que também à fome me resumes?
Subiu com as hostes, seguindo o fito, Liberta-me das fétidas Harpias,
ao monte donde sai o rio do Egipto. para que não roubem minhas iguarias.
1 1 0 Tinha ouvido que nesse monte alpestre, 1 1 6 E em templo de mármore, te prometo,
que acima das nuvens ao céu se eleva, meu paço real será transformado,
ficava o paraíso que terrestre que terá em ouro as portas e o tecto,
se diz, onde habitou Adão e Eva. e dentro e fora de gemas ornado;
Camelos, elefantes e pedestre que teu nome terá me comprometo,
exército, orgulhoso, com ele leva; e teu milagre nele será lembrado. -
com desejo, se habitasse ali gente, Assim dizia o rei que nada vê,
de às suas leis torná-la obediente. tentando em vão beijar ao duque o pé.
CANTO XXXIII 545

117 Responde Astolfo: - Nem anjo do Céu 1 1s A Deus tais votos deves fazer, pois;
sou, nem Messias que aqui fez descida; constrói a ele igrejas, altares raros. -
sou mortal e pecador também eu, Isto dizendo, para o castelo os dois
sem merecer tanta graça concedida. caminhavam, entre os barões preclaros.
Tudo farei para que o monstro sandeu, Ordena o rei aos servidores depois
por morte ou fuga, te deixe a comida. que para o banquete se façam preparas,
Se o fizer, não a mim, mas a Deus louva, esperando não lhe tirem desta vez
porque, para te ajudar, para aqui me mova. a comida, com tal desfaçatez.
546 ORLANDO FURIOSO

1 19 Numa rica sala, imediatamente 120 Era um bando de sete, e as cocurutas


se preparou o solene banquete. tinham de mulher, pálidas e absortas,
Junto a Senapo sentou-se somente pela constante fome magras e enxutas,
o duque Astolfo, e veio o alfitete. lúgubres como se estivessem mortas.
Logo em redor um estrépito se sente Grandes as asas, disformes e hirsutas,
de horríveis asas, que o ar acomete; mãos rapaces, de unhas curvas e tortas;
eis que surgem as Harpias nefandas, grande e fétido o ventre, a cauda longa,
vindas do céu ao odor das viandas. qual serpente que se enrola e se alonga.
CANTO XXXIII 547

1 21 Ouvem-se vir com ruído fragoroso 1 24 A seu mandado o rei e os barões,


e sobre a mesa pousam sem detença, cada um com cera, os ouvidos cerra,
de comer e entornar sentindo o gozo; para que, ao soarem do corno os pulmões,
e tantas fezes seu ventre dispensa não tenham de fugir da sua terra.
que apertar os narizes é forçoso, Toma as rédeas e salta para os arções
pois não se suporta tanta fedença. do hipogrifo, e o útil corno aferra;
Astolfo, que irado isto testemunha, depois, por sinais, ao trinchador manda
contra o bando rapace a espada empunha. que ponha nova mesa e nova vianda.
1 22 Fere uma no pescoço, outra na poupa, 1 25 E assim, numa varanda se aparelha
a outra o peito ou a asa apunhala; em outra mesa outra vianda nova.
mas é como ferir saco de estopa: Vão as Harpias à usança velha,
o golpe amortece e nada as abala; e Astolfo o fruto do corno comprova.
não deixam ficar nem prato nem copa Não tendo as aves tapada a orelha,
intacto, nem abandonam a sala ouvirem aquele som é dura prova;
sem que as rapinas e o pasto voraz em fuga partem, aterrorizadas:
tudo deixassem sujo e incapaz. já na comida não estão interessadas.
1 23 Pusera o rei no duque a firme esperança 1 26 Atrás delas o paladim esporeia,
de que das Harpias o libertasse; e o corcel sai da varanda voando;
e agora, que nada de bom lhe afiança, do castelo e da cidade se alheia
suspira pelo frustrado desenlace. e pelo ar sobe, os monstros encalçando.
Nisto, ao duque o corno vem à lembrança, Astolfo sopra o corno e não arreia:
que o ajuda nos perigos por que passe; para a zona escaldante 1 03 elas vão escapando,
e concluiu para si que aquela via, até chegar ao altíssimo monte
para delas se livrar, boa seria. onde o Nilo tem, se algures a tem, fonte.
548 ORLANDO FURIOSO

1 27 Dessa montanha até quase à raiz, 1 2s Na infernal fuliginosa boca


entra na terra uma profunda gruta, que abre o caminho para o mortal negrume,
que ser certíssima porta se diz o ilustre duque o corno já não toca,
para quem ao Inferno descer perscruta. e o seu corcel qual terrestre se assume 105 •
Aqui, a turba de monstros hostis, Porém mais adiante não se desloca,
porque de seguro abrigo desfruta, para que não me aparte do meu costume,
penetra até à margem do Cocito 1º4 , pois, estando já toda cheia esta folha,
onde não possa ouvir do corno o grito. para descansar é bom que me recolha.

--..-
NOTAS

1 Timdgoras [. . .] ouro: nomes de pintores gregos céle­ 14


Maurício: imperador de Constantinopla (séc. VI) .
bres que viveram entre os séc. V e IV a. C. (tempos de ouro
15
da história de Atenas) . Monte de ]ove Qúpiter) : o Grande São Bernardo,
desfiladeiro entre a Suíça e a Itália, um dos pontos de
2
Cinto: uma das Parcas (cf. nota a X:56). travessia dos Alpes.
16
3
Obras de louro: dignas de louros. Chão [. . .} aberto: planície lombarda, onde correm
aqueles dois afluentes do Pó.
4 Leonardo [. .. } divino: os artistas italianos do tempo
17
de Ariosto: Leonardo da Vinci, Andrea Mantegna, Eutar: Autari, rei da Lombardia de 584 a 590.
Giovanni Bellini (por alcunha Gianbellino) , os irmãos
18
Dosso e Barrista Dossi, e Michelangelo Buonarroti Clodoveo: Clodoveu (466-5 1 1 ), rei dos Francos a
(aquele que [. .. } divino) . partir de 48 1 , sucedeu ao pai, Childerico 1.
5 Bastião [. . .] Urbino: Sebastiano Luciani, Rafael e 1 9 Fi [. . .} morre: o duque de Benevento fingiu que se
nge
Ticiano, que honram as terras onde nasceram: Veneza, retirava, deixando o acampamento bem fornecido de
Urbino e Pieve di Cadore ( Cador) , respectivamente. vinho. Os Franceses embriagaram-se, e foram massacra­
dos durante a noite.
6
Lago Averno: cf. nota a XIV:82:3.
20
Chiúliberto: Childeberto II (570-597), rei dos Francos,
7 Grutas de Norcia: no monte San Vittore, onde se invadiu a Itália instigado pelo imperador Maurício.
acreditava que a Sibila de Cumas realizava concílios de
21
bruxas. Pipino [. . .} Carlos: Pepino, o Breve, e seu filho Carlos
Magno.
8
Rei bretão: Artur.
22
Estêvão [. . .} Leão: os papas Estêvão II, Adriano I e
9 Delfim: Fieramonte (cf. nota a XXXll:83), filho de Leão III.
Marcomir.
23
Astolfo: rei da Lombardia. Pepino, o Breve, veio em
1
° Com [. .. } aliança: não se trata de um facto histórico, auxílio do papa Estêvão II, contra Astolfo.
apenas fantasia.
24
Outro jovem Pipino: Pepino, filho de Carlos Magno,
11 Na terra [. . .} cerra: a Itália, cortada pelos Apeninos e que lutou contra Veneza.
limitada pelos Alpes e pelo mar. Ariosto evoca um verso
25
de Petrarca: «il hei paese / ch'Appennin parte, e 'l mar Fornaci: «Bocca delle Fornaci», antigo nome do
circonda et I'Alpe» (Rime, CXLVl: 1 3-14). braço mais a norte do delta do Pó e, por conseguinte, o
mais próximo de Veneza. Chama-se-lhe hoje «Maestra di
12
O Llrio: a França, por antonomásia. Fossone».
13 Singiberto: nenhum dos três reis francos com este 26
Lido pelestino: o litoral de Palestrina, entre Chioggia
nome invadiu a Itália, nem foi contemporâneo de e Malamocco, na faixa de areia (lido) que isola do
Maurício e de Autari. Adriático a laguna de Veneza.
CANTO XXXIII 549

27 46
Mas [ ..}fronteira: Luís de Borgonha (887-923) invadiu Delos [ . .} envaideceu: em Delos nasceram os deuses
Itália e derrotou Berengario i, tendo sido coroado em Pavia, gémeos Apolo e Ártemis.
mas mais tarde foi rechaçado. Invadindo o país pela segun­
47
da vez, foi derrotado por Berengario, que o mandou cegar. O émulo antigo: o velho rival de Ludovico, Fernando
II de Aragão.
28 Outro Carlos [ . .} renhido: Carlos de Anjou, irmão de
48
Luís ix de França, invadiu a Itália para apoiar o papa No seu [ . .} capturd-lo: quando Carlos viii regressa do
Clemente IV. Sul para voltar a França, Ludovico Sforza, aliado aos
Venezianos, barra-lhe o caminho, mas Carlos VIII con­
29
Vt-spro: a «guerra do Vespro», insurreição popular na segue pôr-se a salvo.
Sicília contra o domínio dos Anjou. Teve início em
49
Palermo no dia 30 de Março de 1 282, quando se toca­ O senhor de Mântua: Gian Francesco Gonzaga, mar­
ram as Vésperas. quês de Mântua.
3
° Capitão galo: o conde d'Armagnac, que pôs cerco a 50
Alfonso di Pescara: irmão de !nico d'Avalos. Negociou
Alessandria em 1 39 1 , mas foi mal sucedido. secretamente com um negro, escravo dos Franceses, a ocupa­
ção de uma fortaleza em Nápoles; mas ele, que fu.ia duplo
31
O duque: Galeazzo Visconti. jogo, atravessou-lhe traiçoeiramente o pescoço com uma seta.
32 51
Onde [ . .} tesa: onde a armadilha está montada. Arranca [ .. } horizontes: a amoreira (insígnia dos
Visconti), foi deposta por Luís XII e substituída pelo
33
Tanaro: afluente do Pó que banha Alessandria, cida­ símbolo da França. O exército francês era comandado
de piemontesa. por um italiano, Trivulzio.
34 52
Um [ .. } anjouinos: Jacques de Bourbon, conde da Ir [ . .} carris: seguir a via já trilhada por Carlos VIII
Marca, e Luís III, René e Jean de Anjou. Lutaram os para conquistar Nápoles.
quatro pelo trono de Nápoles.
53
Consalvo Ferrante: cf. nota a XXVI:53.
35
A/fonso [ . .} Fernando: Afonso e Fernando de Aragão.
54 E quanto [ . .} divide: tanto quanto a sorte foi adver­
36
Carlos oitavo: rei de França, filho de Luís xi, invadiu sa a Luís xii em Nápoles, veio a sorrir-lhe na rica planí­
a Itália em 1 494, a convite de Ludovico Sforza, il Moro, cie lombarda, que se estende até ao Adriático (Adria, cf.
duque de Milão de 1 494 a 1 499. Carlos conquistou nota a III:40:7-8), entre os Apeninos e os Alpes, e que o
todo o reino de Nápoles, excepto a ilha de Ischia. rio Pó atravessa.
37 55
Liri: rio da Itália central, que se une com o Gari, for­ Um [ . .} dado: Bernardino da Corte entregou o cas­
mando o Garigliano. Era fronteira entre os Estados telo de Milão aos Franceses, por ouro.
Papais e o reino de Nápoles.
56
O traidor [ . .} confiado: os mercenários suíços con­
38
O rochedo [..} pança: a ilha de Ischia (cf. nota a xvi:23:4). tratados por Ludovico, il Moro, para sua defesa, traíram­
no, entregando-o aos Franceses.
39
O bom [ . .} insiste: Carlos VIII não conseguiu con­
57
quistar Ischia a !nico dei Vasto, marquês de Avalos. Cesar Borgia: César Borja ( 1 475- 1 507) , filho do
papa Alexandre VI. Seu pai fê-lo arcebispo, cardeal, e
4° Fogo [ ..} esplende: o fogo das armas de guerra avista­ duque da Romagna. Luís XII de França deu-lhe o duca­
-se até ao Faro (farol do estreito de Messina) . do de Valentinois, e tropas francesas com as quais alar­
gou os seus domínios na Romagna.
41
Nireu: a seguir a Aquiles, era o mais belo dos Gregos
58
no assalto a Tróia (Ilíada, II:673-674) . O rei [ . .} !ande: em 1 506, Luís xii expulsa de
Bolonha os Bentivoglio, cuja insígnia era a serra, restau­
42
Aquiles [ . .} atreveu: Aquiles era invulnerável (excep­ rando ali o poder pontifício (a insígnia do papa Júlio II
to no calcanhar) , enquanto Ulisses era o protótipo da della Rovere era um carvalho com bolotas) .
audácia e da astúcia.
59
Ghiara d'Adda: entre os rios Adda e Oglio, onde
43
Lada: o veloz mensageiro de Alexandre Magno. Luís xii venceu os Venezianos, em 1 509.
44 60
Nestor: rei de Pilos, era o mais velho dos conselhei­ Felsina (Félsina): antigo nome de Bolonha.
ros de Agamémnon na Guerra de Tróia. Figura simbóli­
61
ca do ancião sábio, prudente e honesto. Um e outro [ . .} Ravenna: batalha e saque de Ravenna
(cf. nota a XIV:2).
45 O sobrinho de Ceo: Zeus, filho de Reia e Crono (irmão
62
de Ceo). Gente hispana: o exército espanhol aliado do Papa.
550 ORLANDO FURIOSO

63 85
Um Alfonso: Alfonso d'Este. Armada imperial: do imperador Carlos V.
64 86
Faz [. . .} rugido: o Papa manda vir um exército de Doria: Filippino Doria; destroçou a armada de
mercenários suíços. Carlos V ao largo de Nápoles.
65 87
De Amoreira [. . .} arrancou: expulsos os Franceses Dois cavaleiros [. . .} ligeiros: Rinaldo e Gradasso (cf.
(Lírios de Ouro) , a senhoria de Milão foi dada a XXXI: 1 1 0) .
Massimiliano Sforza, filho de Ludovico, il Moro (cuja
88
insígnia ostentava uma Amoreira) . Culpas [. . .} havia: recorde-se que Malagigi tinha
impedido o anterior duelo entre Rinaldo e Gradasso (cf.
66
Vendido: aos Franceses (cf. 36: 5-6) . XXXI :92, 99 ss.) .
67 89
O novo rei: Francisco I de França. A armada: a armada de Agramante.
68 90
Para [. . .} Novara: cf. nota a XXVl:44:7. Bem pichada: cf. nota a XIII: 1 4: 1 .
69 91
Vejam [. . .} inteira: Francisco I derrota os Suíços em Fez [. . .} coroa: Fez, cidade marroquina do interior
Melegnano, em 1 5 1 5 (cf. XXVl:45) . norte. As restantes são cidades do litoral argelino, as
quais davam nome também aos respectivos reinos, que
70
Liga: entre a Áustria, a Espanha, Florença e o papa abrangiam outras cidades.
Leão X.
92
Bizerta [. . .} Djerba: três cidades portuárias da
71 Bourbon: Carlos de Bourbon defendeu Milão do Tunísia, e a pequena ilha de Djerba, no golfo de Tunis.
exército germânico de Maximiliano da Áustria, em
1 5 1 6. 9 3 Tripoli [. . .} Tolomitta: cidades costeiras da Líbia.
Tolomitta, cf. nota a XVIII:46:2.
72
Francesco: Francesco II Sforza, filho de Ludovico, il
94
Moro. Carena [. . .] estrada: a cadeia de Carena é um prolonga­
mento da do Atlas. Depreende-se que Astolfo, depois de
73
Duque de Mântua: Federico Gonzaga. seguir o litoral até ao Nilo, se dirigiu para o interior do con­
tinente africano, seguindo um percurso inverso ao do rio.
74
Ticino: afluente da margem esquerda do Pó.
95
Bato: fundador lendário de Cirene, antiga capital da
75
Leão do mar: Veneza. Cireneia.
76
Do [. . .} velho: Francesco d'Avalos, marquês de 96 Ámon: cf. nota a XXIX:59:6.
Pescara.
97
Outra [. . .} chego u: não aquela já referida, na Argélia
77
Bicocca: batalha de La Bicocca, perto de Milão (cf. (cf. XII:69) .
XV:28) .
98
Núbia: cidade, que dá nome ao reino.
78
Aquela: a sorte.
99
Pena atroz: Inferno.
79
Sagaz espanhol: Carlos V, cujo exército derrotou o de
1 00
Francisco I de França, em Pavia. Preste João: figura mítica de rei-sacerdote cristão,
cujo império se situava, por tradição, em África, a sul do
80
O rei: Francisco I de França, preso e levado para Egipto, ou, segundo outras fontes, na Índia ou na
Espanha. Tartária. Os Descobrimentos portugueses identificaram­
no com o negus da Abissínia ou Etiópia.
81
Vejam [. . .} dolente: invasão e saque de Roma por
IOI
Carlos V e um exército de onze mil mercenários alemães, Harpias: são geralmente três, representadas como aves
em 1 527. com cabeça de mulher e afiadas garras, ou como mulheres ala­
das. Atormentadoras dos humanos, tinham o vício de roubar­
82
Liga: formada pela França, o papa Clemente VII, -lhes a comida ou de conspurcá-la com os seus excrementos.
Milão, Veneza e Florença, mas que foi impotente contra
Carlos V. !02 Lumes: luz dos olhos.

83
Teve [. . .} bandeja: Clemente VII fez um acordo com w3 Zona escaldante: Inferno.
os Espanhóis que lhe garantiu a liberdade.
I 04
Cocito: um dos rios infernais.
84
A culade [. ..} Sereia: Nápoles, onde, segundo a lenda, deu
à costa o corpo da Sereia Panénope, ali ficando sepultada. rn5 Corcel [. . .} assume: pousa em terra.

CANTO XXXIV

Ó famélicas e iníquas Harpias


a que em Itália, cega e de errores plena,
talvez para punir culpas de outros dias,
o juízo divino as mesas condena!
Inocentes crianças e mães pias
sucumbem à fome, enquanto depena
num só jantar, o bando celerado,
o que uma vida os tinha sustentado.
Muito errou quem as cavernas abriu 1 ,
que muitos anos fechadas ficaram;
o fedor e a gulodice emergiu,
e toda a Itália contaminaram.
O bom viver depressa se extinguiu,
e de tal modo o sossego anularam
que sempre em guerras, pobreza e afanas
passou a estar, e estará muitos anos;
3 até que um dia os filhos negligentes
pelos cabelos tire das águas do Letes2 ,
gritando-lhes: - Não sereis descendentes
das virtudes de Cálais e de Zetes3 ,
para as mesas livrar do fedor e dentes,
voltando aos limpos e alegres banquetes?
Nas de Fineu repuseram a cópia,
como Astolfo nas do rei da Etiópia. -
5 52 ORLANDO FURIOSO

4 Com o horrível som Astolfo ateve 10 E se queres que eu conte a tua novela
em fuga as Harpias, dando-lhes luta, no mundo em cima, faço-o em bom tom. -
até que aos pés de um monte se deteve, Respondeu a sombra: - À luz alma e bela
onde tinham entrado numa gruta. voltar, mesmo por fama, acho tão bom
À entrada o ouvido atento teve, que a palavra por força me desvela
e chegou-lhe pelo ar grande labuta o grande desejo de ter tal dom,
de pranto, gritos e lamento eterno: e que meu nome e do meu ser te diga,
claro sinal de que era ali o Inferno. ainda que falar me dê fadiga. -
Pensou Astolfo em entrar mais para dentro, 11 E começou: - Senhor, Lídia sou eu,
para ver quem houve da morte transtorno do rei da Lídia em eminência nada,
e penetrar na Terra até ao centro, e que o juízo divino entendeu
as fossas infernais correndo em torno. fosse ao eterno fumo condenada,
- Que hei-de temer (dizia) se aqui entro, por ter sido para o fiel amante meu,
se posso sempre recorrer ao corno? enquanto vivi, ingrata e malvada.
Farei fugir Plutão4 e Satanás, De muitas outras a gruta está plena,
e o cão tricéfalo 5 mando para trás. - sofrendo por igual falta igual pena.
6 Do alado corcel depressa desceu, 12 Mais abaixo Anaxárete, a cruel,
que a um arbusto deixou amarrado; onde o fumo e o martírio é mais mordaz.
entrou no antro, mas antes reaveu No mundo o corpo em pedra fez cinzel,
o corno, no qual estava confiado. a alma aqui sofre pena tenaz,
Pouco avançara, quando lhe ofendeu pois de ver o seu dedicado e fiel
nariz e olhos um fumo empestado, amador enforcado foi capaz6 •
mais pesado que o de enxofre e o de pez, Perto está Dafne, que agora vê quanto
porém Astolfo deter-se não fez. errou, fazendo Apolo correr tanto7 •
7 Mas quanto mais avança, mais engrossa
o fumo e a fuligem, que o faz pensar
que muito mais além entrar não possa;
para trás terá por força de voltar.
Nisto, um estranho movimento se esboça
na abóbada, por cima: um voltear
de cadáver que ao vento, à chuva e ao sol
oscila há dias, suspenso do anzol.
a Pouca era, quase nenhuma, a luz
naquela fumífera e escura estrada,
e o duque não percebe nem induz
quem é que pelo ar assim sobrenada;
para tal saber, mais perto se conduz,
e dá-lhe um ou dois golpes com a espada.
Deduz então que um espírito será,
parecendo que os golpes em névoa dá.
9 Mas ouviu alguém dizer em voz mesta:
- Ai! Não faças mal, e daqui abala!
Já muito o negro fumo me molesta,
que do fogo infernal para aqui exala. -
Pára o duque e admiração manifesta,
e diz à sombra: - Corte Deus a ala
ao fumo, para que até ti não ascenda,
e deixa que quem tu és eu entenda.
CANTO XXXIV 553

13 Longo era tanto espírito infeliz 19 O rei recusou, pois com maior estado
das que foram ingratas, que aqui estão, desejava casar a sua filha;
referir-te, tal como destas fiz, não com quem, sendo cavaleiro privado 12 ,
pois que em número infinito elas são. apenas pelo valor militar brilha;
Pior contar dos homens os perfis, e o meu pai, que ao interesse é muito dado,
que sofrem pena por ingratidão e avareza e todo o vício partilha,
e são punidos num lugar pior, tanto costumes e virtude admira
onde o fumo os cega e os coze o calor. como aprecia o burro o som da lira.
14 Como de convencer mais fáceis são 20 Alceste, o cavaleiro de quem falo
as mulheres, merece maior castigo (era esse o seu nome), assim que se viu
quem as trai. Sabe-o Teseu e Jasão8 , repelido por quem gratificá-lo
e o que pôs de Latino o reino em perigo9 ; devia, despedimento pediu;
sabe o que houve no irmão Absalão, que se arrependeria, de ameaçá-lo
por Tamara, um sanguinoso inimigo 1 0 ; não deixou, pois o pedido indeferiu.
e outros e outras: são muitos infidos Juntou-se ao rei da Arménia, émulo antigo
que enganaram mulheres ou maridos. do rei da Lídia e figadal imigo;
15 Mas mais que dos outros falo de mim, 21 e convenceu-o, com muita constância,
para contar-te em que modo fui falace; a armar-se e a guerra fazer a meu pai.
bela e orgulhosa em vida fui, sim; Por seus actos de grande relevância,
não sei se alguma a mim se comparasse; para capitão de suas tropas vai.
nem sei dizer-te qual dos dois, enfim, Disse ser para o rei da Arménia a substância
orgulho e beleza, o outro passasse; que adquirisse; que a ele só o atrai,
contudo, orgulho e altivez nasceu como prémio de todos os seus feitos,
da beleza, que a todos prazer deu. os meus membros graciosos e perfeitos.
16 Havia então na Trácia um cavaleiro, 22 Não poderei exprimir-te quanto dano
no mundo em armas tido por melhor, Alceste a meu pai dá naquela guerra.
que mais que um testemunho verdadeiro Hostes, destrói quatro; e em menos dum ano
da minha beleza ouvira em louvor; a tal o leva que o deixa sem terra,
e formulou pensamento certeiro excepto um castelo das fragas soberano
de me presentear com seu amor, e forte; dentro dele o rei se encerra
esperando merecer, em compensação, com a família que lhe é mais chegada,
que eu houvesse caro o seu coração. e os bens possíveis na fuga apressada.
17 À Lídia veio; e um laço mais forte, 23 Alceste o assediou, e em reduzido
depois de me ver, a mim o prendeu. tempo fez que o desespero o minasse,
Com mais cavaleiros ficou na corte a ponto de aceitar como partido
de meu pai, onde a fama lhe cresceu. que para mulher e serva me levasse,
O grande valor e mais de uma sorte com metade do reino, se eximido
de proezas que mostrou, não posso eu dos demais prejuízos o deixasse.
tudo contar, e o mérito auferido De outro modo, no restante lesivo
se homem mais grato ele houvesse servido. ele lhe seria, e morria cativo.
1s Panfília, Cária e o reino de Cilícia 1 1 24 Tentar, enquanto é tempo, quer então
por obra dele o meu pai conquistou; todo o remédio possível que havia;
pois contra os inimigos a milícia, e eu, que do mal todo era a razão,
meu pai, só quando esse quis, enviou. fora do forte, a Alceste, me envia.
Julgando merecer pela sua perícia Para Alceste vou eu, com intenção
tal prémio, um dia do rei se abeirou, de dar-lhe de mim mesma serventia,
pedindo-lhe, como compensação e que a parte tome que mais lhe apraz
de tantas conquistas, a minha mão. do nosso reino, e mude a ira em paz.
5 54 ORLANDO FURIOSO

25 Quando Alceste ouve que eu vou procurá-lo, 3 1 Neste estado o vendo, penso comigo
até mim vem, pálido e titubeante; que a total vitória hei-de conseguir:
de vencido e prisioneiro, ao olhá-lo, dou-lhe esperança de o tornar meu amigo
mais que vencedor, me mostra o semblante. e da minha pessoa inda fruir,
Vendo eu como ele arde, já não lhe falo se emendando o seu erro, o reino antigo
como antes pensara, em tom apelante; a meu pai ele vier a restituir;
visto o caso, mudo de pensamento, e assim poderá, com amor e serviço,
procurando adequar-me àquele momento. e não pelas armas, ser o meu derriço.
26 A maldizer o seu amor me envido, 32 Prometeu-me, e de volta me mandou
e de sua crueldade a doer-me; para o castelo, intacta, como cheguei;
censuro-o por meu pai ter oprimido, nem o gesto de beijar-me esboçou:
e que pela força tenha querido ter-me; vê se ao pescoço o jugo lhe ajustei!
o que por mercê teria conseguido Vê se Amor a mim bem o sujeitou,
com firme vontade de comprazer-me, ou que mais setas dispare quererei!
mantendo os modos com que começara, Voltou para o rei da Arménia, a quem tocava,
o que ao rei e a todos nós agradara. por pacto, tudo o que ele conquistava;
27 Pois se bem que a princípio o meu pai tinha 33 e, com o modo melhor que encontrou,
negado a sua pretensão honesta pediu que a meu pai o reino entregasse,
(tinha a natureza um pouco mesquinha, cujas terras saqueou e esvaziou,
nunca dobrando à primeira requesta), e que com a Arménia se contentasse.
recusar ele servi-lo tão asinha A face do rei de ira se inflamou,
não devia, e a ira ter tão presta; dizendo a Alceste que nem pensasse;
ao invés, melhorando a sua acção, que não abandonava aquela guerra,
teria o desejado galardão. tendo inda meu pai um palmo de terra.
2s E, mesmo que meu pai fosse teimoso, 34 E se ele, por escutar uma vil mulher,
eu tanto havia de ter implorado tanto mudou, que fique com o dano.
que faria do meu amante esposo. Só porque lho pede, perder não quer
Mas se inda assim eu o visse obstinado, o que a custo alcançou durante um ano.
tal coisa fazia em modo manhoso Insiste em pedir, só para se doer
que Alceste de mim se tinha orgulhado. que recebem seus rogos desengano.
Mas quando ele quis tentar doutra maneira, Por fim exalta-se, e faz-lhe ameaça
de o não amar fiz intenção certeira. que quer, seja a bem seja a mal, que o faça.
29 E embora à sua presença tivesse ido, 35 Cresceu tanto a ira que os impeliu
por piedade que a meu pai dedicava, a passar das más palavras aos actos.
não teria muito tempo fruído Contra o rei, Alceste a espada brandiu,
o prazer que contrariada lhe dava: entre mil que eram para lhe acudir aptos,
a terra de rubro haveria tingido, e, apesar de tantos, o rei extinguiu;
assim que lhe houvesse a vontade prava nesse dia aos Arménios deu maus tratos;
desta minha pessoa satisfeito Cílices, Trácios e outros seus sequazes
de tudo o que à força ele teria feito. foram, pagos, a ajudar eficazes.
30 Estas palavras e outras tais lhe disse, 36 Vitória obteve e à sua custa fez,
quando vi que sobre ele podia tanto; sem que meu pai desse algum contributo,
e fez que mais arrependido o visse entrega do reino em menos de um mês.
que no deserto um eremita santo. Para compensá-lo do cruel desfruto,
Caiu-me aos pés rogando que brandisse além de ser com despojos cortês,
a adaga que ele empunhara entretanto parte tomou, e a outra impôs tributo,
(querendo a todo o custo que eu a agarrasse), da Arménia e Capadócia, que confina,
e de tantos erros seus me vingasse. e da Hircânia pilhou toda a campina.
CANTO XXXIV 555

37 Em vez de triunfo, no seu regresso, 43 Nele a minha ingratidão provocou


temos intenção de lhe dar a morte. tal martírio que ao fim, pela dor vencido,
Não o fizemos, receando o preço, depois que tanto perdão implorou,
pois vimos que de amigos estava forte. caiu doente e acabou falecido.
Finjo amá-lo, e pouco a pouco começo Por condenação, meu erro ditou
a esperançá-lo de ser sua consorte; olhos chorosos e o rosto tingido
mas primeiro, contra outro inimigo, do negro fumo, o que será eterno;
que seu denodo quero ver lhe digo. nenhuma redenção há no Inferno. -
38 Às vezes só, outras com pouca gente, 44 Como a infeliz Lídia mais não fala,
mando-o em estranhas empresas perigosas, vai o duque ver se outro alguém lá mora;
que a mil morte dariam facilmente; mas o fumo tão denso, que assinala
mas todas elas lhe saem airosas. acções ingratas, adiante piora,
Vitorioso voltava, e foi frequente e não pode ir além daquela sala;
com pessoas horríveis, monstruosas, aliás, é forçoso que vá para fora,
gigantes, Lestrígones 13 ter tenções, para que a vida não lhe seja tirada
os quais infestavam nossas regiões. pelo fumo; sai em marcha acelerada.
39 Nunca por Euristeu , e nunca tanto 45 A mudar lesto os pés, tem de corrida,
14

pela madrasta 15 Alcides foi experimentado e não de passeio ou trote, figura.


em Lema, Némea, Trácia e Erimanto, Continuando a trepar pela subida,
na Etólia e Numídia e, do outro lado, começa a ver da gruta a abertura;
no Tibre, Ibéria e outros sítios, quanto e a aragem fomosa e aborrida
com falsos rogos foi exercitado já com a vista parece que fura.
por mim, que morto o queria, o meu amante, Por fim, com esforço e pesada canseira,
que eu apenas não queria ter diante. sai do antro e atrás deixa a fumaceira.
40 Não conseguindo o inicial intento,
outro busco de não menor efeito:
fiz que para os amigos fosse emento,
e todos eles o dão ao despeito.
Não havendo para ele maior contento
que obedecer-me, sem qualquer respeito,
a mão ao meu desejo tinha pronta,
e nenhum mais do que outro tinha em conta.
41 Com tal método, tendo eu percebido
que matara de meu pai todo o imigo,
e tinha Alceste para si conseguido,
por nós, ficar sem um único amigo,
o que eu lhe tinha com rosto fingido
ocultado, a explícito ouvir o obrigo:
que ódio fundo e mortal por ele suporto,
e sempre procuro que seja morto.
42 Mas considerando que, se o fizesse,
em pública ignomínia cairia
(sabia-se quanto eu devia a esse,
e cruel para sempre dita seria),
pareceu-me fazer bem se lhe dissesse
que à minha presença não mais viria.
A vê-lo e falar-lhe me recusei,
e nem mensageiro ou carta aceitei.
5 56 ORLANDO FURIOSO

46 E, para que de voltar a via impeça 49 Safira, ouro, rubi, pérola, topázio,
às vorazes a quem nada contenta16 , crisólito, diamantes e jacintos
reúne pedras, e a cortar começa fariam lembrar as flores, e apraze-o
árvores ou de gengibre ou de pimenta; ver os ledos pendios delas tintos;
e, corno pode, a fabricar se apressa teriam as ervas, de um verde gázeo,
com suas mãos urna sebe opulenta; esmeraldas vencido nos chãos recintos;
e tão bem lhe saiu a construção não menos belas das árvores a fronde,
que as Harpias dali não sairão. que frutos e flores hão sempre avonde.
47 O negro fumo da mais negra pez, 50 Entre os ramos cantam pássaros vagos,
enquanto esteve na caverna tetra, azuis, brancos, verdes, rubros, lilás.
não só tingiu a desnudada tez, Murmurantes regatos, quietos lagos
corno sob as roupas entra e penetra, em limpidez deixam cristal para trás.
o que para água achar andar o fez; Urna doce brisa em suaves afagos,
por fim, duma pedra na parte retra que nunca falta e mudanças não faz,
vê urna fonte sair, na mata espessa, fazia o ar tremular em redor,
na qual se lavou dos pés à cabeça. tornando ameno do dia o calor;
51 a qual às flores, aos frutos e à verdura
os odores diversos roubando ia,
e de todos fazia urna mistura
que a alma de suavidade nutria.
Estava um palácio no meio da planura,
que de viva chama aceso parecia:
tal esplendor irradiava, e tanto lume,
que fugia a qualquer mortal costume.
52 Astolfo o seu corcel para aquele paço,
que por mais de trinta milhas se estira,
deixa ir à vontade, em lento passo,
e aqui e ali o lindo sítio admira;
e julga, ao pé daquele, feio e devasso,
e do Céu e Natura alvo de ira,
este, em que estamos nós, fétido mundo:
tão suave é aquele, claro e jucundo.
53 Chegando junto ao luminoso tecto 17 ,
a admiração no seu rosto se espelha;
duma só gema é o muro completo,
mais que carbúnculo tersa e vermelha.
Que obra espantosa, ó dedáleo arquitecto!
Que edifício entre nós se lhe assemelha?
Cale-se quem as admiráveis sete
maravilhas a tal glória submete.
48 Monta o voador e pelos ares se lança, 54 No luzente vestíbulo daquela
querendo atingir o cimo da montanha, ditosa casa um velho ao duque acorre,
pois que do ponto mais alto se alcança que o manto tem rubro e branca a farpela:
a Lua é crença que alguns acompanha. com leite e rnínio cada um concorre.
De isso ver é tanto o desejo e a esperança Branca tem a crina, e branca a lapela
que ao Céu aspira e a Terra já estranha. de densa barba que pelo peito escorre;
Pelos ares cada vez mais altura assume, e tão venerável é o seu viso
e da montanha em breve chega ao cume. que lembra um eleito do paraíso.
CANTO XXXIV 557

55 Com leda expressão, este, ao paladino 56 Para te ensinar como socorrer deves
com reverência do arção descido, Carlos, e a sanca fé livrar do perigo,
disse: - Ó barão, que pelo querer divino vieste, para que meu conselho leves,
foste no paraíso recebido; por longa via, sozinho comigo.
embora o motivo de tal destino, Não penses, filho, nem por horas breves,
e seu fim, te seja desconhecido, que por saber ou virtude comigo
não creias que sem sublime mistério estás; nem o corno ou o cavalo alado
és chegado do árctico hemisfério. valia, se por Deus não te era dado.
558 ORLANDO FURIOSO

57 Conversaremos depois à vontade, 60 Com grata recepção, o cavaleiro


e dir-te-ei como de fazer hás; recebeu dos santos alojamento;
antes, restauras a necessidade, ao cavalo foi dado, em seu estaleiro,
pois de tanto jejum farto estarás. - boa cevada para seu alimento.
Falando o velho com loquacidade, Dos frutos do paraíso houve o cheiro,
o duque fez maravilhar assaz e um tal sabor que, no seu pensamento,
quando o nome descobriu, e acresceu perdão achou para os dois primeiros parentes20 ,
ser aquele que o evangelho escreveu: por serem, por eles, pouco obedientes.
58 aquele, ao Redentor tão caro, João, 61 A natureza o duque venturoso
do qual entre irmãos palavra correu satisfez com tudo o que lhe é devido:
que nele a morte não poria a mão; na comida, tal como no repouso,
e o filho de Deus Pedro repreendeu: o maior bem-estar lhe foi fornecido;
- Por que te dá tal preocupação quando deixava a Aurora o velho esposo2 1
se quero que aguarde o regresso meu? - (apesar da idade inda não banido),
Não disse que João não morreria, saiu do leito e viu vir-lhe, directo,
porém era isso que dizer queria 1 8 • o discípulo de Deus tão dilecto;
59 Ali ascendeu e achou companhias: 62 que o levou pela mão, e falas lhe fez
primeiro Enoch, o patriarca, viera, sobre coisas que se devem calar;
e depois o grande profeta Elias; e depois: - Filho, não sabes talvez
cada um sua hora ainda espera19 ; de França, embora venhas do lugar.
deixaram estas terras mal-sadias, Sabe que Orlando, que não satisfez
e gozarão eterna Primavera, as insígnias que deveria honrar,
até que se oiça a angélica trompa, é punido por Deus, que mais contende
e Cristo da branca nuvem irrompa. contra quem mais ama, quando se ofende.
CANTO XXXIV 559

63 O vosso Orlando, a quem ao nascer deu 66 Mas como foi menor do paladino,
enorme força Deus e sumo agir, que de Nabuco, o erro cometido,
e, além do que é humano, concedeu só deu três meses, o querer divino,
que ferro algum jamais o possa ferir, de prazo para o seu erro ser punido.
pois para a defesa da fé o proveu Para esse efeito te foi o destino
e seu protector o quis constituir de aqui vir pelo Redentor concedido,
(tal como Sansão contra os Filisteus para que o modo aqui venhas aprender,
constituiu defensor dos Hebreus); como o senso a Orlando devolver.
64 rendeu o vosso Orlando ao seu Senhor, 67 Certo é que deverás outra excursão
de tanto benefício, prémio incerto22 : fazer comigo, abandonando a Terra.
quando devia tê-lo a seu favor, Levo-te à orbe da Lua em missão,
o povo fiel dele ficou deserto. dos planetas o que mais perto erra,
Tanto o cegara o impudente amor porque o remédio que poderá são
duma pagã, que já estivera perto, tornar Orlando, é nela que se encerra.
antes, de se tornar ímpio e cruel, Assim que esta noite a Lua veremos
e a morte dar a seu primo fieF3 • sobre nós, ao caminho nos fazemos. -
65 Por isso Deus quis, e louco ele gira, 68 Nesse dia estas coisas difundiu
e mostra nu o ventre, o peito e o lado; o apóstolo, e outras de igual contorno.
e tanto o juízo lhe ofusca e tira Mas logo que o Sol no mar submergiu,
que outros ignora, de si mesmo alheado. e sobre eles se ergueu da Lua o corno,
Assim sabemos que Deus teve em mira um carro adequado à cena saiu,
Nabucodonosor ver castigado: habituado a correr os céus em torno;
sete anos andou de loucura pleno, dos montes da Judeia aquele havia
pascendo-se, como um boi, de erva e feno. Elias aos mortais tirado um dia.

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560 ORLANDO FURIOSO

69 Quatro cavalos rubros então trouxe 75 Lágrimas e suspiros dos amantes,


o santo evangelista e lhe atrelou; o tempo inútil que se perde ao jogo,
depois, nele, com Astolfo acomodou-se, o longo ócio dos homens ignorantes,
tomou as rédeas e ao céu o apontou. planos vãos que não têm desafogo,
Rodando, o carro pelo ar elevou-se, e os desejos vãos são tão abundantes
e depressa o fogo eterno alcançou; que o local quase todo ocupam logo;
onde o velho fez, milagrosamente, tudo o que aqui em baixo se sumir,
que enquanto o passassem não fosse ardente. para o achar basta lá acima ir.
10 Atravessam toda a esfera do fogo, 76 Passa Astolfo pelas coisas amontoadas,
e dali passam ao reino da Lua. e sobre uma ou outra pergunta ao guia.
Na maior parte que era, viram logo, Viu um monte de bexigas inchadas,
como de aço que mancha não pontua; tendo dentro tumultos, gritaria;
e tanto ou pouco menos desafogo e soube que eram as coroas passadas
tem quanto o que o nosso globo debrua; de Assírios, Lídios, e também havia
o último globo, isto é, a Terra24, de Persas, Gregos, ínclitos outrora,
compreendendo o mar que a circunda e cerra. que quase obscuro nome têm ora.
71 Em Astolfo duplo espanto se espelha: 77 Anzóis de ouro e de prata perto vê
de perto aquele planeta era tão grande, numa massa, que eram aqueles presentes
quando a pequena esfera se assemelha que a reis se dão com esperança de mercê,
a quem com o olhar da Terra o demande; e a príncipes, e a patronos clientes.
e teve de franzir a sobrancelha, Grinaldas que laços escondem, para quê?
para a terra e o mar que em torno se expande Ouve que são adulações mordentes.
dali distinguir; pois, não tendo luz25 , De cigarras esventradas têm imagem
a pouca altura a imagem se conduz. versos que são de senhores homenagem.
n Outros rios e lagos, campinas estranhas 78 De anilhas de ouro e preciosos grilhões
há lá, como não os há entre nós; vê terem forma os falhados amores.
outras planícies, vales e montanhas, Havia garras de águias e gaviões:
a que cidades e aldeias dão voz; era poder dado aos seus pelos senhores.
com casas que como aquelas, tamanhas, Os louva-a-deus, que ocupam os fundões,
Astolfo não viu antes nem após; são de príncipes apreço e favores
e há selvas amplas, ermas e severas, que dão aos ganimedes palacianos26 ,
onde as ninfas dão sempre caça às feras. e se vão depois com a flor dos anos.
73 Não foi tudo pelo duque percorrido, 79 De cidades e castelos mazelas,
pois ali não fora para esse efeito. com seus tesouros, viu amalgamados.
Pelo santo apóstolo foi conduzido Dizem-lhe que são conjuras daquelas
a um vale por duas montanhas estreito, mal ocultas, e violados tratados.
onde estava por milagre reunido Serpentes viu com caras de donzelas,
o que se perde, ou por nosso defeito, de falsários e ladrões resultados;
ou por culpa do tempo ou da Fortuna: viu de frascos partidos um sortido:
tudo o que aqui se perde, lá se aduna. faz ao cortesão o senhor servido.
74 De reinos ou riquezas não vos falo, so De sopas derramadas grande massa
sobre os quais a roda instável labora, vê, e ao mestre pergunta a que reporte.
mas do que poder de dar ou tirá-lo - São esmolas (disse) de quem se traspassa,
não tem Fortuna vos direi agora. e que só são feitas após a morte. -
Muita fama lá há, que, como um ralo, De várias flores grande monte passa,
o tempo aqui vai roendo e devora; que houveram perfume, e ora fedor forte.
quantas preces e promessas lá estão, Era o donativo (explicou-lhe o mestre)
que de nós, pecadores, para Deus vão. que Constantino fez ao bom Silvestre27 •
562 ORLANDO FURIOSO

81 Viu também muitas máscaras com visco, 82 De alguns dias e factos seus em face
que eram, ó damas, as belezas vossas. se encontrou, que tinha em tempos perdido;
Tempo levará, se em verso rabisco se intérprete consigo não levasse,
tudo quanto viu em todas as fossas; pelas formas não os tinha conhecido.
pois mais de mil a descrever me arrisco, E chegou ao que achamos tanto grasse
já que ali há todas as faltas nossas; em nós que a Deus por ele não é pedido;
só loucura nem um pouco ali há, falo do senso, de que havia um monte
pois não nos deixa e cá em baixo está. (embora a muito mais que o resto amonte).
CANTO XXXIV 563

83 Era como um licor ténue e subtil, 88 que as câmaras tinha cheias de velas
que evaporava não estando fechado; de linho, de seda, algodão e lã,
estava recolhido em ampolas mil, de várias cores tintos, feios e belos.
maior, menor, ao conteúdo adequado. No claustro, uma mulher de crina cã
Maior de todas a que do gentil na roca os fiava, fazia novelos,
senhor de Anglante o senso tem guardado; como vemos no Verão a aldeã
das outras bem se distinguia, quando desfiar os casulos ensopados,
por fora se lia: «Senso de Orlando». para com nova seda fazer brocados.
84 Cada uma por fora escrito tem 89 Uma, findo um velo, ali vem trazendo
o nome a quem o senso pertenceu. outro, e uma outra algures aquele esconde;
Do seu, grande parte ele viu também; outra entre feio e belo vai escolhendo,
mas muito mais admiração lhe deu porque essa tudo a eito põe avonde.
de muitos a quem julgava que nem - Que lavor fazem cá, que eu não entendo? -
faltava um grama, e aqui se apercebeu diz, a João, Astolfo; e aquele responde:
claramente de que tinham bem pouco; - As velhas são as Parcas28 , que com tais
de senso havia ali um enorme bloco. estames fiam vidas para vós, mortais.
85 Uns perdem-no em amor, ou em honores, 90 Quanto dura um dos velas tanto dura
outros buscando, a navegar, riquezas; a humana vida, e nem mais um momento.
outros em esperanças postas em senhores, De olho estão aqui a Morte e a Natura,
ou atrás de mágicas futilezas; para ver quando da vida se é isento.
outros em gemas, obras de pintores, A fios belos escolher uma se apura,
ou coisas que julgue grandes finezas. para que deles se teça o ornamento
De sofistas, astrólogos, poetas, do paraíso; e, dos mais feios estames,
muito havia recolhido em bocetas. para os danados fazem ásperos arames. -
86 Astolfo o seu tirou, que o permitiu 91 Os velas que houveram já desempeços
aquele que o Apocalipse escreveu. na roca, e que são para uso vindouro,
A ampola em que estava ao nariz abriu, mostravam em chapas nomes impressos,
e parece que ao sítio o devolveu: umas de ferro, outras de prata ou ouro;
daqui para a frente, Turpin admitiu faziam com eles montões espessos,
que Astolfo, sensato, muito viveu; donde, sem nunca fazer pousadouro,
mas que mais tarde alguma asneira fez os levava, sem mostrar lassidão,
que lhe tirou o juízo outra vez. um velho, que vinha sem interrupção.
87 A ampola maior e mais cheia era 92 Era o velho tão expedito e mexido
a que do saber do conde era fonte; que para correr parecia ser criado;
Astolfo pegou-lhe, e não estava à espera daquele monte a aba do vestido
de tanto peso, quando a viu no monte. enchia bem, com nome assinalado.
Antes que o paladim daquela esfera Onde ia, e porque assim estava entretido,
cheia de luz à mais baixa desmonte, no outro canto vos será narrado,
é pelo apóstolo santo levado se sinal derem que isso vos agrada,
a um palácio, com um rio ao lado, com a grata atenção já costumada.
564 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 14
Muito [. ..} abriu: referência metafórica aos duques e Euristeu: primo de Hércules (Alcides), rei de Tirinte,
príncipes italianos que abriram as portas à cobiça dos Micenas e Mídea, que, por temer o primo e pensando
estrangeiros. assim destruí-lo, lhe encomendou os Doze Trabalhos,
alguns dos quais são recordados nesta oitava: a Hidra de
2
Tire [. . .} Letes: retire da sonolência e do esquecimen­ Lema, o Leão de Némea, as Éguas de Diomedes (Trácia),
to, de que o rio Letes é o símbolo. o Javali de Erimanto, a luta com o deus-rio Aqueloo
(Etólia) e com o gigante líbio Anteu (Numfdia), a morte
3 Cá/,ais e Zetes: filhos de Bóreas, deus do Vento Norte, de Caco ( Tibre) e os Bois de Gérion (Ibéria).
que participaram na expedição dos Argonautas, durante
a qual libertaram o rei Fineu das Harpias, que o tirani­ 1 5 Madrasta: Hera, esposa de Zeus, pai de Hércules
zavam. (Alcides).
4 Plutão: deus romano dos Infernos. 16 Às [. .. }
contenta: as Harpias.
5 Cão tricéfalo: Cérbero, um dos monstros que impe­ 17
Tecto: palácio.
diam os vivos de entrar e os mortos de sair do Inferno.
18 Aquele [. .. } queria: trecho do Evangelho de S. João
6 Anaxárete [. ..} capaz: Anaxárate era uma donzela de (2 1:20-23).
Chipre que rejeitou o amor de ffis e se comprazia em
fazê-lo sofrer, não se comovendo nem quando ele se 19 Ali [. .. } espera: havia a crença de que estas três figu­
enforcou à sua porta. Como castigo, Afrodite transfor­ ras tinham ascendido ao Céu em vida.
mou-a em estátua de pedra.
20
Dois primeiros parentes: Adão e Eva.
7 Daphne: ninfa amada por Apolo. Por ele perseguida,
21
correu até que, estando quase a ser agarrada por ele, Aurora [. . .} esposo: c( nota a XI:32.
suplicou a seu pai, divindade fluvial, que a transformas­
22
se, tendo-se tornado um loureiro. Incerto: errado.
8 Teseu e jasão: o primeiro traiu Ariadne, o segundo, 23
Primo fiel: Rinaldo, que era seu rival na pretensão a
Medeia. Angelica.
9 O que [... } perigo: Eneias, que traiu Dido e levou a 24 Último [. . . } Terra: o último, ou seja, o centro do uni­
guerra ao reino de Latino. verso, segundo o sistema ptolomaico.
10
O que houve [. . . } inimigo: Amnon, filho do rei 25 Pois [. . .} luz: pois a Terra não tinha luz própria,
David, violou Tarnara, sua irmã, e depois baniu-a. como a Lua «tinha».
Absalão, também seu irmão, vingou Tamara matando
26 Ganimedes pa/,acianos: favoritos (c( IV:47).
Amnon (O Segundo Livro de Samuel, 1 3).
11 27 Constantino [...} Silvestre: cf. nota a XVII:78.
Panftlia [. .. } Cilfcia: províncias da Ásia Menor.
12 28
Cavaleiro privado: que não possuía títulos e procura­ Parcas: c( nota a X:56:4. Em vez das três Parcas
va adquiri-los pelos feitos de armas (soldado de fortuna). habituais, Ariosto aqui contempla quatro (uma que fia,
outra que traz os veios, outra que leva os novelos para
13 Lestrígones: povo de gigantes antropófagos, que comiam sítio diferente, e outra que escolhe).
os estrangeiros, e a cuja terra Ulisses aportou com a sua
armada, da qual apenas escapou o seu próprio navio.
Quem subirá por mim, senhora, ao céu,
para me trazer o meu perdido engenho?
Desde, qual seta, vosso olhar bateu
em meu coração, que perdendo o venho.
Nem muito me queixo do desaire meu,
se mais não crescer e assim o contenho;
receio, se mais se for desgastando,
de ficar tal como escrevi de Orlando.
2 Para o engenho reaver, não é preciso
que pelos ares eu me eleve em passeio
ao globo lunar ou ao paraíso;
pois que tão alto se aloje não creio.
Pelos vossos serenos olhos e viso,
pelo vosso alabastrino e firme seio
erra; hei-de com os lábios sorvê-lo,
se vos parecer que devo reavê-lo.
3 Pelo amplo palácio erra o paladino,
mirando todas as futuras vidas,
depois de ver, no fuso do destino,
enrolar as que já estavam urdidas;
e um velo viu, que mais do que ouro fino
resplandecia; nem gemas moídas,
se um fio fosse delas feito com arte,
se comparava à milésima parte.
566 ORLANDO FURIOSO

4 O rico velo muito lhe aprazeu, 10 Assim seguia o imitador de Cristo,


que tanto entre os outros se distinguia; com o duque falando; mas percorridas
e de saber, desejo lhe cresceu, todas as salas, que bem tinham visto,
quando será, e a quem pertenceria. onde guardavam as humanas vidas,
O evangelista nada lhe escondeu: para o rio seguiram, que, de areia misto,
que vinte anos antes início haveria tinha as águas turvas e amarelidas;
que com M e com D fosse marcado na margem o tal velho se encontrava,
o ano em curso do Verbo encarnado. que as chapas com nomes escritos carregava.
5 E, assim como em esplendor e em beldade 11 Não sei se se lembram, falo daquele
não tinha o velo semelhante ou par, que nomeei no fim do outro canto;
assim seria a afortunada idade velho de cara, mas expedito é ele,
que ele traria ao mundo singular; que é mais veloz que qualquer cervo um tanto.
as ínclitas graças, que em raridade De nomes trazia cheio o mante!,
alma Natura ou estudo pode dar pois do monte os tirava sem quebranto;
ao homem, ou a benigna Fortuna, e, naquele rio que Letes se chamava,
cada uma com ele se coaduna. a sua preciosa carga4 espalhava.
6 - Entre os braços que o rei dos rios entorna,
1
12 Digo eu que ao chegar à margem funda
há hoje (disse) uma pequena aldeia :2
do rio, o velho pródigo sacode
pela frente o Pó, e por trás a contorna o regaço cheio, e na onda imunda
grande paul de onde a névoa se alteia; as chapas deita, sem que se incomode.
passando o tempo, ela a que mais adorna Um número infinito se aprofunda,
Itália será, que entre as mais campeia; das quais uso nenhum tirar se pode;
não pelas muralhas e amplos tectos régios, e, dentre cem mil que no fundo a areia
mas pelos estudos e pelos modos egrégios. cobre, a um só salvação se franqueia.
7 T ão grande evolução, e assim tão presta, 13 Ao longo e em torno daquele rio voando,
não é fortuita nem coisa do azar; giram abutres e corvos canoros,
tal dispôs o Céu, para digna ser esta gralhas e outros pássaros gritando,
de berço ser de quem te vou falar; produzindo desconcertos sonoros;
que o fruto no lugar se manifesta e à rapina corriam todos, quando
em que com estudo a planta-mãe medrar; espalhar viam valiosos tesouros;
e o artífice o ouro bem prepara, há quem no bico e há quem na unha torta
quando a ele quer ligar a gema rara. os leve; mas pouco longe os transporta.
Nunca teve tão nobre e bela veste 14 Ao quererem que pelo ar o voo se evole,
outra alma nesse reino terreno; não têm força que o peso sustenha,
e raramente desce da celeste e forçoso é que para o Letes rebole,
esfera3 um espírito tão digno e sereno, e a memória desses nomes retenha.
como para dar corpo a Ippolito d'Este Entre essas aves dois cisnes de escol,
a eterna mente houve o desígnio pleno. brancos, senhor, de vosso brasão senha,
Ippolito d'Este se indicará que vêm ledos, trazendo na boca
como o que de Deus tal dom herdará. seguramente o nome que lhes toca.
9 Os valores que, por muitos divididos, 15 Assim, contra os pensamentos malignos
chegavam para a todos dar ornamento, do velho, que ao rio dar os tinha querido,
há-de ter em si todos reunidos alguns salvam os pássaros benignos;
este, de quem falo a teu contento. todo o restante o consome o olvido.
As virtudes e estudos protegidos Ora vão nadando os pássaros dignos,
por ele serão; mas se eu der documento ora pelo ar às asas dão sentido,
de seus méritos, ir-me-ei alongando até que na margem do ímpio rio
tanto que em vão pelo senso espera Orlando. - um templo encontram, que encima um pendio.
CANTO XXXV 567
568 ORLANDO FURIOSO

16 À Imortalidade é o lugar sacro,


e desce uma bela ninfa a colina
até à beira do rio Leres acro;
os nomes aos cisnes então rapina,
e afixa-os em redor do simulacro5
que a coluna ao meio do templo empina;
ali os consagra, e faz tal governo
que lá se podem ver por tempo eterno.
17 Quem é ele, e por que todos no rio
sem proveito os ricos nomes sepulta,
e os pássaros, e aquele lugar pio
donde desce a ninfa que o rio consulta,
desejo Astolfo de saber sentiu
que mistérios e que sentido oculta;
e acerca de tudo perguntas fez
ao homem de Deus, que assim satisfez:
1s - Sabe, então, que não se move uma fronda
lá em baixo que aqui não dê sinal.
Cada efeito é mister que corresponda
na Terra e Céu, com face desigual.
O velho a quem no peito a barba avonda,
tão expedito no contínuo ritual,
tudo o que lá em baixo o Tempo ultima,
efeito igual faz ele aqui em cima.
19 Assim que pelo fuso todo o fio passe,
findam na Terra das vidas as sinas.
Lá, fama; aqui, o nome à chapa dá-se;
ambas mortais seriam e divinas,
porém, aqui, o da hirsuta face,
e na Terra o Tempo, fazem rapinas.
Este, bem vês, no rio lhes dá assento;
o outro mergulha-as no esquecimento.
io E tal como os abutres, corvos, gralhas
e outras aves aqui, em atropelos,
todas se esforçam para roubar às malhas
da água os nomes que vêem mais belos,
também na Terra aduladores, canalhas,
intriguistas, bufos e paralelos
que vivem nas cortes, e nelas são
mais estimados que o virtuoso e o são,
21 e a quem se chama cortesãos gentis,
porque asno e porco imitam, qual macaco,
de seus senhores, logo que os fios subtis
a Parca lhes corta, ou Vénus ou Baco6,
estes de quem falo, inertes e vis,
nados para encher de comida o saco,
na boca seus nomes uns dias trazem;
depois, no olvido a fama cair fazem.
CANTO XXXV 569

22 Mas, como os cisnes que cantam benignos 2s Não tão pio Eneias e Aquiles forte
as chapas salvam, para irem para o templo, foi como a fama, ou tão feroz Heitor;
os homens que forem de poetas dignos milhares de homens houve que, pelo seu porte,
do olvido saem, tal os contemplo. àqueles bem se podem sobrepor;
Ó príncipes sagazes e condignos, mas os palácios e vilas, que em sorte
que quereis perseguir de César o exemplo houveram de sua prole, fez compor
e a quem de escritores a amizade avonda, a esses grandes, sublimes honores,
do Letes não deveis temer a onda! pelas agraciadas mãos dos escritores.
23 São tal qual os cisnes, os poetas raros, 26 Não foi tão santo nem benigno Augusto,
os poetas não indignos de tal nome; como a tuba de Vergílio o entoa.
assim é porque o Céu, de homens preclaros, O ter por poesia um gosto robusto
não deixa que grande cópia se some, as proscriçóes injustas lhe perdoa.
e inda por culpa dos senhores avaros, Ninguém sabia se foi Nero injusto,
que os grandes engenhos deixam à fome; nem dele seria a fama pouco boa,
virtudes banindo e vícios louvando, embora Terra e Céu seus inimigos,
as belas artes escorraçam em bando. se houvesse feito dos escritores amigos.
24 Crê: Deus privou de alores intelectivos 27 Homero Agamémnon fez vitorioso,
tais ignorantes, e ofusca seus lumes; e Tróia fez parecer vil e inerte;
pois fez que fossem à poesia esquivos, fez Penélope fiel a seu esposo,
para que da vida não deixem perfumes. e afrontas sofrer do bando solerte8 •
Quando na morte inda seriam vivos, Se de saber a verdade és curioso,
mesmo tendo todos os maus costumes, a história toda ao oposto converte:
se amigos se houvessem feito de Cirra7 : os Gregos vencidos foram, feliz
melhor odoravam que nardo ou mirra. foi Tróia, e Penélope meretriz.
2s Vê, ao invés, que reputação deixa
Dido, que ao pudor soube dar abrigo;
pois com fama ficou de ser releixa,
só porque Marão9 não foi seu amigo.
Não te espantes por disto eu fazer queixa,
e se sobre este assunto tanto digo.
Amo os escritores, e faço o dever meu,
pois na Terra fui escritor também eu.
29 E acima dos outros deixei registo
que o tempo não apaga nem a morte:
e bem mereci que o meu louvado Cristo
me desse recompensa de tal sorte.
Lamento quem vive em tempo malquisto,
que a cortesia entrada lhes aborte;
à porta, com rosto pálido e enxuto,
lhe batem noite e dia sem ter fruto.
30 Mas, continuando o meu primeiro dito,
são poucos os estudiosos e poetas,
pois, onde não há pasto e há atrito,
até as feras buscam outras metas. -
Assim discursando, o velho bendito
os olhos inflamou, como escalfetas;
depois para o duque, com douto sorriso,
voltou, já sereno, o turbado viso.
570 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXXV 57 1

31 Deixo com o escritor do evangelho 37 Além de fazeres aquilo que compraz


Astolfo, que eu para dar um grande salto o homem cortês e o cavaleiro errante,
do Céu até à Terra me aparelho: teu valor em benefício usarás
as asas não me aguentam mais no alto. do mais fiel que outro fiel amante.
À dama volto a quem, com dardo relho, As outras virtudes não sou loquaz
o ciúme fizera um cruel assalto. para as narrar; nelas é tão abundante
Deixei-a quando ela, com curta guerra, que, quem delas não sabe, se diria,
três reis lançara, um após outro, a terra; incapaz de ver e de ouvir seria. -
32 e, alcançando nessa noite um castelo 38 A nobre dama, por quem apreciada
que junto à estrada para Paris se encova, sempre foi empresa donde lhe advenha
que Agramante foi, por seu irmão tê-lo motivo para por glória ser louvada,
vencido, para Arles, ouviu a nova. logo em ir até à ponte se empenha;
Certa estando de Ruggier protegê-lo, tanto mais ora, que está desesperada,
assim que no céu surgiu a luz nova, vai de vontade, inda que a morrer venha;
para a Provença, aonde, também escutou, pois, que Ruggiero perdeu tendo a crença,
Carlos o seguia, a estrada tomou. pela vida sente a maior indiferença.
33 Para a Provença pela via mais directa
andando, encontrou-se com uma donzela,
que, apesar de lacrimosa e inquieta,
era em maneiras e de rosto bela.
Aquela era a dama de amor repleta
pelo filho de Monodante10 ; era aquela
dama gentil que deixara na ponte
o amante, prisioneiro de Rodomonte.
34 Andava à procura dum cavaleiro
à batalha habituado, como a lontra,
em terra e na água, e tão bom guerreiro
que àquele pagão pudesse pô-lo contra.
A triste amiga de Ruggier fagueiro,
quando a outra desconsolada encontra,
cortesmente a saúda, e interpela
qual o motivo do desgosto dela.
35 Olha-a Fiordiligi, com a sensação
que aquele cavaleiro lhe serviria;
e da ponte lhe faz a descrição,
com que o rei de Argel obstruiu a via;
e que por pouco não deu destruição
a seu amor; mais forte não seria
o sarraceno, mas tirava, astuto,
do rio e da estreita ponte desfruto.
36 - Se és (dizia) tão valente e cortês
como pareces ser à minha vista,
vinga-me daquele que prisioneiro fez
meu senhor e faz que triste eu exista;
ou diz-me ao menos em que sítio crês
posso eu encontrar um que lhe resista,
e saiba tanto de armas e batalha
que rio e ponte ao pagão pouco valha.
57 2 ORLANDO FURIOSO

39 - Por quanto valho, jovem amorosa 45 Já para o meu reino de África embarcados
(respondeu-lhe Bradamante), eu me ofereço foram, mas prometo por meu honor
para a empresa fazer dura e perigosa; que, se por acasos inopinados,
por outros motivos que eu não confesso, ficares na sela e eu apeado for,
mas mais por de teu amante essa prosa mando que sejam todos libertados,
dizer o que em poucos homens conheço: dentro do tempo de que há-de dispor
fiel é no amor; por minha fé juro um mensageiro que se mande à pressa,
que, em tal, pensei ser cada um perjuro. - para cumprir, se eu perder, essa promessa.
4o As últimas palavras pronunciou 46 Mas se ficares por baixo, como aliás
com um suspiro vindo do interior; é natural, e sem se dar não passa,
e depois: - Vamos! - Quando o Sol se alçou nem as armas nem teu nome verás,
chegaram ao rio, à ponte do horror. como vencida, escrito na argamassa:
Logo que o guarda ali as !obrigou, a teu rosto, olhos, crina, os quais assaz
com o corno deu sinal ao senhor; beleza exalam e amor, e tal graça,
arma-se o pagão e, como costuma, quero ofertar minha vitória; e baste
para a estreita ponte que o rio transpõe ruma; que me queiras amar quanto odiaste.
41 assim que ali comparece a guerreira, 47 Tanto valor e tanta força averbo
de dar-lhe morte logo faz ameaça, que o ficares por baixo não te aligeira 1 2 • -
se de armas e corcel não se aligeira, Sorriu um pouco, mas com riso acerbo,
para que ao sepulcro ablação deles faça. que de ira, mais que outra coisa, é bandeira,
Ela, que sabe a história verdadeira a dama, e nem respondeu ao soberbo;
(que ele a Isabella deu a desgraça), para a ponta foi da ponte de madeira,
pois Fiordiligi tudo lhe contou, o corcel picou e, com a lança de ouro,
ao sarraceno soberbo gritou: avançou contra o orgulhoso mouro.
42 - Por que queres tu, néscio, que o inocente 48 Rodomonte para o duelo se aparelha:
pelo teu delito faça penitência? vem em corrida, e é tão grande o brado
Que com teu sangue o pagues é urgente: que emana a ponte que até pode a orelha
mataste-a e disso todos hão ciência. ferir a quem está dali afastado.
Mais que outra arma ou veste ali pendente, Seguiu a lança de ouro a usança velha:
de tantos que tiraste da eminência , 11
o mouro, antes a justar tão esmerado,
vítima e oblação mais acertada da sela erguendo, no ar suspendeu,
terá, se eu te matar para a ver vingada. e de cabeça na ponte o estendeu.
43 Ser-lhe-á, por minha mão, mais grato o preito, 49 Ao cruzarem-se, a custo espaço achou
pois, tal como ela o foi, mulher sou eu; para passar com o cavalo a guerreira;
nem vim até aqui para outro efeito em risco esteve, e bem pouco faltou
que vingá-la; só isso me moveu. para que ela mergulhasse na ribeira;
Mas um pacto entre nós deve ser feito, mas foi o vento e o fogo que engendrou
antes que o teu valor compares ao meu. Rabicano, e ágil é de tal maneira
Se eu for abatida, darás a mim, que no extremo rebordo encontrou estrada;
como aos outros cativos, igual fim; passaria até sobre um fio de espada 1 3 •
44 mas se eu te abater, que o creio e estou certa, 50 Volta-se ela, e ao encontro do caído
ter teu cavalo e tuas armas espero, pagão regressa; e com graça moteja:
para ao túmulo as dar como única oferta, - Podes ver (disse) quem foi abatido,
pois do mármore as outras tirar quero; e afinal qual de nós por baixo esteja. -
e aos prisioneiros quero a porta aberta. - Fica o pagão de espanto emudecido,
Responde o mouro: - Justo considero por a mulher o vencer na peleja;
o que dizes; mas não poderei dar-te e dar resposta não pôde ou não quis:
os prisioneiros, pois estão noutra parte. mais parecia um homem louco e infeliz.
CANTO XXXV 573

51 Do chão se levantou calado e mesto; 54 Os mais deixou da rocha pendurados,


depois de ter quatro ou seis passos dado, que tirara a cavaleiros pagãos.
o escudo e o elmo, e das armas o resto Dum rei armas viu, cujos passos dados
tirou, que às pedras foi arremessado; por Frontalatte 16 foram todos vãos:
sozinho e a pé, dali se afastou lesto, são do rei da Circássia 1 7 esses achados,
mas não sem primeiro ter encarregado que, muito errando por montes e chãos,
um pagem de à promessa dar efeito, aqui deixou a outra montaria;
quanto aos cativos, com todo o preceito. depois, sem armas, ligeiro partia.
52 Partiu; e nada mais dele constou, 55 Tinha partido desarmado e a pé,
senão que estava numa gruta escura. esse rei pagão, da perigosa ponte,
Bradamante entretanto pendurou tal como os outros que eram da sua fé
as armas do mouro na sepultura, deixava partir livres Rodomonte.
mandando retirar o que encontrou Mas de ao campo voltar capaz não é,
que dos cavaleiros, pela assinatura, pois de ali aparecer não tinha fronte:
da corte de Carlos conheceu ser; depois de tanto se ter vangloriado,
o restante não deixou desprender. vergonha era que o vissem nesse estado.
53 O arnês viu do filho de Monodante 14, 56 Novo desejo de buscar sentiu
de Sansonetto e de Oliviero, inteiro, aquela que em seu peito tem favor 18 •
que, à procura do príncipe de Anglante 15 , Por acaso da sorte, em breve ouviu
aqui trouxe o mais directo carreiro. (não sei dizer-vos quem foi disso autor)
Aqui foram presos, e, um dia adiante, que para o seu país a dama seguiu;
mandou-os levar o mouro altaneiro. para onde ele, acirrado por Amor,
O seus arneses mandou retirar de seguir-lhe a pista se satisfez.
do mausoléu, e na torre encerrar. Mas à filha de Amon volto outra vez.
57 Depois de deixar narrado num escrito
como por si foi libertado o passo,
a Fiordiligi, que o espírito aflito
tinha, e o rosco descaído e lasso,
perguntou, gentil, qual era o seu fito,
para onde queria dirigir seu passo.
Respondeu Fiordiligi: - O meu destino
é, em Arles, o campo sarracino,
58 onde navio e boa companhia
espero encontrar para ir para o outro lido 19 •
Não me detenho até achar a via
que leva a meu senhor e meu marido.
Quero tentar livrá-lo, com porfia,
da prisão; pois, se o que foi prometido
a ti por Rodomonte acaso falha,
quero ter um, ou outro, que lhe valha. -
59 - Eu me ofereço (disse-lhe Bradamante)
para acompanhar-te um bocado de estrada,
até que tu vejas Arles adiante,
onde pretendo, e em ti estou confiada,
que busques aquele Ruggier de Agramante,
cuja fama pela Terra está espalhada;
e que lhe entregues este bom cavalo,
que ao fero mouro tirei com abalo.
574 ORLANDO FURIOSO

60 E isto lhe deves dizer por resto: 63 Vai Fiordiligi e entra pelo cancelo,
«Um cavaleiro diz que provar crê, pela ponte e pela porta; e tem companhia
e a todo o mundo tornar manifesto, de alguém que a conduz até ao castelo
que contra ele usaste de má fé, onde está Ruggier, e ali se anuncia;
e para que estejas preparado e lesto, como lhe mandaram, dá ao donzela
este corcel me deu para que eu to dê. o recado, e Frontino lhe confia;
Diz para vestires tua armadura e malha, logo segue, pois resposta não espera,
e o esperares para contigo ter batalha». e a execução de seu plano acelera.
61 Diz-lhe isto e nada mais; e, se ele, curioso, 64 Ruggiero, intrigado e em confusão grande,
perguntar quem sou, diz que desconheces. - não é capaz de achar modo nem via
Respondeu ela, em seu tom generoso: de saber quem o repta, e quem lhe mande
- Não me cansa fazer o que careces; dizer ofensa e fazer cortesia.
não só palavras, a vida dar ouso; Que este, por à fé faltar, o demande,
pelo que por mim fizeste, bem mereces. - ou que alguém o acuse dessa heresia,
Graças dá Bradamante, e a convida não vê nem calcula; mas imagina
a Frontino levar, dando-lhe a brida. que um qualquer, não Bradamante, o incrimina.
62 Junto ao rio, peregrinas vão asinha 65 Que fosse Rodomonte, ele mais lesto
as jovens, a sua marcha forçando, seria a ter, que doutro, opinião;
até que Arles avistam; da vizinha mas, mesmo assim, que ele haja tal pretexto
praia chega o som do mar retumbando. pensa, mas não imagina razão.
Bradamante detém-se junto à linha Não sendo ele, não conhece no resto
de confim, as defesas avistando, do mundo quem consigo haja tenção.
dando assim a Fiordiligi intervalo, Entretanto a donzela de Dordonha
para pode, a Ruggie, da, o cavalo. o corno toca, e com batalha sonha.
\ 66 Chega a nova a Marsilio e Agramante
que um cavaleiro, fora, qur batalha.
Serpentino20 era seu acompanhante,
e apressou-se a envergar chapa e malha,
prometendo prender esse arrogante.
Correu o povo ao cimo da muralha;
não faltou velho, nem faltou garoto,
para ver qual no combate era mais douto.
67 Com rica sobreveste e um belo arnês,
Serpentin de la Stella à luta vem.
Ao primeiro golpe, ela ao chão ir o fez,
e o cavalo parece que asas tem.
Corre atrás dele a donzela cortês,
e ao sarraceno pela brida o retém,
dizendo: - Monta, e diz ao teu senhor
me mande um cavaleiro que tu melhor. -
68 O africano rei com muitos partilha
a muralha, e vê da justa o destino;
com o cortês acto se maravilha,
que usou a donzela com Serpentino.
- Com razão pode tê-lo, e não o pilha2 1 -,
disse, ouvindo-o o povo sarracino.
Vem Serpentino e, como ela ordenou,
um melhor que ele ao rei encomendou.
CANTO XXXV 575

69 Grandonio22 de Volterna, furibundo, 73 Os da muralha, sem terem noção


o mais soberbo cavaleiro da Espanha, de quem tão firme guerreiro seria,
tanto suplicou que foi o segundo, os· mais famosos nomeando vão,
e ameaçando saiu para a campanha. que os fazem tremer mesmo à calmaria.
- Tua cortesia que vale no mundo, Que é Brandimarte, há quem tenha opinião;
se quando eu te vencer, sem artimanha, concorda que é Rinaldo a maioria;
ao meu senhor te levo prisioneiro. fariam muitos em Orlando aposta,
Mas aqui morres, que em tal sou useiro. - mas do seu estado sabem e os desgosta.
70 Disse-lhe a dama: - Tua vilania 74 A terça justa o filho de Lanfusa23
não quero que menos cortês me faça: pediu, dizendo: - Não que eu espere vencer,
aviso-te, volta pela mesma via, mas que hajam da queda mais digna escusa
antes que os ossos o chão te desfaça. estes guerreiros, por ele me abater. -
Volta, e diz da minha parte ao teu guia Com tudo aquilo que na justa se usa
que não vim por gente da tua massa; se equipou; e um cavalo foi escolher
para guerreiro encontrar que o preço valha, entre cem que tinha, e foi seu eleito
é que eu aqui vim procurar batalha. - um veloz, e adaptado àquele efeito.
71 O seu falar mordaz, acre e acerbo, 75 Contra a donzela à batalha se fez;
no coração do mouro o fogo atiça; mas primeiro saudou-a, e ela também.
sem ser capaz de responder pelo verbo, Disse ela: - Se lícito saber crês,
gira o corcel e a raiva o encarniça. por cortesia responde-me: és quem? -
Gira a donzela, e, contra aquele soberbo, Seu pedido Ferraú satisfez,
a lança de ouro e Rabicano eriça. pois raro o nome escondia de alguém.
Quando a hasta fatal no escudo toca, Ela juntou: - Não te recusarei,
o mouro, com os pés para o céu, derroca. mas outro com mais gosto enfrentarei. -
n O cavalo a magnânima guerreira 76 - Quem? - disse ele. E ela em toadas airosas:
lhe agarrou, dizendo: - Bem te disse eu - Ruggiero -; e mal conseguiu proferir,
que o recado levar menor asneira e espalhou-se uma cor como de rosas
era que cumprires o desejo teu. no belo rosto, ao tal nome emitir.
Diz ao teu rei que da sua fileira Depois acrescentou: - Cujas famosas
guerreiro escolha que seja par meu; façanhas me fizeram aqui vir.
não gaste convosco a minha paciência, Mais não desejo, nada é essencial,
pois tendes em armas pouca experiência. - como provar o que ele na liça vale. -
576 ORLANDO FURIOSO

77 Disse as palavras com simplicidade, 79 Ganham espaço; e, como aos outros calhou,
nas quais alguém, talvez, já pôs malícia. Ferraú logo da sela caía.
Respondeu Ferraú: - Tem prioridade Bradamante, que o corcel segurou,
ver qual de nós mais sabe de milícia. disse: - Vai, e o que disseste anuncia. -
Se eu perder, como os mais, estabilidade, Ele envergonhado se retirou,
virá, para emendar minha imperícia, e Ruggiero encontrou em companhia
o gentil cavaleiro que asseveras do rei Agramante; e deu-lhe a saber
que com ele justar é tudo o que esperas. - que para a batalha o cavaleiro o quer.
78 Enquanto com ele falou, a donzela 80 Ruggier, não sabendo ainda quem fosse
mantinha a viseira erguida do viso. que assim o desafiava para a batalha,
Mirando Ferraú a face bela, quase certo de vencer, alegrou-se;
já vencido se sente de improviso, e mandou buscar armadura e malha;
e, taciturno, para si tagarela: nem por ver o que a sorte aos outros trouxe,
- Parece este um anjo do paraíso; sendo vencidos, coragem lhe falha.
mesmo que pela lança não seja ferido, Como se armou, como saiu, e quanto
pelos seus olhos já me sinto abatido. - se seguiu, reservo para o outro canto.

