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cava lo de ferro
LUDOVICO ARIOSTO nasceu em Reggio Emília
em 1474 e morreu em Ferrara em 1533. Ao serviço
da rica corte dos d'Este de Ferrara tornou-se, ainda
em vida, num dos maiores autores do renascimento
italiano. Escreveu para o teatro diversas obras trágicas
(Tragedia di Tisbe, La Cassaria, I Supposití), comédias
(Lena, fl Negromante); e também poesia lírica e satírica;
mas foi devido ao «Orlando Furioso», a sua obsessão
de uma vida, que ficou a dever a glória e ganhou
lugar de destaque no panteão da _literatura universal.
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cavalo de ferro
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.J.,•-1· Carlos Magno e os seus paladinos cristãos preparam os seus exércitos para �ravar
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ISBN 978-989-623-067-8
ORLANDO
FURIOSO
ILUSTRADO POR
GusTAVE DoRÉ
MARGARIDA PERIQUITO
cavalo de ferro
Orlando Furioso
O
autor do Orlando Furioso nasceu a 8 de Setembro de 1474
em Reggio nell'Emilia, sendo o primeiro dos dez filhos de
Nicolo Ariosto, pertencente a uma família bolonhesa nobre,
e de Daria Malaguzzi Valeri, senhora da alta nobreza de Reggio. Na
altura, o conde Nicolo era comandante da guarnição da fortaleza de
Reggio, ao serviço de Ercole I d'Este, duque de Mântua e de Ferrara.
Nessa cidade, e quase inteiramente dentro das muralhas da fortaleza,
decorre a infância de Ludovico até 1484, ano em que seu pai é chama
do a ocupar outros cargos em Ferrara, para onde a família se muda,
ocupando uma casa em que o poeta viveria até 1529.
Em Ferrara, Ludovico inicia os seus estudos de Latim e Grego, com
preceptores, o primeiro dos quais foi Domenico Catabene. Entre 1489
e 1494 frequenta, por vontade paterna, o curso de Direito no Studio
de Ferrara, mas consegue por fim sensibilizar o pai para a sua verda
deira vocação. Abandonando o Direito, dedica-se aos estudos literários
com o humanista Gregorio da Spoleto, homem de grande saber em
quem Ariosto encontra o mestre que ambicionava, e não só: «Deu-me
mais que o meu próprio pai, pois ensinou-me a viver com nobreza,
enquanto meu pai apenas me ensinou a viver entre os mortais» - escre
veu numa sua ode latina, em 1503.
Em 1498 entra ao serviço de Ercole I, e frequenta as aulas do filó
sofo Sebastiano dell'Aquila. Além das poesias líricas, epigramas e ele
gias em latim, e das Rime em vulgar, de inspiração petrarquista, que
compôs na idade juvenil, começa também a escrever comédias para a
companhia de teatro de Ercole 1.
8 ORLANDO FURIOSO
Além dos perigos a que estava sujeito nessas longas e urgentes via
gens a cavalo, a Roma e a várias outras cidades, era chamado a desem
penhar tarefas de camareiro, mordomo ou moço de recados, de que
muito se lamentava, concretamente nas suas sátiras.
Foram anos difíceis, ressentindo-se sempre de ser afastado do lar e
da tranquilidade que lhe permitiria dedicar-se à escrita, mas encontrou,
mesmo assim, tempo e concentração para escrever, além do Orlando
Furioso, as comédias, a poesia lírica e as sátiras. Considerava que a sua
obra era o Furioso, tendo descurado a publicação do restante, que dei
xou em manuscritos dispersos.
Das suas obras menores, as Satire são, sem dúvida, as mais interessan
tes. Em número de sete, são compostas em tercetos e têm forma epistolar,
dirigindo-se o poeta a familiares e amigos com quem discorre sobre factos
concretos da sua vida ou sobre os seus estados de alma, evoca recordações
pessoais ou caricaturiza alguém, e nas quais por vezes se lamenta, com desi
lusão ou com humor, do pouco reconhecimento que recebe ou da falta de
liberdade para se dedicar à literatura. Foram compostas entre 1517 e 1525.
No Outono de 1515, Ludovico decidiu dar o seu poema à estampa:
entregou o manuscrito a Giovanni Mazzoco, de Bondeno (cidade pró
xima de Ferrara), de cuja tipografia saiu em Abril de 1516, a expensas
do autor, com excepção do papel, provido pelo Cardeal. Compunha-se
de quarenta cantos e era dedicado a Ippolito d'Este, o qual não daria o
devido apreço à obra do seu cortesão, que, em vez de louvores, recebeu
dele, dias depois, a pergunta: «Messer Ludovico, dove mai avete trova
to tante corbellerie?>> («Senhor Ludovico, onde é que foi buscar tantos
disparates?»). A obra, porém, conheceu um sucesso imediato em todas
as cortes italianas, tendo em poucos anos saído da esfera aristocrática e
conquistado público de todos os estratos sociais.
Em 1517, as relações entre Ippolito d'Este e Ariosto conheceram
um corte definitivo. Em Agosto, o Cardeal decide partir para a
Hungria, onde tinha um bispado, ordenando a Ariosto que o acompa
nhasse. Ludovico recusa-se a fazê-lo, alegando motivos de saúde -
bronquite e problemas de estômago - susceptíveis de se agravarem com
a longa viagem e a transição climática. Foi a ruptura total. Ippolito não
aceitou a sua justificação e afastou-o do seu serviço, retirando-lhe os
honorários e os benefícios eclesiásticos que lhe atribuíra.
Por intercedência de Bonaventura Pistofilo, notário e secretário de
Alfonso d'Este, irmão de Ippolito, em 1518 Ariosto entra ao serviço
10 ORLANDO FURIOSO
1
(O serviço do Duque, de entre todas as partes I boas que tem, na que mais me agrada é nesta: I
que do ninho pátrio raramente se aparta. I Por isso os estudos meus pouco molesta, I nem me tira de
onde separar-me de todo I não posso, pois sempre lá me fica o coração.)
2 («Não sei se fui capaz de guardar em rima»).
LUDOVICO AruosTo: A VIDA, o TEMPO, A OBRA. 11
Teve início entre eles uma relação secreta, mas que havia de perdu
rar para sempre. Tito Strozzi morreu repentinamente em 1515, mas,
apesar de Alessandra ficar assim livre para casar com Ariosto, ambos
decidiram não o fazer, preferindo conservar as vantagens que o celiba
to lhes garantia. Alessandra, casando de novo, perderia o usufruto dos
bens do marido e a tutela dos filhos, que eram seis. E Ludovico não
podia renunciar de ânimo leve aos benefícios que adquirira em 1503,
ao tomar as ordens menores. Vivia cada um na sua casa, em Ferrara,
sem nunca terem coabitado. Numa sua elegia, Ariosto dá-nos conta das
cautelas a que era forçado para se introduzir furtivamente em casa de
Alessandra:
Che debb 'io for? che poss 'io for tra cento
occhi, e fra tanti usei e finestre aperte? 3
Só muito mais tarde, numa data imprecisa entre 1528 e 1530, cele
braram, secretamente, matrimónio. Nem os cônjuges nem os poucos
amigos que terão estado presentes à cerimónia secreta revelaram tal
facto, e Ludovico e Alessandra continuaram a viver separadamente.
O Orlando Furioso, entretanto, tinha sido continuamente melho
rado pelo poeta, que, em Fevereiro de 1521, fez publicar uma segunda
edição revista, esta impressa por Giovan Battista da la Pigna. Não
sofrendo alterações em conteúdo (tinha os mesmos quarenta cantos),
apresentava no entanto enormes melhorias no que respeitava à língua,
expurgada de expressões dialectais regionais, de arcaísmos e latinismos,
muito mais elegante e límpida do que a da primeira versão da obra,
acompanhando os cânones renascentistas. Deixava já prenunciar a per
feição que viria a observar-se na última edição que o autor faria publi-
3 (Ora me afasto, ora me aproximo, ora fujo ora regresso, / Todo escondido no manto, de cabeça
baixa, / vou para entrar; nisto vejo perto ou oiço / quem me pode ver, e afasto-me e passo. / Que hei
de fazer? Que posso eu fazer entre cem / olhos, e entre tantas portas e janelas abertas?)
12 ORLANDO FURIOSO
4 («É uma casa pequena, mas adequada a mim, livre de vínculos e decente, I e adquirida com o meu
dinheiro»).
14 ORLANDO FURIOSO
Génese
E
m 1486 foram publicados, em Veneza, os dois primeiros Livros
do poema Orlando Innamorato, do conde Matteo Maria
Boiardo. O então adolescente Ludovico Ariosto, impressionado
com a obra, começou a dedicar-se à leitura e estudo de histórias de cava
laria, matéria que estava na génese da obra de Boiardo, e quando este mor
reu, em 1494, deixando a obra interrompida no Canto IX do Livro III,
Ludovico alimentou a intenção de lhe dar continuidade. Não se sabe ao
certo quando começou a fazê-lo, mas há indicações de que em 1504 o tra
balho já estava iniciado.
Ariosto retomou as personagens e as respectivas aventuras no ponto
exacto em que Boiardo as deixara suspensas, e incutiu-lhes, de novo,
movimento. Contudo, esse novo movimento revelou-se muito mais fluido
e elegante, percebendo-se, desde a primeira edição, que o Orlando Furioso,
laborando embora na mesma matéria de uma interminável cadeia de
romances cavaleirescos, e tendo como antecessores mais directos no espa
ço italiano Morgante Maggiore (1483), do florentino Luigi Pulei, que
parodia as canções de gesta, e o já referido poema de Boiardo, era uma obra
original. Ludovico, com a sua extraordinária fantasia, dera uma outra fisio
nomia às personagens, mais de acordo com a sensibilidade e o gosto renas
centistas. O mundo cavaleiresco perdia os seus contornos rígidos e passava
a ser um cenário de fundo para figuras que exprimiam livremente toda a
diversidade e contrastes de sentimentos e comportamentos próprios da
natureza humana, sem excluir a nota dissonante da loucura.
Mas a novidade da obra não ficava por aí. Ariosto, em relação aos dois
antecessores citados, burilara a língua com um cuidado e uma perícia que
a colocavam a grande distância da linguagem áspera, rude e pouco maleá
vel de Pulei e de Boiardo. Numa época em que se buscava, entre tão varia
dos dialectos, um padrão para a língua culta italiana, Ariosto quis impri
mir à sua obra a evolução linguística teorizada por Pietro Bembo, que
16 ORLANDO FURIOSO
Enredo e personagens
O argumento do poema tem por fundo as guerras entre Carlos Magno
e os Mouros que invadiram a França, comandados pelo rei Agramante.
Nesse cenário movimentam-se personagens ligadas ao ciclo carolíngio
e ao ciclo bretão, pertencentes à tradição literária dos romances de
cavalaria e das canções de gesta, matéria que fugia já ao gosto classicis
ta do Renascimento. Mas Ariosto soube moldá-la de modo a torná-la
mais refinada e variada, recorrendo a todo o passo ao simile, com fre
quência vergiliano, introduzindo-lhe muitas referências clássicas e
mitológicas, novas personagens e novas histórias. Entre as personagens
mais relevantes avulta Orlando, o Roland da Chanson de Roland,
herói de tantas canções de gesta, e a sua paixão por Angelica, que o leva
à loucura, facto central no poema e na sua própria estrutura, pois acon
tece no Canto XXIII, e que dá título à obra. Ruggiero e Bradamante
são igualmente personagens de primeiro plano na economia do poema,
na medida em que têm como destino dar origem à estirpe d'Este, sendo
eles próprios descendentes do troiano Eneias, através de seu filho
Astíanax.
18 ORLANDO FURIOSO
Ariosto encadeia os factos de tal maneira que não nos deixa respirar;
logo a seguir, na oitava 10, apresenta-nos Angelica em fuga por bosques
e selvas, o que será nela uma constante, para escapar aos seus muitos e
diversos amadores. E, com Angelica, começamos de imediato a perce
ber que o tecido do poema é uma selva cerrada e cheia de ciladas, per
corrida em todos os sentidos por criaturas errantes que se cruzam ou se
desencontram, que se buscam ou se evitam, numa permanente deam
bulação em demanda de um ser amado ou de um inimigo, de um cava
lo ou de uma espada, ou simplesmente de uma aventura. O leitor é
constantemente confrontado com o imprevisto, com as súbitas mudan
ças de cenário, com o jogo de aparições e desaparecimentos e os mais
variados golpes de magia; e é levado pela cadência rítmica marcada pelo
galope dos cavalos, pelo tinir das armas, pela voz do narrador, pelo enca
deamento das oitavas, frequentemente ligadas por enjambement.
A guerra entre Carlos Magno e os Mouros, sempre presente, a certa
altura transfere-se de França para África, tal como Orlando, enlouque
cido, atravessa o mar a nado para África. O cerne do poema é, de facto,
o enlouquecimento por amor do seu herói titular, a apresentação do
amor como fonte de loucura para o espírito impreparado. Nas três pri
meiras oitavas do Canto XXIV, o narrador diz-nos que o amor nada
mais é que insânia, que tem disso experiência própria, e que só o facto
de passar de momento por um intervalo de lucidez lhe permite fazer
esse aviso à navegação.
Orlando segue obsessivamente Angelica, mas nunca mais a encon
tra, a partir do momento em que Carlos Magno a subtrai à sua compa
nhia no início do poema, como já se referiu. Ele que era o paladino mais
heróico, mais valoroso e forte do rei de França, seu tio, abandona as hos
tes francesas a coberto da noite, disfarçado de mouro, no momento mais
crítico: quando Paris está assediada. Parte numa longa e vã demanda por
Angelica, que o leva a outros países e a participar de outros episódios da
trama, e a regressar, muitos meses depois, ao ponto de partida. E é então
que, nos arredores de Paris, Orlando encontra o seu locus infaustus,
num dos cenários mais amenos e oníricos de todo o poema.
Angelica, que ao longo de vários cantos é o motor que impulsiona
e arrasta atrás de si cavaleiros cristãos e mouros, reis e eremitas enfeiti
çados pelos seus encantos, tudo o que deseja é regressar ao Oriente e
livrar-se definitivamente de todos esses pretendentes. Porém, ninguém
é dono do seu destino, e Angelica tem um encontro fatal: eis que depa
ra com um jovem soldado mouro, Medoro, louro e belo como um que
rubim, gravemente ferido. O seu coração empedernido finalmente
amolece e prende-se de paixão pela bela criatura, que trata com carinho
e poções feitas de ervas, cujos benefícios conhece bem. Amam-se,
unem-se, e juntos partem para o Catai. Ariosto escorraça do poema a
20 ORLANDO FURIOSO
monstro marinho, e é ela que tem de insistir para que se apresse a tirá
la dali, uma vez que ele persiste numa luta ineficaz com o monstro, sem
conseguir matá-lo, deixando-a exposta ao perigo. Assim que a salva,
tem o impulso incontrolável de a possuir. O contraste é enorme, tanto
na valentia como no comportamento, entre ele e Orlando, quando
este, em idêntica situação, mata o monstro e salva Olimpia.
Ruggiero não tem determinação nem força de carácter que lhe
permitam ser senhor de si mesmo, e deixa-se controlar por duas forças
antagónicas, ambas conotadas com a magia e a feitiçaria. Uma, o mago
Atlante, usa todo o tipo de engodos para o afastar do teatro das opera
ções, com a intenção de o proteger de um destino nefasto que lhe foi
predito; outra, a maga Melissa, esforça-se continuamente para o cha
mar ao dever e à razão, e para o aproximar de Bradamante, a fim de que
o desígnio de fundador da estirpe d'Este não fique por cumprir. Parece
nos que por detrás desta imagem, pouco abonatória, daquele que será
a «cepa» da família d'Este, se adivinha o sorriso malicioso de Ariosto.
Quanto a Bradamante, menina-dos-olhos de Carlos Magno e por
ele muito mimada, é uma guerreira forte e feroz que só encontra para
lelo em Marfisa, mas que, por contraste, se mostra demasiado dócil e
subjugada à autoridade paterna, e excessivamente tolerante e confor
mada no que respeita aos erros e ausências de Ruggiero. Assistimos aos
seus longos monólogos, carpindo a infelicidade amorosa encerrada no
castelo da família, como quem cumpre um destino que lhe está fatal
mente traçado.
Além destas personagens, que são centrais no poema, imensas são
as que nele se movimentam e que têm igualmente protagonismo. Mas
outras há com aparições pontuais, acessórias (Ippalca, por exemplo, ou
o mensageiro que traz a Ginevra notícias de Ariodante), e até efémeras,
tendo apenas a função de ligar fios da trama, sem nela terem relevo,
como é o caso da dama lacrimosa que Ruggiero e Bradamante encon
tram e os conduz ao castelo de Pinabello; nem chegamos a saber o seu
nome. Há personagens divinas que interferem directamente na acção
bélica, como o arcanjo São Miguel, numa leve reminiscência da inter
venção dos deuses olímpicos em Homero, e há um grupo de figuras do
povo - taberneiros e estalajadeiros, pastores, barqueiros - que sobres
saem por serem detentoras de saberes tradicionais e grandes contadoras
de histórias. São as figu ras que dão presença à literatura oral, que se
transmite através da palavra falada. Regista-se também a presença, quer
acessória quer relevante, de eremitas, que tanto vestem a pele do santo
como a do pervertido. Entre os reis e guerreiros sarracenos - designa
ção que abrange também os originários de terras orientais - vários
sobressaem pela sua bravura, mas a figura mais notável é a de
Rodomonte, rei de Argel, que se distingue de modo especial no assalto
22 ORLANDO FURIOSO
O
Orlando Furioso é uma obra que há muito tempo conheço e
amo. Não esperava, porém, que me viesse a caber a tarefa de
a traduzir para língua portuguesa. A editora Cavalo de Ferro
teve a feliz e louvável iniciativa de publicar a obra-prima de Ludovico
Ariosto, e propôs-me a execução do trabalho.
O tradutor profissional, ao assumir a responsabilidade de um trabalho,
assina um contrato com a editora, que o obriga às cláusulas pelas quais o
mesmo se rege, e tem de executar esse trabalho como quem executa uma
empreitada, sem que o grau de dificuldade ou a busca de mais perfeição
sejam tidos em conta. A mais premente e mais pesada dessas cláusulas é,
invariavelmente, o prazo. O prazo é, quase sempre, um mecanismo assus
tador, que, qual guilhotina, está suspenso sobre a cabeça do tradutor.
No caso presente, foi-me dado o prazo de um ano para fazer este
trabalho, porque a própria editora estava vinculada a compromissos de
edição que a tal a obrigavam.
Conhecendo bem a obra, não ignorei que o prazo era restricto, porém,
uma vez que me foi dada a liberdade de fazer a tradução como quisesse, ou
seja, em rima, em prosa, em verso branco, com ou sem rigor métrico, acei
tei. Aceitei, sobretudo, porque era um desafio: ser-me-ia muito difícil ter a
oportunidade de traduzir o Orlando Furioso e descartá-la.
Conhecer bem uma obra, porém, é um facto que perde importân
cia quando a abordamos com a intenção e os requisitos da tradução.
Tendo feito o primeiro canto em rima, seguindo, tanto quanto era pos
sível segui-lo à pressa, o modelo de Ariosto, fiz contas e verifiquei que
o tempo não chegaria. Passei a fazer a tradução em decassílabos, para
lhe dar ao menos um ritmo, mas sem rima, e assim cheguei ao Canto
VIII. Olhei para trás, e não reconheci o poema de Ariosto, que, sem
dúvida, encontra o seu ritmo não só na narrativa, mas, acima de tudo,
na rima e na métrica. Retrocedi e refiz todos esses cantos em rima, e da
mesma forma prossegui, sujeita à crescente pressão do tempo que se
escoava e da extensão da obra, privada da possibilidade de um segun-
26 ORLANDO FURIOSO
O «Orlando» em português
A presente edição é a primeira tradução integral jamais feita deste
poema em língua portuguesa, contemplando os padrões rimático e
métrico da oitava de Ariosto.
Há notícia de uma tradução em prosa, de Salustiano da Silva Alves
de Araújo Susano, publicada no Rio de Janeiro em 1833. E, também
no Brasil, da tradução em oitavas de alguns episódios soltos do
Orlando Furioso, feita por Luiz Vicente De-Simoni, publicada no Rio
de Janeiro em 1843, incluída numa antologia de poetas italianos.
Em Portugal a obra foi sendo lida no original e em traduções, ver
sões e resumos, em espanhol e francês, que proliferaram nos anos que
se seguiram à publicação da obra em Itália, e o interesse que imediata
mente despertou está patente não só em várias passagens de Os
Lusíadas como, por exemplo, na obra de T homé Pinheiro da Veiga,
Fastigimia 1 , escrita em 1605 - uma perspicaz e jocosa crónica de cos
tumes portugueses e espanhóis da época, em que abundam as referên
cias, entre outros, a Ariosto, e as citações de versos e mesmo de oitavas
inteiras do Orlando Furioso, na língua original.
Fica por fazer um estudo aturado da receptividade e dos ecos que
o poema teve em Portugal e junto dos escritores e estudiosos portu
gueses, que exigiria de mim tempo de que não dispus.
Em 1895 foi publicada no espaço lusitano, pelo editor David
Corazzi, uma tradução do poema de Ariosto, reduzido a prosa, da
autoria de Xavier da Cunha.
Antes dessa tradução, o poeta Gomes Leal ( 1848- 1921) fez, em
1889, uma versão do Canto I do Orlando Furioso, «vertido em lin
guagem portuguesa» a partir de uma versão francesa da época.
1 Thomé Pinheiro da Veiga, Fastigimia, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1 988 (reprod.
fac-similada da ed. de 1 9 1 1 da Biblioteca Pública Municipal do Porto) .
NOTA DA TRADUTORA 27
Critérios de tradução
2 L. Ariosto, «Orlando Furioso (cantos e episódios)», lntrod., Trad. e Notas de Pedro Garcez Ghirardi,
Ateliê Editorial, Granja Viana-Cotia-SP, 2002.
28 ORLANDO FURIOSO
Margarida Periquito
NOTA ÀS ILUSTRAÇÕES
Q
ando pensámos em editar o «Orlando Furioso» ocorreu-nos
que seria perfeito incluir as magníficas ilustrações que, no
século XIX, Gustave Doré realizou para esta obra. Mal sabía
mos, então, as dificuldades que se nos deparariam. Se a nossa intenção
inicial era incluir todas as gravuras existentes, cedo descobrimos a
impossibilidade de tal projecto. Isto porque as mais de 650 gravuras do
famoso ilustrador francês nunca mais foram reproduzidas em livro na
sua totalidade, desde a primeira edição da obra em língua francesa (da
Hachete), datada de 1879, à qual não conseguimos aceder.
A nossa investigação levou-nos a duas outras edições, igualmente
difíceis de encontrar, mas que acabaram por servir de base para a selec
ção das cerca de 450 gravuras incluídas no presente volume: a edição de
Armando Curcio editore, s.l., de 1957, e a belíssima edição de Fratelli
Treves editori, Milão, 19 14.
Apesar de nenhuma destas edições comportar, mesmo em conjun
to, a totalidade dos desenhos e gravuras originais de Doré (muitas das
quais continuamos curiosos em um dia descobrir), pensamos que a
selecção por nós feita seja mais que suficiente para completar, com uma
descrição visual dos lugares e personagens imaginados por Ariosto, a
profunda beleza do seu poema.
Os Editores
GUIA À LEITURA
CANTO I
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CANTO II
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CANTO III
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CANTO N
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CANTO V
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CANTO VI
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CANTO VII
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CANTO VIII
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CANTO IX
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CANTO X
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CANTO XI
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CANTO XII
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CANTO XIII
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CANTO XIV
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CANTO XV
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CANTO XVI
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CANTO XVII
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CANTO XVIII
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CANTO XIX
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CANTO XX
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CANTO XXI
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CANTO XXII
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CANTO XXIII
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CANTO XXIV
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CANTO XXV
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CANTO XXVI
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CANTO XXVII
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CANTO XXVIII
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CANTO XXIX
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CANTO XXX
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CANTO XXXI
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CANTO XXXII
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CANTO XXXIII
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CANTO XXXIV
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CANTO XXXV
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CANTO XXXVI
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CANTO XXXVII
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CANTO XXXVIII
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CANTO XXXIX
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CANTO XL
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CANTO XLI
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CANTO XLII
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CANTO XLIII
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CANTO XLIV
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CANTO XLV
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CANTO XLVI
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15 O mais alto que era possível, vinha 1s Longo tempo se esforçaram em vão,
a gritar a donzela espaventada. cada um querendo o outro derribar,
Salta, ao ouvir, para a margem ribeirinha pois tanto valor com a arma na mão
o mouro, e no rosto lhe pousa a mirada; tinha, qualquer deles, como o seu par;
e reconhece-a assim que se avizinha, foi primeiro o senhor de Montalvão,
apesar de pálida e perturbada; a o cavaleiro de Espanha alertar,
há muito não tinha notícia dela, como quem tem no peito tanto fogo
mas não duvida: é Angelica bela. que todo arde, sem ter desafogo.
16 Como era cortês, e tanto, talvez, 19 Disse ao pagão: - Crês que só a mim dás
como os primos por ela tinha amor, desaire, mas teu inimigo és;
aquilo que podia fazer, fez: se a luz do novo sol 1 6 teu peito faz
como se elmo houvesse, com pundonor, incendiar, e se algum ganho vês
sua espada empunhou para dar revés em me reter, tu, o que ganharás?
a Rinaldo, a quem não tinha temor. Ao teres-me morto ou preso como crês,
Não só muitas vezes se tinham visto, não será tua a dama mesmo assim,
como em provas de armas tinham registo. pois em fuga se pôs neste interim.
17 Deram início a uma feroz batalha: 20 Quão melhor será, se a amas deveras,
apeados ambos, gládios brandiam; que ligeiro vás na sua peugada,
aos golpes, couraças, cotas de malha, pois para detê-la é melhor se não esperas,
ou mesmo bigornas não resistiam. antes de estar daqui mais afastada!
Mentres cada um o outro trabalha, Tendo-a em poder, com praxes severas
estugando o passo bicho e dama iam; se decide de quem será, pela espada;
incitando o bicho a dar mais à perna, pois nada deve esta contenda ao siso,
por campos e bosques com ele se interna. e dela só colhemos prejuízo. -
50 ORLANDO FURIOSO
21 A proposta ao mouro não desprazeu, 24 Uma vez mais junto à ribeira estando,
e a peleja afrouxou nesse momento; lá onde o elmo na água caiu,
foi tal a trégua que entre eles nasceu, e a dama de encontrar desesperando,
passando o ódio e a ira ao esquecimento, para ter o elmo que lhe esconde o rio
que o pagão ao seu rival ofereceu para o sítio onde tombou vai caminhando,
na sua montada cómodo assento: e desce até à beira do baixio;
de tão instado, sobe para a garupa, mas tão enterrado ele está no leito
e só o rasto da dama os ocupa. que muito apalpará sem ter proveito.
22 Oh, bondade dos cavaleiros antigos! 25 Um ramo de árvore, de folhas mundo,
Eram rivais, eram de fé diferente, serviu-lhe para fazer a longa vara
e, de se infligirem cruéis castigos, com que tenteia o rio até ao fundo,
toda a pessoa os dois tinham dolente; sondando com denodo a água avara.
mas, por selvas, atalhos, desabrigas, Com a maior irritação do mundo,
juntos vão, sem que suspeita os atente. já muito em sua busca se obstinara,
Por quatro esporas o corcel picado, quando do rio se ergueu um cavaleiro
chega a um caminho em dois bifurcado. até à cinta, de aspecto altaneiro.
23 E, uma vez que não sabiam se uma 26 Estava, excepto a cabeça, todo armado,
ou outra via tomara a donzela e mostrava um elmo na destra mão:
(pois em ambas, sem diferença nenhuma, era o mesmo elmo que tão buscado
se via inda fresca a pegada dela) , foi por Ferraú tanto tempo, em vão.
tiraram à sorte, e em seguida ruma Falou a Ferraú em tom irado:
Rinaldo a esta, e o sarraceno àquela. - Ó marrano mentiroso, ó pagão!
Pelo bosque Ferraú muito girou, Por que deixar o elmo aqui não querias,
e, donde partira, outra vez voltou. se de tão longa data mo devias?
CANTO I 51
27 Lembra-te, pagão, que quando mataste 33 Foge por selvas medonhas e escuras,
de Angelica o irmão (que tal sou eu) , lugares desertos, ermos e selvagens.
após as outras armas me juraste De azinhos, faias, abetos, verduras,
que ao rio lançarias este chapéu. o sussurrar de frondes e folhagens
Se ora a Sorte (o que tu não realizaste) fizeram-na por montes e planuras
permite que se cumpra o gosto meu, errar, assustada, em estranhas viagens;
não te amofines; e se amofinares, se em monte ou vale alguma sombra via,
que seja por à promessa faltares. temia ser Rinaldo que a seguia.
28 Se desejo tiveres dum elmo fino, 34 Lembrava juvenil gamo ou gazela
tenta arranjar outro, e com mais honor; que, de entre os ramos do bosque natal,
como o que tem Orlando, o paladino, da mãe tenha visto apertar a goela
ou Rinaldo, talvez inda melhor: o leopardo, em abraço mortal;
um foi de Almonte 1 7 , o outro de Mambrino 1 8 • de selva em selva foge da esparrela,
Conquista um desses dois com teu valor; tremendo e receando sorte igual;
este, que já me devias por preito, e, a cada galho que passando toca,
farás bem em deixar-mo, com efeito. - da ímpia fera já se crê na boca.
29 Ao surgir-lhe o fantasma de improviso 35 Aquele dia e a noite, e mais meio,
da água, seu pêlo todo eriçou-se, cavalgou ao acaso, errando à toa.
e descolorido mostrou o viso; Por fim a um ameno bosque veio,
a voz, que era para sair, encravou-se. que uma leve e fresca brisa abençoa.
E Argalia 1 9 , que em tal sítio preciso De dois claros rios soa o gorjeio,
matara (Argalia identificou-se) , e erva tenra sempre o chão acolchoa.
ouvindo-o de falsa jura acusar, Por entre seixos fluem vagarosas
de ira e vergonha se sentiu corar. as águas, ao ouvido deleitosas.
30 Sem tempo ter para pensar noutra escusa, 36 Parecendo-lhe encontrar-se ali segura,
e bem sabendo que a verdade ouviu, de Rinaldo mil milhas já partida,
calado fica, resposta não usa; exausta de correr e da quentura,
mas tanto opróbrio o peito lhe oprimiu a repousar ali está decidida:
que ali jurou, pela vida de Lanfusa20 , desmonta, deixando a cavalgadura
outro elmo não querer ter, e decidiu pascer-se, já aliviada da brida;
que só lhe convinha o que em Aspramonte2 1 vagueia junto à água o palafrém,
Orlando arrebatara ao fero Almonte. que de erva tenra a margem plena tem.
31 E cumpriu melhor este juramento 37 Não longe, avista um frondoso maciço
que o outro que fizera a Argalia. de rosas vermelhas e pilriteiro:
Dali foi-se embora tão rabujento na margem do caudal colhe o seu viço,
que se mortificou mais do que um dia. oculto do sol por querco altaneiro;
O paladim buscar é seu intento, seu âmago, vazio como um cortiço,
por todo o lado onde que estava cria. dá abrigo discreto e prazenteiro.
Sorte diferente a Rinaldo tocou, Ramos e folhas são tão intricados
que vias diversas deste tomou. que interditam sol e olhares aguçados.
32 Não anda Rinaldo muito e dá fé 38 De tenras ervinhas o chão se cobre,
de que à frente salta o corcel feroz: chamando ao repouso quem aparece.
- Pára, Baiardo meu, detém o pé, Ali, a bela donzela se encobre,
que estar sem ti, para mim, é dano atroz! - depois deita-se e depressa adormece.
O corcel não dá ouvidos, e até Mas eis que resulta seu sono pobre,
mais se afasta, e cada vez mais veloz. pois sons de passos logo reconhece:
Rinaldo, irado, atrás o passo estuga; silente se ergue, e vê que um cavaleiro
sigamos nós Angelica na fuga. armado chegara junto ao ribeiro.
52 ORLANDO FURIOSO
78 Disto causa foi uma e outra fonte, 80 - Sou pois (disse o rei, melindrado assaz)
pois efeito vário tem seu licor; de vosso crédito tão pouco digno
nas Ardenas 37 ambas, quase defronte: que me achais inútil e incapaz
uma, a quem lhe beber enche de amor; de vos defender de homem tão maligno?
se a outra escolher, com amor não conte, Das batalhas de Albracca tão fugaz
que ela gelo fará do que era ardor. memória tendes, e quando, benigno,
Duma bebeu ele, e de amor palpita; em vossa defesa, só e desnudo,
ela à outra foi, e Rinaldo evita. contra Agricane e o resto fiz de escudo 38 ? -
79 Essa, que oculta poção adubou, 81 Não responde ela nem sabe o que faça,
que em ódio muda a amorosa ânsia, pois Rinaldo já bem perto aparece,
faz que a dama que Rinaldo avistou e de longe o sarraceno ameaça
no sereno olhar mostre repugnância; quando o cavalo vê e reconhece,
triste e em voz tremente, suplicou e o angélico semblante devassa
a Sacripante com veemente instância dessa que o coração de amor lhe aquece.
que mais perto o guerreiro não pretenda, O que entre os dois soberbos se passar
e que com ela a fuga ora empreenda. para o outro canto quero reservar.
NOTAS
�
1 6
Agramante: rei africano, filho de Troiano e neto de Ruggiero: guerreiro sarraceno, filho de Ruggiero II de
Agolante, é o comandante supremo das tropas sarracenas Risa (Reggio di Calabria) e de Galaciella, filha do rei
que atravessaram o mar Mediterrâneo para fazer guerra a Agolante. Apresentado como descendente de Heitor de
Carlos Magno. O exército africano desembarcou em Tróia e fundador da estirpe d'Este.
Tortosa, na Catalunha (junto à foz do Ebro), e dali mar
chou para França através dos Pirenéus (cf. Matteo Maria 7 Angelica: filha de Galafrone, rei do Catai. Bela e
Boiardo, Orlando Innamorato, Livro II, XXIX:23). esquiva, tem inúmeros pretendentes (entre os quais
Orlando e Rinaldo) , que trata com desprezo, tirando
2
Carlos, imperador romano: Carlos Magno (742-8 14), partido dos seus sentimentos quando lhe convém.
filho de Pepino, o Breve, rei dos Francos a partir de 768.
8
Foi coroado imperador do Ocidente, em Roma, pelo Índia: designava de modo genérico a Ásia meridional;
papa Leão III, no dia de Natal de 800. Rodeou-se de Média: correspondia à região a sul do mar Cáspio;
homens doutos que promoveram as ciências e as artes, Tartdria: era a região a ocidente do Catai (nome dado na
dando origem ao chamado Renascimento Carolíngio. Europa à China desde que Marco Polo a visitou, entre
1 275 e 1 292), e é hoje uma república da Federação Russa.
3 Orlando: herói principal das lendas carolíngias com
9
o nome de Roland, era um guerreiro severo e casto, pro Marsilio: rei sarraceno de Espanha, irmão de
tótipo ideal do cavaleiro cristão. Tombou na batalha de Galerana, mulher de Carlos Magno, de quem foi, ini
Roncesvalles (778) . Sobrinho de Carlos Magno por cialmente, aliado. Posteriormente, uniu-se a Agramante
parte da mãe, é o seu mais bravo paladino. No poema de para invadir a França.
Ariosto, como no Orlando Innamorato, aproxima-se
mais do tipo do cavaleiro errante do ciclo bretão, sujeito 10
Vésper a Eos: Vésper é a estrela da tarde, aliás, o pla
às paixões amorosas. neta Vénus, que surge no Ocidente e simboliza esse
ponto cardeal; Eos é a divindade que personifica a auro
4 A { .. } equivalente: aquela que quase me fez o mesmo ra e simboliza o Oriente.
(a amada do poeta, Alessandra Benucci) .
11
Duque da Baviera: Namo, duque da Baviera, amigo de
5 Hercúlea prole: o cardeal Ippolito d'Este ( 1 479- infância de Carlos Magno, era o seu mais fiável conselheiro.
1 520) , filho de Ercole I e irmão de Alfonso II, duque de
12
Ferrara. Ariosto estava ao seu serviço em 1 5 1 6, quando Pdreo: corrida a pé, ou a cavalo, em que duas pessoas par
publicou a primeira edição do poema, que lhe dedicou. tiam a par; o mesmo nome se dava ao prémio de tal corrida.
58 ORLANDO FURIOSO
13
Era [ . .} Montalvão: Rinaldo, primo de Orlando (cf. 26
Lírios de Ouro: elementos do brasão da França. Aqui,
8:2) , senhor do castelo de Montalvão (Montauban), e por antonomásia, a França.
também apaixonado por Angelica. Seu pai, Arnon,
27
duque de Dordonha, é irmão de Milon d'Anglant, pai de Galo: os Gauleses.
Orlando. Pelo nascimento, ambos descendem da casa de
28
Claramonte ( Clainnont). Diana [ . .} assome: Diana, deusa da caça, e Vénus,
deusa do amor, exemplos de aparições em cena, numa
14 Baiardo: cavalo já célebre na literatura cavaleiresca.
alusão às representações mitológicas, muito em voga nas
cortes no final do séc. XV, início do séc. XVI.
1 5 Ferraú: guerreiro sarraceno espanhol, sobrinho do
29
rei Marsilio, também apaixonado por Angelica. Sericano [ . .} nabateu: o vocábulo «sericano» designa
genericamente os povos orientais, isto é, da região da
16
Novo sol: Angelica. seda (latim sericum, t) ; os Nabaceus eram um povo de
origem árabe que se instalou no Noroeste da Arábia nos
17
A/monte: filho de Agolance e irmão de Galaciella, sécs. V-IV a. C. Pecra era a capital do reino, que atingiu o
por conseguinte, cio de Ruggiero. Foi morto em máximo esplendor no séc. I a. C. Foi subjugado pelos
Aspramonte por Orlando, que conservou o seu elmo e Romanos em 1 0 5 .
restantes armas.
18
3
° Cavaleiro de Anglante: Orlando, senhor do castelo de
Mambrino: inimigo de Carlos Magno morto por Anglante; na literatura francesa, seu pai era Milon
Rinaldo, que conservou o seu elmo como troféu. d'Anglanc.
19 31
A rgalia: irmão de Angelica, morto em duelo por Bradamante: filha de Amon, irmã de Rinaldo, e ena
Ferraú. Este prometera-lhe, na hora da morte, que atira morada de Ruggiero.
ria as suas armas ao rio, conservando o elmo apenas
32
alguns dias, após o que lhe daria o mesmo destino; mas Albracca: fortaleza situada perco do Catai, onde
não cumpriu. O fantasma de Argalia vem agora resgatar Angelica, então apaixonada por Rinaldo, cuidara pes
o elmo. soalmente de Baiardo.
20 33
Lanfosa: mãe de Ferraú. No tempo [ . .} desinteressado: os sentimentos entre
eles desencontraram-se, por terem bebido em fontes
21 Aspramonte: monte da Calábria (Itália) . Junto dele, diferences (cf. 77-78) .
Carlos Magno derrotou os Sarracenos comandados por
Agolante (morto ali por Orlando) ; batalha narrada no 34 Pica e tem atreito: esporear energicamente um cavalo e
poema francês Aspremont, e no italiano Aspramonte, de ao mesmo tempo apertar-lhe o freio firmemente é uma
Andrea da Barberino. técnica equestre comum para amansar um animal rebelde.
22
Senhor: Ariosro dirige-se ao cardeal Ippolito, a quem 35 Do seu [ . .} a sela: Angelica sai da garupa do cavalo e
a obra é dedicada. Fá-lo-á constantemente, ao longo do volta para a sela, antes ocupada por Sacripante (de cujo
poema, conservando assim vestígios do uso, ao tempo peso o animal fica aliviado).
ainda não de todo abandonado, dos cantores cavaleires
36
cos populares, que se dirigiam com frequência ao seu De Amon o filho: Rinaldo.
auditório.
37
Ardenas: meseta densamente arborizada que se esten
23
Mongibello: o Ecna. de pela Bélgica, França e Luxemburgo.
24 Circdssia: região russa a noroeste do Cáucaso, junto 38
Das batalhas [ . .} escudo: no Orlando Innamorato,
ao mar Negro. Agricane, rei da Tartária, assediara Angelica em Albracca
para a conquistar pela força, uma vez que ela desdenha
25 Sacripante: rei da Circássia. Amante fiel e infeliz de va o seu amor. Consegue penetrar na fortaleza com tre
Angelica, já a defendera no Oriente e seguiu-a até ao zentos cavaleiros; Sacripante, que convalescia de uma
Ocidente, para onde ela se deslocou em companhia de ferida, salta do leito conforme escava, mata os cavaleiros
Orlando. e obriga o rival à fuga.
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CANTO II
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Injustíssimo amor, por que é tão raro 4 - Estás a mentir ao chamar-me ladrão
fazeres corresponder nossas paixões? (disse o outro, não menos sobranceiro) ;
Por que razão, pérfido, te é tão caro os que a ti tal chamarem falarão
ver a discórdia entre dois corações? (pela fama que tens 1 ) em tom verdadeiro.
Não me levas ao rio tranquilo e claro, Provaremos aqui, com nossa acção,
só no mais fundo e mais escuro me pões: quem da dama e do corcel é herdeiro;
de quem quer meu amor, tu me desvias, mas quanto a ela, é o que disseste já:
e a amar quem me odeia me alicias. outra tão digna no mundo não há. -
2 Angelica a Rínaldo tornas bela, Como às vezes soem dois cães mordentes,
e ele a ela fazes feio e falace; por inveja ou outro ódio movidos,
quando o amava e belo era para ela, aproximar-se arreganhando os dentes,
odiava-a ele com o ódio mais tenace; com olhos turvos e incandescidos,
e, agora, em vão se aflige e se flagela. e depois se mordem, de raiva ardentes,
Desta arte foi igual o desenlace: rosnando, eriçados e entumecidos,
ela odeia-o, e o ódio é de tal sorte ofendem-se, e com espadas estão de fronte
que em vez de o ter preferia ter morte. o da Circássia e o de Claramonte.
3 Rínaldo ao sarraceno, desdenhoso, 6 Um a pé, outro a cavalo: faz tal
gritou: - Desce, ladrão, do meu cavalo! pensar que o sarraceno tem vantagem?
Tirarem-me o que é meu, deixar não ouso, Não tem nenhuma, pois ele assim vale
e a quem o quer faço caro pagá-lo; menos, talvez, do que um ingénuo pagem;
nem contigo a esta dama dou pouso: é que o corcel, de instinto natural,
deixar-ta, seria grande resvalo. não queria ao dono fazer vilanagem;
Corcel tão bom, dama de tal cariz, com mão ou esporas, não pode o circasso 2
com um ladrão julgo que não condiz. - fazer que ele dê a seu jeito um passo.
60 ORLANDO FURIOSO
7 Quando quer que avance, ele finca pé, 13 Pelos anos e o jejum debilitado,
e, se imóvel o quer, ele vai na mecha; um vagaroso jumento montava;
sob o peito a cabeça esconde até, parecia, mais que ninguém, ser dotado
as ancas empina e coices desfecha. de consciência escrupulosa e brava.
Mas vendo o sarraceno que não é Ao avistar o rosto delicado
a hora para domar da besta a pecha, da donzela que dele se aproximava,
as mãos firma no arção dianteiro, embora débil e pouco animosa,
e pelo esquerdo lado ao chão vai certeiro. toda se comoveu, de caridosa4 .
s Assim que o pagão, com ligeiro salto, 14 A dama ao fradeco pergunta a via
se livrou do obstinado Baiardo, por onde chegue a um porto de mar,
ali começou um bem digno assalto pois de abandonar França gostaria,
entre um par de campeões tão galhardo. para de Rinaldo nem ouvir falar.
Tinem um gládio e outro, baixo, alto: Bom conhecedor de necromancia,
de Vulcano o martelo era mais tardo não cessa o frade de lhe afiançar
na fúmea gruta, obrando na bigorna que em breve a liberta de todo o perigo;
os lampos de que Júpiter se adorna. e mão mete ao bornal que tem consigo.
9 Com golpes longos, curtos, e fingidos, 1s Tirou um livro que houve grande efeito:
mostram que mestres são daquele jogo; ainda nem uma folha tinha lido,
ei-los erectos, ei-los encolhidos, sai dele um espírito escudeiro feito,
eis que se cobrem ou se mostram logo; que de suas ordens é instruído.
recuam, ou avançam destemidos, Vai este, ao mágico poder sujeito,
golpes rebatem, ou dão desafogo, onde os cavaleiros duelo renhido
e em volta giram; e, onde um o pé tira, feras combatiam, com contumácia;
logo o outro prontamente o seu estira. e entre eles se mete com grande audácia.
10 Mas Rinaldo em peso, como um colosso, 16 - Diga-me um de vós (disse) , que eu escuto,
de espada em riste Sacripante investe; matarem-se um ao outro de que valha;
oferece-lhe este o escudo, feito de osso, qual é para vossas cuidanças o fruto
que temperada chapa de aço veste. quando terminardes esta batalha,
Trespassa-o Fusberta3 , conquanto grosso: se sem justar, o conde Orlando, astuto,
ressoa, gemendo pela selva agreste. nem da cota romper uma só malha,
A gelo se assemelham osso e aço, rumo a Paris acompanha a donzela
e fica ao sarraceno inerte o braço. por quem aqui lutais fátua procela?
11 Quando notou a tímida donzela
que o fera golpe causou tal ruína,
de temor mudou-se-lhe a face bela,
qual réu que a seu suplício se destina;
sente que ali não deve ficar, se ela
não quer de Rinaldo sofrer rapina;
desse Rinaldo que ela tanto odiava
quanto ele, a ela, desditoso amava.
12 Girando o cavalo, pela selva espessa
o lança, por estreita e íngreme via;
do branco rosto atrás girar não cessa,
parecendo-lhe que Rinaldo a seguia.
Um eremita que um vale atravessa
encontra, inda era há pouco fugidia:
as longas barbas cobriam-lhe o peito,
devoto e vetusto era o seu aspeito.
CANTO II 61
17 Uma milha atrás encontrei Orlando, 1s Havíeis de ter visto os dois turvar-se
que para Paris com Angelica ia, ao ouvir tal e, tristes e espantados,
rindo-se ambos de vós e motejando papalvos e cegos a si chamar-se,
porque debalde lutais à porfia. por serem pelo rival achincalhados;
Talvez mais vos conviesse ir procurando, e Rinaldo ao cavalo aproximar-se,
antes que se afastem, seguir-lhe a via; exalando suspiros inflamados;
se em Paris Orlando a consegue ter, e, de indignação e furor, jurar
não vo-la deixará jamais rever. - a Orlando o coração arrancar.
62 ORLANDO FURIOSO
19 Para onde o seu Baiardo espera passa, 25 E porque do rei de África batalha
monta-o, e só galopar o preocupa; e assédio espera, vai com ligeireza
nem ao que a pé está no bosque e ultrapassa buscando soldados e vitualha,
diz adeus, ou convida para a garupa. fossos cava e a muros dá firmeza.
O corcel fogoso investe e fracassa, Com presteza e azáfama agasalha
picado pelo dono, tudo o que entupa: tudo o que prevê lhe acresça a defesa:
não há fosso ou rio, nem rochedo ou espinho pensa a Inglaterra alguém enviar
que desvie o corredor do seu caminho. que gente traga para a tropa engrossar;
5
20 Que ora vos espante, senhor , não convinha, 26 pois quer regressar de novo à campanha,
se Rinaldo o corcel depressa pilha, voltar a tentar as sortes da guerra.
quando há já dias que atrás dele caminha Envia logo Rinaldo à Bretanha,
sem a mão poder deitar-lhe à presilha. a Bretanha depois dita Inglaterra.
Fez-se o corcel, que humano senso tinha, Ao paladim tal ida muito lanha:
não por birra seguir-se tanta milha, não é que tenha ódio àquela terra,
mas para guiar, para onde a dama ia, mas porque Carlos o manda a correr,
o seu senhor, que nomeá-la ouvia. sem ali parar um dia sequer.
21 Quando ela se escapou do pavilhão, 27 Nunca coisa fez tão contrariado,
Baiardo atenção lhe dava, matreiro, por não ser tal encargo de seu gosto:
sucedendo ter livre a sela então, assim de procurar lhe era vedado,
porque dela descera o cavaleiro girando ao acaso, o sereno rosto;
para combater a pé com um barão, porém, para que o rei fosse contentado,
que em armas como ele era ligeiro; ao caminho se fez que lhe era imposto;
à distância lhe foi seguindo os passos, a Calais em poucas horas chegou,
para a conduzir, do seu senhor, aos braços. e dali no mesmo dia embarcou.
22 Pretendendo levá-lo junto dela, 2s Ignorando os conselhos do barqueiro,
dele foi fugindo pela selva imensa; por ânsia do regresso que almejava,
deixá-lo não queria montar-lhe a sela, fez-se ao mar agitado e altaneiro,
para que a ir por outra estrada o não vença. que forte tempestade ameaçava.
Graças a si, Rinaldo, da donzela, Desprezo de tal modo sobranceiro
duas vezes em vão esteve em presença; ofendeu o Vento, que já soprava;
primeiro, Ferraú foi o estorvante, e o mar em volta com tal raiva ergueu
depois foi, como ouvistes, Sacripante. que até à gávea em água os embebeu.
23 No demónio que a Rinaldo mostrou 29 Descem os espertos homens do mar
da dama a pista de falso cariz, as velas grandes, querendo sem demora
também Baiardo, firme, acreditou, aos portos de onde partiram voltar,
e ao dono dá seus préstimos servis. pois de lá tinham largado em má hora.
De ira e amor aceso, o dono o lançou - Não posso (diz o Vento) tolerar
a toda a brida, direito a Paris; que com tanta ousadia vão embora -;
e de paixão tanto voa que lento e sopra e uiva e naufrágio ameaça,
lhe parece o cavalo e até o vento. e que, onde quer que vão, ele os rechaça.
24 Só de noite dá pausa àquele afã 30 Ora à popa ora à proa, às furtadelas,
que o leva em busca do senhor de Anglante: os fustiga, cada vez mais crescendo;
de tal modo creu na palavra vã para cá e para lá, com as curtas velas
do arauto do cauto necromante. vão girando e o alto mar percorrendo.
Cavalga sem parar tarde e manhã, Mas diversos fios em diversas telas
até ver aparecer Paris diante, mister me são, e urdir todos pretendo;
onde Carlos está, vencido, em apuros, Rinaldo deixo entregue ao seu afã
com as tropas que restam, entre muros. e torno a Bradamante, sua irmã.
CANTO II 63
60 Quando por fim a coisa se fez clara, 66 E deu tal desculpa que o da mensagem
disse: - Cavaleiro, dá-te repouso; pareceu ter ficado contente e quedo.
pode minha presença ser-te cara, Ela o corcel mandou seguir viagem
tornando-te este dia venturoso. com Pinabel, que já não pareceu ledo,
Andemos já para aquela estância avara pois percebeu ser esta da linhagem
que nos esconde tesouro fabuloso; que tanto odeia em público e em segredo;
vã não será esta nossa fadiga, as futuras quezílias já prevê
se a Fortuna não for minha inimiga. - se ela um rnogonciacense nele vê.
61 Responde ele: - Tu queres que atravesse 67 Aos de Mogúncia e Clararnonte ernpeça
de novo os montes e te mostre a via? um ódio antigo e inimizade intensa;
Que passos em vão dê não me aborrece, uns aos outros cortaram a cabeça,
tendo perdido tudo o mais que havia; e sangue verteram em cópia imensa;
mas tu, por tal caminho, até parece o iníquo conde a esse ódio regressa,
que prisão buscas; seja, todavia. e trair a incauta jovem pensa;
Não podes depois queixar-te de mim, ou, se a ocasião surgir primeiro,
pois te avisei e queres ir mesmo assim. deixá-la só, seguindo outro carreiro.
62 E dito isto monta o cavaleiro, 68 E tanto lhe ocupou a fantasia
pois da dama ser guia tem por sorte, o ódio ancestral, a dúvida, o medo
que por Ruggier risco de cativeiro que por desatenção mudou de via;
assim vai correr, ou até de morte. e encontrou-se num escuro arvoredo,
Nisto, chega a correr o mensageiro, em cujo centro um alto monte havia
que: - Espera, espera! - grita em voz bem forte. encimado por áspero fraguedo;
Era o mesmo que disse a Sacripante mas a filha do duque de Dordonha20
quem o estendeu na erva num instante. segue-o perto, e em afastar-se nem sonha.
63 O mensageiro notícias a ela 69 Quando o de Mogúncia se vê no bosco,
de Montpellier 1 7 e de Narbonne 1 8 traz: a abandonar a jovem não resiste.
que alçaram a bandeira de Castela, Disse: - Antes que o céu se faça mais fosco,
e Aigues-Mortes 1 9 não lhe ficou atrás; melhor será que um abrigo se aquiste.
e que Marselha na ausência dela, Por trás desse monte, se bem o tosco,
sem quem a guarde, teme sortes más; um belo castelo no vale existe.
e conselho lhe pede e sua ajuda Espera aqui, que do cimo quero ir perto,
por este correio, para que lhe acuda. para com meus olhos ver bem se estou certo. -
64 Esta cidade e as milhas que partilha, 70 Assim dizendo, à altura superna
que do Var ao Ródano praia são, do despido monte o cavalo enrista,
tinha o imperador doado à filha procurando achar urna via alterna,
do duque Arnon, por sua admiração; para fazê-la perder a sua pista.
pois seu valor com grande maravilha Eis que no monte encontra urna caverna,
contempla, se ela a arma tem na mão. que a trinta braças de fundo se avista.
Agora de Marselha, corno eu disse, Aberta a picão, a direito corta,
veio o arauto pedir que acudisse. e lá em baixo avista-se urna porta.
65 Entre sim e não a jovem hesita; 71 Alta e larga era a porta lá em baixo,
se quer ou não voltar, dúvidas tem: que para um mais amplo aposento dava;
ali, a honra e o dever a incita, corno se houvesse ali aceso facho,
aqui, o amoroso fogo a retém. saía esplendor da montanha cava.
Que Ruggier livrará, por fim cogita, Enquanto o traidor olha, cabisbaixo,
do sítio encantado em que se mantém; a dama, que de longe o acompanhava
ou, não bastando a tal sua bravura, (porque perder o seu rasto temia) ,
ao menos ficar com ele em clausura. já perto da caverna lhe surgia.
CANTO II 69
NOTAS
-&!lfi,:-
1 Pela [. . .] tens: nas canções de gesta, Rinaldo andava 1 1 Rodcnna: cidade de localização imprecisa; talvez
sempre desprovido de dinheiro, não hesitando em recor Rhodumna, a sul do Loire, identificada por Ptolomeu na
rer ao roubo e ao saque para colmatar essa carência. sua Geografia.
2 12
Circasso: circassiano. Estige: rio dos Infernos, que tornava invulnerável
tudo o que nele era mergulhado.
3 Fusberta: espada de Rinaldo.
13
4 Embora [. . .] caridosa: a consciência, irónicamente. Em [. . .] morre: vai-lhe parar às mãos.
14
5 Senhor: Ariosto dirige-se ao cardeal Ippolito (cf. nota Sericanos: cf. nota a 1: 55:4.
a 1:40:2) . 1 5 Àquela hora [. . .] descolora: Ariosto reproduz uma das
6 Beatrice: Beatrice di Baviera, mulher de Amon, mãe passagens mais poéticas da Eneida (Vl:271 -272) .
de Rinaldo e Bradamante. 16
Mogonciacense, ou mogoncíaco: da cidade de
7 Um cavaleiro: Ruggiero. Os amores de Ruggiero e Mogoncíaco ou Mogôncia, acrual Mainz ou Mogúncia,
na Alemanha.
Bradamante têm breve início no Orlando lnnamorato.
Conhecem-se, acompanham-se durante um percurso em 17
Montpellier: cidade do Sul de França, capital da
que contam um ao outro as suas histórias, descobrem os região de Languedoc-Roussillon.
rostos e apaixonam-se, mas logo o destino os separa.
18
8 Narbonne: cidade do Sul de França, na costa medi
Desditosa filha de Agolante: Galaciella, mãe de
terrânica, a sudoeste de Montpellier.
Ruggiero. Casou com Ruggiero II de Risa contra a von
tade da família, e por isso foi banida. 19
Aigues-Mortes: cidade francesa situada junto ao delta
9 do Ródano, na zona da Camargue.
O da Circdssia [. . .] abalroara: Sacripante, que
Bradamante derrubou da sela. 20
Duque de Dordonha: Amon, pai de Bradamante.
10
Onde [. .. ]frontal: onde Carlos Magno ànha as tropas,
no sopé dos Pirenéus, para interceptar o exército do rei
Marsilio quando este descesse os montes, vindo de Espanha.
-.
CANTO III
�
16 Mal Bradamante entrou naquela cela 17 O sangue antigo que de Tróia vindo,
e na secreta gruta penetrou, pelas duas melhores vias em ti misto9 ,
do mortal corpo o espírito que vela a suprema jóia irá produzindo,
com voz claríssima pronunciou: de entre as linhagens que o Sol haja visto
- Ó casta e nobilíssima donzela, do Nilo ao Danúbio, do Tejo ao Indo,
tua vida a Fortuna bafejou; e o que entre Antárctico e Arctico avisto.
teu seio abrigará germe fecundo Na tua linhagem terão honores
que a Itália honrará e todo o mundo. marqueses, duques e imperadores.
74 ORLANDO FURIOSO
32 Obizzo, Folco, Azzo e Ugo outros há; 38 Vê Rinaldo43 , que resplendor não tole
Enrico pai e filho olha entretanto; ao valor da raça, a não ser que seja,
Guelfos são dois: um a Úmbria terá, por tanta exaltação da tua prole,
e também de Spoleto o ducal manto 30 • ou Morte ou Fortuna capaz de inveja.
Eis quem o sangue e as feridas secará Que Nápoles da dor o eco evole,
de Itália, convertendo em riso o pranto; quando refém por seu pai ali esteja44 .
deste falo (e aponta-lhe Azzo quinto 3 1 ) , Eis Obizzo, que, jovem e fagueiro,
que Ezzelino fará cativo e extinto. deverá ser de seu avô herdeiro45 •
32
33 Ezzelino, o implacável tirano 39 Junta a seu domínio, para o ver maior,
que foi tido por filho do demónio, Reggio alegre e Modena feroz46 •
causará a seus súbditos tal dano, Tal valor terá que para seu senhor
e destruição do país ausónio 33 , o chamarão os povos, a uma voz.
que piedosos são, postos no seu plano, Vê Azzo sexto, o filho: com honor,
Mário, Sila, Nero, Caio e António 34. ao pendão da cruz cristã dará prós;
Federico segundo, imperador, dá-lhe o ducado de Andria em partilha
terá neste Azzo o seu vencedor. Carlos da Sicília, com sua filha.
34 Este reinará com mais feliz ceptro 4o Acolá a excelência em grau supino
a bela terra à beira do rio 35 , de príncipes ilustres se condensa:
onde Febo carpiu com triste plectro Nicolà coxo, Obizzo, Aldobrandino,
o filho, que o carro mal conduziu36 , e de Alberto, tão clemente, a presença.
e o mítico âmbar se chorou, tetro, Para não te deter muito, não te ensino
e Cicno de alvas plumas se vestiu37 ; como a seu reino acrescerão Faenza47 ,
e aquela, de muitas obras mercê, e, por mais tempo, Adria, que nomeia
lhe será dada pela Santa Sé38 • o mar rebelde que o país ladeia48 ;
35 Que direi do irmão, Aldobrandino 39 ? 41 e essa terra que, por ser rica em rosas,
Que para o pontífice defender, belo nome mereceu de gregas vozes49 ,
de Otão quarto e do bando gibelino, e a outra que, no meio das piscosas
ao Capitólio pronto há-de acorrer, águas, teme do Pó ambas as fozes 50 ,
tudo em redor tomando, de contínuo, e onde habitam gentes desejosas
e em Umbros e Picenos40 freio ter; de mar alteroso e ventos atrozes 5 1 •
como para os ajudar não terá tença, Calo de Argenta, Lugo e mais aldeias
forçoso será que a peça a Florença; e vilas, de população tão cheias.
36 não tendo jóia ou valor que se veja, 42 Vê Nicolà 52 , que ainda juvenil,
como garante dará seu irmão4 1 • o povo quer senhor da sua terra,
O seu vitorioso pendão adeja, e anula a ideia de Tideu53 hostil,
por vencer o exército alemão; o qual contra ele as armas aferra.
o trono há-de devolver à Igreja, Há-de ser deste a diversão pueril
dando aos de Celano fustigação; treinar-se nas armas e para a guerra;
mas, ao serviço do sumo Pastor, e dos estudos desses tempos primeiros
findará sua vida ainda em flor. sairá a fina-flor dos guerreiros 54 •
37 Será Azzo, seu irmão, que herdará 43 Dos seus rebeldes por ele será roto
o domínio de Ancona e de Pisauro, o fito, que lhes tornará em dano;
das cidades que desde o Tronto há, usará de estratagema tão noto
do Apenino ao mar, até ao lsauro42 ; que difícil será fazer-lhe engano.
grandeza de espírito e fé terá, Tarde se aperceberá Terzo Oto 55 ,
e maior valor que gemas ou lauro: de Reggio e de Parma cruel tirano,
pois doutros bens a Fortuna é senhora; por ele despojado duma só vez
só a virtude seu poder ignora. do poder e duma vida soez.
78 ORLANDO FURIOSO
44 O bom reino há-de ser sempre crescente, 50 mas porque lhes dará ínclita prole:
sem tirar pé do caminho direito; Alfonso justo e Ippolito 65 benigno,
nem nunca a ninguém dará acidente, modelo dos quais os filhos de escol
se dele antes não receber despeito; de Tíndaro e do cisne é deles digno:
o Grande Motor56 por tal está contente cada um à vez se priva do sol,
e não o tem a limite sujeito: para seu irmão poupar ao ar maligno.
mas que dure e que prospere é mister, Será cada um deles assaz forte
enquanto em esferas o céu se mover. para o irmão salvar, com sua morte66 •
45 Vê Leonello 57 , e o duque primeiro, 51 O grande afecto deste belo par
o ínclito Borso, que foi capaz fará sentir o povo mais seguro
de, em paz ficando quedo, ser obreiro que se Vulcano duplo anel forjar
de mais triunfos que um qualquer pugnaz. de ferro, e dele lhes cercar o muro.
Marte encerrará em escuro telheiro, Alfonso, ao seu saber, tão exemplar
e as mãos ao Furor atará58 , tenaz. bondade acrescerá que, no futuro,
O intento deste príncipe perfeito j ulgar-se-á que do céu regrediu
é que seu povo viva satisfeito. Astreia67 , para onde há gelo e estio68 •
46 Ercole 59 chega, que em rosto lançou 52 Muito lhe valerá o ser prudente,
ao vizinho 60 , enquanto vai manquejando, e no valor ao pai assemelhado;
que as tropas em dispersão lhe salvou pois o assaltarão, falto de gente,
em Budrio, seu peito e cara dando, as legiões venezianas dum lado,
não sendo guerra a paga que esperou, e de outro aquela69 que de justamente
e que o seguisse até Barco o seu bando. madrasta ou mãe chamar tenho hesitado;
Não saberei dizer, deste senhor, se mãe, é como Procne tão ruim
se em guerra ou paz honra terá maior. e Medeia7° , que aos filhos deram fim.
47 Calabreses e Lucanos terão, 53 Dia ou noite, quantas vezes sairá
e os Apulianos, dele memória, com seu povo fiel da sua terra;
por o terem visto ao rei catalão que memoráveis derrotas dará
ganhar, em duelo, a primeira glória6 1 ; aos inimigos, por mar e por terra.
o título de invicto capitão A Romagna, imprevidente, fará
conquistará, com mais de uma vitória; aos vizinhos, outrora amigos, guerra,
à senhoria já tinha direito 62 do seu sangue se tingirá o solo
trinta anos antes, quando foi eleito. entre o Pó, o Santerno e o Zanniolo7 1 •
48 Toda a mercê que uma terra dar possa . 54 Nos mesmos confins há-de comprová-lo
a um príncipe lhe será devida; do Papa o mercenário castelhão,
não porque da palude a desempossa, que lhe tomará com pouco intervalo
e em campo fértil é enriquecida; a Bastia, matando o castelão72
não porque na sua área a engrossa depois de, infractor, aprisioná-lo;
e de muralhas a faz protegida, não restará soldado ou capitão
por templos e palácios ter erguido, que da reconquista e morte geral
e praças e teatros construído; possa levar até Roma sinal.
49 e não porque das garras do audaz 55 Será este, com senso e corri. a lança,
Leão Alado63 lhe dará defesa, que honra terá, nos campos da Romagna,
ou quando a face gaulesa, falaz, de ter dado ao exército de França
houver de fogo toda a Itália acesa, vitória contra Júlio e contra a Espanha73 •
neutral estará, com o seu estado em paz, Submersos os corcéis até à pança,
de temores e de tributos ilesa64 ; em sangue humano nadam pela campanha;
não só por estas obras benfeitoras para os mortos enterrar não bastarão
lhe serão suas gentes devedoras, franco, hispano, grego, ítalo e alemão.
CANTO III 79
NOTAS
�
1 Meu senhor: Ippolito d'Este. 13 Sangue de Ponthieu: o sangue dos senhores do caste
lo de Ponthieu (lugar de localização incerta) , isto é, da
2
Febo: Apolo, invocado como divindade solar (ilus casa de Mogúncia, por quem Ruggiero virá a ser morto.
tres - verbo ilustrar, do latim illustrare, iluminar) e tam
14 Sumo Império: Carlos Magno dar-lhe-á o domínio
bém como deus da poesia.
daqueles dois castelos do Véneto, como recompensa pela
3
Mais [. . .} guardou: a casa d'Este teve as suas origens sua vitória sobre os Longobardos. Do primeiro deles
no séc. XI, mas Ariosto, ao associá-las a Ruggiero e deriva o nome da casa d'Este.
Bradamante, e com ascendente em Heitor, fá-la remon
tar aos Troianos. 1 5 Uberto: personagem imaginário. A genealogia da
família d'Este apresentada por Ariosto é, em parte, fan
4 Gigantescos furores: luta entre Zeus, apoiado pelos tasiada, inexacta ou incerta.
deuses olímpicos, e os Titãs, que tinham tomado o poder
no Olimpo. 16 Pais hespério: a Itália, desi ada Hespéria pelos G os, por
gn reg
lhes ficar a ocidente. Héspero, na mitologia grega, é o génio da
5 Pedra: A escultura como metáfora da história da Estrela da Tarde (planeta Vénus), que simboliza o Ocidente.
família d'Este, que Ariosto se propõe «esculpir».
17 Ugo: personagem histórico. Foi marquês e conde de
6 Uma dama: a maga Melissa, mas Ariosto só desven Milão ( 1 02 1) .
dará o seu nome em VII:66:6.
18
Pendão das serpentes: alusão à serpente do antigo bra
7
Merlim: personagem lendária do Ciclo Bretão a são dos Visconti, que foi depois símbolo de Milão.
quem é atribuída a instituição da Távola Redonda, e
19
que apoiava a resistência do rei Artur contra os Saxões. Azzo: personagem histórico. Alberto Azzo 1.
Em inícios do séc. xiii a sua lenda inseriu-se na do Santo
20
Graal. O mago Merlim construiu uma arca onde o seu fnsubres: antigos habitantes da região da Lombardia,
corpo e o da sua amada, a fada Viviana - irmã da fada no Norte de Itália.
Morgana - , se conservariam invioláveis até ao dia do
21
juízo final, pois uma va. encerrada ninguém a poderia Albertazzo: Alberto Azzo II (996- 1 097) , considerado
abrir. Conhecedora dessa magia, Viviana (a Dama do o verdadeiro fundador da casa d'Este, pois foi o primei
Lago) , que o não amava, persuadiu-o a entrar na arca e ro a habitar o castelo de onde lhe veio o nome. Era filho
encerrou-o nela para sempre. Do seu interior, Merlim de Alberto Azzo 1.
passou a prever o futuro dos que o vinham interrogar.
22
A outro alvitrou: Ariosto supõe que ele teria sugerido
8
Corvo ou pomba: pecador proscrito ou alma cândida. a Otão i, rei da Germânia, que descesse à península itá
lica para derrotar Berengario pai e Berengario filho,
9 Em ti misto: pelo matrimónio de Bradamante e livrando deles a Itália.
Ruggiero dava-se a união dos dois melhores ramos de
descendência de Heitor, pois ambos provinham de 23 De um Berengario e outro: Berengario I reinou desde 888
Asdanax, filho de Heitor e Andrómaca. e foi coroado imperador do Ocidente em 9 1 5. Foi assassina
do em 924. Berengario II foi rei de 950 a 963. Foi destrona
10
NiÚJ [. . .} Indo: cada um dos rios representa um do por Otão I, que o manteve na prisão até à morre (966).
ponto cardeal (Ocidente e Oriente) .
24 A mão lhe der: fantasia de Ariosto. Na realidade,
1 1 Augusto (63 a. C.- 1 4 d. C.) , imperador: com ele Alberto Azzo II casou com uma irmã de Guelfo III da
teve início a era dos imperadores romanos; Numa: Baviera, de quem teve dois filhos: Polco e Guelfo.
Numa Pompílio (c. 7 1 5-c. 672 a. C.) , o segundo dos
primeiros sete reis de Roma. Segundo a lenda, sucedeu 25 Outro Ugo: filho ilegítimo de Alberto Azzo III. As
a Rómulo. empresas que aqui lhe são atribuídas (aos Romanos o alto
orgulho fere) são imaginadas.
12
Espíritos [. . .] rostos: Melissa, servindo-se dos espíritos
que invocou, vai fazer desfilar perante Bradamante os 26 Polco: marquês d'Este, filho de Alberto Azzo II.
s.eus mais notáveis descendentes (da casa d'Este) , à seme Polco não foi para a Germânia, mas sim seu irmão
lhança do que sucede com Eneias quando visita o Guelfo; este, como duque da Baviera, deu continuidade
Averno em companhia da Sibila de Cumas, onde o seu àquela casa, que estava sem descendência.
falecido pai, Anquises, faz desfilar perante ele os seus
descendentes, personagens da história de Roma 27 De Azzo [. . .} Albertazzo: personagens e factos não
(Vergílio, Eneida, Vl:752 ss.). reconhecidos historicamente.
CANTO III 83
59 71
Ercole: Ercole I, filho legítimo de Niccolo III, sucedeu Pó [. .. } Zanniolo: rios que delimitam o campo em
a Borso em 1 47 1 . Ariosto nasceu durante o seu reinado. que Alfonso I derrotou ( 1 5 1 1) os da Romagna (outrora
amigos), que lutavam ao lado do Papa, junto à fortaleza
60 Em rosto [. . .} vizinho: lançou em rosto aos de Baseia.
Venezianos (o vizinho) a sua ingratidão. Depois de
Ercole lhes ter evitado a derrota numa batalha perto de 72 Matando o castelão: ainda em 1 5 1 1 , e no mesmo
Budrio, em que foi ferido e ficou coxo, não tiveram pejo local, o exército mercenário espanhol a soldo do Papa
em atacá-lo e persegui-lo até Barco, perto de Ferrara, em tomou a fortaleza de Baseia e matou o comandante.
1 492. Alfonso I reconquistou o forte e mandou matar todos os
ocupantes, como represália.
61
Cal.abreses [. . .} glória: na juventude, Ercole I militou
sob o comando de Alfonso I de Nápoles, rei de Castela 73 Vitória [. . .} Espanha: batalha de Ravenna ( 1 5 1 2). Os
e Aragão, e ali travou um duelo. Franceses, ajudados por Alfonso i, venceram o exército
do papa Júlio II e dos Espanhóis.
62 À senhoria já tinha direito: sendo filho legítimo de
Niccolo III, devia ter-lhe sucedido e assumido o poder 74 Como à de Augusto: tal como Augusto teve, na sua
trinta anos antes, tantos quantos governaram Leonello época, Vergílio (de seu nome Públio Vergílio Marão),
(nove) e Borso (vinte e um), filhos naturais de seu pai. Ippolito terá Andrea Marone (Marão), poeta improvisa
dor da corte do cardeal.
63 Leão AI.ado: símbolo de Veneza.
75 Quinze [. . .} cativas: espólio de navios apreendido aos
64 Face [. .. } ilesa: manterá Ferrara neutral, por conse Venezianos por Ippolito, após a vitória na batalha de
guinte em paz e livre de tributos, quando Carlos VIII de Polesella.
França (face gaulesa) invadir a Itália.
76 Dois Sigismondi: um irmão e um filho de Ercole I.
65
A/fonso justo e Ippolito: filhos de Ercole I. Alfonso I
77 Genro [. . . } segundo: Ercole li casou com Renata de
governa Ferrara quando Ariosto publica o seu poema,
que dedica ao cardeal Ippolito, a cujo serviço se encontra. França, sendo, portanto, genro de Luís xii.
66 Modelo [. .. } morte: serão tão amigos como os gémeos 78 Ippolito: cardeal, tal como seu tio.
Castor e Pólux, filhos de Leda. Zeus, sob a forma de
cisne, uniu-se a Leda e fecundou-lhe um ovo; na mesma 79 O terceiro: terceiro filho legítimo de Alfonso I e
noite, Tíndaro, seu marido, fecundou-lhe outro ovo. Por Lucrezia Borgia.
isso, Castor é mortal e Pólux imortal. Quando Castor
80
morreu numa luta, Pólux recusou-se a ficar no Olimpo, Alfonsi [. .. } dois: filhos naturais de Alfonso I e de
por seu irmão estar nos Infernos. Então, Zeus permitiu Laura Dianti (Alfonso e Alfonsino).
que os irmãos ficassem no Olimpo, entre os deuses, em
81
dias alternados (cada um [. .. } sol) . Quem [. . .} triste: Ferrante e Giulio, irmãos de
Alfonso e Ippolito d'Este. Conspiraram contra os irmãos
67 Astreia: na Idade do Ouro, espalhava entre os e foram condenados à morte, sendo a pena mais tarde
homens virtude e justiça. Quando o mal se espalhou convertida em prisão perpétua.
pelo mundo, Astreia voltou para o céu, onde se tornou a
82
constelação da Virgem. Pai.as [Atena} ou Marte: deuses da .guerra.
68 Para [. . .} estio: para a Terra (onde se alternam as esta 83 Roubado [. . .} definha: Brunello, seguindo ordens
ções) . de Agramante, roubou a Angelica, no Oriente, o anel
que tem a propriedade de tornar invisível quem o
69
Aquel.a: a Igreja, sobretudo Júlio II, que se aliou aos meter na boca, e de dar imunidade contra todos os fei
Venezianos contra Ferrara. Por isso, com justiça, não tiços a quem o tenha no dedo. Agora, Agramante man
sabe se lhe deve madrasta ou mãe chamar. dou Brunello libertar Ruggiero do castelo do mago,
com a ajuda do anel, pois quere-o a combater no seu
70
Procne [. . . } Medeia: cruéis mães mitológicas, que exército.
mataram os próprios filhos.
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CANTO IV
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5 Grandes tinha as asas de tom brejeiro; 11 De monte em monte e dum a outro bosco,
de armadura tersa e resplandecente, dos Pirenéus foram a alturas tais
sentava-se entre elas um cavaleiro donde se vê, quando o ar não está fosco,
que ao corcel dera o rumo do poente. França e Espanha e opostos areais 1 ,
Aos montes baixou, e o estalajadeiro tal do Apenino o mar eslavo e o tosco2 ,
disse e bem falou, pois estava ciente, junto a Camaldoli, nos dão sinais.
que ele era um necromante, e que fazia, Dali, por rude e áspera galeria,
ao largo ou perto, aquela travessia. a um profundo vale se descia.
6 Voando, vai por vezes às estrelas, 1 2 Ao centro um monte tem, cuja eminência
outras vezes a terra quase rasa; é por muralha de aço rodeada;
levando consigo todas as belas ao céu ascende com tal evidência
damas que encontra e que levar lhe apraza; que tudo o mais em volta não é nada.
a ponto das infelizes donzelas, Subi-lo, vã seria a diligência
a quem falta beleza ou extravasa a quem asas não tem para a arrancada.
(pois todas elas lhe servem para o rol), Disse Brunel: - Eis onde prisioneiros
não ousarem mostrar-se à luz do Sol. do mago estão damas e cavaleiros.
7 - Ele tem nos Pirenéus um castelo 13 Quadrangular era, e aparentava
(contava o homem) feito por encanto; a fio de prumo ter sido talhado.
é todo em aço, e tão luzente e belo Atalho ou escada ali não se avistava
que outro não pode haver sedutor tanto. que acesso permitisse, em nenhum lado.
Para ali cavaleiros levou com zelo, Que ninho era ou covil assemelhava,
e que nenhum de lá regresse é espanto; mas próprio só dum animal alado.
o que me faz temer pela sua sorte: Aqui a dama a hora vê chegar
que ele lhes dê cativeiro ou a morte. - de ter o anel, e de Brunel matar.
s Alegra-se ela com o que ouve àquele, 14 Mas acha acto vil ensanguentar-se
pensando que fará, e faz por certo, por homem desarmado e tão abjecto;
tão milagrosa prova com o anel pois pode muito bem apoderar-se
que ficará mago e fortim deserto; do rico anel sem dar-lhe tal decreto.
e diz-lhe: - Arranja-me um dos teus, fiel, Brunello não pensava em resguardar-se:
que o caminho conheça até lá perto; fácil foi amarrá-lo, e tê-lo quieto,
não posso esperar, a ideia afago a um abeto forte e altaneiro;
de travar batalha contra aquele mago. - mas do dedo o anel lhe tirou primeiro.
9 Brunello diz: - Não te faltará guia; 1 5 Às lágrimas, gemidos e lamentos
tenho esboço da estrada, e coisas mais, de Brunello ela ficou indiferente.
que útil te farão minha companhia. - A montanha desceu a passos lentos,
Referindo-se àquelas coisas tais, até ao plaino que há do monte em frente,
ao anel, que não mostrou, aludia; e o corno sopra com fitos intentos
mas por cautela não lhe disse quais. de que à batalha o mago se apresente;
- Grato me é (diz ela) o consórcio teu -, após o toque, em rude gritaria
crente de que assim o anel fará seu. chama-o ao campo e à luta o desafia.
10 O essencial disse, e aquilo ocultou 16 Não demorou muito a sair da porta
que não podia ouvir o sarracino. o feiticeiro, que ouviu corno e voz.
O estalajadeiro um corcel mostrou, O alado corcel pelo ar o transporta
bom para a luta e para a levar ao destino; contra a que lhe parece homem feroz.
comprou-lho e partiu quando clareou A princípio a dama pouco se importa,
do dia seguinte o ar matutino. pois inerme parece o homem veloz:
Num vale entraram, e Brunello adiante lança não usa, nem espada, nem maça,
ou atrás seguia, nunca distante. que fure ou que quebre a sua couraça.
CANTO IV 87
55 Boa recepção monges e abade 56 Dizem-lhe que, errando pelos bosques escuros,
deram a Rinaldo, que perguntou poderia encontrar muitos acasos;
(não antes de servir-se à saciedade os quais, · como os lugares, são obscuros,
de acepipes vários que ali achou) pouca notícia havendo desses casos.
como é que sempre a sua sociedade - Procura achar (ouviu) aqueles furos
aventuras mil ali encontrou, que de teus feitos não façam ocasos,
por forma a provar, com acção de peso, para que depois do perigo e da fadiga
se um homem merece glória ou desprezo. venha a fama e o que for devido diga.
CANTO IV 93
NOTAS
�
1
França [ . .} areais: ponto dos Pirenéus de onde, com que lhe deu o actual nome (O. Innamorato, L0 • II,
o ar límpido, se avista França e Espanha e as costas do XVl :56).
Mediterrâneo e do Atlântico.
11
Gerifolte: ave de rapina usada para caçar, à qual se
2
Mar es/,a vo e o tosco (toscano) : o Adriático e o Tirreno, descobria a cabeça (tira o caparão) no instante em que
que se avistam do monte Falterona ( 1 654 m), nos devia ver a presa e atirar-se a ela.
Apeninos, não longe do mosteiro de Camaldoli.
12
Ganimedes: jovem adolescente pertencente à estirpe
3
Grifo (ou grifa) : garra. real de Tróia. Por ser muito belo, foi cobiçado por Zeus,
que o raptou e levou para o Olimpo.
4 Hipogrifa: animal fabuloso, nascido do cruzamento de
13
uma égua com um grifo. Os elementos da constituição do A direcção [ . .} encerra: para ocidente, sobre o Atlântico,
animal encontram-se em Vergílio (Éclogas, VIIl:27), e em seguindo a latitude do trópico de Câncer.
Ovídio (Metamo,foses, VI:713 e IV:785-786).
14 Untada: bem revestida de pez, e, po; isso, bem veda
5 Montes Rifeus: montes fabulosos da Cítia (cf. Os da e deslizante.
Lusíadas, IIl:7:3).
15
Contra as Ursas: para norte.
6 Cristão [ . .] deve: Ruggiero será morto sete anos
16 Tristão [ . .} Galvão: alguns dos «cavaleiros da távola
depois de se ter convertido ao cristianismo (cf. XLI:6 1 ) .
-redonda», figuras lendárias do ciclo da Bretanha, cujas aven
7 Atlante: mago que criou Ruggiero e o amava como a turas constituem o tema da novela de cavalaria A Demanda
um filho; queria a todo o custo protegê-lo do augúrio de do Santo Graal.
morte prematura.
17 Berwick: Berwick-upon-Tweed, na costa leste da Grã
8 Prasildo [ . . } verdadeiro: Prasildo e Iroldo já no Bretanha, junto à fronteira entre a Inglaterra e a Escócia.
O. Innamorato eram apresentados como modelo de ami
18
zade. Colunas de Hércules: nome dado na Antiguidade aos
montes que ladeiam o estreito de Gibraltar. Segundo a
9
Ferida: ao tirar o elmo para deixar que Ruggiero lhe mitologia, Hércules separou-os, para criar uma passagem
visse o rosto, Bradamante foi ferida por um sarraceno. do Mediterrâneo para o Atlântico. Representavam o limi
te ocidental do mundo.
10
Frontino: pertenceu a Sacripante com o nome de
Frontalatte; Brunello roubou-lho e ofereceu-o aRuggiero, 1 9 Indo: rio Indo, como limite oriental do mundo.
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CANTO V
�
Desses deviam ser os dois ladrões 10 pois tantas vezes ali o fiz vir
que Rinaldo escorraçou da donzela; quanta ocasião Ginevra me deu,
ao vale escuro a levaram, vilões, que de leito mudava para fugir
para que encoberta ficasse a esparrela. do calor ou do frio no apogeu.
Deixei-vos eu quando ia as razões Nunca ninguém o viu ali subir;
transmitir da iníqua sorte dela ter discreta entrada favoreceu
ao paladino, que foi seu amigo; só casas em ruínas ter em frente,
prosseguindo a história, disso vos digo. e dia ou noite lá não passar gente.
Começou ela: - Escuta minhas penas; 11 Muitos dias e meses protegi,
a maior crueldade, e inaudita, secreto entre nós, o amoroso jogo;
que nem em Tebas, Argos ou Micenas2 , o amor cresceu, e tanto nele ardi
ou em mais atroz lugar foi prescrita. que dentro em mim queimava como fogo;
E, se o Sol, ao volver suas melenas, cega fiquei, e não compreendi
este lugar menos que outros visita, que muito amor fingia por arrogo,
é porque aqui de má vontade vem, embora daquele enganoso o ardil
por de tão cruel gente ter desdém. fosse fácil de ver em sinais mil.
6 Que o homem para o inimigo é cruel, 12 Dias depois disse-se apaixonado
muitos exemplos temos, e ancianos; por Ginevra. E se isso então principiava
mas a morte dar a quem te é fiel, ignoro, ou se já antes, disfarçado
fazem-no seres iníquos e insanos. de a mim amar, por ela suspirava.
Para que melhor o caso te desvele, Vê como é arrogante esse malvado:
que levou estes a meus verdes anos sabendo que em meu coração reinava,
querer colher, contra toda a razão, tal me contou, e, sem qualquer pudor,
do início te faço a narração. pediu-me ajuda neste novo amor.
7 Quero que saibas, senhor meu, que, sendo 13 Dizia-me que igual ao meu não era,
eu criança ainda, ao serviço entrei nem seus amores por ela eram reais;
da filha do rei, com quem fui crescendo: mas que, simulando a paixão, quisera
posto elevado na corte alcancei. celebrar legítimos esponsais.
O Amor, a minha sorte apetecendo, O acordo do rei teria, assevera,
tal fez que sua sequaz me tornei; desde que dela tivesse os avais,
de entre os cavaleiros que conheci, pois em nobreza e posses se gabava
achei mais belo o duque de Albany. que só o rei, no reino, o superava.
Mostrando ele a amar-me estar disposto,
eu o amei com todo o coração.
Bem se ouve o falar e se vê o rosto;
do que o peito encerra não há visão.
Crendo e amando, satisfiz meu gosto:
no leito o aceitei, sem dar atenção
que entre as reais câmaras era aquela
a mais secreta de Ginevra bela;
9 onde ela guardava o que mais estimava,
e onde quase sempre também dormia.
Ali, por um balcão mui bem se entrava,
que a descoberto para a rua se abria.
Por ele o meu amado a mim chegava,
e a escada de corda que ele subia
eu mesma da varanda lhe atirei,
sempre que em meus braços o desejei;
CANTO V 97
24 E não tanto por prazer o cobiço 30 Então por que não tens por mim respeito,
quanto por querer vencer este despeito; pela nossa amizade, no dizer teu,
mas não tendo, em verdade, esse derriço, que devo, e que teria com efeito,
já só de imaginá-lo me aproveito. se fosses tu, não eu, o amado seu?
Quando me receberes no passadiço, Não menos que tu para mulher a espreito,
e que Ginevra nua no seu leito apesar de mais rico seres do que eu;
se encontre, tomarás todas as vestes não menos que tu sei que ao rei agrado,
que ela despiu; e com elas te vestes. e mais do que tu sou pela filha amado».
25 No penteado e ornamentação 3 1 «Oh (disse-lhe o duque) , que grande engano
tenta imitá-la, e, o mais que poderás, em que teu amor louco te induziu!
parecer ser ela; e depois ao balcão Como eu, pensas ser dela soberano,
irás, de onde a escada me atirarás. mas os factos dirão quem se iludiu.
Acima irei, na imaginação Do que entre vós se passa faz-me o plano,
que aquela és, cujas vestes terás. que eu todo o meu segredo te desfio;
Espero que assim, a mim mesmo enganando, e aquele que de nós lesado se veja,
vá meu desejo em breve atenuando». que desista, e que de outra se proveja.
2 6 Assim disse. E eu, que fora de mim 32 Pronto estarei, se quiseres que te jure
andava, e como que dali ausente, que ao que contares fecharei bedelho,
nem vi que aquele pedido tão ruim mas quero que tua voz me assegure
era uma fraude4 , e até muito evidente; que o que te conto guardas até velho».
e com as vestes de Ginevra, enfim, Para que entre os dois o pacto se conjure,
a escada lhe atirei frequentemente; vão a mão pousar sobre o Evangelho.
e só compreendi o seu engano Juraram guardar o segredo inteiro,
quando já estava feito todo o dano. e Ariodante falou primeiro.
27 Disse ainda o duque a Ariodante 33 Como, em pormenor ao duque foi dito,
estas palavras ou outras que tais entre ele e Ginevra a coisa surdia;
(amigos tinham sido já, bastante, jurara-lhe ela por boca e por escrito
e por Ginevra ora eram rivais) : que apenas dele esposa ser pretendia;
«Causa-me espanto (disse o meu amante) e, se pelo rei tal fosse contradito,
que tendo-te sempre entre os meus iguais prometia ser sempre fugidia
respeitado, e tendo-te sempre amado, a diversas conjugais companhias,
seja por ti tão mal recompensado. e viver só em todos os seus dias;
2s Sei que não ignoras nem desvirtuas 34 e que tinha esperança, dado o valor
de Ginevra e eu o antigo amor; de que em armas mostrara vasto signo,
hoje mesmo pedir as graças suas, e mais esperava mostrar, pois -honor
e a sua mão, irei ao meu senhor. ao rei e ao reino queria dar condigno,
Por que me agastas? Por que continuas de tal mercê ganhar do seu senhor
a fixar nela em vão o teu fervor? que perante ele fosse achado digno
Eu bem respeitaria o caso teu, daquela sua filha desposar,
se em teu lugar estivesse e tu no meu». sabendo assim a ela prazer dar.
29 «Pois eu (Ariodante retorquiu) 35 Disse ainda: «Neste ponto me vejo,
de ti me espanto ainda maiormente; nem creio que outro queira mais que eu;
pois primeiro a ela o amor me uniu mais que isto não pretendo, e não almejo
que tu a tivesses visto somente; sinal mais evidente do amor seu;
e sabes que entre nós amor floriu mais, só desejo quanto Deus, por pejo,
que mais do que é não pode ser ardente; ao legítimo conúbio cedeu:
sua vontade é ser minha mulher, por ora, dela mais querer era vão,
e sei que sabes que a ti não te quer. pois é mais virtuosa que as mais são».
CANTO V 99
36 Depois de Ariodante lhe ter exposto 42 «Mando-te aviso quando for a hora»,
como espera vir a ser compensado, disse Polinesso e dali andou.
Polinesso, que se tinha proposto Com dois dias, se tanto, de demora,
Ginevra denegrir ao seu amado, o duque novo encontro me marcou.
disse: «É teu fortúnio ao meu muito oposto, Pretendendo desenlear agora
e quero ouvi-lo por ti pronunciado; os nós que armara, o rival avisou
quando conheceres do meu a raiz, para na noite a seguir se ocultar bem
que confesses que só eu sou feliz. nas tais casas onde não há ninguém,
37 Falsa te é, não te ama nem te preza; 43 num lugar que mostrou, mesmo diante
com esperanças e palavras te entretém; daquele balcão a que subir soía.
o teu amor como tolo despreza, Havia suspeitado Ariodante
quando comigo conversa mantém. que o outro o chamara à deserta via
De lhe ser caro eu tenho uma certeza por ali querer armar a seu talante
que mais que a promessas tolas se atém; alguma cilada em que o mataria,
vou contar-ta sob a jura, em segredo, sob o pretexto de lhe demonstrar
inda que melhor fora ficar quedo. aquilo em que não pôde acreditar.
38 Por mês, três, quatro ou seis noites não passo, 44 De lá comparecer tomou partido,
e por vezes até dez, que não esteja mas de forma que ele não seja mais forte;
nu nos braços dela, naquele abraço para que, no acaso de ser agredido,
que o amoroso abrasamento almeja. não ter que sentir receio da morte.
Bem podes ver que o prazer que te traço Um irmão tinha ardiloso e aguerrido,
às lérias que tu ouves faz inveja. Lurcanio, o melhor em armas da corte;
Rende-te, pois, e de outra vai em busca, com ele se sentia mais confiante
pois, como vês, meu mérito te ofusca». que se mais de dez levasse adiante.
39 Ariodante logo respondeu: 45 Chamou-o, e as armas recomendou
«Não creio nisso, e estou certo que mentes; que trouxesse; e à noite o levou também;
tudo não passa dum enredo teu mas o segredo não lhe revelou:
para que desta empresa assim me afugentes; não o diria a ele nem a ninguém.
e a prova de teus ditos põe ao léu, A um tiro de pedra o colocou;
por serem para ela muito nocentes; «Se me ouvires chamar-te (disse-lhe) , vem;
não só que és mentiroso, mas também mas se minha voz não ouvires chamar,
traidor, nada de o provar me contém». se me amas, irmão, deixa-te aqui estar».
4o Responde o duque: «Não seria honesto 46 «Vai e não temas», disse-lhe o irmão.
querermos aqui batalha travar, E assim ficou Ariodante quieto
por algo que te torno manifesto e se ocultou no ermo casarão,
quando quiseres, perante o teu olhar». mesmo em frente do meu balcão secreto.
Turba-se Ariodante ouvindo o resto, Do outro lado chega o intrujão,
e sente-se dum frémito gelar; que a difamar Ginevra era afecto;
se nele acreditasse plenamente, e deu o sinal, tão aliciante
ali tinha morrido de repente. para mim, que da traição era ignorante.
41 Com peito oprimido e pálido rosto, 47 Eu, com alva veste, a fio de ouro ornada
a voz a tremer-lhe e a boca amara, na cinta, e na bainha toda em torno,
respondeu: «Quando tu me houveres exposto na cabeça rede em ouro, enfeitada
à vista a tua aventura tão rara, de vermelhas laçadas, como adorno
prometo deixar essa que é por gosto (rede que só por Ginevra era usada,
para ti tão liberal, para mim avara; por ninguém mais) , ouço o sinal e torno
mas não julgues fazer-me crer em tal, ao balcão, de tal maneira situado
sem com meus olhos ver, ao natural». que me mostrava de frente e de lado.
1 00 ORLANDO FURIOSO
68 Tornou público o rei que, para salvá-la 74 à minha escolta deu ordem secreta
(pois pensa que ela em falso é acusada) , para que, tendo-me nesta selva a jeito,
por mulher com bom dote pensa dá-la me dessem como prémio morte abjecta.
a quem limpe a infâmia divulgada. Seu intento seria satisfeito,
Guerreiro que se ofereça, nem se fala: se acaso o meu clamor não te intercepta.
de soslaio, entre si trocam mirada, Vê como trata Amor quem lhe é atreito! -
pois, sendo Lurcanio tão destemido, Ao paladino assim narrou Dalinda,
qualquer guerreiro se sente inibido. enquanto pelo caminho iam ainda.
69 Quis a adversa sorte que Zerbino, 75 Rinaldo dà graças à sua fada
irmão dela, do reino esteja ausente; por haver encontrado esta donzela;
já anda há muitos meses peregrino, pois toda a hist6ria lhe foi desvendada
das artes militares defendente; da inocência de Ginevra bela.
se mais perto estivesse o paladino, E se esperara, mesmo se acusada
ou onde de desdita tão premente com justa razão, poder defendê-la,
o fosse alcançar a tempo a notícia, mais confiante à prova ora se apresta,
a irmã salvaria com perícia. sabendo que é falso o delito desta.
70 Entretanto, o rei quer ver se se inteira, 76 E tendo por destino Santo André8 ,
por provas de diferente qualidade, onde o rei de sua corte partilha,
se falsa é a denúncia ou verdadeira, e onde ia realizar-se o finca-pé
se é justo ela morrer ou se é maldade: que decidiria a sorte da filha,
chama a si uma ou outra camareira Rinaldo avançou sem parar até
que devera conhecer a verdade. estar dali a pouco mais duma milha.
E vi que, se à sua presença eu ia, Cruzou-se, ainda fora da cidade,
para o duque e para mim grande perigo havia. com um pagem que lhe deu novidade:
71 Do palácio fui nessa noite andante, 77 que um cavaleiro estranho lá aparecera,
sozinha, e o meu duque procurei; a defender Ginevra decidido;
e fiz-lhe ver o quanto era importante suas insígnias ninguém conhecera,
para n6s ambos que eu não falasse ao rei. andando ele sempre muito escondido;
Tranquilizou-me e louvou-me bastante; desde que ali estava, ninguém pudera
ante os seus conselhos me despachei o rosto ver-lhe, por estar obstruído;
a albergar-me num castelo seu, mesmo o escudeiro que para ele moureja
na companhia de dois que me deu. afirma, jurando: - Eu não sei quem seja. -
n Já te contei, senhor, de que feição 78 Cavalgaram pouco até que à muralha,
o duque satisfiz com o meu amor; e logo à porta, chegam de imprevisto.
claro vês tu se da sua afeição O receio de avançar Dalinda atalha;
por tal motivo me era devedor. mas vai, porque Rinaldo lhe é benquisto.
Pois vê que tipo de compensação, Ao ver a porta fechada, este ralha
que prémio reservou para tanto ardor; a quem a guarda: - Que quer dizer isto? -
e diz-me se deve, por tanto amar, Que o povo todo (foi-lhe respondido)
uma mulher ser amada esperar; para a batalha ver estava reunido,
73 pois este ingrato, pérfido e cruel, 79 a que Lurcanio e o outro acto dão,
para a minha falsidade ora se inclina: no extremo oposto a este da chegada,
começou a recear que eu revele, onde havia um prado espaçoso e chão;
agora ou mais, sua farsa vulpina. e que a luta já era iniciada.
Fingiu que, para que me afaste e me sele Abriram ao senhor de Montalvão
enquanto a ira do rei não declina, a porta, que de novo foi fechada.
pretendia mandar-me para o seu forte; A cidade atravessa sem paragem,
mas queria dar-me imediata morte: mas Dalinda deixa numa estalagem;
CANTO V 1 03
-.-
NOTAS
1 Megera: uma das três Fúrias infernais. va que Isabella d'Este possuía um exemplar (mais tarde
traduzido para italiano por Lelio Manfredi).
2 Tebas, AJxos ou Micenas: cidades funosas por grandes
delitos (Tebas, pela extrema cruddade de Creonte e pela tra 5 Bóreas: deus do vento norte.
gédia de Édipo; Argos, pela história das cinquenta filhas do
6 Levante: vento de leste.
rei Dánao - as Danaides -, que apunhalaram os maridos;
Micenas, pelos crimes de Atreu, Clitemnestra e Orestes). 7 Cabo Baixo: cabo não identificado.
3
Da/inda [. . .] chamo: para compor a figura de 8
Dalinda, Ariosto ter-se-á inspirado em Braugain, cama Santo André: St. Andrews, na costa oriental da Escócia.
reira da rainha Isolda, que sacrifica a sua honra para sal 9
var a da rainha; contudo, os desfechos são diferentes. Seis outros cavaleiros: as testemunhas, ou padrinhos,
do duelo.
4 Fraude: o plano urdido por Polinesso deve ter sido
1 0 Duque de Albany: Polinesso, que urdira a trama con
inspirado pelo romance catalão Tirant lo blanch, de J.
Martorell, que Ariosto terá conhecido no original, uma tra Ginevra (cf. 7:8).
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CANTO VI
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4 Por quem, j ulgando-o morto, tanto pranto 10 - Ai de mim! (dizia), não poderia
Ginevra e seu irmão vertido havia; saber que por meu mal ela morreu;
e o rei, a corte e o povo chorou tanto, com que amargura a vida findaria,
pela virtude e valor de que esplendia. se antes de mim a visse morrer eu.
Que o peregrino lhes mentira em quanto Minha amada é ainda e minha guia,
veio a seu respeito contar, parecia; é ela que dá luz ao olhar meu.
porém, viu-o de facto cabisbaixo Com ou sem razão, à batalha irei
atirar-se ao mar, do rochedo abaixo. por ela, e no campo morto serei.
5 Mas (como um desesperado que pediu 11 Sei que a razão não defendo; mas seja!
à distância, porque a deseja, a morte, Assim morrerei; só me desconforta
e que ao vê-la de perto desistiu, saber que, por morrer nessa peleja,
por achar mui dura e acerba sorte) tão bela dama deverá ser morta.
quando Ariodante no mar se viu, Um único consolo me sobeja:
já não quis morrer; e, como era forte, se Polinesso de amor a conforta,
hábil, e mais que qualquer outro audaz, a Ginevra dúvida não restou
pôs-se a nadar, e à praia o mar o traz; que a defendê-la não se apresentou;
6 e, por desprezá-lo, chamando estulto 12 e eu, que abertamente ela ofendeu,
ao seu desejo de deixar a vida, há-de ver que para a salvar ali vim.
à via se fez o encharcado vulto, De meu irmão, que este fogo acendeu,
e alcançou dum eremita a guarida. pelo mesmo acto vou vingar-me assim;
Em segredo ali quis ficar oculto, fá-lo-ei sofrer, ao ver que sou eu
até notícia ser por si ouvida: a quem sua crueldade deu fim:
se pelo caso Ginevra se alegrasse, j ulgando ter vingado o seu irmão,
ou se desgostosa e triste ficasse. tê-lo-á morto com a própria mão. -
7 Ouviu primeiro que, pela grande dor, 13 Quando este raciocínio concluiu,
ela correra risco de morrer buscou armas e corcel para o duelo;
(de tal modo se espalhara o clamor sobreveste e escudo negros vestiu,
que em toda a ilha houve que dizer) : ornamentado a verde e a amarelo.
contrário efeito àquele que, por error, Um escudeiro ao acaso lhe surgiu,
cria ante si ter visto acontecer. desconhecido, e a seu lado quis tê-lo;
Soube depois como Lurcanio a tinha e incógnito (como eu tinha narrado)
perante seu pai tornado mesquinha. contra o irmão se apresentou armado.
s Por seu irmão não menos de ira ardeu 14 Já vos narrei como o caso se desse,
como de amor antes por ela ardesse, que foi reconhecido Ariodante.
pois ímpio e cruel acto lhe pareceu, Não menor gáudio teve o rei do que esse
embora por si ele o cometesse. de a filha livre poder ver diante.
Soou-lhe depois que não apareceu Pensou para si que jamais se pudesse
cavaleiro que defesa lhe desse encontrar mais fiel e vero amante;
(sendo Lurcanio tão forte e galhardo, depois de tanta injúria que sofrera,
todos, de o enfrentar, tinham resguardo; contra o seu próprio irmão a defendera.
9 e quem o conhecia o reputava 15 Por sua inclinação (pois muito o amava)
tão prudente, tão sábio e atilado e atendendo aos rogos de toda a corte
que, se vero não fosse o que narrava, e de Rinaldo, aquele que mais instava,
risco de morte não tinha enfrentado; da sua bela filha o faz consorte.
por isso a maioria receava De Albany o ducado a si voltava,
duma falsa causa ser advogado) ; depois que Polinesso achou a morte;
Ariodante muito reflectiu, que em tal hora vague é uma maravilha,
e lutar contra o irmão decidiu. pois em dote pode oferecê-lo à filha.
CANTO VI 1 09
16 Rinaldo para Dalinda implorou graça, 22 Por entre alvos lírios e rubras rosas
que do seu erro assim foi absolvida; que a amena brisa frescos conserva,
a qual, por vocação e por escassa saltam coelhos e lebres airosas;
fé no mundo, a Deus dedicou a vida. o veado sereno e a mansa cerva,
Para a Dácia 1 , para ser monja, se trespassa, sem temor, erguem as frontes garbosas,
deixando a Escócia logo de seguida. ou estão imóveis ruminando a erva;
Mas são horas de a Ruggier regressar, ágeis e esbeltos, o gamo e o cabrito
que no ligeiro animal corre o ar. ali vivem em número infinito.