NOTAS

1 Rei dos rios: o Pó; assim lhe chamou Vergílio, nas 12
Não te aligeira: não te diminui.
Geórgicas .
13 Mas foi [. ..] espada: cf. XV:40-4 1.
2
Pequena aldeia: a futura cidade de Ferrara.
14 Filho de Monodante: cf. 33.
3 Desce [. .. ] esfera: segundo a doutrina platónica, as
almas desciam das estrelas para encarnar nos humanos. 15 Príncipe de Ang/,ante: Orlando.

4 Preciosa carga: al 16
Fronta/,atte: cf. XXVII:70 ss.
gumas chapas eram de metais preciosos.

5 Simu/,acro: a estátua da Imortalidade. 17


Rei da Circdssia: Sacripante.
6 18
Vénus ou Baco: a luxúria ou a gula. Aque/,a [. . .] favor: Angelica.
7
Cirra: um dos cumes do monte Parnaso, residência 19 Outro lide: África, para onde Rodomonte enviou
das musas e de Apolo. Brandimarce e os outros prisioneiros.
8 20
Bando solerte: os pretendentes. Serpentino: rei da Galiza (cf. XIV: 13:7-8).
9 Marão: Vergílio, de seu nome completo Públio 21
Com razão [. . .] pilha: pelas regras da cavalaria, podia
Vergílio Marão (Publius Vergilius Maro). fazê-lo prisioneiro, mas não fez.
1
° Filho de Monodante: Brandimarte. 22
Grandcnio: rei dos Algarves (cf. XIV: 1 2:2).
11 Tiraste da eminência: derrubaste do cavalo. 23
Filho de Lanfosa: Ferraú.
-B:!lfo­
CANTO XXXVI

Esteja onde estiver, mostra-se cortês 4 mas também essa foi vingança feia,
um coração gentil: sempre patente; contra vós mormente; que em companhia
natureza e hábito assim o fez, do César estando enquanto Pádua a peia
e não pode mudar e ser diferente. do cerco sofre, Veneza sabia
Também onde estiver, por sua vez, que, graças a vós, chama não se ateia,
se apresenta o que é vilão igualmente. e é extinto o fogo quando já ardia
Puxa a natura ao mal, e faz tornar-se em templos e aldeias3 , como aprazeu
o hábito difícil de mudar-se. à nobreza que convosco nasceu.
De cortesia e gentileza exemplos, Não falo destes actos, nem de tantos
entre os guerreiros antigos os houve, dessa cruel e descortês acção,
mas hoje poucos; os ruins contemplo-os, mas só daquele, capaz de às pedras prantos
pois muitos pude ver, doutros se ouve, arrancar, quando se lhe faz menção:
naquela guerra 1 , Ippolito, em que os templos o dia, senhor, que àqueles recantos
de brasões imigos ornar te aprouve, mandastes a tropa, onde protecção
e lhes sirgaste as cativas galés, em vão buscaram contra vossos perigos,
de saque cheias, às pátrias marés2 • os navios desertando, os inimigos4 •
3 Todos os cruéis actos desumanos 6 Como Heitor e Eneias pelo mar entrados
de Tártaros, Turcos, Mouros e vários para o fogo às naves gregas atiçar,
(embora a mando não dos Venezianos, vi Ercole e Alessandro animados
que da justiça eram partidários) por excessivo ardor irem, par a par,
usaram celerados e profanos os corcéis picando, e aos mais adiantados,
soldados perversos, seus mercenários. no seu abrigo o inimigo ameaçar5 ;
Dos fogos que atearam falo menos, tanto ousaram que ao segundo sofrido
queimando as casas e lugares amenos; foi o regresso, e ao primeiro impedido.
õY-8578 ORLANDO FURIOSO

7 Voltou Feruffino, ficou Cantelmo. 13 Respondeu Ferraú: - Tende por certo


Ó duque de Sora6 , cruel sarilho que nenhum é daqueles que haveis dito.
viveste então, vendo tirar o elmo, A mim pareceu, que o vi a viso aberto 1 2 ,
entre mil espadas, ao valente filho, o irmão de Rinaldo jovenzito;
e a um barco o levar e, sobre um esquelmo7, mas após ter seu valor descoberto,
decapitá-lo! Até me maravilho e Ricciardetto não tendo por perito,
se aquela cena a morte não te deu, penso seja a irmã, pois tenho ouvido
como a teu filho o ferro a concedeu. que o rosto tem ao dele muito parecido.
s Eslavo8 cruel, onde foste aprender 1 4 Ela tem fama de ser forte, a par
a ser soldado? Em que Cítia9 se entende de Rinaldo e de qualquer paladino;
que se mate alguém, depois de o prender mas, pelo que vejo, quero acreditar
e desarmar, que já não se defende? que nem o irmão nem o primo 1 3 é tão fino. -
Mataste-o por a pátria proteger? Quando Ruggiero a ouve mencionar,
Sem que o mereças hoje o Sol resplende, da cor vermelha que o sol matutino
ó século cruel, cheio de réus, difunde no ar se tinge na face,
que Tiestes são, T ântalos e Atreus 10 • treme-lhe o peito, e fica num impasse.
9 Decapitaste, ó bárbaro blasfemo, 1 5 A tal anúncio, acirrado e pungido
o mais bravo rapaz da sua idade pelo dardo amoroso, dentro se inflama,
que entre os pólos havia, e desde o extremo e a um tempo é nos ossos percorrido
da Índia aquele outro em que o Sol se evade. pelo gelo que o temor neles derrama;
Podia o Lestrígone, ou Polifemo 1 1 , temor que uma ofensa haja consumido
pela beleza e seus anos ter piedade; o amor que nela ardia com tal chama.
tu não, porque mais mal em ti se tope E, apreensivo, não se decidia
que num antropófago ou num Ciclope. se ir-lhe ao encontro ou se não ir devia.
10 Igual exemplo creio não havia 16 Porém, encontrando-se ali Marfisa,
entre antigos guerreiros, cujos estudos por quem a liça era tão desejada,
foram só gentileza e cortesia; e armada estava, porque doutra guisa
nem após a vitória eram sanhudos. raramente é, dia ou noite, encontrada,
Bradamante não só mal não sentia ouvindo que Ruggier se arma, ajuíza
pelos que havia, tocando-lhes nos escudos, que será dessa vitória privada
da sela tirado, mas segurava se Ruggier deixa primeiro aparecer:
nos seus corcéis, e a montar ajudava. quer ir adiante, e ter ela o prazer.
11 Desta bonita e valente donzela 17 Salta a cavalo, esporeia, e não tarda
disse eu atrás que fez alçar a perna onde a filha de Amon, naquele chão,
a Serpentino, aquele de la Stella, com o peito a palpitar Ruggier aguarda,
Ferrauto e Grandonio de Volterna, ansiosa por poder dar-lhe prisão;
os quais ajudou a voltar para a sela; só pensa onde com a lança o petarda,
disse inda que o primeiro ela governa para sofrer do golpe menor lesão.
a Ruggier do desafio mensageiro, Marfisa surge atravessando a porta,
sendo ainda julgada um cavaleiro. e sobre o seu elmo uma fénix 14 porta:
12 Ruggiero ouve o convite alegremente, 1s ou será por soberba, denotando
a sua armadura mandando vir. ser ela no mundo a única forte,
Enquanto se armava com o rei presente, ou sua casta intenção alardeando
tornaram os senhores a inquirir de para sempre viver sem um consorte 1 5 •
quem era o cavaleiro tão excelente A filha de Amon observa-a; e, quando
que com a lança sabia bem ferir; a amada feição não lhe sai em sorte,
e a Ferraú, que falado lhe havia, o nome dela pergunta, e percebe
perguntaram então se o conhecia. que é aquela que o amor dele recebe;
CANTO XXXVI 579

19 melhor dizendo, aquela que ela crê 22 Meneia a espada, e já ferir não mira
que goza o seu amor, e por quem tanto ela, e sim do corcel o peito e a pança;
ódio e raiva tem, que morrer prevê Bradamante ao cavalo a brida gira,
se nela não vingar todo o seu pranto. e de súbito ele para o lado se lança;
Gira o cavalo e avança sem mercê, e ao mesmo tempo, com desdém e ira,
não pelo desejo de a derrubar, quanto a filha de Amon dá impulso à lança,
de que a varar-lhe o peito a hasta rume, Marfisa atingindo com ligeiro toque
deixando-a livre de todo o ciúme. que faz com que na cerra ela derroque.
20 Àquele golpe Marfisa ao chão faz estrada, 23 Assim que no chão caiu, levantou-se,
para provar se o terreno é duro ou mole; tentando com a espada dar-lhe derrota.
a insólita coisa muito a enfada, Bradamante à hasta deu novo couce,
e, louca de ira, o desdém não engole. e Marfisa deu nova cambalhota.
Mal em cerra cocou, puxou da espada, Embora Bradamante force fosse,
e da queda vingar-se não abole. mais que Marfisa não era cão douta
Bradamante, não menos altaneira, que esta fosse, a cada golpe, prostrada:
gritou: - Que queres? És minha prisioneira. era virtude da hasta encantada.
21 Embora use com outros cortesia, 24 Alguns cavaleiros, neste entremeio,
para ti, Marfisa, não a desembrulho, quero dizer, alguns da nossa parte 1 6 ,
pois oiço que de muita vilania tinham-se chegado até onçle, a meio
és dotada, e também de muito orgulho. - de um campo e outro, a liça se reparte
Marfisa, àquele falar, fremir se ouvia, (só milha e meia havia de permeio),
como do vento num escolho o marulho. vendo que o seu demonstra muita arte;
Grita, mas de raiva tão descomposta seu, que não conhecem diferentemente,
que não consegue exprimir a resposta. senão por cavaleiro da sua gente.
25 Ao estes ver o generoso filho
de Troiano 1 7 às muralhas acercar-se,
para um acaso, ou um qualquer rastilho,
desprevenido não quis encontrar-se;
mandou que muitos se armassem com brilho,
para fora dos muros apresentar-se.
Entre estes Ruggiero escava incluído,
de duelar por Marfisa impedido.
26 O enamorado jovem observando
escava a cena, tomado pelo temor,
pela sua amada noiva receando,
pois de Marfisa sabia o valor.
Receou, digo eu, no início, quando
uma e a outra atacou com furor;
mas, vendo após como corria o facto,
ficou maravilhado e estupefacto;
27 e ao ver que a liça fim não conheceu,
cal como as outras, ao primeiro recontro,
no peito a ansiedade lhe cresceu,
receoso de qualquer estranho encontro.
De uma e de outra só o bem pretendeu;
ambas ama, embora haja desencontro
nesses amores: um é chama e paixão,
o outro, mais que amor, é afeição.
580 ORLANDO FURIOSO

2s A pugna de bom grado dividia, 33 Se tu me andas matando, é bem razão


se pudesse fazê-lo com honor. que me dês da vingança algum conforto;
Mas os que tinha em sua companhia, prevê a ordem e a legislação
para o lado cristão não ser vencedor, que quem outrem mata deve ser morto.
o qual superior ser já lhes parecia, Nem teu dano ao meu tem comparação:
saltam para o campo em tom atiçador. tu morres por direito, e eu por torto.
Do outro lado os cavaleiros cristãos Morte dou a quem para mim morte implora,
avançam, prontos a usar as mãos. mas tu, cruel, a quem te ama e adora.
29 Às armas já se grita aqui e além, 34 Por que não hás-de, mão, ser atrevida
das quais haviam quase diário adorno. e ao inimigo o peito aberto expor,
Arme-se e monte quem inda se abstém, se ele tanto de morte me fez ferida,
e às suas bandeiras façam retorno! em estado de paz e pacto de amor,
O som claro e belicoso provém e pode agora querer tirar-me a vida,
de mais de uma trompa correndo em torno: sem ter sequer pena da minha dor?
chamam, como estas a cavalaria, Ousa contra o cruel, ânimo forte:
tambores e timbales a infantaria. mil minhas vingas, com a sua morte. -
30 A escaramuça, fera e sanguinosa 35 Para ele arranca, mas primeiro intima:
quanto imaginar se pode, começa. - Cuidado (grita), pérfido Ruggiero;
A dama de Dordonha valorosa, não te vangloriarás da presa opima
em quem desprazer de crescer não cessa dum coração de donzela, assim espero. -
porque isso de que era tão desejosa, Ao ouvir essa voz, Ruggiero estima
a Marfisa dar morte, não se expressa, ser da sua amada, como era vera,
dum lado para outro se volta e gira, pois na memória gravada a trazia,
tentando ver Ruggier, pelo qual suspira. e entre mil reconhecê-la podia.
31 Reconheceu-o pela águia de argento 36 Calcula o que inferir era normal
que no seu escudo azul faz belo efeito. das suas palavras: que ela o acusa
Com seu olhar e pensamento atento, de à convenção ter sido desleal,
detém-se a contemplar ombros e peito, que haviam feito; e, para apresentar escusa,
o donairoso corpo, e o movimento de que lhe queria falar fez sinal;
pleno de graça; e, depois com despeito, mas a viseira baixa ela já usa,
imaginando que a outra o fruísse, e avança, de dor e de raiva cheia,
dominada pelo furor assim disse: para o pôr, talvez, onde não haja areia 1 8 •
32 - Beijar a bela e doce boca tua 37 Quando ele a vê vir de raiva tão tensa,
deve outra, se beijá-la não posso eu? retesa-se nas armas e na sela;
Não se permita que outra te possua, enrista a lança, mas tem-na suspensa,
pois doutra não podes ser, senão meu. meio dobrada para não feri-la a ela.
Antes que de raiva, só, me destrua, Ela, que para infligir ferida e ofensa
que hajas comigo, e por mim, o fim teu; vinha, e na mente a piedade protela,
pois, se aqui te perco, ao menos o Inferno não é capaz, quando lhe chega perto,
a mim te dê depois, por tempo eterno.
o- de o derrubar e dar-lhe agravo aberto.

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CANTO XXXVI 581

38 Qualquer das lanças é no efeito amiga


naquele recontro; e já basta se Amor
com um luta e com outro, e os castiga
com a amorosa lança, o agressor.
Então a dama, porque não consiga
Ruggiero castigar, volta o furor
para outro lado e faz coisas espantosas,
que enquanto o céu girar serão famosas.
39 Em pouco tempo ali deitou por terra
trezentos ou mais com a lança de ouro.
Sozinha, esse dia venceu a guerra,
sozinha pôs em fuga o povo mouro.
Ruggiero daqui para ali gira e erra
tanto que se lhe chega e diz: - Eu estouro,
se te não falo! Quais os erros meus
para que assim me fujas? Ouve, por Deus! -
40 Como os tíbios ventos meridionais,
que do mar trazem quente exalação,
as neves vão dissolvendo e os caudais,
e o gelo de tão rija condição,
assim com tais rogos e breves ais,
da irmã de Rinaldo o coração
se tornou terno e mole como cera,
que a ira, mais que pedra, endurecera.
41 Não quer dar-lhe ou não pode outra resposta:
dá esporas de través a Rabicano
e de todos muito se desencosta,
a Ruggier acenando com afano.
Longe dos outros, atrás duma encosta,
num vale parou, onde existia um plano
que ao centro tinha um bosque de ciprestes;
nunca tão iguais vira como estes.
42 No bosque havia, em alvo mármore raro
há pouco feita, grande sepultura.
Quem nela jaz, foi escrito em modo claro,
para quem tal coisa saber não transcura.
Mas Bradamante, ao chegar, vos declaro
que nenhuma atenção deu à escritura.
Ruggiero, atrás, o cavalo esporeia,
até que no bosque a dama ladeia.
43 Voltemos a Marfisa, que, ligeira,
tinha entretanto seu corcel montado,
e queria encontrar aquela guerreira
que ao chão, à primeira, a tinha atirado;
viu-a partir, saindo da fileira,
e Ruggier atrás dela ir disparado;
nem lhe ocorreu que o amor o levasse,
mas para à rixa dar feroz desenlace.
582 ORLANDO FURIOSO

44 Pica o cavalo e a segui-lo se apresta 47 A filha de Amon, que a si quer matar


tanto que quase ao mesmo tempo chega. ou a Marfisa, está de raiva cheia,
Quanto é aos dois tal chegada molesta, e já não a quer com a lança atacar,
quem ama de imaginar se encarrega. pois fazê-la tombar já não anseia;
Bradamante mais rancor manifesta o que pensa é do busto separar
ao ver aquela que o seu mal congrega. a cabeça, meio metida na areia:
Quem pode impedir que tome por vero afasta a lança de ouro e agarra a espada,
que a impulsiona o amor de Ruggiero? e dum salto no chão está apeada.
45 E pérfido a Ruggier de novo chama. 48 Mas tarde chega; encontra cara a cara
- Não te bastava, pérfido (disse ela), Marfisa em pé, que de ira estava plena
que a tua traição soubesse pela fama, (pois era a segunda vez que tombara
sem me obrigares a também ver aquela? ao chão, com a leveza duma pena);
Que me afaste de ti, tua alma brama; vãos são rogos e gritos que dispara
para contentar tua iníqua cautela, Ruggier, que tinha disto muita pena;
quero morrer; mas espero ter a sorte tanto ódio e ira uma e outra cegava
de comigo morrer quem me dá morte. - que em desespero à luta se entregava.
46 Mais raivosa que víbora se aferra 49 De meia espada é entre elas o vão;
ao dizer tal, e vai contra Marfisa; e, como é grande a ira que as incita,
e de tal modo a hasta lhe desferra estreitam-se mais, e tão chegadas estão
no escudo que a revira de tal guisa que o corpo-a-corpo entre el3:s não se evita.
que quase meio elmo penetra a terra; Das espadas já não tendo precisão,
não foi para esta a estocada improvisa: deixam cair, e outra arma se agita.
ao invés, fez-lhe forte oposição; Pede Ruggiero, suplicando às duas,
porém, caiu de cabeça no chão. mas pouco valem as palavras suas.
50 Mas vendo que pedir de nada vale,
para à força separá-las se dispõe:
a ambas tira da mão o punhal,
e aos pés dum cipreste tais armas põe.
Não tendo já ferro para causar mal,
com rogos e ameaças se interpõe;
mas tudo é vão: em luta se mantêm
a soco e pontapé, pois mais não têm.
51 Ruggier não cessa; ou uma ou outra apresa:
pelas mãos, pelos braços, dali a retira;
tanto faz que Marfisa fica acesa
contra ele, o mais que se pode, de ira.
Aquela que todo o mundo despreza,
à amizade de Ruggier não mira.
Quando de Bradamante se destaca,
corre para a espada, e ora Ruggiero ataca.
52 - Tu fazes de descortês e vilão,
Ruggiero, perturbando a justa alheia;
far-te-ei arrepender, com esta mão,
que há-de bastar para nos dois dar tareia. -
Tenta ele, com gentil conversação,
Marfisa mitigar; mas ela cheia
de furor está e tanto se rebela
que é perda de tempo falar com ela.
CANTO XXXVI 583

53 Ruggier puxa a espada para o desenlace, 59 Grita a terrível voz: - Parem asinha
estando também já de ira rubicundo. vossa liça; seria desumano
Não creio que espectáculo observasse se de irmão a irmã morte provinha,
Atenas, Roma, algum lugar do mundo, ou se a irmã dava morte a seu mano.
que tanto aos assistentes agradasse, Tu, meu Ruggiero, e tu, Marfisa minha,
como aquele agradou e foi jucundo creiam no meu dizer, que eu não engano:
a Bradamante, que o ciúme curou, gerou-vos um ventre e uma só semente,
pois todas as suspeitas lhe afastou. e ao mundo dissestes juntos: presente!
54 Já recolhera sua espada da terra, 60 Concebidos por Ruggiero segundo,
e retirara-se a olhar, à parte; Galaciella houvestes vós por matriz;
e parecia-lhe ver que o deus da guerra cujos irmãos, tendo-lhe deste mundo
era Ruggiero, em pujança e em arte. levado o genitor vosso infeliz,
Uma fúria infernal, quando desferra, descurando que no corpo fecundo
lembra Marfisa, se ele parece Marte. vos tinha, e, embora da mesma raiz,
O certo é que um pouco o jovem galhardo mandaram, a fim de ela se afogar,
teve, na força que usava, resguardo. pô-la em frágil barco no meio do mar.
55 Conhecia a virtude da sua espada, 6 1 Mas Fortuna, que vós, inda não nados,
pois muitas provas com ela já fez. já vos escolhera para glorioso feito,
Onde golpeia, convém que dissuada o barco para os areais desabitados
o encanto, ou dele não mostre a rudez; dos Sirtes20 levou, a salvo e escorreito;
está atento, para não dar cutilada onde, depois de ao mundo serdes dados,
de fio ou ponta, mas sim de través. ao Céu subiu aquele espírito eleito.
Teve Ruggiero em tal muita advertência, Quis Deus e decidiu vosso caminho
mas perdeu por um momento a paciência; que do caso eu me encontrasse vizinho.
56 porque Marfisa uma pancada horrenda 62 A vossa mãe dei sepultura honesta,
lhe dá, com intenção de abrir-lhe a testa. tanto quanto em erma areia logrei;
Ergue o escudo, que a cabeça defenda, vós, tenros, cingi na veste modesta
e o golpe sobre a águia19 ela lhe assesta. e para o monte de Carena21 levei;
Evita o encanto que o quebre ou fenda, uma leoa fiz vir da floresta,
mas o braço com o choque molesta; que amansei e aos próprios filhos tirei,
se as suas armas não fossem de Heitor, de cujas tetas dez meses e dez
podia o braço arrancar-lhe o furor; ambos fiz nutrir com muita sagez.
57 e à cabeça lhe iria, onde promove
atingi-lo a enraivecida donzela.
Ruggiero o braço canho a custo move,
esforçando-se a suster a águia bela.
Por isso, a piedade de si remove;
nos olhos uma chispa se revela,
e um golpe de ponta, feroz, desfere.
Marfisa, ai de ti, se o golpe te fere!
58 Eu nem sei bem dizer-vos como fosse;
pela espada um cipreste foi penetrado:
mais de um palmo na árvore afundou-se
(basto era o arvoredo ali plantado).
Monte e plano nesse instante abanou-se
com um terremoto; e soou um brado,
vindo do túmulo que ali tem sede,
numa voz que qualquer, mortal, excede.
584 ORLANDO FURIOSO

63 Um dia em que eu, por lá deambulando, 69 Depois a perguntar voltou Marfisa


da morada afastar-me aconteceu, quem tinha sido o pai, e de que gente;
ali apareceu por acaso um bando e quem o tinha morto, e de que guisa,
de Árabes (estais lembrados, penso eu), se em espaço estreito ou bélico incidente;
que conquanto a ti, Marfisa, raptando, e quem ordenara morte improvisa
Ruggier não puderam, pois mais correu. para sua infeliz mãe no mar ingente;
Fiquei da tua perda mui dolente, pois, se o ouvira dizer em criança,
e a guardar Ruggier fui mais diligente. tinha ora pouca ou nenhuma lembrança.
64 Ruggiero, se bem te guardou em vida 70 Ruggiero começou que nos de Tróia,
o teu mestre Atlante, tu saberás. pela linha de Heitor, tinham o passado;
De ti, pelas estrelas predição foi lida que, depois de Astíanax à tramóia
que entre cristãos por traição morrerás; de Ulisses e dos outros ter escapado
e, para não ser tal maldição seguida, (pois de Tróia para fora se combóia,
esforcei-me para que para perto não vás. sendo outro menino, por ele, deixado),
Não me podendo ao teu querer opor, depois de muito errar na água salina,
enfermo caí e morri de dor. veio à Sicília e dominou Messina.
65 Antes da morte, aqui onde augurei 71 - Os seus descendentes, para cá do Faro ,
23

que com Marfisa virias lutar, governaram da Calábria uma parte;


os infernais demos trazer mandei e gerações passadas foi-lhes caro
as graves pedras, para a campa formar; ir habitar na cidade de Marte24.
e a Caronte22 disse, ou melhor, gritei: Do seu sangue mais de um, de rei preclaro
«Morto eu, minha alma não vais levar e imperador ser, lá e algures, teve arte,
deste bosque, enquanto aqui não se veja começando em Constâncio e Constantino,
Ruggier com sua irmã travar peleja». a Carlos Magno, filho de Pepino.
66 Assim meu espírito por esta sombra n Ruggier primeiro e Gianbaron são desses,
muito tempo aguardou o advento vosso; Buovo, Rambaldo, e ao fim Ruggier segundo25,
ciúme agora nunca mais te ensombra, que fez, como Atlante quis que soubesses,
Bradamante, que amas o Ruggier nosso. de nossa mãe o útero fecundo.
Minha alma, enfim, da luz se desassombra, De nossa estirpe as gestas reconheces
e se conduz ao tenebroso fosso. - nas histórias que são célebres no mundo. -
Calou-se então; e a Marfisa e à filha Conta-lhe que veio o rei Agolante26,
de Amon e a Ruggier causou maravilha. com Almonte e com o pai de Agramante,
67 Como sua irmã Ruggiero interpela 73 e que consigo trouxe uma donzela
Marfisa com muito gáudio, e ela a ele; sua filha, que era tão valorosa
e ao abraço, sem ofender-se aquela que muitos paladins tirou da sela;
que Ruggier ama, cada um se impele; de Ruggier por fim torna-se amorosa,
e, lembrando da infância paralela e por seu amor ao pai se rebela,
alguns casos (fiz, disse, este e aquele), baptiza-se, e torna-se sua esposa.
vão descobrindo, com mais realidade, Contou também que Beltramo27 , traidor,
que o que o espírito dissera é verdade. pela cunhada ardeu de incestuoso amor,
68 Ruggiero à sua irmã não ocultou 74 e que a pátria, os irmãos e o pai traiu,
ter no peito gravada Bradamante; assim esperando apoderar-se dela;
com palavras afectuosas narrou as portas de Risa28 ao imigo abriu,
os deveres de que lhe dera garante; que os piores tratos deu à parentela29 ;
e enquanto não compôs não descansou e que Agolante aos filhos permitiu
suas discórdias, de modo galante; pôr, de seis meses prenhe, Galaciella
e conseguiu que, para pacificar-se, no mar, numa embarcação sem governo,
viessem ternamente a abraçar-se. quando mais tempestuoso, no Inverno.
CANTO XXXVI 585

75 Estava Marfisa com serena fronte, 80 Ruggier lhe respondeu com pundonor
atenta às falas que o irmão fazia; que isso ter feito de início devia;
de ser descendente da bela fonte3º mas, por não ser dos factos sabedor
que claros rios tinha se comprazia. tão bem como agora, tardado havia.
Deles, que de Mongrana e Claramonte3 1 Tendo-lhe Agramante feito o honor
as famílias derivavam sabia, de o armar cavaleiro, mal faria
que "anos e anos foram esplandecentes, em dar-lhe a morte, e seria traição,
e ao mundo deram homens eminentes. pois por senhor lhe dera aceitação.
76 Depois de o irmão por fim ouvir dizer 81 Que a Bradamante prometeu não esquece,
que o pai de Agramante, e o avô e o tio32 , e ora à irmã, tentar por qualquer via,
Ruggiero à traição fizeram morrer, até que uma ocasião, em que pudesse
e à mulher deram tão cruel desvio, sem desonra afastar-se, arranjaria.
não se pôde mais sua irmã conter, E se inda o não fizera, não lhe desse
e interrompendo-o, disse: - Eu te glorio, a culpa, mas ao rei da Tartaria34,
irmão meu, mas procedeste mui torto pelo qual, na batalha que com ele teve,
em não vingar nosso pai, que foi morto. foi deixado como ela saber deve.
77 Se em Almonte e Troiano não podias 82 Que ela, que cada dia ia ao seu leito,
vingar-te, por terem já ido adiante33 , testemunha era, entre outras, certeira.
o sangue_ dos filhos verter devias. Longa conversa houve a tal respeito
Por que, vivendo tu, vive Agramante? entre uma e outra ínclita guerreira.
Essa é uma mancha que jamais desvias A conclusão e o derradeiro efeito
do rosto; depois de afronta abundante, é que Ruggiero regresse à bandeira
não só não deste a esse rei a morte, do seu senhor, até ter ocasião
como à sua conta vives na corte. de se mudar para Carlos, com razão.
78 Faço voto a Deus (Cristo adorarei, 83 - Deixa, pois, que vá (dizia Marfisa
o vero Deus, por meu pai adorado) a Bradamante), e não tenhas temor:
que a minha armadura não despirei dentro de dias eu farei de guisa
sem ter Ruggier e minha mãe vingado. que não seja Agramante seu senhor. -
E desagrado sinto, e sentirei, Assim diz ela, mas não verbaliza
se entre as hostes volto a ver-te ocupado, que acção em prática pretende pôr.
de Agramante ou de outro mouro senhor, Por fim, Ruggier delas se despedia,
se não for para lhes causar dissabor. - e para ao rei voltar o corcel volvia;
79 Oh como a tal fala a face se excita 84 nisto, um choro se ouviu de um vale chegado,
de Bradamante, e como isso a anima! e os três ficaram de súbito atentos.
E a que Ruggiero assim faça o incita, Àquela voz estão de ouvido inclinado,
tal como Marfisa bem o intima; e de mulher pensam que são lamentos.
e se apresente a Carlos em visita, Mas o canto aqui vai ser terminado:
que tanto honra, louva e tanto estima resignai-vos a aceitar meus intentos;
de Ruggiero, seu pai, a clara fama, melhores coisas vos prometo contar,
que ainda guerreiro sem par lhe chama. se o outro canto quiserdes escutar.
5 86 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 Guerra: batalha de Polesella (22 de Dezembro de 16 Da nossa parte: dos cristãos.
1509), em que Ferrara venceu Veneza (cf. nota a III:57:8).
17
Filho de Troiano: Agramante.
2
Pátrias marés: águas do Pó.
18 Onde [. .. } areia: na terra (ou seja, na sepultura); o
3
�neza [. . .]aldeias: Veneza devia ter em conta que campo de combate estava coberto de areia.
Ippolito d'Este, estando com o imperador ( César)
19
Maximiliano no assédio a Pádua, impedira ou extingui­ A águ ia: a águia prateada sobre campo azul, insígnia
ra incêndios em território véneto. pintada no escudo de Ruggiero.
4 O dia [. .. } inimigos: em Novembro de 1509, os 20
Sirtes: o golfo de Sine, que abrange as costas da Tunísia
Venezianos, perseguidos pelas tropas de Ippolito, aban­ e da Líbia, divide-se em Grande Sirte (ou golfo de Sidra) e
donaram os navios no Pó e refugiaram-se em dois bas­ Pequeno Sine (ou golfo de Qabis).
tiões na sua margem, mas foram ali derrotados (em vão).
21
Monte de Carena: cf. nota a VII:67:5.
5 Vi Ercole [. . . } ameaçar: Ercole Cantelmo e
22
Alessandro Feruffino, homens de Ippolito d'Este, adian­ Caronte: barqueiro do Inferno.
taram-se aos restantes na perseguição aos Venezianos até
23
ao interior dos bastiões. Cantelmo foi feito prisioneiro e Faro: farol do estreito de Messina.
decapitado, e Feruffino salvou-se a muito custo. Ariosto
esteve presente nestes acontecimentos (vz) . 24 Cidade de Marte: Roma.

6
Duque de Sora: Segismondo Cantelmo, pai de Ercole. 25 Rugrjerprimeiro[..] segundo: a genealogia de Ruggiero,
desde Heitor, é criação de Boiardo.
7 Esquelmo: escalmo (espigão que serve de apoio ao
26
remo). Agolante: pai de Almonte, Troiano (pai de Agramante)
e Galaciella (mãe de Ruggiero e Marfisa).
8
Eslavo: da região histórica da Eslavónia, na margem
27
oriental do Adriático, de onde provinham os mercená­ Beltramo: irmão de Ruggiero II.
rios ao serviço de Veneza. Já em IV: 1 1: 5, o Adriático era
28
designado por mar eslavo. Risa: Reggio di Calabria.
9 29
Cltia: cf. nota a VIII:62:8. Metáfora do país bárbaro. As portas [ . .} parentela: permitiu a entrada na cidade
a Agolante e seus filhos, que maltrataram Ruggiero II e
10 Qµe { .
. } Atreus: idênticos a liestes, Tântalo e Atreu, per­ Galaciella.
sonagens mitológicas que, entre outras barbaridades, mataram
30
os filhos, seus ou dos outros, e os serviram em banquetes. Bela fonte: os nobres heróis de Tróia.
11 Lestrlgone ou Polifemo: tanto os Lestrlgones (cf. nota a 31
Mongrana e Claramonte: fànúlias que deram a França
XXXIV:38:7) como Polifemo, o ciclope, são, na Odisseia, ínclitos guerreiros. A primeira foi fundada por Sinibaldo,
antropófagos. filho de Buovo de Antona, e dela saíram Oliviero e seus
filhos, Grifone e Aquilante. Clacacnonte é a fànúlia a que per­
12
A viso aberto: com a viseira erguida. tencem Orlando e seus primos Rinaldo, Bradamante, etc.
13 32
Primo: Orlando. Pai [ . .} tio: Troiano, seu pai, Agolante (avô de Ruggiero
e Marfisa), e Almonte (tio).
14 Fénix: cf. XV:39:3.
33
Por [ . .} adiante: por terem já morrido.
15
Ser ela [ . .} consorte: ser única no mundo em género
e número, como a fénix. 34 Rei da Tartaria (Tartária): Mandricardo.

CANTO XXXVII

Se, como para obter um qualquer dom


que só a quem se esforça dá Natura,
noite e dia labutam sem destom,
com suma diligência e muita agrura
as briosas damas, e se com bom
efeito obra criaram não obscura;
estudos fizessem de outras amplitudes,
que imortais fazem as mortais virtudes,
e pudessem por si próprias dar vulto
e imortalidade à sua loa,
sem ter de aos escritores mendigar indulto,
cujo peito inveja tanto aguilhoa
que o bem que podem dizer fica oculto,
e o mal por todo o mundo se apregoa;
seu nome subiria a uma altura
a que inda não subiu viril figura.
588 ORLANDO FURIOSO

3 Não basta a muitos que se preste a obra 9 Destes, um, não só o seu próprio instinto
para um a outro dar glória no mundo; a honrar e a exaltar-vos inclina,
tal fazem que com ela se desdobra e o Parnaso fazer ecoar e o Cinto9
o qu� as damas em si têm de imundo. com louvores a vós que ele ao Céu destina,
Por eles, a mulher fama não cobra, mas o amor fido, o forte e nunca extinto
querendo-a (digo, os antigos) bem no fundo; (vencendo anúncios de vingança e ruína)
como se ao delas seu honor soçobre, ânimo que lsabella 1 0 provou ter,
assim como a neblina o sol encobre. fá-lo, mais que a si, a vós pertencer;
4 Mas não teve nem tem língua nem mão, 10 por isso nunca sentirá cansaço
que em voz anuncie ou que em papel escreva de vos louvar em seu verso vivaz;
(embora ao mal dê maior dimensão, e, se algum vos censurar, outro braço
e com muita arte o bem circunscreva), de em armas pegar não há tão capaz;
poder para à glória delas dar extinção não há outro a quem menos embaraço
tal que na totalidade a proscreva; a vida arriscar pela virtude traz.
mas a que resta não alcançará Não só dá matéria para que outrem escreva,
a verdade, nem perto chegará; como, a escrever, a glória alheia eleva.
s A Harpálice 1 ou T ómiris2 negar vida, 11 Bem digno é que dama de tal fortuna,
ou a quem a Turno e Heitor acudiu3 ? fortuna em toda e qualquer qualidade
Quem por sidónios e tírios seguida que em todas que há no mundo se reúna,
para a Líbia foi por mar4 , não existiu? nunca vacile em sua lealdade,
Nem Zenóbia5, e a rainha aguerrida e par;i ele tenha sido uma coluna 1 1 ,
que Assíria, Pérsia e Índia possuiu6? desprezando do Fado a adversidade;
Não só estas de fama meritórias digno dela ele, e ela digna dele:
são, por com armas obterem vitórias. nunca um par se juntou melhor que aquele.
6 E fiéis, prudentes, castas, sem tortos
sempre houve, não só na Grécia e em Roma:
em toda a parte entre as Índias e os Hortos
das Hespérides, em que o Sol espalha a coma7 ;
cujos méritos estão para os louvores mortos,
e entre cada mil só uma se assoma;
isso, porque no seu tempo invejosos
foram os escritores, falsos e maldosos.
7 Não deixai, porém, damas a quem mova
o bem fazer, de seguir vossa via;
que vossa nobre empresa não demova
o temor de não colher honraria,
pois como coisa boa não se prova
que sempre dure, também má não porfia.
Se papel e tinta até aqui não
foram para vós, no nosso tempo são.
Marullo e Pontan a vosso favor,
e Strozzi pai e filho ao vosso lado
estão; o Bembo, o Capel e o formador
de cortesãos, modelo dele copiado;
há Luigi Alaman, e dois que amor
de Marte e das Musas hão, igualado,
ambos do sangue que reina na terra
que o Menzo corta e em lagoas cerra8 •
CANTO XXXVII 589

12 Novos troféus põe na margem do Oglio 12 ; 1s nome há Vittoria19 ; é bom para a que foi nada
entre fogos, naves, golpes de espada, entre vitórias, e, em casa ou viajante,
para alguma folha bem escrever teve olho, de troféus e de triunfos ornada,
pelo rio vizinho talvez invejada13 • vitória a acompanha, atrás e adiante2° .
Para além dele, um Ercol Bentivoglio Esta é outra Artemísia2 1 , e foi louvada
claro louvor vos faz com clara toada, por do seu Mausolo ser tão amante;
e Renato Trivulcio, e o meu Guidetto, maior aliás, que é obra de mais estalo
e o Molza, para tal, de Febo dilecto14 . da campa um homem salvar que enterrá-lo22 •
13 E o duque de Chartres, Ercol, filho 19 Se Laodamía, se a mulher de Bruto,
do meu duque 1 5 , que expande as suas penas se Arria, Argia, Evadne e outras, louvadas
qual cisne que em voo espalha seu estribilho, mereceram ser, por quererem por tributo
erguendo-vos ao Céu em cantilenas. aos maridos ser também sepultadas23 ,
E o meu senhor do Vasto16 , a quem o brilho mais de louvar é de Vitória o luto,
não basta a mil Romas e a mil Atenas pois do Letes e do que em nove fiadas
de seus feitos dar, pois ainda almeja cerca o Inferno24 livrou o consorte,
dar-vos com a pena fama sobeja. para despeito das Parcas e da Morte!
14 E além destes e de outros que hoje haveis, 20 Se ao fero Aquiles inveja da clara
que glória vos deram e ainda dão, trompa homérica o macedónio25 havia,
vós, por vós mesmas, dar-vo-la podeis; de ti, grande Francesco di Pescara,
vós que haveis a agulha e pano aversão, quanta mais, se hoje vivesse, teria!
com as Musas vossa sede apagareis Se tão casta mulher e a ti tão cara
na fonte de Hipocrene 1 7 , e inspiração canta eterno honor que a ti se devia,
trareis tanta que nós da obra vossa e, se tão alto o teu nome projecta,
mais precisaremos que vós da nossa. não desejarás mais clara trombeta.
15 Se quem essas são e de todas se olha 21 Se dizer tudo o que se pode, ou quanto
que eu dê conta e seus méritos não cale, tenho desejo, ao papel eu passasse,
precisarei de encher mais de uma folha, muito diria; porém nunca tanto
e que meu canto hoje de mais não fale; que parte por dizer não me ficasse;
se cinco ou seis para louvar faço escolha, de Marfisa e companhia, entretanto,
temo que as mais ofenda ou apunhale. a história ficava sem que a contasse;
Que faço então? Não falo de nenhuma, a qual vos fiz promessa de seguir,
ou entre tantas escolho apenas uma? se neste canto a quisésseis ouvir.
16 Uma escolho; e escolherei uma tal, 22 Ora, estando vós aqui para escutar-me,
que a inveja evitarei com sucesso, e eu para não faltar à minha promessa,
pois nenhuma me levará a mal guardo para ócio maior ensaiar-me
se das outras calo e a ela enalteço. para ser sua exaltação por mim expressa;
Não se tornou só a si imortal não que eu ache necessário o meu carme
pelo doce estilo, o melhor que conheço, a quem por si só tão bem os processa,
como alguém de quem ela fale ou escreva mas para satisfazer o meu desejo
à morte subtrai, ao eterno eleva. de honrá-la e de louvá-la como almejo.
17 Como Febo mais luzente revela 23 Damas, concluo em suma: cada idade
sua cândida irmã18 , e mais a admira tem muitas de vós de história merecidas;
que Vénus ou Mercúrio ou outra estrela mas a inveja dos escritores os dissuade
que vai com o céu ou por si só gira, de serdes, após mortas, conhecidas;
mais eloquência que às outras, àquela já assim não será: vossa habilidade
de quem vos falo, e mais doçura, inspira; tornará imortais as vossas vidas.
tão potentes suas palavras torna Se as cunhadas fazer isso soubessem,
que um outro sol nossos dias adorna. melhor se sabia os feitos que tecem.
590 ORLANDO FURIOSO

24 De Bradamante e de Marfisa digo, 2s O espectáculo inaudito e funesto


cujos ínclitos feitos, sem revés, as duas nobres guerreiras pusera
para todos trazer à luz me afadigo; daquela cor que, nos jardins de Pesto,
mas perco sempre nove em cada dez. costuma a rosa ter na Primavera28 •
Com prazer vou contando os que !obrigo, Olhou-as Bradamante, e manifesto
porque a toda a boa acção nitidez, lhe foi logo que Ullania uma era.
se oculta ela estiver, para dar me inflamo; Ullania, que foi da Ilha Perdida,
para vos agradar, damas que honro e amo. como mensageira, a França expedida;
25 Disse eu que Ruggier estava preparado 29 também reconheceu as outras duas,
para partir, tendo-se já despedido, que as três conhecera na mesma hora29 •
e do cipreste a espada retirado, Mas dirigiram-se as palavras suas
o que não foi, como antes, impedido26 ; àquela, das três, que ela mais honora;
quando alto choro, não muito afastado pergunta-lhe que iníquo as deixou nuas,
dali, fez com que ficasse em sentido; dos hábitos e costumes tão fora,
com as damas seguiu para aquela via, que o secreto aos olhos alheios revele
para socorrer, se precisão havia. quanto parece que a Natura sele.
26 Vão avançando, e mais claro se espraia 30 Ullania, que conhece Bradamante,
o som, e as palavras com limpidez. não só pelas insígnias, mas pela voz dela,
No vale, três damas deixam que lhes saia como aquela que há dias, pouco adiante,
tal lamento, vestindo estranho arnês: os três guerreiros fez tombar da sela,
até ao umbigo lhes tinha a saia diz que num castelo pouco distante
cortado não sei quem, pouco cortês; gente ruim, sem respeito por ela,
e por não poderem melhor tapar-se, além da injúria de cortar-lhe os panos,
no chão estavam, sem ousar levantar-se. lhe batera e provocara outros danos.
27 Como o filho de Vulcano brotado 31 Do escudo, o que era feito não sabia,
da terra, sem ter uma mãe com vida, nem dos três reis que, por tanta nação,
que Palas confiou, para ser bem cuidado, lhe tinham feito longa companhia:
a Aglauro, no olhar muito atrevida, não sabe se mortos ou presos estão;
para os feios pés esconder estava sentado e diz que se meteu por esta via,
na primeira quadriga construída27 ; embora lhe custe a locomoção,
assim tinham as três jovens, sentadas, para a Carlos se ir queixar de tal resvalo,
suas partes secretas ocultadas. esperando que ele não queira tolerá-lo.
32 Às guerreiras e a Ruggiero, que ameno
coração têm, quanto audaz e forte,
turvado ficou o rosto sereno
de ouvir e ver delas a cruel sorte;
qualquer outro afazer foi mais pequeno,
e, sem que tal lhes peça, ou que os exorte
a dama aflita a exercer vingança,
para aquele lugar avançam sem tardança.
33 Das sobrevestes, para fazer oferenda,
se tinham por piedade despojado,
o que para cobrir a parte pudenda
de cada dama se tinha adequado.
Bradamante não quer que Ullania a senda
com os pés calque (havia antes calcado),
e à garupa do seu cavalo a eleva;
outra Marfisa, e outra Ruggier leva.
CANTO XXXVI I 591

34 Ullania a Bradamante, que a transporta, 4o É do nosso nome tão inimigo


mostra para o castelo a via direita; que a nós não quer estar, mais do que isto, anexo,
em troca Bradamante a reconforta, nem que a um dos nossos demos abrigo;
que a vingará de quem lhe fez desfeita. talvez tema odor do feminil sexo.
Deixando o vale, por via longa e torta Dois folhedos novos, em vez do antigo,
pelo monte vão, à esquerda e à direita; deram às árvores o seu amplexo,
só depois de o Sol no mar haver pouso, desde que deste mal se regozija
é que quiseram ter algum repouso. o tirano; e não há quem o corrija.
35 Uma aldeola acharam, que na empena 4 1 Pois tem-lhe o povo medo em desmesura,
de um monte alto, mau de subir, surgia, igual ao medo que se tem da morte;
onde abrigo acharam e ceia amena, porque à maldade juntou-lhe a natura
como ter em tal lugar se podia. uma força que excede a humana sorte.
Olham bem em volta, e notam que plena Seu corpo, de gigantesca estatura,
de mulheres qualquer parte ali se via, ao pé de um cento de homens é mais forte.
jovens e velhas; e, em tão grande liga, E não só suas súbditas molesta,
um único homem não se lobriga. que as estranhas sofrem sorte pior que esta.
36 Nem a Jasão maior espanto fizeram, 42 Se vosso honor estimais, e vos pesar
nem aos Argonautas que com ele iam, o das três que trazeis por companhia,
as mulheres que aos maridos morte deram é mais seguro, útil e salutar
e a filhos, pais, irmãos que possuíam: não ir mais adiante, e achar outra via.
na ilha de Lemnos ver não puderam Por esta ao seu castelo ireis parar,
dois rostos viris30 , pois não existiam; e provareis a dura barbaria
como Ruggier e quem o acompanhava que o cruel impôs, para aviltação
se espantou, no sítio em que pernoitava. de damas e guerreiros que ali vão.
37 Conseguiram a Ullania e às aias 43 Marganor, o vilão (assim se chama
que vinham com ela, as duas guerreiras, o senhor tirano daquele castelo)
naquela noite, prover de três saias, com quem Nero, ou outro que tenha fama
se não tão belas, ao menos inteiras. de mau, com ele não teve paralelo,
Ruggiero chamou uma das lacaias o sangue humano, e o da mulher mais ama,
da casa, e quis saber por que soeiras que o lobo o do cordeiro ou do vitelo.
nem sequer um homem ali se visse; As damas com vergonha são despidas,
e como resposta ela assim lhe disse: que pela má sorte ali são conduzidas. -
38 - Isto que é talvez um espanto para vós, 44 Como o vilão chegou a tal sandice
que tantas mulheres sem homem estamos, querem saber as damas e Ruggiero:
é grave e aborrida pena para nós, pediram que por favor prosseguisse,
que, banidas, infelizes andamos. aliás, do início contasse com esmero.
E para o duro exílio ser mais atroz, - O senhor do castelo (a mulher disse)
pais, filhos, maridos que tanto amamos, foi sempre cruel, desumano e fero;
de nós fazem divórcio desumano, mas escondeu um tempo o coração tredo,
como apraz ao nosso cruel tirano. e não se deixou conhecer tão cedo:
39 Das suas terras, que vizinhas são 45 Enquanto seus dois filhos foram vivos,
duas léguas só, e onde fomos nadas, bem diferentes dos paternos ardis
para aqui nos mandou por expatriação, (amavam forasteiros e eram esquivos
depois de com ofensas injuriadas; à crueldade e alheios actos vis),
nossos homens, de morte e punição, os gestos corteses estavam activos,
e nós como eles, fomos ameaçadas, e os bons costumes e as acções gentis;
se vierem cá, ou lhe for aos ouvidos que nunca o pai, embora avaro fosse,
que, vindo aqui, foram bem recebidos. proibiu aquilo que prazer lhes trouxe.
CANTO XXXVII 593

49 Como de nada serviria o rogo,


que a teria pela força resolveu.
Armou-se e do castelo saiu logo,
e, onde iam passar, quieto se escondeu.
O arrojo usual e amoroso fogo
a prudente reflexão lhe tolheu:
mal viu o cavaleiro se aproximar,
lança contra lança o foi assaltar.
50 Queria ao primeiro assalto pô-lo em terra,
e a dama e a vitória ter de graça;
mas o cavaleiro, mestre de guerra,
como vidro lhe quebrou a couraça.
Logo a notícia ao pai alguém descerra,
e um ataúde o traz à sua praça;
vendo-o morto, chorou-o com agrura,
e junto aos avós lhe deu sepultura.
5 1 Contudo, nunca restrição se fez
no dar abrigo e boa recepção,
porque Tanacro não menos cortês
era, nem menos gentil que o irmão.
De país distante veio, outra vez,
nesse ano, com a mulher, um barão,
ele, um primor de galhardia, e ela,
quanto dizer posso, graciosa e bela;
46 Damas e cavaleiros, que esta via 52 e, quanto bela, era honesta e virtuosa,
faziam então, tão bem acolhiam e digna, sem dúvida, de elogio;
que encantados com a alta cortesia o cavaleiro era de estirpe honrosa,
dos dois irmãos iam, quando partiam. valendo mais que qualquer outro em brio.
Tanto um como outro, da cavalaria Com tal valor, bem merece se goza
as sagradas ordens os dois possuíam; as graças de dama de tal feitio:
Cilandro e Tanacro eram os infantes, Olindro, cavaleiro de Lungavilla,
galhardos, bravos, com reais semblantes. e sua dama chamava-se Drusilla.
47 E eram de facto, e seriam louvados, 53 Desta, não menos o jovem Tanacro,
pois eram dignos de todo o honor, que seu irmão da outra, se agradou;
se não se mostrassem tão inclinados o que lhe valeu fim violento e acro
àquele desejo a que se chama amor; para o ímpio desejo que alimentou.
assim do bom senso foram desviados E tal como o irmão, de violar o sacro
para o labirinto e caminho do error; agasalho no direito se achou,
tudo o que haviam feito de elegante em vez de reflectir que o duro e forte
tornou-se feio e sujo num instante. desejo novo o conduzia à morte.
48 Apareceu cá um cavaleiro da corte 54 Mas porque tinha ante os olhos o tema
do grego imperador; com ele trazia de seu irmão, que havia sido morto,
sua senhora, de distinto porte, pensa tomá-la em modo que não tema
bela quanto desejar se podia. que Olindro possa vingar-se do torto.
Tomou-se Cilandro de amor tão forte Nele se extingue, sem que já o prema,
que, não a tendo, morrer lhe parecia: aquela virtude em que tinha porto3 1 ,
parecia-lhe ter, à sua partida, não o submergindo as águas no vício
de com ela partir a sua vida. em que o pai se afundara desde o início.
594 ORLANDO FURIOSO

55 Em silêncio, à noite tomou medidas, 61 Mostrando-se muito leda, ter finge


juntando a si uns vinte homens armados; nestas bodas sumo comprazimento;
longe do castelo, em grutas escondidas tudo o que as possa atrasar ela infringe,
no caminho, ficaram emboscados. do coração escondendo o sofrimento.
De dia, Olindro as estradas impedidas Mais do que as outras se enfeita e se tinge:
e passos achou, por todos os lados; parece Olindro ter em esquecimento.
certo é que muito e bem se defendeu, Mas quer que as núpcias sejam feitas, diz,
mas a mulher e a vida ali perdeu. como se usam fazer no seu país.
56 Estando morto Olindro, levou cativa 62 Não era verdade que aquela usança,
a linda dama, que, tão angustiada, que dizer queria, na sua pátria houvesse;
de modo nenhum queria ficar viva, mas não tendo outra coisa na lembrança
pedindo lhe fosse a vida tirada. senão seu fim alcançar, ela tece
Duma riba saltou na tentativa uma mentira, na qual põe a esperança
de morrer, sobre um vale debruçada; que o que Olindro matou de viver cesse;
não morreu, mas a cabeça partida por isso diz querer as núpcias à guisa
ficou, e ela toda contusa e ferida. da sua pátria, e como são precisa.
57 De outro modo Tanacro transportá-la 63 «A viúva que outro marido pretende
não pôde: somente numa padiola. deve, antes de se lhe tornar submissa,
Fez com muito cuidado medicá-la, a alma aplacar do primeiro, que ofende,
pois perder tão cara presa o desola. mandando rezar-lhe ofícios e missa
E enquanto assim se esforça para curá-la, (para que erros passados assim se emende),
para a boda já prepara a festarola; no templo que seus ossos entapiça;
sim, que a tão casta dama bem se liga quando o sacrifício chegar ao fim,
o nome de mulher, e não de amiga. o noivo à noiva dá o anel enfim;
58 Outra ideia Tanacro não inflama,
doutra coisa não se ocupa nem fala.
Conhece que a ofendeu, e proclama
a culpa e tudo faz para emendá-la.
Mas tudo em vão: quanto mais ele a ama,
quanto mais se esforça para mitigá-la,
mais o odeia ela, e mais é forte
e firme a vontade de dar-lhe a morte.
59 Não deixa que o ódio tanto distorça
seu discernimento que não entenda
que, para cumprir seu desejo, por força
fingirá, para que ocultas teias estenda;
para disfarçar o seu plano se esforça
(o qual é só como Tanacro ofenda),
simulando; mostra estar desligada
do outro amor, e a ele dedicada.
60 Simula o rosto paz; mas dentro anseia
por vingança: outra coisa não pretende.
Ideias revolve; umas acareia,
outras deixa, ou em dúvida suspende.
Acha que, se sua morte delineia,
seu intento cumpre: a esta se prende.
E como melhor morrerá, ou quando,
senão seu caro marido vingando?
CANTO XXXVII 595

64 mas que enquanto decorre, o sacerdote, 70 Entregue ao sacerdote a taça, ledo,


sobre o vinho levado para tal fito, abre os braços, a abraçá-la disposto.
orações apropriadas devote, Nesse instante, o semblante doce e quedo
o licor benzendo sempre em seu rito; muda nela, e aquele ar bem composto.
até que o frasco para uma taça esgote, Expele-o de si, dissuade-o sem medo,
e dê aos noivos o vinho bendito; parecendo arder nos olhos e no rosto;
mas, o vinho levar, à noiva toca, e, num tom alterado e assustador,
e ser a primeira a pô-lo na boca». grita-lhe: «Afasta-te de mim, traidor!
65 Tanacro, que não vê que em algo importe 71 Hás-de ter de mim prazer, e, às avessas,
que a noiva as núpcias a seu modo faça, eu lágrimas de ti, dor, sofrimento?
diz-lhe: «desde que o fim se alcance, e a sorte Quero que às minhas mãos ora pereças:
de juntos estarmos, que se satisfaça». era veneno, se não estás atento.
Nem percebe o infeliz que da morte Carrasco honroso hás, sem que o mereças,
de Olindro vingar desejo a espicaça; pois terás morte fácil, sem tormento;
tem disso uma vontade tão intensa mãos e penas não há tão execráveis
que só naquilo e em mais nada pensa. que a teu pecado sejam comparáveis.
66 Tinha Drusilla uma criada velha, n Muito me custa não ver nesta morte
que, com ela presa, ali estava em casa. o meu sacrifício todo perfeito;
Chamou-a, e disse-lhe junto à orelha, se o pudesse fazer daquela sorte
que assim, que algum homem ouça, não aza: que desejei, não teria defeito.
«um veneno repentino aparelha, Tal me perdoe o meu doce consorte:
como sei que sabes compor, e envasa, que olhe à intenção, e aceite o meu preito;
pois achei a maneira de fim pôr pois, não podendo fazer como queria,
à vida do filho de Marganor. à morte te levei como podia.
67 Que me salvarei, e a ti, te assereno;
digo-te como, em mais discreto espaço».
Foi-se a velha, e preparou o veneno,
e engarrafou-o e voltou ao paço.
De vinho doce de Cândia32 achou, pleno,
um frasco, e juntou-lhe o fatal bagaço;
e reservou-o para o dia da boda,
estando já vencida a demora toda.
68 No dia marcado, ela ao templo vem,
de ricas vestes e gemas ornada,
onde de Olindro, como lhe convém33 ,
a urna estava em colunas alçada.
Ofício solene ali se entretém:
a todos, homens e damas, agrada;
Marganor, mais feliz do que o costume,
com o filho e amigos lugar assume.
69 Quando das exéquias findou o coro,
e o vinho com veneno foi benzido,
verteu-o o sacerdote em copa de ouro,
como fora por Drusilla instruído.
Bebeu ela quanto era ao seu decoro
próprio, sendo o efeito garantido;
e deu ao esposo com rosto jucundo
a taça, a que ele fez aparecer o fundo.
596 ORLANDO FURIOSO

73 E a justa punição que aqui, segundo 79 Mas como por cortá-lo e desfazê-lo
o meu desejo, não poderei dar-te, não desafoga, e o furor conserva,
espero a tua alma no outro mundo às mulheres que o templo enchem flagelo
ver sofrer; eu estarei a observar-te». dá, nem uma mais do que outra reserva;
E disse, erguendo com rosto jucundo faz connosco, com seu cruel cutelo,
os olhos turvos à mais alta parte: como o aldeão com a foice à erva.
«Esta vítima, Olindro, sendo eleita Nada pôde impedir que num momento
por tua mulher em vingança, aceita; trinta matasse, e feriu bem um cento.
74 e graça por mim pede ao Senhor nosso, 80 É tão temido pela sua gente, o crudo,
para no paraíso hoje eu estar contigo. que homem não houve que se lhe opusesse.
Se disser que sem dote ao reino vosso Fogem as mulheres e o povo miúdo,
alma não vai, diz que o levo comigo; na igreja quem pode não permanece.
que aos ricos despojos do monstro posso Por fim é contido o ataque sanhudo:
no santíssimo templo dar jazigo. a força dos amigos o amolece;
Que maiores dotes pode haver do que estes: deixando lágrimas por todo o lado,
extinguir tão torpes e imundas pestes?» para o castelo no monte foi levado.
75 Findou-se o falar junto com a vida; 8 1 Mas, como a cólera ainda durava,
e morta inda tinha alegre o semblante, de todas banir decisão tomou;
por estar a crueldade assim punida porque os amigos e o povo rogava
de quem a privara do caro amante. que nos não matasse, ele se refreou;
Não sei se pelo espírito foi seguida, nesse dia, um edital que mandava
de Tanacro, ou se este lhe foi adiante; que o país deixássemos publicou;
creio que adiante foi, pois efeito deu e foi aqui que exílio nos quis dar.
nele o veneno antes, que mais bebeu. Ai da que do castelo se abeirar!
76 Marganor, que vê cair o filhinho, 82 E assim foram as mulheres dos maridos,
e depois em seus braços falecido, como as mães de seus filhos, separados.
quase com ele morreu, pelo grave espinho Se alguns forem, para aqui vir, atrevidos,
que de repente o trespassou, vencido. não haja disso Marganor recados;
Dois teve em tempos, ora está sozinho: pois com cruéis penas foram punidos
por duas mulheres se viu reduzido. muitos, e outros da vida privados.
A morte a um por uma foi causada, No castelo uma lei fazer lhe aprouve;
e a do outro foi pela mão dela dada. pior que essa não se lê nem se ouve.
77 Amor, piedade, desdém, dor e ira, 83 Mulher que seja no vale encontrada
sede de morte e vingança também, (de vez em quando alguma nisso cai),
o triste e desolado pai transpira; pela lei, com vimes será vergastada,
freme como o mar, quando o vento vem. e, expulsa para sempre, da terra sai;
Vai a Drusilla para vingar-se, e mira mas cortam-lhe a veste, e a expor é forçada
que vida o seu corpo já não contém; o que a Natura e o Pudor retrai;
como o punge e acicata o ódio ardente, e se alguma escoltada ali aporta,
tenta ofender o corpo que não sente. por cavaleiros, essa será morta.
78 Qual víbora que à vara que à areia 84 As que cavaleiros trazem consigo
a tem fixa, em vão os seus dentes lança; pelo inimigo da piedade são,
e o mastim, que se uma pedra baldeia para vítimas, levadas ao jazigo
o viandante, a correr a alcança dos filhos, e esganadas por sua mão.
e, cheio de raiva, à dentada a golpeia, Armas e corcéis tira para castigo
não se querendo ir embora sem vingança, aos que a guiavam e dá-lhes prisão;
Marganor, mais que mastim ou serpente bem pode fazê-lo, pois noite e dia
cruel, assim faz ao corpo inconsciente. mais de mil homens tem por companhia.
CANTO XXXVII 597

85 Quero ainda dizer-vos que esse vil, 86 Tudo isto contando, às guerreiras trouxe
quando algum poupa, primeiro este jura, primeiro pena, depois indignação;
pela hóstia sacra, que o ser feminil se assim como era noite, dia fosse,
odiará enquanto a sua vida dura. ao castelo iriam sem contenção.
Se a estas damas e a vós ser hostil Ali o belo grupo repousou-se,
quereis, ide ver ao castelo a figura e, assim que a Aurora deu indicação
que ali se alberga, e tereis evidência que ao Sol cedesse o lugar cada estrela,
se o que mais tem é força ou inclemência. - envergou armas e voltou à sela.
598 ORLANDO FURIOSO