17 Mostra Ruggier corajoso semblante, 23 Tocando o hipogrifo quase a cerra,
e na tez mantém a coloração, e perigo já não havendo em que salte,
mas não creio não tenha palpitante Ruggi er com pressa a sela desaferra,
como uma folha, dentro, o coração. e seus pés pousa no herboso esmalte;
Para trás deixara, já muito distante, contudo, na mão as rédeas lhe cerra,
toda a Europa e aquele bastião, pois não deseja que para o ar ressalte;
dos navegantes o confim2 , prescrito depois amarra-o, no areal ribeiro,
pelo admirável Hércules invicto. num mirto entre um loureiro e um pinheiro.
1s O hipogrifo, pássaro aprumado 24 Vendo que havia ali perto uma fonte
que pelo ar o arrebata com presteza, rodeada de cedros e férteis palmas,
o ministro 3 teria ultrapassado pousou o escudo e retirou da fronte
que dos lampos transportar tem empresa. o elmo, e desarmou as duas palmas 5 ;
Não cruza os céus outro animal alado o rosto ora para o mar ora pro monte
que a voar se lhe iguale em ligeireza; volvia, para colher as brisas almas
creio que apenas o raio e a flecha que os topos, com rumorejos facetos,
do céu à terra vêm com mais mecha. agitam das faias e dos abetos.
19 Depois de atravessar grande distância 2s Às águas cristalinas vai e banha
em linha recta, sem nunca curvar, os lábios secos, e as mãos nela passa,
farto do ar, começa em alternância para do corpo o calor que se lhe entranha
sobre uma ilha, às voltas, a baixar; expulsar, do interior da couraça.
igual àquela a que, por discordância Que a aborreça não é coisa estranha,
do seu amante e querendo-se ocultar, pois não serviu para se mostrar em praça,
Aretusa4 se fez chegar em vão, mas sim para sem pousar, de armas coberto,
sob o mar indo em cega direcção. três mil milhas correr a céu aberto.
20 Não viu lugar mais ameno ou jucundo,
26 Nisto, o corcel, que deixara amarrado 32 Depois viu-se que suava da cortiça,
sob os densos ramos na fresca sombra, como um madeiro do bosque trazido
recua, querendo fugir assustado que ante o calor do fogo se inteiriça,
com não sei quê que no bosque o assombra; depois de ao fogo em vão ter resistido;
tanto verga o mirto a que está atado - Tua cortesia (disse) me atiça
que todo o pé com os ramos lhe ensombra; a que também te torne conhecido
verga o mirto e faz-lhe cair a folha, quem fui antes, e quem de mim fez tal,
mas dele a rédea não desaferrolha. que mirto sou neste ameno areal.
27 Como às vezes um cepo que o miolo 33 Era meu nome Astolfo7 ; e morticínio,
verde ou oco tem, e no lume é posto, paladino de França, fiz na guerra;
e a húmida aragem do seu carolo de Orlando e Rinaldo era consanguíneo,
o forte calor consome com gosto; cuja fama nenhum limite encerra;
dentro silva e assobia um arrolo, e devia ser meu todo o domínio,
até que para sair encontra um posto, após meu pai, Otone, de Inglaterra.
assim arrulha e chia e se encarniça Belo e galante fui, e conquistei
o mirto, até que se lhe abre a cortiça. não poucas damas; e me desgracei.
2s Dali voz débil e triste saiu, 34 Voltando daquelas ilhas extremas
que expedita e mui clara tagarela: que no Levante o mar índico8 lava,
- Se acaso fores tão cortês e pio onde com Rinaldo sofri algemas,
quanto faz crer tua presença bela, fechados numa prisão escura e cava,
da minha árvore solta ao bicho o fio; e donde nos livraram as supremas
basta o meu próprio mal que me flagela, forças e brio do cavaleiro de Brava9 ,
sem outras penas e outros sofrimentos para poente vinha por areais
que, de fora, venham dar-me tormentos. - batidos pelos ventos setentrionais.
29 Ao primeiro som desta voz voltou 35 Seguindo essa via e hostil destino,
Ruggiero o rosto, e ergueu-se de repente; sem saber chegámos uma matina
ao ver que do mirto a voz se soltou, àquele deleitoso areal marino
sua estupefacção foi evidente. que um castelo tem, da possante Alcina1 0 •
A retirar o corcel se apressou, Fora do seu castelo a descortino,
e a vergonha no rosto foi patente: sem companhia, na margem salina;
- Perdoai-me (disse) , quem quer que seja, sem redes nem anzol, ela atraía
espírito humano, ou deusa sertaneja6 • à praia todós os peixes que queria.
30 Só porque não sabia que se esconde 36 Velozes acorriam os golfinhos,
sob a áspera cortiça humano espirto, e o grande atum com sua boca aberta;
ousei perturbar a perfeita fronde os cachalotes e leões-marinhos,
e ofensa fiz ao teu viçoso mirto; aos quais enorme sono desconcerta;
ao meu pedido, te peço, responde: ruivos, alforrecas, salmões, toninhos
diz-me quem és, que num corpo tão hirto vêm aos cardumes, estes alerta;
vives, tendo voz e racional siso; os espadartes, as orcas e baleias,
salve-te o Céu das pedras de granizo. de enormes corpos, chegam às areias.
31 Se alguma vez puder este despeito 37 · Uma baleia surgiu, a maior
com algum benefício compensar-te, que já alguma vez se viu no mar;
pela minha linda- dama te dou preito, onze passos 1 1 teria, sem favor,
aquela que há de mim a melhor parte, acima de água o seu dorso invulgar.
que te darei, com palavra ou com feito, Caímos todos nós no mesmo error,
razão que de mim possas orgulhar-te. - pois estava queda sem se deslocar:
Terminando Ruggier o falar seu, que ela era uma ilhota todos nós cremos,
o mirto do vértice aos pés tremeu. tão distante um do outro tinha os extremos.
112 ORLANDO FURIOSO
56 Mas que não deverá pensar que possa 57 Ao cavalo foi para desamarrá-lo
por ela caminho a salvo seguir: e atrás de si pelas rédeas o levou,
lá encontrará gentalha da grossa, para não poder a bel-prazer alçá-lo,
e bravia, para o passo lhe impedir. como antes fizera, quando o montou.
Alcina ali os pôs, qual muro ou fossa, Tem como pensamento, a ocupá-lo,
para quem de seu poder logra fugir. de Logistilla o reino que almejou.
Ruggier ao mirto agradeceu, sentido, Estava disposto a usar toda a obra,
pois dali se vai douto e instruído. para de Alcina evitar a vil manobra.
CANTO VI 115
70 Ambas àquele lugar foram, no prado, 71 O adorno que aquela porta rodeia,
onde ataca Ruggier vil multidão. que a encima e que lhe avança, adiante,
Logo o bando se desvia para o lado, em toda a sua parte patenteia
e elas ao cavaleiro dão a mão; as mais preciosas gemas do Levante.
o qual enrubesceu, intimidado, Em quatro pontos nos extremos se esteia
e pela ajuda expressou gratidão. em maciças colunas de diamante.
Para seu comprazimento, e por decoro, O olho o dirá falso ou verdadeiro,
com elas regressou à porta de ouro. mas em beleza e graça é o primeiro.
1 18 ORLANDO FURIOSO
n No espaço que entre as colunas se espraia, 74 Ali, com serena e jocosa fronte,
correm brincando lascivas donzelas; parece que ri sempre o ameno Abril;
se à discrição dessem mais atalaia, jovens e damas há: uns junto à fonte,
que à dama convém, seriam mais belas. cantando uma toada pastoril;
Além de usarem todas verde saia, outros, à sombra de árvore ou de monte,
grinaldas coroavam todas elas. brincam, dançam, fazem coisa não viF3 ;
E, pródigas de encanto e de sorriso, também há quem, afastado, ao amado
a Ruggier franqueiam o paraíso: das amorosas penas dê recado.
73 tal se pode chamar àquele lugar, 75 Entre as copas de loureiros e pinhas,
onde creio que Amor terá nascido. de altas faias e abetos desgrenhados,
Em dança ali se está, ou a jogar, voam brincando tenros Amorzinhos24 ;
e de festejos o tempo é nutrido; alguns da vitória gozando agrados25 ,
maduro pensamento assento achar outros dali aos corações espinhos26
aqui não pode, é lazer aborrido; atirando, ou com redes ocupados;
aqui não entram míngua nem inópia: um ao riacho vai, dardos temperar;
de corno cheio, está presente a Cópia22 • outro os aguça em pedra de amolar.
CANTO VI 1 19
76 Um corcel a Ruggier ali foi dado, 79 Não só esse caminho impede assim,
forte, esbelto, pelagem luzidia, que livre seria não fora ela,
do qual o belo arreio era bordado como escorraça por todo o jardim,
a fio de ouro e preciosa pedraria; perturbando ou esta coisa ou aquela.
em custódia foi dado o outro, alado, Sabei que da quadrilha malandrim
que ao velho mouro 27 obedecer soía, que vos assaltou junto à porta bela
a um mancebo que a pequeno espaço muitos seus filhos são, todos sequazes,
de Ruggier o levava, em lento passo. como ela ímpios, hostis e vorazes. -
77 Aquelas duas jovens tão formosas 80 Ruggier respondeu: - Não uma batalha,
que Ruggier do ímpio bando livraram mas por vós estou pronto a fazer um cento;
(o bando de criaturas asquerosas de mim, e de tudo em que eu tenha valha,
que a via da direita interditaram) fazei como vos pede o vosso intento;
disseram: - Senhor, vossas valorosas que a razão por que eu visto cota e malha
obras, que a nossos ouvidos chegaram, não é para ganhar terras nem provento,
ammam-nos a que o amparo vosso mas só para fazer bem ao semelhante,
vos roguemos, para benefício nosso. mormente se é dama bela e galante. -
78 Em breve acharemos um lameirão 81 As damas muito gratas se disseram
que em duas partes faz esta planura. a Ruggiero, de forma lisonjeira;
Erifilla28 , a cruel, tem a função e, conversando, a um lugar vieram
da ponte guardar, e engana e tortura donde avistaram a ponte e a ribeira;
quem de ir à outra margem faz tenção; armada surge ali, como já esperam,
uma giganta é ela na estatura, de ouro e pedraria, a dama altaneira.
com dentes venenosos abocanha, Mas reservo para o outro canto a história
e com longas unhas, qual urso, arranha. do choque entre Ruggiero e a finória.
NOTAS
�
1 Ddcia: antiga provmc1a romana; faz actualmente 7
Astolfo: filho do rei Otone de Inglaterra e primo de
parte do território da Roménia. Orlando e Rinaldo (seu pai pertencia à família de
Claramonte), é figura tradicional da literatura cavaleires
2 Confim: as colunas de Hércules, ou seja, o estreito de ca. As aventuras que aqui conta a Ruggiero ocorreram no
Gibraltar. O. Innamorato.
3 8
O ministro: a águia, ministro de Júpiter por lhe Mar índico: não equivale a oceano Índico, mas sim
transportar e precipitar na Terra os raios e relâmpagos. aos mares orientais de forma indefinida, pois fndia era
sinónimo de Oriente.
4 Aretusa: mito associado à ilha de Ortígia, em frente
9
a Siracusa, na Sicília. Transformada em fonte por Árte Brava: corresponde à actual Blaye, a norte de
mis, a fim de escapar à perseguição amorosa de Alfeu Bordéus, no estuário do Gironda; já no O. Innamorato
(deus do rio do mesmo nome, situado no Peloponeso, na era considerada feudo de Orlando.
Grécia), a ninfa foi, por caminhos subterrâneos, até
10
àquela ilha. Mas Alfeu conseguiu misturar as suas águas Alcina: irmã da fada Morgana, é invenção de
às dela (por isso, a fuga foi em vão). Boiardo. Idêntica aos seus modelos literários (Circe,
Dido, Calipso, etc.), representa alegoricamente a
5 Desarmou [ . .} palmas: retirou as manoplas (luvas de Luxúria.
ferro).
11
Onze passos: o «passo» dos Romanos equivalia a um
6
Deusa sertaneja: ninfa dos bosques. metro e meio.
1 20 ORLANDO FURIOSO
12 20
Noto: vento de sul, que traz tempestade. Briareu: um dos três Hecatonquiros, gigantes provi
dos de cem braços e cinquenta cabeças que ajudaram
13
Irmã: Logistilla, símbolo da sensatez e da virtude. Zeus e os Olímpicos na luta para expulsar os Titãs.
1 4 Estas duas: as gémeas Alcina e Morgana. 21
Negaça: o feitiço, que lhes permite encobrir o vício
sob uma aparência de virtude.
15
Pelo monte e pela ribeira: os montes Cheviot e o rio
22
Tweed. Cópia: a Abundância, que, segundo a mitologia
grega, tinha por símbolo um corno repleto de flores e
16
Outros: a repetição desta palavra em posição de rima frutos, a cornucópia.
nos vv. 2-4-6 segue o original. Talvez seja um recurso para
23
Astolfo enfatizar a preferência que Alcina lhe concedeu. Fazem [. . .} vil: não se ocupam de tarefas vulgares,
servis. Apenas de diversão.
17
A via [. . .} a Logistilla: o caminho que conduz ao
reino de Logistilla - a virtude - é de difícil acesso e cheio 24 Tenros Amorzinhos: pequenos Cupidos.
de ciladas, em oposição àquele que conduz a Alcina - o
25
vício -, que é fácil e cheio de seduções. Vitória [. . .} agrados: regozijando-se por terem sido
bem sucedidos.
18 Momtruosas: os monstros apresentados simbolizam
26
os vícios que Ruggiero terá de combater para chegar ao Espinhos: os dardos atirados pelos Cupidos.
reino de Logistilla, isto é, à virtude.
27 Velho mouro: Atlante, que Boiardo, no O. lnnamorato,
19
O capitão: o capitão daquele bando é o Ócio, pai de diz ser originário da cordilheira do Atlas, no Norte de
todos os vícios. A sua figura parece inspirar-se no velho África.
sátiro Sileno, que costuma ser representado montado
num burro e amparado de ambos os lados, por estar 28 Erifilla: fi ra que simboliza a cupidez.
gu
sempre embriagado. O Ócio, porém, monta uma tarta
ruga, cuja natural lentidão melhor se lhe adapta.
-.
CANTO VII
�
12 Encimam dois subtis e negros arcos 13 Logo abaixo, e entre covinhas estreitas,
os negros olhos, ou dois claros sóis, a boca tinta a natural cinábrio;
de suave expressão e a mover-se parcos; duas filas de pérolas perfeitas
como se Amor brincasse nesses dois, surgem, quando se aparta o doce lábio;
suas setas dispara desses marcos, donde se escoam palavras eleitas
os corações trespassando depois; que amolecem o coração mais sábio,
daquele ponto seu nariz descende, e onde se forma tão suave sorriso
e não encontra Inveja onde o emende. que dá na Terra acesso ao paraíso.
1 24 ORLANDO FURIOSO
1s A formosa dama3 , que ele tanto amava, 20 Que mesa triunfante e sumptuosa
do coração lhe está desaparecida, de qualquer um dos sucessores de Nino,
pois por seu encanto Alcina lho lava ou aquela, tão célebre e famosa,
de toda a passada amorosa ferida; de Cleópatra4 para o victor latino,
ela só e seu amor nele grava, a esta era par, que a fada amorosa
ficando nele só ela esculpida: pusera na frente do paladino?
por isso desculpar Ruggier se deve, Não creio que uma mesa assim se observe
se aqui se mostrou inconstante e leve. onde Ganimedes Júpiter serve5 •
19 Cítaras, harpas, liras a tocar, 21 Das mesas o espaço desimpedido,
e vários outros aprazíveis sons, fizeram, numa roda, um jogo ledo:
em torno faziam tinir o ar uns aos outros perguntam ao ouvido,
com suave harmonia e concordes tons. a seu bel-prazer, um qualquer segredo;
Muitos davam a ver que para cantar tal foi pelos amantes bem acolhido
de amor gáudios e penas tinham dons, para seu amor confessarem, sem medo:
ou, com suas ficções e poesias, e foi sua conclusão derradeira
representavam gratas fantasias. juntos passarem essa noite inteira.
1 26 ORLANDO FURIOSO
22 Cedo o jogo acabou, e muito antes 2s mas saia ou saiote não envergou,
do que soía ser ali costume; que envolta veio em ligeiro cendal
pagens trouxeram tochas, e em instantes que só sobre a camisa colocou,
as trevas expulsaram com o seu lume. branca e diáfana como cristal.
Atrás e à frente vão acompanhantes, Abraçou-a e do manto a despojou,
que fazem que Ruggiero ao leito rume, e só lhe restou o subtil brial,
num aposento de tão belo efeito que a não cobria à frente nem atrás
que melhor entre todos foi eleito. mais que a rosas e lírios vidro faz.
23 Depois que finos doces e bons vinhos 29 Tão estreitamente não abraça a hera
lhe serviram em oferta cortês, o tronco a que se agarra duma palma;
retiraram-se os outros para seus ninhos, tal o abraço dos amantes era,
e muitas vénias cada um lhe fez; colhendo nos lábios a flor da alma9 ,
Ruggiero entrou nos perfumados linhos, mais odorante que semente dera,
das mãos de Aracne6 saídos, talvez, da Índia ou da Sabeia 1 0 , flor que açalma.
mantendo porém o ouvido atento, Dizer esse prazer a eles toca,
para na chegada da dama ter tento. pois mais que uma língua tinham na boca.
24 Ao mais pequeno rumor que sentia, 30 Esta paixão lá dentro era secreta;
na esperança de vê-la, seu rosto alçava: ou dela, pelo menos, se não falava;
pensava ouvir, depois já não ouvia, saber calar não raro é coisa recta:
e, pelo seu erro dando, suspirava. louvor motiva e pouca gente agrava.
Saía até do leito e a porta abria, Com fino acolhimento e etiqueta
para fora olhava, mas nada avistava; toda a gente ali Ruggiero adulava:
mil vezes maldição lançou à hora, cada um respeitoso se lhe inclina,
que para passar levava tal demora. pois assim quis a enamorada Alcina.
2s A si mesmo dizia: - Aí. vem ela. -, 3 1 Não há deleite que de fora reste;
e começava os passos a contar todos inclui essa amorosa aliança.
que da alcova dela iam àquela Num só dia amiúde trocam veste,
em que ele espera Alcina ver entrar; de acordo com esta ou aquela usança.
mil devaneios faz em sua cela, Todo o tempo em festejo ali se investe,
antes que a dama possa ali chegar. em justas, lutas, cenas, banho ou dança;
Teme que algo secreto se alicerce, ou junto às fontes, e umbrosos abrigos,
que entre o fruto e a mão venha meter-se7 . lêem os ditos de amor dos antigos;
26 Alcina, que aos seus preciosos odores 32 ou por amenos vales e colinas
se entregara sem restrições ou meta, caçam lebres esquivas com o alão;
ao chegar a hora em que de rumores ou, dos restolhos secos das campinas,
sabe que toda a casa já está quieta, com sagazes cães, espantam o faisão;
seu quarto deixa então, por entre olores; aos tordos visco ou laços, pelas matinas,
e silente vai, por via secreta, entre frondosas giestas armar vão;
aonde Ruggier, com temor e esperança, ou com redes, ou com anzóis e isco,
aguardava em forçada temperança. os segredos turbar do peixe arisco.
27 Conforme viu o sucessor de Astolfo 8 33 Estava Ruggier em tal recreio e festa,
aparecer-lhe diante as risonhas estrelas, enquanto Carlos luta e Agramante;
nas veias sente de enxofre um regolfo a sua história não quero por esta
a incendiar-se com o fogo delas. deixar esquecida, e a de Bradamante,
E até aos olhos imerge no engolfo que, amargurada por pena molesta,
dos enlevos e delícias singelas: dias chorou o desejado amante;
salta do leito e recolhe-a nos braços, o qual, por caminhos que o saber esconde,
sem esperar que ela desfaça seus laços; viu ser levado sem saber para onde.
CANTO VII 1 27
34 Desta primeiro que dos outros digo, 36 Que fosse morto acreditar não queria,
que muitos dias procurou em vão pois de homem tão notável a ruína,
por campos sombrios ou sem abrigo, das águas do Hidaspes 1 1 se ouviria
por vilas, cidades, por monte ou chão; até onde o Sol a dormir se inclina.
novas não teve de seu caro amigo, Imaginar não sabe qual a via
que estava em tão distante região. que no céu ou terra segue, e mofina
Ao campo sarraceno também ia, o vai buscando, e só leva consigo
mas notícia de Ruggier não ouvia. suspiros, pranto e da dor o castigo.
35 Perguntas faz por dia a mais de um cento, 37 Pensou por fim em regressar à furna
mas ninguém sabe dar-lhe indicações. que encerra os ossos de Merlim profeta,
Passa de alojamento a alojamento, e rogar tanto junto àquela urna
procurando em tendas e pavilhões. que a pedra fria à pena se remeta;
Pode fazê-lo sem impedimento, e que viva Ruggier ou que a soturna
por entre cavaleiros e peões, e triste Fortuna à morte o submeta,
graças ao anel mágico infalível, ali saber, e depois acatar
que a torna, na boca o tendo, invisível. o conselho que houvesse para lhe dar.
1 28 ORLANDO FURIOSO
58 Foi isto que as tão estudadas estrelas, 64 O que tem esta, que assim te domina,
entranhas, augúrios, pontos e linhas 1 6 , que não tenham mil outras meretrizes.?
sonhos, oráculos, todas aquelas De tantos outros já foi concubina,
tão exaustivas conjecturas minhas, e bem sabes se os sói fazer felizes.
para ti previram desde sempre, elas, Mas para que bem saibas quem é Alcina,
para estes anos a que te avizinhas : despojada dos seus falsos carizes,
que e m armas tuas obras tão preclaras põe no dedo este anel, vai ter com ela,
deviam ser, e grandiosas e raras? que assim vais poder ver como ela é bela. -
59 É esta a tua inicial lição 65 Ruggiero estava mudo, envergonhado,
para que venhas a ser, de forma lesta, olhando o chão sem achar que dizer;
um Alexandre, um Júlio, um Cipião? 1 7 no mindinho foi-lhe o anel enfiado,
Quem esperava uma coisa como esta, fazendo-lhe ela o senso reaver.
que de Alcina tomasses escravidão? Quando Ruggier se viu recuperado,
E, para que a todos seja manifesta, tal opróbrio sentiu em si crescer
tens no pescoço e braços a cadeia que enterrar-se mil braças desejara
com que ela à sua sedução te peia. só para que mais ninguém lhe visse a cara.
60 Se não te estimulam tuas medalhas 66 A sua antiga forma num instante,
e a excelsa obra a que o Céu te elegeu, assim falando, a maga recupera;
a tua sucessão por que abandalhas, pois já não precisava da de Atlante,
se o bem já te previ mil vezes eu? tendo visto o efeito por que viera.
Por que razão esse ventre amortalhas 1 8 , Que vos diga o que não disse é instante:
no qual o Céu por ti já concebeu Melissa o nome desta maga era,
vida dar àquela gloriosa prole que a Ruggier já se mostra, sem feitiço,
que no mundo há-de brilhar mais que o Sol? e lhe diz porque usou rosto postiço;
6 1 Não negues dar corpo às mais nobres almas 67 mandada foi daquela, de amor plena,
já ideadas 1 9 pelo divino querer; que o deseja sentindo a sua ausência,
vê se de tua progénie as açaimas, para o livrar da grilheta a que o condena
que a raça em ti raiz deverá ter! e constringe essa mágica violência;
Não impeças os triunfos e palmas o
e semblante de Atlante de Carena20
com que, após danos e chagas sofrer, tomara, para sobre ele ter influência.
teus filhos, netos e mais sucessores Mas, como de novo o siso o bafeja,
voltarão a dar à Itália honores. tudo revela para que tudo veja.
62 Chamar-te à razão deveriam tantas 68 - A gentil donzela que te ama tanto,
almas excelsas, em tom iracundo, e que do teu amor digna seria,
que ilustres, claras, ínclitas e santas à qual, se bem te lembras, sabes quanto
irão florir do teu tronco fecundo; a tua liberdade se associa,
mas que te baste um só par dessas plantas: este anel que defende do encanto
Ippolito e o irmão; poucos no mundo te mandou; e o coração mandaria,
como eles houve até aos dias de hoje, tivesse o coração igual virtude
em que a virtude em qualquer grau se poje. à do anel sobre a tua saúde. -
63 Costumava mais destes dois falar-te 69 E continua a falar-lhe do amor
do que dos outros todos em conjunto, de Bradamante, pois isso lhe importa,
porque lhes caberá a maior parte dela louvando também o valor,
das virtudes que em ti havias junto; que por verdade e afecto tanto exorta;
por isso, ao narrar deles vias dar-te usou os termos e o modo melhor
mais falas que de qualquer outro assunto; com que uma mensageira outrem conforta.
vi que deles muito te comprazias, Ruggier odiar Alcina tanto faz
por saberes que sua cepa serias. quanto é costume odiar as coisas más.
CANTO VII 13 1
70 Fez com que a odiasse, apesar de tanto 76 Balisarda22 à cintura então sustém
amá-la antes; e não achem estranho; (este o nome que à espada pertencia) ,
o amor era forçado pelo encanto, e o mágico escudo toma também,
e diante do anel perdeu tamanho. que não s6 os olhos cegar podia
Tornou claro o anel que tudo quanto como a alma entorpecida retém,
Alcina tinha belo era arreganho: parecendo que do corpo se desvia.
falso era tudo, desde o pé à trança; Pega-lhe e, sem lhe retirar a capa,
vai-se a beleza, a fealdade avança. ao pescoço o põe e logo se escapa.
71 Como um menino que um fruto maduro 77 No estábulo faz pôr arreios e sela
abandona, e esquece onde o colocou, ao corcel mais que pez negro, e faceiro,
e ao mesmo sítio voltou no futuro que Melissa indicara, visto que ela
e por acaso o mesmo fruto achou, sabia que a correr era ligeiro.
ficando admirado de o ver tão escuro, Por Rabicano 23 o bicho se interpela,
murcho e podre e já não como o deixou, e foi este que, com o cavaleiro
e, tanto quanto o apreciava, agora agora à beira-mar ao vento exposto24 ,
lhe dá nojo e repulsa e o deita fora: a baleia aqui trouxe, a contragosto.
n assim Ruggier, que graças a Melissa 77 Poderia o hipogrifo igualmente
pôde voltar a ver Alcina, a fada, levar, pois ao lado estava amarrado;
com aquele anel que desenfeitiça mas dissera-lhe a maga: - Tem em mente
e desmancha qualquer obra encantada, que ele é, como sabes, desenfreado. -
e em vez daquela por quem se derriça, No dia seguinte ela, estava assente,
da beleza por ele tão desejada, o levava para fora desse estado,
vê tão decrépita e feia mulher para onde ia receber instrução
como em toda a Terra não há sequer. para ir por todo o lado e ter travão.
73 Vincado e mirrado o rosto mostrava,
o cabelo ralo e embranquecido;
a estatura a seis palmos não chegava
e os dentes da boca tinham caído;
mais que a Cumana e Hécuba2 1 contava,
e mais que outra qualquer tinha vivido.
Pois arte ao nosso tempo ignota tem,
que aspecto belo e jovem lhe mantém.
74 Jovem e bela ela se faz com arte,
e muitos enganou como Ruggiero;
mas o anel o feitiço põe de parte,
que muito já escondeu o que era vero.
Milagre não é, pois, que ora se aparte
de Ruggiero o pensamento sincero
de Alcina amar, agora que descobre
a fraude que o aspecto bem lhe encobre.
75 Seguindo aviso de Melissa, aceita
não mudar o habitual semblante,
e suas armas, que há tempo rejeita,
vestiu de cima abaixo, atrás e adiante;
para não causar em Alcina suspeita,
fingiu provar que inda estava elegante,
provar que seu corpo não se expandira,
ap6s alguns dias que as não vestira.
1 32 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 Apúlia: região do Sul de Itália (Puglia) , onde exis 14
Valência: cidade espanhola que era famosa pelos seus
tiam enormes lobos. hábitos dissolutos.
2
Argo: figura mitológica provida de cem olhos. 15 Adónis ou Átis: mancebos muito belos, amados, res
pectivamente, por Afrodite e Cíbele.
3
A formosa dama: Bradamante.
16 Estrelas { . .} linhas: várias formas de adivinhação
4 Nino { . .} Cleópatra: a propósito da mesa de Alcina, (astrologia, aruspicação e geomancia) .
são recordados sumptuosos banquetes de personagens
famosos: Nino (rei dos Assírios) e seus sucessores 17 Alexandre { . .} Cipião: Alexandre Magno, Júlio César
(Semíramis e Sardanapalo), e Cleópatra, pelos banquetes e Cipião, o Africano, grandes figuras da história univer
que ofereceu a Marco António (victor latino). sal.
5 Onde { . .} serve: no Olimpo. 18
Esse ventre amortalhas: condenas à infecundidade o
ventre de Bradamante.
6
Aracne: jovem exímia na arte de tecer e de bordar;
19
tendo vencido Atena em concurso, a deusa, por vingan Almas jd ideadas: de acordo com a doutrina plató
ça, transformou-a numa aranha que tece continuamente nica, as almas já existem (ideadas pelo divino querer)
o seu fio. antes do corpo, tomando, de quando em quando, for
ma terrena.
7
Entre { . .} meter-se: Ariosto adapta um verso de
Petrarca, tra la spiga et la man qual muro e messo (Rime, 2
° Carena: monte da cadeia do Adas onde, segundo
LVI:8), que Camões também transcreveu (Os Lusíadas, Boiardo, Adante habitava num castelo.
IX:78, 8) .
21
Cumana e Hécuba: lendários exemplos de velhice; a
8 Sucessor de Astolfo: seu sucessor nos amores de Sibila de Cumas viveu mil anos. Hécuba, mulher de
Alcina. Príamo, rei de Tróia, não viveu tanto, mas o bastante
para ter cinquenta filhos e assistir à destruição de Tróia e
9
Flor da alma: o beijo. de toda a sua família.
10Sabeia: ou Sabá, antigo reino dos Sabeus, no 22
Balisarda: espada que pertencera originalmente a
Sudoeste da Arábia (actual Iémene) . Orlando e lhe fora roubada por Brunello, que depois a
deu a Ruggiero.
11
Hidaspes: rio da Índia, que aqui representa o
23
Oriente. Rabicano: pertenceu a Argalia, irmão de Angelica, e
passou sucessivamente para Rinaldo e Astolfo.
12
Nestor: rei de Pilo; segundo Homero, viveu três gerações.
24
Cavaleiro { . .} exposto: Astolfo, agora plantado à
13
Alichino ou Farfarello: nomes de demónios usados beira-mar sob a forma de mirto.
por Dante (Inferno, XXI: 1 1 8 e 1 23) , e já antes documen
tados na demonologia medieval.
--
CANTO VIII
�
4 Empunha o servo uma ave rapace, 7 O cão não quer que o tomem por mais tardo
que em cada dia levava a voar e segue Rabicano, acelerado,
no campo ou na lagoa ali de face, como segue as lebres o leopardo.
onde era certa a presa para caçar; Ruggiero, de fugir envergonhado,
um cão levava, companheiro tenace, aguarda aquele que a pé vem tão galhardo;
e montava um escanzelado muar. armas não lhe vê, somente um cajado,
Bem pensou que Ruggiero ia fugir, com que ao cão a obedecer ensina;
quando com tamanha pressa o viu vir. e para puxar da espada não se inclina.
Vai ao seu encontro, e com ar altivo s Chega-se-lhe ele e com força lhe bate,
indaga o porquê de tal ligeirice. enquanto o pé esquerdo lhe morde o cão.
Ruggiero a responder mostrou-se esquivo, Três ou mais vezes os cascos lhe embate
mais certo ele ficando que fugisse; o rocim, do lado da destra mão.
detê-lo é então o seu objectivo, Volteia o pássaro a dar-lhe combate,
e estendendo o braço esquerdo 1 lhe disse: cravando-lhe as garras como punção;
- Que dirás tu, se aqui te der prisão, o seu crocito o cavalo estarrece,
se contra a ave não tens protecção? - que à mão e às esporas já pouco obedece.
6 Instiga a ave a voar com tal mecha 9 Constrangido, Ruggiero o ferro caça,
que iguala Rabicano na corrida. para fugir à moléstia que o enfada;
Do palafrém logo um salto desfecha, os animais e o vilão ameaça
ao mesmo tempo que o livra da brida. com o fio e com a ponta da espada.
Veloz parte ele, como do arco a flecha, A importuna turba o embaraça:
formidável no coice e na mordida; espalhando-se, ocuparam toda a estrada.
e o servo tão lesto lhe corre atrás Prevê Ruggiero o dano e o contratempo
que parece que fogo ou vento o traz. que lhe advirá, se ali passa mais tempo.
10 Sabe bem que, por pouco que ali fique,
Alcina e seu povo o alcançarão:
de trompa, tambor, sinos a repique,
já pelos vales ecoa a entoação.
A espada usar desdenha no despique
contra um servo sem armas e um cão:
mais breve é pois usar, por eficaz,
o escudo de Adante, que ao lado traz.
11 Tirou o rubro pano, que encoberto
houvera por muitos dias o escudo.
Fez este o efeito tido por certo,
ao ferir seus olhos com brilho agudo:
fica o servo dos sentidos deserto,
cai o cão, a pileca e o penudo;
Ruggiero assim os dá ao abandono,
feliz por vê-los entregues ao sono.
1 2 Alcina fora entretanto avisada
de que Ruggiero ultrapassara a porta,
deixando muita guarda dizimada,
e de dor esteve prestes a ser morta.
Com as vestes rotas e a cara arranhada,
néscia se diz e pelo descuido absorta;
mandou dar alarme imediatamente,
e em torno juntou toda a sua gente.
CANTO VIII 135
22 Rinaldo era ali muito considerado 2s Emissários por toda a sua terra
pelo rei, pela filha e por todo o país. mandou, recolher cavalos e gente;
Do motivo que o tinha ali levado navios prepara e munições de guerra,
revelou o paladino o cariz: vitualhas e dinheiro, prontamente.
ficaria seu rei, sendo ajudado Vai Rinaldo entretanto a Inglaterra,
pela Escócia e Inglaterra, mui feliz; e, quando partiu, o rei, cortesmente,
ao pedido de Carlos ajuntou mesmo até Berwick7 o acompanhou;
a justa razão que o justificou. e há quem diga que, ao vê-lo ir, chorou.
23 Sem delongas o rei lhe fez o gosto: 26 Com o vento favorável pela popa,
que, até onde sua força se estendia, diz Rinaldo adeus a todos e embarca;
a ajudar e honrar sempre disposto o mestre, célere, os mastros enroupa,
o rei Carlos e o Império estaria; e chegam onde a salsa onda encharca
e em breve ao seu dispor seria posto o doce Tamisa e ao acre o não poupa8 •
o melhor corpo de cavalaria; Com a maré alta, que mais água abarca,
e só o ser entrado na velhice por caminho seguro navegaram,
vedava que ao comando ele seguisse. e a remos e à vela a Londres chegaram.
24 Não seria porém isso bastante 27 Vinha de Carlos e Otone9 em missão,
para ali ficar, se acaso não tivesse que em Paris estava com Carlos sitiado,
o filho, em força e saber abundante, com suas credenciais, em comissão
digno de que tal comando lhe desse; ao Príncipe de Gales enviado;
embora estando do reino distante, para que o que possa dar a região
esperava que entretanto aparecesse, de infantes e cavalos seja dado,
enquanto aquela tropa reunia; e tudo para Calais mande embarcar,
já reunida o filho a encontraria. para assim a França e Carlos ajudar.
CANTO VIII 137
37 Voltava a terra o belo olhar em vão, 40 - Fortuna (diz), que mais fazer te resta
de lágrimas o rosto e o seio pleno, para que de mim te sacies e te fartes?
vendo afastar-se o arenoso chão, Que mais posso ora dar-te senão esta
que assim se ia fazendo mais pequeno. mísera vida? Mas, com tuas artes,
Nadando o corcel para setentrião, a salvá-la do mar foste bem lesta,
dá grande giro e regressa ao terreno podendo bem tirar-ma nessas partes;
entre assustadores penhascos e furnas, é porque esperas ter outros momentos
onde já descem as trevas nocturnas. para dar-me, antes que eu morra, mais tormentos.
38 Quando se viu sozinha em tal deserto, 41 Não creio possas fazer-me mais mal
que só de olhá-lo o medo a desfigura, do que aquele que até hoje me tens dado.
na hora em que no mar Febo encoberto 13 Afastaste-me do trono real,
a Terra, como o ar, tornara escura, que julgo estar-me para sempre vedado;
quedou-se em gesto que tornava incerto, minha honra perdi, perda fatal,
a quem avistasse a sua figura, pois, não tendo na verdade pecado,
se era uma dama viva e verdadeira dou motivo à fama que a mim se aplica:
ou rocha conformada em tal maneira. que ao ser vagabunda sou impudica.
39 Pasma e absorta sobre a areia instável, 42 Que mais pode uma mulher ter de bom,
os cabelos soltos, despenteados, depois de perder sua castidade?
j untas as mãos, a boca inalterável, Mal que à minha beleza traz destom,
e os lânguidos olhos ao céu voltados, quer seja mentira ou seja verdade.
como acusando o Grão-Motor 14 culpável Não agradeço já ao Céu tal dom,
de contra si ter conjurado os fados, do qual só me veio infelicidade:
imóvel ficou e atónita, tanto, meu mano Argalia por tal morreu;
até que língua e olhos solta ao pranto. nem a arma encantada 1 5 lhe valeu;
43 e Agricane, da Tartária sultão,
meu pai, Galafron, levou de vencida 1 6 ,
que do Catai, na Índia, era grão-cão;
por isso à condição fui reduzida
de mudar, todo o dia, habitação.
De haveres, honra, pessoas desvalida
me fazes, e com todo o mal me feres;
que outras dores infligir-me ainda queres?
44 Se afogar-me no mar morte não era
para teu cruel querer satisfação,
não rejeito que mandes uma fera
que me devore, e finde esta aflição.
Qualquer seja o martírio que me espera,
se eu perecer, só sinto gratidão. -
Chorava assim a dama em seu pesar,
quando ao lado o eremita vê chegar.
45 Tinha avistado, do ponto mais alto
duma íngreme falésia, o eremita,
Arigelica, que, ao dar do mar o salto,
na base da rocha ficara, aflita.
Seis dias antes veio, em sobressalto,
que o demo o trouxe por via interdita;
a ela vai, fingindo devoção,
como tivera Paulo ou Hilarião 1 7 •
CANTO VIII 1 39
61 Passando uma sua fusta rente à terra, 64 A bela dama, que o sono retém,
em frente à tal solitária baía, a acorrentar logo o bando se apresta.
onde entre tojos, na herbosa terra, O frade bruxo levaram também
a infeliz Angelica dormia, no barco a abarrotar de gente roesta.
alguns dos marujos vieram a terra, Içada a vela que o mastro sustém,
para procurar lenha e água sadia; seguiu a nave para a ilha funesta.
e dentre as belas a flor mais bonita Ali, a dama encerraram num forte,
encontram, nos braços do eremita. até que o dia lhe calhasse em sorte.
62 Oh tanto cara e tanto excelsa presa, 65 Mas teve o condão, por ser assim bela,
para povo tão bárbaro e tão vilão! de na gente fera inculcar piedade;
Quem pode crer, Fortuna, em tal crueza: e foram diferindo a morte dela,
sobre o que é humano tens tal condão guardando-a para maior necessidade;
que, para alimento dum monstro, a beleza e, enquanto lhes restou uma donzela,
dás que à Índia Agricane em rebelião pouparam essa angélica beldade.
fez vir, através da caucásia porta24 , Ao monstro foi levada finalmente,
ali ficando meia Cítia morta? chorando, a acompanhá-la, toda a gente.
25
63 A beldade pela qual deu Sacripante 66 Quem dirá a angústia, o pranto, os gemidos,
mais que à honra e ao reino o seu empenho; o alarido que para o céu desabrocha?
a beldade por que o senhor de Anglante Estranho é que não se abrissem os lidos,
manchou a clara fama e o alto engenho 26 ; quando foi posta sobre a fria rocha
a beldade que fez todo o Levante em cadeias, todos dela esquecidos,
conturbar-se e obedecer de mau cenho 27 esperando morte abominosa e frouxa.
não tem agora, só e abandonada, Eu não direi, que é tal minha emoção
uma ajuda, uma palavra, nem nada. que a meus versos dou outra direcção,
1 42 ORLANDO FURIOSO
67 tentando achar outros menos plangentes, 69 Essa Paris que entretanto assedia
até meu espírito se recompor; o famoso filho do rei Troiano30 ,
não poderiam esquálidas serpentes, e que chegou a um tal extremo um dia
nem, cioso da cria, tigre em furor, que quase sucumbiu ao africano:
e os venenosos que dos Atlas quentes por sorte o Céu suas preces ouvia,
aos rubros lidos erram28 , ao calor, inundando de negra chuva o plano:
ver ou imaginar sem amargura senão, teria a africana lança
Angelica amarrada à rocha dura. ganho o Império e o grão nome de França.
68 Oh, se em Paris de tal soubera Orlando, 70 O Sumo Criador o olhar volveu
que ali para procurá-la faz prodígios; ao velho Carlos, para recompensá-lo;
ou os dois29 que o frade foi enganando chuva repentina o fogo abateu:
com o arauto dos antros estígios! não podia a força humana apagá-lo.
Mil mortes afrontariam, tentando Sábio é quem sempre a Deus recorreu,
encontrar os angélicos vestígios; pois ninguém melhor podia ajudá-lo.
mesmo que estes achassem, que fariam, Foi o devoto rei conhecedor
se tanto da dama se distanciam? de ao divino auxílio ser devedor.
71 De noite Orlando às incómodas plumas3 1
transmite o seu pensamento veloz.
Para aqui para ali o gira, ou suas sumas
num só reúne, sem deter o algoz,
como em repouso da água as escumas:
se, de lua ou sol, raio as toca após,
nos tectos dão reflexo em grande salto,
à esquerda, à direita, para baixo e ao alto.
CANTO VIII 1 43
n A sua dama, que lhe volta à mente, 75 Que ao menos a pusesse em guarda boa,
sem jamais dela se ter apartado, em Paris ou em cidadela forte.
reacende-lhe e torna mais ardente Que a tenha dado a Namo, bem me soa,
a chama que o dia tinha amainado. foi só para que a perdesse de tal sorte.
Com ele tinha ela vindo para o Poente, Para bem guardá-la, qual melhor pessoa
do Catai, e aqui se tinha eclipsado; que eu? Devera, sim, e até à morte,
não mais vira o rasto dos passos seus mais que aos meus olhos e ao meu coração
desde o revés de Carlos em Bordéus32 • tê-la bem guardado, e não o fiz, não.
73 Por isso Orlando sofria, e consigo 76 Oh, onde, sem mim, minha doce vida,
em vão na sua inépcia repensava. tens paradeiro, tão jovem e bela?
- Amor (dizia) , como vil contigo Como, da luz do dia desprovida,
me comportei! Meu Deus, quanto me agrava, a desgarrada ovelha se acautela,
poder ter-te dia e noite comigo, e, pelo pastor esperando ser ouvida,
pois tua bondade me o não negava, vai balindo desta parte para aquela,
e deixar-te nas mãos de Namo 33 pôr, sendo escutada pelo lobo distante,
por não saber-me a tanta injúria opor! e em vão a busca o pastor, soluçante.
74 Não tinha eu motivo para me escusar? 77 Onde estás tu agora, ó minha guia?
Não me haveria Carlos contrafeito; Será que vais inda sozinha errando?
e, se sim, quem me podia obrigar? Ou tens dos cruéis lobos companhia,
Quem te iria tirar-me, a meu despeito? sem que te guarde o teu fiel Orlando?
Não podia eu ser lesto a pelejar? A flor34 que lugar nos Céus me daria,
Deixar tirar-me o coração do peito? essa flor que intacta fui conservando
Pois nem Carlos, nem toda a sua gente, para não perturbar teu espírito casto,
para tirar-te-me à força era potente. devem já, ai!, tê-la colhido e gasto.
144 ORLANDO FURIOSO
78 Oh, que desgraçado sou! Só me resta 84 Sem pensar que as imagens falsas são
morrer, se a flor sofreu mutilação! quando por medo ou desejo se sonha,
Ó bom Deus, faz que não seja por esta da donzela sentiu tal compaixão,
que eu me doa, mas por outra razão. julgando-a exposta ao perigo ou à vergonha,
Pois, se for, fim ponho à vida funesta, que salta apressado do leito ao chão.
e à alma dou eterna danação. - De malha e couraça todo se enfronha,
Tal dizia, a chorar e suspirando, e foi buscar Brigliadoro37 , o cavalo;
consigo mesmo o infortunado Orlando. o escudeiro, porém, não quis levá-lo.
79 Por toda a parte as lassas criaturas 85 E, para poder passar por todo o lado38
davam repouso aos espíritos cansados, (a tal sua dignidade o aconselha) ,
uns sobre penas, outros pedras duras, não leva o seu emblema esquartelado,
na erva, em mirtos ou faias pousados; distinto pela cor branca e a vermelha,
tu, Orlando, os olhos cerrar procuras, preferindo ir de negro ornamentado:
mas teus pensamentos, duros, pesados, achou que à sua dor tal se assemelha;
nem tão-pouco um sono breve e fugaz tinha-o tirado a um miramolim39
te deixam ao menos gozar em paz. que às suas mãos um dia achara o fim.
80 Parecia a Orlando, numa campina 86 Quando é meia-noite, silente, parte,
de odoríferas flores salpicada, sem despedir-se ou dar palavra ao tio40 ;
ver o belo marfim, e a purpurina mesmo ao fiel amigo Brandimarte4 1
pelas mãos do próprio Amor nele pintada, não dizer que partia preferiu.
e as duas estrelas35 , fonte genuína Mas quando o Sol, que seus raios disparte,
onde a alma de Amor era ateada: da morada de Titono saiu42
falo dos belos olhos e da face e as sombras negras todas expulsou,
que ao coração lhe dão prisão tenace. viu logo o rei que Orlando se ausentou.
81 Sentia todo o prazer, toda a festa 87 Apercebe-se o rei com grande abalo
que sentir pode algum feliz amante; que o sobrinho partiu durante a noute,
mas surge uma tempestade molesta quando devia ali estar e ajudá-lo;
que flores e plantas destrói, fulminante; e à sua cólera não pôs garrote:
não é comum ver semelhante a esta, começa a lamentar-se e a censurá-lo,
quando sopra aquilão, austro e levante36 • com desagradável e duro mote;
Na sua busca vã para se abrigar, faz-lhe ameaças, chegando a dizer
num hostil deserto parecia errar. que o fará do grave erro arrepender.
82 Sem saber como sua dama se some, 88 Brandimarte, que a Orlando amor par
perde-a de vista em meio ao ar revel; tem quanto a si mesmo, não ficou quedo;
por todo o lado faz seu belo nome ou que o pensasse fazer regressar,
ressoar, pelos bosques e pelo vergel. ou por ouvi-lo censurar azedo,
E, enquanto diz: - O astro atraiçoou-me! o tempo apenas se quis demorar
Quem transformou minha doçura em fel? -, para do escuro da noite ir em segredo.
chega-lhe a voz da dama que lhe implora À sua Fiordiligi43 nada disse,
ajuda e protecção, enquanto chora. para que ela o intento não lhe impedisse.
83 Donde lhe soa o grito vai veloz, 89 Era esta a dama a quem ele se unira,
e, dum lado para outro, aflito erra. muito pouco estando na sua ausência;
Oh, quanto é sua dor dura e atroz, usos, graça e beleza a distinguira,
pois sinal do doce olhar não aferra. dotada de bom senso e de prudência;
Eis que ouve então dizer uma outra voz: e, se ora dela não se despedira,
- Não esperes dela alegria na Terra. - foi por esperar rever sua aparência
A este horrível grito despertou, no mesmo dia; porém, sucedeu
e banhado em lágrimas se encontrou. que mais tardou do que era intento seu.
CANTO VIII 1 45
NOTAS
�
1 Braço esquerdo: a ave de rapina usava-se no braço 13 No mar Febo encoberto: ao pôr do Sol.
esquerdo.
14 Grão-Motor: Deus.
2 Imagens [. .. } espirais: objectos e desenhos usados na
15
arte da magia. Arma encantada: a lança de ouro que agora pertence
a Astolfo (cf. VIII: 1 7- 1 8) .
3
Cftia: antigo nome da actual Tartária, região da
Federação Russa situada a leste de Moscovo. 16 Da Tartária [. . .} vencida: no O. lnnamorato,
Agricane, rei da Tartária, combateu e derrotou
4 Duque inglês: Astolfo. Galafrone, grão-cão do Catai, por lhe recusar a mão da
filha, Angelica.
5 Argalia: irmão de Angelica, morto por Ferraú (cf.
17
nota a I:29) . Paulo ou Hilarião: Paulo, primeiro eremita do
Egipto (Tebas), e Hilarião, primeiro eremita da
6 Hora nona: ou noa; hora canónica correspondente Palestina, dois modelos de santidade.
aproximadamente ao período entre as 1 3 e as 1 5 horas.
18
Corcel [. .. } embatoca: seguindo a tradição literária,
7
Berwick: cf. nota a IV:53. Ariosto utiliza o cavalo como metáfora sexual, expressa
mente do órgão genital masculino. Aqui e na oitava
8
Salsa onda [. ..} poupa: o ponto onde o mar salgado seguinte, dá expressão à impotência sexual do eremita.
se mistura às águas doces do Tamisa, ou seja, a foz desse
rio. 1 9 Ebuda: ilha a ocidente da Escócia, que se supõe no
actual arquipélago das Hébridas.
9
Otone: rei de Inglaterra, pai de Astolfo.
20
Proteu: Na Odisseia, Proteu é apresentado como um
1 0 Bretanha: Grã-Bretanha. deus do mar, com a tarefa de apascentar os animais mari
nhos pertencentes a Posídon. Possuía o dom da meta
1 1 Negro antro: Inferno. morfose, podendo tomar a forma não só de seres vivos,
mas de tudo o que quisesse.
12
Grande mar: o Atlântico.
1 46 ORLANDO FURIOSO
21
Neptuno: Neptuno é o deus romano identificado 34 A flor: a virgindade de Angelica, que ele respeitou, e
com Posídon, deus grego dos mares. que o teria feito feliz como um deus.
22 35
Rompe ordem e lei: rompe a ordem e a lei da nature Purpurina [. . .] estrelas: evocação metafórica do rosto
za, levando para a terra os animais marinhos. de Angelica.
23 36
Foz: entrada do porto. Aquilão, austro e levante: ventos que sopram de
norte, sul e leste.
24
Caucdsia porta: passo de Derbent; fortaleza no
37
Cáucaso, destinada a impedir a passagem dos Tártaros. Brigliadoro: cavalo de Orlando.
25 Sacripante: rei da Circássia (cf. 1:4 5). 38
Passar por todo o lado: Orlando disfarça-se de sarra
ceno, para poder, sem ser reconhecido, penetrar nos
26
Senhor [. . .] engenho: Orlando manchou a clara fama campos- dos Mouros em busca de Angelica.
e o alto engenho, ao abandonar o campo cristão, sitiado
39
pelos Sarracenos, para ir procurar Angelica. Miramolim: califa ou chefe, entre os muçulmanos.
27
Levante [. . .] cenho: todo o Oriente foi conturbado 40 Tio: Carlos Magno. A mãe de Orlando, Berta, era
por causa de Angelica. irmã do imperador.
28
Venenosos [. . .] erram: animais venenosos que erram 41 Brandimarte: grande amigo de Orlando, por ele con
pelo deserto que, no Norte de África, se estende dos vertido ao cristianismo.
montes Adas ao mar Vermelho (rubros lidos) .
42
Da morada de Titono saiu: o Sol saiu da morada de
29 Os dois: Rinaldo e Sacripante (cf. II: 1 5- 1 7) , ludi Titono (marido da Aurora), ou seja, surgiu a oriente.
briados pelo demónio (arauto) que o eremita (frade)
invocara dos Infernos (antros estígios) . 43 Fiordiligi: a esposa de Brandimarte, que o costuma
acompanhar em todas as empresas.
3
° Filho do rei Troiano: Agramante (cf. 1: 1) . 44 O conde eu sou: disfarçado com as armas e insígnias
31
Incómodas plumas: o leito torna-se incómodo a quem que herdou de Almonte quando o matou (cf. nota a
não consegue conciliar o sono. I:28: 5), Orlando teve de se identificar verbalmente para
que a guarda lhe franqueasse a saída.
32
Desde [. . .] Bordéus: cf. 1:9:5-6.
33
Namo: o duque da Baviera (cf. 1:8).
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CANTO IX
�
4 Tem tal nobreza o generoso Orlando 10 À margem não vai mais que aquela marca,
que não ousa ferir gente adormecida. receando que à força ele arremeta.
Ou num ou noutro lado, procurando Orlando implora que na sua barca,
vai o vestígio da sua dama querida. para o passar para a outra margem, o meta.
Se encontra algum de vela, suspirando E ela: - Cavaleiro aqui não embarca,
descreve-a tal como é e está vestida; o qual por sua fé não me prometa
e depois pede que, _por cortesia, que a fazer uma batalha se apresta,
para ir onde ela está lhe indique a via. a mais justa do mundo e a mais honesta.
5 Ao chegar o dia claro e luzente, 11 Se quereis, cavaleiro, transferir
buscou todo o exército mouresco; comigo à outra margem vossa rota,
podia fazê-lo seguramente, prometei-me que, antes de se atingir
tendo vestido o hábito arabesco; do mês que se aproxima a última gota,
e nisto foi ajudado igualmente ao rei de Hibérnia4 vos ireis unir,
por saber o idioma soldadesca; j unto do qual se faz a bela frota
era em africano tão entendido que irá destruir a ilha de Ebuda,
que dir-se-ia em Trípoli nascido. que é de todas que o mar cerca a mais cruda.
6 Ali tudo buscou, numa demora 12 Deveis saber que para lá da Irlanda,
de três dias, e só com este fito; entre outras que há, essa ilha jaz;
depois cidades, burgos delas fora, chama-se Ebuda, e sua lei manda
não espiou só por França e seu distrito2 , que em redor roube o seu povo rapaz;
mas primeiro Auvergne, e Gasconha agora, e quantas mulheres apanham, vianda
viu até ao lugar mais interdito; todas são para um animal voraz
e procurou da Provença à Bretanha, que cada dia ao lido vem comer,
e da Picardia aos confins da Espanha. nova dama achando para se pascer;
7 De fim de Outubro a início de Novembro,
nessa estação em que a frondosa veste
à planta cai e lhe descobre o membro,
até que nua fica ao frio agreste,
e as aves juntas vão, desde Setembro,
Orlando a demanda amorosa investe.
Todo o Inverno não a abandonou,
e nem na nova estação a deixou.
Indo ele um dia, como costumava,
duma terra a outra, um rio3 ali houve
que entre Normandos e Bretões põe cava,
e para o mar vizinho calmo se move;
que então caudaloso e branco espumava,
pela neve mole e o que no monte chove;
a força da água a ponte arrancara,
impedindo o passo a quem lá passara.
9 Olha o paladim um e outro lado
ao longo das ribas, para ver se vê
(visto que não é peixe nem alado)
como há-de pôr na outra margem pé;
nisto um barco vê vir, para si virado,
e uma donzela vem, sentada à ré,
que faz sinal de querer vir junto dele;
mas não deixa vir a terra o batel.
CANTO IX 1 49
22 - Quero que saibas, senhor, que nasci 25 Mal Bireno daqui tinha partido
do conde de Holanda, e a ele mui grata (assim se chama o meu fiel amante) ,
(mas dele não fui só eu que floresci, eis que o rei da Frísia 1 1 (a qual, quanto o lido
pois dois irmãos tive por sorte beata) do mar separa o rio, nos é distante) ,
fui: tudo aquilo que a meu pai pedi, querendo tornar seu filho meu marido,
sempre a resposta dele foi cordata. seu único filho, chamado Arbante,
Estando eu assim feliz, aconteceu os dignitários do seu estado manda
que na nossa terra um duque apareceu. pedir-me a mim a meu pai, à Holanda.
23 Duque era da Zelândia9 , e então ia 26 Eu, que ao meu amante fidelidade
para a Biscaia 10 , para os Mouros guerrear. devo, pois, dada, não mais se desata,
A idade e a beleza que nele floria e Amor me tiraria a liberdade
novel amor em mim fez acordar: de o fazer, para não ser a ele ingrata,
num instante cativa me fazia; para o trato não se tornar realidade,
e, por quanto pude nele observar, pois já ia avançada a concordata,
. . .
eu ena e ereto, e ereto crer no vero, digo a meu pai que prefiro, a casar-me
que me amava e ama de amor sincero. com o da Frísia, que mande matar-me.
24 Dias retido pelo contrário vento 27 Meu bondoso pai, que só queria quanto
(contrário aos outros, que a mim foi propício; eu queria, afligir-me não pretendeu;
quarenta foram; para mim, um momento, para me consolar e estancar o pranto
já que correram em veloz bulício) , em que eu estava, o acordo dissolveu;
várias vezes houvemos parlamento, o que ao soberbo rei da Frísia tanto
tendo feito um acordo esponsalício: agravo causou, e de ódio acendeu,
eu a ele, e ele a mim, de matrimónio que veio à Holanda iniciar a guerra,
no seu regresso, demos voto idóneo. e em breve a família toda me enterra.
2a Além de ser robusto, e tão potente
que poucos pares tem na nossa idade,
e tão astuto que torna impotente
nos outros força, argúcia e qualidade,
armas possui ele que a antiga gente
não viu nem, tirando ele, a actualidade:
um tubo com duas braças, em aço,
e uma bola e pólvora por chumaço 1 2 •
29 Com fogo atrás, onde o tubo é fechado,
toca um orifício que mal se vê,
assim como pelo médico é tocado
o ponto da veia que estancar crê;
sai então a bola, ao ser disparado,
e como raio e trovão faz banzé;
tal qual o corisco, por onde passa
queima, derruba, fende e despedaça.
30 O nosso campo duas vezes derrota
com este ardil, e os meus irmãos matou;
um no primeiro assalto: a bola bota
no coração (o arnês lhe atravessou) ;
no segundo ataque o outro, que em frota 1 3
fugiu, do corpo a alma lhe apartou;
pelas costas o atingiu de tal jeito
que fez a bala sair-lhe pelo peito.
CANTO IX 151
31 Refugiado meu pai desse transtorno 37 Dois servos irmãos, por meu pai estimados,
num castelo que tinha por acaso, escolhi devido à sua lealdade:
pois tudo o mais tinha perdido em torno, de grande engenho e coragem dotados,
com golpe idêntico encontrou o ocaso: mas mais ainda de fidelidade,
indo daqui para ali, fez um retorno, pois, na corte crescidos e criados,
acudindo àquele ou a este caso; connosco vivem desde tenra idade;
o traidor fez de longe pontaria tão bem me queriam que até pouco achavam
e no meio dos olhos o atingia. se a vida por minha salvação davam.
32 Mortos irmãos e pai, fiquei sozinha, 38 Comuniquei-lhes a minha intenção,
da ilha de Holanda a única herdeira, e logo os dois tomaram meu partido.
e o rei da Frísia, que vontade tinha Um na Flandres prepara embarcação,
de içar nesse estado sua bandeira, na Holanda comigo outro é retido.
faz-me saber, e à população minha, Enquanto estrangeiros e os da nação
que paz me dará e vida fagueira, para as bodas se convidam, foi sabido
se desta vez quiser ser aceitante que Bireno, na Biscaia, uma armada
de ter por marido seu filho Arbante. tem já contra a Holanda preparada.
33 Eu, não só pelo grande ódio que transporto 39 Pois assim que houve a primeira batalha,
no peito, a ele e a toda a iníqua seita, em que meu irmão teve fim funesto,
por terem meu pai e meus irmãos morto, logo eu à Biscaia um correio, sem falha,
e a minha pátria pilhada e desfeita; levando a notícia a mandar me apresto;
como àquele outro trair não suporto, enquanto Bireno para vir trabalha,
a quem a promessa já estava feita, o rei da Frísia conquistou o resto.
que homem não havia que desposasse, Bireno, que de tal nada sabia,
enquanto ele de Espanha não regressasse: para nos socorrer ao mar se fazia.
34 «Por cada mal que sofro, quero um cento 4o Tal ouvindo o frísio de um mensageiro,
sofrer (respondo) , e arriscar todo o resto; do matrimónio seu filho encarrega;
ser morta, queimada viva e ao vento com sua armada ao mar se faz ligeiro,
as cinzas esparsas; mas isso ,contesto.» encontra o duque e vence-o na refrega,
Tenta a minha gente de tal intento e, quer Fortuna, fá-lo prisioneiro;
tirar-me: suplicam, fazem protesto; porém disto a nós notícia não chega.
a terra e eu entregar-lhe se ultima, Desposa-me entretanto o filho, e impõe
para razão não dar a que n os oprima. que nos deitemos quando o Sol se põe.
35 Quando os protestos e an 1eaças em vão 41 Por detrás das cortinas esconder ouso
viram ser, e que eu não lhe. s cederia, o meu fiel, que nada se mexeu
com o frísio se acordaram, , e, em mão, antes de ver vir até mim o esposo;
eu e os muros lhe deram, cc >mo queria. e nem tempo de se deitar lhe deu:
O frísio, sem fazer-me acto vilão, com um machado e o braço valoroso,
de vida e reino me dá garanda, por detrás a cabeça lhe fendeu,
se na minha decisão eu ceder · e privou-o da palavra e da vida;
e concordar ser de Arbante mulher. e a garganta eu lhe abri, numa investida.
36 Vendo-me eu assim forçada, desejo 42 Tal como no açougue o boi cai no chão,
para lhe sair das mãos perder .a vida; cai o mal-nado filho, para desdém
mas se antes me não vingo, 1cenho pejo, do rei Cimosco 14 , mais que os mais vilão;
por quanta injúria me foi in fligida. tal fama o ímpio rei da Frísia tem,
Tenho pensado; e com triste:z.a vejo que me matara um e outro irmão
que só simulando terei saída: e o pai, e, para mais domínio também
finjo que o desejo, e não que me maça, ter do meu estado, queria-me por nora;
que me perdoe e sua nora me faça. e talvez me matasse sem demora.
1 52 ORLANDO FURIOSO
43 Antes que alguém por ali apareça, 44 Não sei se o rei da Frísia mais sofrente
levando o que vale e é menos pesado 1 5 , pelo filho morto ou mais enraivecido
ao mar o meu fiel me desce à pressa, contra mim ficou, quando foi presente,
suspensa dum cabo à janela atado, ao outro dia, ante o acontecido.
lá onde o irmão, atento, regressa, Soberbo voltava com sua gente,
no navio na Flandres aparelhado. trazendo Bireno preso e vencido;
Dando ao vento as velas, à água os remos, crendo que vinha para a boda e para a festa,
salvámo-nos e a Deus o agradecemos. encontrou a cena tetra e funesta.
CANTO IX 153
52 O meu receio é se, ao ter-me cativa 5s Não pretende ele que ela seja dada
e com torturas várias me desfaça, ao inimigo para salvar Birena:
a libertar Birena ele se esquiva, os dois há-de salvar, se a sua espada
para não ter do meu sacrifício a graça; e todo o seu valor usar em pleno.
que tão vilão, e cheio de raiva altiva, No mesmo dia se fazem à estrada,
só de matar-me não se satisfaça, que o vento é de feição e o ar sereno.
e o que a mim fizer, cheio de veneno, Tem pressa o paladino, pois almeja
tal e qual faça ao infeliz Bireno. ir à ilha do monstro dar peleja.
53 Ora, o motivo de eu contar a vós 59 Vira ora a uma ora a outra banda,
este meu caso, e de contá-lo a quantos pelos fundos canais, o barqueiro a vela:
senhores, cavaleiros vêm a nós, entre as ilhas da Zelândia ciranda;
é só para que, falando disto a tantos, uma atrás fica e outra se desvela.
algum me queira garantir que, após Pisa Orlando ao terço dia a Holanda,
eu ser àquele cruel levada em prantos, na nave ficando a que tem querela
Bireno em ficar preso não incorra, com o rei frísio: Orlando, que ele foi morto,
nem queira ele, morta eu, que ele morra. quer que ela saiba antes que desça ao porto.
54 A alguns pedi para estarem comigo 60 Armado, o paladino desembarca
quando ao rei da Frísia eu me entregar; num corcel que era cinzento e trigueiro,
mas que prometa, qual leal amigo, criado em Flandres, nado em Dinamarca,
que a troca será feita em tal andar e mais possante era do que ligeiro;
que, entregue eu, Birena desobrigo; porque deixara, ao meter-se na barca,
para que, quando o tirano me matar, na Bretanha o corcel seu companheiro,
morra contente, porque a minha morte esse Brigliadoro belo e galhardo,
a vida terá dado ao meu consorte. que paralelo só tem em Baiardo 16 •
55 Ninguém inda se quis comprometer, 61 Chega Orlando a Dordrecht 17, onde comprova
e com seu juramento afiançar-me que muita guarda armada há junto à porta;
que, se ao ser-lhe eu entregue, não quiser sim, porque sempre, mas mais quando é nova,
por troca aquele rei Birena dar-me, a dominação suspeitas comporta;
não deixará que contra o meu querer e porque pouco antes chegara a nova
fique presa: temor lhes causa alarme, que, da Zelândia, frota armada aporta,
devido à arma a que se crê não possa de gente e navios que um primo traz
resistir armadura, por mais grossa. daquele senhor que em prisão ali jaz.
56 Se não for vosso valor desconforme 62 Orlando pede a um da guarda armada
do vosso altaneiro e hercúleo aspecto, que diga ao rei que um cavaleiro errante
e quereis dar-me ou reter-me, conforme com ele se quer bater com lança e espada;
o seu proceder seja ou não correcto, mas, antes, pacto de honra irá avante:
peço que comigo venhais, a pôr-me se for Orlando a parte derrotada,
em suas mãos: que assim não me inquieto, a dama entrega que matou Arbante,
tendo-vos comigo, que apesar de eu que se encontra em lugar e condição
morrer, não morrerá o senhor meu. - de sem demora lhe ser posta em mão;
57 Aqui a dama o seu falar calou, 63 por outro lado, quer que o rei prometa
por pranto e suspiros interrompido. que, se for o rei a parte vencida,
Orlando, quando ela a boca fechou, livre logo Birena da grilheta
ele, que a fazer bem era compelido, e permita que vá à sua vida.
nada em palavras com ela gastou, Depressa o soldado faz de estafeta;
pois nelas era, de si, comedido; mas o rei, que virtude só fingida
mas prometeu, e a palavra concede, conhece, dirigiu o seu intento
que fará mais que quanto ela lhe pede. à fraude, ao engano e ao traimento.
CANTO IX 1 55
64 Pensa que, tendo em mão o cavaleiro, 67 Aquele que caça pássaros tem vivos
terá a dama que o tinha ofendido, os primeiros que apanha, por pretender
se tê-la em seu poder é verdadeiro ainda muitos mais fazer cativos,
e se o soldado bem tinha entendido. se voar ou cantar estes fizerº ;
Trinta homens mandou tomar carreiro o rei Cimosco usou tais atractivos,
outro que a porta em que ia dar-lhe ouvido, mas não quis Orlando como esses ser
os quais, depois que ocultos prosseguiram, que à primeira se deixam apanhar,
nas costas do paladino surgiram. e rompeu o cerco que vm armar.
65 Entretanto o traidor o entretém 68 O cavaleiro de Anglante, onde avistou
com palavras, até avistar quantos mais gente e armas, apontou a hasta;
homens fez sair, como lhe convém; e um, outro e outro nela empalou,
pela porta sai então, com outros tantos, como se feitos duma fina pasta;
tal como o caçador cercadas tem seis nela couberam e segurou
no bosque as feras por todos os cantos; todos na lança, a qual porém não basta
e como em Volana 1 8 os peixes, na charca, para o sétimo, que assim fica de fora,
o pescador com longa rede abarca; mas que morre da ferida sem demora.
66 assim o rei da Frísia, com denodo, 69 Do mesmo modo, nas margens de areia,
para que ele não fuja se precavê. de rãs vemos, nos canais e nas valas,
Quere-o vivo ter, e não de outro modo, pelo hábil archeiro a flecha ser cheia,
e consegui-lo facilmente crê, pelos flancos ou pelo dorso a empalá-las;
pois do raio terrestre 1 9 com que a rodo e só quando o ferro encheu, em cadeia,
gente matou ora não se provê; de ponta a ponta, começa a tirá-las.
não lhe parece que para aqui convenha, A pesada lança para longe espalha
pois em prender, e não matar, se empenha. Orlando, e de espada vai à batalha.
1 56 ORLANDO FURIOSO
70 Partida a lança, empunha aquela espada 74 que rola pedras e ramos estilhaça,
que nunca foi brandida em vão duelo; e, para onde volta a altiva fronte,
o fio ou a ponta, em cada estocada, ruído faz, que se crê despedaça
para homem montado e a pé é flagelo: a selva em volta e vem abaixo o monte.
onde toca, dá cor avermelhada2 1 Cimosco espreita, para ver se não passa
a verde, azul, negro, branco e amarelo 22 • Orlando sem que seu castigo afronte.
Lamenta Cimosco o tal tubo e o fogo23 Mal aparece, ao orifício acode
não ter à mão, para lhe dar desafogo. com a chama, e o ferro logo explode.
71 Pede com voz grossa e ameaçadora 75 Atrás reluz, qual fulmíneo clarão,
que lhos tragam, mas não lhe dão ouvido; à frente estoira e o trovão entoa.
pois quem de se salvar achou ser hora Tremem muros, e sob os pés o chão;
prefere na cidade estar recolhido. o céu ribomba quando o estrondo soa.
O rei frísio, os outros vendo ir embora, A seta em fogo, que não dá perdão,
também de se salvar toma partido: e destrói tudo aquilo que abalroa,
corre à porta e a ponte24 quer alçar, assobia, sibila, mas sem ferir
mas bem lesto é o conde a lá chegar. quem o assassino queria atingir.
n O rei volta as costas e deixa Orlando 76 Ou seja porque a pressa a mão lhe tolha,
senhor da ponte, e das portas também; e a ânsia de o matar o faça errar;
e foge, à frente de todos passando, ou que o coração trema como folha,
por ser mais veloz o seu palafrém. fazendo mãos e braços vacilar;
Ao conde não interessa o gentio bando; ou porque o divino querer não acolha
só do vilão a morte lhe convém; a vontade de essa vida ceifar,
mas o corcel não é bom para correr: o tiro para o corcel se desviou;
parece estar quieto, e o outro asas ter. da terra nunca mais se levantou.
73 Mudando de via, foge da vista 77 À terra vão cavalo e cavaleiro:
ao paladino; mas regressa logo a um mal toca, outro para sempre peia;
com novas armas que entretanto aquista levanta-se o conde, ágil e ligeiro,
e tem consigo: o ferro oco e o fogo2 5 ; o qual mais força e vigor alardeia.
escondido, espera lhe faz imprevista, Tal como o líbio Anteu27 , que mais guerreiro
como faz o caçador o seu jogo, ficava sempre que tocava a areia,
com os cães armados 26 e a lança, à espera assim pareceu que sua força, quando
do javali, destruidora fera; a terra tocou, dobrou em Orlando.
78 Quem tenha visto do céu vir o fogo
que Júpiter com atroz som descerra28 ,
e entrar em sítio onde, sem desafogo,
carvão, enxofre e salitre se encerra29 ;
que assim que chega, mal lhe toca, e logo
parece arder o céu e mais a Terra,
quebra muralhas, mármores esventra,
e voam pedras onde o céu se adentra,
79 imagine30 tal coisa acontecendo
quando o paladino a terra tocou:
um semblante tão feroz e horrendo,
de fazer estremecer Marte, mostrou.
Assustado, o rei da Frísia, torcendo
toda a brida, para fugir se voltou;
a persegui-lo Orlando se projecta,
mais veloz do que sai do arco a seta;
CANTO IX 1 57
80 e aquilo que primeiro não pudera 83 Este povo 35 sempre fora inimigo
fazer a cavalo, agora a pé faz. do rei da Frísia e todo o seu sequaz,
De quem não viu, toda a ideia supera porque lhes matara o seu rei antigo,
a velocidade em que vai, tenaz. e porque era injusto, ímpio e rapaz.
Alcança-o, ergue a espada e dilacera Foi Orlando mediador, como amigo
o elmo de forma tão eficaz de ambas as partes, e entre elas fez paz;
que lhe abre a cabeça até ao pescoço unidas, não deixaram frísio vivo
e ao chão o manda, feito num destroço. ou que, vivendo, não fosse cativo.
81 Nisto, erguer-se na cidade se sente 84 As portas dos cárceres rebentadas
novo tumulto e som de espadeirada; são, sem incómodo de achar a chave.
porque o primo de Bireno3 1 e a gente Palavras de gratidão repassadas
que de sua terra trouxera embarcada, Birena ao conde diz, em tom suave.
ao encontrarem a porta patente, Dali, juntos e com várias brigadas,
na cidade entraram de revoada; vão aonde Olimpia36 espera, na nave;
correm-na toda sem ter estorvo algum, assim se chama aquela que da ilha,
pois medo ao paladim tem cada um. por seu direito, o domínio perfilha;
82 Debanda o povo à toa, pois quem são 85 essa que Orlando até ali trouxera
estas gentes não sabe, ou quem as manda; sem suspeitar que ele faria tanto;
mas pelas vestes e a fala vendo vão pois que morrer bastar lhe parecera
que são zelandeses, e o medo abranda: para aliviar seu amado do pranto.
paz pedem, e carta branca32 lhes dão, Todo o povo a reconhece e venera.
rendendo-se ao capitão que os comanda; Demorado seria contar quanto
querem contra o Frísio33 lutar também, Bireno a ela e ela a ele afaga,
que o seu duque34 em prisão aqui mantém. e as honras que prestam ao conde37 , em paga.
86 O povo senta no trono paterno
a dama, e fidelidade lhe jura.
Ela a Birena, a quem com laço eterno
Amor a ligou com cadeia dura,
do reino e de si confia o governo.
E ele, que seus cuidados não descura,
dos castelos e de toda a nação
seu primo deixa como guardião;
87 pois à Zelândia voltar pretendia,
levando consigo a fiel consorte;
e aqui no reino dizia que queria
com a Frísia tentar a sua sorte38 ;
pois disso em mão tinha uma garantia,
um penhor que ele achava muito forte:
a filha do rei da Frísia ficara
entre os cativos, que muitos contara.
88 E diz que por mulher um seu irmão
mais jovem recebê-la idealizou.
O senador romano39 parte, então,
nesse dia em que Bireno zarpou.
Nos despojos que tinha não pôs mão,
entre tantos e tantos que ganhou,
a não ser no tormento semelhante,
como se disse, ao raio fulminante.
CANTO IX 159
---.--
NOTAS
1
Durindana: a espada Durindana, famosa na literatu 7 Onde [. .. ] mar: foz do no Escalda, que banha
ra cavaleiresca. Orlando obteve-a de Almonte, mas ori Antuérpia.
ginalmente pertencera a Heitor.
8 Terra: cf. 1 8:3.
2
França e seu distrito: refere-se a Íle-de-France, região
9
do Norte de França cuja capital é Paris, e é atravessada Zelândia: ilha dinamarquesa.
pelos rios Sena, Oise e Mame.
10
Biscaia: província do Norte de Espanha, na região
3 Um rio: o rio Couesnon, que separa a Normandia da do País Basco, cuja capital é Bilbau.
Bretanha e desagua na baía do Mont-Saint-Michel.
4 Hibérnia: era o nome latino da Irlanda. 11
Frísia: corresponde hoje à parte setentrional da
Holanda, da qual estava separada apenas pelo rio Reno
5 Álbion: nome antigo e poético da Inglaterra, deriva no seu ponto mais largo, isto é, junto à foz.
do da falésia branca (lat. alba) de Dover, no canal da
12
Mancha, que se avista de França. Um tubo [. . .] chumaço: trata-se do arcabuz, usado
pela primeira vez no séc. XJV, ou seja, cinco séculos após
6 De poente e de aquilão: de oeste e norte («aquilão» Carlos Magno. Há vários anacronismos deste género no
designa a região boreal) . poema. Neste caso, talvez seja uma oportunidade para
condenar as armas de fogo.
1 60 ORLANDO FURIOSO
13 Em frota: em grupo. 28
Do céu [. . .] descerra: raios e relrunpagos.
14 29
Cimosco: o rei da Frísia. Sítio [. . .] encerra: um paiol de pólvora.
15 Vale e é menos pesado: coisas de pouco peso e volume, 30
Imagine: o sujeito encontra-se no v. 1 da oitava ante
mas de grande valor. rior (quem tenha visto) .
16 31
Baiardo: o cavalo de Rinaldo. Primo de Bireno: cf. 6 1 :5-8.
17 32
Dordrecht: cidade do Sul da Holanda. Carta branca: documento em branco, em que o ven
cedor pode registar livremente as condições da rendição.
18
Volana: situa-se num dos braços do delta do Pó, rico
33
em peixe. O Frfsio: o rei da Frísia e seus sequazes, que agora
dominavam a Holanda.
19
Raio terrestre: o arcabuz.
34
O seu duque: Bireno.
20
Se voar [. . .] fizer: métodos para capturar pássaros.
35
Mantendo uma ave atada a um fio, ela esvoaça e atrai Este povo: os Holandeses.
outras; também uma ave canora, numa gaiola, atrai
36
outras com os seus trinados. Olimpia: só agora Ariosto revela o nome da donzela
que é legítima herdeira do trono da Holanda.
21
Avermelhada: de sangue.
37
Conde: Orlando.
22
liérde [. . .] amarelo: cores das insígnias nas armaduras
38
dos adversários. Frísia [. . .] sorte: tentar a sua sorte na conquista do
reino da Frísia.
23
Tubo e o fogo: o arcabuz.
39
Senador romano: título que já no O. Innamorato era
24
Ponte: a ponte levadiça, sobre o fosso que rodeava os atribuído a Orlando.
castelos.
40
Para não evitar [. .. } arrojado: para que, por te temer,
25
Oferro oco e ofogo: o arcabuz e a mecha para lhe dar fogo. mais nenhum cavaleiro deixe de mostrar sua coragem.
26 41
Armados: com coleiras de bicos. Oposto lido: a costa do lado oposto, isto é, a França.
27
Anteu: gigante que habitava a Líbia, filho de Posídon
e de Geia (a Terra) . Em contacto com a mãe, era invul
nerável. Para o matar, Héracles teve de erguê-lo do chão.
�
CANTO X
�
Dos que amor, fidelidade no mundo 2 e que com tantos e claros sinais
acharam, entre os corações constantes, de tal tornou o seu Bireno certo,
e dentre os que, em tempo triste ou jucundo, que nenhuma mulher pode dar tais,
por provas 1 foram famosos amantes, mesmo de peito e coração aberto.
mais o primeiro lugar que o segundó E, se almas tão devotas e leais
dou a Olimpia; e, se maior houve antes, são dignas dum amor de igual acerto,
mantenho que, entre o antigo e o recente, Olimpia é digna que amor mais pequeno
amor maior que o seu não se consente; sinta por si que por ela Bireno;
1 62 ORLANDO FURIOSO
3 e de por ele não ser abandonada s assim fazem esses jovens, que, enquanto
por outra mulher, inda fosse aquela para eles fordes esquivas e protervas,
que Europa e Ásia pôs alvoroçada2 , vos amam e galanteiam com quanto
ou outra que seja ainda mais bela; ardor o faz quem serve sem reservas;
antes a vista lhe seja tirada, mas tão depressa da vitória o canto
ouvido, gosto e fala, mas não ela, podem entoar, de damas a servas
e sua vida e a fama gloriosa, vós passareis, sendo-vos retirado
ou coisa porventura mais preciosa. seu falso amor, que a outra será dado.
4 Se Bireno a amou do modo exacto 9 Mas não vos proíbo (seria asneira)
como ela o amou, se foi tão fiel que vos deixeis amar, pois sem amante
como ela foi, se para outra, de facto, seríeis como uma estéril videira,
não virou a proa do seu batel, sem planta em que se apoie ou pau montante.
ou se a tal lealdade foi ingrato, Apenas à tal penugem primeira
se para tão fiel amor foi cruel, deveis fugir, volúvel e inconstante,
digo, e espero de pasmo conseguir colhendo os frutos não verdes e duros,
fazer-vos boca e sobrolho franzir. mas também não demasiado maduros.
s E depois que revelada vos seja 1 0 Uma filha, mais atrás vos dizia,
qual foi da sua bondade a mercê, do rei frísio foi ali encontrada;
damas, que nenhuma de vós esteja que, segundo eles disseram, seria
em jura de amor pronta a fazer fé. por Bireno ao irmão, para mulher, dada.
O amante, para obter o que deseja, Mas a verdade é que ele a apetecia,
esquecendo que Deus tudo ouve e vê, pois era iguaria bem delicada:
engendra promessas e juramentos, e achava que era cortesia louca,
que mais tarde pelos ares levam os ventos. para dá-la a outro, tirá-la da boca.
6 Os juramentos e promessas são 11 A rapariga ainda não passava
levados pelo vento, que os dissipou catorze anos, bela e virginal,
logo que os amantes satisfação como uma rosa que mal despontava
tiveram para o fogo que os inflamou. do verde botão ao sol matinal.
Sede a seus rogos e imploração Bireno não só de paixão se agrava;
mais cautas, pelo exemplo que vos dou. pois lenha nunca ardeu com fogo tal,
Felizes aquelas, caras senhoras, nem mãos invejosas e m1m1gas
que de astúcias tais são conhecedoras. o atiçaram às maduras espigas,
7 Guardai-vos desses que o rosto acontece 12 como se inflamou instantaneamente,
imberbe terem, que a idade o permite; como até às medulas ele ardia,
neles lesto nasce e lesto fenece, quando junto ao pai morto a viu dolente,
como fogo em palha, cada apetite. e o pranto seu belo rosto cobria.
Tal qual o caçador que não esmorece, Como acontece, se água fria sente
sem que frio, calor, monte e vale evite; aquela que antes ao fogo fervia3 ,
quando a lebre apanha já não lhe interessa: assim por Olimpia o primeiro ardor
só enquanto atrás corre o passo apressa; nele foi extinto pelo seu sucessor4 •
CANTO X 1 63
35 Fica a doer-se até que eu ali torno 13 , 36 Enquanto a sede, e do andar a fadiga
pois falar-vos de Ruggiero quisera; pela areia funda, e a deserta via
a meio do dia, num calor de forno, lhe faziam, por essa praia imiga,
cavalga o lido e a fadiga o lacera. enfadonha e molesta companhia,
Bate o sol na colina e faz retorno: à sombra encontrou duma torre antiga,
a areia miúda é como se ardera. que das águas, junto à margem, saía,
Para serem de fogo, pouco faltava, três damas que, pelos gestos e pelas saias,
como foram 1 4 , às armas que endossava. viu que da corte de Alcina eram aias.
1 66 ORLANDO FURIOSO
45 Louvava Ruggiero que assim tivesse 47 Vai-te ensinar estudos mais elevados
sabido a Akina escapar, e antes que banhos, odores, danças, iguarias;
que o cálice encantado ela lhe desse, e que os pensamentos mais bem formados
que no fim dera a todos os amantes; se elevam às altas periferias;
e que a Logistilla se remetesse, e como a glória dos beatificados,
onde eram santos costumes reinantes, no corpo mortal, em parte avalias. -
beleza eterna e graça nobre e pia Assim vai dizendo o barqueiro avante,
que o coração pasce, e nunca sacia. da segura margem inda distante,
46 - Esta (dizia) pasmo e benquerença 48 quando nisto vê surgir na marina
induz na alma, quando se aproxima. navios e barcos, para o seu dirigidos.
Depois contempla bem sua presença: Num deles vem a ofendida Alcina;
outros bens parecem de pouca estima. e muitos dos seus estão a ela unidos,
O seu amor dos outros faz diferença: para levar o reino e ela à ruína
ânsia e temor noutros o peito lima; ou reconquistar os amores perdidos.
neste, o desejo nada mais te pede, O amor é, para tal, razão nada leve,
e o vê-la satisfação te concede 1 7 • mas não menos a injúria que prescreve.
1 68 ORLANDO FURIOSO
49 Desde que nasceu, raiva não sentiu 55 Alcina foge, e sua infeliz gente
tão grande como esta que agora a rói; presa ou morta é, queimada ou submersa.
e os remos sobre as águas tanto urgiu De Ruggiero perder ela se sente
que a ambas as margens a espuma foi 1 8 • mais que de qualquer outra coisa adversa:
Mar e margem grande estrondo emitiu, dia e noite por ele amargamente
e Eco 19 , ressoando, se condói. geme, e lágrimas abundantes versa;
- Descobre o escudo, Ruggier, que é preciso; para pôr fim ao martírio que a atormenta,
ou tens, de morte ou prisão, prejuízo. - de não poder morrer mui se lamenta.
50 O barqueiro de Logistilla disse; 56 Morrer a uma fada não é possível,
e, além de dizer, tirou de repente se Sol e céu não sofrerem desvio.
a coberta, para que o escudo surgisse, Dout..-0 modo, o desgosto era plausível
mostrando o brilho claro e evidente. para apressar Cloto a enovelar-lhe o fio24 ;
O grande esplendor, como se aturdisse, ou, qual Dido2 5 , com ferro perecível;
os olhos feriu com força potente ou do Nilo a rainha26 , que dormiu
que fez ficar cega cada pessoa, mortífero sono, imitar podia;
e os fez tombar ora à popa ora à proa. mas morrer, para as fadas, é fantasia.
51 Um, que estava de guarda numa roca, 57 Ao que de eterna glória nada trave
da frota de Alcina se apercebeu; voltemos; e Alcina fique a penar.
e logo o sino martelando toca, Ruggiero, depois de sair da nave,
e pronto o socorro ao porto acorreu. em mais firme areia27 pôde pisar;
A artilharia20 prontamente esboca grato a Deus por não ter achado entrave
contra quem a Ruggiero acometeu; ao seu plano28 , deixou para trás o mar;
de todas as partes há quem lhe acuda, e, apressando o passo em terreno enxuto,
e a vida salvou com tão grande ajuda. dirigiu-se ao castelo, resoluto.
52 Quatro senhoras às águas estão rente, 58 Noutro mais forte e belo não encalha
mandadas ali ir por Logistilla: olho mortal, ou próximo ou distante29 •
a tenaz Andronica e a prudente Menos valor tinha sua muralha
Fronesia e a justíssima Dicilla, se feita de piropo ou diamante.
e a casta Sofrosina, competente De ge01as assim cá em baixo30 há falha:
mais que as outras 21 a agir, se perfila. quem conhecer quiser, tem que diante
Este exército22 no mundo sem par destas vir; não creio que em outra parte,
sai do castelo, e avizinha-se ao mar. senão talvez no Céu, haja tal arte.
53 Sob o castelo, na tranquila foz, 59 O que faz com que a elas vénia dê
de muitos navios estava uma armada, qualquer gema é que, mirando-se nessas,
a um toque de sino, a uma voz, um homem até à alma se vê;
dia e noite à batalha preparada. os vícios e as virtudes vê expressas
E assim foi a luta dura e atroz, de forma que em lisonjas já não crê,
em terra e sobre a água iniciada23 ; e a censuras injustas pede meças:
a qual pôs todo o reino em polvorosa, faz-se, ao olhar-se no espelho luzente,
que à irmã roubara Alcina viciosa. ele mesmo, ao conhecer-se, prudente.
54 De quantas batalhas fim sucedeu 60 A sua luz, que como o Sol quer ser,
diferente do esperado, e bastante! difunde tanto brilho em seu redor
Não só Alcina não apreendeu, que uma tendo, onde e sempre que quiser,
como julgava, o fugitivo amante; pese a Febo, do dia tem-se a cor3 1 •
mas os navios, com tantos guarneceu Não só as gemas têm tal parecer;
antes o mar que não dava vazante, pois as matérias e o fino lavor
e ao fogo que a todos, feroz, alapa, competem entre si, e avaliar
com um barquito só, mísera, escapa. a excelência maior, só por azar32 •
CANTO X 169
63 mas ali era perpétua a verdura, 69 Assim partiu Ruggier, mas não voltou
perpétua das flores a beleza eterna; pelo caminho que fez contrariado:
não é a amenidade da Natura sobre o mar hipogrifo o conservou
que tão temperadamente as governa: e da terra esteve sempre afastado;
Logistilla com seu saber as cura, mas agora a seu jeito o manobrou,
sem que dependa da regra superna34 para aqui, para ali, mas sempre a seu agrado;
(conquanto aos outros pareça impossível), tal como os Magos, outra via fez,
mantendo a Primavera imperecível. para assim darem a Herodes revés.
64 Logistilla demonstrou muito agrado 70 À ida fora, saindo de Espanha,
por receber um tão gentil senhor; encontrar a Índia em rota direita,
deu ordens para que fosse bem tratado, aonde o mar oriental a banha,
e que cada um lhe prestasse honor. e onde uma fada a outra é contrafeita37 •
Já antes tinha Astolfo ali chegado, Agora foi por uma rota estranha
e, ao revê-lo, Ruggier mostrou calor. àquela em que Éolo os ventos aleita38 ;
Dentro de dias todos chegarão, assim completou o giro rotundo,
aos quais Melissa deu normal visão35 • para ter, como o Sol, contornado o mundo 39 •
65 Depois de repousarem mais que um dia, n E assim o Catai e também Mangiana
procurou Ruggiero a fada prudente viu, o grande Quinsai sobrevoando40 ;
com Astolfo, que tal como ele queria passou sobre o fmavo, e Sericana4 1
licença para regressar ao Poente. estava à direita; e, sempre declinando
Melissa à fada por ambos pedia, da Cítia hiperbórea42 à onda hircana43 ,
fazendo-lhe súplica humildemente chegou às bandas de Sarmácia44 , e, quando
que os vá aconselhando e assistindo, a Ásia da Europa se dividiu,
para que regressem donde tinham vindo. Russos, Prussos e Pomerânia45 viu.
66 Disse a fada: - No caso pensar quero; n Embora Ruggier tivesse desejo
dentro de dois dias serão expedidos. - de regressar a Bradamante em breve,
Só, medita depois como Ruggiero com prazer aproveitou tal ensejo
e o duque Astolfo serão assistidos: de observar o mundo, e não se deteve
decide que o corcel alado e fero sem Polacos e Húngaros no adejo
leve o primeiro aos aquitanos lidos36 ; olhar também e Alemães, ao de leve,
mas primeiro quer que se faça um freio, e o resto daquela boreal terra;
que a travar e virar lhe dê maneio. por fim chegou à distante Inglaterra.
67 Mostra-lhe como fazer, se quiser 73 Não crede porém, senhor, que sempre ia,
que no ar esteja, ou fazê-lo pousar; todo o caminho, sobre o animal:
como um giro completo descrever, cada noite na estalagem dormia,
como ir veloz ou só no ar pairar. tentando evitar alojar-se mal.
Todos os jeitos que o cavaleiro quer Passou dias e meses nesta via,
ao bom cavalo em terra firme dar, de ver terra e mar tendo prazer tal.
Ruggiero no ar ao corcel de penas Perto de Londres chega uma manhã,
conseguiu dar, em instantes apenas. j unto ao Tamisa indo a terra chã.
68 Depois de estar de tudo esclarecido, 74 Ali, nos prados à cidade afins
Ruggiero da fada se despediu, viu, juntos, homens de armas e infantes,
a ela ficando para sempre unido que ao som de trompas e de tamborins
por grande amor, e do país saiu. atrás iam, garbosos e marchantes,
Falo ora dele, em boa hora ido, do bom Rinaldo, honra dos paladins;
depois direi como Astolfo partiu, o qual, se se recordam, disse eu antes
e como alcançou, com maior fadiga, que a mando de Carlos aqui viera
o magno Carlos e sua corte amiga. buscar ajuda, que ele em França espera.
CANTO X 171
91 Para causar inda mais admiração, 97 Nos belos olhos os olhos pousando,
e o bom Ruggier com tal se divertir, a sua Bradamante recordou.
deu um pouco de rédea ao alazão E, de piedade e de amor se alagando,
e esporas no flanco lhe fez sentir: o pranto em seus olhos mal evitou;
voou ele pelos céus em digressão, à donzela com doçura falando,
e todos com espanto fez reagir. disse, depois que o seu corcel travou:
Depois Ruggier, que duma a outra banda - Ó senhora, digna só das cadeias
vira os Ingleses, voou para a Irlanda. que Amor usa para a seus servos pôr peias,
92 E viu Hibérnia fabulosa, onde 98 deste mal ou doutro imerecedora;
aquele santo velhinho 53 abriu a cava, quem é o cruel que vos prende assim,
que tanta graça parece que esconde que, de apertá-las, com manchas descora
que o homem de sua culpa desagrava. dessas belas mãos o puro marfim? -
Sobre o mar, o corcel faz ir aonde De ouvi-lo assim falar, por força cora,
ele a mais pequena Bretanha54 lava: qual marfim aspergido com carmim,
e ao passar viu, deitando abaixo o olho, por aquelas partes que nuas tem,
Angelica amarrada ao calvo escolho. belas, que a vergonha cobre porém.
93 Ao calvo escolho, na ilha do pranto 99 Teria o rosto com as mãos escondido,
(pois ilha do pranto ela era chamada) , se presas não estivessem ao rocado;
essa que por feroz, e cruel tanto, mas de pranto, que não lhe era impedido,
e desumana gente era habitada, cobriu-o, e tentou mantê-lo abaixado.
que (como vos disse no outro canto) E, após alguns soluços, comedido,
lidos vários percorria, em armada, seu falar soltou, baixo e entrecortado;
as damas e donzelas depredando, logo parou, pois dentro o fez ficar
para do monstro serem manjar nefando. o grande rumor que se ouviu no mar.
94 Foi atada ali naquela manhã, 1 00 E eis que o enorme monstro aparece,
e para comê-la viva ali viria meio metido no mar e meio saído.
o monstro enorme, em seu sôfrego afã, Qual longo navio que o porto apetece,
que o execrável manjar deglutia. vindo por austro ou bóreas 58 impelido,
Como a raptaram disse, em terra chã, assim vem ao pasto que se lhe oferece
os que a encontraram quando dormia, a besta horrenda; o tempo é reduzido.
do eremita necromante ao lado, Meio morta de medo a dama está;
que a tinha por encanto ali levado. nem o falar dele conforto lhe dá.
95 A gente feroz, inóspita e crua, 1 0 1 Não tinha Ruggiero enristada a lança,
à besta cruel junto ao mar expôs mas a prumo, e assim golpeava a orca.
a lindíssima donzela, tão nua Não vejo que tenha outra semelhança,
como a própria natureza a compôs. senão grande massa que avança e aborca;
Nem um véu lhe puseram, que dilua só cabeça de animal tem, não pança,
dos lírios e rosas as cores 55 , que após olhos e dentes para fora, qual porca59 •
Julho ou Dezembro costumam cair, Ruggier na fronte a feria entre os olhos,
mas no seu corpo estão sempre a florir. mas parecia tocar em ferro ou escolhos.
96 Pensaria Ruggier estátua aprazível 1 02 Como aquela investida pouco vale,
de alabastro ou de mármore polido volta para melhor fazer a segunda.
ser, e que atada ao escolho, era plausível, A orca, que na água vê sinal
um escultor caprichoso houvesse querido; das asas, para cá e para lá secunda
se lágrima não visse, e bem visível, a sombra60 ; a presa certa ao litoral
das rosas e ligustros 56 ter caído, deixa, e segue a incerta, furibunda:
suas verdes pomas 57 indo orvalhar, atrás dela volteando se gira,
e a brisa seus cabelos ondular. e Ruggiero desce e golpes lhe atira.
CANTO X 1 75
1 03 Como do alto a águia vir costuma, 10s Luta idêntica faz a mosca audaz
quando entre as ervas avistou a bicha, contra o mastim, no poeirento Agosto,
ou na rocha ao sol posição assuma ou no mês antes ou no seu sequaz62 ,
para as escamas dourar, e ali se anicha; um o das espigas e o outro o do mosto;
para apanhá-la, àquela parte não ruma olhos lhe pica e focinho mordaz,
em que a venenosa assobia e esguicha6 1 ; voa-lhe em roda e não lhe sai do rosto;
por trás vai, e seu voo de modo embala muito faz ele soar o dente em vão,
que ela não possa virar-se e picá-la: mas, se a agarra, paga a reinação.
104 assim Ruggier com a lança e a espada, 1 06 No mar bate ela a cauda com tal força
não onde os dentes lhe armavam a boca, que a água até ao céu faz levantar;
mas atrás das orelhas a estocada, nem sabe ele se no ar as asas esforça
ou nas costas, ou na cauda coloca. o seu corcel, ou se nada no mar.
Se a fera se volta, ele muda estrada, O desejo de ir para terra reforça,
e para baixo ou para cima se desloca; pois, se aquele borrifo muito durar,
mas, como se batesse em pedra dura, teme as asas molhar do hipogrifo,
a casca córnea e áspera não fura. e em vão querer ali ter ou bóia ou esquifo63 •
1 76 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
31
Uma tendo [. . .] a cor: quem tiver uma daquelas 51 Manda: forma usada na tradução em vez de Islândia,
gemas tem a luz do dia onde e quando quiser, mesmo por semelhança com Irlanda, Holanda, etc.
contrariando o Sol (Febo) .
52
O leva exangue: leva o estandarte pálido (branco),
32
Excelência [. .. ] azar: só ao acaso se pode dizer se é sinal de que não tinham ainda participado em nenhuma
maior a excelência das gemas ou a do trabalho artístico. empresa de guerra.
33 53
jardim [. .. ] tê-los: jardins suspensos. Santo velhinho: São Patrício, que, segundo a lenda,
cavou um poço no None da Irlanda (Hibérnia) que lava
34 Regra superna: os movimentos astrais, que determi va as culpas a quem nele se banhasse, porque comunicava
nam o ciclo das estações. com o purgatório.
35 54
Melissa [. ..] visão: a quem Melissa restituiu o aspecto Pequena Bretanha: Bretanha francesa.
normal, quebrando o encanto a que estavam sujeitos.
55 Llrios [. .. ] cores: os tons da carnação de Angelica des
36
Aquitanos lidos: costas da Aquitânia, antigo nome da critos à maneira petrarquista, processo que se repete na
região francesa da Gasconha. oitava seguinte.
37 Fada [. .. ] contrafeita: Alcina e Logistilla, que litigam 56
Rosas e ligustros: o rosto de Angelica.
entre si.
57
i&rdes pomas: os seios, pequenos e rijos como maçãs
38
Rota [. .. ] aleita: evitou o mar, onde Éolo solta os seus verdes.
ventos.
58
Austro ou bóreas: ventos de sul e de norte, respectiva
39
Assim [. .. ] mundo: à ida, Ruggiero partira da Europa mente.
para ocidente, até à Índia; agora, em vez de voltar para
59
trás pelo mesmo caminho, continua para ocidente e, Porca: javali-fêmea.
sobrevoando a Ásia, chega à Europa, completando uma
60
volta ao mundo no mesmo sentido do Sol. A orca [. . .] sombra: a cena de Angelica presa ao
rochedo e o combate de Ruggiero com o monstro (que
40
Catai [. .. ] sobrevoando: viu o Catai (a none) e a persegue a sombra do cavalo alado) lembram o episódio
Mangiana (região a sul do Catai, descrita por Marco Polo), da libertação de Andrómeda por Perseu (Ovídio,
quando sobrevoava Quinsai (região central da China e Metamorfoses, IV:663 ss.).
cidade com o mesmo nome, descritas por Marco Polo).
61 Àquela parte [. ..] esguicha: a águia assalta a serpente
41 Ímavo, e Sericana: os Himalaias e o reino de (venenosa) pelo l�o oposto à cabeça, para não ser mordida.
Gradasso, na China.
62 Mês
antes [. .. ] sequaz: em Julho (das espigas) ou
42
Cltia hiperbórea: Cítia setentrional (Sibéria) . Setembro (do mosto).
43 63
Onda hircana: mar Cáspio. O nome deriva de Bóia ou esquife (esquife) : objecto flutuante que o
Hircânia, região do Cáspio. impeça de se afundar.
44 64
Sarmdcia: região a oriente do Cáspio. Pam que [. ..] blasfeme: para que não ofenda os ollios dela
45 65
Pomerânia: região do Noroeste da Polónia, junto ao Véu: cobertura do escudo mágico.
mar Báltico.
66
Betume: nos Apeninos, os montanheses deitavam cal
46
Terra: cidade (Londres). nos rios para fazer os peixes vir à tona e os apanharem
(método ilegal).
47
Zerbino: filho do rei da Escócia e irmão de Ginevra
67
(cf. V:69) . Com o baixo para o cume: revirado, de ventre para o ar.
48
Lurcanio: irmão de Ariodante, já referido nos cantos 68 Dd-me no mar agonia: afoga-me.
V e VI, no episódio de Ginevra.
69
Filomela: donzela transformada pelos deuses em rouxinol.
49 70
Duque de Albany: Ariodante, que casou com Asas [. .. ] estendeu: susteve as asas ao hipogrifo, mas
Ginevra, a qual herdou este ducado após a morte de não ao outro (seu apetite sexual), que mais as estendera.
Polinesso (c( VI: 1 5) .
71
A custo [. .. ] montar: teve de conter a custo o seu dese
50 jo de possuir Angelica.
Thule: ilha lendária d o mar d o Norte.
--ê$,-
CANTO XI
�
Embora débil freio em pleno curso 4 É este o anel que ela levou para França
detenha o cavalo, inda que fogoso, a primeira vez que viu tal confim,
mais raro é que a razão haja recurso com seu irmão, que então levava a lança3
para dar à lasciva fúria repouso, que foi depois de Astolfo, o paladim.
com o prazer à mão; tal qual o urso Anel com que aos encantos fez esquivança,
que do mel já não se afasta, guloso, de Malagigi, à beira de Merlim4 ;
se lhe chegou ao nariz seu odor com ele Orlando tinha, uma matina,
ou duma gota tomou o sabor. furtado aos encantos de Dragontina5 ;
2 Qual o motivo que Ruggier refreia 5 com ele saiu invisível da torre
para de tal coisa não tirar proveito, onde um velho celerado a prendeu.
tendo Angelica nua, qual sereia, Mas por que todas as provas me ocorre,
no solitário bosque tão a jeito? se vós as sabeis tão bem como eu?