87 Estavam já de partida, quando ouviram 93 Foi tal o ódio, foi a ira tanta
que as estradas lhes ressoavam atrás que pelos seus crimes nelas se atiçou,
com grande tropel; para o vale dirigiram que de puni-lo, sem importar quanta
o olhar, que o som a todos virar faz. tropa tinha, a decisão se tomou.
E à distância de um tiro de mão34 , viram Mas, morte breve inadequada e santa
vir por estreito caminho, que ali traz, pena era para quem tantos magoou;
uns vinte que armados e em formação melhor que houvesse dela sentimento,
vinham, alguns a pé, outros no arção; prolongando-a com martírio e tormento.
88 que traziam com eles a cavalo 94 Mas a mulher salvar é acertado,
uma mulher que tinha muitos anos, antes que os esbirros lhe dêem a morte.
como se leva quem vai, por resvalo, Brida solta e calcanhar apertado
de fogo, cepo ou laço sofrer danos; faz terem dos corcéis veloz transporte.
a qual foi, não obstante o intervalo, Nunca assim o pelotão atacado
logo conhecida pelo rosto e panos. teve encontro tão áspero nem tão forte;
Reconheceram-na as mulheres da vila, por mercê houveram deixar os escudos,
por ser a camareira de Drusilla: dama e arneses, e fugir desnudos:
89 a camareira que com ela presa 95 tal qual o lobo que regressa ao ninho
foi por Tanacro, o raptor, como eu disse, carregando a presa, e, quando já se crê
e a quem foi depois confiada a empresa bem seguro, o caçador no caminho
daquele veneno de efeito infelice. com seus cães atravessar-se-lhe vê;
À igreja não fora, por certeza alija a carga, e, onde vê que o vizinho
ou suspeita de quanto ali se visse; bosque escuro é mais espesso, apressa o pé.
tinha em tal tempo da vila fugido, Menos lestos não foram a escapar
indo para onde salva teria sido. do que foram os outros a atacar.
90 Tendo Marganor sabido, por espia, 96 Não só a dama e as armas deixaram,
que ela na Áustria estava refugiada, pois também deixaram muitas montadas;
de a ter na mão foi procurando a via, por ravinas e fossos se lançaram,
para a matar na fogueira ou enforcada; julgando assim dar mais largas passadas.
finalmente, a Avareza mal-sadia O que Ruggier e as damas apreciaram:
às prendas e à riqueza pressagiada três cavalgaduras foram levadas,
reagiu, e um barão, que a protegeu para as três carregar que, no dia anterior,
na sua terra, a Marganor a deu; os três corcéis encheram de suor.
91 mandou-lha sem rebuço até Constança35 ,
qual mercadoria, sobre uma besta,
bem atada e sem poder ter usança
da palavra, e metida numa cesta;
e agora esta hoste com ela avança,
por ordem daquele que tantos molesta,
trazida com a única intenção
de nela à sua raiva dar vazão.
92 Como o grande rio que em Monviso36 brota,
quanto mais corre em direcção ao mar,
e depois que o Lambro e o Ticino adopta,
e o Adda, e outros que água lhe vão dar,
mais altivo e impetuoso segue a rota,
assim Ruggiero, quanto mais culpar
ouve Marganor; e as damas também
contra ele sentem crescer o desdém.
CANTO XXXVII 599

97 E assim apressados seguem a estrada 10 1 Ao mesmo tempo a guerreira de França


para a infame e desapiedada vila. pica o seu corcel, e Ruggier se apresta,
A ir também a velha é convidada, justando com tal valor com a lança
para assistir à vingança de Drusilla. que seis, sem ter de riste tirado esta,
Ela, que teme ali ser maltratada, matou de seguida: um ferido na pança,
recusa em vão, chora, grita e quezila; dois no peito, um no pescoço, um na testa;
à força, Ruggier a monta na popa no sexto, que fugia, a hasta partiu:
do bom Frontino, e com ela galopa. nas costas lhe entrou, no peito saiu.
98 Por fim chegaram onde se avistava 102 Bradamante, entretanto, em quantos toca
um burgo com muitas casas e grosso, com a lança de ouro, quantos aterra:
que por nenhum lado o passo atalhava, parece um raio que do céu derroca,
pois muro não tinha em torno nem fosso. e o que encontra estilhaça e lança à terra.
No centro um penhasco, que sustentava Foge o povo, ou para o castelo na roca,
uma grande fortaleza no dosso. ou para os campos, e há também quem se encerra
Para lá seguiram com ânimo afoito, na sua própria casa ou na igreja;
sabendo ser de Marganor o coito. além dos mortos, não há quem se veja.
99 Quando ao burgo chegam, alguns infantes 103 Marfisa Marganor tinha amarrado,
que encontram, montando guarda à entrada, tendo as mãos no seu lado posterior;
a porta atrás lhes fecham, e em instantes e à serva de Drusilla o tinha dado,
vêem a outra saída encerrada; que exulta ao ter da desforra o sabor.
e surge Marganor, que traz bastantes Falou em deitar fogo ao povoado,
a cavalo e a pé, tudo gente armada; se não se arrepender do seu error:
em palavras breves, mas com desdém, que a lei de Marganor seja abolida,
expõe o uso que a sua terra tem. e aceite a que ela ali quer estabelecida.
100 Marfisa, que já trazia composta, 104 Obter tal coisa não lhe deu fadiga;
com Bradamante e Ruggier, toda a cousa, que o povo, além do medo que sentia
carrega contra ele como resposta; que Marfisa mais faça do que diga,
e, como era robusta e valorosa, pois matar toda a gente e queimar queria,
sem que enriste a lança, ou que seja posta de Marganor, de facto, era inimiga,
em uso aquela espada tão famosa, e da sua lei cruel e não sadia.
a punho, a jeito o elmo lhe martela: Faz o povo o que a maioria tece:
fê-lo ficar sem sentidos na sela. a quem mais odeia mais obedece.
105 E, porque a desconfiança todos mine,
o parecer pessoal não é revelado,
e deixam que ele um expulse, outro elimine,
seja um de bens, outro de honor privado.
Mas se aqui se cala, no Céu retine,
até Deus ser à vingança chamado;
a qual, inda que tarde a vir, compensa
a demora com punição imensa.
106 Agora a turba, de ira e de ódio prenha,
com acções e intrigas vingança aspira;
como o provérbio: todos fazem lenha
da árvore que o vento ao chão atira.
Que de Marganor exemplo aos reis venha,
pois quem mal age, mal por fim inspira.
Vê-lo por seus crimes punido ser,
dava, a pequenos e grandes, prazer.
600 ORLANDO FURIOSO

1 07 Muitos de quem mulheres, irmãs sofreram, 111 assim Marganor fez tremer em torno,
ou filhas, ou mães, dele iníqua sorte, em toda a parte onde se ouvisse o nome;
o rebelde ânimo mais não esconderam, ora chegou quem lhe partiu o corno
correndo para com a mão dar-lhe a morte; do orgulho, e tanto as forças lhe come
a custo de o fazer os contiveram que um garoto pode dar-lhe transtorno,
as nobres guerreiras e Ruggier forte, e, quem quer, barba e crinas lhe consome.
que planearam fazê-lo morrer Ruggier com as damas já se dirigia
de forma a míngua e martírio sofrer. para o castelo, encimando a penedia.
1 0s Àquela velha, que o odiava quanto 1 1 2 Sem resistência este lhes foi franqueado
uma mulher inimigo odiar possa, por quem lá estava, e os arneses guerreiros;
o deram desnudo, e amarrado tanto parte foi saqueada, e o resto foi dado
que soltá-lo seria faina grossa; a Ullania e aos lesados companheiros.
e ela, para nele vingar o seu pranto, O escudo de ouro ali foi encontrado,
de sangue por todo o corpo o empoça e os três reis, do tirano prisioneiros,
com um agudo aguilhão, que um vilão que aqui chegaram, como tenho fé
que ali encontrou lhe meteu na mão. de ter dito, desarmados e a pé37 ;
109 A mensageira e suas aias também, 1 1 3 porque desde que os fez cair da sela
que não irão da vergonha olvidar-se, Bradamante, estavam comprometidos
de mãos caídas não ficam, e aquém a ir a pé, sem armas, com a donzela
da velha, querendo igualmente vingar-se; que tinha vindo de distantes lidos.
inda o desejo de o ferir se mantém, Não sei se melhor ou pior foi para ela,
quando sentem suas forças esgotar-se: não virem de armaduras guarnecidos.
uma pedradas dá, a outra unhadas, Melhor seria ter deles defesa;
outra morde-o, outra dá-lhe picadas. mas bem pior, se perdessem a empresa;
1 10 Qual torrente que se torne impetuosa 1 14 pois teria, como todas lá idas
pela longa chuva ou pela neve desfeita, levando escolta armada, a mesma sorte:
e dos montes arraste, fragorosa, ao túmulo dos irmãos conduzidas,
árvores, pedras, e a terra e a colheita; e a eles sacrificadas, com a morte.
mas chega o tempo em que a face orgulhosa Mostrar as partes feias, proibidas,
se apaga, e tanto a força se assujeita sempre era, do que morrer, menos forte;
que a pode atravessar mulher ou puto, desculpa para tais opróbrios reforça
quantas vezes até a pé enxuto; o poder-se dizer que foi pela força.
1 1 5 As guerreiras, antes de haver partido,
obrigam aquele povo ao juramento
de às mulheres ser pelos homens transmitido,
da cidade e do resto, o regimento;
será com penas severas punido
quem de infringir tiver atrevimento.
Em suma, o que é do homem noutro lado
ser da mulher aqui é deliberado.
1 1 6 Fizeram também prometer que a quantos
aqui viessem não acolheriam,
a cavalo ou a pé, doutros recantos,
nem sob o seu tecto os receberiam,
se por Deus não jurassem, e pelos santos,
ou melhores juramentos, se os sabiam,
que das mulheres seriam sempre amigos,
e inimigos dos seus inimigos;
CANTO XXXVII 60 1

1 17 e se a tiverem, ou se acaso estão, 1 20 Ali demoraram, até Marfisa


mais tarde ou mais cedo, para ter mulher, ter a sua lei escrita na coluna,
que delas sempre súbditos serão, oposta à outra que ali estava incisa,
devendo-lhes em tudo obedecer. para que morte e vergonha as mulheres puna.
Marfisa, este ano e antes da estação Com a da Islândia aqui se finaliza
em que a folha cai, iria aparecer; a junção, para que de vestes se muna;
e, se a lei em uso não encontrasse, que vergonha acha aparecer na corte,
fogo e ruína aquele burgo esperasse. sem vestir-se e ornar-se da antiga sorte.
1 1s Dali não partiram sem do imundo 121 Ullania ali ficou, e Marganor
lugar que a tinha, Drusilla depor, em seu poder; e decide ela um dia,
e junto do seu marido, segundo não fosse ele aos nós e laços fim pôr,
era possível, ricamente pôr. e às donzelas dar de novo agonia,
Punha a velha entretanto rubicundo, mandá-lo saltar da torre maior;
com o aguilhão, o dorso a Marganor; maior salto na vida não daria.
só lamentava não ter resistência, Dela e dos seus ouvir mais não esperai,
para poder não dar trégua à penitência. mas sim do grupo que para Arles vai.
1 19 As bravas guerreiras viram ao lado 1 22 Todo aquele dia, e o outro até perto
de uma igreja uma coluna na praça, da hora terça38 andaram; nessa altura,
na qual o tirano desapiedado chegados ao caminho em dois aberto
mandara escrever a sua lei devassa. (do campo cristão e Arles cesura),
Tendo a forma dum troféu imitado, abraçam-se os amantes no aperto
o escudo lhe fixaram e a couraça da despedida, sempre amarga e dura.
de Marganor, e o elmo; e ali escreveram As damas foram para o campo e Ruggiero
a nova lei que ao lugar impuseram. para Arles; e o canto aqui findar quero.

NOTAS

1 Harpdlice:· cf. nota a XX: 1: 5. 7
Em toda [. .. } coma: em toda a parte onde brilha o Sol,
de Oriente (Índias) a Ocidente (os Jardins das Hespérides,
2 Tómiris: rainha da Cítia que matou em combate
situados numa ilha no extremo ocidental da Terra).
Ciro II, o Grande, rei da Pérsia (séc. VI a. C.).
8 Marullo [. . .] cerra: escritores contemporâneos de
3 A Turno [. ..] acudiu: referência às heroínas Camila Ariosto que louvaram as mulheres nas suas obras. Michele
(cf. nota a XX: 1 :5) e Pentesileia (cf. nota a XXVI:8 1:7). Marullo, poeta, grego de nascimento. Giovanni Pontano,
poeta, secretário de Fernando I de Aragão. Tito Vespasiano
4 Quem [. .. ] mar: Dido, lendária rainha de Cartago,
Strozzi, poeta da corte de Ercole I d'Este, e seu filho, Ercole
cidade que fundou depois de atravessar o mar desde Strozzi, poeta e dramaturgo. Pietro Bembo, autor da pri­
Tiro, na Fenícia, acompanhada por tírios e sidónios des­ meira gramática do vulgar, difusor do petrarquismo e teo­
contentes. rizador do toscano de Trezentos como modelo da língua
literária italiana. Bernardo Cappello, homem de letras
5 Zenóbia: rainha de Palmira de 267 a 272, conquis­ veneziano. Baldessare Castiglione, escritor, político e diplo­
tou o Egipto, a Síria e grande parte da Ásia Menor, mata, núncio apostólico em Madrid, escreveu II Libro dei
declarando-se independente dos Romanos. Cortegiano (formador de cortesãos). Luigi Alamanni, poeta
florentino, autor do poema didascálico La coltivazione.
6
Rainha [. .. ] possuiu: Semíramis, lendária rainha-guer­ Luigi Gonzaga da Gazzolo e, talvez, Luigi Gonzaga (dois
reira que construiu os jardins suspensos de Babilónia. que [. .. } cerra), homens de armas e de letras pertencentes
Historicamente, é associada à rainha Sammuramat da à família que governou Mântua, cidade banhada pelo
Assíria (séc. IX a. C.) . Mincio (Menzo) .
602 ORLANDO FURIOSO

9
Parnaso[. . .] Cinto: Parnaso, o monte grego habitado dos. Laodamia era mulher de Protesilau, primeiro herói
pelas musas e por Apolo, e Cinto, o monte da ilha de grego a morrer diante de Tróia. A mulher de Marco
Delas em que Apolo nasceu. J únio Bruto, um dos assassinos de César, era Prócia.
Árria era mulher de Cecina Peto, condenado à morte por
10
!sabe/la: Isabella, filha de Vespasiano Colonna, casou conspirar contra o imperador Cláudio. Argia era mulher
com Luigi Gonzaga da Gazzolo contra a vontade do de Polinices, filho de Édipo, morto em batalha por seu
papa Clemente VII. irmão Etéocles, que ele matou ao mesmo tempo. Evadne
era filha de ffis e irmã de Etéocles, um dos sete reis que
11
Para ele [. . .] coluna: jogo de palavras com o nome atacaram Tebas.
Colonna, apelido de Isabella.
24
O que [. . .} Inferno: o rio Estige, que dá nove voltas
12
Novos [. . .] Oglio: enriquece Gazzolo (junto ao no ao Inferno.
Oglio) , nos campos militar e literário.
25 Se [. .. } havia: se Alexandre Magno (o macedónio)
13 Rio [. . .] invejada: o Mincio, que banha Mântua.
invejava a glória que Homero deu a Aquiles nos seus
Talvez aluda aos poetas da corte de Mântua, que inveja­ poemas.
riam os seus poemas, ou mesmo a Vergílio, que nasceu
nessa cidade. 26 Do cipreste [. .. } impedido: antes de Atlante se calar,
não conseguira arrancá-la.
14
Para além [. .. } dilecto: outros poetas que louvaram as
mulheres. Ercole Bentivoglio, poeta de Ferrara, sobrinho 27
O filho [. . .] construída: Erictónio, nascido de uma
de Alfonso I d'Este. Renato Trivulzio, poeta milanês. paixão de Vulcano por Atena (Palas) . Ao ser repelido
Francesco Guidetti, homem de letras florentino. Francesco por ela, o seu sémen caiu na terra, de onde a criança
Maria Molza, poeta de Modena, autor de poesia amorosa brotou. Atena criava-o em segredo e deu-o a guardar a
(de Febo dilecto) . Todos foram amigos de Ariosto. Aglauro, que, movida pela curiosidade, inspeccionou a
cesta em que o menino se encontrava, descobrindo que
1 5 Duque[. .. } duque: Ercole li d'Este, filho de Alfonso
a parte inferior do seu corpo era uma serpente. Foi
d'Este (meu duque) e de Lucrezia Borgia; casado com transformada em pedra pela deusa, como castigo da sua
Renata de França, era duque de Chartres e tinha fama de curiosidade. Atribui-se a Erictónio a invenção da qua­
bom versejador. driga, como forma de, nela sentado, esconder a parte
inferior do corpo.
16
Senhor do Vasto: Alfonso d'Avalos, marquês de Vasto
(cf. xv:28:3), que também versejava. 28
Nos jardins [. .. } Primavera: Pesta, cidade da Magna
Grécia, famosa pelos seus roseirais.
17
Fonte de Hipocrene: Hipocrene, ou Fonte do Cavalo,
era uma nascente no monte Hélicon, na Beócia (Grécia), 29
Ullania[. .. } hora: cf. XXXII:50-5 1 .
produzida pelo embate do casco do cavalo Pégaso. Junto
30
à fonte reuniam-se as Musas, e a sua água favorecia a ins­ Dois rostos viris: talvez Ariosto queira dizer que exis­
piração poética. tia apenas um rosto (mas oculto) . Quando as mulheres
de Lemnos mataram todos os homens da ilha, por mal­
18 Febo [. .. } irmã: Diana, personificação da Lua na mi­
dição de Afrodite, Hipsípile poupou a vida do pai, Toas.
tologia romana. Escondeu-o no templo de Dioniso, e mais tarde ajudou­
-o a fugir por mar.
1 9 Vittoria: Vittoria Colonna ( 1 492- 1 547), filha de
Fabrizio Colonna e mulher de Francesco d'Avalos, mar­ 3 1 Tinha porto: estava ancorado.
quês de Pescara, foi poetisa eminente e amiga de artistas,
em especial de Miguel Ângelo. 32
Cândia: cidade grega na costa norte de Creta.
2° Foi nada[. . .} adiante: desde que nasceu rodeada das 33 Como lhe convém: como convém à condição nobre
vitórias paternas e, depois, das do marido. de Olindro.
21
Artemísia: rainha de Halicarnasso, esposa de 34 Um tiro de mão: um arremesso de pedra.
Mausolo. Após a morte deste (35 1 a. C.) mandou erigir­
lhe o magnífico mausoléu, considerado uma das «sete 35
Constança: cidade alemã, nas margens do lago do
maravilhas do mundo». mesmo nome, junto à fronteira com a Suíça.
22 36
Maior [. .. } enterrd-lo: maior que Artemísia, pois não Monviso: monte piemontês onde nasce o Pó.
se limitou a dar-lhe condigna sepultura: imortalizou-o
37
nos seus versos. Como[. . .] pé: cf. XXXIII:75-76.
23 38
Laodamia [. ..} sepultadas: figuras mitológicas e históricas Hora terça: hora canónica de ofício divino, cerca das
de mulheres que se suicidaram ao saber da morte dos mari- 9 da manhã.
--- ....
·-·- :.. ------:-- . --·-


CANTO XXXVIII

Corteses damas, que bondosa audiência


dais a meus versos, vejo no semblante
vosso que mais esta forçada ausência
entre Ruggiero e a fiel amante
vos aborrece, e a vossa displicência
pouco menor é que a de Bradamantc;
e deve pouca, fareis dedução,
nele existir amorosa paixão.
2 Se por outro motivo distanciado
contra a vontade dela se tivesse,
inda que por ter mais riqueza esperado
que Creso ou Crasso1 acumulado houvesse,
também eu creria que penetrado
o dardo não tinha o coração desse;
que um almo gáudio, um tal contentamento,
não o pode comprar ouro ou argento.
3 Mas para salvar o honor, não é somente
digno de desculpa, mas de louvor;
digo salvar, pois, se diversamente
fizesse, era vergonha e desonor;
e, caso a dama fosse renitente
e o impedisse de ser cumpridor,
de si daria indício e sinal claro
de o amar pouco ou ter o engenho raro.
604 ORLANDO FURIOSO

4 Pois se o amante do amado deve 10 Foram ao rei Carlos apresentar-se.


amar a vida mais que a sua, ou tanto Foi a primeira vez (escreve Turpino)
(eu falo dum amante a quem não leve que Marfisa foi vista a ajoelhar-se;
dardo de Amor passou além do manto), só lhe pareceu ao filho de Pepino
que acima do prazer que tem eleve tal obséquio de sua parte ajustar-se,
o honor do amado, tendo em vista quanto dentre os que viu, no povo sarracino
o honor é mais precioso do que a vida, ou no cristão, reis ou imperadores,
que entre todos os prazeres é preferida. por virtude ou riqueza superiores.
s Fez Ruggiero o que devia ao seguir 11 Carlos benignamente a acolheu,
o seu senhor, do qual não se podia, saindo, para tal, dos seus pavilhões;
a não ser com desonra, despartir, a seu lado sentá-la pretendeu,
pois para deixá-lo razão não havia. acima de reis, príncipes, barões.
E, se Almonte seu pai fez sucumbir, Despediu quem ali permaneceu;
tal culpa a Agramante não cabia; poucos ficaram mas bons: os campeões
o qual com Ruggier, de modos variados, de Carlos e os senhores com primazia;
emendara os erros dos seus passados. toda a reles gentalha se excluía.
6 Faz Ruggiero o que deve ao regressar 12 Marfisa começou com cortês voz:
ao seu senhor; e ela também o fez, - Excelso, egrégio, e glorioso Augusto3 ,
por não ter querido obrigá-lo a ficar, que do mar Índico à tiríntia foz4,
e podia, rogando muita vez. do alvo cita ao etíope adusto,
Pode Ruggiero a dama contentar a cândida cruz defendes feroz,
noutra ocasião, se ora a não satisfez; que tu, não reina mais sábio e mais justo;
mas o honor, quem lhe falta um momento, tua fama, que limite não cerra,
não o satisfaz num ano ou num cento. aqui me trouxe da mais extrema terra.
7 Torna a Arles Ruggier, onde reunira 13 Para ser-te sincera, o que aqui me trouxe
Agramante o resto que tem em França2 • foi inveja, e para te guerrear vim,
Bradamante e Marfisa, a quem unira para que tão poderoso rei não fosse
pelo parentesco uma grande amigança, contrário à religião de que provim.
foram para onde Carlos conseguira Por isso, por mim, o campo pintou-se
a maior prova da sua possança, de sangue cristão; e indício afim
na esperança de, por batalha ou assédio, queria dar-te, como cruel imiga,
de França expulsar um tão longo tédio. mas conheci quem me fez tua amiga.
s Ao ser Bradamante reconhecida 14 Quando a hoste arruinar-te pretendi,
no campo, originou júbilo e festa: soube (como foi, depois te elucido)
por todos é saudada e aplaudida, que de Ruggiero de Risa5 nasci,
e ela a um e outro inclina a testa. que por seu malvado irmão foi traído.
Rinaldo, ao ser sua vinda conhecida, No ventre de minha mãe eu segui
vai-lhe ao encontro; e Ricciardo se apresta, para lá do mar, tendo em revés nascido.
e Ricciardetto, e outros da sua gente, Sete anos fui por um mago criada,
a acolhê-la mui alegremente. e pelos Árabes depois fui roubada.
9 Ao ouvir-se depois que a acompanha 15 Na Pérsia me venderam como escrava
Marfisa, que em armas é tão famosa a um rei, ao qual crescida dei morte:
que desde o Catai aos confins de Espanha tirar-me a virgindade procurava.
de mil nobres troféus era gloriosa, Matei-o e igualmente toda a corte;
quer pobre quer rico, toda a campanha corri com a sua progénie prava,
deixa as tendas: a turba desejosa e tomei o reino; e tive tal sorte
ali acorre, a premer e empurrar, que dezoito anos e um mês não passei,
só para ver junto aquele tão belo par. ou dois, e outros sete reinos tomei.
CANTO ·XXXVIII 605

16 Mas como inveja de ti me consome, 1s E disse-lhe querer-se cristã tornar,


como te disse, almejo com fervor e, quando houver morto o rei Agramante,
apagar a grandeza do teu nome: com licença de Carlos regressar,
talvez pudesse, ou talvez fosse errar. para baptizar seu reino no Levante;
Ora é possível que a vontade dome, contra todo o mundo queria lutar,
e que extinga as chamas do meu furor, onde Maomé se adore e Trivigante;
por entender, estando em proximidade, prometendo que todo o seu adquisto
como eu e tu temos afinidade. será do Império6 e da fé de Cristo.
17 Como meu pai foi teu parente e servo, 19 O imperador, não menos eloquente
parente e serva tua me apelido; sendo do que era sábio e valoroso,
e aquela inveja e o ódio protervo muito louvou a donzela excelente,
que em tempos tive por ti ora olvido; e seu pai, e seu sangue tão famoso,
aliás, a Agramante ora o reservo, e a tudo respondeu mui cortesmente,
ou outro que parente tenha sido mostrando o seu ânimo generoso;
do pai e do tio, que foram culpados e a última palavra que partilha
de meus pais à morte serem levados. - é para aceitá-la por parente e filha.
606 ORLANDO FURIOSO

20 E aqui levanta-se e de novo a abraça, 21 Longo era contar-vos como repleto


e como sua filha beija-a na fronte. de alegria Guidon estava de vê-la,
Com rosto alegre chegam-se os da raça e Aquilante, Grifone e Sansonetto8 ,
de Mongrana, e também de Claramonte7 • que à cidade cruel9 foram com ela;
Longo era contar quanto honor lhe faça Malagigi, Viviano e Ricciardetto,
Rinaldo, que o valor dela defronte que aos de Mogúncia deram estropiadela
tantas vezes vira quando em batalha, e àqueles ímpios vendedores de Espanha,
no cerco a Albracca e sua muralha. tendo nela tido fiel companha10 •
CANTO XXXVIII 607

22 Para o dia seguinte foi combinado 2s não só lhe cedeu os que requereu
(Carlos encarregou-se com altruísmo) para mover guerra ao reino de Bizerta,
ser um lugar ricamente adornado, como mais cem mil ainda lhe deu,
para Marfisa receber o baptismo. e da sua pessoa fez oferta.
Os bispos, o alto clero foi chamado, A custo a gente, que a pé apareceu,
que as regras sabiam do cristianismo, cabia toda na planície aberta;
para que por eles, em toda a medida, tem o país de cavalos inópia,
sobre a fé fosse Marfisa instruída. mas de elefantes e camelos cópia.
23 Veio em seu hábito pontifical 29 Na noite antes do dia em que ao destino
o arcebispo Turpino11 e baptizou-a; o exército da Núbia ir previra,
rei Carlos, junto à pia baptismal, montando o hipogrifo, o paladino
com as cerimónias devidas, levou-a. à pressa para norte se dirigira,
Mas tempo é que a cabeça sem sinal e chegou ao monte que o nordestino
de senso aquela ampola torne boa, vento produz, que contra a Ursa expira 1 7 •
que traz do céu mais baixo12 , em etéreas vias, Achou a gruta onde, por estreita boca,
o duque Astolfo no carro de Elias. quando ele acorda, em fúria desemboca.
24 Descera Astolfo, do disco luzente, 30 E como lhe recordara o seu mestre,
à altura maior que tem a Terra13 , um odre vazio levara o piloto,
com a salutar ampola que a mente que, enquanto no antro escuro e alpestre
devia curar ao mestre de guerra14 • exausto dorme o agressivo Noto18 ,
Uma erva, em virtudes mui excelente, à entrada ajeita, para que o sequestre:
mostra João 1 5 ao duque de Inglaterra: tanto o ardil ao vento foi ignoto
com ela quer que no regresso toque que, quando de manhã sair pensava,
Senapo, e a cura dos olhos provoque, dentro do odre fechado ficava.
25 para que por estes e anteriores consertos, 31 Alegre o paladim com tal captura,
para atacar Bizerta16 lhe dê gentalha. à Núbia volta e, com a mesma luz 19 ,
E como há-de estes povos inexpertos põe-se a caminho com a gente escura,
armar e preparar para a batalha, e vitualhas consigo conduz.
e sem moléstia atravessar desertos, Com sua hoste completa e segura,
onde a areia os homens atrapalha, direito ao Atlas o duque de truz
ponto por ponto, toda a disciplina caminha, por entre a minuta areia;
o velho santíssimo ao duque ensina. que o vento os incomode não receia.
26 Depois mandou-o montar no alado
que foi de Ruggier, e primeiro de Atlante.
--
��ê�:iq��Si
Deixou o paladim, recomendado
por São João, aquele sítio edificante;
-::.-=- · ·
e, acompanhando o Nilo sempre ao lado,
depressa a Núbia lhe surgiu diante;
na sua cidade maior pousou,
e logo Senapo reencontrou.
27 Foi o gáudio grande e muita a alegria
que trouxe àquele senhor no seu regresso;
inda se lembrava que da agonia
das Harpias o livrou com sucesso.
Mas quando à crosta que o olho cobria
e a luz roubava lhe dá desempeço,
e a visão antiga se reanima,
qual deus o venera, adora e sublima:
608 ORLANDO FURIOSO

32 Passado o Atlas chega a uma parte 34 com vibrantes nitridos, pelas descidas
em que se avista o plano e a marina; vêm saltando, e chegadas ao plano
Astolfo escolhe a mais distinta parte dão à grupa, em cavalos convertidas,
das tropas, e a que mais tem disciplina; um baio, outro rodado, outro ruano.
e a intervalos, em grupos a parte, As tropas, que no vale recolhidas
onde um monte com o plano confina. estavam, deitam-lhes a mão com afano:
Deixa-os ali, e àquele monte ascende, dentro em pouco todos foram montados,
com ar de quem grandes coisas entende. pois com sela e com freio foram nados.
33 Depois, pondo-se de joelhos, tece 35 Oitenta mil, cento e dois transformou
ao santo que é seu mestre uma oração; num dia de peões em cavaleiros.
certo de que ele ouviu a sua prece, Com eles toda a África saqueou,
cópia de pedras faz cair para o chão. fazendo roubo, incêndio, prisioneiros.
Oh, quanto a quem crê em Cristo se oferece!· O rei de Fez, Agramante, deixou
As pedras, fora de toda a razão o dos Algazeres e Branzardo20 , olheiras,
crescendo, para baixo abriam caminho, enquanto estivesse em solo francês;
com ventre, pernas, pescoço e focinho; os quais se opuseram ao duque inglês;
CANTO XXXVIII 609

36 primeiro enviaram uma subtil nave 42 - Seja bem ou mal que a Fama transporte,
que à vela e remos deixou o areal, senhor, de acrescentar tem sempre usança.
para Agramante avisar do assalto insuave Não se dará, pois, que eu me desconforte,
do rei núbio, causando ultraje e mal. ou que encare o dever com mais temperança,
Dia e noite a nave andou sem entrave, por maus ou bons casos que traga a sorte:
até chegar à costa provençal; a par sentirei que temor e esperança
em Arles o achou quase assediado, devam ser menores, não da dimensão
com Carlos só uma milha afastado. com que outras línguas notícia nos dão.
37 Vendo Agramante que em tão grande perigo, 43 E farei sempre tanto menos fé
para conquistar o reino de Pepino quanto mais do verosímil se afasta.
deixava o seu, fez reunir consigo Ora, se é verosímil bem se vê,
chefes e reis do povo sarracino. que tenha vindo, com gente tão vasta,
Em volta girou seu olhar mendigo, pôr na belicosa África21 o pé
e depois a Marsilio e a Sobrino, esse rei, de distância tão nefasta,
que mais que outro qualquer que ali se visse pela mesma areia à qual mandou Cambises22
eram velhos e sábios, assim disse: seu povo, sob auspícios infelizes.
3s - Embora eu bem saiba que não convém 44 Crerei que os Árabes tenham descido
a um capitão dizer: não pensei, das montanhas, feito destruição
porém digo; pois, quando um dano vem e saqueado, homens morto e prendido,
fora da previsão da humana grei, onde acharam menos oposição;
parece que o erro desculpa tem; e que Branzardo, que foi estabelecido
aqui se inclui o meu caso; eu errei: lugar-tenente do rei da nação,
deixei África de armas desprovida, em vez de dezenas escreva milhares,
se pelos Núbios ia ser agredida. para melhor na desculpa acreditares.
39 Mas quem pensaria, Deus excluído, 45 Admitamos que são os Núbios, tendo
para quem não há coisa futura ignota, talvez do céu por milagre chovido,
que viria em bando descomedido, ou nas nuvens se vieram escondendo:
para nos assolar, gente tão remota? jamais se viu por terra terem ido.
Entre nós existe instável tecido Que tal gente África roube temendo
de areia, que o vento sempre alvorota. estás, se de ajuda a não houveres provido?
Contudo, veio assediar Bizerta, Pouco valia a tua guarnição,
e parte de África tornou deserta. se receasse um povo tão poltrão.
4o Vosso conselho peço a tal respeito: 46 Mas se mandares, poucas, embarcações,
se devo ir-me daqui sem ter fruído, só para se avistarem tuas bandeiras,
ou nossa empresa seguir, de tal jeito não cortaram aqui amarrações,
que à prisão Carlos seja conduzido; já eles fogem para as suas fronteiras;
ou como, lá, nosso reino endireito, sejam núbios ou árabes vilões,
deixando, aqui, o império destruído. foi por estares aqui em lides guerreiras,
Se algum de vós souber, peço não cale, separado pelo mar da tua terra,
para ver o que é melhor, e fazer tal. - que se atreveram a mover-te guerra.
41 Assim disse Agramante; e logo olhou 47 E do sobrinho de Carlos a ausência
o rei de Espanha, a seu lado sentado, aproveita, para dar retaliação;
mostrando querer que, sobre o que falou, pois Orlando não estando, resistência
lhe seja por ele o conselho dado. nenhum te opõe na imiga facção.
Fez este a vénia, os joelhos içou, Se perdes, por cegueira ou negligência,
como a cabeça, que tinha inclinado, a vitória honrosa que tens à mão,
e ao seu honroso trono recolheu; vira-te a calva a que ora a crina esboça23 ,
e à língua as seguintes palavras deu: com muito dano e grande infâmia nossa. -
610 ORLANDO FURIOSO

48 Com tais palavras pretende habilmente 54 Orlando aqui não estar, ajuda; onde
o hispano persuadir, no concílio, poucos somos, nenhum, talvez, haveria.
a não sair de França aquela gente, Mas lá por isso o perigo não se esconde,
sem Carlos ser mandado para o exílio. apenas nossa má sorte se adia.
O rei Sobrino, que viu claramente Há Rinaldo, que provas deu avonde
onde queria chegar o rei Marsilio, de não ter que ele menos valentia;
que mais no próprio interesse assim falou, há os seus parentes, e os paladinos,
que no de todos, então retrucou: temor eterno para nós, Sarracinos.
49 - Quando eu te aconselhava a estar em paz, 55 Têm também aquele segundo Marte
tivesse eu lido mal o teu destino; (por meu mal, o inimigo estou gabando);
ou tivesses tu, se é que fui veraz, falo do valoroso Brandimarte,
acreditado no fiel Sobrino, em tudo não menos forte que Orlando;
�m vez de mais em Rodomonte audaz, sua virtude comprovei em parte,
em Marbalusto, Alzirdo e Martasino, parte à custa dos outros vou julgando.
que gostava agora de ter defronte; Há muito que Orlando está ausentado,
mas, mais que os outros, queria Rodomonte, e mais temos perdido que ganhado.
50 para pôr-lhe em cara que queria da França 56 Se até aqui temos perdido, temo
fazer o que a frágil vidro faria, daqui para a frente um dano inda mais grosso.
e que ao Céu ou Inferno tua lança Mandricardo já não serve o muslemo24 ,
acompanhava, de perto a seguia; Gradasso afastou-se do campo nosso25;
quando faz falta, está coçando a pança, Marfisa deixou-nos no ponto extremo,
na indolência odiosa e sombria; como o rei de Argel, de quem dizer posso
e eu, que cobarde fui considerado que, se fosse fiel como galhardo,
por verdades prever, estou a teu lado; dispensava Gradasso ou Mandricardo.
51 e sempre estarei, até que esta prisca 57 Enquanto nós perdemos tal ajuda,
vida termine, de anos tão pesada, e milhares dos nossos tiveram morte,
mas que por ti cada dia se arrisca e mais ninguém de lá para cá se muda,
ante os de França de maior nomeada. nem nave chegará que algum transporte,
Nenhum terá a pretensão arisca Carlos quatro novos homens saúda,
de dizer que alguma acção fiz errada; como Orlando e Rinaldo, de igual sorte;
nem mais do que eu, ou nem tanto, alcançaram podes crer, pois daqui até ao Bactro26 ,
muitos que mais do que eu se vangloriaram. como eles não acharás outros quatro.
52 Falo assim, para demonstrar que o que então 58 Guidon Selvaggio não sabes quem seja,
te disse, e quero agora repetir, e Sansonetto, e os filhos de Oliviero?
não vem de vil nem falso coração, Mais respeito e temo estes em peleja
mas de amor vero e de fiel servir. que outro guerreiro deles forte e fero,
Eu te aconselho que à pátria nação, que da Alemanha ou de outra língua veja
o mais breve que possas, queiras ir; vir Carlos proteger de nós com esmero;
pois pouco sábio se diz que é aquele mas importa também a nova tropa
que o seu perde, querendo o que não é dele. que, para nosso mal, no campo galopa.
53 Se ganho há, tu sabes. Trinta e dois 59 Quantas vezes fores lutar na campanha,
reis teus vassalos deixaram o porto levarás a pior, serás vencido.
contigo; contando-os tempos depois, Se antes vencida foi África e Espanha,
há um terço, todo o resto está morto. que dezasseis para oito tinham sido,
Que outros mais não caiam, peço a Deus, pois, como será com Itália, Alemanha,
se queres prosseguir, sinto o desconforto e o povo anglo e escocês à França unido,
de em breve não restar um quarto, ou quinto; e que seis contra doze ora serão?
e o teu infeliz povo será extinto. Só desastre e dano se esperarão.
CANTO XXXVIII 611

60 Aqui homens perdes, e o reino lá, 66 Com este feliz acordo, igualmente
se te manténs nesta empresa obstinado; um exército e outro se alegrava;
mas, se ideia mudando, voltares, já que o grande esforço do corpo e da mente
o resto de nós salvas e o teu estado. todos cansara e a todos pesava.
Deixar Marsilio, indigno te será, Repousar da vida o remanescente,
que ingrato serias considerado; era o que cada um mais almejava;
mas tens remédio: faz com Carlos paz, todos maldiziam ira e furor
que a ele agradará, se a ti compraz. que os levaram à luta e ao rancor.
61 Mas se achas que melindra teu honor, 67 Rinaldo mui lisonjeado se vê,
paz pedir a quem ofensa te fez, que Carlos tal coisa, que tanto pesa,
e se à batalha atribuis mais valor, dentre tantos outros, a si a dê,
que, como até hoje correu, bem vês, e ledo se entrega à honrosa empresa.
tenta ao menos ser dela vencedor; Ruggier não estima, e na verdade crê
o que talvez suceda, se em mim crês: que contra si não possa ter defesa;
dá a empresa a um guerreiro fero, que seu par seja não está convencido,
e que outro não seja senão Ruggiero. embora Mandricardo haja extinguido.
62 Ambos sabemos que Ruggiero é tal 68 Por seu lado Ruggier, embora honrado
que de um para um, com as armas na mão, esteja por o seu rei o ter eleito,
não menos que Orlando ou Rinaldo vale, e melhor que todos ser considerado
ou qualquer outro cavaleiro cristão. para lhe confiar tão importante feito,
Mas se queres fazer guerra universal, no rosto mostra tristeza e enfado;
mesmo que valha mais do que um milhão, não porque o medo lhe turvasse o peito,
ele não será mais do que um somente, pois não só Rinaldo, nem recearia,
a enfrentar um exército de gente. se junto com Rinaldo Orlando ia;
63 Acho, se concordas, que dizer mandes
ao rei cristão que, para findar atritos,
e para acabar com o sangue que tu expandes
de alguns seus, e ele dos teus infinitos,
que ponha em campo um guerreiro seu dos grandes,
contra um dos teus de mais gabaritos;
e que façam esses dois toda a guerra,
até que um vença, e o outro vá a terra;
64 com contrato que aquele que perder faça
seu rei ao outro pagar vassalagem.
Julgo que esta condição satisfaça
Carlos, embora se encontre em vantagem.
A confiança em Ruggiero que em mim grassa,
que vencedor será, dá-me coragem;
e a razão está tanto da nossa parte
que ele venceria até contra Marte. -
65 Com tais e outras de eficaz efeito,
Sobrino convencê-lo conseguiu;
nesse dia foi o emissário eleito,
e a embaixada para Carlos seguiu.
Tinha Carlos tanto guerreiro perfeito
que a batalha por vencida inferiu,
da qual o encargo ao bom Rinaldo deu,
que era, após Orlando, o dilecto seu.
612 ORLANDO FURIOSO

69 mas porque sabe que é irmão daquela 75 Ou fosse acaso, ou fosse por lembrança
que é sua futura e cara consorte, do seu Malagigi29 sábio e prudente,
que escrevendo-lhe o estimula e martela, que sabe como Balisarda30 avança
como se houvesse havido injúria forte. e quanto às armas seu talho é nocente,
Se às velhas ofensas acresce aquela justar sem espada, como atrás se afiança,
de entrar em campo e dar-lhe ao irmão morte, entre os dois guerreiros ficou assente.
de amante, passará tanto a odiá-lo Junto às muralhas de Arles posição
que nunca mais poderá desculpá-lo. foi escolhida, em extenso terreno chão.
70 Se calado Ruggier se aflige e anseia, 76 Mal saía, da vigilante Aurora,
pela liça em que contrariado contende, da casa de Titono31 a cabeleira,
sua cara noiva chora e pranteia, parà dar, ao dia decidido e à hora
quando a notícia pouco após entende. fixada para a batalha, a luz primeira,
No peito bate, a crina despenteia, quando de cá e lá vieram fora
e a face inocente molha e ofende; os padrinhos, que em cada cabeceira
e a Ruggier chama ingrato e infiel, da paliçada os pavilhões ergueram,
queixando-se do destino cruel. e junto a eles dois altares puseram.
71 Seja qual for o fim da desavença, 77 Não muito depois, fileira a fileira,
dela só lhe poderá vir desgosto. viu-se sair o exército pagão.
Que Ruggier de morrer tenha sentença, No centro, armado e solene, enfileira
quando o pensa, o coração sente exposto. o rei de África em bárbaro estadão;
E se, para castigar mais de uma ofensa, num corcel baio de negra crineira,
Cristo o reino de França quer deposto, branca fronte, e manalvo em cada mão,
além de sofrer morte o seu irmão, a par com o rei, Ruggiero surgia,
sofrerá ela inda maior lesão: que Marsilio sem soberba servia.
n pois só podia com pejo e censura, 78 O elmo, que antes lhe custara tanto
e a inimizade da sua gente, tirar da cabeça ao rei da Tartária32 ,
do seu amado ir de novo à procura, esse elmo, celebrado em maior canto33 ,
se o facto se souber publicamente; que de Heitor é herança originária,
tal como noite e dia tanto augura, Marsilio lho traz, e estão flanco a flanco;
tendo esse desígnio fixo na mente; outros príncipes e nobreza vária
o compromisso entre eles era tal partilham de outras armas o tesouro,
que recuar e desistir pouco vale. ricas em gemas e forradas de ouro.
73 Mas aquela que já se habituou 79 Do outro lado, saiu dos hangares
a não faltar-lhe com fiel ajuda, rei Carlos, com sua força militar,
falo de Melissa, não suportou com a mesma disciplina e modos pares
ouvir seu pranto e sua queixa aguda; aos que teria se viesse lutar.
veio, confortou-a, e assegurou Rodeado vem de seus famosos pares;
que assistência miraculosa estuda Rinaldo, todo armado, vem-lhe a par;
para perturbar o próximo combate, outro o elmo traz, que foi de Mambrino34 :
que tanto a preocupa e a abate. Uggiero dinamarquês, paladino.
74 Rinaldo e Ruggiero, cada um estava 80 Duas achas: Namo, o duque, traz uma,
preparando armas para aquela tenção, e outra Salomão, rei da Bretanha.
a qual escolher ao cavaleiro tocava Carlos dum lado os seus todos arruma,
que do Romano Império era campeão27 ; do outro estão os de África e de Espanha.
e como ele, desde que lhe faltava No centro não se vê pessoa alguma,
o seu Baiardo28, sempre foi peão, vazio está grande espaço de campanha:
escolheu a pé, vestindo chapa e malha, quem o pisar tem, por lei que é igual,
com a acha e o punhal, a batalha. excepto os guerreiros, pena capital.
CANTO XXXVIII 613

81 Quando das armas a segunda eleita35 86 E igualmente com não baixa voz,
se deu ao campeão do povo pagão, Maomé por testemunha compromete;
dois sacerdotes, um de cada seita, no livro que o imã tem, a mão pôs,
apresentaram dois livros na mão. e tudo o que disse cumprir promete.
No que é nosso, está a vida perfeita Do campo saem em passo veloz,
de Cristo escrita; o outro é o Alcorão. e entre os seus um e outro se remete;
Com o do Evangelho fez-se avante depois, o par de campeões jurar vem,
o imperador; com o outro Agramante. e o juramento é isto que contém:
82 Carlos, chegado ao altar erigido 87 Ruggier promete que, se da tenção
pelos seus, em oração ergueu as palmas, o seu rei vem ou manda desviá-lo,
dizendo: - Ó Deus, à morte submetido não quer mais seu guerreiro ou seu barão
para dares a redenção às nossas almas; ser, e de Carlos se fará vassalo.
ó Senhora de valor desmedido, Jura Rinaldo que, se houver razão
que a Deus deste as humanas feições almas, para seu senhor querer daqui afastá-lo
nove meses em teu ventre ficando, antes dele ou Ruggier ser triunfante,
e a flor virginal salva conservando: passa a ser cavaleiro de Agramante.
83 sede testemunhas de que prometo, 88 Quando as cerimónias têm conclusão,
por mim e toda a minha sucessão, regressa cada um à sua parte;
ao rei Agramante e a todo o seu neto, nem muito esperam; logo as trompas dão
que após ele governe sua região, vibrante sinal ao temível Marte.
que por ano vinte somas36 remeto Os arrojados ao encontro vão,
de ouro, se for vencido o meu campeão; os passos com cuidado dando, e arte.
e que prometo trégua de imediato, E nisto vê-se começar o assalto,
dela fazendo perpétuo contrato; soar o ferro, e girar baixo ou alto.
84 e se eu faltar, de súbito se acenda 89 Ora a lâmina avança ora o martelo37 ,
uma cólera assustadora em vós, e ora à cabeça e ora aos pés conflui,
que a mim somente e meus filhos ofenda, de modo tão destro e ágil que, vê-lo,
e nenhum destes que está junto a nós; a crença no narrado diminui.
para que em breve tempo se compreenda Ruggier combate contra quem tem elo
que a esta promessa faltei, após. - de irmão com quem sua alma possui,
Sobre o Evangelho, enquanto falava, e atacava-o com tanto resguardo
Carlos a mão tinha e para o céu olhava. que foi tomado por pouco galhardo.
85 Erguem-se ora, e dirigem-se ao altar 90 Era mais a aparar que a ferir tendente,
os pagãos, mui ricamente adornado; e seu desejo nem ele sabia:
jurou Agramante que além do mar Rinaldo matar era inconveniente,
com seus homens seria regressado, porém ele morrer também não queria.
e a Carlos daria tributo par, Mas eis que ao fim chegar acho coerente,
se Ruggier ali fosse derrotado; pois diferir a história conviria.
e perpétua trégua entre eles haveria, No outro canto o resto sabereis,
com as condições que já Carlos queria. se acaso ouvir o outro canto quereis.
614 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 Creso ou Crasso: Creso, rei lídio entre 560 e 546 a. 21
África: Ariosto, como faziam os Romanos, identifica
C., ficou famoso pela sua incomensurável riqueza; África com a região norte do continente, desde o Atlân­
Marco Licínio Crasso (115-53 a. C.) formou, com César tico até Cartago. Como já vimos, designa as restantes
e Pompeu, o primeiro triunvirato. Tinha uma ambição regiões por Etiópia, Egipto, Núbia, etc.
extrema de poder e riqueza.
22
Cambises: Cambises II, rei da Pérsia de 529 a 522 a. C.,
2 O resto{..} França: as tropas que lhe restam em França. mandou o seu exército destruir o templo de Júpiter
Ámon, mas as tempestades de areia do deserto africano
3
Augusto: sinónimo de imperador. puseram um dramático fim à expedição, como os augú­
rios tinham previsto.
4 Tir{ntia faz: colunas de Hércules. O herói foi criado
23
em Tirinto, na Argólida. Vira-te{..] esboça: a Fortuna volta-te as costas (cf.
nota a XXX:35:5-6).
5
Risa: cf. nota a XXXVI:74:3.
24
Mandricardo {..} muslemo: porque foi morto por
6
Império: Império do Ocidente, de que Carlos Magno Ruggiero (cf. XXX:64).
era imperador (cf. nota a I:1:8).
25
Gradasso {..] nosso: faltando à palavra que dera a
7
Mongrana{..} Claramonte: cf. nota a XXXVI:75:5. Rinaldo, partiu com o cavalo Baiardo para o seu reino
no Oriente (cf. XXXIIl:95).
8
Samonetto: lapso de Ariosto. Sansonetto era prisio­
26
neiro de Rodomonte (cf. XXXV:53:1-4), tendo sido Bactro: rio da Pérsia, afluente do rio que hoje se
enviado para África (cf. XXXIX:30:6). chama Amu-Dária. Daqui até ao Bactro equivale a «do
Ocidente ao Oriente».
9
Cidade cruel: terra das mulheres homicidas (cf.
27
XIX:57 ss.). A qual{..} campeão: a escolha da arma para o duelo
cabia a Rinaldo, pois Ruggiero representava o desafiante.
10
Malagigi{..} companha: cf. XXVI:8 ss.
28
Faltava[..} Baiardo: levado indevidamente por Gradasso.
11
Turpino: cf. nota a XIII:40:2.
29 Seu Malagigi: seu primo Malagigi.
12 Céu mais baixo: o céu da Lua.
30
Balisarda: espada de Ruggiero, que era fadada.
13
Altura { ..} Terra: paraíso terrestre (cf. XXXIII:11 O),
31
onde Asrolfo já estivera na ida (cf. XXXIV:48:7-8 ss.). Titono: cf. nota a Xl:32:8.
14
Mestre de guerra: Orlando. 32
Rei da Tartdria: Mandricardo.
15 João: S. João Evangelista. 33
Celebrado {..} canto: celebrado na Ilíada, por Homero.
16 34
Bizerta: cf. nota a XVIII:158:2. Foi de Mambrino: cf. nota a 1:28:5.
17 35
Contra{..] expira: sopra para norte. Segunda eleita: punhal, cf. 74:8.
18
Noto: vento que sopra de sul para norte. 36 Somas: a soma era uma antiga medida de peso e de
capacidade.
19
Com a mesma luz: na mesma manhã.
37
Ora{..} martelo: a acha de armas era como um macha­
20
Rei{..} Branzardo: o rei de Fez é Polvo; o rei dos do, tendo um cabo de madeira e uma cabeça, que, de um
Algazeres é Bucifar; Branzardo é o rei de Bougie (na lado, era lâmina cortante e, do outro, como um martelo de
costa argelina). Já existiam no lnnamorato. secção quadrada.
-ê:'l[ir-­

CANTO XXXIX

A angústia de Ruggiero é realmente


mais que outra qualquer dura, amarga e forte;
faz trabalhar o corpo, e mais a mente,
pois de dois não pode um fugir à morte;
ou por Rinaldo, se menos potente
for que ele, ou, se mais, pela sua consorte:
se o irmão lhe mata, sabe que incorre
no seu ódio, que mais que morte aborre.
2 Rinaldo, que não tem tal desespero,
por todos os meios à vitória aspira:
dá com a acha, desdenhoso e fero;
tanto aos braços como à cabeça mira.
Volteando a sua acha, Ruggiero
apara o golpe, e daqui para ali gira;
e, se golpeia, a um lugar aponta
em que faça dano de pouca monta.
3 À maior parte dos senhores pagãos
parece mui desigual a peleja;
Ruggi�ro é moroso a mover as mãos,
Rinaldo muito mais que ele braceja.
Agramante, com ares pouco louçãos,
observa a luta, suspira e arqueja;
e acusa Sobrino que procedeu
dele o erro, pois mau conselho deu.
616 ORLANDO FURIOSO

4 Enquanto isto Melissa, que era fonte 5 Mandou um demo ir ter com Agramante,
de quanto saiba encantador ou mago, que triste estava, em forma de cavalo;
tinha alterado a feminina fronte, e, com voz grave e turvado semblante,
do rei de Argel assumindo a imago; disse: - Senhor, mas que enorme resvalo,
era no rosto e gestos Rodomonte, que um jovem inexperiente diante
e aparecia armada com pele de drago; de tão possante e tão famoso galo
igual escudo e igual espada no flanco, tenhas posto, para coisa de tal sorte
como ele, tinha; nada deixou em branco. que ao reino de África e sua honra importe.
CANTO XXXIX 617

6 Não deixes prosseguir esta batalha, s Ao verem, os dois campeões, perturbar-se,


da qual viria grande detrimento. e ser quebrado o acordo e a promessa,
Que Rodomonte a assuma, e esquece a falha sem mais um com o outro afadigar-se,
de ter quebrado acordo e juramento. qualquer injúria esquecendo depressa,
Mostre cada um como a espada talha: acordam nem cá nem lá embrulhar-se
estando eu aqui, cada um vale um cento. - enquanto a coisa não for mais expressa:
Tal influência teve em Agramante se foi o velho Carlos renunciante
que sem mais pensar ele se fez avante. ao acordo, ou o jovem Agramante.
7 O crer que tinha ali o rei de Argel 9 E a novos juramentos estão presentes,
fez que pouca importância desse ao pacto; de não ficar com quem faltou à fé.
mil cavaleiros que houvesse com ele Em confusão andam todas as gentes:
não lhe dariam estímulo tão grato. um o avança, outro retira o pé.
Logo lança baixar, picar corcel, Quem entre os vis está, quem entre os valentes,
se viu por todo o lado num só acto. no mesmo acto envolvido .se vê:
Melissa, assim que a batalha acendeu são todos igualmente a correr prestes,
com fictícias larvas, desapareceu. aqueles à frente, e atrás deles estes.
618 ORLANDO FURIOSO

10 Qual cão lebreiro que a fugace fera, 13 Tão perto uma da outra isto fizeram
em redor correndo e girando, mira, que uma da outra viram cada estouro;
quando ir com a matilha lhe aprouvera, mas afastaram-se, e a ferir se deram,
mas o caçador o retém; com ira onde a ira as levou, o povo mouro.
se atormenta, se aflige e desespera, Quem pode contar quantos se abateram,
e, ganindo, em vão se debate e estira; atirados para o chão pela lança de ouro?
assim esteve até ali contrariada Ou cada testa arrancada ou incisa
Marfisa nesse dia, e a cunhada. pela fulminante espada de Marfisa?
11 Até então, viram apetecidas 14 Como ao soprar dos ventos mais dementes,
e ricas presas em espaçoso chão; quando o Apenino mostra a costa herbosa 1 ,
e, de serem pelo acordo retidas a par vão duas violentas torrentes,
de as seguir e de lhes deitar a mão, mas logo uma da outra se desposa;
se tinham já queixado, consumidas, arrancam pedras, plantas eminentes
e muito tinham suspirado em vão. das margens altas, e nos vales pousa
Ao verem pacto e tréguas violados, terra e messe; como se indo, à porfia,
saltam sobre os africanos soldados. ver qual mais danos faz na sua via;
12 Marfisa enterrou a hasta no peito 1s assim as duas excelentes guerreiras,
do primeiro, e duas braças saía; correndo o campo por diversa estrada,
puxou da espada e num ápice, a eito grande dano dão às mouras fileiras,
quatro elmos quebrou: vidro parecia. com hasta uma, a outra com a espada.
Bradamante não fez menor efeito, Agramante agrupa junto às bandeiras
mas tinha a hasta de ouro outra mania: a hoste, para da fuga a ter guardada.
todos que tocou, ao chão atirou; Em vão pergunta, em vão regira a fronte:
duas vezes mais, mas nenhum matou. não sabe o que é feito de Rodomonte.
16 A conselho dele quebrara o pacto
(assim cria) que foi solenemente,
testemunhando os deuses, posto em acto;
depois, evaporara de repente.
Nem Sobrino vê: fora de imediato
para Arles, e dizia-se inocente;
pois de tal perjúrio vingança espera
de Agramante nesse dia, e severa.
17 Marsilio também em Arles se encerra:
oprime-o, pela fé ofendida, a dor.
Por isso, Agramante o passo mal cerra
aos que conduz Carlos, imperador,
de Itália, de Alemanha, de Inglaterra,
que são todos homens de alto valor;
e os paladins estão entre eles espalhados,
quais gemas esparsas em áureos bordados;
1s e, junto aos paladins, um tão perfeito
cavaleiro quanto há no mundo vero:
Guidon Selvaggio, de intrépido peito,
e os dois famosos filhos de Oliviero.
Nem quero falar, por já o ter feito,
do par de donzelas valente e fero.
Estes matavam gente sarracena,
em quantidades que contar dá pena.
CANTO XXXIX 619

19 Mas desta pugna afastando-me um quanto, 2s Tendo Astolfo exército ilimitado


vou sem navio atravessar o mar. (sete Áfricas não teriam defesa),
Não me preocupam os de França tanto e, recordando como foi instado
que pudesse o duque Astolfo olvidar. pelo velho santo a cumprir a empresa
Que poder houve do apóstolo santo de Aigues-Mortes e Provença (de o primado
já disse, e, se não estiver a errar, aos Mouros retirar sem tibieza),
que o dos Algazeres e Branzardo, reis, fez da grande turba outra selecção5 ,
contra ele armaram os seus quartéis. que para o mar pareceu ter certa aptidão.
20 Foram, com o que à pressa se aproveita, 26 E tendo repletas ambas as palmas
hostes de toda a África formadas, de folhas várias, quantas agarrou,
dentre a débil idade e a perfeita; de louros, cedros, oliveiras, palmas,
as mulheres quase eram também chamadas. ao mar foi, e às ondas as atirou.
Agramante em França a vingança espreita, Ó felizes, do Céu dilectas almas!
e de África levou duas rodadas. Graça que aos mortais Deus raro doou!
Pouca gente restou, fazendo assim Que sublime o milagre produzido,
um exército medroso e ruim. mal as folhas no mar tinham caído!
21 Bem o mostraram: mal se delineia 27 Em quantidade incontável cresceram,
longe o inimigo, fogem espavoridos. ficando curvas, grossas, longas, graves;
Como ovelhas, Astolfo os reboqueia as veias que anteriormente tiveram
à frente dos seus, na guerra instruídos, formaram duras tábuas, grossas traves;
ficando deles a planície cheia, nas pontas, agudas permaneceram,
e poucos a Bizerta recolhidos. e de repente tornaram-se naves
Preso foi feito Bucifar galhardo2 , de espécies variadas, que eram tantas
passando a porta a tempo o rei Branzardo, como ele as colhera de várias plantas.
22 mas mais lhe custou perder Bucifaro 2s Milagre foi ver as folhas que espalha
que se houvesse perdido todo o resto. produzir fustas, galês, galeões.
Bizerta é grande, e obras de reparo Outro milagre velas, cordoalha
precisa, e sem o outro não tem esto: e remos terem as embarcações.
poder resgatá-lo ser-lhe-ia caro. E depois o duque não se atrapalha
Enquanto assim pensava aflito e mesto, a governar dos ventos as tensões;
veio-lhe à lembrança que tem prisioneiro, teve em Sardos e Corsos, não remotos,
há muitos meses, Dudone, o guerreiro. timoneiro, patrão, marujos, pilotos.
23 Em Mónaco o prendeu, à beira-mar, 29 Contou-se entre toda a mareação
o rei da Sárcia3 , na primeira viagem. vinte seis mil, gente de toda a sorte.
Desde então, Dudone neste lugar Dudone foi nomeado capitão,
ficou, que é do dinamarquês linhagem4 . sagaz guerreiro em terra e no mar forte.
Em troca deste, livrar Bucifar Estava inda a frota no lido pagão,
pensou Branzardo, e enviou mensagem à espera de bom vento que a transporte,
ao capitão dos Núbios; com sagez quando um navio aportou à marinha,
soube, por espia, que era Astolfo inglês. que de prisioneiros pesado vinha.
24 Sendo Astolfo um paladim, depreende, 30 Trazia quantos, na perigosa ponte
de um paladim soltar terá amor. que estreita era para a lide em dueto,
O gentil duque, quando o caso entende, tinha apanhado o audaz Rodomonte,
com Branzardo concorda com rigor. conforme eu já disse em mais que um folheto.
Livre Dudone, suas graças rende Vinha o cunhado do conde6 no monte,
ao duque, com quem começa a dispor o fiel Brandimarte e Sansonetto,
as coisas que dizem respeito à guerra, e outros mais de descrição enfadonha,
tanto aquelas do mar como as da terra. da Alemanha, de Itália e da Gasconha.
620 ORLANDO FURIOSO

31 O timoneiro, sem ter reparado 33 Mas não pôde fugir nem ser austero,
no inimigo, o barco ali trazia; com os presos, o barqueiro assustado.
tinha o porto milhas atrás deixado, Com Brandimarte foi, com Oliviero,
de Argel, onde fundear pretendia, com Sansonetto e outros mais, levado
por forte vento se ter levantado, onde Dudone e o duque, em gesto mero,
que a popa empurrou para onde não queria. aos amigos sorriam com agrado;
Pensava entre os seus se encontrar e em paz, e, por mercê, quiseram que o que os trouxe
como vai Procne7 para o ninho loquaz. ali ao remo condenado fosse.
32 Mas, quando vê a águia imperial, 34 Como digo, Astolfo muita atenção
os lírios de ouro e o leopardo8 em frente, deu aos cristãos, sendo bem recebidos,
fez-se branco como quem no trigal com banquete honrados no pavilhão,
o pé incauto pousou de repente e armas, de que eram desguarnecidos.
sobre a víbora perversa e mortal, Por eles, Dudone protelação
entre as ervas achatada e dormente; deu à partida; que os factos ouvidos
assustado e pálido o pé retira, desses barões acha mais importantes
e dali foge, pleno de asco e ira. do que partir um ou dois dias antes.
CANTO XXXIX 621

35 Em que estado se encontra, e de que jeito, 39 Era Fiordiligi, que tão aceso
a França e Carlos, informação teve; tinha no peito a Brandimarte amor
e onde, para obter melhor efeito que, quando junto à ponte o deixou preso9,
e segurança ter, aportar deve. esteve prestes a enlouquecer de dor.
Enquanto ele os escutava com proveito, O mar passara com ânimo teso,
ouviu-se um rumor que cresceu em breve, pois disse-lhe o pagão que foi autor
e um alarme tão feroz se seguiu que com muitos outros viera ele,
que mais que uma ideia a todos surgiu. para presos serem na terra de Argel.
36 O duque Astolfo e a companhia bela, 40 Quando fora embarcar, tinha encontrado
que juntos tanto tempo conversaram, um navio, em Marselha, do Levante,
num instante armados e sobre a sela, por um velho cavaleiro levado
donde o grito vinha a ir se apressaram, da longínqua corte de Monodante 1 0 ;
tentando ver se a razão se revela em muitas províncias tinha tentado,
de tal rumor; e a um lugar chegaram ora por mar ora por terra errante,
onde viram um homem tão feroz Brandimarte encontrar; sabido havia,
que à tropa, só e nu, dá trato atroz. no caminho, que em França o acharia.
37 Um bastão de pau em torno girava, 41 Reconhecendo ela nele Bardino,
que era tão duro, pesado e potente aquele Bardino que tinha raptado
que, ao baixar, de cada vez derrubava Brandimarte a seu pai em pequenino,
um, que ficava pior que doente. que em Rocca Silvana fora criado 1 1 ,
A vida a mais de um cento já faltava; e, ouvindo porque andava em tal destino,
ninguém se atrevia a fazer-lhe frente, fez com que ele dali tivesse zarpado
a não ser mandando de longe setas: e, com ele indo, contou-lhe o porquê
ninguém queria com ele meças directas. de Brandimarte em África pôr pé.
38 Dudone, Astolfo e Brandimarte, havendo 42 Chegados a terra, ouviram dizer
ao rumor acorrido, e Oliviero, que de Astolfo tinha assédio Bizerta;
admiravam-se do valor estupendo que Brandimarte com ele podem ver,
e da força que tinha aquele fero; consta-lhes, mas não como coisa certa.
nisto, viram num palafrém, correndo, Fiordiligi aproxima-se a correr
uma dama em traje negro severo, assim que o vê, mostrando bem aberta
que correu para Brandimarte e o saudou, a alegria, que o mal que sofrera
e os braços ao pescoço lhe deitou. transformou na maior que ela tivera.
43 O cavaleiro, não menos jucundo
de ver a mulher dilecta e fiel,
que amava mais que outra coisa no mundo,
para docemente a abraçar se impele;
não saciou com um, nem ao segundo,
nem ao terceiro beijo o desejo ele;
mas os olhos erguendo, deu de cara
com Bardino, que a mulher transportara.
44 As mãos estendeu, esperando abraço em troco,
e para perguntar por que ali surgia;
mas o tempo para o fazer saiu pouco,
pois toda a hoste em desordem fugia,
diante daquele bastão que o nu louco
girava em volta, e que lhe abria a via.
Fiordiligi olhou o homem sem veste,
gritando a Brandimarte: - O conde é este! -
622 ORLANDO FURIOSO

45 Também Astolfo, que ali perto estava, 51 E, se não fora de Olivier tão bom
teve, que ele era Orlando, lucidez, o elmo, seria o murro conciso:
por sinais que os santos velhos, lembrava, caiu como se houvesse feito dom
no paraíso deram com sagez. do espírito e da alma ao paraíso.
Mas aos outros presentes não restava Do chão se ergueram Astolfo e Dudon,
conhecimento do senhor cortês; embora tenha este inchado o viso;
por tanto desleixar-se, louco que era, com Sansonetto, que o pau cortou rente,
mais que de homem, tinha aspecto de fera. para cima de Orlando vão, num repente.
46 Astolfo, que de pena amargurado 52 Dudon por trás com muita força o abraça,
se sentiu, voltou-se lacrimejando; e tenta com o pé desequilibrá-lo;
disse a Dudone, que estava a seu lado, Astolfo e os outros os braços lhe enlaça,
e a Oliviero também: - Eis Orlando! - mas todos não conseguem segurá-lo.
Tendo estes os olhos nele fixado, Quem já viu um touro a que se dá caça,
foram o seu semblante confirmando; com feras nas orelhas a adentá-lo,
e o encontrá-lo em tal calamidade correr mugindo, e consigo arrastar
encheu-os de estranheza e de piedade. os cães, que de si não pode afastar,
47 Chorava dos senhores a maior parte: 53 imagine que Orlando fosse tal,
tal dor sentiram que os perturbou tanto. pois todo o grupo consigo impelia.
- É hora (disse Astolfo) de ter arte Volta então Oliviero à vertical,
para o sanar, e não para fazer-lhe o pranto. - de onde pelo colossal murro jazia;
Para o chão saltou, e também Brandimarte, e, vendo que assim se podia mal
Sansonetto, Olivier, Dudone santo 1 2 ; fazer o que Astolfo fazer-lhe queria,
para o sobrinho de Carlos a avançar pensou num modo, que pôs em acção,
todos a um tempo, para o agarrar. logrando Orlando assim deitar ao chão.
4s Orlando, ao ver que o cerco se formava, 54 Várias cordas ali trazer mandou,
girou o pau em desespero louco; e nós corredios nelas fez lesto;
e a Dudone, que a cabeça abrigava às pernas e braços do conde atou,
com o escudo, enquanto avançava um pouco, e através do corpo amarrou o resto.
fez sentir como aquele bastão pesava; Repartiu as pontas, e entregou
e, se com a espada Oliviero o soco uma a cada um, que a agarrou presto.
não apara, tinha o bastão injusto Da maneira que um ferrador aterra
quebrado elmo, escudo, cabeça e busto. cavalo ou boi, Orlando foi a terra.
49 Quebrou só o escudo, mas a pancada 55 Assim que vai ao chão, caem-lhe em cima,
no elmo Dudone lançou por terra. e com mais força lhe atam pés e mãos.
Vibrou Sansonetto a um tempo a espada, Orlando não pára, em constante esgrima,
e duas braças da vara lhe aferra mas os esforços que faz são todos vãos.
com tal força que em duas foi cortada. Astolfo a que o levem dali intima,
Brandimarte, que em cima se lhe cerra, pois diz que os miolos lhe quer pôr sãos.
com os braços os flancos bem lhe aperta, Dudone, que é grande, em si o empoleira,
e Astolfo as pernas tem e não liberta. e à praia o transporta, do mar à beira.
50 Mas Orlando sacode, e a dez passos 56 Manda-o Astolfo lavar sete vezes,
dali o inglês faz cair reverso; e sete vezes na água o mergulha,
Já Brandimarte os braços não tem lassos, para que do rosto e membros tão soezes
e às suas tentativas é adverso. saia a crosta de esterco que o embrulha;
Fazendo Olivier de avançar ameaços, com ervas próprias, de sete jaezes,
um murro lhe deu tão duro e perverso a boca, que sopra e bufa, lhe atulha;
que ao chão o levou, pálido e exangue, pois inspirar doutro modo não quis
dos olhos e nariz deitando sangue. que ele pudesse, a não ser pelo nariz.
CANTO XXXIX 623

57 Tinha Astolfo a ampola preparado, 63 Disse-lhe, entre outras razões para ele ir,
em que o senso de Orlando se encerrava; que doce coisa era a pátria, e que, quando
e tendo-a do nariz aproximado se dispusesse a seu gosto sentir,
no momento em que o ar ele inspirava, não mais gostaria de andar errando.
toda vazou: espantoso resultado! Brandimarte respondeu querer servir
Ao estado antigo a mente regressava; em toda esta guerra Carlos e Orlando;
ao seu pensamento a inteligência e, se pudesse ver-lhe o fim, então
voltou, mais lúcida que em precedência. pensaria melhor na situação.
58 Como quem de enfadonho e grave sono, 64 De manhã para a Provença dirigiu
em que monstro execrável e disforme, a frota o filho do dinamarquês.
que não tem da verdade algum abono, Orlando em ali ficar insistiu,
creu ver, ou fez coisa estranha e enorme, e o duque o ponto da guerra lhe fez;
muito se maravilha, quando dono Bizerta inteira de assédio cingiu,
é já de seus sentidos e não dorme: dando o honor, porém, ao duque inglês,
assim Orlando, de novo sensato, das vitórias; mas tudo era cumprido
ficou maravilhado e estupefacto. pelo duque, como pelo conde instruído.
59 E para Brandimarte, e de Alda o irmão 13 , 65 O que acordaram para assaltar sem falha
e aquele que o senso lhe restituiu, Bizerta, por qual dos lados e quando,
pensativo olha, e não faz menção que foi tomada à primeira batalha,
de como e quando ali se dirigiu. quem dividiu os louros com Orlando,
Para aqui, para ali, o olhar gira em vão, se ora não contar, a ninguém baralha,
pois de onde se encontra está arredio. pois nunca muito me vou afastando.
Espantado está, pois nu ali se vê, Entretanto, contar-vos estimaria
e a cordas preso dos ombros ao pé. como os Francos aos Mouros dão razia.
60 Depois disse, como disse Sileno 66 Agramante foi quase abandonado
aos que o ataram dentro da espelunca: quando era maior o perigo da guerra;
- Solvite me 14 -, com rosto tão sereno, com muitos, Marsilio tinha voltado,
e o olhar com expressão tão pouco adunca e Sobrino, à muralha que Arles cerra;
que o soltaram; deram-lhe traje ameno, na frota um ou outro tinha embarcado,
com panos que dos seus cada um trunca, com receio de não salvar-se em terra;
e consolaram-no todos da dor dos Mouros, muito duque e cavaleiro
que o oprimia, pelo passado error. tinha seguido desses o carreiro.
61 Depois de ao eu antigo regressado,
Orlando, inda mais prudente e viril,
de amor se encontrou também libertado;
e assim, a que tão formosa e gentil _-.:--:- .
antes achou, e tanto tinha amado,
apenas tem hoje por coisa vil.
É todo o seu intento e seu desejo
ter o que por amor não houve ensejo.
62 Entretanto, Bardino a Brandimarte
contou que morrera o pai, Monodante; /.
e que ao reino chamá-lo ele da parte
vinha, primeiro, do irmão Gigliante,
depois, das gentes que habitam à parte
nas ilhas, as últimas do Levante;
outro reino não havia no mundo
tão rico e populoso, e tão jucundo.
624 ORLANDO FURIOSO

67 Contudo, Agramante a pugna sustém; 73 Mandou em mentre zarpar Agramante,


e quando finalmente não aguenta, e para o mar alto ir, os navios graves,
as costas voltando, direito vem deixando os leves, para levar para diante
à porta, que não longe se apresenta. os que salvação queriam ter nas naves.
Rabicano atrás dele corre porém, Os que fugiam recolheu durante
que Bradamante esporeia e alenta: dois dias, por ter dos ventos entraves;
desejo de o matar alimentava, mandou içar velas ao terço dia,
pois tanta vez de Ruggier a privava. crendo que a África regressaria.
68 Igual desejo Marfisa sentia, 74 O rei Marsilio, que está receoso
para do pai fazer vingança atrasada; que a sua Espanha sofra a consequência,
e com as esporas, o mais que podia, e o temporal sombrio e fragoroso
mostrava ao corcel que estava apressada. nos seus campos venha a ter incidência,
Mas nem uma nem outra chegaria de reparar seus fortes desejoso,
a tempo de ser impedida entrada partiu e desembarcou em Valência,
ao rei mouro na murada cidade, para a guerra preparar que foi, quis Deus,
e ter da sua frota imunidade. ruína sua e dos amigos seus.
69 Quais bravas caçadoras leopardas, 75 Para África Agramante alçou as velas
ao mesmo tempo da trela eximidas, dos mal armados e quase vazios
depois que os cervos e cabras galhardas barcos; vazios de homens, cheios de querelas,
percebem que foram em vão seguidas, sendo em França três quartos fugidios.
quase envergonhadas por serem tardas, Soberbo, cruel, louco e outras mazelas
melindradas voltam e arrependidas: chamam ao rei; e em seus peitos sombrios
assim as donzelas voltaram, quando querem-lhe mal, mas como em casos tais,
viram a salvo o pagão, suspirando. porque o temem, calam-se, serviçais.
70 Mas sem parar, ao grupo espavorido 76 Mas dois ou três entre si dialogam,
que em fuga ia foram atirar-se, pois são amigos e entre eles há fé,
fazendo, a cada golpe desferido, e a cólera e a raiva desafogam;
muitos ao chão ir sem mais levantar-se. e ainda o mísero Agramante crê
Estava o bando à má sorte reduzido: que o amam todos e sua causa advogam;
não podia, embora em fuga, salvar-se, assim acontece, porque ele não vê
pois Agramante, em sua protecção, senão rostos fingidos, e não ouve
fechara daquele lado o portão, senão quem lhe minta, o adule e louve.
71 e sobre o Ródano mandou cortar 77 Tinha decidido o rei africano
todas as pontes. Ah, plebe infeliz, não arribar ao porto de Bizerta,
que onde o tirano utilidade achar, porque havia, que o povo nubiano
de ovelhas ou de cabras tem cariz! na costa reinava, notícia certa;
Afogam-se uns no rio, outros no mar, mas avançar para lugar não raiano,
outros à gleba dão rubro matiz. onde chegasse de forma encoberta,
Muitos são mortos, poucos são cativos, pôr pé em terra, e voltar apressado
por não serem de resgate passivos. a socorrer seu povo massacrado.
n Da multidão que a vida finaliza, 78 Mas seu fero destino não responde
de cada lado, nesta última guerra à intenção prudente e de atalaia:
(não dividida, porém, de igual guisa: faz que a armada que nasceu de avonde
mais Mouros foram para baixo da terra, folhagem, por tal milagre, na praia,
por culpa de Bradamante e Marfisa), e para França as águas sulca, para onde
inda sinal se vê naquela terra; há-de encontrar este à noite, se atraia,
junto a Arles, onde o Ródano espraia, com tempo escuro, nublado, aborrido,
está cheia de sepulturas a praia. para o ir apanhar mais desprevenido.
CANTO XXXIX 625

79 Agramante inda nem soube que envia &o E assim a frota que Astolfo confiara
Astolfo para França armada tão grossa; a Dudon, com homens bem preparados,
mesmo que lho dissessem, não creria e que à tardinha os outros avistara,
que um ramo cem navios fazer possa; mudando o seu rumo para esses lados,
e vem sem suspeitar que em torno haveria o descuidado inimigo assaltara;
quem ousasse a seus barcos fazer mossa; lançando os arpões, ficaram ligados,
nem na gávea vigia manda pôr, ao verem, pela língua que se falava,
que aviso dê do que avista em redor. que de inimigos mouros se tratava.
626 ORLANDO FURIOSO

81 Na abordagem que os navios fizeram 84 Algum que o ferro e o inimigo evita


(a seu favor era o vento fecundo), ao mar se atira, e lá se afoga e resta;
com tal força nos sarracenos deram outro, que a tempo pés e mãos agita,
que muitos mandaram logo para o fundo. vai para salvar-se àquela barca ou esta;
Depois mãos e senso em acção puseram, por demais cheia, ela o precipita,
e ferro, fogo e calhau mui rotundo e a mão, que para subir era molesta,
dispararam, causando tal procela faz com que fique ao rebordo agarrada:
que nunca o mar teve outra como aquela. cai o corpo, e a água faz-se encarnada.
82 Os de Dudone, que força e denodo 85 Outro, que no mar salvar-se previu,
que o Céu lhes mandava tinham de sobra ou nele poder morrer com menor pena,
(chegada era a hora de punir todo quando nadando salvação não viu,
o sarraceno por tanta má obra), e sentiu que ânimo e força o condena,
de perto e longe de ferir hão modo, volta à chama voraz de que fugiu,
e Agramante defesa não recobra. que o medo de afogar-se não serena;
De cima chovem setas, e do lado ao navio que arde se agarra; a temer
vem espada, fateixa, pique e machado. duas mortes, ambas vai padecer.
83 Do alto vê caírem pedras graves, 86 Outro, temendo machado ou lanceta
lançadas por máquinas e tormentos 1 5 ; que perto vê, ao mar se atira em vão,
e popas e proas quebrar das naves, pois nas costas o atinge pedra ou seta,
e abrir no fundo furos opulentos; que lhe dá, de longe ir, interdição.
o maior dano são fogos insuaves, Mas será talvez, enquanto dilecta
a nascer prestos, a apagar-se lentos. o meu canto, acertada decisão
A turba infeliz, quanto mais anseia terminá-lo, em vez de prosseguir,
ao perigo fugir, mais nele se enleia. e por mais eu contar vos aborrir.

NOTAS

1 Apenino [. . .] herbosa: na altura do degelo. 9 junto [. . .] preso: cf. XXXI:75-76.

2 1
Bucifar galhartÚJ: cf. nota a XXXVIII:35:5-6. 0 Monodante: pai de Brandimarte.
3 11
Rei da Sdrcia: Rodomonte (cf. XIV:25). Aquele [. . .] criado: história desenvolvida no Innamorato.
Bardino mais tarde fez as pazes com Monodante e encar­
4 É [. . .] linh m: filho de Uggiero, o dinamarquês, foi regou-se de procurar Brandimarte.
age
feito prisioneiro por Rodomonte no O. Innamorato.
12
Dudone santo: já no Innamorato Dudone tinha este
5 Fez [...] selecção: fizera uma primeira (cf. XXXVIII:32), epíteto.
para formar a cavalaria.
13 De Aida o irmão: Oliviero.
6 CunhatÚJ tÚJ conde: Oliviero (pai de Grifone e Aquilante),
irmão de Aida, mulher de Orlando (conde). 14 Como [. . .] solvite me (soltai-me): Sileno, velho sátiro
sempre embriagado, foi certa vez amarrado por jovens
7 Procne: dom.ela transformada pelos deuses em andorinha. pastores, numa gruta onde dormia (cf. Vergílio, Éclogas,
VI:24).
8 Águia [. . .] leopardo: insígnias do Império Romano,
15
da França e da Inglaterra. Tormentos: cf. nota a XVI:56.

CANTO XL

Longo seria os diversos acasos


eu descrever daquele naval conflito;
e a vós contar-vos lembraria os casos,
ó filho de Ercole nobre e invicto,
como se diz, levar para Samos vasos,
Atenas mochos, jacarés Egipto 1 ;
pois vistes o que por ouvir eu falo,
senhor, e aos outros pudestes mostrá-lo.
O povo, cenas mais longas que aquelas
teve na noite e dia em que observou,
como um teatro, as inimigas velas
que, no Pó, ferro e fogo sujeitou.
Que gritos ouvir se pode, e querelas,
que o sangue humano as ondas infectou,
os modos de morrer em pugnas tais
vós vistes, e mostrastes aos demais.
3 Eu não vi2, pois fora seis dias antes,
de hora a hora de cavalo uma muda,
com muita pressa e em tons implorantes
pedir ao Grande Pastor sua ajuda.
Cavalos não precisastes e infantes:
quebrastes entretanto a garra aguda
ao Leão de Ouro3 , o qual, de ameaçador,
desse dia a hoje não fez rumor.
628 ORLANDO FURIOSO

4 Alfonsin Trotto, que esteve de facto, 6 Era de noite, e não se via lume,
Annibal, Pier Moro, Afranio e Alberto, quando iniciaram a feroz empresa;
três Ariostos, Bagno e Zerbinatto4 mas depois que enxofre, pez e betume
tanto me contaram que fiquei certo; espalharam, sendo proa e popa acesa,
as bandeiras esclareceram com tacto e a voraz chama ateia até ao cume
(vi muitas no templo expostas, de perto), navios e galês com pouca defesa,
e quinze galês na margem altivas com tanta clareza em redor se via
vi, com mais mil naves, todas cativas. como se a noite passasse a ser dia.
Quem arder e afundar viu essas naves, 7 E Agramante, que, enquanto o ar foi escuro,
tantos morrer, de modo tão variado, do inimigo fez errada estima,
vingando assim nossas ardidas traves, sem pensar ter opositor tão duro
até que cada navio foi tomado, que, resistindo-lhe, não o reprima,
imagina com que mortes e entraves quando das trevas se fez dia puro,
Agramante e o Mouro foi castigado, e viu a frota que lhe vem para cima,
na noite escura, em meio às ondas salsas, que era o dobro da sua constatou,
quando Dudon lhes assaltou as balsas. e a primeira ideia reformulou.
CANTO XL 629

s Com alguns passa para mais leve barca, 11 Cristãos verdadeiros, Astolfo e Orlando,
onde tem Brigliadoro5 e as coisas caras. que sem Deus não enfrentam risco algum,
Entre os navios vai silente o monarca, foram ao exército anunciando
até se encontrar em águas mais claras, que se farão orações e jejum;
longe dos seus, que Dudone açambarca, e que se encontre ao terço dia, quando
e leva a condições acres e amaras: for dado o sinal, pronto cada um
queima o fogo, fere o ferro, o mar suga, para Bizerta expugnar, que, conquistada,
mas ele, que é o motivo, vai em fuga. ao fogo será dada, e saqueada.
9 Foge Agramante, e ao lado tem Sobrino, 12 Assim, tendo abstinências e votos
a quem lamenta nele não ter crido devotamente sido celebrados,
quando adivinhou, com olho ladino, parentes, amigos, e os mais notos,
e previu todo o mal acontecido. fizeram-se uns dos outros convidados.
Mas vamos a Orlando paladino, Restaurados corpos e ávidos gotos,
que, antes que haja Bizerta recebido lacrimejaram juntos, abraçados,
ajuda, ao duque que a deite por terra modos usando e palavras sentidas,
diz, para que não faça a França mais guerra. como entre os mais caros nas despedidas.
10 Ordenou-se ao exército que a jeito, 13 Dentro, em Bizerta, os sacerdotes santos,
ao terço dia, esteja preparado. suplicando com o povo dolente,
Guardou navios Astolfo para o efeito, batem no peito e, com pungentes prantos,
Dudone não tinha todos levado; chamam por Maomé, que nada sente.
para os comandar foi Sansonetto eleito, Quantas vigílias, ofertas, e quantos
guerreiro, em mar ou em seco, prendado; dotes se prometem privadamente!
a frota ancorou em frente a Bizerta, Em público templos, altares, figuras,
entre ela e o porto uma milha certa. memória eterna das amargas juras!
630 ORLANDO FURIOSO

14 Após ter sido pelo Cádi benzido, 20 De todo o lado reforçar o assalto
o povo armas tomou, voltando ao muro. mandou Orlando, por mar e por terra.
Com Titono no leito adormecido De Sansonetto a frota, do mar alto
estava ainda Aurora, e o céu obscuro, partindo, entra no porto, e ali se aferra;
já Astolfo e Sansonetto, em sentido com fundas e arcos dá sobressalto,
oposto, ocupavam lugar seguro; e mais instrumentos de acesa guerra;
e, quando o sinal do conde escutaram, expedia lanchas, escadas e inda mais
Bizerta com grande ímpeto assaltaram. maquinaria, e munições navais.
15 Tinha Bizerta de dois lados mar, 21 Faz Oliviero, Orlando e Brandimarte,
dos outros dois assente em seco lido. e o que pelo ar fora tão destemidoª ,
Com construção excelente e singular áspera e feroz batalha, mas na parte
foi antigamente o seu muro erguido. da qual o mar se encontra mais escondido.
Pouco mais tem que a proteja ou ampare; Entre os quatro por igual se reparte
desde que Branzardo ficou retido o exército, entre eles quadripartido.
nela, poucos pedreiros arranjara Muralhas, portas, todo o lugar serve
para a fortificar e tempo escarreara. para que o valor dos guerreiros se observe.
6
16 Astolfo incumbiu o rei dos trigueiros 22 De cada um se vê assim mais claro
de às ameias causar tanto tormento, o valor, do que estando misturados:
com lança-chamas, fundas e archeiros, quem for digno de louvor, ou reparo,
que tolha de assomar-se o atrevimento; a mil olhos se mostra, não fechados.
para chegarem peões e cavaleiros Torres de pau com rodas e, não raro,
à muralha sem ter impedimento, outras os elefantes já treinados
que vão de pedras, de traves, machados levam sobre o dorso, e tão alto vão
e outros materiais bem carregados. que as ameias muito abaixo lhes estão.
17 Ora uma coisa ora outra é lançada 23 Vem Brandimarte, encosta a escada aos muros
para a fossa, sem haver interrupção; e sobe, e a subir outros encoraja;
a água um dia antes foi desviada, muitos sobem, afoitos e seguros:
aparecendo no fundo o lamarão. nada receia quem por guia o haja.
Num instante foi cheia e atulhada, Ninguém olha ou faz cálculos e apuros
subindo à altura do muro o chão. se tanto peso a escada não ultraja.
Astolfo, Orlando, Oliviero trabalha Brandimarte só no imigo atenta;
para os infantes subirem à muralha. iça-se, e uma mão numa ameia assenta.
1s Os Núbios, com tal pressa impacientes · 24 E com uma mão e um pé se agarra,
na esperança de tesouros imediatos, sobe às ameias, gira em volta a espada,
sem atentar nos perigos iminentes, fere, derruba, corta, fura e esbarra,
cobertos por cágados e por gatos7, toda a sua perícia é demonstrada.
levando aríetes, e expedientes Mas nesse instante eis que a escada se esgarra,
para torres e portas arrombar aptos, por de excessivo peso estar carregada;
galgaram depressa aqueles terrenos; excepto Brandimarte, ao fosso vão
mas estavam atentos os Sarracenos, de pés para o ar, em sobreposição.
19 que ferro, fogo, ameias, telhas graves 25 Por tal não perde o cavaleiro o ardor,
fazendo cair, como trovoadas, e que para trás deva voltar não crê,
por força abriam as tábuas e traves embora vendo não ter seguidor,
das máquinas para seu dano montadas. e que a cidade como alvo o vê.
No ar escuro e nos inícios insuaves, Pedem-lhe (mas ignorou o clamor)
sofreram muito as testas baptizadas; que regresse, e, sem que atenção lhes dê,
mas, ao ser pelo Sol as portas transpostas, da muralha à cidade foi de um salto,
Fortuna aos Sarracenos virou costas. e o muro trinta braças tinha de alto.
CANTO XL 631

26 Como se achasse ali penas ou palha, 21 O diz-que-diz-que todo o campo alaga,


o duro terreno calcou sem dano; e as vozes vão murmúrios cochichando.
e os que estão perco amputa, fura, calha Vai-se tornando grande a Fama vaga:
como se amputa, fura e talha o pano. narra o perigo, e vai-o acrescentando.
Contra uns e outros se atira ao calha, Onde Astolfo está (porque se propaga
e uns e outros lhe fogem com afano. por vários lados o assalto), ou Orlando,
Fora, os que o viram saltar no vazio ou Oliviero, num instante chega,
pensam ser qualquer auxílio tardio. e as asas velozes nunca sossega.
632 ORLANDO FURIOSO

2s Tais guerreiros (mais que todos, Orlando) , 30 De igual modo, terem tomado os muros
para quem Brandimarte tem privilégio, aqueles três foi um enorme passo,
ao saber que, se forem demorando, pois podem os outros subir seguros
perdem um companheiro tão egrégio, mil escadas, postas com desembaraço.
por escadas vão aqui e além trepando, Mentres, tinham os aríetes duros
e mostram seu ânimo altivo e régio causado à muralha tanto fracasso
com olhar tão galhardo e tão audaz que era possível, em mais que uma parte,
que de aterrar o inimigo é capaz. socorrer o arrojado Brandimarte.
29 Como, no mar que pela tormenta freme, 31 Com o furor com que o Pó altaneiro
assalta a onda o temerário lenho, quebra barreiras e as margens inunda,
a qual pela popa ou pelo lado do leme pelos campos de Ocno9 abrindo carreiro,
tenta entrar, com grande raiva e empenho, e a terra fértil e a seara fecunda,
e o mestre, pálido, suspira e geme, e com seu redil o rebanho inteiro,
porque lhe falta coragem e engenho; e cães e pastores na água afunda,
vem por fim uma onda e tudo ocupa, e sobre o olmo o peixe nada agora,
e onde entrou, entra o mar em catadupa. onde voavam pássaros outrora;
CANTO XL 633

32 com tal furor a impetuosa gente, 33 Homens mortos havia em todo o lado;
pelos pontos em que o muro estava partido, e das feridas e chagas infinitas
entrou com armas e expressão ardente, formara-se um charco escuro e cerrado,
para destruir o povo combalido. pior que as ondas infernais malditas 10 •
Homicídio, rapina, mão nocente Do incêndio casa a casa ateado
ao sangue e aos bens, levam num aulido ardiam palácios, pátios, mesquitas.
à rica terra ruína daninha, Prantos, gritos, e nos peitos pancadas,
ela que fora de África a rainha. saem das casas vazias, saqueadas.
CANTO XL 635

34 Viam-se os vencedores das funestas 40 Com tais palavras, o velho prudente


portas sair com saques de altos custos, o seu senhor para ter esperança preme
ricos vasos ou vestes não modestas, de África reaver em prazo urgente;
pratas roubadas aos deuses vetustos; no íntimo, porém, o oposto teme:
uns trazem filhos, outros as mães mestas: bem sabe que em geral é imprudente,
fazem-se estupros, mil actos injustos, e muita vez em vão suspira e geme,
de que Orlando soube em parte a rudez; aquele que na perda do reino incorre
não pôde evitar, nem o duque inglês. e, para socorro, aos bárbaros recorre.
35 Bucifar, rei dos Algazeres, morto 4 1 Aníbal e Jugurta desse agouro
foi por um golpe de Olivier galhardo. sofreram 15; e mais, que não especifico;
Perdida a esperança e já sem ter conforto, no nosso tempo, Ludovico, il Moro,
com sua mão matou-se o rei Branzardo. que foi entregue a outro Ludovico 1 6 •
Morreu, por de três feridas desconforto Para vosso irmão Alfonso não foi goro
ter, Folvo 1 1 , do duque do Leopardo 1 2 • tal exemplo (senhor, vo-lo replico):
Estes três, ao partir, tinha deixado sempre achou que loucura evidencia
Agramante a olhar pelo seu estado. quem mais nos outros do que em si se fia.
36 Agrainante, que deixou só, e incerta, 42 Por tal, na guerra que lhe foi movida
a frota, tendo com Sobrin fugido, pela ira de um pontífice e a possança,
de longe chorou pela sua Bizerta, embora em sua hoste enfraquecida
ao ver tão grande chama arder no lido. não pudesse ele ter muita confiança,
Depois, mais perto, houve notícia certa e perdesse o seu defensor guarida
de como o caso ali tinha ocorrido; em Itália, onde podia a aliança 1 7 ,
e de se matar vontade sentiu; ameaça ou promessa o não convenceu
e fazia-o, mas Sobrino impediu. a ceder a outrem o reino seu.
37 Sobrin disse: - Que vitória mais leda, 43 Rei Agramante a proa orientava
senhor, podia o inimigo ter, para levante, e fizera-se ao mar alto,
que tua morte sabendo, bem queda quando de terra tempestade brava
África poder ter, a bel-prazer? lhe deu de lado impetuoso assalto.
Esse consolo o teu viver lhe veda: O barqueiro que o navio governava
assim, tem sempre razão para temer. disse, erguendo o olhar em sobressalto:
Sabe que muito tempo África sua - Vejo formar-se procela tão grave
não pode ser, senão por morte tua. que não lhe resistirá esta nave.
38 Se morres, teus súbditos privarás
de esperança, o único bem que lhes resta.
Se viveres, decerto os libertarás
do revés, voltando a viver em festa.
Morrendo, ao grilhão os condenarás,
e África a ser tributária e mesta.
Portanto, se para ti viver não queres,
vive, senhor, para bem aos teus fazeres.
39 Do sultão do Egipto tens repentino
e certo auxílio, em dinheiro e em gente:
com relutância o filho de Pepino 13
em África verá ser tão potente.
Muito apoio terás de Norandino 14
para o reino te devolver, teu parente;
da Arménia, da Turquia, Arábia, Média
e Pérsia ajuda te chegará: pede-a. -
636 ORLANDO FURIOSO

44 Se escutardes, senhores, o que vos digo, 50 Farei que os outros Núbios, que diferente
à esquerda há urna ilha pequenina viver o Nilo separa e as leis21 ,
para onde, se desejardes, eu sigo, Árabes, Macróbios22 , estes em gente
até que passe o furor da marina. - e ouro ricos, os outros em corcéis,
Agrarnante concordou; e do perigo Persas e Caldeus (pois toda essa enchente
fugiu, alcançando a praia esquerdina, e muitos mais são meus súbditos fiéis),
que, para bem dos barqueiros, se agasalha farei com que à Núbia façam tal guerra
entre África e de Vulcano a fornalha 1 8 • que não se deterão na tua terra. -
45 Habitantes, a ilha não denota; 51 Julgou Agrarnante muito oportuna,
tem rnirtos e zirnbros pouco alteados, das do rei Gradasso, a segunda oferta;
e solidão deleitosa e remota e achou-se bafejado pela Fortuna,
para cervos, lebres, cabritos, veados; que o levara àquela ilha deserta;
fora os pescadores, a poucos é nota; mas de modo nenhum se coaduna,
em silvados e espinheiros podados, pensando ele assim readquirir Bizerta,
a secar põem redes orvalhadas, que por si em batalha se envolvesse,
e os peixes gozam águas sossegadas. pois julga que o seu honor ofendesse.
46 Encontraram ali um galeão 52 - Se alguém desafia Orlando, sou eu,
levado pelo temporal, destruído; pois é a mim que tal pugna convém,
de Sericana o rei, grande campeão, e a fazê-la estou pronto (respondeu);
de Arles ali o tinha conduzido 1 9 • e seja o que Deus quer, ou mal ou bem. -
Com modo reverente e digno, vão - Façamos (disse o outro) a modo meu,
abraçar-se os dois reis em chão escorrido; de outro modo que à ideia me vem:
que amigos eram: pouco tempo antes fazemos esta batalha em conjunto
dos muros de Paris eram sitiantes. contra Orlando, e ele um outro terá junto. -
47 Com desprazer Gradasso soube dele 53 - Se eu também justar já me é lisonjeiro
as desventuras que a fortuna tece; (disse Agrarnante), primeiro ou segundo
a cortesia a confortá-lo o impele, eu seja, pois em armas companheiro
e a sua própria pessoa lhe oferece; melhor que tu não há em todo o mundo. -
mas que ele fosse ao país infiel Disse Sobrino: - E eu, onde enfileiro?
do Egipto, por ajuda, o aborrece. Se velho me achais, digo-vos que abundo
- Que lá seja (disse) perigoso ir, mais em experiência; e, em perigo parelho,
o exemplo de Pompeu pode advertir2º . a par da força convém ter conselho. -
48 E corno disseste que, socorrido 54 De urna velhice válida e robusta
pelos Etíopes, de Senapo a gente, era Sobrino, e de famosa prova;
Astolfo África tinha apreendido, e diz que em vigor na idade vetusta
e à capital dado fogo imponente, se sente igual à que foi verde e nova.
e Orlando está com ele, que diminuído Sua observação foi tida por justa;
pouco antes estava de senso na mente, E sem demora um mensageiro se aprova
julgo que para tudo num bom remédio para que ao africano lido se envie,
pensei, para fazer-te sair do tédio. e de sua parte Orlando desafie;
49 Por teu amor me encarrego da empresa 55 era intimado a ir com número par
de lutar com o conde em simples duelo. de armados cavaleiros a Lipadusa23 •
Sei que contra mim não terá defesa, É urna ilha que pelo mesmo mar
nem que de ferro ou cobre houvesse o pêlo. que ali os cerca é também circunfusa.
Morto ele, os cristãos são fácil presa: Foi ele à vela e a remos sem parar
corno para lobo esfomeado um vitelo. (toda a presteza necessária usa)
Pensei também (para mim é coisa leve) até Bizerta; onde encontrou Orlando
de África expulsar os Núbios em breve. pelos seus saque e cativos separando.
CANTO XL 637

56 O convite de Gradasso e Agramante 59 Orlando (muitas vezes vos disse isso)


e de Sobrino em público foi expresso, as suas espalhou por furor na terra;
tanto alegrando o príncipe de Anglante Rodomonte às dos outros deu sumiço;
que muitas prendas mandou dar ao expresso. junto ao rio, alta torre ora as encerra28 •
Dos companheiros tivera garante Não pode em África haver muito disso,
que Durindana à cinta como adereço porque para França levara, para a guerra,
usava Gradasso24 ; e para a reaver rei Agramante o que de bom havia,
pensava à fndia ter de se mover, África deixando quase vazia.
57 pensando ali achar Gradasso o conde, 60 Tudo quanto enferrujado e polido
por saber que de França era partido. se pode achar, manda juntar Orlando;
Mais perto lhe propõem lugar onde com os companheiros passeia pelo lido,
conta que o que é seu seja restituído. sobre a futura pugna conversando.
Também o corno de Almonte25 , não esconde, Três milhas tendo do campo saído,
torna o convite tão bem recebido; deu-se que, os olhos para o mar levantando,
e Brigliador não menos, que em seu dano viu de vela içada vir uma nave
sabe que o tem o filho de Troiano26 • direito àquela praia sem entrave.
58 Escolhe para companheiros de batalha 61 Sem timoneiro ou qualquer navegante,
o fiel Brandimarte e o seu cunhado27 • só como o vento e a sorte o bamboleia,
Já comprovou quanto um e outro valha, vinha o navio de vela içada avante,
e sabe que é por ambos muito amado. até que se deteve sobre a areia.
Bom corcel, boa chapa e boa malha, Mas antes que mais sobre isto vos cante,
espadas, lanças procura em todo o lado o amor que a Ruggier tenho me esporeia
para si e eles; julgo recordais a voltar à sua história, e a que vos conte
que nenhum tinha as armas habituais. dele e do guerreiro de Claramonte29 •
62 Disse eu que estes guerreiros se afastaram
os dois para fora do bélico chão,
quando acordos e pactos se quebraram
e se excitou cada esquadra e legião.
Quais deles aos juramentos faltaram
e qual foi de tanto mal a razão,
se o imperador Carlos ou Agramante,
vão perguntando a quem lhes passa diante.
63 Entretanto, um servidor de Ruggiero,
que mui fiel era, astuto e sabido
(nem pelo conflito dos dois campos fero
tinha o seu patrão de vista perdido),
a espada e o corcel lhe trouxe com esmero,
para que fosse pelos seus tomar partido.
Montou Ruggier e a espada recebeu,
mas na barafunda não se envolveu.
64 Dali se vai; mas antes de ir renova
a convenção que com Rinaldo havia:
se que Agramante é perjuro comprova,
deixa-o e deixa a seita mal-sadia.
Ruggier fazer nesse dia outra prova
de armas não quis; tudo o que pretendia
era a um e outro ir, e interrogá-lo:
qual transgrediu, o africano ou o galo?
638 ORLANDO FURIOSO

65 Toda a gente lhe diz que foi a parte 71 As naves dos pagãos que se salvaram
do rei Agramante, o que o desanima. de ser por fogo e naufrágio engolidas
Ruggier ama Agramante, e, que se aparte foram, menos as que em fuga escaparam,
dele por isto, erro não leve estima. para Marselha por Dudon conduzidas.
Sua gente é desfeita e se desparte Sete desses que em África reinaram,
(isto já antes eu disse), e de cima depois de ver suas gentes vencidas,
da roda volúvel passa para o fundo, com seus navios se tinham entregado,
como apraz àquela que gira o mundo30 • estando cada um choroso e calado.
66 Para si Ruggier cismava e reflectia n Dudone tinha para a praia descido,
se ficar deve ou seu senhor seguir. que Carlos queria avistar nesse dia;
O amor da sua dama o reprimia, com cativos e despojos urdido
não o deixando para África ir: com pompa e adorno um triunfo havia.
dava-lhe a volta, e para a oposta via Estavam os presos formados no lido
o mandava, ameaçando de o punir e em volta os Núbios cheios de alegria,
se o pacto e o juramento fosse baldo, fazendo de Dudone aclamação
que acordou com o paladim Rinaldo. que ressoava por toda a região.
67 Doutro lado, não menos o aguilhoa 73 Aproximou-se esperançado Ruggiero
o constante e persistente cuidado de que esta fosse a frota de Agramante;
que, se de Agramante em tal caso voa, picou o corcel para saber o vero,
é tido por cobarde e assustado. mas reconheceu, ao chegar adiante,
Se para ficar a causa acharão boa o rei dos Nasamões com desespero,
muitos, para muitos será caso errado. Baliverzo, Agricalte e Farurante,
Dirão outros: não se deve observar Manilardo, Clarindo e Rimedonte32 ,
o que injusto e ilícito é jurar. que choravam e tinham baixa a fronte.
68 Todo esse dia e a noite sequente 74 Ruggier, que os ama, não permitiria
sozinho esteve e no seguinte dia, que estivessem na miséria em que estão.
dando voltas à indecisa mente, Pedir, sabe, de nada serviria
se partir deve ou cá fazer estadia. sem usar força, de vazia mão.
Pelo seu senhor concluiu finalmente, Baixa a lança e aos guardas dá razia;
por isso a África regressaria. faz do valor a usual exibição:
Muito podia o conjugal amor, puxa da espada, e num breve momento
mas mais podia o dever e o honor. deixa por terra em redor mais de um cento.
69 Torna para Arles, onde encontrar espera 75 Dudone, ouvindo, o morticínio vê
frota que o leve aos africanos hortos: que faz Ruggier, porém não o conhece.
nem no mar nem no rio lenho enumera, V ê que os seus à fuga deram o pé
nem Sarracenos vê senão os mortos. com terror e aflição, em pranto e prece.
Quando partiu, tudo o que ali estivera De corcel, elmo e escudo se provê,
levou Agramante ou ardeu nos portos. pois a armadura já o guarnece;
Falido o plano, tomou o caminho salta a cavalo e faz-se dar a lança,
que a Marselha vai pelo lido marinho. não esquecendo que é paladim de França.
70 Em qualquer barco seguirá tal trilho, 76 Que de perto lhe saiam grita enquanto
quer o leve à força ou em harmonia. o cavalo esporeia dos dois lados.
Chegara do dinamarquês o filho3 1 , Ruggiero outros cem matara entretanto,
que a armada dos cativos trazia. dando grande esperança aos aprisionados;
Não se podia nem um grão de milho e ao ver aproximar-se Dudon santo
à água lançar, pois toda a cobria sozinho, ficando os outros apeados,
o enxame de naves amontoadas, calculou deles ser chefe e senhor,
de vencedores e vencidos carregadas. e ao encontro lhe foi com grande alor.
CANTO XL 639

77 Dudon primeiro avançara, mas, quando 80 Mas porque à amada sempre o mais pequeno
observou Ruggiero sem lança a vir, agravo pensava dar que podia,
a sua atirou longe, desdenhando e sabia que manchando o terreno
com tal vantagem o cavaleiro ferir. com o sangue deste a dama ofendia
Ruggier, no cortês acto reparando, (das casas de França instruído em pleno,
disse para si: - Não pode este mentir Armelina, mãe de Dudon, sabia
que não é um dos guerreiros esmerados que era de Beatrice irmã, à qual
que paladins de França são chamados. Bradamante tinha laço filial),
78 Vou tentar persuadi-lo a que revele 81 por tal, nunca de ponta lhe fez passe,
seu nome antes de lhe tocar no arnês. - e de lâmina raramente o feria.
E perguntou, e soube que era ele Protegia-se onde a maça acertasse,
Dudone, de Uggiero, o dinamarquês. ou aparando ou abrindo-lhe via.
Dudon Ruggier a igual coisa compele, Crê Turpin34 que Ruggier Dudon poupasse,
e do mesmo modo o achou cortês. pois Dudon morto em poucos golpes teria:
Depois à luta se desafiaram, nunca, em nenhuma vez de que teve azo,
e a vias de facto logo passaram. o atingiu senão com o lado raso3 5 •
79 Tinha Dudon, em ferro, aquela maça 82 Podia o raso usar, tal como o fio,
que em mil feitos lhe deu eterno honor; Ruggier da espada de folha potente;
com ela tem mostrado que é da raça e, como quem moscas mata, desferiu
daquele dinamarquês de alto valor. em Dudon com força golpe frequente:
A espada33 , que abre todo elmo e couraça, por vezes o olhar tão turvo sentiu
não conhecendo o mundo outra melhor, que pouco faltou para cair para a frente.
sacou Ruggier, e fez demonstração Mas, para ser a quem me ouve mais cortês,
a Dudon do seu valor em acção. o canto protelo para outra vez.

NOTAS

1 A vós [ . .] Egipto: seria como «ensinar o padre-nosso 5 Brigliadoro: fora-lhe oferecido por Ruggiero, que o
ao vigário». herdara de Mandricardo (cf. XXX:75:5).
2 Eu não vi: Ariosto recorda a batalha de Polesella (22 de 6
Rei dos trigueiros: rei do povo negro, Senapo (rei da
Dezembro de 1509), à qual não assistiu por ter sido envia­ Núbia).
do por Ippolito d'Este a Roma, pedir ajuda ao papa Júlio
II ( Grande Pastor). 7 Cágados [ . .] gatos: sistemas de defesa usados na
Antiguidade. Na formação em cágado, ou tartaruga (em
3
Leão de Ouro: Veneza. português, «testudo»), os soldados romanos avançavam
em bloco com os escudos ao alto sobre as cabeças, uni­
4 A/fomin [ ..] Zerbinatto: Alfonso Troni era feitor de dos uns aos outros, formando como que uma carapaça
Alfonso I; Annibale Collenuccio e Piero Moro eram cor­ de tartaruga gigante. O gato era uma espécie de escudo
tesãos de Ippolito; Afranio era conde de Pavia; Alberto munido de um pequeno aríete capaz de abrir brechas em
Cesrarelli era um clérigo ao serviço de Ippolito; três portas e paredes.
Ariostos poderiam ser o primo Alfonso e os irmãos do
poeta, Alessandro e Cario; Ludovico da Bagno, homem 8 O que [ . .] destemido: Astolfo.
da corte, era padrinho de Virginio, filho de Ariosto;
9
Francesco Zerbinato era também cortesão e amigo pes­ Ocno: herói etrusco que fundou Félsina, accual Bolonha.
soal de Ariosto.
640 ORLANDO FURIOSO

10 23
Ondas [. . .} malditas: o Estige, rio dos Infernos. Lipadusa: ilha de Lampedusa, entre a costa da Tunísia
e Malta.
11
Pol vo: rei de Fez (cf. nota a XXXVIII:35).
24
Durindana [. . . } Gradasso: Durindana, abandonada
12
Duque do Leopardo: Astolfo. O leopardo é a sua insígnia. por Orlando na floresta quando enlouqueceu e dali leva­
da por Mandricardo (cf. XXIV:57 ss.); por morte deste,
13
O filho de Pepino: Carlos Magno. ficou em poder de Gradasso (cf. XXX:74:7-8).
14 25
Norandino: rei de Damasco (cf. XVII:23). De A/monte: que fora de Almonte (cf. nota a I:28), e
que Brunello roubou a Orlando e deu a Agramante (no
15 Aníbal [. . .} sofreram: Aníbal, depois de derrotado Orlando Innamorato) .
pelos Romanos, refugiou-se junto de Prúsias, rei da
26
Bitinia, que se sentia receoso por lhe dar protecção. Com Brigliador [. . .} Troiano: Brigliadoro, abandonado por
medo de que ele o entregasse aos Romanos, Aníbal sui­ Orlando quando enlouqueceu, e agora em poder de
cidou-se. Jugurta, rei da Numídia derrotado por Roma, Agramante (filho de Troiano) .
exilou-se junto do sogro, Boco, rei da Mauritânia; foi
27
por este entregue aos Romanos e executado. Seu cunhado: Oliviero (cf. nota a XXXIX:30:5).
16 28
Ludovico [. . .} Ludovico: Ludovico Sforza, il Moro, foi traí­ junto [. . .} encerra: onde Bradamante as encerrou,
do pelos seus mercenários suíços (cf. nota a XXXIII:36:5-6), depois de derrotar Rodomonte (cf. XXXV:53).
que o entregaram ao rei de França, Luís XII (outro Ludovico).
29
Guerreiro de Claramonte: Rinaldo.
17
Perdesse [. . .} aliança: fossem expulsos de Itália os
30
Franceses, seus aliados, e nela ganhassem ascendente o Da roda [. . .} mundo: a sorte, inescapável, abandona-o.
papa Júlio II e os aliados Espanhóis (aliança) .
31
Do [. . . } filho: Dudone.
18
Entre [. . .} fornalha: entre a costa africana e a Sicília.
32
Talvez a pequena ilha de Linosa, pouco distante da de O rei [. . . } Rimedonte: o rei dos Nasamões é Puliano
Lampedusa (ambas italianas), ou uma ilha imaginária. (cf. nota a XIV:22:3); Baliverzo é um rei africano já refe­
rido em XIV:24, XV:6 e XVI:75, sem identificação do seu
19 De Sericana [. . .} conduzido: Gradasso, querendo reino; Agricalte é o rei de Amónio (cf. nota a XIV:22:4);
regressar ao Oriente (cf. XXXIII95), ali naufragara. Farurante é rei de Maurina (cf. nota a XIV:21:4); Ma­
nilardo é o rei de Norizia (cf. nota a XII:69:1); Clarindo é
20
O exemplo [. . .} advertir: Pompeu, o Magno, general e rei de Bolga (cf. XIV:24: 1); e Rimedonte é o rei de Getúlia
estadista romano (106-48 a. C.) que venceu Sertório e (cf. nota a XIV:23:7).
unificou a Península Ibérica; derrotado em Farsália (48
33
a. C.), refugiou-se no Egipto junto do rei Ptolomeu XIV, A espada: Balisarda.
que o mandou matar.
34 Turpin: cf. nota a XIII:40:2.
21
Os outros [. . .} leis: cf. XXXIII:101:3-4.
35
Com o lado raso: com a face plana da lâmina da espada.
22
Macróbios: povos etíopes, assim designados por goza­
rem de vida longa.

CANTO XLI

O odor espalhado em bem tratada e bela


crina ou barba, ou delicado vestido
de bem-parecido jovem ou donzela,
que Amor desperta em lágrimas ungido,
se se evola e em redor se revela,
e após muitos dias inda é sentido,
demonstra com claro e evidente efeito
como a princípio era bom e perfeito.
2 O almo licor que aos seus ceifeiros deu
Ícaro a provar, para seu grande dano',
e que se diz que os Galos favoreceu
para os Alpes passar sem sentir afano,
que de início era doce bem pareceu,
se doce se mantém no fim do ano.
Árvore que no Inverno folha não perde
mostra que na Primavera era verde.
3 Porque a ínclita estirpe em cortesia
mostrou em séculos tanto perfume
que sempre mais revela e irradia,
com indício evidente se presume
que aquele que dos d'Este cepa seria
deve ter, com todo o nobre costume
que o homem aos céus sublime e evole,
brilhado como entre as estrelas o Sol.
642 ORLANDO FURIOSO

4 Ruggiero, que, em cada seu digno gesto, 10 Ou de frente ou de trás o vento expira,
de cortesia e alto valor mostrava e este para a frente e aquele para trás rechaça;
sempre sinal mui claro e manifesto, outro vem de través e o barco gira,
e sempre mais nobre se revelava, e cada um de naufrágio ameaça.
também mostrou ser com Dudon honesto, Aquele que está ao leme alto suspira
com o qual (como eu acima narrava) e a face mostra temerosa e baça;
dissimulara quanto era bem forte, e grita em vão, e em vão com a mão acena
por sentir relutância em dar-lhe morte. ou para girar ou para baixar a antena2 •
5 Dudon bem vira e tivera por certo 1 1 Mas de pouco o aceno ou o grito vale:
que Ruggier matá-lo não tinha querido; perde-se a visão na chuvosa noite.
estava exausto e de forças tão deserto A voz, sem se ouvir, pelo ar sobe e bale,
que defender-se não teria podido. pelo ar que feria com maior açoite
Ao entender e ver de modo aberto dos navegantes o grito geral
que o respeita e na luta é comedido, e o estrondo das ondas, sem que se acoite
valendo menos em força e vigor, na proa ou na popa, ou em qualquer banda,
não será em cortesia inferior. um som que se ouça da voz que comanda.
6 - Por Deus (disse), senhor, a paz reclamo 1 2 Da cólera do vento que se fende
que façamos; a vitória que eu queria nas enxárcias, saem horríveis sons;
minha, não o será; já me proclamo de espessos relampos o ar se acende,
vencido, e presa de tua cortesia. - trovões estalam em assustadores tons.
Ruggier respondeu: - Tanto a paz eu amo Corre-se ao timão, aos remos se atende;
como tu; mas na condição seria vão, por uso, ao ofício em que são bons:
que os sete reis que aqui tens amarrados um cansa-se a soltar, outro a amarrar,
deixasses que livres me fossem dados. - outro água vaza, e torna o mar ao mar.
7 E indicou-lhe os sete reis que eu disse 13 Chega estridindo a horrível procela
que atados estavam, rosto saturnino; que o súbito furor de bóreas tinge;
e acrescentou que não o impedisse ah, como a vela a árvore flagela
de tomar de África com eles destino. e o mar se eleva, e quase o céu atinge.
Deixou que com eles, livres, seguisse, Quebram-se os remos; desfortuna aquela:
concedendo inda mais, o paladino: tanto a impetuosa raiva a constringe
com sua licença o lenho tomou que a proa vira, e à mercê da onda
que escolheu, e para África zarpou. deixa o costado, sem que nada o esconda.
s Zarpou o lenho e hasteou a vela, 14 Toda sob água está a esquerda banda,
e deu-se ao pérfido vento em possança, e está para se virar para cima o fundo.
o qual de início a enfunada tela Aos gritos, asilo a Deus se demanda,
guiou, dando ao timoneiro confiança. pois certos estão de descer ao profundo.
Foge o lido e nunca mais se revela, Um mal após outro a procela manda:
parecendo que sem lido o mar avança. mal passa o primeiro, vem o segundo.
Ao escurecer do dia, tornou o vento O lenho em muitos pontos se deslaça,
clara a sua perfídia e traimento. e a onda inimiga para dentro passa.
9 Logo da popa para o lado fugiu, 15 Move cruel e assustador assalto
depois para a proa, mas deu outro arranco de todo o lado o tempestuoso inverno3 •
girando a nave, e os arrais confundiu; Às vezes o mar vêem vir tão alto
sopra atrás, de frente, e também do flanco. que parece chegar ao céu superno.
Onda alterosa e sinistra surgiu: Outras, pela onda acima dão tal salto
mugindo vai pelo mar o grege branco. que crêem olhar em baixo o Inferno.
De tantas mortes em receio estão, Nenhuma ou pouca esperança há que os conforte,
quantas as águas que feri-los vão. e está presente a inevitável morte.
CANTO XLI 64 3

16 Toda a noite por um diferente mar


foram errando, onde os levou o vento;
fero vento que devia cessar
nascendo o dia, mas ganhou aumento.
Em frente um escolho nu surge a ameaçar:
querem esquivar-se e não têm talento.
Leva-os, mau grado seu, àquela via
o vento cru e a procela bravia.
17 Quatro vezes o exangue timoneiro
se esforçou para dar a volta ao timão,
e encontrar, mais seguro, outro carreiro;
quebrou-se, e o mar lho arrancou da mão.
Tanto enche a vela o vento traiçoeiro
que não desce, grande ou pouca porção;
nem tempo têm de amparo ou abrigo,
pois muito perto está o mortal perigo.
18 Quando não ter remédio se compreende
o inevitável naufrágio da nave,
cada qual ao seu próprio interesse atende,
para que a salvação da vida alinhave.
Cada um na chalupa entrar pretende,
e ela fica de repente tão grave,
por tanta gente que lá dentro abunda,
que decerto em pouco tempo se afunda.
19 Ruggier, que viu o mestre e o capitão
e os mais abandonar à pressa a barca,
estando sem armas e só em gibão,
também quis embarcar naquela arca;
mas de pessoas tinha tal porção,
e mais vieram, que da água a marca
tanto passaram que o lenho a direito
com toda a carga foi do mar ao leito;
20 do mar ao leito, e com ele levou quantos
o maior deixaram com esperança neste.
Ouviu-se então, com dolorosos prantos,
clamar por socorro ao reino celeste;
mas pouco adiante foram esses cantos,
pois o mar irado, orgulhoso e agreste,
veio e ocupou toda aquela via
de onde o choro e o débil grito saía.
21 Há quem no fundo, sem mais se ver, fica;
e há quem surge e na onda se realça;
há quem nadando vem e a testa estica,
quem mostra um braço, ou a perna descalça.
Ruggier, que à tempestade não auspica
ceder, do fundo até ao cimo se alça
e o escolho nu não muito longe viu,
do qual com os companheiros fugiu.
CANTO XLI 645

22 À força de pés e de braços espera, 2s O qual desejo de saber sentiu


nadando, alcançar aquele seco chão. se vazia está, ou carga a ocupa;
Soprando, afasta do rosto a severa com Brandimarte lá se dirigiu,
água e a importuna ondulação. e o seu cunhado, em pequena chalupa.
Vento e borrasca entretanto a galera Quando sob a coberta se imergiu,
levam, que houve total evacuação viu que de homens ali nenhum se agrupa:
daqueles que, para sua triste sorte, Frontino achou como ocupante mero,
querendo escapar encontraram a morte. e a armadura e espada de Ruggiero;
23 Oh, como é falaz dos homens a crença! 26 do qual, para se salvar foi tanta a pressa
Salvou-se a nave, que estava a ruir que da espada levar nem teve tempo.
quando arrais e marujos indefensa O paladim por Balisarda essa
e sem governo a tinham deixado ir. conheceu, que sua já foi em tempo.
Parecia ter mudado de sentença Não há, de vós, que a história não conheça:
o vento, quando os homens viu fugir; que a Falerina a tirou, e a um tempo
o lenho encaminhou para melhor via: destruiu-lhe o jardim que era tão belo;
sem tocar terra, em mar seguro ia. e mais tarde a ele a roubou Brunello4 ;
24 Tendo, com timoneiro, via incerta, 27 e depois, junto ao monte de Carena 5 ,
sem ele, para África foi sem atrito, Brunel fez dela a Ruggier doação.
e foi aparecer perto de Bizerta, Como era o fio e como era a empena
a poucas milhas, do lado do Egipto; já ele sabia por experimentação
e nessa areia estéril e deserta (digo Orlando); por isso sentiu plena
ficou, faltando o vento e a água, fito. satisfação, e por Deus gratidão,
Ali sobreveio, em passeio andando, e muita vez disse (tendo a certeza)
como mais atrás eu narrava, Orlando. que Deus lha mandou para tão grande empresa:
2s pois empresa bem grande era, devendo
confrontar-se com o rei de Sericana;
porque, além de ele em valor ser tremendo,
sabia ter Baiardo e Durindana.
A armadura, não a conhecendo6 ,
não a apreciou por coisa soberana
como a apreciou quem já fez prova dela;
boa achou, sim, mas por ser rica e bela.
29 E, porque lhe eram de pouco mister
armas (era inviolável e fadado7 ),
não se importou que a houvesse Olivier;
a espada não, essa pôs ele ao lado;
coube a Brandimarte o cavalo ter.
Assim dividido e igualmente dado
quis ele que fosse, a cada companheiro,
o que juntos acharam no veleiro.
30 Para o dia da batalha, já marcado,
quer cada um ter mais rico o vestido.
Orlando manda bordar no quadradoª
/ .­ o alto Babel9 por um raio fendido.
/ ,... .<. :._..; . - ·
- 'i Oliviero um cão de prata deitado

�·�·.
quer, com o freio no dorso estendido,
com um moto a dizer: Até que venha 1°.
Em veste de ouro e bem digna se empenha.
646 ORLANDO FURIOSO

31 Fez voto Brandimarte que no dia 37 Dum lado e outro, até à nova luz,
da batalha, por amor a seu pai de guarda estão os servidores armados.
e por seu honor, não se adornaria, Brandimarte, à noite, os passos conduz
e só sobreveste negra usar vai. aonde estão os mouros alojados;
Fez Fiordiligi o melhor que sabia, com ordem do chefe, à conversa induz
e um belo debrum nela sobressai. o rei africano; amigos chegados
Fê-lo com ricas gemas manifesto, foram: Brandimarte para França avante
de negro e discreto tecido o resto. veio sob a bandeira de Agramante 1 3 •
32 Fez a dama com suas mãos as sobre­ 38 Após as saudações e o mão-na-mão,
vestes, que pediam armas mais finas 1 1 , muitos motivos, como amigo, disse
com que a couraça o cavaleiro cobre, o fiel cavaleiro ao rei pagão,
e ao corcel a garupa, o peito e as crinas. para que a não batalhar o persuadisse;
Mas desde que iniciou esta obra nobre, que as cidades todas suas serão
até chegar às últimas faxinas, que entre Gibraltar e o Nilo cobice;
e mesmo após, nunca sinal de riso de bom grado Orlando lhas oferecia,
se lhe viu, nem de alegria no viso. querendo ele crer no Filho de Maria.
33 No peito sempre um temor, um tormento, 39 - Porque vos amei e amo até aqui,
de perder seu Brandimarte tão querido. este conselho (dizia) vos dou;
Tinha-o já visto em lugares mais de um cento quando eu, senhor, para mim o elegi,
em batalhas perigosas envolvido; é porque, crede, ser bom ele provou.
mas nunca, como ora, a tinha o espavento Em Cristo achei Deus, de Maomé descri;
gelado no sangue e empalidecido; desejo pôr-vos na via em que estou:
e esta novidade, de ter temor, à via da salvação eu vos chamo,
no peito lhe incute duplo langor. senhor, e a todos aqueles que eu amo.
34 Com armas e todo o arnês equipados, 40 Aí está vosso bem; e não perfilho
os cavaleiros as velas dão aos ventos. que outra diferente decisão vos valha;
São Astolfo e Sansonetto encarregados e, menos que qualquer, que com o filho
de capitanear os fiéis armemos. de Milon 1 4 vos envolvais em batalha;
Fiordiligi, com temores arraigados, que o lucro de vencer, o empecilho
enchendo o céu de votos e lamentos, da tão grande perda todo o esfrangalha 1 5 •
enquanto pode acompanha com a vista Vencendo vós, pouco adquirir podeis;
a vela, que dali já muito dista. mas não perdereis pouco, se perdeis.
35 Sansonetto e Astolfo com árduo jeito 41 Se Orlando matardes, e a nós, trazidos
a afastaram da onda facunda, aqui para morrer ou vencer com ele,
ao palácio a levando, onde no leito eu não vejo como é que isso os perdidos
a deixaram prostrada e tremebunda. domínios a readquirir vos impele.
De cavaleiros o belo grupo eleito Vós não deveis esperar ver invertidos
suave brisa entretanto secunda. os factos, por nossa morte e daquele,
Chegou o lenho à ilha sem atrito, pois Carlos de homens presto se socorre
onde se iria ver tanto conflito. para aqui pôr, até à última torre. -
36 Descendo à praia o cavaleiro de Anglante, 42 Dizia assim Brandimarte, e quisera
o cunhado Oliviero e Brandimarte, dizer outras coisas que se propôs;
com seu pavilhão o lado levante mas foi com voz irada e face fera
ocuparam, e talvez não sem arte 1 2 • pelo outro interrompido, que interpôs:
No mesmo dia chegou Agramante, - É temeridade e loucura vera
o qual acampou na oposta parte; a tua, e de qualquer um que se pôs
mas, como avançada já ia a hora, jamais a dar conselhos de bandeja,
a liça adiaram para a outra aurora. sem que chamado a dar conselhos seja.
CANTO XLI 647

43 E que o conselho que me dás advenha 45 Agora podes ir; que se melhor
do bem que me quiseste e inda queres ora, aqui não estiveres amanhã armado
não julgo que crer em tal me convenha, do que hoje me pareces ser orador,
se aqui com Orlando te vejo agora. estará Orlando mal acompanhado. -
Creio é que, porque em seu poder te tenha Às últimas palavras deu alor
o infernal dragão que as almas devora, o peito aceso de Agramante irado.
queres contigo para o sofrimento eterno Regressou um e outro e repousou-se;
poder todos arrastar, para o Inferno. por fim do mar novo dia elevou-se.
44 Que eu vença ou perca, ou ao meu reino antigo 46 Ao clarear da nova alva armados
eu volte ou fique sem o seu comando, estavam todos, e num instante a cavalo.
já em sua mente Deus pensou consigo, Poucos ritos entre eles são usados:
e nem eu, nem tu, nem o sabe Orlando. demora não houve, nem intervalo,
Haja o que houver, não poderá acto imigo já ferros e lanças estão abaixados.
de um rei inclinar-me ao temor nefando. Mas, senhor, faria eu grande resvalo
Se souber que morro, quero antes morto se, por tanto destes contar, deixasse
ficar do que ao meu sangue fazer torto. Ruggier tanto no mar que se afogasse.
648 ORLANDO FURIOSO

47 O jovem pés e mãos desembaraça, 53 que, quando chegou perto: - Saulo, Saulo
e vencendo vai a onda profunda. (gritou) , por que persegues minha fé?
O vento e a tempestade o ameaça, (como dissera o Senhor a São Paulo,
mas sem que a consciência lhe confunda. para que o salvífico golpe lhe dê 1 6) .
Teme que Cristo ora vingança faça: O mar já passaste. E o frete do gaulo 17?
se para baptizar-se na água munda Outrem defraudaste de tal mercê.
por sua incúria a ocasião foi falsa, Vês que Deus te alcança (longa mão tem),
ora o baptize nesta amara e salsa. quando mais longe pensas que ele vem 1 8 • -
48 À mente lhe voltou que o prometeu, 54 E prosseguiu aquele santo eremita,
e tantas vezes à sua dama o fez; que Deus em visão avisado havia
e o que jurara quando se envolveu na noite antes que, com ajuda bendita,
contra Rinaldo, e nada satisfez. Ruggier àquele escolho chegar devia.
A Deus que aqui o não fizesse réu Sua vida passada lhe foi dita,
pediu repeso, quatro vezes, dez; e a futura, e a morte à felonia;
e prometeu com coração e fé filhos, netos e cada descendente
ser cristão, se em terra pusesse pé; lhe revelara Deus inteiramente.
49 e não mais pegar em espada nem lança 55 Continuou o eremita admoestando
contra os fiéis, para ajudar sarracenos; Ruggier de início, e por fim confortou-o.
e que voltava de imediato a França, Por sob o suave jugo ir protelando
e a Carlos ia render honores plenos; pôr o pescoço'9, primeiro censurou-o,
e a Bradamante não dar falsa esperança, e o que houvera a fazer de livre mando
mas fim honesto aos seus amores amenos. quando Cristo lhe pediu, e chamou-o;
Milagre houve: ao terminar aquele voto só o fizera ao sentir-se apertado
sentiu mais forças e mais leve o moto. e ao ver-se pelo seu chicote ameaçado.
50 A força cresce, e o ânimo é constante; 56 Mas confortou-o que não nega o Céu
as ondas Ruggiero corta e constringe: Cristo, tarde ou cedo, a quem lho indaga;
ondas que vão em sequência incessante, do Evangelho os operários encareceu,
e, enquanto uma o ergue, a outra o restringe. que receberam todos igual paga20 •
Subindo e descendo, assim segue avante Com caridade e zelo procedeu
com grande esforço, e ao fim a areia atinge; a instruí-lo, e sobre a fé divaga,
do lado em que é suavemente inclinado caminhando para a cela em passo quedo,
o escolho, sai do mar todo encharcado. que era escavada no meio do penedo.
5 1 Ficaram os outros no mar austero,
a todos o mar austero venceu.
Ao solitário escolho foi Ruggiero,
como à bondade divina aprazeu.
Quando se achou no monte inculto e fero
salvo do mar, novo temor nasceu:
de exilado ficar em tal confim,
e de ali morrer à míngua por fim.
52 Mas de peito indómito, e perseverante
em sofrer o que pelo Céu lhe é prescrito,
pela pedra dura os firmes pés para diante
moveu, com intento de ao cimo ir fito.
Cem passos ainda não dera avante
e viu, pelos anos e abstinência aflito,
homem que de eremita hábito e signo
tinha, de muito respeito e honor digno;
CANTO XLI 649

57 Em cima existe, da devota cela, 63 Entre o Adige e o Brenta, aos pés dos montes25
uma pequena igreja que responde de que o troiano Antenor gostou tanto,
a oriente2 1 , mui cómoda e bela; com doces nascentes, sulfúreas fontes,
dela um bosque desce até ao mar, onde terras lavradas e prados de encanto,
há loureiros e zimbros e murtela22 , que ao Ida preferiu tais horizontes,
e palmeiras que dão frutos avonde; e ao suspirado Ascânio e ao caro Xanto26 ,
é irrigado por límpida fonte, irá dar à luz na floresta agreste
que a sussurrar se despenha pelo monte. que pouco distante é do frígio Ateste27 •
58 Há já quarenta anos que se implanta 64 E por beleza e valor favorecido,
o frade eremita naquele rochedo; seu filho também Ruggier será dito,
para levar vida solitária e santa, e por tais troianos reconhecido
lugar escolheu o Salvador com dedo. de seu sangue, para seu senhor predito;
Dos frutos que dá uma ou outra planta e de Carlos, que ajudar terá ido
e de água pura a vida leva ledo, contra os Lombardos inda jovenzito,
que saudável, robusta e sem afano domínio da região terá de vez,
já atingira o octogésimo ano. e o honroso título de marquês.
59 Na sua cela o velho acende a lareira 65 E porque em latim dirá Carlos: - Este
e a mesa põe com variegados frutos, senhor aqui -, quando fizer o dom,
nos quais Ruggiero restaura a canseira, no século futuro chamado Este
com vestes e cabelos já enxutos. será o lugar, com augúrio bom;
Ali ouviu, de cómoda maneira, e assim perderá o nome de Ateste
da fé grandes mistérios e estatutos; as duas primeiras letras do som.
e baptizado foi na pura fonte Fizera-lhe Deus também predição,
ao outro dia, pelo velho, no monte. de Ruggier, da futura vingação:
60 Pese embora o lugar, contente estava 66 que numa visão à fiel consorte
Ruggier: que o servo de Deus prometia aparecerá, pouco antes de ser dia28 ;
que para o lugar que ele mais desejava e lhe contará quem lhe deu a morte,
dentro de alguns dias o mandaria. mostrando-lhe o lugar em que jazia;
De muita coisa entretanto falava: · onde ela após, com a cunhada forte,
ou ao reino de Deus se referia, a ferro e fogo Ponthieu destruía;
ou coisas à sua vida pertencentes, e aos de Mogúncia não dá menos danos
ou do seu sangue para as futuras gentes. seu filho Ruggier, quando tiver anos.
61 Tinha o Senhor, que tudo escuta e vê, 67 Não de Azzi, e de Alberti e de Obizzi só
revelado ao santíssimo eremita lhe falara, e da sua estirpe bela,
que Ruggier, desde o dia em que houve a fé, de Borso, Leonello, Niccolo,
sete anos de vida, não mais, tem escrita; Ercole, Alfonso, Ippolito e Isabella29 •
pois sua dama matou, mas ele se crê Mas tem na língua o santo velho um nó,
ter sido (que a morte lhe foi prescrita), e nem tudo o que sabe lhe revela:
Pinabel23 ; e Bertolagi24 igualmente. narra a Ruggier o que narrar convém,
Matam-no os de Mogúncia, ímpia gente. e, aquilo que deve reter, retém.
62 Será tal traimento tão oculto 68 Neste interim Orlando e Brandimarte
que busca para dele saber será vã; e o marquês Olivier, com o ferro lasso30 ,
pois no próprio local será sepulto vão defrontar o sarraceno Marte
onde o matará a gente malsã; (que assim se pode nomear Gradasso)
por isso, tarde o vingarão do insulto e os outros dois que na oposta parte
sua mulher e também sua irmã. moveram os cavalos mais que a passo;
Com o ventre prenhe, por longa via digo eu, rei Agramante e rei Sobrino:
sua fiel mulher o buscaria. ribomba ao galope o lido marino.
650 ORLANDO FURIOSO

69 Quando em cada recontro vão cruzar-se, 70 Embateu no corcel de menos boa


e em pedaços voa ao céu cada lança, força, de Orlando, com forte abanão
com o rumor foi visto o mar inflar-se, que o fez vergar tanto à ré corno à proa,
com o rumor que até se ouviu em França. e depois cair estendido no chão.
Vão Orlando e Gradasso defrontar-se: Três, quatro vezes, Orlando o abalroa,
podia equilibrar-se esta balança, esporeia-o forte e puxa-o com a . mão;
se não fosse a vantagem de Baiardo, por fim, ele não se erguendo, desmontou,
que fez parecer Gradasso mais galhardo. sacou Balisarda e o escudo ernbraçou.
CANTO XLI 651

71 Embatem-se Oliviero e Agramante, 77 Dá azo a que o conde outro golpe apronte:


e tanto é um como o outro preclaro. a cabeça dos ombros quer extirpar-lhe.
Brandimarte de cavalo minguante Sobrin sabe o valor de Claramonte,
deixou Sobrino; mas não ficou claro e que pouco serve o golpe aparar-lhe:
se cavaleiro ou besta houve agravante, recua, mas não tanto que na fronte
Sobrino cair sendo caso raro. não fosse Balisarda inda acertar-lhe.
Fosse dele ou do corcel o resvalo, Foi de chapa o golpe, mas forte a ponto
Sobrino viu-se no chão sem cavalo. de o elmo lhe amolgar e o deixar tonto.
n Brandimarte, ao ver caído por terra 78 Do feroz golpe cai Sobrin por terra,
Sobrino, não o assaltou novamente, onde ficou por muito tempo absorto3 1 •
mas contra o rei Gradasso se descerra, Crê ter terminado com ele a guerra
que Orlando tinha abatido igualmente. o paladino, e que ele jaza morto;
Segue entre o marquês e Agramante a guerra e direito a Gradasso se descerra,
como começara primeiramente: para não levar Brandimarte a mau porto:
depois de quebrar as hastas nos escudos, que o pagão em espada e armas o avança,
dão-se ao ataque com estoques desnudos. e em cavalo, e talvez mesmo em possança.
73 Orlando, que Gradasso em acção vê, 79 O audaz Brandimarte sobre Frontino,
parecendo que a si voltar não lhe calha, o bom corcel que de Ruggiero fora,
nem que Brandimarte o deixe prevê, tão bem se porta com o sarracino
vendo que tanto o aperta e o trabalha, que nem parece que ele melhor labora;
em torno se regira e entrevê e, se ele possuísse um arnês tão fino
Sobrino a pé também e sem batalha. como o pagão, melhor estaria agora;
Para ele se aventa, e, ao ir para diante, mas convém-lhe (pois mal se sente armado)
faz tremer o céu seu fero semblante. esquivar-se para um ou para outro lado.
74 Sobrino, ao ver de tal homem o assalto, 80 Não há cavalo que melhor entenda
em posição defensiva se especa: que Frontino do cavaleiro sinal:
qual barqueiro que vê formar o salto parece que onde Durindana fenda,
mugindo, contra si, a onda em breca, para aqui, para ali, para esquivá-la resvale.
volta-lhe a proa, e, quando o mar tão alto Agramante e Olivier batalha horrenda
vê subir, queria estar em terra seca, à parte fazem, e dir-se-ia igual
Sobrin com o escudo enfrenta a ruína o valor dos dois guerreiros experientes,
que provém da espada de Falerina. que em força são também pouco diferentes.
75 De tal fineza é a tal Balisarda 81 Tinha deixado, como eu disse, Orlando
que as outras armas têm pouco amparo; Sobrino por terra; e contra Gradasso,
e na mão de pessoa tão galharda Brandimarte socorrer desejando,
como Orlando, único no mundo ou raro, estando apeado, vinha em largo passo.
o escudo retalha; e nada a retarda, Pouco faltava para assaltá-lo, quando
embora ele tenha em aço todo o aro; viu passeando pelo campo a compasso
corta o escudo e do alto ao fundo o fende, o bom corcel do qual Sobrin tombou,
e sob aquele vai ao ombro, que ofende. e para o agarrar presto a ele chegou.
76 Vai ao ombro, e é certo que o agasalha 82 No corcel não achando oposição,
dupla chapa, e boa malha o aperta; elevou-se de um salto e entrou na sela.
não quer dizer que de algo isso lhe valha, Tem a espada suspensa numa mão,
e grande chaga não lhe deixe aberta. e a outra dá à brida rica e bela.
Responde Sobrin, mas em vão trabalha Gradasso Orlando sem preocupação
para Orlando ferir, pois a graça certa vê vir para si, e que o seu nome apela.
o Motor do céu e estrelas a ele A ele e a Brandimarte e ao outro quer
deu de nunca se lhe furar a pele. a noite dar, sem noite ser sequer.
652 ORLANDO FURIOSO