Já Bradamante lhe saiu da ideia, Que Brunel lho tirou já se discorre,
que costumava ter fixa no peito: pois Agramante tais ordens lhe deu.
mesmo que ainda se lembrasse dela, Desde então a Fortuna a desdenhou
néscio era se não estimasse aquela; sempre, e tanto que o reino lhe tirou.
3 com ela nem teria aquele crudo 6 Ora que o vê, como disse, na mão,
Xenócrates 1 sido tão continente. fica de espanto e alegria tão plena
Para o lado atirara a hasta e o escudo, que quase teme estar sonhando em vão:
e o arnês retirava impaciente; de crer em seus olhos não se asserena.
quando, passando pelo corpo desnudo Tirando-o do dedo com brusquidão,
a dama os olhos, vergonhosamente, na boca o põe; e, instantânea e lena,
no dedo o mágico anel se destaca dos olhos de Ruggier desaparece,
que lhe tirara Brunello em Albracca2 • como o Sol quando a nuvem o escurece.
1 80 ORLANDO FURIOSO
28 E espero que Deus, para que a punição 34 Porque está longe e o rosto tem pendido,
eterna seja, aquela alma maldita quem ela seja não consegue ver.
encerre no mais fundo boqueirão Aos remos dá, com vigor desmedido,
de Averno, que Judas traidor habita 1 3 • desejoso de melhor conhecer.
Mas sigamos Orlando, campeão: Nisto, ouve o mar emitir um mugido,
para chegar a Ebuda se agilita, trovão grutas e selvas percorrer;
onde as damas belas e delicadas incham-se as ondas, e o monstro aparece:
são, para seu alimento, ao monstro dadas. sob o seu peito o mar quase esvanece.
29 Quanto mais pressa tinha o paladino, 35 Qual nuvem que se ergue de escuro vale,
menos parecia que a tivesse o vento. grávida de tempestade e de chuva,
Sopre do lado destro ou do esquerdino, que mais que cega noite tudo embale,
ou que sopre à popa, é sempre tão lento deixando a Terra do dia viúva,
que não ajuda a chegar ao destino; assim a fera porção cobre tal
por vezes perdia todo o alento; de mar que se crê que todo o enluva.
ou então adverso a soprar se obstina, Freme o mar. Orlando olha-a, concentrado,
e o faz regredir ou ir à bolina. sem que arrojo ou rosto tenha alterado.
30 Queria Deus que a demora o impedisse 36 E, como tinha firme a intenção,
de antes de o rei de Hibérnia 14 lá chegar, o que queria fazer, depressa fez;
para que com mais destreza conseguisse para que à donzela desse protecção
o que em poucas páginas vou contar. e a fera atacasse, duma s6 vez,
À ilha chegados, Orlando disse põe entre uma e outra a embarcação,
ao seu barqueiro: - Podes fundear e a espada não retira do arnês;
e dar-me o batel, que s6 eu procedo, a âncora e a corda em mão tomou,
sem mais companhia até ao rochedo. e com afoiteza o monstro aguardou.
31 E a maior corda quero que me dês, 37 Quando a orca se aproximou e viu
e a âncora maior que há no navio; no esquife Orlando a tão pouco intervalo,
a razão para as levar tu depois vês, para engoli-lo tanto a boca abriu
quando eu defrontar o monstro bravio. - que um homem entrar podia a cavalo.
Consigo o escaler desceu do convés, Orlando entrou, na goela imergiu
e o mais que para seu plano era atavio. levando a âncora, e, se não resvalo 18 ,
As armas deixou, com excepção da espada, o bote até; e a âncora cravou
e direito ao escolho se fez à estrada. entre o palato e a língua, e lá ficou:
32 Puxa os remos ao peito, e vira à proa 38 de modo que de cima já não cai,
as costas, para o lado a que se destina 1 5 ; nem sobe de baixo a queixada avara.
tal qual como do mar ou da lagoa Como quem nas minas o ferro extrai,
sai o caranguejo à seca marina. a terra, à medida que avança, ampara;
Era na hora em que a Aurora a coroa e assim à derrocada se subtrai,
dos áureos cabelos para o Sol inclina, enquanto tranquilo o trabalho encara.
parte descoberto e parte ocultado 16 , De um gancho ao outro a âncora é tão alta
com desdém de Titono, enciumado 17 • que Orlando não lhe chega, se não salta.
33 Chegando junto ao escolho, tanto quanto 39 Colocada a escora, e estando seguro
um tiro de pedra de um robusto braço, que o monstro não pode fechar a boca,
parece e não parece ouvir um pranto, agarra a espada e aquele antro escuro
tão fraco aos ouvidos lhe chega, e lasso. com cortes e pontadas todo toca.
Todo ele se revira para o esquerdo canto, Como se já dentro estiver do muro
pousando os olhos da onda a um passo: o imigo, do forte a defesa é pouca,
nua como nasceu, vê uma dama assim defender-se a orca podia
presa a um tronco; a seus pés o mar brama. do paladim, que a goela lhe enchia.
1 84 ORLANDO FURIOSO
40 Vencida pela dor, sobre o mar avança, 41 E com ela vem nadando depressa
e os flancos e o escamoso dorso acciona; para o rochedo; onde, já com firme pé,
depois nele se imerge, e com a pança a âncora puxa que a boca empeça
a. areia do fundo faz vir à tona. e fere com os ganchos, qual polé.
Sentindo a água o cavaleiro de França De seguir a corda a fera não cessa,
tão abundante, a nado se abandona: que a força que a puxa faz fincapé;
deixa fixa a âncora, da qual pende força que mais puxa com um esticão
a corda, que da mão ele não desprende. que em dez um cabrestante dá tracção,
CANTO XI 1 85
42 Qual touro selvagem que sente o corno 48 Um com funda, o outro com arco armado,
apanhado por repentino laço, outro com hasta ou espada ao lido atende;
salta, cai, ergue-se e volteia em torno, e da frente e de trás, de todo o lado,
sem conseguir livrar-se do baraço; de longe ou perto, quem mais pode o ofende.
assim, fora do natural contorno 1 9 , O ver-se irracionalmente atacado,
a orca forçada por esse braço, ao paladino muito surpreende:
contorce-se, salta, e a corda segue, que ao matá-la injúria fez ora vê,
porque livrar-se dela não consegue. embora esperasse glória e mercê.
43 Da boca o sangue sai com tal fartura 49 Como o urso que às feiras sói trazer
que o mar Vermelho este hoje é, a fingir; o Russo ou o Lituano pela mão,
de tal maneira as ondas ela fura e que pela rua passa sem temer
que até ao fundo se vêem abrir; o ladrar de qualquer pequeno cão,
a água ao céu vai, e a luz torna escura sem sequer se dignar olhar para o ver,
do claro Sol: tanto ela a faz subir. assim não temia o povo vilão
Ribombam, ao som do local fragor, o paladino que, apenas soprando,
selvas, montes e praias em redor. poderia derrubar todo o bando.
44 Do fundo do mar sobe Proteu20 , quando 50 E logo em redor de si abriu praça,
tanto rumor faz com que a gruta deixe; tomou Durindana e uma volta fez.
vendo entrar na orca e sair Orlando, Tinha julgado, aquela louca raça,
.
e para a praia puxar o enorme peixe,
. que nele encontrava pouca altivez,
para o alto oceano foge, olvidando por nem vestida lhe ver a couraça,
o grege; para que do rumor se queixe, nem escudo no braço nem outro arnês;
Neptuno os golfinhos ao carro atrela, desconhecia que dos pés em diante
e a ida à Etiópia21 não protela. a pele tinha mais dura que diamante.
45 Melicertes 22 pega em lno, chorando; 51 O que nenhum a Orlando fará,
as tranças das Nereides23 a espalhar-se; ele aos outros de o fazer nada impede.
Glaucos, Tritões24 e outros vão buscando, Trinta matou; estocadas contará
de cá para lá, onde possam salvar-se. dez ao todo; se mais, em pouco excede.
O horrendo peixe ao lido trouxe Orlando, Num instante em seu redor ninguém há,
e mais não precisou de afadigar-se; e para acudir à dama retrocede,
dos ferimentos e da grande tareia quando outro tumulto e novo alarido
morreu, inda antes de chegar à areia. faz ressoar dum lado ao outro o lido.
46 Da ilha não poucos a correr vão 52 Enquanto o paladino nesta banda
para verem a batalha desumana; os bárbaros mantivera entretidos,
os quais movidos por culto pagão, sem impedimentos, os da Irlanda
a tão santa obra25 chamam profana; por toda a ilha foram repartidos;
diziam que Proteu nova razão e, sem piedade, matança nefanda
teria para atiçar a ira insana, iam fazendo daqueles infidos;
trazendo de novo o grege para a terra, fosse injustiça, ou fosse crueldade,
e retomando aquela antiga guerra; não olhavam a sexo nem idade.
47 e que será melhor pedir a paz 53 Não se defendem os ilhéus do jogo;
ao ofendido, ou o pior virá; não só porque eles chegam de improviso,
tal só se cumprirá, quando o audaz, mas poucos têm o seu desafogo,
para o aplacar, lançado ao mar será. e esses poucos nada devem ao siso.
Como um facho outro fogo pegar faz, Os bens pilham; às casas põem fogo;
e em breve a aldeia toda alumiará, o povo tem da morte o prejuízo;
de voz em voz a ira vai passando o que era muro, foi tudo arrasado;
que quer atirar às ondas Orlando. nem um único vivo foi deixado.
1 86 ORLANDO FURIOSO
60 que a nado um cavaleiro tinha ido 66 Na chama dos olhos o dardo amorna
meter-lhe na goela âncora grave; e depois, no pranto, o calor lhe tira,
e que assim a arrastara para o lido, que entre rubras e brancas flores 27 se entorna;
tal contra a corrente se puxa a nave. assim temperado, com força o atira
Oberto queria ver se tinha ouvido contra o jovem28 , que escudo não contorna29 ,
toda a verdade, ou se alguém o aldrave; nem dupla cota ou dura pele vestira;
e até lá vai; sua gente, entretanto, enquanto olhos mira e cabelos vê,
de Ebuda faz ruína em cada canto. dói-lhe o coração sem saber porquê.
61 O rei de Hibérnia, vendo assim Orlando 67 As belezas de Olímpia eram daquelas
todo encharcado e de sangue tingido, que mais raras são; não a fronte apenas,
do sangue que agarrado trouxe quando olhos, faces e boca tinha belas,
saiu da orca em que estava metido, nariz, pescoço, ombros e melenas;
pelo conde apesar disso o foi tomando; mas abaixo das pomas eram elas,
pois tinha por si só já deduzido, as que costumam estar de roupas plenas,
logo que da façanha ouviu a nova, de uma tal excelência que talvez não
que só Orlando faria tal prova. achassem no mundo comparação.
62 Conhecia-o porque na corte p agem 68 A pura neve em brancura venciam,
de França fora, e no ano anterior e mais macias eram que marfim;
dali partira, porque, por linhagem, as redondas tetas leite pareciam,
do pai que morreu fora sucessor. dos cinchos saído, como um pudim30 •
Não tinham conta as vezes que a imagem Espaço entre elas havia, que as faziam
dele vira, e dele fora auditor. como colinas que vemos assim,
Correu para o abraçar e fez-lhe festa, com vales entre elas, na Primavera
depois de afastar o elmo da testa. cobertos ainda de neve austera.
63 Não menos Orlando ficou contente 69 Os seus flancos salientes e as ancas,
de ver o rei que o rei de o ver a ele. e, mais liso que espelho, o ventre plano,
Depois que a se abraçarem novamente, pareciam feitos, e as coxas brancas,
mais de uma vez a amizade os impele, por Fídias3 1 no torno, ou método arcano.
Orlando a Oberto tornou patente Devo falar dessas partes estancas,
a traição feita à jovem, por aquele que em vão ocultava com tanto afano?
que menos que outro devia fazê-lo: Digo e resumo: da cabeça ao pé,
Bireno, da falsidade modelo. tudo quanto se vê beleza é.
64 As provas lhe narrou ter ela dado 70 Se tivesse sido, no monte lda32 ,
infindas vezes de a ele ter amor: vista pelo pastor frígio33 , não sei quanto
sem parentes e bens tinha ficado, Vénus, elas34 levando de vencida,
e a vida daria ao usurpador; mais do que esta pudesse ter encanto;
que ele mesmo havia testemunhado nem para Esparta tinha dado partida,
muitas, das quais podia dar penhor. para ir violar o hospício santo35 ;
Enquanto falava, os olhos serenos antes diria: - Com Menelau resta,
da donzela estavam de pranto plenos. Helena; eu não quero outra senão esta. -
65 Seu belo rosto muito se parece 11 E se em Crotona36 esta um dia estivera,
com o céu, por vezes, na Primavera, quando a im agem37 Zêuxis38 quis fazer,
quando a chuva cai e o sol aparece, a qual devia pôr no templo de Hera39,
e o véu nebuloso afasta e supera. e tantas belas desnudas quis ver40 ;
Como o rouxinol, que cantigas tece · e, porque uma perfeita fazer espera,
e dos ramos da árvore se apodera, parte a uma e a outra vai colher;
assim, Amor, em lágrimas se banha, não escolheria outra, só aquela,
enquanto a clara luz dos olhos ganha. pois toda a beleza se via nela.
1 88 ORLANDO FURIOSO
-.-.
NOTAS
CANTO XII
�
6 Não digo que fosse ela, mas parecia 12 Em vão procuram, e culpa lhe dão
Angelica gentil que ele tanto ama. e acusam de algum furto que lhes fez:
Ele, que sua dama e sua deusa via do corcel roubado, um, de ser ladrão;
levar à força (e lágrimas derrama) , um que a dama perdeu, desfaçatez;
de ira tomado, em alta vozearia outros de outras coisas, e todos são
e grande füria o cavaleiro chama; incapazes de sair do xadrez;
chama o cavaleiro e ameaça-lhe a vida, muitos lá estão, do engano fregueses,
e Brigliadoro lança a toda a brida. alguns há semanas, outros há meses.
7 Não pára aquele vilão, nem dá resposta, 1 3 Quatro ou seis vezes percorreu Orlando,
à sua presa, à sua caça atento; buscando, toda a estranha moradia,
e tão veloz vai por aquela encosta e para si dizendo: - Aqui demorando,
que a muito custo o seguiria o vento. o meu tempo e fadiga em vão perdia:
Foge um, persegue o outro, e a selva posta por outra porta o ladrão abalando,
em volta faz soar alto lamento. com ela muito longe já iria. -
Correndo chegaram a um grande prado, Assim pensando, foi para o verde prado
que ao centro tinha um palácio instalado. de que todo o palácio era cercado.
s De várias pedras, com rico decoro9 14 Ao circundar a casa campesina,
fora erigido o palácio altaneiro. mantendo o rosto para a terra inclinado
Pela porta entrou, que era esmaltada a ouro, procurando pegada, ou da esquerdina
com a donzela presa o cavaleiro. ou da destra, de passo há pouco dado,
Não muito depois chegou Brigliadoro, duma janela alguém o denomina;
levando Orlando indignado e guerreiro. ergue o olhar, e aquele falar amado
Em estando dentro, Orlando os olhos gira: parece ouvir, e pensa ver o rosto
já nem cavaleiro nem dama mira. que tão vário do que era o tinha posto.
9 Desmonta logo e, veloz como o raio, 1 5 Pensa Angelica ouvir, que suplicando
corre às salas que belo tecto coroa; e a chorar diz: - Acode de seguida!
para cá e para lá anda, e de soslaio Por minha virgindade estou rogando 1 1 ,
toda a casa com o olhar aguilhoa. mais que pela alma ou que pela própria vida.
Já desvendado todo o piso espraio 1 0 Pois, na presença do meu caro Orlando,
sem os dois ver, pela escadaria voa; por tal ladrão me há-de ser subtraída?
mas não menos perde naquele soalho Mais vale que tua mão me dê a morte
do que em baixo perdeu tempo e trabalho. que deixar-me entregue a tão triste sorte. -
10 Leitos ornados de ouro e seda vê; 16 Estas palavras uma e outra vez
das paredes nem um pouco aparece; o levam a fazer pela casa estança;
nelas e no chão onde põe o pé com paixão e muita fadiga o fez,
rica tapeçaria comparece. porém temperada por grande esperança.
Volta abaixo e acima e tudo revê, Pára e a voz ouve, com nitidez,
mas a alegria os olhos não lhe aquece: que à de Angelica tem tal semelhança;
Angelica não vê, nem o rapace se ele aqui está, ela soa acolá,
que lhe ocultou a delicada face. e para achá-la não sabe aonde vá.
1 1 E enquanto aqui e ali movia o passo, 1 7 Mas voltando a Ruggier, que deixei quando
perdido em pensamentos agoireiros, ia, por atalho sombrio e fosco,
Ferraú, Brandimarte e o rei Gradasso, o gigante e a donzela encalçando,
rei Sacripante e outros cavaleiros e num grande prado saiu do bosco,
encontrou, que, correndo o mesmo espaço, direi que chegou aqui onde Orlando
não menos que ele eram vãos caminheiros; antes chegou, se é que o lugar bem tosco.
queixavam-se do invisível raptor, Aquela porta o gigante atravessa;
o qual daquele palácio é senhor. Ruggiero, atrás, à mesma se endereça.
CANTO XII 195
30 Couraça usavam, e elmo cobria 33 Não sabe nem pode Atlante impedir
dois destes guerreiros que eu aqui canto; que os guerreiros retomem sua sela,
nunca os tiraram, de noite ou de dia, para os lindos olhos negros perseguir
desde que estão no palácio de encanto; e a áurea cabeleira da donzela,
usavam-nas com a mesma louçania que fustiga a jumenta para fugir;
que uma veste, por habituados tanto. porque não estava na intenção dela
Como eles estava Ferraú armado, ter os três amantes por companhia:
excepto o elmo, por ele não desejado, um após outro, talvez, escolheria.
31 até poder ter o que o paladino 34 E estando o palácio já afastado
tirou ao que era de Troiano irmão 17 ; bastante, para que já não se acautele
esta jura fez, quando o elmo fino nem tema que o encantador malvado
de Argalia no rio buscou em vão; exerça a sua magia cruel,
com Orlando aqui o pôs o destino, cerrou, como em apertos do passado,
mas Ferraú não lhe deitou a mão; entre os rosados lábios o anel:
aconteceu que não se conheceram logo da vista lhes fugiu, e pô-los
durante os dias em que ali estiveram. como se fossem insanos e tolos.
32 Tal encanto aquele palácio embaraça 35 Tal como fora seu primeiro desejo
que reconhecerem-se não podiam. consigo ter Orlando ou Sacripante,
De noite e de dia, espada e couraça de ao reino acompanhá-la dando ensejo,
e escudo do braço não removiam. de Galafron 1 8 , no último Levante;
Os seus cavalos, que a sela enchumaça, de repente, por ambos sentiu pejo,
com as rédeas de rojo, se pasciam e mudou de vontade num instante:
numa estância próximo da saída, sem ter de se obrigar a este e àquele,
de palha e cevada bem fornecida. mais que os dois lhe valia o seu anel.
CANTO XII 197
36 Giram pelo bosque aqui e além, à pressa, 39 Voltai para trás ou tomai outra via,
ludibriados, o rosto abismado; se não quereis encontrar aqui a morte;
como se lebre ou raposa travessa nenhum de vós pense que companhia
o cão houvesse na caça enganado, para amar minha dama, ou seguir, suporte. -
por de repente numa moita espessa, Orlando disse ao rei 1 9 : - Que mais diria,
ou toca, ou fosso, se ter ocultado. se por vis mulheres da mais baixa sorte
Deles se ri Angelica, proterva, nos houvesse tomado, ou cortesãs
que sem ser vista seus gestos observa. que já de rocas extraíram lãs? -
37 Pelo meio do bosque vê-se uma só estrada: 40 Depois, para Ferraú: - Homem bestial,
pensam os cavaleiros que a donzela se eu não te visse aí sem elmo haver,
à frente vá, por ela encaminhada, o que disseste, se foi bem ou mal,
pois mais via não há senão aquela. sem delongas te dava a perceber. -
Corre Orlando, e Ferraú menos nada, Disse o espanhoFº : - Se não me importa tal,
e Sacripante esporeia e dá trela. por que preocupações hás-de tu ter?
Angelica a brida mantém mais presa, Eu, contra os dois, capaz de fazer sou
e vai atrás deles com mais lenteza. o que disse, sem elmo como estou. -
3s Chegados ao sítio em que os carreiros 41 - Ouve (disse Orlando ao rei circassiano) ,
se perdiam para dentro da floresta, faz-me o favor e o elmo a esse empresta,
começam a buscar os cavaleiros, e verás como a loucura lhe esgano,
para ver se pegada a erva molesta; pois outra nunca vi igual a esta. -
Ferraú, que era o rei dos altaneiros, Diz-lhe o rei: - Quem seria mais insano?
deles podendo usar coroa na testa, Mas se tal petição achas honesta,
voltou-se com mau modo aos outros dois empresta-lhe o teu; pois eu não me apouco,
e gritou-lhes: - Para onde vindes, pois? tal como tu, de castigar um louco. -
1 98 ORLANDO FURIOSO
54 Ferraú, que para ali olhou primeiro, 56 como à estrada da esquerda o conde aponte,
afastou-se de Orlando e assim falou: para um vale, que o circassiano seguiu,
- Vê como de nós fez o cavaleiro escolheu Ferraú outra, junto ao monte,
néscios e tolos, e aqui nos deixou! onde Angelica fizera desvio.
Que prémio agora há para o melhor guerreiro, Angelica entretanto a uma fonte
se o belo elmo ele daqui levou? - chegara, de aprazível atavio,
Recua Orlando e ao ramo os olhos gira: que quem passa à sua sombra convida,
não vê o elmo e todo ele arde em ira. e obriga a beber antes da partida.
55 À opinião de Ferraú cedeu, 57 Pára Angelica junto à clara onda,
que o cavaleiro que com eles estava pensando que ali não virá ninguém;
o levara; logo a brida torceu, e, desde que o mágico anel a esconda,
e esporas em seu Brigliadoro crava. sabe que nenhum mal lhe sobrevém.
Vendo Ferraú que ele se escafedeu, Logo que chega, numa verde fronda
foi atrás, e, no sítio em que se achava na margem do arroio o elmo sustém;
na erva o sinal que os rastos revela depois, onde a erva mais tenra sente,
feitos pelo circassiano e pela donzela, a égua prende para que se apascente.
200 ORLANDO FURIOSO
58 O cavaleiro de Espanha que sua pista 62 temperou a dor em que lhe arde o peito,
vinha seguindo, chega àquela bica. de não ter tal desejo consolado,
Assim que Angelica lhe põe a vista, com ter do elmo a posse satisfeito,
desaparece e a jumenta pica. que de Orlando tomar tinha jurado.
O elmo ora da dama muito dista: Pelo conde foi procurado a preceito,
do ramo caiu, e na erva fica. quando dos factos ficou inteirado;
Quando o pagão dela se apercebeu, o elmo ao mouro nunca mais tirou,
cheio de alegria para ela correu. senão quando entre as pontes o matou32 •
59 Desapareceu-lhe ela, disse eu, diante, 63 Angelica, invisível se remete
como um fantasma ao despertar se esvai. a seu caminho com turvada fronte;
Procura em todo o lado o seu semblante, no elmo que deixara ora reflecte,
mas seu triste olhar nela não recai. por pressa abandonado junto à fonte:
Praguejando a Maomé e Trivigante3 1 , - Por querer fazer o que não me compete,
e de seu credo a todo o mestre e pai, fiz com que o conde com elmo não conte;
voltou Ferraú à fonte, e viu onde com tal acto quis dar compensação
na erva jazia o elmo do conde. por quanto lhe estou em obrigação.
60 Reconheceu-o logo que o olhou, 64 Com boa intenção (e sabe-o Deus) ,
por letras que tinha escritas no bordo, embora alcançasse um diferente efeito,
dizendo onde e quando Orlando o ganhou, o elmo levei; os pensamentos meus
e de quem o teve em silente acordo. eram só de pôr fim àquele pleito;
Com ele colo e cabeça ornamentou, e não que por mi.m os desejos seus
pois o desgosto não o fez balordo; o bruto espanhol apanhasse a jeito. -
desgosto por ela desaparecer Assim para si se ia lamentando,
como costumam fantasmas fazer. por ter de seu elmo privado Orlando.
61 Depois de o elmo afivelar à testa, 65 Irritada e triste seguiu a via,
para total consolo ter, estabelece como melhor achou, para o Oriente.
que só Angelica encontrar lhe resta, Sua presença esconde ou denuncia,
que como um raio surge e desvanece. conforme é oportuno, entre a gente.
Por ela buscou na alta floresta, Depois de terras ver em demasia,
e, quando toda a esperança lhe fenece chegou a um bosque, onde cruelmente,
de poder achar seus sinais subtis, entre companheiros mortos estendido,
volta ao campo espanhol, junto a Paris; encontrou um jovem no peito ferido.
66 Mas de Angelica não vou mais adiante,
que de outros falar vontade me anima;
nem vou a Ferraú ou Sacripante
por muito tempo dedicar mais rima.
Deles me afasta o príncipe de Anglante,
que merece que antes de outros exprima
as fadigas e a ânsia que passou
por Angelica achar, e não achou.
67 Na primeira cidade a que ele chega,
e porque andar disfarçado procura,
de novo casco a cabeça carrega,
sem querer saber se a têmpera é fraca ou dura:
seja o que for, qualquer coisa o sossega,
de tal modo a encantação é segura.
Assim coberto, prossegue a demanda;
noite, dia, chuva ou sol não a abranda.
CANTO XII 20 1
68 Era na hora em que Febo do mar 74 Quando Alzirdo viu Orlando defronte,
os orvalhados cavalos ergueu, que em valor não havia par no mundo,
e a Aurora começava a espalhar com tal semblante e tão soberba fronte,
áureas e rubras flores por todo o céu; parecendo o deus da guerra a si segundo,
as estrelas deixaram de bailar, pasmou, por perceber a quanto amonte
e para partir já tinham posto o véu; o olhar altivo, o porte furibundo;
quando, junto a Paris um dia andando, calculou ser guerreiro poderoso,
de seu valor deu grande prova Orlando. mas de o provar foi demasiado ansioso.
69 Encontrou dois esquadrões: um, Manilardo33 75 Era jovem Alzirdo, e arrogante,
regia, o sarraceno encanecido, pela força e coragem apreciado.
rei de Norizia, em seu tempo galhardo, Para justar fez seu cavalo ir avante:
mas hoje mais conselheiro que destemido; mais valia em formação ter ficado;
o outro tinha do pendão resguardo no choque com o príncipe de Ariglante,
do rei de Tlemcen34 , cavaleiro tido ao chão foi de coração trespassado.
por perfeito pelas africanas gentes: Foge o seu cavalo, de terror cheio,
Alzirdo foi chamado pelos parentes. sem ter em cima quem lhe tome o freio.
70 Estes e o outro exército pagão 76 Levanta-se um grito súbito e horrendo
tinham passado do Inverno o rigor, que por todo o ar em torno se alteia,
uns mais perto da cidade35 , outros não, quando o jovem cai, de seu peito vendo
nas vilas e cidades em redor; espirrar o sangue de tão grossa veia.
tendo gasto o rei Agramante em vão A turba para o conde corre, fremendo
mais que um dia, para de Paris dispor, desordenada, e já o ar golpeia;
por fim, montar-lhe assédio decidia, e maior turba, com penudos dardos3 8 ,
pois de outro modo não a tomaria. ataca a flor dos cavaleiros galhardos.
71 Dispunha para o fazer de muita gente; 7 7 Com tal alarido a frota porcina
pois junto àquela que com ele viera, os montes desce ou pelas campinas corre,
e a que de Espanha fora, obediente se sai da toca a matilha lupina,
ao pendão que o rei Marsilio trouxera, ou se urso esfomeado ao plano acorre,
a soldo em França outra arranjou suplente; e de tenro leitão fazem rapina,
36
de Paris ao rio que em Arles impera , que com grunhidos seu lamento escorre,
excepto uns fortes, a Gasconha a eito, tal qual a horda infiel desacata,
tudo a ele já se encontrava sujeito. correndo ao conde a gritar: - Mata! Mata! -
n Começando ora os gelados ribeiros 78 Mil lanças, setas, espadas a couraça
a liquefazer-se em tépidas ondas, recebeu, e não menos houve o escudo;
de ervas cobertos, prados e lameiros, as costas uns atacam com a maça,
e as árvores ganhando novas frondas, ou frente ou lado com ferro pontudo.
reuniu Agramante os companheiros Mas ele, que nunca temeu ameaça,
37 calcula as armas e o povo sanhudo,
que seguiam suas felizes rondas ,
por o exército querer revistar tal no escuro calcula lobo hostil
e de melhor forma o organizar. o número de ovelhas que há no redil.
73 O rei de Tlemcen, lá, para esse efeito, 79 Na mão tem nua a fulminante espada
com o de Norizia se dirigia, que a tanto sarraceno deu má sorte.
querendo ir a tempo: do esquadrão o preito, Contar os caídos desta brigada,
mais ou menos bom, ali se aferia. quem quiser tem tarefa dura e forte.
Disse eu que Orlando ali passava a jeito, Vermelha de sangue corria a estrada,
e encontro fez com esta companhia, que não continha os que tiveram morte;
em busca andando, como costumava, porque nem casco nem broquei defende
daquela que ao Amor o aguilhoava. da fatal Durindana, onde ela fende,
202 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 Geres [. . .] solitdrio: a deusa Ceres, regressando de 4 Fogo de Vulcano: a sua oficina sob o Etna.
uma visita à mãe no monte Ida, foi procurar a filha que
deixara no vale junto ao Etna, a colher flores. 5 Serpentes [. . .} serviço: o seu carro era puxado por serpentes.
2 Encélado: gigante sobre o qual a deusa Acena preci 6 Ao tartdreo fondo: ao Inferno, onde encontrou a
pitou a montanha do Etna. filha, que fora raptada por Hades, deus dos Mortos.
3 Fora de todo o itinerdrio: afastada de caminhos fre 7 Elêusis: cidade grega famosa pelo culto à deusa
quentados. Deméter (Ceres), em honra da qual se realizavam feste
jos (mistérios de Elêusis).
204 ORLANDO FURIOSO
8 28
Terra do olvido: o Inferno, onde corre o rio Lete, rio Plantas: plantas dos pés. Orlando era invulnerável
do esquecimento. em todo o corpo, excepto nas plantas dos pés (cf.
XI:50:7-8).
9
Decoro: ornamento.
29
O elmo: o elmo de Orlando, que estava pendurado
10
Piso espraio: rés-do-chão. num ramo.
11 30
Por [. . .] rogando: a virgindade de Angelica é uma Sermão: palavra.
obsessão de Orlando (cf. VIII:77-78) .
31
Trivigante: divindade adorada pelos pagãos e pelos
12
Dama de Dordonha: Bradamante, filha do duque de muçulmanos na literatura medieval. Dada a sua compo
Dordonha (cf. ii:68) . sição (tri + vagant, ou seja, «três vezes deambulante») , a
palavra poderá designar a tríplice divindade de Selene,
13 Parece [. . .] deseja: aquela voz soa, a cada um, como a que no céu é a Lua, na Terra é Ártemis (Diana), e no
voz que cada um deles mais deseja ouvir. mundo das sombras é Hécate. Recorde-se que Trívia é o
sobrenome de Diana.
14
Atlante de Carena : ver nota a VII:67.
32
O elmo [. . .] matou: previsão que não se concretiza no
15
Para que [. . .] trama: Adante enclausura também os O. Furioso. É no Mo rgante Maggiore, de Luigi Pulei
paladinos no palácio encantado, por recear que Ruggiero (XXIV: 1 6) , que Orlando mata Ferraú numa ponte deli
encontre a morte às mãos deles. mitada por duas portas (pontes) .
16 Tendo [. . .] Céu: apesar de lhe ter dado o privilégio da 33
Manilardo: rei d e Norizia, país d e África não identi
sua companhia. ficado.
17
Até [. . .] irmão: até se apoderar do de Orlando, que 34 Tlemcen: cidade do Noroste da Argélia.
fora de Almonte (de Troiano irmão) , e que Ferraú jurou
35
que havia de ser seu (cf. i:30). Cidade: Paris.
18 36
Galafron: pai de Angelica. Rio [. . .] impera: o rio Ródano, que banha Arles.
19
Rei: Sacripante, rei da Circássia. 37 Felizes rondas: bem sucedidas empresas.
20 38
Espanhol: Ferraú, sarraceno de Espanha. Penudos dardos: flechas ornamentadas com penas.
2 1 Filho de Agolante: Almonte. 39
De algodão cheias: vestes acolchoadas usadas pelos
soldados, que facilitavam mais os movimentos do que a
22
Mentiroso: no O. lnnamorato, Ferraú lutou com armadura e protegiam das flechas e dardos.
Orlando, mas não o venceu nem mostrou mais valor.
40
Telas [. . .] mil: turbantes.
23
Sou eu: Ferraú não tinha reconhecido Orlando; no
palácio de Adante, o encanto não permitia que se conhe 41 Uma [. . .] avessa: basta uma estocada para matar, não
cessem (cf. 32), e agora, Orlando tem o rosto coberto é necessário segunda.
pelo elmo e não usa as suas insígnias, pois partira em
42
busca de Angelica sob disfarce (cf. VIIl:85) . Sangue [. . .] suga: desgastou-o a idade, e não o ardor
da luta.
24
]unturas das armas: nas articulações da armadura,
onde há menos resistência. 43 À esquerda [. . .] remoto: como não sabe onde pro
curar Angelica, tanto lhe faz virar à esquerda como à
25
Terds [. . .]fadado: no O. lnnamorato diz-se que Ferraú direita.
era invulnerável em todo o corpo, excepto na barriga.
44 Corais e pérolas: lábios e dentes.
26
Ponto [. . .] toma: umbigo.
45
Lírios e rosas: as cores da face. Tal como no v. 3, a des
27
Escuro [. . .] rosto: até que a negra terra o cobrisse (até crição do rosto feminino segue o modelo petrarquista.
morrer) .
�
CANTO XIII
�
3 - Embora saiba (disse), ó cavaleiro, 9 Assim que teve fim a grande festa,
que de meu falar colherei suplício, o meu Zerbino à Escócia regressou.
pois penso que ao que foi meu carcereiro, Se conheces o amor, sabes que mesta
esta irá dar desta conversa indício, fiquei, e em minha ideia ele ficou;
estou disposta a contar-te o verdadeiro, e estava certa que também molesta
deitando a minha vida ao precipício. chama seu coração acompanhou.
E que mais posso eu esperar que ocorra, Ao seu desejo ele não pôs barreira,
senão que ele um dia queira que eu morra? e de ter-me consigo achou maneira.
4 lsabella sou eu, e fui do rei 10 Sendo diferente a nossa religião
da Galiza filha, desse infeliz. (cristão ele é, e sarracena eu sou),
Bem disse fui, pois dele não serei, não pode a meu pai pedir minha mão,
mas da dor, da ânsia e tristeza vis. e levar-me por furto planeou.
Culpa de Amor: de outrem não poderei Fora da nossa rica possessão,
queixar-me mais que de seu mau cariz; que à beira-mar verde campo cercou,
pois no início docemente aplaude, um belo jardim numa praia estava,
e às escondidas tece engano e fraude. de onde as colinas e o mar se avistava.
Gozava minha sorte tão contente, 11 Parece-lhe estar tal lugar disposto
jovem, gentil, honesta, rica e bela; a dar-nos o que a fé nos intercepta;
vil e pobre ora sou, e descontente; e faz-me saber que havia composto
e, se pior sorte houver, minha é ela. o modo de termos vida dilecta.
Mas quero que conheças a semente Perto de Santa Marta dera encosto,
que originou o mal que me flagela; com gente armada, a uma galé secreta,
inda que não me dês ajuda expressa, à guarda de Odorico de Biscaia,
conforto me dará que te entristeça. mestre de guerra no mar e na praia 1 •
6 Meu pai fez uns torneios em Baiona, 12 Em pessoa tal levar a efeito
cerca de doze meses deve haver. não podia, porque seu velho pai
A sua fama trouxe à nossa zona ao rei de França o mandara dar preito;
cavaleiros de fora para combater. sobre Odorico a tarefa recai,
De todos (talvez porque Amor o abona, entre todos os amigos eleito
ou por o seu valor patente ser), o mais fiel e que mais o atrai:
Zerbino, que do rei da Escócia é filho, e tal devia ser, se os benefícios
achei ser o que tinha maior brilho. para conquistar amigos são propícios.
7 Quando fazer provas em campo o vi, 13 Viria ele sobre um navio armado,
maravilhosas de cavalaria, no dia aprazado buscar-me a mim.
de amores me tomei; só me apercebi, Assim chegou o dia desejado,
quando dona de mim não me sentia. e fiz-me encontrada no tal jardim.
Sendo por seu amor que sofro aqui, Vindo Odorico à noite, acompanhado
gosto de alimentar a fantasia por quem é bom marujo e espadachim,
que meu amor não pus em sítio imundo, num rio ali vizinho desmontou,
mas no mais digno e belo que há no mundo. e ao meu jardim em silêncio chegou.
s Zerbino de beleza e de valor 14 Levada fui à galé bem pichada2,
era de todos o mais eminente. antes que aviso levassem à corte.
Mostrou e creio que me tinha amor, Da criadagem nua e desarmada,
que menos do que o meu não era ardente. uns fugiram, a outros deram morte,
Não nos faltou quem do comum ardor parte, cativa, foi também levada.
entre um e outro fosse confidente, Minha terra deixei e fui à sorte,
pois, tendo sido da vista apartados, com quanto gáudio não te sei dizer,
ficámos sempre em espírito ligados. esperando em breve o meu Zerbino ver.
CANTO XIII 207
15 Mongia3 havíamos deixado para trás, 16 Era inútil baixar velas, ou estais
quando se levantou do esquerdo lado ao mastro dar, ou castelo6 abater;
um vento de turvar o ar capaz, pois íamos, malgrado nossos ais,
e o mar turvou e pôs encapelado. em La Rochelle nas rochas embater.
Salta um mistral4 que de través nos traz, Se não nos ajuda o que pode mais,
e cresce a toda a hora desbragado, só contra a terra nos vamos deter.
e cresce desbragado com tal força O vento cruel sopra com mais mecha
que não serve alternar poja com orça5 . que jamais do arco saiu a flecha.
208 ORLANDO FURIOSO
27 Tudo é debalde, pois eu, firme e certa, 31 só para de como eu sou terem abono:
antes morria que o satisfizesse. virgem sendo, esperam vender-me bem.
Todo o rogo e toda a lisonja experta Findo é o mês oitavo, e vem o nono,
e ameaça fez, sem que eu pena tivesse, que este povo sepulta aqui me tem.
e à força se entregou de forma aberta. De Zerbino toda a esperança abandono;
Vão era que rogando eu lhe dissesse pelo que aqui ouvi dizer alguém,
da fé que Zerbino nele pusera, fizeram de mim venda a um mercante
e que eu pensara em suas mãos houvera. que a um sultão me leva, no Levante. -
2s Quando viu que rogas fizera em vão, 32 Assim contava a formosa donzela;
e que de ajuda eu não tinha concurso, muitos soluços e suspiros dava
chegou-se-me, mais cúpido e vilão que interrompiam a infeliz novela,
que se a mim viesse faminto urso; que até víboras de piedade agrava.
defendi-me com o pé e com a mão, Enquanto o seu sofrer assim revela,
e às unhas e aos dentes fiz recurso: ou, quem sabe, de suas mágoas se lava,
pelei-lhe o queixo, dei-lhe arranhadelas, uns vinte homens entram na pedreira,
e os meus gritos chegavam às estrelas. armados de espeto e de podadeiraª.
29 Não sei qual foi o caso: ou os meus gritos 33 O que era o chefe, homem de feroz rosto,
que se faziam a uma légua ouvir, um só olho tem, e olha de esguelha;
ou quando com navios haja conflitos o outro por um golpe foi deposto,
tenham o hábito de à praia vir, que o cortou do nariz à sobrancelha.
sobre o monte surgiram expeditos Vendo que o paladim tomou encosto
alguns, para ao mar e a nós se dirigir. junto à donzela, naquela quartelha,
Quando o biscainho ali os topou, disse aos outros: - Temos pássaro novo;
deixou-me e para fugir se preparou. sem rede lhe estender cá o encovo. -
30 Com aquela multidão me satisfiz 34 E disse ao conde: - Nunca um homem vi
contra o traidor, mas daquela maneira mais útil do que tu e a meu favor.
que às vezes em provérbio o vulgo diz: Não sei se adivinhaste, ou estás aqui
cair-se da panela para a braseira. porque por outro foste sabedor
É certo que não fui tão infeliz, que tão belas armas apeteci,
.nem eles malvados sobremaneira, e essa bela capa de escura cor.
que violassem a minha pessoa; A tempo tu chegaste, na verdade,
mas não por sua virtude, ou acção boa; de acudir à minha necessidade. -
... . �- . . .
. ..... -....... ....,..·-. §.
210 ORLANDO FURIOSO
35 Pondo-se em pé, sorriu com amargor 37 Na caverna uma mesa existe até,
Orlando, e deu resposta ao malandrão: dois palmos grossa, espaçosa e em quadro,
- As armas te vendo por um valor apoiada em grosseiro e sujo pé,
que nenhum mercador tem no razão9 • - que leva toda a família do ladro.
Do fogo, mesmo ao lado, foi raptor Com aquela agilidade que se vê
de fumegante e ardente tição; os Espanhóis lançar a cana 1 1 no adro,
o malandrim no ponto atingir quis Orlando a grande mesa de si esgalha
em que confinam sobrolho e nariz. para onde em conjunto está a canalha.
36 Ambos os olhos o tição colheu, 38 A uns o peito, outros o ventre, a testa
mas maior dano fez no esquerdo lado: atinge, ou pernas ou braços amassa,
aquela única parte lhe tolheu um de tal morre, outro trôpego resta;
por onde o dia não lhe era vedado. quem menos sofreu, fugir ameaça.
Mas não só de cegá-lo se aprazeu: Assim também uma pedra molesta
fê-lo para aquele lugar ser despachado lados, costas, cabeças despedaça,
em que Quíron tem, com seus companheiros, lançada sobre um monte de serpentes
os espíritos em ferventes ribeiros 1º . que após o Inverno ao sol se estão, dolentes.
CANTO XIII 211
39 Casos há vários, não sei dizer quantos: 42 A velha, que era amiga dos malsãos,
uma morre, outra sem a cauda fica, assim que viu que estavam todos extintos,
para a frente outra não vai, e em quebrantas chorando e às melenas levando as mãos,
em vão a sua çauda encolhe e estica; escapou-se por silvestres labirintos.
outra, que teve propícios os santos, Depois de correr trilhos e desvãos,
nas ervas serpenteia e se barrica. em árduos passos de terror retintos,
Foi grande o choque, mas não admirando, na margem dum rio num guerreiro esbarra;
pois quem o fez foi o valente Orlando. mas quem ele é noutro canto se narra;
40 Os que pouco ou nada ofendeu a mesa 43 regresso à outra, que se recomenda
(escreve Turpino 12 que eles foram sete) ao paladim, e dele não se isola:
aos pés recomendam sua defesa; diz-lhe que o seguirá em qualquer senda.
mas na saída o paladim se mete, Orlando com cortesia a consola;
e, depois de apanhá-los sem braveza 13 , dali, quando adornada se desvenda
ao nó da corda suas mãos submete; de rósea grinalda e purpúrea estola
da corda ao seu serviço consentânea a branca Aurora, ao usual destino,
que ali achou, na casa subterrânea. partiu com lsabella o paladino.
41 De rojo vão para fora da espelunca, 44 Sem encontrar qualquer anomalia,
onde fazia sombra um velho sorvo 14. por muitos dias juntos caminharam;
Orlando com a espada os ramos trunca, por fim um cavaleiro na mesma via,
e eles pendura para que os coma o corvo. que cativo fora feito, encontraram.
Corrente não requer, de ponta adunca, Quem era não digo, pois me desvia
pois, para purgar o mundo de tal estorvo, agora alguém, de quem ouvir esperaram:
a árvore seus ganchos lhe emprestou, a filha de Amon 1 5, que eu deixei atrás 16,
onde pelo queixo Orlando os pendurou. de amorosa pena dolente assaz.
212 ORLANDO FURIOSO
59 De tua estirpe há-de sair aquela 65 De outras não falo; pois, como já disse,
de obras ilustres e de artes amiga, difícil será de tantas contar;
que não sei se mais graciosa, se bela, embora cada uma em si reunisse
ou se instruída e virtuosa eu a diga, razões para merecer heróico cantar.
liberal e magnânima lsabella23 , De Bianche, Lucrezie, calo a ledice,
que dia e noite em sua luz abriga Costanze e outras, que governar
a terra que junto ao Menzo cresceu, esplêndidas casas em Itália vão,
à qual a mãe de Ocno seu nome deu24; e restauradoras e mães serão.
60 onde honroso e deslumbrante certame 66 Mais que as outras, as estirpes que perfilhas
fará com seu digníssimo consorte, serão de suas damas venturosas;
para ver qual deles virtudes mais ame, não o serão mais com as suas filhas
e à fidalguia melhor abra a corte. que na honestidade das esposas.
Se ele no Taro e no reino25 se proclame, E notícia de tal também partilhas,
por livrar dos Gálios a Itália, forte, se de quanto Merlim me contou gozas;
ela, qual Penélope, que viveu contou-me talvez para me dar ensejo
casta, não menos que Ulisses valeu. de a ti dizer, saciando meu desejo.
61 Grandes e muitas coisas eu ouvi 67 Primeiro, de Ricciarda39 vou falar,
dessa dama, e muitas para trás desleixo, exemplo de força e de honestidade:
que, no tempo em que do vulgo fugi26, ficará viúva, jovem, por azar
me revelou Merlim do cavo seixo27• que aos bons a Fortuna dá sem piedade.
Se em tão grande mar a vela abro aqui, Os filhos, deixando o paterno lar,
Tífis a vogar muito para trás deixo28 • verá desterrar para estranha cidade,
Concluo enfim que ela terá, por dom jovens, pelos adversários exilados;
da virtude e do Céu, tudo o que é bom. mas verá por fim os males sanados.
2
62 Em Beatrice 9, a irmã, tem matiz, 68 Da alta estirpe de Aragão antiga
a quem tal nome assenta muito bem: a ilustre rainha40 se descortina;
não só dos bens da Terra imperatriz, tão sábia e tão pudica não abriga
mas perfeição na curta vida obtém; como ela a história grega ou a latina,
e será capaz de fazer feliz nem quem tenha a Fortuna tão amiga:
entre os duques o que a seu lado tem; pois há-de ser pela Bondade divina
o qual, depois de ela deixar o mundo, eleita mãe, para parturir a bela
conhecerá do infortúnio o fundo30 • prole: Alfonso, lppolito e lsabella.
63 Moro, Sforza e de Visconti as serpentes, 69 Será esta a ilustre Eleonora,
vivendo ela, formidáveis serão31 , que em tua árvore se manifesta.
da neve a norte, aos rubros lidos32 quentes, Que hei-de dizer-te da segunda nora41 ,
do Indo aos montes que para teu mar dão33 ; que é a próxima sucessora desta?
morta ela, aos Ínsubres aderentes34 , Lucrezia Borgia, de quem de hora em hora
com grave dano para a Itália irão a beleza, a virtude, a fama honesta
para a servidão3 5; sem ela, só o acaso e a fortuna crescerá, nada menos
à suma prudência terá dado azo. que jovens plantas em macios terrenos.
64 Outras haverá como ela chamadas, 70 Como o estanho à prata e o cobre ao ouro,
muitos anos antes, qual mais idónea: a papoila silvestre à nobre rosa,
uma há-de ter as madeixas ornadas o pálido salgueiro ao verde louro,
com a coroa da fecunda Panónia36; ou vidro pintado a gema preciosa,
outra, depois de as terrenas estradas tal a ela, que antes de nascer douro,
haver deixado, será na Ausónia37 comparo alguma até aqui famosa
colocada no número das divas, por singular beleza ou por prudência,
terá incensos e imagens votivas38• ou por qualquer louvável excelência.
CANTO XIII 215
71 E sobre os seus demais ínclitos dons, n Não é de silêncio que aqui Renata
que lhe serão, ou viva ou morta, dados, de França, nora desta, se acompanha,
louvá-la-ão porque de régios tons42 de Luís, duodécimo Rei, nata45,
Ercole e os outros43 foram dotados, e da perpétua glória da Bretanha.
e porque lhes deu predicados bons Toda a virtude que houve dama, inata,
de que se ornarão em toga e armados44 ; desde que fogo queima e água banha,
não há odor que logo se derreta e o céu em torno gira e o Sol desloca,
que em novo vaso, mau ou bom, se meta. para Renata adornar vejo que é pouca.
216 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 No mar e na praia: no mar e em terra. 9 Razão: livro de contabilidade, onde se lançam os
valores a crédito e a débito.
2
Bem pichada: bem untada com piche, ou pez, e por
isso mais deslizante. 'º Mas não só [. . .} ribeiros: não só o cegou, como o
matou, tendo-o despachado para o círculo dos violentos
3 Mongia: provavelmente Mugia, aldeia entre o cabo contra o próximo (Dante, Inferno, XII), que se encon
Finisterra e A Corunha. tram mergulhados num rio de sangue fervente, vigiados
constantemente pelos centauros, cujo chefe é Quíron.
4 Mistral: vento frio que sopra no Sul de França no
11
final do Inverno. Lançar a cana: o jogo de lançamento da cana (lança
fina e furada, como uma cana) foi introduzido em Itália
5 Alternar[. . .} orça: oferecer ora um lado ora outro da pelos Espanhóis, e era praticado em festas pelos cavalei
embarcação ao vento. ros nobres.
6 12
Castelo: castelo de popa ou de proa, estruturas que se Turpino: ao longo de todo o poema, Ariosto atribui
podiam abater para aliviar a nave. ironicamente a Turpino as situações que parecem menos
credíveis. Já Boiardo fazia o mesmo no O. lnnamorato.
7
Biscainho: Odorico de Biscaia. Turpino é um lendário arcebispo de Rheims, a quem se
atribuía uma crónica da vida de Carlos Magno, que acom
8 Espeto [. . .} podadeira: utensílios que eram usados panhou em algumas campanhas. Hoje crê-se que essa cró
como armas pelos ladrões. nica foi composta por diversos autores, no séc. XIII.
218 ORLANDO FURIOSO
13
Sem braveza: sem oferecerem resistência. 33
Indo [...} dão: do Oriente (Indo) ao Ocidente (montes,
junto a Gibraltar, que abrem caminho para o teu mar (o mar
14
Sorvo: sorveira (sorbus domestica), árvore de madeira de Bradamante, isto é, o Mediterrâneo, que banha Marselha).
muito resistente e frutos (a sorva) comestíveis.
34
Aos [. . .} aderentes: juntamente com os fnsubres (anti
15
Filha de Amon: Bradamante. gos habitantes da Lombardia) .
16 35
Deixei atrds: no canto VIl:49. Para a servidão: cairão nas mãos dos Franceses.
17 36
Langu,edoc: região do Sul de França a oeste do Ródano. Uma [. . .} Pan6nia: Beatrice, filha de Aldobrandino
III, casou com André II, rei da Hungria (Pan6nia) .
18
Provença: região do Sul de França a leste do Ródano.
37
Aus6nia: Itália.
19
Oficio [. . .} guerreiro: Carlos Magno conferira a
38
Bradarnante funções governativas e militares em Marselha Outra [. . .] votivas: a beata Beatrice, filha de Azzo
(cf. 11:64). VII, morta em 1 262 e venerada no mosteiro de Santo
António, em Ferrara, onde foi monja.
20
A que [. . .} Alcina: Melissa, que com o anel libertou
39
Ruggiero do feitiço de Alcina. Ricciarda: filha do marquês de Saluzzo, casou com
Niccolà III d'Este. Seus filhos Ercole e Sigismondo foram
21 Não [. . .]fim: não receies estar a matar Ruggiero, pois exilados para a corte de Nápoles e privados da sucessão
estarás a pôr fim à vida de Adante (o que te contraria), do ducado de Ferrara. Só após a morte de Borso, filho ile
disfarçado de Ruggiero. gítimo de Niccolà III, a linha legítima de sucessão foi res
taurada e Ercole assumiu o poder (cf. IIl:47) .
22
Anos antes [. . .} bela: cf. canto IIl:23-59.
40
Rainha: Leonor de Aragão, mulher de Ercole I e mãe de
23
Isabel/a: Isabella d'Este, filha de Ercole I e Leonor de Alfonso i, Ippolito e Isabella d'Este. Ariosto chama-lhe rainha
Aragão, irmã do duque de Ferrara, Alfonso I, e do cardeal por ela ser filha do rei de Nápoles, Fernando I de Aragão.
Ippolito. Mulher de grande cultura, casou com Francesco
41
II Gonzaga, marquês de Mântua. Teve relações de amiza Segunda nora: Lucrezia Borgia foi segunda nora de
de com Ariosto, com quem trocou cartas; ele leu-lhe par Leonor de Aragão, porque quando Alfonso I casou com
tes do Orlando Furioso antes da publicação da obra. ela já era viúvo de Anna Sforza.
24 42
Terra [. . .} deu: Mântua, banhada pelo rio Mincio Régios tons: educação de acordo com a sua condição.
(Menzo) . Ocno é um herói etrusco, ligado também à
43
lenda de Bolonha. Sua mãe é Manto. Os outros: os outros filhos.
25 44
No Taro e no reino: Francesco II participou na batalha Em toga e armados: na corte e na guerra.
de Fornovo, junto ao rio Taro (afluente do Pó), e na de
45
Atella, no reino (de Nápoles), para expulsar os Franceses. Luís [. . .} nata: Renata era filha de Luís xii de França
e de Ana, duquesa da Bretanha. Ariosto faz um jogo de
26
Tempo [. . .} fagi: no tempo em que se isolou na gruta palavras com o nome (di Luigi il duodecimo Re nata) .
de Merlim.
46
Aida de Sax6nia: terá sido mulher de Alberto Azzo
27
Cavo seixo: túmulo de Merlim. II, segundo Ariosto (cf. III:27) .
28 47
Se [. . .} deixo: se percorresse os factos da vida de Condessa de Celano: provavelmente, mulher de Azzo VI
Isabella, faria viagem muito mais longa que os d'Este.
Argonautas (Tífis foi timoneiro do navio Argo) .
48
Bianca Maria da Catalunha: filha de Afonso de Aragão
29
Beatrice: Beatrice d'Este desposou Ludovico Sforza, e mulher de Leonello d'Este.
il Moro.
49
Filha [. .. } siciliano: Beatrice, filha de Carlos II de
30
Depois [. . .} fando: após a morte de Beatrice, Anjou, mulher de Azzo VIII.
Ludovico, il Moro, conhecerá a derrota e morrerá prisio
50
neiro dos Franceses. Lippa de Bolnnha: segunda mulher de Obizzo III d'Este.
31 51
Moro [...} serão: enquanto Beatrice for viva, Ludovico, Lírios de ouro: insígnias da bandeira francesa, valen
il Moro, o nome dos Sforza, e Milão (de Visconti as ser do aqui pela própria França.
pentes, símbolo de Milão), serão poderosos e famosos.
52
O rei [. . .] inscritos: o rei Marsilio mandou buscar
32
Neve [. . .} lidos: do Pólo Norte ao mar Vermelho. tropas a Espanha, e Agramante a África, onde havia mui
tos soldados já recrutados.
--&$,.
CANTO XIV
�
Nos muitos assaltos, cruéis conflitos Com esses, que estiveram com decoro
tidos entre França, África e Espanha, muito perto do derradeiro apelo,
muitos morreram e foram prescritos derrotastes as ricas landes de ouro4 ,
ao lobo, ao corvo ou à águia grifanha; rasgastes o pendão rubro e amarelo5,
estavam contudo os Francos mais aflitos, e a vós se deveu o triunfal louro
por terem perdido toda a campanha, do lírio não ter sofrido atropelo.
mas queixavam-se mais os Sarracenos, Uma outra fronde vos adorna a coma:
por barões e príncipes terem menos. Fabrizio ter restituído a Roma6 •
2 Vitórias tiveram, mas sanguinosas, Essa Coluna7 do nome romão,
e pouco houveram de que se alegrar. que prendestes e guardastes inteira,
E se as modernas coisas às saudosas mais vos honra que se por vossa mão
puderem, invicto Alfonso, ter par, tivesse caído a ufana fileira,
a grande vitória' , que às virtuosas toda a que engorda o ravenano chão8 ,
obras vossas tanta glória há-de dar, e toda a que partiu sem a bandeira9
pela qual em pranto sempre permanece de Navarra, de Aragão, e Castela,
Ravenna, mui com esta se parece: pois estacas e carros foram à vela 1 0 •
3 quando, cedendo Mórinos, Picardos2 , 6 Essa vitória foi mais de conforto
o exército normando e o aquitano, que de alegria; porque muito pesa
vós no meio atacastes os resguardos no nosso contentamento ver morto
do quase vencedor imigo hispano, o capitão de França e da empresa 1 1 ;
seguindo-vos esses jovens galhardos e ter com ele essa procela absorto
que mereceram, por seu ânimo lhano, os príncipes ilustres, que em defesa
de vós receber insígnias honradas: de seus reinos, de seus confederados,
punho, guarda-mão, e esporas douradas3 • atravessaram os Alpes gelados.
220 ORLANDO FURIOSO
31 Por espantosos feitos era famoso, 33 Ao escudeiro foi perguntar como era
e a sua fama todo o mundo enchia; a sobrevesce daquele cavaleiro.
mas mais que tudo tornava-o glorioso - Era toda negra (ele respondera),
no castelo da fada de Soria46 negro era o escudo, e sem tufo cimeiro48 • -
80 Julgando ali achá-lo, agitava 83 Viu que era, por vestir de cores um cento,
as asas douradas com mais presteza; em tiras desiguais e assaz sortidas,
que Paz e Caridade lá morava, que a cobrem ou não; os passos e o vento
além do Sossego, tinha a certeza. lhas abriam, pois não eram cosidas.
Crença que ser falsa verificava As crinas tinha cor de ouro e de argento,
ao aterrar no claustro, com surpresa: negras, cinza, entre elas desentendidas;
não está Silêncio ali; e foi-lhe dito umas em trança, outras em fitas postas,
que ali já não habita; só por escrito. algumas para o peito e muitas para as costas.
81 Nem Piedade, Sossego ou Humildade, 84 De intimações e de pareceres alheios,
nem Amor aqui vê, e nem Paz mira. interrogatórios, deliberações,
Já lá moraram, na antiguidade; as mãos trazia e o regaço cheios,
expulsaram-nas Gula, Avareza e Ira, e enormes maços de leis e de acções;
Soberba, Inveja, Inércia e Crueldade. por causa dos quais nunca estão os meios
De tal novidade o anjo se admira: garantidos dos pobres aldeões.
andou olhando aquela turba brava, Tinha atrás e à frente, e de ambos os lados,
e viu que a Discórdia também lá estava. notários, procuradores, advogados.
82 Aquela que dissera o Pai Eterno 85 Miguel a si a chama e a comanda
que, após o Silêncio, encontrar devia. para que entre os Sarracenos se introduza,
Pensava encaminhar-se para o Averno70 , e arranje motivos que a memoranda
julgando que entre os danados estaria, discórdia, e a guerrear-se, os induza.
e veio achá-la neste novo Inferno Depois, do Silêncio lhe faz demanda:
entre ofícios e missas (quem diria?). quem sabe nova dele lhe foi difusa,
Achou estranho Miguel ela ali estar: já que ela vai sempre fogos atear
pensara muito andar para a encontrar. daqui para acolá, por todo o lugar.
230 ORLANDO FURIOSO
110 Sobre os muros o exército cristão 1 16 Apoiam-se ao mesmo tempo mil escadas,
com lanças, machados, pedras e fogo, que dois ou mais sustêm por degrau.
defende Paris sem apreensão, Os de trás aos da frente dão pisadas,
pouco alarmado com o bárbaro jogo; que um terceiro os empurra mais um grau.
e, onde Morte aqui e ali dá vazão, Por virtude ou por medo são escaladas:
não falta quem o posto ocupe logo. todos têm de passar este vau;
Tombam sarracenos das amuradas, porque, se algum hesita, o rei de Argel,
por força das feridas e das pancadas. Rodomonte, fere ou mata, cruel.
1 1 1 Não é só o ferro que ali se emprega, 1 17 Cada um, pois, se esforça para subir
mas alvenaria e merlões perfeitos, aos muros entre fogo e arremessos.
muros partidos com muita refrega, Mas atentos olham, para ver surgir
telhados de torres e parapeitos. um local que lhes dê melhores acessos;
Água a ferver, que do alto derrega, só Rodomonte faz questão de vir
inflige aos Mouros ardentes despeitos; por onde os caminhos são mais revessos.
não há quem a esta chuva resista, Quando algum outro em desespero esteja,
que inunda o elmo e faz cegar a vista. a Deus reza, mas ele a Deus pragueja.
112 Esta quase mais que o ferro lesava; 11s Armado estava de forte couraça,
e o efeito da névoa de calcina? que já foi de dragão escamosa pele.
E o que de ardentes vasos se esperava, Do peito e das costas fora chumaça
com óleo, enxofre, pez e terebintina? do seu avô, que edificou Babel,
No paiol roda ardente92 não ficava, para do celeste assento a Deus dar caça,
que a toda a volta tem em chama a crina: e ficar rei do estrelado dossel;
estas, lançadas a todas as faldas, o elmo e o escudo teve tão perfeito,
dão 'aos Sarracenos cruéis grinaldas. e a espada também, só para esse efeito.
1 13 O rei da Sárcia tinha aproximado 1 1 9 Não é menos que Nemrod o seu neto97
das muralhas a fileira segunda, indómito, soberbo e furibundo;
por Buraldo e Ormida acompanhado, para ao Céu ir, a noite não espera quieto,
um garamante93 , e o outro de Marmunda94 • desde que o caminho encontre no mundo;
Clarindo95 e Soridano96 estão ao lado, nem repara se quebrado ou completo
e a estes o rei de Ceuta secunda; o muro está, ou se a água tem fundo:
os de Marrocos e Cosca também, a fossa passa, voando sobre ela,
para que seu valor se conheça bem. chafurdando na água até à goela.
114 Na bandeira, de rubro colorida, 120 Enlameado e a escorrer água, avança
tem Rodomonte da Sárcia um leão, entre fogo e pedras, arcos, balestas,
que a feroz boca abrir a uma brida como pelos pantanais fazem andança,
que uma dama lhe dá, não diz que não. na nossa Mallea98 , as porcinas bestas99 ,
Aquele leão nele mesmo tem vida; que com as presas, o focinho e a pança
e, na dama que lhe dá sujeição, vão abrindo, em toda a parte, amplas frestas.
só Doralice está representada, Com o escudo ao alto o Mouro, seguro,
filha de Stordilan, rei de Granada; o Céu despreza, quanto mais o muro.
115 a que levada foi, como eu contava, 121 Mal pisou terra enxuta Rodomonte,
por rei Mandricardo, e disse onde e a quem. sentiram-no chegar à serventia 100
Era aquela que Rodomonte amava que, dentro dos muros, fazia ponte
mais que seu reino, e seus olhos também; por onde a tropa francesa seguia.
brio e valor por ela alardeava, Vê-se despedaçar mais de uma fronte,
sem saber que em seu poder outro a tem: coroas maiores que as dos frades abria,
tivesse-o ele sabido, e então faria voavam braços, cabeças; no fosso
aquilo que depois fez, outro dia. caía do muro um rio rubro e grosso.
234 ORLANDO FURIOSO
122 Atira o escudo, e a duas mãos a espada 12s A uns encoraja, outros repreende,
cruel ergue, atingindo o duque Arnolfo. à frente os leva quer queiram quer não:
Era ele do ponto onde dá entrada deste o peito, deste a cabeça fende,
a água do Reno no salso golfo l01 • se os vê para fugir mudar direcção.
Melhor não se defendeu da estocada Uns aperta, outros empurra, outros prende
que o enxofre a que o fogo dá engolfo; pelos cabelos, pescoço, braço ou mão:
cai por terra dando o último tombo, e para baixo tantos deles empoça
decepada a cabeça a meio do lombo. que para todos conter é estreita a fossa.
1 23 Dum golpe oblíquo matou dum sacão 1 29 Enquanto o bando de infiéis se embala,
Artselmo, Oldrado, Spineloccio, Prando: aliás, mergulha, para o perigoso fundo,
o lugar estreito e a grande multidão e logo tenta, por diferente escala,
fez a espada um giro dar ondulando. ascender ao baluarte segundo,
Os primeiros à Flandres perda dão, o rei da Sárcia (como se houvesse ala
os dois últimos ao povo normando. em cada membro) elevou o rotundo
Orghetto de Mogúncia, neste mentre, corpo todo armado, como um colosso,
fendeu da fronte ao peito e até ao ventre. lançou�se e de um salto transpôs o fosso.
102
1 24 Artdropono e Moschino duma ameia 130 Pouco menos de trinta pés, ou tanto,
lança ao fosso; o primeiro é sacerdote, que como um galgo ele atravessou lesto,
ao segundo só o vinho recreia, e estrépito ao tocar o chão fez quanto
e barris já bebeu, de um piparote. faria se em feltro fizesse o gesto;
Como sangue viperino receia e a um e a outro vai cortando o manto 105 ,
a água, e foge-lhe como a chicote; como se feito de metal modesto,
agora tombou, e o que o aborrece e não de ferro; como de cortiça,
é perceber que na água perece. tal é a espada e a força que a iça!
125 Em dois cortou o provençal Luigi,
passou o peito ao de Toulouse, Arnaldo.
De Tours, Oberto, Claudio, Ugo e Dionigi
a alma exalam com o sangue, em caldo;
a mais quatro, de Paris, morte inflige:
Gualtiero, Satallone, Odo e Ambaldo,
e muitos outros; só que eu não saberei
dizer de cada um o nome e a grei.
1 26 A turba atrás de Rodomonte, lesta,
escadas apoia e sobe em sítios vários.
O parisiense aqui já não faz testa,
pois a muralha e o fosso são sumários.
Sabem que aos inimigos muito resta
dentro fazer, se forem bons operários;
pois entre o muro e o baluarte segundo
cava-se um fosso horrível e profundo.
127 Embora os nossos façam a defesa
de baixo para o alto l03 , e mostrem valor,
nova gente foi chamada à empresa,
lutando no terrapleno interior;
lanças e setas desfere com certeza
sobre a turba que vem do exterior,
cujo número seria mais pequeno,
se não fosse o filho do rei Ulieno104 •
236 ORLANDO FURIOSO
131 Mas nesse entretanto os nossos 106, de quem 133 A chama esparsa numa só se acua:
armadilhas houve a fossa profunda, entre um bordo e outro o espaço está pleno;
que estopa e ramos com fartura tem, e tanto em altura sobe que à Lua
em redor dos quais muita pez abunda pode em breve secar seu seio ameno.
(nem um pouco dela se vê porém, Escura nuvem no alto o céu debrua,
bem que em dois lados esteja dela imunda, que o Sol oculta, afastando o sereno.
do escuro fundo quase até à borda), Ouve-se estalar contínua explosão,
e de vasos escondidos uma horda, lembrando longo e assustador trovão.
132 tal com salitre, um com azeite, tal 134 Rude concerto, horrível harmonia
com enxofre, ou com símil combustivo; por berros, gritos, urros constituída,
os nossos entretanto, para que mal da pobre gente que ali perecia,
resulte ao Sarraceno o assalto altivo, por culpa do guia 1 07 perdendo a vida,
pois estavam no fosso e o outro beiral, que estranhamente concordar se ouvia
escadas trepando, era o seu objectivo, com o brutal som da chama homicida.
ao sinal combinado foram logo Mais não, ó senhor, mais não deste canto;
aqui e acolá atiçar-lhe o fogo. estou rouco já, repouso-me entretanto.
NOTAS
�
1 Grande vitória: na batalha de Ravenna, em 1 5 12, em 1 1 Capitão [ .. ] empresa: Gaston de Foix, morto ao per
que Alfonso d'Este se aliou aos Franceses contra os seguir os Espanhóis em fuga.
Espanhóis (c( IIl:55). Ravenna (em pranto permanece)
foi saqueada pelos Franceses. 12 Impede [ .. ] empece: a vitória sobre os Espanhóis evi
tou que o papa Júlio II (Júpiter) fizesse pagar caro a
2 Mórinos e Picardos: antigos povos do Norte de Alfonso d'Este (nos empece) o apoio dado aos Franceses.
França (Artois e Picardia) que combateram em Ravenna.
13
Rei Luís: Luís XII de França.
3
Punho { .. } douradas: insígnias dos cavaleiros.
14
Áurea Flor-de-lis: por antonomásia, a França.
4
Landes de ouro: um carvalho com as !andes em ouro
15
era a insígnia do papa Júlio II, que ali era aliado dos Punam { .. } quadras: punam os soldados franceses
Espanhóis. que cometeram excessos de toda a ordem no saque de
Ravenna, roubando e violando em casas (quadras) e con
5 Pendão rubro e amarelo: bandeira espanhola. ventos.
6 Uma outra { .. } Roma: outra glória honra Alfonso 16
Deverias [ . .] ciência: deveria ter visto o exemplo
d'Este: ter libertado e restituído a Roma Fabrizio (espelho) de Brescia, que já fora saqueada pelos Franceses,
Colonna, comandante das forças do pontífice, que tinha em vez de ter servido de exemplo (ciência) a Faenza e
feito prisioneiro. Rimini, as quais depois se entregaram pacificamente e
não sofreram tal violência.
7
Coluna: alude a Fabrizio Colonna, jogando com o nome.
17
Trivulzio: quando era governador francês de Milão,
8
Toda [ .. ] chão: toda a que está sepultada nos campos em 1 500, teve de fugir e ceder o lugar a Ludovico Sforza,
de Ravenna. por suscitar a hostilidade da população, devido às suas
extorsões - lição que os Franceses deviam ter aprendi
9 Sem a bandeira: em debandada. do (que emine) .
10 18
Pois { . .} vela: por não lhes ter servido de nada as suas Rinaldo { . .} certeira: Boiardo, Orlando lnnamorato
trincheiras, feitas com carroças e estacas. (L0 • II, XXIV: 3 1 -32) .
CANTO XIV 237
19 43
Menor Castela: Castela-a-Velha. Alvaracchie, ou Ilhas Afonunadas, segundo Boiardo ( O.
Innamorato, L0• II, XXII: 1 3), que se supõe serem as Canárias.
° Cddis [ . .] in unda: os que vêm das reg10es que o
2
44
Guadalquivir (Bétis) banha, entre Córdova e Cádis. Zumara: calvez Azemmour, na costa de Marrocos, a
sul de Casablanca.
21
Orão: cidade do litoral noroeste da Argélia.
45
Tlemcen e Norizia: os reinos de Alzirdo e Manilardo,
22
Morto por Bradamante: no Orlando Innamorato (L0 • mortos por Orlando (cf. xii:69) .
III, VI: 1 0- 1 4) .
46
Soria: a Síria.
23
Garamantes: antigo povo africano.
47 Arnês [ . .] cobria: no O. Innamorato, Mandricardo
24
Marm unda (ou Marmonda): região africana, calvez a obtém, no castelo da fada de Soria, as armas que foram
oriente da Cirenaica. do troiano Heitor, à excepção da espada, que fica em
poder de Almonte. Quando matou Almon�e, Orlando
25
Libicana: região da Líbia. apoderou-se das suas armas, incluindo essa espada que
Mandricardo ambiciona ter (cf. 43).
26
Tingi,tana: região vizinha de Tânger ( Tingis, em latim).
48
Tufo cimeiro: penacho ou bandeirola sobre o elmo,
27
Ma urina: região da Mauritânia. com as insígnias do cavaleiro.
28 49
Constantina: cidade do Norte da Argélia. Quarteiro: divisa de Orlando, dividida em quatro
quadrados alternadamente brancos e vermelhos, que ele
29
Pinadoro: o anterior rei de Conscantina, morto por não envergou quando iniciou a demanda de Angelica,
Ruggiero no O. Innamorato (L0 • III, II:32) . preferindo ir disfarçado (cf. viii:85).
30 50
Hespéria (terra mais a ocidente, onde se põe o Sol) : Onde [ ..]podia: na faixa de cerra que dá acesso àque
calvez Cabo Verde. le prado, pequena península desenhada por um meandro
do rio.
31
Nasamões: tribo do Norte de África.
51
Rei da Sdrcia: Rodomonte (cf. 25).
32
Amonia: Amónio, oásis do deserto da Líbia onde se
52
situava o templo de Júpiter Árnon. Camões ( Os L usíadas, Hispano uniforme: tropas espanholas.
vii:48:2) escreve Amon por conveniência de acento
53
métrico. Sansão: juiz de Israel de 1 1 1 6 a 1 096 a. C., dotado
de grande força. Massacrou os Filisteus usando uma
33
Tardocco [ . .] esteio: Balastro comanda as tropas que mandíbula de burro.
antes eram de Tardocco.
54
Tão vilãs: cão impróprias de um combate entre cava
34
Mulga (cidade do Norte da Argélia) e Arzila (cidade leiros.
marroquina, a sul de Tânger) .
55
Bóreas: vento norte.
35
Almansilla: Numídia, antiga região do Norte de
56
África. Sofrimento [ . .] fruto: que lhe dê a liberdade, tocado
pelo seu sofrimento.
36
Get ulia: cerra dos Geculos, tribo nómada do interior
da Líbia. 57 Sangue [ . .] Stordilano: a filha (sangue) do rei de
Granada, Stordilano.
37
Cosca: região africana não identificada.
58
O [ ..} vestimenta: Orlando.
38
Bolga: região de África não identificada.
59
Gaitas e canas: gaitas-de-foles e flautas.
39
Sobrino: rei africano, de Garbo, é o principal conse
60
lheiro de Agramance. L ume: olhar.
40 61
Bellamarina: litoral da Argélia e Tunísia. Fer vilho: multidão.
41 62
Sdrcia: região da Argélia não identificada. Rei do Garbo: Sobrino (cf. 24) .
42 63
Enq uanto [ . .] fiel: enquanto o Sol permaneceu nas O imperador: Carlos Magno.
constelações de Sagitário (centa uro) e Capricórnio (cor
64
nos), isto é, de 2 1 de Novembro a 2 1 de Janeiro. Babel: Babilónia, centro do poder muçulmano.
238 ORLANDO FURIOSO
65 86
Seu [. . .} melhor: o seu anjo da guarda. A rgo : figura mítica que possuía cem ou mais olhos.
66 87
Almas santas: os santos da corte celeste. Filho de Pepino: Carlos Magno era filho de Pepino, o
Breve.
67
Exército [. . .} impele: exército dos Ingleses e
88
Escoceses, que já se encontra junto à costa francesa. Sobrino: cf. nota a 24 e 66.
68 Fogo soleve: propague o fogo da discórdia. 89
Puliano: cf. 22.
69 90
Inimigo da palavra: o silêncio. Dardinel: cf. 27 (Dardinello).
70
Averno: lago na região da Campânia, Itália, onde os 9 1 Rei de Orão: cf. 1 7.
poetas situam uma das entradas do Inferno.
92
Roda ardente: a roda de fogo (uma espécie de girân
71
Falar[. . .} Ave: uma voz tão bondosa e suave como a dola em chamas).
do arcanjo S. Gabriel ao fazer a anunciação a Maria.
93
Garamante: Buraldo, rei dos Garamantes (cf. 1 7).
72
Benedito[. . .} lar: ordens beneditina (inspirada em S.
94
Bento) e carmelita (com origem nos montes Carmelo, De Marm unda: Ormida (cf. 1 8).
em Israel, inspirada nas acções religiosas do profeta
Elias). 95 Clarindo: cf. 24.
73 96
Escolas [. . .} Arq uitas: nas escolas pitagóricas Soridano: cf. 22.
(Arquitas foi um matemático discípulo de Pitágoras)
97
eram proibidas aos alunos as disputas verbais pelo perío Avô[. . .} neto: Nemrod é referido na Bíblia como o
do de cinco anos. descendente de Noé que fundou Babel, Nínive e muitas
outras cidades, e foi «poderoso caçador diante da face do
74 Sem intervaÚJ: àquela hora exacta. Senhor» (Génesis, 1 0:8- 1 2). Ariosto, como Boiardo, con
sidera-o antepassado de Rodomonte e construtor da
75 Atlante: Adante ou Atlas (maciço montanhoso do torre de Babel. Com esta, pretendia expulsar Deus do
Noroeste de África). assento celeste e ficar senhor dos astros. Para esse fim
mandara construir armas perfeitas, as mesmas que
76
Olhos: estrelas. Rodomonte usa.
77 98
Santo consistório: conjunto de todos os santos e bea Mallea: região palustre das proximidades de Ferrara,
tos da assembleia celeste (cf. Dante, Paraíso, XXIX:67). junto ao rio Pó.
78 99
Se o teso uro[. . .} teria: cada santo e beato teria neste Porcinas bestas: javalis.
dia a sua estátua em ouro como oferta votiva, se a rique
100
za (teso u ro) fosse apreciada por Deus como é pelos mor Serventia: passagem, corredor.
tais.
101
Era [. . .} golfo : onde o Reno desaguava no golfo de
79
Sacros b ustos: os venerados defuntos. Os romanos Zuidersee, hoje fechado (território holandês).
chamavam «busto» (latim bustum, i) ao lugar onde se
1 02
queimavam ou sepultavam os mortos, e, por extensão, Andropono e Moschino: o primeiro, diz Ariosto que é
aos restos mortais. um sacerdote. Moschino é a alcunha de Antonio
Magnanino, famoso beberrão da corte de Este, que
8
° Forasteiros e citadinos: estrangeiros e franceses. Ariosto conheceu.
81 1 03
L uminares: fogueiras. De baixo para o alto: dum plano inferior ao da mura
lha principal, que está a ser transposta pelos atacantes.
82
Motor: coração.
I 04
Filho do rei Ulieno: Rodomonte.
83 Terra: Paris.
1 05
Manto: armadura.
84
Antes[. . .} encerra: dentro das muralhas o Sena parte
1 06
se em dois braços, formando uma ilha (a parte melhor). Os nossos: é o sujeito desta oitava e da seguinte (reto
As outras duas partes da cidade ficam confinadas entre mado em 1 32:3).
cada um dos braços do rio e o fosso das muralhas.
IO? Guia: Rodomonte.
85
Regira: tem de perímetro.
-.
CANTO XV
�
4 Onze mil e vinte e uns oito mais 10 É hora de eu voltar onde deixara
foram parar àquele buraco ardente, o aventureiro Astolfo de Inglaterra,
todos contrariados por demais; que o seu exílio longo já declara,
assim quis seu chefe pouco prudente. e arde de saudade da sua terra;
Ali morreram entre chamas tais, disso muita esperança lhe despertara
e o voraz lume neles meteu dente; aquela que Alcina venceu na guerra7 •
e Rodomonte, causa do seu mal, Que o manda voltar, ela se assegura,
escapou ileso ao tormento mortal; pela via mais rápida e mais segura.
5 ao inimigo e à borda mais interna li E assim uma galé foi preparada,
tinha passado, em milagroso salto. das que os mares já sulcaram a mais fina;
Se houvesse descido àquela caverna3 , e, duvidando que em toda a jornada
para ele era o fim de qualquer assalto. não perturbe a sua viagem Alcina,
O olhar deitou àquela vala inferna, quer Logistilla que com forte armada
e quando o fogo viu subir tão alto, Andronica acompanhe e Sofrosina;
e dos seus o pranto ouviu e o bramido, a fim de no mar árabe e no golfo
ao Céu praguejou em feroz rugido. dos Persas navegar a salvo Astolfo.
6 Entretanto, rei Agramante havia 12 Que perto costeasse, ela preferia,
atacado com ímpeto uma porta; os Citas, Índios, reinos nabateus,
pois, enquanto a cruel batalha ardia e depois fosse, por tão longa via,
onde tanta gente está ferida e morta, a passar pelos Persas e os Eritreus
aquela ele desprevenida cria sendo ao mar boreal a nave arredia8 ,
da guarda, que em luta julgava absorta. onde há sempre vento e obscuros céus,
Com ele está Bambirago, o rei de Arzila4, e pobres de sol algumas estações,
e Baliverzo5, que vício destila; que alguns meses duram nessas nações.
7 e Corineo de Mulga e o rico rei 13 Depois de a fada ter tudo aferido,
Prúsias, o das Ilhas Afortunadas; ao duque deu licença para partir,
e Malabuferso, que tem a grei tendo-o antes ensinado e instruído
de Fez6, onde o Verão faz longas estadas; de coisas mil, que custo a repetir;
outros senhores e pessoas, direi, para vedar que por magia atraído
peritas na guerra e mui bem armadas; seja, para de onde não possa fugir,
e muitos sem valor, de armas desnudos, um livro muito útil lhe tinha dado,
a quem nada valeriam mil escudos. que devia manter sempre a seu lado.
Encontrou o oposto à ideia que fez 14 Como o homem pode evitar encantos
naquela parte, o rei dos Sarracinos; diz o livrinho que ela lhe ofereceu:
lá estava o chefe do Império, o francês para os assuntos achar sem atarantos,
rei Carlos, e alguns dos seus paladinos: de índice e de rubricas o proveu.
Salamone e Uggiero, o dinamarquês, Outra oferta lhe fez, que mais que quantos
dois Guidi e dois Angelini contínuos, dons já houvera em vantagem excedeu:
o duque de Baviera e Ganelone, de horrível som, foi a oferta um corno
e Berlengier, Avolio, Avino e Otone; que faz fugir qualquer que o oiça em torno.
9 muita gente também de pouca monta, 1 5 Digo eu que o corno é de um horrível som,
dos Francos, dos Alamães e Lombardos; que onde se oiça faz fugir a gente:
presente o senhor, cada um se apronta não há no mundo um ânimo tão bom
para fama ganhar entre os mais galhardos. que deixe de fugir assim que o sente;
Disto em outra parte vos darei conta, nada são, comparados com seu tom,
que este duque não deixo entre os mais tardos: som de vento, trovão, terra tremente.
de longe me grita e de longe acena, Agradecendo, despedidas fez,
pedindo que o não guarde em minha pena. e da fada se partiu o inglês.
CANTO XV 241
16 Deixando o porto e as águas mais tranquilas, 22 e encontrar dessa longa costa o fim 17,
com propícia brisa que à popa expira, que faz pensar que as águas são diversas;
pelas facundas e populosas vilas e correr os litorais e o confim
da odorosa Índia o duque gira, de ilhas indianas, árabes e persas 18 ;
encontrando à esquerda e à destra filas vejo outros de Hércules deixar enfim
de ilhas dispersas; e avançando mira a esquerda e direita margens adversas,
a terra de São Tomás9; e o barqueiro do Sol seguindo o caminho rotundo
mais para norte a seguir ruma o cruzeiro. e encontrar novas terras, novo mundo 19 •
10
17 O áureo quersoneso quase roça 23 Vejo a santa cruz, vejo o imperial
a bela armada, o oceano cortando; brasão, na verde margem bem direitos20 ;
o lido costear faz que ver possa vejo uns que as naves guardam no areal,
o Ganges, o mar muita vez branqueando 1 1 ; e outros para tomar as terras eleitos2 1 ;
12 13
vê Taprobana , e Comorin se esboça, vejo dez espantar mil22 , vejo o total
o mar entre os dois lidos se estreitando. dos reinos da Índia23 a Aragão sujeitos;
Depois de muito andar viram Cochim, de Carlos quinto vejo os capitães
e das Índias deixaram o confim. ser das terras achadas guardiães.
1s Correndo o duque o mar com tão fiel 24 Quis Deus que desconhecida fosse esta,
e tão segura escolta, diligente e por mais tempo seja oculta a via;
pergunta a Andronica se daquele e só venha a saber-se quando a sexta
lado do mundo, que ao Sol é poente, e a sétima era já se anuncia24 ;
jamais nave que remo ou vela impele quer torná-la no tempo manifesta,
aparecera nos mares de Nascente; em que ao mundo dará a monarquia,
e se pode ir, sem nunca tocar terra, sob o mais sábio imperador, e justo,
quem de Índia sai, para a França ou Inglaterra. que já houve e haverá depois de Augusto.
19 - Tu deves saber (responde Andronica) 25 Do sangue de Áustria e de Aragão, eu vejo
que o mar abraça a terra em todo o lado; na margem esquerda do Reno nascer
e a água uma com a outra comunica, um príncipe, a cujo valor ensejo
seja onde o mar é quente ou é gelado; nenhum outro tem de se parecer25 •
mas porque aqui em frente se amplifica, Reinou de novo Astreia26 a seu desejo,
e o mar muito para sul tem ocupado ou antes, de morta a fez reviver;
a Etiópia, a Neptuno, foi dito, virtudes que perdeu quando a baniu,
passar por esse ponto é interdito 14 . ao mundo devolveu seu poderio.
20 Por isso, do nosso índico Levante 26 Por tal mérito, a Bondade Suprema,
nenhuma nave para a Europa parte; não só do grande império foi seu plano
nem da Europa parte navegante que houvesse também ele o diadema
que de chegar aqui queira ter arte. de Augusto, Severo, Marco, Trajano27 ;
O ver tão longa terra por diante mas de terras que, duma à outra extrema,
faz com que dela cada um se aparte; nelas se não punha o Sol nem o ano28 ;
pois todos julgam, vendo-a assim tão longa, e deseja que sob este imperador
que ao outro hemisfério ela se prolonga. um só rebanho haja, e um só pastor.
21 Mas daqui a anos vejo sair, 27 E, para que sejam mais bem sucedidos
das terras mais extremas que há a poente, os planos no Céu desde sempre escritos,
novo Tífis e Argonautas, e abrir a suma Providência, como adidos,
a estrada ignorada até ao presente 1 5 ; deu-lhe em terra e mar capitães invictos.
vejo contornar África, e seguir Vejo Hernán Cortés29, por quem submetidos
ao longo da costa da negra gente, novos povos são, e ao império adstritos,
passando aquele ponto onde o Sol parece e reinos tão remotos no Oriente
deixar Capricórnio, e que a nós regresse 16 ; que os ignoramos nós, indiana gente.
242 ORLANDO FURIOSO
28 Vejo Prospero Colonna30 , e de Pescara 34 Estes, ou qualquer que sua pátria tenta
vejo um marquês3 1 , e perto não ignoro de livre tornar serva ruborize;
um jovem de Vasto32, que fazem cara e, onde o nome de Doria se aventa,
parecer a bela Itália aos Lírios de Ouro33 ; de olhar homem nos olhos não se guise.
vejo que a ultrapassar se prepara Vejo Carlos que o galardão lhe aumenta:
o terceiro os outros, para ter o louro; além da que quer que ele em comum pise44,
como o cavalo que em último parte dá-lhe a rica cidade que aos Normandos
e de ser primeiro a chegar tem arte. dará azo a na Apúlia terem mandos45 •
29 Vejo tanto o valor, e vejo a fé 35 Não só a este capitão cortês
tão grande de Alfonso (seu nome atesto), deve o magnânimo Carlos mostrar-se,
que com tão pouca idade (mais não é mas a todo o que ilustre empresa fez,
que além do vigésimo ano o sexto) e de seu sangue dar não fez disfarce.
o imperador a tropa dar-lhe vê; Cidades poder dar o satisfez
a qual, salvando, não só salva o resto, a um fiel; mais o vejo alegrar-se
mas de tornar o mundo obediente, por o fazer a quem tal merecer,
com este capitão estará assente34. que de impérios e reinos rico ser. -
30 Como com estes, aonde ir por terra 36 Assim das vitórias, as quais passado
se possa, aumentará o império antigo, grande número de anos, tudo indica,
também por todo o mar que entre si cerra os capitães a Carlos terão dado,
Europa lá, cá o africano abrigo3 5 , com o duque discursava Andronica;
será vitorioso em toda a guerra, enquanto os ventos do nascente lado
pois de Andrea Doria36 será amigo. vai ela moderando e os domestica;
O Doria, que aos piratas deu enfado faz que ou um ou outro propício seja,
e os correu deste mar, por todo o lado. e amplia-os e abranda-os, como deseja.
31 Não foi Pompeu37 tanto como este digno, 37 Entretanto o mar pérsico observaram,
embora aos corsários desse <lesares; e como se estende em amplos alagos;
porque eles, ao império mais condigno e logo do golfo se aproximaram
que já houve, não podiam ser pares38 ; que teve nome dos antigos Magos46 •
mas desse Doria o engenho consigno, Aqui a porto foram, e atracaram
pois com sua força purgará os mares; de popa para a frente os navios vagos;
de Gibraltar ao Nilo, onde aparecer dali, salvo de Alcina e sua guerra,
seu nome, toda a costa vai tremer. Astolfo tomou caminho por terra.
32 Vejo Carlos, que com sua escolta aporta 38 Passou mais do que um bosque e um terreno,
(desse tal capitão nomeado atrás) por montes e vales foi caminhante;
a Itália, sendo ele a abrir-lhe a porta, onde, na escuridão e no sereno,
para vir tomar a coroa que o compraz39 • ladrões teve por trás e por diante.
Vejo que o prémio que daí reporta Viu leões, dragões cheios de veneno,
não é para si, à pátria prenda faz: e outras feras, em seu caminho errante;
pede e obtém que seja libertada40, mas, assim que levava à boca o corno,
quando outro a teria a si sujeitada. fugiam, não lhe dando mais transtorno.
47
33 Essa devoção que ele à pátria esboça 39 Vem pela Arábia que é dita Feliz ,
merece mais louvor que uma batalha rica em mirra e em odoroso incenso,
que em África ou Espanha, ou na terra vossa, que a fénix única48 para poiso quis,
ou França ou Tessália, Júlio41 amealha. escolhendo-o entre todo o mundo imenso;
Nem o grande Octávio, ou quem lhe faz mossa, às ondas chegou, pelos Hebreus hostis
seu par António42, tem que ele mais valha ao Egipto, por divino consenso:
pelos feitos seus; que o louvor não reforça Faraó e todos seus submergiu49 •
o ter usado contra a pátria a força43• Para a Terra dos Heróis5 0 depois seguiu.
244 ORLANDO FURIOSO
40 Ao longo do rio Trajano51 cavalga 43 Não irás mais que seis milhas adiante,
no corcel que não tem no mundo par, e acharás a sanguinosa parança
que com tal ligeireza corre e galga em que se alberga um horrível gigante,
que na areia não grava o seu pisar; o qual em estatura oito pés avança.
erva não calca, neve não amalga, Não tenha cavaleiro nem viajante
com os pés enxutos passaria o mar; de se separar dele vivo esperança,
e tanto é veloz e vai com tal mecha que alguns degola, e há quem ele esfole,
que ultrapassa o vento, o raio e a flecha. e outros esquarteja ou vivos engole.
41 É este o corcel que foi de Argalia; 44 Prazer, entre outras maldades, recebe
pela chama e pelo vento foi concebido; duma rede que tem, mui bem tecida:
sem feno e sem cevada, se nutria pouco distante do tecto a embebe,
do ar; por Rabicano é conhecido. e no meio do pó está tão bem escondida
O duque vem seguindo a sua via, que quem já não souber não se apercebe,
onde pelo Nilo é tal rio52 recebido; tão fina é, tanto a fez à medida;
e, antes que tivesse chegado à foz, com gritos os viajantes ameaça,
viu um navio que a si vinha, veloz. e cheios de medo com a rede os caça.
42 Vem à popa, com sua barba comprida 45 E, às gargalhadas, enrolados nela
e branca, navegando um eremita, os arrasta para dentro do coberto;
que para o navio o paladirn convida, nem cavaleiro poupa nem donzela,
e: - Meu bom filho (de longe lhe grita), seja seu mérito certo ou incerto;
se não tens em ódio tua própria vida, comida a carne, os miolos desvela,
se não queres hoje da morte ter visita, suga-os e dá os ossos ao deserto;
digna-te vir pisar este outro chão, e de peles humanas, toda em torno,
que essa via é para a morte direcção. tem sua morada macabro adorno.
46 Toma, filho, esta via que eu te digo,
que daqui até ao mar é segura. -
- Agradeço-te, pai, mas eu prossigo
(responde o duque com desenvoltura),
porque pela honra não receio perigo,
a qual mais que a vida me dá agrura.
Falas-me em vão, que o rio não passo nunca;
vou em frente, ao encontro da espelunca.
47 Se fugir, vou com desonra salvar-me;
mais que à morte, a tal salvação me esquivo.
Se lá for, o mais que pode achacar-me
é ficar, corno os mais, da vida privo;
mas querendo Deus com as armas ajudar-me,
para que ele morto fique e eu fique vivo,
a mil tornarei segura esta via:
será maior que o dano a regalia.
48 Assim, a morte de um só é consolo,
pois dá salvação a gente infinita. -
- Vai em paz, filho, mais não apostolo;
para defender tua vida, Deus permita,
venha o anjo Miguel do sumo pólo. -
Disse, e benzeu-o, o simples eremita.
Astolfo junto ao Nilo seguiu estrada,
mais confiante no som53 que na espada.
CANTO XV 245
49 Há, entre o fundo rio e o lameiro54 , 53 Assim que o paladino a vir o vê,
pequeno atalho na borda arenosa; pára o corcel, por ter cerco respeito,
a erma casa interrompe o carreiro, não vá nos seus laços meter o pé,
do humano comércio silenciosa 55 • tal como o bom velhote achara jeico56 •
Cabeças e membros têm poleiro Do seu mágico corno aqui dá fé,
em torno, de gente tão desditosa. e este ao soar produz o usado efeito:
Não há janela nem relevo algum ao gigante, que o ouve, medo faz
em que pendente não se veja um. tal que volta com seus passos atrás.
50 Como em aldeias alpinas não reles 54 Astolfo sopra, girando a mirada,
sói caçador, em grande perigo incurso, sempre com medo que a rede o invista.
pregar nas portas as hirsutas peles, Foge o vilão em incerta passada,
horríveis patas e cabeças de urso, pois com a coragem perdera a vista.
cal fazia o cruel gigante àqueles Tal é o temor que não vê a estrada,
que eram mais honrosos para o seu percurso. e nas próprias armadilhas se enrista:
De muitos mais estão espalhados os ossos; na rede cai; logo ela se descerra,
de sangue humano estão cheios os fossos. enrola-se nele e deita-o por terra.
51 Caligorante está em pé à porta, 55 Astolfo vê cair o grande peso,
que é este o nome do monstro cruel e corre à pressa, já com confiança;
que orna a sua casa com gente morta, desmonta, empunha a espada, e com desprezo
como outros de ostro e dourado dossel. vai para fazer de mil almas vingança.
De alegria, este a custo se comporta Mas pensa que quem mata um que está preso
quando ao longe vê o duque e o corcel; de poltrão mais que herói tem semelhança;
pois já dois, quase três meses havia, tão atados tem pés, braços, pescoço
que um cavaleiro não ia àquela via. que nem mover-se pode aquele colosso.
52 Para a palude, que estava em escuro envolta 56 Aquela rede fizera Vulcano
pelas muitas canas, ele à pressa vai; de fino fio de aço, mas com cal arte
conjectura que, correndo-lhe em volta, que vão teria sido todo o afano
nas costas do paladim depois sai; para desmanchar a mais pequena parte;
da rede oculta ali fará recolca, era a mesma que já em tempo arcano
convencido de que ele nela cai, de pés e mãos ligou Vénus e Marte;
como fizera aos outros peregrinos, fê-la o ciumento para aquele efeito:
que ali tinham marcados seus destinos. para ambos enredar juntos no leito57 •
246 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 7 Aq uela { .. }
Leão: Veneza, por antonomásia. guerra: Logistilla.
2 Francolino: povoação da margem direita do Pó, pró 8 Que perto { . .} arredia: Logistilla prefere que Asrolfo
xima de Ferrara. regresse ao Ocidente costeando a China, a fndia, e atra
vessando o oceano fndico até ao golfo Pérsico, a que
3 Caverna: fosso. venha pelo Norte, através do oceano Glacial Árctico.
4 Bambi 9 Terra de São Tomds: costa do Malabar, perto de Madrasta,
rago { ..} Arzi'4: cf. xiv:23.
mas aqui é confundida com outro Malabar, na penínsu
5 Baliverzo: cf. XIV:24. la do Camboja.
6 10 Qµersoneso: península (palavra de ori m grega). Refere
Corineo { . .} Fez: já referidos no Canto xiv (Corineo ge
em 23, Prúsias em 24, e Malabuferso em 22). -se à península de Malaca, rica em jazidas de ouro (áureo).
CANTO XV 253
44 61
Além [ . .} pise: além de Génova, que partilha com os Quinze [. .. } renegados: os mamelucos, ex-cristãos ou
seus cidadãos. filhos de cristãos convertidos ao islamismo, numa pri
meira fase escravos, e que depois constituíram a guarda
45
Cidade [..} mandos: dá-lhe a senhoria de Melfi, na pessoal do sultão.
Basilicata, cidade de onde partiu Guilherme, o Normando,
62
para conquistar a Apúlia e a Sicília. Parca [. .. } nega: as três Parcas (Atropo, Cloto e Láquesis)
regulavam a duração da vida de cada humano através de
46
Golfo [. . .} Magos: baía do Bahrein, no golfo Pérsico, um fio que a primeira fiava, a segunda enrolava e a ter
que na Antiguidade recebeu o nome de uma antiga tribo ceira cortava.
persa, os Magos.
63
Batalha: já iniciada no O. Innamorato. Boiardo dei
47
Ardbia [. .. } Feliz: o Norte da Arábia. xou a cena no ponto em que um cavaleiro se aproxima.
Ariosto retomou o episódio, fazendo de Astolfo esse
48
Fénix única: ave mitológica que vivia muitos séculos. cavaleiro.
Por ser a única da sua espécie não se podia reproduzir; ao
64
sentir aproximar-se o fim dos seus dias, reunia plantas Grifone [. .. } Aqui/ante: irmãos gémeos, filhos de
aromáticas e incenso que fazia arder, imolando-se, e re Oliviero e de Gismonda: a Grifone chamavam o branco,
nascia das cinzas. por ter sido criado por uma fada vestida de branco, e a
Aquilante o negro, porque a sua fada protectora vestia de
49
Ondas [ .. } submergiu: o mar Vermelho, que se negro.
fechou sobre os Egípcios depois de se abrir para deixar
65
fugir o povo hebreu. Fera: crocodilo, o qual já fora morto no lnnamorato.
50 66
Terra dos Heróis: Heroópolis, cidade do antigo A Orril [. .. } feria: não está em desvantagem,' porque
Egipto, no golfo de Suez. trouxera o crocodilo.
51 67
Rio Trajan_o: canal que unia o Nilo ao mar Vermelho, Dois animais alados: uma águia e um grifo, deles
e que foi restaurado pelo imperador Trajano. derivando os nomes dos irmãos.
52 68
Tal rio: o canal Trajano. A história [ .. } apelida: Ariosto alude a um poema do
séc. xv, Uggeri il Danese, que refere este episódio mas dá
53
No som: no som do corno mágico. outro nome ao pai dos cavaleiros. Ele, porém, mantém o
nome atribuído por Boiardo.
54
Lameiro: terras alagadas devido às cheias do Nilo.
69
Alto [. .. } Fortuna: nas Canárias (ilhas Afortunadas),
55
Do humano [. .. } silenciosa: privada de presença ou mais a ocidente, ainda era dia.
actividades humanas.
70
Livro [. .. } jeito: o livro que lhe deu Logistilla à parti
56
Tal [. .. } jeito: como o eremita achara provável. da (cf. 14).
57 71
A mesma [. .. } leito: Vulcano fabricou uma rede com A sua gente: a cristandade.
a finalidade de apanhar no leito a mulher, Vénus, com
72
Marte, seu amante (Homero, Odisseia, VIIl:272 ss.) . Alta [. . .} Palestina: Jerusalém.
58 Onde [. .. } topo: na foz do Nilo. 73 Em vez de Carlos: por nomeação de Carlos Magno.
17 Deixei-vos eu, quando assaltando estava 23 Aquilo que o tigre ao rebanho faz
Agramante uma porta dessa terra, no campo que Hircânia7 ou Ganges abrange,
que sem guarda estaria, acreditava; ou a cabras e ovelhas lobo voraz
mas, mais do que ali, nada o passo cerra, no monte que Tifeu pisa e constrange8 ,
pois em pessoa Carlos a guardava, assim fez o pagão, àquele fugaz
e tinha consigo os mestres da guerra: esquadrão não direi, não direi falange,
dois Guidi e Angelini, um Angeliero, melhor é dizer vulgo e populaça,
Avino, Avolio, Otone e Berlingiero. que antes de nascer já a morte ameaça.
1s Perante Carlos, e o rei Agramante, 24 A nenhum dos que encontra vê a fronte,
um grupo e outro quer-se fazer ver, de tantos que corta, fende e golpeia.
pois louvor e recompensa abundante Pela rua que se dirige para a ponte
se pode ganhar, cumprindo o dever. de Saint Michel, que de povo vai cheia,
Dos Mouros o valor não foi bastante corre o feroz e cruel Rodomonte,
que paga do seu dano possam ter; e a espada sangrenta em redor meneia:
deles são muitos a quem morrer toca, não respeita nem servo nem senhor,
para os outros exemplo de audácia louca. nem poupa o justo mais que o pecador.
19 A chuva de setas lembra granizo 25 A religião não salva o sacerdote,
que do muro ao inimigo disparte. e no garoto a inocência não estrova;
O amplo grito é do terror aviso nem em dama ou donzela encontra dote
que faz a nossa e a contrária parte. de belo rosto ou olhos que o demova;
Carlos e Agramante deixar preciso, não há velho a quem não zurza ou enxote;
que eu vou cantar o africano Marte, o Sarraceno aqui não dá mais prova
Rodomonte, que, terrível e horrendo, de valor que de grande crueldade:
pela cidade de Paris vai correndo. não distingue sexo, classe ou idade.
20 Não sei, senhor, se inda estais recordado
deste sarraceno de si seguro,
que seu bando morto tinha deixado
entre o baluarte segundo e o muro;
pelas chamas rapaces foi devorado,
jamais houve espectáculo tão obscuro.
Disse eu que ele entrou de um salto na terra3,
passando o fosso que a cinge e encerra.
21 Já conhecido o sarraceno atroz,
'
pelas estranhas armas, pela escamosa pele4 ,
os velhos e o povo menos feroz5
atentos estavam a notícias dele;
ergueu-se um pranto, um grito, uma alta voz,
um bater de mãos que às estrelas se impele;
quem pôde fugir fora não ficou,
nos templos e nas casas se fechou.
22 A feroz espada a poucos dá mercê,
em roda a girando o Mouro robusto.
Aqui fica com meia perna um pé,
lá uma cabeça salta do busto;
depois cortar um pelo meio se vê,
da cabeça à cinta outro fender justo;
de tantos que mata, fere e separa,
a nenhum deles assinala a cara6 •
260 ORLANDO FURIOSO
26 Não só ao sangue humano a ira estende 2s Enquanto aqui com a espada, o maldito,
o ímpio rei, que é dos ímpios senhor, e com o fogo, fazia tal guerra,
mas às casas, nas quais fogos acende, se fora Agramante viesse ao conflito9 ,
como aos templos, de que é profanador. perdia-se em tal dia aquela terra;
As casas tinham, por quanto se entende, mas não conseguiu; tal foi-lhe interdito
quase todas da madeira o vigor: pelo paladim que vinha de Inglaterra,
assim seria, que em Paris, agora, e gente inglesa e escocesa trazia,
cada seis em dez inda assim vigora. que o Silêncio e o arcanjo conduzia.
27 Não pareça, embora já tudo arda, 29 Quis Deus que ao ter entrado Rodomonte
que tão grande ódio assim saciar-se possa. em Paris, que tanto fogo ali fez,
Vê onde prender as mãos, estando em guarda junto aos muros a flor de Claramonte,
para tombar uma casa a cada mossa. Rinaldo, chegou com o grupo inglês.
Senhor, não duvideis que uma bombarda Três léguas atrás passara ele a ponte,
nunca em Pádua vistes assim tão grossa caminho à esquerda tomando, de viés;
que possa deitar tanto muro ao chão, para, querendo ele os bárbaros investir,
como o rei de Argel num só abanão. o rio disso o não pudesse impedir.
30 Mandara seis mil infantes archeiros
sob o altaneiro pendão de Odoardo 1º ,
e dois mil cavalos ou mais, ligeiros,
sob o comando de Ariman galhardo 1 1 ;
dissera que fossem pelos carreiros
que levam de Paris ao mar picardo 12,
e a porta Saint Martin e Saint Denis 13
entrassem, em socorro de Paris.
31 Carruagens e mais impedimentos
mandou que levassem por essa estrada.
Ele, com todo o resto dos regimentos,
fez, rodeando o alvo, a caminhada.
Levavam naves, pontes, instrumentos
para passar o Sena, de larga alçada.
Passado o rio, abatem os pontões;
de Ingleses e Escoceses fez esquadrões.
32 Mas primeiro Rinaldo, os comandantes
e barões tendo em redor reunido,
nas margens, do que o plano mais bojantes,
e em que por todos era visto e ouvido,
disse: - As mãos a Deus erguei, viajantes,
por vos ter até aqui conduzido,
para, depois de muito escasso suor,
mais que a qualquer nação vos dar honor.
33 Por vós serão dois príncipes salvados,
se a cidade livrais do assédio forte:
o vosso rei, o qual sois obrigados
a defender da servidão e morte,
e um imperador entre os mais louvados
que alguma vez no mundo houveram corte;
e mais reis, duques, marqueses, barões,
senhores, cavaleiros de mais nações.
CANTO XVI 261
34 Salvando uma cidade, não apenas 40 Sem estrépito algum, sem qualquer rumor,
os Parisienses gratos serão, faz a tropa tripartida avançar:
que, muito mais do que pelas próprias penas, junto ao rio a Zerbino dá o honor
temerosos e apoquentados estão de primeiro os bárbaros atacar;
por suas mulheres, crianças pequenas, os da Irlanda, com desvio maior,
que idêntico perigo correndo vão, pel�s campinas devem atravessar;
como as santas virgens enclausuradas, cavaleiros e infantes de Inglaterra,
por não serem de seu voto privadas 14 : com o duque de Lencastre, ao meio cerra.
35 digo eu, salvando vós esta cidade, 41 Tendo indicado a todos seu destino,
não são só de Paris os obrigados, cavalga o paladim junto à ribeira,
mas toda a terra da proximidade. e passa à frente ao bom duque Zerbino,
Não falo só dos povos mais chegados; que vai comandando a sua fileira;
pois todas as terras da cristandade em breve ao rei de Orão e ao rei Sobrino 1 7
cá têm cidadãos seus deslocados; e restantes companheiros se abeira,
por isso, vencendo, em obrigação que estão a meia milha dos de Espanha,
mais terras que a França vos ficarão. de guarda àquele lado da campanha.
36 Se davam os antigos uma coroa 42 O exército cristão, que companhia
a quem salvava a um cidadão a vida, fiel e segura houvera por escudo,
pois que digna mercê a vós se doa, tendo o Silêncio e o anjo como guia,
salvando multidão tão desmedida? já não foi capaz de manter-se mudo.
Se, por inveja ou tibiez, tão boa Vendo o inimigo, fez gritaria,
e tão santa obra for impedida, das trompas fez ouvir o som agudo,
acreditem: tomado aquele muro, e, com grande barulho e atropelo,
nem Itália nem outro está seguro; aos ossos dos Sarracenos deu gelo. 1 8
37 nem Alemanha, ou parte onde se adora 43 Rinaldo para a frente o cavalo impele,
aquele que quis por nós na cruz ter morte. e, para a usar, já sua lança enresta,
Nem penseis que os Mouros se vão embora, os Escoceses deixando para trás dele;
nem que o mar torna vosso reino forte: tanto a demora em lutar o molesta.
pois se outras vezes saíram para fora Como uma rajada que o vento expele
de Gibraltar, do hercúleo suporte 1 5, e atrás de si a tempestade alesta,
para ir buscar presas às ilhas vossas, tal se adianta o cavaleiro galhardo,
que farão, se donos das terras nossas? dando esporas ao seu corcel Baiardo.
38 Mas, mesmo que nem honra, nem nenhum 44 Ao aparecer o paladim de França,
proveito vos animasse esta empresa, mostram os Mouros grande agitação:
um socorrer outro é dever comum vê-se em todas as mãos tremer a lança,
de quem fizer de uma Igreja a defesa. nos estribos os pés, as coxas no arção.
Que o inimigo não vençamos, um Só em rei Puliano 1 9 não há mudança:
de vós não tema; e com pouca despesa 1 6 ; de Rinaldo não conhece a feição;
parecem-me todos impreparados, sem pensar que tão grande estorvo tope,
sem força e coragem, e mal armados. - a ele incita o cavalo a galope;
39 Pôde com estas, e melhores razões, 45 ao partir, toda ao corpo a lança cinge,
com seu falar expedito e clara voz e sobre si dobra a sua pessoa;
incitar os magnânimos barões o corcel com duas esporas atinge,
Rinaldo, e aquele exército feroz; e as rédeas à vontade lhe afeiçoa.
Foi, qual provérbio, tocar aguilhões A outra parte o seu valor não finge,
ao bom corcel que já corre veloz. mostrando em actos o que o nome soa:
Findo o discurso, mandou as fileiras quanto na justa tem graça e tem arte
avançar devagar sob as bandeiras. o filho de Amon, ou melhor, de Marte20 •
262 ORLANDO FURIOSO
46 No apontar dos golpes foram pares, 52 Cada um deu ímpeto ao seu cavalo
levando ambos os ferros à cabeça; ao chegar perto; e fechou de repente
em virtude e armas, dissimilares: o espaço breve, o pequeno intervalo
um morto fica, outro o passo não cessa. que ali havia entre uma e outra gente.
Do valor há que dar mais claros ares Estranho era tal baile e estranho dançá-lo,
do que a lança querer enristar à pressa; pois feriam os Escoceses somente:
bom é também da sorte ter sinal; somente os pagãos eram destruídos,
sem ela o valor pouco ou nada vale. como se a morrer ali conduzidos.
47 O paladim a lança recupera, 53 Mais frio que gelo está cada pagão,
e contra o rei de Orão logo a embica, e cada escocês mais quente que a chama.
pessoa em quem coragem não impera, Crêem os Mouros que cada cristão
mas que é em ossos e carne bem rica2 1 • como Rinaldo seus golpes derrama.
Entre os bons golpes este se enumera, Fez avançar Sobrino o seu esquadrão,
mesmo se ao fundo do escudo o aplica; sem aguardar que algum arauto brama;
quem o não louvar, de culpa o exima, esta esquadra que a outra era melhor
pois não podia chegar mais acima. em capitão, em armas e valor.
48 O escudo não impede que o golpe entre, 54 De África esta era a mais valiosa gente,
embora de aço fora, e dentro palma, embora grande coisa ela não valha.
nem que do corpanzil faça pelo ventre Avança Dardinel seu contingente,
sair a desigual, pequena alma. mal armado e pouco usado à batalha;
Crera o corcel levar tal peso, mentre apesar de ele usar elmo luzente,
durasse o dia; dele se desaçalma, e também couraça e cota de malha.
e a Rinaldo mentalmente agradece, Eu creio que a quarta melhor seria,
que assim desse fardo o desentorpece. que com lsoliero22 atrás aparecia.
49 Rota a hasta, Rinaldo o corcel volta 55 Trason, duque de Moray23, inflamado,
tão ágil que parece que asas veste; que esta ocasião para ter glória agarra,
e onde vê a multidão mais envolta passando aos seus guerreiros tal recado,
impetuoso o paladim investe. para que vão à luta levanta a barra,
Gira Fusberta sanguinosa em volta, logo que viu ter na batalha entrado
parecendo que em vidro os golpes asseste: Isolier, com os homens de Navarra.
têmpera de ferro a ela não se esquiva, Ariodante24 traz seu soldadesca,
sem que atrás vá achar a carne viva. duque de Albany nomeado de fresco.
50 Acha pouca têmpera e férrea barreira 56 O alto rumor de trompas e farromba,
a espada cortante, em oposição; de tambores e bárbaros instrumentos
mas escudos, ou de couro ou de azinheira, que se repercutem por vale e comba,
turbante e chumaçado jaquetão. de arcos, rodas, máquinas e tormentos25 ,
Não admira que Rinaldo à poeira e aqueles, pelos quais o céu mais ribomba,
mande, e fure e corte onde deita a mão; gritos, tumultos, gemidos, lamentos;
à espada não têm mais resistência produzem um alto som que parece
que erva à foice ou cevada à inclemência. quando o Nilo, ao cair, tudo ensurdece26 •
51 Estava a primeira frente destroçada, 57 Grande sombra em redor o céu ajeira,
quando Zerbin e a retaguarda chega. das setas que se entrecruzam no ar;
O cavaleiro, em frente à grande armada, hálito, vapor do suor, poeira,
já na sua lança enristada pega. fazem no tetro céu névoa pairar.
A gente ao seu pendão associada Um exército se afasta, outro se abeira;
com não menor denodo se lhe agrega: um segue o outro que se quer escapar;
eram como lobos, quais leões eram, há quem no sítio ou não longe ficou
que atacar cabras e ovelhas vieram. morto, onde há pouco o inimigo matou.
CANTO XVI 263
68 A fera luta andou um tempo par, 74 Ali não demora; a espada volteia,
distinguindo-se ali pouca vantagem. cortando elmos e cotas de malha;
Viam-se uns e outros ir e voltar, frontes aqui, faces ali golpeia,
como em Maio as searas com a aragem, aqui cabeça, além um braço talha;
e como na praia se move o mar, a este e àquele sangue e alma escaceia,
que vai e vem em sua dupla viagem. e daquele lado põe fim à batalha,
Depois que a Fortuna um pouco brincou, onde a ignóbil e assustada frota
nociva aos Mouros por fim se tornou. fugia em desordem, desfeita, rota.
69 O bom duque de Gloucester se adestra, 75 Entrou na batalha o rei Agramante,
e Matalista faz voar do arção; para se mostrar e à gente fazer estrago;
ferindo Follicon na espádua destra tem com ele Baliverzo, Farurante,
Fieramonte, atirou-o este ao chão; Prúsias e Soridano, e Bambirago3 1 •
este pagão e aquele se sequestra, E gente sem nome há também bastante,
e entre os Ingleses se lhes dá prisão. poderão fazer com seu sangue um lago;
Pelo duque de Clarence, Baricundo melhor eu contaria cada folha,
no mesmo instante abandona este mundo. quando as árvores o Outono desfolha.
10 Começam os pagãos a assustar-se, 76 Agramante, do muro, grande banda
mas entre os fiéis o ardor a florir; de infantes e cavalos traz por escolta,
vêem-se os primeiros a acanhar-se, os quais com o rei de Fez32 logo manda
a desorganizarem-se e a fugir, que atrás dos pavilhões dêem a volta,
e os segundos com ímpeto a lançar-se, para irem fazer frente aos da Irlanda,
ganhar terreno, pressionar, seguir. cuja hoste via mui desenvolta,
Se auxílio não lhes tivesse aparecido, após grandes voltas e enrolamentos,
desse lado estava o campo perdido. a vir ocupar os alojamentos.
11 Mas Ferraú, que sempre esteve à beira 77 O rei de Fez a executar foi lesto,
do rei Marsilio, ao seu lado direito, que a demora prejuízo traria.
quando viu fugir aquela bandeira, Reúne entretanto Agramante o resto;
e o seu exército já meio desfeito, divide os esquadrões, que à batalha envia.
pica o cavalo e, onde viu mais guerreira Ele vai ao rio, onde é manifesto
a batalha, lá foi; chegou a jeito que sua presença se requena;
de ver do cavalo cair por terra, pois já dali um mensageiro acorre
de testa aberta, Olimpo da la Serra, do rei Sobrino, a ver quem o socorre.
n um mancebo que com seu doce canto, 78 Levava consigo mais de metade
ao da cítara cornuda30 parecido, de todo o exército, e só do rumor
um coração enternecia tanto, tremeram os Escoceses de ansiedade,
mas era como pedra endurecido. abandonando a ordem e o honor.
Feliz fora, se lhe bastara quanto Zerbin, Lurcanio e Ariodante há-de
honor tal lhe dava, e houvesse esquecido ser quem enfrenta a sós este furor;
escudo, arco, flecha, cimitarra e lança, Zerbin, estando apeado, morreria,
que o fizeram morrer jovem em França! se Rinaldo a tempo não lhe acudia.
73 Quando assim Ferraú o viu tombar, 79 O paladim já tinha, mais à frente,
muito o amando e tendo em muita estima, feito fugir de fileiras um cento.
mais de dor se sentiu amargurar Agora que a notícia lhe é patente
que por outros mil a quem morte oprima; que Zerbin está em perigo, é seu intento
quem o matou não tarda a atacar: juntar-se-lhe entre a cireneia gente33 ,
fende o elmo desde a parte de cima, onde está sem ter do exército alento;
atravessa a fronte, os olhos e a cara, volta o cavalo, e onde o povo escocês
até ao peito; morto, no chão pára. viu fugir, para lá caminho fez.
CANTO XVI 267
NOTAS
�
1 21
Rama: Ramla, pequena cidade da Síria. Em ossos [. . .] rica: cf. XIV: 1 7 (era q uase um gigante) .
2 22
L ucas [. . .} João: S. Lucas e S. João, evangelistas. lsoliero: cf. XIV: 1 1 e 20.
3 23
Terra: Paris. D uq ue de Moray: cf. X:85.
4 Escamosa pele: de dragão, ou serpente (cf. XIV: 1 1 8). 24 Ariodante: cf. VI: 1 5 e X:86.
5 Povo menos feroz: que não combatia (velhos, mulhe 25 Mdq uinas e tormentos: estruturas para escalar e assal
res e crianças). tar, e para arremessar pedras.
6 Nenh um [. . .} cara: porque todos estão em fuga, a 26
Quando [. .. ] ens urdece: as cataratas do Nilo produ
todos fere pelas costas. zem ruído ensurdecedor.
7 27
Hircânia: província do Norte da Pérsia, junto ao Senhor: cf. nota a 1:40, Ariosto dirige-se de novo ao
mar Cáspio. cardeal Ippolito.
8 Monte [. . .} constrange: monte da ilha de lschia, que 28
À .frente [. . .] a udaz: personagens já identificadas em
esmaga T ifeu, ser monstruoso que atacou Júpiter. X:78.
9 29
Fora [. . .] conflito: se apertasse o cerco no exterior. Matalista [. . .] Baric undo: já referidos em XIV: 14, 16
e 1 3, respectivamente. Note-se que, ali, Ariosto atribuía
10
Odoardo: cf. X:83. diferentemente os reinos.
11
Harriman galhardo: cf. X:8 1 . ° Citara corn uda: porque as extremidades são encurva
3
43 Levá-la é ideia que não perfilho 49 Guardado o rebanho, o Orco a nós vem;
nem te aconselho; podes contentar-te primeiro atrás de si a entrada fecha.
de não haver para a sua vida sarilho: Todos fareja; dois na mão sustém:
como nós aqui viverá, de igual arte. para cear, de carne já se apetrecha.
Mas vai-te, por Deus, vai-te embora, filho; Quando tal lembrança me sobrevém,
se o Orco aqui chega, vai devorar-te. inda o tremor e o suor não me deixa.
Chegando aqui, toda a parte fareja: Sai o Orco, e o rei a veste arregaça
sente até um rato que em casa esteja». de carneiro, e à sua dama abraça.
44 Responde o rei dali partir não querer 50 Em vez de sentir prazer e conforto
sem primeiro ter visto a sua Lucina; de aqui o ver, só aflição sentia:
e que mais queria ao pé dela morrer vê que ele vem para onde há-de ser morto,
que de viver longe dela ter sina. e de ela morrer não evitaria.
Quando ela viu nada poder dizer «Com todo o mal (dizia) que eu suporto,
que o demovesse da ideia mofina, senhor, maior era a minha alegria
para o ajudar pensa uma nova astúcia, por tu não te encontrares junto de nós
na qual põe muito empenho e muita argúcia. quando hoje nos raptou o Orco atroz.
45 Mortas em casa, tinha com fartura 51 Pois se o destino, que para mim pressinto
cabras, ovelhas, anhos a granel; de morte ter, era desgraça forte,
dela e das outras eram comedura, ter-me-ia, como é natural instinto,
do tecto pendendo mais que uma pele. doído só da minha triste sorte;
Deu a mulher ao rei muita gordura mas ora, que também serás extinto,
que um grande carneiro da tripa expele, mais me custa a tua que a minha morte».
com a qual se untou dos pés à cabeça, Mostrava anseio muito mais tirano
para que o seu cheiro já não se conheça. pelo de Norandino que pelo seu dano.
46 Depois que o mau cheiro ter lhe pareceu, 52 «A esperança (disse o rei) cá me fez vir
a que o fétido carneiro lhe sabe, que de tu e os outros salvar carrego;
deu-lhe a pele e nela ele se meteu, mais vale morrer se não o conseguir
pois é ela tão grande que ele bem cabe. do que sem ti, meu sol, viver eu cego.
Em tão estranha vestimenta o escondeu, tal como vim, também posso partir,
e de quatro no chão faz que ele acabe; e todos a vir comigo congrego,
levou-o para onde a pedra encobria se não tiverem, como não tive eu,
da sua dama a face que ver queria. horror a cheiro de animal sandeu».
47 Norandino obedece, e para a entrada 53 A fraude contou que, contra o nariz
da gruta vai esperar, por tempo vasto, do Orco, lhe ensinou a mulher dele;
para com o rebanho entrar na malhada; peles vestíssemos, caso a cerviz
todo o dia esperou sem ter desgasto. ao sairmos da gruta apalpasse ele.
Ouve à noite, enfim, da gaita a balada, Depois que cada um aderir quis,
convidando a deixar o fresco pasto quem lá estava, deste sexo e daquele,
as ovelhas, e a voltar ao curral; todos carneiros para matar escolhiam,
atrás delas vinha o pastor brutal. dentre os mais velhos e que mais fediam.
48 Calculem do coração o tremor, 54 Os corpos ungimos com a gordura
quando sentiu que o Orco regressava, que achámos no intestino e no umbigo,
e o rosto feroz viu, cheio de horror, e das peles fizemos cobertura.
apressar-se para a entrada da cava; O dia saiu do seu áureo abrigo;
pôde mais a devoção que o temor: à gruta voltou à primeira alvura
vejam se a sério ou se a fingir amava. do Sol o pastor, e a gaita consigo;
Avança o Orco, a pedra ergue e afasta: e, dando espírito à sonora cana,
e ele entre cabras e ovelhas se arrasta. o rebanho fez sair da cabana.
276 ORLANDO FURIOSO
76 Não tens tu, Espanha, a África vizinha, 82 Era o prémio da justa uma armadura
que muito mais que a Itália te ofendeu31 ? de que em oferta o rei foi aceitante,
Porém, para massacrares esta mesquinha, a qual na estrada encontrou por ventura,
esqueces o primeiro inimigo teu. quando voltava da Arménia, um mercante.
Fétida sentina em vícios rainha, O rei, duma magnífica textura,
Itália ébria, teu brio se perdeu, sobreveste lhe juntou, e diamante,
para que ora desta ora daquela gente, pérolas, gemas lhe bordou e ouro,
tuas servas antes32, sejas servente? que a fizeram valer grande tesouro.
77 Se o medo de morrer é a razão, 83 Se reconhecido as armas houvesse,
Suíço33 , à fome, que à Itália te traz, mais as estimaria o rei que outro arnês;
e entre nós buscas quem te dê o pão, nem de em prémio dá-las teria interesse,
ou quem com morte dela te dê paz, embora mui liberal e cortês.
as riquezas do Turco tens à mão; Longo seria a quem contar quisesse
da Europa sair, ou da Grécia34, o faz: quem as desprezou com insensatez,
melhor poderás do teu jejum tirar-te, e no meio da estrada assim as deixou,
ou tombar com mérito em qualquer parte. à mercê de quem por ali passou.
78 Ao vizinho alemão o mesmo ensino 84 Sobre isso vos falarei mais à frente;
que a ti digo; que ele as riquezas tem, digo ora de Grifone que à chegada
que vos trouxe de Roma Constantino: lanças quebradas achou já presente,
levou o bom, e o resto deu35 também. e dados mais de um corte e uma estocada.
Pactolo e Hermo36 , onde se acha ouro fino, Oito, entre a que era ao rei mais fiel gente,
Migdónia37 e Lídia, e o país bom38 , que é bem, tinham-se ali associado em brigada;
por louvores e histórias, a todos noto, jovens, em armas práticos, industres,
não é, querendo lá ir, muito remoto. todos senhores de famílias ilustres.
79 Tu, grande Leão39 , que as chaves do Céu 85 Justavam estes na restrita praça,
carregas aos ombros com peso atroz, cada dia, um por um, com todo o mundo,
não permitas que se entregue a Morfeu primeiro com lança, depois espada e maça,
Itália, a quem seguras os bandós. e até ao rei vê-los era jucundo;
És pastor, e Deus o bordão te deu e chegavam a furar a couraça:
e escolheu para ti nome tão feroz, por jogo o faziam, enfim, segundo
para que tu rujas e os braços estendas, costumam os inimigos, excepto
e assim dos lobos o grege defendas. que o rei os separava, a seu dilecto.
80 Duma fala a outra, tão afastado 86 O de Antioquia, homem sem razão
estou do caminho que eu atrás fazia? (Martano o cobarde se nomeou),
Não me parece estar tão extraviado comparável a Grifone campeão,
que não possa reencontrar tal via. por com ele estar, se considerou,
Dizia eu que na Síria era usado e audaz se inscreveu na competição;
armar-se como aos de França aprazia; à espera num canto se colocou
por isso em Damasco era bela a praça, que terminasse um combate violento
com gente armada de elmo e de couraça. que dois iniciaram nesse momento.
40
81 Gentis damas lançam das galerias 87 O senhor de Selêucia , que lutava
rubras e amarelas flores aos valetes, com um dos oito que eu disse primeiro,
que, ao som das trompas, em acrobacias era quem com Ombruno batalhava,
fazem saltar e voltear os ginetes. e no rosto lhe deu golpe certeiro;
Pior ou melhor, cada um mestrias deu-lhe morte, o que o povo lamentava,
quer mostrar, e esporeia e faz joguetes: pois era tido por bom cavaleiro;
o que faz que a alguns se aplauda e louve; além do valor, outro mais cortês
também há quem risos e gritos ouve. no país não houvera alguma vez.
CANTO XVII 279
88 Vendo aquilo, Martano houve vileza, 94 Com a lança avança Grifone outra vez,
medo que golpe assim um lhe infligisse; pois inteira e firme a recuperara;
e, regressando à sua natureza4 1 , no topo do escudo a quebrou em três,
começou a pensar como fugisse. que ao senhor de Lodicea44 mirara.
Grifone, a quem dissera ter destreza, Quase cair quatro vezes o fez,
impeliu-o, pois tanto fez e disse, mas estendido na garupa ficara;
contra um guerreiro que entrara na liça, equilibrou-se ele e a espada tirou,
tal como contra o lobo o cão se atiça: e direito a Grifone se lançou.
89 tendo-o dez ou vinte passos à frente, 95 Grifon, vendo-o na sela, e que não basta
mais não avança e a ladrar aguarda, tão fero encontro para que à terra vá,
vendo arreganhado o ameaçador dente, disse para si: - O que não fez a hasta,
e como nos olhos o fogo lhe arda. cinco ou seis golpes de espada o fará. -
Estando ali príncipes e o rei presente, Na têmpora logo um golpe lhe empasta,
e tanta gente tão nobre e galharda, direito, do céu vindo se dirá;
Martano, tímido, a pugna evitou: e um outro lhe deu, mais outro a seguir,
freio e cabeça à direita virou. até o entontecer e à terra ir.
90 A culpa poderia dar ao cavalo 96 De Apamia45 ali estavam dois irmãos
quem ousasse fazer sua defesa; não habituados a sofrer derrota,
mas logo há com a espada tal resvalo Tirse e Corimbo; mas ambos às mãos
que não queria Demóstenes a empresa42 • do filho de Uliver46 dão cambalhota.
Não de metal, mas de papel armá-lo De um os arções permaneceram vãos47 ;
parece o arnês, tanto aos golpes se enviesa. em cheio com o outro a espada se adopta.
À fuga se dá, e a ordem perturba, Por comum juízo já se tem certo
ficando a rir-se dele toda a turba. que de vencer a justa este está perto.
91 O bater de mãos, os gritos em torno, 97 Na liça tinha entrado Salinterno,
a populaça lhe deu em tributo. o qual prefeito era e escudeiro régio,
Qual lobo escorraçado, fez retorno que de todo o reino tinha o governo,
Martano, muito à pressa, ao seu reduto. e de sua mão era guerreiro egrégio.
Sente Grifone para si ser transtorno, Não gostando ele que um guerreiro externo
do companheiro o gesto tão corrupto: venha a ter deste prémio o privilégio,
preferiria estar no meio do fogo, pega na lança e, em alta gritaria,
em vez de participar neste jogo. com ameaças Grifon desafia.
n Arde dentro, e no rosto ruboriza, 98 Com robusta lança ele lhe dá resposta,
como se tal vergonha em si conflua; a melhor que entre dez havia eleito,
pois obra sua, de idêntica guisa, e, a fim de não errar, no escudo aposta,
o povo pensa que se apropmqua; e trespassa-o, e a couraça, e o peito:
mais clara que uma lâmpada ora giza passa o ferro cruel de costa a costa,
como mostrar toda a virtude sua; e na espádua sai um palmo perfeito.
uma unha ou dedo de erro que faça, O golpe, excepto ao rei, muito foi caro:
pela má impressão, parecerá uma braça. todos odiavam Salinterno avaro.
93 Já sobre a coxa tinha posta a lança 99 Perto deste, Grifone à terra deita
Grifon, que errar em armas pouco usava; dois de Damasco, Ermofilo e Carmundo.
pica o cavalo e a toda a brida avança, A milícia real um assujeita;
ao mesmo tempo que a lança enristava; grande almirante do mar é o segundo.
no choque com tal força se abalança Ao embate um logo a sela rejeita;
que o barão de Sidonia43 estatelava. sobre o outro cai o peso rotundo
Todos admirados em pé se ergueram, do seu cavalo, que não resistiu
que o contrário daquilo pretenderam. ao impulso com que Grifone o feriu.
280 ORLANDO FURIOSO
108 Grifone, ou que ele ou que o cavalo fosse 114 Muito ornado alojamento lhe deu
cansado, ou desse o sono arremetida, na corte, e muitas honras deu também
no primeiro albergue que achou quedou-se, a Orrigille; donzelas recebeu,
pouco mais de uma milha percorrida. e cavaleiros para guardá-la tem.
Tirou o elmo e, todo, desarmou-se; Porém já são horas que me ocupe eu
ao cavalo fez tirar sela e brida; de Grifon, que, nem dele nem de alguém
depois no seu quarto só se fechou, temendo engano, tinha adormecido,
e, nu, para ir dormir no leito entrou. e até à tarde esteve recolhido.
109 Mal a cabeça pôs no travesseiro, 1 15 Quando acordou e da hora tardia
cerrou os olhos e o sono o venceu, se apercebeu, logo o seu quarto enjeita,
como texugo nunca tão ligeiro, e onde o falso cunhado e a companhia
ou arganaz, assim adormeceu. deixara vai, mais o resto da seita;
Martano e Orrigille, por um carreiro, não os vê, e, notando que arredia
a um jardim foram que ali cresceu; está sua armadura e vestes, suspeita;
e um engano urdiram, o mais insano e mais desconfia de falcatruas
que jamais inspirou espírito humano. vendo as insígnias dele em vez das suas.
1 10 Martano planeou ter o corcel, 1 16 Vem o hoteleiro, e do outro narra
vestes e armas, de Grifone enfeite; que tempo há que, todo em branco armado,
e ante o rei se apresentar em vez dele, com a dama e o resto da bandarra,
que ali tanto justara com deleite. tinham todos para a cidade voltado.
Tal como o pensou assim o fez ele: Grifone pouco a pouco a pista agarra
tirou o corcel mais alvo que o leite, que Amor tinha até então ocultado;
escudo, cimeira, armas, sobreveste, e vê com grande dor que aquele vilão
e as insígnias de Grifon todas veste. de Orrigille era amante e não irmão.
111 Dirige-se com a dama e com o escudeiro 117 De ser tão néscio ora em vão se lamenta;
para onde o povo ainda está, na praça; tendo do peregrino51 o vero ouvido,
chegou quando acabavam no terreiro deixou-se enganar pela voz fraudulenta
as provas de lança, de espada e maça. de quem muita vez o tinha traído.
Ordena o rei que se ache o cavaleiro Não se vingou então da odienta,
em cujo elmo pena branca esvoaça, quer ora punir o imigo fugido;
tem branca veste .e branco corredor48 ; e é forçado a usar, com grande abalo,
não sabia o nome do vencedor. desse vil homem armas e cavalo.
1 12 Aquele que uma pele alheia envergava, 118 Melhor fora sem armas ir, desnudo,
tal como o burro usara a do leão49 , que a indigna couraça vestir possa
chamado apresentou-se, tal esperava, ou pôr no braço o execrável escudo,
a Norandin, com alheia feição. e no elmo a insígnia que ouviu troça;
O rei tão cortês, que já em pé estava, mas, de seguir a meretriz e o drudo,
abraça-o, beija-o, leva-o para o balcão; o desejo mais que a razão se esboça.
não lhe basta honrá-lo e fazer louvor, Ainda tinha, ao chegar à cidade,
quer que corra a fama do seu valor. o dia uma hora de claridade.
113 E manda proclamá-lo, pelo trombeta50 , 1 1 9 Junto à porta a que Grifon foi chegado,
vencedor do torneio daquele dia. fica à esquerda um grandioso castelo,
Quer que em toda a parte a voz arremeta que, mais que forte e às guerras adaptado,
que indigno nome diz pela cercania. abunda em ricas salas, muito belo.
Que a seu par cavalgue a figura abjecta O rei da Síria e todo o seu senado,
quer o rei quando ao palácio seguia; com nobres damas, num balcão singelo,
e tanta mercê com aquele reparte celebravam em gentil assembleia
como se fora Hércules ou Marte. a real, sumptuosa, alegre ceia.
284 ORLANDO FURIOSO
120 Aquele balcão da muralha saía, 126 do que até me sinto contaminado,
com alta torre, acima da cidade; e no peito será eterno peso,
longa distância ali se descobria se, do mester de armas envergonhado,
de vastos campos, estradas, à vontade. tiver de o ver partir daqui ileso;
Vestindo armas de opróbrio e vilania, em vez de o deixar ir, para meu agrado,
à porta chega e, por casualidade, antes seja duma ameia reteso;
foi visto por desventurosa sorte é obra louvável e senhoril,
não só pelo rei como por toda a corte: para ser espelho e exemplo a todo o vil. -
121 tomado por de quem insígnias tinha, 127 Martano em Orrigille não teve entrave
causa em damas e cavaleiros riso. para de si ser confirmadora lesta.
O vil Martano, que o rei acarinha, - Não é (disse o rei) obra assim tão grave,
a seu lado tem assento no friso, em meu parecer, para o pendurar pela testa.
e a dama digna dele é-lhe vizinha; Quero só, para que o seu pecado lave,
aos quais Norandino, com ledo viso, que repita para o povo a mesma festa. -
pergunta quem será aquele cobarde E a um seu barão, que mandou chamar,
que de tão pouco honor fazia alarde; ordens lhe deu para tudo executar.
122 que, após a triste e vergonhosa prova, 12s Muita gente armada o barão seguiu,
ali lhe aparecia com tal desplante. que para a porta da cidade os levou;
Dizia: - Isto parece coisa nova, ali em silêncio todos reuniu,
que, sendo vós guerreiro digno e prestante, e a chegada de Grifone aguardou;
tenhais tal companheiro, que comprova tão de improviso à vinda o obstruiu
como poltrão não ter par no Levante. que entre as pontes52 a salvo o apanhou;
Talvez o façais para mostrar maior, e reteve-o, com troça e zombaria,
por tal contraste, vosso alto valor. num quarto escuro até ao outro dia.
123 Pelos eternos deuses dou garantia: 129 O Sol apenas a dourada crina
não fora o respeito a vós que me impele, erguera do colo da ama antiga53 ,
a pública ignomínia lhe faria e começava da cimeira alpina54
que uso fazer aos parecidos com ele. a expulsar a sombra e torná-la abriga,
Como inimigo sou da cobardia, quando Martano a recear se inclina
lembrança eterna levava na pele. que Grifon de sua justiça diga,
Mas saiba que, se sem castigo parte, e volte a culpa aonde era merecida;
é porque com vós veio a esta parte. - despediu-se, e apressou sua partida,
124 Aquele que foi de todo o vício vaso 130 desculpa idónea dando ao rogo régio,
respondeu: - Majestade, não saberia por não estar presente ao festivo acto.
dizer quem é; achei-o por acaso De outros dons merecedor o rei elege-o,
pelo caminho, vinha eu de Antioquia. pela vitória, que não é sua, grato;
Foi só o seu semblante que deu azo e sobretudo um amplo privilégio,
a que o achasse digna companhia; em altas honras e louvores mui lato.
prova não tinha visto nem ouvido Deixemo-lo ir; faço-vos promessa
antes do triste caso hoje ocorrido. que recompensa terá que mereça.
125 Tanto me desgostou que faltou pouco 131 Levam Grifon envergonhado à praça,
que, para punir sua extrema vildade, quando ela estava mais cheia de gente.
eu não lhe desse ali tão cabal troco Tirado lhe foi o elmo e a couraça,
que lança ou espada tocar mais não há-de; apresentando-se em gibão, vilmente;
para o não ter feito só respeito invoco como se fosse levado para a maça55 ,
a este sítio e a vossa majestade. numa carroça seguia, eminente,
Nem quero que a ele venha algum ganho, que tiravam, mui lentas, duas vacas
porque um dia ou dois eu o acompanho; pela longa fome esquálidas e fracas.
CANTO XVII
132 Iam em volta da ignóbil quadriga 134 Em todos os lugares foi exibido,
velhas desonestas e arruaceiras, diante de templo, oficina e casa,
de que era ora uma ora outra auriga, onde todo o nome mau e atrevido
todas elas em ofensas grosseiras. lhe chamam, que a sua ira atenaza.
Punham-no os garotos em maior briga: Para fora da cidade conduzido
além de infames palavras e asneiras, foi pela turba, para que se compraza
com pedras morte lhe teriam dado, a expulsá-lo ao som de pancadaria,
não fora dos mais cautos o cuidado. visto que quem ele era não sabia.
133 As armas, que eram do seu mal culpadas, 135 Porém, mal lhe desferraram o pé,
e haviam dado dele errado indício56 , e libertaram uma e outra mão,
pela cauda do carro eram arrastadas, o escudo tomar e empunhar se vê
no chão sofrendo o devido suplício. a espada, que regou de sangue o chão.
As rodas ante a tribuna paradas, Lanças ou paus contra si não prevê,
ouviu ali do alheio malefício pois sem armas vinha o povo malsão.
a ignomínia, na sua cara dita Para o outro canto quero o final reste;
pelo pregoeiro que tais coisas grita. já é tempo, senhor, de acabar este.
NOTAS
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1 Mdrio [ . .] Antonino: imperadores romanos muito 10 Adda [ . .] passam: nomes de rios italianos, junto aos
cruéis. Os quatro primeiros já haviam sido referidos em quais se travaram sangrentas batalhas ganhas pelos
III:33. Franceses.
2 Maximino: Maximino I (c. 1 73-238) era filho de um 1 1 Por que { . .] morrer: a admoestação de Carlos Magno
pastor trácio e foi o primeiro imperador romano a sair aos seus homens, nas oitavas 7-8, praticamente decalca
das fileiras do exército. as palavras de Mnesteu aos Troianos em fuga da cidade
(Vergílio, Eneida, IX:78 1 ss.).
3
Creonte: tirano de Tebas, irmão de Jocasta, mãe de
12
Édipo. Da casa real { . .] : todo o episódio do assalto de
Rodomonte ao palácio real se inspira no assalto ao palá
4 Mezêncio { . .] agilino: Mezêncio era um rei etrusco cio de Príamo, rei de Tróia, executado por Pirro
muito cruel, de Cere (chamada Agylla pelos Gregos) . (Vergílio, Eneida, II, 469 ss.).
Atava os vivos aos mortos para que morressem nesse
macabro abraço (Vergílio, Eneida, viii:478-488) . 13 Como [ . .] vetusto: como serpente que ressurge à luz
do dia depois de se ter despido da sua velha pele (couro
5 Átila: cruel rei dos Hunos (de 434 a 453) . vetusto) .
6 Ezzelin da Roman: cf. III:32-33. 14 Agolante { . .] Aspramonte: cf. nota a 1:30.
7 Sempre em oblíquo: fora das rectas vias. 15 U iero { . .] Otone: já referidos, juntos, em XV:8 e
gg
67.
8
Não só { . .] descarne: Ariosto alude aos poderosos de
Itália que, não satisfeitos com a sua própria exploração, 16 De melhor sorte: os mais abastados.
chamam estrangeiros para o país.
17
O conterrâneo e o peregrino: os da terra e os forasteiros.
9 Trasimeno { . .] Trebbia: lugares (um lago e um rio,
18
respectivamente) onde Aníbal derrotou os exércitos Cdrpato iníquo: canal de Cárpato, entre a ilha do
romanos. mesmo nome e a de Rodes, no mar Egeu.
286 ORLANDO FURIOSO
19 37
Mestre conspíc uo: o respeitável (idoso) mestre do Migdónia: Frígia, de que Mígdon era rei (Eneida,
nav10. 11:342).
20 38
O Orco: figura inspirada no ciclope Polifemo, perso País bom: talvez se refira à Pérsia ou à Arménia.
nagem da Odisseia.
39
Grande Leão: Leão X (Giovanni dei Mediei), papa
21
Porco: javali. entre 1 5 1 3 e 1 52 1 .
22 40
Filho de Agricane: Mandricardo (e( XIV:30, 38 ss.). Selêucia: cidade costeira da Síria.
28 Aq ui: em Itália. Ariosto insurge-se uma vez mais 46 Filho de Uliver (Oliviero): Grifone.
contra a invasão de Itália por estrangeiros.
47
Vãos: vazios.
29
Se { . .} chamados: «cristianíssimos» era título usado
48
pelos reis de França, e «católicos» pelos de Espanha. Corredor: cavalo.
30 49
Renegados: alusão aos mamelucos, milícias compos B urro [ . .} leão: referência a uma fábula do grego
tas por cristãos renegados (e( XV:64). Esopo.
31
África { .} ofende u : refere-se à invasão da Península 50 Trombeta: pregoeiro público.
Ibérica pelos Mouros.
51
Peregrino: cE XV: 1 00.
32
Tuas servas antes: províncias do Império Romano.
52 Entre as pontes: entre as pontes levadiças; a cidade era
33
Suíço: alude aos mercenários suíços chamados pelo rodeada por dois fossos.
papa Júlio II após a batalha de Ravenna.
53
Ama antiga: Geia (a Terra), de quem o Sol (Hélio)
34
Turco { . .} Grécia: os Turcos invadiram a Grécia descende; ao nascer, o Sol ergue-se da Terra, a oriente.
depois de tomarem Constantinopla ( 1 453).
54 Cimeira alpina: o cimo de cada montanha, ou alpe.
35
O resto de u : tal como Dante (Inferno, XIX: 1 1 5-1 1 7),
Ariosto crê na cedência de bens à Igreja (ao papa 55 Para a maça: para o matadouro, onde matavam os
Silvestre I) pelo imperador Constantino, que o huma animais a golpes de maça.
nista Lorenzo Valia demonstrou ser falsa.
56 As armas [ . .} indicio: identificando-o erradamente,
36
Pacto/o e Hermo: rios auríferos da Lídia, referidos por fizeram recair sobre si a vergonha.
Vergílio (Eneida, X: 142 e Vll:72 1).
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CANTO XVIII
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19 Quem já viu quebrar na praça o ripado, 23 E três vezes tanto a ira o atinge
enquanto a multidão lhe ondeia em torno, que estando já longe volta para trás,
o touro bravo que foi atiçado, a espada de sangue de novo tinge,
sujeito a aguilhão e a todo o transtorno, e mais de cem de matar foi capaz.
do povo que dele foge assustado, Por fim a razão a raiva restringe,
ora um ora outro erguer com o corno, e, antes que a Deus chegue o fedor vivaz
pense que assim foi tanto ou mais terrível da morte, decidiu buscar abrigo:
ao partir o africano irascível. lançou-se à água, saindo do perigo.
20 Uns quinze ou vinte cortou de través, 24 Estando todo armado ao rio se meteu,
outros tantos sem cabeça deixou, como se em torno houvesse flutuantes.
todos dum golpe, a direito ou revés, África, em ti como ele ninguém nasceu,
como quem vide ou salgueiro podou. se bem que Anteu6 e Aníbal tiveste antes.
Cheio de sangue da cabeça aos pés, Mas quando a terra chegou, desprazeu,
crânios abriu, braços e mãos cortou, olhando essa cidade por instantes,
espáduas, costas, pernas, ventres abriu que, tendo ponta a ponta percorrido,
o fero pagão, e por fim partiu. não tinha feito arder nem destruído.
21 Da praça vai e ao rosto não lhe acorre 25 E tanto o rói a soberba e a ira
sinal que mostre haver por medo agrura; que, para voltar outra vez, se retarda:
vai em pensamento a ver se discorre do fundo do peito geme e suspira,
onde há para sair via mais segura. não quer ir dali sem fazer com que arda.
Por fim chega ao sítio onde o Sena corre Mas junto ao rio, no meio da fúria, mira:
junto à ilha, e de Paris se desmura. vê vir quem ódio extingue e a ira tarda.
A gente de armas e o povo, ora audaz, Quem era, vos dou em breve a saber;
vai-lhe no encalço, não lhe dá paz. mas quero antes outra coisa dizer.
22 Como na Numídia ou Massília hostil 26 Vou falar-vos da Discórdia altaneira,
vai escorraçada a indómita fera, a quem o anjo Miguel encarregara
que conserva, fugindo, ar senhoril, de incitar à luta e sanha guerreira
e lenta se afasta e sempre severa; os mais fortes que Agramante arranjara.
tal Rodomonte, sem acto servil, Os frades deixou na noite primeira,
cercado por estranha, avessa atmosfera, onde outra com suas funções ficara:
entre hastas, espadas e volantes dardos, deixou a Fraude ali fazendo o jogo,
para o rio se afasta em passos longos, tardos. mantendo, até voltar, aceso o fogo7 •
CANTO XVIII 291
46 A hoste de Djerba 14 tinha o primeiro, 50 Ficai, peço, por minha tenra idade,
que pouco antes pertencia a Tardocco; na qual grande esperança haveis geralmente;
o outro era das hostes timoneiro não vos deixai morrer em quantidade
de Zamor, de Safi e de Marroco 1 5 • que a África não nos torne a semente.
- Não há um africano cavaleiro Todo o caminho fechado estar há-de,
que saiba dar, com lança ou espada, troco? -, se não formos unidos estreitamente:
perguntarão. A resposta eu releixo; muito alto muro e muito larga fossa
nenhum digno de glória para trás deixo. monte e mar são, para que voltar se possa.
47 O rei de Zumara aqui não se esquece 51 Melhor morrer aqui do que aos castigos
(o nobre Dardinel, filho de Almonte), destes cães nos darmos, à discrição.
que Uberto de Mirford com a lança aquece, Aguentem firmes, meus fiéis amigos;
Claudio dal Bosco, Elio, Dulfin dal Monte; tudo o mais será só remédio vão.
Anselmo de Stanford sua espada conhece, Mais vida não terão os inimigos;
e, de Londres, Raimondo e Pinamonte; uma alma têm, uma e outra mão. -
deita-os por terra (e no entanto eram fortes): Enquanto assim dizia, o jovem forte
há dois zonzos, um ferido, e quatro mortes. ao conde de Atholl ali deu a morte.
48 Mas, com todo o valor que de si mostra, 52 A lembrança de Almonte a altivez
não pode ter tão firme a sua gente; da hoste antes em fuga renovou;
menos firme que a nossa, à qual se prostra, já defender-se mais os satisfez,
que em número é menor mas mais valente. que antes a fuga os entusiasmou.
Tem mais arte de espada e o demostra, Guglielmo de Burnich era o inglês
e de tudo o que à guerra é pertencente. maior, e Dardinello o encurtou,
Vão os de Zumara em fuga sumária, aos outros ficando igual; perto talha
e os de Ceuta, Marrocos e Canária. a cabeça a Aramon da Cornualha.
49 Mas os de Djerba fogem mais que todos, 53 Caiu morto este Aramon num coval,
aos quais o jovem fizera despeito; e a correr veio o irmão dar-lhe ajuda:
com ameaças, ou suaves engodos, mas Dardinello abriu-o pela espinal,
tenta repor-lhes ânimo no peito. até onde o tronco em pernas se muda.
- De Almonte a memória quer outros modos, Furou o ventre a Bogio da Vergalle,
e espero poder ver em vós efeito: livrando-o duma promessa maçuda:
quero ver se podeis a mim, seu filho, seis meses após, à mulher jurara,
abandonar em tão grande sarilho. se fora vivo para ela voltara.
294 ORLANDO FURIOSO
54 Não longe viu vir Dardinel galhardo 60 Rei Norandino com sua corte armada,
Lurcanio, que por terra depusera vendo o povo pela cidade a fugir,
Dorchin, na goela trespassado, e Gardo, à porta foi em batalha ordenada,
o qual da cabeça aos dentes fendera; e aquela fez à sua hoste abrir.
e que Alteo quis fugir-lhe, mas foi tardo, Grifone entretanto, tendo afastada
Alteo, que ele em tanto afecto tivera; de si a turba néscia, quis vestir
atrás do pescoço um golpe lhe deu a armadura tinta de vileza,
Lurcanio fero, de que faleceu. admitindo precisar de defesa;
55 Na hasta pega para fazer vingança, 6 1 junto dum templo bem murado e forte,
dizendo a Maomé (se ouvir podia) e rodeado por uma funda fossa,
que, se morto Lurcanio à terra lança, no cimo dum pontão fez o seu forte,
à mesquita a armadura vai, vazia. para que fechá-lo em torno ninguém possa.
Pelo campo então muito veloz avança, Nisto, gritando e ameaçando forte,
e com tal força no flanco o gladia pela porta sai uma tropa bem grossa.
que todo o passa até à outra banda; O fogoso Grifon dali não sai,
e aos seus em seguida que o dispam manda. e nenhum medo o seu semblante trai.
56 Não há que perguntar-me se sofrido 62 Vendo para si avançar essa tropa,
teria Ariodante, seu irmão; seguiu ao seu encontro pela estrada,
se para as almas danadas tinha querido e muitos massacrou à queima-roupa
mandar Dardinello, com sua mão; (girando com duas mãos sempre a espada);
mas chegar junto dele é-lhe impedido do seu pontão se põe de novo à popa,
pelo baptizado como pelo pagão. onde algum tempo os tinha sob a alçada;
Queria porém vingar-se, e com a espada depois saía, e outra vez voltava,
vai aplanando aqui e ali a estrada. e sempre terríveis marcas deixava.
57 Fere, abre, derruba, retalha, fende 63 Ora a direito ora de enviesado
qualquer um que o impede ou se lhe opõe. lança peões e cavaleiros a terra.
E Dardinel, que o seu desejo entende, Todo o povo, contra ele revoltado,
a pretendê-lo saciar se dispõe; cada vez mais atiça aquela guerra.
mas é grande a multidão que contende Teme Grifon ser pela turba engolfado,
ora com ele, e aos planos se interpõe. pois cresce o mar que em cada lado o encerra;
Se mouros um mata, o outro a escocês no ombro e na coxa esquerda está ferido,
dá morte, ou a inglês ou a francês. e sente quase o fôlego exaurido.
58 Fortuna aos dois sempre a via atalhou, 64 Mas Virtude, que os seus fiéis socorre,
todo o dia houve entre eles anteparo. faz com que Norandin lhe dê perdão.
Para mais famosa mão o reservou: O rei, que à liça duvidoso acorre,
fugir o homem ao destino é raro. vê que mortos ali já muitos estão;
Eis que Rinaldo para ali caminhou, tais chagas vê que por Heitor, discorre,
para que para a vida de um não haja amparo; pareciam feitas; testemunho dão
Rinaldo vem, pela Fortuna guiado: de que antes infligira indignamente
dá-lhe o honor de Dardinel ter matado. vergonha a um cavaleiro excelente.
59 Mas por agora bastante contei 65 Quando mais perto chega, e vê defronte
das façanhas gloriosas do Poente. quem aos seus dera morte desumana,
Tempo é que volte onde Grifon deixei, dos quais em frente tinha horrível monte,
que, todo de ira e de desdém ardente, cujo sangue o fosso e a água profana,
terror espalhava sem conhecer lei parece-lhe que vê naquela ponte
entre a confusa e desvairada gente. Orazio só contra toda a Toscana16 •
Rei Norandino acorre à inferneira, Por sua honra, e pelo grande enxovalho,
trazendo mil armados em fileira. retira a tropa: o que nem deu trabalho.
296 ORLANDO FURIOSO
90 Sem muitos escudeiros atrás e adiante, 93 Amarram-no (não entre flores e erva)
conforme estava, saiu sem tardança na outra manhã, para a sova ferina.
para vir encontrar-se com Aquilante, Quanto a Orrigille, presa se conserva
que do seu Grifon fizera vingança; até que regresse a bela Lucina,
cumprimenta-o, com seu gentil semblante, a cujo sábio parecer se reserva,
e convida-o para o paço, onde descansa; ou leve ou dura, a sua disciplina.
com seu acordo, a dar ordens acorre Ali esteve Aquilante a recrear-se,
para prender os dois traidores na torre. até que o irmão, são, pudesse armar-se.
91 Junto ao leito de Grifon o levou, 94 Rei Norandino, o qual aprendizagem
donde inda não saíra por estar ferido, de sensatez fez com seu grande error,
que ao ver o irmão se ruborizou, no coração sentia a vilanagem,
calculando seu erro ter sabido. cheio de arrependimento e de dor,
Aquilante com o irmão motejou, que Grifon houvera em vez de homenagem,
e depois quis tomar com ele partido tão digno sendo de mercê e honor;
de dar àqueles dois justo castigo, por isso noite e dia tinha em mente
entregando-os nas mãos do inimigo. fazê-lo consigo ficar contente.
92 Quer Aquilante e quer o rei que em mil
pedaços sejam feitos; Grifon não.
Não ousando falar só de Orrigille,
quer que um e outro recebam perdão.
Muito falou em jeito senhoril,
respostas teve, e ao fim, em conclusão,
Martano ao carrasco foi condenado,
não para morrer, mas para ser açoitado.
CANTO XVIII 299
107 As armas que pela tenção antes feita 113 Pica o cavalo, e aquela turba tola
a Grifon se deviam, que a venceu, com a hasta baixa corre a atacar;
e que usurpara com triste desfeita a um golpeia o peito, a outro a gola,
Martano, que o outro ser pretendeu, e no impulso outros mais faz tombar;
mandou o rei expor em parte eleita; depois com a espada um e outro assola,
a adaga ornamentada ali prendeu e faz alguns sem cabeça ficar;
e a maça o arção do corcel guarnece, a outros a abre, ou então o flanco,
para que Grifone um prémio e outro houvesse. a um braço corta, outro deixa manco.
1 08 Mas que fosse cumprido esse projecto 114 Astolfo e Sansonetto, estando a jeito,
evitou a magnânima guerreira como ela vestindo couraça e malha,
que, com Astolfo e o bom Sansonetto, embora não vindos para tal efeito,
à praça ora chegara mui ligeira. vendo que estava renhida a batalha,
Vendo ela logo das armas o aspecto, a viseira baixaram e a preceito
a reconhecê-las foi bem certeira: a lança também, para aquela canalha;
suas já tinham sido, e muito caras, e a seguir vão, com a cortante espada3 5 ,
como nos são coisas boas e raras; por aqui, por ali, abrindo estrada.
109 deixara-as um dia à beira da estrada, 1 15 Os cavaleiros das outras nações,
para que não lhe causassem embaraço, que para justar aqui se deslocaram,
quando, para reaver a boa espada, vendo as armas dar tais mutilações
perseguira Brunel, digno de laço33 • e que os jogos em luto se mudaram
Não creio que a história outra vez contada34 (porque da ira da plebe as razões
deva ser; por isso, silêncio faço. muitos dentre eles não as alcançaram,
Só quero que entendam de forma precisa nem que ao rei fizeram ofensa ingrata),
como aqui achou as armas Marfisa. tinham confusa a mente e estupefacta.
1 1 0 Entendereis que logo que as havia 116 Por isso há quem corra a ajudar a turba,
reconhecido por claros sinais, do que em breve sente arrependimento;
por tudo o que há no mundo, não teria ou a quem estranho e cidadão conturba
deixado de as vestir um dia mais. igualmente, a separá-los intento;
Se um modo ou outro melhor permitia ou quem, mais prudente, não se perturba,
reavê-las, não teve ideias tais: ficando a ver de quem sai a contento.
chega-se de repente, sua mão estende, Entre os primeiros Grifon e Aquilante,
e sem cerimónias dali as desprende; para vingar as armas, foram avante.
111 e, pela pressa com que o fez, acontece 1 17 Vendo eles que o rei de irado veneno
que parte agarrou, parte foi à terra. e sangue injectados os olhos tinha,
O rei, a quem grande ofensa parece, e porque instruídos estavam em pleno
com um só olhar declara-lhe guerra; dos motivos da discórdia mesquinha,
o povo, a quem toda a injúria aquece, o seu que o do rei não menos pequeno36
para o vingar lanças e espadas aferra, achou Grifon, e já nada o detinha,
já esquecido de quanto, dias antes, os dois se haviam armado de lança
sofreu devido a cavaleiros errantes. e galopando vinham, à vingança.
1 1 2 Nunca entre azuis, rubras e brancas flores 1 18 Astolfo, de Rabicano no arção
um amoroso, na estação da esperança, vinha, a esporear, de todos adiante,
nem dama tão linda como os amores com a lança de ouro encantada na mão,
com tal gosto esteve entre sons de dança, que abate, ao toque, qualquer pelejante.
como entre corcéis e de armas clangores Com ela deixou estendidos no chão
e golpes de flecha e pontas de lança, Grifon primeiro, e depois Aquilante;
onde se esparge sangue e se dá morte, no escudo lhe deu um toque ligeiro,
esta se sente, mais que em tudo forte. mas deixou-o de borco no terreiro.
302 ORLANDO FURIOSO
119 Cavaleiro que de valor já deu prova, 12s Mas um que entende estar ali Marfisa,
ante Sansonetto todo ao chão vem. que pelo mundo tem fama de ser forte,
O povo todo da praça desova, volta o cavalo e Norandino avisa
e o rei arde de raiva e de desdém. que, se hoje não quer perder sua corte,
Com a primeira couraça e a nova, providencie, que perigo se divisa,
Marfisa entretanto, e os elmos também, para subtraí-la a Tisífone39 e à Morte;
quando viu todo o povo em retirada pois foi Marfisa realmente quem
vencedora vai para a sua pousada. na praça as armas tirou com desdém.
120 Astolfo e Sansonetto de repente 126 Ao ouvir rei Norandino o seu nome,
seguem-na, sendo breves a chegar que tão temido era em todo o Levante
junto ao portão (porque ali toda a gente que os cabelos põe em pé, e consome
alas abriu) e à cancela37 alcançar. de medo até quem dela está distante,
Aquilante e Grifon, com dor patente teme que a situação má feição tome,
por ver-se numa justa derrubar, como aquele diz, se lhe não dá garante;
com tanta vergonha, pelo paladino, por isso os seus homens, em quem a ira
não ousam ir junto de Norandino. a medo passara, para trás revira40 •
41
121 Procuram e montam os seus cavalos, 127 Os filhos de Oliviero por seu lado,
seguindo os inimigos sem parança. com Sansonetto, e de Otone o varão42,
Segue-os o rei com muitos seus vassalos, a Marfisa suplicam com cuidado,
todos prontos para a morte ou para a vingança. e termo põem à cruel tenção.
Grita a néscia turba: - Toca a caçá-los! -, Marfisa ao rei, com altaneiro enfado,
mas longe fica e dali não avança. disse: - Não sei, senhor, por qual razão
Chega Grifon quando voltam a fronte queres dar armas que não te pertencem
os três companheiros, tomada a ponte. em prémio a quantos tua justa vencem.
122 Conhece logo de Astolfo a figura, 12s Minhas são elas e, no meio da via
e as mesmas divisas que apresentou, que da Arménia vem, um dia as deixei,
e o mesmo cavalo, e a mesma armadura, porque seguir a pé então devia
no dia em que Orrilo fatal matou38 • um que me ofendeu, um fora-da-lei:
Nem lhe dera atenção à catadura, de tal seja minha insígnia valia,
quando na praça com ele batalhou; que espero conheças e mostrarei. -
reconhecendo-o, saudou-o; e, após, E mostrou-lha, na couraça gravada:
quis saber da companhia feroz, era uma coroa em três partes quebrada.
123 e por que as armas jogaram a terra, 129 - Certo é (disse o rei) que me foram dadas
mostrando ao rei tão pouca reverência. há pouco por um arménio mercante;
A companhia o duque de Inglaterra se por ti me fossem solicitadas,
deu a conhecer com toda a evidência; tuas ou não, dava-tas nesse instante;
das armas que originaram a guerra, o facto de a Grifon estarem doadas,
disse que delas tinha pouca ciência; confio e sei que não seria obstante,
mas, como com Marfisa ali fez escala, para permitir que eu as armas te desse,
Sansonetto e ele foram ajudá-la. a devolver-me o que em prémio merece.
124 Estando ali com Grifone o paladino, 130 Não precisa alegar, para fazer fé
chega Aquilante e conhece-lhe o rosto, que tuas são, que hão o emblema teu;
ao vê-lo com o irmão em trato fino: basta dizer, pois tanto em ti se crê
muda intenção, já não está mal disposto. que o outro testemunho esmoreceu.
Chegavam muitos dos de Norandino, Que as armas sejam tuas se prevê,
mas perto deles não se tinham posto; pois teu valor maior prémio mereceu.
tanto mais que, vendo seus parlamentos, Agora as tens, e mais não se contenda;
calados estavam, à conversa atentos. e Grifon terá de mim maior prenda. -
CANTO XVIII 303
131 Grifon, que pouca estima às armas tinha, 137 O odor pesado que o pântano exala
mais desejando o rei satisfazer, para o navio ali estar causa transtorno.
disse: - Compensação para mim advinha Partem com nordeste que a vela embala,
maior, sabendo de a vós comprazer. - e para a direita vão, de Chipre em torno,
Para si disse Marfisa: - A honra minha chegando a Pafo47 , onde fizeram escala;
satisfeita está -; e, para receber descem ao lido tão cheio de adorno,
de Grifon as armas, cortês expressão uns para mercar, e outros só para ver
lhe fez, recebendo-as da sua mão. a terra de amor plena e de prazer.
132 À cidade com paz e com amor 13s Do mar a umas seis milhas, pouco a pouco
voltaram, onde a festa renovou. se vai subindo para o outeiro ameno.
Depois fez-se a justa, de que o honor Mirto, cedro, laranja, maçaroco,
e prémio Sansonetto conquistou; e de outros suaves arbustos está pleno.
que Astolfo, os dois irmãos e a melhor Tomilho, manjerona, rosa e croco
que eles, Marfisa, não participou; espargem daquele odoroso terreno
quiseram, por amizade e respeito, tanta fragrância que no mar sentir
que Sansonetto tivesse o proveito. faz qualquer vento que da terra expire.
133 Tendo ali estado em grande gozo e festa 139 De límpida nascente, toda aquela
com Norandino oito dias ou dez, colina vai regando rio fecundo.
porque a saudade de França os molesta, Dizer-se pode que é de Vénus bela
e a longa ausência já os contrafez, o lugar, tão prazenteiro e jucundo:
despedidas fazem; Marfisa, que esta cada dama ali de facto, ou donzela,
via almejava, companha lhes fez. é mais louçã do que outras há no mundo;
Marfisa ambicionava esses destinos jovens, velhas, faz a deusa de amor
para ir medir-se com os paladinos, arderem até ao último alor.
134 e saber pela experiência se o efeito 140 Ouvem aqui o mesmo já ouvido
correspondia a tão grande nomeada. na Síria, acerca do Orco e Lucina,
Por Sansonetto um outro foi eleito e que, para ela voltar para o marido,
para Jerusalém ficar governada. em Nicósia tudo bem se combina.
São estes cinco um grupo tão perfeito Por fim o mestre (era homem mexido,
que poucos assim o mundo arrecada; e porque o vento a favor se lhe inclina)
do rei Norandino se despediram, a âncora levanta e gira a proa
e para Trípoli, à beira-mar seguiram. para poente, e cada vela afeiçoa.
135 Uma nave ali esperando encontraram 141 Ao vento noroeste as velas a nave
que mercancia para Poente reúna. içou de feição, rumo ao alto-mar.
Para si e para os cavalos se acordaram Um de oés-sudoeste que suave
com um velho patrão que era de Luna43 • pareceu até ao declínio solar,
Pelo tempo limpo se certificaram mas que ao entardecer se tornou grave,
que iam navegar com boa fortuna. num fero assalto fez o mar se alçar;
Ao zarpar tinham aragem serena, e o céu, com tanto trovão e fulgor,
e de bom vento cada vela plena. dir-se-ia arder e fender-se em redor.
44
136 A ilha sacra da amorosa deia 142 Estendem as nuvens tenebroso véu,
deu-lhes, com seu miasma, primeiro porto, que sol já não deixa aparecer nem estrela.
que não só ao homem vigor cerceia, Por baixo o mar, por cima muge o céu,
como o ferro corrói, e cedo é morto. o vento a toda a volta, e a procela
Um pântano é razão; e essa potreia com chuva cerrada e pedra e griséu
a Famagusta45 dá tal desconforto os navegantes míseros flagela;
por perto estar de Constança46 maligna, e a escuridão cada vez mais avonda
quando no resto Chipre é tão benigna. sobre a irada e formidável onda.
304 ORLANDO FURIOSO
143 Os navegantes vão mostrando o efeito 149 Venho para comprovar, se tu me atendes,
das artes para as quais cada um tem dom: se bem guardas o signo rubro e branco;
um com o apito faz ver com preceito pois, se aqui contra mim o não defendes,
aos outros o que a fazer há, com o som; contra Orlando nem darás um arranco. -
põe outro âncoras de reserva a jeito; E Dardinello: - Pois agora aprendes
um a amainar e o outro à corda é bom; que o uso, e a defendê-lo não sou manco;
um outro o leme, outro o mastro segura, e não só brigo, mas de honra me cubro,
outro a coberta liberta assegura. com o paterno signo branco e rubro.
144 Cresceu o temporal em toda a noite, 150 Lá por eu ser rapaz, tu não me alarmas,
caliginosa e mais escura que o Inferno. nem o quadriculado te darei:
Procura o mar fundo o patrão, que acoite a vida me tiras, se me desarmas,
menos rebentação, melhor governo; mas espero em Deus que o contrário terei.
e vira aqui e ali contra o açoite Haja o que houver, ninguém com estas armas
do mar a proa, e do fatal Averno, verá que da estirpe eu degenerei. -
na esperança sempre que, vindo a manhã, Assim dizendo, com a espada na mão
cesse a borrasca ou se torne mais chã. atacou o senhor de Montalvão.
145 Não cessa nem amaina, e mais furor 151 Aos Africanos todos oprimiu
mostra de dia, que é dia funesto, o coração de gelado temor,
a que o contar das horas dá rigor, ao verem que Rinaldo ali surgiu
visto que por luz não foi manifesto. com tanta raiva contra aquele senhor
Ora, com menos esperança e mais temor, quanta no prado já leão sentiu,
dá-se ao poder do vento o patrão mesto: vendo um touro que inda não sente amor50 •
dá a popa às ondas, e o mar cruel Quem primeiro feriu foi o sarracino,
correndo vai, levado ao sabor dele. mas em vão foi, no elmo de Mambrino5 1 •
146 Quando a Sorte no mar estes trabalha, 152 Rinaldo riu: - Pois agora experimenta,
não deixa repousar quem está em terra, se eu sei melhor que tu achar a veia. -
quem está em França, onde mata e retalha Com esporas e brida o cavalo alenta,
Sarracenos o povo de Inglaterra. e a direito com tal força golpeia
Ali Rinaldo assalta, abre e baralha que a ponta, que pelo peito lhe apresenta,
hostes adversas, bandeiras aterra. do lado das costas se patenteia.
Disse eu que impeliu o corcel Baiardo Tirou-lhe, ao puxá-la, a alma com o sangue:
ao encontro de Dardinel galhardo. caiu da sela o corpo frio e exangue.
147 Rinaldo o quadriculado altaneiro 153 Morre assim purpúrea e lânguida flor
viu, que era orgulho do filho de Almonte; que o arado quando passa elimina,
calculou-o galhardo e bom guerreiro, ou, abatida por chuva maior,
para que a insígnia com o conde confronte48 ; no campo a papoila a cabeça inclina:
perto chegando, viu ser verdadeiro, fugindo de seu rosto toda a cor,
pois em torno homens mortos tinha ao monte. em Dardinello a vida se fulmina;
- Melhor será (gritou) que eu este aterme, adeus diz à vida, e dizem adeus
antes que maior se torne tal germe. - à coragem e ardor todos os seus.
148 Para onde o rosto vira o paladino, 154 Como água que humano engenho mantém
todos se afastam e dão larga estrada; represada por vezes e reclusa,
menos não desvia que o sarracino, quando se rompe o dique que a sustém,
tão respeitada é a famosa espada49 • com estrondo precipita e terras cruza;
Rinaldo, além de Dardinel ladino, juntos estavam os de África também,
mais nenhum vê, e vai-lhe na peugada. com coragem por Dardinello infusa;
- Rapaz (diz), meteu-te em grande atoleiro espalham-se ora por esta parte e aquela,
quem te deixou de tal insígnia herdeiro. tendo-o visto cair morto da sela.
CANTO XVIII 305
155 Quem quer fugir Rinaldo não rechaça, 159 Aquela parte a quem calhou derrota
e quem está firme põe em debandada. nem tromba escutou, tambor ou sinal:
Caem todos onde Ariodante passa, foi tão grande o medo e tal a chacota
idêntico a Rinaldo na caçada. que ao Sena muitos dão salto mortal.
Outros Lionetto, outros Zerbino amassa, Quer Agramante reunir a frota,
os dois a dar provas à desgarrada. e com Sobrino recolhe o pessoal;
Faz Carlos seu dever, e Oliviero, e os outros comandantes para o abrigo
Turpino, Guido, Salamone, Uggiero. seus esquadrões tentam levar consigo.
156 Esse dia os Mouros correram perigo 1 60 Mas nem o rei, nem Sobrino, ou algum,
de não regressar à Pagânia52 testa; com rogos, ameaças, ou sermão;
mas o sábio rei de Espanha53 consigo um terço reúne, ou quase nenhum,
leva dali a tropa que lhe resta. e os esquadrões muito desfalcados vão.
Ter algum dano acha menor castigo, Mortos ou em fuga são dois, para um
pois tudo perder muito mais molesta. que restou; porém, mesmo esse malsão:
Melhor retirar com alguma tropa uns estão feridos atrás, outros à frente,
que ficar e perder até a roupa. mas cada um exausto e descontente.
157 Para o arraial as insígnias envia, 161 Com grande esforço fazem seu transporte,
que a salvo estavam por barreira e fossa, levando-os às portas do alojamento;
com Stordilan, com o rei da Aridaluzia e aquele lugar achavam pouco forte,
e o rei ponuguês54 , numa esquadra grossa. e obras boas tinha de salvamento
Manda pedir ao rei da Berberia5 5 (agarrar pelos cabelos57 sabe a Sorte
que retire dali o melhor que possa; rei Carlos, quando ela lhe vira o mento);
se nesse dia pessoa e lugar até que a noite com as trevas chegou,
puser a salvo, tem que se gabar. que a luta impediu e tudo aquietou,
15s Aquele rei, crendo-se já vencido, 1 62 pelo Criador apressada talvez,
pensando nunca mais rever Bizerta56, com pena das gentes por si criadas.
de rosto tão horrível e aborrido Ondeou o sangue pelo campo, e fez
não tendo até ali da Sorte oferta, um grande rio que inundou as estradas.
gostou de Marsilio ter reduzido De oitenta mil número se perfez,
parte do campo a segurança certa; passados nesse dia a fio de espadas.
a retirar começou e a trazer Ladrões e lobos saíram das tocas
pendões, e fez tocar a recolher. para os despojar e para saciar as bocas.
306 ORLANDO FURIOSO
1 63 Carlos na cidade já não se encerra, 1 69 Quero ir, para que não esteja insepulto,
contra o inimigo fora quer ficar, ao meio da campina, procurá-lo;
e as suas tendas em assédio cerra, talvez Deus permita que eu passe oculto,
grossos e altos fogos manda atiçar. e o campo de rei Carlos circunvalo.
Previne-se o pagão cavando a terra, Tu ficarás: se à minha vida indulto
para fossos e bastiões edificar; o Céu não der, podes depois narrá-lo;
inspecciona a guarda que fica alerta, se Fortuna impedir tão belo gesto,
nenhum da armadura se liberta. que o torne a fama ao menos manifesto. -
1 64 Toda essa noite pelos alojamentos 1 70 Espanta-se Cloridano com o fervor
dos inseguros Mouros oprimidos do jovem rapaz, e a dedicação;
se vertem prantos, gemidos, lamentos, faz tentativa, porque tem-lhe amor,
mas muito abafados e reprimidos. de o desviar dessa louca intenção;
Por parentes e amigos sofrimentos, de nada vale, porque tão grande dor
por mortos estarem, ou porque estão feridos não tem alívio nem consolação.
eles próprios, e por sua dor gemem; Medoro dispunha-se ou a morrer
mais ainda porque o amanhã temem. ou seu senhor de túmulo prover.
165 Entre os outros, dois mouros ali estavam 1 71 Vendo que o não dobra nem o demove,
de estirpe incerta, mas de Tolomitta 58 ; Cloridano diz-lhe: - Vou também eu;
que uma história rara que apresentavam quero também que minha honra se prove,
de vero amor merece ser descrita. e morte ter que mereça troféu.
Cloridano e Medoro se chamavam, O que mais pode haver que em mim renove
os quais na sorte boa ou na maldita alegria, sem ti, Medoro meu?
sempre tinham amado Dardinello, Pelas armas morrer contigo é melhor
e a França o acompanharam com desvelo. que, ficando sem ti, morrer de dor. -
1 66 Cloridano, caçador toda a vida, 1 72 Assim dispostos, esperaram os dois
era de robusta e ágil figura; sucessivas guardas, e embora vão.
Medoro5 9 tinha a face colorida, Passam fossos, paliçadas, depois
plena de alegre e juvenil candura; passam pelos nossos que alheados estão.
entre a gente a esta empresa acorrida, Extinto o fogo, tudo dorme, pois
face não havia mais bela e pura: dos Sarracenos não temem acção.
olhos negros, na cabeça anéis de ouro, Entre os carros e as armas estão reversos,
mais parecia um anjo do sumo coro60 • em sono e vinho totalmente imersos.
1 67 Estavam estes dois sobre o baluarte
com outros, guardando os alojamentos,
quando a Noite, passada meia parte61 ,
olhava o céu com olhos sonolentos.
Medoro de seu senhor não desparte
a sua ideia, falas e lamentos,
chorando por Dardinello de Almonte,
que insepulto no campo está, a monte.
1 6s Ao companheiro disse: - Ó Cloridano,
dizer quanto me dói não sou capaz
que sirva meu senhor, ali no plano,
de manjar a lobo e corvo voraz.
Pensando em como foi para mim humano,
se minha alma do corpo se desfaz
em seu penhor, mesmo assim não compenso
nem lhe pagarei meu débito imenso.
CANTO XVIII 307
173 Parou um pouco Cloridano, e disse: 176 Avança depois até onde jaz
- Não se devem perder as ocasiões. apoiado ao barril o triste Grillo:
Neste bando, que meu senhor maldisse, tinha-o esvaziado; pensava que em paz
não haverei de fazer destruições? gozaria um sono calmo e tranquilo.
Para que ninguém de surpresa surgisse, Cortou-lhe a cabeça aquele mouro audaz:
olhos e orelhas bem alerta pões; sai o sangue e o vinho pelo mesmo hilo,
eu prometo fazer-te, com a espada, do qual no corpo tinha bem uma pipa;
entre os inimigos espaçosa estrada. - seu sonho é com vinho; o mouro o dissipa.
174 Assim disse ele, e logo se calou, m Perto de Grillo um grego e um tudesco
indo para onde o douto Alfeu dormia, também apaga, Andropono e Conrado,
que há um ano a esta corte chegou, que tinham gozado da noite o fresco,
médico, mago, cheio de astrologia: entretidos com a taça e o dado;
coisa que desta vez o não salvou, felizes, se houvessem o pitoresco
pois tudo mentira dito lhe havia. Sol nascente despertos aguardado.
Previsto tinha ele que, de anos cheio, Para os homens impotente era o destino,
morria de sua mulher no seio, se para o futuro ver houvessem tino.
175 e agora vem o cauto sarracino, 1 7s Qual leão esfomeado em redil cheio,
que a sua espada lhe mete na goela. que longa fome abatera e chupara,
A outros quatro dá igual destino, que mata, esgana, come o grege alheio
e a palavra no goto lhes debela; com que, desprotegido, se depara;
menção de seus nomes não faz Turpino62 , assim o pagão trucida sem freio
e o tempo notícias deles cancela; nossa gente que o sono dominara.
Palidon da Moncalieri a seguir, De Medoro a espada também guerreia,
que entre dois cavalos estava a dormir. mas desdenha ferir gente plebeia.
308 ORLANDO FURIOSO
1 79 Foi aonde o duque de Albret estava 185 À sua oração, a Lua apareceu
com uma dama dormindo abraçado; (seria o acaso ou a muita fé),
e um ao outro tanto se chegava bela como era quando se ofereceu
que entre eles não teria o ar passado. nua a Endímion66, para que amor lhe dê.
Aos dois Medoro a cabeça cortava. Com sua luz saiu Paris do breu,
Oh morte feliz! Oh ditoso fado! e um campo e outro; monte e chão se vê:
Como abraçados os corpos, avento Montmartre à destra deixa que se enxergue,
que as almas voaram para o seu assento. enquanto Montlhéry à canha se ergue.
1 80 Ardalico e Malindo ambos matou, 186 Refulgiu seu esplendor muito mais claro
do conde de Flandres filhos os dois; onde o filho estava de Almonte-o-velho67 •
Carlos cada um cavaleiro armou, Medoro a chorar foi, ao senhor caro,
e às armas os lírios63 aditou, pois conhecendo o quartel branco e vermelho;
ambos de sangue inimigo observou o seu rosto inundou de pranto amaro,
trazerem as espadas tintas; depois, em cada olho um rio tendo parelho;
terras na Frísia tinha prometido, com tão doce gesto e triste lamento
o que por Medoro foi impedido. que, ouvindo-o, podia parar o vento,
181 Perto estavam já os ferros sanguinos 187 mas sem rumor fazer, em voz sumida;
dos pavilhões que montaram em volta não por querer evitar fazer-se ouvir
do pavilhão do rei os paladinos, por estar em temor pela própria vida,
de que em redor à vez faziam escolta, já que a odeia e dela quer sair:
quando a carnificina os sarracinos só por temer que lhe seja impedida
interromperam, dando viravolta; a humana obra que aqui o fez vir.
duvidavam que, entre tão grande turma, Foi o morto rei sobre os ombros preso
um não se possa encontrar que não durma. dos dois, entre si dividindo o peso.
182 Bem podiam ir de saque carregados, 1 88 Ligeiros dão ao local abandono,
mas salvos irem já é bom celeiro. sob o amado corpo que os ensombra.
Seguindo os que acha seguros traçados Já estava a chegar quem da luz é dono,
vai Cloridano, e atrás o companheiro. do céu tira as estrelas, da Terra a sombra,
Chegam ao campo onde, entre arcos, terçados, quando Zerbino, a quem do peito o sono,
escudos e lanças, num rubro atoleiro, sendo preciso, o seu brio desassombra,
jazem pobres, ricos, reis e vassalos, e aos Mouros de noite deu dissabores,
entrelaçados homens e cavalos. ao campo voltava aos primeiros alvores.
183 Onde dos corpos a ignóbil mistura,
de que cheia estava a campina em torno,
vã podia tornar a fiel procura
dos dois, até ter o dia retorno,
se não tirasse duma nuvem escura,
aos rogos de Medoro, a Lua o corno.
Medoro com devoçio no céu fixou
seus olhos, na Lua, e assim falou:
184 - Ó santa deusa, que as antigas gentes
mui justamente disseram triforme64 ;
que Terra, céu, Inferno ver consentes
tua vária forma de beleza enorme, ·
e pelas selvas caças ferinos entes,
seguindo-lhes a marca pediforme;
mostra-me onde meu rei jaz entre tantos,
que em vida seguiu teus hábitos santos65. -
CANTO XVIII
NOTAS
--ê$r-
1 Bizarro: vocábulo cujo significado original é «coléri 14 Djerba: pequena ilha no golfo de Tunis.
co, irado»; deriva de bizza (ira).
1 5 Zamor[. . .] Marroco: cidades de Marrocos; identifica
2
Dinamarq uês: Uggiero (cf. X:V: 8). da a segunda, Safi, cidade portuária a sul de Casablanca.
3
Coro: vento de noroeste. 16 Orazio[. . .] Toscana: Horácio Códice, herói romano
que defendeu sozinho uma ponte, contra os Etruscos.
4 Bóreas o u garbino: ventos fortes de norte e sudoeste. Ariosto reproduz um verso de Petrarca, do seu Trionfo
dei/a Fama (v. 4 1): «Orazio sol contra Toscana tutta».
5 Escamoso dragão: a pele de dragão ou serpente.
17 Gentil: na linguagem cavaleiresca significa «nobre,
6
Ante u: o gigante africano já referido em IX:77. de grande valor».
7 O fogo: da discórdia. 18 Tiro: antiga cidade fenícia, hoje Sur, no Líbano.
8 19
O filho do rei Agrican: Mandricardo. Sajfetto: de identificação incerta.
9 Bizarro: cf. nota a IIl:7. 20
Tortosa: antiga cidade da Síria, é hoje Tartus.
10 21
Dar [. . .] jogo: o jogo do xadrez era muito praticado Golfo de Laiazzo: actual golfo de Alexandreta, ou
na corte de Ferrara. Iskenderun.
1 1 Da de [. . .] Saint-Victor: a porca de Saint-Germain 22
Oronte: rio da Síria, que banha Antioquia (actual
era a oeste, e a de Saint-Victor a sudeste. cidade turca de Antakya).
12 23
De Saint-Marcel: esta porca era a sul. Contra o rio: subindo da foz até Antioquia.
13 Enamorado de Isabel/,a; Zerbino. 24 Lidia e Larissa: cidades antigas entre Antioquia e
Damasco, nas margens do Oronte.
310 ORLANDO FURIOSO
25 48
Aleppe: Aleppo, entre o Oronte e o Eufrates, cidade A insígnia [. . .} confronte: a insígnia de Dardinello
comercial muito povoada. (quartéis brancos e vermelhos) era a mesma de seu pai,
Almonte. Orlando (o conde) usava a mesma insígnia, de
26
Mamuga: cidade não identificada. que se apropriara quando matou Almonte.
27 49
Vice-rei: Sansonetto (cf. XV:95). Famosa espada: Fusberta, espada de Rinaldo.
28
Tralha: a sua bagagem. 50 To uro [. . .} amor: um touro muito jovem.
29 51
Brava: actual Blaye, era feudo de Orlando (cf. Mambrino: ver nota a 1:28.
VI:34) .
52
Pagânia: terra dos pagãos (Mouros), de modo gené
30
À lembrança [. . .} à beira: aventuras narradas no O. nco.
lnnamorato.
53
Rei de Espanha: Marsilio.
31
Seu ex-dilecto: que ela já amara, quando ele era jovem
54
(ver nota a XI:32) . Stordilan [. . .} port uguês: Srordilan era o rei de
Granada (cf. XIV: 1 3) . Os reis de Andaluzia e de
32
Faias, freixieiros: as lanças, que eram, na maioria, fei Portugal eram Madarasso e Tesira (cf. XIV: 12 e 1 3) .
tas dessas madeiras.
55
Berberia: costa setentrional d e África (Magrebe) ,
33
Digno de laço: merecedor da forca. cujo rei é Agramante.
34 56
O utra vez contada: já contada por Boiardo no Bizerta: cidade costeira da Tunísia, capital do reino
Innamorato: Marfisa repousava à beira da estrada quan de Agramante.
do Brunello lhe roubou a espada. Para o perseguir com
57
mais ligeireza, despiu e deixou ali a armadura completa. Agarrar pelos cabelos: como se cria que a Fortuna só
tinha um tufo de cabelos na parte da frente da cabeça,
35
A seguir[. . .} espada: pois já teriam quebrado as lanças. agarrá-la pelos cabelos significava tê-la virada para nós.
36 58
O se u [. . .} peq ueno: porque parte das armas já eram Tolomitta: Tulmaythah, antiga Ptolemais, na
suas por direito (as do primeiro torneio). Cirenaica, península da Líbia.
37 Cancela: da paliçada de madeira que cercava estes 59
Cloridano [. . .} Medoro: Niso e Euríalo (Eneida,
recintos. IX: 1 76 ss.) foram os modelos para Cloridano e Medoro.
38 60
Orrilo [. . .} mato u : cf. XV:79 ss. Sumo coro: o coro dos Serafins, primeira jerarquia
dos anjos.
39
Tislfone: uma das Fúrias infernais (aqui identificada
61
com Marfisa) . Passada meia parte: ia a meio.
40 62
A medo [. . .} revira: faz voltar para trás os que, por Turpino: cf. nota a XIII:40.
medo, se tinham afastado.
63
Lírios: os lírios de ouro, brasão da França, passavam
41
Os filhos de Oliviero: Aquilante e Grifone. a ser incluídos nas suas insígnias (armas), privilégio con
cedido aos cavaleiros mais corajosos.
42
De Otone o varão: Astolfo.
64
Triforme: no céu é a Lua, na Terra é Diana, deusa da
43
L una: antiga cidade da Toscana, na foz do rio Magra. caça, e no mundo das sombras (Inferno) é Hécate, que
preside à magia e aos feitiços.
44
Ilha [. . .} deia: Chipre, consagrada a Vénus, deusa do
65
amor. Segui u [. . .} santos: foi caçador.
45 66
Famagusta: porto cipriota. Endimion: jovem e belo pastor pelo qual a Lua
(Selene) se apaixonou.
46
Constança: antiga cidade cipriota que ficava numa
67
zona pantanosa (maligna). Filho [. . .} velho: Dardinello.
47
Pafo: Paphos ou Baf, cidade de Chipre onde existia o
principal templo de Vénus.
-.
CANTO XIX
�
4 Cloridano chega onde já não sente s Cloridan como ajudá-lo não sabe,
de quem o segue estrépito e rumor; porém quer juntar-se a ele na morte,
mas, quando se vê de Medoro ausente, mas não sem antes que sua vida acabe
do coração se sente perdedor. dar a mais que um dos outros igual sorte;
- Mas como fui (disse) tão negligente, no arco faz que aguda flecha encabe,
como me dominou tanto o terror, e, escondido, tão bem lhe dá transporte
que sem ti, meu Medoro, aqui cheguei, que a um escocês os miolos esfarela,
sem saber quando ou onde eu te deixei! - fazendo-o cair sem vida da sela.
s Assim dizendo, à retorcida via 9 Voltaram-se os outros para aquela banda
da intrincada selva outra vez passa; donde tinha vindo o dardo homicida.
por onde viera a voltar se avia, Entr�::;:i nto o sarraceno outro manda,
e da sua morte o caminho traça. para que o que estava ao lado perca a vida;
Inda cavalos e gritos ouvia, enquanto a um e a outro faz demanda
e uma voz 1mm1ga que ameaça; sobre quem disparou e se elucida,
por último seu Medoro ouve e vê o dardo chega e pãssa-lhe a goela,
entre muitos montados, só, e a pé. e no meio a palavra lhe cancela.
6 Uns cem a cavalo lhe estão em torno: 10 Zerbino, o capitão, tal desaforo
Zerbin dá ordens para que seja preso. já não pôde aceitar com paciência.
Gira o jovem infeliz como um torno, Com ira e furor chegou-se a Medoro,
tentando como pode achar defeso: dizendo: - Farás tu a penitência. -
de carvalho, olmo e faia faz contorno, Deitou a mão àquela crina de ouro,
mas não se separa do amado peso. e puxou-o para si com violência;
Finalmente pousa-o na erva, quando mas o olhar no belo rosto pousou,
já não aguenta, e vai-lhe em torno errando: piedade sentiu e não o matou.
7 qual ursa que o montanhês caçador 11 Pedido fazendo, o jovem infiel
sua rochosa toca ataca e invade, lhe disse: - Cavaleiro, pelo Deus teu,
está junto aos filhos com incerto humor, não me impeças, não sejas tão cruel,
e freme num som de raiva e piedade: de sepultar o corpo do rei meu.
pela ira é incitada, e o furor Para mim não peço outro favor que aquele,
a sangrar boca e garras a persuade; nem de viver mais vontade me deu;
o amor a enternece e a retém na vida um só desejo em mim perdura:
a proteger os filhos, com desdém. poder dar ao meu senhor sepultura.
12 Se feras e aves quiseres pascer,
se o furor tens do tebano Creonte2,
que o meu corpo lhes queiras oferecer,
deixando enterrar o filho de Almonte. -
Belos modos mostrou no requerer,
com fala capaz de mover um monte;
assim Zerbino tanto comovia,
que de amor e piedade todo ardia.
13 Neste momento, um cavaleiro vilão,
que tinha ao seu senhor pouco respeito,
feriu com a lança, pondo ao alto a mão,
ao suplicante o delicado peito.
Desaprovou Zerbino o acto malsão;
tanto mais que viu cair de tal jeito
o jovem, mostrando tal desconforto,
que por tudo julgou que estava morto.
CANTO XIX 313
14 De tal maneira sentiu fúria e dor 17 Apareceu por acaso uma donzela,
que disse: - Não ficará sem vingança! - usando pastoril e humilde veste,
E voltou-se cheio de ira e furor mas de nobre presença e face bela,
para o cavaleiro que abusou confiança; finos modos que o decoro reveste.
preveniu-se este, levando a melhor: Há tanto tempo que eu não falo dela
desviou-se e fugiu sem mais tardança. que, quem é, talvez não se manifeste:
Cloridano, ao ver Medoro por terra, se não sabeis, era Angelica airosa,
saltou do bosque e fez aberta guerra. do Cão do Catai a filha orgulhosa.
15 O arco enjeita e, cheio de danação, 1s Depois que o anel ela reaveu,
entre o inimigo a espada regira, que Brunel tirara com mão furtiva,
mais para morrer do que com intenção tanto em soberba e orgulho cresceu
de fazer vingança adequada à ira. que ser parecia a todo o mundo esquiva.
Do próprio sangue vê vermelho o chão, Sozinha vai, para companheiro seu
de tanta espada, e pelo seu fim suspira; rejeitando o mais famoso que viva:
sentindo que a força toda se esvai, com desprezo lembra que seu amante
exangue ao lado de Medoro cai. já nomeou Orlando, ou Sacripante.
16 Pela selva os escoceses fazendo coro 19 Tinha-se mais que tudo arrependido
vão com o guia, a quem raiva norteia, do bem que já a Rinaldo quisera,
depois de deixar um e outro mouro, achando ter-se muito envilecido
um todo morto, outro com vida meia. porque para tão baixo os olhos volvera.
Jazeu muito tempo o jovem Medoro, Tanta arrogância tendo Amor sentido,
deitando sangue de uma larga veia, por mais tempo tal coisa não tolera:
e o fim de sua vida atingiria, onde jazia Medoro fez marco,
se não chegasse quem o salvaria. e esperou-a, com o dardo no arco.
20 Quando Angelica dele viu o aspecto,
definhando ferido, perto da morte,
e de seu rei, que jazia sem tecto3,
mais que do próprio mal lamenta a sorte,
de insólita dor o peito repleto
sentiu, trazida por estranho transporte,
que o duro coração lhe enterneceu,
e mais quando o caso lhe descreveu.
21 E relembrando na memória a arte
que na Índia aprendeu de cirurgia
(consta que esta ciência nessa parte
é nobre e digna e de muita valia;
e não é que muitos estudos encarte,
pois de pai para filho se transmitia),
com suco de ervas decidiu tratá-lo,
e a mais adulta vida reservá-lo.
22 Recordou-se de ter visto na areia
certa erva, numa planície amena;
fosse ditamno, fosse panaceia,
ou sei lá qual, de tal efeito plena
que estanca o sangue, e da ferida mais feia
afasta o espasmo e a dolorosa pena.
Perto a encontrou, e assim que a colheu
para onde Medoro estava volveu.
3 14 ORLANDO FURIOSO
33 Angelica a Medoro a inicial rosa 36 Entre prazeres, onde uma árvore lisa
deixou colher, jamais antes tocada: via dar sombra a fonte ou ribeiro puro,
não houve pessoa tão venturosa com gancho ou faca logo ela era incisa;
que em tal jardim houvesse tido entrada. e o mesmo com rochedo menos duro;
Para completar, tornar a coisa honrosa, por fora a casa é escrita à mesma guisa,
a santa cerimónia foi celebrada também por dentro o sendo em cada muro:
do matrimónio; foi padrinho Amor, Angelica e Medoro, em vários modos
e foi madrinha a mulher do pastor. entrelaçados, unidos em todos.
34 A boda fez-se sob o humilde tecto 37 Quando achou ali já ter feito estada
. com a solenidade que podia dar-se; mais que bastante, fez resolução
mais dum mês gozaram viver dilecto de à Índia8 , ao Catai, voltar à morada,
os dois amantes, sempre a recrear-se. de seu reino a Medor dar coroação.
Do jovem tinha seu olhar repleto Pulseira de ouro de gemas ornada
a dama, sem dele conseguir saciar-se; usava no braço, em atestação
embora a ele estando sempre abraçada, do bem que o conde Orlando a estimava;
de o desejar nunca estava saciada. e havia longo tempo que a usava.
35 Se em casa à sombra, ou se dela saía, 38 Tinha-a dado Morgana a Ziliante9,
dia e noite o jovem tinha a seu lado: no tempo em que no lago oculto o teve;
manhã e tarde de um rio ou outro ia e aquele, quando a seu pai, Monodante,
à procura, ou de qualquer verde prado: graças a Orlando tornou em breve,
a meio do dia uma gruta os cobria, deu-a a Orlando: Orlando, que era amante,
lugar talvez tão cómodo e estimado a pôr no braço o círculo se atreve,
como o que abrigou Eneias e Dido7, porque tinha feito intenção de dá-lo
de seu segredo testemunho fido. à sua rainha, de quem vos falo.
316 ORLANDO FURIOSO
49 Embrulhos, caixas, e tudo o que é grave 55 Para o largo não pode retroceder,
deita da proa, da popa e do lado; pois vergas e mastros estavam perdidos;
de cabines, porões, tudo o que entrave, tábuas, barrotes estavam, pelo bater
ao mar o rico artigo é atirado. do mar, desconjuntados ou partidos.
Outro às bombas corre e alivia a nave Aportar ali era querer morrer,
de água importuna: ao mar, mar entornado; ou ficar à servidão reduzidos;
corre outro ao porão, para verificar pois morta ou serva a pessoa se faz
que tábua de tábua afastou o mar. que aqui error ou má fortuna traz.
50 Nesta fona estiveram, nesta pena, 56 Perigo grande era ali estar indeciso,
quatro dias, sem ter mais protecção; pois gente em navios viria de terra
esteve para ter o mar vitória plena, que ao seu daria grande prejuízo,
se um pouco mais durasse a agitação; pouco apto para o mar, quanto para a guerra.
mas esperança lhes deu de aragem serena Estando o mestre sem achar bom juízo,
a luz de santelmo, ansiado clarão, foi-lhe perguntado pelo de lnglaterra 1 9
que à proa se veio pôr numa fasquia, o que o fazia estar preocupado,
pois mastros e vergas já não havia. e por que não tinha ainda aportado.
51 A vista da bem-vinda chama faz 57 Contou-lhe o mestre que essa costa habita
ajoelhar todos os navegantes, uma seita de mulheres, homicida,
que rezam por um mar tranquilo e paz, por cuja lei, quem lá ir se permita,
com olhos flébeis, vozes vacilantes; para sempre fica escravo ou perde a vida;
a cruel procela, que pertinaz e que tal sorte somente a evita
até ali foi, não foi mais como antes: quem luta com dez homens e os liquida;
vento contrário já não os molesta, e concedem-lhe que à noite se deite
só o de sudoeste agora resta. com dez donzelas em carnal deleite.
52 Resta ainda este no mar tão potente, 58 E se ele a primeira prova vencer,
com tal força a negra boca o exala 16 , mas a segunda não cumprir depois,
e com ele é tão rápida a corrente, é morto, e quem está com ele irá ser
do agitado mar que lesto embala, ou cavador ou guardador de bois.
que transporta a nave mais velozmente Se numa e noutra coisa provas der,
que pelo ar falcão peregrino abala; ganharão liberdade todos, pois.
teme o mestre que até ao fim do mundo Mas ele não, pois tem de ser marido
a leve, ou a quebre, ou a meta ao fundo. de dez mulheres, depois de as ter escolhido.
53 Remédio para isso o bom mestre achou, 59 Astolfo ri quando ele verbaliza
mandando pela popa lançar faxina 1 7 da terra vizinha o rito malsão.
e âncora flutuante, e verificou Chega Sansonetto, e depois Marfisa,
que dois terços da corrida domina. depois Aquilante, e com ele o irmão.
Este recurso muito os ajudou, De igual modo o mestre pormenoriza
e o bom augúrio que a proa ilumina: de não querer aportar qual a razão:
salvou á nave, que talvez perecesse, - Antes (disse) no mar quero-me afogar
e fez que pelo m�r segura corresse. que à servidão ter de me subjugar. -
54 Pelo golfo de Aiazzo18 para a Síria ia, 60 Opiniões às do mestre similares
e uma grande cidade se descerra; tinham os outros todos neste apuro;
tão próximo já estava que surgia contrários eram Marfisa e seus pares,
um castelo e outro que o porto cerra. que o lido mais que o mar criam seguro.
Percebendo o mestre qual era a via Mais que cem espadas, ver irados mares
que fizera, logo seu rosto emperra, a toda a volta era para eles duro.
porque aportar ali não desejava, Pensavam neste, ou num lugar qualquer
nem estar ao largo, e dali não escapava. em que armas se usam, não ter que temer.
CANTO XIX 319
85 No fim do campo o cavalo volveu 89 Com a mão fez-lhe sinal de querer, antes
e um pouco parou; veloz o lançou de mais nada, alguma coisa dizer;
contra os outros e o grupo dissolveu, e, sem pensar que tão viris semblantes
e a espada até ao punho ensanguentou. uma donzela estavam a esconder,
Um a cabeça, outro um braço perdeu; disse: - Cavaleiro, hoje de bastantes
outro de um modo com a espada cortou já te cansaste, e os fizeste morrer;
que o peito ao chão foi com cabeça e braços, e se eu desejar, mais do que estás já,
e ventre e pernas na sela dão passos. cansar-te, descortesia será.
86 Digo que ela o partiu a meia altura, 90 Que repouses até ao dia novo,
das costas e das ancas na fronteira, e então voltes ao campo, te concedo.
e fê-lo ficar com meia figura, Não me honra, se contigo hoje me provo,
como, diante de imagem santeira, pois cansado e lasso estares é meu credo. -
as vai pôr de prata e de cera pura - O cansaço de lutar não me é novo,
a gente da terra e a forasteira, e nem por tão pouco à fadiga cedo
para agradecer e para pagar promessa (disse Marfisa); e espero à tua custa
das graças pias que obtiveram dessa. fazer-te, de tal, demonstração justa.
87 Um que fugia, logo o perseguiu, 91 Tua oferta cortês eu ultrapasso,
e antes do meio da praça o alcançou; pois a fadiga inda não me empeçonha;
cabeça e colo a modo lhe cindiu e tem ainda o dia tanto espaço
que o médico nunca mais lhos juntou. que todo ao ócio dá-lo é uma vergonha. -
Um ap6s outro, enfim, os extinguiu, Responde-lhe ele: - Pudesse eu dar sedaço
ou tanto feriu que o vigor lhes tirou; a tudo com que o meu coração sonha,
certificou-se que erguer-se da terra como satisfazer-te; vê, porém,
não mais podiam para fazer-lhe guerra. se o dia, antes que penses, se detém. -
88 Ficara o cavaleiro sempre a um canto, 92 Logo à pressa mandou trazer, e aceita,
que a dezena à praça tinha trazido; duas grandes lanças que graves são;
pois avançar contra um só, tendo tanto deixou Marfisa escolher sua eleita,
ascendente, pareceu-lhe descabido. ficou com outra e tomou posição.
Ora, que uma só mão viu dar quebranto Prontos se encontram, e apenas à espreita
à companhia em tempo tão sumido, do som que à luta dá iniciação.
para mostrar que a espera foi cortesia E nisto a Terra, o ar e o mar ribomba,
e não temor, do seu canto saía. quando vão ao primeiro som da tromba.
93 Mexer-se, a boca abrir, pestanejar
não se via nenhum observador:
todos ver quem a palma vai ganhar
dos dois campeões, aguardam com fervor.
Marfisa, para do arção ver tombar,
e não mais se erguer, o da negra cor,
a lança enrista; o de negro, mui forte
não menos a Marfisa quer dar morte.
94 As lanças eram de seco salgueiro,
em vez de serem de azinho verdento,
e só o cabo lhes ficou inteiro;
para os corcéis foi o choque tão violento
que a ambos parecia ter um ceifeiro
tirado, às pernas, dos nervos sustento.
Caíram ambos; mas os dois campeões
lestos foram a sair dos arções.
CANTO XIX 323
NOTAS
�
1
Quem [ . .] fé: quem está no topo da roda da sorte 17
Faxina: feixes de ramos que, flutuando atrás do
tem muitos amigos, falsos e leais. navio, lhe reduzem a velocidade.
2 18
Creonte: tirano de Tebas (cf. nota a XVIl:2); não per Aiazzo: no golfo de Alexandreta.
mitiu que fosse dada sepultura aos Gregos mortos junto
às muralhas da cidade, entre os quais Polinices, seu 1 9 Pelo de Inglaterra: por Astolfo.
sobrinho.
20
O corno: o corno que lhe deu Logistilla (cf. XV: 14- 1 5).
3
Sem tecto: sem sepultura.
21
Cada ponta do corno: cada extremidade da baía.
4 Archeiro alado: Cupido.
22
Cumana [ . .] Heitor: a Sibila de Cumas e Hécuba (cf.
5 Rei da Circàss ia: Sacripante. nota a VII:73) .
6 A icane: rei da Tartária (cf. nota a 1:80) . 23 Como [ . .]fez: Alexandre M o, não conseguindo des
gr agn
fazer o nó feito pelo rei frísio Górdio, cortou-o com a espada.
7 O q ue [ . .] Dido: a gruta em que Eneias e Dido se
24
abrigaram da tempestade e onde começaram a amar-se Do [ . .] a ustro: do lado sul.
(Eneida, IV: 1 60 ss.).
25
Frio pla ustro: o carro gelado da Ursa Menor, para
8
Índia: sinónimo de Oriente. indicar o Norte.
9 Tinha-a [ . .] Ziliante: no Orlando Innamorato, 26
E da cor [ . .] pranto: tal como nas suas vestes abun
Ziliante, cativo da fada Morgana, foi libertado por dava o negro e faltava o branco, na sua alma abundava o
Orlando. Mas a oferta da pulseira é invenção de Ariosto. pranto e faltava o riso.
10
Ilha do pranto: Ebuda (cf. X:93) . 27
Sobrepeito: plastrão.
11 28
Treslo ucado: trata-se de Orlando, louco furioso, irre Como [ . .] dana: tal como um muro não abana num
conhecível (cf. XXIX: 58 ss.). «jogo de vaivém», popular na época de Ariosto: vários
jogadores alinhados atiram bolas ao muro, e ela é-lhes
12
Limassol: cidade da costa meridional de Chipre. devolvida pelo impulso, sendo vencedor quem durante
mais tempo prosseguir, sem deixar ir a bola ao chão.
13
Tripoli: cidade costeira no Norte do Líbano.
29
Fazê-la [ . .] lumindrio: fazê-la à luz do Sol ou da Lua.
14 Antdlia: cf. nota a XVII:65:7.
30
Pronta: distracção de Ariosto. O adjectivo no feminino
15
Ettino: lugar não identificado. revela o sexo da guerreira, ainda encoberto ao adversário.
16 31
Negra [..] exala: vento que sopra de África (negra boca). Ga nges: indica o Oriente.