83 Deixa Brandimarte e ao conde se espaça, 89 e a Olivier torna, a dar-lhe despacho,


e com a ponta no gorjal32 o alcança; para presto à outra vida ser expedido;
excepto a carne, todo o resto trespassa: ou ao menos fazê-lo estar debaixo
para aquela furar vã é toda a chança. do cavalo, e ser de erguer-se impedido.
Orlando com Balisarda rechaça: O seu melhor braço Olivier tem laxo,
nada vale encanto33 quando ela avança. e com a espada dele se tem valido;
O elmo, o escudo, a couraça e o arnês, daqui, dali, tanto lhe bate e o punge
em tudo quanto apanhou talho fez; que em longueza de Sobrino o disjunge.
84 e no semblante, na coxa e no peito 90 Espera, mantendo-o de si afastado,
ferido deixou o rei de Sericana, sair em pouco tempo da aflição.
que nunca sangrara desde que efeito Todo de sangue o vê tinto e ensopado,
tem de tais armas; acha coisa arcana e tal quantidade verte para o chão
que aquela espada (sente ódio e despeito) que em breve, julga, estará acabado:
lhas corte assim, e sem ser Durindana. já mal se tem em pé, de frouxidão.
Se mais longo era o golpe, ou de mais perto, Olivier para se erguer faz tentativa,
da cabeça ao ventre o teria aberto. mas de cima o corcel não se lhe esquiva.
85 Nas armas fazer fé já não prevê 91 Chegou-se Brandimarte a Agramante,
como antes fazia; a prova é exacta. muito se agitando em seu derredor
De mais cautela e senso se provê com Frontino, que ora ao lado ora adiante
agora, e mais a defender se adapta. está, como um torno girando em redor.
Brandimarte, que Orlando chegar vê, Bom corcel o filho de Monodante
e das mãos a batalha lhe arrebata, tem, e o rei de África um não inferior:
põe-se no meio de uma e de outra liça34 , tem Brigliadoro, que lhe deu Ruggiero,
e onde é preciso ajuda não esperdiça. quando o tirou a Mandricardo fero.
86 Encontrando-se a batalha em tal estado, 92 Grande vantagem lhe vem da armadura,
Sobrino, que muito no chão ficara, pois perfeição para toda a prova expressa.
ergueu-se com o senso recuperado, Brandimarte a sua teve à ventura,
mas muito lhe doía o ombro e a cara; conforme pôde, para tal caso, à pressa;
alçando a vista, olhou para cada lado, mas a sua intrepidez lhe assegura
e aonde o seu senhor se lhe depara, que em breve a trocará por melhor que essa;
para dar-lhe ajuda, os passos dirigiu embora Agramante com uma estocada
tão silente que ninguém o sentiu. lhe tornasse a espádua destra encarnada,
87 Vem por trás de Olivier, que os olhos tinha 93 e de Gradasso tivesse no flanco
em Agramante e a mais nada atendia; chaga que não era para brincadeira.
e aos joelhos traseiros lhe encaminha, Tanto soube esperar o guerreiro franco
do corcel, cutilada tão bravia que de a espada cravar achou maneira.
que de imediato à força se esparrinha. Quebrou o escudo, feriu o braço manco,
Cai Olivier, ter-se em pé nem podia; e a destra tocou de forma ligeira.
faltou-lhe o pé: por estar desprevenido, Mas isto é só criancice e ameaço,
no estribo, sob o corcel, está metido. contra o que fazem Orlando e Gradasso.
88 Sobrin repete o golpe, e de través 94 Gradasso Orlando tem meio desarmado:
lhe dá, pensando a cabeça depor; o elmo em cima e ao lado está fendido,
veda-o o aço polido que fez e o escudo fez cair e jaz no prado;
Vulcano e foi usado por Heitor3 5 • couraça e malha já tinha rompido;
Vê Brandimarte o perigo, e a sete pés ainda não o feriu por ser fadado.
corre para Sobrino, qual voador; Mas pelo paladim foi ele mais punido:
na cabeça lhe dá e ao chão o manda, na face, no pescoço e ao meio do peito
mas o velho num instante em pé anda; o feriu, e o mais que eu disse tinha feito36 •
CANTO XLI 653

95 Gradasso desesperado, pois se vê 98 Mas girando o olhar, o rei Agramante


pelo próprio sangue encharcado e corrupto, viu que sofria grande provação,
enquanto Orlando, da cabeça ao pé, pois ao elmo o filho de Monodante
depois de tantos golpes está enxuto, deitou-lhe, com o braço esquerdo, a mão;
ergue a espada a 'duas mãos, e bem crê já lho desafivelara adiante,
ao ventre abri-lo desde o cocuruto; e tenta, com punhal, nova agressão;
e o golpe ao seu desejo corresponde: nem defesa contra ele o rei tem,
na fronte, em cheio, atinge o fero conde. que a espada da mão lhe tirou também.
96 Outro fosse e não Orlando, e de facto 99 Volta Gradasso e já não segue Orlando,
tê-lo-ia fendido até à sela; pois onde Agramante vê logo acorre.
mas, como se desse com o lado chato, Incauto, Brandimarte, não pensando
a espada regressou brilhante e bela. que aquele atrás de Orlando já não corre,
Com a pancada Orlando, estupefacto, olhos e ideia nele não tem, instando
olhando o chão viu uma ou outra estrela; no punhal, que no pagão se amodorre.
largou a brida, e a espada largado Chega Gradasso e, com toda a pujança,
teria, mas no pulso a tinha enfiado. com duas mãos a espada ao elmo lança.
97 Com o som do golpe mui espavorido 1 00 Pai do Céu, dá entre as almas ditosas
ficou o corcel que Orlando montava, assento a este teu mártir fiel,
que, percorrendo o poeirento lido, que, findas as viagens tempestuosas,
quanto era bom para a corrida mostrava. no porto as velas amaina ao batel.
De tal pancada o conde combalido, Ah, Durindana, como é que ser ousas
por inacção a brida não esticava. para o teu senhor Orlando tão cruel,
Segue-o Gradasso, e para que o alcançasse que o companheiro mais grato e constante
bastava que Baiardo mais esporeasse. que tem no mundo lhe matas diante?
101 De ferro, com dois dedos, o elmo tinha
um aro; partiu-se, saiu do encaixo
com o fero golpe, e rompeu-se asinha
a coifa de aço que tinha por baixo.
De Brandimarte a face se amesquinha,
e seu corpo cai do cavalo abaixo;
da cabeça jorra, de larga veia,
um rio de sangue que escorre na areia.
1 02 Recobra-se o conde e seus olhos gira,
e em Brandimarte no chão os pousou;
debruçado o sericano inda o mira,
e assim fica a saber quem lho matou.
Não sei se nele mais pôde dor ou ira,
mas o tempo de chorar refreou,
guardando a dor; a ira não conteve.
Mas ao canto pôr fim ora se deve.
654 ORLANDO FURIOSO

NOTAS

1 19
Ícaro [. ..] dano: Ícaro, filho de Ébalo, rei da Lacónia, Por [. .. } pescoço: por ter protelado a sujeição à fé cris­
deu a beber aos seus ceifeiros um vinho vivificante, o que tã (suave jugo) .
reverteu em seu dano, pois os ceifeiros embriagados, jul­
20
gando-se envenenados, mataram-no. Do Evangelho [. ..} paga: a parábola dos trabalhadores
que receberam paga igual para tempo de trabalho desi­
2 Antena: mastro, vela. gual (Evangelho de S. Mateus, XX: 1 - 1 6).
3 21
Inverno: tempestade. Igreja [. . . } oriente: as antigas igrejas tinham o altar
virado para o Oriente.
4
A Falerina [. ..} Brune/lo: cf. nota a VIl:76: 1 .
22
Murtela: murta.
5
Monte de Carena: cf. nota a VII:67:5.
23
Sua dama [. ..} Pinabel: Ruggiero é considerado cul­
6
Não a conhecendo: Orlando desconhece que se trata pado da morte de Pinabello, que na verdade foi morto
das armas de Heitor, que Ruggiero herdou de Man­ por Bradamante (cf. XXIl:97).
dricardo quando o matou (cf. nota a XIV:31:5-6, e cf.
24
XXX:74:6-8). Berto/agi: cf. XXVI: 1 3.
7 25
Invioldvel e fadado: cf. XII:49: 1 -3. Entre [. ..} montes: os montes Euganei, que ficam
entre aqueles dois rios do Nordeste de Itália.
8
Qµadrado: insígnia de Orlando (cf. nota a XV111:
26
147:1-4). Ida [. ..} Xanto: o monte Ida e os rios Ascânio e Xanto,
junto a Tróia.
9
O alto Babel: a torre de Babel, símbolo da soberba
27
pagã vencida pelo Céu. Frlgio Ateste: castelo de Ateste, edificado, segundo a
lenda, pelo troiano (ftlgio) Antenor. Ateste é o nome pri­
10
A té que venha: até que a presa se aproxime. mitivo de Este.
11
Pediam [. ..}finas: as armas que Brandirnarte e os compa­ 28
Pouco [. . . } dia: hora em que os sonhos nos parecem
nheiros iam usar nesta expedição eram de qualidade muito mats reais.
inferior à das suas próprias, de que estavam desprovidos.
29
Azzi [. ..} Isabel/a: alguns dos descendentes de Ruggiero
12
Não sem arte: para que o Sol não lhes batesse nos e Bradamante (cf. III:22 ss.) .
olhos, durante o combate.
30
Lasso: baixo.
13
Brandimarte [. ..} Agramante: no Innamorato,
31
Boiardo não diz que Brandimarte veio para França com Absorto: sem dar acordo.
o exército de Agramante, mas sim com Orlando, que já
32
o convertera ao cristianismo. Gorjal: parte da armadura que protegia o pescoço.
14
Filho de Milon: Orlando (cf. nota a I:57: 1). 33
Encanto: as armas de Gradasso eram fadadas (cf.
XXXIIl:82:5-8).
15
O lucro [. ..} esfrangalha: o risco (empecilho) de perder
34
a vida não é justificado pelo lucro que que a possível No meio [. ..} liça: entre os dois pares que lutam, i.e.,
vitória dará. Oliviero/Agramante e Gradasso/Orlando.
16 35
Saulo [. ..} dê: o grito que na estrada de Damasco, O aço [. ..} Heitor: Oliviero envergava a armadura
acompanhado por um raio, surpreendeu Saulo de Tarso, deixada por Ruggiero no navio abandonado (cf. 28-29),
cidadão romano que perseguia os cristãos. Convertido, a qual pertencera a Heitor.
tornou-se Apóstolo de Cristo (S. Paulo) .
36
E o mais [. .. } feito: cf. 83:7-8.
17
Gaulo: antiga embarcação fenícia.
18
O mar [. ..} vem: Ruggiero é advertido por não ter pago
a Deus o devido tributo (frete do gaulo) para fazer a sua tra­
vessia. Tal como a Saulo, a mão de Deus alcançou-o.
-fJ:lffe­
CANTO XLII

Qual rijo freio ou qual férreo nó cego,


qual, se a houver, corrente de diamante
fará que a ira à ordem tenha apego,
e além do prescrito não passe adiante,
quando pessoa que com forte prego
Amor no peito te fixou, constante,
tu vejas, com violência ou com engano,
ser alvo de desonra ou mortal dano?
2 E se a cruel, se a desumano efeito
essa paixão o coração desvia,
merece escusa, porque então do peito
não tem razão império ou senhoria.
Aquiles, vendo sob o elmo eleito 1
Pátrodo encharcar com seu sangue a via,
quem o matou matar não o saciou:
dilacerou-lhe o corpo, que arrastou2 •
656 ORLANDO FURIOSO

3 Invicto Alfonso, igual ira acendeu 7 Qual nómada pastor que relanceia,
vossa gente o dia em que pedra grossa rastejando em fuga, a cruel serpente
vos atingiu a fronte, e a ofendeu, que o seu filho, que brincava na areia,
pensando estar perdida a vida vossa3 ; lhe matou com seu venenoso dente,
tal fúria a tomou que não defendeu e o bastão com raiva e fúria maneia,
vosso inimigo dique, muro ou fossa: tal a espada, que as outras mais pungente,
todos mortos foram, sem que um escapasse maneia em ira o cavaleiro de Anglante;
para que tal notícia a outrem levasse. quem primeiro encontrou foi Agramante,
4 O ver-vos cair provocou a dor s que, sangrando e sem ferro defensivo,
que aos vossos deu furor e crueldade. com meio escudo e o elmo deslaçado,
Estivésseis vós em pé, talvez menor e feridas que a descrever eu me esquivo,
das espadas tinha sido a autoridade. tinha às mãos de Brandimarte escapado,
Bastar-vos-ia a Bastia ao dispor como a garra de açor gavião mal vivo,
voltar a ter, e em menor quantidade solto atrás dele por caçador estouvado.
de horas que em dias vos fora tirada, Chegou Orlando, e o golpe deu sem custo
por gente de Córdova e de Granada. onde a cabeça confina com o busto.
5 Talvez Deus vingador haja deixado 9 Solto o elmo e desarmado o pescoço,
que em tal função estivésseis impedido, rente o cortou como se fosse um junco.
para que o excesso cruel e celerado Caiu a última vez, um destroço,
que antes tinham feito fosse punido; o torço do rei africano, trunco6 •
assim que em mão tiveram, derrotado, Correu o espírito ao infernal fosso,
o infeliz Vestidel, lasso e ferido, pescando-o Caronte com dedo adunco.
sem armas, por cem espadas foi inciso4 Mas Orlando sobre ele não se detém:
pelo povo em maioria circunciso5 • com Balisarda o sericano vem.
6 Mas porque eu quero concluir, vos digo 10 Conforme viu Gradasso de Agramante
que nenhuma outra ira se despeja cair o tronco do crânio diviso,
como, senhor, parente, afecto antigo o que nunca sentira ora é flagrante:
que à nossa frente injuriar se veja. o coração tremeu, turvou-se o viso;
Normal é pois que, por tão caro amigo, e, ao ver-lhe perto o cavaleiro de Anglante,
de Orlando o peito pela ira se reja, pareceu, a seu mal aceitar, deciso.
se pelo horrível golpe desferido Para se defender gesto nem esboçou
por Gradasso o vê no chão falecido. quando o mortal golpe sobre ele tombou.
CANTO XLII 657

li Orlando golpeou no destro flanco, 17 e, se o cunhado7 não viesse ajudá-lo


na última costela; e o ferro, imerso (tão lacrimoso estava e tão dolente),
no ventre, um palmo foi sair no manco, sozinho não conseguia tirá-lo;
de sangue até ao punho todo asperso. e tanta dor e tal tormento sente
Mostrou bem que foi da mão do mais franco que, tendo-o tirado, nem para mudá-lo
e melhor guerreiro do universo nem para nele se firmar era potente;
o golpe que a um senhor deu a morte, na perna tem também dor tão aguda
que entre os pagãos não tinha outro mais forte. que não pode mover-se sem ajuda.
12 Com a vitória pouco jubiloso, 1 8 Pouca exultação a vitória trouxe
da sela o paladino se arremessa a Orlando; e era muito amargo e duro
e, com rosto turbado e lacrimoso, ver estar Brandimarte da morte em posse,
para o seu Brandimarte corre com pressa. e não estar do seu cunhado seguro.
Vê o chão em redor dele sanguinoso; Sobrin, que inda vivia, recuperou-se,
o elmo, que aberto a machado, expressa: mas tinha pouco claro e muito escuro;
se. mais frágil fora do que cortiça, pois sua vida, pelo perdido sangue,
não lhe dera defesa mais mortiça. estava próxima de ficar exangue.
1 3 Orlando o elmo lhe tirou do viso, 1 9 Mandou dali levá-lo em modo digno
e viu que do crânio até ao nariz, o conde, e tratar adequadamente;
entre um e outro olho, estava diviso; e confortou-o com falar benigno,
mas espírito inda resta ao infeliz, tal como se ele fora seu parente;
que dos erros, ao Rei do Paraíso, que após o facto8 , nada de maligno
antes do ocaso, pedir perdão diz; em si tinha, mostrando-se clemente.
e a o conde confortar, por cujo rosto Aos mortos, armas, corcéis fez depor;
o pranto escorre, está inda disposto; do resto, seus servos deixou dispor.
1 4 e a dizer-lhe: - Orlando, não esqueça a ti 20 Que minha história seja verdadeira
a Deus recordar-me em tua oração; a Federigo Fulgoso9 fez espanto;
e recomendo-te a minha Fiordi ... -, o qual, com a frota tendo a ribeira
de dizer: - .. .ligi - não tendo ocasião. da Berberia 1 0 andado em todo o canto,
Vozes e sons de anjos ouviu-se ali, ali foi, e aquela ilha altaneira,
do ar vindo, e a alma o deixou então; montanhosa e irregular achou tanto
a qual, despida do corpóreo véu, que não tem, diz, todo esse sítio agreste
subiu, com doce melodia, ao Céu. um ponto plano onde um só pé se asseste;
15 Orlando devia ter-se alegrado 21 nem crê verosímil que no alpestre
com tão devoto fim, por ter por certo escolho seis guerreiros, a flor do mundo,
que Brandimarte se tinha elevado pudessem travar tal batalha equestre.
ao empíreo (o Céu lhe viu ser aberto), Respondendo à objecção, eu secundo:
mas, pela humana índole apegado nesse tempo, um bom recinto pedestre
aos frágeis sensos, não achava acerto para tal uso tinha esse escolho ao fundo;
se aquele, mais que irmão, ir embora visse, depois, um sismo um monte derruiu,
e o pranto seu rosto não lhe cobrisse. sobre ele desabou, e todo o cobriu.
1 6 Sobrin muito sangue tinha perdido, 22 Por isso, ó claro esplendor da Fulgosa
que no flanco e nas faces lhe escorria, estirpe 1 1 , ó serena, ó sempre viva luz,
estando há muito tempo no chão caído; se me repreendeste com tal glosa,
de sangue as veias vazias já teria. talvez frente ao doge de quem se aduz
Jazia Olivier, sem ter conseguido que por ele vossa pátria ora repousa 1 2,
reaver o pé; nem reaver podia deixa o ódio e ao amor a coisa induz;
senão desengonçado, e, porque o esmaga peço, a dizer-lhe não sejas moroso
tanto o cavalo, com aberta chaga; que até nisto eu não serei mentiroso.
658 ORLANDO FURIOSO

23 Nessa altura, erguendo os olhos ao mar, 26 A acusar Melissa principiou,


viu vir Orlando à vela em veloz rota e a maldizer o oráculo da gruta 1 3 ;
um navio ligeiro, que de aportar por tão falsa persuasão mergulhou
parecia ter intenção na ilhota. no mar de amor em que a morte a recruta.
De quem era, não quero ora contar: A Marfisa depois se lamentou
mais que um por mim espera em parte remota. que a lealdade do irmão é corrupta;
Vejamos em França, onde foram expulsos grita, desabafa, e que lhe dispenda
os Mouros, se estão ledos ou insulsos. ajuda suplica, e se lhe encomenda.
24 Vejamos que faz a fiel amante 27 Marfisa apenas os ombros encolhe,
que vê para longe ir-lhe a consolação; e faz-lhe o que apenas pode: conforta;
falo da atormentada Bradamante, que Ruggier tanto falhe, não acolhe,
ao ver que foi o juramento vão que não regresse em breve à sua porta.
de que Ruggier fora, há pouco, aceitante, E, se não voltar, prometer-lhe escolhe
ouvido pelo nosso grupo e o pagão. que uma falta tão grave não suporta:
Que a tal ele tenha falhado lhe afiança ou com ele trava batalha inimiga,
mais nada haver em que ela tenha esperança. ou à promessa observar o obriga.
25 Prantos e lamentos de novo expele, 2s Assim, a dor dela um pouco refreia
tornando ao seu familiar apuro; (se um mal eu expando, menos o preservo).
voltou ao uso de chamar cruel Bradamante de dor já vimos cheia,
a Ruggier, e ao seu fado atroz e duro. chamando a Ruggier perjuro e protervo;
E as velas desfraldando à dor de fel, vejamos se melhor vida alardeia
ao Céu, que consentia um tal perjuro o seu irmão, que não tem pulso ou nervo,
sem de indignação dar signo evidente, osso ou medula que esteja ao abrigo
injusto chama, fraco e impotente. do fogo de amor; de Rinaldo digo:
29 digo Rinaldo, o qual muito atrapalha,
como sabeis, Angelica amar tanto;
não o atraíra à amorosa malha
tanto a beleza dela como o encanto 1 4 •
Os outros paladins nada atassalha,
depois que os Mouros sofreram quebranto:
entre os vencedores, era ele apenas
a estar cativo de amorosas penas.
30 Cem correios buscar onde estivesse
mandara, e procurou-a ele também.
Por fim a Malagigi comparece,
que em necessidade ajudado o tem.
Sobre o seu amor, tudo lhe esclarece;
rosto rubro, os olhos baixos mantém.
Depois, pede-lhe que lhe diga onde
a desejada Angelica se esconde.
31 Grande espanto por este estranho caso
vai revolvendo a Malagigi o peito.
Sabe que só Rinaldo não deu azo
a tê-la cem vezes ou mais no leito.
Ele próprio, para o primo sem atraso
persuadir, muito tinha dito e feito,
com rogos e ameaças, para o dobrar;
mas nunca pudera tal alcançar:
CANTO XLII 659

32 com tal acordo, Rinaldo então teria 33 Embora a Malagigi tal pedido
tirado Malagigi da prisão. de Rinaldo importuno lhe parecesse,
Fazê-lo ora espontaneamente queria, que o seu amor muito tinha crescido
quando vantagem não há nem razão. indício manifesto lhe fornece.
E diz-lhe que recordar-se devia Vão não será o rogo a si expandido,
do mal que lhe fez naquela ocasião; e nas águas do olvido fenece
pois por aos seus pedidos ficar mouco qualquer lembrança da injúria velha;
para deixá-lo ali morrer faltou pouco 1 5 • para lhe dar socorro já se aparelha.
660 ORLANDO FURIOSO

34 Fixou um prazo para a resposta, e esperança 40 Que Angelica partisse, demasiado


lhe deu que favorável lhe seria: grave não era para o fogoso amante;
saberá dizer-lhe onde tem andança nem o sono lhe teria tirado,
Angelica, ou em França ou noutra via. ou ideia de voltar ao Levante;
Depois Malagigi para o sítio avança mas quando que as primícias desfrutado
onde os demónios esconjurar soía, de seu amor tinha um mouro garante,
que era entre montes, num antro nefando; tal rancor e tal amargura sente
abre o livro, e os espíritos chama em bando. que nunca na vida foi tão sofrente.
35 E escolhendo um que dos casos de amor 41 Nem uma só resposta pronuncia;
tinha notícia, por ele saber quis dentro o coração, fora o lábio treme;
como é que Rinaldo, não amador a língua palavra não balbucia;
antes, o é agora de tal cariz; na boca, amarga um peçonhento creme.
e ouviu das duas fontes o teor: De Malagigi logo se desvia,
fogoso amor dá uma, outra interdiz; e, porque a raiva do ciúme o preme,
e o mal que uma causa, só o socorre após longo pranto e grande lamento,
a outra fonte que contrária corre. de ao Levante voltar faz o intento.
36 Ouviu ainda que, tendo daquela 42 Pede licença ao filho de Pepino,
Rinaldo bebido que o amor tira, com a desculpa que o corcel Baiardo,
os muitos rogos de Angelica bela levado por Gradasso, o sarracino,
com obstinado desdém repelira; contra o dever do cavaleiro galhardo 16 ,
mas depois, quis a sua iníqua estrela o chama, por honor, àquele destino,
que fosse à outra que o amor inspira, para impedir que esse mouro bastardo
e amor sentiu, por força que água dava, possa gabar-se de, com espada ou lança,
por ela, que antes lhe desagradava. o ter tirado ao paladim de França.
37 Por iníqua estrela e fado emento 43 Deixou Carlos partir o seu vassalo,
bebeu a chama na gelada bica; mas ficou, como toda a França, mesto;
porque Angelica no mesmo momento porém, não foi capaz de contrariá-lo,
bebeu na que doçura não auspica, tanto lhe pareceu seu desejo honesto.
que o peito de amor lhe deixou isento, Quer Dudon, quer Guidon acompanhá-lo,
a ele mais que às serpentes esquiva fica: mas Rinaldo a ambos rejeita o gesto.
amou-a ele ao ponto em que também, Deixa Paris e à via se faz só,
nela, alcançava o ódio e o desdém. todo ele suspiros e amoroso dó.
38 Do estranho caso de Rinaldo em pleno 44 No pensamento tem sempre presente
foi Malagigi pelo demo instruído; que mil vezes podia tê-la tido,
que Angelica a um jovem agareno e mil vezes, obstinado e demente,
toda se deu, também foi advertido; tinha a rara beldade repelido;
e depois tinha deixado o terreno do prazer que recusara indiferente,
todo de Europa, e que do hispano lido o bom ensejo já estava perdido;
para a Índia partira, com os capitães gostaria ora de tê-lo um só dia,
dos audazes navios dos Catalães. e depois de bom grado morreria.
39 Quando veio o seu primo pela resposta, 45 Tem sempre em mente, sem que dele se aparte,
Malagigi com força o dissuadiu como é que pode ter um pobre infante 1 7
de Angelica amar, a qual estava posta no coração dela posto de parte
ao serviço dum bárbaro gentio; mérito e amor de qualquer outro amante.
de França já tanto se desencosta Tal ideia, que o coração lhe parte,
que seus passos seguir é erradio; acompanha Rinaldo para levante;
já percorrera mais de meio caminho para o Reno e Basileia a ir se entrega,
para regressar com Medoro a seu ninho. até que à floresta de Ardenas chega.
CANTO XLII 661

46 Quando muitas milhas já tinha andado 50 Ao peito o monstro a serpente lhe induz,
o paladim pelo bosque, aventuroso, e sob a armadura o coração gela;
de vilas e de aldeias distanciado, depois pela viseira lha introduz,
onde era o sítio mais áspero e perigoso, e deixa-a errar pelo rosto e pela goela.
viu de repente todo o ar turvado Rinaldo mais para longe se conduz,
e o Sol escondido pelo céu nebuloso, e esporeia o cavalo e dá-lhe trela;
e, saindo duma caverna escura, de coxa a Fúria infernal não tem nada:
um estranho monstro em feminil figura. de um salto está na garupa montada.
47 Sem pálpebras, olhos mil na cabeça 51 De través, a direito ou em torção,
tem, que não fecha, e que durma não creio; consigo tem sempre a maldita peste;
tem de orelhas, como de olhos, remessa; de se livrar dela não vê feição,
por crinas, tem de serpentes floreio. embora o corcel a escoucear se aleste.
Das trevas diabólicas se arremessa Como folha lhe freme o coração:
à luz o ser assustador e feio. não que mais que antes a cobra o moleste,
Por cauda, tem fera e maior serpente, mas tal repulsa lhe inspira e fobia
que se enrosca no peito atrás e à frente. que grita, geme, e vê-la morta queria.
48 O que a Rinaldo em mil e mil empresas 52 Por áspero caminho, pela via pior
nunca lhe aconteceu, ora acontece: corre, busca o mais intricado bosco,
conforme o monstro vê que para as torpezas o vale onde é mais espinhoso, o pendor
se prepara, e em seu caminho aparece, que é mais íngreme, onde o ar é mais fosco,
um medo, que talvez com tais asperezas na esperança de assim causar dissabor
ninguém sentiu, as veias lhe entorpece; ao monstro horrível, peçonhento, tosco;
mas o arrojo usual simula e finge, mau fim tivera ele, se não chegasse
e com trépida mão a espada cinge. ali em breve quem o ajudasse.
49 O monstro a modo se ajeita ao assalto
que permite ver que é mestre de guerra;
vibra a serpente venenosa ao alto,
depois contra Rinaldo se desferra;
daqui, dali, sobre ele vem de um salto.
Rinaldo contra ela ataca e erra:
golpes dá, a direito e de través,
mas nenhum à fera causa revés.
662 ORLANDO FURIOSO

53 A tempo o socorreu um cavaleiro 59 Quando Rinaldo o viu ali chegado,


armado de metal polido e belo, disse dever-lhe graça desmedida,
que um jugo quebrado tem no cimeiro 1 8 , e ter obrigação, em qualquer lado,
e rubras chamas no escudo amarelo; de pôr ao seu serviço a própria vida.
bordado igual no hábito altaneiro, Perguntou-lhe depois como é chamado,
e no jaez do corcel, sobre o pêlo; para saber dizer quem lhe deu guarida,
lança na mão, a espada ao flanco estava, e a Carlos e aos guerreiros faculdade
presa a maça ao arção, que flamejava. ter de exaltá-lo pela sua bondade.
54 Cheia de fogo interno está a maça, 60 Disse o cavaleiro: - Não te dê mágoa
que, sem se consumir, sempre flameja; que meu nome não te descubra agora;
não há grosso elmo, temperada couraça tua dúvida, dentro em pouco apago-a,
ou bom escudo que dela alguém proteja. não cresce a sombra um passo; não demora. -
Por isso ao largo convém que se faça Juntos andando, acharam fresca água,
o cavaleiro onde tal chama esteja; cujo cicio que ali venham implora
só coisa a Rinaldo de tal cariz a pastores e viandantes, que bebido
para o livrar do cruel monstro condiz. têm, com ela, o amoroso olvido.
55 O cavaleiro de ânimo valente 61 Esta gélida água, senhor meu,
corre aonde o rumor o bosque ocupa, era a que apagava do amor a chama;
e vê o monstro com Rinaldo em frente, por bebê-la, em Angelica nasceu
que com mil nós a bicha todo ocupa, ódio a Rinaldo que tanto a inflama.
e a um tempo o faz sentir frio e quente; E se em tempos ela a ele desprazeu,
modo não tem de o expulsar da garupa. e tão forte ódio nele achou a dama,
Fere o cavaleiro o monstro no flanco, não foi outra a causa disso, senhor,
e fá-lo transbordar para o lado manco. senão ter ele bebido este licor.
56 Mas assim que o chão toca logo se iça, 62 O cavaleiro que com Rinaldo vem,
e a cobra em sua volta vibra e gira. ao ver-se junto daquele rio tão vivo,
Não mais aquele com a hasta o atiça; quente do esforço o cavalo detém,
combater com o fogo decidira. e diz: - Pousar aqui não é nocivo. -
Empunha a maça e, onde ela se eriça, - Não nos faz (diz Rinaldo) senão bem;
múltiplos golpes sem parar atira; além do aperto do meio-dia estivo,
nem tempo dá ao nefando animal deu-me o monstro horrível tão duro trato
de dar um golpe só, nem bem nem mal; que o repouso ser-me-á cómodo e grato. -
57 e enquanto o persegue ou tem sob alçada, 63 Um e outro desmontou do animal,
batendo-lhe para que os males desconte, e deixou-o pascer-se pela floresta;
aconselha ao paladim que se evada no verde, áureo, rubro manto floral,
por uma via que sobe para o monte. ambos retiraram o elmo da testa.
Apega-se ele ao conselho e à estrada, Correu Rinaldo ao líquido cristal,
e, sem para trás voltar de novo a fronte, pelo calor levado e sede molesta,
não pára, até da vista lhe sair, banindo, num sorvo do frio licor,
sendo embora o monte mau de subir. do seu peito ardente a sede e o amor.
58 O cavaleiro, depois que amachuca 64 Logo que o viu o outro cavaleiro
para a sua caverna o monstro do Inferno, erguer da água a sua boca molhada,
onde a si próprio se rói e manduca, e o amor, de que fora prisioneiro,
e de mil olhos verte pranto eterno, repeso expulsar da ideia errada,
subiu, seguindo de Rinaldo a nuca, pôs-se em pé e, com semblante altaneiro,
para o aconselhar, ao monte superno. deu-lhe a resposta antes ocultada:
Juntou-se-lhe para lhe dar companhia, - Meu nome, Rinaldo, é Indignação;
e em tais lugares de trevas ser seu guia. do jugo indigno vim dar-te isenção. -
CANTO XLII 663

65 Ao dizer tal, logo desapareceu, 69 Quer Rinaldo encontrar-se com Orlando


desaparecendo o cavalo com ele. na batalha, mas muito longe está.
A Rinaldo milagre tal pareceu; Parte, e vai cada dez milhas mudando
em volta girou, e disse: - Que é dele? - corcéis e guias, corre, e esporas dá.
Se é mágica visão não entendeu; Passa o Reno em Constança e, quase voando,
se Malagigi lhe enviou aquele os Alpes passa para que a Itália vá.
seu demo, para lhe romper a corrente Verona e Mântua para trás arremessa;
que subjugado o teve longamente, chega ao Pó, que muito à pressa atravessa.
66 ou se Deus de suas altas hierarquias 70 Já o Sol do ocaso se aproximava
lhe tenha, por inefável bondade, e no céu surgia a primeira estrela,
mandado um anjo, tal como a Tobias1 9 , Rinaldo na margem desse rio estava,
para da cegueira lhe dar sanidade. pensando se havia de mudar sela,
Bom ou mau demónio, o que por tais vias ou lá ficar até que se espalhava
conseguiu restituir-lhe a liberdade, o negro ar perante a aurora bela;
agradece e louva; por ele, tem são vê vir um cavaleiro mais adiante,
da amorosa angústia o coração. que era cortês no aspecto e no semblante.
67 Por Angelica repulsa sentiu 71 Depois de o saudar, com modo cordial
como antes, e que a siga não merece, perguntou se mulher ao lado tinha.
acha, não só por tão longo desvio, E Rinaldo: - Tenho nó conjugal -,
como que só meia légua atravesse. mas por que o pergunta não adivinha.
Mas para reaver Baiardo decidiu O outro: - Compraz-me que seja tal. -
que ir à Índia, a Sericana, lhe interesse, E, para o dito justificar, sublinha:
pois a Carlos já disse que o cavalo - Peço e espero que aceites com contento
o forçava a ir até lá bus�á-lo. que te dê esta noite alojamento,
68 Chegou ao outro dia a Basileia, n pois far-te-ei ver uma coisa que deve
onde notícia lhe chegara adiante ver com gosto quem tem mulher ao lado. -
que o conde Orlando pugna delineia Rinaldo, que de repouso se absteve,
contra os dois reis, Gradasso e Agramante. e de tanto correr está fatigado,
Porém, tal notícia não se alardeia e porque prazer de ouvir sempre teve
por aviso do cavaleiro de Anglante: aventuras, gosto consigo nado,
da Sicília chegara, em nau ligeira, a oferta aceitou do cavaleiro,
quem a nova trouxe por verdadeira. e atrás dele seguiu novo carreiro.
73 Um tiro de arco da estrada saíram,
indo ter a um palácio preclaro,
onde escudeiros em grupo surgiram
com tochas, em torno fazendo claro.
Mal entra Rinaldo, os seus olhos giram,
e vê um lugar que ver-se é mui raro:
grande edifício em plano e execução,
não teria um privado tal estadão.
74 Serpentino20 e pórfiro21 , pedras duras,
formam da entrada 'o rico contorno.
As portas são de bronze, com figuras
parecendo respirar e olhar em torno.
Sob um arco se passa, com misturas
de mosaico, que engana o olho o adorno.
Num átrio se entra, e cada um dos lados
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cem braças tem, e são todos arqueados.
664 ORLANDO FURIOSO

75 Tem sua própria porta cada arcada, 81 Cada uma seus pés firmes havia
e entre a porta e cada uma há um arco: em duas estátuas baixas que pisava,
o tamanho é par, mas em mui variada e a boca destas aberta dizia
decoração não foi o mestre parco. que o canto e a harmonia as deleitava;
Por cada arco é fácil a escalada: parecia que em tal gesto transparecia
besta carregada avança como em charco. que todo o seu acto e estudo exaltava
Um outro arco encima cada escala; as damas que sobre os ombros sustêm,
e por cada um se entra numa sala. se fossem quem de pedra cara têm.
76 Cada arco de cima é saliente, 82 As figuras baixas tinham na mão
para que cobertura a porta conforte; compridas e muito vastas escrituras,
em colunas cada um está assente, dando com louvores clara indicação
umas de bronze, outras de pedra forte. dos nomes das mais ilustres figuras;
Tempo precisarei para que comente ao lado, dos próprios nomes menção
os ornados aposentos da corte; podia ver-se, em letras não obscuras.
e, além do que se vê, no subterrâneo Rinaldo viu, à luz dos candeeiros,
muito cómodo havia consentâneo. uma a uma as damas e os cavaleiros.
77 Por altas colunas, capitéis de ouro, 83 A primeira que sob os olhos teve,
os preciosos tectos eram sustidos; com louvor Lucrezia Borgia epitoma,
os mármores tão raros que dão decoro, cuja beleza e virtude pôr deve
por mão douta em várias formas esculpidos, antes da antiga23 a sua pátria, Roma.
pinturas, relevos, e mais tesouro O par que a sobre si suster se atreve
(muitos estão de noite aos olhos escondidos) dama em que tal excelência e honra assoma,
que de dois reis riquezas dão indício o escrito diz: Antonio Tebaldeo,
não bastaram para tão rico edifício. Ercole Strozza24 : um Lino e um Orfeu25 •
78 Mais que outros ornamentos ricos, belos 84 Estátua não menos prazenteira e bela
(muitos se viam na formosa estância), ao lado se vê, e a inscrição diz:
uma fonte havia que em vários elos - Esta é a filha de Ercole, Isabella26 ,
espalhava fresca água em abundância. por quem Ferrara será mais feliz,
Tinham posto ali a mesa os donzelas, muito mais, por ali ter nascido ela,
que estava ao meio por igual distância; que por outro bem que a boa e fautriz
avistava, e era vista igualmente, e benigna Fortuna dar-lhe deve,
por quatro portas da casa imponente. passando os anos no seu curso leve. -
79 Feita por mestre diligente e douto 85 Os dois que mostram ter desejo ardente
era a fonte, com muita e subtil obra, que a glória dela sempre se mencione,
como uma lójia ou pavilhão, que em outo Gian Iacobi se chamam igualmente,
faces diviso em volta se desdobra. um Calandra, e o outro Bardelone27 •
Céu de ouro, que era na parte de soto No terço e quarto ponto em que indolente
pintado a esmalte, no alto lhe sobra; fio de água aquele pavilhão abandone,
e são oito estátuas de mármore branco duas damas que pátria, estirpe e honor
que esse céu sustêm com o braço manco. a par têm, e beleza e valor.
80 Na mão direita o corno de Amalteia22 86 Elissabetta28 uma, e Leonora29
tinha esculpido o mestre daquele castro, se chama a outra; e seria, por quanto
de onde a água se derrama e gorjeia, narrava a inscrição, delas agora
vindo cair em vaso de alabastro; tão orgulhosa a cidade de Manto30
semblante de alta mulher alardeia, que de Vergílio, que tanto a honora,
com grande arte feito, cada pilastra. como destas não se ufanará tanto.
Cada rosto e cada veste é diferente, Tinha aquela, aos pés do traje selecto,
mas graça e beleza tendo igualmente. Pietro Bembo e Iacobo Sadoletto3 1 •
CANTO XLII 665

87 O elegante Castiglione32 e o culto 93 Entre este ponto e o que a coluna ocupa


Muzio Arelio33 da outra eram amparo. em que foi da Borgia o semblante erecto,
Tais nomes que tinham no mármore vulto, em alabastro uma dama se agrupa
ignotos então34 , qual hoje mais preclaro. às outras, com muito sublime aspecto;
Vejam ora a que do Céu tal indulto alvo véu, negra veste, nem com lupa
em virtude tem, quanta hoje encaro, ouro ou gemas se vê, tudo discreto;
ou quanta em qualquer tempo houve ou haverá entre ataviadas, não é menos bela
ditada pela Fortuna, ou boa ou má. que entre as mais é a cipriota estrela52 •
88 A inscrição a ouro, que é, declara, 94 Nem se podia, com olhar preciso,
Lucrezia Bentivoglia35 esta; e assina decidir se mais graça ou majestade,
entre os louvores que o duque de Ferrara, ou mais beleza mostrasse no viso,
de ser seu pai, mui se alegra e fascina. ou mais sinais de engenho ou dignidade.
Esta é cantada com voz suave e clara - Quem quiser desta (no mármore inciso
por Camil36, e ouve o Reno e Felsina37 estava) falar, revelando a verdade,
com tanta atenção, e com tal estupor, empresa mais digna que outra terá;
como Anfriso escutava o seu pastor3 8 ; mas ao fim dela nunca chegará. -
89 e outro, por quem a terra onde o lsauro 95 Doce embora, e pleno de graça tanto
as doces águas salga em maior vaso39 fosse feito do pedestal o cenho,
será nomeada do Indo ao Mauro40 , parecia desdenhar o humilde Cinto
do pólo austral ao boreal ocaso, com que ousava louvá-la o tosco engenho
mais que por se pesar o metal auro, daquele que só, sem companheiro portanto
tendo perpétuo nome desse caso41 : (não sei porquê), tinha tal desempenho.
Guido Postumo, a quem dupla coroa Todo o resto tinha os nomes esculpidos,
dum lado Palas, doutro Febo doa42 • mas estes deixou o artista escondidos53 •
43
90 Por ordem, a que se segue é Diana • 96 No centro as estátuas fazem um rotundo,
- Não liguem (está escrito no mármore) se ela que tem seco pavimento em coral,
de aspecto é altiva; pois é humana de suavíssima frescura jucundo,
no coração, como no rosto é bela. - graças ao puro e líquido cristal
Do douto Celio Calcagnin44 emana que para fora cai, num caudal fecundo
longe a glória e o bom nome daquela, que o verde, azul, branco e áureo relvai
ao reino de Monese45 e ao de Iuba46 , rega, escorrendo por regos angustos,
à fndia e à Espanha, com clara tuba; gratos às tenras ervas e aos arbustos.
91 e de um Marco Cavallo, que tal fonte 97 Com o hospedeiro conversando estava
de Ancona fará nascer de poesia, o paladino à mesa; e, destemido,
como fez Pégaso sair do monte47 que sem mais demoras, lhe recordava,
Parnaso, creio, ou Hélicon seria? não faltasse ao que tinha prometido;
Beatrice ao lado deste ergue a fronte, e, olhando-o de vez em quando, observava
e na sua inscrição assim se lia: ter o coração por pena oprimido,
- Viva, Beatrice abençoa o consorte, a qual de instante a instante ocasiona
e deixa-o infeliz com sua morte; que um fundo suspiro lhe venha à tona.
92 aliás, toda a Itália, que com ela 98 Curiosa, pelo desejo impulsionada,
triunfante era, e sem ela cativa48 • - vem a Rinaldo a voz até à boca
Um senhor há, de Coreggio49 , que dela para perguntar; mas dali, refreada
com estilo escrevendo, faz que reviva, por cortês modéstia, não se desloca.
e Timoteo5 0 , que os Bendedei revela; Contudo, estando a ceia terminada,
ambos farão deter a água esquiva de ouro, um donzelo a quem o ofício toca,
do rio que antigo âmbar recolheu5 1 , fino cálice pôr na mesa veio,
ao fazerem ouvir o plectro seu. de gemas fora, e vinho dentro, cheio.
666 ORLANDO FURIOSO

99 Então o senhor da casa, entretanto 101 Se tu souberes que a mulher te é fiel,


sorrindo, para Rinaldo ergueu o viso; para amá-la e honrá-la tens mais razão
mas se bem se observasse, mais de pranto que tem aquele que sabe que é revel,
parecia vontade ter que de riso. ou o que vive em engano e paixão.
Disse: - Aquilo que me recordas tanto, De muitas, sem razão o ciúme impele
que eu agora satisfaça é preciso; os maridos, quando elas castas são;
vou mostrar-te exemplo, a ser apreciado e muitos, de muitas seguros estando,
por todo aquele que tem mulher ao lado. com cornos na cabeça vão andando.
100 Todo o marido, em meu entender, deve 102 Se quiseres saber se a tua é pudica
estar sempre atento a se a mulher o ama; (corno creio que crês, e deves crer,
ver se honra ou vergonha ela lhe prescreve, que o oposto o fazer crer prejudica,
se, por ela, besta ou homem se chama. se já tens provas para crente não ser),
O peso dos cornos é o mais leve a ti próprio o caso se clarifica,
do mundo; contudo, o homem infama: sem que outrem te diga: basta beber;
sendo vistos por quase toda a gente, para mais nada está esse vaso aqui,
quem na cabeça os tem, porém, não sente. senão para veres o que te prometi.
CANTO XLII 667

1 03 Bebe desse, e verás espantoso efeito;


se usares a cimeira da Cornualha54 ,
todo o vinho verterás sobre o peito:
nem uma gota tua boca amealha;
mas, se hás mulher fiel, farás proveito.
Ora, para tua sorte ver, trabalha. -
Tal diz, e o seu olhar fixo se inflama,
para ver se Rinaldo o vinho derrama.
1 04 Este, quase persuadido a dar azo
a saber o que talvez não quisesse,
a mão estendeu e, pegando no vaso,
faltou pouco para que a prova fizesse;
porém, que seria perigoso o caso
reflectiu, se nele os lábios pusesse.
Mas permiti, senhor, que me repouse,
e o que o paladim disse depois glose.

NOTAS

1 12
Elmo eleito: quando Pátroclo foi morro, usava as armas Frente ao { . .} repousa: diance de seu irmão Ottaviano
de Aquiles, que este lhe emprestara. Fregoso, que foi doge em Génova e se empenhou na paz
e prosperidade da cidade.
2 Quem { . .} arrastou: Aquiles, depois de matar Heitor,
13
dilacerou-lhe o corpo, arrastando-o, preso ao seu carro. O ordculo da gruta: c[ III:7 ss.
3 Pedra { . .} vossa: facto que ocorreu junto às muralhas 14 O encanto: o encanto das fomes de oposto efeito (cf. I:78).
de Baseia, em Janeiro de 1512.
15
Grande espanto { . .} pouco: nas oitavas 32 e 33,
4 Assim que { . .} inciso: o comandante da fortaleza de Malagigi exprime o seu espanto por Rinaldo agora amar
Baseia (Vestidello Pagano) foi morto pelos assaltantes tanto Angelica, quando no passado (O. lnnamorato) a
espanhóis depois de ter sido feito prisioneiro (cf. III:54, situação era inversa (c( i:75:7-8, e 77:7-8). Angelica pro­
e respectiva nota).. metera a Malagigi livrá-lo da prisão se ele conseguisse
persuadir Rinaldo a amá-la, mas Rinaldo mostrara-se
5 Povo { . .} circunciso: muçulmanos que integravam o surdo aos regos e às razões do primo.
exército espanhol.
16
O corcel {..} galhardo: infringindo as regras da cava­
6 Trunco: truncado. laria, Gradasse faltara à palavra dada a Rinaldo e apode­
rara-se de Baiardo (c( XXXIIl:93-95).
7
O cunhada: Orlando.
17
Pobre infante: modesto soldado de infantaria (Medoro).
8
Facto: facto de armas.
18
Jugo { . .} cimeiro: insígnia pintada no penacho do elmo
9 Federigo Pulgoso: Federico Fregoso, almirante geno­ (cimeiro).
vês, deu caça aos piratas no Mediterrâneo.
19
Tobias: israelita a quem foi restituída a vista pelo
1 0 Berberia: c[ nota a XVlil:157:5. próprio filho, mediante instruções do arcanjo S. Rafael.
11 20
Fu!gosa estirpe: família de Federigo Pulgoso. Serpentino: mármore com listas sinuosas.
668 ORLANDO FURIOSO

21 Pórfi 38
ro: mármore esverdeado ou purpúreo, salpicado Anfriso: rio da Tessália, junto ao qual Apolo pasto­
de diversas cores. reou os bois do rei Admeto.
22 39
Corno de Ama/teia: ou Corno da Abundância (cor­ A terra [. . .] vaso: Pesaro, onde o lsauro (hoje, Foglia)
nucópia). lança as suas águas no Adriático (maior vaso).
23 40
Antes da antiga: à frente da beleza e virtude da anti­ Mauro: Mauritânia (equivale aqui a Ocidente).
ga heroína Lucrécia (cf. nota a XXIX:28)
41
Mais [. . .] caso: mais fama virá a Pesaro pelo nome
24
Antonio [...] Strozza (Scrozzi): Antonio Tebaldeo, desse poeta, do que pelo facto de nessa cidade os Gálios
poeta, foi tutor de Isabella d'Este e secretário de Lucrezia terem pesado o ouro pago pelos Romanos como tributo.
Borgia; Ercole Strozzi, poeta da corte de Ferrara, era Que esse facto tenha dado o nome à cidade (pesar. .. auro,
amigo de Ariosto (já referido em XXXVIl:8, e respectiva v. 5) será fantasia de Ariosco, pois não se comprova.
nota).
42
Guido Postumo[...} doa: Cuido Silvestri, por alcunha il
25
Lino [. .. ] Orfeu: um poeta e um músico de excelên­ Postumo, natural de Pesaro, foi poeta e médico na corte de
cia, na mitologia grega. Ferrara. Por isso tem dupla coroa (v. 7): uma atribuída por
Palas, deusa da ciência, outra por Apolo, deus da poesia.
26
Isabel/a: Isabella d'Este, cujo encómio Ariosco já fize­
43
ra (cf. XIII:59-61). Diana: filha de Sigismondo d'Este, prima de Alfonso,
Ippolico e lsabella.
27
Gian [. . .] Bardelone: Gian lacopo Calandra e lacopo
44
Bardelone, poetas da corte de Mântua; o primeiro foi Celio Calcagnin: poeta e professor da Universidade
secretário de lsabella. de Ferrara.
28 Bissa 45
betta: Elisabetta Gonzaga, irmã do marquês Monese: rei dos Partos (séc. I a. C.).
Francesco II Gonzaga e mulher de Guidobaldo I de
46
Montefeltro, duque de Urbino. Juba: Juba II, rei da Mauritânia (séc. I a. C.).
29 47
Leonora: sobrinha de Elisabetta, casou com ·Marco [. . .] monte: jogando com o nome de Marco
Francesco Maria della Rovere, que herdou o ducado de Cavallo, poeta de Ancona, Ariosco diz que ele fará surgir
Urbino de seu tio Guidobaldo 1. na sua terra uma fonte de poesia tão fecunda como a
fonte que Pégaso, o cavalo alado, fez brotar do monte
30
Manto: Vergílio (Eneida, X:198 ss.) atribui à ninfa Hélicon com o casco.
Manto o nome da cidade de Mântua (cf. xiii:59:7-8, e
48
respecciva nota). Beatrice [. . .] cativa: cf. XIIl:62-63, e respectivas
notas.
3 1 Pietro [...} Sadokto: Pietro Bembo (cf. nora a XXXVII:8);
lacopo Sadoleto: homem de letras, foi secretário de Leão X 49 Um [. ..] Coreggio: Nicolo da Correggio, poeta da
e mais tarde cardeal. corte de Alfonso d'Esce.
32 50
Baldassare Castiglione: cf. nota a XXXVII:8. Timoteo: Timoteo Bendedei, poeta de Ferrara.
33
Muzio Arelio: Giovanni Muzzarelli, poeta de Mântua. 51 Rio [...] recolheu: o Pó (cf. IIl:34:3-6 e respecúvas notas).

34
Então: no tempo de Carlos Magno. 52
Cipriota estrela: Vénus (deusa venerada em Chipre).
35 53
Lucrezia Bentivoglia: filha natural de Ercole I d'Esce, Em alabastro (93:3) [. . .] escondidos (95:8): tudo indi­
casou com Annibale Bentivoglio, da família reinante em ca que a dama representada na última estátua é
Bolonha (cf. XXXIIl:37 e 39). Alessandra Benucci, e que o cavalheiro solitário que lhe
serve de pedestal é Ariosto. A indumentária (alvo véu,
36
Camil: Camillo Paleotti, poeta bolonhês. negra veste) é o traje de viuvez da época.
37 54
Reno e FeLsina: Félsina é o antigo nome de Bolonha, Cimeira da Cornualha: cimeira era o distintivo usado
perto da qual corre o rio Reno. sobre o elmo. Este jogo de palavras quer dizer algo como
«distintivo dos cornudos».
--ê$,­
CANTO XLIII

Ó maldita Avareza, ó ambição


de possuir, para mim não é surpresa
que tão facilmente deites a mão
a alma vil, que outra mancha já lesa,
mas que dês com tua corda prisão,
e que na mesma garra tenhas presa
pessoa que, pelo génio superior,
se te evitasse era digna de honor.
2 Há quem a terra, o mar e o céu mensura,
e as causas sabe desvendar em pleno
dos feitos e efeitos da Natura,
e de Deus a ideia, sendo terreno;
mas de nada com tanto empenho cura,
se mordido pelo teu fatal veneno,
como riqueza ter; só na abastança
emprega todo o esforço e toda a esperança.
3 Há também quem exércitos aborte,
e force as portas de bélicas terras,
sendo o primeiro a expor o peito forte,
e último a tirar, em perigosas guerras;
mas não pode impedir, se até à morte
tu em teu cego cárcere o encerras.
Outros, noutros estudos e artes industres,
tornas obscuros; seriam ilustres.
670 ORLANDO FURIOSO

4 Que direi da bela dama que puna 10 Por que não te conheci há dez anos,
seu virtuoso e belo e fiel amante, para me poder aconselhar contigo
e à sua servidão, mais que coluna, antes de começarem meus afanos
indiferente fique, firme e constante? e prantos, de que cegar corro perigo?
Depois, vem a Avareza e se lhe aduna Mas da cena vou levantar-te os panos,
de tal modo que, parece, a encante: para meu mal veres e te doeres comigo;
num dia, sem amor (mas que surpresa!), vou contar-te o princípio e o argumento
de um velho, feio, monstro a torna presa. deste meu incomparável tormento.
5 Não é sem motivo que tal censuro: li Viste a cidade que perto domina,
quem quiser, entenda; eu estou entendido. em torno da qual um rio faz um lago;
Nem é a propósito que transcuro, depois estende-se e neste Pó declina,
nem que a matéria de meu canto olvido: e dá-lhe Benaco o primeiro afago' .
ao que disse adaptar mais não procuro Foi feita a cidade quando em ruína
que ao que direi, o que aqui elucido. caiu o muro do agenóreo drago2 •
Agora, voltemos ao paladino, Ali nasci, de estirpe muito nobre,
que o vinho quase provou repentino. mas que em tecto e património era pobre.
6 Dizia eu que ele quis pensar um pouco, 1 2 Se não tive da Fortuna ternura,
antes que aos lábios o vaso levasse. pois não me deu, quando nasci, riqueza,
Pensou, e disse: - Seria bem louco foi compensada a falta pela Natura,
quem o que não quer achar procurasse. que mais que a qualquer um me deu beleza.
Se ela é mulher, que fraca é, evoco. Damas, donzelas, pela minha figura,
Que a crença que tenho não se devasse: mais que uma na juventude vi presa;
se tal crença até hoje útil tem sido, que à figura juntei modos macios;
que ganho se à prova for submetido? bem que a mim dar não devesse elogios.
7 Pode dar pouco agrado e muito enfado, 13 Havia na cidade um homem culto,
pois tentar Deus provoca o seu desdém. em todo o assunto o mais possível douto,
Não sei se nisto sou sábio ou estouvado, que ao expirar o seu último singulto
mas mais não quero saber do que convém. contava os anos por cento e vinte outo.
Que este vinho daqui seja levado: Viveu sempre só a vida de adulto,
sede não tenho, e ter não quero também; menos a extrema; pois, de Amor devoto,
tal certeza foi por Deus proibida teve a dinheiro uma matrona bela,
mais que ao primeiro pai a Árvore da Vida. e, secretamente, uma filha dela.
s Pois como Adão quando a maçã provou, 14 E para impedir que sua filha igual
a qual de viva voz Deus lhe interdisse, à mãe fosse, a qual por certa valia
da satisfação no pranto tombou vendeu a castidade, que, só, vale
e para sempre foi depois infelice, mais que todo o ouro que o mundo havia,
se o homem de sua mulher tentou retirou-a do convívio social;
tudo saber, o que ela fez e disse, e, onde mais solitário lugar via,
da alegria cai em prantos e ais, este palácio, amplo e rico tanto,
dos quais não se livrará nunca mais. - os demos mandou fazer por encanto.
9 Tal dizendo, o bom Rinaldo entretanto 15 Velhas mulheres castas fez nutrir
afastava o odiado recipiente; a filha, aqui, que em beleza cresceu;
e viu brotar um grande rio de pranto não podia outro homem ver, ou ouvir
dos olhos do senhor lá residente, mencionar nessa idade, estabeleceu.
que disse depois, serenando um tanto: E, para que houvesse exemplos a seguir,
- Maldito quem, sendo tão convincente, toda a pudica dama, que ofereceu
a prova me fez fazer! De tal sorte contra o ilícito amor resistência,
que me tirou minha doce consorte. mandou esculpir ou pintar-lhe a aparência:
CANTO XLIII 671

16 não só aquelas da virtude amigas 22 Não porque fosse mui gentil e bela,
que ao mundo antigo deram tanto adorno, nem por eu saber que tanto me amasse,
das quais a fama, pelas histórias antigas, nem pelos presentes, e as promessas que ela
não deixa de ao mundo fazer retorno; tantas me fez, ou porque muito instasse
mas, do futuro, castas raparigas conseguiu jamais que uma só parcela,
que de Itália serão belo contorno para lhe dar, ao primeiro amor tirasse;
mandou retratar, com sua nobre fronte, por saber ser minha mulher fiel,
como as oito que aqui vês nesta fonte. era meu desejo a ela revel.
17 E, quando a filha o velho achou madura 23 Toda a esperança, a confiança e a certeza
a ponto dum homem colher-lhe os frutos, na constância de minha mulher tida
por minha desgraça ou minha ventura far-me-ia desprezar quanta beleza
eleito fui, por mostrar mais estatutos. a filha de Leda4 haja tido em vida,
Os campos que à muralha dão moldura, ou quanta sabedoria e riqueza
tanto os piscatórios como os enxutos, foi oferecida ao pastor do monte lda5 •
tudo em volta, vinte e mais uma milha, Mas meu desprezo não bastou, por fim,
entregou-mos como dote da filha. para conseguir afastá-la de mim.
1s Ela era bela e educada tanto 24 Fora do palácio um dia encontrou-me
que melhor desejar não se podia. a maga, que se chamava Melissa;
De pespontos e de bordados, quanto ali, com todo o à-vontade falou-me,
Palas3 soubesse, ela também sabia. minha paz logrando pôr enfermiça;
Vendo-a a andar, ouvir-lhe o som e o canto: com o ferrão do ciúme atiçou-me,
coisa celeste e não mortal parecia. tornando a fé, antes firme, mortiça.
E às artes liberais tanto atendeu Começa por louvar minha intenção
que quase, ou como o pai, disso entendeu. de a quem me é fiel não fazer traição.
19 Ao grande engenho e à não menor beleza, 25 «Que te é fiel, não podes garantir
que até às pedras teria agradado, enquanto disso uma prova não vês.
aliava-se um amor, uma macieza, Se ela firme for, podendo cair,
que só de o recordar fico enlevado. que te é fiel e pudica então crês.
Outro prazer não tinha nem fraqueza Mas se sem ti não a deixares sair,
que estar comigo sempre, em todo o lado. se de outros homens ver não lhe dás vez,
Muito tempo vivemos sem querela; como ousas afirmar que não claudica,
depois tivemos: fui culpado dela. e me queres garantir que ela é pudica?
20 Morto o meu sogro passados cinco anos 26 Afasta-te de casa, e tua ida
de eu me submeter ao nó conjugal, faz saber por aldeias e cidades;
começaram sem demora os afanos que tu foste, e ela em casa está retida,
e inda os sofro; conto o caso real. aos pretendentes dá facilidades.
Enquanto a de quem teço louvores lhanos Se com rogos, dons, não for convencida
me envolvia nas asas de amor tal, a cometer conjugais falsidades,
uma nobre mulher desta região nem faça, crendo que não se revele,
concebeu por mim ardente paixão. então poderás dizer que é fiel».
21 Sabia encantos e feitiçaria, 27 Com tais falas e idênticas não cessa
tanto quanto disso sabe uma maga: a maga, até me dar disposição
fazia a noite clara, escuro o dia, de querer ver a fidelidade expressa
detinha o Sol, tornava a Terra vaga. de minha dama, e pô-la em provação.
Mas meu desejo fazer não podia «Mas suponhamos (contraponho) que essa
com que lhe sanasse a amorosa chaga, seja de molde a não dar dedução:
pois remédio não lhe podia dar como posso saber com evidência
sem à minha dama injúria causar. se é digna de louvor ou penitência?»
CANTO XLIII 67 3

28 Melissa disse: «Vou dar-te uma taça 34 Ela tantas vezes o repeliu
que possui virtude rara e arcana; que por fim de tentá-la ele deixou;
a qual, para o irmão saber da trapaça mas a beleza dela Amor esculpiu
que Genevra lhe fez, criou Morgana6 • na sua memória, e não apagou.
Bebe dela o de mulher de boa raça, Tanto Melissa tentou e insistiu
mas não consegue o que a tiver magana: que a tomar a forma dele me levou;
quando crê que para a boca o vinho corre, mudou-me (como foi não sei dizê-lo)
todo se espalha e pelo peito lhe escorre. o rosto, a fala, os olhos e o cabelo.
29 Antes da partida, farás a prova, 35 Tendo com minha mulher simulado
e, pelo que julgo, beberás com jeito; que tinha partido, indo para o Levante,
pois creio que ainda é fiel na alcova no daquele pretendente transformado
tua mulher: mas tu verás o efeito. o andar, a voz, o hábito e o semblante,
Porém, se ao regressar experiência nova regresso, tendo Melissa a meu lado,
fizeres, já não respondo pelo teu peito: que como pagem era figurante;
se o não molhares, e o vinho houveres bebido, de ricas gemas leva a bolsa cheia,
és de todos o mais feliz marido». como vindas da Índia ou Eritreia.
3 0 A oferta aceito; o vaso ela me oferece; 36 Sendo do meu palácio bem ciente,
faço a prova, e sucede o já esperado; entro seguro, e Melissa comigo;
agora, pudica e boa aparece encontro a dama tão independente
minha mulher, como era desejado. que não tem pagem nem aia consigo.
Diz Melissa: «Agora, desaparece; Meus rogos exprimo, e com o impudente
um mês ou dois está dela separado; estímulo de mal fazer a instigo:
quando voltares, de novo o vaso apanhas; os rubis; as esmeraldas, os diamantes,
verás se bebes, ou se o peito banhas». que movem os ânimos mais constantes.
3 1 Muito duro para mim era partir; 37 E digo-lhe que é pequena esta oferta
não porque de sua fé duvidasse, à vista de quanto esperar deveria;
mas por dois dias eu não resistir, recordo que é comodidade certa
uma hora até, que ela sem mim ficasse. a que, estando ausente o marido, havia.
Disse Melissa: «Posso conseguir Lembro-lhe que há muito tempo encoberta
que vejas de outro modo o desenlace. tinha esta paixão, como ela sabia;
Vou mudar teu falar e vestimentas, e que amá-la com tal dedicação
e com rosto alheio aqui te apresentas». me torna digno de compensação.
3 2 Perto uma cidade, senhor, defende 38 Ao início a senhora perturbou-se,
o Pó, que um corno e outro corno contorna7 ; fez-se vermelha, ouvir não pretendeu;
cuja jurisdição daqui se estende mas as gemas, como se fogo fosse,
aonde o mar foge do lido e torna. luzindo, o coração lhe amoleceu;
Perde em antiguidade, mas contende e respondeu com fala breve e doce
com as outras na riqueza e no que a orna. aquilo que de lembrar morro eu:
Os que sobraram de Tróia a fundaram, que me comprazia, desde que cresse
que do flagelo de Átila escaparam8 • que outra pessoa jamais o soubesse.
33 Encurta e solta a esta terra a brida 39 Foi como se envenenado cutelo
um jovem cavaleiro, rico e belo, minha alma trespassasse, ou férreo espeto:
que um dia, atrás de um falcão em corrida, pelos ossos e veias correu-me um gelo,
se encontrou no interior do meu castelo; a voz, de sair, na fauce houve veto.
viu a dama, e à primeira investida Erguendo, então, de seu encanto o velo,
agradou-lhe: levou no peito um elo; Melissa devolveu-me o meu aspecto.
não poucas tentativas depois fez Imagina de que cor se tornou,
para aos seus desejos a dobrar de vez. quando em tal erro ante mim se encontrou.
674 ORLANDO FURIOSO

40 Tornámo-nos ambos da cor da morte, 44 O conforto que tenho é que, de quantos


mudos ambos, e baixo o olhar fugace. em dez anos aqui houveram leito,
A língua pude ter apenas forte, tendo usado deste vaso os encantos,
e a voz o bastante, para que gritasse: um só não vejo que não molhe o peito.
«Traías-me então tu, minha consorte, Por ter no meu mal companheiros tantos,
se tivesses quem meu honor comprasse?» no meio de tanto sofrer me deleito.
Outra resposta não me pôde dar: Entre mil, só tu mostraste prudência,
só as faces de lágrimas regar. opondo, à prova fazer, renitência.
41 Muita vergonha, e mais indignação 45 O meu querer devassar, para além da meta
sentiu ela, ao fazer-lhe eu tal afronta; do que da mulher devassar se deve,
e vai aumentando sem ter travão, fez com que eu não tenha uma hora quieta
e à ira e cruel ódio ao fim amonta. jamais na vida, seja longa ou breve.
De fugir de mim toma a decisão: Melissa de agrado ficou repleta,
na hora em que o Sol do carro desmonta, mas cedo acabou a alegria leve;
ao rio corre, e, num seu pequeno bote, pois a culpada do meu mal sendo ela,
deixa-se ir com a corrente toda a noute; tanto a odiei que não podia vê-la.
42 e de manhã apresenta-se adiante 46 Ela, por ser odiada descontente,
do cavaleiro por quem fora amada, por mim, que dizia amar mais que a vida,
com cujo rosto e sob cujo semblante quando ser dona de mim prontamente
foi, contra meu honor, por mim tentada. pensara, ao ver da outra a despedida,
Por ele, que fora e era seu amante, para não ter seu desgosto tão presente,
deve ter sido a chegada apreciada. não tardou muito a dar daqui partida;
Depois, fez-me saber que não esperasse e deixou de tal modo este lugar
que fosse minha ou de novo me amasse. que dela nunca mais ouvi falar. -
43 Ai, ai! Desde esse dia com ele mora 47 O mesto cavaleiro assim narrou;
em prazer grande, e de mim troça faz; e, quando fim à sua história pôs,
eu, do mal que procurei nessa hora, Rinaldo a pensar um pouco ficou,
definho ainda, sem encontrar paz. pela piedade vencido, e contrapôs:
Cresce o mal, e justo é que sem demora - Melissa muito mal te aconselhou,
dele morra; pouco já falta, aliás. pois atiçar as vespas te propôs;
No primeiro ano julguei ver-me morto, e tu foste a buscar pouco contido
se amparo não me desse um só conforto. aquilo que encontrar não terias querido.
CANTO XLIII 67 5

48 Se por cobiça tua dama, faminta, 54 Pelo corno destro o barco tomou lastro,
a fazer-te traição foi induzida, deixando avançar para Veneza o manco;
não te espantes: nem primeira é nem quinta passou Bondeno 1 0 , e já o escuro astro
mulher a ser em tal luta vencida; a oriente era menos carranco,
levada é mente ainda mais distinta, pois, esvaziando de flores o canastro,
por menor preço, a coisa mais infida. tornava-o a Aurora rubro e branco.
Por ouro, quantos homens traiçoeiros Nisto, aparecendo ao longe de Tealdo
foram de seus senhores e companheiros? os fortes' 1 , a cabeça ergueu Rinaldo.
49 Atacando com armas tão brutais, 55 - Ó cidade afortunada (gritava),
não podias querer ver nela defesa. que Malagigi, de meu pai sobrinho,
Ao ouro, nem mármores nem pedras tais estrelas fixas e errantes contemplava
nem o duro aço oferecem firmeza. e, forçando algum espírito adivinho,
Creio que a tentá-la erraste tu mais nos séculos futuros, me informava
do que ela, que depressa ficou presa. (fazendo com ele eu este caminho),
Se ela igualmente te houvesse tentado, a glória tua tanto crescerá
não sei se tinhas mais força mostrado. - que Itália de ti bem se orgulhará. -
50 Terminou Rinaldo e ergueu-se da mensa 56 Tal disse e, embora em apressada rota,
ao mesmo tempo, e pediu para dormir;
. .
no navio que parecia que voava
quer repousar um pouco, e depois pensa, correndo o rei dos rios, na ilhota 1 2
antes do dia uma hora ou duas, ir. mais propínqua à cidade o curso trava;
Tem pouco tempo, e esse pouco dispensa embora erma fosse então e remota,
com conta e medida, sem o gualdir. alegrou-se de a ver, e festejava,
O senhor disse que a seu bel-prazer saudando-a, pois bem sabia quanto ela
para dormir se podia recolher, seria, anos depois, ornada e bela.
51 que preparado estava o quarto e o leito; 57 Da outra vez que correu esta via,
mas, se quisesse aceitar opinião, disse Malagigi, com quem viera,
podia dormir toda a noite a eito, que setecentas vezes giraria
e ao mesmo tempo avançar um quinhão. unida com carneiro a quarta esfera 1 3 ,
- Um barco (disse) mando pôr-te a jeito, e esta ilha a mais amena seria
e nele, voando, sem perturbação de quantas em mar, lago ou rio houvera;
toda a noite a dormir quero que vás, assim, depois de vê-la, não se ouve
e assim uma jornada avançarás. - já quem a pátria de Nausícaa 14 louve.
52 A Rinaldo a proposta comprazeu, 58 Disse-lhe que em belas casas suplanta
agradecendo ao castelão cortês; aquela que a Tibério foi tão cara 1 5 ;
junto ao rio sem demora compareceu, das Hespérides ofuscam cada planta 1 6
onde os barqueiros estavam, por sua vez. as que ali haverá, cada qual mais rara;
Muito cómodo em repouso jazeu, toda a espécie de animais, mais que quanta
enquanto o barco o curso do rio fez; nos pastos ou redis Circe 1 7 guardara;
movido a seis remos, ligeiro e suave que Vénus, com as Graças e Cupido
pelo rio deslizou, como pelo ar ave. ali viveria, e não em Chipre ou Cnido 18 ;
53 Logo que pôde encostar a cabeça, 59 e seria, pela diligência e esmero
o cavaleiro de França adormentou-se; de quem ao saber e poder unida
tendo dado ordens, logo que apareça tinha a vontade, de dique e severo
Ferrara, para que despertado fosse. muro em redor a cidade munida,
Melara na margem esquerda atravessa, estando contra o mundo, de modo austero,
na direita Sermide ultrapassou-se; sem de ajuda precisar, defendida;
por Figarolo e Stellata o navio de Ercole filho e pai de Ercole será 1 9
passa, e baixa os cornos o Pó bravio9 • o senhor que tudo isso ali fará.
676 ORLANDO FURIOSO

60 Assim ia Rinaldo recordando 66 Minha certeza, é como se a tivesse


aquilo que seu primo dito havia, bem firme: pouco acrescer-lhe podia;
as coisas futuras adivinhando, assim, se a prova bem me sucedesse,
das quais consigo conversar soía. pouca vantagem dela tiraria;
A húmil cidade entretanto olhando: mas não pouco era o mal, se ali soubesse
- Mas como é possível (para si dizia) da minha Clarice o que não quereria.
que venham a florir tais lamaçais Era uma aposta de mil contra um:
com os mais dignos estudos liberais? muita perda a haver, lucro nenhum. -
61 E que cresça de tão pequena aldeia 67 Estando assim pensativo o cavaleiro
ampla cidade de grande beleza? de Claramonte, sem erguer o rosto,
E o pântano que em volta a enlameia com muita insistência por um barqueiro
sejam campos repletos de riqueza? era observado, que lhe estava oposto;
Cidade, meu louvor se patenteia e porque o pensamento que o viajeiro
ao amor, cortesia e gentileza ocupava de saber tinha gosto,
de teus senhores, e aos tão honrosos méritos sendo bem-falante e de audaz feitio,
de cavaleiros e cidadãos eméritos. a conversar consigo o induziu.
62 A extrema bondade do Redentor, 68 Teve a conversa por concluimento
dos príncipes o senso e a perícia, que imprudente aquele se tinha mostrado,
sempre com paz, com justiça e amor porque na própria mulher o experimento
te tenha em abundância e em letícia; pior para a mulher havia tentado;
e te defenda de todo o furor pois aquela que do ouro e do argento
do imigo, e desvele sua malícia; defende o peito, de pudor armado,
que os vizinhos teu medrar enraiveça, entre mil espadas bem mais facilmente
e a ti, invejá-los, não aconteça. - o defenderá, e em meio ao fogo ardente.
63 Assim fala Rinaldo, e o barco fende 69 Conclui o barqueiro: - Bem lhe disseste
mais ligeiro as águas do que o ar sonde, que não devia oferecer-lhe esses dons;
vindo ao chamariz porque o grito entende pois para aparar golpe e assalto como este
do dono, o falcão que lesto responde. poucos peitos haverá que são bons.
Do destro corno ao destro ramo pende Não sei se duma jovem entendeste
logo o leme, e muros e tectos esconde: (talvez entre vós se fale em tais tons)
para trás San Georgio20 , e para trás se aplana que viu no erro cair o consorte,
a torre da Fossa e a de Gaibana2 1 • pelo qual a tinha condenado à morte.
64 Como um pensamento a outro conduz, 70 Devia ter em mente o senhor meu
e esse a outro, e este outro desenfreia, que a ouro e prémio a dureza se inclina;
Rinaldo a ideia ao cavaleiro induz Mas, quando devia lembrar, esqueceu,
em cujo palácio houve à noite a ceia, e assim procurou a própria ruína.
que desta cidade razões deduz O exemplo conhecia, que se deu
para o grande sofrimento que alardeia; na cidade que aqui perto confina,
e recordou o vaso para beber, pátria minha e dele, que o lago e o lameiro
que a todos mostra o erro da mulher; em torno cerram, do Mincio ronceiro22 ;
65 tem também no pensamento presente 71 de Adonio falo, que rico presente
a prova que o cavaleiro diz ter feito: fez à mulher do juiz: era um cão. -
que a quantos a fez, não tivera em frente -Isso (disse o paladim) não se sente
um que bebesse e não molhasse o peito. além dos Alpes, só nesta região;
Ora lamenta ora diz: - Estou contente pois em França, ou qualquer outro ambiente
por a tal prova não me ter sujeito. onde estive, não se lhe faz menção;
Bem saindo, provava o parecer meu; por isso diz, se não te enfada o conto,
saindo mal, a que era levado eu? que para ouvir tua história estou pronto. -
CANTO XLIII 677

n Começou o barqueiro: - Nasceu nesta 76 A casa, que antes era frequentada


terra um Anselmo de mui digna raça, de manhã à noite pelos seus amigos,
que a veste longa23 em jovem manifesta ficou vazia quando foi privada
que os ensinamentos de Ulpiano24 abraça; das estarnas, perdizes, faisões antigos.
de progénie nobre, bela e honesta Ele, que antes era o chefe da brigada,
mulher busca, que seu grau satisfaça; para trás lhes ficou, quase entre os mendigos.
e numa cidade à sua adjacente Pensou, por na miséria ter caído,
uma achou, de beleza transcendente, ir para onde não fosse conhecido.
73 e tinha um modo gaio, e tão gracioso 77 Com tal intenção uma manhãzinha,
que tudo parecia amor e alegria; sem nada dizer, a pátria deixava;
talvez mais de quanto ao estado do esposo com suspiros e lágrimas caminha
e sua vida tranquila conviria. junto ao pântano que a muralha lava.
Desde que a teve, ele o mais ciumoso A dama do seu coração rainha,
foi entre todos que no mundo havia; pela segunda razão, não olvidava28 •
mas não porque outra razão lhe desse ela, Mas surge grande aventura que o vem,
senão ser muito viva e muito bela. de sumo mal, a pôr em sumo bem.