�
CANTO XX
�
4 A ela voltando, aquela donzela, 10 Quando, após vinte anos, foram isentos
ao cavaleiro que foi tão cortês, de Tróia os Gregos (pois durou o assédio
de sua pessoa tudo revela, dez, mais outros dez pelos contrários ventos
se ele se revelar por sua vez. foram pelo mar agitados com tédio),
Desembaraçou-se a responder-lhe ela, suas mulheres viram para os tormentos
para o nome dele ouvir com rapidez: da longa ausência ter tido remédio:
- Eu sou Marfisa (disse) -; e foi bastante, tinham jovens amantes por eleitos,
que em todo o mundo se sabe o restante. para não arrefecerem sós nos leitos.
5 Começa o outro, pois que toca a ele, 11 Cada grego de filhos de outros tem
com mais proémio a narrar-lhe seu conto: cheia a casa; mas, por parecer comum,
- Creio que a nenhum de vós é novel às mulheres perdoam, pois sabem bem
o nome da minha estirpe, que aponto; que não podiam ter um tal jejum;
não só em França e Espanha sabem dele, quanto aos filhos dos amantes, convém
pois na Índia, Etiópia e no frio Ponto3 que seu sustento procure cada um;
não há quem não conheça Claramonte, pois tolerar não querem os maridos
donde saiu o que matou Almonte4 , que sejam à sua custa nutridos.
6 e aquele que a Chiariello e ao rei Mambrino 12 Uns são expostos 1 1 , outros são ocultos
a morte deu5, e seu reino desfez. das suas mães e mantidos com vida.
Desse sangue, onde se junta ao Euxino6 Em vários grupos, os que eram adultos
o Istro7, com oito cornos ou dez, para aqui e para acolá deram partida.
com o duque Amon, que qual peregrino Uns armas seguem, outros estudos cultos
ali se encontrou, minha mãe me fez8 ; e artes; por outros a terra é florida;
e há já um ano que a deixei, dolente, ou servem na corte, ou guardam o grege,
para ir a França encontrar minha gente. conforme determina a que aqui rege.
7 Mas não pude acabar minha viagem, 13 Entre outros jovens um daqui partiu,
que aqui me trouxe um tempestuoso Noto9 • filho de Clitemnestra, a má rainha,
Mais de dez meses hou aqui paragem, fresco lírio ou rosa que se cindiu
e cada dia e cada hora anoto. da sua planta: dezoito anos tinha.
Guidon Selvaggio é a minha linhagem, Corsário se fez com seu bom navio,
pouco experiente ainda e pouco noto. e pôs-se a depredar pela marinha;
Cá matei Argilon de Melibeia 10 , por companhia cem jovens perfeitos
mais dez vindos com ele em assembleia. levou também, por toda a Grécia eleitos.
Passei também na prova das donzelas: 14 Os Cretenses, nesse tempo, o malvado
para meu prazer dez delas tenho ao lado; Idomeneu 12 destituído haviam,
deram-me, à minha escolha, as mais belas, e, para segurança do novo estado,
e também as mais gentis deste estado. de homens e armas recolha faziam;
Sobre estas reino e as outras todas; delas pagando bem, fizeram seu soldado
o governo e o ceptro me foi confiado; Falanto (que seu nome assim diziam),
o mesmo darão a outro que a Sorte e ele, com os mais que trazia em barda,
ajude a levar a dezena à morte. - à cidade de Dicteia 13 deu guarda.
9 A Guidone fazem inquirição: 1 5 Entre cem cidades que havia em Creta,
por que tão poucos homens há ali, Dicteia era a mais rica e mais fagueira,
e se às mulheres têm sujeição, em damas belas e ternas vedeta,
como elas a eles fora dali. de manhã à noite em jogos brejeira;
Respondeu ele: - Muita vez a razão e, como de cortês tinha a faceta,
de tal ouvi, desde que estou aqui; bem recebia a gente forasteira:
ser-vos-á, como por mim foi ouvida, tal fez com estes, que dentro de dias
se desejais sabê-la, referida. de suas casas tinham senhorias.
CANTO XX 327
52 Ter connosco um homem que seja forte 58 Lá o deixou com Alessandra bela,
opõe-se em tudo à primeira intenção. que depois nome a esta terra deu22,
Se um só consegue a dez homens dar morte, herdeiro seu, para respeitar aquela
quantas mulheres não tinha em sujeição? lei, bem como todo o sucessor seu:
Se os nossos dez fossem da mesma sorte, quem for trazido por sua má estrela
ao reino deitariam logo a mão. a esta terra por turvado céu,
Para dominar não é via prudente possa escolher em sacrifício dar-se,
pôr armas na mão doutro mais potente. ou contra dez guerreiros, só, provar-se.
53 Põe inda na mente que, dando ouvidos 59 E se os homens ele matar de dia,
Fortuna a este, e se ele os dez matar, que à noite com as mulheres se prove;
as cem mulheres de quem são maridos, e quando nisso também lhe sorria
sem eles ficando, ouvirás gritar. a sorte, que vencedor se comprove,
Se quer escapar, proponha outros partidos, do feminil bando príncipe e guia
e não dez jovens querer assassinar. seja, e à escolha a dezena renove,
Mas se é bom para fazer com cem mulheres com a qual reine, até que outro cative,
o que fazem dez, perdoa-o se queres». mais forte que ele e que da vida o prive.
54 De Artemia cruel foi o parecer 60 Por dois mil anos aquele ímpio uso
(seu nome era); não se deveu a ela foi conservado, e ainda se mantém;
que Elbanio ao templo não fosse morrer, poucos dias há que, no templo, infuso
aos cruéis deuses cortando-lhe a goela. não seja o sangue de algum que ali vem.
Mas Orontea, a mãe, que comprazer Se contra dez algum de armar-se abuso,
quis sua filha, replicou àquela como Elbanio (inda vivo), tem também,
outras e mais razões, e modo achou o primeiro golpe a vida lhe rechaça;
que no senado o seu parecer ganhou. nem um em mil à outra prova passa.
55 O ter Elbanio beleza e encanto, 61 Sempre passam alguns, mas muito raros:
mais que outro qualquer cavaleiro no mundo, com os dedos da mão os adiciono.
no coração das jovens peso tanto, Argilon foi um, mas anos avaros
ali presentes, teve e tão profundo foi com sua dezena aqui o dono;
que o parecer das velhas pôs ao canto, para aqui me trouxeram ventos amaras,
que, como Anemia, queriam segundo e os olhos lhe fechei com eterno sono.
a velha ordem; pouco decorrido Com ele houvesse morrido eu tal dia,
Elbanio foi por mercê absolvido. em vez de aqui viver em serventia.
56 Ao fim concluiu-se ser perdoado, 62 Pois os prazeres do amor, e o riso, e o jogo,
mas se para os outros dez tivesse alento que amar costumam os da minha idade,
e no outro assalto fosse aprovado as púrpuras, gemas, e o desafogo
bom para dez mulheres, e não para um cento. de ser o primeiro em sua cidade,
Do cárcere o outro dia foi tirado; que alegria darão, vos interrogo,
tendo armas e cavalo a seu contento, ao homem privado da liberdade?
contra dez guerreiros, só, avançou, E o nunca mais daqui poder sair
e um após outro na praça matou. julgo ser longo e pesado servir.
57 À noite à outra prova deu começo, 63 Ver assim consumir meus melhores anos,
contra dez donzelas só e desnudo; a flor da vida, de modo aviltante,
nela teve seu ardor tal sucesso o coração me oprime em vãos afanas,
que com todas elas provou de tudo. e todo o prazer me é irrelevante.
Assim conquistou as graças e apreço Da minha estirpe a fama corre os planos
de Orontea, que de mãe lhe deu escudo; por todo o mundo, até ao céu distante;
deu-lhe Alessandra mais as outras nove boa parte dela talvez gozasse,
com quem de noite boas provas houve. se junto aos meus irmãos estar lograsse.
332 ORLANDO FURIOSO
64 Parece o destino dar-me desdém, 70 Disse ela a Guidon: - Vem connosco embora,
tendo-me para tão vil serviço eleito; que à viva força daqui sairemos. -
qual cavalo que à parte se mantém Respondeu-lhe ele: - Tua esperança gora
por mostrar nos pés ou olhos defeito, de daqui ir, percamos ou ganhemos. -
ou, por qualquer outra pecha que tem, Ela acrescentou: - Nunca me apavora
às armas e a bons usos não afeito; de uma coisa acabar que iniciemos;
só esperando eu por morte de tal pejo nem sei encontrar mais segura estrada
libertar-me, só a morte desejo. - que aquela a que me guia a minha espada.
65 Guidone fim a seu discurso deu, 71 Na praça o teu valor já vi provado,
e de raiva ao dia deu maldição e contigo arrisco qualquer empresa.
que, os cavaleiros vencendo, recebeu Quando amanhã em volta do estacado
o reino e as esposas em galardão. a turba sentada aguarda a proeza,
Astolfo escutou e o nome escondeu, vamos dizimá-la por todo o lado,
até certificar-se com razão quer tente fugir quer fazer defesa,
que, tal como afirmou, este Guidon lobos e abutres deste paradeiro
era filho do seu parente Amon. terão os corpos, e a terra o braseiro. -
66 Depois disse-lhe: - Eu sou o duque inglês, n Retorquiu-lhe Guidon: - Ter-me-ás pronto,
o teu primo Astolfo -; e logo o abraçou e que a teu lado morrerei garanto,
e, num gesto afectuoso e cortês, mas não esperes resistir ao confronto:
não sem lágrimas verter o beijou. vingar-nos-emos um pouco entretanto;
- Meu caro parente, mais nitidez quase sempre dez mil na praça conto
tua mãe com sinal não te doou; de povo feminino, e outro tanto
para acreditar que dos nossos nasceste está de guarda ao porto, castelos, muro;
basta aquilo que com armas fizeste. - não há para fugir caminho seguro. -
67 Guidon, que noutra parte faria festa 73 Disse Marfisa: - E que mais sejam elas
por encontrar tão chegado parente, que os homens que Xerxes2 5 com ele trazia,
aqui o acolheu com expressão mesta, que as almas rebeldes26, cujas mazelas
porque de ali o ver ficou dolente. do Céu baniram com eterna heresia;
Se viver ele, Astolfo escravo resta, se a meu lado estiveres e não daquelas,
e tal está para o dia seguinte assente; havemos de as matar todas num dia. -
se livre Astolfo, para si é fatal: Guidon disse: - Não sei maneira alguma
portanto o bem de um é do outro o mal. que nos possa valer, se não for uma.
68 Dói-lhe que os outros cavaleiros ainda 74 Só nos salvamos, se bem sucedido
tenha, vencendo, de à escravidão dar23; o que vou dizer, que me veio à ideia.
e, mesmo se a lutar a vida finda, A não ser às mulheres, é proibido
que escravos sejam não pode evitar; à beira do mar pôr o pé, na areia;
pois se a primeira prova ela deslinda, numa das damas sou compelido
mas na segunda vai embatucar, a que em sua fidelidade creia,
Marfisa inutilmente o vencerá24 : pois de amor já me deu prova patente,
São escravos eles, e ela morrerá. maior que a que quero dê no presente.
69 Por outro lado, tinha a verde idade 75 Não menos que eu quer tirar-me, dizia,
do rapaz, a cortesia, o seu feito, da servidão, se comigo a carrego;
de amor enternecido e de piedade pois assim espera, sem a companhia
tanto, a Marfisa e companhia, o peito das outras rivais, ter meu aconchego.
que, com a morte dele a liberdade Fustas ou bergantins pôr na baía
haverem, era para eles despeito; mandará, enquanto o ar inda é cego,
e se Marfisa solução não tem que vossos marujos encontrarão
senão matá-lo, quer morrer também. prontos a navegar, assim que vão.
CANTO XX 333
76 Irão atrás de mim, num grupo estreito, 82 Do duro rosto da Terra inda o Sol
cavaleiros, mercantes, marinhagem, não tirara o véu obscuro e sombrio;
que sob o meu tecto me destes preito mal começara de Licáon a prole
de albergar-vos, em sã camaradagem; a levar pelo céu seu carro tardio28 ,
ampla via tereis de abrir com o peito, quando para ver a batalha29 escapole,
se no caminho nos fazem paragem; enchendo o anfiteatro, o mulherio,
com nossas espadas, espero com vontade qual enxame de abelhas que à entrada
poder tirar-vos da cruel cidade. - se apinha, para ir para nova morada30 •
77 - Tu faz como achares (disse Marfisa), 83 De trombas, de tambores, de som de corno
que eu, que daqui saio, tenho a certeza. o povo ressoar faz céu e Terra,
Mais fácil é ver que a gente agoniza querendo que seu senhor faça retorno,
por minha acção, dentro da fortaleza, para terminar a iniciada guerra.
que veres-me fugir, ou que de outra guisa Aquilante e Grifon tinham adorno
alguém duvide da minha afoiteza. das armas, e o duque de Inglaterra,
À força de armas vou sair, de dia; Guidon, Marfisa, Sansonetto e todos,
de outro modo opróbrio me pareceria. a cavalo e a pé, sabiam os modos.
78 Se eu como mulher fosse conhecida, 84 Para descer do palácio ao mar e ao porto,
das mais teria tratamento egrégio; forçada era pela praça a travessia:
e muito bem seria recebida, que outro trilho não há, direito ou torto,
talvez entre as primeiras do colégio; assim disse Guidone à companhia.
mas, como com eles vim incluída, E, depois de lhes dar muito conforto,
não quero ter mais que eles privilégio. sem causar nenhum rumor fez-se à via;
Grande error era que eu aí andasse e na praça, onde o povo se juntou,
livre, e eles em servidão deixasse. - com mais de cem guardas se apresentou.
79 Estas e mais palavras pronunciando, 85 Os seus companheiros muito apressava
mostrou Marfisa que só o respeito Guidone à outra porta para sair:
que tinha pelos companheiros (pensando mas a grande multidão que ali estava
que seu ardor lhes daria mau jeito) em volta, armada e sempre pronta a ferir,
a impedia de com memorando pensou, quando percebeu que levava
sinal de arrojo levar tudo a eito; consigo os outros, que queria fugir;
por isso deixa a Guidon nesta altura e toda a um tempo os arcos armou,
que escolha a via que acha mais segura. e parte à saída se perfilou.
80 Guidon à noite a Aleria fala 86 Guidone e os mais cavaleiros galhardos,
(era o nome da sua mais fiel), e acima de todos Marfisa forte,
nem muito tendo de solicitá-la: a puxar das armas não foram tardos,
está disposta a fazer tudo por ele. tentando ali passar de qualquer sorte;
Escolheu a nave e mandou prepará-la, mas com tal cópia caíam os dardos,
e as ricas vestes levou no farnel, aos companheiros dando ferida e morte,
fingindo que queria ao romper da aurora chovendo de cima e a toda a volta,
com as amigas fazer corso27 fora. que dano temeram ter na revolta.
81 Ela mandara para o palácio antes 87 De todos perfeita a armadura era;
levar espadas, lanças, couraças, escudos, não fora e muito houveram a temer.
com que armar se pudessem os mercantes De Sansonetto o cavalo morrera;
e marujos, que estavam meio desnudos. veio o de Marfisa igual sorte a ter.
Uns dormindo, e os outros vigilantes, Disse a si Astolfo: - O que estou à espera
partilharam os ócios e os estudos; que mais que o corno me possa valer?
olhando em volta, cada um armado, Vou ver, já que de nada serve a espada,
espreita se o nascente se faz rosado. se com o corno consigo abrir estrada. -
334 ORLANDO FURIOSO
88 Corno faz sempre que o perigo se extreme, 91 O pranto e o grito até ao céu subia,
procura ajuda e leva o corno à boca. com ruína misturado e fracasso.
Parece que em redor o mundo treme Onde quer que o som do corno se ouvia,
quando o horrível som no ar desemboca. A turba aterrada apressava o passo.
Tanto o temor os corações lhe preme Se ouvirdes dizer que sem valentia
que a gente em fuga toda se desloca se mostra a vil plebe, e de ânimo baço,
do teatro, apavorada e aflita, não vos admireis, visto que é natura
e a guarda da porta se precipita. da lebre sofrer medo com fartura.
89 Corno às vezes se lança e corre perigo 92 Mas que direis se o brio que foi tão fero
de janela ou telhado, em desafogo, de Marfisa e Guidone é vilanagem?
a assustada família que o abrigo E dos dois jovens filhos de Oliviero,
vê cercado a toda a volta pelo fogo, que já tanto honraram sua linhagem?
que, enquanto dormia, teve o castigo Já de cem mil haviam feito zero,
de pouco a pouco tanto crescer logo; e em fuga agora vão sem ter coragem;
assim, sem ver na vida algo de bom, corno coelhos, ou tímidos pombos
todos fugiam ao medonho som. quando perto de si ouvem ribornbos.
90 Daqui, dali, de cá, de lá, perdida 93 É que lesava os bons corno os vilãos
surge a turba, que só fugir procura, a força que o corno tinha encantada.
mais de mil à vez em cada saída: Sansonetto, Guidone e os dois irmãos
caem, e a gente toda se arnontura, fogem atrás de Marfisa assustada;
e em tão grande aperto há quem perca a vida. mesmo fugindo são seus esforços vãos,
De balcão, janela, urna se desrnura3 1 , tendo à mesma a orelha atordoada.
mais que um braço se parte e urna cabeça, Corre Astolfo a terra por toda a parte,
urna se estropia, outra a morte apressa. pondo no sopro cada vez mais arte.
CANTO XX 335
100 Passa o barqueiro, ao seu percurso atento, 1 06 A belicosa dama seguir vou,
Chipre e Rodes, e em toda a onda egeia32 antes, senhor, que destes mais vos diga.
vê de si fugir de ilhas mais de um cento, Durance, Ródano, Saône passou36 ,
e o tão perigoso cabo de Maleia33; chegando ao pé de uma montanha abriga.
apanha propício e constante vento, Aqui, ao longo dum rio avistou
para trás lhe ficando a grega Moreia34; em negra veste uma mulher antiga,
gira a Sicília, e vai pelo mar Tirreno que cansada vinha da longa via,
costeando da Itália o lido ameno; porém inda mais de melancolia.
101 até que por fim a Luna35 chegou, 1 07 Era a velha que soía valer
onde deixara da família a telha. aos malandrins no monte cavernoso37 ,
A Deus grato porque o mar navegou onde alta justiça fez aparecer
sem pior mal, para atracar se aparelha. e dar-lhes morte o conde valoroso.
O grupo um barqueiro ali encontrou, A velha, que tem medo de morrer
que a ir com ele para França os aconselha: por razões que mais tarde vos descoso,
no seu lenho nesse dia embarcaram, segue há dias por erma via avessa,
e a Marselha em pouco tempo aportaram. evitando encontrar quem a conheça.
102 Bradamante não estava, que ali mora 1 0s Pareceu-lhe um estrangeiro pela aparência
e que governa o país marselhês; Marfisa, pelo vestir e pelo adorno;
pois, se estivesse, ficar sem demora nem sequer fugiu, como com frequência
consigo os faria em modo cortês. fugia dos que habitavam em torno;
Desembarcaram, e na mesma hora até com confiança e displicência
dos cavaleiros despedida fez a esperou no vau sem sentir transtorno:
Marfisa, e da senhora de Guidone, no vau do riacho, onde a encontrou,
de seu caminho quer ser cicerone, veio-lhe ao encontro a velha e a saudou.
103 pois diz que não é coisa lisonjeira 1 09 Depois pediu-lhe daquela ribeira
com tantos cavaleiros fazer monta: na garupa a levasse à outra banda.
em bandos, pombo, estorninho, boieira Marfisa, desde que nasceu, fagueira,
e cervo vão, bicho que se amedronta; leva a velha e aquela margem demanda;
mas o audaz falcão, a águia altaneira, e mais à frente a leva sem canseira,
o que com a ajuda alheia não conta, para ver se por melhor caminho a manda,
urso, tigre, leão, a sós vagueiam, passada a lama; e no fim do carreiro
pois nenhuma força maior receiam. viram vir ao encontro um cavaleiro.
104 Nenhum dos outros foi de tal talante, 1 10 O cavaleiro em muito rica sela,
e assim ela sozinha deu partida. de armas luzentes, bela veste ornado,
Pelo meio do bosque e da via ignorante, para o rio caminhava, duma donzela
seguiu caminho só e em si metida. e um único escudeiro acompanhado.
O branco Grifone e o negro Aquilante A dama com quem vinha era mui bela,
vão com os outros pela estrada batida, mas de semblante altivo e pouco agrado;
chegando a um castelo ao outro dia, mostrava-se enfadada e orgulhosa,
onde os receberam com cortesia. de tal cavaleiro bem meritosa.
105 Digo cortesia mas na aparência, 111 Dos condes de Mogúncia, Pinabel
pois logo sentiram contrário efeito; era o cavaleiro que a acompanhava;
do castelo o senhor, benevolência o mesmo que meses antes, cruel,
fingindo, recebeu-os com respeito: Bradamante atirou para a funda cava38 •
mas à noite, quando sem reticência Os suspiros, soluços cheios de fel,
dormiam, assaltou-os em seu leito; o pranto farto que quase o cegava39 ,
não os largou sem os fazer jurar eram por esta que consigo vinha,
uma prática perversa aceitar. e que então o necromante retinha.
338 ORLANDO FURIOSO
1 18 Zerbino em vão por toda a selva andou 1 24 Retorquiu Marfisa: - Com teu despeito,
atrás daquele que fez vilanagem; que a podes levar dá prova patente.
mas tão bem ele a tempo se escapou Não permito que tão mimoso aspeito
e soube no fugir ganhar vantagem, tu vendo ou outro, tirar-mo não tente. -
tanto o bosque e tanto a névoa o ajudou, Respondeu Zerbin: - Não sei para que efeito
que ao matinal raio cobriu a imagem, um homem perigo corra e se atormente,
que à mão de Zerbino escapou com jeito para uma vitória ter de tal estranheza:
até lhe abandonar a ira o peito. premeia o vencido e o vencedor lesa. -
1 19 Não pôde Zerbino, ainda que irado, 125 - Se tal proposta bem não te soou,
conter ao ver aquela velha o riso; outra te faço, a qual não se contesta
o corpo, de juvenil veste ornado, (disse a Zerbino Marfisa): se eu sou
contrastava com o feio e antigo viso; por ti vencido, ficarei com esta;
e a Marfisa, que lhe seguia ao lado, se te venço, por força que ta dou.
disse: - Guerreiro, tiveste juízo, Provemos então quem sem ela resta:
pois dama levas de tal jarretice se perdes, nunca mais podes fugir
que não temes achar quem ta cobice. - de acompanhá-la aonde quiser ir. -
43
120 Teria (se a cortiça encarquilhada 1 26 - Pois seja - (Zerbino disse); e volveu
indício certo dá) mais que a Sibila44 , para fazer espaço logo o seu cavalo.
parecendo uma mona assim ataviada, Nos estribos se elevou e recolheu
que para provocar o riso desfila; firme o corpo no arção; com grande abalo,
mais feia é agora, de ira exaltada, em pleno escudo a donzela colheu:
que dos olhos a fúria lhe destila: dum monte de metal sentiu o estalo;
à mulher não se faz maior despeito colheu-o ela no elmo por seu lado,
que de velha ou feia lhe dar defeito. e da sela o mandou atordoado.
121 Fingiu ofensa a ínclita donzela, 1 27 A Zerbin pouco agradou ter caído,
para gozo ter do caso, como fez; que em nenhum embate lhe acontecera
a Zerbin respondeu: - A dama é bela, e em mais de mil já se tinha batido;
muitíssimo mais do que és tu cortês; um perpétuo revés tal considera.
embora eu creia que o que dizes dela No chão se deixou estar emudecido;
não iguala o que no íntimo vês: inda mais lhe custa quando pondera
tu só finges não ver sua beleza que prometera, e obrigado seria,
para encobrir tua grande vileza. ter a velha horrível por companhia.
122 E qual seria o cavaleiro que esta, 1 28 Junto dele a vencedora, na sela,
tão jovem e tão bonita, encontrasse disse-lhe a rir: - A dama te apresento;
sem outra companhia na floresta, quanto mais a vejo gentil e bela,
e fazê-la sua não experimentasse? - mais que ela seja tua me contento.
- Tão bem (disse Zerbin) em ti se encesta Agora és por mim o defensor dela;
que mau seria se algum ta levasse; que a tua palavra não leve o vento:
eu por mim não serei tão indiscreto com tua escolta e guia ela é levada
que dela te prive: podes estar quieto. (como prometeste) onde mais lhe agrada. -
123 Se outras contas queres acertar comigo, 1 29 Sem resposta querer, o corcel esporeia
do que valho estou pronto a dar-te prova; e logo pela floresta se arremessa.
mas não sou cego, por esta não brigo: Que um cavaleiro é, Zerbin tem ideia,
desse voto nada há que me demova. e à velha diz: - Faz com que eu o conheça. -
Feia ou bonita, que fique contigo: E a verdade ela não lhe regateia,
amizade tão grande não se estrova. que de veneno e ira o enfureça:
Bem estão um para o outro, até juraria: - Foi golpe dado por mão de donzela
ela em beleza e tu em galhardia. - o que te fez voar (disse) da sela.
340 ORLANDO FURIOSO
130 Pelo seu valor esta devidamente 136 E tanta vez pintara de Zerbino
usurpa aos cavaleiros escudo e lança; o belo rosto e proezas que afronte
aqui chegou vinda do Oriente, que, ouvindo ora falar o paladino,
para pôr à prova os paladins de França. - e melhor lhe erguendo os olhos à fronte,
Zerbino ouvindo-a tal vergonha sente viu ser aquele por quem tão peregrino
que não só pelo rosto o rubor lhe avança, tinha ela o coração no cavo monte;
mas pouco faltou para ficar tingido de não o ver mais ela se queixava
de rubro o arnês que tinha vestido. do que de ser dos salteadores escrava.
13 1 Monta a cavalo e a si mesmo reprova 137 Dando a velha às palavras audiência,
não ter sabido as coxas unir bem. que com desdém e dor Zerbino versa,
A velha ri sozinha e já renova percebe ter ele a falsa credência
desejo de o provocar com desdém. de que lsabella foi pelo mar submersa;
Lembra-o de que é sua companha nova, e embora tendo da verdade ciência,
e Zerbin sabe que obrigação tem: para o não alegrar, aquela perversa
baixa orelha, qual corcel resignado do que ledo o punha segredo faz,
com o freio na boca e esporeado. e diz-lhe apenas o que lhe despraz.
132 Suspira e diz: - Ó Sorte, que mazela! 13s - Ouve cá (disse-lhe ela), tu que tanto
Que troca é esta que tu me fizeste? soberbo és, e me dás troça e desdém,
Da outra, que entre as belas é mais bela o que sei dessa te daria espanto
e comigo queria, me empobreceste. que julgas morta, e tratar-me-ias bem;
Achas tu que para substituir aquela45 em vez de contar prefiro, garanto,
deva ter esta que agora me deste? me esganes ou cortes em mais de cem;
À míngua estar seria menor mal fosses tu mais gentil, menos azedo,
que uma troca fazer tão desigual. tinha-te talvez contado o segredo. -
133 Aquela, que em beleza e predicados 139 Como o mastim que com fúria se aventa
não teve nunca nem há-de ter par, sobre o ladrão, e a aquietar-se é lesto
afogada entre os escolhos aguçados se aquele pão ou queijo lhe apresenta,
aos peixes deste e aos pássaros do mar; ou se lhe atém com encantado gesto;
e esta, que os vermes alimentados assim Zerbin logo humildade ostenta,
devera ter, quiseste preservar e vem suplicar que lhe conte o resto
mais dez ou vinte anos do que o devido, da que por morta chora, e com malícia
para o meu penar tornar mais insofrido. - a velha diz que sabe dar notícia.
134 Zerbino assim disse; tão desgostoso 1 40 Para ela se volta com melhor cara
em palavras e semblante parecia, e roga-lhe, suplica-lhe, esconjura
com este novo prémio tão odioso, pelos homens e por Deus, que torne clara
como de não ter a dama a quem queria. a nova, boa ou má seja a ventura.
A velha não vira Zerbino airoso - A notícia que ouvirás não te ampara
antes; mas, por aquilo que dizia, (disse-lhe a velha, pertinaz e dura):
que ele é o mesmo de quem, logo ajuíza, não está, como tu crês, morta lsabella;
lhe falava lsabella da Galiza. mas, como vive, só morrer anela.
46 Desde que dela nova te não chega,
135 Se a história ainda tendes no ouvido , 141
a velha da tal caverna deriva de mais de vinte se encontra em poder;
onde lsabella, que Zerbino ferido mesmo se a ti aquela alguém entrega,
de amor tinha, foi guardada cativa. vê se inda esperas sua flor colher. -
Muita vez ela lhe tinha referido Ai, velha maldita, como aconchega
como à paterna corte fora esquiva, a mentira, consciente de o fazer!
e como da tempestade cruel Embora por mais de vinte raptada,
se salvara ao largo de La Rochelle47 • por nenhum fora contudo violada.
CANTO XX 34 1
NOTAS
�
28
ziguar os deuses, que por esse acto castigavam Creta, os De Licdon [. . .] tardio: a filha de Licáon, Calisto, trans
Cretenses baniram Idomeneu. formada por Júpiter na Ursa Maior. Só ao aproximar-se a
aurora ela desaparece do firmamento (carro tardio).
13
Dicteia: cidade cretense.
29
Batalha: final da batalha entre Marfisa e Guidone,
14
Tarento: cidade do Sul de Itália, no golfo do mesmo interrompida na noite anterior.
nome. Segundo a lenda, foi fundada por Falanto, mas
30
Ariosto acresce muita fantasia à lenda, fazendo até de Qy,al enxame [...} morada: como quando, na Primavera,
Clitemnestra mãe de Falanto. as abelhas procuram outra morada: apinham-se à saída da
antiga colmeia e partem juntas, num denso enxame.
15
Menos tinha errado: porque não traíra o marido,
31
visto ser solteira (pucela). Uma se desmura: os sujeitos são todos do género
feminino, pois a cidade é habitada por mulheres.
16 Não
traga [. . .] vazias: traga dinheiro ou outro bem
32
em troca. Onda egeia: mar Egeu.
17 33
Só [. . .} relassa: a única alteração feita à lei inicial é Ma/eia: cabo de Maléas, no extremo sudeste do
cada mãe poder conservar um filho varão por motivos de Peloponeso.
procriação.
34
Moreia: Peloponeso, ou península da Moreia.
18
Alcides: Hércules.
35
Luna: cf. nota a XVIII : 1 35.
19
Dez forjas [. . .} lima: para cada dez mulheres havia
36
apenas um homem. Durance [. . .]passou: o Durance e o Saône são afluen
tes do Ródano.
20
Medeia: cf. nota a Ill:52.
37
Era a velha [. . .} cavernoso: cf. XIII:42.
21
Não [. . .} descoberto: totalmente cobertos de armas,
38
sem um ponto vulnerável. Bradamante [. . .} cava: cf. II:69 ss.
22
Nome [. . .] deu: Alexandreta, ou Iskenderun. 39
Os suspiros [. . .} cegava: cf. Il:37 ss.
23 40
Vencendo [. . .] dar: mesmo que ele vença (matando Mas [. . .] Bradamante: cf. IV:38 ss.
Marfisa em combate), não pode evitar que os outros
41
fiquem cativos. Rei por seu pai tem: é filho do rei da Escócia.
24 42
Marfisa [. . .] vencerd: ainda que Marfisa vença a prova Um que [. . .} temperança: o seu soldado que feriu
do combate, não vencerá a segunda (a prova amorosa Medoro (cf. XIX: 1 2 ss.).
com as dez mulheres), e terá vencido (e matado) Guidone
43
inutilmente, pois será morta (por falhar a segunda prova) Cortiça : pele enrugada.
e os companheiros reduzidos à escravidão.
44
Mais que a Sibila: mais anos que a Sibila de Cumas
25
Xerxes: rei da Pérsia (c. 5 1 9-465 a. C.) que invadiu a (cf. VII:73) .
Grécia por terra e por mar com um enorme exército.
45
Aquela: Isabella (cf. XIII:4 ss.).
26
Almas rebelaes: os anjos rebeldes, expulsos do Céu
46
com eterna infâmia. História [. . .} ouvido: cf. Xll:9 1 -92 e XIII:42.
27 47
Corso: pilhagem, pirataria. Muita [. . .} Rochelle: cf. XIII: 13 ss.
�
CANTO XXI
�
4 Disse eu dele que, só porque devia 7 Quando mais perto o cavaleiro se espelha
escoltá-la, tanto o peito se lhe oprime naquele rosco que odioso lhe era:
que, de raiva, nada a ela dizia; - Para combater comigo te aparelha
taciturnos vão, sem que algo os anime; (gritou em voz ameaçadora e fera),
e disse eu que o silêncio interrompia, ou abandona a defesa da velha
quando o Sol de seu carro o mundo exime 1 , para a morte ter que merece, a megera.
um cavaleiro aventureiro e errante Se por ela combates, serás morto,
que no caminho lhes surgiu diante. como acontece a quem se agarra ao corto. -
5 A velha conheceu o cavaleiro, s Zerbin com cortesia lhe responde
que se chamava Ermonide de Holanda, que seu desejo é de má e vil sorte,
e por insígnia no escudo trigueiro que il c:>valari::i não corresponde
tem, atravessada, uma rubra banda; procurar dar a uma mulher a morte:
depõe o orgulho e o semblante altaneiro, mas, se quiser combater, não se esconde;
e, humilde, a Zerbin protecção demanda, mas primeiro considere o que importe
recordando-lhe quanto prometeu que um cavaleiro como ele é, gentil,
à guerreira que nas mãos lhe a meteu. queira as mãos pôr em sangue feminil.
6 Pois seu inimigo e de sua gente 9 Estas e mais palavras disse em vão,
era o guerreiro que ao encontro vinha: e por fim foram a vias de facto.
tinha-lhe matado o pai inocente, Depois de entre eles porem muito chão,
e o único irmão que no mundo tinha; a toda a brida correm de imediato.
e fazer o mesmo ao remanescente Lestos não saem foguetes da mão,
que aos outros fez o traidor acarinha. que aos dias alegres dão aparato,
- Enquanto teu guarda eu permanecer como foram os cavalos ligeiros
(diz Zerbin), nada receies, mulher. - a levar ao embate os cavaleiros.
10 Ermonide de Holanda apontou baixo,
e trespassar-lhe o destro flanco esperou;
mas a sua fraca lança foi-se abaixo,
e o cavaleiro escocês pouco magoou.
Já o outro golpe não foi tão relaxo:
rompeu o escudo e a espádua lhe apanhou,
trespassando-lha de um ao outro lado,
e fez Ermonide tombar no prado.
11 Zerbino, convencido que o matara,
cheio de piedade chegou-se-lhe perto
e o elmo tirou da pálida cara;
e o outro, como do sono desperto,
sem palavra dizer Zerbino encara;
e depois disse: - Não me desconcerto
por me abateres, pois mostram teus semblantes
seres tu a flor dos cavaleiros errantes;
12 o que me custa é que isto por questão
duma pérfida velha sobrevém,
da qual é estranho que sejas campeão;
coisa que ao teu valor nada convém.
, E se tu conhecesses a razão
que para vingar-me dela me sustém,
ao recordares isco terias afano
por me teres, para a defender, feito dano.
CANTO XXI 345
19 Escolheu o mal que achou menos molesto: 25 E, como bem conhecia o local,
deixar de Argeo a amizade conspícua; para o encontrar fez pouca digressão;
tão longe ir que não fosse manifesto que o meu irmão, sofrendo do seu mal,
seu nome nunca mais a esta iníqua. lento caminhava sem suspeição;
Sendo embora duro, era mais honesto abreviando: num lugar casual,
que satisfazer-lhe a vontade oblíqua, para dele se vingar lhe deitou a mão.
ou que acusar a mulher ao senhor, Não tem meu irmão desculpa que valha,
que tinha o coração pleno de amor. e Argeo por força quer com ele batalha.
20 De suas feridas inda padecente, 26 Um estava são e a ferver de desdém;
as armas veste e do castelo parte; enfermo o outro, e vendo nele o amigo;
no ânimo tem firme e bem assente pouca defesa assim meu irmão tem
nunca mais regressar àquela parte. do companheiro tornado inimigo.
De que vale? De defender-se impotente Filandro, a quem tal sorte não convém
o torna Fortuna com nova arte: (é do infeliz jovem que te digo:
eis que o marido regressa entretanto, tal se chamava), não sustendo o peso
encontrando a mulher desfeita em pranto, de tão fera batalha, ficou preso.
21 despenteada e com a face rubra; 27 «Permita Deus não me conduza a tal
pergunta-lhe com o que está perturbada. meu justo furor e teu desacerto
Primeiro que ela a resposta descubra, (disse-lhe Argeo), que a ti dê fim mortal,
mais que uma vez por ele se faz instada, pois que te amava; e tu a mim decerto,
e como possa, entretanto lucubra, embora acabes de o demonstrar mal;
vingar-se por ter sido repudiada: mas quero a todos pôr a descoberto
com a índole volúvel que ela tem, que, tal como o fui no tempo do amor,
depressa transforma amor em desdém. também no ódio sou que tu melhor.
22 «Por que (enfim disse) o erro não difundo 28 Doutro modo punirei teu resvalo,
que cometi, senhor, na tua ausência? sem minhas mãos mais no teu sangue pôr».
Pois, mesmo que o esconda de todo o mundo, Tal dizendo, mandou sobre o cavalo
esconder não posso da minha consciência. com verdes ramos um leito compor,
Sentindo a alma seu pecado imundo, e quase morto nele transportá-lo
sofre dentro de si tal penitência para o castelo e numa torre o depor,
que os outros corporais martírios passa6, onde o inocente, como punição,
que possam vir-me de outro erro que eu faça; condenou a perpétua reclusão.
23 se é que erro é o que à força se faz: 29 Sem que porém mais nada lhe faltasse
seja como for, a língua destranco; que a liberdade, que assim viu tolher;
depois com a espada tu separarás pois no resto, como se solto andasse,
do imundo corpo o esprito puro e branco, mandava e fazia-se obedecer.
e minha luz para sempre apagarás; Mas inda não perdera esta rapace
ao menos que, após tão infame tranco, vontade da ideia satisfazer,
andar com os olhos baixos não se imponha, e quase diariamente à prisão vinha;
por de todos que eu veja ter vergonha. à vontade a abria, pois chaves tinha;
24 Minha honra teu companheiro destruiu: 30 e ao meu irmão assaltos sempre dava,
este meu corpo pela força violou; e cada vez com maior ousadia.
temendo que eu te contasse fugiu «Tal lealdade em que te desagrava,
o vilão; sem adeus se retirou». se por perfídia é tida (lhe dizia)?
Assim falando a odiar o induziu Que gloriosos triunfos te alinhava?
aquele a quem mais que outro ele estimou. Que ricos despojos, que tomadia?
Argeo acreditou e, sem tardança, Grande mérito daí te resulta,
as armas leva e corre para a vingança. se, como a traidor, cada um te insulta!
CANTO XXI 347
31 Com quanto proveito e com quanto honor 34 Assim frequentemente a dama insiste
me terias dado o que de ti quis! em tentar Filandro, sem ter proveito.
Desse teu tão obstinado rigor Mas no cego desejo, que persiste
recebes agora os prémios hostis: em ter do celerado amor efeito,
na prisão estás, e não sais para o exterior, mais fundo do que as saias não desiste
se primeiro não dobrares a tua cerviz. de seus vícios esgravatar a preceito.
Se me satisfizeres, farei uma trama Pensamentos faz de toda a maneira,
para reconquistares liberdade e fama». até num deles fixar a craveira.
32 «Tuas esperanças (disse-lhe ele) contém 35 Esteve seis meses que não pôs o pé,
de que possa mudar a minha fé, como fazia antes, na prisão;
embora eu veja que daí me advém o infeliz Filandro espera e tem fé
injustamente tão dura mercê, que a mulher já não lhe tenha afeição.
e que o mundo de mim não pensa bem; Mas a Fortuna, que do mal é ré,
basta-me que ante aquele que tudo vê a esta perversa deu ocasião
e me poderá dar a eterna graça, de a fim levar, com memorável mal,
a minha inocência clara se faça. o seu cego apetite irracional.
33 Se não basta que Argeo preso me tenha, 36 Velha inimizade tinha o marido
que me prive da dolorosa vida. com um barão, dito Morando, o belo,
Talvez no Céu o prémio até mim venha que em ausência de Argeo era atrevido,
da minha acção, aqui cão aborrida. e chegava a penetrar no castelo;
Talvez ele, que por culpa me desdenha, estando Argeo, daí tirava o sentido,
quando minha alma daqui for partida, nem a dez milhas punha o tornozelo.
depois se aperceba que me fez torto Para fazer com que ele ali apareça,
e chore o fiel companheiro morto». diz que a Jerusalém vai em promessa.
348 ORLANDO FURIOSO
37 Disse que ia e ao partir faz que bem 43 Promessa fiz, embora não para dar
. .
o veJam, e sua viagem anuncia:
. (feito por medo, nulo é o contrato);
sua ideia, além da mulher, ninguém foi minha intenção apenas vedar
pode saber, pois só nela confia. que ali o fizesse em forçado acto.
Volta ao castelo quando o escuro vem, Facto é: só tu podes malograr
e a coberto da noite ali se enfia; que minha honra entregue ao desbarato
com outras insígnias7, ao vir da aurora, e a do meu Argeo, que de igual jeito
sem que ninguém o veja sai para fora. disseste ter, ou mais que a tua, a peito.
38 Vai por aqui e por ali errando, 44 E se isto me negares, direi então
e o seu castelo volteando em torno, que não és tão leal quanto apregoas;
para ver se, estando crédulo, Morando que só por maldade disseste não
fizesse, como usava, ali retorno. a minhas súplicas e me magoas,
Passava o dia na floresta,- e, quando e não por respeitar Argeo, razão
no mar via cair do Sol o adorno, pela qual me disseste o não atraiçoas.
voltava ao castelo, e por escusa entrada Ficaria entre nós a coisa oculta;
o recebia a esposa simulada. mas com este, aberta infâmia resulta».
39 Todos crêem, excepto a mulher infiel, 45 Dispensável (disse Filandro) é tal
que muitas milhas Argeo está distante. prólogo, pois por Argeo estou disposto.
Ela aproveita da ausência dele Diz-me aquilo que entenderes, que eu tal
e ao meu irmão vai de novo insinuante. sempre fui, sempre ser tenho proposto;
De lágrimas fingidas a granel, embora daí me resulte mal,
dos olhos ao seio vem uma vazante. a culpa disso não lhe tenho posto.
<<Onde posso (dizia) achar ajuda, Por ele estou pronto a ir até à morte,
que a preservar minha honra me acuda? contra mim esteja o mundo e a minha sorte».
40 Com a minha, a honra de meu marido, 46 Responde a ímpia: «Que à tua mão tenha
pois se ele aqui estivesse eu não temia. morte o que nossa desonra procura.
Tu conheces Morando, e se impedido Não temas que algum mal daí te venha,
por homem ou deus, sem Argeo, seria. pois eu mostrar-te-ei a via segura.
Pede e ameaça desinsofrido, A mim ele volta quando sobrevenha,
e todos os servos ele agracia na hora terceira8 , a noite mais escura;
para ao seu desejo poder subjugar-me; fará sinal como foi instruído,
não sei se serei capaz de esquivar-me. e eu meto-o cá dentro sem ser sentido.
41 Sabendo que não está cá meu consorte, 47 Não te importarás de primeiro o esperar
e que no regressar não será lesto, na minha câmara, onde não luza,
atreveu-se a entrar na minha corte até que as armas o faça tirar
sem ter desculpa e sem outro pretexto; e quase nu à tua mão o conduza».
se cá estivesse o meu senhor por sorte, Julgo que assim ia a mulher levar
não só não teria o audacioso gesto, o seu marido à armadilha abstrusa;
como nem se sentiria seguro se mulher por direito esta se chama:
de chegar-se a três milhas deste muro. mais que Fúria infernal o mal derrama.
42 Do que por mensageiro tem tentado 48 Quando essa maldita noite caiu,
fez-me ele hoje pedido cara a cara, armado deixou sair meu irmão;
e com tais modos que perigo elevado na escura câmara o introduziu,
corri de desonra e vergonha amara; até que regressasse o castelão.
se com voz doce não tenho falado, Como ela preparou, tudo surdiu,
igual vontade aparentando clara, que o desejo do mal raro é em vão.
teria à força ali cobrado o audaz Assim Filandro o bom Argeo golpeou,
o que espera, disse-lhe eu, ter em paz. pois que ele era o tal Morando pensou.
CANTO XXI 349
49 Com esse golpe abriu cabeça e colo, 53 Como o navio no alto-mar à toa,
não tendo ele sequer do elmo amparo. por dois ventos batido e dominado,
Chegou Argeo assim, como um tijolo9, que um para diante o empurra, e o abalroa
de sua infeliz vida ao fim amaro; o outro, e por ele para trás é levado,
e o amigo o matou, sem pressupô-lo e tendo-o virado à popa e à proa,
nem tê-lo imaginado: oh caso raro! pelo mais potente enfim é empurrado;
Pensando ajudá-lo, fez ao amigo assim Filandro, entre uma e outra ideia,
o que se faz ao pior inimigo. veio a decidir-se pela menos feia.
50 Quando Argeo, não conhecido, abateu, 54 A razão demonstrou-lhe o risco grande,
meu irmão a Gabrina deu a espada. não só da morte, mas da infâmia dela 10,
Gabrina é o nome desta, que nasceu se pelo castelo o seu crime se expande,
para trair quem cruzar a sua estrada. e de tal pensamento se acautela.
Ela, que o vero até ali escondeu, Queira ou não queira, convém-lhe que mande
ora quer que Filandro se persuada, o amaríssimo cálice pela goela.
com luz na mão, quem foi que assassinou: Por fim, no seu coração angustiado,
e o seu companheiro Argeo lhe mostrou. foi que a firmeza o medo mais pesado.
5 1 Depois ameaça-o que, se não consente 55 O temor do suplício infame e bruto
seu longo desejo satisfazer, fez que prometesse, com mil esconjuros,
tornará claro a toda aquela gente que a Gabrina dava total desfruto,
o que fez, sem poder contradizer; se daquele lugar partissem seguros.
e fá-lo-á ignominiosamente Assim por força teve a ímpia o fruto
como traidor e assassino morrer; desejado, e deixaram esses muros.
e lembra-lhe que desprezar a fama E Filandro regressou à Holanda,
não deve, mesmo se a vida pouco ama. deixando na Grécia infâmia nefanda.
52 Cheio de medo e de desgosto ficou 56 Levou seu companheiro no coração,
Filandro, ao perceber sua vil acção. o qual matara por vontade alheia,
Com o primeiro furor pouco faltou para contrariado dar satisfação
para matar esta, e teve hesitação; a uma Procne cruel, a uma Medeia u .
mas em casa do inimigo se achou Se a lealdade ao juramento não
e isso o deteve (valeu-lhe a razão); o houvesse amarrado com dura peia,
senão, outra arma não tendo disposta, quando em liberdade morto a teria;
com os dentes a rasgava, posta a posta. mas tenaz ódio por ela sentia.
57 Nunca mais desde aí a rir foi visto:
só lúgubres palavras pronunciava,
e do peito o suspiro era previsto;
a um novo Orestes se assemelhava,
depois que a mãe matou e o ímpio Egisto,
e as vingadoras Fúrias aturava 12 •
E, sem mais cessar, tanto o afligiu
este desgosto que enfermo caiu.
58 Esta meretriz, que medita e pensa
quão pouco pelo seu segundo é estimada,
muda a chama que foi de amor intensa
em ódio, ira e raiva desenfreada;
menos sanha a meu irmão não dispensa
que por Argeo nutria, a celerada;
e decide para si tirar do mundo,
como o primeiro marido, este segundo.
350 O RLAN D O FURIOSO
59 Um médico encontrou, de astúcias pleno, 61 a mão lhe tomou quando ele já lhe dava
apto e instruído para o seu intento, a taça com o veneno disfarçado:
mais competente a matar com veneno «Teu desagrado (disse) injusto achava,
que ao doente dar com xarope alento; se temo por quem tenho tanto amado.
prometeu-lhe soldo bem mais ameno Quero estar certa que bebida prava
do que ele pediu, depois que a seu contento lhe não darás, nem suco envenenado;
tivesse, com seu mortífero licor, não deixo que lhe dês a beberagem,
feito desaparecer o seu senhor. se de prová-la não tiveres coragem».
60 Comigo e outra gente em reunião, 62 Como pensas, senhor, que se sentiu
chegou com o veneno o velho injusto, o ruim velho alarmado em tal hora?
dizendo que era uma boa poção A brevidade do tempo o oprimiu,
para pôr de novo o meu irmão robusto. e pensar não pôde o que melhor fora;
Mas Gabrina teve nova intenção; para suspeitas não causar, decidiu
para que o enfermo o não tomasse a custo, o cálice à boca pôr sem demora:
ou se livrar do cúmplice bandido, e o enfermo ganhou tal confiança
ou não dar-lhe o que tinha prometido, que todo o resto bebeu sem tardança.
63 Como o falcão que tendo na gadanha
a perdiz, para a comer já preparado,
pelo cão que julgava fiel campanha
gulosamente se vê espoliado;
tal o médico, que com o mal ganha,
donde esperava ajuda é contrariado.
Notai de suma audácia o exemplo raro!
Que tal suceda a qualquer outro avaro!
64 Feita a acção, já o velho regressa
à rua para casa querendo ir ligeiro,
para tomar qualquer remédio depressa
que o salvasse do veneno certeiro;
mas Gabrina a isso se mostra avessa,
e diz-lhe que não vai dali primeiro
que no estômago o suco já digesto
faça ver seu efeito manifesto.
CANTO XXI 35 1
65 Não vale pedido ou promessa de oferta, 66 e seguiu com sua alma aquela que era
que a faça deixá-lo dali partir. de meu irmão e já partira adiante.
Desesperado ele, porque vê certa Nós circunstantes, que a coisa sincera
a morte sem dela poder fugir, antes ouvimos do executante,
aos presentes a trama torna aberta; agarrámos esta execrável fera,
nem esta foi capaz de a encobrir. mais cruel que da selva o habitante;
E assim o que fez aos outros a esmo, em lugar tétrico a cerrámos logo,
o bom médico ao fim fez a si mesmo: para a condenarmos ao merecido fogo. -
352 ORLANDO FURIOSO
67 Tal disse Ermonide, e inda mais queria 10 Não demorou que Zerbino partisse,
contar, como ela da prisão escapou; pois prometeu que com ela viaje;
mas a ferida tanta dor produzia para si mesmo todo o dia a maldisse,
que pálido na erva se encostou. que o fez fazer àquele barão ultraje.
O par de escudeiros que ele trazia E ora que tanto mal dela lhe disse
com ramos um leito lhe fabricou: quem conhece, e sabe como ela age,
nela Ermonide se deixou deitar, se antes lhe dava enfado e desprazer,
pois só assim dali pode abalar. tanto a odeia que a não pode ver.
68 Com o cavaleiro Zerbino se escusa: 71 Sabendo ela Zerbino de ódio pleno,
lamenta tê-lo ferido com dureza; não querendo que lhe ganhe, o mal requinta;
mas que, como entre cavaleiros se usa, nem um nico o seu ódio é mais pequeno:
da que trazia fazia a defesa; recebe em quarta, retribui em quinta 13 •
doutro modo sua fé seria abstrusa, Tem inchado o coração de veneno,
pois, desde que à sua guarda estava presa, mas o rosto, com outras cores o pinta.
prometeu com sua força salvá-la E assim, nesta concórdia que vos digo,
de todos que viessem perturbá-la. seguiam caminho pelo bosque antigo.
69 E se algum favor podia prestar-lhe, n Quando do dia já o fim se espera,
estava à sua inteira disposição. eis que gritos e estrépito se ouvia,
Respondeu o outro querer recordar-lhe dando sinais duma batalha fera
que faça da velha separação, que a julgar pelo rumor perto seria.
antes que algo ela possa maquinar-lhe Zerbino, para observar o que era,
de que se doa e arrependa em vão. direito ao rumor à pressa se avia;
Gabrina em baixo teve a vista posta, não foi lenta Gabrina a imitá-lo.
pois à verdade não se dá resposta. Do que ocorreu no outro canto falo.
NOTAS
�
1
Quando [ . .] exime: ao entardecer, quando o carro do 7 Com [ . .] insí ias: para não ser reconhecido.
gn
Sol se afasta.
8
Hora terceira: três horas após o crepúsculo.
2
Heraclio: anacronismo de Ariosto; Heraclio I foi
9
imperador de Constantinopla mais de um século antes Como um tijolo: sem esboçar um movimento.
de Carlos Magno.
1 0 Da infâmia dela: da morte aviltante que lhe dariam
3
Arrastando-as: arrastando as folhas. no castelo, sabendo-o assassino do seu senhor.
4 Acrocerá unios: cadeia montanhosa do Epiro, que se 11
Procne [...] Medeia: modelos de cruddade (cf. nota a III:52).
prolonga no mar em perigosos escolhos (maUito nome).
12 Novo Orestes [ . .] aturava: Orestes, por ter matado a
5 Pinho [ . .] come: o pinheiro que já mudou de folhas mãe, Clitemnestra, e o amante desta, Egisto, era perse
mais de cem vezes e tem tanto em altura como em pro guido pelas Fúrias, deusas violentas cuja função era vin
fundidade de raízes (centenário e resistente). gar o crime contra a própria família.
6
Passa: excede. 13 Quarta [ . .] q u inta: alusão às linhas altas ou paradas
da esgrima.
-ê:1$
CANTO XXII
�
2 Ela era assim; como os meus padroeiras' 4 Entre dois montes foi por um canal
me impõem, não preterirei o vero. donde o grito vinha, pouco adiante,
Lá por isso não escondo os verdadeiros tendo chegado onde, em fechado vale,
honores de quem tem coração sincero. um cavaleiro morto achou diante.
Esse que o Mestre por trinta dinheiros Direi quem é; mas de França total
aos judeus deu, não lesou lanni ou Piero2 ; ausência antes faço, e vou para o Levante
nem de Hipermestra a fama é menos sã3 , à procura de Astolfo, o paladino
sendo, embora, das iníquas irmã. que para o Poente tomara destino.
3 Por uma que canto com desapreço Deixei-o eu na cidade cruel
(a ordem da história assim o requer), onde, com o som do formidável corno,
compensando, para cem louvar me ofereço, tinha feito fugir o povo infiel
sua virtude, qual Sol, dando a ver. e grande perigo eliminar em torno,
Mas, voltando ao lavor vário que teço, e içar velas os amigos dele,
que a muitos, grato sou, sói dar prazer, dali fugidos em grande transtorno.
do cavaleiro da Escócia eu dizia Voltando a ele, digo se encaminhou
que, perto, um alto grito ouvido havia. para a Arménia e aquele país deixou.
6 Na Anatólia ficou mais que um dia,
e para Bursa4 seu caminho seguiu;
dali, continuando na sua via,
passado o mar, para a Trácia prosseguiu5 •
Ao rés do Danúbio andou pela Hungria;
seu corcel, qual volátil fugidio,
Morávios, Boémios passou em pleno
em vinte dias, Francónia6 e o Reno.
7
7 Pela selva das Ardenas, a Aquisgrana
8
chegou e Brabante ; em Flandres embarca.
A brisa, que para ocidente emana,
a vela de tal modo à proa abarca
que ao meio-dia a Inglaterra insulana
Astolfo vê; no lido desembarca.
Monta a cavalo, o qual tanto esporeia
que em Londres nessa tarde inda se apeia.
s Do velho Otone9 ali ouviu menção
que há já vários meses em Paris está,
e praticamente todo o barão
ao seu nobre exemplo imitação dá;
de ir para França tomando a decisão,
regressa ao porto do Tamisa já,
onde as velas para zarpar afeiçoa,
direccionando para Calais a proa.
9 À proa soprava um leve ventinho
que o lenho tinha encaminhado ao mar;
cresce pouco a pouco o vento marinho,
tanto que ao barqueiro vem a sobrar.
Por fim ao vento à popa dá alinho,
senão contra a costa os há-de atirar.
O navio pelo canal vai ao comprido,
tendo o caminho inicial diferido.
CANTO XXII 355
10 Ora corre à destra, ora à canha mão, 12 Ainda a água a boca não encalça,
para aqui, para ali, para onde o vento o impinge, quando um aldeão ali perto escondido
e à terra vai por fim junto a Ruão 1º; sai duma moita, ao corcel solta a alça,
e, tão depressa a suave costa atinge, monta dum salto e parte desabrido.
a Rabicano manda pôr o arção, Astolfo ouve o ruído e o rosto alça,
e todo se arma e a sua espada cinge. e, vendo o seu dano tão esclarecido,
Faz-se ao caminho, e tem consigo o corno deixa a fonte, saciado sem beber,
que vale mais que mil homens em torno. e atrás lhe vai correndo a bom correr.
11 E chegou, através duma floresta, 13 O ladro não usou todo o recurso,
junto a uma colina a uma clara fonte, senão desaparecido teria logo;
na hora em que o rebanho dorme a sesta ora abrandando, ora apressando o curso,
no seu curral, ou sob um cavo monte. do galope e do trote faz o jogo.
Pelo grande calor e sede molesta Saem do bosque após longo percurso;
vencido, o elmo retirou da fronte; e um e outro ao fim vai ter desafogo
prendeu o corcel às mais bastas frondas, no sítio onde tantos nobres barões
e depois foi beber nas frescas ondas. prisioneiros eram sem ter prisões 1 1 •
356 ORLANDO FURIOSO
35 Ruggier, que tomaria não somente 41 Fugi eu de lá para não ter de ver
a religião cristã por amor desta, tal crueldade: vivo o queimarão;
tal qual a tem seu pai, e antigamente nem modo me podia mais doer,
teve o avô e toda a estirpe honesta, de a tão belo jovem dar destruição;
mas, para lhe agradar, imediatamente nem poderei jamais sentir prazer,
daria a própria vida que lhe resta: que logo não se torne em aflição,
- Não só na água (diz), até no fogo, por recordar-me da chama cruel
a cabeça por ti poria logo. - que haja queimado os belos membros dele. -
36 Para se baptizar e depois por esposa 42 Bradamante ouve e parece que trema
ter a dama, Ruggiero fez-se à via, com tal história, que muito a entristece;
guiando Bradamante a Vallombrosa 17 dá a ver que por ele não menos tema
(assim foi chamada aquela abadia que se um seu irmão no lugar estivesse.
rica e bela, e não menos religiosa, Nem sem razão ela tinha tão extrema
e amável para quem ali aparecia); apreensão, como após aparece 18 •
encontraram, ao sair da floresta, Disse a Ruggiero: - Parece se preste
uma dama no rosto muito mesta. para usar nossas armas em favor deste. -
37 Ruggiero que humano e cortês nasceu 43 E diz à dama chorosa: - Eu te exorto
para todos, mas para as damas com mais gosto, a ver se nos muros temos entrada;
quando das lágrimas se apercebeu que se o jovem não estiver inda morto,
que regavam o delicado rosto, não hão-de matá-lo, está descansada. -
teve piedade e de desejo ardeu Ruggiero, vendo de piedade absorto
de conhecer seu mal, e a tal disposto, o peito da dama preocupada,
após saudação cortês perguntou-lhe sentiu todo inflamar-se do desejo
por que tanto pranto o seu rosto molhe. de o jovem da morte não ter ensejo.
38 E ela, erguendo os belos olhos chorosos, 44 E àquela dama a quem de pranto o viso
humanissimamente respondeu, coberto está, disse: - Mas o que esperamos?
e o motivo de seus apuros penosos, Aqui, socorro e não choro é preciso:
já que lhe perguntou, não lhe escondeu. faz com que onde ele está nós nos metamos.
- Gentil senhor (disse), tão lacrimosos De mil lanças e espadas, de improviso
olhos e rosto como vês tenho eu, entrando, te prometo que o salvamos;
pois grande dor por um jovem suporto, mas estuga bem o passo, para que tarda
que hoje num castelo aqui perto é morto. não chegue a ajuda e entretanto ele arda. -
39 Amando uma gentil jovem e bela, 45 A nobre fala e a determinança,
que de Marsilio, rei de Espanha, é filha, daquele par de audácia destemida,
sob um véu branco e feminil farpela, foram capazes de dar força à esperança,
aos olhos e à voz dando mascarilha, onde ela já estava toda perdida;
todas as noites dormia com ela, mas porque a dama, mais do que a andança,
sem a família de tal ter partilha; temia encontrar a via impedida,
mas ninguém ser tão secreto consegue assim a tendo percorrido em vão,
sem que, com tempo, a vê-lo alguém não chegue. indecisa ali estava em suspensão.
40 Apercebeu-se um, e deu conta a dois; 46 Depois disse: - Tomando nós a via
os dois a outro, e ao rei conto foi feito. que vai direita e plana àquele lugar,
Um fiel do rei dois dias depois, creio que a tempo lá se chegaria,
os amantes faz apanhar no leito; antes que a fogueira fossem atear;
o qual na fortaleza os fechou, pois outra é bom tomar, torta e arredia,
cada um a prisão ficou sujeito; e o tempo de um dia não vai bastar
creio que antes deste dia acabado para lá chegar; e quando chegaremos,
o jovem de dor morre, torturado. temo que o jovem já morto encontremos. -
360 ORLANDO FURIOSO
47 - E por que não iremos pelo mais belo? 53 Pinabel, com semblante assaz cortês,
(disse Ruggiero) - E a dama respondeu: no castelo que eu disse os acolheu.
- Pois dos condes de Ponthieu 19 um castelo No leito à noite surpresa lhes fez
nessa via está, no qual estabeleceu e deu prisão; e não os desprendeu
um ímpio costume que é um flagelo, sem os fazer jurar que um ano e um mês
que a cavaleiros e damas azar deu (foi este o prazo preciso que deu)
Pinabello, o pior homem que viva, ali estariam, para pilhar prestantes
filho do conde Anselmo d'Altariva20 • os que aparecessem, cavaleiros errantes;
48 Por tal, nem cavaleiro nem dama passa, 54 e as donzelas que viessem com eles
que não haja a sofrer injúria e danos: a pé deixariam e sem roupagem.
apeados ficam ambos; desembaraça Jurar;itn e ora é obrigação deles
de armas o guerreiro, a dama dos panos. cumprir, inda se contrariados agem.
Melhor cavaleiro lança não sobraça, Não consta até aqui que contra aqueles
nem sobraçou em França há muitos anos, alguém tenha lutado com vantagem:
que quatro que juraram no castelo e já ali passaram infinitos,
em vigor ter a lei de Pinabello. a quem tais castigos foram prescritos.
49 Como a usança (que só é profíqua 55 Está estabelecido que aquele que à sorte
há três dias) começou, vou narrar; primeiro sai, só ele vai batalhando;
e vereis se foi direita ou oblíqua mas se encontrar inimigo tão forte
razão que os cavaleiros fez jurar. que o atire ao chão, na sela ficando,
De Pinabel a dama é tão iníqua, os outros a seguir até à morte
tão bestial que no mundo não tem par; a liça são obrigados, em bando.
que indo com ele, não sei por onde, um dia, Vê tu, sendo tão bom cada barão,
de um cavaleiro sofreu zombaria. o que deve ser quando juntos estão.
50 O cavaleiro21 foi por ela mofado, 56 Sendo do tempo a duração angusta,
por uma velha que levava atrás; não podemos ter empate ou demora
justou com Pinabel, que era dotado para que vós combatais naquela justa;
de pouca força e em soberba audaz; creio teríeis vitória sonora,
venceu-o e fê-lo desmontar no prado, pois vossa presença a cal bem se ajusta,
e viu se ela era coxa ou eficaz: mas a coisa não se faz numa hora:
apeada a deixou; fez que a saia dela e grande perigo há que o jovem arda,
passasse a vestir a velha donzela. se a socorrê-lo este dia se tarda. -
51 A que ficou a pé tão desgostosa, 57 Disse Ruggier: - De nós não há protesto:
de vingança sedenta e furibunda, façamos o dever da nossa parte;
unida a Pinabel que aquela irosa, quem no Céu está se encarregue do resto,
sendo para mal fazer, sempre secunda, ou a Fortuna, caso Ele se descarte.
nem de noite nem de dia repousa, Com esta justa verás manifesto
e diz jamais se sentirá jucunda, se para salvar o jovem temos arte,
se mil guerreiros e damas de alimária que por razão tão débil e tão leve,
não privar, e de armas e indumentária. como disseste, hoje queimar se deve. -
52 No primeiro dia a sorte lhe trouxera 58 Sem mais resposta lhe dar, a donzela
quatro bons cavaleiros à moradia; logo à mais curta via se transporta.
de remotas terras o grupo viera, Mais de três milhas não foram por ela,
chegado a estas partes pouco havia; e na ponte se encontraram e à porca
de tal valor, que não há nesta era onde se perdem armas e farpela,
outros tão bons para a guerreira porfia: e salvar a vida risco comporta.
Aquilante, Grifone e Sansonetto, Mal lá chegam, da torre desemboca
e um tal Guidon Selvaggio, mui faceto22 • alguém que o sino duas vezes coca.
362 ORLANDO FURIOSO
77 A cruel meretriz, que fez o acto 83 Tirando estas três vezes, todo o resto
de impor aquela usança e de observá-la, o teve sob um véu aconchegado;
o juramento lhes recorda e o pacto mas a descobri-lo seria presto,
que com ela fizeram, de vingá-la. se de ajuda fosse necessitado.
- Se só com esta lança eu os abato, Neste combate dele tinha apresto,
por que com outras queres acompanhá-la? como eu já vos disse, e tão animado
(dizia Guidon): e, se acaso minto, que os três cavaleiros que adiante via
corta-me a cabeça e alegre me sinto. - como a três criancinhas os temia.
78 Tal dizia Grifone e Aquilante. 84 Ruggier Grifon golpeia, onde a borda
Lutar sol a sol voto era .:omum, do escudo fica da vista à altura.
e de prisão ou morte ter garante, Para um e outro lado ele transborda,
em vez de contra um só lutar mais que um. e longe do cavalo se desmura.
Dizia-lhes ela: - Para quê constante Grifon o escudo com a lança aborda,
discurso fazeis sem proveito algum? mas de través, não a direito, fura:
Para a ele tirar as armas aqui estais, e, como era liso e bem amaciado,
não para que outra lei ou pacto façais. resvalou e fez efeito trocado29 •
79 Quando presos vos tinha era de dar-mas, 85 Rompeu o véu e rasgou, que cobria
essas desculpas; não ora, já tardas. o assustador e encantado clarão,
Vossas conversas vãs deveis poupar-mas, perante o qual por força se caía
cumprir minhas ordens sem atoardas. - com olhos cegos, sem ter salvação.
Ruggier gritava: - Vejam estas armas, Aquilante, que a par do irmão seguia,
corcel com nova sela, novas bardas; rasgou o resto, e ao escudo deu função.
as vestes da dama vejam também; Os olhos dos irmãos feriu o brilho,
se vós as quereis, o que inda vos retém? - e de Guidon que lhes ia no trilho.
80 Pela dama do castelo pressionados, 86 Para aqui, para ali, todos caem por terra;
doutro lado Ruggier que os apeçonha, o escudo não só olhos atrapalha,
acabam por sentir-se estimulados, que os outros sentidos também emperra.
mas inflamado o rosto de vergonha. Ruggier o efeito não viu da batalha30 ;
Os dois filhos adiante colocados vira o cavalo, e ao voltar-se aferra
vêm do nobre marquês de Borgonha26 ; sua espada que tão bem fere e talha,
Guidon, que tem mais pesado cavalo, mas não vê ninguém vir ao seu encontro;
atrás deles vem, com pouco intervalo. todos tombaram ao primeiro recontro:
81 Com aquela mesma hasta que havia 87 os cavaleiros e os outros que a pé
Sansonetto abatido, Ruggier vem, haviam saído, e as mulheres também;
a coberto do escudo que saía e cada cavalo em tal estado vê
nos Pirenéus Atlante ter também: que o estertor da morte, parece, tem.
falo do encantado, que esplendia Primeiro se espanta, depois entrevê
tanto que humana vista o não sustém; que o véu pendurado a seu lado vem:
a que Ruggier, como último recurso, digo, o véu de seda, no qual guardada
nas situações mais graves dava curso. soía a luz estar, do caso culpada.
82 Apenas três vezes foi imperioso, 88 Gira-se então, ao girar procurando
em grandes perigos, usar o seu lume: com o olhar a sua amada guerreira;
duas, quando do reino voluptuoso vai até onde ela ficara, quando
se mudou para mais louvável costume27 ; tinha começado a justa primeira.
a terça ao deixar o dente sequioso Julga que já foi (não a encontrando)
à orca do neptunino cardume, evitar que o tal jovem na fogueira,
que ia devorar a bela despida por falta de ajuda rápida, arda,
que ao salvador foi mal agradecida28 • enquanto ali a lutar se retarda.
CANTO XXII 365
89 Entre tantos que jazem vê a dama 93 O poço é fundo e até acima cheio;
(a dama que os tinha até lá guiado). pesado o escudo e a pedra que o susteve.
No seu corcel, aturdida, a acama, Só parou quando do fundo houve esteio;
e segue, cavalgando perturbado. fechou-se em cima o licor suave e leve.
Com o manto que o vestido recama O nobre gesto não ficou alheio
cobre depois o seu escudo encantado; à Fama errante, que o espalhou em breve;
e os sentidos sem demora lhe apura, seu eco divulgou, tocando o corno,
quando ao brilho adverso deu cobertura. por França e Espanha e províncias em torno.
90 Dali se vai Ruggier com face rubra 94 Quando de voz em voz se tornou esta
que, de vergonha, levantar não ousa; estranha aventura em todo o mundo nota,
crê não haver ninguém que não descubra muitos guerreiros foram em requesta,
que teve vitória pouco gloriosa. de terra vizinha e parte remota;
- Que emenda poderei fazer, que encubra mas não sabiam qual era a floresta
uma culpa de tal modo oprobriosa? onde em água o escudo deu cambalhota;
Que tudo o que venci foi por favor pois a mulher que divulgou a acção
de encantos, dirão, não pelo meu valor. - não indicou nem poço nem região.
91 Enquanto em seus pensamentos deriva, 95 Depois de Ruggier partir do castelo
por acaso acha aquilo que procura; onde vencera com pouca batalha,
na estrada a aproximar-se não se esquiva tendo os quatro campeões de Pinabello
dum poço que ali está de grande altura. deixado ficar como homens de palha,
Pérto um rebanho, na quente hora estiva dali levou com o escudo o flagelo
repousa, pois comera com fartura. da luz que olhos e espírito embaralha;
Disse Ruggier: - Preciso é que te ponha, e os que como mortos estavam caídos,
ó escudo, onde não me dês mais vergonha. do sono acordaram surpreendidos.
92 Não vou mais andar em tal companhia; 96 Todo o dia um ao outro se interpela
mais vergonhas não vou passar no mundo. - acerca de tão estranho e raro caso,
Assim dizendo, desmonta na via: e como foi que cada um àquela
num pedregulho pega, bem rotundo, horrível luz ficara no chão raso.
amarra-o ao escudo, e aos dois envia Enquanto falam, nova se desvela
pelo alto poço até cair no fundo; que Pinabello atingiu seu ocaso;
e diz: - Deixa-te estar aí sepulto; de que ele morreu a notícia recebem,
contigo fique meu opróbrio oculto. - mas quem lhe deu a morte não percebem.
366 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 17
Padroeiros: talvez se refira ironicamente aos senhores Vallombrosa: nome talvez inspirado numa abadia
d'Esre, ou apenas à estrutura do poema. fundada na Toscana no séc. XII.
2 18
Esse [. . .] Piero: Judas, com o seu gesto traidor, não Como após aparece: como depois se verá.
manchou os apóstolos João ou Pedro ( lanni ou Piero) .
19
Ponthieu: cf. nora a III:24.
3
Hipermestra: a única das 50 filhas do rei Dánao que
20
não decapitou o marido (Linceu) na noite de núpcias, Altariva: Ariosro usa, em alternância, as formas
como o pai lhes ordenara que fizessem, por vingança. «Alraripa» e «Altariva». A tradução acompanha essa alter
nância.
4 Bursa: cidade turca da Ásia Menor, perto do mar de
21
Mármara. O cavaleiro: Marfisa (cf. XX: 1 1 0 ss.).
5 Passado [. .. } prosseguiu: atravessou o estreito de 22
Aquilante [. . .} faceto: cf. XX: 1 04- 1 05.
Dardanelos para o lado ocidental.
23 Filhos: dirige-se a Ruggiero e a Bradamante, toman
6
Francónia: região histórica da Alemanha, que acrual do esta por um cavaleiro.
mente faz parte da Baviera.
24
Passara [. .. } lançaria: cf. II:69 ss.
7
Aquisgrana: do 1arim Aquae Granni: Aix-la-Chapelle.
25
Dama de Dordonha: Bradamanre (cf. II:68).
8
Brabante: antigo ducado germânico; território hoje
26
partilhado pela Bélgica e Países Baixos. Marquês de Borgonha: Oliviero, pai de Grifone e
Aquilanre.
9 Otone: rei de Inglaterra, pai de Asrolfo.
27
Duas [. .. } costume: ao passar do reino v1c1oso de
10
Ruão: cidade francesa, na Normandia. Alcina para o virtuoso de Logisrilla, usou duas vezes o
brilho do escudo (cf. VIII: 1 0- 1 1 e X:50).
11
Prisioneiros [. .. } prisões: presos por encantamento no
palácio de Arlanre. 28 A bela [. . .} agradecida: Angelica, que se furtou aos
seus impulsos amorosos (cf. XI:7-8).
12
Mais [. .. } fustiga: Rabicano (o cavalo de Astolfo) é
29
mais veloz que o vento. Lança [. . .} trocado: a lança, em vez de produzir dano
a quem foi atacado, provocou-o ao atacante (ao pôr a
13 Ao qual [. . .} Terra: cf. X:66 ss. descoberto o escudo).
14 Primeiras flores: beijos (cf. VII:29). 30
Ruggier [. .. } batalha: não viu que, como efeito do
embate, a cobertura do escudo se rasgou e os adversários
15
Lutos: contrariedades. foram fulminados pelo brilho.
16
Últimos frutos: o prazer sensual coral.
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CANTO XXIII
�
28 Cada sua dama e cada donzela 34 Tinha jurado que o primeiro cavalo
consigo lesta, em lavor delicado, por força tinha, com que se cruzasse.
sobre seda nívea e escura modela Foi este o primeiro, e ele é um regalo:
fina bordadura com fio dourado, à sua medida o melhor que achasse;
com o qual ornamenta a brida e a sela mas julga infâmia à donzela tirá-lo;
do corcel; e chama uma de lado, contudo quer tê-lo, e está num impasse.
de Callitrefia, a ama, descendente, Mira-o, contempla-o, e diz com estupor:
de seus segredos fiel confidente. - Mas por que não está com o seu senhor? -
29 Como Ruggier no coração impresso 35 - Estivesse ele aqui! (respondeu-lhe Ippalca),
tinha, àquela contara com clareza; que mudavas de ideias te assevero.
a ela enaltecera com apreço Mais vale do que tu quem com ele encalca,
sua virtude, modos e beleza. no mundo outro não há como ele tão fero. -
Esta chamou e disse: - Não conheço - Quem é (disse-lhe o mouro) que assim calca
melhor mensageiro para esta empresa; o alheio honor? - Responde ela: - Ruggiero. -
que tu nem mais fiel nem mais sensato Ajunta ele: - Então quero o cavalo,
embaixador, Ippalca, há para tal acto. - que a Ruggier, bom campeão, vou tirá-lo.
30 Ippalca esta donzela se chamava. 36 Se verdade é poder-se creditar-lhe,
- Vai -, diz-lhe, e ensina-lhe onde deve ir; como dizes, tal força e tanta valha,
e informação completa lhe alinhava não só cavalo, a viagem a pagar-lhe
do que ao seu senhor tem a transmitir; estou pronto, e a seu arbítrio seja a talha 1 3 •
de não se apresentar se desculpava, Que Rodomonte eu sou, hás-de narrar-lhe,
no mosteiro: mas não foi por mentir; e se comigo quiser ter batalha,
a Fortuna, que sobre nós podia me achará; esteja onde estiver, reclama,
mais que nós mesmos, culpar-se devia. far-me-á aparecer a minha fama.
31 Fá-la montar num rocim, e, a mão, 37 Onde eu for, vestígio tão grande resta
com a brida de Frontin lhe guarnece; que o raio não deixa rasto maior. -
e se acaso algum tão louco ou vilão Falando assim, passara sobre a testa
encontrasse que tirar-lho quisesse, as douradas rédeas do corredor;
para de uma só palavra pô-lo são, salta-lhe em cima, e lacrimosa e roesta
de quem era o cavalo lhe dissesse; fica Ippalca, que levada pela dor
cavaleiro não havia tão fero Rodomonte ameaça e insulto arrima;
que não tremesse ao nome de Ruggiero. não a ouve ele e vai pelo monte acima.
32 Muitas coisas lhe recomenda ainda 38 Vai pela via que lhe indica o anão:
que trate com Ruggiero em sua vez; Mandricardo e Doralice achar quis;
as quais assim que Ippalca bem deslinda, Ippalca atrás vem, com separação,
sem mais demoras à via se fez. e praguejando vai sempre e o maldiz.
Por estrada, campo, escura selva infinda Do que seguiu, noutra parte há lição.
cavalgou ela milhas mais de dez; Turpino14, que toda esta história diz,
não encontrou quem desse desatino desvia-se, e à terra retorno faz
nem que quisesse saber seu destino. em que o de Mogúncia foi morto atrás 1 5 •
33 A meio do dia, no sopé de um monte, 39 Mal virara as costas àquele lugar
numa estreita e desajeitada via, a filha de Amon 16, que com pressa ia,
ao seu encontro vê vir Rodomonte; quando Zerbino foi ali parar,
com um anão armado a pé seguia 12 • tendo da falsa velha a companhia;
O mouro ergueu sua altaneira fronte, no vale o corpo morto foi achar
e praguejou à Eterna Herarquia, do cavaleiro, que desconhecia;
porque tão bom corcel, e bem ornado, e porque era cortês e mui piedoso
com cavaleiro, não tinha encontrado. tocou-o o caso atroz e doloroso.
CANTO XXIII 37 1
89 Doralice ao observar que o seu guia 95 Foge ele pela selva, e consigo transporta
deixa o campo, saindo-lhe de perto, a velha, cujo medo não tem cura,
de ali ficar sozinha não se fia, por vales, montes, via recta e torta,
e atrás dele ao seu rocim dá aperto. por fossos, penedias à aventura.
O pagão ao corcel, em gritaria, Falar mais desta agora não me importa,
com as mãos e os pés dá-lhe um enxerto; pois de Orlando prefiro ir à procura,
como se besta não fosse o ameaça: que na sua sela o que foi estragado
quer detê-lo, e inda mais o escorraça. bem acomodou, sem ser perturbado.
90 Como a besta era assustadiça e brava, 96 Voltou a montar, mas ali ficou
sem ver onde vai, corre de través. à espera que o sarraceno voltasse.
Correra três milhas, e outra encetava, Não o vendo aparecer, por fim pensou
se um fosso não topasse a dar revés; caber a si que o outro procurasse;
colchão ou coxim, no fundo não estava, mas o bom costume e uso imperou:
e os dois lá tombaram, para cima os pés. antes que o paladim se retirasse,
Mandricardo sofreu grande pancada, com amável falar, grato e cortês,
mas não moeu nem partiu a ossada. as despedidas dos amantes fez.
91 Aqui o corcel por fim se confina,
mas não se pode guiar: freio não tem.
Segurava-o o tártaro pela crina,
estando cheio de furor e .desdém.
Pensa, mas no que fazer não atina.
- Põe nele a brida do meu palafrém
(dizia a dama); o meu não se revolta,
ou esteja com o freio ou esteja à solta. -
92 Parecia ao pagão ser descortesia
de Doralice aceitar a oferta;
mas freio o fará ter, por outra via,
Fortuna, aos seus desejos muito aberta:
a celerada Gabrina lhe envia.
Depois que de Zerbin deu falso alerta,
fugia, qual loba que os caçadores
e os cães ouvia vir nos arredores.
93 Tinha ainda vestida a tal farpela,
e aqueles mesmos juvenis floreados
que haviam sido à trocista donzela
de Pinabel, para lhe vestir, tirados;
tinha também o palafrém daquela,
dos bons do mundo e dos avantajados.
Junto ao tártaro, nisto, a velha trava,
sem ter antes visco que ele ali estava.
94 De Stordilano30 a filha acometida,
e o tártaro, ante a veste, são pelo riso,
encarando a velha que é tão parecida
com babuíno ou macaco no viso.
O sarraceno quer tirar-lhe a brida
para o seu corcel, e fá-lo de improviso.
Tirado o freio, assusta o palafrém,
grita-lhe, ameaça, e nada o detém.
378 ORLANDO FURIOSO
109 e pedir a cada senhor amante, 115 Com tão escassa e tão infundada esperança,
cavaleiro ou dama que aqui conflua, o espírito anima com certo alor;
quer seja desta terra ou viandante, a Brigliadoro o ventre preme, e avança,
por vontade aqui vindo ou Sorte sua, já o Sol à irmã cede o andor.
que a ervas, sombras, rio e gruta cante: Avista adiante, na vizinhança,
benignos vos sejam o Sol e a Lua, dos tectos sair do fogo o vapor;
e das ninfas o coro não permita ouve cães ladrar e mugir o armento;
que o rebanho o pastor aqui admita. - alcança uma casa e alojamento.
1 10 Em árabe estava escrito, que o conde 116 Inerte desmonta, e dá Brigliadoro
percebia tão bem como latim; a um discreto moço, que o segura;
entre muitas línguas a que responde, outro as armas lhe tira, as esporas de ouro
presente tinha aquela o paladim; leva outro para polir, e a armadura.
evitou-lhe muita vez danos, onde Era esta a mesma casa onde Medoro
foi entre os Sarracenos andarim; ferido jazeu e achou sua ventura.
mas não se gabe se disso houve fruto; Deita-se Orlando, nem pensa em cear,
que ora um dano tem, que ao resto dá luto. de dor saciado e não de outro manjar.
111 Três vezes, quatro, seis leu o inscrito 1 17 Quanto mais procura ter quietação,
o infeliz, mas procurando em vão mais o perturba o tormento e a pena:
que ali não estivesse o que estava escrito; as paredes, da odiosa inscrição,
e cada vez via tudo mais chão, e cada porta e janela vê plena.
sentindo fria mão no peito aflito Quer perguntar; decide depois não;
apertar sempre mais o coração. teme que se torne coisa terrena
Ficou por fim com os olhos e a mente e clara, aquela que ele quer nebulosa,
fixos na pedra, dela não diferente. pois fosca será menos dolorosa.
112 Esteve para abandoná-lo o sentimento, 11s De pouco serve fingir-se enganado,
pois todo ao poder da dor está sujeito. pois, sem perguntar, alguém disso fala.
Crede em quem de tal já teve experimento: O pastor que ao vê-lo tão angustiado
como o maior sofrer este é eleito. com tanta tristeza, queria aliviá-la,
Cabeça baixa, privada de alento, a história de amor que havia contado
o queixo lhe tombara sobre o peito; desse par, a quem quisesse escutá-la,
nem encontrou (a dor o ocupou tanto) e que a muitos foi prazenteiro ouvir,
para se queixar voz, ou humor para o pranto. iniciou sem licença lhe pedir:
1 13 A impetuosa dor dentro se envasa, 119 como ante os rogos de Angelica bela
querendo sair com demasiada pressa. em sua casa Medoro alojou,
Assim uma vasilha de água rasa, que estava gravemente ferido; e que ela
que tem largo o ventre e estreita a cabeça, sua ferida em poucos dias sarou;
quando ao invés se vira não extravasa: e ele em seu peito uma maior que aquela
o líquido a sair tanto se apressa, ferida de Amor lhe fez; e lhe atiçou,
e na angusta saída engarrota, com pequena centelha, vivo fogo
que só a custo sai e gota a gota. que a consumia, sem ter desafogo;
114 Depois recompõe-se, porque lhe assome 120 E, sem se intimidar porque ela fosse
cogitar que não seja a coisa vera: filha do maior rei que há no Levante,
que alguém pretenda difamar o nome pelo muito amor levada sujeitou-se
de sua dama crê, deseja e espera; a tornar-se mulher dum pobre infante.
ou fazer que tão grave peso o tome A história do final aproximou-se,
do fero ciúme, que o dilacera; quando o pastor lhe pôs a jóia diante
e, quem quer que seja aqui haja estado, que à partida, pelo bom acolhimento,
muito bem tenha a mão dela imitado. Angelica lhe dera em pagamento.
CANTO XXIII 38 1
121 Esta conclusão foi a machadada 127 Estes, que indício dão do meu tormento,
que a cabeça lhe separou do colo; suspiros não são, que não são assim.
com ela, após lhe dar tanta pancada, Tréguas têm eles; o meu lamento,
o carniceiro Amor sentiu consolo. em meu peito, nunca tem interim.
Tenta ocultar Orlando a dor, mas nada Amor que me queima faz este vento,
seu mal vence, e custoso é não expô-lo: quando bate as asas dentro de mim.
lágrimas, suspiros, de olhos e boca, Com que milagre, Amor, meu coração
querendo ou não querendo, ao fim lhe desemboca. em fogo tens, sem dar consumação?
122 Quando o travão à dor pôde soltar 12s O que no rosto pareço não sou:
(estando só, não tem de guardar respeito), o que Orlando era, morto é, sob a terra;
dos olhos, depois das faces banhar, sua dama ingratíssima o matou;
cai-lhe um rio de lágrimas sobre o peito; atraiçoando-o, declarou-lhe a guerra.
suspira e geme, e o corpo a voltear, Sou seu espírito, que dele se soltou,
para cá, para lá, vai tenteando o leito; que atormentado neste inferno erra,
mas mais duro que pedra, e mais pungente para sua sombra, que sozinha avança,
que se de urtigas fora feito, o sente. ser exemplo a quem no Amor põe esperança. -
123 No meio da acre angústia lhe ocorreu 129 Toda a noite do bosque houve horiwnte;
que, nesse mesmo leito em que jazia, e, quando despontou a diurna flama,
a ingrata dama com o amante seu, levou-o o seu destino àquela fonte
sempre que queriam, ali se estendia. onde Medoro esculpiu o epigrama.
Não menos tal colchão aborreceu, Ver a sua injúria escrita no monte
nem dele se eleva com menor fobia, tanto o irou que nele não ficou grama
que da erva aldeão que se deitara que não fosse ódio, raiva, ira assanhada;
para dormir, e com a cobra depara. mais não esperou: desembainhou a espada.
124 Aquele leito, a casa e o pastor, 130 Cortou inscrito, pedra, e até ao céu
em tanto ódio os teve de imediato fez subir voando cada fragmento.
que, sem esperar da Lua ou do alvor Pobre gruta e árvores que pareceu
do novo dia poder ter ornato, terem de Angelica e Medoro assento!
armas toma e corcel, e para o frescor Ficaram de modo a sombra ou aléu
do bosque sai, onde é mais denso o mato; não mais darem a pastor ou armento;
quando vê que se encontra em solidão, e a fonte, que fora tão clara e pura,
com gritos, urros, à dor dá vazão. contra tanta ira não foi segura;
125 Com choros e gritos se manifesta;
de noite ou de dia não se dá paz.
Vilas, burgos evita; na floresta,
sobre o chão duro a descoberto jaz.
Causa-lhe espanto que tenha na testa
uma nascente de água tão vivaz,
e como é capaz de suspirar tanto;
e consigo mesmo a si diz no pranto:
126 - Não são lágrimas já, este licor
que dos meus olhos verto em quantidade.
Não acompanharam elas a dor:
acabaram, ia a dor em metade.
O fogo ora impele o vital humor,
que pela via dos olhos escapar há-de;
é ele que verto, e simultaneamente
à dor e à vida dará fim urgente.
382 ORLANDO FURIOSO
13 1 ramo, pedra, terra, tronco arrancou, 133 Aqui fica o elmo, além fica o escudo,
nem parou de atirar para a onda funda; longe os arneses, mais longe a couraça;
de alto a baixo tanto a água turvou as suas armas, em conclusão, tudo
que nunca mais foi nem clara nem munda. aqui e acolá o bosque devassa.
Cansado enfim, o suor o encharcou; Rasgou os panos, e mostra desnudo
resposta não dando a força iracunda o ventre, o peito e as costas onde passa;
ao desdém, ódio fundo e acesa ira, começa a grande insânia, e tão horrenda
por terra cai, e olhando o céu suspira. que outra maior que esta se não desvenda.
132 Cansado e angustiado ao fim cai na erva, 134 De tanta raiva e furor foi tomado
fixa os olhos no céu e não se move. que fica ofuscado todo o seu senso.
Sem comer nem dormir, tal se conserva De empunhar a espada está deslembrado,
até que o Sol três vezes se renove. pois coisas espantosas faria, penso.
De crescer não parou a dor proterva, Mas nem dela, nem de serra ou machado
que por fim todo o tino lhe remove.
. . .
necessrtava o seu vigor imenso.
Ao quarto dia, pelo furor movido, De seus grandes feitos prova mostrou:
de chapas e malhas ficou despido. um alto pinho à primeira arrancou;
CANTO XXIII 383
1 35 e depois deste arrancou muitos mais, 136 Os pastores que ouviram o fracasso,
tal fossem funchos, ébulos, anetos; deixando o grege à solta na floresta,
fez o mesmo a carvalhos ancestrais, daqui, dali, todos em largo passo
olmos, faias, azinheiras, abetos. ali chegam, para ver que coisa é esta.
Como um passarinheiro, para aos pardais Mas estou num ponto que, se o ultrapasso,
as redes montar, limpa de gravetos podia ser-vos tal história molesta;
o chão, de juncos, restolhos e urtigas, antes prefiro a história protelar
fazia a azinhos, plantas antigas. que vir-vos, de tão longa, a enfastiar.
NOTAS
�
1 Claramonte: casa a que pertence Bradamante. 16
Filha de Amon: Bradamante.
2 17
Contra o dia: ao encontro do dia, para oriente. Albergue: zona do castelo onde se albergavam os via
jantes.
3
De o u tra vez: cf. IV: 16 ss.
18
Em postas se disparte: é esquartejado.
4
Se[. . .] movia: se começasse a correr no instante em
19
que se disparasse o arco. Donzela[. .. } gr uta: cf. Xll:9 1 ss.
5 Montalvão: castelo na Gasconha pertencente à famí 2
° Fino: de boa qualidade.
lia de Bradamante.
21 Onde[. .] estreito: onde o grupo está mais aglomerado.
.
6 A lança[. . .] Galafron: lança fadada, que pertenceu a
22
Argalia e foi dada a Astolfo por Melissa (cf. VIII: 1 7) . Senhor de Anglante: Orlando.
7 23
Piloto adiante: piloto d a barra, que guia o s navios na Mandricardo: cf. XIV:30 ss.
saída ou entrada do porto.
24
Tronco[. .. } perro: lança de madeira de carvalho resis
8
Noa: hora canónica entre as 14 e as 16 horas, sensi tente (perro).
velmente.
25
Chamariz: rasto.
9
Beatrice: sua mãe.
26
Tlemcen e Norizia: cf. XIl:69 ss.
10
Galo: Carlos Magno.
27
De espada[. .. ] aponte: cf. XIV:43.
11
Ruggier[. . .] voo u : cf. IV:46 ss.
28
Matei-o j ustamente: no O. Innamorato, Orlando
12 Rodomonte[. .. } seguia: cf. XVIIl:36-37. matou Agricane em duelo regular.
13 29
Talha: remuneração (neste caso, o que Rodomonte O mesmo[. . .} Ante u : cf. nota a ix:77.
haverá a pagar, se perder) .
30
Stordilano: o rei de Granada, pai de Doralice.
14
Turpino: cf. nota a XIII:40.
31
Direito[. .. } pendão: em direcção a França.
15
O de [. . .] atrás: Pinabello (cf. XXIl:97) .
-.
CANTO XXIV
�
12 Dentro, não achou pequeno nem grande: 1 s Zerbin, depois de Orlando ter partido,
tinham por medo a aldeia deixado. tardou um pouco, e seguiu o carreiro
Comida humilde por ali se expande, que o paladino tinha antes batido,
condizente com o pastoril estado. e em passo lento ao corcel deu roteiro.
Sem discernir o que é pão e o que é glande, Duas milhas talvez não tivesse ido,
pelo jejum e pelo ímpeto levado, e viu trazer ligado um cavaleiro
as mãos e os dentes deitou distraído sobre um rocinante, de cada lado
ao que primeiro achou, cru ou cozido. guardado por um cavaleiro armado.
13 Depois por todo aquele lugar errou, 16 Zerbino conheceu-lhe logo o rosto
a homem e a fera dando canseira; ao chegar perto, e também lsabella:
correndo pelos bosques, também caçou era Odorico, o Biscainho 1 ; posto,
o esbelto cabrito e a corça ligeira. como a ovelha lobo, à guarda dela.
Com muito javali e urso lutou, Tinha-o a tantos amigos preposto
à mão lhes dando morte derradeira; Zerbino, para confiar-lhe a donzela,
e sua carne, com pele, pêlo e osso, esperando que leal, como no resto
com voraz fome lhe serviu de almoço. fora sempre, fosse ora neste gesto.
14 Para cá, para lá, para baixo e cima corre 17 Como tinha tal coisa acontecido
a França; e numa ponte faz paragem, vinha lsabella a fazer descrição:
sob a qual, largo e pleno de água, escorre que no escaler a tinha recolhido,
um rio que tem alta e abrupta passagem. antes de à nave o mar dar destruição;
Ao lado estava erigida uma torre, como ele à força a tinha submetido,
que ao longe e em volta mostrava a paisagem. e como a levaram para o cavernão.
O que aqui fez, direi noutro lugar; Ainda o conto não narrara inteiro,
de Zerbino primeiro vou narrar. quando o malfeitor viu vir prisioneiro.
1 s Os que Odorico traziam consigo
de lsabella a história sabiam vera;
e conheceram que dela o amigo,
e senhor seu, o que ali estava era;
tanto mais que no escudo o signo antigo
de sua nobre estirpe lho assevera:
e viram, olhando-o melhor na face,
que esse seu supor não era falace.
19 Para o chão cada um se desembaraça,
indo a correr para junto de Zerbino;
abraçam-no onde o maior se abraça2,
de cabeça nua e joelho quino.
Zerbin cada um na face devassa:
Corebo é um, de Biscaia genuíno,
Almonio o outro3 ; tinha-os ele mandado
com Odorico, no navio armado.
20 Almonio disse: - Se a Deus aprazeu
(por mercê) lsabella estar contigo,
posso bem compreender, ó senhor meu,
que nenhuma novidade te digo,
se a razão te disser de este sandeu
aqui veres amarrado vir comigo;
pois dessa, que foi a mais ofendida,
a história toda já terás ouvida.
390 ORLANDO FURIOSO
com cavalos que ali tinha arranjado, para ali pugnar com ele; e a razão,
sempre atento para ver se lobrigava e além da razão Fortuna também,
esses, que muito atrás tinham ficado. que na vitória tem intervenção,
Sigo sempre, e à beira me encontrava me ajudaram: mais força que eu não tem
do mar, no sítio onde os tinha deixado; este traidor, e ali lhe dei prisão.
olho, mas deles nada mais se avista: O rei, sabida a falta, concedeu
apenas, na areia, a recente pista. que dele eu dispusesse a prazer meu.
23 A pista segui, que me conduziu 27 Não quis dar-lhe morte nem libertá-lo,
ao bosque agreste; e nem muito avancei, mas, como vês, trazer-to acorrentado;
quando um som os ouvidos me atingiu pois desejo que caiba a ti julgá-lo,
e, estendido por terra, este encontrei. se deve ser morto ou aprisionado.
Perguntei-lhe onde a dama se sumiu Por saber-te com Carlos, a apoiá-lo,
e Odorico; e quem o feriu indaguei. e querendo achar-te, vim para este lado.
Fui-me dali, conhecendo os indícios, Grato a Deus sou por fazer nesta parte,
em busca do traidor pelos precipícios. onde menos esperava, ora encontrar-te.
24 Muita volta dei, porém nesse dia 2s Grato sou também, por com lsabella
outro vestígio não me foi mostrado. eu ver (como, não sei) que junto vais;
Voltei para onde Corebo jazia, por obra do traidor, cria que dela
que junto o chão tinha tão encarnado notícia não se devesse ouvir mais. -
que, se mais tempo ali permanecia, Zerbino Almonio escuta e não querela,
mais necessário seria um fossado, fixando em Odorico olhares frontais;
e padres e frades para o enterrar, não tanto por ódio: é por lhe custar
que médicos e um leito para o curar. ver tanta amizade assim acabar.
29 Quando Almonio pôs fim ao seu sermão,
Zerbino ficou muito perturbado,
por ser, por quem para tal menos razão
tinha, tão expressamente atraiçoado.
Mas quando a essa longa admiração
foi, suspirando, por fim arrancado,
se era vero, indagou ao prisioneiro,
o que dissera dele o cavaleiro.
30 O desleal, os joelhos em terra
deixou cair, e disse: - Senhor meu,
quem vive neste mundo peca e erra;
não há diferença entre o bom e o sandeu,
senão que um é vencido em qualquer guerra
que lhe move um qualquer desejo seu;
o outro às armas corre e se defende:
se é forte o inimigo, também se rende.
CANTO XXIV 391
51 Se algum sangue ali houvesse patente, 57 Zerbino as armas qual troféu reuniu,
teriam crido que estivesse morto. e sobre um pinheiro lhes deu destino;
Vêem depois ao longo da corrente que outro a elas não desse uso preferiu,
vir chegando um pastor pelo medo absorto. cavaleiro dali ou peregrino;
Tinha visto, da montanha adjacente, no verde cepo uma inscrição esculpiu:
do infeliz da fúria o desconforto; «Armadura de Orlando paladino»;
como as armas tirou, rasgou os panos, como a dizer: não lhe mexa ninguém,
pastores matou, e fez mil outros danos. se com Orlando a combate não vem.
52 Pede Zerbino que aquele lhe dê 58 Tendo cumprido a louvável acção,
informação de tudo isso e do resto. tornava a montar aquele cavaleiro;
Zerbino admira-se e a custo crê, chega Mandricardo de supetão,
contudo tem indício manifesto. que, ao ver das armas ornado o pinheiro,
Verdade ou não, Zerbino vai a pé, lhe pede dos factos dê explicação:
cheio de pena, lacrimoso e mesto, narra-lhe ele o que ouviu, o verdadeiro.
e recolhendo vai por todo o lado Contente, o rei pagão logo faz estrada
as relíquias que ele tinha espalhado. até ao pinheiro, e retira a espada,
53 Do palafrém também desce lsabella, 59 dizendo: - Ninguém me pode acusar;
que aquelas armas apanhando treme. já não é de hoje o meu direito a ela;
Eis que ali aparece uma donzela e em qualquer parte poderei tomar
de triste olhar, que do coração geme. com inteira justiça posse dela.
Se alguém me perguntar quem é, por que ela Orlando, por defendê-la recear,
tanto se aflige, e qual a dor que a preme, fingiu-se louco e perdeu-lhe a tutela;
que é Fiordiligi8 tenho a informar, mas, por assim esconder a cobardia,
que vestígios do amante anda a buscar. o meu firme direito não se esfria. -
54 Nada lhe disse Brandimarte, e afoito, 60 Zerbino gritava-lhe: - Usurpador
em Paris deixou-a e. foi-se a cavalo; serás, se a levas sem competição.
ela ali esperou seis meses ou oito, Se assim obtiveste as armas de Heitor,
e, quando por fim não viu regressá-lo, por furto as ganhaste e não com razão. -
dum mar ao outro foi, e sem intróito, Sem mais, cada um se torna agressor,
dos Pirenéus aos Alpes procurá-lo; iguais no denodo e na decisão.
a toda a parte foi, só não chegou Já de cem golpes o som ribombou,
ao palácio em que Atlante os encantou. ainda a batalha mal começou.
55 Se tivesse ido àquele solar de Adante, 61 Em presteza Zerbino é como a flama,
tê-lo-ia ali visto andar errando de Durindana a esquivar a pancada:
com Gradasso, Ruggiero e Bradamante, para cá, para lá, saltar como uma gama
e também com Ferraú e Orlando; faz seu corcel, onde é melhor a estrada.
mas, ao correr Astolfo o necromante E bem convém que lá não deixe um grama;
ao som do corno horrível e nefando, pois irá, se lhe toca aquela espada,
Brandimarte para Paris tomou via; ao encontro dos amorosos espirros
mas isto Fiordiligi não sabia. que enchem a selva dos umbrosos mirtos9 •
56 Como eu dizia, chegou por acaso 62 Tal como o veloz cão o porco assalta
junto aos amantes Fiordiligi bela; que deixa a vara, e no campo se enlapa,
reconheceu as armas sem atraso, e o vai cercando, e ali e acolá salta,
e Brigliador, com as rédeas na sela. mas fica à espera a ver se o porco assapa:
Viu com seus olhos lamentável caso, assim, se vem a espada ou baixa ou alta,
e ouviu contar a notícia singela; está Zerbino a estudar como lhe escapa;
também a ela o pastor descreveu para vida e honra salvar a um tempo,
como observou que Orlando enlouqueceu. atento está, e fere e foge a tempo.
394 ORLANDO FURIOSO
63 Pelo seu lado, onde quer que o sarracino 69 Zerbin, que olhar tem lesto como a mente,
a espada vibre, ou em cheio ou em vão, presto o cavalo à direita volveu;
parece entre os montes um vento alpino mas não tão lesto que a espada fendente
que em Março à selva dá forte abanão: houvesse esquivado: o escudo colheu.
que ora para o chão lhe dobra o tronco quino, De cima a baixo o abriu igualmente,
ora os ramos quebrados pelo ar vão. e o braçal por baixo também rompeu;
Zerbino a muitos golpes se esquivou, feriu-o no braço e depois o arnês
mas por fim houve um a que não escapou. rasgou, e na coxa um lanho lhe fez.
64 Não pode evitar um grande fendente 70 Zerbino procura uma qualquer via,
que entre espada e escudo lhe entra no peito. não a que deseja mas a que obtém;
Grossa era a couraça e muito eficiente pois a armadura, a qual ele feria,
a armadura, e o panceiro perfeito; nem a mais pequena marca retém.
mas não se opuseram, e, igualmente, O rei da Tartária tal primazia,
à espada cruel houveram defeito. e tal vantagem, sobre Zerbin tem
Onde ela caiu, corte certo fez: que em sete ou oito partes já o feriu,
a couraça, o arção, e até o arnês. tirou-lhe o escudo, e meio elmo lhe abriu.