74 Na mesma terra havia um cavaleiro,


que era d� antiga e mui honrada gente,
descendente daquele cepo altaneiro
saído de queixada de serpente25 ,
de quem Manto26 , e quem foi com ela obreiro
da pátria minha, saiu igualmente.
O cavaleiro Adonio se chamou,
e da bela dama se enamorou.
75 E, para vir a consumar esse amor,
começou a gastar sem contenção
em vestes, convites, fazer-se honor,
como lhe permitia a condição.
O tesouro de Tibério imperador27
não bastaria a tal dissipação.
Creio que não passaram dois invernos
até gastar todos os bens paternos.
678 ORLANDO FURIOSO

78 Vê um vilão que com grande bastão 82 Por essa altura a minha pátria há-de
em volta de umas moitas se afadiga. mandar um orador ao Padre Santo,
Adonio ali se detém, e a razão que vai ficar com Sua Santidade
de tanto trabalho quer que lhe diga. algum tempo, mas não foi dito quanto.
Que dentro do mato, disse o vilão, Dita a sorte ao juiz a actividade:
tinha visto serpente muito antiga, foi tal coisa para ele causa de pranto.
mais longa e grossa que ela em vida sua Muito pediu, rogou, deu, prometeu,
não vira, e que não verá insinua; para não partir; forçado, enfim, cedeu.
79 que não havia de dali partir 83 Não cria menos cruel e malvado
sem a ter encontrado e deixar morta. ter de suportar tão terrível dor,
Quando Adonio ouviu tal coisa referir, que se lhe tivessem aberto o lado
é com pouca paciência que o suporta. para de seu coração com mão dispor.
Sempre soía as serpentes nutrir, De ciúme pálido, e preocupado
pois por insígnia no sangue as transporta, com a mulher enquanto em viagem for,
que origem teve sua antiga gente roga, com modo que acha conveniente,
nuns dentes semeados de serpente. que fiel seja enquanto está ausente,
80 Disse e fez com o vilão de maneira s4 dizendo-lhe que à mulher nem beleza,
que, seu mau grado, abandonou a empresa; nem nobreza ou grande fortuna basta
não deu à serpente morte certeira, para que cresça seu honor em alteza,
nem foi achada, ofendida nem presa. se em palavras e obras não for casta;
Depois vai Adonio aonde se inteira e que a virtude muito mais se preza
não ser conhecida sua pobreza; se, sendo tentada, não se desgasta,
resiste com desconforto e afano, tendo agora ocasião, com esta ausência,
longe dali, até ao sétimo ano. de fazer da pudicícia experiência.
81 Mas nem pela distância nem pela estreiteza 85 Com tais palavras e outras mais procura
do viver, que não deixa a ideia vaga, persuadi-la a que lhe seja fiel.
cessa Amor, que contra ele tem mão tesa, Queixa-se ela da partida tão dura,
de o coração lhe ferir com fogo e chaga. com que lágrimas, meu Deus, com que fel!
Por fim, força-o a voltar à beleza E mais depressa o Sol escurecer, lhe jura,
que o olhar, por rever, tanto divaga. se verá do que ela ser tão cruel
Barbudo e alquebrado e maltrapilho, que o atraiçoe; preferia ter ensejo
para à sua terra voltar, fez-se ao trilho. de morrer a ter jamais tal desejo.
CANTO XLIII 679

86 Embora no que ela prometa e jure 92 Pede-lhe que não faça, enquanto ausente
faça fé, tranquilizando-se um tanto, ele se encontrar, na cidade demora,
não se contém sem que ouvir mais procure, mas na casa de campo, onde agilmente
encontrando mais motivos para pranto. poderá viver, de outros convívios fora.
Um amigo pretende que lhe augure Assim dizia porque a humilde gente,
o futuro, pois tinha esse encanto, que no rebanho e nos campos labora,
e de feitiços e mágica arte não cria que da mulher o pudor
ou sabia tudo ou a maior parte. contaminasse, ou lhe instigasse error.
87 Muito rogando, deu-lhe a empreitada 93 Enquanto com seus braços inda enlaça
de ver se sua mulher, chamada Argia, ao receoso marido o colo Argia,
enquanto dele se encontrasse apartada, e o rosto de lágrimas lhe repassa
fiel e casta ou o oposto seria. com o rio que dos olhos lhe saía,
Cedeu aos rogos: dos astros fixada entristece-a que culpada ele a faça,
a posição, do céu estudos faria. parecendo que infiel ser já soía;
Deixa-o Anselmo obrar, e, um dia após, e porque a causa da suspeita é
pela resposta a ele regressa veloz. que ele não tenha na sua fé fé.
88 O astrólogo em silêncio se quedava, 94 Longo será eu ir aqui lembrando
para com sua fala o doutor não magoar, tudo o que então disseram, a preceito.
e desculpas para calar encontrava. «Que honor guardes (disse enfim) te demando»:
Mas, vendo que ele quer saber seu azar, despedindo-se, partiu com efeito;
disse por fim que ela o atraiçoava e o coração sente em verdade, quando
mal pusesse o pé fora do limiar, gira o cavalo, sair-lhe do peito.
não por beleza ou rogos induzida, Ela segue-o, enquanto ele se descobre,
mas por ganho e por lucro corrompida. com olhar que de pranto a face cobre.
89 Ao temor e dúvida que o domina 95 Mentres, Adonio, abatido e mesquinho,
juntando a ameaça que os astros dão, e (como eu disse) pálido e barbudo,
se as dores de amor conheces, imagina para à pátria voltar tomara caminho,
em que estado estava o seu coração. esperando ter para os conhecidos escudo29 •
E a desdita que mais o amofina Chega ao lago, da cidade vizinho,
e à mente lhe dá mais consumição onde acudira pelo bicho sanhudo
é saber que, vencida pela avarícia, que era assediado, no matagal forte,
por um preço vendia a pudicícia. pelo vilão que lhe queria dar morte.
90 Com a intenção de arranjar mezinha 96 Chegando ali mesmo ao romper do dia,
para que em tão grave erro ela não caísse inda no céu brilhava alguma estrela,
(a míngua a roubar altares encaminha em bela e arcana veste aparecia,
às vezes o homem por gulodice), ao seu encontro vindo, uma donzela
tudo o que em jóias e dinheiros tinha de senhoril feição que, todavia,
(e bastante era) que era seu lhe disse; pagem ou aia não tinha com ela.
as rendas e lucros de que dispõe, Com amável expressão o acolheu,
e o que tem no mundo, nas mãos lhe põe. e a língua depois a tais falas deu:
91 «Com liberdade (disse) que em qualquer 97 «Bem que não me conheças, cavalheiro,
necessidade, e não só, gozes, gastes, sou parente, e estou-te em obrigação:
ou deles faças o que te aprouver, parente, pois de Cadmo30 altaneiro
que os consumas, dês, vendas ou desgastes; descende de nós dois a geração.
contas deles não quero quando vier, Sou a fada Manto, e o seixo primeiro
desde que do que ora és não te afastes: lancei para fundar esta povoação;
desde que, tal te deixo, te manténs, e, como decerto haverás ouvido,
mesmo que casa já não tenha ou bens». de meu nome dei a Mântua apelido.
680 ORLANDO FURIOSO

98 Das fadas uma sou; e para que tal 1 04 E porque sei que no antigo nó
condição tu saibas o que comporte, em que Amor te envolveu inda estás preso,
nascemos de modo a de a todo o mal quero ensinar-te o modo de teres pró,
estarmos sujeitas, com excepção da morte. e aliviares de teu desejo o peso.
Mas temos, com esse grau de imortal, Estando o marido ora longe, e ela só,
não menos má que a morte, uma outra sorte: ao meu conselho não darás desprezo;
cada uma, ao sétimo dia, certa vais ver a dama que morada tem
está que à forma de bicha se converta. no campo, e eu irei contigo também».
99 Ver com feia pele o corpo composto, 105 E prosseguiu, dizendo de que guisa
e serpentear, é coisa repulsiva; quer que ele à sua amada se apresente;
maior que outro no mundo é tal desgosto, digo, como vestir, como precisa­
cada uma queixa-se de estar viva. mente fale, como peça e a tente;
E obrigação te devo (faço gosto e diz-lhe a forma em que se caracteriza;
em dizer-te também de onde deriva), pois, fora o dia em que faz de serpente,
pois nesse dia, sendo esse animal, nos outros pode mudar-se segundo
em perigo estamos de infinito mal. lhe apetece, em quanta forma há no mundo.
1 00 Não é odiado outro animal na Terra, 1 06 Vestiu-o de romeiro pobrezinho,
como a cobra; e, tendo dela a caraça, que vai de porta em porta a pedir esmola;
sofremos de todos ultraje e guerra; fez-se ela um cão, mas mais pequenininho
quem nos vê, bate-nos e dá-nos caça. do que no mundo haja símil bestiola:
Quem buraco não acha, e não se enterra, de pêlo longo, mais branco que arminho,
sente o peso do braço que a ameaça. gracioso, e de habilidades com escola.
Melhor poder morrer que estropiadas Assim mudados, tomaram a via
e mutiladas ficar, das pancadas. que levava a casa da bela Argia;
101 Estou-te obrigada porque uma ocasião, 107 e, dos trabalhadores nas cabanas,
passando por estas sombras amenas, em primeiro lugar o jovem parou;
tu livraste-me das mãos dum vilão começou a tocar as suas canas,
que muita maçada me dera e penas. e o cão, ao som, pôs-se em pé e dançou.
Sem ti não tinha tido salvação Chegam à patroa vozes e hosanas
sem cabeça e costas de chagas plenas, de tal modo que por ver se interessou.
e sem que ficasse derreada e torta, Mandou chamar o romeiro à sua corte,
embora não pudesse ficar morta; pois assim queria do doutor a sorte.
1 02 pois nesses dias que pelo chão o peito 1 08 E ali Adonio o cão com artimanhas
levamos, e em cobra a pele se reforça, comandou, e o cão sempre obedeceu,
o céu, outras vezes3 1 a nós sujeito, fazia danças das nossas, e estranhas,
nega obediência e priva-nos de força. com passos e jeitos a modo seu;
Noutras vezes o Sol tem-nos respeito: e fez com modos humanos façanhas,
à nossa voz detém-se e a luz escorça, seguindo os comandos que ele lhe deu
gira a imóvel Terra e desaquartela, com tanta atenção que quem o admira
inflama-se o gelo, e o fogo congela. não pestaneja e quase não respira.
103 Pois eu estou aqui para render mercê 1 09 Grande maravilha e enorme desejo
do benefício feito nessa hora. teve a dama de ter o cão gentil;
Nenhuma graça pedem que eu não dê, pela ama, ao peregrino tem ensejo
quando da pele de cobra estiver fora. de por ele oferecer preço não vil.
Três vezes o que herdaste do pai, crê «Mais tesouro houveras do que é almejo
que é a riqueza que te dou agora; da ambiciosa avidez feminil
e pobre não hás-de ser novamente: (respondeu ele), suficiente não é
que quanto mais gastares, mais aumente. para comprar sequer de meu cão um pé».
CANTO XLIII 681

110 E, para mostrar que falou com decoro, 1 14 A outra aparição que Adonio fez
quer que a ama com ele para um lado passe, foi do doutor a ruína e a morte.
dizendo ao cão que uma moeda de ouro Fazia surgir moedas dez a dez,
para ela, por cortesia, deitasse. pérolas e gemas de toda a sorte;
Sacudiu-se o cão, e viu-se o tesouro. e o coração soberbo liquefez,
Disse Adonio à ama que o apanhasse, que a opor-se ainda foi menos forte,
juntando: «Achas que um preço se prevê, quando soube que quem tinha diante,
pelo qual tão belo e útil cão eu dê? e a queria, era o cavaleiro seu amante.
1 1 1 Qualquer que seja a coisa que eu demando, 1 1 s Os conselhos de sua ama tão puta,
não me deixa ficar de mão vazia; os rogos do amante e a sua aparência,
pérolas, anéis e, de vez em quando, o ver que riqueza dali desfruta,
com bela e cara veste me obsequia. do infeliz doutor a longa ausência,
Diz à dama que o tem sob seu comando, o crer que ninguém o erro lhe imputa
não por ouro, que ouro o não pagaria; fazem ao casto voto tal violência
mas, se uma noite comigo ela passa, que ela o cão aceita, e em seu abono
que o cão tenha, e dele o que quiser faça». ao amador se dá com abandono.
1 1 2 Tal disse, e duma gema fez tiragem, 1 1 6 Longamente Adonio o fruto colheu
que lhe deu, para que à patroa a apresente. de sua bela dama, à qual a fada
Acha a ama que há nisso mais vantagem amor induziu; e afecto lhe deu
que pelo cão vinte ducados avente. tal que foi a estar com ela obrigada.
Regressa à dama, e leva-lhe a mensagem; Todos os signos o Sol percorreu
e aconselha-a depois: que se contente antes de ao juiz ser licença dada;
de comprar o belo cão, pois comprá-lo voltou por fim, cheio de suspeição,
pode por preço que não custa dá-lo. lembrando do astrólogo a previsão.
1 13 De início a relutância Argia intima; 1 1 7 Já na pátria, o primeiro protocolo
em parte, porque a fé quebrar lhe dói, fez ao astrólogo, a quem perguntou
em parte, porque as palavras dele estima se lhe fizera a dama engano e dolo,
que alguma falta de verdade obstrói. ou se fidelidade lhe guardou.
Lembra a ama, e dentro se rói e lima, Localizou ele o sítio do pólo,
que tanto bem suceder raro sói: e aos planetas todos lugar marcou;
fez que adiasse a ocasião fautriz, depois respondeu que quanto temera,
pois sem tantos olhos o cão ver quis32 • conforme ele previra, lhe acontecera:
682 ORLANDO FURIOSO

118 que, por mui ricas prendas seduzida, 1 24 Foi buscá-la o servo ao campestre abrigo,
a dar-se a outro ela se persuadira. para fazer dela o que o senhor mandou.
Isto ao doutor fez no peito tal ferida Pegando no cão para o levar consigo,
como lança ou pique não conseguira. montou a cavalo e a via encetou.
Para mais certeza ter, vai de seguida Tinha-a o cão avisado do perigo,
(mas crê que o bruxo a verdade profira) mas, a seu conselho, ir não evitou;
procurar a ama e chama-a de parte, estava tudo bem planeado sem susto,
e usa, para o vero saber, toda a arte. e auxílio haveria no momento justo.
1 1 9 Com grandes cercos vai-a pondo à prova, 125 Esquivara-se o servo à via primeira;
tentando aqui e ali encontrar pista; e por outras de total soledade
de início nada dela desencova, foi ter, a propósito, a uma ribeira
por muita diligência com que insista, que Apenino desce e este rio invade;
que ela, para quem tal coisa não é nova, selva havia ali negra e altaneira,
negava, mantendo imóvel a vista; distante de aldeias e da cidade.
estando bem instruída, mais de um mês Pareceu-lhe o lugar bem ermo e disposto
estar entre o certo e o duvidoso o fez. para o cruel acto que lhe foi imposto.
1 20 Devera o duvidoso ter por bom, 126 Puxou da espada e à patroa disse
pensando na dor que vinha do certo! o que o seu senhor ordenado havia;
Após ter tentado, com rogo e dom, por isso, antes de morrer, que pedisse
que a ama a verdade tivesse aberto, a Deus perdão de culpa mal-sadia.
não tocou tecla em que se ouvisse som Não sei dizer como ela se encobrisse:
senão falso; sendo ele um homem experto, quando o servo pensou que feri-la ia,
pôs-se à espera que surgisse discórdia; já não a viu, e, tendo procurado
que, onde há mulheres, há rixas e mixórdia. tudo em redor, sentiu que foi logrado.
121 E tal como esperara lhe sobreveio; 1 27 Torna ao patrão com vergonha e afronta,
ao primeiro amuo que entre elas nasceu, com ar atónito e rosto estarrecido,
sem ele a procurar, a ama veio e depois o caso insólito conta,
contar-lhe tudo, e nada lhe escondeu. sem saber como tinha acontecido.
Indizível do coração o anseio, Que ao seu serviço tinha a mulher pronta
e o desespero que a mente sofreu a fada Manto, ignorava o marido;
do pobre juiz, que, de tão mofino, pois a ama, que o resto lhe narrara,
pouco faltou para que perdesse o tino; tal facto, não sei porquê, ocultara.
1 22 ao fim se dispôs, pela ira retinto: 1 28 Não sabe o que fazer: a ofensa grave
morrer, mas primeiro matar a mulher; não vingara, e pela dor ainda geme.
possa dos dois sangues um ferro tinto O que era uma palha, ora é uma trave,
dela a nódoa, dele a dor remover. tanto lhe pesa e o coração lhe preme.
À cidade torna, com o instinto O erro oculto ora não tem entrave;
movido pelo irado e cego querer; que em pouco tempo se propale, teme.
dali, à quinta um de confiança manda, Podia o primeiro esconder-se; o segundo33
e aquilo que deve fazer comanda. em breve será noto em todo o mundo.
1 23 Comanda o servo para à mulher, Argia, 1 29 Bem sabe que após a má intenção
voltar, ao campo; e em seu nome lhe diga mostrada pelo infeliz contra essa,
que uma febre tão forte o assedia para não voltar à sua sujeição,
que de não o encontrar vivo periga; a um poderoso ela se endereça;
por isso, sem esperar por mais companhia, o qual a guardará, com derisão
com ele venha, se acaso é sua amiga e ignomínia do marido expressa;
(virá, sabe; desculpas não levanta); em seu poder, talvez, algum a tem,
e no caminho lhe corte a garganta. que adúltero é e alcoviteiro também.
CANTO XLIII 683

1 30 Assim, para a tal obstar, à pressa manda 1 32 Mandara à fada fazer entretanto
cartas e arautos à sua procura; a bela Argia, com nobre decoro,
na Lombardia aqui e além demanda de alabastro um palácio por encanto,
faz, e nenhuma cidade descura. todo forrado, dentro e fora, a ouro.
Vai depois em pessoa a toda a banda, Língua dizer não pode, ou mente, quanto
e aonde não vai tem espião que apura; primor fora tinha, dentro tesouro.
mas não consegue achar a menor pista O do meu senhor, que ontem percebeste
que com qualquer nova dela o assista. ser tão belo, é um tugúrio ao pé deste.
131 Por fim chama o servo a quem foi imposta 1 33 Ricas tapeçarias e cortinas,
a cruel obra que não teve efeito, urdidas em mui variados padrões,
e, onde fora da vista lhe foi posta ornavam os estábulos e as cantinas
Argia, quer que lhe mostre a preceito; como ornavam salas, quartos, balcões;
se a uma moita de dia ali se encosta, em ouro e prata diversas terrinas;
e à noite a um tecto, quer ver o jeito. gemas esculpidas dão forma a jarrões,
Leva-o o servo aonde encontrar crê pratos, taças, em rubro, verde e azul,
tal selva, e um grande palácio vê. e, em ouro e seda, tecidos de tule.
684 ORLANDO FURIOSO

1 34 O juiz, como atrás eu vos dizia, 1 36 Mais ninguém vendo, Anselmo se compele
encontrou este palácio pela frente, a perguntar de quem é a distinta
quando nem uma cabana julgaria casa; para tal, aproxima-se dele,
lá achar, mas só o bosque silente. que como seu o palácio lhe pinta.
Pelo grande espanto que por tal sentia, Tem o juiz a certeza que aquele
creu que se lhe tinha turvado a mente: esteja dele a troçar e que lhe minta;
pensou que estivesse ébrio ou que sonhasse, mas a jurar o negro sempre afirma:
ou que o seu juízo a voar andasse. «A casa é minha e não venham pedir-ma»;
135 Em frente à porta um etíope vê, 1 37 e oferece-lhe, se acaso a quiser ver,
com grande boca e nariz; e ajuízo que nela entre e busque como queira;
que antes ou depois ter visto descrê e se algo houver que faça gosto em ter,
. . .
para s1 ou para os amigos, que o reque1ra.
tão desagradável e sujo viso;
o corpo, como de Esopo se lê34, O cavalo ao servo deu a suster
um santo assustava no paraíso; Anselmo; depois, passou a soleira;
porco e besuntão, roupa de mendigo, e, por salas e quartos sendo guiado,
da feiúra nem metade vos digo. de alto a baixo tudo foi admirado.
CANTO XLIII 685

13s A forma, o local, todo aquele tesouro 1 40 Argia, que estava escondida perto,
vai contemplando, e o ornamento régio; depois de o ver no seu erro caído,
e repete: «Não podia quanto ouro surgiu e gritou: «Mas que passo certo
sob o Sol há pagar tal sítio egrégio». vejo, de doutor por tão sábio tido!»
A isto responde-lhe o feio mouro: Apanhado naquele vicioso aperto,
«Mas tem um preço que é um privilégio; pensa tu: ficou rubro e emudecido.
se não de ouro ou prata, também se ajusta Ó Terra, para ele se te meter dentro,
por aquilo que dar menos vos custa». por que ali não te abriste até ao centro?
1 39 E a mesma proposta a fazer se apresta 141 Argia expande-se, e, para envergonhar
que à sua mulher Adonio fizera. Anselmo, censura-o com gritaria,
Pela pretensão tão feia e desonesta, dizendo: «Como te hei-de castigar
bestial, mentecapto o considera. se vil homem a isso te alicia,
Três, quatro recusas ele não contesta, quando eu, por a natura secundar
e para o persuadir de tal modo opera, e ao meu amante ceder, morreria?
oferecendo o palácio como prémio, E era belo e gentil, e prémio tal
que a seu alvitre aceitar, por fim, preme-o. me deu que o palácio ao pé nada vale.
686 ORLANDO FURIOSO

142 Se eu te pareci ser digna de uma morte, 148 Federico45 não estava nessa hora,
reconhecerás que és digno de um cento; nem a Issabetta, nem o bom Guido,
e crê que neste lugar sou tão forte nem Francesco Maria ou Leonora46 ,
que em ti posso cumprir o meu intento; para ter, com cortês força, convencido
mas não quero dar-te de pior sorte a mais de uma noite fazer demora
outra vingança pelo teu falimento. ali o guerreiro tão conhecido;
O haver e o dar, marido, a par porás; como fazem há anos, e farão,
e, como eu a ti, a mim perdoarás; com cavaleiros e damas que lá vão.
1 43 façamos pazes e acordo imediato: 1 49 Uma vez que ninguém ali o prende,
erros passados caiam no olvido; desce para Cagli, para a directa via47 •
que eu mais não possa por palavra ou acto Pelo monte que o Metauro e o Gauno fende48
lembrar teu erro, e o meu seja esquecido». passa Apenino, e da destra o desvia,
Pareceu aceitar o marido o pacto, Úmbria49 , Etrúria50 , e até Roma se estende;
mostrando ser o perdão acolhido. de Roma a Ostia51 , e faz a travessia
À paz e concórdia assim regressaram, por mar até à cidade em que Anquises
e um ao outro para sempre se estimaram. - foi sepultado pelas suas raízes52 •
144 Tal disse o barqueiro; em Rinaldo riso 1 50 Muda de barco, e faz-se a toda a brida
provocou do final da história o modo; à ilha de Lipadusa53 levar;
e, por vergonha do doutor, o viso a que pelos combatentes foi escolhida,
logo se lhe tornou vermelho a rodo. e onde já tinham estado a batalhar.
Rinaldo Argia louvou por ter siso Dá aos barqueiros pressa desmedida:
para ao pássaro montar aquele engodo, fazem por isso, à vela e a remar;
apanhando-o na mesma rede em que ela mas o vento foi-lhe adverso e cobarde,
caíra, e por mais grave escorregadela. fazendo-o, só por pouco, chegar tarde.
145 Quando o Sol mais alto caminho fez, 151 Chegou lá quando o príncipe de Anglante
o paladino mandou pôr a mensa, findara a útil obra e gloriosa:
pois tinha à noite o mantuano cortês morte dera a Gradasso e Agramante,
provido o barco de boa despensa. mas com dura vitória e sanguinosa.
A esquerda a bela terra35 nitidez Morto estava o filho de Monodante,
perde, e à mão direita a palude imensa; e, de estocada violenta e perigosa,
vem e foge Argenta e sua muralha, Oliviero enlanguescia no chão,
e o rio onde o Santerno a água espalha36 • do pé sofrendo pena e aflição.
1 46 Inda a Bastia ali não estava à beira, 1 52 Não pôde o conde ter enxuto o viso
de que não se gabaram os de Espanha quando abraçou Rinaldo; e então narrou-lhe
de muito ter hasteado ali bandeira37 ; que morreu Brandimarte de improviso,
mais se hão-de lamentar os da Romagna38 • e outro amigo tão fiel não se escolhe.
Dali, pelo ramo destro da ribeira Também Rinaldo, quando viu diviso
metem o barco, e ninguém os apanha3 9 • seu rosto, é forçado a que os olhos molhe;
Seguem depois por uma fossa morta40 , depois para o abraçar se dirigiu
que ao meio-dia junto a Ravenna os porta. a Olivier, que em luta o pé partiu.
1 47 Embora Rinaldo poucos dinheiros 1 53 Consolação foi dar-lhe com brandeza,
costume ter4 1 , tantos trazia agora embora para si tê-la não lograsse;
que cortesia fez aos marinheiros, pois só chegara ali para a sobremesa,
antes de os deixar ir em boa hora. ou depois que a mesa se levantasse.
Trocando de montadas e escudeiros, Levam os servos para a cidade acesa54
na mesma noite Rimini42 aflora; de Bizerta, para que se sepultasse
nem espera em Montefiore43 o matutino e se houvesse testemunho probante,
sol, quase a par do qual alcança Urbino44. os corpos de Gradasso e de Agramante.
688 ORLANDO FURIOSO

1 54 Deu a vitória que obtivera Orlando 1 60 - Ai, por que, Brandimarte, te deixei
a Astolfo e Sansonetto alegria; sem mim ir a tão grande empresa? (disse).
mas não tanta como teriam quando Nunca, vendo-te partir, eu fiquei
Brandimarte a vida ali não perdia. sozinha, sem que contigo seguisse.
Sabê-lo morto o gáudio vai minando Tinha-te ajudado, se fosse, sei,
tanto que um e outro rosto embacia. com meu olhar fixo em ti com faguice;
Da nova qual será o portador se Gradasso por trás te desse assalto,
a Fiordiligi, e causar tanta dor? tinha-te avisado, gritando alto;
1 5 5 Na noite antes de se dar o transtorno, 161 ou talvez conseguisse ser tão lesta
Fiordiligi sonhou que aquele vestido 55 , que, no meio entrando, o golpe aparava;
que, para ao seu Brandimarte dar adorno, escudo te faria com minha testa,
com suas mãos tinha feito e tecido, pois, morrendo eu, pouco dano causava.
via aspergido ao meio e todo em torno À mesma morro, mas não terá esta
de gotas rubras, como se chovido morte algum proveito, nem desagrava;
houvesse: como se assim o tivesse enquanto morrendo em tua defesa,
bordado ela, e depois se arrependesse. findava a vida com toda a nobreza.
1 56 E a si dizia: - Mas o senhor meu 1 62 Porém, se a ajudar-te os duros factos
mandou negra fazer a veste inteira; tivesses tido e todo o Céu adverso,
por que motivo fui bordá-la eu, beijos seriam meus últimos actos,
contrariando-o, de diversa maneira? - e tinhas de meu pranto o rosto asperso;
Um mau augúrio nesse sonho leu, e, antes que viessem os anjos beatos
e à noite veio a notícia certeira; levar ao Fautor teu espírito terso,
Astolfo depois que oculta lha teve, dir-lhe-ia: Vai em paz, e por mim espera;
com Sansonetto a ir dar-lha se atreve. contigo estou em breve, em qualquer esfera.
1 57 Logo que entraram, e que ela o seu viso 1 63 É este, Brandimarte, o reino teu
viu ao gáudio da vitória furtivo, cujo ceptro tomar ora devias?
sabe, sem outro anúncio ou outro aviso, Assim, contigo, a Dammogire58 vou eu
que o seu Brandimarte já não é vivo. ora, onde assento real me darias?
O coração fica de um mal inciso, Ah, Fortuna cruel, que o sonho meu
o olhar tanto à luz se torna esquivo, destróis! Oh, que esperanças de mim desvias!
e todo o sentido tanto se cerra Se meu bem perdi, por que não me apresto
que como morta se deixa ir a terra. a perder, ai de mim, também o resto? -
1 58 Ao tornar a si, aos cabelos mete 1 64 Isto e mais dizendo, nela irrompeu
as mãos e àquele rosto belo assaz, com todo o ímpeto raiva e furor,
enquanto o nome caro em vão repete, e de novo a crina a arrancar se deu,
fazendo o dano e estrago que é capaz: como se a crina fosse o causador.
arranca as crinas, e em gritos compete Também as mãos molestou e mordeu,
com mulher que o demónio louca faz, e à boca e seio deu com as unhas dor.
ou como nos dizem que ao som do corno Volto a Orlando e à companhia, enquanto
correm Ménades56 e giram em torno. ela se consome e derrete em pranto.
1 59 A um e outro pede, para conforto, 165 Orlando, com o cunhado que não pouco
lhe traga um cutelo que o peito fira; precisava de médico e de cura,
quer correr aonde o navio ao porto e para em digno lugar abrir cabouco
dos dois senhores defuntos57 chegar vira, e dar a Brandimarte sepultura,
e um e outro assim como está, morto, direito ao monte vai, de fogo e oco,
mutilar, e a fazer vingança aspira; que a noite aclara e a luz com fumo obscura59 •
ou quer passar além do mar salgado, Propício é o vento, e à direita mão
para ir do seu senhor morrer ao lado. já pouco longe está aquele chão.
CANTO XLIII 689

166 O vento fresco e a favor não os priva: 1 72 Tu, ganho houveste, e perda sofri eu;
à noite a vela içam sem transtorno, no aquisto estás só, não eu no dano.
deixando-os ver a taciturna diva60 Participantes são do sofrer meu
a via, com o luminoso corno; Itália, o reino franco e o alamano.
ao outro dia a embarcação deriva Meu senhor e meu tio pelo que ocorreu,
para a costa amena, de Agrigento6 1 em torno. e os paladins, sofrerão grande afano!
Para essa noite, Orlando tudo disse Sofre o Império, e a cristã Igreja,
que para a cerimónia fúnebre se urdisse. que já não terão quem mais os proteja!
167 Vendo que o que ordenara estava quite, 1 73 Ai, quanto perderão, por tua morte,
e o mundo do Sol já não tinha alento, os inimigos terror e espavento!
com a nobreza que viera a convite Oh, quanto a Pagânia62 será mais forte!
dos lugares em redor para Agrigento, Quanto ânimo terá, e atrevimento!
e na praia com tochas luz emite, Ai, como deve estar tua consorte!
ouvindo-se os seus choros e o lamento, Daqui sinto o pranto e o grito cruento.
torna Orlando onde o corpo foi deixado, Sei que me acusa, e ódio, talvez, me porta;
que vivo e morto com fé tinha amado. por mim, em ti está sua esperança morta.
16s Bardino, ali, dos muitos anos grave, 1 74 Mas, Fiordiligi, que reste um conforto
estava chorando junto ao ataúde; a nós, de Brandimarte tão exclusivos:
com tanto que já chorara na nave, devem invejá-lo, com glória morto,
seus olhos não terão muita saúde. todos os guerreiros que hoje estão vivos.
Ao Céu e estrelas chama nome insuave, Décios63 , e o no foro romano absorto64 ,
e qual leão raivoso ruge amiúde. o Codro65 tão louvado pelos Argivos,
Cruéis e feras eram as mãos dele não mais ganho aos outros e a si honor
para as brancas crinas e a rugosa pele. deram, ao morrer, do que o teu senhor. -
169 Ergueu-se, ao ver tornar o paladino, 1 75 Palavras assim ia dizendo Orlando.
mais alto o grito, e redobrou o pranto. Os frades negros, brancos e mulatos,
Orlando chegou-se ao corpo supino, e os outros padres, iam desfilando
e sem falar esteve a olhá-lo um tanto, dois a dois em procissão, mui cordatos,
pálido qual ligustro ao matutino por alma do defunto a Deus rezando
ar colhido à noite está, ou acanto; que repouso lhe desse entre os beatos.
após grande suspiro, tendo o olhar Luzes à frente, ao meio e em volta havia,
nele fixo, começou a falar: parecendo ter mudado a noite em dia.
170 - Ó forte, ó fiel companheiro que adoro, 176 Erguem o esquife, e dão-lhe pousadouro
morto aqui estás, mas hás no Céu castelo, ao ombro e à vez condes e cavaleiros.
e a vida que ganhaste não deploro: Purpúrea seda o cobria, que de ouro
já não te molestam calor nem gelo; e pérolas tinha enfeites fagueiros;
perdoa-me, se tanto vês que choro, não menos belo lavor e decoro
mas por ter cá ficado me flagelo, tinham, de gemas, ricos travesseiros;
por em tal letícia não estar contigo; jazia o cavaleiro ali, com veste
não por cá em baixo não estares comigo. que de cor e lavor par se reveste.
171 Sem ti, só me encontro; sem ti, na Terra, 1 77 Trezentos aos outros tinham adianto,
todo o prazer que houvera já está gasto. escolhidos entre os mais pobres da terra;
Se estava contigo em procela e guerra, todos vestiam idêntico manto,
por que não na bonança e ócio fasto? de negro tecido e a chegar à terra.
Bem grande é minha culpa, se me emperra Cem pagens em cavalos, que eram quanto
de sair desta lama pelo teu rasto. de melhor se podia ter para a guerra;
Se nas aflições estive, por que agora corcéis e pagens levavam de rojo
contigo não estou nessa boa hora? pelo chão suas sobrevestes de nojo.
690 ORLANDO FURIOSO

1 78 Muitas bandeiras adiante e atrás, 181 Foi posto na igreja; depois que entone
com diversas insígnias distinguidas, das mulheres lágrimas e inútil pranto69 ,
desfraldadas, o esquife em torno traz; dos sacerdotes kyrie eleison70
foram tiradas a hostes vencidas e prece dirigida a todo o santo,
para César e para Pedro66 , em luta audaz, que a arca em colunas se posicione:
pelas forças que jaziam fenecidas67 • assim Orlando quis, e que haja um manto
Escudos havia muitos que de dignos de ouro a cobri-la, até que seja posto
guerreiros, que os perderam, tinham signos. em mais rico túmulo, a ser composto.
1 79 Havia mais de cem, para tantos usos 1 82 E da Sicília Orlando não se parte,
das exéquias chamados; tinham estes sem mandar por pórfiros e alabastros.
e os outros tochas acesas; reclusos, Mandou fazer o desenho, e, dessa arte,
mais que vestidos, em lúgubres vestes. por bom prémio, a mestres com bons cadastros.
Depois Orlando, com os olhos infusos As lajes fez, ao vir para esta parte,
de lágrimas, rubros, mestos, agrestes; colocar Fiordiligi, e os pilamos;
nada mais ledo que ele Rinaldo vinha; até cá (tendo Orlando já partido)
Oliviero, o pé quebrado o retinha. veio, trazida do africano lido.
1 80 Longo será se vos disser em versos 1 83 E como o seu chorar era incessante,
as cerimónias, e se forem contados e porque continuamente suspire,
os mantos negros e roxos dispersos68 , e o ser de ofício e missa praticante
os archotes que ali foram queimados. não faz que seu desgosto se retire,
Até na catedral estarem imersos, que dali não se afastará garante,
deixaram, ao passar, olhos molhados: até que do seu corpo a alma expire;
tão belo, tão bom, tão jovem, piedade mandou fazer no sepulcro uma cela
causou em cada sexo, classe, idade. na qual se fechou, e fez vida nela.
CANTO XLIII 691

184 Embora cartas, recados lhe mande, 187 Disse haver, dali a pouca extensão,
Orlando em pessoa vai, para levá-la. um eremita em ilhota perdida,
Terá em França privilégio grande, ao qual nunca se recorria em vão,
que aia de Galerana7 1 quer torná-la; conselho ou ajuda fosse pedida;
ou, se acaso ao pai regressar demande, e tinha às vezes sobre-humana acção:
até Lizza72 quer ir acompanhá-la; dar luz a cegos, a mortos dar vida,
ou uma abadia lhe edificava, deter o vento a um sinal da cruz,
se servir a Deus era o que almejava. e o mar, quando grande fúria o induz;
185 Ficou no sepulcro; e ali, consumida 188 que não devem duvidar, procurando
pela penitência, orando noite e dia, esse eremita que a Deus é tão caro,
não durou muito tempo: da sua vida que Oliviero ele venha a curar, quando
a Parca os fios em breve interrompia. de seu poder já deu sinal mais claro.
Já tinham da ilha dado partida, Tanto o conselho agradou a Orlando
que os Ciclopes em grutas ter soía73 , que ao santo lugar foram, por amparo;
os três guerreiros de França, e se queixam sempre a direito a proa o barco guia,
porque o quarto companheiro ali deixam. e avistam o escolho ao romper do dia.
186 Não queriam sem um médico zarpar, 189 Guiando a nave homens do mar sabidos,
que a Olivier procurasse dar cura; com segurança chegaram àquele.
a qual, por ter demorado a iniciar, Por marujos e servos assistidos,
se veio a tornar difícil e dura; fazem descer o marquês ao batel;
e, por ele tanto ouvirem lamentar, pelas espumosas ondas são conduzidos
sentem todos pelo seu caso amargura. ao escolho, e dali vão ao santo hotel;
Falando entre si, ao barqueiro nasceu ao santo hotel e àquele que o catecismo
uma ideia que a todos comprazeu. a Ruggier deu, e também o baptismo.
692 ORLANDO FURIOSO

190 O servo do Senhor do Paraíso 195 Ruggier, desde que ali chegara a nado,
Orlando acolheu e os companheiros seus; tinha estado no escolho até agora.
abençoou-os com jucundo viso, Entre os guerreiros, o velho abençoado
e de seus casos quis tirar os véus; está docemente, conforta-os e ora
contudo, de sua vinda tinha aviso para, a lama e lodo tendo-se esquivado,
recebido antes dos heróis dos Céus. mundos saírem do atoleiro para fora
Orlando respondeu que ali viera que se chama vida, e que agrada aos tolos,
porque ajuda para o seu Olivier espera, e os olhos, no caminho do Céu, pô-los.
191 que, enquanto lutava pela fé de Cristo, 1 96 Orlando um homem mandou ir buscar
fora a triste condição reduzido. pão, vinho, queijo, presunto ao navio;
O santo aplacou-o do mal previsto, ao homem de Deus, que gosto a manjar
e prometeu total cura para o ferido. esquecera, habituado ao fruto bravio,
Não se encontrando de unguento provisto, para comer carne houve que suplicar,
nem de humana medicina instruído, e ao vinho e ao resto não ser fugidio.
foi à igreja e orou ao Salvador, Quando à mesa se tinham restaurado,
e voltou a sair com grande alor; muito assunto entre eles foi conversado.
192 e em nome de cada eterna Pessoa, 1 97 E como no falar sucede à gente,
Pai e Filho e Espírito Santo, deu que uma coisa vai outra demonstrando,
a Olivier o sinal que abençoa. Ruggier reconhecido finalmente
Que virtude dá Cristo a quem nele creu! foi por Rinaldo, Oliviero e Orlando,
Livrou-o de toda a paixão não boa, como aquele Ruggiero em armas excelente,
e a saúde do pé restabeleceu: cujo valor cada um vai louvando;
como nunca, são e ágil ficou; nem sequer Rinaldo o tinha associado
e Sobrino tudo isto observou. àquele com quem lutara no cercado.
193 Sobrino das chagas sofria tanto 198 Tinha-o o rei Sobrino conhecido
que em cada dia que pioram sente; assim que o vira com o velho surgir;
assim que observou daquele monje santo mas preferiu estar quedo e emudecido
o milagre tão grande e evidente, a falar à sorte e depois falir.
dispôs-se a Maomé meter num canto Mas quando pelos restantes foi sabido
e Cristo confessar vivo e potente; que era Ruggier, de quem podia ouvir
pediu, com o coração de fé contrito, o brio, cortesia e valor profundo
a iniciação ao nosso santo rito. mencionar e enaltecer todo o mundo,
194 Baptiza-o o homem justo, e, de um só tranco, 199 e sabendo-se já que era cristão,
reza e devolve-lhe o antigo vigor. todos com leda e com serena face
Orlando e os cavaleiros, ao seu flanco, se lhe chegam: há quem lhe aperte a mão,
mostram pela conversão tanto favor quem o beije, quem o cinja e abrace.
como por ver que já curado e franco Sobretudo o senhor de Montalvão,
estava Olivier do perigoso langor. em festa e honra fazer, é tenace.
Mais gáudio que os outros Ruggier sentiu, Por que o faz ele mais só vou contar
e em fé e devoção mais se expandiu. no outro canto, a quem quiser escutar.
CANTO XLIII 69 3

NOTAS
--ê$.'i:-
1 16 Das [. . .} planta: mais belas que as plantas dos jardins
A cidade [. . .] afago: Mântua, banhada pelo Mincio,
afluente do Pó que nasce no lago de Garda (ou Benaco). das Hespérides.
Junto a Mântua o rio alarga-se, formando três lagos.
17
Circe: feiticeira que (Odisseia, X) transformava os
2 O muro [. . .} drago: as muralhas de Tebas, cidade fim­ homens em porcos.
dada por Cadmo, filho de Agenor (agenóreo), ajudado
18
por guerreiros nascidos dos dentes de um dragão. Cnido: na costa da Ásia Menor. Lugar de veneração
de Vénus, tal como Chipre.
3
Palas: a deusa Atena, tecedeira e bordadeira exímia
19
(cf. nota a XI:75:6). De Ercole [. ..} serd: Alfonso I d'Este; filho de Ercole I
e pai de Ercole li.
4
A filha de Leda: Helena de Tróia, filha de Leda e de
20
Zeus. San Georgio: povoação nos arredores de Ferrara.
5 Sabedoria [. ..} Ida: Atena e Hera prometeram sabe­ 21
Do destro [...} Gaibana: o ramo do rio (destro corno) que
doria e riqueza a Páris, no monte Ida, para que ele as banhava as muralhas de Ferrara partia-se a seguir em dois: no
favorecesse (cf. nota a XI:70). da direita havia as duas torres referidas, que já não existem.
6 22
Para o irmão [. ..} Morgana: Morgana deu ao irmão Cidade [. . .} ronceiro: junto a Mântua, o Mincio
(o rei Artur) uma taça que lhe permitiria descobrir a infi­ torna-se tão indolente (ronceiro) que forma pântanos em
delidade da rainha Ginebra (com Lancelote). torno da cidade.
7 23
Cidade [. . .} contorna: Ferrara, situada entre dois Longa veste: roga.
grandes braços do Pó, no tempo de Ariosto.
24
Ulpiano: Domício Ulpiano, o mais prolífico dos
8
Os que [. ..} escaparam: Ferrara teria sido fundada por juristas romanos.
gentes de Pádua (cuja fundação a lenda atribui ao troia­
no Antenor) fugidas a Átila, a quem chamaram «flagelo 25 Saído [. . .} serpente: de Tebas (cf. nota a 11:6).
de Deus».
26 Manto: cf. nota a XLil:86:4.
9 Melara [. .. } bravio: Melara e Ficarolo ficam na mar­
27
gem esquerda do Pó, e Sermide e Stellata na margem Tibério imperador: imperador de Constantinopla no
direita. Em Stellata o rio dividia-se em dois braços, per­ séc. VI, acumulou enorme riqueza.
dendo impetuosidade (baixa os cornos). Um dos braços
28
dirigia-se para Ferrara; o outro tomava a direcção de Pela [. ..} olvidava: por ter ficado na miséria. A pri­
Veneza. meira razão era amá-la.
10 29
Bondeno: cidade situada na confluência do Pana:ro Esperando [...} escudo: esperando não ser reconhecido.
com o Pó.
11
3
° Cadmo: cf. nota a 11:6.
Os fortes: fortes que Tealdo d'Este mandou construir
31
em 970, na margem esquerda do Pó. Por conseguinte, Outras vezes: nos dias em que não são serpentes.
ainda não existiam no tempo de Carlos Magno.
32
Sem [. ..] quis: quis ver o cão sem a presença de tan­
12
Ilhota: ilhota de Belvedere, junto a Ferrara. No tos observadores.
tempo de Ariosto era muito aprazível, pelas vivendas e
33
jardins sumptuosos que possuía e variedade de animais Primeiro [. . .] segundo: o primeiro erro fora o adulté­
raros. rio; o segundo, a tentativa de homicídio.
13
Setecentas [. . .} esfera: o Sol (quarta esfera) «gira» na 34
Como [. . .} lê: como consta que era Esopo: feio e dis­
constelação de Carneiro na Primavera. Quer dizer que forme.
teriam de passar setecentos anos.
35 Bela terra: Ferrara.
14 Nausícaa: filha do rei dos Feácios (Odisseia, VII), a
cuja ilha Ulisses é levado pela tempestade. 36 Rio [. . .} espalha: o Reno, de que o Santerno é afluen­
te; confluem perto de Argenta.
15 Aquela [...} cara: a ilha de Capri, refúgio predilecto
37
do imperador Tibério. Bastia [. . .} bandeira: cf. 111:54, e respectiva nota.
694 ORLANDO FURIOSO

38
Mais [ . .] Romagna: sofrerão mais com as represálias 56
Ménades: Ménades, o u Bacantes, são as seguidoras do
de Ferrara do que, propriamente, com os mercenários deus Dioniso. Possuídas pela loucura mística, erram pelos
espanhóis. campos praticando uma dança violenta e actos insensatos.
39 57
Ninguém os apanha: vão muito velozes. Dois senhores defantos: Agramante e Gradasso.
4
° Fossa morta: ramo do Pó que estagnava antes de 58
Dammogire: capital do reino que Brandimarte her­
Ravenna. dara por morte do pai (cf. XXXIX:62) .
41 59
Embora [ .. ] ter: cf. nota a Il:4:4. Monte [ .. ] obscura: o Ecna, para indicar a Sicília.
42 60
Rimini: na costa adriática. Taciturna diva: a Lua.
43 61
Montefiore: povoação a sul de Rimini; hoje chama-se Agrigento: cidade na costa sudoeste da Sicília.
Montefiorito.
62
Pagânia: cf. nota a XVIII: 1 56:2.
44
Urbino: cidade interior, da região das Marcas.
63 Décios: Públio Décio Mure e seu filho deram a vida
45
Federico: Federico da Montefeltro, duque de Urbino, pela pátria oferecendo-se às lanças inimigas, cumprindo um
pai de Guidobaldo. voto feito pela vitória; um, em batalha contra os Latinos, e
o outro contra os Etruscos.
46
Issabetta (Elisabetta) [ .. ] Leonora: já referidas no
64
canto xlii:86 e respectivas notas. O { .. ] absorto: Marco Curzio; para aplacar os deuses,
atirou-se para um abismo que se abriu nos Foros Romanos.
47
Desce [ .. ] via: vai tomar, em Cagli, a Via Flaminia
65
(directa via), que o leva a Roma. Codro: rei de Atenas que se deixou matar pelos
Espartanos, porque o oráculo previra que a batalha seria
48
Pelo [ .. ] fende: monte de Piecra Pertusa, onde se ganha por aqueles cujo rei nela perecesse.
atravessa os Apeninos por uma galeria natural ( Gola de!
66
Furlo). Perco corre o Metauro e o seu afluente Para [ .. ] Pedro: para o Império e para a Igreja.
Candigliano ( Gauno).
67 Pelas [ .. ] fenecidas: pela força do cavaleiro que jaz
49
Úmbria: região do centro da península itálica. A capi­ morto.
tal é Perugia.
68
Dispersos: distribuídos pelos carpidores e povo em
50
Etrúria: região histórica da Itália Central entre o geral.
Tibre e o Arno, povoada pelos Etruscos.
69
Inútil pranto: porque não traz benefício à alma do
51
Ostia: antigo porto romano na foz do Tibre. É hoje defunto.
estância balnear (Lido di Oscia) .
70
Kyrie eleéson: curta prece, geralmente cantada. Do
52
Cidade [ .. ] raízes: Trapani, na Sicília, onde Anquises grego Kyrie eleeson, pelo latim tardio, significa «Senhor,
foi sepultado pelo filho, Eneias (cf. Vergílio, Eneida, tem piedade».
IIl:707 ss.) .
71
Galerana: a mulher de Carlos Magno.
53
Lipadusa: Lampedusa.
72
Lizza (Laodiceia) : reino do pai de Fiordiligi. Accual
54
Acesa: em chamas. Latáquia, na Síria (cf. XVlII:74:7) .
55 73
Vestido: a sobreveste negra (cf. XLl:3 1 ) . 1/ha [ .. ] sola: os Ciclopes habitavam a Sicília.

CANTO XLIV

Fácil que em pobres casas, tectos estreitos,


nas dificuldades e na desgraça,
mais se associem de amizade os peitos
que entre a riqueza invejosa e madraça
em que abundam insídias e suspeitos,
que em cortes e palácios reais grassa,
onde a lealdade se encontra extinta,
e amizade não há senão infinta.
2 Daí, que entre príncipes e senhores
pactos e acordos não sejam leais.
Unem-se hoje reis, papas, imperadores;
amanhã são inimigos mortais:
pois diferentes dos aspectos exteriores
são corações e ânimos de tais;
tanto olhando ao recto como ao errado,
só com seus interesses têm cuidado.
3 Embora esses de pouca amizade
sejam capazes, pois não medra ela
onde assunto sério ou futilidade
só com fingimento se tagarela,
se os levar a condição de humildade
amarga fortuna ou adversa estrela,
hão-de ter em pouco tempo notícia
(e em muito não tiveram) da amicícia.
696 ORLANDO FURIOSO

4 O santo velho, em sua húmil parança, s Achava essa dívida de tal sorte
de as visitas receber com nó forte que a respeitá-lo e amá-lo o impelia;
de vero amor teve melhor possança, sentia pena e contratempo forte
do que outros teriam em real corte. por não o ter feito em anterior dia,
Foi esse nó de tal perseverança quando um estava na africana corte
que mais não se desfez até à morte. e outro Carlos imperador servia.
Todos bondosos o velho achou serem, Ora, que já cristão vem encontrá-lo,
e alvo como o cisne o coração terem. o que não fez, em fazer tem regalo.
5 Achou todos corteses e dementes, 9 Promessas infindas, honras e festa
não falsos como os que acima se pinta, fez a Ruggiero o paladim cortês.
que nunca conseguem ser transparentes O p1 udente eremita, perante esta
e apresentam sempre aparência infinta. intimidade, aproveitou a vez.
De tudo em que antes foram contendentes Disse de entrada: - Mais fazer não resta
qualquer lembrança foi entre eles extinta; (e espero seja obtido sem revés)
se duma semente e um ventre nascidos, que, como entre vós se fez amizade,
por mais amor não seriam unidos. seja entre vós feita outra afinidade;
6 Sobretudo o senhor de Montalvão 10 que de uma e outra estirpe tão ilustre,
festas e honras fazia a Ruggiero; que em nobreza não têm par no mundo,
não só por já ter com as armas na mão nasça linhagem que a Terra mais lustre
sentido como era arrojado e fero, que o claro Sol em seu curso rotundo,
ou por ver nele o cavaleiro mais são e de anos futuros esperança não frustre,
e afável que havia no mundo, e vero, sempre mais bela, e que dure (segundo
mas mormente por, por mais de uma via, Deus me diz, para vos dar a saber tal)
conhecer que obrigações lhe devia. enquanto o céu houver o curso usual. -
7 Sabia que tinha de um perigo certo 1 1 E o seu falar seguindo para diante,
salvado o seu Ricciardetto uma vez 1 , tal faz o santo velho que persuade
quando foi pelo rei hispano descoberto Rinaldo a dar a Ruggier Bradamante
no leito da filha e cativo o fez; (de aos quais pedir não há necessidade).
e do duque Buovo tinha liberto Aprova Oliviero e o senhor de Anglante
um filho e outro da atroz malvadez a realização dessa afinidade;
dos Sarracenos (como eu fiz denúncia2) que Amon3 e Carlos aprová-la queira
e Bertolagi, o iníquo de Mogúncia. esperam, e que concorde a França inteira.
12 Porém não sabiam que Amou sua mão,
com acordo do filho de Pepino,
de dar prometera ter intenção
ao imperador da Grécia, Costantino,
que para seu filho lha pedira então,
Leone, o seu herdeiro genuíno.
Por ela, por seu valor tão gabado,
tinha-se ele, sem a ver, apaixonado.
13 Respondera Amou que de afogadilho
não respondia definitivamente,
sem antes de tal falar com seu filho
Rinaldo, que da corte estava ausente;
o qual cria não ver nisso empecilho,
e com gosto o teria por parente;
porém, pelo respeito que lhe merecia,
tomar a decisão sem ele não queria.
CANTO XLIV 697

14 Rinaldo, distante do pai, e aquela 1s Foram benzidos pelo velho devoto,


tentativa imperial toda ignorando, e ao navio finalmente regressaram.
a Ruggiero promete a irmã bela Dão remos à água e velas ao Noto5 ;
com seu parecer, e com parecer de Orlando tempo tão claro e sereno encontraram
e de quem estava ali naquela cela, que não foi preciso oração nem voto,
mas, mais que todos, o eremita instando; até que ao porto de Marselha entraram.
e crê que na realidade prazer Ficam aqui até que eu para aqui traga
deve o parentesco a Amon trazer. o duque Astolfo, de gloriosa saga.
1 5 Esse dia e noite, e do outro dia 19 Quando a Astolfo a vitória foi patente,
parte, do monge houveram hospedagem, que sangrenta e infeliz lhe parecia,
quase esquecendo o navio que atendia vendo que França, de ameaça nocente
e o vento favorável à viagem. de África, já nenhum risco corria,
Mas os barqueiros, fartos da estadia, pensou que o rei núbio com sua gente
enviaram-lhes mais que uma mensagem, ao seu país regressar bem podia,
o que à partida por fim os incita; pela mesma estrada que tinham seguido
à força os apartaram do eremita. quando atacar Bizerta tinham ido.
16 Ruggier, que em exílio estivera tanto, 20 A armada que aos pagãos deu desbarato
pois do escolho não mais tirara o pé, reaveu do filho do dinamarquês6 ;
fez despedida daquele mestre santo a qual, por novo milagroso acto
que lhe ensinara a verdadeira fé. (quando o povo negro a deixou de vez),
Orlando a espada lhe pôs entretanto, tornou ao seu primitivo formato,
as armas de Heitor, e Frontino à ré; voltando a ter das folhas a levez7 ;
para prova dar do seu amor por ele, depois o vento, como coisa leve,
e por saber que dantes eram dele. pelo ar as fez desaparecer em breve.
17 E contudo maior à encantada 21 A cavalo e a pé, em viagem expedita,
espada direito tinha o paladino, foram os Núbios sua terra rever.
que com pena e custo por si tirada Primeiro Astolfo dívida infinita
tinha sido do jardim clandestino, e imortal disse a Senapo ter,
do que tinha Ruggier, a quem foi dada por vir em pessoa ajuda bendita
pelo ladrão, que lhe deu também Frontino4; dar-lhe, com esforço e todo o seu poder8 •
mas de bom grado lha deu com o resto Deu-lhes Astolfo o uterino claustro9
das armas, assim que ele as pediu, lesto. que continha o fero e túrbido Austro 10 •
22 No odre, digo, o vento deu submisso,
aquele que de sul com raiva se alteia,
e como ondas move e ergue em reboliço,
rodando-a até ao céu, a árida areia;
assim o teriam ao seu serviço,
não lhes dando pelo caminho tareia;
mas, ao chegarem à sua região,
que o libertassem daquela prisão.
23 Escreve Turpino 1 1 que ao atravessar
o Atlas alto, em total consonância,
em pedra se mudou todo o muar 1 2 ;
de novo, a pé cobriram a distância.
Mas tempo é de a França Astolfo voltar;
tendo no país mouro vigilância
deixado nas cidades e nas casas,
mandou o hipogrifo abrir as asas.
CANTO XLIV 699

24 Para a Sardenha voou num piscar de olho, 2s Para preitear os que eram o suporte
e da Sardenha foi ao lido corso; do Santo Império, e a maior coluna,
dali, o mar sobrevoou sem escolho, Carlos mandou que a nobreza da corte
dando à canha ao freio com pouco esforço 1 3 • no Saône 1 7 , para os esperar, se reúna.
Das costas da Provença no restolho Saiu ele depois, com o escol mais forte
por fim deixou do hipogrifo o dorso; de reis, capitães (e sua dama aduna),
depois, com o alado corcel fez quanto das muralhas, e o séquito de belas,
lhe tinha dito o evangelista santo. nobres e bem ajaezadas donzelas.
25 Recomendou-lhe o santo evangelista 29 O imperador, com calma e leda fronte,
que ao voltar à Provença não o pique, os paladins, amigos e parentes,
e que ao ímpeto fero não resista nobres, plebe, não há quem não aponte
com sela e brida, para que livre fique. a todos sinais de amor evidentes;
Já tirara o baixo céu 1 4 , que conquista sobe o grito: Mongrana e Claramonte 1 8!
o que perdemos 1 5 , ao corno 16 o repique; Pondo fim aos abraços insistentes,
mudo ficara, não apenas rouco, Rinaldo, Orlando, e também Oliviero,
logo que ele chegara ao divino loco. a Carlos apresentaram Ruggiero;
26 A Marselha chegou quando em conjunto 30 contaram-lhe que de Ruggier de Risa
lá chegaram Orlando e Oliviero, era filho 1 9 , em virtude ao pai igual;
e o de Montalvão, e, com eles junto, se valente é e forte, e de que guisa
o bom Sobrino e o excelente Ruggiero. sabe ferir, nossas hostes hão sinal.
A lembrança do companheiro defunto Nisto, vem Bradamente com Marfisa,
impediu que os paladinos, com esmero, aquele nobre e gracioso casal:
manifestassem toda a alegria Marfisa vai abraçar seu irmão,
que uma vitória tão grande merecia. a outra mostra maior discrição.
27 Da Sicília Carlos fora avisado 31 O imperador Ruggier manda subir
dos dois reis mortos e Sobrino preso, para o corcel, pois por respeito se apeara,
e que Brandimarte tinha tombado; lado a lado consigo o fazendo ir,
também com Ruggiero estava surpreso; e em tudo para louvá-lo se prepara,
tinha ledo o peito e o rosto animado, não querendo nenhum ponto preterir.
por descarregar o intolerável peso Bem sabia que à fé ele regressara,
que sobre os ombros se agravara tanto pois, assim que pisaram chão enxuto,
que algum tempo o deixará em quebranto. a Carlos deram fé do seu estatuto.
700 ORLANDO FURIOSO

32 Com pompa triunfal e festa grande, 33 Em vários sítios, ao virar das esquinas
voltaram juntos até à cidade, encontram arcos, troféus, artefactos
que verdes ramos e grinaldas brande, que de Bizerta fogos e ruínas
e panos nas ruas em quantidade; mostram pintados, e outros dignos factos;
nuvem de flores do alto se expande noutras partes, palcos com pantominas,
e a toda a volta os vencedores invade, jogos, espectáculos, cénicos actos;
que de balcões e janelas amenas e por todo o lado o título sério
damas, donzelas deitam às mãos plenas. está escrito: «Aos libertadores do Império».
CANTO XLIV 70 1

34 Entre o som de pífaros e o clamor 37 Mas Beatrice, mulher de Amon, diz


de trompas e música em harmonia, críticas ao filho e que é arrogante;
aplauso e riso, júbilo e calor e em segredo e às claras contradiz
do povo que só a custo cabia, ser de Ruggiero mulher Bradamante;
chegou ao paço o magno imperador, com todo o seu empenho, imperatriz
onde muitos dias a companhia planeou que ela seja do Levante.
em torneios, e teatro com disfarce20 , Rinaldo obstina-se: não se permita
farsas e danças esperava deleitar-se. que em palavra sua um ponto se omita.
35 Rinaldo um dia seu pai fez saber 3s A mãe, crendo que ela assim também olhe
que a irmã dar a Ruggier tencionava; tal ambição, a nobre filha exorta
em presença de Orlando, por mulher, a que diga que ser mulher não escolhe
e de Oliviero, prometeu que a dava; de um pobre cavaleiro, e antes ser morta;
os quais, como ele, eram do parecer nem nunca mais como filha a acolhe,
que outro parentesco não se arranjava, se ela esta ofensa do irmão suporta;
por nobreza de sangue e por valor, negue, pois, com audácia, que o rescaldo
que lhe fosse par, quanto mais melhor. nunca será a favor de Rinaldo.
36 O filho ouve Amon com certa fricção, 39 Bradamante em silêncio, esse conceito
porque, sem consigo conferenciar, ousa da mãe não se arrisca a contradizer;
casar-lhe a filha, que é sua intenção tal reverência lhe tem, tal respeito,
do filho de Costantin fazer esposa, que nem pensar em não lhe obedecer.
não de Ruggier; reino não tem na mão, Por outro lado, era grande defeito
nem pode dizer: minha é esta cousa; dizer que quer o que não quer fazer.
nem sabe que pouco vale a nobreza, Não quer, porque não pode; pois dispor
e valor menos, se não há riqueza. de si é coisa que lhe impede Amor.
40 Nem a negar, nem mostrar que a contenta
se atreve; só suspira, e não responde;
depois, em sítio onde ninguém atenta,
verte dos olhos lágrimas avonde;
parte do sofrimento que a atormenta
do peito e das louras crinas não esconde:
enquanto num bate, as outras arranca;
e nem o pranto nem a fala estanca:
41 - Ai! Posso eu querer o que não quer quem deve
em meu querer ter mais poder que tenho eu?
O querer de minha mãe tenho em tão leve
consideração que o submeta ao querer meu?
Oh, Deus, que pecado há que tanto entreve
uma donzela, que erro mais sandeu
que este, se eu, por não ter obedecido
a quem sempre devo, tomar marido?
42 Terá, pobre de mim!, tanta possança
o filial afecto que eu te abandone,
ó Ruggiero meu, e uma nova esperança,
novo desejo, novo amor entrone?
Ou será que a obediência e temperança
com que os pais se espera o bom filho abone
porei de parte, e que apenas respeite
o meu bem, o meu gáudio, o meu deleite?
702 ORLANDO FURIOSO