65 Se não fosse o golpe escasso, garanto 71 Entretanto ele vai perdendo sangue;
que ao meio o fendia como uma cana; falta-lhe a força, mas inda se aguenta:
mas entra na carne só aquele tanto, o vigoroso coração não langue;
que pouco mais além que a pele profana; tão forte é que o débil corpo sustenta.
a não profunda chaga é longa quanto A sua dama, de temor exangue,
não se media com uma mão plana. então a Doralice se apresenta;
Pelas armas luzentes seu sangue escorre pede-lhe, suplica, e por Deus implora,
até ao pé, e em rubro rego corre. que ponha fim à luta sem demora.
66 Assim por vezes um purpúreo nastro n Tão cortês quanto bela, Doralice,
já vi atravessar tela prateada, sem do facto ter certo o resultado,
pela branca mão, mais branca que alabastro, faz pressurosa o que Isabella disse,
que a meu peito aponta assídua frechada. e à paz e trégua convence o amado.
Pouco vale a Zerbino o bom cadastro Também lsabella a ira interdisse
de guerreiro, e a intrepidez ousada; no peito de Zerbino, apaziguado;
porque em excelência de armas e em possança e a via toma como ela deseja,
o rei da Tartária em muito o avança 10 • sem que da espada termine a peleja.
67 Foi esse golpe do pagão maior 73 Fiordiligi, que viu fraca defesa
em aparência do que no efeito; para a espada que da luta fora fonte,
faz que lsabella o coração de dor ressentida fica, e tanto lhe pesa
sinta fender-se no gelado peito. que de ira chora, batendo na fronte.
Zerbino, pleno de raiva e de alor, Coubesse a Brandimarte aquela empresa!
todo se inflama de ira e de despeito; Assim que o encontrar e que lhe conte,
e, com quanta força a duas mãos pode, crê que Mandricardo não arrecada
o elmo ao tártaro em cheio sacode. durante muito tempo aquela espada.
68 Para o pescoço do corcel inclinou-se, 74 Fiordiligi procura em puro engano
pela dura pancada, o pagão soberbo; o seu Brandimarte, a jornada inteira;
e, se o seu elmo encantado não fosse, quanto mais longe vai, maior o dano,
abrir-lhe-ia a cabeça o golpe acerbo. pois em Paris já ele tinha trincheira.
Com pouca demora dele vingou-se; Tanto ela caminhou, por monte e plano,
nem disse: vê que teu acto exacerbo; que em certo sítio, junto a uma ribeira,
sobre o elmo a espada ergueu de tal jeito viu e reconheceu o paladino;
que esperava cindi-lo até ao peito. mas vejamos o que foi de Zerbino;
CANTO XXIV 395
75 por perder Durindana há tanto abalo 81 Disso, meu coração, teu medo afasta;
que disso, mais que outros males, padece, que eu vou seguir-te no Céu ou no Inferno.
embora mal se aguente no cavalo, Nossos espíritos, um o outro arrasta,
pelo sangue vertido e que inda esvaece. juntos convém que estejam no eterno.
A dor cresce, após pequeno intervalo, Ver que se fecham teus olhos me basta:
pois da ira o calor já não o aquece; ou me há-de matar o tormento interno,
cresce-lhe a dor tão impetuosamente ou, prometo, se não der esse efeito,
que a cada instante a vida fugir sente. passar hoje com esta espada o peito.
76 A fraqueza não o deixou seguir, 82 Dos nossos corpos esperança me alumia,
e assim junto de uma fonte fez estada. que mortos, mais que em vida, hajam ventura.
Não sabe o que fazer ou sugerir Talvez, aqui passando, alguém daria
para o ajudar a dama enamorada. a ambos, por piedade, sepultura. -
Vê-o a morrer por ninguém lhe acudir; Assim dizendo, as relíquias colhia
qualquer cidade está muito afastada, derradeiras, que a morte ao corpo abjura;
e ali não há médico a quem recorra, todas recolhe com sua boca mesta,
que por piedade ou dinheiro o socorra. enquanto uma mínima aura resta.
77 Em vão deixa que o lamento a devaste, 83 Zerbino, sua débil voz reforçando,
chama a fortuna e a Céu ímpio e cruel. disse: - Peço e suplico, minha diva,
- Por que, maldição (diz), não me afogaste, por aquele amor que mostraste, quando
quando ao mar me meti naquele batel? - por mim de teu pai foste fugitiva,
Sem que os lânguidos olhos dela afaste, e, se ordenar posso, te dou comando
a Zerbin mais dói que ela se flagele que enquanto Deus queira continues viva;
que o padecimento tenaz e forte nunca nada te permita olvidar
que o conduziu já às portas da morte. que te amei quanto é possível amar.
78 - Coração meu, possas tu (lhe dizia), 84 Deus te dará sua ajuda talvez,
depois de eu morrer, ser minha amadora; para te livrar de qualquer mal ou dano,
apenas o deixar-te me angustia, como fez ir à gruta, aquela vez,
não por morrer, mas por estares só agora; para libertar-te o senador romano 1 1 •
se em parte segura me acontecia Também para te salvar mercê te fez
acabar da vida a última hora, no mar, e do Biscainho profano;
ledo e contente, e de alegria cheio porém, se acaso tua morte deseja,
morreria, pois morro no teu seio. então, que como menor mal se eleja 1 2 • -
79 Porém o meu destino iníquo e duro 85 A voz nestas palavras se lhe obstrói
me faz deixar-te, em mãos não sei de quem; tanto que não creio fosse entendido;
por essa boca e esses olhos juro, finou-se como débil lume sói,
pelas madeixas que me prenderam bem, quando de óleo ou de cera é carecido.
que em desespero vou para o fundo escuro Quem poderá dizer quanto se dói,
do Inferno, no qual me sobrevém, por vê-lo ali tão pálido estendido,
por assim te deixar, maior tormento a jovenzinha, e tão frio como o gelo,
que outra qualquer pena que lá enfrento. - o seu Zerbino, em seu braço a sustê-lo?
so A isto a infelicíssima Isabella, 86 Sobre o sangrento corpo se amontoa,
inclinando sua face lacrimosa e de lágrimas copiosas o banha;
e conjugando a sua boca àquela tantos gritos dá que em redor ressoa
de Zerbino, lânguida como rosa, muitas milhas, pelo bosque e pela campanha.
que, não colhida na estação mais bela, Nem ao rosto nem ao peito perdoa,
empalidecerá na sebe umbrosa, pois um e outro fustiga e arranha;
disse: - Não deves pensar, minha vida, e arranca, injusta, o cabelo dourado,
fazer sem mim a última partida. chamando sempre em vão o nome amado.
396 ORLANDO FURIOSO
87 Em tanta raiva e desgosto submersa 89 E fez-lhe depois ver que não havia,
pela sua dor estava que facilmente senão em Deus, vero contentamento,
teria a espada contra si reversa, e que era transitória e fugidia
ao amante nisto pouco obediente; a esperança humana, e de curto momento;
se um eremita, que à amena e tersa tanto lhe disse que a fez arredia
fonte fazia visita frequente, ao seu cruel e obstinado intento;
pois tinha não distante a sua cela, e para a vida futura quis carreira
não chegasse e evitasse o acto dela. que ao serviço de Deus a desse inteira.
88 O venerável ser, que alta bondade 90 Não que de seu senhor queira deixar
tinha aliada a natural prudência, o grande amor e a relíquia mortal;
e que era dotado de caridade, deseja onde for consigo o levar,
rico de bons exemplos e eloquência, e noite e dia tê-lo no local.
a donzela sofredora persuade, Assim, com o eremita a ajudar,
com razões convincentes, de paciência; que para a idade era forte e jovial,
e diante lhe coloca, como um espelho, sobre o triste corcel Zerbin pousaram,
mulheres do Testamento Novo e Velho. e muitos dias pelas selvas andaram.
CANTO XXIV 397
91 Não quis o cauto velho ter consigo, 93 Vários dias grande espaço de terra
sozinho e sozinha, a jovem tão bela, percorreram, por lugares mais incultos;
onde, escondida em selvagem abrigo, pois, estando . em todo o lado tudo em guerra,
tinha não longe a solitária cela; queriam quanto possível ir ocultos.
dizia para si: levo, e corro perigo, Até que um cavaleiro a via cerra,
a palha mais o fogo para acendê-la. que os ultrajou com pesados insultos;
Não se fia na idade ou na prudência, deste vos falarei numa outra área;
para se submeter a essa experiência. pois agora volto ao rei da Tartária.
92 Para levá-la à Provença fez carreiro, 94 Depois de ter tido fim a batalha
não longe de Marselha, a um castelo13, como já disse, o jovem se acolheu
onde de santas mulheres um mosteiro à água límpida que frescor espalha;
mui rico havia e de edifício belo; ao corcel sela e freio recolheu,
e, para levar o morto cavaleiro, o qual as tenrinhas ervas retalha,
num caixão o puseram com desvelo, pelo prado pascendo-se a prazer seu;
que a caminho, numa aldeia se fez, pouco depois, porém, ao longe viu
longo e espaçoso, fechado com pez. um cavaleiro a descer o pendia.
398 ORLANDO FURIOSO
95 Conheceu-o, assim que alçou a fronte, 96 Como um falcão que pato ou galinhola,
Doralice, e contou a Mandricardo, perdiz, pombo, ou pássaro semelhante
dizendo: - Eis o soberbo Rodomonte, ao longe vê, que ao seu encontro evola,
se ao longe não é meu olhar bastardo. ergue a cabeça animado e expectante;
Para contigo batalhar desce o monte: tal Mandricardo está, certo que assola
muito útil te será seres galhardo. Rodomonte, e faz massacre abundante;
Ficar sem mim, por grande ofensa tem, alegre e seguro o cavalo monta,
que era sua noiva; a vingar-se vem. pés nos estribos, e brida na mão pronta.
CANTO XXIV 399
97 Perto já estando, puderam escutar 103 Mas, como um arco forte e eficaz,
palavras que trocavam altaneiras; de bom, pesado aço, e bem temperado,
com as mãos e as cabeças a ameaçar, quanto mais se estica e puxa para trás,
o rei de Argel começou em berreiras, · mais por guinchos e alavancas esforçado,
gritando ao outro que ia lamentar com mais impulso inversa via faz
que, por temeridades prazenteiras, ao ser solto que quando é retesado:
não se coibisse de provocá-lo, assim o africano veloz regressa,
e que ia vingar-se com grande abalo. e ao imigo duplo golpe arremessa.
98 Respondeu-lhe Mandricardo: - Em vão tenta 1 04 Onde houve Rodomonte o golpe aposto,
quem me quer meter medo ameaçar-me; o filho de Agricane ele golpeou.
assim mulheres e garotos espaventa, Com isso não pôde ferir-lhe o rosto,
ou alguém que, por não saber, não se arme; que de armas troianas defesa achou;
não eu, que a batalha mais me acalenta mas ficou de tal modo descomposto
que o repouso; estou pronto a digladiar-me que se hoje era, ou ontem, se mareou.
montado, a pé, com armas, desarmado, O irado Rodomonte desembesta,
quer seja na campina ou no cercado. - para o outro avança e aponta-lhe à testa.
99 Entregam-se à ofensa, ao grito, à ira, 105 O cavalo do tártaro, que aborre
ao puxar da espada, ao ferro a tinir; a espada a assobiar que cai do alto,
como o vento que de início suspira, o dono, para seu próprio mal, socorre,
logo freixo e carvalho faz cair, pois para lhe fugir recua de um salto:
depois poeira escura pelo céu gira, pelo meio da cabeça a espada o percorre,
árvores arranca e faz casas ruir, que ao seu senhor, não a ele, dava assalto.
no mar mergulha, e tempestade alesta Não tinha o infeliz elmo de Tróia,
que o grege esparso mata na floresta. como o dono: mortalmente, destrói-a 1 5 •
100 Os dois pagãos, a quem ninguém aterra 1 06 Cai ele, e Mandricardo em pé se aguenta,
o coração audaz e a força ingente, já recomposto, e Durindana gira.
assaltam-se com golpes e uma guerra Ver morto o corcel, dentro o aferventa;
que bem condiz com tão feroz semente. e por fora arde em grande incêndio de ira.
Com amplo, horrendo som estremece a terra, Contra ele o outro o corcel aventa;
quando as espadas cruzam conjuntamente; mas Mandricardo não mais se retira
lançam as armas faíscas pelos ares, que da onda um escolho: e verificou-se
ou lâmpadas acesas aos milhares. que o corcel caiu, mas ele aguentou-se.
101 Sem ter repouso ou fôlego renovado, 1 07 Faltar-lhe o cavalo o africano sente;
entre os dois reis se prolonga a batalha, os estribos deixa e no arção faz ponta,
tentando ora deste ora daquele lado caindo firme em pé, muito agilmente:
abrir as chapas, penetrar na malha. de igual para igual, um outro defronta.
Um não perde, nem outro ganha prado 1 4 ; Torna-se a pugna mais que nunca ardente,
como cercados por fosso ou muralha, e o ódio e a ira e a soberba monta;
ou cara fosse uma unha de chão, e avante iria, mas eis que ali pára,
num círculo angusto e apertado estão. à pressa, um mensageiro que os separa.
102 Entre mil, um golpe o tártaro solta 1 08 Era um mensageiro do povo mouro,
com duas mãos na fronte ao rei de Argel, dos muitos que por França eram mandados,
que fez a este ver girar-lhe em volta aos próprios estandartes chamando em coro
luzes e estrelas em grande tropel. os capitães e os cavaleiros privados;
Como perdida a força, em giravolta, pois pelo imperador dos lírios de ouro 1 6
Foi-lhe a cabeça à grupa do corcel: já estavam seus quartéis assediados;
perde equilíbrio e, diante daquela e, se o socorro não lhes chegar lesto,
que tanto ama, quase cai da sela. são exterminados: é manifesto.
CANTO XXIV 401
NOTAS
�
1
Odorico, o Biscainho: cf. XIII: 1 1 - 1 2. 9 Amorosos [ .. ] mirtos: Vergílio coloca as almas dos
enamorados no bosque de mirtos (cf. Eneida, VI:440-4) .
2
Onde o maior se abraça: ond� se abraçam as pessoas
10
notáveis (nos joelhos) . Excelência [ . .] avança: Mandricardo é superior a
Zerbino nas lides guerreiras, devido à excelência das
3 Corebo [ . .] outro: cf. XIIl:22 e 24. armas (que foram de Heitor) e à força bruta.
4 De [ .. ] activo: cf. XXIII:94:7-8. 11
Senador romano: Orlando (cf. IX:88).
5 Autor [ . .] escreveu: autor imaginário. 12 Menor malse eleja: a morte será menor mal que a desonra.
7
Não aquele [ ..] A/monte: o elmo de que Ferraú se 1 5 Destrói-a: destrói a cabeça do cavalo.
apoderou (cf. XII:59-60) .
16
Imperador [ . .] ouro: Carlos Magno.
8 Fíordíligí: cf. VIIl:88 ss.
17
Filho [ .. ] Ulíeno: o filho de Troiano é Agramante, e
o de Ulieno é Rodomonte.
-ê$'i'z
CANTO XXV
�
15 De cada golpe seu nunca caía 1s Ele, de tão ofendido, logo tenta
menos de um homem ou um par na arena; exercer vingança naquela gente;
até quatro ou cinco matar soía, famoso por ter força se apresenta:
e assim se chegou em breve à centena. reputado é corajoso e valente.
Cortava o aço a espada que trazia, Nas douradas rodas já se afugenta
como se manteiga ele fosse ou pena. o Sol dentro da onda, a ocidente,
Para dar morte a Orlando, Falerina quando Ruggiero vitorioso e o belo
fez no jardim de Orgagna a arma ferina3• jovem deixam as portas do castelo.
16 De havê-la feito, bem se arrependeu, 19 Quando o rapaz, tendo segura a vida,
pois ela a seu jardim deu fim funesto. com Ruggier se viu fora do portão,
Vejam agora quanto estrago deu, fez-lhe homenagem mui reconhecida,
manejada por guerreiro tão lesto! com gentis modos e com gratidão,
Se alguma vez Ruggier se enfureceu, por, sem o conhecer, dar-lhe guarida
se jamais foi seu valor manifesto, com risco de morrer na ocasião;
aqui o foi, aqui o deu a ver, e pediu-lhe que o nome lhe dissesse,
pois julgava sua dama defender. para saber a quem tal favor devesse.
17 Qual faz a lebre quando o cão a caça, 20 «Vejo (diz-se Ruggier) a face bela,
tomava a turba contra ele reparo. a linda figura, o gentil semblante;
Muitos houveram de morte desgraça, mas esta voz que eu ouço não é dela:
outros na fuga buscaram amparo. mais doce é a da minha Bradamance;
Entretanto a dama ao jovem deslaça nem é forma de agradecer aquela
as mãos, que tinha presas por um aro; que deva usar com seu fiel amante.
e, como melhor pôde, logo o armou: Se Bradamante é, como, num momento,
uma espada e um escudo lhe arranjou. lhe caiu meu nome no esquecimento?»
406 ORLANDO FURIOSO
31 Razão tinha; era vilania expressa, 34 Quem houvesse seu lamento e seu pranto
própria de homem empedernido e zuco, ouvido então, choraria também.
mulher tão bela estar por ele possessa, «Que tormentos (dizia) houve tanto
cheia de doce e de nectáreo suco, cruéis que os meus mais não sejam porém?
e ele, enquanto conversando com essa, De qualquer outro amor, maldito ou santo,
manter baixas as asas como o cuco. podia esperar o prémio que convém,
De modo certo conversa fez ela, e a rosa dos espinhos bem separar;
vindo a dizer-lhe que era uma donzela; só meu desejo não hei-de acalmar!
32 que glória, como Hipólita e Camila6, 35 Se querias, ó Amor, dar-me tormento,
busca nas armas; em África dada porque invejavas o meu feliz estado,
foi à luz, perto do mar, em Arzila, noutro martírio teu contentamento
a escudo e a lança de pequena usada. achavas, noutros amantes usado.
Contudo, nem uma centelha vacila Nunca entre os homens, nunca entre o armento,
da fogueira da dama enamorada. achei fêmea que fêmea tenha amado:
Para a grande chaga foi remédio tardo: não acha a mulher outra mulher bela,
tão fundo Amor já mergulhara o dardo. nem cerva, cerva; ou gazela, gazela.
33 Isso não torna menos belo o rosto 36 Em terra, no ar, no mar, sou só eu
ou o olhar, menos belos os gestos; que tal castigo sofro à tua mão;
não faz o coração voltar, que posto e assim fizeste para que o erro meu
já estava nos queridos olhos honestos. seja em teu reino única aberração.
Ao vê-la assim vestida, sente o gosto A mulher do rei Nino7 pretendeu
de seus desejos satisfazer lestos; amar o filho, desejo malsão,
mas depois, quando que ela é mulher pensa, e Mirra seu pai, e a cretense o touro8 ;
suspira e geme e mostra pena imensa. mas, mais que esses, o meu é desaforo.
408 ORLANDO FURIOSO
76 Nosso Rinaldo avisei mesmo agora; 82 Poderia noutra ocasião ser crido
mandei ir a galope o mensageiro; que pela religião fosse instigado;
mas creio que só possa chegar a hora mas ora, que tem de ser socorrido
que tarda seja, que é longo o carreiro. Agramante, que se encontra sitiado,
Não tenho gente para batalhar fora 15: mais fácil crerem que tenha temido,
o ânimo é bom, mas o vigor zoupeiro. e a cobardia haja o acto ditado,
Se aquele traidor os tem, fá-los morrer; que ele outra fé tenha querido escolher;
não sei que faça, nem sei que dizer. - tal de Ruggiero o peito agita e fere.
77 A notícia a Ricciardetto despraz, 83 Também de partir se desassossega
e assim sendo desagrada a Ruggiero; sem despedir-se da sua divina18 •
vendo ele um e outro nada loquaz, Ora um pensamento ora outro lhe chega,
e que sua decisão era zero, que o coração diversamente inclina.
disse-lhes com grande ardor: - Dai-vos paz; Gora lhe saíra a certeza cega
ter a meu cuidado esta empresa quero; de achá-la no castelo de Fiordispina,
minha espada de mil terá bondade onde, eu já disse, tinham o projecto
para a vossos irmãos dar a liberdade. de irem ambos socorrer Ricciardetto.
78 Não quero mais gente, nem outra mão; 84 Lembra-se então que fizera promessa
creio sozinho bastar para tal facto; de em Vallombrosa com ela encontrar-se.
quero um só que me dê orientação Pensa lá tenha ido ela, e por nessa
ao lugar onde se cumpre este pacto. o não encontrar, depois admirar-se.
Juro que aqui os gritos ouvirão Carta ou mensageiro pudesse a essa
de quem estiver presente ao vil contrato. - enviar, para não ter de lamentar-se
Assim disse, e não era coisa nova de, além de não lhe ter obedecido,
para um deles, que disso vira prova. ter inda, sem nada dizer, partido.
79 O outro não escutava, senão quanto 85 Depois que muitos pensamentos teve,
se ouve a quem diz muito, com pouco jeito ; 16
pensa escrever-lhe a contar a jornada;
mas Ricciardetto disse-lhe entretanto embora não sabendo como deve
como ele do fogo o salvara a preceito; a carta enviar para ser bem receptada,
estava certo que mais, ao menos tanto, quer escrevê-la; pois quem sabe se em breve
do que apregoava se veria o efeito. fiel portador encontra na estrada.
Deu-lhe ouvidos então, de modo expresso, Sem mais demoras, do leito se alheia;
respeitou-o e deu-lhe grande apreço. pede papel, tinta, pena e candeia.
80 Depois à mesa, onde a Cópia entornou 86 Os servos, com presteza e discrição,
seu corno , honras de seu senhor lhe deu.
17
a Ruggiero trazem o que comanda.
Sem mais ajuda, ali se combinou, Começa ele a escrever, e a saudação
que os irmãos salvar era caso seu. (como é devido) no princípio manda;
Chegou entretanto, e os olhos cerrou depois narra-lhe a recomendação
o ocioso Sono ao senhor e ao plebeu, vinda de seu rei, que auxílio demanda;
excepto a Ruggier; mantém-no desperto e que, se sua partida não for lesta,
um pensamento que o molesta, certo. morre ou em poder do inimigo resta.
81 O assédio de Agramante, que esse dia 87 Diz depois que estando ele tão desvalido,
pelo correio soube, disso é causador. e que a si por socorro se dirigia,
Percebe que a mais pequena estadia calculasse o opróbrio desmedido
que de ajudá-lo o impeça é desonor. se a negar-lhe esse auxílio se atrevia;
Quanta infâmia e descrédito seria e que ele, devendo dela ser marido,
com os inimigos estar do seu senhor! proteger-se de qualquer mancha queria;
Por vilania e por grande delito, pois, tão honesta sendo, não convinha
baptizando-se ora, será proscrito! associar a ela coisa mesquinha.
416 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
--ii!lffer-
1 Pela dama indicado: cf. XXII:36 ss. 1 ° Faz-se dura: solidifica.
2 Terremoto[. . .} meu senhor: nomes de peças de artilha 11 Semeado em areia: ter esperado infrutiferamente.
ria de Alfonso d'Este (meu senhor), que estavam nelas gra
vados. Uma das suas bombardas chamava-se Giulia, por ter 12 Buovo: irmão de Amon (pai de Ricciardetto,
sido fabricada com o bronze da estátua do papa Júlio II. Bradamante e Rinaldo).
3 Para[. ..} ferina: cf. VIl:76. 13 Por seu respeito: por respeito a seu primo, que o
acompanhava.
4 Fiordispina: filha do rei de Espanha, Marsilio.
14 Lanfasa cruel: mãe de Ferraú.
5 Em vez[.. .} espada: em vez da roca, objecto de uso
feminino, usava uma espada. 15 Batalhar fora: batalhar em campo aberto.
6 Hipólita e Camila: a rainha das Amazonas e a heroí 16 Com pouco jeito: com pouco senso.
na vergiliana (cf. XX: 1) .
17 Onde[. . .} corno: onde a Abundância estava presente.
7 Mulher do rei Nino: Semíramis.
18 Da sua divina: da sua deusa, Bradamante.
8 A cretense o touro: Pasífae, mulher do rei Minos, de
Creta, amou um touro (dessa união nasceu o Minotauro). 19 Lete: rio infernal do esquecimento.
9 20
Dédalo: construiu a vaca de madeira que Pasífae Rara[. . .] dura: a fénix (cf. nota a X:V:39).
usou para copular com o touro.
-B:fli,-
CANTO XXVI
�
13 O filho de Buovo e o de Amon 1 , que bem 16 Salta ora para esta banda ou para aquela
viram Bertolagi, não podem esperar: Ruggiero, e dez ou vinte são ceifados;
a lança em riste um e outro já tem, outros tantos são, pela mão da donzela,
e um e outro o traidor vai atacar. dum lado e doutro também apagados.
Passa-lhe um o arção, a pança também, São tantos a cair mortos da sela
o outro trespassa-o pelo maxilar. quantos pelas afiadas espadas tocados;
Assim se fossem todos os malvados, a elmos, couraças dão desafogo,
como Bertolagi, aos golpes bem dados. como no bosque à lenha seca o fogo.
14 Marfisa com Ruggiero a este signo 17 Se alguma vez ter visto vos recorda,
avança, sem esperar outra trombeta; ou fama no ouvido se vos encerra,
não deixa quebrar seu lenho condigno, como, quando o enxame se discorda,
sem que três de seguida ao chão remeta. e pelo ar as abelhas fazem guerra,
Da hasta de Ruggiero o pagão digno entra a gulosa andorinha na horda,
foi, que trouxe os mais: morte lhe decreta; e muitas mata, fere, come, aferra;
e para ter companhia, a mesma hasta podeis imaginar similarmente
mais dois com ele ao reino escuro arrasta. Ruggiero e Marfisa entre aquela gente.
15 Isto gerou erro entre os investidos, 1s Ricciardetto e seu primo, por seu lado,
que lhes veio a causar total ruína. entre os dois grupos não variavam dança:
Por um lado, os de Mogúncia traídos tendo os Sarracinos abandonado,
se julgaram pela gente sarracina; com os de Mogúncia fazem festança.
por outro os Mouros, de tal modo feridos, O irmão de Rinaldo mui dotado
chamavam à outra gente assassina; de ânimo, de coragem e possança,
e entre eles se iniciou violenta dança, as qualidades aqui lhe dobrava
fazendo uso de arco, de espada e lança. o ódio que a tal gente dedicava.
19 Fazia parecer, a mesma razão,
feroz leão o bastardo de Buovo,
que com sua espada dá destruição
aos elmos, que esborracha como um ovo.
E quem não haveria tanta ardição
e lembrar não faria um Heitor novo,
tendo Marfisa e Ruggiero no rol,
que dos guerreiros eram flor e escol?
20 Marfisa, sem descanso combatendo,
para os seus companheiros os olhos voltava;
de sua força demonstração vendo,
encantada, todos eles louvava;
porém de Ruggiero o valor, estupendo
e sem par no mundo lhe assemelhava;
por vezes pensava que fosse Marte,
do quinto Céu descido àquela parte.
21 Olhava aquelas horríveis acossas,
via que era sempre certeiro o estalo;
parecia que de Balisarda2 as mossas
a papel, não ferro, davam abalo.
Cortava os elmos e as couraças grossas,
fendia os homens até ao cavalo;
em partes iguais tombavam no prado,
metade para um e para o outro lado.
422 ORLANDO FURIOSO
4o Esta besta cruel saiu do fundo 43 A fera tão cruel um mais molesto
do Inferno, quando limites exactos não terá que Francisco, rei dos Francos;
aos campos se deu, e de quando oriundo bom é que outros exceda neste gesto;
é peso e medida, e escritos contratos. nenhum melhor tem, poucos a seus flancos 13 ;
Não atingiu de início todo o mundo, tanto em esplendor real como no resto,
deixando muitos países intactos. em virtude outros fará parecer mancos
Hoje em dia, muito lugar conturba; que antes bons pareciam; tal qual fenece
mais ofende os populares, a vil turba. outro esplendor quando o Sol aparece.
41 Desde o princípio, de forma distinta, 44 No primeiro ano do feliz reinado,
até hoje cresceu e irá mais crescendo; ainda mal tendo a coroa na fronte,
no crescimento tanto se requinta passará os Alpes, tendo logrado
que o maior monstro será, mais horrendo. o plano a quem o espera além do monte'\
O outro, Píton'2, que em papel e tinta por nobre e justo desdém estimulado;
se diz ter sido horrível e tremendo, pois espera ainda que se desafronte
deste não chegou sequer a ser meio, o que, da fúria de pastores saído,
nem tão abominável nem tão feio. o exército francês terá sofrido15 •
42 Fará cruel matança, e tudo em bloco 45 E dali descerá ao plano chão
arruina, infecta, contamina a eito; da Lombardia, o escol da França em torno,
quanto mostra a escultura é só um pouco e tanto o Suíço esmagará que em vão
de seu nefasto e execrável efeito. pensará outra vez alçar o corno.
Ao mundo, de mercê pedir já rouco, À Igreja e Espanhóis dando humilhação
estes, que o nome aqui têm perfeito e aos Florentinos, que lhes dão contorno 16,
e que como piropo hão-de luzir, o castelo expugnará, no passado
na maior falta virão acudir. sempre inexpugnável considerado 17 •
CANTO XXVI 425
46 Mais que outra arma, para expugná-lo muito 52 Do generoso, ilustre e claro sangue
lhe valerá aquela honrosa espada d'Avalo, dois, com o monte no brasão,
com que matará, com o monstro, o intuito que, da testa aos pés de cobras, é cangue
seu de toda a Terra ver depravada. para o ímpio Tifeu manter em prisão22 •
Forçoso é que ante ela fuja fortuito Nenhum destes dois, para deixar exangue
todo o estandarte, ou derrota arrecada; o monstro, do outro avança fracção:
não há fosso, abrigo ou grossa muralha um é Francesco di Pescara invicto,
que para cidade salvar dela valha. outro Alfonso del Vasto aos pés tem escrito.
47 Esse príncipe há-de ter a excelência 53 Mas Consalvo Ferrante23 , onde deixado
que um hábil comandante ter devia: foi o hispano honor, tão prezado era
o ânimo de César, a prudência que por Malagigi foi tão louvado,
que no Transimeno e Trebbia 1 8 havia, e poucos pares nesse grupo tivera?
e de Alexandre 19 a sorte, cuja ausência Guglielmo di Monferrato agrupado
todo o desígnio em fumo desfaria. era aos que tinham morto a bruta fera;
Será tão liberal que eu o contemplo poucos, à vista dos descomedidos
sem lhe ver comparação ou exemplo. - que por ela foram mortos ou feridos.
48 Tal disse Malagigi, e assim provê 54 Em conversas, gracejos e folias,
de desejo os outros de ter certeza após comer, passou-se o dia morno,
do nome de algum mais que morte dê estendidos em finas tapeçarias
à besta infernal, a matar aveza. entre os arbustos que o rio tinha em torno.
Um Bernardo20 entre os primeiros se lê, Malagigi e Viviano de armarias,
que Merlim no seu escrito muito preza. para os outros proteger, tinham adorno;
- Este fará (disse) nota Bibbiena quando uma mulher viram vir sozinha,
quanto a vizinha Florença e Siena. - que para eles se dirigia asinha.
49 Aqui ninguém adiante põe a mão 55 Era ela aquela Ippalca a quem tirado
a Sismondo, Giovanni, Ludovico: Frontino, o corcel, foi por Rodomonte.
um Gonzaga, um Salviati, um de Aragão, Tinha o outro dia atrás dele andado,
cada um do monstro grande inimico. pedindo e praguejando naquele monte;
Francesco Gonzaga, e em comunhão sem conseguir, para trás tinha voltado,
consigo sempre o filho Federico; para encontrar Ruggiero em Agrismonte.
o cunhado e o genro aqui descortino, Pela via ouviu (de quem, já não completo)
um de Ferrara, outro duque de Urbino. que ali o acharia com Ricciardetto.
50 De um destes, o seu filho Guidobaldo 56 Conhecendo bem o lugar (vezeira
não quer que ninguém para trás o remeta. era a vir ali), logo de ir fez fito
Com Otobon dal Flisco, Sinibaldo ao riacho; onde daquela maneira
caça a fera; a pressa é de ambos a meta. os encontrou, como acima está escrito.
Luigi da Gazolo um ferro, em saldo, Mas, como boa e cauta mensageira,
no pescoço lhe dera de uma seta que melhor faz até do que lhe é dito,
que houve de Febo com o arco, quando quando viu o irmão de Bradamante,
Marte da espada lhe deu o comando2 1 • de não conhecer Ruggier fez semblante.
51 Dois Ercoli, dois Ippoliti d'Este, 57 Para Ricciardetto toda se voltou,
outro Ercole e outro Ippolito ao lado, tal como se para ele se dirigisse;
da Gonzaga e de' Mediei, que preste reconhecendo-a, ele se encaminhou
seguem o monstro, tendo-o já cansado. para ela, e quis saber aonde seguisse.
Nem Giuliano do filho creio que reste, Ela que tinha, pois tanto chorou,
nem Ferrante do irmão, atrasado; rubros os olhos, suspirando disse;
nem menos pronto Andrea Doria; ou deixe disse com força, para tornar aberto
Francesco Sforza que um outro o releixe. a Ruggier seu dizer, que estava perto.
426 ORLANDO FURIOSO
58 - Trazia comigo (disse) pela brida, 60 Todo ontem e hoje lho pedi; quando
como por tua irmã recomendado, os rogos e ameaças vi ser em vão,
um cavalo belo, e bom de corrida, com muitos insultos e praguejando,
que ela ama muito, Frontino chamado; não muito atrás fiz dele separação;
mais de trinta milhas fizera de ida, onde ele e o corcel, muito se esforçando,
para Marselha, aonde em dia aprazado defesa tenta, com a arma na mão,
ela vai, e me disse que a esperasse de um guerreiro que mostra tal possança
até ao dia em que ela ali chegasse. que espero que faça por mim vingança. -
59 T ão confiante estava do crer meu 6 1 Ruggiero àquele falar saltou em pé,
que não esperava que aquele, como uma fera, pois a conversa mal pudera ouvir;
ousasse tirar-mo, dizendo-lhe eu a Ricciardetto vai, e, por mercê
que o corcel da irmã de Rinaldo era. e prémio e galardão de o bem servir,
Mas o que esperava não aconteceu: mil vezes lhe roga licença dê,
que o mouro o levasse não estava à espera; e com a dama sozinho o deixe ir,
nem por de quem Frontino era eu dizer, para lhe ser o sarraceno mostrado,
o induzi a querer-mo devolver. que o corcel da mão lhe tinha tirado.
62 A Ricciardetto, muito descortês
a outro conceder lhe pareceu
reparar ofensa que a si se fez;
porém, ao querer de Ruggiero cedeu;
despediu-se com muita polidez,
e com Ippalca à via se meteu,
deixando nos que ficavam estupor,
não só maravilha, pelo seu valor.
63 Dos outros afastando-se entretanto,
por Ippalca tudo lhe foi narrado:
tinha-a enviado aquela que tanto
em seu coração o havia gravado;
sem mais disfarces, revelou-lhe quanto
sua ama lhe tinha recomendado,
e que, se antes dera à fala outro aspecto,
fora pela presença de Ricciardetto.
64 Disse que aquele que o corcel tirou fero
também lhe dissera, com altivez:
- Por saber que o cavalo é de Ruggiero,
ainda to tiro com mais levez.
Dá-lhe a saber (pois esconder-lho não quero),
se reavê-lo quiser outra vez,
que sou Rodomonte, cujo valor
por todo o mundo mostra o seu esplendor. -
65 Escutando, Ruggier mostra no semblante
quanto desdém no coração sentia;
um, porque queria a Frontino bastante,
dois, porque sua dama lho remetia,
três, porque tirar-lho era humilhante;
descrédito e vergonha a si viria
se a Rodomonte o não tira depressa,
fazendo vingança que ele não esqueça.
CANTO XXVI 427
66 Ela Ruggier guia e não amodorna, 69 Marfisa, a pedido dos outros, punha
pois quer pôr-lhe o sarraceno defronte; de mulher vestes, jóias de valor,
chegam onde a estrada em duas se entorna: daquelas que para Lanfusa supunha
uma vai para o plano, outra sobe o monte; mandar o de Mogúncia, aquele traidor;
mas ao vale uma e outra depois torna, muito raramente se testemunha
onde havia deixado Rodomonte. Marfisa sem armadura a rigor;
A via do monte era áspera e breve; nesse dia a tirou; e, qual mulher,
mais longa era a outra, mas plana e leve. em saia por eles se deixou ver.
67 Pelo grande desejo que anima Ippalca 10 Assim que o tártaro avista Marfisa,
de ter Frontino e vingar vilanagem, tem a certeza que há-de ali ganhá-la,
ela o caminho da montanha calca, e em recompensa e por troca precisa
por onde era bem mais curta a viagem. com Doralice, a Rodomonte dá-la;
Mas o rei de Argel a outra socalca, Amor que assim se rege desta guisa,
com o tártaro e toda a equipagem; que sua dama vender ou permutá-la
na via plana e fácil se mantém, possa o amante, nunca se contrista,
e com Ruggiero nem encontro tem. pois quando uma perder, outra conquista.
68 Foram suas querelas diferidas 71 Portanto, para provê-lo de donzela
enquanto Agramante se socorria (e para si assim a outra consigna),
(já sabeis); e hão de suas colhidas Marfisa, parecendo-lhe airosa e bela,
a razão, Doralice, em companhia. para qualquer cavaleiro mulher digna,
Agora, ouçam do acaso as partidas. como para ele terá esta ou aquela
Para aquela fonte eles seguem a via, apreço igual, oferecer-lha designa;
onde Aldigier, Ricciardetto e Marfisa, e todos os que ali estão, à porfia,
Malagigi e Vivian confraterniza. ao duelo e à batalha desafia.
n Malagigi e Vivian, que armas vestiam,
por estar à guarda e defesa do resto,
de onde estavam sentados já se erguiam,
um e outro para batalhar mui lesto,
pensando que com os dois justariam;
mas o africano, para tal nada presto,
não deu sinais nem movimento algum;
e assim a justa foi dois contra um.
73 Primeiro Viviano com brio se move,
e ao avançar abaixa uma hasta grossa;
o rei pagão, para que sua fama prove,
do lado oposto maior força esboça.
Enrista um e outro, e o golpe promove
onde julga que há-de fazer mais mossa.
Viviano o elmo ao pagão fere em vão:
nem o dobra, quanto mais ir ao chão.
74 O rei pagão, cuja hasta era mais dura,
o escudo de Vivian fez parecer gelo;
fora da sela, no meio da verdura,
das flores no colo caiu sem apelo.
Vai Malagigi tentar a aventura
de seu irmão vingar num atropelo;
mas tão depressa no chão o alcança
que lhe fez companhia, e não vingança.
428 ORLANDO FURIOSO
75 Antes do primo, o outro irmão destino 78 Como outro cavaleiro não se apresenta,
buscou com as armas, no corcel montado; que ao pagão para combater mostre a fronte,
tendo desafiado o sarracino, pensa ele que já ganhou com a tenta
assaltou-o a toda a brida lançado. a dama, e chega-se-lhe, junto à fonte;
Cai o golpe a meio do elmo fino disse-lhe: - Teu novo senhor te enfrenta,
do pagão, abaixo da vista um dado; se outro não há que por ti sela monte.
voou a hasta feita em quatro ao céu, Não podes recusar, nem pedir escusa,
mas do choque o pagão nem se moveu. pois por regra de guerra assim se usa. -
76 Feriu-o do lado esquerdo o pagão; 79 Marfisa, erguendo com ar altaneiro
e, porque o golpe com tal força dê, o rosto, disse: - O teu juízo erra.
nada o escudo, e a couraça também não, Admito que digas o verdadeiro:
lhe valeu: como casca abrir-se vê. tua seria por regra de guerra,
Trespassou-lhe o ombro o cruel farpão: quando meu senhor fosse, ou cavaleiro,
Aldigier fez vergar da proa à ré; algum desses que deixaste por terra.
entre flores e ervas se viu composto, Sua eu não sou, e não sou senão minha;
rubro nas armas, pálido no rosto. quem me quiser, comigo se engalfinha.
77 Vem Ricciardetto com intrepidez, 80 Escudo e lança sei usar também eu,
e ao vir enrista uma tão grande lança, e em terra mais que um já por mim foi posto. -
mostrando, como mostrou muita vez, - Dai-me as armas (disse) e o cavalo meu -,
que dignamente é paladim de França; aos pagens que obedeceram com gosto.
isso manifesto ao pagão não fez, Tirou a saia, em gibão apareceu,
por não estar equilibrada a balança; e o seu corpo formoso e bem disposto
pois cambalhota deu, porque o cavalo deixou ver que em cada uma sua parte,
caiu-lhe em cima, não pôde evitá-lo. salvo no rosto, assemelhava a Marte.
81 Depois da armadura, a espada cingiu,
e no corcel montou dum leve salto;
para cá, para lá, três vezes o impeliu,
e fê-lo também empinar-se ao alto;
desafiando o pagão, comprimiu
a grossa lança e começou o assalto.
No campo troiano, Pentesileia, 24
contra Aquiles, assim fez epopeia.
82 Até ao punho as lanças se quebraram
ao soberbo impacto, como cristal;
mas os que as empunhavam nem dobraram
um só dedo, que se desse por tal.
Marfisa quer ver se a tal se comparam
corpo a corpo as forças do seu rival;
estudando a resistência do pagão,
para ele se volta de espada na mão.
83 Maldisse Céu e elementos o crudo
pagão, quando ficar a viu na sela;
ela, que pensava quebrar-lhe o escudo,
não menos desdenhosa o Céu flagela.
O ferro na mão os dois têm desnudo;
contra as armas fadadas se martela:
armas fadadas cada um vestia,
'' nunca tão úteis como naquele dia.
CANTO XXVI 429
96 pois, fazendo-o, fará aquilo que deve 1 02 Que a minha insígnia abusivo transportes,
fazer a seu senhor campeão fiel. já antes to disse, e não teve efeito.
Depois que aquele assédio se soleve, Crês, louco, que eu, porque assim te comportes,
tempo terão para destilar o fel. alguma vez por ti tive respeito?
Ruggiero responde: - Ser-me-á leve Mas, uma vez que ameaças tão fortes
adiar a pugna, até que se acautele tal loucura não te tiram do peito,
das forças de Carlos rei Agramante, vou-te mostrar quão melhor tinha sido
porém Frontino quero neste instante. de imediato me teres obedecido. -
97 Que fizeste grande erro hei-de prová-lo, 103 Como aquecido pau, já seco bem,
e acção bem indigna de um homem forte, que a pequeno sopro logo se acende,
tirando a uma mulher o meu cavalo; tal se inflama de Ruggiero o desdém,
se queres que isto adie até estar na corte, ao primeiro som que do outro apreende.
larga Frontino, que eu quero guardá-lo. - Pensas (disse) que obediência me atém,
Não penses que doutro modo eu suporte porque este também comigo contende?
que esta batalha entre nós se defira, Mostrar-te-ei que consigo depor
ou de trégua uma hora te confira. - ele do corcel, tu do escudo de Heitor.
9s Enquanto Ruggiero assim faz demanda 1 04 Já outra vez por tal motivo estive
(quer Frontino ou batalha nessa hora), contigo em batalha, pouco é passado;
e aquele para trás das costas tudo manda, porém de matar-te então me contive,
não querendo o corcel dar, nem ter demora, por ver que espada não tinhas ao lado.
vem Mandricardo duma outra banda, Estes são factos; antes, sinais tive30 ;
e em campo apresenta outra lide agora: o pássaro branco não te é adequado,
viu que o brasão de Ruggier tem por lei que é antiga insígnia da minha gente:
o pássaro que dos outros é rei26 • tu usurpaste; eu uso-o justamente. -
99 Em campo azul a águia branca tinha, 105 - Tu é que usurpaste a insígnia minha! -,
que dos Troianos foi insígnia bela: gritou Mandricardo, a espada puxando;
como Ruggier por origem provinha aquela que antes, por loucura, tinha
do grande Heitor, também usava aquela. abandonado na floresta Orlando.
Mandricardo tal saber não detinha; Ruggier, que as leis da cortesia asinha
e não admite, e ofensa revela, recorda e sempre segue e cumpre, quando
por em seu escudo outro ser portador viu que o pagão tinha tirado a espada,
da águia branca do famoso Heitor. deixou sua lança cair na estrada.
1 00 Usava Mandricardo similmente 106 E ao mesmo tempo Balisarda tira,
a ave que Ganimedes raptou27 • a boa espada, e mais o escudo embraça;
Teve-a naquele dia como presente o africano3 1 ao centro o corcel atira,
no perigoso castelo, onde a ganhou; e também Marfisa lhes faz negaça;
penso que a história guardareis na mente, Tem ele um, ela o outro tem em mira,
de como aquela fada lho ofertou28 , rogando ambos que luta não se faça.
com todas as mais armas que Vulcano Rodomonte diz que rompeu o pacto
tinha já dado ao cavaleiro troiano. duas vezes Mandricardo, e é facto.
101 Já batalha quase tinham travado 1 07 Primeiro, por querer conquistar Marfisa,
Mandricardo e Ruggier, em duelo presto; por mais de uma justa fora ocupado;
o motivo por que foi atalhado ora, para privar Ruggier da divisa,
não digo, pois já vos é manifesto29 • por Agramante está pouco em cuidado.
Não se tinham desde então defrontado, - Se afinal (dizia) ages desta guisa,
senão agora; e Mandricardo lesto, acabemos o duelo começado32 ,
vendo o escudo, voz de ameaça emitiu, mais conveniente e legítimo, aliás,
e disse a Ruggier: - Eu te desafio! que estes outros dois em que és contumaz.
CANTO XXVI 431
1 08 Com tal condição foi estabelecida 114 Mas se acudir devemos a Agramante,
a trégua, e um acordo entre nós feito. acuda-se, e entre nós não se contenda. -
Tendo a pugna contigo resolvida, - Por mim, nada impede de irmos avante
pelo corcel respondo a este sujeito. (disse Ruggier), dando ao corcel emenda.
Tu, do teu escudo, se ficares com vida, Ou dê-me o cavalo, e assim é bastante
no fim resolverás com ele o pleito; falar, ou então de mim o defenda:
mas tanto te dou que fazer que, espero, ou aqui morto hei-de ficar, ou eu
muito não há-de sobrar para Ruggiero. - ao campo volto no cavalo meu. -
1 09 - A parte em que pensas, não a terás 115 E Rodomonte: - A segunda contesto,
(respondeu Mandricardo a Rodomonte); mas a primeira conseguir é leve33 • -
eu vou-te dar mais do que esperarás, E prosseguiu: - Eu te faço protesto
e far-te-ei suar desde os pés à fronte; que, se algum dano nosso rei já teve,
e sobrar-me-á inda para dar assaz será culpa tua; eu bem me apresto
(tal como nunca falta água na fonte) a fazer tudo o que fazer-se deve. -
a Ruggiero e a mil que traga consigo, Ruggiero àquele protesto pouco liga;
e a todos que queiram ver-se comigo. - em fúria a espada agarra, pronto à briga.
1 1 0 Iam crescendo palavras e ira, 1 1 6 Ao rei de Argel, qual javali, se esgalha,
tanto deste como daquele lado; e nele embate com o escudo e o lado;
para Rodomonte e para Ruggier se vira de tal modo o confunde e o atrapalha
ao mesmo tempo Mandricardo, irado; que um pé do estribo a sair é forçado.
Ruggiero, que ultrajes nunca engolira, Mandricardo grita-lhe: - Ou a batalha
não quer acordo, à liça motivado. adias, ou também eu sou achado. -
Marfisa anda deste para aquele canto e, cruel e falso o mais que podia,
para acalmar, mas sozinha não faz tanto. Ruggier no elmo, ao falar, agredia.
1 1 1 Qual aldeão, a quem o rio inunde 1 1 7 Ruggiero ao colo do corcel se inclina,
as altas margens buscando outra estrada, e quando se quer reerguer não pode;
apressado, para ver que não lhe afunde pois chega junto dele e o arruína
os verdes pastos e a verde cevada, o filho de Ulieno34 , que o sacode.
fecha uma via e outra, e se confunde; Se não fosse de têmpera adamantina,
pois, se aqui lhe deixa a via tapada, o elmo fendia até ao bigode.
ali vê tombar os seus diques lassos Abre Ruggiero as mãos com a pancada:
e a água irromper com diversos braços; duma a brida lhe cai, da outra a espada.
1 1 2 assim, entre Ruggiero e Mandricardo 1 1 8 Pelo campo fora o carrega o corcel,
e Rodomonte há grande agitação; e atrás lhe fica em terra Balisarda.
cada um quer mostrar-se mais galhardo, Marfisa, esse dia companha dele
e ter que o companheiro mais razão; de armas, parece que de raiva arda,
Marfisa para os acalmar dá resguardo, por só, entre os dois, se ter visto aquele;
cansa-se e desperdiça tempo e acção; e, como era magnânima e galharda,
assim que um afasta e dali retira, vai a Mandricardo e, com o seu poder
os outros dois vê que crescem em ira. que a ira aumentou, na cabeça o fere.
113 Marfisa, que queria pô-los de acordo, 119 Rodomonte atrás de Ruggier se lança:
dizia: - Escutai meu conselho amigo: Frontino ganha, se outra assim lhe aplica;
bom é que adiem as pugnas, recordo, mas Ricciardetto com Viviano avança,
até que Agramante não corra perigo. e entre Ruggiero e o sarraceno fica.
Se teima cada um em ser balordo, Um sobre Rodomonte se abalança,
também eu com Mandricardo me intrigo; e este, à força, de Ruggiero abdica;
quero ver se é capaz de me ganhar, o outro, Viviano, a Ruggier, já são,
como diz, por bem saber armejar. foi sua espada meter-lhe na mão.
432 ORLANDO FURIOSO
121 Ruggier no elmo ao sarraceno assesta; 1 23 Deu-lhe o golpe Ruggier com tal alento
e se com sua espada se encontrasse, que fez sobre a garupa de Frontino
se o outro (disse eu), no início desta tombar elmo e o duro revestimento
batalha, à traição o não desarmasse, de que armava o seu dorso o sarracino;
estou certo que para defender a testa e oscilou três vezes num movimento
de Rodomonte, o elmo não bastasse; que quase o forçou a fazer o pino;
o elmo feito para o rei de Babel, e também teria perdido a espada,
quando guerra aos Céus pensou fazer ele35 • se acaso à mão não estivesse ligada.
CANTO XXVI 433
1 2s Malagigi, que magia tão bem 1 33 Ruggiero não quer deixar indecisa
sabe como qualquer mago excelente, com o rei de Argel a questão do cavalo;
mesmo se o livro consigo não tem, o tártaro largar não quer Marfisa,
que para o Sol parar era competente, visto que a gosto não pôde prová-lo.
a esconjuração com que o poder vem Deixar sua querela desta guisa
para comandar demos tinha na mente: a um e a outro causa grande abalo.
logo um para o corpo do rocim expeliu Fazem de comum acordo ameaços
de Doralice, e com fúria o impeliu. de quem os ofendeu seguir os passos.
1 29 No manso cavalote em que seguia 134 No campo sarraceno os acharão,
montada a filha do rei Stordilano, se antes a distância os não aproxima;
um anjo de Minos38 introduzia para levantar o assédio ali irão,
com palavras o irmão de Viviano; antes que o rei de França tudo oprima.
e ele, que a avançar não se atrevia, Assim, directamente para lá vão,
senão obedecendo ao seu soberano, onde achá-los de certeza se estima.
deu de repente ora no ar um salto, Mas não se afasta Ruggier tão depressa
de trinta pés longo e dezasseis alto. que dos companheiros se não despeça.
130 Foi grande o salto, mas não de tal sorte 135 Assim, Ruggier para aquele lado parte
que por isso alguém caísse da sela. em que de sua dama está o irmão,
Quando no alto se viu, gritou forte e profere-se dele em qualquer parte
(por pensar que ia morrer) a donzela. amigo, em boa ou em má situação;
O rocim, que do diabo tem desnorte, depois roga (o que faz com muita arte)
após o salto, dali vai com ela, que leve à irmã sua saudação;
que grita por socorro, com tal mecha disse-lho de maneira tão perfeita
que o não teria alcançado uma flecha. que nele e em ninguém levantou suspeita.
131 O filho de Ulieno da batalha 1 36 De Viviano e Malagigi quis
partiu, logo que ouviu aquela voz; despedir-se, e ainda de Aldigier ferido.
e, para onde ouve que o palafrém ralha, Todos se lhe proferiram servis,
para a dama socorrer corre veloz. e cada um se disse agradecido.
Mandricardo também dali tresmalha, Marfisa tanto queria ir para Paris
de Marfisa e Ruggier não mais algoz; que os amigos saudar tinha esquecido;
sem que paz ou trégua, aliás, pedisse, Malagigi e Viviano tanto andaram
persegue Rodomonte e Doralice. que embora de longe ainda a saudaram;
132 Marfisa entretanto ergueu-se da terra, 137 e Ricciardetto; Aldigiero, porém,
e abespinhada de desdém e ira, tem de estar deitado contra vontade.
pensa fazer sua vingança, e erra, Aqueles dois39 , e ora estes40 também,
pois já bem longe o inimigo mira. para Paris foram com celeridade.
Ruggiero, vendo tal fim ter a guerra, Senhor, no outro canto ouvireis bem
ruge como um leão, fundo suspira. contar a sobre-humana actividade,
Com seus corcéis Frontino e Brigliadoro que aos homens de Carlos deu tanto abalo,
apanhar, sabem que é intuito goro. destes dois pares de que aqui te falo.
436 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
8 Uma besta: a qual, como a loba dantesca (Inferno, 1:49 27 A ave [. . .] raptou: a águia (cf. nota a IV:47).
ss.), representa a cobiça, estando-lhe associados os piores
vícios, simbolizados pelos traços físicos: ignorância (ore 28 Creio [. . .] ofertou: cf. nota a XIV:3 1.
lhas de burro); insaciabilidade (testa [. . . ] enxuta); cruelda
de (de kão as garras); astúcia e fraude (tudo raposa). 29
O motivo [. . .] manifesto: no Orlando Innamorato
(L0 • III, Vl:39 ss.), Ruggiero e Mandricardo iam dar iní
9 Decoro: distintivo. cio a um duelo por causa da insígnia da águia, mas foram
interrompidos por Gradasso, que encetou uma disputa
10 Leão: o papa Leão X, Giovanni de' Mediei (cf. 36: !).
com Mandricardo por causa da espada Durindana, que
ambos queriam tirar a Orlando.
1 1 Arturo: o rei Artur.
30 Estes[. . .] tive: agora é a sério; antes, não se chegou a
12 Píton: monstro que foi morto pelas flechas de Apolo.
vias de facto.
13 A seus flancos: a par consigo. 31 O africano: Rodomonte.
14 Plano[. . .] monte: plano de Prospero Colonna, que o 32 Duelo começado: o duelo iniciado entre Mandricardo
esperava numa passagem dos Alpes, enquanto ele os e Rodomonte, interrompido pelo mensageiro, era pe!a
atravessou por outra. posse de Doralice.
15 Da faria [. . .] sofrido: derrota infligida aos Franceses 33 A segunda [. . .] leve: a primeira condição de Ruggiero
pelos Suíços (pastores) em Novara, em 15 13. (aqui morto hei-de ficar) é fácil (/,eve)de se dar, mas não a
segunda (ao campo[. . .] meu).
16 Que [. . .] contorno: que são aliados do papa Leão X e
de Fernando de Aragão. 34 O filho de Ulieno: Rodomonte.
17 O castelo [. . .] considerado: o castelo de Milão. 35 Rei { . .] ek: cf. nota a XIV: 1 18.
19 Alexandre: Alexandre Magno. 38 Anjo de Minos: um demónio, pois Minos (rei de Creta),
depois de morrer, foi juiz infernal.
20 Bernardo: o cardeal Bernardo Dovizi, de Bibbiena,
protector das artes e das letras. 39 Aqueks dois: Rodomonte e Mandricardo.
3 Se tempo para pensar tivesse tido, O rocim que tinha o demónio ao flanco
pode julgar-se que tinha igualmente levou a espavorida Doralice,
dado a seu primo o auxílio devido, sem que algum pedregulho, rio, barranco,
sem danos provocar à cristã gente. valado, bosque ou pântano o impedisse;
Ao diabo ordenar tinha podido até que ao meio do campo inglês e franco,
que, para os lados de levante ou poente, e de toda a multidão que seguisse
tanto tivesse afastado a donzela as insígnias de Cristo, a viu confiada
que em França não se soubesse mais dela. aos cuidados do pai, rei de Granada.
4 Pelos amantes teria sido seguida, 6 Rodomonte foi em perseguição
como foi para Paris, para qualquer parte; com Mandricardo um só dia atrás dela,
mas foi esta advertência inadvertida1 tendo das costas ao longe visão;
por Malagigi, ao usar sua arte; mas de vista acabaram por perdê-la,
e a Maldade, que do Céu foi banida, e seguiram-lhe o rasto, como o cão
e só sangue, morte e fogo reparte, cabrinha ou lebre segue e ao fim desvela;
tomou a via que Carlos lesou, só se detiveram no sítio onde
porque nenhuma o mestre lhe indicou. souberam que ela com seu pai se esconde.
CANTO XXVJI 439
21 Vai mais adiante e vê muitos revoltas 23 Não tinha ainda às trincheiras chegado
em terra, ou antes, num vermelho lago, do rei de África esta primeira força,
no próprio sangue horrivelmente envoltos: já com Marfisa chega de outro lado
já não lhes vale médico nem mago; o intrépido Ruggiero, que os reforça.
e vê os bustos da cabeça soltos Tendo duas vezes o olhar girado
e braços, pernas, em cruel imago; o digno par, com exactidão orça
e encontra, desde o primeiro pavilhão qual a mais breve via para acudir
ao último, homens mortos em porção. ao rei sitiado, e começou a agir;
22 Por onde passara o pequeno bando, 24 Como quando se chega fogo à mina,
de clara fama eternamente digno, pela pólvora, que em longo sulco segue,
no seu longo trilho fora deixando impetuosa chama corre e fulmina,
aquele para sempre memorável signo. que só muito a custo o olho persegue;
O morticínio Carlos vai mirando e tal se ouve depois grande ruína
espantado, e cheio de furor maligno, que o rochedo ou paredão desagregue,
como quem em casa um raio lhe entrou, assim Ruggiero e Marfisa seguiram,
e vai seguindo o rasto que deixou. e a batalhar com tal rumor se ouviram.
2s A direito e de través começaram
a cabeças cortar, e braço e fronte,
dos que à veloz fuga não se entregaram
para que o caminho se lhes desafronte.
Os que as tempestades já observaram,
quando uma parte dum vale ou dum monte
derrubam e outra deixam, têm ideia
da via que o par entre eles clareia.
26 Aqueles que ao furor de Rodomonte
e dos primeiros foram subtraídos,
cada um grato era a Deus porque conte
com boas pernas, pés desimpedidos;
mas ao embaterem de peito e fronte
em Marfisa e Ruggier, desiludidos
viam que o homem, parado ou a andar,
ao seu destino não pode escapar.
442 ORLANDO FURIOSO
35 O rosto do anjo ficou corado, 38 Com a ponta duma cruz lhe deu após:
achando que foi mal obedecido cabeça, costas e braços lhe amassa.
o Criador, e disse-se enganado Pede mercê a falsa em alta voz,
pela pérfida Discórdia, e traído. e os joelhos do santo núncio abraça.
De guerra acender entre os pagãos dado Miguel não lhe dá descanso e, veloz,
ordens tinha, e tal não fora cumprido; para o campo do rei de África a escorraça;
tudo ao contrário parecia ter feito depois disse-lhe: - A :oisa inda piora,
de suas ordens, ao ver-se o efeito. se volto a ver-te deste campo fora. -
36 Qual servo fiel, que mais em amor 39 Embora tendo a Di�córdia maleita
que em memória abunde, e admirado esteja nas costas e braços, porém temendo
por ter descurado o que, com primor, outra vez a tais golpes ser sujeita,
quanto alma e vida requer se proteja, aplicados com um furor tremendo,
à pressa pensa em emendar o error, os foles vai buscar em breve feita,
para não deixar que o seu senhor o veja; e aos fogos acesos lenha acrescendo,
assim o anjo a Deus subir não quis, e acendendo outros, depressa conspira
sem dar ao seu trabalho outro cariz. nos corações um grande incêndio de ira.
37 Do mosteiro, onde já noutra jornada 4o Rodornonte e Mandricardo e também
a Discórdia achou, tornou direcção. Ruggiero tanto inflama que ao rei mouro
Viu-a estar no capítulo sentada, os faz ir, ora que Carlos não tem
dos oficiais a ver a eleição; vantagem para impedir aquele foro.
e os breviários via, deleitada, As divergências contam, donde vem
que um ao outro atirava cada irmão. o motivo que ali os traz em coro;
As mãos lhe deita logo o anjo à crina, depois, do rei aguardam o parecer
e a soco e a pontapé a amofina. sobre quem primeiro o campo vai ter 16 •
41 Também Marfisa seu caso revela,
e afirma que a pugna quer concluir
que iniciou com o tártaro; porque ela
foi por ele provocada a competir;
para às outras dar lugar, não queria aquela
um dia, nem urna hora, diferir;
em ser primeira faz grande insistência,
pede o tártaro à lide com urgência.
42 Também quer Rodornonte o primeiro campo
para terminar com seu rival a empresa,
que para acudir ao africano campo
interrompeu, e até aqui está presa.
Põe Ruggier suas palavras em campo,
e diz que suportar muito lhe pesa
que Rodornonte o seu cavalo tenha,
e que à pugna com ele primeiro não venha.
43 Para mais complicar, o tártaro arranca,
negando que Ruggier tenha o direito
de ostentar a águia da asa branca;
e de ira e de furor tem tal despeito
que, se nenhum dos três houver retranca,
quer as questões todas lutar a eito.
Os outros três não teriam oposto,
se o rei a tal se tivesse disposto.
CANTO XXVII 445
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448 ORLANDO FURIOSO
73 Não tendo já razão para duvidá-lo, 76 Mas pelo convívio nestes dias feito,
o da Circássia ao de Argel informou: camaradagem de novel lhaneza,
- Sabei, senhor, que este é o meu cavalo, permito-me ter-te em tanto respeito
que em Albracca um dia alguém me furtou. que te aconselho a adiar essa empresa
Teria testemunhas para prová-lo; até da batalha veres o efeito,
mas, porque muito longe delas estou, entre mim e o tártaro em breve acesa;
se alguém o negar, eu vou defender com a qual um exemplo mostrar-te espero
de armas na mão o que ouviste eu dizer. que a dizer te leve: «O corcel não quero!» -
74 Contente estou pela boa companhia 77 - Tua cortesia é como a do vilão
que entre nós estes dias tem havido; (diz Sacripante, que a ira incendeia);
que hoje o cavalo te dê serventia, mais forte e clara te faço a alusão:
pois vejo que sem ele estás perdido; desse cavalo tira a tua ideia;
desde que seja a minha senhoria de ti o defendo, enquanto na mão
e o meu empréstimo reconhecido; a vingadora espada se bandeia;
senão, não penses ser dele cavaleiro, e até o defendo à unha e ao dente,
ou se por ele não lutarmos primeiro. - se não puder ser de modo diferente. -
75 Nenhum mais que Rodomonte orgulhoso 78 Passaram das palavras à contenda,
jamais existiu, que para a guerra se arme; aos gritos e ameaças e à batalha;
e como ele um tão forte e corajoso parece que a ira em muitos se acenda
desde os antigos não posso lembrar-me, mais depressa do que pelo fogo a palha.
respondeu: - Fosse outro tão audacioso, Rodomonte tem da armadura a venda33 ,
Sacripante, como tu a falar-me, Sacripante não tem chapas nem malha;
à sua custa de imediato aprendia mas, porque tão bem a esgrimir manobre,
que ter nascido mudo bom seria. parece até que a espada todo o cobre.
CANTO XXVII 449
79 Não era a robustez e a dureza 85 Marfisa que aos gritos também correra,
de Rodomonte, ainda que infinita, enquanto a história do cavalo ouvia,
maior do que a prudência e a destreza turvou-se-lhe o rosto, pois lhe ocorrera
com que Sacripante sua força incita. que a espada perdera no mesmo dia;
Não volteou nunca com mais presteza e aquele corcel que ter asas parecera
a mó que no moinho o trigo brita, ao fugir dela, ali reconhecia35 ;
como Sacripante com a mão e o pé, também reconheceu naquele instante,
para aqui, para ali, onde preciso é. que antes ignorara, o rei Sacripante.
80 Ferraú, Serpentino, destemidos, 86 Os que estavam em torno, e que gabar-se
sacando a espada entram no desaforo, disto Brunel escutaram muita vez,
por Grandonio e Isoliero seguidos, com ele começaram a revoltar-se,
e por muitos senhores do povo mouro. e a ver a culpa dele com nitidez;
Eram esses os barulhos que ouvidos Marfisa suspeita, e, para informar-se,
foram no outro pavilhão com estouro, a quem perto tinha perguntas fez,
pelos que queriam pôr de acordo o soberano, até que veio a concluir que aquele
com o tártaro e Ruggiero, sericano34 • que lhe tirara a espada era Brunel;
81 Alguém a notícia ao rei Agramante 87 e soube que, pelo furto que o tornava
trouxe de que, por causa do corcel, digno de ao pescoço ter nó corrido,
tinha com Rodomonte Sacripante o rei Agramante T ânger lhe dava,
iniciado um áspero assalto e cruel. como rei (caso insólito) assumido.
O rei, de tanta disputa observante, Marfisa, que seu ódio refrescava,
disse a Marsilio: - Vê se o aranzel decidiu vingar-se ali do impunido,
entre estes não se torna mais agudo, dos chistes que nesse dia, na estrada,
enquanto à outra desordem acudo. - lhe dissera além de roubar a espada.
82 Rodomonte que o rei, seu senhor, mira, 88 O seu escudeiro o elmo abotoou,
refreia o orgulho e recua o passo; que das outras armas estava provida.
com menos respeito não se retira Sem couraça dez vezes eu não dou
o que com ele exercitava o braço. por ela ter sido vista na vida,
Pergunta Agramante a causa da ira, desde o dia em que a usá-la habituou
com nobre atitude e grave compasso; sua pessoa, por demais destemida.
e tenta, depois de tudo entendido, Posto o elmo foi onde, entre os primeiros,
conciliá-los; mas é tempo perdido. estava Brunel nos assentos cimeiros.
83 O rei da Circássia o corcel não quer 89 Chegando-lhe perto, logo o agarra
que com o rei de Argel mais tempo reste, pelo meio do peito, e do chão o elevou,
se com palavras humildes não vier como elevar sói, com a adunca garra,
cortesmente pedir que lho empreste. a águia quando o frango arrebatou;
Rodomonte a soberba não digere, e para onde a questão se desamarra
e diz-lhe: - Nem o Céu, quanto mais este, perante Agramante, assim o levou.
faria que a alguém ficasse grato Brunello, o qual em maus lençóis se vê,
por algo que pela força eu arrebato. - chora e não cessa de pedir mercê.
84 Pergunta-lhe o rei que jurisdição 90 Mais que os rumores, clangor, gritaria
tem sobre o bicho e como foi tirado; que enchiam o campo completamente,
Sacripante faz total narração, Brunel, que piedade e ajuda pedia,
e ao narrar fica no rosto corado, acima de todo o ruído se sente,
quando lhe conta que o subtil ladrão, e aos seus lamentos e ais acudia,
que o colhera em pensamento ocupado, e em volta se juntava, toda a gente.
a sela em quatro estacas apoiou Chegada ante o rei de África, Marfisa,
e o cavalo de baixo lhe levou. com rosto altivo, falou desta guisa:
450 ORLANDO FURIOSO
91 - Desejo este ladrão, que é teu vassalo, 95 Não é que o preze ou que lhe tenha amor,
com minhas mãos pela goela pendurar, aliás, há dias que o tem odiado;
pois no dia em que furtou o cavalo de enforcá-lo já fora conjector,
a este, minha espada foi roubar. desde que o anel lhe fora tirado37 •
Caso alguém ache que mentira falo, Mas acha acto indigno do seu honor,
faça-se avante para me ripostar; e só de nele pensar fica corado.
porque perante ti quero defender Pensa, em pessoa, atrás dela correr,
que esse mente, e que faço o meu dever. e vingar-se com todo o seu poder.
92 Como talvez se poderia imputar-me 96 Mas Sobrino, o rei, que estava presente,
que o quis fazer quando há tanta contenda dessa iniciativa muito o dissuade,
e todo o famoso guerreiro se arme dizendo que era pouco conveniente
para a todas as disputas dar emenda, para a alteza da sua majestade,
três dias estou disposta a demorar-me; embora vencedor fosse ciente
tu entretanto, ou outro, que o defenda; que ele era, com toda a credulidade:
depois disso, não tendo impedimento, mais que honra, era vergonha, que se diga
com ele às aves dou contentamento36 • que uma mulher ele venceu com fadiga.
93 A três léguas daqui, para aquela torre 97 A honra era pouca e muito era o perigo
vou que fica em frente a um arvoredo; que à batalha a dama desafiasse;
comigo esse caminho só percorre e que lhe dava um conselho de amigo:
um escudeiro e uma aia: assim procedo. que Brunel fosse enforcado deixasse;
Se algum se atreve a pensar que socorre e, se erguer o sobrolho é desobrigo
este ladrão, vá lá; espero-o sem medo. - bastante para que da corda o livrasse,
Assim disse; e logo para lá tomou que o não erguesse, para não impedir
caminho, e pela resposta não esperou. que a justiça se viesse a cumprir.
94 Põe sobre o pescoço do palafrém 9s - Podes mandar quem a Marfisa alegue
Brunel, que sempre pelas crinas segura. (dizia) que disso juiz te faça,
Chora o mísero e grita, e os de quem com promessa de que ao ladrão se pregue
ajuda espera pelo nome procura. ao colo, como ela quer, a baraça;
Tal confusão a Agramante advém e mesmo que ela obstinada to negue,
destes enredos que não se afigura que seja: o seu desejo satisfaça:
como resolvê-los; e o menos leve Brunel dê à forca, e todo o ladrão,
é que Marfisa Brunello assim leve. mas não se desfaça a vossa afeição. -
99 Agramante de bom grado se ateve
ao parecer de Sobrino, cauto e ciente:
ir atrás de Marfisa não se atreve,
nem outro mandar, para ser-lhe oponente;
nem pedido fazer vontade teve;
tolerou, Deus o sabe, estoicamente,
para poder aquietar rixas maiores,
e calar no campo tantos rumores.
1 00 Riu-se disso a Discórdia de má raça,
que paz ou trégua já pouco temia.
Corre de cá para lá por toda a praça,
e em nenhum lugar encontra alegria.
A Soberba faz com ela arruaça,
enquanto ao fogo mais lenha acrescia;
tanto grita que ao reino celestial
chega a Miguel da vitória sinal.
CANTO XXVII 451
1 13 Ver levar-lhe Frontin muito lhe pesa, 1 17 Com suspiros de fogo o ar acendia,
ante seus olhos, sem poder obstá-lo; por onde passava, o mouro dolente;
mas, quando puser fim a esta empresa, Eco45 , pela piedade que dele havia,
tem intenção firme de recuperá-lo. dos antros dava resposta frequente.
Já Sacripante, a quem pugna não lesa, - Ó índole feminil (ele dizia),
como a Ruggier, que possa interditá-lo, como viras e mudas facilmente,
e mais nada tem a fazer que aquilo, e a fidelidade em ti se desdiz!
vai atrás de Rodomonte a segui-lo. O que em ti crê mísero é e infeliz!
1 1 4 Iria apanhá-lo, se não se abeira 1 1 s Nem longa servidão, nem grande amor
de um estranho caso que encontrou na via que te foi por mil provas manifesto,
e que até à noite lhe deu canseira, para o coração te prender houve alor
perdendo assim a pista que seguia. ou para não se mudar assim tão presto.
Encontrou uma mulher que na ribeira Não porque a Mandricardo eu inferior
do Sena caíra, e ali perecia te parecesse, privado de ti resto;
se a dar-lhe ajuda rápido não fosse: nem acho outra razão para o meu revés
saltou para a água e para a margem a trouxe. a não ser esta: porque mulher és.
1 15 Quando à sela quis de novo subir, 1 1 9 Creio te tenha Deus e a Natura
por ele não quis esperar o seu cavalo, posto, ó malvado sexo, neste mundo
e até à noite teve de o seguir, para do homem seres um peso, uma agrura,
não sendo coisa fácil apanhá-lo; o qual sem ti seria mais jucundo;
por fim conseguiu, mas já não soube ir tal como criou a serpente impura,
ao carreiro que deixou para encalçá-lo; o lobo e o urso, e torna o ar fecundo
muitas milhas errou por plano e monte, em moscas, vespas, tavões, e semeia
até de novo encontrar Rodomonte. por entre o trigo o joio e a aveia.
1 1 6 Onde o achou e houve combate teso, 1 20 Mas por que não fez a Natura fida
desvantajoso assaz para Sacripante, que o homem nascesse sem o teu esteio,
que perdeu o cavalo e ficou preso, como, por gesto que sua mão envida,
não digo ora; pois conto já adiante de pereiro, macieira, o mundo está cheio?
como, pela raiva e pela ira aceso Não pode ela fazer sempre à medida46 :
contra a dama e contra o rei Agramante, aliás, se eu reparar como a nomeio,
do campo Rodomonte se afastou, vejo que não fará coisa perfeita,
e o que contra um e outro pronunciou. pois Natura ao feminino é sujeita.
121 Mas, mulheres, não sede ufanas, vaidosas,
porque o homem vosso filho se observa;
vede que dos espinhos nascem as rosas,
e o lírio nasce de fétida erva;
importunas, soberbas, despeitosas,
estéreis de amor, lealdade, reserva,
tontas, falsas, más, desagradecidas,
para eterno flagelo em Terra nascidas. -
1 22 Com tais censuras e clamor conexo,
o rei da Sárcia caminho seguia,
ora pensando, num falar reflexo47 ,
ora num tom que de longe se ouvia,
ofensa e censura ao feminil sexo,
e da razão sem dúvida fugia;
pois, por uma ou duas que encontras más,
deves crer que cem boas acharás.
CANTO XXVII 453
1 23 Embora entre as que eu até hoje amei 1 25 Tinha o sarraceno igual aversão
nunca tenha encontrado uma fiel, contra o seu rei, como contra a donzela;
falsas e ingratas todas não direi, tanto passando as marcas da razão
prefiro culpar meu destino cruel. censurando ele, como censurando ela.
Que muitas há, e mais já houve sei, Deseja ver sobre a sua nação
que não dão causa para que se querele; cair tamanho mal, tanta praceia,
mas quer minha sina que se entre um cento que cada casa em África moleste,
uma houver má, em suas mãos me avento. e que pedra sobre pedra não reste;
1 24 Mas procuro enquanto a vida não finda, 1 26 e, corrido do reino, em dor e luto
ou antes que a crina mais me embranqueça, viva Agramante, mísero mendigo;
um dia dizer que para mim ainda e de tudo ele lhe volte a dar desfruto,
alguma haja que os votos não esqueça. e torne a pô-lo no seu trono antigo,
Se acontecer (pois a esperança me guinda mostrando da fidelidade o fruto;
a tal), que minha força não esmoreça, e o faça ver que um verdadeiro amigo,
para torná-la, quanto eu possa, gloriosa com razão ou não, deve ser preposto,
com palavra e tinta, em verso e em prosa. esteja-lhe embora todo o mundo oposto.
454 ORLANDO FURIOSO
1 27 E, assim girando ora ao rei ora à dama 1 29 As provisões para carros e jumentos
o coração dolente, o sarracino eram tiradas dos navios, das arcas,
jornadas cavalga, sem ir à cama, que, escoltados, levavam suprimentos
e pouco deixa repousar Frontino. onde não se podia ir com as barcas.
Um dia ou dois depois, o panorama Cobriam as margens gordos armemos,
junto ao Saône vê, pois fez destino para ali trazidos de diversas marcas48 ;
ao mar da Provença, com a intenção e os seus condutores ao longo do rio
de a África voltar, à sua nação. a noite passavam, no casario.
1 2s De barcas e navios ágeis, de um lido 130 O rei de Argel, porque lhe sobreveio
ao outro o rio encontrava-se pleno; aqui a noite de um céu negro e cego,
para o exército estar abastecido, aceitou o convite que lhe veio
provisões tinham, de vário terreno; dum vendeiro local para ter aconchego.
porque ao poder mouro foi submetido Tratado o corcel, houve à mesa o esteio
desde Paris ao litoral ameno de pratos vários, vinho corso e grego;
de Aigues-Mortes e, na direcção da Espanha, ama o sarraceno a mounsca mesa,
toda a terra que à direita se apanha. mas os vinhos quis beber à francesa.
CANTO XXVII 455
1 31 O vendeiro, com boa mesa e bom viso, 1 36 Pois como a fénix, que não tem matriz,
tentou fazer a Rodomonte honor; não há mais do que uma no mundo viva,
pois do seu aspecto tirou aviso nem mais do que um que com justiça diz
que era homem ilustre e de valor; que à traição de sua mulher se esquiva.
mas encontrando-se ele de si diviso, Cada um julga ser aquele feliz
e sendo o seu coração desertor e único que tal ventura cultiva.
(mau grado seu fora reconduzido Como lhe poderá chegar algum,
à dama que o feriu), estava emudecido. s e no mundo não pode haver mais de um?
132 O bom vendeiro, dos mais diligentes 1 37 Já me encontrei no erro em que vós sois,
que em França jamais foram recordados, que mulher casta mais que uma existisse.
porque entre inimigas e estranhas gentes Um fidalgo de Veneza depois,
a estalagem e os seus bens viu salvados, que a minha sorte fez que aqui surgisse,
para ali dar serviço, alguns seus parentes exemplos verdadeiros me deu, pois,
chamara, para o mester bem preparados; e da ignorância fez que eu saísse.
porém, nenhum deles falar ousava, Gian Francesco Valerio49 era chamado;
tão mudo e pensativo o mouro estava. seu nome não foi por mim olvidado.
1 33 Dum pensamento a outro vagueando, 138 As fraudes que as mulheres e as amigas
de si o pagão estava muito fora; usam, sabia tintim por tintim;
com a cara no chão, nem sequer alçando sobre isso histórias modernas e antigas,
os olhos, a ninguém o rosto aflora. e experiências próprias, tinha sem fim,
Após muito estar quedo, suspirando, onde vi que mulheres ou raparigas
como se tivesse acordado agora, castas não há, rica ou pobre ou afim;
estremeceu e, regressando à vigília, e se uma mais casta que outra parecia,
o olhar ergueu ao homem e à família. assim pareceu porque melhor escondia.
1 34 O silêncio rompeu, e com semblantes 1 39 Entre as outras (pois tantas me contou
mais amenos, rosto menos toldado, que nem um terço posso recordar),
ao vendeiro e aos outros circunstantes mais uma na mente se me gravou
perguntou se tinham mulher ao lado. que se em mármore mandasse cinzelar;
Que o estalajadeiro e os acompanhantes teria pensado, quem a escutou,
as tinham, foi em resposta informado. o que delas continuo a pensar.
Pede ele a cada um que lhe revele E, senhor, se não vos despraz ouvi-la,
se crê que a sua mulher lhe é fiel. para vergonha delas vou referi-la. -
135 Salvo o vendeiro, deram-lhe resposta: 1 40 Responde o mouro: - Que podes contar-me,
- Que elas são castas temos convicção. - que no presente mais prazer me faça,
E o vendeiro: - Cada um no que gosta que uma história ou algum exemplo dar-me
crê; eu sei que haveis falsa opinião. que meu próprio juízo satisfaça?
A vosso néscio crer faço eu aposta Para melhor eu ouvir, e tu narrar-me,
de que nenhum de vós tenha razão; senta-te em frente, para ver tua traça. -
a si, senhor, igual ideia arranco, No canto a seguir narro o conto inteiro
para não fazer passar preto por branco. que a Rodomonte disse o taberneiro.
456 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
--&!lfix--
1 25
Advertência inadvertida: paranomásia também pre Rei [. . .} Sericana: Gradasso.
sente no original.
26
Quando [. . .} caçador: os antigos criam que os genitais
2
Lampo: fulgor (de força e saber) que eram, para ele, do castor tinham propriedades medicinais.
Orlando e Rinaldo.
27
Na barra: dentro do cercado.
3
Um [. . .} fraudulento: cf. II: 12 ss.
28 Vtiza: cartas que saíram na jogada.
4 Ir [. . .} sorte: cf. 11:26.
29
Em total desafogo: à vista de todos.
5 A honra [. . .} A amante: cf. XVI:28 ss., e XVIII: 1 46 ss.
gr
30
Rei [. .. } filho: Marsilio, rei sarraceno de Espanha, e
6
Anglante [. . .} Brava: castelos de Orlando. Agramante, o rei africano.
7 31
Velho adversário: Satanás. Armas [. . .} progenitor: cf. nota a XIV: 1 1 8- 1 1 9.
8 32
Alçapão: toca. Perto [..} chamado: o nome original do cavalo, Frontalatt.e,
derivava da mancha branca como leite (latte) que tinha
9
Vizinho [. . .} culposa: o lavrador em cujas terras ela na fronte.
tem a toca.
33
Venda: cobertura.
1 ° Carlescos: de Carlos.
34
Soberano [. . .} sericano: Gradasso.
11
Como [. . .} pena: ter asas, como fcaro teve.
35 Aquele [...} reconhecia: reconhecia em Frontino o cava
12
Marquês de Viena: Oliviero. lo que Brunello montava quando lhe roubou a espada.
13 36
De [. . .} chorando: seria forçado a abandonar Paris. Com [. . .} contentamento: dou o seu corpo aos corvos.
14 37
Grande fogo: sangrenta batalha. Anel [. . .} tirado: por Bradamante (cf. IV: 14) .
15 38
Miguel: o arcanjo. Floresta ardena: floresta das Ardenas.
16 39
Quem [. . .} ter: quem vai travar o primeiro combate. Cévennes: cordilheira francesa, no baixo Ródano.
17 40
Caprichosa deia: a Fortuna. Delfos: o oráculo de Apolo, em Delfos.
18 41
De Sárcia [. . .} senhor: Rodomonte. O tártaro e o africano: Mandricardo e Rodomonte.
19 42
Sabe [. . .} lide: sabe que esgotarão as forças, ou mor Como [. . .} costumava: concedendo-lhe apenas os
rerão, no primeiro combate. favores que uma dama casta concedia.
20 44
De [. . .} caminhada: na estrada entre Parma e Borgo Leve: leviana.
San Donnino.
43
Ela: a espada.
21
Vestem-no [. .. } serpente: vestem a Rodomente a sua
45
couraça feita de pele de serpente ou dragão (cf. nota a Eco: a deusa Eco (cf. nota a X:49) .
XVIIl: 1 2) .
46
À medida: convenientemente.
22
Hercúleas [. . .} colonas: habitantes das proximidades
47
das colunas de Hércules (Gibraltar) . Falar reflexo: interiorizado.
23 48
De Stordilan [. . .}filha: Doralice. Marcas: regiões.
24 49
Termodonte [. . .} beira: talvez o rio Termodonte tenha Gian Francesco Vtilerio: fidalgo veneziano, amigo de
visto assim vestidas Hipólita (rainha das Amazonas) e as Ariosto (cf. XLVI: 1 6) , que aparentemente tinha ideias
companheiras, à sua beira. misóginas.
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CANTO XXVIII
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38 Num desses dias esteve ele a ver que ela 44 Se ao rei pareceu aquele acto indecente,
estava indisposta e com melancolia; o julgareis, sem que eu o encareça.
duas vezes fez chamar pela donzela Quase ficava raivoso ou demente;
o anão, mas ele não aparecia. nas paredes quis bater com a cabeça;
Terceira vez mandou, e ouviu aquela quase grita, quase a jura desmente;
que: «Senhora, ele joga (referia); mas a boca fecha e cumpre a promessa,
e, para num tostão não ficar roubado, e a sua ira engole, amara e acra,
recusa-se a vir a vós, o malvado» . porque jurara sobre a hóstia sacra.
39 Com tão raro espectáculo, Jocundo 45 «Que faço eu, irmão? De algo me persuade
recompõe a fronte e os olhos e o viso; (disse a Jocundo), já que tu não deixas
como era o nome, tornou-se jucundo que, com digna vingança e crueldade,
de facto, e mudou o seu pranto em riso. esta ira extravase, e minhas queixas. »
Fez-se alegre, robusto, rubicundo, «Esqueçamos (disse ele) sua indignidade;
parecia um querubim do paraíso; vejamos se as outras são tão releixas:
o rei, o irmão, toda a ordenança, com mulheres doutros, façamos a eles
ficam admirados com tal mudança. o mesmo que a nós fizeram aqueles.
40 Se queria de Jocundo o rei ouvir 46 Somos ambos jovens, e em beleza
donde lhe veio aquele súbito alor, não será fácil achar a nós par.
não menos Jocundo o queria referir, Que mulher usará connosco aspereza,
e da injúria o rei fazer sabedor; se os feios não conseguem rejeitar?
mas não queria, mais que ele próprio8 , punir Se juventude não chega, e lindeza,
quisesse o rei a mulher pelo error; o nosso dinheiro deve chegar.
para lho contar sem a ela dar dano, Não voltaremos, sem teres tu e eu
sobre o agnus dei9 jurou o soberano. de mil mulheres alheias o troféu.
41 Fê-lo jurar que ou por coisa contada, 47 A longa ausência, sítios vários ver,
ou que mostrada sendo o desagrade, e a convivência com mulheres de fora,
e embora vendo que prejudicada faz desafogar e desvanecer
directamente é sua majestade, a paixão que o coração acalora».
jamais aquela acção será vingada; Concorda o rei, e nem protelar quer
e diz-lhe ainda que calar ele há-de, a ida; e em pouco mais duma hora,
para jamais vir a saber a culposa com dois escudeiros, e na companhia
que o rei sabe, ou por acção ou por prosa. do cavaleiro romão, faz-se à via.
42 O rei, que qualquer coisa e nunca esta 48 Disfarçados, batem Itália, França,
podia crer, jurou-lhe inteiramente. as terras de Flamengos e de Ingleses;
Jocundo o motivo lhe manifesta e todas que viam de bela trança
pelo qual esteve tantos dias doente: eram às suas pretensões corteses.
porque tinha encontrado a desonesta Davam, depois faziam a cobrança,
mulher sua nos braços dum servente; e recuperavam o gasto às vezes.
e que essa pena ao fim o teria morto, A tantas solicitaram aqueles,
se mais tardasse a chegar-lhe o conforto. como as que os solicitaram a eles.
43 Pois tinha visto, ao seu palácio vindo, 49 Um mês uma cidade, outra depois
algo que à dor lhe dava atenuação; visitando, puderam pôr à prova
pois, embora no opróbrio caindo, que são as outras como as suas, pois
de não estar só tinha a consolação. que castas e fiéis não são se comprova.
Assim dizendo, e àquela fresta indo, Após algum tempo enjoou aos dois
deixou-o ver o feíssimo anão andar à procura de coisa nova;
que na jumenta alheia está montado, que, em porta alheia sempre entrando ariscos,
a esporeia e lhe faz dar ao costado. corriam de morte inúmeros riscos.
CANTO XXVIII 465
so Melhor será ter uma, a qual em graça 51 Tendo uma, sem esforçar nosso poder,
e em modos aos dois agradável seja; quando só pelo desejo compelidos,
que a ambos de igual modo satisfaça, alegres gozaremos e em prazer,
para que um do outro nunca tenha inveja. sem sermos por desavenças movidos.
«E por que (disse o rei) crês mais me maça Nem creio que ela se deva doer:
contigo a ter que com outro que eleja? pois qualquer uma, tendo dois maridos,
Sei bem que em toda a feminina gente mais que a um só, seria a dois fiel;
uma não há a quem um só contente. talvez nem houvesse tanto aranzel».
CANTO XXVIII 467
56 No albergue um moço havia, ajud�te, 62 Pensa ela um pouco, e depois diz que venha
que já em casa da jovem morou quando estiver certo que tudo dorme;
ao serviço do pai, e dela amante, baixo lhe diz como fazer convenha,
que de seus amores iniciais gozou. para à ida e à volta fazer conforme.
Bem se olharam, disfarçando o semblante, O Grego, tal como ela lhe desenha,
pois ser notado cada um receou; quando sente que o sono é uniforme,
mas, logo que patrões e serviçais à porta vai, empurra-a, e abre-se ela:
espaço lhes deram, foram mais liberais. manso entra, de pé à apalpadela.
57 Perguntou-lhe o rapaz onde ela ia, 63 Dá longos passos, e no pé de trás
e qual dos senhores ela acompanhava. se firma, parecendo o outro avançar
Contou Fiammetta a dupla mancebia como quem vidro embater lhe despraz,
(ela tal, e ele o Grego se chamava). e não chão, mas ovos, esteja a pisar;
«Quando pensava, raios!, que podia de igual modo à frente com a mão faz,
viver contigo (o Grego reclamava), tacteando até o leito encontrar;
Fiammetta, minha vida, vais-te embora, do lado onde os outros tinham o pé,
nem sei se te vejo depois de agora. avança ele, com os seus pés à ré.
58 Amargos vejo meus sonhos fagueiros, 64 Entre uma perna e outra de Fiammetta,
pois de outrem és, e vais para outros lados. que jaz de costas, faz direito piso;
Eu tencionava, tendo alguns dinheiros chega-lhe à face e a ela se acolcheta,
com canseira e muito suor poupados, e até à alva nela está inciso.
que dos salários pus nos mealheiros, Cavalgou forte, sem fazer estafeta 14 ,
e adiafas de fregueses saciados 13 , que de besta mudar não lhe é preciso:
voltar a Valência, e solicitar pois acha ele que esta trota tão bem
a teu pai licença para te esposar». que por toda a noite debaixo a tem.
59 A rapariga seus ombros constringe, 65 Tinha Jocundo e tinha o rei sentido
e responde que foi tardo a aparecer. o cavalgar que o leito sacudiu;
Chora o Grego e suspira, e em parte finge: um e outro, pelo erro confundido,
«Então assim me queres deixar morrer? ao seu companheiro o atribuiu.
Meus flancos ao menos abraça e cinge, Tendo o Grego sua viagem cumprido,
deixa tanto desejo comprazer; assim como veio se escapuliu.
antes de partires, qualquer momento Soltou o Sol do horizonte os raios;
que esteja contigo me dá contento». Fiammetta alçou-se e fez entrar os aios.
60 Responde-lhe a piedosa rapariga: 66 Disse o rei ao amigo, motejando:
«Pensas que menos do que tu me inflamo; «Irmão, muito caminho tu fizeste;
mas nem tempo nem lugar se !obriga, mais tempo deves repousar-te, quando
tendo aqui de tantos olhos açamo». a cavalgar toda a noite estiveste».
Ajuntava o Grego: «Se a mim te liga Jocundo respondeu-lhe, retrucando:
um terço só do amor com que eu te amo, «Devia eu dizer o que me disseste.
hás-de esta noite arranjar algum choco Toca a ti repousar, e bem te faça,
para juntos podermos gozar um pouco». pois toda a noite cavalgaste à caça».
61 «Como posso eu (a rapariga adverte), 67 «Também eu (disse o rei) verdade falo:
se no meio dos dois a noite passo, meu cão deixar correr ser-me-ia grato,
e um ou outro comigo se diverte, se me houvesses emprestado o cavalo
e tenho sempre de um ou de outro o abraço?» para meus fins alcançar, o tempo exacto».
«Para ti nada é que se não conserte Jocundo replicou: «Sou teu vassalo,
(disse o Grego); livrar-te do embaraço, fazes comigo ou quebras qualquer pacto:
de entre eles sair, podes se quiseres: não precisas subterfúgios usar;
deves querer, se pena de mim tiveres». bastava me dissesses: deixa-a estar».
CANTO XXVIII 469
90 Como o doente que, exausto e prostrado 96 Quem ela é, e o monge com quem ia,
pela febre ardente, lado vai mudando, e quem transportam, deve ser-vos claro.
e espera sentir melhorar seu estado lsabella decerto vos parecia,
se para cá e para lá se vai voltando, levando morto o seu Zerbino caro23 •
mas dos dois igualmente é massacrado, Quando para a Provença se dirigia,
à destra ou à canha não repousando, escoltada a deixei pelo monge preclaro,
tal o pagão, para o mal de que é enfermo, que a tinha persuadido a todo o resto
na terra ou na água não acha termo. a Deus votar do seu viver honesto.
91 Para na nave andar já não tem paciência, 97 No rosto mui pálida e combalida
e a terra manda acostar Rodomonte. ia a jovem, cabelo solto em fios;
Passa em Lião, em Viena e em Valência 1 8 , dos suspiros é contínua a saída
e vê em Avignon a rica ponte19 ; do peito arfante, e os olhos são dois rios;
estas e mais cidades obediência, e outros mais testemunhos duma vida
que entre o rio há e o celtibero monte20 , triste e infeliz não estão arredios;
devem a Agramante e ao rei de Espanha porém, de tanto encanto inda é dotada
desde que estes venceram a campanha2 1 • que, com as Graças, a Amor dá morada.
n Para Aigues-Mortes à direita volveu, 98 Quando o sarraceno viu a donzela
pensando a Argel passar de seguida; surgir, mandou o pensamento ao fundo
junto a um rio numa aldeia embateu, que tinha sempre, de odiar aquela
por Baco e Ceres mui favorecida22 , raça gentil que tanto adorna o mundo.
mas, pelos muitos assaltos que sofreu E bem digna lhe pareceu lsabella
da tropa, dali fugiu toda a vida. de lhe dedicar seu amor segundo,
Dum lado o imenso mar, doutro à abriga dando ao primeiro total desapego,
do vale vê ondear a loura espiga. como da tábua sai prego com prego.
93 Sobre um outeiro, encontra de surpresa
uma capela há pouco edificada,
que, desde que a guerra foi perto acesa,
pelos sacerdotes foi abandonada.
A Rodomonte deu morada ilesa;
pois pelo sítio, e por estar tão afastada
da moura gente, pois não queria vê-la,
agradou-lhe, e trocou Argel por ela.
94 O intento de ir para África repele,
tão cómodo o lugar achou e belo.
Os servos, carruagens e corcel,
todos ali encontram refestelo.
Que perto é de Montpellier vê ele,
e de um ou outro rico e bom castelo,
aquela aldeia ao lado da ribeira;
por isso, tem à mão tudo o que queira.
95 Um dia, estando o mouro ali pensoso
(no que estava quase sempre ocupado),
viu que vinha pelo meio dum prado herboso,
por um pequeno atalho atravessado,
uma donzela de rosto formoso,
na companhia de um monge barbado;
e atrás carrregado ia um corcel,
coberta a carga por negro dossel.
472 ORLANDO FURIOSO
99 Foi-lhe ao encontro, e com o mais dengoso 101 O monge que a tal estendia a orelha,
falar que soube, e o melhor semblante, para socorro dar à jovem incauta
mostrou-se de seu estado mui curioso; (que a não reconduzam à via velha),
ela, sua intenção lhe pôs diante; sentado ao leme, qual prático nauta,
que ia deixar este mundo maldoso, de alimento espiritual aparelha
e Deus honrar de modo edificante. lesto uma mesa sumptuosa e lauta.
Ri, altivo, o pagão que em Deus não crê, Mas o mouro, que nasceu com mau gosto,
imigo da religião e da fé. mal a provou, logo lhe deu desgosto;
100 Diz que é intenção impensada e leve, 102 depois que em vão o monge interrompeu
e que ela sem dúvida muito erra; e não conseguiu que ele se calasse,
mais que o avaro censurar se deve, o tra,ii.0 da p'lciência rompeu:
que o valioso tesouro soterra: deitou-lhe as mãos com um furor rapace.
para si benefício nenhum prescreve, Mas podia parecer o contar meu
e do uso dos outros o encerra. excessivo, se mais ora contasse;
Fecha-se o leão, ursos e serpentes, termino o canto; e sirva-me de espelho
não as coisas belas e inocentes. o que por muito falar houve o velho.
NOTAS
--&$'r-
1 12
Apeles e Zêuxis : célebres pintores gregos da Moços de oflcios: serviçais da estalagem.
Antiguidade.
13
Saciados: satisfeitos.
2
Pavia: era capital do reino da Lombardia.
14
Sem fazer estafeta: sem mudar de cavalgadura.
3
Don: rio da Rússia, que desagua no mar de Azov.
15
O mouro: Rodomonte.
4 Baccano: hoje Valle di Baccano, aldeia entre Orvieto
16
e Perugia. Cor te: tribunal.
5 Rio: o Tibre. 17
Aquele: Frontino.
6 18
Corneta: hoje Tarquínia, no litoral toscano. Ariosto Lião, Viena e Valência: cidades francesas; a primeira,
faz, nomeando esta povoação, um jogo de palavras ade na confluência do Saône com o Ródano; Vienne e
quado à situação de infidelidade conjugal. Valence, a sul da primeira, banhadas pelo Ródano.
7 Arbia [ . .] Arno: rios da Toscana. Valem aqui pelas 19
Em [ . . } ponte: anacronismo. Refere-se à célebre
cidades de Siena e Florença. ponte de Avignon, que só foi construída no séc. XII.
8 Mais qu.e ele próprw: mais do que ele próprio punira a sua. 2° Celtibero monte: os Pirenéus.
9 21
Agnus dei (cordeiro de Deus): a hóstia sagrada. Campanha: contra Carlos Magno.
10 22
Valência: cidade famosa na época pela licenciosidade Por Baco [ .. } favorecida: rica em vinha e searas.
de costumes.
23
Isabel/a { .. } caro: cf. XXIV:92-93.
11
Reino de Sifaz: Numídia, de que Sífax foi rei (séc. III a. C.).
�
CANTO XXIX
�
4 Como o novo amor o pica e incendeia, 6 E a ira cresceu tanto que o pescoço
usa argumentos que dão pouco fruto lhe apertou à mão, como uma turquês;
para nela apagar a sólida ideia depois de duas voltas dar ao osso,
de a vida ao Criador dar em tributo. pelo ar, direito ao mar, voar o fez.
Mas o monge, que a protege e refreia Que foi feito dele, dizer não posso;
para manter seu propósito incorrupto, muito boato, e pouca nitidez:
com mais certa e firme dissertação, que ficou desfeito na penedia,
o mais que pode, dá-lhe defensão. e o pé da cara não se diferencia;
Depois do pagão sofrer muito aperto, 7 dizem outros que foi cair no mar,
com grande tédio, do eremita audaz, a mais de umas três milhas de extensão,
e de em vão lhe dizer que ao seu deserto e que morreu por não saber nadar,
sem ela pode ir assim que lhe apraz, depois de rogos e orações em vão;
e que o incomoda de modo aberto, outros, que um santo veio para ajudar,
e com ele não fará trégua nem paz, e à praia o trouxe com visível mão.
a mão com ira ao queixo lhe estendeu, Seja em qual for que vós acreditais,
e tanta lhe pelou quanta prendeu. a minha história dele não fala mais.
-·-======- - - -
- - -- -- . ___
���-- --·----··
-�------=--�---
- -=--- -
CANTO XXIX 475
Rodomonte cruel, quando aliviado 14 Pelo prazer que dá tão curto momento,
se sentiu daquele galrão eremita, e de que tanta abundância há no mundo,
voltou-se, com rosto menos turvado, não desprezes um perpétuo contento,
para a donzela tão triste e tão aflita; um gáudio que a nenhum outro é segundo.
com o falar pelos amantes usado, Tu poderás sempre encontrar um cento
chamava-lhe coração, favorita, de mulheres, ou mil, de rosto jucundo;
e seu consolo, e sua grande esperança, mas alguém que este meu dom te dará,
e outros nomes que dizer é usança. no mundo nenhum ou poucos haverá.
Mostrava-se tão respeitoso agora 15 Sei de uma erva, que encontrei nascida
que não lhe deu de força algum sinal. no atalho que me trouxe, aqui prestes,
O semblante gentil que o enamora a qual, com hera e arruda, fervida
dilui e apaga o orgulho usual: em fogo de madeira de ciprestes,
podendo seu fruto colher embora, e após, por mãos inocentes espremida,
não quer ir além do superficial; se desse licor teu corpo revestes
acha que não será bastante bom, três vezes, de tal modo o enrijece
se dela o não receber como dom. que com ferro ou com fogo não perece.
18 E que assim disporia pouco a pouco 16 Digo: quem três vezes nessa se enrola
a seu favor lsabella ele cria. um mês invulnerável se comprova.
Ela, que num lugar tão só e louco, Há que usar todos os meses a ampola,
como o rato ao pé do gato se via, para que o seu efeito não se remova.
a fogueira aceitaria por troco; A água eu sei fazer, e vou compô-la,
e dentro o pensamento revolvia, e ainda hoje verás disso a prova;
tentando achar uma maneira apta se não erro, há-de ser mais apreciado
a escapar dele imaculada e intacta. que se a Europa houvesses conquistado.
11 Forma no seu íntimo o pensamento 17 Em recompensa disso peço um gesto:
de com sua própria mão se dar morte que por tua fé jures em verdade
antes que o bárbaro cumpra o intento, que, tanto em ditos como acções, molesto
o que razão de errar seria forte, jamais serás à minha castidade. -
contra o que exalara o último alento Assim falando, Rodomonte honesto
em seus braços, por impiedosa sorte; fez ser de novo; pois tanta vontade
ao qual, com seu pensamento devoto, lhe veio de se tornar inviolável
fez de castidade perpétuo voto. que mais prometeu que o indispensável:
12 O apetite vê crescer sem recato 18 que cumprirá, até ver que é um facto
do rei pagão; não vê como livrar-se. da água milagrosa a experiência;
Bem sabe que quer chegar ao vil acto, e esforçar-se-á para não fazer acto,
e dele não tem maneira de guardar-se. ou melhor, nem um sinal, de violência.
Depois de muito discorrer com tacto, Mas depois pensa não manter o pacto,
por fim achou o modo de abrigar-se porque não tem temor nem reverência
e de salvar a sua castidade, a Deus e aos santos; faltar a promessas
por forma a lembrá-la a posteridade. é coisa a que à África pede meças 1 •
13 Ao bruto mouro, que já investia 18 A Isabella, o rei de Argel fez jura
com outras palavras e outros preceitos, de não a molestar mais de mil vezes,
isentos da tão grande cortesia desde que faça a água que assegura
que mostrara nos primeiros efeitos: não ter, qual Cicno e Aquiles2 , reveses.