43 Sei quanto, ai, ai!, devo fazer, sei quanto 49 Dos outros bens todos, o que concede
aos deveres da boa filha convém; Natura à gente, ou próprio estudo aquista,
sei, mas de que vale, se não pode tanto em tão larga parte a eles acede
a razão, se os sentidos não contém? que outros tão bem dotados não avista;
Se Amor a afasta e lhe dá ataranto, qualquer outra beleza à sua cede,
e não deixa que disponha também e à sua força é raro o que resista;
de mim, senão no que a ele satisfaça, em heroicidade e régio esplendor
e que só quanto dite eu diga e faça? nenhum mais que ele é do troféu credor.
44 De Beatrice e Amon sou criação, 50 Mas o vulgo, em cujo arbítrio os honores
e sou, desgraçada!, serva de Amor. estão, pois lhe parece que os tira e doa
De pai e mãe espero merecer perdão (do vulgo não excluo, nem por favores,
e compaixão se cair em errar; excepto o homem prudente, uma pessoa;
mas se Amor ofender, quem oração nem os papas, reis, ou imperadores
lhe fará que me exima ao seu furor, dele exime o ceptro, a mitra ou a coroa;
que queira um só motivo meu escutar só a prudência e o juízo bom,
sem de imediato a morte me querer dar? graças de que o Céu a poucos faz dom);
45 Oh, eu!, fiz longa e obstinada prova 51 o vulgo (para meu dito concluir),
para fazer Ruggiero à fé anuir; que apenas reverencia a riqueza,
por fim fi-lo; mas o que é que isso inova, não vê no mundo algo que mais admire;
se do meu gesto outro alguém vai fruir? sem ela nada aprecia, nem preza
Também não para si a abelha renova a beleza e coragem que existir,
seu mel ao ano, sem o possuir. o vigor do corpo e a sua destreza,
Quero antes morrer que vir a ser vero valor, senso, bondade; e é manifesto
que um marido eu tenho que não Ruggiero. mais no de que ora falo2 1 que no resto.
46 E se a meu pai não for obediente, 52 Dizia Ruggier: - Se Amon está disposto
nem a minha mãe, ao irmão sou eu, a que a filha a imperatriz aceda,
que muito mais do que eles é sapiente, a Leon tão cedo não faça o gosto:
e a idade o juízo não lhe comeu. por prazo um ano ao menos me conceda,
E isso que Rinaldo quer, consente pois do império ver por mim deposto
ainda Orlando: os dois do lado meu; Leon e o pai espero que me suceda;
dois que o mundo mais preza e mais receia das coroas lhes tirar havendo signo,
que da nossa gente toda a alcateia. já Amon me achará um genro digno.
47 Se são o escol, se toda a gente estima 53 Mas se fizer, com imediato efeito,
a glória e o esplendor de Claramonte, sogro de sua filha Costantino,
sobre todos os eleva e sublima se não tiver pela promessa respeito
para além da distância do pé à fronte, de Rinaldo e de Orlando paladino,
por que hei-de deixar que por mim se exprima feita perante aquele velho perfeito,
Amon, que Rinaldo e o conde mais conte? do marquês Olivier e rei Sobrino,
E mais: em dúvida ao grego oferecida que farei? Vou sofrer tão grave torto?,
fui, enquanto a Ruggier fui prometida. - ou, em vez de o sofrer, antes ser morto?
48 Se a donzela se aflige e se atormenta, 54 Deus, que farei? Farei então vingança
não estava a mente de Ruggier mais quieta; deste grande ultraje contra o pai dela?
pela cidade ainda não se comenta Por agora, que o faça não se afiança,
a nova, mas a ele não é secreta. nem se errada ou sensata é tal cautela.
De sua sorte para si se lamenta, Mas suponhamos que eu faço matança
que a fruição desse bem lhe intercepta, do velho iníquo e toda a parentela:
por reinos não lhe ter dado ou riquezas, não retiro daí nenhum contento;
tendo, com mil indignos, tais larguezas. aliás, contraria o meu intento.
CANTO XLIV 703

55 Foi sempre meu intento, e é, que me ame 61 - Ruggiero, tal sempre fui, tal ser quero
a dama, e não que seja rancorosa; até morrer, e mais, se mais se pode.
mas se Amon mato, ou coisa faça, ou trame, Seja-me Amor benigno, orgulho fero,
que ao irmão e outros seus seja danosa, Fortuna no alto ou baixo me rode,
não dou justa causa para que me chame imóvel sou em fé, qual escolho austero
imigo, e não queira ser minha esposa? que a toda a volta vento e mar sacode:
Que devo então fazer? Devo admitir? nunca por bonança nem tempestade
Isso não! Antes me quero extinguir. oscilei, e nada a tal me persuade.
56 Melhor: extinguir-me, não; de morte pena, 62 Escopro de chumbo se verá, ou lima,
com razão, tenha esse Leone Augusto22 esculpir em formas várias um diamante,
que perturbou minha alegria amena; antes que golpe de sorte reprima,
quero que morra, e o seu pai injusto. ou ira de Amor, meu peito constante;
Ao amador de Tróia a bela Helena e mais fácil é ver voltar para cima
não custou tanto, e em tempo mais vetusto do alpe o rio turbulento e sonante
Prosérpina a Pirítoo23 , como é gosto que, por bons ou maus acontecimentos,
meu que custe a filho e pai meu desgosto. mudarem de via os meus pensamentos.
57 Será, vida minha, que não te custa 63 A vós, Ruggier, todo o domínio dei
deixar o teu Ruggier por esse grego? sobre mim, maior do que muitos crêem.
Por teu pai querer, será que a ti se ajusta, Sei que qualquer novo príncipe ou rei
não tendo teus irmãos a ele apego? maior fé ser-lhes jurada não vêem.
Que com Amon concordes bem me assusta, E de estado mais seguro, bem sei,
e não queiras mais ter em mim conchego; reis e imperadores não se provêem.
e que aches um César24 melhor partido Fossa ou torre não há que construir,
que um cidadão privado para marido. com medo de outrem vo-lo subtrair.
58 Mas será possível que um nome régio, 64 Pois, sem que contrateis outra pessoa,
um título imperial, grandeza e pompa, não há assalto a que se não resista.
da minha Bradamante o ânimo egrégio, Para me expugnar, riqueza não é boa:
o seu valor e virtude corrompa? vil preço leal peito não aquista.
Terá ele um tão grande sortilégio Nem nobreza, ou eminência de coroa,
que as juras e as promessas feitas rompa? que ao vulgo tolo sói toldar a vista,
Ou será que de Amon se torne imiga, nem beleza, que em leve ânimo actua,
e aquilo que sempre me disse diga? - poderei ver que a vossa desvirtua.
59 Dizia estas e outras coisas tais, 65 Não deveis recear que forma nova
para si falando Ruggier; certo excesso no meu coração entalhar se possa:
da voz as dava a ouvir a quem mais impossível é que dele se remova,
perto dele estava e lhe tinha acesso; tão bem esculpida aí se encontra, a vossa.
e repetido, o seu tormento e ais Coração de cera não ter, fiz prova;
àquela por quem sofria era expresso, com cem pancadas, não uma, fez mossa
a quem menos não custava saber Amor antes que lasca lhe arrancasse,
do sentir dele que o seu próprio sofrer. para que à vossa imagem o modelasse.
60 Mais a faz sofrer do que outra maleita 66 Marfim, pérola e toda a pedra dura
que atormenta Ruggier, de que se inteira, que melhor do entalhe se defende
o saber que se aflige por suspeita pode quebrar; mas não outra figura
de que ela o deixe, e aquele grego queira. tomar: só a primeira que apreende.
Assim, para o tranquilizar e desfeita Meu coração não difere da natura
seja em seu peito a crença nessa asneira, do mármore, que com ferro contende.
por uma camareira mui leal, Mais depressa Amor todo o despedaça,
destas palavras lhe mandou aval: que doutra beleza nele faça traça. -
704 ORLANDO FURIOSO

67 Com estas escreveu outras placidezes 69 Sei que conhecer qual ele é almeja,
plenas de amor, de lealdade e conforto, mas primeiro, pela real fé, prometa
que à vida o fariam voltar mil vezes, me faz mercê; depois, quero que veja
se mil vezes tivesse sido morto. que minha petição é justa e recta. -
Mas, crendo-se já salvas dos reveses - Que o que pedes te dê, tua sobeja
da tempestade essas esperanças, no porto, virtude merece, ó jovem dilecta
por nova rajada impetuosa e escura (respondeu Carlos); e juro, se parte
sopradas, para o mar foram, para a lonjura: do meu reino pedires, contentar-te. -
68 pois Bradamante, querendo conseguir 70 - O dom que suplico à Alteza Vossa
muito mais do que tinha dito e feito, é que nunca deixe marido dar-me
com o arrojo com que sói agir, (disse a donzela) que em armas não possa
e pondo de parte todo o respeito, mais valor que eu mostrar e desarmar-me.
a Carlos se apresentou; disse: - Sire25, Com quem me quiser, com hasta se esboça
se a Vossa Majestade algum efeito liça e com espada, para o que vale mostrar-me.
jamais fiz, que lhe parecesse ser bom, O primeiro que me vença, que me ganhe;
faça a graça de não negar-me um dom. quem for vencido, de outra se acompanhe. -
71 Disse o imperador, com o rosto de afecto
pleno, que era a pretensão dela digna;
e que conservasse o ânimo quieto,
pois tudo fará como ela designa.
O colóquio entre eles não é secreto,
e logo a nova a outros se consigna;
nesse mesmo dia chegou da velha
Beatrice e do velho Amon à orelha.
n Os quais, igualmente, arderam de grande
indignação pela filha e de grande ira; ·
bem viram, porque tais coisas demande,
a Ruggiero, mais que a Leone, aspira;
e lestos, para impedir que se mande
a efeito a pretensão que tem em mira,
às ocultas a tiraram da corte,
levando-a consigo para Roccaforte.
73 Era esta uma fortaleza segura,
de que Amon, de Carlos, fora aceitante;
Perpignan e Carcassonne moldura
lhe dão, à beira-mar, e é importante.
Ali a retinham como em clausura,
para que um dia a mandassem para o Levante;
assim, querendo ou não querendo, deixaria
Ruggiero e com Leone casaria.
74 A valorosa dama, que igualmente
é submissa, como valente e forte,
embora não tendo guarda presente,
e podendo entrar e sair à sorte,
ao freio do pai era obediente;
mas a antes sofrer prisão ou morte,
martírio, rigor que lhe fosse imposto,
e Ruggiero amar, tinha-se proposto.
CANTO XLIV 705

75 Rinaldo, que sua irmã não tutela 81 São quatro os gregos contra um; adiante
por astúcia de Arnon, que a tem na mão, têm naves para pontes dar ao rio;
vendo-se impedido de dispor dela que à força querem passar, no semblante
e que a Ruggiero a prometeu em vão, fero revelam, para o esquerdo baixio.
do pai se queixa, a língua desfivela, Mentes Leone, com sagaz talante
o respeito filial pondo no chão. do rio se afasta, fazendo desvio
Mas Arnon, com tal, pouco se incomoda; largo; ao rio depois voltando, arremessa
quer agir com a filha à sua moda. pontes à outra banda e passa à pressa;
76 Ruggier, disso sabendo, tem temor 82 e, com muita gente a cavalo e a pé
de ficar de sua dama cativo, (de vinte mil, não menos, tem cornpanha),
e que a tenha, pela força ou por amor, ao longo do rio cavalgou, até
Leon, se muito tempo estiver vivo; que ao flanco do inimigo se assanha.
sem dizer a ninguém, quer com ardor O imperador, assim que o filho vê
matá-lo, e ser, em vez de Augusto, Divo26 ; surgir de lá do rio, na margem canha,
e a um tempo, se a esperança não falhar, ponte a ponte juntando, barca a barca,
a ele e ao pai vida e reino tirar. com o exército a outra banda abarca.
77 Com as armas que do troiano Heitor 83 Dos Búlgaros o rei e capitão,
foram, e de Mandricardo, se veste; Vatrano, cauto guerreiro e brioso,
a sela ao bom Frontino manda pôr, para cá e para lá, esforçava-se em vão
troca cimeira, escudo e sobreveste. par se opor a ímpeto tão furioso;
Não quis ser nesta empresa portador quando, cercando-o com robusta rnão30 ,
da sua águia branca em fundo celeste; Leone a seu corcel no chão deu pouso;
prefere que um licorne o escudo lhe cubra, corno cativo ser não contemplou,
cândido corno o lírio, em terra rubra. com mil espadas a vida lhe tirou.
78 Dos seus escudeiros escolhe o mais fiel, 84 Os Búlgaros até agora testa
que quer ter por única companhia; fizeram; mas vendo o seu rei deposto,
e recomenda-lhe que não revele e que a toda a volta o inimigo infesta,
em parte alguma que Ruggier seguia. dão as costas para onde estava o rosto.
Passa o Mosela, o Reno, e a ir se impele Ruggier, que se mistura aos Gregos e esta
das terras austríacas à Hungria; perda vê, sem mais pensar sente gosto
ao longo do lstro27 , pelo destro lado em aos Búlgaros dar socorro bom,
tanto cavalga que chega a Belgrado. pois Costantino odeia e, mais, Leon.
79 Onde ao Danúbio vai unir-se o Sava28 , 85 Pica Frontin, que a correr é um vento,
e até ao mar com ele faz longa estrada, e adiante dos outros corcéis passa;
em pavilhões e tendas gente estava mete-se entre a gente que, por espavento,
sob a insígnia imperial agrupada; para o monte foge e do plano se espaça.
pois Costantino reaver tencionava Muitos detém; fá-los virar o rnento
a cidade, pelos Búlgaros tirada. para o inimigo, e a lança arregaça;
Tem Costantino e o filho ali conchego, com rosto tão fero o seu corcel espreme
com todo o exército do império grego29 • que no Céu Marte e Júpiter o teme.
80 Em Belgrado e fora, por todo o monte 86 Em frente aos mais, um cavaleiro lobriga
abaixo até ao rio que os pés lhe lava, que, bordada no vermelho peitilho,
o exército búlgaro está defronte; a ouro e seda, ostentava urna espiga
tanto um corno outro vem beber ao Sava. com todo o pé, parecendo ser de milho;
No rio o Grego para lançar a ponte, pela irmã, a Costantino se liga
e o Búlgaro a esquivar, armado estava por sobrinho, mas quer-lhe corno a filho;
quando Ruggier chegou; grande batalha escudo e couraça, qual vidro, desfaz,
viu que entre urna e outra banda se espalha. e um palmo a lança lhe aparece atrás.
706 ORLANDO FURIOSO

91 Como homem de coração superior,


quando muitos ódio teriam sentido,
ele enamorou-se do seu valor;
nem queria que mal houvesse sofrido:
por um dos seus que da morte há turpor,
que seis morressem haveria preferido,
e até parte do seu reino perder,
a o digno cavaleiro ver morrer.
92 Qual menino que a amada mãe irrite,
iracunda lhe bate e dele se espaça,
sem querer que irmã ou pai o acolite,
à mãe regressa e docemente a abraça,
assim Leone, a quem tropas de elite
Ruggiero mata, e o resto ameaça;
não o odeia, porque amor inspira
mais seu valor que aquela ofensa ira.
87 Deixando-o morto, Balisarda cinge 93 Mas, se Leon Ruggiero admira e ama,
e avança para o bando que está mais perto; creio que dura paga tal comporte;
um deste lado, outro daquele, atinge, Ruggiero odeia-o, e nada mais trama
e cabeça ou tronco cortado, é certo; que dar-lhe com sua própria mão morte.
no peito de um, no flanco doutro tinge Com os olhos o busca, e alguns chama
a espada, ou um gorgomil deixa aberto; para que lho apontem; mas a boa sorte
bustos, ancas, braços, mãos, ombros corta, e a prudência do grego experimentado
e um rio de sangue para o vale se transporta. não o deixou com ele ser confrontado.
88 Não há, vendo esses golpes, quem lhe faça 94 Leon, para que seu exército inteiro
oposição, qual deles mais transido; não morresse, tocou à retirada;
e assim se muda de repente a traça mandou ao imperador um mensageiro,
da batalha; pois, de novo atrevido, pedindo-lhe que trocasse a passada
o peito volta e aos Gregos dá caça e o rio cruzasse; e que era lisonjeiro
o Búlgaro, que antes tinha fugido; não encontrar a via ali cortada;
num instante as fileiras destroçadas e o pai, com os poucos que recolheu,
se vê, e as bandeiras à fuga dadas. para a mesma ponte os seus passos volveu.
89 Leone Augusto a um ponto eminente, 95 Muitos nas mãos dos Búlgaros ficaram,
vendo os seus fugir, se tinha acolhido; para o rio, mortos, pelo monte deslizando;
perplexo e mesto, ocupava-lhe a mente não ficaram todos porque encontraram
(daquele sítio nada lhe era escondido) a protecção da ponte, atravessando.
o fero que matava tanta gente Houve os que, caindo ao rio, se afogaram;
que, só ele, tinha o campo destruído; e os que sem olhar para o lado, em desmando,
não pode, embora por desaire seu, a vau, longe dali, passaram vivos;
não louvá-lo e em armas dar-lhe o troféu. e os que em Belgrado ficaram cativos.
90 Percebe pela insígnia e sobrevestes, 96 Terminada a batalha daquele dia,
pelas armas brilhantes e ricas de ouro, na qual, sendo o seu senhor massacrado,
que, apesar do guerreiro ajudar estes para os Búlgaros desgraça se previa,
seus inimigos, de algures é vindouro. se vitória aquele guerreiro alcançado
Pasmado olha os gestos quase celestes, não tinha (aquele que no escudo exibia
chegando a pensar que do sumo coro3 1 , o alvo licorne no rubro pintado),
para o Grego punir, um anjo desceu, a ele todos foram, sabendo que esta
pois Deus tanta e tanta vez ofendeu. vitória era dele, com júbilo e festa.
CANTO XLIV 707

97 Cumprimenta-o um, outro se lhe inclina, 100 Leon tem na fuga tanta vantagem
uns a mão, outros lhe beijam o pé; (melhor dizer fugir que retirar-se)
cada um a estar-lhe perto se obstina que encontra desobstruída a passagem;
e feliz se acha quem de perto o vê, faz as barcas da ponte incendiar-se.
e mais quem lhe toca; porque divina Chega Ruggier quando do Sol imagem
coisa e sobrenatural tocar crê. já não há, e não sabe onde alojar-se.
Pedem-lhe, e chega ao céu a gritaria, Vai cavalgando, que havia luar,
que seja seu rei, capitão e guia. mas sem castelo nem casa avistar.
98 Ruggier responde-lhes que capitão 1 01 Por não saber onde pousar, caminha
e rei será, o que for mais do agrado; toda a noite e o cavalo não alija.
mas nesse dia não quer pôr na mão Ao romper do novo sol, por vizinha
bastão32 ou ceptro, e não entra em Belgrado: cidade à esquerda ver se regozija;
antes que tenha mais distanciação todo o dia ali ficar acarinha,
Leone Augusto, e o rio haja passado, para que a ofensa ao seu Frontin corrija,
segui-lo quer e não perder-lhe o rasto, pois, sem repouso e sem tirar-lhe o freio,
até achá-lo e lhe dar fim nefasto; por tantas milhas toda a noite veio.
99 mais de mil milhas para isso somente 1 02 Ungiardo era o senhor daquela terra,
tinha andado, e por mais nenhum motivo. súbdito a Costantino muito querido,
Assim, sem tardar, deixa aquela gente, o qual a pé e a cavalo para a guerra
pelo trilho que dizem que o fugitivo grande número lhe tinha oferecido.
Leon tomou para a ponte velozmente, Como entrada a estranhos lá não se cerra,
talvez de que o cortem apreensivo. Ruggier foi ao chegar bem acolhido,
Segue-lhe o rasto com rapidez tal não precisando de ir mais para diante
que nem para o escudeiro vir faz sinal. por lugar melhor e mais abundante.
708 ORLANDO FURIOSO

103 À noite, no albergue que escolhera, 104 Assim que o escudo viu reconheceu
da Roménia um cavaleiro alojou-se, que o cavaleiro, que a insígnia porta,
que com Ruggiero na batalha fera é aquele que aos Gregos derrota deu,
esteve, em que aos Búlgaros auxílio trouxe; por cujas mãos foi tanta gente morta.
de ser morto por ele risco correra, Correu ao paço e audiência requereu,
e mais do que qualquer outro assustou-se; para dizer ao senhor coisa que importa;
treme ainda, crendo que inda o contorne e, logo recebido, disse quanto
o cavaleiro do branco licorne. reservo para dizer no outro canto.

NOTAS
-l$r-
1 19
jd [ .. } vez: cf. XXV:8 ss. De Ruggier [ ..} filho: cf. XXXVl:72-74.
2 20
E do [ . .} denúncia: cf. XXV:72 ss., e XXVI:3 ss. Disfarce: máscaras.
3 Amon: pai de Rinaldo, Bradamante, etc. 21
Mais [ . .} fa/,o: em questões de matrimónio.
4 E contudo [ . .} Frontino: cf. nota a XLI:26:6-8. 22
Augusto: sinónimo de imperador.
5 23
Noto: vento que sopra de sul. Amador [ .. ] Piritoo: Helena custou a Páris a vida, na
Guerra de Tróia. Pirítoo pagou com a vida a ousadia de des­
6
Filho do dinamarquês: Dudone, filho de Uggiero. cer aos Infernos para raptar Prosérpina, esposa de Hades.
7 Tomou [ . .} levez: voltaram à sua primitiva forma de 24 Um César: um imperador.
folhas (cf. XXXIX:26-28).
25 Sire: tratamento que se dava aos reis de França, a
8 Poder: exército. imperadores, a senhores feudais, etc.
9 Uterino claustro: o odre em que Astolfo encerrara o 26
Em vez [ ..} Divo: em ve:z. de imperador, deus. Crítica
vento (cf. XXXVIIl:29-30) . Do latim claustrum e uter, sarcástica ao hábito romano de divinizar os imperadores
recipiente de pele de cabra para guardar líquidos. após a morte.
10 Austro: vento forte, quente e seco, de sudeste. 27
Istro: Danúbio.
11 28 Onde [..} Sava: o Danúbio recebe o Sava junto a Belgrado.
Turpino: cf. nota a XIII:40:2.
12 29
Em pedra [ ..] muar: os cavalos voltaram a ser pedras Pois Costantino [ ..} grego: para as personagens de
(cf. XXXVIIl:33-34) . Costantino e de seu filho Leone, talve:z. Ariosto se tenha
inspirado em Constantino V de Constantinopla (71 8-775),
13
Dando [ ..} esforço: desenhando uma ligeira curva e em seu filho e sucessor, Leão IV. Pai e filho envolve­
para a esquerda. ram-se, de facto, em lutas com os Búlgaros; além disso,
Leão IV iniciou negociações matrimoniais, depois abor­
14 Baixo céu: o céu da Lua. tadas, com uma princesa da corte de Carlos Magno. São
apenas suposições, não conferindo a estas personagens o
15 Conquista o que perdemos: cf. XXXIV:73. estatuto de figuras históricas.
16 30
Como: o corno mágico que Logistilla deu a Astolfo. Mão: corpo de tropas (em latim, manus, us).
17 31
Saône: afluente do Ródano. Sumo coro: cf. nota a XVIII: 166:8.
18 32
Mongrana e Claramonte: cf. nota a XXXVl:75:5. Bastão: insígnia de capitão.

CANTO XLV

Quanto mais vês nos altos carretéis 4 Vê-se pelos exemplos, que tantos tem
da roda instável 1 o homem ir em rota, quer a antiga quer a moderna história,
mais depressa onde os pés tinha vereis que o bem persegue o mal, e o mal o bem,
a cabeça, fazendo a cambalhota. e um do outro serão vergonha e glória;
Disso, exemplo é Polícrates2 , e os reis e que ao homem fiar-se não convém
Creso3 e Dionísio4 , e outros de quem nota em seu tesouro, seu reino e vitória,
não dou, que um dia da glória suprema nem desesperar-se por Fortuna adversa,
caíram, passando à miséria extrema. pois a roda sempre em giro se versa.
2 Pelo contrário, quanto mais declinado,
quanto mais da roda ele está no fundo,
mais àquele ponto se encontra chegado
em que há-de subir, se o giro é rotundo.
Há quem a cabeça haja quase dado
ao cepo, e depois deu a lei ao mundo.
Sérvio5 , Mário6 e Ventídio7 dão-nos prova
na era antiga, e o rei Luís8 na nova:
3 o rei Luís, que foi sogro do filho
do duque meu9 , e em Saint-Aubin derrota
sofreu e do imigo houve barbilho,
não tendo por pouco a cabeça rota.
Matias Corvino 1 0 em maior sarilho
se viu em data pouco mais remota.
Foi um, do franco, superado o passo,
feito rei, e outro do húngaro espaço.
710 ORLANDO FURIOSO

s Ruggiero, pela vitória que ganhara 11 Costantino, era já noite, consigo


sobre Leone e o pai imperador levara as tropas das margens do Sava,
de si tão confiante se encontrara, para em Beleticche 15 lhes dar abrigo;
de sua sorte e seu grande valor, seu cunhado Androfilo a governava,
que, sem ajuda ou companhia cara, pai daquele a quem deu fatal castigo
sentia o coração cheio de alor (pois como cera as armas lhe furava),
para entre cem hostes, a pé e não 1 1 , ao recontro primeiro, aquele galhardo
matar pai e filho com sua mão. cavaleiro ora preso por Ungiardo.
12
6 Mas ela , que não quer que se aproveite 12 Ali mandou fortificar o muro
ninguém dela, em poucos dias lhe expressa o imperador, e às portas dar suporte;
como, lesta, ao alto e ao baixo sujeite, dos Búlgaros não se sente seguro,
e adversa e amiga se torne depressa. pois, tendo por guia um guerreiro tão forte,
Fez que ali um o conheça e se ajeite mais que medo lhe farão no futuro,
para lhe dar pena e vergonha em remessa: se ao resto da hoste lhe derem morte.
o cavaleiro que, na pugna fera, Mas sabendo-o preso, medo não tem,
para lhe escapar grande aflição tivera. nem se o mundo todo com eles vem.
7 Ao paço foi, para que Ungiardo previna 13 Nada o imperador num mar de alegria,
que o guerreiro que à tropa deu açoute nem sabe o que fazer de tanta festa.
de Costantino, por anos em ruína, - Ninguém do abismo os Búlgaros desvia -,
esteve ali de dia e estaria a noute; com ar ledo e confiante manifesta.
13 ,
e que a Fortuna agarrada pela crina Como da vitória certo estaria
sem mais lutar e sem que mais se afoute, quem ao inimigo os braços molesta,
dá a seu rei, se este na prisão põe; certo está o imperador e festivo,
e aos Búlgaros, sem ele, se sobrepõe. ao saber que o guerreiro está cativo.
s Ungiardo ouvira a gente que fugida 14 Menos razão não tem para se alegrar
da batalha ali se tinha acolhido o filho que o pai; este não só espera
(que às lufadas chegou, porque impedida reconquistar Belgrado, e subjugar
de a ponte em grupo passar tinha sido), toda a região que dos Búlgaros era:
sabendo a mortandade cometida, quer seu amigo o guerreiro tornar
metade dos Gregos tendo perecido; com bons modos, e tê-lo em sua esfera.
e como um só cavaleiro foi capaz Nem Carlos Magno, Rinaldo ou Orlando
de a um lado dar morte e ao outro paz; inveja, tal companheiro arranjando.
9 que tenha por si só, sem sofrer caça, 1s Muito diferente deste é o anseio
vindo meter o pé na armadilha, de Teodora, cujo filho matou
dá a ver que o espante e que o satisfaça, Ruggier com a hasta que entrou pelo seio,
com gestos, palavras e olhar que brilha. e nas costas um palmo transbordou.
Espera que Ruggier à cama se faça; Em Costantino de irmão tendo esteio,
depois, manda em silêncio uma matilha, a seus pés se lançou, e conquistou
para o cavaleiro, que nada suspeita, e enterneceu-lhe o coração de pena,
de preso ser no leito haver desfeita. com todo o pranto que a face lhe drena.
10 Traído Ruggiero pelo próprio escudo, 16 - Eu não volto a erguer-me destes pés
14
na cidade de Novengrado a mão (disse ela), senhor, sem que no vilão
lhe deita Ungiardo, mais que os outros crudo, que matou meu filho certeza dês
e a quem tal dá grande satisfação. de eu o vingar, pois tem-no em prisão.
Se acorda já amarrado, e desnudo, Além de ser teu sobrinho, bem vês
como pode Ruggiero ter acção? quanto te amou, e quanta boa acção
Ungiardo a correr despacha um estafeta, por ti fez, e verás que fazes torto
para que a Costantino a nova remeta. se o não vingas naquele por quem foi morto.
CANTO XLV 71 1

17 Vê que, por piedade da nossa dor, 23 Esta condição era declarada:


fez Deus com que partisse da campanha quem a filha de Amon quiser para prole,
o cruel, e como um bicho voador com ela terá de medir-se à espada
viesse cair na teia de aranha, desde o nascer até ao pôr do Sol;
para meu filho vingança do ofensor se até essa altura não sofrer nada
ter breve, na margem que o Estige banha. e não for vencido, sem mais em prol
Dá-mo, senhor, e sentirás contento a dama por ele vencida se entenda,
por mitigar o meu no seu tormento. - e que de aceitá-lo não se arrependa;
1s Tão bem ela se chora e se lamenta, 24 que a escolha da arma ao guerreiro doa,
e fala dum modo mui eficaz; sem querer saber quem o cavaleiro é.
e para dos pés se lhe erguer não se alenta, Podia fazê-lo, porque era boa
sendo embora Costantino tenaz, com qualquer arma, a cavalo ou a pé.
pois com palavras e gestos o tenta; Amon, que opor-se a quanto manda a Coroa
por força, finalmente a satisfaz: não pode nem quer, tem de fazer fé;
mandou ordens para que ali se trouxesse após muito reflectir, toma a trilha
Ruggier, e nas mãos dela se pusesse. para regressar à corte com a filha.
19 E, para que não houvesse mais demora,
o guerreiro do licorne trazido
foi, e confiado à cruel Teodora,
não mais que um dia depois do pedido.
Ser esquartejado vivo, sendo embora
morte com opróbrio descomedido,
acha pena leve, e magica e pensa
para outra achar, inusitada e imensa.
20 Mandou a cruel pôr o desditoso
acorrentado de mãos, pés e colo,
numa torre, no fundo tenebroso
onde jamais entrou raio de Apolo.
Para comer, um naco de pão mofoso,
e dois dias a jejum mandou pô-lo
mesmo assim; deu-lhe como guarda um tal
mais pronto inda que ela a fazer-lhe mal.
21 Ah, se de Amon a valorosa e bela
filha, ah, se a denodada Marfisa
soubesse estar Ruggiero em tal mazela,
sofrendo, prisioneiro, desta guisa;
para o libertar tinha esta e aquda
corrido risco de morte, decisa;
Bradamante o que não teria feito:
nem tinha a Beatrice e Amon respeito.
22 Entretanto Carlos, tendo a promessa
que lhe fez em mente, que para consorte
não lhe será dado quem menos que essa
seja em provas de armas valente e forte,
essa vontade com trompas fez expressa;
mas não o fez somente em sua corte:
em toda a terra ao império sujeita,
lesta correu mundo a sua receita.
712 ORLANDO FURIOSO

25 A mãe raiva e indignação sentiu 31 E, quando por vezes lhe torna à mente
contra a filha; porém, por seu honor, o que Ruggier dizia a tal respeito,
com belas, ricas vestes a floriu, de seu grande erro repesa se sente,
de vários tecidos, mais de uma cor. por ciúme sentir e o ter por suspeito;
Bradamante à corte com o pai seguiu, e, como se estando Ruggier presente,
e, ali não encontrando o seu amor, culpada se afirma e bate no peito.
nem lhe pareceu, aquela corte, aquela - Fiz mal (diz ela), e reconheço o errar,
que antes lhe saía parecer tão bela. mas quem é causa inda causa pior.
26 Quem tiver visto em Abril ou em Maio 32 Causa é Amor, que em meu peito gravou
jardim que tem de belas flores adorno, a forma tua, tão formosa e bela;
e o reveja depois que o Sol o raio bravur� e engenho junto colocou,
inclina ao austro 16 , e encurta o dia em torno, e a virtude, que a todos se revela;
encontra-o deserto, bravio, baio; e acho impossível, se se propiciou
assim a dama vê, no seu retorno, que te visse alguma dama ou donzela,
a corte que Ruggiero abandonara, não te querer, e não usar toda a arte
sem lhe parecer a que ao partir deixara. para ao meu amor tirar-te e ao seu ligar-te.
27 Perguntar não ousa o que dele seria, 33 Houvesse Amor gravado em minha ideia
para não levantar de si mais suspeita; teu pensamento, tal gravou teu vulto!
mas está à escuta e busca, todavia, Estou certa de que o veria, sem peia,
sem perguntar fazer boa colheita. igual a como o imagino oculto;
Sabe-se que partiu, mas por que via, e não me envolveria do ciúme a teia,
ninguém ali tem ideia perfeita; não tendo dele a toda a hora insulto;
porque ao partir nada disse a ninguém, e, enquanto a custo 0 1 8 levo de vencida,
excepto ao escudeiro que partiu também. morria e saía da minha vida.
2s Oh, como ela suspira! Oh como teme, 34 Sou como o avaro, que no peito esboço
ouvindo que partiu como fugido! tem do tesouro, e tão enraizado
Oh, quanto mais que outro temor a preme que longe dele vive em alvoroço,
que para olvidá-la ele tenha partido! e no temor de ele lhe ser tirado.
Que vendo Amon opor-se, a esperança estreme Ruggier, ora que te não vejo e ouço,
de alguma vez poder ser seu marido, mais que a esperança, o temor tenho exaltado.
e dela se queira afastar para assim E, embora o creia mentiroso e vão,
procurar que o seu amor tenha fim; não posso evitar estar na sua mão.
29 e que tenha tido alguma intenção, 35 · Mas logo que a imagem tiver surgido
para tirá-la do peito mais depressa, aos meus olhos do teu rosto jucundo,
de ir buscando, numa e noutra nação, que incrivelmente de mim está escondido,
outra por quem o primeiro amor esqueça, em que parte não sei, Ruggier, do mundo,
como em tábua com um prego pressão logo o falso temor será vencido
17
se faz, para que o outro prego amoleça • pela esperança, e empurrado para o fundo.
Outro pensamento se segue àquele, Ah, Ruggier, volta a mim, volta e conforta
pintando-lhe um Ruggier muito fiel; a esperança, pelo temor já quase morta!
30 e a si, por dar ouvidos, repreende, 36 Como, ao partir o Sol, se faz maior
a tanta suspeita ofensiva e bruta. a sombra, e o vão temor se conjectura,
Se um seu pensamento Ruggier defende, e como ao ressurgir do seu esplendor
o outro o acusa: e ela os dois escuta, se vai a sombra, e o tímido se cura,
e agora a este e agora àquele se prende, assim sinto, sem Ruggiero, temor;
sem nenhum ter por firme, irresoluta. quando o vir, temor em mim não perdura.
Mas para a opinião mais depressa corre Volta para mim, Ruggier, volta e anima
que mais lhe agrada, e a contrária aborre. a esperança, que o temor mais não oprima!
CANTO XLV 713

37 Tal como à noite qualquer chama é viva, 39 Torna, meu sol, traz de volta a serena,
e se apaga quando o dia o céu orna, a doce e desejada Primavera!
também, quando o meu sol de si me priva, Dissipa gelo e neve, e asserena
o temor contra mim vem e me encorna; a mente minha, nebulosa e fera. -
mas, assim que no horizonte se aviva, Qual Procne se lamenta ou Filomena 1 9 ,
o temor logo foge e a esperança torna. que a buscar cibo para os filhos correra
Ai, volta, por Deus, volta, caro lume, e o ninho acha vazio; ou se desola,
antes que o que temo em mim se consume! por ter perdido o companheiro, a rola,
38 Se o Sol se inclina e torna os dias breves, 40 assim Bradamante se lamentava,
tudo o que a Terra tinha belo esconde; pois seu Ruggier ter perdido temia,
fremem os ventos, trazem gelos, neves, e o rosto às vezes em lágrimas lava,
a ave não canta, não há flor nem fronde; o mais secretamente que podia.
assim, quando para longe de mim leves, Oh, quanto mais da dor seria escrava,
meu sol, a tua luz, não sei para onde, se soubesse aquilo que não sabia:
mil temores, todos de iníquo dano, que em pena e humilhação o seu consorte
Invernos me dão muitos num só ano. estava preso, aguardando cruel morte!
714 ORLANDO FURIOSO

41 A crueza que usa a iníqua velha 45 Abrem o alçapão, e desce em peso


contra o cavaleiro que ali segrega, por uma corda, para cal lá suspensa,
e que para dar-lhe a morte se aparelha Leon, que na mão cem um facho aceso,
com pena e tortura nova que emprega, aonde está Ruggier na treva densa.
por intervenção de Deus, à orelha Amarrado, sobre uma grade preso
do mui cortês filho do Césarº chega; o vê, de água a uma mão de diferença.
e inspiração lhe dá para que o ajude, Sem outra ajuda, aquele desconforto
e não deixe perecer tanta virtude. tê-lo-ia, num mês ou menos, morto.
42 O cortês Leon, que Ruggiero ama 46 Leon com piedade Ruggier abraça,
(mas que quem Ruggiero era não sabia), e diz: - Cavaleiro, a tua virtude
movido pelo valor, que único chama, indissoluvelmente a ti me enlaça,
e que ser sobre-humano lhe parecia, com voluntária eterna servitude;
consigo reflecte, planeia e trama, faz que o teu bem, mais que o meu, satisfaça,
e para o salvar acha por fim a via, e pela tua não cure minha saúde,
de guisa que nele a tia cruel e que à de meu pai ou qualquer parente
culpa não veja, e com ele não querele. tua amizade eu ponha sempre à frente.
43 Oculto falou com quem tinha a chave 47 Sou Leon, filho, para que saibas digo,
da prisão, e que desejava, disse, de Costantino, e venho para ajudar-te,
ver o cavaleiro antes que tão grave como cu vês, em pessoa, e com perigo
sentença, a ele dada, se prosseguisse. (se meu pai de isco saber tiver arte)
À noite, com um fiel faz conclave, de ser banido, ou de como inimigo
um forte, audaz, usado à malandrice; ser sempre por ele visto em qualquer parte;
e o guarda faz, sem a outro admitir por tanta gente teres morto e vencido
ser ele Leone, a porta vir abrir. em Belgrado, tem-te ódio desmedido. -
44 O guarda, sem ter com ele companheiro, 48 E prosseguiu, outras coisas dizendo
Leon tacitamente acompanhou para fazê-lo voltar da morte à vida;
e o fiel, à torre onde o prisioneiro, e ao mesmo tempo vai-o desprendendo.
a pena atroz condenado, guardou. Ruggier disse-lhe: - Gratidão sentida
Dentro entrando, Leone e o seu parceiro tenho, e esta vida que me dais pretendo
ao castelão, que as costas lhes voltou vos seja em qualquer hora restituída
para a cela abrir, ao colo um laço dão, em que a quiserdes reaver, e quando
fazendo-o dar o último esticão. de a despender por vós me derdes mando. -
49 Ruggier levaram daquele sítio obscuro,
e o seu lugar ao guarda morto deu;
reconhecidos não foram no escuro.
Leon levou Ruggiero para o lar seu,
e a consigo estar, tácito e seguro
uns quatro ou seis dias, o convenceu;
reaveria as armas e o galhardo
cavalo, que lhe subtraíra Ungiardo.
50 Ruggier fugido e o seu guarda esganado
de manhã acham, e aberta a prisão.
Uns este, outros aquele julgam culpado;
falam alguns, sem tirar conclusão.
Em qualquer outro homem teriam pensado,
antes de em Leone pôr a atenção;
parece a muitos que em razões incorra
para o despachar, e não para que o socorra.
CANTO XLV 71 5

51 Ruggiero fica com tal cortesia 57 Certo é que pungente dor, logo que esta
tão confuso, tão cheio de maravilha, palavra disse, o peito lhe aferventa,
e tanto da ideia se desvia e que noite e dia sempre o molesta,
que até cá o fez andar tanta milha sempre o aflige e sempre o atormenta,
que, se uma ideia e a outra avalia, e lhe torna sua morte manifesta;
nada esta àquela e aquela a esta afilha. mas arrependimento não ostenta;
A primeira era de ódio, ira e veneno; em vez de a Leon desobedecer,
a segunda, de apego e de amor pleno. mil vezes, não uma, prefere morrer.
52 De noite e de dia muito ele pensa, 58 Está certo que morre; porque se a amada
mais nada o preocupa nem deseja perde, tem de perder também a vida:
que a obrigação que lhe tinha, imensa, dor e pena dar-lhe-ão a machadada;
pagar com cortesia que par seja. se acaso dor e pena o não trucida,
Acha que se toda a vida dispensa com suas mãos romperá a camada
em servi-lo, curta ou longa a preveja, que a alma cinge, e ela achará saída;
e se para mil mortes certas se oferece, pois qualquer coisa é mais fácil que veja
nunca fará tanto como ele merece. que vê-la a ela sem que sua seja.
53 Ali entretanto chegara a nova 59 A morrer está disposto; mas que sorte
do édito feito pelo rei de França, de morte escolha, não sabe dizer.
que quem quiser Bradamante faz prova Pensa talvez fazer-se menos forte,
de força com ela, com espada e lança. e à dama o flanco desnudo2 1 oferecer;
Leon tal coisa ouvir tão pouco aprova pois nunca houve mais beata morte
que extrema palidez seu rosto alcança; que poder às mãos da amada perecer.
pois, sendo homem de seu valor consciente, Depois vê que, se ela mulher não for
sabe que em armas ela é mais potente. de Leone, lhe fica devedor;
54 Reflecte para si, e vê que prover 60 porque prometeu contra Bradamante
pode com ardil, se em vigor é manco, entrar em campo, em singular batalha22 ;
se com suas insígnias comparecer não para simular, fazer só semblante,
o campeão, cujo nome tem em branco; e assim ser a Leon de pouca valha.
o qual julga que em denodo e poder Será, pois, ao prometido constante;
não perde, em confronto com qualquer franco; se ora uma ideia ora outra o baralha,
e crê que, se lhe confiar a empresa, todas afasta, e só a esta cede:
Bradamante ganha, por indefesa. à que para se manter leal lhe pede.
55 Mas duas coisas falta: uma, dispor 61 Leon preparara mui diligente,
o cavaleiro para que o feito aceite; com licença de seu pai, Costantino,
outra, em sua vez no campo este pôr, armas, cavalos, e em número gente
sem que ninguém que lá esteja suspeite. quanta convinha, e seguiu para o destino;
Chama-o, conta-lhe do caso o teor, levava Ruggiero, ao qual fez presente
e pede, de modo que ele não enjeite, das suas armas boas e Frontino;
que a essa pugna aceite estar presente, e tanto um dia, e outro, e outro andaram,
com nome alheio e insígnia diferente. até que a França e a Paris chegaram.
56 A eloquência do grego assaz podia; 62 Leon da cidade quis ficar fora,
mas mais que a eloquência era pesado e no campo os seus pavilhões montou;
o imposto que Ruggiero lhe devia, no mesmo dia a nova, sem demora,
de nunca mais dele ser desobrigado; de sua chegada a Carlos mandou.
e aquilo que tão duro lhe parecia, O rei estimou-o, o que se corrobora
impossível quase, mostrando agrado por dons e visitas com que o honrou.
no rosto, que não no peito, lhe disse Da sua vinda o motivo lhe disse
que faria tudo o que lhe pedisse. Leon, pedindo que o desimpedisse;
716 ORLANDO FURIOSO

63 que fizesse entrar em campo a donzela 69 E a sobreveste de Leon à pressa


que marido quer mas não menos forte; vestiu, para com ele se parecer em tudo;
pois tinha vindo para fazer com que ela a águia de ouro com dupla cabeça
fosse sua, ou então lhe desse a morte. leva pintada no vermelho escudo.
Carlos, concorde, ao outro dia aquela Mui fácil é que um o outro pareça,
para fora dos muros, diz, se transporte, pois era igualmente grande e membrudo
para o cercado que de noite e à pressa um e outro. Ali apresentou-se um;
junto ao muro se fez, por ordem expressa. o outro não foi visto por nenhum.
64 A noite que antecedeu o fixado 70 Era a vontade daquela donzela
dia para a batalha, Ruggiero a teve de molde a que da dele muito difira;
semelhante à que sói o condenado enquanto Ruggiero a espada martela
ter, que de manhãzinha morrer deve. para ficar romba, que não corte ou fira,
Tinha eleito combater todo armado, a dama a sua aguça, querendo que ela
que a ser reconhecido não se atreve; penetre o ferro, e na carne se insira;
a usar lança e corcel se recusa; que tão bem corte e fure cada incisão
só espada, outra arma ofensiva não usa. que vá sempre encontrar o coração.
65 Lança não levou; não porque temesse 71 Como o berbere sobre a linha se vê26 ,
aquela de ouro, que foi de Argalia, que o sinal de partir fogoso atende:
depois de Astolfo, que a esta a oferece23 , nem cá nem lá pode ter firme o pé,
que os arções esvaziar sempre soía; infla as narinas e as orelhas estende;
porém ninguém, que ela tal força houvesse tal a aguerrida dama, que não crê
e que foi feita por necromancia, que Ruggier é este com quem contende,
tinha sabido, aquele rei24 excluído aguarda a trompa, e parece que fogo
que a mandara fazer para o filho querido. tem nas veias, sem achar desafogo.
66 Astolfo e a dama, aliás, por quem usada n Como, após o trovão, hórrido vento
a lança foi, não criam fosse encanto, súbito surge e do avesso revolve
mas sim que a própria força a ela dada o undoso mar, e eleva num momento
lhes valera na justa honor e espanto; da terra a poeira que o céu envolve,
e com outra hasta qualquer empregada fogem feras, e com o pastor o armento,
por eles, que tinham feito outro tanto. e o ar em chuva e pedra se dissolve;
A única razão para não justar ouvido o sinal, a donzela salta,
é não querer o seu Frontino mostrar, empunha a espada, e o seu Ruggiero assalta.
67 pois podia a donzela facilmente 73 Mas não mais querco antigo ou grosso muro
conhecê-lo, se o houvesse advertido; de bem fundada torre ao bóreas cede,
que tinha-o cavalgado, e longamente nem ao irado mar o escolho duro,
consigo em Montalvão o tinha tido. que noite e dia a bater-lhe procede,
Ruggier, que só estuda e só tem em mente quanto Ruggier sob as armas seguro
como não ser por ela conhecido, de Vulcano e Heitor27 , a quem sucede28 ,
não quer Frontino ou outra coisa ter ao ódio e furor cede que o molesta
que de si dar indício haja poder. ora no flanco, ora no peito ou testa.
68 Para esta empresa outra espada pede, 74 Vai a donzela a lâmina alternando
por bem saber que contra Balisarda com a ponta; e, mui decidida, mira
qualquer couraça, como massa, cede: à espada dar, entre as placas29 , comando,
nenhuma têmpera aquele furor retarda; para satisfazer e aliviar a ira.
e, mesmo esta, que tenha corte impede Por um lado e pelo outro vai tentando,
com um martelo; assim, o golpe tarda. e ora para cá ora para lá se gira;
Com tais armas, Ruggier, logo que um lampo25 e rói-se e dói-se, porque não lhe rende
surgiu no horizonte, entrou no campo. em nada o efeito que ela pretende.
CANTO XLV 717

75 Como no assédio a uma cidade forte, 79 Quando mais faltou a esperança, cresceu
com bons flancos e com muralha grossa, a par a ira, e redobrou o açoute;
se teima em delir da porta o suporte, romper a armadura empreendeu,
ou de alta torre, ou atulhar a fossa, que num dia nem vê que se amarrote;
e em vão o exército se leva à morte, como um que no trabalho amoleceu,
não achando modo como entrar possa; que fazer devia, e vê já ser noute,
assim muito em vão se esforça e trabalha e em vão se apressa, se aflige e se cansa:
a dama, sem romper chapa nem malha. a um tempo o fim força e dia alcança.
76 Agora o escudo, agora o elmo eleito 80 Ó infeliz, se bem visses aquele
é, ou a couraça faz que cintile30 , que queres sujeitar a mortais vexames,
com golpes que aos braços, cabeça e peito se o teu Ruggier reconhecesses nele,
dá a direito e de través, uns mil, do qual dependem de tua vida os estames33 ,
mais espessos que no tecto e parapeito sei que matares-te a ti, antes que a ele
das casas o granizo tamborile. querias: creio que mais que a ti o ames;
Ruggier, de atalaia, o corpo defende e, quando que ele Ruggiero é souberes,
com grande destreza, e não a ofende. servirão estes golpes para sofreres.
77 Ou pára, ou volteia, ou o pé retira, 81 Carlos, e mais, que este é Leone e não
e às vezes a mão acompanha o pé. Ruggiero, facilmente devaneia;
Ora estende o escudo, ora a espada gira, vendo que em armas, em comparação
aonde a mão inimiga vir vê. com Bradamante, muita arte alardeia,
Ou não a atinge ou, quando atinge, mira e, que sem a ferir, com muita aptidão
parte em que menor dano fazer crê. se defendia, mudaram de ideia
A dama, antes que este dia decline e disseram: - Um ao outro convém;
quer que, por ela, a batalha termine. ele é digno dela, ela dele também. -
78 Pensa no édito, o que lhe recorda 82 Depois de Febo no mar já ter pouso,
o perigo em que incorre, se não for lesta; Carlos, mandando cessar a batalha,
se num dia não mata ou ata à corda3 1 crê que a dama tome Leon para esposo,
o seu pretendente, a ser dele se apresta. certa de que a recusa nada valha.
Já os limites de Alcides32 aborda Ruggier, sem que ali faça algum repouso,
Febo, para no mar mergulhar a testa, sem tirar elmo ou aliviar a malha34 ,
quando ela a temer por sua possança sobre um pequeno rocim, acelera
começa, e a sentir fugir-lhe a esperança. para o pavilhão onde Leone o espera.
83 Os braços Leon estende para que abrace
Ruggiero, fraternalmente a estreitá-lo;
depois de o elmo lhe tirar da face,
vai dos dois lados com amor beijá-lo.
_,., - Quero (disse) que de mim para ti passe
tudo o que queiras; de te dar regalo
não me cansarei; de mim e meu estado
te sirvas, para o que te é mais desejado.
84 Nem recompensa jamais haverá que esta
dívida que te tenho vá compôr;
nem mesmo se retirasse da testa
a minha coroa, e ta viesse pôr. -
Ruggier, cuja mente muito o molesta
e angustia, e à vida tem horror,
pouco responde, e as insígnias lhe entrega
-- que usara; e depois, no licorne pega.
718 ORLANDO FURIOSO

85 E, mostrando-se indiferente e cansado, 86 Frontino, por via direita ou torta,


o mais depressa que pôde afastou-se; pelas selvas ou através da campanha,
ao seu alojamento regressado, o seu senhor toda a noite transporta,
quando passou da meia-noite, armou-se; cujo rosto o pranto sem cessar banha;
selado o cavalo, sem dar recado, chama a morte, e só nela se conforta
e sem que por alguém sentido fosse, para debelar a dor que se lhe entranha;
nele montou, e tomou o destino não vê, além da morte, lenitivo
que mais agrado deu ao seu Frontino. para aquele seu martírio tão opressivo.
CANTO XLV 719

87 - De quem me posso (dizia) doer, 90 Se me houvesse matado, atormentado


de duma vez todo o bem me tirar? ao arbítrio da sua crueldade,
Se eu não quiser esta injúria sofrer tinha ao menos de Bradamante esperado
sem vingança, em quem me posso eu vingar? que sentisse pelo meu caso piedade.
Além de mim, ninguém consigo ver Mas quando ela souber que mais amado
que desgraça e ofensa me quis dar. Leon foi que ela, e por minha vontade
De mi portanto tenho, contra mi, a ela fui, para que ele a tenha, esquivo,
de me vingar do mal que cometi. razão tem para me odiar morto ou vivo. -
88 Porém, se eu tivesse feito somente 91 Estas e outras palavras dizia,
a injúria a mim, talvez a mim pudesse juntamente com suspiros e singultos,
dar perdão, inda que dificilmente e encontra-se, ao romper do novo dia,
(melhor, que o fizesse não me parece); entre bosques escuros, estranhos, incultos;
mas, quando também Bradamante sente e porque, desesperado, morrer queria,
injúria igual, posso eu ter tal benesse? e que esses actos seus fossem ocultos,
Mesmo que a mim próprio desse perdão, parece-lhe esse lugar bem escondido,
não pode ela ficar sem vingação. e apto a de si fazer o pretendido.
89 Para vingá-la a ela, pois, quero e gosto 92 Entra no denso bosque, onde mais espessa
até de morrer, que isso não me pesa; e intrincada a umbrosa rama vê;
outra coisa não sei que ao meu desgosto, primeiro, Frontino a deixar ir se apressa
tirando a morte, possa dar defesa. para longe; de liberdade o provê.
Só me dói não me ter à morte exposto - Ó meu Frontin (disse), pudera eu, expressa
antes de lhe ter feito esta vileza. e digna de teu valor, dar mercê,
Feliz fora se morresse na hora pouco havias de o corcel invejar
em que preso fui da cruel Teodora! que ao céu foi, e entre as estrelas tem lugar3 5 •
720 ORLANDO FURIOSO

93 Cílaro e Aríon36 sei que mais coroas 95 Se Ruggier ali se aflige e atormenta,
que tu não mereceram, nem mais louvor; e aves e feras à piedade move
nem outro corcel de quem deram loas (pois mais ninguém em seus gritos atenta,
Gregos ou Latinos em seu favor. nem vê o pranto que em seu seio chove),
Se iguais te foram em mais coisas boas, não deveis pensar que mais se contenta
duma sei que nenhum houve o sabor: Bradamante em Paris, ou prazer prove,
de poder-se gabar de ter gozado pois já desculpa não tem que a defenda
o honor e o apreço a ti dispensado; de aceitar Leon, ou tempo lhe renda.
94 pois à dama, de quantas há e havia 96 Ela, antes de aceitar outro consorte
a mais gentil e valorosa e bela, que não Ruggier, fará todo o possível:
tão caro foste que ela te nutria, faltar ao dito; com Carlos e a corte,
e te dava de sua mão freio e sela. família, amigos, ser incompatível;
À minha dama eras caro. Dizia e outro modo não tendo, dar-se morte
minha? Porquê, se minha não é ela? com a espada ou com veneno bebível;
Se a outro a dei? Ah, mas por que protelo, muito melhor acha acabar com a vida
e o peito com a espada não flagelo? - que viver de Ruggiero subtraída.
CANTO XLV 721

97 - Ai, Ruggier (dizia), onde terás ido? 1 03 Fez de manhã a donzela atrevida,
Poderás estar assim tão afastado Marfisa, a Carlos audiência pedir,
que não tenhas este edital ouvido, dizendo que a seu irmão infligida
a mais ninguém, só a ti, ocultado? fora ofensa, e que não queria admitir
Se soubesses, eu sei que comparecido ser-lhe tirada a mulher prometida,
nenhum tinha, como tu, apressado. sem uma palavra lhe transmitir;
Que infeliz sou! Que outra ideia, que error e está pronta a provar, a quem quiser,
me ocorrerá, senão o que é pior? que de Ruggier Bradamante é mulher.
98 Como é possível, Ruggier, que pareça 1 04 E antes dos outros, quer provar-lhe a ela,
não teres ouvido, como toda a gente? caso de negá-lo seja capaz,
Se acaso ouviste, e não vieste à pressa, que a Ruggiero fez na presença dela
morto ou preso te encontras certamente! as promessas que quem se casa faz;
Decerto te estendeu laçada avessa e que, com a cerimónia que tal sela,
o filho de Costantino pela frente! se ligaram de modo tão tenaz
Ter-te-á o traidor impedido a via, que já não poderão de si dispor,
para saber que antes de ti chegaria. nem deixar-se, para ter outro amador.
99 A Carlos pedi graça, que a nenhum 1 05 Marfisa, vero ou falso o que dissesse,
menos forte que eu viesse a ser dada, certo é que dizia, para que, crer quero,
na crença de que tu fosses esse um o plano de Leone interrompesse
contra quem eu não me aguentasse armada. a bem ou mal, mais que para falar vero;
Fora tu, não cria que houvesse algum: e que aquilo por vontade fizesse
dessa audácia fui por Deus castigada; de Bradamante, que reaver Ruggiero
este, afinal, que nunca fez empresa e excluir Leon queria, e mais honesta
honrosa na vida, assim me tem presa. ou breve maneira não via que esta.
1 00 Mas se a ele eu estou presa, é por não ter
de o matar ou prender possibilidade,
o que justo não acho; e àquele parecer
que teve Carlos não dou prioridade.
Bem sei que inconstância vou transparecer,
porque o que antes disse ora me dissuade;
mas primeira não sou, nem derradeira,
que parece inconstante e o é, inteira.
101 Basta que em ser fiel ao meu amante
tão firme como um escolho eu seja, ou mais,
e, nisso, a todas muito passe adiante,
quer dos tempos velhos quer dos actuais.
Que no resto me chamem inconstante
não importa, se me der lucros tais:
que eu seja, a ser dele não sendo obrigada,
mais volúvel que a folha considerada. -
1 02 Estas palavras e outras, que alternas
amiúde eram com suspiros e pranto,
toda essa noite lhe foram fraternas,
a que o infeliz dia houve adianto.
Mas depois de nas cimérias cavernas
Nocturno entrar37 , com seu sombrio manto,
o Céu, que determinara guardá-la
para mulher de Ruggier, veio ajudá-la.
722 ORLANDO FURIOSO

106 O rei, como tal coisa o amofina, 109 Pois, supondo (coisa que não admito
Bradamante chama imediatamente; e em que nem quero crer) que tenha aquela
e quanto Marfi.sa a provar se obstina nesciamente a Ruggier isso predito,
lhe comunica, estando Amon presente. como dizeis, e ele igualmente a ela;
Bradamante os olhos para o chão inclina, quando foi e onde? Mais bem descrito,
e, confusa, não nega nem consente, mais claro e explícito quem mo desvela?
de modo que logo se deduziu Sei que não se passou; só se passado
que Marfi.sa a verdade transmitiu. foi antes de Ruggier ser baptizado.
107 Agradou a Rinaldo e ao de Anglante 1 10 Mas se aconteceu antes de cristão
tal coisa ouvir, que pode ser razão Ruggiero ser, a mim não me atrapalha;
para aquele parentesco não ir avante, pois, sendo ela cristã e ele pagão,
de que Leon tinha confirmação; não parece que o matrimónio valha.
e assim Ruggiero a bela Bradamante Não deverá por isso ter em vão
terá, mau grado Amon, que diz que não; Leon corrido o risco da batalha;
e poderão sem liça, e sem tirá-la nem o imperador estará disposto
da mão do pai à força, a Ruggier dá-la. a da palavra que deu ser deposto.
10s Pois se entre eles foi ajustado o plano, 111 Dizeis ora o que eu queria saber quando
a coisa é firme, e não cairá por terra. muda era a coisa, e não corria o boato
Manterão sua promessa38 sem dano, a que, a rogo dela, Carlos deu mando,
com honestidade e sem nova guerra. e à liça trouxe Leon, candidato. -
- Isto é (dizia Amon), é um engano Assim contra Rinaldo e contra Orlando
que me urdiram; mas vossa ideia erra; falava Amon, para romper o contrato
inda que vero fosse o que fingido entre os amantes; e Carlos, que ouvia,
haveis entre vós, eu não estou vencido. nem por um nem por outro intercedia.
CANTO XLV 723

1 12 Como se ouvem, se austro ou bóreas expira, 1 15 Leon, que está, tendo a seu lado o esmero
pelas altas selvas murmurar as frondas, do guerreiro do licorne, seguro
ou como costumam, quando Éolo39 se ira de que vitória lhe obterá Ruggiero,
com Neptuno40 , no mar fremir as ondas, e nenhum caso lhe parecerá duro,
assim um rumor que corre e que gira, sem saber que foi pelo martírio fero
e que pela inteira França faz rondas, levado ao bosque solitário e escuro,
isso dá a falar e a ouvir tanto mas que em breve volta, pois em passeio
que tudo o mais fica mudo, a um canto. foi, perto, aceita aquele parecer alheio.
113 Uns por Leone, outros por Ruggier estão, 1 16 Mas em breve se arrependerá, pois
mas Ruggier tem protecção mais maciça: aquele de quem mais que a conta queria
por um que Amon tem, dele mais de dez são. não viu tal dia, nem nos outros dois
O imperador com nenhum se derriça, a seguir, nem notícia dele havia;
remetendo a causa à boa razão, e, sem ele contra Ruggiero depois
e ao parlamento a manda por justiça. batalhar, seguro não lhe parecia;
Marfisa vem, depois de diferido para que dano e vergonha o não transtorne,
o esponsal, e apresenta outro partido; mandou buscar o campeão do licorne.
1 14 e diz: - Decida-se que ela não possa 1 17 Por cidades, vilas, quintas mandou,
doutro ser, enquanto meu irmão vive; próximas e distantes, encontrá-lo;
se Leon a quiser, que faça mossa não lhe bastando, no corcel montou
com seu valor, e que da vida o prive; ele próprio, e pôs-se a procurá-lo.
o que deles mandar o outro para a fossa, Mas sinal ou nova dele não achou,
sem rival, a contento sobrevive. - nem acharia, ou de Carlos vassalo,
Carlos isto a Leon faz manifesto, se não fosse Melissa, que fez quanto
como também fizera todo o resto. reservo para contar no outro canto.

NOTAS

1 Roda instdvel: roda da Fortuna. 8 O rei Luís: Luís XII de França. Foi preso e esteve
prestes a ser decapitado, mas acabou por subir ao trono.
2 Polícrates: tirano de Samos; reuniu enorme fortuna,
9
mas foi torturado e morto. Sogro [ .. ) meu: Ercole II, filho de Alfonso d'Este,
casou com Renata, filha de Luís XII.
3
Creso: cf. nota a XXXVIIl:2:4.
1 0 Corvino: Matias Corvino, rei da Hungria, foi prisio­
4 Dionísio: Dionísio II, o Novo, tirano de Siracusa; rico neiro do rei Ladislau, seu antecessor, e só por morte
e poderoso, acabou por ser deposto e obrigado a viver deste readquiriu a liberdade e subiu ao trono.
como um cidadão comum.
1 1 A pé e não: a pé e a cavalo.
5 Sérvio: Sérvio Túlio (filho de uma escrava) foi o
sexto rei de Roma. 12 Ela: a Fortuna.

6 Mdrio: Caio Mário, modesto soldado, veio a ser côn­ 1 3 Fortuna [ .. ) crina: cf. nota a XXX:35:6.
sul de Roma.
14
Novengrado: cidade da margem esquerda do Sava.
7
Ventldio: Públio Ventídio, trazido para Roma como
prisioneiro após a batalha de Ascoli, chegou a cônsul, 1 5 Beleticche: talvez Beletinec, a norte de Zagreb.
tendo derrotado os Partos no Oriente.
724 ORLANDO FURIOSO

16 Inclina ao austro: inclina para o Sul (no Inverno). 30


Cintile: emita faíscas.
17 31
Como [...] amoleça: como da tábua se extrai um Ata à corda: faz prisioneiro.
prego, empurrando-o com outro prego.
32
Limites deAlcides: colunas de Hércules (Alcides). O ponto
18
O: o ciúme. em que o Sol (Febo) se põe.
1 9 Procne [. . . ] Fil omena: cf. nota a X: 1 1 3 : 6 e a 33
Estames: o fio da vida, que a Parca corta no momen­
XXXIX:3 1 :8. to fatal.

°
2 Filho do César: Leone. 34 Aliviar a malha: retirar a armadura.

21 Desnudo: desprotegido. 35 O corcel [. . .] lugar: Pégaso, o cavalo alado, transfor­


mado em constelação por Zeus.
22
Singular batalha: entre apenas dois contendores (duelo).
36
Cílaro e Arfon: cavalos mitológicos que prestaram
23
A esta a oferece: proporciona, pois deu-lha a guardar serviços inestimáveis a seus donos. O primeiro pertenceu
(cf. XXIII: 1 5) . a Pólux, e o segundo a Adrasto (e pertencera antes a
Hércules).
24
Aquele rei: Galafrone, pai d e Angelica e Argalia.
37
Cimérias [. . .] entrar: os antigos criam que a noite
25 Lampo: não significa aqui, «relâmpago», mas raio de luz. (Nocturno, deus da noite) e o sono se recolhiam em gru­
tas nas terras dos Cimérios (povo que habitou as mar­
26
Como [. . .] se vê: como o cavalo berbere (cavalo veloz, gens do mar Negro). Cf. Ovídio, Metamorfoses, xv:603-
de corrida) na linha de partida. 606, e Vergílio, Geórgicas, IV:261 -262, e Eneida, X:96-99.
27 38
De [. . . ] Heitor: feitas por Vulcano para Heitor. Manterão sua promessa: de dar a mão de Bradamante
a Ruggiero (cf. XLIV: 1 4).
28
Sucede: na posse das armas.
39
Éol o: o senhor dos ventos.
29 Entre as placas: nas juntas de união das placas, pon­
tos mais frágeis da armadura. 4 0 Neptuno: o deus do mar.

CANTO XLVI

Ora, se diz a carta o verdadeiro,


já não demora a descobrir-se o porto;
pelo que já dos votos cumprir me abeiro 1 ,
a quem me deu em tanto mar conforto;
pois de não voltar com o lenho inteiro,
ou sempre errar, no medo estive absorto.
Mas parece-me ver, sim, vejo certo:
vejo terra, e o litoral vejo aberto.
2 Sinto soar de alegria um trovão,
que faz troar a onda e ecoar o ar;
de sinos, trompas, ouço a vibração
que encobre o alto grito popular.
Ora começo a discernir quem são
os que enchem um e outro quebra-mar.
Parecem de me ver ter alegria,
chegado ao termo de tão longa via.
3 Que belas e virtuosas damas vejo,
e cavaleiros, dar ao lido adorno!
Amigos, que pagar não tenho ensejo
pela letícia que hão por ver meu retorno!
Mamma, Ginevra, as outras da Correggio2
vejo no molhe, naquele extremo corno;
Veronica Gambara3 ao lado afloro,
tão grata a Febo e ao aónio coro4 •
726 ORLANDO FURIOSO

4 Vejo outra, mas ao mesmo sangue adscrita, 7 Se do meu senhor de Bozolo2 1 eu olho
Genevra5 , e está de lulia6 acompanhada; mulher, mãe, manas e primas divinas,
vejo Ippolita Sforza7 e a erudita e ainda as Torelli e as Bentivoglio,
Trivulzia, no sacro antro alimentada8 ; Visconti e Pallavicino22 , tão finas,
vejo Emilia Pia9, e tu, Margherita 10 , entre todas as que hoje existem, escolho,
de Angela Borgia 1 1 e Graziosa 1 2 ladeada. e quantas gregas, bárbaras, latinas
Com Ricciarda d'Este 13 vejo as louçãs já houve, e de quem se ouve fama alma,
Bianca e Diana 1 4, e as outras irmãs 1 5 • a que em graça e beleza leva a palma:
Eis a bela, mas mais sábia e honesta, s Iulia Gonzaga23 , que, onde põe o pé
Barbara Turca 16 , e a companheira Laura 17 ; e para onde os serenos olhos gira,
não vê o Sol mais bondade que a desta não só qualquer menos formosa é,
parelha, desde o Indo à extrema maura 1 8 • mas, como se deusa fora, a admira.
Eis Genevra 19 , que à casa Malatesta Com ela a cunhada24 , que a sua fé
deu, com seu mérito, dourada aura: não renegou por lhe ter tido ira
nunca palácios régios e imperiais Fortuna, que lhe fez embargo vasto.
tiveram luxos e ornamentos tais. Eis Ana de Aragão25 , a luz do Vasto;
6 Se em Rimini estivesse, hospitaleira, 9 Ana, bela, cortês, sábia, sadia,
quando, soberbo porque a Gália toma, de castidade, fé e amor um templo.
César hesita, se além da ribeira Com ela a irmã26 , que, aonde irradia
devia ir, hostilizando Roma20 , sua beleza, outra assim não contemplo.
creio que, dobrada cada bandeira, Eis a que eximiu à margem sombria
e dos troféus esquecendo a grande soma, do Estige, e faz, num nunca visto exemplo,
aceitaria leis e pactos dela, malgrado as Parcas e malgrado a Morte,
não tendo, talvez, de opressor a estrela. esplender no céu seu ilustre consorte27 •
CANTO XLVI 727

10 Eis minhas damas de Ferrara, e aquelas 14 Eis mais dois Alessandri naquele elo4 5,
da corte de Urbino; mais além tosco dos Orologi um, o outro Guarino46 •
as de Mântua, e quantas damas belas Eis Maria d'Olvito47 , e eis o flagelo
tem a Lombardia e o país tosco28 • dos reis, o divino Pietro Aretino48 •
O cavaleiro que entre elas vem, e elas Eis dois leronimi; que um é, revelo,
tanto honram, se não tenho o olho fosco, o Veritade, e o outro o Cittadino49 •
pela luz dos belos rostos encandeado, Vejo o Mainardo, vejo o Leoniceno50 ,
Unico Accolti é, de Arezzo, afamado29 • o Pannizzato, o Celio e o Teocreno51 •
11 Benedetto, o sobrinho, também vejo, 15 Lá, Bernardo Capei; lá, vejo Pietro
que purpúreo tem o chapéu e o manto30 , Bembo, que o nosso puro e doce idioma,
e o cardeal de Mântua3 1 e o Campeggio32 , expurgado do seu vulgar uso tetro,
esplendor e glória do conselho santo; como se quer, em seu exemplo assoma52 •
noto neles (ou será que o almejo?), Guasparro Obizi é o que lhe vem retro,
no rosto e gesto, que se alegram tanto e olha e admira a tinta que ele bem doma53 •
com meu regresso que não posso agir Vejo o Fracastorio, e o Bevazano54 ,
por forma às obrigações retribuir. Trifon Gabriele, e o Tasso55 noutro plano.
12 Lattanzio e Claudio Tolomei33 vejo eu, 5
16 Vejo Nicolo Tiepoli 6, e ao lado
57
o Paulo Pansa, o Dresino, e o Latino Nicolo Amanio , cujo olhar brilha;
Iuvenal, e o Molza, e o Sasso meu34 , Anton Fulgoso58 , que ao ver-me chegado
e os Capilupi, e o Florian Montino35; ao lido mostra gáudio e maravilha.
e aquele que nos guia ao regato ascreu O meu Valeria é aquele que afastado
pelo caminho mais plano e mais contínuo: das damas está; e se calhar aguilha
Iulio Camillo36 ; e ali, na parte interna, Barignan, que tem perto, e preterido
Marco Antonio Flaminio, o Sanga, o Berna37 • é por elas, a não ser seduzido5 9 •
13 De Alessandro Farnese38 chega a vez, 17 Vejo engenhos excelsos e fidedignos
em companhia tão douta e serena! por sangue e amor juntos: o Pico e o Pio60 •
Pedro, Capella e Porzio39 , o bolonhês O que com eles vem, e que os mais dignos
Filippo, o Volterrano, o Madalena40 , honoram, até hoje negligencio61 ;
Blosio, Pierio, e o Vida, cremonês4 1 mas, se me foram dados veras signos,
de facunda e infindável cantilena, é o homem que tanto ver aprecio:
e Lascari42 e Mussuro e Navagero43 , lacobo Sanazar62 , que faz baixar
e Andrea Marone e o manje Severo44 . do monte as Camenas à beira-mar63 •

.:...
_ D-__ - .--� �- ...,.__ ;::....::: _ _ -� ..... _.
,"'

(..._. e.
728 ORLANDO FURIOSO

18 Eis o douto, o fiel, o diligente 24 O melhor guerreiro que ao lado espada


secretário Pistofilo64; ladeia e no braço escudo usa, ou já usasse;
os Acciaiuoli e Angiar65 , com quem sente o mais belo e gentil que houve morada
prazer: por mim, do mar já não receia. no mundo, vivos e mortos contasse;
Annibal Malaguzzo, o meu parente66, por grande cortesia praticada
está com Adoardo, que faz com que eu creia morrerá, se não houver quem o abrace.
que do meu nativo ninho, está escrito, Por Deus, senhor, vinde e fazei experiência
se ouvirá de Calpe às Índias o grito67 • de um conselho que dê sobrevivência. -
68
19 Vittor Fausto e Tancredi fazem festa 25 A ideia Leon de suspeita invade
por me ver, e com eles mais de um cento. que o guerreiro, de quem esta arrazoa,
Vejo as mulheres e os homens que nesta seja o que buscar por toda a cidade
minha espera mostram grande contento. e campo mandou, e busca em pessoa;
Para cumprir a breve via que resta por isso, segue aquela que o persuade
não demoro, tenho propício o vento; a praticar acção piedosa e boa;
voltemos a Melissa, e à medida levou-o ela, por caminho certo,
tomada para a Ruggier salvar a vida. onde Ruggier da morte estava perto.
20 Esta Melissa, como eu disse a eito, 26 Quando o encontram, três dias estivera
queria com muito empenho conseguir sem comer, de tal modo enfraquecido
que Bradamante com Ruggiero em estreito que só a custo pôr-se em pé pudera,
nó matrimonial se viesse a unir; e cairia, não sendo sustido.
tinha de ambos bem e mal tão a peito Todo armado, estendido no chão espera,
que a toda a hora dos dois queria ouvir. estando de elmo e de espada guarnecido;
Assim, punha espíritos sempre em via; para travesseiro o escudo tinha eleito,
quando um regressava, já outro ia. onde o branco licorne estava feito.
21 Vencido pela dor tão tenaz e forte, 27 Ali, pensando que fez tanta injúria
viu Ruggier entre as escuras sombras posto; a sua dama, e quanto ingrato, e quanto
o qual a não provar de qualquer sorte incônscio foi com ela, sente fúria,
alimento estava firme e disposto, e não já dor; e atormenta-se tanto
e com o jejum queria dar-se a morte; que morde as mãos e a boca com incúria,
mas foi-lhe o auxílio de Melissa imposto. espargindo as faces de contínuo pranto;
Saída do albergue, a via tomou e, porque nisso toda a ideia atiça,
onde com Leon depois se encontrou, não sente chegar Leon nem Melissa;
22 do qual cada homem, por ele mandado, 28 e assim, não interrompe o seu lamento,
todo o lugar em redor calcorria; nem os suspiros nem o pranto cessa.
e por fim ele mesmo tinha montado, Leon detém-se e a escutar está, atento;
e pelo cavaleiro do lincorne ia. desmonta então, e a chegar-se começa.
A sábia feiticeira havia dado Que Amor é a razão de tal tormento
freio e sela a um demo nesse dia, bem percebe; mas a pessoa expressa
que montava em forma de rocinante; não lhe é, que lhe provoca esse flagelo,
e Leone encontrou mais adiante. pois inda não ouviu Ruggier dizê-lo.
23 - Se da alma é igual a majestade, 29 Adiante pouco a pouco os passos muda,
que fora, senhor (disse), o rosto esboça; até que nada dele já se espaça
se, dentro, a cortesia e a bondade e com fraternal afecto o saúda,
corresponderem à presença vossa, ao lado se deita e no colo o abraça.
conforto dai, por vossa caridade, Eu não sei quanto bem é que a ajuda
ao melhor guerreiro da idade nossa; súbita de Leone a Ruggier faça;
se ajuda breve não tem, e conforto, receia que o perturbe e o aborreça,
muito não falta para que esteja morto. que se lhe oponha, e sua morte impeça.
730 ORLANDO FURIOSO

30 Leon com a mais doce e mais suave 33 E prosseguiu com seu rogo eficaz,
voz, e as palavras com que mais amor com falar tão humano e tão benigno
pode mostrar, diz-lhe: - Não haja entrave que Ruggier resistir não é capaz;
para a razão me dizeres da tua dor; de aço ou pedra no peito não tem signo,
pois pouco sofrer no mundo é tão grave e vê que, se a recusar for tenaz,
que o homem não lhe possa dar estertor, fará acto descortês e maligno.
se a razão se souber; nem negativo Responde; mas a voz inda embatoca
deve de esperança ser, enquanto é vivo. três vezes, antes que saia da boca.
31 Bem me dói que esconder-me tenhas querido 34 - Senhor meu (disse enfim), em tu sabendo
teu mal, sabendo-me teu vera amigo, quem eu sou (e vou-to dizer agora),
não só desde que te estou tão unido tenho a certeza de que em ti acendo
que jamais deste teu nó me desligo, menos contento que se eu morresse ora.
mas já desde que causa tinha tido Sou aquele que de ódio te está moendo:
para ser sempre teu mortal inimigo; eu sou Ruggiero, que te odiou outrora;
de mim deves sempre esperar guarida, e foi com intenção de dar-te morte
com meus bens, meus amigos, minha vida. que há muitos dias deixei esta corte,
32 Não hesites em dar-me confidência 35 para que por ti não me fosse tirada
de tua dor, e deixa que eu ausculte Bradamante, por estar a intenção
se força ou lisonja tem influência, de Arnon para teu favor toda virada.
se tesouro ou arte em teu bem resulte. Mas, ao que o homem põe, disposição
Fruto não dando minha diligência, Deus dá: fez a cortesia mostrada
então, que a morte alívio te faculte; por ti que eu mudasse de opinião;
mas não queiras chegar a esse efeito não só o meu ódio por ti depus,
sem fazer tudo o que pode ser feito. - como a ser teu para sempre me dispus.
CANTO XLVI 731

36 Pediste-me tu, não sabendo que eu 42 E se então espontaneamente o faria,


era Ruggier, que te ajudasse a ter sem te ser, como ora sou, obrigado,
a dama; o que significava o meu mais devo ora fazê-lo, pois seria,
coração do corpo arrancado querer. não o fazendo, um ingrato acabado;
Se mais satisfiz o desejo teu pois, renunciando ao que te pertencia,
que o meu, acho que bem te dei a ver. privaste-te de um bem que a mim foi dado.
Tua é Bradamante; tem-na em paz: Mas dou-to, e fico bem mais contente
muito mais que o meu, teu bem me compraz. de dar-to que de o ter tido em presente.
37 Seja tua vontade que eu me prive 43 A ti, mui mais que a mim, ela pertence,
da vida, se dela também me privo; e, embora por seus méritos a ame,
pois melhor sem alma se sobrevive não é caso para que, outro a tendo, eu pense
que eu possa sem Bradamante estar vivo. como tu à vida cortar o estame.
E para que, tendo eu vida, não motive Não quero que tua morte me dispense,
que a tenhas legítima enquanto eu vivo; e possa, quebrado seja o liame
pacto de esponsal entre nós se fez: de matrimónio existente entre vós,
dois maridos não terá duma vez. - por mulher tê-la em legítimos nós.
38 Leon de admiração tanto se peja, 44 Não dela apenas estou pronto a dispor,
quando que este é Ruggier para ele é noto, mas do que tenho, e da vida também,
que não mexe a boca nem pestaneja, antes que alguém diga que a imensa dor
nem move o pé; está como estátua imoto. de tal cavaleiro de mim provém.
Estátua, mais que homem, parece, que à igreja Muito me custa ver teu desfavor:
alguém levasse para cumprir um voto. podendo de mim, como de ninguém,
Crê que cortesia tão invulgar dispor, que primeiro a ideia te acuda
nunca teve, nem nunca terá, par. de morrer de dor que ter minha ajuda. -
39 E o saber que ele é Ruggier não somente 45 A tais palavras outras acrescendo,
não gasta o amor que por ele nutria, que longo seria todas escrever,
como o acresce: não menos dor sente ia sempre os motivos rebatendo
Ruggier, que sente ele pela sua agonia. que Ruggiero pudesse desdizer;
Por isso e para mostrar que dignamente, tanto fez que, por fim, disse: - Eu me rendo,
como filho de imperador, procedia, e ficarei feliz por não morrer.
não quer, se o resto Ruggier mais açalma, Mas quando vou pagar-te a obrigação,
que em cortesia ele lhe leve a palma. se a vida me pões duas vezes na mão? -
4o - Ruggier (diz), se no dia em que ofendido 46 Alimento suave e precioso vinho
foi meu campo pelo teu valor estupendo, fez Melissa ali trazer de rompante;
embora odiando-te, houvesse eu sabido incitou Ruggier, que lhe era vizinho,
que tu eras Ruggier, como ora entendo, ao cibo, ou sucumbia num instante.
a teu valor me teria rendido, Frontin, que sentiu cavalos pertinho,
como então me rendi, não o sabendo; depressa ali mostrou o seu semblante.
do peito havendo o meu ódio deposto, Leon mandou apanhá-lo e selá-lo
o amor que te tenho nele tinha posto. pelos seus escudeiros, e a Ruggiero dá-lo;
41 Que o nome de Ruggiero antes odiasse, 47 o qual com custo, e porque o ajudou
quando não sabia que eras Ruggiero, Leon, montar o corcel conseguiu;
não nego; mas, que agora adiante passe69 de tal modo o vigor o abandonou,
o ódio que tive, que penses não quero. quando há pouco de tanto usufruiu
Se, quando da prisão te fiz fugace, que um inteiro campo vencer logrou,
houvesse sabido, como ora, o vero, e fez com falsa insígnia70 o que se viu.
o mesmo por ti tinha feito então, Partiram, e meia légua de via
que estou, de fazer, na disposição. feita, chegaram a uma abadia
73 2 ORLANDO FURIOSO

48 onde repousaram do dia o resto,


e o que se seguiu, e inda o outro inteiro,
até todo o vigor ser manifesto
em Ruggier, como o que tinha primeiro.
Com Melissa e Leon, fez depois presto
regresso à capital o cavaleiro;
e soube que, na noite que passara,
dos Búlgaros comissão lá chegara.
49 Porque aquela nação, a qual havia
eleito Ruggier rei, ali chamá-lo
mandava esta embaixada, pois sabia
em França, junto a Carlos, encontrá-lo;
porque queria oferecer-lhe soberania,
jurar fidelidade e coroá-lo.
O escudeiro de Ruggier7 1 também vem,
e deu toda a informação que convém.
50 Contou-lhes da batalha que a favor
dos Búlgaros tinha em Belgrado feito,
em que Leon e o pai imperador
vencera, e matara sua gente a eito;
por isso o tinham feito seu senhor,
tirando aos de sua raça esse direito;
e em Novengrado preso tinha sido
por Ungiardo, e a Teodora oferecido;
51 e depois chegara a notícia certa
que o seu guarda morto fora encontrado,
e fugido ele, e a prisão aberta;
do que se seguiu não se ouviu recado.
Entrou Ruggiero por via encoberta
na cidade, com o rosto ocultado.
Com Leone, na manhã em sequência,
foi pedir a Carlos Magno audiência.
52 A águia de ouro em seu corpo Ruggier,
bicéfala, em campo vermelho72, veste;
e, tal como o acordo entre os dois quer,
com a mesma insígnia e a sobreveste
que, por ter na pugna havido mister,
de amolgões, cortes, furos se reveste;
facilmente assim foi reconhecido,
por ter com Bradamante combatido.
53 Com ricas vestes, regiamente ornado,
Leon sem armas a par dele seguia;
levava à frente e atrás e em cada lado
muito distinta e digna companhia.
Fez vénia a Carlos que, já levantado,
lhe ia ao encontro; e a sua à mão unia
de Ruggier, no qual todos o olhar fixo
tinham; e disse o que fora prefixo:
CANTO XLVI 733

54 - Este é o guerreiro que lutou ileso 60 E sem demora correu a abraçá-lo,


do nascer do dia até ele ser extinto; e do colo não se lhe desprendia.
e como Bradamante morto ou preso Rinaldo, Orlando e, antes, Carlos, beijá-lo
o não levou para fora do recinto, vão com amor, dum lado e outro, à porfia.
magnânimo senhor, se bem apreso Nem Dudon e Olivier de acariciá-lo,
vosso édito, que venceu não desminto, ou Sobrino, saciado se sentia.
e para mulher foi por ele conquistada; Dentre os paladins e os barões, nenhum
por isso vem: para que lhe seja dada. de Ruggier saudar ficou em jejum.
55 Não só por direito, mas pelo teor 61 Leon, que muito bem sabia arguir,
do édito, outro de a ter é indigno: findos os abraços tão eloquentes,
se é preciso merecê-la pelo valor, começou ante Carlos a referir,
que outro cavaleiro mais que ele é digno? ouvindo todos os que eram presentes,
Se tê-la deve quem lhe tem amor, como o denodo e brio que viu fulgir
não há quem passe ou que chegue ao seu signo. (ainda que para mal das suas gentes)
Pronto está, se alguém faz oposição, em Ruggier, que em Belgrado ele observou,
a defender armado sua razão. - mais fundo que a ofensa em si calou;
56 Carlos e toda a corte estupefacta 62 Assim, quando ele foi preso e conduzido
ficou ao ouvir tal; pois tinham crido àquela que só queria massacrá-lo,
que era a Leon que a luta fora grata, da prisão ele ousado tinha sido,
e não ao cavaleiro desconhecido. malgrado o parentesco, para tirá-lo;
Marfisa, que com os outros pacata e como o bom Ruggiero, agradecido,
estava a ouvir, tendo a custo podido queria da libertação compensá-lo,
ouvir até que Leon concluísse fez tal cortesia que a todas quanto
o seu discurso, fez-se avante e disse: já houve ou possa haver leva adianto.
57 - Como Ruggier não está, para com justeza 63 Prosseguindo, contou em pormenor
a mulher disputar entre este e ele, aquilo que Ruggier por ele fizera;
e para que por carência de defesa e depois, pungido pela grande dor
não lha tirem, sem que alguém se rebele, que o premia porque a mulher perdera,
eu, que sou sua irmã, quero esta empresa se dispusera a morrer; e do errar
tomar contra qualquer, este ou aquele, perto esteve, se ele o não socorrera.
que diga ter direito a Bradamante, Com tão doce afecto tudo exprimiu
ou que Ruggiero em mérito suplante. - que nenhum olho enxuto ali se viu.
58 E com tanta ira e tal desdém tece 64 Com tão eficazes rogas prossegue,
seu falar que em muitos houve a suspeita dirigindo a Amon a alocução,
de que, sem esperar que Carlos lhe desse que não só que o comova e que o abnegue
licença, aqui iniciasse a empreita. logra, e que o faça mudar opinião,
Pareceu a Leon que mais não devesse mas que ele em pessoa a ir não se negue
Ruggier esconder-se, e ao elmo a mão lhe deita; suplicar a Ruggier o seu perdão,
e diz a Marfisa: - Eis que aqui to aponto, e que seu pai e seu sogro o decrete;
e a dar boa conta de si está pronto. - e depois Bradamante lhe promete.
59 Como o encanecido Egeu ficou, quando 65 À qual, lá onde do destino seu
sentado à cruel mesa se deu conta se chorava em câmara solitária,
que era o seu filho aquele, ao qual, instando com alegres gritos presta correu
a iníqua mulher, veneno ele apronta; a notícia, por mais de uma emissária;
bastava que a espada um pouco mais brando e o sangue, que ao coração acorreu
fosse a conhecer, tinha a morte pronta73 • quando o mordera a dor sua adversária,
Assim Marfisa, o cavaleiro que odiara ao tal ouvir, tão brusco retirou-se
vendo ser Ruggier, espantada ficara. que, de gáudio, ela da morte acercou-se.
734 ORLANDO FURIOSO

66 Vazia fica de sua força toda, n e de França partir não esteja à espreita,
faltando, para em pé se ter, vigor, para de suas hostes ser capitão,
bem que saibais que de forte se apoda pois de toda a terra que hajam sujeita
e é dona de grande ânimo e valor. obriga o pai a fazer rejeição.
Não mais quem ao cepo, ao laço ou à roda Não tem Ruggier virtude mais perfeita
está condenado, ou pena não menor, para satisfazer da mãe a ambição,
e já nos olhos tenha a venda negra, de Bradamante, e fazer que o genro ame,
graça ouvindo gritar, que ela se alegra. como ouvir dizer que ora rei se chame.
67 Alegra-se Mongrana e Claramonte74, 73 Fazem-se as núpcias esplêndidas, reais,
por novo nó vir unir os dois ramos; de harmonia com aquele que as perfilha:
dói-se Ganelon75 porque tal o afronte, perfilha-as Carlos, e fá-las iguais
e Anselmo, Falcon, Gini com açamos, às que faria casando uma filha.
e Ginami76, ocultando em falsa fronte Os méritos da donzela eram tais,
sua inveja e ódio sem acabramos; e os que o resto da família partilha,
e aguardam da vingança a ocasião, que ao rei não parecia deformidade
como a raposa faz espera ao lebrão. gastar com ela do reino metade.
68 Não só Rinaldo e Orlando, desse friso, 74 Que é corte aberta anuncia em redor,
muitos vez e outra haviam matado, para que todos saibam que podem vir;
embora esses casos com muito siso nove dias campo franco79 ao dispor
o rei, e as ofensas, haja aquietado, terá quem questões tem para decidir.
como há pouco lhes apagara o riso, Mandou no campo um adorno compor,
de Pinabel e Bertolagi o fado77 ; e intricados ramos e flores urdir,
mas a vingança trazem encoberta, vestido a seda e ouro, e tão jucundo
fingindo ter a coisa como incerta. que sítio mais belo não viu o mundo.
69 Os emissários búlgaros que à corte 75 Paris não teria capacidade
de Carlos (disse eu) vieram direito, para as inúmeras gentes peregrinas,
com fé de encontrar o guerreiro forte pobres, ricas, de toda a qualidade
do licorne, que seu rei fora eleito, que havia, gregas, bárbaras, latinas.
sabendo-o cá, chamaram boa sorte Tanto senhor e personalidade
à sua, que à fé tinha dado efeito; de todo o mundo, e das casas mais finas,
reverentes, aos pés se lhe lançaram, em pavilhões, tendas, choupanas estavam,
e que à Bulgária fosse suplicaram, e todos com conforto se alojavam.
70 que em Adrianópolis78 reservado 76 Mui rica e singularmente adornado
para si estava o ceptro e a real coroa. tinha a noite anterior Melissa, a maga,
E querem que vá defender o estado, o aposento nupcial preparado,
contra o qual mais uma vez se arrazoa sonho que ela há já tanto tempo afaga.
que um exército maior preparado Já longamente tinha desejado
tem Costantino, que vai em pessoa; esta união essa dama pressaga:
e esperam, se de seu rei refrigério do futuro áuspice, sabia quanta
tiverem, conquistar-lhe o grego império. bondade tinha o fruto dessa planta.
71 Ruggiero o reino aceitou; satisfez 77 Pusera o nupcial leito fecundo
os rogos: na Bulgária comparece, no meio dum pavilhão amplo assaz,
prometeu, após o terceiro mês, o mais rico, o mais ornado e jucundo
quando a Fortuna a tal não se opusesse. que jamais houve, ou em guerra ou em paz,
Leone Augusto ouviu com nitidez, quer antes quer depois, em todo o mundo;
e disse a Ruggier que em seu dito cresse: da trácia costa obtê-lo foi capaz:
quando houver dos Búlgaros o destino, de cima de Costantino elevado
paz se faz entre eles e Costantino; o tinha, quando na praia acampado.
CANTO XLVI 735

78 De Leon tem Melissa aprovação, 84 Constantino90 , de quem queixar-se deve


ou talvez para lhe causar maravilha, a bela Itália enquanto gire o céu.
e fazer da arte demonstração Constantino, que o Tibre em tédio teve,
que à larva infernal impõe freio e cilha, levou para Bizâncio o precioso véu,
e que a tem à sua disposição que doutro Constantino a maga obteve.
com todo o bando que a Deus faz guerrilhaªº, Cordas de ouro, em marfim o mastaréu91 ,
fez vir de Constantinopla a Paris bordado com primor era o dossel,
o pavilhão, pelos estígios servis. como Apeles92 nunca fez com pincel.
79 De cima de Costantino, do império 85 Nele as Graças93 , em hábito jucundo,
da Grécia, o tirou ela em pleno forno8 1 , uma rainha94 ajudavam no parto:
com cordas, armação, e todo o etéreo belo infante surgia, como o mundo
ornamento que tinha dentro e em torno; não viu do século primeiro ao quarto.
pelo ar o fez trazer com seu mistério, Lá estava Jove e Mercúrio facundo;
para a Ruggier dar alojamento e adorno. Vénus e Marte95 do regaço farto
Findas as núpcias, de novo o levou tiravam, para o espargir, etéreas flores,
milagrosamente aonde o tirou. e doce ambrósia e celestes odores.
80 Já perto de dois mil anos havia 86 Ippolito, dizia uma escritura
que aquele rico pavilhão foi tecido. nas suas faixas, em letra miúda.
Uma donzela que em flio82 vivia, Em idade já mais firme a Ventura
e tinha o dom profético acrescido, pela mão o tem, e a Virtude o saúda.
com estudo, tempo, e noites de vigia, Mostrava novas gentes a pintura,
de suas mãos o tinha guarnecido. com longas vestes, crina cabeluda,
Cassandra se chamou, e ao irmão seu, que vieram da parte de Corvino
o ínclito Heitor, quando feito, o deu. pedir ao pai o seu tenro menino96 •
81 O cavaleiro mais cortês jamais 87 De Ercole despedir-se reverente
saído da cepa de seu irmão se vê, e também da mãe, Eleonora;
(sabendo embora que da raiz mais e chegar ao Danúbio, onde a gente
que muitos ramos tinha de desvão) corre a vê-lo e como a um deus o adora.
retratara em seus bordados joviais E vê-se o rei dos Húngaros prudente,
de ouro e vária seda, com sua mão. que o saber maduro admira e honora
Teve-o sempre Heitor como um privilégio, numa idade tão tenra e imatura,
por quem o fez e pelo lavor egrégio. e mais que a seus barões lhe faz mesura.
82 Mas depois de ele ter por traição morte, 88 Há quem, nos infantis e tenros anos,
e ser pelos Gregos o Troiano aflito, da Strigonia o ceptro lhe põe na mão97 ;
e depois que Sínon ao mal exorte83 , sempre o menino com o tio nos panos
e o que se seguiu, que aqui não está escrito, se vê, no palácio ou no pavilhão:
Menelau o pavilhão teve em sorte, quer contra Turcos quer contra Alamanos
com o qual foi então ter ao Egipto; o potente rei faça expedição,
deu-o ao rei Proteu, e em troca levou Ippolito está com ele, e atende
a mulher que o tirano lhe tirou. aos nobres gestos, e virtude aprende.
83 Por Helena se designava aquela 89 Aqui se vê como são despendidos
pela qual o pavilhão a Proteu deu84; seus verdes anos em ciência e arte.
à mão dos Ptolomeus85 foi ter a tela, Tem Fusco98 ao pé, dos ocultos sentidos
e Cleópatra em deixa a recebeu. das obras dos antigos dando parte99 •
Pelos homens de Agripa86 tirado a ela - Evita este, àquele dá ouvidos,
foi, no mar leucádio87 , com mais troféu; se glória e imortalidade queres dar-te -,
às mãos de Augusto88 e Tibério89 passou, parece dizer: tão bem retratados
e em Roma, até Constantino, ficou; estão os gestos deles ali pintados.
736 ORLANDO FURIOSO

90 Depois, inda jovem, cardeal feito1 00 , 96 Vê-se que além, em armas reluzente,
no Vaticano assiste ao consistório; para a Igreja ajudar à pressa corre;
com facúndia dá do intelecto efeito, levando impreparada e pouca gente,
e admiração causa a todo o auditório. com um exército instruto concorre106 ;
- Como será com idade a preceito mas só o facto de ele estar presente
(parecia ser, de espanto, o falatório)? os eclesiásticos muito socorre,
Oh, se de Pedro lhe calhar o manto, que o fogo apaga antes de estar a arder:
que idade ditosa!, que século santo! - foi, pode dizer, chegar, ver, vencer. 1 07
91 Noutra parte o livre entretenimento 97 Vê-se também junto à costa nativa
estava, e os jogos do jovem ilustre. a batalhar contra a mais forte armada
Enfrenta ursos no alpino assento, que, contra Turcos, contra gente argiva1 08 ,
ou javalis no vale fundo e palustre; pelos Venezianos jamais foi mandada:
num ginete quase ultrapassa o vento, destrói-a e vence-a, e ao irmão cativa
para que corço ou velha cerva o não frustre: a dá, com toda a riqueza saqueada 109 ;
alcança-a, e em duas partes cortada, de algo haver para si, ideia não tem;
iguais, se vê, a um golpe de espada. só honor, que não se dá a ninguém.
92 Além, de filósofos e poetas 98 Damas e cavaleiros todas miram,
no meio está, em mui douta contenda. sem nada compreender, as figuras;
Um descreve-lhe o curso dos planetas, pois de ninguém informação ouviram
outro a Terra, e outro o céu lhe desvenda; que tudo aquilo são coisas futuras.
versos ledas, elegias discretas, Comprazem-se com os rostos que admiram,
poemas heróicos fazem que ele aprenda. belos, bem feitos, e em ler as escrituras.
Músicos ouve e outros sons, acolá, Só Bradamante o bordado desnoda,
e sem suma graça um passo não dá. pois por Melissa soube a história toda.
93 Em toda a primeira parte se pinta 99 Ruggier não estava, como Bradamante,
do sublime rapaz a puerícia. instruído; porém, volta-lhe à mente
Cassandra a outra fizera distinta, que entre a sua prole costumava Atlante
com gestos de justiça e de perícia, Ippolito lembrar frequentemente.
de bravura, de modéstia, e da quinta, Quem poderia haver que em versos cante
que tem com essas mui estreita amicícia: quão cortês é Carlos com toda a gente?
a virtude que dá e que despende1 º1 ; Muita festa há com jogos e folias,
por essas cinco iluminado, esplende. e a mesa sempre cheia de iguarias.
94 É aqui que com o jovem se vê 100 Aqui se vê quem bom cavaleiro é:
o duque dos Ínsubres1º2 infeliz: por dia mil lanças quebradas são;
em paz, com ele se reúne e provê; fazem-se liças a cavalo e a pé,
ou com ele leva os pendões serpentis103 ; ou ao par, ou em grande associação.
a mesma lealdade nele se lê, Ruggiero é o que com mais valor se vê:
nos dias bons como nos tempos vis. vence sempre, com luz ou escuridão;
Na fuga o acompanha, e o conforta seja em dança, em luta, ou em qualquer obra,
na adversidade, e no perigo o exorta. é para ele sempre que o grande honor sobra.
95 Está noutra parte em pensamento atento, 101 Quando o último dia 1 1 0 sobrevém,
pela salvação de Alfonso e de Ferrara, tendo a grande festa já começado,
procurando um eficaz argumento, e Carlos à mão esquerda Ruggier tem
que encontra; e faz ver como coisa clara e Bradamante do direito lado,
ao justíssimo irmão o traimento das bandas da planície à pressa vem
que lhe prepara a família mais cara1 04 : direito à mesa um cavaleiro armado,
e por isso ser herdeiro mereceu de negro vestido e o corcel de igual,
do nome que Roma a Cícero deu 1 º5 • rosto altivo e estatura colossal.
CANTO XLVI 737

1 02 Era o rei de Argel 1 1 1 , que, pela felonia 10s e de a causa defender é capaz,
que sobre a ponte sofreu da donzela 1 1 2 , sem chamar para o auxiliar ninguém,
tinha jurado que armas não vestia, mas gostava de mostrar-lhe, aliás,
nem espada usava, nem montava sela, que para ajudá-lo muita gente tem.
sem que tivesse um ano, um mês e um dia Ali Rinaldo, ali Orlando faz,
estado, como eremita, numa cela. como o marquês e os dois filhos 1 16 também,
Os cavaleiros a si, com tais processos, Dudon e Marfisa, do pagão fero,
soíam punir nesse tempo os excessos. propósito de defender Ruggiero,
1 03 Embora houvesse de Carlos sabido, 109 dizendo que, sendo ele novo esposo,
e de seu rei, qual fora todo o efeito 1 1 3 , não devia conturbar suas bodas.
não se armou, para seu voto ser cumprido, Ruggier respondeu: - Ficai em repouso,
fingindo aquilo não lhe dizer respeito. que para mim essas desculpas são nodas. -
Mas, estando o ano e o mês já consumido As armas vestiu do tártaro iroso 1 1 7 ,
e mais um dia completo, a preceito, e logo pôs fim às demoras todas.
com novas armas, corcel, espada e lança, As esporas Orlando a Ruggier constringe,
vem-se apresentar na corte de França. e Carlos ao flanco a espada lhe cinge.
1 04 Sem desmontar, sem inclinar a testa, 1 10 Por Bradamante e Marfisa a couraça
e sem sinal algum de reverência, lhe fora posta, e o resto do arnês.
mostra que despreza Carlos e a festa, Segurou-lhe Astolfo o corcel de raça,
e a presença ali de tanta eminência. e o estribo o filho do dinamarquês 1 1 8 •
Pasmo e assombro geral se manifesta, Fizeram lestos em torno abrir praça
por este assim mostrar tanta insolência. Rinaldo, Namo 1 1 9 , e Olivier marquês.
O banquete e a conversa se suspende, Fizeram sair todos do cercado,
para escutar o que o guerreiro pretende. que para aquele fim está sempre preparado.
105 Tendo Carlos e Ruggiero de fronte, 111 Damas, donzelas, com sua face baça,
gritou num alto e orgulhoso feitio: tementes à guisa de pombas estão,
- Sou (disse) o rei da Sárcia 1 1 4 , Rodomonte, que do chão granoso ao ninho escorraça
e a ti, Ruggiero, à luta desafio; a raiva dos ventos que a bramir vão
e vou provar-te, antes que o Sol tramante, com trovões e lampos, e o ar ameaça
que à fé de teu senhor foste arredio; com chuva, granizo, e danos o chão;
e que não mereces, pois és traidor, temem por Ruggiero, que a elas mal
entre estes cavaleiros ter honor. àquele fero pagão parecia igual.
1 06 Embora a traição tenhas descoberta, 1 12 O mesmo a toda a plebe e à maior parte
pois, sendo cristão, não podes negá-la, dos cavaleiros e dos barões parecia;
contudo, para a fazer parecer mais certa da sua memória inda não se parte
estou aqui, para neste campo prová-la; o que o pagão em Paris feito havia;
e, se alguém aqui tens que faça oferta pois, sozinho, a ferro e fogo teve arte
de combater por ti, quero aceitá-la. de em parte a destruir, e inda se via
Se uma não basta, quatro ou seis aceito, e se há-de ver muito tempo o sinal:
e nada de quanto te disse enjeito. - nenhures tivera o reino dano igual.
1 07 Ruggiero, a tais palavras, elevou-se, 1 13 Ninguém tinha no coração temor
pediu a Carlos para autorizá-lo, como Bradamante; não que ela cresse
e que ele mentia disse, e outro que fosse que o sarraceno, em força e no valor
que de traidor quisesse apelidá-lo; do ânimo, mais que Ruggier pudesse;
com seu rei 1 1 5 , correctamente, portou-se, nem que razão, que amiúde dá o honor
ninguém pode com razão censurá-lo; a quem a tem, Rodomonte tivesse;
e que estava pronto para rebater mas não pode estar sem apreensão,
que para com ele fez sempre o seu dever; pois, amando, para temer tem razão.
738 ORLANDO FURIOSO

114 Oh, quanto sobre si preferiria 11s Com brida e esporas com eles instando,
ter o cargo daquela pugna incerta, fizeram-nos erguer os cavaleiros;
embora que sua vida perderia largando as hastas e as espadas sacando,
em tal caso estivesse mais que certa! voltam a atacar-se os cruéis guerreiros:
Morrer mais de uma vez escolheria, para cá, para lá, com mestria girando
se é que de mais que uma morte há oferta, os bravos corcéis, aptos e ligeiros,
mais depressa que ver o seu consorte tinham as pontas das espadas mais caro
correr o risco de um perigo de morte. os pontos onde o ferro era mais raro.
115 Mas não há rogo que faça e que valha 1 1 9 Não cobria com a pele de serpente,
para que Ruggiero a si deixe a empresa. que era tão dura, o peito Rodomonte,
Por isso a observar fica a batalha nem de Nemrod 1 2 1 a espada tão pungente,
com coração trémulo e face tesa. nem o seu elmo lhe cobria a fronte;
Ruggier e o pagão, cada um na esgalha, essas armas, quando lhe foi nocente
ao encontro do outro o ferro entesa. a dama de Dordonha sobre a ponte,
No choque as lanças gelo ser pareceu; tudo no túmulo ficou suspenso,
os troncos, aves a subir para o céu. tal como atrás ter-vos contado penso 1 22 •
1 20 Tinha ele outra mui boa armadura,
mas não como a primeira tão perfeita;
nem esta ou aquela, nem outra mais dura,
a Balisarda faria desfeita;
à qual não se opõe encanto ou feitura,
nem fineza de aço, nem têmpera eleita.
Tão bem Ruggier cá e lá trabalhou
que em mais de um sítio as armas lhe furou.
121 Vendo o pagão que tanto enrubesceu
a armadura, e sem poder esquivar
tantos dos golpes que Ruggier lhe deu,
sem que lhe fossem a carne encontrar,
com mais raiva e mais furor se moveu
que em pleno Inverno o tempestuoso mar.
Larga o escudo e com todo o seu poder,
com duas mãos, de Ruggiero o elmo fere.
1 16 A lança do pagão, que fez fragor 1 22 Com a mesma extrema força com que cai
a meio do escudo, teve fraco efeito: a máquina no Pó, em duas naves
assim o aço, para o egrégio Heitor (com homens, roldanas, para cima atrai
por Vulcano temperado, era perfeito. e deixa cair nas agudas traves 1 23) ,
Ruggier também a lança lhe foi pôr do pagão o golpe em Ruggier descai,
no escudo, e trespassou-o a direito, com mãos acima de outro peso graves:
embora fosse quase um palmo grosso, salva-o o elmo encantado, sem o qual
dentro e fora em aço, e no meio em osso. pelo meio abria ele e o animal.
117 E se não fosse a lança não suster 1 23 Braços, pernas abre, e a cabeça a pino
o embate, e partir-se ao primeiro assalto, duas vezes tem para cair pendor.
que feita em lascas pareceu penas ter Repete o fero golpe o sarracino,
pelo ar subindo, tanto voou alto, sem dar-lhe tempo para se recompor;
que a couraça lhe abrisse era mister, ensaia o terço, mas o ferro fino
inda que houvesse diamantino esmalto 1 20 , não tem, para tanto martelar, vigor;
e acabava a batalha; mas quebrou-se, fez-se em pedaços, e ao cruel pagão
e fez que a grupa ao chão dos corcéis fosse. de si desarmada deixou a mão.
CANTO XLVI 739

124 Rodomonte, por isso, não desiste, 1 30 Na face do elmo e no ombro malha;
e atira-se a Ruggier, que nada sente Ruggier do golpe tanto se ressente
(tão atordoada a cabeça persiste, que por isso vacila e se atrapalha,
de tal modo ofuscada tem a mente!). e direito se tem dificilmente.
Para o acordar, o sarraceno insiste: Quer o pagão entrar, mas o pé falha,
cinge-lhe o colo com o braço potente, pois, pela ferida da coxa, era impotente:
e com tal nó e tanta força aferra querendo avançar mais que quanto podia,
que da sela o arranca e o deita à terra. logo um joelho em terra lhe caía.
125 Mal o chão toca, logo se endireita, 1 31 Ruggier não perde tempo, e, com alento,
mais do que de ira, de vergonha pleno, no peito e na face logo o devassa;
porque para Bradamante os olhos deita, bate-lhe, e tão perto o tem um momento
e vê turvar-se aquele rosto sereno. que até com a mão no chão o amassa.
Vendo-o cair, ela o pior suspeita, Mas alça-se o pagão num movimento,
quase perdendo o seu senso terreno. e Ruggier contra si aperta e abraça:
Ruggier, para corrigir aquela afronta, gira um e outro, sacode-se e aperta,
saca da espada e o pagão defronta. e às extremas forças a arte concerta.
126 Lança o corcel contra Ruggier, mas ele 1 32 Da força, a Rodomonte, grande parte
sabiamente o evita e o pé retira, o flanco e a coxa aberta retirara.
e ao passar agarra o freio ao corcel Ruggier tinha destreza e muita arte,
com a mão canha, e em torno o regira, para a luta tendo habilitação dara:
enquanto com a destra ao infiel sente-se em vantagem, não se desparte;
ferir o flanco, o ventre, o peito mira; onde vê que o sangue mais o encharcara,
com duas pontas o fez ficar branco, e, onde que o pagão mais ferido está vê,
uma na coxa e a outra no flanco. põe braço e peito, põe um e outro pé.
127 Rodomonte, que inda na mão trazia 1 33 Rodomonte, cheio de ira e despeito,
o punho e os copos da espada quebrada, Ruggier no pescoço e nos ombros prende;
no elmo de Ruggier com tal batia, ora puxa ora empurra, ou sobre o peito
querendo aturdi-lo com tanta pancada. o levanta do chão e o suspende,
Mas Ruggier, que, justo, vencer devia, gira-o de quando em vez e tem-no estreito,
tomou-lhe o braço e deu tal badalada, e para o fazer cair muito contende.
juntando à mão direita a outra mão, Ruggier, recolhido, à acção intima
que por fim tirou da sela o pagão. senso e valor, para lhe ficar por cima.
12s A força ou destreza fez que caísse 1 34 Tanto foi os gestos mudando o franco
o pagão, de Ruggier ficando a par: Ruggiero que Rodomonte cingiu;
em pé; e porque espada possuísse calcou-lhe o peito no sinistro flanco,
Ruggier, em vantagem parecia estar. e com toda a sua força o oprimiu.
Que o pagão se lhe chegasse interdisse, A perna destra os joelhos dum tranco
não o deixando muito aproximar: barrou ao pagão, e ali comprimiu;
quer ter longe de si, a todo o custo, a tirar os pés do chão o obrigou,
um corpo que é tão grande e tão robusto. e, de cabeça, na terra o esticou.
129 Porém vai vendo o flanco e a coxa quanto 1 35 A cabeça e as costas Rodomonte
se ensanguentam, e as restantes feridas. na terra imprimiu, e com tal pancada
Espera que venha a enfraquecer tanto que o sangue das feridas, como de fonte,
que tenha de pôr fim às investidas. longe foi, fazendo a terra encarnada.
Punho e copos o pagão entretanto Ruggier, que agarra a Fortuna pela fronte 1 24 ,
agarrou, com suas forças reunidas, querendo que ele para se erguer não tente nada,
arremessando-os, e Ruggier colheu: aos olhos o punhal com a mão lhe avança,
muito mais que antes, ora entonteceu. outra na goela, e os joelhos na pança.
74 0 ORLANDO FURIOSO

136 Como às vezes onde se cava o ouro 137 Pela viseira do elmo lhe apresenta
(ou na Panónia 1 25 ou nas minas iberas), a ponta do seu punhal, de imediato;
aos que ali vão, ávidos de tesouro, ameaçando-o, que ele se lhe renda tenta,
surpreendem derrocadas severas, propondo-lhe, de o deixar vivo, pacto.
mal podendo escapar-se por um poro Mas ele, a quem menos morrer espaventa
seu bafo, pois opressos estão deveras, que de cobardia um mínimo acto,
assim foi o sarraceno oprimido torce-se e abana, e para o outro montar
pelo campeão, quando ao chão foi expelido. usa a força, sem resposta lhe dar.
CANTO XLVI 741

1 3s Como o mastim sob o feroz alão


que nas goelas os dentes lhe entrosa,
muito se cansa e se debate em vão,
com olhos de fogo e boca espumosa,
sem do predador escapar à prisão,
mais por vigor imposta que raivosa,
assim perde o pagão todo o seu esmero
de sobrepor-se ao vencedor Ruggiero.
139 Mas tanto se debate que ao fim vem
a libertar o seu braço melhor;
e com a destra mão, que o punhal tem,
pois para o sacar também ele teve alor,
de Ruggier nos rins ferir não se contém;
mas apercebeu-se o jovem do error
em que incorria, só por protelar
ao ímpio sarraceno morte dar.
140 Duas, três vezes na horrível fronte,
erguendo o mais que erguer podia o braço,
o ferro do punhal em Rodomonte
todo cravou, e saiu de embaraço.
Para as esquálidas margens do Aqueronte,
liberta do corpo gelado e lasso,
vai, praguejando, a alma desdenhosa,
que no mundo foi soberba e orgulhosa.
e o que o paladim disse depois glose.

finis

Pro Bono Malum *

Pro bano malwn: na primeira edição, de 1 5 16, este Posteriormente, fo ram cunhadas medalhas com
moto surgia a encerrar o poema, circundando wna gravura a efígie de Ariosto, que apresentavam, na face oposta,
que representava wn enxame em fuga de wna colmeia a que o mesmo moto a circundar a gravura atrás descrita,
fora ateado fogo. Desconhece-se se algwna intenção particu­ ou uma outra, na qual se vê uma mão segurando uma
lar moveu Ariosto a fazê-lo. Talvez reflicca a sua mágoa pela tesoura que corta a língua a uma serpente. De toda
pouca generosidade que enconuou nos homens, ou pela a vasta simbologia associada à serpente, lembremos
insensibilidade dos que não sabem apreciar a dádiva da poe­ apenas que ela sempre foi atributo da poesia e das
sia, da qual o mel é metáfora. Ou calvez fosse, simplesmen­ artes.
te, wna forma elegante de rematar o poema com wn epigra­ Como tradução do moto, pode sugerir-se: «por bem
ma que exprime wn sentimento hwnanirário. fazer, mal haver».
742 ORLANDO FURIOSO

1
-.-
NOTAS

18 Desde [. . .] maura: do Oriente (Indo) ao Ocidente


Dos votos [. .. ] abeiro: assumindo a viagem maríti­
ma como metáfora do poema, há que respeitar o ritual (Mauritânia).
dos antigos navegantes: cumprir, à chegada, as pro­
messas feitas nos momentos de perigo. 19
Genevra: Ginevra d'Este, mulher de Sigismondo
Malatesta, senhor de Rimini.
2
Mamma [. . .] Correggio: Mamma era o nome por que
era conhecida Beatrice, filha de Niccolà da Correggio, 2° César [. .. ] Roma: em 1 O de Janeiro de 49 a. C.,
poeta da corte de Alfonso d'Este. Ginevra é, provavel­ Júlio César (então procônsul da Gália) atravessou,
mente, a mulher do filho de Niccolà, Giangaleazw. As com o seu exército, o rio Rubicone (ribeira), que,
outras deverão ser lsotta e Eleonora, irmãs de Beatrice. perto de Rimini, fazia fronteira entre a Itália e a Gália
Cisalpina, para avançar sobre Roma e disputá-la a
3
Veronica Gambara: mulher de Gilberto x da Pompeu. Esse episódio deu origem à guerra civil, mas
Correggio, poetisa, foi regente do condado após a «atravessar o Rubicão» ficou a ser sinónimo de tomar
morte precoce do marido, durante a infância do her­ uma decisão audaz e irrevogável.
deiro.
21
Senhor de Bozolo: o senhor de Bozzolo era Federico
4 Aónio coro: coro das Musas, que habitavam o monte Gonzaga.
Hélicon, na Aónia (Beócia).
22
Torelli [. .. ] Pallavicino: famílias ilustres de Bolonha
5 Genevra: talvez a filha de Gilberto da Correggio e (as duas primeiras) e de Milão (as outras duas).
Veronica Gambara.
23
lulia Gonzaga: Giulia Gonzaga, mulher de Vespasiano
6
!ulia: senhora não identificada. Colonna, filho de Prospero Colonna.
7 24
lppolita Sforza: mulher de Alessandro Bentivoglio, A cunhada: Isabella Colonna (cf. nota a XXXVIl:9:7).
de Ferrara.
25
Ana de Aragão: filha de Fernando de Aragão e mulher
8
A erudita [. .. ] alimentada: Domitilla Trivulzio, de de Alfonso d'Avalos, marquês do Vasto.
Milão, mulher de grande cultura (no antro sacro - a
26 A irmã: Joana de Aragão, casada com Ascanio Colonna.
gruta de Apolo, em Delfos, fonte da poesia - alimen­
tada).
27
Eis [. . .] consorte: Victoria Colonna (cf. nota a
9 Emília Pia: Emilia Pio, mulher de Antonio da XXXVIl:18:1).
Montefeltro, de Urbino; foi amiga de Pietro Bembo e
28
de Baldesar Castiglione. Pais tosco: a Toscana.
10 29
Margherita: provavelmente, Margherita Gonzaga, Unico [. .. ] afamado: Bernardo Accolti, por alcunha
senhora muito distinta da corte de Urbino. Unico Aretino, poeta da corte.
1 1 Angela Borgia: parente e dama de companhia de 30
Benedetto [. . .] manto: Benedetto Acco!ti, sobrinho de
Lucrezia Borgia. Bernardo, cardeal, secretário do papa Clemente VII.
12 31
Graziosa: Graziosa Maggi, dama da corte de Cardeal de Mântua: Ercole Gonzaga.
Ferrara, de notáveis dotes musicais.
32
O Campeggio: Lorenzo Campeggi, de Bolonha,
13
Ricciarda d'Este: mulher de Niccolà III d'Este, mãe jurisconsulto e cardeal.
de Sigismondo e de Ercole I (avó de Ippolito e Alfonso
33
I). Já era falecida quando Ariosto nasceu, mas fê-la Lattanzio [. .. ] Tolomei: Lattanzio e Claudio Tolomei,
figurar junto das netas, Bianca e Diana. homens de letras de Siena.
14 Bianca e Diana: filhas de Sigismondo d'Este. 34
Paulo [. .. ] meu: Paulo Pansa, latinista, de Génova;
Giangiorgio Trissino (Dresino), poeta e dramaturgo de
15
Outras irmãs: a única conhecida é Lucrezia. Vicenza; Latino Giovenale, homem de letras de Parma;
Francesco Maria Molza (cf. nota a XXXVIl:12:8);
16
Barbara Turca: talvez da família dos Turchi, de Ferrara. Panfilo Sassi, poeta de Modena.
17
Laura: talvez Laura Dianti, favorita de Alfonso I,
que veio a ser a sua terceira mulher.
CANTO XLVI 743

35 Os Capilupi { . .] Montino: os cinco irmãos Capilupi, 46 Mais dois [ .. ] Guarino: Alessandro degli Orologi,
homens de letras de Mântua, e Floriano dei Floriani, de homem de letras de Pádua, e Alessandro Guarino, pro­
Montagnana, amigo de Ariosto. fessor em Ferrara e secretário de Alfonso I d'Este.
36 E aquele { . .] Camillo: Giulio Camillo Delminio, 47 Maria d'Olvito: Mario Equicola, de Alvita, na Cam­
autor de um manual de Eloquência. Regato ascreu é a pânia. Foi secretário de Isabella d'Este na corte de
fonte das Musas, junto a Ascra, na Beócia. Mântua e notabilizou-se pela sua obra Libra di natura
d'amore.
37 Marco { . .] Berna: Marco Antonio Flaminio, poeta
de Treviso. Giambattista Sanga, romano, poeta e secre­ 48 Pietro Aretino: escritor que nas suas sátiras e prosa
tário de Clemente VIL Francesco Berni, poeta florentino, libertina não poupava ninguém (flagelo dos reis) . Chamou
expoente máximo da poesia satírica do séc. XVI, em opo­ a si próprio «divino» e valeu-se das suas capacidades
sição ao petrarquismo; reescreveu o Orlando lnnamorato, literárias para conquistar fama, poder e a protecção de
de Matteo Maria Boiardo, em língua toscana, com o personagens ilustres. Foi considerado «escritor obsceno»
intuito de lhe melhorar o estilo, obra que conheceu graças aos seus diálogos de cortesãs (Ragionamenti, o Sei
grande sucesso. giornate).
38 49
Alessandro Parnese: romano, homem de letras e pro­ Eis dois [ . .] Cittadino: Girolamo Verità, poeta
tector das artes; veio a ser o papa Paulo III. veronês, e Girolamo Cittadini, poeta lombardo que
vivia em Ferrara.
39 Pedro, Capei/a e Porzio: Tommaso Inghirami, de
Volterra, alcunhado de Pedro por ter representado o pa­ 50 Mainardo [. . . ] Leoniceno: Giovanni Mainardi,
pel de Pedra do Hipólito, de Séneca; foi professor de médico de Ferrara, e Niccolà Leoniceno, médico e
Eloquência e prefeito da Biblioteca Vaticana. Bernardino homem de letras, professor em Ferrara e em Bolonha.
Capella, romano, poeta latino. Camillo Porzio, também
romano, poeta e professor de Retórica. 5 1 Pannizzato { .. ] Teocreno: Niccolà M. Pannizzato,
literato e poeta latino, professor em Ferrara; Celio
40 O bolonhês { . .] Madalena: Filippo Beroaldo, de Bo­ Calcagnini, poeta e professor na Universidade de
lonha, poeta latino, foi prefeito da Biblioteca Vaticana. Ferrara; Benedetto Tagliacarne, por alcunha Teocreno,
Mario Maffei, de Volterra (o Volterrano), poeta lati­ de Sarzana (perto de La Spezia), preceptor dos filhos
no. Evangelista Paolo Maddaleni (o Madalena), poeta de Francisco I de França.
latino.
54 Vejo o { . .] Bevazano: Girolamo Fracastoro, médico
41 Blosio { . .] cremonês: Biagio Paliai (Blosio), romano, e homem de letras veronês, e Agostino Bevazano, poeta
foi secretário de Clemente VII e Paulo III. Giampietro em língua latina das cortes de Leão X e Clemente VIL
Valeriano Bolz.ani, de Belluno, poeta, historiador e arqueó­
logo; alcunhado de Pierio por ser cultor das Musas ou 55 Trifon [ .. ] Tasso: Trifon Gabriele, nobre veneziano,
Piérides (de Piéria, região da Trácia); Marco Girolamo grande humanista; Bernardo Tasso, poeta de Bergamo e
Vida, de Cremona, poeta latino, foi bispo de Alba e par­ secretário na corte estense, pai do poeta Torquato Tasso,
ticipou no Concílio de Trento. autor de Gerusalemme Liberata.
42
Lascari: Iános Lascaris, grego refugiado em Itália 56 Nico/à Tiepoli: patrício veneziano, poeta em latim,
após a queda de Constantinopla, fixou-se em Florença, foi doutorado pelo papa Júlio II, em virtude da sua
onde fez parte do círculo cultural de Lorenzo de' competência para o debate.
Mediei. Em 1 S 13 fundou em Roma o Colégio Grego. 57 Nico/à Amanio: poeta de Cremona, amigo de
Foi diplomata na corte de Francisco I de França. Matteo Bandello e por este recordado na primeira das
suas Novel/e (214, divididas em quatro volumes e de
4 3 Mussuro e Navagero: Marco Musurro, grego, discí­ temas variados).
pulo de Lascaris; humanista, ensinou Grego em Pádua
e foi ordenado cardeal por Leão x. Andrea Navagero, 58 Anton Pulgoso: Antonio Fregoso, poeta e filósofo
humanista, poeta e historiador, foi embaixador da Re­ genovês.
pública Véneta em Espanha e em França.
59 Valeria { . .] seduzido: Gianfrancesco Valerio, fidal­
44 Andrea [ . .] Severo: Andrea Marone, improvisador go veneziano que Ariosto apresenta como misógino
de versos latinos na corte de Ippolito d'Este. Severo da (afastado das damas), e que tenta incutir ideias idênti­
Volterra (manje Severo), poeta e monje da Ordem dos cas em Pietro Barignan (poeta de Brescia). Já em
Camaldulenses (fundada por São Romualdo em 1012, XXVII: 137 ss. tinha contado ao taberneiro a história
em Camaldoli, no alto dos Apeninos). misógina que ele narra a Rodomonte.
45 Elo: grupo. 60 Vejo { . .] Pio: trata-se de Gianfrancesco Pico della
Mirandola, sobrinho do filósofo e humanista
Giovanni Pico della Mirandola, do círculo de Lorenzo,
744 ORLANDO FURIOSO

75
il Magnifico, e seu primo Alberto Pio di Carpi, com­ Ganel on: Ganelon de Mogúncia, considerado, nas
panheiro de estudos de Ariosto. lendas carolíngias, o traidor de Roncesvalles (desfila­
deiro dos Pirenéus navarros, onde os Bascos, em 778,
61
Negligencio: nunca conheci. derrotaram a retaguarda de Carlos Magno, após a sua
falhada expedição a Saragoça). Em Roncesvalles,
62
lacobo Sanazar: lacopo Sannazaro, poeta de Roland (Orlando) e muitos outros foram vítimas da
Nápoles. A sua obra Arcadia, primeiro exemplo de sua emboscada. Ganelon era, antes da traição, paladi­
romance pastoril, teve enorme difusão e imitadores na no de Carlos Magno; como tal é referido em XV:8:7
Europa, entre os quais os escritores portugueses Sá de ( Ganel one) , e XVIIl:10:2 ( Ganelon tra idor) .
Miranda, Diogo Bernardes e Camões.
76
Anselmo [ . .] Ginami: Anselmo de Altaripa e outros
63 Faz baixar [ . .} beira-mar: nas suas Egloghe pescato­ membros da família de Mogúncia, inimigos figadais
rie, Sannazaro desloca as Camenas (ninfas das fontes, dos de Mongrana e Claramonte que hão-de matar
associadas às Musas) dos montes para as praias. Ruggiero (c( XLI:61:8), encobrem (com açamos) , por
enquanto, as suas intenções.
64 Secretdrio Pistofilo: Bonaventura Pistofilo, notário,
77
secretário de Alfonso d'Este, a quem Ariosto dedicou De [ . .} fado: a morte de ambos. O primeiro foi
uma das suas sátiras. Contribuiu para que o poeta morto por Bradamante (cf. XXII:97), e o segundo por
entrasse ao serviço do duque, depois de Ippolito ter Ricciardetto e Aldigieri (cf. XXVI: 13).
dispensado os seus serviços.
78
Adrianópolis: actual Edirne, cidade turca da Trácia;
65 Os Acciaiuol i e Angiar: Pietro Antonio, lacopo e fundada pelo imperador Adriano, é aqui apontada
Archelao Acciaiuoli, florentinos, funcionários da corte como capital dos Búlgaros.
de Ferrara; e, supõe-se, Pietro Martire d'Anghiari
79
(Angiar) , poeta e viajante. Campo franco: recinto disponível para !iças e duelos.
66 80
Annibal [ . .} parente: Annibale Malaguzzi, natural Bando [ . . } guerrilha: os anjos rebeldes.
de Reggio Emilia tal como Ariosto, e seu primo; é
81 Em pl eno forno: ao calor do meio-dia.
nomeado em duas das suas sátiras.
67 82
Adoardo [ . .} grito: Adoardo, poeta conterrâneo de /tio: Tróia.
Ariosto, que aqui profetiza que ele fará chegar a fama
83
da sua terra de Gibraltar ( Calpe) às Índias, ou seja, do Depois [ .. } exorte: Sínon foi o esp1ao que os
Ocidente ao Oriente. Gregos, simulando que partiam definitivamente, dei­
xaram em Tróia. Fazendo-se passar por vítima dos
68
Vittor [ . .} Tancredi: o grego Vittor Fausto, profes­ compatriotas, instigou os Troianos a introduzir na
sor de Grego em Veneza e também superintendente do cidade o grande cavalo de madeira, em cujo bojo se
Arsenal veneziano. Angiolo Tancredi era professor na escondiam os guerreiros gregos que destruíram Tróia.
Universidade de Pádua.
84 Menelau [ . .} deu: na Odisseia, Proteu é um deus
69
Que agora adiante passe: que prevaleça. do mar que apascenta os rebanhos marinhos de
Posídon. Ariosto atribui-lhe a mesma função no episó­
7
° Falsa insígnia: a insígnia de Leone, que ele usou dio da ilha de Ebuda (c( VIIl:51 ss.). Aqui, porém,
para travar o duelo com Bradamante. Proteu surge como rei do Egipto, identificação que lhe
foi atribuída por Heródoto. Nesta versão da lenda,
71 O [ . .} Ruggier: o escudeiro que acompanhara Proteu reinava em Mênfis quando Helena e Páris
Ruggiero para o Oriente (c( XLIV:78:1-2) e que ele lá foram arrastados para a costa egípcia por uma tempes­
deixara ao regressar (c( XLIV:99:7-8). tade. Levados à presença do rei, este decidiu que Páris
regressasse a Tróia, retendo Helena e os tesouros trazi­
72
A dguia [ . . } vermelho: insígnia do Império dos de Esparta, que devolveu a Menelau quando ele ali
Romano, pertencente a Leone (cf. XLV:69:3-4). a foi procurar, após a Guerra de Tróia. Porém, no que
concerne ao pavilhão feito por Cassandra e oferecido
73
O encanecido [ . .} pronta: Egeu, rei de Atenas, ins­ por Menelau em troca de Helena, é um acréscimo de
tigado pela mulher, Medeia, preparara um cálice enve­ Ariosto.
nenado para dar a beber a Teseu, filho que ele nunca
85
vira. No último instante, porém, reconheceu-o pela Ptol omeus: dinastia egípcia que terminou com
espada com que cortou a carne. Fora ele que a dera à Prolomeu XV, filho de César e Cleópatra. Octaviano
mãe de Teseu quando este foi concebido, para que a mandou-o executar após a sua vitória em Accio contra
usasse em adulto e pudesse ser reconhecido pelo pai. António e Cleópatra.
74 Mongra na e Claramonte: cf. nota a XXXVI:75:5.
CANTO XLVI 745

86 1 02
Agripa: Marco Vipsânio Agripa, político e general Duque dos Ínsubres: Ludovico Sforza, il Moro,
romano, foi o estratega da batalha naval de Áccio (31 a. C.). cunhado de Ippolito, era duque de Milão (Ínsubres, cf.
nota a IIl:26:6). Infeliz, pois foi feito prisioneiro pelos
87
Mar leucddio: mar circundante da ilha de Lêucade Franceses.
(Lefkds), muito próxima do promontório de Áccio (na
1 03
região grega de Acarnânia), onde se desenrolou a batalha. Ou [. . . } serpentis: ou, se em guerra, com ele leva a
bandeira dos Visconti, insígnia de Milão, com a figu­
88
Augusto: sucessor de César. O Senado atribuiu-lhe ra da serpente (pendões serpentis) .
o título de Augusto, que passou a designar os impera­
1 04
dores. Com ele se iniciou a era dos imperadores roma­ O traimento [. . . } cara: a conspiração que Giulio e
nos, e um dos períodos mais brilhantes da história de Ferrante d'Este preparavam contra Alfonso e Ippolito
Roma (o «século de Augusto»). Foi o patrono de (cf. nota a III: 10:7).
Vergílio.
105
E por isso [. .. } deu: por ter descoberto a conjura de
89
Tibério: sucessor de Augusto, de quem era entea­ Giulio e Ferrante, Ippolito seria merecedor do cogno­
do. Governou o império com mão de ferro. me de «pai da pátria». Roma deu a Cícero essa distin­
ção, por ele ter descoberto perante o Senado a conjura
9° Constantino: Constantino I, o Grande, aclamado urdida por Catilina, com os seus quatro discursos
imperador pelo seu exército. Reconstruiu Bizâncio e ( Catil inárias) , que constituem a obra-prima da orató­
para lá transferiu a capital (o Tibre em tédio teve) do na romana.
Império, mudando-lhe o nome para Constantinopla.
1 06
Converteu-se ao cristianismo, que impôs como reli­ Em armas [. . .) concorre: supõe-se que se aluda à
gião do estado. guerra contra os Bentivoglio, que tentaram tirar
Bolonha ao Papa.
91
Mastaréu: a coluna central.
1 07
Chega r, ver, vencer: célebres palavras de Júlio César
92
Apeles: o mais famoso pintor grego da Antiguidade. após a vitória sobre Fárnaces, rei do Ponto (veni, vidi,
vict) .
93 As Graças: divindades da Beleza que espalham a
108
alegria na natureza e nos corações. Gente argiva: Gregos.
94 Rainha: Leonor de Aragão, filha de Fernando de 1 09
Vê-se [. .. } saqueada: alusão à batalha de Polesella
Aragão, rei de Nápoles, mulher de Ercole I d'Este e (cf. nota a IIl:57, e XXXVl:2).
mãe de Alfonso, Ippolito, Beatrice e Isabella.
110
Último dia: último dia dos nove que duram os fes­
95
]ove [. . . } Marte: divindades que atribuem ao tejos (cf. 74:3).
recém-nascido as qualidades que os caracterizam:
111
Júpiter é símbolo do poder e da majestade; Mercúrio, Rei de Argel: Rodomonte.
entre outros atributos, é caracterizado pela eloquência
112
(facundo) ; Vénus e Marte são a deusa da beleza e o Donzela: Bradamante (cf. XXXV:48 ss.).
deus da guerra.
1 13
Embora [. . . } efeito: embora tivesse sabido do desfe­
96 Mostrava [. .. } menino: Matias Corvino, rei da cho da guerra entre Mouros e cristãos.
Hungria, era tio de Ippolito e seus irmãos, pois casou
1 14
com Beatriz de Aragão, irmã de Leonor, mulher de Sárcia: cf. nota a XIV:25:3.
Ercole I d'Este. Mandou buscar Ippolito para a sua
11 5
corte, ainda em criança. Seu rei: Agramante.
97 1 16
Há quem [. .. } mão: Matias Corvino nomeou O marquês [. . . } fil hos: Oliviero e seus filhos
Ippolito bispo de Esztergom (cidade húngara a noroes­ Grifone e Aquilante.
te de Budapeste), com apenas sete anos de idade.
117
Tártaro iroso: Mandricardo, morto por Ruggiero
98
Fusco: Tommaso Fusco, que foi preceptor e depois (cf. XXX:64).
secretário de Ippolito d'Este.
118
O filho do dinamarquês: Dudone.
99
Das [. .. } parte: explicando os clássicos.
119
Namo: o duque da Baviera (cf. i:8).
1 00
Inda [. . . } feito: Ippolito foi ordenado cardeal aos
1 20
catorze anos, por Alexandre VI. Esmalto: esmalte, revestimento.
101 121
A virtude [. .. } despende: a liberalidade. Nemrod: cf. nota a XIV: 119:1.
746 ORLANDO FURIOSO

122 1 24
Tudo [ . .} penso: cf. XXXV:52:3-4. Agarra [ . .} fronte: tem a sorte do seu lado (cf. nota
a XVIIl:161:5-6).
A mdquina [ . .} traves: bate-estacas, máquina com que
1 23
1 25
se eleva, por meio de um guindaste, um peso que depois Panónia: antiga região da Europa Central, entre o
se solta e cai sobre a estaca que se quer cravar no chão. Danúbio, o Sava e os Alpes. Foi província romana, e
Ariosto certamente observou-a no Pó, apoiada em duas faz hoje parte do território húngaro.
barcas (duas naves), cravando estacas no fundo do rio.
ÍNDICE

Ludovico Ariosto: a vida, o tempo, a obra . . . . . . . . . . . . . 7


O Orlando Furioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Nota da Tradutora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Nota às ilustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Guia à leitura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Canto I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Canto II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
notas 70
Canto III 71
notas 82
Canto IV 85
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
Canto V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
notas 1 06
Canto VI 1 07
notas 1 19
Canto VII 121
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32
Canto VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 33
notas 145
Canto IX 147
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 59
Canto X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
notas 1 77
Canto XI 1 79
notas 1 89
748 ORLANDO FURIOSO

Canto XII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191


notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Canto XIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Canto XIV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236
Canto XV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252
Canto XVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
Canto XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
Canto XVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 309
Canto XIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 1
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 324
Canto XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 1
Canto XXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352
Canto XXII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366
Canto XXIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383
Canto XXIV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402
Canto XXV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 417
Canto XXVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
Canto XXVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
Canto XXVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 472
Canto XXIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 482
Canto XXX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497
ÍNDICE 749

Canto XXXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 99
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 14
Canto XXX.II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 528
Canto XXX.III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 529
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548
Canto XXX.IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 564
Canto XXXV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 565
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 576
Canto XXXVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 586
Canto XXXVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 587
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 1
Canto XXXVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 603
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 614
Canto XXX.IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 615
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 626
Canto XL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 627
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 639
Canto XLI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 1
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 654
Canto XLII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 655
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 667
Canto XLIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 669
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 693
Canto XLIV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 695
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 708
Canto XLV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 709
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 723
Canto XLVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 725
notas 742
cava lo de ferro
«let's start a publishing house

to hell with small literature


we want something redblooded

lousy with pure


reeking with stark
and fearlessly obscene

but really clean


get what I mean
let's not spoil it
let's make it serious

something authentic and delirious


you know something genuine like a mark
in a toilet

graced with guts and gutted


with grace»

squeeze your nuts and open your face

{e.e. cummings, no thanks, 1935, adaptado por Diogo Madre Deus]

CONSELHO EDITORIAL
Alcinda Pinheiro de Sousa, Alexandre Melo, Ana Hatherly,
César Charrua, Cid Valle Ferreira, Dejan Stankovié,
Eunice Cabral, Eveline Cinthia Nóbrega Fonteles, Louisa Rombouts,
Manuel Folque Antunes, Margarida Periquito, Maria João Branco,
Miguel Gullander, Raul Henriques e Teresa Malafaia

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