- Se fizeres que eu segura (dizia) Ela por fragas e vales procura,
sinta minha honra, com teus respeitos, longe de aldeias, por sítios monteses,
algo em paga te dou que mais valor muitas ervas colhendo; e o sarraceno
tem que privares-me do meu honor. de perto a segue, por todo o terreno.
476 ORLANDO FURIOSO
2s Depois de colher de ervas o bastante, 26 Deu ela três saltos, e ouviu-se clara
com raízes umas, outras ausência, voz dela sair, chamando Zerbino,
tarde voltaram à casa distante; para o qual seguir ela encontrou tão !:ara
onde aquele exemplo de continência maneira de escapar ao sarracino.
da noite passou a parte restante Ó alma, a quem fieldade foi mais cara,
a cozer as ervas, com muita ciência; e o nome, quase ignoto e peregrino
daquele trabalho e todo aquele mistério, no tempo que corre, da castidade,
o rei de Argel, cada passo, confere-o. que a tua vida e tua verde idade,
21 Pois gastando o resto da noite em jogo 27 vai em paz, alma tão beata e tão bela!
com alguns servos dos quais tinha apego, Tivessem meus versos tal fortaleza,
sentia, ao calor do vizinho fogo para o que me esforçarei com toda aquela
encerrado em tão angusto aconchego, arte que a palavra orna e embeleza,
tal sede que, a beber com desafogo, que por mil e mais anos a novela
esvaziou dois barris de vinho grego, ouvisse o mundo que o teu nome reza.
que tinham tirado alguns dias antes Vai em paz até ao supremo templo;
os seus escudeiros a uns viandantes. deixa às outras de fieldade o exemplo.
22 Não é com vinho o mouro libertino
(para a religião sua é coisa má);
mas depois de o provar, licor divino
o crê, melhor que néctar ou maná;
e, ignorando o rito sarracino,
por copos e garrafas fim lhe dá.
Fez o vinho a todos, passando em torno,
girar suas cabeças como um torno.
23 A donzela, que entretanto a caldeira
tirou do lume, onde as ervas cozeu,
disse a Rodomonte: - Para que maneira
tenha de provar que o vero disse eu,
e assim distinguir o sério da asneira,
podendo convencer o povo incréu,
a experiência te faço sem demora,
não noutro corpo mas no meu, agora.
24 Quero eu o licor em primeiro lugar
provar-te que está de virtude pleno,
não fosses tu porventura pensar
que este continha algum mortal veneno.
Com ele o meu corpo aqui vou banhar;
a cabeça, o pescoço e o seio dreno;
depois, a força e a espada em mim experimenta:
se isto tem vigor ou se ela ensanguenta. -
25 Banhou-se como disse, e leda fez
oferta ao pagão do colo desnudo.
Incauto, e cego pelo vinho talvez,
contra o qual nada vale elmo nem escudo,
o bruto nela creu, e com rudez
tal uso deu à mão e ao ferro crudo
que a bela cabeça, onde Amor morou,
dos ombros e do peito separou.
CANTO XXIX 477
61 Quando dela deu conta, Orlando, estulto, 67 Não fiquem a pensar que não granjeia
para lhe chegar ergueu-se de repente; novo muar; e sigamos Orlando,
tanto gostou do delicado vulto, o qual seu ímpeto e raiva alardeia
tanto o desejou imediatamente. porque Angelica se está ocultando.
De por ela ter tido amor e culto, A besta seguia pela nua areia,
nenhuma lembrança tinha na mente. indo-se sempre mais aproximando:
Foi atrás dela, da mesma maneira já nela toca, já lhe agarra a crina,
que o cão seguiria a caça matreira. e já o freio, e por fim a domina.
62 O jovem que o louco segui-la vê, 68 Apanha-a com festa descomedida,
de o pisar com o cavalo faz esboço, como outro que apanhasse uma donzela;
e ao mesmo tempo bate sem mercê, ajeita-lhe bem as rédeas e a brida,
apanhando-o nas costas e pescoço. dá um salto e fica em cima da sela;
Que a cabeça arranca dos ombros crê; e muitas milhas lhe dá de corrida,
mas a pele achou dura como o osso, sem repousar nesta parte ou naquela;
mais que o aço até; Orlando, maciço, sempre a sela e o freio lhe conserva,
invulnerável era por feitiço. não a deixa provar feno nem erva.
63 Orlando, ao sentir baterem-lhe atrás, 68 Querendo saltar por cima duma fossa,
voltou-se, e ao voltar-se o punho fechou; faz o bicho voar por cima dela.
com força mais que todas eficaz Não sentiu o choque, nem lhe fez mossa,
bateu no corcel, que o mouro expulsou. mas o bicho no fundo se estatela.
A cabeça qual vidro se desfaz Não vê como dali tirá-lo possa;
de tal modo que o cavalo matou; por fim sobre os ombros o refastela,
e para trás se girou no mesmo instante, da fossa sai, e à carga dá estafeta
atrás dela, que lhe corria adiante. pelo espaço de três disparos de seta.
64 Impele Angelica à pressa a jumenta: 78 Sentindo depois que muito pesava,
com chicote e esporas, toca e retoca; em terra a pôs, querendo levá-la à mão.
naquela aflição, parecia-lhe lenta, Lenta o seguia ela e coxeava;
mas como uma flecha ela se desloca. dizia Orlando: - Anda! -, mas em vão.
Nisto, ao anel que tem no dedo atenta, Mesmo se a galope ela atrás lhe andava,
e que a pode salvar, mete-o na boca: não bastava ao seu desejo malsão.
e o anel, que não perde o seu costume, Da cabeça então tirou-lhe o cabresto,
dá-lhe sumiço, como um sopro ao lume. e amarrou-o ao pé direito com esto;
65 Ou fosse o medo, ou fosse que tomasse 71 assim a vai arrastando, e a conforta
desequilíbrio ao mudar o anel, que o pode seguir com melhor efeito.
ou então, que a jumenta tropeçasse, Uma o pêlo arranca, outra o couro corta,
pois não posso afirmar este ou aquele, das pedras que tinha o caminho estreito.
no mesmo momento em que faz o passe A maltratada besta acabou morta
do anel que a desaparecer compele, por fim, de esgotamento e de mau jeito.
levanta as pernas e cai do arção, Orlando não lhe liga, nem a olha,
e dá por si estendida no areão. e segue caminho sem que isso o tolha.
66 Mais curta dois dedos fosse a descida, n Mesmo morta, atrás de si a carreia,
no louco enrodilhada ficaria, prosseguindo o curso para ocidente;
que com o choque lhe tirava a vida; aldeias, casas que encontra saqueia,
mas a sorte a ajudou na acrobacia. se necessidade de comer sente;
De novo ao furto será compelida, de pão, carne, frutas se banqueteia,
como fizera, para ter montaria15 ; roubando; usa a força com toda a gente:
pois esta não mais vê de qualquer guisa, um deixa morto, o outro estropiado;
que em frente ao paladim a areia pisa. pouco se demora, segue apressado.
482 ORLANDO FURIOSO
73 Coisa igual ou pouco menos faria 74 Não essa apenas, toda a geração
à sua dama, se não se ocultava, que hoje há, às mãos de Orlando fosse em dom;
que o negro do branco não distinguia, pois sem dúvida ingratas todas são,
e fazer bem, mal fazendo, julgava. entre elas não se acha um grama de bom.
Maldito seja o anel que trazia, Mas antes que as cordas em exaustão
e o cavaleiro que, ao dar-lho, a salvava 1 6! ao canto tornem desigual o som,
Faria Orlando, sem tal contratempo, melhor é diferi-lo a outra vez,
vingança própria e de outros, a um tempo. para quem ouve o achar menos soez.
NOTAS
�
1 À África pede meças: está ao nível de toda a África. Os 8 Onde se corre: onde se «corre a lança», onde se com
Romanos diziam: «é mais falso e mentiroso do que se bate.
tivesse nascido em África».
9
Viseira: elmo, do qual a viseira faz parte.
2 Cicno e Aquiles: heróis invulneráveis.
10 Na capital: em Paris (cf. XXlV:74).
3 Aquela { . .] perdeu: Lucrécia, heroína romana que se
11
suicidou depois de ter sido violada por um filho do rei Monte { . .] distinto: Pirenéus.
Tarquínio, o Soberbo, o que originou uma revolta popu
lar que depôs o rei (foi o último rei de Roma). 12 Como { . .] lido: cf. XIX:4 1-42.
4 PamdSo { . .] Helicon: Parnaso, Pindo e Hélicon são mon 13 Onde { . .] pedia: na terra dos Garamantes (antigo
tanhas da Grécia, consideradas morada das musas. Usada a povo africano), que adoravam Júpiter Ámon.
forma Helicon, para desviar o acento méaico para a úlàma síla
ba (cf Camões, écloga «Cantando por um vale docemente»). 14 Seu guia: Medoro.
4 T ão fora de mim estou, tal qual Orlando, E, como nada bem como uma lontra,
e não menos que ele sou digno de escusa; no rio entra e à outra margem deriva.
que ora pelos montes e praias errando, Ali um pastor a cavalo encontra,
o reino de Marsilio2 em parte cruza, que ao rio vai para matar-lhe a sede viva.
muitos dias a jumenta arrastando Aquele, embora Orlando lhe vá contra,
morta, sem que isso embaraço lhe aduza; como está só e nu, não se lhe esquiva.
mas, chegado onde um rio entra no mar, - Queria com o teu rocim (disse o louco)
foi-lhe forçoso o cadáver largar. e a minha jumenta fazer um troco.
6 Daqui, se queres, posso-ta mostrar, s Salta a cavalo e por variada estrada
que além, na outra margem, morta jaz; vai errando, e muita gente saqueia.
depois, podes mandá-la medicar; Não come o rocim feno nem cevada,
por outro defeito não me despraz. e daí a poucos dias baqueia;
Rocim e algo mais me podes dar; porém Orlando arranja outra montada:
desmonta, por obséquio, que me apraz. - cavalo é coisa que não lhe escasseia;
O pastor ri e, sem outra resposta, pois pôs a uso todos que encontrou,
para a água vai, dele se desencosta. mas antes disso seus donos matou.
7 - Quero o teu cavalo; não ouves, não? -, 9 Chegou por fim a Málaga, e mais dano
juntou Orlando, e em fúria se moveu. ali fez que tinha até ali feito;
Com nós grossos, duros, tinha um bastão pois, além de infligir saque tirano
o pastor, e no paladim bateu. ao povo, a quem tirou todo o proveito,
A raiva e ira alcançou proporção não se refazendo esse e o outro ano,
tal no conde que mais feroz pareceu. tanta gente o louco matou a eito,
Na cabeça ao pastor o punho enterra, destruiu e incendiou tanta casa,
quebra-lhe o osso, e morto cai em terra. que mais de um terço dessa terra arrasa.
486 ORLANDO FURIOSO
30 Cinco ou seis meses a singular guerra, 36 Se não tens para ti próprio cara a vida,
mais ou menos, seja adiada, quanto e preferes uma águia feita a tinta,
baste para Carlos privar desta terra, ao menos por mim te seja ela querida:
e assim do ceptro, da coroa e do manto. não seja uma sem a outra extinta.
Cada um a obedecer se aferra, Contigo, morte não terei sofrida:
mas fica imóvel, teimoso, a um canto, vida e morte juntos se me consinta;
pois tal acordo acha ser aviltante mas não queria morrer tão descontente,
para o primeiro que dele for aceitante. se antes de mim morte se te consente. -
31 Mais que o rei ou outros que por engano 37 Com essas palavras e outras mais,
ao tártaro falam para o convencer, ao mesmo tempo que chora e suspira,
a bela filha do rei Stordilano não cessa essa noite os rogos e ais
suplica e queixa-se para o demover; para ver se o amado à paz se retira;
pede que obedeça ao rei africano, sugando ele dos húmidos fanais
aceitando o que todo o campo quer; o doce pranto, e a dor que ela expira
queixa-se porque ele lhe dá razão dos seus lábios, que as rosas mais vermelhos,
para que se encontre sempre em aflição. responde-lhe a chorar com seus conselhos:
32 - Deus! (dizia) quando terei ensejo
de algo que para tranquilizar-me valha,
se ora com um ou com outro desejo
terás de vestir armadura e malha?
Que sossego para meu coração vejo
no ter sido cancelada a batalha,
que por mim com aquele tinhas marcada,
se outra não menor já está preparada?
33 Ai de mim!, que em vão andava altaneira,
por um digno rei, cavaleiro forte,
por mim estar pronto a perigosa e grosseira
batalha fazer, com risco de morte,
e ora vejo, por razão tão ligeira,
não menos expor-se a idêntica sorte.
Foi do coração o feroz ardor
que te instigou, mais do que o meu amor.
34 Se o teu amor é mesmo aquele modelo
que te esforças para mostrar toda a hora,
por ele te peço, e pelo grande flagelo
que me atormenta a alma e me adolora,
não te dê a branca ave desvelo,
que no seu escudo aquele Ruggiero arvora.
Não vejo para ti, bem ou mal, que importa
se ele a insígnia abandona ou se a porta.
35 Pouco lucro sair, má viravolta,
da pugna pode, que em breve farás;
quando a águia a Ruggier já tiveres solta,
pouca mercê de tal risco haverás;
porém, se a Fortuna as costas te volta
(e presa pelas crinas não a terás4),
um dano causas, que só pensar basta
para sentir que o coração se me agasta.
CANTO XXX 491
38 - Não te dê, vida minha, essa aflição, 44 E assim faria; mas, logo que a Aurora
oh não, por Deus, por coisa não perigosa; o Sol a sair com a escolta exorta,
se Carlos e o rei de África, e o que hão o brioso Ruggier, que se aprimora
ambos aqui de gente belicosa, para mostrar que a águia com razão porta,
contra mim levantassem seu pendão, e de actos e palavras mais demora
mesmo assim não devias estar receosa. não querendo, apressar a liça lhe importa;
Em pouca conta assim me mostras ter, onde rodeia o povo o paliçado,
se um Ruggier contra mim te faz temer. tocando o corno se apresenta, armado.
39 Devia fazer lembrar-te inda quando 45 Assim que ouviu, o tártaro soberbo,
(e espada eu não tinha nem cimitarra), que à batalha alto som o desafia,
com um toco de lança, a um grande bando do acordo não quer ouvir mais verbo,
de armados guerreiros rompi a barra5 • do leito salta, armas em gritaria
Gradasso, embora com pejo execrando, pede; e mostra semblante tão acerbo
no entanto, a quem lho pergunta, narra que Doralice já não se atrevia
ter sido na Síria meu prisioneiro6 ; a mais falar-lhe de trégua ou de paz:
e olha que em fama a Ruggiero é primeiro. que a batalha se faça é contumaz.
40 Igualmente não nega o rei Gradasso, 46 Arma-se à pressa, e espera impaciente
e sabe-o Isoliero e Sacripante dos escudeiros o serviço devido;
(do espanhol e do circassiano espaço), depois o corcel monta de repente
e o famoso Grifone, e Aquilante, (do defensor de Paris tinha sido7) ;
e mais de cem que nesse mesmo passo vai a correr para a praça conveniente,
em prisão se encontraram no Levante, onde qualquer litígio é resolvido.
maometanos e gente baptizada, Chega o rei e a corte em cima da hora,
no mesmo dia por mim libertada. e para começar foi curta a demora.
41 Não cessou inda a sua admiração
pela grande proeza que fiz tal dia,
maior do que se a moura guarnição
e o franco exército me acometia.
Poderá Ruggiero, em experiência vão,
lutando de um para um dar-me arrelia?
Ora que Durindana e que de Heitor
tenho as armas, dá-te Ruggier temor?
42 Mas por que fazer prova não fui eu,
se ganhar-te pelas armas tinhas visto?
Tanto demonstraria o valor meu
que o fim de Ruggier terias previsto.
Enxuga as lágrimas do rosto teu,
não me augures tal fim, que me contristo;
,
e crê que fui pelo meu honor levado,
não pelo pássaro no escudo pintado. -
( ·,
43 Assim disse ele; e, em refutação,
tão bem falou a dama que carpia
que, além de o fazer mudar de intenção,
uma coluna até removeria.
Já quase obtinha dele a rendição,
armado ele, ela que saias vestia;
levara-o a dizer, se o rei lhe fala
mais em acordo, que ia contentá-la.
492 ORLANDO FURIOSO
68 Mas quando se lhes torna manifesto n Digo talvez, pois não lhe fiz inquérito,
quem vivo está, e estar sem vida o morto, mas fácil era ter esse talante,
dos apoiantes logo muda o gesto: tal a beleza, costumes e mérito
dum lado tristeza, doutro conforto. de Ruggiero eram, e o seu semblante.
O rei, barões, cavaleiros e o resto, Ela, pelo que já vimos no pretérito,
quando Ruggier deixa de estar absorto, de pensamento mudava bastante;
com alegria a abraçar-se vão, e, para não se ver privada de amor,
e glória infinita e honor lhe dão. em Ruggier a ideia podia pôr.
69 Cada um com Ruggier se alegra, e sente 73 Para ela era bom vivo Mandricardo,
no coração quanto diz sua boca. mas de que lhe servia após a morte?
Só Gradasso tem ideia diferente Convém-lhe arranjar outro que galhardo
de quanto a língua para fora desboca: noite e dia a assista, e seja forte.
mostra gáudio no rosto e, ocultamente, Entretanto a chegar não fora tardo
da gloriosa conquista inveja o toca; o mais perito médico da corte,
e maldiz o destino ou o acaso, que vendo de Ruggier, bem, cada ferida,
que primeiro tirou Ruggier do vaso. como certa lhe garantira a vida.
70 Que direi da gratidão tão flagrante, 74 Muito diligente, o rei Agramante
que com festas afáveis, verdadeiras, na sua tenda ter Ruggier pretende,
mostrava a Ruggier o rei Agramante, pois quer dia e noite tê-lo diante,
o qual ao vento dar suas bandeiras tanto amor e cuidado lhe despende.
não quis, sem ter de Ruggiero o garante, Do leito as armas e o escudo, zelante,
para de África trazer suas fileiras? que foram de Mandricardo, suspende;
Por de Agricane extinguir a semente 12 , suspende todas, menos Durindana,
preza-o mais que do mundo toda a gente. que foi deixada ao rei de Sericana.
71 Não só os homens por Ruggiero são, 75 Para Ruggier as armas e o espólio bom
também as damas eram do seu flanco, de Mandricardo são; também lhe é dado
que de África e Espanha entre a guarnição Brigliador, bom corcel de lindo tom,
tinham vindo, para o território franco. que Orlando louco tinha abandonado.
Mesmo Doralice, que em aflição Depois Ruggiero ao rei dele fez dom,
chorava o amante pálido e branco, por ver que ele muito o tinha apreciado.
talvez com as outras número fizesse, Já chega disto; voltar é mister
se de vergonha um freio não tivesse. a quem em vão suspira por Ruggier.
76 Os amorosos tormentos que tem
Bradamante, à espera, devo narrar.
A Montalvão Ippalca sobrevém,
com novas do amado a lhe contar.
Primeiro, o que a Frontino com desdém
Rodomonte fez há-de-se queixar;
depois de Ruggíer, que encontrou na fonte,
com Ricciardetto e os irmãos de Agrísmonte;
77 e que com ele ela tinha partido,
com esperança de encontrar o sarracino,
que pela falta merecia ser punido
de a uma dama tirar seu Frontino;
mas fora o seu plano mal sucedido,
pois tomara outro trilho por destino.
Depois contou-lhe também a razão
por que Ruggier não vinha a Montalvão;
CANTO XXX 495
90 Estando ela ali, o príncipe, o senhor n Onde soube que foram libertados,
de seu castelo, o seu primeiro irmão e os adversários mortos, destruídos,
(não digo em idade, mas em honor, Marfisa e Ruggier sendo os denodados
porque mais velhos do que ele dois são), que os fizeram a tal ser reduzidos;
Rinaldo, o qual em glória e em esplendor que seus irmãos e primos regressados
lhes deu, como às estrelas o Sol, clarão, a Montalvão eram, juntos e unidos;
um dia, à hora nona 1 5 , ali chegou, pareceu uma hora, um ano demorar
e apenas um pagem o acompanhou. a lá encontrá-los para os abraçar.
91 Razão dessa vinda foi que de Brava 1 6 93 Assim chega Rinaldo a Montalvão,
para Paris voltando um dia, em engano e mãe, mulher, irmãos, filhos abraça,
(como já vos disse que ia e voltava, e os primos que estiveram em prisão;
Angelica buscando com afano), parecia, ao chegar junto à sua raça,
ouvira contar a notícia prava passarinhos que com sofreguidão
do seu Malagigi e do seu Viviano, vêem a mãe que traz no bico a caça.
a que o de Mogúncia 1 7 a mão deitaria; Depois de um dia ou dois ali ter estado,
e para Agrismonte tomou a via. partiu, por outros sendo acompanhado.
CANTO XXX 497
NOTAS
�
9 Tessdlia { .. ] penas: alusão a batalhas dos Romanos e 17 O de Mogú,ncia: Bertolagi (cf. XXV:74 ss.).
à águia da respectiva insígnia, que inicialmente era
18
negra, depois foi branca e, posteriormente, dourada Amon: o pai de Rinaldo, de Bradamante, e dos res
(diferentes penas) . tantes mencionados nos vv. 1 e 2.
�
CANTO XXXI
�
É esta a crua e envenenada chaga, 7 Não falo do que Hipalca e seu irmão
à qual poção nada vale, nem emplastro, lhe deixaram no coração gravado,
feitiçaria ou imagem pressaga, mas de outro anúncio cruel e malsão
nem observar algum benigno astro, que poucos dias depois lhe foi dado.
nem todas as experiências de arte maga Aquele nada era, em comparação
fez jamais seu inventor, Zoroastro2 ; com o que direi daqui a bocado.
chaga da qual a dor maior decorre De Rinaldo falo primeiramente,
para o homem, que desesperado morre. que vai para Paris com a sua gente.
6 Incurável chaga, que encontra tecto s Na tarde a seguir, à via lhes viera
no peito do amador e nele se imprime, um cavaleiro e uma dama ao flanco;
por falsa suspeita ou por vero repto! o escudo e a sobreveste negra era,
Chaga que o homem cruelmente oprime, atravessada por um traço branco.
que a razão lhe ofusca e o intelecto, A Ricciardetto liça propusera,
e de seu antigo semblante o exime! que aspecto tinha de guerreiro franco;
Ó iníquo ciúme, assim, por torto, ele, que a não evita nenhuma vez,
a Bradamante roubaste o conforto! girou-se, e em corrida espaço fez.
CANTO XXI 501
Sem mais dizer, ou informação dar-se 13 Disse-o para si, mas sem ter sido ouvido,
um do outro, iniciam o recontro. que aos outros faria ofensa e transtorno.
Rinaldo e os companheiros vão colocar-se Um e outro tinha espaço adquirido,
de modo a observarem o encontro. e agora faziam feroz retorno.
- Este depressa ao chão há-de virar-se, Rinaldo não foi por terra estendido,
se eu com ele não tiver desencontro -, pois valia por quantos tinha em torno;
pensava Ricciardetto a seu respeito; qual vidro, as lanças se despedaçaram,
mas contra o pensamento foi o efeito: mas os cavaleiros não recuaram.
10 porque sob a viseira o golpeou 14 Um ao outro cavalo abalroou-se,
tão brusco o cavaleiro inusitado e com a garupa no chão bateu.
que o fez voar da sela, e o deixou Baiardo de súbito endireitou-se,
duas lanças do corcel distanciado. pouco sua corrida interrompeu.
Para o vingar, repentino se apressou O outro caiu mal e magoou-se:
Alardo, que se encontrou estatelado, ombro e espinha ao mesmo tempo fendeu.
aturdido e magoado; pois tão crudo O cavaleiro o corcel morto vê,
foi o choque que lhe quebrou o escudo. larga os estribos e fica pronto em pé.
11 Impaciente, Guicciardo em riste estica 15 E ao filho de Amon, que já para ele ia
a hasta, ao ver os dois irmãos por terra, sem ter na mão arma, assim recebeu:
embora Rinaldo lhe grite: - Fica! - Senhor, este corcel muito valia,
Quero que seja minha a terça guerra. - pois caro me foi enquanto viveu,
. .
Mas inda ele o elmo à cabeça aplica, e em grande dívida lhe ficaria,
já Guicciardo em corrida se desferra; se assim morresse sem o vmgar eu;
não mais que os outros se soube aguentar, prepara-te pois o melhor que possas,
pois depressa no chão se foi estampar. para prosseguirmos as batalhas nossas. -
12 Quer Ricciardo, Malagigi e Viviano, 16 Disse Rinaldo: - Se o cavalo morto,
um antes do outro, à justa ir agora; e nada mais, é razão para batalha,
mas Rinaldo põe fim ao seu afano um dos meus te darei, para teu conforto,
antes deles avançando, e perora: que menos que o teu não penso que valha. -
- Chegarmos a Paris é nosso plano; O outro ajuntou: - Tu deves ver torto,
e grande seria a nossa demora, se pensas que um cavalo me atrapalha.
se esperasse até não faltar nenhum Mas se não entendes a minha escolha,
de vós para ser abatido, um a um. - leitura mais clara faço da folha.
502 ORLANDO FURIOSO
17 Quero eu dizer que incerta era a balança, 23 Vai pensando Rinaldo a toda a hora
se à espada não te estudasse também, quem seja o estranho cavaleiro tão forte,
e não soubesse se nessa outra dança que em valentia e força se aprimora
tu me és par, ou estás aquém ou além. e o põe muita vez em risco de morte;
Escolhe: ou a pé, ou a cavalo, avança; e tanto se afadiga e encalora
de mãos a abanar não venhas, porém; que chega a temer desta liça a sorte;
estou disposto a toda a vantagem dar-te, gostaria até, sem que honra manchasse,
tal o desejo de à espada provar-te. - que aquela pugna depressa acabasse.
18 Rinaldo muito não o fez esperar, 24 O cavaleiro estranho também não
dizendo-lhe: - A batalha será feita; tinha do rival nenhuma notícia:
e para seres afoito, e não te picar que aquele era o senhor de Montalvão,
dos que comigo estão qualquer suspeita, esse tão famoso em toda a milícia,
vão andando até eu os alcançar; que tinha à frente, de espada na mão,
fica apenas um pagem, que sujeita mostrando-lhe tão pouca inimicícia;
me tenha a montada. - E a seguir disse via que de homem de maior excelência
à sua companhia que partisse. não podiam dar as armas credência.
19 A cortesia do campeão galhardo 25 Quereria da liça estar arredio,
gabou o cavaleiro misterioso. que ao seu cavalo daria vingança;
Rinaldo desmontou, e de Baiardo e se pudesse, sem sofrer desbrio,
as rédeas deu ao seu pagem zeloso; retirava-se da perigosa dança.
quando dos outros já não tem o guardo, Estava o mundo já tão escuro e sombrio
pois levam já intervalo espaçoso, que os golpes se davam sem segurança;
o escudo embraça e empunha a espada fria, pouco ferir, menos aparar, podiam,
e o rival à batalha desafia. que as espadas a custo nas mãos se viam.
20 E ali se iniciou uma batalha, 26 Rinaldo foi o primeiro a dizer
mais fera do que a qual nunca foi vista. que não se deve batalhar no escuro,
Não crê nenhum que o outro tanto valha e sim a liça ali interromper,
que muito longamente lhe resista. até girar a preguiçosa Arcturo3 ;
Ao ver que um tão bem como outro trabalha, está pronto a na sua tenda o acolher,
já nenhum mais se alegra ou se contrista, onde tanto como ele estará seguro,
e, pondo o orgulho e o furor de parte, e servido e honrado e protegido
para ter vantagem usam toda a arte. como em qualquer lado onde tivesse ido.
21 Ouvem-se os golpes severos e crudos 27 O barão cortês não se fez rogado,
ribombar em torno com som horrendo, aceitando de Rinaldo o convite.
ou os cantos quebrando aos grossos escudos, Vão até onde já estava acampado
ou placas soltando e malhas fendendo. o grupo que é de Montalvão elite.
Não se precisa aqui de muitos estudos Rinaldo ao pagem tinha encomendado
para bem ferir, mas mais para aparar, querendo um bom corcel, que bom jaez agite,
estar um do outro a par; que eterno mal à espada, à lança, a toda a prova bom,
um erro pode dar, a cada qual. do qual àquele cavaleiro fez dom.
22 Durou a justa uma hora e metade; 28 Veio a saber o guerreiro peregrino
o Sol já mergulhara no oceano, que era Rinaldo que ia ao lado dele,
e da noite as sombras em liberdade pois, antes de chegarem ao destino,
do horizonte enchiam todo o plano; seu nome por acaso disse aquele.
pausa não dão ou inactividade Sendo o guerreiro irmão do paladino,
aos golpes feros do duelo insano doçura um e outro no imo impele,
os guerreiros, que não ira ou rancor no peito havendo do afecto o calor;
às armas levou, mas sede de honor. e choraram de gáudio e de amor.
504 ORLANDO FURIOSO
29 Guidon Selvaggio era este guerreiro, 33 Para me certificar que sois da nossa
que de Marfisa e Sansonetto, aliás, antiga estirpe um ramo verdadeiro,
e os filhos de Olivier4, foi companheiro não há testemunho que dar-se possa
por mar viajando, disse eu atrás5 • melhor que o vosso valor de guerreiro.
De ter a família visto primeiro, Se pacífica e calma fosse a vossa
devido a Pinabel, fora incapaz, têmpera, ia julgar-vos um trapaceiro;
que o impediu e o manteve em prisão, pois a corça não concebe o leão,
para defender sua vil intenção6 • nem as pombas a águia ou o falcão. -
30 Que este era Rinaldo ouvindo ele dizer, 34 Não, por andar, de conversar deixando,
o capitão que mais fama produz, nem de seguir, por conversar, a via,
e mais desejo ele tinha de ver aos p«vi!hões chegam; onde, narrando
que o cego de ver a perdida luz, o bom Rinaldo à sua companhia
com gáudio disse: - Como pode ser ser ele Guidon, que conhecer ansiando
que Fortuna a combater me conduz estavam, tendo por fim tal regalia,
com quem tão longamente amei e amo, grande júbilo àquele grupo atrai;
e, acima de todos, honrar reclamo? todos acharam parecer-se com o pai.
31 Costanza à luz me deu, onde é tangente 35 Calo como a acolhê-lo foi fagueiro
à terra o mar Euxino7 : eu sou Guidon, Alardo, Ricciardetto e os outros dois;
concebido da ínclita semente, Viviano e Aldigiero hospitaleiro,
tal como vós, do generoso Amon. Malagigi, irmãos e primos, depois;
De vos ver, e os restantes igualmente, cada senhor o foi, e cavaleiro;
desejo foi para vir motivo bom; o que entre eles disseram calo, pois;
e, meu propósito sendo o de honrar-vos, mas digo em conclusão que finalmente
vejo que afinal vim a injuriar-vos. foi bem recebido por toda a gente.
32 Mas peço me desculpeis de errar tanto, 36 Guidone caro aos seus irmãos seria
sem conhecer de vós e eles o aspeito; muito em qualquer altura, estou convicta;
se emenda pode haver, dizei-me quanto mas por precisão deu mais alegria
devo fazer: para tal nada rejeito. - do que vindo em tempo menos aflito.
Repetindo os abraços entretanto, Assim que o novo Sol do mar saía,
depois que um do outro afastou o peito, de seus luminosos raios crinito,
Rinaldo disse: - Não vos dê desvelo Guidon, irmãos e primos em fileira
comigo desculpar-vos pelo duelo: seguem todos, sob a mesma bandeira.
CANTO XXI 505
37 Tanto num dia e noutro caminharam 43 O que foi causa do estranho, maligno
que a Paris, ao sitiado contraforte, e grave acidente não sei narrar-te.
a menos de dez milhas se chegaram, Espada e outras armas, de modo indigno,
junto ao Sena; e, por acaso da sorte, vi eu que ele espalhou por toda a parte;
Grifone e Aquilante ali encontraram, e um cavaleiro cortês e benigno
os dois guerreiros da armadura forte8 : as foi recolhendo com muita arte,
Grifon branco e Aquilante negro são e um arbusto com elas guarneceu,
de Oliviero e Gismonda geração9 • como se fosse um pomposo troféu12 •
38 Com eles conversava uma donzela, 44 A espada nesse dia foi levada
de nobre condição, saltava à vista; pelo filho de Agrican, com despotismo.
com saia branca de sedosa tela, Tu podes calcular como é lesada
ornada em volta de dourada lista; com esta perda a gente do baptismo,
muito era graciosa e no rosto bela, por estar mais uma vez apetrechada
embora de pranto a face se vista; com Durindana, a espada, o paganismo 13 •
mostrava nos gestos e no semblante Junto às armas à solta Brigliadoro
que falava de algo muito importante. errava, e também o levou o mouro.
39 Os irmãos conheceu, e eles também, 45 Há poucos dias vi Orlando errando
Guidon, que os vira poucos dias antes 10 ; sem vergonha e sem juízo, desnudo,
e a Rinaldo disse: - Que estes dois, tem gritos e urros assustadores dando:
o mundo em valor poucos mais possantes; dizendo que enlouqueceu, digo tudo;
e, se ajudar Carlos cada um vem, não teria, em meus olhos não confiando,
os Mouros deixarão de ser reinantes. - acreditado num caso tão crudo. -
Rinaldo a Guidon confirma o conceito: Depois contou que o viu cair da ponte
era um e outro um guerreiro perfeito. ao rio, sempre abraçado a Rodomonte.
40 Também ele os tinha reconhecido, 46 - A todo o que eu creia não ser imigo
pois sempre assim andavam ataviados: de Orlando (juntou) vou disto falar,
um de negro, outro de branco vestido para que algum de tantos a quem o digo,
sobre a armadura, e ambos muito ornados. tocado pelo caso triste e invulgar,
Tinham por seu lado eles discernido procure a Paris, ou lugar amigo,
Guidon, Rinaldo, e irmãos, agrupados; levá-lo, para o cérebro lhe purgar.
e abraçaram Rinaldo como amigo, Se Brandimarte de tal houver nova,
pondo de lado todo o ódio antigo. sei que para o ajudar se põe à prova. -
41 Houveram-se um tempo em grande despeito, 47 Fiordiligi era a formosa donzela,
por Truffaldin1 1 ; longo é para que o refira; a Brandimarte mais cara que a vida;
mas com afecto fraterno no peito para o encontrar, a Paris vinha ela;
se abraçaram, esquecendo toda a ira. da espada foi a história prosseguida,
Rinaldo olhou Sansonetto a direito, que originara discórdia e querela,
que a aproximar-se um pouco diferira, pelo sericano e o tártaro mantida;
e acolheu-o com o devido honor, e com ela ficara, após fracasso
pois estava a par do seu grande valor. da vida ter Mandricardo, Gradasso.
42 Quando mais da donzela se avizinha 48 Um tão invulgar e triste acidente
Rinaldo, e que era ele teve a certeza Rinaldo de grande dor acomete;
(conhecimento dos paladins tinha), e derreter o seu coração sente,
notícia lhe deu que lhe fez tristeza; assim como o gelo ao sol se derrete;
disse: - Senhor, teu primo, que mantinha e está disposto, e tem fixo na mente,
Igreja e Império em tanta defesa, que Orlando, onde estiver, buscar promete,
o antes tão sábio e honrado Orlando, com esperança que, depois de tê-lo achado,
louco ficou, e vai pelo mundo errando. consiga da raiva vê-lo curado.
506 ORLANDO FURIOSO
49 Mas se o seu grupo conseguiu unir, 55 Segue-o Guidon, que menos que ele não faz,
ou por vontade do Céu ou ventura, e assim também os filhos de Oliviero,
quer antes os Mouros fazer fugir, e Alardo, Ricciardetto, e irmãos atrás;
deixando entre muros Paris segura. Sansonetto a espadeirar é severo;
Mas o assalto aconselha a diferir, a Aldigiero e Viviano compraz
por ver vantagem, sendo noite escura, mostrar como é cada um deles fero.
para o terceiro ou quarto turno de guarda, Faz ver, cada um que segue o estandarte
quando água do Letes o Sono albarda14. de Claramonte, que é guerreiro com arte.
50 Fez toda a gente alojar-se no bosco, 56 Rinaldo setecentos dele tinha,
que todo o dia lhes fez de contorno; em Montalvão e aldeias em redor,
mas quando o Sol deixou o mundo fosco, como os que Aquiles em Tróia mantinha,
fazendo à primordial ama retorno15 , às armas feitos, ao frio e ao calor.
e urso, cabra, serpente, e todo o tosco Qualquer deles tanta força detinha
bicho e fera ao céu conferiu adorno16 , que cem de mil não teriam temor.
que estavam ocultos pela maior luz, Muitos podiam ser considerados
Rinaldo a hoste silente conduz; melhores que os cavaleiros afamados.
5 1 com ele Grifone e o irmão Aquilante, 57 E apesar de Rinaldo muito rico
Alardo, Viviano e Guidone vão, não ser em cidades nem em tesouro,
e Sansonetto, dos outros adiante, era em modos e palavras pudico,
em silencioso passo e sem sermão 1 7 • repartindo com eles o seu foro;
Achou dormindo a escolta de Agramante; nunca ninguém lhe levou um no bico
todos matou; nem a um deu prisão. por lhe oferecer maior quantia em ouro.
Chegou junto da outra moura gente, De Montalvão ele nunca os tirava;
sem que a presença tornasse evidente. só se a necessidade o obrigava.
52 Do campo de infiéis, logo à chegada, 58 Para o Magno Carlos ajudar agora,
a guarda que ali estava, de improviso, deixou com pouca guarda o seu castelo.
Rinaldo fez ficar tão desfalcada Entre os Africanos sua hoste ora,
que um não sobrou: a matar foi conciso. essa hoste de que eu vos tagarelo,
Com a primeira linha já esmagada, fez como ao rebanho lanzudo outrora,
não tinham os Mouros razão para riso; junto ao Galeso18 , o lobo fez flagelo,
sonolentos, inertes, sem presteza, ou junto ao Cinífio 19 , ao grege barbado20 ,
de tais guerreiros não tinham defesa. o leão a fazer era avezado.
53 Mandou Rinaldo, para maior espavento 59 Carlos, que aviso de Rinaldo houvera
dos Sarracenos, ao fazer o assalto, de que perto de Paris se encontrava,
aos cornos e às trombetas dar vento, e que o campo incauto à noite pudera
e, gritando, seu nome dizer alto. assaltar, em armas e pronto esperava;
Picou Baiardo, a reagir não lento; e, quando chega a hora, mais não espera:
sobre as paliçadas passou de um salto, vai com os paladins; também levava
tombou cavaleiros, pisou peões, o que é filho do rico Monodante,
e derrubou tendas e pavilhões. e é de Fiordiligi o fiel amante,
54 Não houve um forte entre o povo pagão 60 que ela muitos dias, por longa via,
a quem as crinas não se arrepiaram, por toda a França procurara em vão.
quando os nomes «Rinaldo e Montalvão», Vendo as insígnias que ele usar soía,
nomes temidos, no ar ecoaram. teve ela dele ao longe percepção.
Os de África e os de Espanha em fuga vão, Quando à distância Brandimarte a espia,
nem com bagagem se preocuparam; deixa a guerra, tornando-se loução,
não querem mais esperar por tal furor: corre a abraçá-la, e, de amor tomado,
já basta ter-lhe tomado o sabor. mil ou mais beijos lhe deve ter dado.
CANTO XXI 507
85 Os que ele matou, e os que os seus irmãos, 91 Tinha o rei muito tempo desejado
e os que os dois filhos do senhor de Viena26 , (creio que já lestes a tal respeito28 )
os de quem foram imigos vilãos usar a boa Durindana ao lado,
os setecentos que Rinaldo ordena, e cavalgar aquele corcel perfeito.
os que apagou Sansonetto, e os pagãos E com mais de cem mil viera armado
que ao fugirem se afogaram no Sena, para França, somente para esse efeito;
quem os contasse, contava sem falha já a Rinaldo desafio fizera
o que em Abril Zéfiro e Flora espalha27 • por aquele corcel, para batalha fera;
86 Há quem diga que Malagigi parte 92 e para a beira do mar se dirigiu,
na vitória teve, daquela noite; onde a pugna se iria decidir;
não que, por ele, o sangue os campos farte, mas Malagigi tudo diferiu,
ou que ele a esmagar cabeças se afoite; que o primo fez, mau grado seu, partir,
mas que os anjos infernais com sua arte e num navio pelo mar o conduziu.
chamou dos antros onde o mal se acoite, Toda a história era longo repetir.
com tantas bandeiras e tantas lanças Daí para cá achou cobarde e vil
que não lhes bastariam duas Franças; sempre Gradasso o paladim gentil.
87 e de tantos metais fez ouvir estalos, 93 Gradasso, agora, que é Rinaldo entende,
e sons de tambores e vários trovões, este que assalta o campo, e isso o alegra.
tantos nitridos como de cavalos, As armas veste e a égua pretende,
tanto grito e tumulto de peões e vai procurá-lo na noite negra;
que por montes e vales fez soá-los, todos com quem se encontra no chão estende;
ouvindo-se nas distantes regiões; sem distinção, deixa achacada e egra
aos Mouros, assim, tal medo meteu a gente, quer da Líbia quer da França:
que cada um dali se escafedeu. todos trata igualmente a sua lança.
88 O rei de África não esqueceu Ruggiero, 94 Para cá e para lá o vai procurando,
cuja ferida inda estava em estado grave. chamando-o muito e cada vez mais forte,
Sobre um corcel o mandou pôr com esmero, e sempre para aquele lado caminhando
que tinha o andar pausado e suave; onde mais gente está que achou a morte;
depois de pelo trilho menos severo por fim espada com espada o defrontando,
o transportar, mandou-o pôr na nave pois ambas as lanças da mesma sorte
e até Arles levar comodamente, em mil pedaços sobem, nesse açoite,
onde ia recolher-se toda a gente. até ao carro estrelado da Noite.
B9 Quem de Rinaldo e Carlos se afastou 95 Quando Gradasso o paladim galhardo
(foram uns cem mil que deram arranco), conhece, e não porque a insígnia veja,
por campos, bosques, montes procurou mas pelos golpes horríveis, e Baiardo,
a fuga das mãos do exército franco; que todo o campo parece que peja,
grande parte a via fechada achou, a reprovar-lhe, aos gritos, não é tardo,
e tornou rubro o que era verde e branco. a indignidade que mostrou sobeja:
Assim não fez o rei de Sericana, no dia aprazado não comparecer
que deles tinha afastada a cabana; onde os dois um duelo iam ter.
90 ao invés, assim que ouve que o senhor 96 E acrescentou: - Talvez tivesses esperança
de Montalvão é este que os assalta, de poderes-te esconder, daquela vez,
sente no coração um tal alor de modo a nunca mais termos chegança
que de alegria daqui para ali salta. no mundo; mas achei-te, como vês.
Dá louvores e agradece ao seu Factor, Crê: se no estígio abismo houveres parança,
por nessa noite lhe ocorrer tão alta ou se ao Céu ascendesses, ao invés,
e rara ocasião para conquistar sigo-te, se houveres do corcel apego,
Baiardo, aquele corcel que não tem par. à suprema luz ou ao mundo cego.
CANTO XXI 513
97 Se te falta para pugnarmos o alor 103 Gradasso, que anular não pretendeu
e sabes que não podes estar-me a par, pela questão segunda a questão primeira,
e estimas mais a vida que o honor, a desculpa de Rinaldo acolheu,
é coisa que se pode remediar, duvidando se é falsa ou verdadeira.
desde que em paz me dês o corredor; Já de Barcelona não se escolheu,
se amas viver, vivo podes ficar, como a outra vez, a areia costeira;
mas a pé: corcel não se concilia no dia seguinte, de manhãzinha,
com quem vitupera a cavalaria. - encontram-se numa fonte vizinha,
98 Àquela fala encontrou-se presente 104 onde Rinaldo terá o cavalo,
Ricciardetto, com Guidone a seu lado; que será posto comummente ao meio:
ambos espadas puxaram igualmente, se o rei Rinaldo mata ou faz vassalo,
para a Gradasso mostrar como era ousado. o corcel levará sem mais receio;
Mas Rinaldo opôs-se imediatamente, mas se for do rei Gradasso o resvalo,
pois não suportava ser ultrajado, que ali exale o último gorjeio,
dizendo: - Quer dizer que sem vocês ou, por mais não poder, que a ele se renda,
não respondo a quem ofensa me fez? - que Rinaldo Durindana apreenda.
99 Em seguida voltou-se para o pagão, 1 0s Com enorme espanto e profunda dor
e disse: - Ouve Gradasso, quero dar-te, (como eu disse), tinha Rinaldo ouvido
se me escutares, clara explicação contar Fiordiligi que, de furor,
de que à beira-mar fui para encontrar-te; seu primo o juízo tinha perdido.
depois confirmo, com arma na mão, Também das armas ouvira o teor,
que a verdade te disse em toda a parte; e da pugna que se tinha seguido;
cada vez que o disseres mentes mais, e que usava Gradasso a palmatória30
que à cavalaria eu faltei jamais. que a Orlando deu tanta e tanta glória.
100 Mas peço-te que, antes que luta acesa 106 Depois do acordo feito, regressado
entre nós se dê, claramente entendas foi Gradasso para a sua companhia,
minha justa e verdadeira defesa, embora pelo paladim fosse instado
para que de novo não me repreendas; a aceitar a sua hospedaria.
Baiardo após, como na outra empresa, Nascido o dia, o rei pagão armado,
desejo que a pé comigo contendas, tal como Rinaldo, logo aparecia
apenas nós em solitário lado, onde ambos iam, perto da fontana,
tal como fora por ti ordenado. - combater por Baiardo e Durindana.
101 Era cortês, o rei de Sericana, 1 07 O recontro que Rinaldo ia ter
como sói ser o nobre coração, com Gradasso, os dois a sós, nesse canto,
estando pronto a ouvir a coisa plana, os seus amigos pareciam temer,
e como o paladim quer ter razão. e antes de tempo faziam o pranto.
Juntos vão até onde o Sena mana, Gradasso audácia, vigor e saber
e ali Rinaldo, em simples narração, tinha, e a espada que valia tanto,
à história vera retirou o véu, do filho de Milon3 1 , usava ao lado;
e por testemunha invocou o Céu; branco estava cada um, aterrado.
mandou ali vir o filho de Buovo29 , 108 Mais que os outros de Viviano o irmão
32
102
que tal facto sabia em pormenor, parece que a pugna receie e tema,
e ponto por ponto contou de novo e de boa vontade punha a mão
o seu encanto, sem tirar nem pôr. para dar fim, por magia, a tal dilema;
Acrescentou Rinaldo: - Isto que eu provo mas não deseja que o de Montalvão
com testemunho, as armas com rigor venha a tê-lo em inimizade extrema;
agora, ou quando mais a ti te apraz, ainda pela outra lhe tem fastio,
quero que prova façam mais veraz. - que lhe impediu, metendo-o num navio.
514 ORLANDO FURIOSO
1 09 Que tenham receio, temor, cuidado; 110 De lado oposto um e outro apareceu,
Rinaldo segue, contente e seguro, chegando ao mesmo tempo junto à fonte,
esperando da culpa ver-se purgado, tanta festa fazendo que pareceu,
pois tê-la sem razão achava duro; pela tão serena e amistosa fronte,
que os de Hautefeuille e de Ponthieu33 calado que ou o sangue ou a amizade prendeu
tenha para sempre, agora e no futuro. o rei Gradasso àquele de Claramonte.
Vai com afoiteza e muita confiança Como depois se foram agredir,
de guardar dessa vitória lembrança. para outra ocasião quero diferir.
-..-
NOTAS
1 17
Infernal peste: o ciúme. Sem sermão: sem conversação.
2
Zoroastro: nome helenizado de Zaratustra (628-5 5 1 1 8 Galeso: rio que corre perto de Taranto, onde abun
a. C.), reformador da religião persa que estabeleceu no dam os rebanhos de ovelhas.
Irão o masdeísmo ou zoroastrismo, declarando-se envia
19
do de Ahura Mazdah, «o Senhor Sábio e Deus único». Cinifio: rio africano.
3 20
Até [...}Arcturo: até ser dia. Arcturo é a estrela mais bri Grege barbado: rebanho de cabras.
lhante do Boieiro. Por estar perto do pólo terrestre (junto
21
à cauda da Ursa Maior), o seu movimento aparente é Tal [. .. ] silvestres: troncos em bruto.
muito lento (preguiçosa).
22
Nosso [. . .] caiu: o rio Pó, quando nele caiu Faetonte
4 Filhos de Olivier: Aquilante e Grifone. (cf. nota a IIl:34:3-4) .
5 Disse eu atrds: cf. XX:92 ss. 23
Rio Estige: rio do Inferno.
6 24
Devido [. .. ] intenção: cf. XXIl:52 ss. Testa: oposição.
7
Euxino: cf. nota a XX:6:3. 25 Chegou [. . .] raça: personagens identificadas em
XIV: 12. O filho de Falsiron é Ferraú.
8 Armaduraforte: eram ambas fadadas (cf. XVIl:70:5-8).
26
Senhor de Viena: Oliviero, pai de Grifone e
9
Grifon [. . .] geração: cf. XV:67 e 72-73, e respectivas noras. Aquilante.
10 27
Vira [. . .] antes: no castelo de Pinabello (cf. nota a Em Abril [. . .] espalha: os amantes Zéfiro e Flora
29:6-8) . enchem a Terra de flores na Primavera.
11 28
Houveram-se [. . .] Trujfaldin: Truffaldino alimentara Creio [. . .] respeito: episódio contado por Boiardo no
o ódio entre eles ( O. lnnamorato) . Orlando lnnamorato.
12
Cavaleiro [. . .] troféu: Zerbino (cf. XXIV:49 ss.). 29
Filho de Buovo: Malagigi (cf. XXV:72) .
13 30
Mais uma vez [. . .] paganismo: pois pertencera ao sar Palmatória: espada.
raceno Almonte (cf. nota a IX:3:8) .
31
Filho de Milon: Orlando, filho de Milon d'Anglant
14
Quando [. . . ] albarda: quando o esquecimento (Letes) (cf. nota a 1: 57) .
torna o sono mais pesado.
32
De Viviano o irmão: Malagigi.
1 5 À primordial [. . .] retorno: ao pôr-se no mar, morada
33
de Tétis, esposa de Oceano, que teve dele mais de três Hautefeuille e Ponthieu: feudos não identificados,
mil filhos, que são todos os rios do mundo. propriedade dos «de Mogúncia», inimigos dos da casa de
Claramonte.
16
Urso [. . .] adorno: surgiram no céu todas as constela
ções com nomes de animais.
�
CANTO XXXII
�
3 Mas, antes que dela fale, me obrigo 4 Em todo o reino recruta Marsilio
a falar-vos um pouco de Agramante, gente a pé e a cavalo, má e boa.
que em Arles deu às relíquias abrigo, Em Barcelona, navio que auxílio
que escaparam da nocturna agravante, dê, livre e à força, à guerra se afeiçoa.
pois podia recolhê-las sem perigo Agramante faz diário concílio,
nesse sítio que provisões garante: e a esforços e gastos não se perdoa.
tem África em frente, e a Espanha vizinha, Muitas e pesadas contribuições
e está junto ao rio e à costa marinha. dão às cidades de África opressões.
CANTO XXXII 517
46 Quem sabe até se, enquanto viva fores, 52 Uns Perdida e outros Islândia à ilha
farás vingança daquela Marfisa, dão nome, da qual a rainha dessa,
que com fraude e desonestos amores que em beleza mais que as mais maravilha
Ruggier tem, matando-te desta guisa. - (beleza assim o Céu deu só a essa),
Tais pensamentos pareceram melhores manda o escudo a Carlos que vês na cilha;
à donzela, que logo uma divisa mas com o pacto e a condição expressa
nas armas pôs, a qual queria dizer de ao melhor cavaleiro o dar, segundo
desespero e vontade de morrer. o seu parecer, que existe hoje no mundo.
47 A sobreveste era daquela cor 53 Ela, que se supõe, e é verdadeiro,
com que fica a folha quando fenece, a dama mais bela que há entre a gente,
por ser colhida ou porque aquele humor queria assim encontrar um cavaleiro
que à planta dá vida desaparece. mais que qualquer outro forte e valente;
Tinha de troncos bordado lavor, pois tem pensamento fixo e certeiro,
de cipreste, que não mais reverdece que a mil abanões será resistente,
depois de sentir o duro machado: que aquele que em armas tem maior honor
com sua dor o traje é combinado. venha a ser seu amante e seu senhor.
48 Levou o corcel que Astolfo soía 54 Espera que em França, na famosa corte
ter, e a lança de ouro que, só tocando, de Carlos Magno, o cavaleiro se ache,
cair da sela o cavaleiro fazia 1 1 • que de ser o mais valente e o mais forte
Porque lha deu Astolfo, e onde e quando, tenha dado prova com toda a praxe.
e de quem ele recebido a havia, Vês ali três reis a dar-lhe suporte,
não acho necessário ir replicando. e digo-te onde cada um despache:
Levou-a ela, porém não sabendo Suécia, Gótia 15 Noruega, um por um,
que o valor que tinha era tão estupendo. que em armas, pares, poucos hão ou nenhum.
49 Sem escudeiro e sem qualquer companhia 55 Estes três, cuja terra não vizinha,
do monte desceu, e tomou destino mas mais próxima é, da Ilha Perdida
direito a Paris, pela mais recta via, (assim dita por tal zona marinha
para onde estava o campo sarracino; de poucos mareantes ser conhecida),
pois a notícia ainda não sabia eram e são amantes da rainha,
que a hoste fez Rinaldo, o paladino, disputando-a em contenda renhida;
com Malagigi e Carlos a ajudar, e para agradar-lhe coisas têm feito
o seu assédio a Paris levantar. que, enquanto o céu girar, terão respeito.
50 De Quercy já se encontrava afastada, 56 Mas ela nem estes nem outro quer,
e de Cahors 1 2, e todo aquele monte que ela em armas não julgue estar no cimo.
onde nasce o Dordonha 13 , e já mirada «As provas dadas (costuma dizer),
tinha de Monferrante e Claramonte14, em lugares próximos, pouco estimo;
quando avistou, vindo na mesma estrada, se um, como o Sol entre as estrelas, estiver
uma dama ostentando nobre fronte, entre os outros dois, muito eu o sublimo;
que um escudo tinha pendente do arção; mas não creio possa sentir-se ufano
e três cavaleiros ao lado vão. de estar que todos em mais alto plano.
51 De pagens e damas um agregado 57 A Carlos Magno, que estimo e honoro
vinha, atrás e à frente, em longa fileira. como o mais sábio rei que o mundo guia,
De um indagou que lhe passou ao lado, estou para mandar um rico escudo de ouro,
Bradamante, quem era a caminheira; na condição que o dê, em regalia,
- Ao franco imperador (foi-lhe informado) ao cavaleiro que ali tenha o louro
esta dama, mandada mensageira e a fama de primeiro em galhardia.
de além do Árctico Polo, remetida Seja ele seu vassalo ou de outro rei,
foi por longo mar, da Ilha Perdida. o parecer de Carlos acatarei.
522 ORLANDO FURIOSO
83 - No tempo em que reinava Fieramonte 18 , 89 Tristão, que por ela pouco se interessa,
Clodion, seu filho, tinha uma amiga, pois só Isolda tem o interesse seu
elegante e fina, quanto se conte (que outra não deixa que ame, ou o enterneça,
de qualquer uma dessa idade antiga; a poção encantada que bebeu20) ,
a qual ele tanto amava que a fronte mas porque vingar-se da forma avessa
dela não tirava, mais que se diga deseja, com que o outro o recebeu:
que a tirasse de lo o seu pastor, «Julgo que grande erro seria (disse)
porque tinha igual ao ciúme o amor19 • se tal beldade do abrigo saísse.
84 Aqui a tinha; este lugar em dom 90 E se dormir só Clodion enfastia,
houve do pai, e dele pouco saía; ao relento, e companhia demande,
dez cavaleiros aqui estavam com uma jovem trago, bela e sadia,
ele, entre os melhores que em França havia. embora não de beleza tão grande.
Aqui estando, cá apareceu o bom Que esta fora vá não me contraria,
Tristão, com uma dama em companhia, e que obedeça a tudo o que ele mande;
a qual ele libertara pouco adiante, mas a mais bela, acho que é certo e justo
quando à força a arrastava um gigante. que esteja com o de nós mais robusto».
85 Tristão chegou quando o Sol já voltado 91 Clodion, expulso de casa, em tormento
tinha as costas às margens de Sevilha; andou bufando toda a noite em volta,
e pediu para ser aqui hospedado, como se àqueles que no alojamento
que outro albergue não há em muita milha. dormiam cómodos fizesse escolta;
Mas Clodion, amante enciumado, e, muito mais do que a chuva e o vento,
acautelando-se, a ideia perfilha custava-lhe da dama estar à solta.
que forasteiro, seja ele quem for, De manhã Tristão, dele sentindo pena,
não entre onde estiver o seu amor. entregou-lha, e logo a dor se asserena;
86 Como os pedidos não lhe satisfez, 92 pois disse-lhe, de modo claro e certo,
negando abrigo, disse o cavaleiro: que como a encontrou lha devolvia;
«Aquilo que com rogos não se fez, merecendo ser de vergonha coberto,
farás de modo menos prazenteiro». por lhe ter feito tal descortesia,
Desafiou Clodion mais os dez bastara-lhe deixá-lo a céu aberto
que ali tinha, e com um grito altaneiro toda a noite: desse modo o punia;
propôs-se, com lança e espada na mão, nem desculpa aceitou que houvesse Amor
provar-lhe ser descortês e vilão; sido o motivo para tão grave error;
87 com condição de, dando-lhe aluimento 93 Deve Amor tornar gentil um vilão,
e aos dez, mantendo-se na sela forte, e não ao gentil dar contrário efeito.
no castelo, só, ter alojamento, Depois de ter ido embora Tristão,
deixando os outros fora, à sua sorte. Clodion a novo tecto foi direito;
Para não sofrer tão grande aviltamento, mas primeiro o castelo pôs na mão
corre o filho do rei risco de morte; de outro cavaleiro, a quem era atreito,
pois gravemente ferido cai por terra, na condição que ele, e quem mais viesse,
como os outros, e Tristão fora os cerra. este modo de albergar mantivesse:
88 Entrado no castelo, encontra aquela 94 que aquele cavaleiro mais denodado,
que eu disse ser a Clodion tão cara, e a dama mais bela, sempre se aloje;
e que tinha, mais que outra, feito bela que do quarto saia o que é derrotado,
Natura, a dar beleza tão avara. durma na erva, ou noutra parte poje.
Conversam, enquanto queima e flagela Fez assim que fosse o uso implantado,
o amante, lá fora, paixão amara; conforme inda dura nos dias de hoje. -
que evitar mandar rogos não consegue Enquanto o cavaleiro isto contara,
a Tristão, para que a dar-lha não se negue. o trinchador a mesa pôr mandara.
526 ORLANDO FURIOSO
107 A filha de Amon, cheia de piedade 1 09 A ceia, que lhes fora posta diante,
por esta gentil dama, sem razão, mas não tocada, foi comida em festa,
ter de ficar à chuva e frialdade, sem que de novo cavaleiro errante
onde tecto não há nem um galpão, a vinda fosse para eles molesta.
o castelão do albergue persuade, Gozaram-na os outros, não Bradamante,
com razões e com falar sabichão, que, como usava, estava triste e mesta;
mas mais com o seu último argumento, o temor e o traimento suposto,
a quieto estar e esquecer seu intento. que a acompanhavam, tiram-lhe o gosto.
10s Como sob o ardente calor estivo, 1 10 Finda que foi a ceia (talvez fosse
desejosa de beber está a erva, mais longa, se não estivessem à espera
a flor, a que faltava o incentivo de os olhos pascer), Bradamante alçou-se,
daquele humor que a vida lhe conserva, e a mensageira seu gesto reitera.
sente a chuva e assume um ar festivo; O senhor acenou, e um apressou-se
de igual modo, quando a defesa observa a alumiar de imediato muita cera,
que dela se fazia, a mensageira que iluminou da sala todo o canto.
de novo se fez bonita e fagueira. Narro o que se seguiu, no outro canto.
--.-
NOTAS
1 Reino [. . .] daria: cujo trono estava vago porque 11 O corcel [. . .] fazia: Rabi cano e as armas que Astolfo
Rinaldo matou o rei anterior (cf. XVI:47-48) . lhe deu a guardar (cf. XXIII: 14- 1 5) .
2 12
Ruggiero [. . .] termo: Ruggiero livrara-o da forca no Quercy [. . .] Cahors: região do Sul de França e respec
Orlando lnnamorato. tiva capital (a norte de Montalvão) .
3 E à fé: à sua prometida conversão ao cristianismo 13
Onde [. . .] Dordonha: nasce no Maciço Central.
(cf.XXII:36) .
14 Monferrante e Claramonte: cidades da região de
4 Pírois e Éton: dois dos quatro cavalos que puxam o Auvergne, que se uniram no séc. XVII, formando a actual
carro do Sol (os outros são Eoo e Flégon) . Clermont-Ferrand.
5 Justo [. . .] detenção: o israelita Josué ordenou ao Sol 1 5 Gótia: provavelmente Gotland, ilha e condado da
que se detivesse, para ter tempo de obter uma vitória Suécia no mar Báltico.
sobre os inimigos.
16
Cidades de Boco: a Mauritânia, de que Boco foi rei.
6 Noite [. .. } geraria: Na noite em que Zeus se uniu a
17
Alcmena, para mais longamente desfrutar do seu amor, O .frade cortara: cf. XXV:24.
ordenou ao Sol que não se erguesse durante três dias.
18
Dessa união nasceu Hércules. Fieramonte: rei dos Francos, de quem a lenda diz ter
sido o primeiro rei que atravessou para a margem esquer
7
De [. . .] esposa: a Aurora (cf. nota a VIII:86:6) . da do Reno.
8 Fúrias [. . .} ornamentos: as Fúrias o u Erínias - Alecto, 19
lo [. . .] amor: lo, amada por Zeus, foi alvo do ciúme
Tislfone e Megera -, tinham os cabelos entremeados de Hera. Para a salvar, Zeus transformou-a em vitela,
de serpentes. mas Hera exigiu que o animal lhe fosse dado e confiou
-o à guarda constante de Argo dos Cem Olhos.
9
Para [...] apraz: a serpente, para continuar a ser cruel,
20
recusa-se a ouvir o som do encantador. Tristão [. . .] bebeu: Tristão, personagem lendária do
ciclo bretão, bebeu por engano o filtro amoroso que a mãe
1
° Como [. . .] dizia: cf. XXVII:93-94. de Isolda preparara para seu marido, o rei da Cornualha,
ficando para sempre apaixonado por ela.
-ê:lfo
CANTO XXXIII
�
4 Mas que não se gabe de fazer tanto 7 Todas as guerras que os Francos farão
pintor antigo nem pintor moderno, para lá dos Alpes, com bom ou mau fim,
e que sua arte ceda ao encanto mil anos além da sua geração,
que seduz mesmo os espíritos do Inferno. pôs nesta sala o profeta Merlim;
O salão que eu disse no outro canto, o qual foi mandado pelo rei bretãoª
Merlim fez com o livro, no lago Averno6 ao franco rei, de Marcomir delfim9;
consagrado ou nas grutas de Norcia7 , por que o mandou, e por que executante
pintar pelos demos da noite para o dia. Merlim foi dela, digo num instante.
5 Esta arte, em que deram os de outrora s Foi Fieramonte o primeiro soberano
provas prodigiosas, está hoje extinta. que o Reno passou com a tropa franca;
Mas, voltando onde me aguardam agora depois da Gália ocupar, tinha o plano
os que a sala vão ver ornada a tinta, de à soberba Itália pôr uma tranca.
sinal um pagem houve e, sem demora, Tal pensava, porque o Império Romano
tochas acendeu; e a noite, indistinta tinha a passada cada vez mais manca;
pelo grande esplendor, logo se esquecia; por isso com Artur fez aliança 1 0 ;
dia fosse, e melhor não se veria. pois houveram no tempo vizinhança.
6 Disse o senhor: - Quero-vos informadas 9 Artur, que empresa fazer, sem parecer
de que as guerras que aqui estão retratadas, do profeta Merlim, não foi capaz
até hoje, poucas foram travadas; (digo Merlim, filho de Lucifer,
foram, antes de ser feitas, pintadas. o que do futuro antevia assaz),
Por quem pintou foram adivinhadas. soube por ele, e o perigo fez saber
Quando haverão vitória, ou derrotadas a Fieramonte, que a risco pugnaz
em Itália serão as nossas gentes, exporá sua gente, se entrar na terra
todos os casos aqui estão patentes. que Apenino parte e o Alpe e o mar cerra 1 1 •
CANTO XXXIII 531
10 Deu-lhe Merlim a ver que os escolhidos 13 Assim disse, e de as levar fez mister
que o ceptro de França após ele haverão, ao início da história; e Singiberto 13
pela espada os exércitos destruídos, lhes mostra que vai, para tesouro haver,
ou pela fome ou pela peste, ali verão; que o imperador Maurício14 deu por certo.
curtas alegrias, lutos compridos, - Ei-lo do monte de Jove 1 5 a descer
pouco proveito e enorme perdição ao chão pelo Ambra e pelo Ticino aberto16 •
trarão de Itália; pois não se prediz Vejam Eutar'7, que não só o expulsou,
que o Lírio 12 , em tal terreno, crie raiz. mas o pôs em fuga e o derrotou.
11 Rei Fieramonte nele fez tanta fé 14 Vejam Clodoveo 18 , que traz mais de um cento
que a outro sítio dirigiu a armada; de milhares de gente a passar o monte;
e Merlim, que qualquer coisa bem vê, e vejam o duque de Benevento,
que há-de vir, como se já realizada, que com número díspar lhes dá a fronte.
a pedido do rei, como se crê, Aqui finge deixar o acampamento,
nesta sala, por magia pintada, mas com engodo: morte no horizonte
dos Franceses todo o futuro gesto, para a gente francesa, que ao vinho corre
como se ocorrido, fez manifesto. como o peixe ao anzol: pela boca morre19 •
12 Para que quem lhe suceder bem entenda 15 Eis Childiberto20 , para Itália, quanta
que, assim como obterá vitória e honor gente de França e capitães envia;
quando a defesa de Itália empreenda não mais que Clodoveo se gaba e canta
contra outro qualquer bárbaro furor, de saquear e vencer a Lombardia;
também sempre que danejá-la entenda, pois a espada do céu desce e faz tanta
para pôr-lhe o jugo e dela ser senhor, morte entre os seus que ocupam toda a via;
entenda, digo, e disso esteja certo, desinteria e calor os dizimou;
que além dos Alpes tem sepulcro aberto. - menos que um em cada dez se salvou. -
532 ORLANDO FURIOSO
16 Mostra Pipino, e mostra Carlos2 1 perto, 22 e a gente que de França ali aporta
que cada um de Itália segue a senda, é atraída onde a rede está tesa32 ,
um e outro de sucesso coberto, com o conde Armagnac; a escolta os transporta
pois a ela não vem para que a ofenda; directamente à infeliz empresa.
um, para ser o papa Estêvão liberto; Por todo o campo essa gente jaz morta,
outro, para que Adriano e Leão22 defenda: ficando alguma em Alessandria presa;
Astolfo23 um doma, outro vence e captura e, mais de sangue que de água engrossado
o herdeiro, e a honra do Papa assegura. pelo Tanaro33 , o Pó torna-se encarnado.
17 Mostra-lhes perto outro jovem Pipino24 , 23 Um, dito da Marca, e três anjouinos34
que parece cobrir, com sua gente, lhes aponta um após outro, e diz: - Estes,
desde as Fornaci25 ao lido pelestino26 ; aos de Abruzos, Calábria, e Otrantinos
com grande despesa e lavor ingente, e Apúlios vemos dar tratos agrestes.
de Malamocco a ponte eis que ergue a pino Mas nem dos Francos vale, nem dos Latinos,
até Rialto, para que o assalto tente. ajuda que evite que se vão prestes;
Aqui foge, o exército afogado; eis como são expulsos do reino, quando
mar e vento a ponte tinham levado. ali vão, por Alfonso e por Fernando35 •
1s - Eis Luís de Borgonha, que propende 24 Vejam Carlos oitavo36 , que descende
para onde vencido é e prisioneiro, dos Alpes, e com ele o escol da França;
e vê-se que o faz jurar, quem o prende, passa o Liri37 e todo o reino apreende,
que aqui não voltará como guerreiro. sem espada empunhar ou abaixar lança,
Mas ei-lo que o seu juramento ofende, salvo o rochedo que a Tifeu se estende
e de novo cai no laço embusteiro; sobre os braços e o peito e sobre a pança38 ;
eis que os olhos cá deixa e, qual toupeira, o bom sangue de Avalos lhe resiste:
levam-no os seus, dos Alpes pela fronteira27 • contra lnico dei Vasto não insiste39 • -
19 Vejam de Hugo d'Arles os grandes feitos,
e que de Itália os Berengari corre;
duas ou três vezes por ele desfeitos,
pois sempre um Huno ou Bávaro os socorre.
Mais tarde é forçado a ceder direitos
ao inimigo, e pouco depois morre;
pouco a ele sobrevive o herdeiro,
e a Berengario cede o reino inteiro.
20 Vejam outro Carlos: para dar confortos
ao Papa, a Itália traz fogo renhido28 ;
duas batalhas, dois reis deixou mortos:
Manfredi, por Coradino seguido.
Eis seus homens, que com mil desconfortos
mantêm o novo reino oprimido:
aqui e ali, pelas cidades espalhados,
todos ao som do vespro29 aniquilados. -
21 Mostra depois (mas havia intervalo
de muitos, muitos lustros, não só anos)
que desce os montes um capitão galo30 ,
para fazer guerra aos Visconti soberanos;
com gente francesa a pé e a cavalo,
a Alessandria impõe cerco e danos;
mas dentro a guarnição tem preparada
o duque3 1 , e fora armara a emboscada;
CANTO XXXIII 533
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536 ORLANDO FURIOSO
Federico, cujo rosto inda afiança 50 Mas aquela que nos faz como o vento
78
46
a flor da juventude, glória há-de ao árido pó, que em volta o regira,
ter eterna, por haver com sua lança, o leva até ao céu e, num momento,
mas mais com diligência e habilidade, à terra o faz regressar, de onde o tira,
salvo Pavia do furor da França, leva a crer que em Pavia um regimento
e ao leão do mar75 contrariado a vontade. de cem mil homens o rei reunira;
Vejam dois marqueses, ambos terror pois conta o que do bolso lhe saiu,
da nossa gente, e ambos de Itália honor, não se a tropa cresceu ou diminuiu.
47 ambos de um sangue e de um ninho nascidos. 5 1 Por culpa dos seus ministros avaros,
Do marquês Alfonso é filho o mais velho76 , e bondade do rei, que neles se fia,
do que, às mãos do negro de dois partidos, os reunidos sob os pendões são raros
vistes que o terreno tornou vermelho. quando à noite às armas se desafia;
Observem quantas vezes são corridos e assaltar vemos os seus anteparos
de Itália os Francos pelo seu conselho. o sagaz espanhoF9, que, tendo por guia
O outro, com ar benigno e feliz, dois d'Avalos, até seria ousado
é marquês do Vasto e Alfonso se diz. para o Céu e o Inferno ter assaltado.
48 Este é o bom cavaleiro que eu dizia, 52 Vejam aqui da nobreza de França
quando a ilha de Ischia mostrei atrás, o melhor escol, no campo destruído.
do qual profetizando dito havia E vejam quanta espada e quanta lança
Merlim a Fieramonte muito e assaz: por todo o lado o rei têm cingido;
que o seu nascimento só se daria vejam que aqui ao corcel dão matança:
no tempo em que ajuda mais eficaz mas não se rende nem dá por vencido,
exigia Itália, a Igreja e o Império, embora só ele vise e para ele corra
contra todo o bárbaro vitupério. o inimigo, sem que alguém o socorra.
49 Este, atrás do seu primo de Pescara, 53 O rei galhardo defende-se apeado,
com Prospero Colonna desta vez, e do hostil sangue todo se banha;
vejam que a Bicocca77 faz sair cara por fim, por tanta força é subjugado.
ao Helvécio, e ainda mais ao Francês. Eis o rei80 preso, e ei-lo já em Espanha;
Eis de novo França que se prepara vê-se aqui ser ao de Pescara dado,
para emendar empresas que mal fez: e ao de Vasto, que sempre o acompanha,
um exército o rei leva à Lombardia, as primeiras honras e distinção
e outro para tomar Nápoles envia. por vencer o rei e lhe dar prisão.
CANTO XXXIII 537
54 Derrotada uma hoste, a outra, que era 60 Perto da alva os olhos fecha, tardios,
para Nápoles conquistar, pelo caminho e parece-lhe ver o seu Ruggiero,
se vai ficando, como, quando a cera o qual lhe diz: - Por que tais desvarios,
ou óleo falta, fica o luzeirinho. acreditando no que não é vero?
Eis que o rei deixa na prisão ibera Antes verás correr para trás os rios
os filhos, e regressa ao franco ninho; que eu em outra pensar, to assevero.
aqui, enquanto à Itália faz guerra, Se eu não te amasse, amor também não tinha
eis que outros lha fazem na sua terra. ao meu coração nem à vista minha. -
55 Vejam os homicídios e as rapinas, 61 Parece juntar: - Para aqui fiz desvio,
por toda a parte de Roma dolente ; 81
para vir baptizar-me e cumprir promessa;
eis que incêndios e estupros às divinas e tanto tardei, porque me impediu
e profanas coisas dão igualmente. ferida profunda, mas não de amor essa. -
O exército da liga 82
olha as ruínas Fugiu-lhe nisto o sono, e não mais viu
de perto, e os prantos e lamentos sente; Ruggiero, que como ele se foi depressa.
e, em vez de avançar, para trás se desleixa, Renova seus lamentos a donzela,
e o sucessor de Pedro prender deixa. e dentro de sua mente assim diz ela:
56 Manda Lautrec o rei, com novas esquadras, 62 - O que agradou foi falso sonho; o lado
não para na Lombardia dar peleja, que me atormenta é insónia real.
mas para tirar das mãos ímpias e ladras O bem foi sonho depressa apagado,
o chefe e outros membros da Igreja; mas não é sonho o martírio infernal.
já não encontra o Papa em escuras quadras, Por que é oculto ao meu senso acordado
pois teve a liberdade de bandeja • 83
o que à ideia pareceu natural?
Assedia a cidade onde sepulta Fechados, meus olhos vêem o bem;
está a Sereia84 , e todo o reino insulta. abertos, só o mal vêem porém.
57 Eis que a armada imperial 85 já mareia, 63 O doce sono prometeu-me paz,
para dar socorro à cidade assediada; com a amarga insónia voltou a guerra:
e eis o Doria86 , que a via lhe cerceia, mostrou o doce sono ser falaz,
por ele submersa, desfeita e queimada. mas a amarga vigília, essa não erra.
Eis como Fortuna muda de ideia, Se amarga o vero, e o falso tanto apraz,
que aos Franceses sempre fora afeiçoada; que o vero de mim se afaste na Terra;
de febre os mata agora, e não de lança: se dormir dá gáudio, velar tormento,
entre mil não há um que volte a França. - durma eu, sem despertar um momento.
58 A sala esses triunfos e reveses, 64 Felizes animais, que em sono forte
e mais, que seria longo contar, seis meses estão, sem os olhos abrir!
continha, em coloridos entremezes; Que seja esse sono idêntico à morte,
podia-os, pelo tamanho, comportar. e esta insónia à vida, não quero adir;
Tornam a vê-los duas e três vezes, sendo às outras oposta a minha sorte,
sem vontade de deles se apartar; morte acordada tem, vida a dormir;
relêem muitas vezes o que a ouro mas se a tal sono a morte se assemelha,
estava escrito sob o belo tesouro. ó Morte, vem, e meus olhos engelha! -
59 As belas damas e outros convidados, 65 Do horizonte, o Sol o rubor trouxe
olhando e comentando a tal respeito, às extremas partes, diluindo em torno
são pelo senhor a repousar levados, as nuvens, e não parecia que fosse,
pois a fazer as honras estava afeito. como o dia anterior, deste o contorno;
Estavam todos há muito adormentados, desperta estando, Bradamante armou-se,
quando recolheu Bradamante ao leito; para fazer ao seu caminho retorno,
para um e para outro lado se amapha, graças tendo rendido àquele senhor
mas não dorme para a destra nem para a canha. pelo bom albergue e o recebido honor.
538 ORLANDO FURIOSO
66 E pôde ver que a dama mensageira, 69 mas sem imaginar que é uma donzela,
com as suas aias e os seus escudeiros, pois nenhum gesto de donzela havia.
saíra do castelo, indo ligeira Bradamante recusa, pois na sela
para onde a aguardavam os três guerreiros, ia apressada e demorar não queria.
que, com a hasta de ouro, sem canseira, Mas de tal maneira insistiram que ela
ao chão mandara com golpes certeiros, sem desonra recusar não podia;
e a noite passaram com desconforto a hasta baixou, e todos por terra
à chuva e ao vento, sob o céu torto. deixou caídos: e acabou-se a guerra,
67 Acresce o mal, de barriga vazia 70 pois sem se voltar partiu, qual meteoro,
terem eles e os cavalos ficado, deles rapidamente se afastando.
batendo os dentes, na lama macia; Eles, que para ganhar o escudo de ouro
e mais inda lhes custa e dá enfado, vieram de tão longe caminhando,
e os envergonha, que a dama diria, sem falar, ergueram-se com decoro,
quando dos outros casos der recado o falar, com o brio, no chão deixando;
à soberana, que a primeira lança estupefactos, pareciam ter antolhos:
os abateu que encontraram em França. para Ullania não erguiam os olhos;
68 E, prontos a morrer ou fazer já 71 pois, com ela seguindo em seu destino,
vingança aqui pela desconsideração, tinham-se de si gabado, arrogantes:
a fim de a mensageira, que nome há que não há cavaleiro ou paladino
Ullania, aquela tão má opinião que ao mais fraco deles resistisse antes.
que deles na lembrança ter poderá A dama, para que tivessem mais tino,
vir a desenraizar do coração, e para que não fossem tão petulantes,
para a liça Bradamante desafiam, deu-lhes a saber que era uma donzela,
quando a sair da ponte já a viam; não um paladim, que os tirou da sela.
:...
�-----·-.-�--
CANTO XXXIII 539
n - O que haveis (dizia-lhes ela), quando 78 Porém desta não quero falar tanto
uma mulher assim vos abateu, que não me ocupe dos dois cavaleiros
de pensar o que é Rinaldo, ou Orlando, que de acordo amarraram, entretanto,
dos quais fama não sem razão correu? junto à fonte os seus cavalos ligeiros87 •
Se um deles o escudo houver, vos demando, A sua pugna, que para aqui transplanto,
se melhores do que quanto transpareceu não é por impérios, terras, dinheiros,
contra a dama, contra esses sereis? mas para que Durindana o mais galhardo
Não creio eu, nem vós, julgo, o crereis. venha a ter, e possa montar Baiardo.
73 Que isto vos baste, e nenhum se disponha 79 Sem que trompa ou outro sinal soasse
a de seu valor dar mais clara prova; para que início lhe dessem, sem maestro
aquele de vós que, temerário, sonha que os golpes lícitos lhes recordasse,
de seu brio dar em França amostra nova, e lhes incutisse na alma o estro,
só procura acrescer dano à vergonha um e outro a seu ferro dá deslace
pela qual ontem passou e hoje renova; e parte para o assalto, ágil e destro.
a não ser que ache utilidade e honor Os golpes a ouvir-se começaram,
morrer às mãos de homens de tal valor. - muitos, pesados, e as iras escaldaram.
74 Quando convictos os guerreiros fez 80 Doutras espadas não sei, para prova eleitas,
Ullania, que aquela era uma donzela, como estas firmes, sólidas e duras,
a qual tornara mais negra que pez resistindo, a golpes destes sujeitas,
a fama deles, que antes era bela, mais agrestes que todas as agruras;
e uma bastando, porém mais de dez na têmpera eram estas tão perfeitas,
vozes confirmaram o dizer dela, e por tanta experiência tão seguras
quase contra si viraram as espadas, que bem podiam juntas defrontar-se
tanto eram a dor e a raiva assanhadas. com mil estocadas, sem despedaçar-se.
75 E, pelo desdém e pela fúria levados, 81 Aqui e ali Rinaldo muda o passo,
despem as armas que tinham vestidas; com muita destreza, saber e arte
nem as espadas deixam presas aos lados, travando de Durindana o ameaço,
e ao fosso do castelo são expelidas; pois sabe bem como ela o ferro parte.
juram, sendo por mulher derrotados, Maiores pancadas dava o rei Gradasso,
que ao chão os mandou com três investidas, mas no ar acertava a maior parte;
que, para expiar tal erro, iam andar quando acertava, acertava em lugar
um ano inteiro sem armas usar; que pouco podia danificar.
76 e que a pé andarão por qualquer via, 82 Com mais perícia o outro a espada inclina,
quer suba ou desça a estrada que lhes calha; dando ao braço deste entorpecimento;
e, mesmo quando um ano passaria, e às vezes no flanco, ou onde confina
não cavalgavam nem vestiam malha, a couraça com o elmo, dá tormento;
se novas armas e outra montaria mas encontra a armadura adamantina,
não ganhassem à custa de batalha. e não rompe uma malha ou ligamento.
Sem armas, pois, para punir seu resvalo, Se dura e forte ele a encontra tanto,
a pé foram, e os outros a cavalo. é por ela ser feita com encanto.
77 Bradamante num castelo ao serão, 83 Sem repouso estiveram ocupados
na estrada de quem para Paris se mova, muito tempo em batalha, nos seus postos,
de Carlos e Rinaldo, seu irmão, os olhos nunca voltando para os lados,
que Agramante venceram ouve a nova. fixos estando nos excitados rostos;
Teve ali mesa e acomodação, nisto, por outra luta perturbados
mas desse ou doutro bem-estar pouco prova; foram, e seus grandes furores depostos:
pouco ela come e não repousa assaz, voltaram o rosto, ao grande tumulto,
pois em parte nenhuma encontra paz. e viram Baiardo em perigo de vulto.
540 ORLANDO FURIOSO
96 Asto lfo s igo, que com sela e brida 99 Por Marro cos, Fez, Orão , Bôn e voa,
fazia an dar, qual corcel em terreno , Argel, Bo ugie, qual delas mais soberba,
pelo ar o hipo grifo em tal corrida to das ten do de o utras cidades coro a91 ,
que águia ou falcão tinham voo mais ameno. mas de ouro , e não de ramos de erva acerba.
Após to da a França estar percorrida Para Bizerta e Tunis depo is aproa;
de mar a mar, dos Pirenéus ao Reno, avista Gabes e a ilha de Djerba92 ,
dirigiu-se a po ente, e à montanha e Trípo li, Bengazi e To lo mitta93 ,
que a terra fran cesa aparta da Espan ha. até onde o Nilo a Ásia limita.
97 Passo u Navarra e depo is Aragão , 1 00 Entre a marin ha e a silvosa ameia
causando em quem o via maravilha. dos rudes Atlas, viu cada coutada.
Tarragona fico u-lhe à esquerda mão, As costas deu à Carena cadeia,
Biscaia à direita e Castela trilha. e so bre a Cirenaica94 fez estrada;
Viu Galiza e de Lis bo a a nação , e, atravessando as extensões de areia,
depo is virou para Córdova e Sevilha; no con fim da Núbia viu Albaiada.
lito ral ou interior tudo apan ha, Para trás ficou o túmulo de Bato9 5
não há cidade que n ão visse em Es pan ha. e o templ o de Ámon 96 , que houve desbarato.
98 Viu Cádis e as metas que perto pôs 101 Depo is a uma o utra T lemcen chegou97 ,
ao s n avegantes Hércules in victo. que de Mao mé também segue o estilo.
A voar so bre África se dis pôs, Para os o utros Etío pes asas voltou,
des de o mar de Atlante aos con fins do Egipto. que contra estes estão , para lá do Nilo.
As Baleares tão famosas transpôs , Para N úbia9 8 uma linha recta traçou
e viu Ibiza, do grupo já dito. entre Do baya e Cnoad, sem vacil o.
Virou o freio em direcção a Arzila, Estes cristãos, e aqueles , mo uros são ;
pas san do o mar que após Es panha cin tila. e armados na fronteira sempre estão .
---- -- - -- ---·· - --- - -- 1 02 Senapo, imperado r da Etiópia,
�- . -�":�:i:._ :��;_�-::_�=l:-;;;�� :.:..=__ da cruz e não do ceptro tem os prós ;
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105 Por paredes, tectos, soalhos espalhado, 111 Deus reprimiu-lhe o temerário querer,
pérolas e preciosas gemas tem. e um anjo enviou àquela baderna,
Nasce o bálsamo aqui e, comparado, o qual cem mil deles fez perecer,
pequena porção tem Jerusalém. tendo o rei condenado à noite eterna.
O nosso almíscar daqui é levado, Depois, à sua mesa fez comparecer
e o âmbar daqui nos chega também; o monstro horrendo da infernal caverna,
vêm, em suma, as coisas deste canto que lhe rouba e contamina o manjar,
que nos nossos países valem tanto. sem que lhe permita sequer provar.
1 06 Conta-se que o sultão, rei do Egipto, 1 1 2 E ao contínuo desespero o sujeita
a tal rei dá tributo e está sujeito, um, que já lhe tinha profetizado
por poder do caminho que está escrito que a sua mesa não seria atreita
desviar o Nilo, dando-lhe outro leito, à rapina e ao odor empestado,
deixando o Cairo e todo o seu distrito quando se visse que pelo ar se ajeita
à fome e míngua, se sofrer despeito. um cavaleiro num cavalo alado.
O nome Senapo é o que lhe dão Mas ele, pensando que tal não existe,
os súbditos; para nós é Preste João 100 • a esperança perdera e vivia triste.
1 07 De todos os reis que teve a Etiópia, 1 1 3 Agora, que admirada vê a gente
o mais rico foi este e o mais potente; sobre toda a muralha e alta torre
mas, com poder e ouro em tanta cópia, o cavaleiro vir, imediatamente
os olhos perdeu desgraçadamente. alguém ao rei da N úbia a contar corre,
Mas que outras essa era menor inópia: ao qual a profecia torna à mente;
era muito mais triste e mais nocente olvidando o fiel bastão que o socorre,
que, embora por riquíssimo se tome, jubiloso vai, com as mãos adiante,
torturado era por perpétua fome. tacteando, até ao cavaleiro volante.
10s Se a comer ou beber esse infeliz 1 1 4 Astolfo, no terreiro do castelo,
era levado por grande vontade, em largos círculos ao chão desceu.
chegava o bando de infernal cariz, Quando junto dele vieram trazê-lo,
as nefandas Harpias 101 , que à maldade, ajoelhou-se e as mãos juntas estendeu:
com os bicos e as garras hostis, - Ó novo Messias, anjo singelo
os manjares comiam à saciedade; (disse), vê se perdão não mereço eu,
e o que no ventre voraz não cabia, se todo o homem para pecar propende,
conspurcado deixavam, e fedia. e vós para perdoar quem se arrepende.
1 09 Isto, porque quando em idade acerbo, 1 1 5 De meu erro consciente, não almejo
e vendo-se elevado a tanto honor, nem pedir ousaria os velhos lumes 1º2 •
pois além de tão rico era no verbo, Que o possas fazer, creio de sobejo,
na força e na coragem o melhor, pois caros a Deus sois, beatos numes.
tornou-se, como Lúcifer, soberbo, Para martírio me baste que eu não vejo;
e pensou fazer guerra ao seu Factor. por que também à fome me resumes?
Subiu com as hostes, seguindo o fito, Liberta-me das fétidas Harpias,
ao monte donde sai o rio do Egipto. para que não roubem minhas iguarias.
1 1 0 Tinha ouvido que nesse monte alpestre, 1 1 6 E em templo de mármore, te prometo,
que acima das nuvens ao céu se eleva, meu paço real será transformado,
ficava o paraíso que terrestre que terá em ouro as portas e o tecto,
se diz, onde habitou Adão e Eva. e dentro e fora de gemas ornado;
Camelos, elefantes e pedestre que teu nome terá me comprometo,
exército, orgulhoso, com ele leva; e teu milagre nele será lembrado. -
com desejo, se habitasse ali gente, Assim dizia o rei que nada vê,
de às suas leis torná-la obediente. tentando em vão beijar ao duque o pé.
CANTO XXXIII 545
117 Responde Astolfo: - Nem anjo do Céu 1 1s A Deus tais votos deves fazer, pois;
sou, nem Messias que aqui fez descida; constrói a ele igrejas, altares raros. -
sou mortal e pecador também eu, Isto dizendo, para o castelo os dois
sem merecer tanta graça concedida. caminhavam, entre os barões preclaros.
Tudo farei para que o monstro sandeu, Ordena o rei aos servidores depois
por morte ou fuga, te deixe a comida. que para o banquete se façam preparas,
Se o fizer, não a mim, mas a Deus louva, esperando não lhe tirem desta vez
porque, para te ajudar, para aqui me mova. a comida, com tal desfaçatez.
546 ORLANDO FURIOSO
--..-
NOTAS
27 46
Mas [ ..}fronteira: Luís de Borgonha (887-923) invadiu Delos [ . .} envaideceu: em Delos nasceram os deuses
Itália e derrotou Berengario i, tendo sido coroado em Pavia, gémeos Apolo e Ártemis.
mas mais tarde foi rechaçado. Invadindo o país pela segun
47
da vez, foi derrotado por Berengario, que o mandou cegar. O émulo antigo: o velho rival de Ludovico, Fernando
II de Aragão.
28 Outro Carlos [ . .} renhido: Carlos de Anjou, irmão de
48
Luís ix de França, invadiu a Itália para apoiar o papa No seu [ . .} capturd-lo: quando Carlos viii regressa do
Clemente IV. Sul para voltar a França, Ludovico Sforza, aliado aos
Venezianos, barra-lhe o caminho, mas Carlos VIII con
29
Vt-spro: a «guerra do Vespro», insurreição popular na segue pôr-se a salvo.
Sicília contra o domínio dos Anjou. Teve início em
49
Palermo no dia 30 de Março de 1 282, quando se toca O senhor de Mântua: Gian Francesco Gonzaga, mar
ram as Vésperas. quês de Mântua.
3
° Capitão galo: o conde d'Armagnac, que pôs cerco a 50
Alfonso di Pescara: irmão de !nico d'Avalos. Negociou
Alessandria em 1 39 1 , mas foi mal sucedido. secretamente com um negro, escravo dos Franceses, a ocupa
ção de uma fortaleza em Nápoles; mas ele, que fu.ia duplo
31
O duque: Galeazzo Visconti. jogo, atravessou-lhe traiçoeiramente o pescoço com uma seta.
32 51
Onde [ . .} tesa: onde a armadilha está montada. Arranca [ .. } horizontes: a amoreira (insígnia dos
Visconti), foi deposta por Luís XII e substituída pelo
33
Tanaro: afluente do Pó que banha Alessandria, cida símbolo da França. O exército francês era comandado
de piemontesa. por um italiano, Trivulzio.
34 52
Um [ .. } anjouinos: Jacques de Bourbon, conde da Ir [ . .} carris: seguir a via já trilhada por Carlos VIII
Marca, e Luís III, René e Jean de Anjou. Lutaram os para conquistar Nápoles.
quatro pelo trono de Nápoles.
53
Consalvo Ferrante: cf. nota a XXVI:53.
35
A/fonso [ . .} Fernando: Afonso e Fernando de Aragão.
54 E quanto [ . .} divide: tanto quanto a sorte foi adver
36
Carlos oitavo: rei de França, filho de Luís xi, invadiu sa a Luís xii em Nápoles, veio a sorrir-lhe na rica planí
a Itália em 1 494, a convite de Ludovico Sforza, il Moro, cie lombarda, que se estende até ao Adriático (Adria, cf.
duque de Milão de 1 494 a 1 499. Carlos conquistou nota a III:40:7-8), entre os Apeninos e os Alpes, e que o
todo o reino de Nápoles, excepto a ilha de Ischia. rio Pó atravessa.
37 55
Liri: rio da Itália central, que se une com o Gari, for Um [ . .} dado: Bernardino da Corte entregou o cas
mando o Garigliano. Era fronteira entre os Estados telo de Milão aos Franceses, por ouro.
Papais e o reino de Nápoles.
56
O traidor [ . .} confiado: os mercenários suíços con
38
O rochedo [..} pança: a ilha de Ischia (cf. nota a xvi:23:4). tratados por Ludovico, il Moro, para sua defesa, traíram
no, entregando-o aos Franceses.
39
O bom [ . .} insiste: Carlos VIII não conseguiu con
57
quistar Ischia a !nico dei Vasto, marquês de Avalos. Cesar Borgia: César Borja ( 1 475- 1 507) , filho do
papa Alexandre VI. Seu pai fê-lo arcebispo, cardeal, e
4° Fogo [ ..} esplende: o fogo das armas de guerra avista duque da Romagna. Luís XII de França deu-lhe o duca
-se até ao Faro (farol do estreito de Messina) . do de Valentinois, e tropas francesas com as quais alar
gou os seus domínios na Romagna.
41
Nireu: a seguir a Aquiles, era o mais belo dos Gregos
58
no assalto a Tróia (Ilíada, II:673-674) . O rei [ . .} !ande: em 1 506, Luís xii expulsa de
Bolonha os Bentivoglio, cuja insígnia era a serra, restau
42
Aquiles [ . .} atreveu: Aquiles era invulnerável (excep rando ali o poder pontifício (a insígnia do papa Júlio II
to no calcanhar) , enquanto Ulisses era o protótipo da della Rovere era um carvalho com bolotas) .
audácia e da astúcia.
59
Ghiara d'Adda: entre os rios Adda e Oglio, onde
43
Lada: o veloz mensageiro de Alexandre Magno. Luís xii venceu os Venezianos, em 1 509.
44 60
Nestor: rei de Pilos, era o mais velho dos conselhei Felsina (Félsina): antigo nome de Bolonha.
ros de Agamémnon na Guerra de Tróia. Figura simbóli
61
ca do ancião sábio, prudente e honesto. Um e outro [ . .} Ravenna: batalha e saque de Ravenna
(cf. nota a XIV:2).
45 O sobrinho de Ceo: Zeus, filho de Reia e Crono (irmão
62
de Ceo). Gente hispana: o exército espanhol aliado do Papa.
550 ORLANDO FURIOSO
63 85
Um Alfonso: Alfonso d'Este. Armada imperial: do imperador Carlos V.
64 86
Faz [. . .} rugido: o Papa manda vir um exército de Doria: Filippino Doria; destroçou a armada de
mercenários suíços. Carlos V ao largo de Nápoles.
65 87
De Amoreira [. . .} arrancou: expulsos os Franceses Dois cavaleiros [. . .} ligeiros: Rinaldo e Gradasso (cf.
(Lírios de Ouro) , a senhoria de Milão foi dada a XXXI: 1 1 0) .
Massimiliano Sforza, filho de Ludovico, il Moro (cuja
88
insígnia ostentava uma Amoreira) . Culpas [. . .} havia: recorde-se que Malagigi tinha
impedido o anterior duelo entre Rinaldo e Gradasso (cf.
66
Vendido: aos Franceses (cf. 36: 5-6) . XXXI :92, 99 ss.) .
67 89
O novo rei: Francisco I de França. A armada: a armada de Agramante.
68 90
Para [. . .} Novara: cf. nota a XXVl:44:7. Bem pichada: cf. nota a XIII: 1 4: 1 .
69 91
Vejam [. . .} inteira: Francisco I derrota os Suíços em Fez [. . .} coroa: Fez, cidade marroquina do interior
Melegnano, em 1 5 1 5 (cf. XXVl:45) . norte. As restantes são cidades do litoral argelino, as
quais davam nome também aos respectivos reinos, que
70
Liga: entre a Áustria, a Espanha, Florença e o papa abrangiam outras cidades.
Leão X.
92
Bizerta [. . .} Djerba: três cidades portuárias da
71 Bourbon: Carlos de Bourbon defendeu Milão do Tunísia, e a pequena ilha de Djerba, no golfo de Tunis.
exército germânico de Maximiliano da Áustria, em
1 5 1 6. 9 3 Tripoli [. . .} Tolomitta: cidades costeiras da Líbia.
Tolomitta, cf. nota a XVIII:46:2.
72
Francesco: Francesco II Sforza, filho de Ludovico, il
94
Moro. Carena [. . .] estrada: a cadeia de Carena é um prolonga
mento da do Atlas. Depreende-se que Astolfo, depois de
73
Duque de Mântua: Federico Gonzaga. seguir o litoral até ao Nilo, se dirigiu para o interior do con
tinente africano, seguindo um percurso inverso ao do rio.
74
Ticino: afluente da margem esquerda do Pó.
95
Bato: fundador lendário de Cirene, antiga capital da
75
Leão do mar: Veneza. Cireneia.
76
Do [. . .} velho: Francesco d'Avalos, marquês de 96 Ámon: cf. nota a XXIX:59:6.
Pescara.
97
Outra [. . .} chego u: não aquela já referida, na Argélia
77
Bicocca: batalha de La Bicocca, perto de Milão (cf. (cf. XII:69) .
XV:28) .
98
Núbia: cidade, que dá nome ao reino.
78
Aquela: a sorte.
99
Pena atroz: Inferno.
79
Sagaz espanhol: Carlos V, cujo exército derrotou o de
1 00
Francisco I de França, em Pavia. Preste João: figura mítica de rei-sacerdote cristão,
cujo império se situava, por tradição, em África, a sul do
80
O rei: Francisco I de França, preso e levado para Egipto, ou, segundo outras fontes, na Índia ou na
Espanha. Tartária. Os Descobrimentos portugueses identificaram
no com o negus da Abissínia ou Etiópia.
81
Vejam [. . .} dolente: invasão e saque de Roma por
IOI
Carlos V e um exército de onze mil mercenários alemães, Harpias: são geralmente três, representadas como aves
em 1 527. com cabeça de mulher e afiadas garras, ou como mulheres ala
das. Atormentadoras dos humanos, tinham o vício de roubar
82
Liga: formada pela França, o papa Clemente VII, -lhes a comida ou de conspurcá-la com os seus excrementos.
Milão, Veneza e Florença, mas que foi impotente contra
Carlos V. !02 Lumes: luz dos olhos.
83
Teve [. . .} bandeja: Clemente VII fez um acordo com w3 Zona escaldante: Inferno.
os Espanhóis que lhe garantiu a liberdade.
I 04
Cocito: um dos rios infernais.
84
A culade [. ..} Sereia: Nápoles, onde, segundo a lenda, deu
à costa o corpo da Sereia Panénope, ali ficando sepultada. rn5 Corcel [. . .} assume: pousa em terra.
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CANTO XXXIV
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4 Com o horrível som Astolfo ateve 10 E se queres que eu conte a tua novela
em fuga as Harpias, dando-lhes luta, no mundo em cima, faço-o em bom tom. -
até que aos pés de um monte se deteve, Respondeu a sombra: - À luz alma e bela
onde tinham entrado numa gruta. voltar, mesmo por fama, acho tão bom
À entrada o ouvido atento teve, que a palavra por força me desvela
e chegou-lhe pelo ar grande labuta o grande desejo de ter tal dom,
de pranto, gritos e lamento eterno: e que meu nome e do meu ser te diga,
claro sinal de que era ali o Inferno. ainda que falar me dê fadiga. -
Pensou Astolfo em entrar mais para dentro, 11 E começou: - Senhor, Lídia sou eu,
para ver quem houve da morte transtorno do rei da Lídia em eminência nada,
e penetrar na Terra até ao centro, e que o juízo divino entendeu
as fossas infernais correndo em torno. fosse ao eterno fumo condenada,
- Que hei-de temer (dizia) se aqui entro, por ter sido para o fiel amante meu,
se posso sempre recorrer ao corno? enquanto vivi, ingrata e malvada.
Farei fugir Plutão4 e Satanás, De muitas outras a gruta está plena,
e o cão tricéfalo 5 mando para trás. - sofrendo por igual falta igual pena.
6 Do alado corcel depressa desceu, 12 Mais abaixo Anaxárete, a cruel,
que a um arbusto deixou amarrado; onde o fumo e o martírio é mais mordaz.
entrou no antro, mas antes reaveu No mundo o corpo em pedra fez cinzel,
o corno, no qual estava confiado. a alma aqui sofre pena tenaz,
Pouco avançara, quando lhe ofendeu pois de ver o seu dedicado e fiel
nariz e olhos um fumo empestado, amador enforcado foi capaz6 •
mais pesado que o de enxofre e o de pez, Perto está Dafne, que agora vê quanto
porém Astolfo deter-se não fez. errou, fazendo Apolo correr tanto7 •
7 Mas quanto mais avança, mais engrossa
o fumo e a fuligem, que o faz pensar
que muito mais além entrar não possa;
para trás terá por força de voltar.
Nisto, um estranho movimento se esboça
na abóbada, por cima: um voltear
de cadáver que ao vento, à chuva e ao sol
oscila há dias, suspenso do anzol.
a Pouca era, quase nenhuma, a luz
naquela fumífera e escura estrada,
e o duque não percebe nem induz
quem é que pelo ar assim sobrenada;
para tal saber, mais perto se conduz,
e dá-lhe um ou dois golpes com a espada.
Deduz então que um espírito será,
parecendo que os golpes em névoa dá.
9 Mas ouviu alguém dizer em voz mesta:
- Ai! Não faças mal, e daqui abala!
Já muito o negro fumo me molesta,
que do fogo infernal para aqui exala. -
Pára o duque e admiração manifesta,
e diz à sombra: - Corte Deus a ala
ao fumo, para que até ti não ascenda,
e deixa que quem tu és eu entenda.
CANTO XXXIV 553
13 Longo era tanto espírito infeliz 19 O rei recusou, pois com maior estado
das que foram ingratas, que aqui estão, desejava casar a sua filha;
referir-te, tal como destas fiz, não com quem, sendo cavaleiro privado 12 ,
pois que em número infinito elas são. apenas pelo valor militar brilha;
Pior contar dos homens os perfis, e o meu pai, que ao interesse é muito dado,
que sofrem pena por ingratidão e avareza e todo o vício partilha,
e são punidos num lugar pior, tanto costumes e virtude admira
onde o fumo os cega e os coze o calor. como aprecia o burro o som da lira.
14 Como de convencer mais fáceis são 20 Alceste, o cavaleiro de quem falo
as mulheres, merece maior castigo (era esse o seu nome), assim que se viu
quem as trai. Sabe-o Teseu e Jasão8 , repelido por quem gratificá-lo
e o que pôs de Latino o reino em perigo9 ; devia, despedimento pediu;
sabe o que houve no irmão Absalão, que se arrependeria, de ameaçá-lo
por Tamara, um sanguinoso inimigo 1 0 ; não deixou, pois o pedido indeferiu.
e outros e outras: são muitos infidos Juntou-se ao rei da Arménia, émulo antigo
que enganaram mulheres ou maridos. do rei da Lídia e figadal imigo;
15 Mas mais que dos outros falo de mim, 21 e convenceu-o, com muita constância,
para contar-te em que modo fui falace; a armar-se e a guerra fazer a meu pai.
bela e orgulhosa em vida fui, sim; Por seus actos de grande relevância,
não sei se alguma a mim se comparasse; para capitão de suas tropas vai.
nem sei dizer-te qual dos dois, enfim, Disse ser para o rei da Arménia a substância
orgulho e beleza, o outro passasse; que adquirisse; que a ele só o atrai,
contudo, orgulho e altivez nasceu como prémio de todos os seus feitos,
da beleza, que a todos prazer deu. os meus membros graciosos e perfeitos.
16 Havia então na Trácia um cavaleiro, 22 Não poderei exprimir-te quanto dano
no mundo em armas tido por melhor, Alceste a meu pai dá naquela guerra.
que mais que um testemunho verdadeiro Hostes, destrói quatro; e em menos dum ano
da minha beleza ouvira em louvor; a tal o leva que o deixa sem terra,
e formulou pensamento certeiro excepto um castelo das fragas soberano
de me presentear com seu amor, e forte; dentro dele o rei se encerra
esperando merecer, em compensação, com a família que lhe é mais chegada,
que eu houvesse caro o seu coração. e os bens possíveis na fuga apressada.
17 À Lídia veio; e um laço mais forte, 23 Alceste o assediou, e em reduzido
depois de me ver, a mim o prendeu. tempo fez que o desespero o minasse,
Com mais cavaleiros ficou na corte a ponto de aceitar como partido
de meu pai, onde a fama lhe cresceu. que para mulher e serva me levasse,
O grande valor e mais de uma sorte com metade do reino, se eximido
de proezas que mostrou, não posso eu dos demais prejuízos o deixasse.
tudo contar, e o mérito auferido De outro modo, no restante lesivo
se homem mais grato ele houvesse servido. ele lhe seria, e morria cativo.
1s Panfília, Cária e o reino de Cilícia 1 1 24 Tentar, enquanto é tempo, quer então
por obra dele o meu pai conquistou; todo o remédio possível que havia;
pois contra os inimigos a milícia, e eu, que do mal todo era a razão,
meu pai, só quando esse quis, enviou. fora do forte, a Alceste, me envia.
Julgando merecer pela sua perícia Para Alceste vou eu, com intenção
tal prémio, um dia do rei se abeirou, de dar-lhe de mim mesma serventia,
pedindo-lhe, como compensação e que a parte tome que mais lhe apraz
de tantas conquistas, a minha mão. do nosso reino, e mude a ira em paz.
5 54 ORLANDO FURIOSO
25 Quando Alceste ouve que eu vou procurá-lo, 3 1 Neste estado o vendo, penso comigo
até mim vem, pálido e titubeante; que a total vitória hei-de conseguir:
de vencido e prisioneiro, ao olhá-lo, dou-lhe esperança de o tornar meu amigo
mais que vencedor, me mostra o semblante. e da minha pessoa inda fruir,
Vendo eu como ele arde, já não lhe falo se emendando o seu erro, o reino antigo
como antes pensara, em tom apelante; a meu pai ele vier a restituir;
visto o caso, mudo de pensamento, e assim poderá, com amor e serviço,
procurando adequar-me àquele momento. e não pelas armas, ser o meu derriço.
26 A maldizer o seu amor me envido, 32 Prometeu-me, e de volta me mandou
e de sua crueldade a doer-me; para o castelo, intacta, como cheguei;
censuro-o por meu pai ter oprimido, nem o gesto de beijar-me esboçou:
e que pela força tenha querido ter-me; vê se ao pescoço o jugo lhe ajustei!
o que por mercê teria conseguido Vê se Amor a mim bem o sujeitou,
com firme vontade de comprazer-me, ou que mais setas dispare quererei!
mantendo os modos com que começara, Voltou para o rei da Arménia, a quem tocava,
o que ao rei e a todos nós agradara. por pacto, tudo o que ele conquistava;
27 Pois se bem que a princípio o meu pai tinha 33 e, com o modo melhor que encontrou,
negado a sua pretensão honesta pediu que a meu pai o reino entregasse,
(tinha a natureza um pouco mesquinha, cujas terras saqueou e esvaziou,
nunca dobrando à primeira requesta), e que com a Arménia se contentasse.
recusar ele servi-lo tão asinha A face do rei de ira se inflamou,
não devia, e a ira ter tão presta; dizendo a Alceste que nem pensasse;
ao invés, melhorando a sua acção, que não abandonava aquela guerra,
teria o desejado galardão. tendo inda meu pai um palmo de terra.
2s E, mesmo que meu pai fosse teimoso, 34 E se ele, por escutar uma vil mulher,
eu tanto havia de ter implorado tanto mudou, que fique com o dano.
que faria do meu amante esposo. Só porque lho pede, perder não quer
Mas se inda assim eu o visse obstinado, o que a custo alcançou durante um ano.
tal coisa fazia em modo manhoso Insiste em pedir, só para se doer
que Alceste de mim se tinha orgulhado. que recebem seus rogos desengano.
Mas quando ele quis tentar doutra maneira, Por fim exalta-se, e faz-lhe ameaça
de o não amar fiz intenção certeira. que quer, seja a bem seja a mal, que o faça.
29 E embora à sua presença tivesse ido, 35 Cresceu tanto a ira que os impeliu
por piedade que a meu pai dedicava, a passar das más palavras aos actos.
não teria muito tempo fruído Contra o rei, Alceste a espada brandiu,
o prazer que contrariada lhe dava: entre mil que eram para lhe acudir aptos,
a terra de rubro haveria tingido, e, apesar de tantos, o rei extinguiu;
assim que lhe houvesse a vontade prava nesse dia aos Arménios deu maus tratos;
desta minha pessoa satisfeito Cílices, Trácios e outros seus sequazes
de tudo o que à força ele teria feito. foram, pagos, a ajudar eficazes.
30 Estas palavras e outras tais lhe disse, 36 Vitória obteve e à sua custa fez,
quando vi que sobre ele podia tanto; sem que meu pai desse algum contributo,
e fez que mais arrependido o visse entrega do reino em menos de um mês.
que no deserto um eremita santo. Para compensá-lo do cruel desfruto,
Caiu-me aos pés rogando que brandisse além de ser com despojos cortês,
a adaga que ele empunhara entretanto parte tomou, e a outra impôs tributo,
(querendo a todo o custo que eu a agarrasse), da Arménia e Capadócia, que confina,
e de tantos erros seus me vingasse. e da Hircânia pilhou toda a campina.
CANTO XXXIV 555
46 E, para que de voltar a via impeça 49 Safira, ouro, rubi, pérola, topázio,
às vorazes a quem nada contenta16 , crisólito, diamantes e jacintos
reúne pedras, e a cortar começa fariam lembrar as flores, e apraze-o
árvores ou de gengibre ou de pimenta; ver os ledos pendios delas tintos;
e, corno pode, a fabricar se apressa teriam as ervas, de um verde gázeo,
com suas mãos urna sebe opulenta; esmeraldas vencido nos chãos recintos;
e tão bem lhe saiu a construção não menos belas das árvores a fronde,
que as Harpias dali não sairão. que frutos e flores hão sempre avonde.
47 O negro fumo da mais negra pez, 50 Entre os ramos cantam pássaros vagos,
enquanto esteve na caverna tetra, azuis, brancos, verdes, rubros, lilás.
não só tingiu a desnudada tez, Murmurantes regatos, quietos lagos
corno sob as roupas entra e penetra, em limpidez deixam cristal para trás.
o que para água achar andar o fez; Urna doce brisa em suaves afagos,
por fim, duma pedra na parte retra que nunca falta e mudanças não faz,
vê urna fonte sair, na mata espessa, fazia o ar tremular em redor,
na qual se lavou dos pés à cabeça. tornando ameno do dia o calor;
51 a qual às flores, aos frutos e à verdura
os odores diversos roubando ia,
e de todos fazia urna mistura
que a alma de suavidade nutria.
Estava um palácio no meio da planura,
que de viva chama aceso parecia:
tal esplendor irradiava, e tanto lume,
que fugia a qualquer mortal costume.
52 Astolfo o seu corcel para aquele paço,
que por mais de trinta milhas se estira,
deixa ir à vontade, em lento passo,
e aqui e ali o lindo sítio admira;
e julga, ao pé daquele, feio e devasso,
e do Céu e Natura alvo de ira,
este, em que estamos nós, fétido mundo:
tão suave é aquele, claro e jucundo.
53 Chegando junto ao luminoso tecto 17 ,
a admiração no seu rosto se espelha;
duma só gema é o muro completo,
mais que carbúnculo tersa e vermelha.
Que obra espantosa, ó dedáleo arquitecto!
Que edifício entre nós se lhe assemelha?
Cale-se quem as admiráveis sete
maravilhas a tal glória submete.
48 Monta o voador e pelos ares se lança, 54 No luzente vestíbulo daquela
querendo atingir o cimo da montanha, ditosa casa um velho ao duque acorre,
pois que do ponto mais alto se alcança que o manto tem rubro e branca a farpela:
a Lua é crença que alguns acompanha. com leite e rnínio cada um concorre.
De isso ver é tanto o desejo e a esperança Branca tem a crina, e branca a lapela
que ao Céu aspira e a Terra já estranha. de densa barba que pelo peito escorre;
Pelos ares cada vez mais altura assume, e tão venerável é o seu viso
e da montanha em breve chega ao cume. que lembra um eleito do paraíso.
CANTO XXXIV 557
55 Com leda expressão, este, ao paladino 56 Para te ensinar como socorrer deves
com reverência do arção descido, Carlos, e a sanca fé livrar do perigo,
disse: - Ó barão, que pelo querer divino vieste, para que meu conselho leves,
foste no paraíso recebido; por longa via, sozinho comigo.
embora o motivo de tal destino, Não penses, filho, nem por horas breves,
e seu fim, te seja desconhecido, que por saber ou virtude comigo
não creias que sem sublime mistério estás; nem o corno ou o cavalo alado
és chegado do árctico hemisfério. valia, se por Deus não te era dado.
558 ORLANDO FURIOSO
63 O vosso Orlando, a quem ao nascer deu 66 Mas como foi menor do paladino,
enorme força Deus e sumo agir, que de Nabuco, o erro cometido,
e, além do que é humano, concedeu só deu três meses, o querer divino,
que ferro algum jamais o possa ferir, de prazo para o seu erro ser punido.
pois para a defesa da fé o proveu Para esse efeito te foi o destino
e seu protector o quis constituir de aqui vir pelo Redentor concedido,
(tal como Sansão contra os Filisteus para que o modo aqui venhas aprender,
constituiu defensor dos Hebreus); como o senso a Orlando devolver.
64 rendeu o vosso Orlando ao seu Senhor, 67 Certo é que deverás outra excursão
de tanto benefício, prémio incerto22 : fazer comigo, abandonando a Terra.
quando devia tê-lo a seu favor, Levo-te à orbe da Lua em missão,
o povo fiel dele ficou deserto. dos planetas o que mais perto erra,
Tanto o cegara o impudente amor porque o remédio que poderá são
duma pagã, que já estivera perto, tornar Orlando, é nela que se encerra.
antes, de se tornar ímpio e cruel, Assim que esta noite a Lua veremos
e a morte dar a seu primo fieF3 • sobre nós, ao caminho nos fazemos. -
65 Por isso Deus quis, e louco ele gira, 68 Nesse dia estas coisas difundiu
e mostra nu o ventre, o peito e o lado; o apóstolo, e outras de igual contorno.
e tanto o juízo lhe ofusca e tira Mas logo que o Sol no mar submergiu,
que outros ignora, de si mesmo alheado. e sobre eles se ergueu da Lua o corno,
Assim sabemos que Deus teve em mira um carro adequado à cena saiu,
Nabucodonosor ver castigado: habituado a correr os céus em torno;
sete anos andou de loucura pleno, dos montes da Judeia aquele havia
pascendo-se, como um boi, de erva e feno. Elias aos mortais tirado um dia.
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...., -�. - ,- ,,.
'.--:-.'.-��:::�e.e-���---
560 ORLANDO FURIOSO
81 Viu também muitas máscaras com visco, 82 De alguns dias e factos seus em face
que eram, ó damas, as belezas vossas. se encontrou, que tinha em tempos perdido;
Tempo levará, se em verso rabisco se intérprete consigo não levasse,
tudo quanto viu em todas as fossas; pelas formas não os tinha conhecido.
pois mais de mil a descrever me arrisco, E chegou ao que achamos tanto grasse
já que ali há todas as faltas nossas; em nós que a Deus por ele não é pedido;
só loucura nem um pouco ali há, falo do senso, de que havia um monte
pois não nos deixa e cá em baixo está. (embora a muito mais que o resto amonte).
CANTO XXXIV 563
83 Era como um licor ténue e subtil, 88 que as câmaras tinha cheias de velas
que evaporava não estando fechado; de linho, de seda, algodão e lã,
estava recolhido em ampolas mil, de várias cores tintos, feios e belos.
maior, menor, ao conteúdo adequado. No claustro, uma mulher de crina cã
Maior de todas a que do gentil na roca os fiava, fazia novelos,
senhor de Anglante o senso tem guardado; como vemos no Verão a aldeã
das outras bem se distinguia, quando desfiar os casulos ensopados,
por fora se lia: «Senso de Orlando». para com nova seda fazer brocados.
84 Cada uma por fora escrito tem 89 Uma, findo um velo, ali vem trazendo
o nome a quem o senso pertenceu. outro, e uma outra algures aquele esconde;
Do seu, grande parte ele viu também; outra entre feio e belo vai escolhendo,
mas muito mais admiração lhe deu porque essa tudo a eito põe avonde.
de muitos a quem julgava que nem - Que lavor fazem cá, que eu não entendo? -
faltava um grama, e aqui se apercebeu diz, a João, Astolfo; e aquele responde:
claramente de que tinham bem pouco; - As velhas são as Parcas28 , que com tais
de senso havia ali um enorme bloco. estames fiam vidas para vós, mortais.
85 Uns perdem-no em amor, ou em honores, 90 Quanto dura um dos velas tanto dura
outros buscando, a navegar, riquezas; a humana vida, e nem mais um momento.
outros em esperanças postas em senhores, De olho estão aqui a Morte e a Natura,
ou atrás de mágicas futilezas; para ver quando da vida se é isento.
outros em gemas, obras de pintores, A fios belos escolher uma se apura,
ou coisas que julgue grandes finezas. para que deles se teça o ornamento
De sofistas, astrólogos, poetas, do paraíso; e, dos mais feios estames,
muito havia recolhido em bocetas. para os danados fazem ásperos arames. -
86 Astolfo o seu tirou, que o permitiu 91 Os velas que houveram já desempeços
aquele que o Apocalipse escreveu. na roca, e que são para uso vindouro,
A ampola em que estava ao nariz abriu, mostravam em chapas nomes impressos,
e parece que ao sítio o devolveu: umas de ferro, outras de prata ou ouro;
daqui para a frente, Turpin admitiu faziam com eles montões espessos,
que Astolfo, sensato, muito viveu; donde, sem nunca fazer pousadouro,
mas que mais tarde alguma asneira fez os levava, sem mostrar lassidão,
que lhe tirou o juízo outra vez. um velho, que vinha sem interrupção.
87 A ampola maior e mais cheia era 92 Era o velho tão expedito e mexido
a que do saber do conde era fonte; que para correr parecia ser criado;
Astolfo pegou-lhe, e não estava à espera daquele monte a aba do vestido
de tanto peso, quando a viu no monte. enchia bem, com nome assinalado.
Antes que o paladim daquela esfera Onde ia, e porque assim estava entretido,
cheia de luz à mais baixa desmonte, no outro canto vos será narrado,
é pelo apóstolo santo levado se sinal derem que isso vos agrada,
a um palácio, com um rio ao lado, com a grata atenção já costumada.
564 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 14
Muito [. ..} abriu: referência metafórica aos duques e Euristeu: primo de Hércules (Alcides), rei de Tirinte,
príncipes italianos que abriram as portas à cobiça dos Micenas e Mídea, que, por temer o primo e pensando
estrangeiros. assim destruí-lo, lhe encomendou os Doze Trabalhos,
alguns dos quais são recordados nesta oitava: a Hidra de
2
Tire [. . .} Letes: retire da sonolência e do esquecimen Lema, o Leão de Némea, as Éguas de Diomedes (Trácia),
to, de que o rio Letes é o símbolo. o Javali de Erimanto, a luta com o deus-rio Aqueloo
(Etólia) e com o gigante líbio Anteu (Numfdia), a morte
3 Cá/,ais e Zetes: filhos de Bóreas, deus do Vento Norte, de Caco ( Tibre) e os Bois de Gérion (Ibéria).
que participaram na expedição dos Argonautas, durante
a qual libertaram o rei Fineu das Harpias, que o tirani 1 5 Madrasta: Hera, esposa de Zeus, pai de Hércules
zavam. (Alcides).
4 Plutão: deus romano dos Infernos. 16 Às [. .. }
contenta: as Harpias.
5 Cão tricéfalo: Cérbero, um dos monstros que impe 17
Tecto: palácio.
diam os vivos de entrar e os mortos de sair do Inferno.
18 Aquele [. .. } queria: trecho do Evangelho de S. João
6 Anaxárete [. ..} capaz: Anaxárate era uma donzela de (2 1:20-23).
Chipre que rejeitou o amor de ffis e se comprazia em
fazê-lo sofrer, não se comovendo nem quando ele se 19 Ali [. .. } espera: havia a crença de que estas três figu
enforcou à sua porta. Como castigo, Afrodite transfor ras tinham ascendido ao Céu em vida.
mou-a em estátua de pedra.
20
Dois primeiros parentes: Adão e Eva.
7 Daphne: ninfa amada por Apolo. Por ele perseguida,
21
correu até que, estando quase a ser agarrada por ele, Aurora [. . .} esposo: c( nota a XI:32.
suplicou a seu pai, divindade fluvial, que a transformas
22
se, tendo-se tornado um loureiro. Incerto: errado.
8 Teseu e jasão: o primeiro traiu Ariadne, o segundo, 23
Primo fiel: Rinaldo, que era seu rival na pretensão a
Medeia. Angelica.
9 O que [... } perigo: Eneias, que traiu Dido e levou a 24 Último [. . . } Terra: o último, ou seja, o centro do uni
guerra ao reino de Latino. verso, segundo o sistema ptolomaico.
10
O que houve [. . . } inimigo: Amnon, filho do rei 25 Pois [. . .} luz: pois a Terra não tinha luz própria,
David, violou Tarnara, sua irmã, e depois baniu-a. como a Lua «tinha».
Absalão, também seu irmão, vingou Tamara matando
26 Ganimedes pa/,acianos: favoritos (c( IV:47).
Amnon (O Segundo Livro de Samuel, 1 3).
11 27 Constantino [...} Silvestre: cf. nota a XVII:78.
Panftlia [. .. } Cilfcia: províncias da Ásia Menor.
12 28
Cavaleiro privado: que não possuía títulos e procura Parcas: c( nota a X:56:4. Em vez das três Parcas
va adquiri-los pelos feitos de armas (soldado de fortuna). habituais, Ariosto aqui contempla quatro (uma que fia,
outra que traz os veios, outra que leva os novelos para
13 Lestrígones: povo de gigantes antropófagos, que comiam sítio diferente, e outra que escolhe).
os estrangeiros, e a cuja terra Ulisses aportou com a sua
armada, da qual apenas escapou o seu próprio navio.
Quem subirá por mim, senhora, ao céu,
para me trazer o meu perdido engenho?
Desde, qual seta, vosso olhar bateu
em meu coração, que perdendo o venho.
Nem muito me queixo do desaire meu,
se mais não crescer e assim o contenho;
receio, se mais se for desgastando,
de ficar tal como escrevi de Orlando.
2 Para o engenho reaver, não é preciso
que pelos ares eu me eleve em passeio
ao globo lunar ou ao paraíso;
pois que tão alto se aloje não creio.
Pelos vossos serenos olhos e viso,
pelo vosso alabastrino e firme seio
erra; hei-de com os lábios sorvê-lo,
se vos parecer que devo reavê-lo.
3 Pelo amplo palácio erra o paladino,
mirando todas as futuras vidas,
depois de ver, no fuso do destino,
enrolar as que já estavam urdidas;
e um velo viu, que mais do que ouro fino
resplandecia; nem gemas moídas,
se um fio fosse delas feito com arte,
se comparava à milésima parte.
566 ORLANDO FURIOSO
22 Mas, como os cisnes que cantam benignos 2s Não tão pio Eneias e Aquiles forte
as chapas salvam, para irem para o templo, foi como a fama, ou tão feroz Heitor;
os homens que forem de poetas dignos milhares de homens houve que, pelo seu porte,
do olvido saem, tal os contemplo. àqueles bem se podem sobrepor;
Ó príncipes sagazes e condignos, mas os palácios e vilas, que em sorte
que quereis perseguir de César o exemplo houveram de sua prole, fez compor
e a quem de escritores a amizade avonda, a esses grandes, sublimes honores,
do Letes não deveis temer a onda! pelas agraciadas mãos dos escritores.
23 São tal qual os cisnes, os poetas raros, 26 Não foi tão santo nem benigno Augusto,
os poetas não indignos de tal nome; como a tuba de Vergílio o entoa.
assim é porque o Céu, de homens preclaros, O ter por poesia um gosto robusto
não deixa que grande cópia se some, as proscriçóes injustas lhe perdoa.
e inda por culpa dos senhores avaros, Ninguém sabia se foi Nero injusto,
que os grandes engenhos deixam à fome; nem dele seria a fama pouco boa,
virtudes banindo e vícios louvando, embora Terra e Céu seus inimigos,
as belas artes escorraçam em bando. se houvesse feito dos escritores amigos.
24 Crê: Deus privou de alores intelectivos 27 Homero Agamémnon fez vitorioso,
tais ignorantes, e ofusca seus lumes; e Tróia fez parecer vil e inerte;
pois fez que fossem à poesia esquivos, fez Penélope fiel a seu esposo,
para que da vida não deixem perfumes. e afrontas sofrer do bando solerte8 •
Quando na morte inda seriam vivos, Se de saber a verdade és curioso,
mesmo tendo todos os maus costumes, a história toda ao oposto converte:
se amigos se houvessem feito de Cirra7 : os Gregos vencidos foram, feliz
melhor odoravam que nardo ou mirra. foi Tróia, e Penélope meretriz.
2s Vê, ao invés, que reputação deixa
Dido, que ao pudor soube dar abrigo;
pois com fama ficou de ser releixa,
só porque Marão9 não foi seu amigo.
Não te espantes por disto eu fazer queixa,
e se sobre este assunto tanto digo.
Amo os escritores, e faço o dever meu,
pois na Terra fui escritor também eu.
29 E acima dos outros deixei registo
que o tempo não apaga nem a morte:
e bem mereci que o meu louvado Cristo
me desse recompensa de tal sorte.
Lamento quem vive em tempo malquisto,
que a cortesia entrada lhes aborte;
à porta, com rosto pálido e enxuto,
lhe batem noite e dia sem ter fruto.
30 Mas, continuando o meu primeiro dito,
são poucos os estudiosos e poetas,
pois, onde não há pasto e há atrito,
até as feras buscam outras metas. -
Assim discursando, o velho bendito
os olhos inflamou, como escalfetas;
depois para o duque, com douto sorriso,
voltou, já sereno, o turbado viso.
570 ORLANDO FURIOSO
CANTO XXXV 57 1
39 - Por quanto valho, jovem amorosa 45 Já para o meu reino de África embarcados
(respondeu-lhe Bradamante), eu me ofereço foram, mas prometo por meu honor
para a empresa fazer dura e perigosa; que, se por acasos inopinados,
por outros motivos que eu não confesso, ficares na sela e eu apeado for,
mas mais por de teu amante essa prosa mando que sejam todos libertados,
dizer o que em poucos homens conheço: dentro do tempo de que há-de dispor
fiel é no amor; por minha fé juro um mensageiro que se mande à pressa,
que, em tal, pensei ser cada um perjuro. - para cumprir, se eu perder, essa promessa.
4o As últimas palavras pronunciou 46 Mas se ficares por baixo, como aliás
com um suspiro vindo do interior; é natural, e sem se dar não passa,
e depois: - Vamos! - Quando o Sol se alçou nem as armas nem teu nome verás,
chegaram ao rio, à ponte do horror. como vencida, escrito na argamassa:
Logo que o guarda ali as !obrigou, a teu rosto, olhos, crina, os quais assaz
com o corno deu sinal ao senhor; beleza exalam e amor, e tal graça,
arma-se o pagão e, como costuma, quero ofertar minha vitória; e baste
para a estreita ponte que o rio transpõe ruma; que me queiras amar quanto odiaste.
41 assim que ali comparece a guerreira, 47 Tanto valor e tanta força averbo
de dar-lhe morte logo faz ameaça, que o ficares por baixo não te aligeira 1 2 • -
se de armas e corcel não se aligeira, Sorriu um pouco, mas com riso acerbo,
para que ao sepulcro ablação deles faça. que de ira, mais que outra coisa, é bandeira,
Ela, que sabe a história verdadeira a dama, e nem respondeu ao soberbo;
(que ele a Isabella deu a desgraça), para a ponta foi da ponte de madeira,
pois Fiordiligi tudo lhe contou, o corcel picou e, com a lança de ouro,
ao sarraceno soberbo gritou: avançou contra o orgulhoso mouro.
42 - Por que queres tu, néscio, que o inocente 48 Rodomonte para o duelo se aparelha:
pelo teu delito faça penitência? vem em corrida, e é tão grande o brado
Que com teu sangue o pagues é urgente: que emana a ponte que até pode a orelha
mataste-a e disso todos hão ciência. ferir a quem está dali afastado.
Mais que outra arma ou veste ali pendente, Seguiu a lança de ouro a usança velha:
de tantos que tiraste da eminência , 11
o mouro, antes a justar tão esmerado,
vítima e oblação mais acertada da sela erguendo, no ar suspendeu,
terá, se eu te matar para a ver vingada. e de cabeça na ponte o estendeu.
43 Ser-lhe-á, por minha mão, mais grato o preito, 49 Ao cruzarem-se, a custo espaço achou
pois, tal como ela o foi, mulher sou eu; para passar com o cavalo a guerreira;
nem vim até aqui para outro efeito em risco esteve, e bem pouco faltou
que vingá-la; só isso me moveu. para que ela mergulhasse na ribeira;
Mas um pacto entre nós deve ser feito, mas foi o vento e o fogo que engendrou
antes que o teu valor compares ao meu. Rabicano, e ágil é de tal maneira
Se eu for abatida, darás a mim, que no extremo rebordo encontrou estrada;
como aos outros cativos, igual fim; passaria até sobre um fio de espada 1 3 •
44 mas se eu te abater, que o creio e estou certa, 50 Volta-se ela, e ao encontro do caído
ter teu cavalo e tuas armas espero, pagão regressa; e com graça moteja:
para ao túmulo as dar como única oferta, - Podes ver (disse) quem foi abatido,
pois do mármore as outras tirar quero; e afinal qual de nós por baixo esteja. -
e aos prisioneiros quero a porta aberta. - Fica o pagão de espanto emudecido,
Responde o mouro: - Justo considero por a mulher o vencer na peleja;
o que dizes; mas não poderei dar-te e dar resposta não pôde ou não quis:
os prisioneiros, pois estão noutra parte. mais parecia um homem louco e infeliz.
CANTO XXXV 573
60 E isto lhe deves dizer por resto: 63 Vai Fiordiligi e entra pelo cancelo,
«Um cavaleiro diz que provar crê, pela ponte e pela porta; e tem companhia
e a todo o mundo tornar manifesto, de alguém que a conduz até ao castelo
que contra ele usaste de má fé, onde está Ruggier, e ali se anuncia;
e para que estejas preparado e lesto, como lhe mandaram, dá ao donzela
este corcel me deu para que eu to dê. o recado, e Frontino lhe confia;
Diz para vestires tua armadura e malha, logo segue, pois resposta não espera,
e o esperares para contigo ter batalha». e a execução de seu plano acelera.
61 Diz-lhe isto e nada mais; e, se ele, curioso, 64 Ruggiero, intrigado e em confusão grande,
perguntar quem sou, diz que desconheces. - não é capaz de achar modo nem via
Respondeu ela, em seu tom generoso: de saber quem o repta, e quem lhe mande
- Não me cansa fazer o que careces; dizer ofensa e fazer cortesia.
não só palavras, a vida dar ouso; Que este, por à fé faltar, o demande,
pelo que por mim fizeste, bem mereces. - ou que alguém o acuse dessa heresia,
Graças dá Bradamante, e a convida não vê nem calcula; mas imagina
a Frontino levar, dando-lhe a brida. que um qualquer, não Bradamante, o incrimina.
62 Junto ao rio, peregrinas vão asinha 65 Que fosse Rodomonte, ele mais lesto
as jovens, a sua marcha forçando, seria a ter, que doutro, opinião;
até que Arles avistam; da vizinha mas, mesmo assim, que ele haja tal pretexto
praia chega o som do mar retumbando. pensa, mas não imagina razão.
Bradamante detém-se junto à linha Não sendo ele, não conhece no resto
de confim, as defesas avistando, do mundo quem consigo haja tenção.
dando assim a Fiordiligi intervalo, Entretanto a donzela de Dordonha
para pode, a Ruggie, da, o cavalo. o corno toca, e com batalha sonha.
\ 66 Chega a nova a Marsilio e Agramante
que um cavaleiro, fora, qur batalha.
Serpentino20 era seu acompanhante,
e apressou-se a envergar chapa e malha,
prometendo prender esse arrogante.
Correu o povo ao cimo da muralha;
não faltou velho, nem faltou garoto,
para ver qual no combate era mais douto.
67 Com rica sobreveste e um belo arnês,
Serpentin de la Stella à luta vem.
Ao primeiro golpe, ela ao chão ir o fez,
e o cavalo parece que asas tem.
Corre atrás dele a donzela cortês,
e ao sarraceno pela brida o retém,
dizendo: - Monta, e diz ao teu senhor
me mande um cavaleiro que tu melhor. -
68 O africano rei com muitos partilha
a muralha, e vê da justa o destino;
com o cortês acto se maravilha,
que usou a donzela com Serpentino.
- Com razão pode tê-lo, e não o pilha2 1 -,
disse, ouvindo-o o povo sarracino.
Vem Serpentino e, como ela ordenou,
um melhor que ele ao rei encomendou.
CANTO XXXV 575
77 Disse as palavras com simplicidade, 79 Ganham espaço; e, como aos outros calhou,
nas quais alguém, talvez, já pôs malícia. Ferraú logo da sela caía.
Respondeu Ferraú: - Tem prioridade Bradamante, que o corcel segurou,
ver qual de nós mais sabe de milícia. disse: - Vai, e o que disseste anuncia. -
Se eu perder, como os mais, estabilidade, Ele envergonhado se retirou,
virá, para emendar minha imperícia, e Ruggiero encontrou em companhia
o gentil cavaleiro que asseveras do rei Agramante; e deu-lhe a saber
que com ele justar é tudo o que esperas. - que para a batalha o cavaleiro o quer.
78 Enquanto com ele falou, a donzela 80 Ruggier, não sabendo ainda quem fosse
mantinha a viseira erguida do viso. que assim o desafiava para a batalha,
Mirando Ferraú a face bela, quase certo de vencer, alegrou-se;
já vencido se sente de improviso, e mandou buscar armadura e malha;
e, taciturno, para si tagarela: nem por ver o que a sorte aos outros trouxe,
- Parece este um anjo do paraíso; sendo vencidos, coragem lhe falha.
mesmo que pela lança não seja ferido, Como se armou, como saiu, e quanto
pelos seus olhos já me sinto abatido. - se seguiu, reservo para o outro canto.
NOTAS
�
1 Rei dos rios: o Pó; assim lhe chamou Vergílio, nas 12
Não te aligeira: não te diminui.
Geórgicas .
13 Mas foi [. ..] espada: cf. XV:40-4 1.
2
Pequena aldeia: a futura cidade de Ferrara.
14 Filho de Monodante: cf. 33.
3 Desce [. .. ] esfera: segundo a doutrina platónica, as
almas desciam das estrelas para encarnar nos humanos. 15 Príncipe de Ang/,ante: Orlando.
4 Preciosa carga: al 16
Fronta/,atte: cf. XXVII:70 ss.
gumas chapas eram de metais preciosos.
Esteja onde estiver, mostra-se cortês 4 mas também essa foi vingança feia,
um coração gentil: sempre patente; contra vós mormente; que em companhia
natureza e hábito assim o fez, do César estando enquanto Pádua a peia
e não pode mudar e ser diferente. do cerco sofre, Veneza sabia
Também onde estiver, por sua vez, que, graças a vós, chama não se ateia,
se apresenta o que é vilão igualmente. e é extinto o fogo quando já ardia
Puxa a natura ao mal, e faz tornar-se em templos e aldeias3 , como aprazeu
o hábito difícil de mudar-se. à nobreza que convosco nasceu.
De cortesia e gentileza exemplos, Não falo destes actos, nem de tantos
entre os guerreiros antigos os houve, dessa cruel e descortês acção,
mas hoje poucos; os ruins contemplo-os, mas só daquele, capaz de às pedras prantos
pois muitos pude ver, doutros se ouve, arrancar, quando se lhe faz menção:
naquela guerra 1 , Ippolito, em que os templos o dia, senhor, que àqueles recantos
de brasões imigos ornar te aprouve, mandastes a tropa, onde protecção
e lhes sirgaste as cativas galés, em vão buscaram contra vossos perigos,
de saque cheias, às pátrias marés2 • os navios desertando, os inimigos4 •
3 Todos os cruéis actos desumanos 6 Como Heitor e Eneias pelo mar entrados
de Tártaros, Turcos, Mouros e vários para o fogo às naves gregas atiçar,
(embora a mando não dos Venezianos, vi Ercole e Alessandro animados
que da justiça eram partidários) por excessivo ardor irem, par a par,
usaram celerados e profanos os corcéis picando, e aos mais adiantados,
soldados perversos, seus mercenários. no seu abrigo o inimigo ameaçar5 ;
Dos fogos que atearam falo menos, tanto ousaram que ao segundo sofrido
queimando as casas e lugares amenos; foi o regresso, e ao primeiro impedido.
õY-8578 ORLANDO FURIOSO
19 melhor dizendo, aquela que ela crê 22 Meneia a espada, e já ferir não mira
que goza o seu amor, e por quem tanto ela, e sim do corcel o peito e a pança;
ódio e raiva tem, que morrer prevê Bradamante ao cavalo a brida gira,
se nela não vingar todo o seu pranto. e de súbito ele para o lado se lança;
Gira o cavalo e avança sem mercê, e ao mesmo tempo, com desdém e ira,
não pelo desejo de a derrubar, quanto a filha de Amon dá impulso à lança,
de que a varar-lhe o peito a hasta rume, Marfisa atingindo com ligeiro toque
deixando-a livre de todo o ciúme. que faz com que na cerra ela derroque.
20 Àquele golpe Marfisa ao chão faz estrada, 23 Assim que no chão caiu, levantou-se,
para provar se o terreno é duro ou mole; tentando com a espada dar-lhe derrota.
a insólita coisa muito a enfada, Bradamante à hasta deu novo couce,
e, louca de ira, o desdém não engole. e Marfisa deu nova cambalhota.
Mal em cerra cocou, puxou da espada, Embora Bradamante force fosse,
e da queda vingar-se não abole. mais que Marfisa não era cão douta
Bradamante, não menos altaneira, que esta fosse, a cada golpe, prostrada:
gritou: - Que queres? És minha prisioneira. era virtude da hasta encantada.
21 Embora use com outros cortesia, 24 Alguns cavaleiros, neste entremeio,
para ti, Marfisa, não a desembrulho, quero dizer, alguns da nossa parte 1 6 ,
pois oiço que de muita vilania tinham-se chegado até onçle, a meio
és dotada, e também de muito orgulho. - de um campo e outro, a liça se reparte
Marfisa, àquele falar, fremir se ouvia, (só milha e meia havia de permeio),
como do vento num escolho o marulho. vendo que o seu demonstra muita arte;
Grita, mas de raiva tão descomposta seu, que não conhecem diferentemente,
que não consegue exprimir a resposta. senão por cavaleiro da sua gente.
25 Ao estes ver o generoso filho
de Troiano 1 7 às muralhas acercar-se,
para um acaso, ou um qualquer rastilho,
desprevenido não quis encontrar-se;
mandou que muitos se armassem com brilho,
para fora dos muros apresentar-se.
Entre estes Ruggiero escava incluído,
de duelar por Marfisa impedido.
26 O enamorado jovem observando
escava a cena, tomado pelo temor,
pela sua amada noiva receando,
pois de Marfisa sabia o valor.
Receou, digo eu, no início, quando
uma e a outra atacou com furor;
mas, vendo após como corria o facto,
ficou maravilhado e estupefacto;
27 e ao ver que a liça fim não conheceu,
cal como as outras, ao primeiro recontro,
no peito a ansiedade lhe cresceu,
receoso de qualquer estranho encontro.
De uma e de outra só o bem pretendeu;
ambas ama, embora haja desencontro
nesses amores: um é chama e paixão,
o outro, mais que amor, é afeição.
580 ORLANDO FURIOSO
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CANTO XXXVI 581
53 Ruggier puxa a espada para o desenlace, 59 Grita a terrível voz: - Parem asinha
estando também já de ira rubicundo. vossa liça; seria desumano
Não creio que espectáculo observasse se de irmão a irmã morte provinha,
Atenas, Roma, algum lugar do mundo, ou se a irmã dava morte a seu mano.
que tanto aos assistentes agradasse, Tu, meu Ruggiero, e tu, Marfisa minha,
como aquele agradou e foi jucundo creiam no meu dizer, que eu não engano:
a Bradamante, que o ciúme curou, gerou-vos um ventre e uma só semente,
pois todas as suspeitas lhe afastou. e ao mundo dissestes juntos: presente!
54 Já recolhera sua espada da terra, 60 Concebidos por Ruggiero segundo,
e retirara-se a olhar, à parte; Galaciella houvestes vós por matriz;
e parecia-lhe ver que o deus da guerra cujos irmãos, tendo-lhe deste mundo
era Ruggiero, em pujança e em arte. levado o genitor vosso infeliz,
Uma fúria infernal, quando desferra, descurando que no corpo fecundo
lembra Marfisa, se ele parece Marte. vos tinha, e, embora da mesma raiz,
O certo é que um pouco o jovem galhardo mandaram, a fim de ela se afogar,
teve, na força que usava, resguardo. pô-la em frágil barco no meio do mar.
55 Conhecia a virtude da sua espada, 6 1 Mas Fortuna, que vós, inda não nados,
pois muitas provas com ela já fez. já vos escolhera para glorioso feito,
Onde golpeia, convém que dissuada o barco para os areais desabitados
o encanto, ou dele não mostre a rudez; dos Sirtes20 levou, a salvo e escorreito;
está atento, para não dar cutilada onde, depois de ao mundo serdes dados,
de fio ou ponta, mas sim de través. ao Céu subiu aquele espírito eleito.
Teve Ruggiero em tal muita advertência, Quis Deus e decidiu vosso caminho
mas perdeu por um momento a paciência; que do caso eu me encontrasse vizinho.
56 porque Marfisa uma pancada horrenda 62 A vossa mãe dei sepultura honesta,
lhe dá, com intenção de abrir-lhe a testa. tanto quanto em erma areia logrei;
Ergue o escudo, que a cabeça defenda, vós, tenros, cingi na veste modesta
e o golpe sobre a águia19 ela lhe assesta. e para o monte de Carena21 levei;
Evita o encanto que o quebre ou fenda, uma leoa fiz vir da floresta,
mas o braço com o choque molesta; que amansei e aos próprios filhos tirei,
se as suas armas não fossem de Heitor, de cujas tetas dez meses e dez
podia o braço arrancar-lhe o furor; ambos fiz nutrir com muita sagez.
57 e à cabeça lhe iria, onde promove
atingi-lo a enraivecida donzela.
Ruggiero o braço canho a custo move,
esforçando-se a suster a águia bela.
Por isso, a piedade de si remove;
nos olhos uma chispa se revela,
e um golpe de ponta, feroz, desfere.
Marfisa, ai de ti, se o golpe te fere!
58 Eu nem sei bem dizer-vos como fosse;
pela espada um cipreste foi penetrado:
mais de um palmo na árvore afundou-se
(basto era o arvoredo ali plantado).
Monte e plano nesse instante abanou-se
com um terremoto; e soou um brado,
vindo do túmulo que ali tem sede,
numa voz que qualquer, mortal, excede.
584 ORLANDO FURIOSO
75 Estava Marfisa com serena fronte, 80 Ruggier lhe respondeu com pundonor
atenta às falas que o irmão fazia; que isso ter feito de início devia;
de ser descendente da bela fonte3º mas, por não ser dos factos sabedor
que claros rios tinha se comprazia. tão bem como agora, tardado havia.
Deles, que de Mongrana e Claramonte3 1 Tendo-lhe Agramante feito o honor
as famílias derivavam sabia, de o armar cavaleiro, mal faria
que "anos e anos foram esplandecentes, em dar-lhe a morte, e seria traição,
e ao mundo deram homens eminentes. pois por senhor lhe dera aceitação.
76 Depois de o irmão por fim ouvir dizer 81 Que a Bradamante prometeu não esquece,
que o pai de Agramante, e o avô e o tio32 , e ora à irmã, tentar por qualquer via,
Ruggiero à traição fizeram morrer, até que uma ocasião, em que pudesse
e à mulher deram tão cruel desvio, sem desonra afastar-se, arranjaria.
não se pôde mais sua irmã conter, E se inda o não fizera, não lhe desse
e interrompendo-o, disse: - Eu te glorio, a culpa, mas ao rei da Tartaria34,
irmão meu, mas procedeste mui torto pelo qual, na batalha que com ele teve,
em não vingar nosso pai, que foi morto. foi deixado como ela saber deve.
77 Se em Almonte e Troiano não podias 82 Que ela, que cada dia ia ao seu leito,
vingar-te, por terem já ido adiante33 , testemunha era, entre outras, certeira.
o sangue_ dos filhos verter devias. Longa conversa houve a tal respeito
Por que, vivendo tu, vive Agramante? entre uma e outra ínclita guerreira.
Essa é uma mancha que jamais desvias A conclusão e o derradeiro efeito
do rosto; depois de afronta abundante, é que Ruggiero regresse à bandeira
não só não deste a esse rei a morte, do seu senhor, até ter ocasião
como à sua conta vives na corte. de se mudar para Carlos, com razão.
78 Faço voto a Deus (Cristo adorarei, 83 - Deixa, pois, que vá (dizia Marfisa
o vero Deus, por meu pai adorado) a Bradamante), e não tenhas temor:
que a minha armadura não despirei dentro de dias eu farei de guisa
sem ter Ruggier e minha mãe vingado. que não seja Agramante seu senhor. -
E desagrado sinto, e sentirei, Assim diz ela, mas não verbaliza
se entre as hostes volto a ver-te ocupado, que acção em prática pretende pôr.
de Agramante ou de outro mouro senhor, Por fim, Ruggier delas se despedia,
se não for para lhes causar dissabor. - e para ao rei voltar o corcel volvia;
79 Oh como a tal fala a face se excita 84 nisto, um choro se ouviu de um vale chegado,
de Bradamante, e como isso a anima! e os três ficaram de súbito atentos.
E a que Ruggiero assim faça o incita, Àquela voz estão de ouvido inclinado,
tal como Marfisa bem o intima; e de mulher pensam que são lamentos.
e se apresente a Carlos em visita, Mas o canto aqui vai ser terminado:
que tanto honra, louva e tanto estima resignai-vos a aceitar meus intentos;
de Ruggiero, seu pai, a clara fama, melhores coisas vos prometo contar,
que ainda guerreiro sem par lhe chama. se o outro canto quiserdes escutar.
5 86 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 Guerra: batalha de Polesella (22 de Dezembro de 16 Da nossa parte: dos cristãos.
1509), em que Ferrara venceu Veneza (cf. nota a III:57:8).
17
Filho de Troiano: Agramante.
2
Pátrias marés: águas do Pó.
18 Onde [. .. } areia: na terra (ou seja, na sepultura); o
3
�neza [. . .]aldeias: Veneza devia ter em conta que campo de combate estava coberto de areia.
Ippolito d'Este, estando com o imperador ( César)
19
Maximiliano no assédio a Pádua, impedira ou extingui A águ ia: a águia prateada sobre campo azul, insígnia
ra incêndios em território véneto. pintada no escudo de Ruggiero.
4 O dia [. .. } inimigos: em Novembro de 1509, os 20
Sirtes: o golfo de Sine, que abrange as costas da Tunísia
Venezianos, perseguidos pelas tropas de Ippolito, aban e da Líbia, divide-se em Grande Sirte (ou golfo de Sidra) e
donaram os navios no Pó e refugiaram-se em dois bas Pequeno Sine (ou golfo de Qabis).
tiões na sua margem, mas foram ali derrotados (em vão).
21
Monte de Carena: cf. nota a VII:67:5.
5 Vi Ercole [. . . } ameaçar: Ercole Cantelmo e
22
Alessandro Feruffino, homens de Ippolito d'Este, adian Caronte: barqueiro do Inferno.
taram-se aos restantes na perseguição aos Venezianos até
23
ao interior dos bastiões. Cantelmo foi feito prisioneiro e Faro: farol do estreito de Messina.
decapitado, e Feruffino salvou-se a muito custo. Ariosto
esteve presente nestes acontecimentos (vz) . 24 Cidade de Marte: Roma.
6
Duque de Sora: Segismondo Cantelmo, pai de Ercole. 25 Rugrjerprimeiro[..] segundo: a genealogia de Ruggiero,
desde Heitor, é criação de Boiardo.
7 Esquelmo: escalmo (espigão que serve de apoio ao
26
remo). Agolante: pai de Almonte, Troiano (pai de Agramante)
e Galaciella (mãe de Ruggiero e Marfisa).
8
Eslavo: da região histórica da Eslavónia, na margem
27
oriental do Adriático, de onde provinham os mercená Beltramo: irmão de Ruggiero II.
rios ao serviço de Veneza. Já em IV: 1 1: 5, o Adriático era
28
designado por mar eslavo. Risa: Reggio di Calabria.
9 29
Cltia: cf. nota a VIII:62:8. Metáfora do país bárbaro. As portas [ . .} parentela: permitiu a entrada na cidade
a Agolante e seus filhos, que maltrataram Ruggiero II e
10 Qµe { .
. } Atreus: idênticos a liestes, Tântalo e Atreu, per Galaciella.
sonagens mitológicas que, entre outras barbaridades, mataram
30
os filhos, seus ou dos outros, e os serviram em banquetes. Bela fonte: os nobres heróis de Tróia.
11 Lestrlgone ou Polifemo: tanto os Lestrlgones (cf. nota a 31
Mongrana e Claramonte: fànúlias que deram a França
XXXIV:38:7) como Polifemo, o ciclope, são, na Odisseia, ínclitos guerreiros. A primeira foi fundada por Sinibaldo,
antropófagos. filho de Buovo de Antona, e dela saíram Oliviero e seus
filhos, Grifone e Aquilante. Clacacnonte é a fànúlia a que per
12
A viso aberto: com a viseira erguida. tencem Orlando e seus primos Rinaldo, Bradamante, etc.
13 32
Primo: Orlando. Pai [ . .} tio: Troiano, seu pai, Agolante (avô de Ruggiero
e Marfisa), e Almonte (tio).
14 Fénix: cf. XV:39:3.
33
Por [ . .} adiante: por terem já morrido.
15
Ser ela [ . .} consorte: ser única no mundo em género
e número, como a fénix. 34 Rei da Tartaria (Tartária): Mandricardo.
�
CANTO XXXVII
�
3 Não basta a muitos que se preste a obra 9 Destes, um, não só o seu próprio instinto
para um a outro dar glória no mundo; a honrar e a exaltar-vos inclina,
tal fazem que com ela se desdobra e o Parnaso fazer ecoar e o Cinto9
o qu� as damas em si têm de imundo. com louvores a vós que ele ao Céu destina,
Por eles, a mulher fama não cobra, mas o amor fido, o forte e nunca extinto
querendo-a (digo, os antigos) bem no fundo; (vencendo anúncios de vingança e ruína)
como se ao delas seu honor soçobre, ânimo que lsabella 1 0 provou ter,
assim como a neblina o sol encobre. fá-lo, mais que a si, a vós pertencer;
4 Mas não teve nem tem língua nem mão, 10 por isso nunca sentirá cansaço
que em voz anuncie ou que em papel escreva de vos louvar em seu verso vivaz;
(embora ao mal dê maior dimensão, e, se algum vos censurar, outro braço
e com muita arte o bem circunscreva), de em armas pegar não há tão capaz;
poder para à glória delas dar extinção não há outro a quem menos embaraço
tal que na totalidade a proscreva; a vida arriscar pela virtude traz.
mas a que resta não alcançará Não só dá matéria para que outrem escreva,
a verdade, nem perto chegará; como, a escrever, a glória alheia eleva.
s A Harpálice 1 ou T ómiris2 negar vida, 11 Bem digno é que dama de tal fortuna,
ou a quem a Turno e Heitor acudiu3 ? fortuna em toda e qualquer qualidade
Quem por sidónios e tírios seguida que em todas que há no mundo se reúna,
para a Líbia foi por mar4 , não existiu? nunca vacile em sua lealdade,
Nem Zenóbia5, e a rainha aguerrida e par;i ele tenha sido uma coluna 1 1 ,
que Assíria, Pérsia e Índia possuiu6? desprezando do Fado a adversidade;
Não só estas de fama meritórias digno dela ele, e ela digna dele:
são, por com armas obterem vitórias. nunca um par se juntou melhor que aquele.
6 E fiéis, prudentes, castas, sem tortos
sempre houve, não só na Grécia e em Roma:
em toda a parte entre as Índias e os Hortos
das Hespérides, em que o Sol espalha a coma7 ;
cujos méritos estão para os louvores mortos,
e entre cada mil só uma se assoma;
isso, porque no seu tempo invejosos
foram os escritores, falsos e maldosos.
7 Não deixai, porém, damas a quem mova
o bem fazer, de seguir vossa via;
que vossa nobre empresa não demova
o temor de não colher honraria,
pois como coisa boa não se prova
que sempre dure, também má não porfia.
Se papel e tinta até aqui não
foram para vós, no nosso tempo são.
Marullo e Pontan a vosso favor,
e Strozzi pai e filho ao vosso lado
estão; o Bembo, o Capel e o formador
de cortesãos, modelo dele copiado;
há Luigi Alaman, e dois que amor
de Marte e das Musas hão, igualado,
ambos do sangue que reina na terra
que o Menzo corta e em lagoas cerra8 •
CANTO XXXVII 589
12 Novos troféus põe na margem do Oglio 12 ; 1s nome há Vittoria19 ; é bom para a que foi nada
entre fogos, naves, golpes de espada, entre vitórias, e, em casa ou viajante,
para alguma folha bem escrever teve olho, de troféus e de triunfos ornada,
pelo rio vizinho talvez invejada13 • vitória a acompanha, atrás e adiante2° .
Para além dele, um Ercol Bentivoglio Esta é outra Artemísia2 1 , e foi louvada
claro louvor vos faz com clara toada, por do seu Mausolo ser tão amante;
e Renato Trivulcio, e o meu Guidetto, maior aliás, que é obra de mais estalo
e o Molza, para tal, de Febo dilecto14 . da campa um homem salvar que enterrá-lo22 •
13 E o duque de Chartres, Ercol, filho 19 Se Laodamía, se a mulher de Bruto,
do meu duque 1 5 , que expande as suas penas se Arria, Argia, Evadne e outras, louvadas
qual cisne que em voo espalha seu estribilho, mereceram ser, por quererem por tributo
erguendo-vos ao Céu em cantilenas. aos maridos ser também sepultadas23 ,
E o meu senhor do Vasto16 , a quem o brilho mais de louvar é de Vitória o luto,
não basta a mil Romas e a mil Atenas pois do Letes e do que em nove fiadas
de seus feitos dar, pois ainda almeja cerca o Inferno24 livrou o consorte,
dar-vos com a pena fama sobeja. para despeito das Parcas e da Morte!
14 E além destes e de outros que hoje haveis, 20 Se ao fero Aquiles inveja da clara
que glória vos deram e ainda dão, trompa homérica o macedónio25 havia,
vós, por vós mesmas, dar-vo-la podeis; de ti, grande Francesco di Pescara,
vós que haveis a agulha e pano aversão, quanta mais, se hoje vivesse, teria!
com as Musas vossa sede apagareis Se tão casta mulher e a ti tão cara
na fonte de Hipocrene 1 7 , e inspiração canta eterno honor que a ti se devia,
trareis tanta que nós da obra vossa e, se tão alto o teu nome projecta,
mais precisaremos que vós da nossa. não desejarás mais clara trombeta.
15 Se quem essas são e de todas se olha 21 Se dizer tudo o que se pode, ou quanto
que eu dê conta e seus méritos não cale, tenho desejo, ao papel eu passasse,
precisarei de encher mais de uma folha, muito diria; porém nunca tanto
e que meu canto hoje de mais não fale; que parte por dizer não me ficasse;
se cinco ou seis para louvar faço escolha, de Marfisa e companhia, entretanto,
temo que as mais ofenda ou apunhale. a história ficava sem que a contasse;
Que faço então? Não falo de nenhuma, a qual vos fiz promessa de seguir,
ou entre tantas escolho apenas uma? se neste canto a quisésseis ouvir.
16 Uma escolho; e escolherei uma tal, 22 Ora, estando vós aqui para escutar-me,
que a inveja evitarei com sucesso, e eu para não faltar à minha promessa,
pois nenhuma me levará a mal guardo para ócio maior ensaiar-me
se das outras calo e a ela enalteço. para ser sua exaltação por mim expressa;
Não se tornou só a si imortal não que eu ache necessário o meu carme
pelo doce estilo, o melhor que conheço, a quem por si só tão bem os processa,
como alguém de quem ela fale ou escreva mas para satisfazer o meu desejo
à morte subtrai, ao eterno eleva. de honrá-la e de louvá-la como almejo.
17 Como Febo mais luzente revela 23 Damas, concluo em suma: cada idade
sua cândida irmã18 , e mais a admira tem muitas de vós de história merecidas;
que Vénus ou Mercúrio ou outra estrela mas a inveja dos escritores os dissuade
que vai com o céu ou por si só gira, de serdes, após mortas, conhecidas;
mais eloquência que às outras, àquela já assim não será: vossa habilidade
de quem vos falo, e mais doçura, inspira; tornará imortais as vossas vidas.
tão potentes suas palavras torna Se as cunhadas fazer isso soubessem,
que um outro sol nossos dias adorna. melhor se sabia os feitos que tecem.
590 ORLANDO FURIOSO
73 E a justa punição que aqui, segundo 79 Mas como por cortá-lo e desfazê-lo
o meu desejo, não poderei dar-te, não desafoga, e o furor conserva,
espero a tua alma no outro mundo às mulheres que o templo enchem flagelo
ver sofrer; eu estarei a observar-te». dá, nem uma mais do que outra reserva;
E disse, erguendo com rosto jucundo faz connosco, com seu cruel cutelo,
os olhos turvos à mais alta parte: como o aldeão com a foice à erva.
«Esta vítima, Olindro, sendo eleita Nada pôde impedir que num momento
por tua mulher em vingança, aceita; trinta matasse, e feriu bem um cento.
74 e graça por mim pede ao Senhor nosso, 80 É tão temido pela sua gente, o crudo,
para no paraíso hoje eu estar contigo. que homem não houve que se lhe opusesse.
Se disser que sem dote ao reino vosso Fogem as mulheres e o povo miúdo,
alma não vai, diz que o levo comigo; na igreja quem pode não permanece.
que aos ricos despojos do monstro posso Por fim é contido o ataque sanhudo:
no santíssimo templo dar jazigo. a força dos amigos o amolece;
Que maiores dotes pode haver do que estes: deixando lágrimas por todo o lado,
extinguir tão torpes e imundas pestes?» para o castelo no monte foi levado.
75 Findou-se o falar junto com a vida; 8 1 Mas, como a cólera ainda durava,
e morta inda tinha alegre o semblante, de todas banir decisão tomou;
por estar a crueldade assim punida porque os amigos e o povo rogava
de quem a privara do caro amante. que nos não matasse, ele se refreou;
Não sei se pelo espírito foi seguida, nesse dia, um edital que mandava
de Tanacro, ou se este lhe foi adiante; que o país deixássemos publicou;
creio que adiante foi, pois efeito deu e foi aqui que exílio nos quis dar.
nele o veneno antes, que mais bebeu. Ai da que do castelo se abeirar!
76 Marganor, que vê cair o filhinho, 82 E assim foram as mulheres dos maridos,
e depois em seus braços falecido, como as mães de seus filhos, separados.
quase com ele morreu, pelo grave espinho Se alguns forem, para aqui vir, atrevidos,
que de repente o trespassou, vencido. não haja disso Marganor recados;
Dois teve em tempos, ora está sozinho: pois com cruéis penas foram punidos
por duas mulheres se viu reduzido. muitos, e outros da vida privados.
A morte a um por uma foi causada, No castelo uma lei fazer lhe aprouve;
e a do outro foi pela mão dela dada. pior que essa não se lê nem se ouve.
77 Amor, piedade, desdém, dor e ira, 83 Mulher que seja no vale encontrada
sede de morte e vingança também, (de vez em quando alguma nisso cai),
o triste e desolado pai transpira; pela lei, com vimes será vergastada,
freme como o mar, quando o vento vem. e, expulsa para sempre, da terra sai;
Vai a Drusilla para vingar-se, e mira mas cortam-lhe a veste, e a expor é forçada
que vida o seu corpo já não contém; o que a Natura e o Pudor retrai;
como o punge e acicata o ódio ardente, e se alguma escoltada ali aporta,
tenta ofender o corpo que não sente. por cavaleiros, essa será morta.
78 Qual víbora que à vara que à areia 84 As que cavaleiros trazem consigo
a tem fixa, em vão os seus dentes lança; pelo inimigo da piedade são,
e o mastim, que se uma pedra baldeia para vítimas, levadas ao jazigo
o viandante, a correr a alcança dos filhos, e esganadas por sua mão.
e, cheio de raiva, à dentada a golpeia, Armas e corcéis tira para castigo
não se querendo ir embora sem vingança, aos que a guiavam e dá-lhes prisão;
Marganor, mais que mastim ou serpente bem pode fazê-lo, pois noite e dia
cruel, assim faz ao corpo inconsciente. mais de mil homens tem por companhia.
CANTO XXXVII 597
85 Quero ainda dizer-vos que esse vil, 86 Tudo isto contando, às guerreiras trouxe
quando algum poupa, primeiro este jura, primeiro pena, depois indignação;
pela hóstia sacra, que o ser feminil se assim como era noite, dia fosse,
odiará enquanto a sua vida dura. ao castelo iriam sem contenção.
Se a estas damas e a vós ser hostil Ali o belo grupo repousou-se,
quereis, ide ver ao castelo a figura e, assim que a Aurora deu indicação
que ali se alberga, e tereis evidência que ao Sol cedesse o lugar cada estrela,
se o que mais tem é força ou inclemência. - envergou armas e voltou à sela.
598 ORLANDO FURIOSO
87 Estavam já de partida, quando ouviram 93 Foi tal o ódio, foi a ira tanta
que as estradas lhes ressoavam atrás que pelos seus crimes nelas se atiçou,
com grande tropel; para o vale dirigiram que de puni-lo, sem importar quanta
o olhar, que o som a todos virar faz. tropa tinha, a decisão se tomou.
E à distância de um tiro de mão34 , viram Mas, morte breve inadequada e santa
vir por estreito caminho, que ali traz, pena era para quem tantos magoou;
uns vinte que armados e em formação melhor que houvesse dela sentimento,
vinham, alguns a pé, outros no arção; prolongando-a com martírio e tormento.
88 que traziam com eles a cavalo 94 Mas a mulher salvar é acertado,
uma mulher que tinha muitos anos, antes que os esbirros lhe dêem a morte.
como se leva quem vai, por resvalo, Brida solta e calcanhar apertado
de fogo, cepo ou laço sofrer danos; faz terem dos corcéis veloz transporte.
a qual foi, não obstante o intervalo, Nunca assim o pelotão atacado
logo conhecida pelo rosto e panos. teve encontro tão áspero nem tão forte;
Reconheceram-na as mulheres da vila, por mercê houveram deixar os escudos,
por ser a camareira de Drusilla: dama e arneses, e fugir desnudos:
89 a camareira que com ela presa 95 tal qual o lobo que regressa ao ninho
foi por Tanacro, o raptor, como eu disse, carregando a presa, e, quando já se crê
e a quem foi depois confiada a empresa bem seguro, o caçador no caminho
daquele veneno de efeito infelice. com seus cães atravessar-se-lhe vê;
À igreja não fora, por certeza alija a carga, e, onde vê que o vizinho
ou suspeita de quanto ali se visse; bosque escuro é mais espesso, apressa o pé.
tinha em tal tempo da vila fugido, Menos lestos não foram a escapar
indo para onde salva teria sido. do que foram os outros a atacar.
90 Tendo Marganor sabido, por espia, 96 Não só a dama e as armas deixaram,
que ela na Áustria estava refugiada, pois também deixaram muitas montadas;
de a ter na mão foi procurando a via, por ravinas e fossos se lançaram,
para a matar na fogueira ou enforcada; julgando assim dar mais largas passadas.
finalmente, a Avareza mal-sadia O que Ruggier e as damas apreciaram:
às prendas e à riqueza pressagiada três cavalgaduras foram levadas,
reagiu, e um barão, que a protegeu para as três carregar que, no dia anterior,
na sua terra, a Marganor a deu; os três corcéis encheram de suor.
91 mandou-lha sem rebuço até Constança35 ,
qual mercadoria, sobre uma besta,
bem atada e sem poder ter usança
da palavra, e metida numa cesta;
e agora esta hoste com ela avança,
por ordem daquele que tantos molesta,
trazida com a única intenção
de nela à sua raiva dar vazão.
92 Como o grande rio que em Monviso36 brota,
quanto mais corre em direcção ao mar,
e depois que o Lambro e o Ticino adopta,
e o Adda, e outros que água lhe vão dar,
mais altivo e impetuoso segue a rota,
assim Ruggiero, quanto mais culpar
ouve Marganor; e as damas também
contra ele sentem crescer o desdém.
CANTO XXXVII 599
1 07 Muitos de quem mulheres, irmãs sofreram, 111 assim Marganor fez tremer em torno,
ou filhas, ou mães, dele iníqua sorte, em toda a parte onde se ouvisse o nome;
o rebelde ânimo mais não esconderam, ora chegou quem lhe partiu o corno
correndo para com a mão dar-lhe a morte; do orgulho, e tanto as forças lhe come
a custo de o fazer os contiveram que um garoto pode dar-lhe transtorno,
as nobres guerreiras e Ruggier forte, e, quem quer, barba e crinas lhe consome.
que planearam fazê-lo morrer Ruggier com as damas já se dirigia
de forma a míngua e martírio sofrer. para o castelo, encimando a penedia.
1 0s Àquela velha, que o odiava quanto 1 1 2 Sem resistência este lhes foi franqueado
uma mulher inimigo odiar possa, por quem lá estava, e os arneses guerreiros;
o deram desnudo, e amarrado tanto parte foi saqueada, e o resto foi dado
que soltá-lo seria faina grossa; a Ullania e aos lesados companheiros.
e ela, para nele vingar o seu pranto, O escudo de ouro ali foi encontrado,
de sangue por todo o corpo o empoça e os três reis, do tirano prisioneiros,
com um agudo aguilhão, que um vilão que aqui chegaram, como tenho fé
que ali encontrou lhe meteu na mão. de ter dito, desarmados e a pé37 ;
109 A mensageira e suas aias também, 1 1 3 porque desde que os fez cair da sela
que não irão da vergonha olvidar-se, Bradamante, estavam comprometidos
de mãos caídas não ficam, e aquém a ir a pé, sem armas, com a donzela
da velha, querendo igualmente vingar-se; que tinha vindo de distantes lidos.
inda o desejo de o ferir se mantém, Não sei se melhor ou pior foi para ela,
quando sentem suas forças esgotar-se: não virem de armaduras guarnecidos.
uma pedradas dá, a outra unhadas, Melhor seria ter deles defesa;
outra morde-o, outra dá-lhe picadas. mas bem pior, se perdessem a empresa;
1 10 Qual torrente que se torne impetuosa 1 14 pois teria, como todas lá idas
pela longa chuva ou pela neve desfeita, levando escolta armada, a mesma sorte:
e dos montes arraste, fragorosa, ao túmulo dos irmãos conduzidas,
árvores, pedras, e a terra e a colheita; e a eles sacrificadas, com a morte.
mas chega o tempo em que a face orgulhosa Mostrar as partes feias, proibidas,
se apaga, e tanto a força se assujeita sempre era, do que morrer, menos forte;
que a pode atravessar mulher ou puto, desculpa para tais opróbrios reforça
quantas vezes até a pé enxuto; o poder-se dizer que foi pela força.
1 1 5 As guerreiras, antes de haver partido,
obrigam aquele povo ao juramento
de às mulheres ser pelos homens transmitido,
da cidade e do resto, o regimento;
será com penas severas punido
quem de infringir tiver atrevimento.
Em suma, o que é do homem noutro lado
ser da mulher aqui é deliberado.
1 1 6 Fizeram também prometer que a quantos
aqui viessem não acolheriam,
a cavalo ou a pé, doutros recantos,
nem sob o seu tecto os receberiam,
se por Deus não jurassem, e pelos santos,
ou melhores juramentos, se os sabiam,
que das mulheres seriam sempre amigos,
e inimigos dos seus inimigos;
CANTO XXXVII 60 1
NOTAS
�
1 Harpdlice:· cf. nota a XX: 1: 5. 7
Em toda [. .. } coma: em toda a parte onde brilha o Sol,
de Oriente (Índias) a Ocidente (os Jardins das Hespérides,
2 Tómiris: rainha da Cítia que matou em combate
situados numa ilha no extremo ocidental da Terra).
Ciro II, o Grande, rei da Pérsia (séc. VI a. C.).
8 Marullo [. . .] cerra: escritores contemporâneos de
3 A Turno [. ..] acudiu: referência às heroínas Camila Ariosto que louvaram as mulheres nas suas obras. Michele
(cf. nota a XX: 1 :5) e Pentesileia (cf. nota a XXVI:8 1:7). Marullo, poeta, grego de nascimento. Giovanni Pontano,
poeta, secretário de Fernando I de Aragão. Tito Vespasiano
4 Quem [. .. ] mar: Dido, lendária rainha de Cartago,
Strozzi, poeta da corte de Ercole I d'Este, e seu filho, Ercole
cidade que fundou depois de atravessar o mar desde Strozzi, poeta e dramaturgo. Pietro Bembo, autor da pri
Tiro, na Fenícia, acompanhada por tírios e sidónios des meira gramática do vulgar, difusor do petrarquismo e teo
contentes. rizador do toscano de Trezentos como modelo da língua
literária italiana. Bernardo Cappello, homem de letras
5 Zenóbia: rainha de Palmira de 267 a 272, conquis veneziano. Baldessare Castiglione, escritor, político e diplo
tou o Egipto, a Síria e grande parte da Ásia Menor, mata, núncio apostólico em Madrid, escreveu II Libro dei
declarando-se independente dos Romanos. Cortegiano (formador de cortesãos). Luigi Alamanni, poeta
florentino, autor do poema didascálico La coltivazione.
6
Rainha [. .. ] possuiu: Semíramis, lendária rainha-guer Luigi Gonzaga da Gazzolo e, talvez, Luigi Gonzaga (dois
reira que construiu os jardins suspensos de Babilónia. que [. .. } cerra), homens de armas e de letras pertencentes
Historicamente, é associada à rainha Sammuramat da à família que governou Mântua, cidade banhada pelo
Assíria (séc. IX a. C.) . Mincio (Menzo) .
602 ORLANDO FURIOSO
9
Parnaso[. . .] Cinto: Parnaso, o monte grego habitado dos. Laodamia era mulher de Protesilau, primeiro herói
pelas musas e por Apolo, e Cinto, o monte da ilha de grego a morrer diante de Tróia. A mulher de Marco
Delas em que Apolo nasceu. J únio Bruto, um dos assassinos de César, era Prócia.
Árria era mulher de Cecina Peto, condenado à morte por
10
!sabe/la: Isabella, filha de Vespasiano Colonna, casou conspirar contra o imperador Cláudio. Argia era mulher
com Luigi Gonzaga da Gazzolo contra a vontade do de Polinices, filho de Édipo, morto em batalha por seu
papa Clemente VII. irmão Etéocles, que ele matou ao mesmo tempo. Evadne
era filha de ffis e irmã de Etéocles, um dos sete reis que
11
Para ele [. . .] coluna: jogo de palavras com o nome atacaram Tebas.
Colonna, apelido de Isabella.
24
O que [. . .} Inferno: o rio Estige, que dá nove voltas
12
Novos [. . .] Oglio: enriquece Gazzolo (junto ao no ao Inferno.
Oglio) , nos campos militar e literário.
25 Se [. .. } havia: se Alexandre Magno (o macedónio)
13 Rio [. . .] invejada: o Mincio, que banha Mântua.
invejava a glória que Homero deu a Aquiles nos seus
Talvez aluda aos poetas da corte de Mântua, que inveja poemas.
riam os seus poemas, ou mesmo a Vergílio, que nasceu
nessa cidade. 26 Do cipreste [. .. } impedido: antes de Atlante se calar,
não conseguira arrancá-la.
14
Para além [. .. } dilecto: outros poetas que louvaram as
mulheres. Ercole Bentivoglio, poeta de Ferrara, sobrinho 27
O filho [. . .] construída: Erictónio, nascido de uma
de Alfonso I d'Este. Renato Trivulzio, poeta milanês. paixão de Vulcano por Atena (Palas) . Ao ser repelido
Francesco Guidetti, homem de letras florentino. Francesco por ela, o seu sémen caiu na terra, de onde a criança
Maria Molza, poeta de Modena, autor de poesia amorosa brotou. Atena criava-o em segredo e deu-o a guardar a
(de Febo dilecto) . Todos foram amigos de Ariosto. Aglauro, que, movida pela curiosidade, inspeccionou a
cesta em que o menino se encontrava, descobrindo que
1 5 Duque[. .. } duque: Ercole li d'Este, filho de Alfonso
a parte inferior do seu corpo era uma serpente. Foi
d'Este (meu duque) e de Lucrezia Borgia; casado com transformada em pedra pela deusa, como castigo da sua
Renata de França, era duque de Chartres e tinha fama de curiosidade. Atribui-se a Erictónio a invenção da qua
bom versejador. driga, como forma de, nela sentado, esconder a parte
inferior do corpo.
16
Senhor do Vasto: Alfonso d'Avalos, marquês de Vasto
(cf. xv:28:3), que também versejava. 28
Nos jardins [. .. } Primavera: Pesta, cidade da Magna
Grécia, famosa pelos seus roseirais.
17
Fonte de Hipocrene: Hipocrene, ou Fonte do Cavalo,
era uma nascente no monte Hélicon, na Beócia (Grécia), 29
Ullania[. .. } hora: cf. XXXII:50-5 1 .
produzida pelo embate do casco do cavalo Pégaso. Junto
30
à fonte reuniam-se as Musas, e a sua água favorecia a ins Dois rostos viris: talvez Ariosto queira dizer que exis
piração poética. tia apenas um rosto (mas oculto) . Quando as mulheres
de Lemnos mataram todos os homens da ilha, por mal
18 Febo [. .. } irmã: Diana, personificação da Lua na mi
dição de Afrodite, Hipsípile poupou a vida do pai, Toas.
tologia romana. Escondeu-o no templo de Dioniso, e mais tarde ajudou
-o a fugir por mar.
1 9 Vittoria: Vittoria Colonna ( 1 492- 1 547), filha de
Fabrizio Colonna e mulher de Francesco d'Avalos, mar 3 1 Tinha porto: estava ancorado.
quês de Pescara, foi poetisa eminente e amiga de artistas,
em especial de Miguel Ângelo. 32
Cândia: cidade grega na costa norte de Creta.
2° Foi nada[. . .} adiante: desde que nasceu rodeada das 33 Como lhe convém: como convém à condição nobre
vitórias paternas e, depois, das do marido. de Olindro.
21
Artemísia: rainha de Halicarnasso, esposa de 34 Um tiro de mão: um arremesso de pedra.
Mausolo. Após a morte deste (35 1 a. C.) mandou erigir
lhe o magnífico mausoléu, considerado uma das «sete 35
Constança: cidade alemã, nas margens do lago do
maravilhas do mundo». mesmo nome, junto à fronteira com a Suíça.
22 36
Maior [. .. } enterrd-lo: maior que Artemísia, pois não Monviso: monte piemontês onde nasce o Pó.
se limitou a dar-lhe condigna sepultura: imortalizou-o
37
nos seus versos. Como[. . .] pé: cf. XXXIII:75-76.
23 38
Laodamia [. ..} sepultadas: figuras mitológicas e históricas Hora terça: hora canónica de ofício divino, cerca das
de mulheres que se suicidaram ao saber da morte dos mari- 9 da manhã.
--- ....
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CANTO XXXVIII
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22 Para o dia seguinte foi combinado 2s não só lhe cedeu os que requereu
(Carlos encarregou-se com altruísmo) para mover guerra ao reino de Bizerta,
ser um lugar ricamente adornado, como mais cem mil ainda lhe deu,
para Marfisa receber o baptismo. e da sua pessoa fez oferta.
Os bispos, o alto clero foi chamado, A custo a gente, que a pé apareceu,
que as regras sabiam do cristianismo, cabia toda na planície aberta;
para que por eles, em toda a medida, tem o país de cavalos inópia,
sobre a fé fosse Marfisa instruída. mas de elefantes e camelos cópia.
23 Veio em seu hábito pontifical 29 Na noite antes do dia em que ao destino
o arcebispo Turpino11 e baptizou-a; o exército da Núbia ir previra,
rei Carlos, junto à pia baptismal, montando o hipogrifo, o paladino
com as cerimónias devidas, levou-a. à pressa para norte se dirigira,
Mas tempo é que a cabeça sem sinal e chegou ao monte que o nordestino
de senso aquela ampola torne boa, vento produz, que contra a Ursa expira 1 7 •
que traz do céu mais baixo12 , em etéreas vias, Achou a gruta onde, por estreita boca,
o duque Astolfo no carro de Elias. quando ele acorda, em fúria desemboca.
24 Descera Astolfo, do disco luzente, 30 E como lhe recordara o seu mestre,
à altura maior que tem a Terra13 , um odre vazio levara o piloto,
com a salutar ampola que a mente que, enquanto no antro escuro e alpestre
devia curar ao mestre de guerra14 • exausto dorme o agressivo Noto18 ,
Uma erva, em virtudes mui excelente, à entrada ajeita, para que o sequestre:
mostra João 1 5 ao duque de Inglaterra: tanto o ardil ao vento foi ignoto
com ela quer que no regresso toque que, quando de manhã sair pensava,
Senapo, e a cura dos olhos provoque, dentro do odre fechado ficava.
25 para que por estes e anteriores consertos, 31 Alegre o paladim com tal captura,
para atacar Bizerta16 lhe dê gentalha. à Núbia volta e, com a mesma luz 19 ,
E como há-de estes povos inexpertos põe-se a caminho com a gente escura,
armar e preparar para a batalha, e vitualhas consigo conduz.
e sem moléstia atravessar desertos, Com sua hoste completa e segura,
onde a areia os homens atrapalha, direito ao Atlas o duque de truz
ponto por ponto, toda a disciplina caminha, por entre a minuta areia;
o velho santíssimo ao duque ensina. que o vento os incomode não receia.
26 Depois mandou-o montar no alado
que foi de Ruggier, e primeiro de Atlante.
--
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Deixou o paladim, recomendado
por São João, aquele sítio edificante;
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e, acompanhando o Nilo sempre ao lado,
depressa a Núbia lhe surgiu diante;
na sua cidade maior pousou,
e logo Senapo reencontrou.
27 Foi o gáudio grande e muita a alegria
que trouxe àquele senhor no seu regresso;
inda se lembrava que da agonia
das Harpias o livrou com sucesso.
Mas quando à crosta que o olho cobria
e a luz roubava lhe dá desempeço,
e a visão antiga se reanima,
qual deus o venera, adora e sublima:
608 ORLANDO FURIOSO
32 Passado o Atlas chega a uma parte 34 com vibrantes nitridos, pelas descidas
em que se avista o plano e a marina; vêm saltando, e chegadas ao plano
Astolfo escolhe a mais distinta parte dão à grupa, em cavalos convertidas,
das tropas, e a que mais tem disciplina; um baio, outro rodado, outro ruano.
e a intervalos, em grupos a parte, As tropas, que no vale recolhidas
onde um monte com o plano confina. estavam, deitam-lhes a mão com afano:
Deixa-os ali, e àquele monte ascende, dentro em pouco todos foram montados,
com ar de quem grandes coisas entende. pois com sela e com freio foram nados.
33 Depois, pondo-se de joelhos, tece 35 Oitenta mil, cento e dois transformou
ao santo que é seu mestre uma oração; num dia de peões em cavaleiros.
certo de que ele ouviu a sua prece, Com eles toda a África saqueou,
cópia de pedras faz cair para o chão. fazendo roubo, incêndio, prisioneiros.
Oh, quanto a quem crê em Cristo se oferece!· O rei de Fez, Agramante, deixou
As pedras, fora de toda a razão o dos Algazeres e Branzardo20 , olheiras,
crescendo, para baixo abriam caminho, enquanto estivesse em solo francês;
com ventre, pernas, pescoço e focinho; os quais se opuseram ao duque inglês;
CANTO XXXVIII 609
36 primeiro enviaram uma subtil nave 42 - Seja bem ou mal que a Fama transporte,
que à vela e remos deixou o areal, senhor, de acrescentar tem sempre usança.
para Agramante avisar do assalto insuave Não se dará, pois, que eu me desconforte,
do rei núbio, causando ultraje e mal. ou que encare o dever com mais temperança,
Dia e noite a nave andou sem entrave, por maus ou bons casos que traga a sorte:
até chegar à costa provençal; a par sentirei que temor e esperança
em Arles o achou quase assediado, devam ser menores, não da dimensão
com Carlos só uma milha afastado. com que outras línguas notícia nos dão.
37 Vendo Agramante que em tão grande perigo, 43 E farei sempre tanto menos fé
para conquistar o reino de Pepino quanto mais do verosímil se afasta.
deixava o seu, fez reunir consigo Ora, se é verosímil bem se vê,
chefes e reis do povo sarracino. que tenha vindo, com gente tão vasta,
Em volta girou seu olhar mendigo, pôr na belicosa África21 o pé
e depois a Marsilio e a Sobrino, esse rei, de distância tão nefasta,
que mais que outro qualquer que ali se visse pela mesma areia à qual mandou Cambises22
eram velhos e sábios, assim disse: seu povo, sob auspícios infelizes.
3s - Embora eu bem saiba que não convém 44 Crerei que os Árabes tenham descido
a um capitão dizer: não pensei, das montanhas, feito destruição
porém digo; pois, quando um dano vem e saqueado, homens morto e prendido,
fora da previsão da humana grei, onde acharam menos oposição;
parece que o erro desculpa tem; e que Branzardo, que foi estabelecido
aqui se inclui o meu caso; eu errei: lugar-tenente do rei da nação,
deixei África de armas desprovida, em vez de dezenas escreva milhares,
se pelos Núbios ia ser agredida. para melhor na desculpa acreditares.
39 Mas quem pensaria, Deus excluído, 45 Admitamos que são os Núbios, tendo
para quem não há coisa futura ignota, talvez do céu por milagre chovido,
que viria em bando descomedido, ou nas nuvens se vieram escondendo:
para nos assolar, gente tão remota? jamais se viu por terra terem ido.
Entre nós existe instável tecido Que tal gente África roube temendo
de areia, que o vento sempre alvorota. estás, se de ajuda a não houveres provido?
Contudo, veio assediar Bizerta, Pouco valia a tua guarnição,
e parte de África tornou deserta. se receasse um povo tão poltrão.
4o Vosso conselho peço a tal respeito: 46 Mas se mandares, poucas, embarcações,
se devo ir-me daqui sem ter fruído, só para se avistarem tuas bandeiras,
ou nossa empresa seguir, de tal jeito não cortaram aqui amarrações,
que à prisão Carlos seja conduzido; já eles fogem para as suas fronteiras;
ou como, lá, nosso reino endireito, sejam núbios ou árabes vilões,
deixando, aqui, o império destruído. foi por estares aqui em lides guerreiras,
Se algum de vós souber, peço não cale, separado pelo mar da tua terra,
para ver o que é melhor, e fazer tal. - que se atreveram a mover-te guerra.
41 Assim disse Agramante; e logo olhou 47 E do sobrinho de Carlos a ausência
o rei de Espanha, a seu lado sentado, aproveita, para dar retaliação;
mostrando querer que, sobre o que falou, pois Orlando não estando, resistência
lhe seja por ele o conselho dado. nenhum te opõe na imiga facção.
Fez este a vénia, os joelhos içou, Se perdes, por cegueira ou negligência,
como a cabeça, que tinha inclinado, a vitória honrosa que tens à mão,
e ao seu honroso trono recolheu; vira-te a calva a que ora a crina esboça23 ,
e à língua as seguintes palavras deu: com muito dano e grande infâmia nossa. -
610 ORLANDO FURIOSO
48 Com tais palavras pretende habilmente 54 Orlando aqui não estar, ajuda; onde
o hispano persuadir, no concílio, poucos somos, nenhum, talvez, haveria.
a não sair de França aquela gente, Mas lá por isso o perigo não se esconde,
sem Carlos ser mandado para o exílio. apenas nossa má sorte se adia.
O rei Sobrino, que viu claramente Há Rinaldo, que provas deu avonde
onde queria chegar o rei Marsilio, de não ter que ele menos valentia;
que mais no próprio interesse assim falou, há os seus parentes, e os paladinos,
que no de todos, então retrucou: temor eterno para nós, Sarracinos.
49 - Quando eu te aconselhava a estar em paz, 55 Têm também aquele segundo Marte
tivesse eu lido mal o teu destino; (por meu mal, o inimigo estou gabando);
ou tivesses tu, se é que fui veraz, falo do valoroso Brandimarte,
acreditado no fiel Sobrino, em tudo não menos forte que Orlando;
�m vez de mais em Rodomonte audaz, sua virtude comprovei em parte,
em Marbalusto, Alzirdo e Martasino, parte à custa dos outros vou julgando.
que gostava agora de ter defronte; Há muito que Orlando está ausentado,
mas, mais que os outros, queria Rodomonte, e mais temos perdido que ganhado.
50 para pôr-lhe em cara que queria da França 56 Se até aqui temos perdido, temo
fazer o que a frágil vidro faria, daqui para a frente um dano inda mais grosso.
e que ao Céu ou Inferno tua lança Mandricardo já não serve o muslemo24 ,
acompanhava, de perto a seguia; Gradasso afastou-se do campo nosso25;
quando faz falta, está coçando a pança, Marfisa deixou-nos no ponto extremo,
na indolência odiosa e sombria; como o rei de Argel, de quem dizer posso
e eu, que cobarde fui considerado que, se fosse fiel como galhardo,
por verdades prever, estou a teu lado; dispensava Gradasso ou Mandricardo.
51 e sempre estarei, até que esta prisca 57 Enquanto nós perdemos tal ajuda,
vida termine, de anos tão pesada, e milhares dos nossos tiveram morte,
mas que por ti cada dia se arrisca e mais ninguém de lá para cá se muda,
ante os de França de maior nomeada. nem nave chegará que algum transporte,
Nenhum terá a pretensão arisca Carlos quatro novos homens saúda,
de dizer que alguma acção fiz errada; como Orlando e Rinaldo, de igual sorte;
nem mais do que eu, ou nem tanto, alcançaram podes crer, pois daqui até ao Bactro26 ,
muitos que mais do que eu se vangloriaram. como eles não acharás outros quatro.
52 Falo assim, para demonstrar que o que então 58 Guidon Selvaggio não sabes quem seja,
te disse, e quero agora repetir, e Sansonetto, e os filhos de Oliviero?
não vem de vil nem falso coração, Mais respeito e temo estes em peleja
mas de amor vero e de fiel servir. que outro guerreiro deles forte e fero,
Eu te aconselho que à pátria nação, que da Alemanha ou de outra língua veja
o mais breve que possas, queiras ir; vir Carlos proteger de nós com esmero;
pois pouco sábio se diz que é aquele mas importa também a nova tropa
que o seu perde, querendo o que não é dele. que, para nosso mal, no campo galopa.
53 Se ganho há, tu sabes. Trinta e dois 59 Quantas vezes fores lutar na campanha,
reis teus vassalos deixaram o porto levarás a pior, serás vencido.
contigo; contando-os tempos depois, Se antes vencida foi África e Espanha,
há um terço, todo o resto está morto. que dezasseis para oito tinham sido,
Que outros mais não caiam, peço a Deus, pois, como será com Itália, Alemanha,
se queres prosseguir, sinto o desconforto e o povo anglo e escocês à França unido,
de em breve não restar um quarto, ou quinto; e que seis contra doze ora serão?
e o teu infeliz povo será extinto. Só desastre e dano se esperarão.
CANTO XXXVIII 611
60 Aqui homens perdes, e o reino lá, 66 Com este feliz acordo, igualmente
se te manténs nesta empresa obstinado; um exército e outro se alegrava;
mas, se ideia mudando, voltares, já que o grande esforço do corpo e da mente
o resto de nós salvas e o teu estado. todos cansara e a todos pesava.
Deixar Marsilio, indigno te será, Repousar da vida o remanescente,
que ingrato serias considerado; era o que cada um mais almejava;
mas tens remédio: faz com Carlos paz, todos maldiziam ira e furor
que a ele agradará, se a ti compraz. que os levaram à luta e ao rancor.
61 Mas se achas que melindra teu honor, 67 Rinaldo mui lisonjeado se vê,
paz pedir a quem ofensa te fez, que Carlos tal coisa, que tanto pesa,
e se à batalha atribuis mais valor, dentre tantos outros, a si a dê,
que, como até hoje correu, bem vês, e ledo se entrega à honrosa empresa.
tenta ao menos ser dela vencedor; Ruggier não estima, e na verdade crê
o que talvez suceda, se em mim crês: que contra si não possa ter defesa;
dá a empresa a um guerreiro fero, que seu par seja não está convencido,
e que outro não seja senão Ruggiero. embora Mandricardo haja extinguido.
62 Ambos sabemos que Ruggiero é tal 68 Por seu lado Ruggier, embora honrado
que de um para um, com as armas na mão, esteja por o seu rei o ter eleito,
não menos que Orlando ou Rinaldo vale, e melhor que todos ser considerado
ou qualquer outro cavaleiro cristão. para lhe confiar tão importante feito,
Mas se queres fazer guerra universal, no rosto mostra tristeza e enfado;
mesmo que valha mais do que um milhão, não porque o medo lhe turvasse o peito,
ele não será mais do que um somente, pois não só Rinaldo, nem recearia,
a enfrentar um exército de gente. se junto com Rinaldo Orlando ia;
63 Acho, se concordas, que dizer mandes
ao rei cristão que, para findar atritos,
e para acabar com o sangue que tu expandes
de alguns seus, e ele dos teus infinitos,
que ponha em campo um guerreiro seu dos grandes,
contra um dos teus de mais gabaritos;
e que façam esses dois toda a guerra,
até que um vença, e o outro vá a terra;
64 com contrato que aquele que perder faça
seu rei ao outro pagar vassalagem.
Julgo que esta condição satisfaça
Carlos, embora se encontre em vantagem.
A confiança em Ruggiero que em mim grassa,
que vencedor será, dá-me coragem;
e a razão está tanto da nossa parte
que ele venceria até contra Marte. -
65 Com tais e outras de eficaz efeito,
Sobrino convencê-lo conseguiu;
nesse dia foi o emissário eleito,
e a embaixada para Carlos seguiu.
Tinha Carlos tanto guerreiro perfeito
que a batalha por vencida inferiu,
da qual o encargo ao bom Rinaldo deu,
que era, após Orlando, o dilecto seu.
612 ORLANDO FURIOSO
69 mas porque sabe que é irmão daquela 75 Ou fosse acaso, ou fosse por lembrança
que é sua futura e cara consorte, do seu Malagigi29 sábio e prudente,
que escrevendo-lhe o estimula e martela, que sabe como Balisarda30 avança
como se houvesse havido injúria forte. e quanto às armas seu talho é nocente,
Se às velhas ofensas acresce aquela justar sem espada, como atrás se afiança,
de entrar em campo e dar-lhe ao irmão morte, entre os dois guerreiros ficou assente.
de amante, passará tanto a odiá-lo Junto às muralhas de Arles posição
que nunca mais poderá desculpá-lo. foi escolhida, em extenso terreno chão.
70 Se calado Ruggier se aflige e anseia, 76 Mal saía, da vigilante Aurora,
pela liça em que contrariado contende, da casa de Titono31 a cabeleira,
sua cara noiva chora e pranteia, parà dar, ao dia decidido e à hora
quando a notícia pouco após entende. fixada para a batalha, a luz primeira,
No peito bate, a crina despenteia, quando de cá e lá vieram fora
e a face inocente molha e ofende; os padrinhos, que em cada cabeceira
e a Ruggier chama ingrato e infiel, da paliçada os pavilhões ergueram,
queixando-se do destino cruel. e junto a eles dois altares puseram.
71 Seja qual for o fim da desavença, 77 Não muito depois, fileira a fileira,
dela só lhe poderá vir desgosto. viu-se sair o exército pagão.
Que Ruggier de morrer tenha sentença, No centro, armado e solene, enfileira
quando o pensa, o coração sente exposto. o rei de África em bárbaro estadão;
E se, para castigar mais de uma ofensa, num corcel baio de negra crineira,
Cristo o reino de França quer deposto, branca fronte, e manalvo em cada mão,
além de sofrer morte o seu irmão, a par com o rei, Ruggiero surgia,
sofrerá ela inda maior lesão: que Marsilio sem soberba servia.
n pois só podia com pejo e censura, 78 O elmo, que antes lhe custara tanto
e a inimizade da sua gente, tirar da cabeça ao rei da Tartária32 ,
do seu amado ir de novo à procura, esse elmo, celebrado em maior canto33 ,
se o facto se souber publicamente; que de Heitor é herança originária,
tal como noite e dia tanto augura, Marsilio lho traz, e estão flanco a flanco;
tendo esse desígnio fixo na mente; outros príncipes e nobreza vária
o compromisso entre eles era tal partilham de outras armas o tesouro,
que recuar e desistir pouco vale. ricas em gemas e forradas de ouro.
73 Mas aquela que já se habituou 79 Do outro lado, saiu dos hangares
a não faltar-lhe com fiel ajuda, rei Carlos, com sua força militar,
falo de Melissa, não suportou com a mesma disciplina e modos pares
ouvir seu pranto e sua queixa aguda; aos que teria se viesse lutar.
veio, confortou-a, e assegurou Rodeado vem de seus famosos pares;
que assistência miraculosa estuda Rinaldo, todo armado, vem-lhe a par;
para perturbar o próximo combate, outro o elmo traz, que foi de Mambrino34 :
que tanto a preocupa e a abate. Uggiero dinamarquês, paladino.
74 Rinaldo e Ruggiero, cada um estava 80 Duas achas: Namo, o duque, traz uma,
preparando armas para aquela tenção, e outra Salomão, rei da Bretanha.
a qual escolher ao cavaleiro tocava Carlos dum lado os seus todos arruma,
que do Romano Império era campeão27 ; do outro estão os de África e de Espanha.
e como ele, desde que lhe faltava No centro não se vê pessoa alguma,
o seu Baiardo28, sempre foi peão, vazio está grande espaço de campanha:
escolheu a pé, vestindo chapa e malha, quem o pisar tem, por lei que é igual,
com a acha e o punhal, a batalha. excepto os guerreiros, pena capital.
CANTO XXXVIII 613
81 Quando das armas a segunda eleita35 86 E igualmente com não baixa voz,
se deu ao campeão do povo pagão, Maomé por testemunha compromete;
dois sacerdotes, um de cada seita, no livro que o imã tem, a mão pôs,
apresentaram dois livros na mão. e tudo o que disse cumprir promete.
No que é nosso, está a vida perfeita Do campo saem em passo veloz,
de Cristo escrita; o outro é o Alcorão. e entre os seus um e outro se remete;
Com o do Evangelho fez-se avante depois, o par de campeões jurar vem,
o imperador; com o outro Agramante. e o juramento é isto que contém:
82 Carlos, chegado ao altar erigido 87 Ruggier promete que, se da tenção
pelos seus, em oração ergueu as palmas, o seu rei vem ou manda desviá-lo,
dizendo: - Ó Deus, à morte submetido não quer mais seu guerreiro ou seu barão
para dares a redenção às nossas almas; ser, e de Carlos se fará vassalo.
ó Senhora de valor desmedido, Jura Rinaldo que, se houver razão
que a Deus deste as humanas feições almas, para seu senhor querer daqui afastá-lo
nove meses em teu ventre ficando, antes dele ou Ruggier ser triunfante,
e a flor virginal salva conservando: passa a ser cavaleiro de Agramante.
83 sede testemunhas de que prometo, 88 Quando as cerimónias têm conclusão,
por mim e toda a minha sucessão, regressa cada um à sua parte;
ao rei Agramante e a todo o seu neto, nem muito esperam; logo as trompas dão
que após ele governe sua região, vibrante sinal ao temível Marte.
que por ano vinte somas36 remeto Os arrojados ao encontro vão,
de ouro, se for vencido o meu campeão; os passos com cuidado dando, e arte.
e que prometo trégua de imediato, E nisto vê-se começar o assalto,
dela fazendo perpétuo contrato; soar o ferro, e girar baixo ou alto.
84 e se eu faltar, de súbito se acenda 89 Ora a lâmina avança ora o martelo37 ,
uma cólera assustadora em vós, e ora à cabeça e ora aos pés conflui,
que a mim somente e meus filhos ofenda, de modo tão destro e ágil que, vê-lo,
e nenhum destes que está junto a nós; a crença no narrado diminui.
para que em breve tempo se compreenda Ruggier combate contra quem tem elo
que a esta promessa faltei, após. - de irmão com quem sua alma possui,
Sobre o Evangelho, enquanto falava, e atacava-o com tanto resguardo
Carlos a mão tinha e para o céu olhava. que foi tomado por pouco galhardo.
85 Erguem-se ora, e dirigem-se ao altar 90 Era mais a aparar que a ferir tendente,
os pagãos, mui ricamente adornado; e seu desejo nem ele sabia:
jurou Agramante que além do mar Rinaldo matar era inconveniente,
com seus homens seria regressado, porém ele morrer também não queria.
e a Carlos daria tributo par, Mas eis que ao fim chegar acho coerente,
se Ruggier ali fosse derrotado; pois diferir a história conviria.
e perpétua trégua entre eles haveria, No outro canto o resto sabereis,
com as condições que já Carlos queria. se acaso ouvir o outro canto quereis.
614 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 Creso ou Crasso: Creso, rei lídio entre 560 e 546 a. 21
África: Ariosto, como faziam os Romanos, identifica
C., ficou famoso pela sua incomensurável riqueza; África com a região norte do continente, desde o Atlân
Marco Licínio Crasso (115-53 a. C.) formou, com César tico até Cartago. Como já vimos, designa as restantes
e Pompeu, o primeiro triunvirato. Tinha uma ambição regiões por Etiópia, Egipto, Núbia, etc.
extrema de poder e riqueza.
22
Cambises: Cambises II, rei da Pérsia de 529 a 522 a. C.,
2 O resto{..} França: as tropas que lhe restam em França. mandou o seu exército destruir o templo de Júpiter
Ámon, mas as tempestades de areia do deserto africano
3
Augusto: sinónimo de imperador. puseram um dramático fim à expedição, como os augú
rios tinham previsto.
4 Tir{ntia faz: colunas de Hércules. O herói foi criado
23
em Tirinto, na Argólida. Vira-te{..] esboça: a Fortuna volta-te as costas (cf.
nota a XXX:35:5-6).
5
Risa: cf. nota a XXXVI:74:3.
24
Mandricardo {..} muslemo: porque foi morto por
6
Império: Império do Ocidente, de que Carlos Magno Ruggiero (cf. XXX:64).
era imperador (cf. nota a I:1:8).
25
Gradasso {..] nosso: faltando à palavra que dera a
7
Mongrana{..} Claramonte: cf. nota a XXXVI:75:5. Rinaldo, partiu com o cavalo Baiardo para o seu reino
no Oriente (cf. XXXIIl:95).
8
Samonetto: lapso de Ariosto. Sansonetto era prisio
26
neiro de Rodomonte (cf. XXXV:53:1-4), tendo sido Bactro: rio da Pérsia, afluente do rio que hoje se
enviado para África (cf. XXXIX:30:6). chama Amu-Dária. Daqui até ao Bactro equivale a «do
Ocidente ao Oriente».
9
Cidade cruel: terra das mulheres homicidas (cf.
27
XIX:57 ss.). A qual{..} campeão: a escolha da arma para o duelo
cabia a Rinaldo, pois Ruggiero representava o desafiante.
10
Malagigi{..} companha: cf. XXVI:8 ss.
28
Faltava[..} Baiardo: levado indevidamente por Gradasso.
11
Turpino: cf. nota a XIII:40:2.
29 Seu Malagigi: seu primo Malagigi.
12 Céu mais baixo: o céu da Lua.
30
Balisarda: espada de Ruggiero, que era fadada.
13
Altura { ..} Terra: paraíso terrestre (cf. XXXIII:11 O),
31
onde Asrolfo já estivera na ida (cf. XXXIV:48:7-8 ss.). Titono: cf. nota a Xl:32:8.
14
Mestre de guerra: Orlando. 32
Rei da Tartdria: Mandricardo.
15 João: S. João Evangelista. 33
Celebrado {..} canto: celebrado na Ilíada, por Homero.
16 34
Bizerta: cf. nota a XVIII:158:2. Foi de Mambrino: cf. nota a 1:28:5.
17 35
Contra{..] expira: sopra para norte. Segunda eleita: punhal, cf. 74:8.
18
Noto: vento que sopra de sul para norte. 36 Somas: a soma era uma antiga medida de peso e de
capacidade.
19
Com a mesma luz: na mesma manhã.
37
Ora{..} martelo: a acha de armas era como um macha
20
Rei{..} Branzardo: o rei de Fez é Polvo; o rei dos do, tendo um cabo de madeira e uma cabeça, que, de um
Algazeres é Bucifar; Branzardo é o rei de Bougie (na lado, era lâmina cortante e, do outro, como um martelo de
costa argelina). Já existiam no lnnamorato. secção quadrada.
-ê:'l[ir-
CANTO XXXIX
�
4 Enquanto isto Melissa, que era fonte 5 Mandou um demo ir ter com Agramante,
de quanto saiba encantador ou mago, que triste estava, em forma de cavalo;
tinha alterado a feminina fronte, e, com voz grave e turvado semblante,
do rei de Argel assumindo a imago; disse: - Senhor, mas que enorme resvalo,
era no rosto e gestos Rodomonte, que um jovem inexperiente diante
e aparecia armada com pele de drago; de tão possante e tão famoso galo
igual escudo e igual espada no flanco, tenhas posto, para coisa de tal sorte
como ele, tinha; nada deixou em branco. que ao reino de África e sua honra importe.
CANTO XXXIX 617
10 Qual cão lebreiro que a fugace fera, 13 Tão perto uma da outra isto fizeram
em redor correndo e girando, mira, que uma da outra viram cada estouro;
quando ir com a matilha lhe aprouvera, mas afastaram-se, e a ferir se deram,
mas o caçador o retém; com ira onde a ira as levou, o povo mouro.
se atormenta, se aflige e desespera, Quem pode contar quantos se abateram,
e, ganindo, em vão se debate e estira; atirados para o chão pela lança de ouro?
assim esteve até ali contrariada Ou cada testa arrancada ou incisa
Marfisa nesse dia, e a cunhada. pela fulminante espada de Marfisa?
11 Até então, viram apetecidas 14 Como ao soprar dos ventos mais dementes,
e ricas presas em espaçoso chão; quando o Apenino mostra a costa herbosa 1 ,
e, de serem pelo acordo retidas a par vão duas violentas torrentes,
de as seguir e de lhes deitar a mão, mas logo uma da outra se desposa;
se tinham já queixado, consumidas, arrancam pedras, plantas eminentes
e muito tinham suspirado em vão. das margens altas, e nos vales pousa
Ao verem pacto e tréguas violados, terra e messe; como se indo, à porfia,
saltam sobre os africanos soldados. ver qual mais danos faz na sua via;
12 Marfisa enterrou a hasta no peito 1s assim as duas excelentes guerreiras,
do primeiro, e duas braças saía; correndo o campo por diversa estrada,
puxou da espada e num ápice, a eito grande dano dão às mouras fileiras,
quatro elmos quebrou: vidro parecia. com hasta uma, a outra com a espada.
Bradamante não fez menor efeito, Agramante agrupa junto às bandeiras
mas tinha a hasta de ouro outra mania: a hoste, para da fuga a ter guardada.
todos que tocou, ao chão atirou; Em vão pergunta, em vão regira a fronte:
duas vezes mais, mas nenhum matou. não sabe o que é feito de Rodomonte.
16 A conselho dele quebrara o pacto
(assim cria) que foi solenemente,
testemunhando os deuses, posto em acto;
depois, evaporara de repente.
Nem Sobrino vê: fora de imediato
para Arles, e dizia-se inocente;
pois de tal perjúrio vingança espera
de Agramante nesse dia, e severa.
17 Marsilio também em Arles se encerra:
oprime-o, pela fé ofendida, a dor.
Por isso, Agramante o passo mal cerra
aos que conduz Carlos, imperador,
de Itália, de Alemanha, de Inglaterra,
que são todos homens de alto valor;
e os paladins estão entre eles espalhados,
quais gemas esparsas em áureos bordados;
1s e, junto aos paladins, um tão perfeito
cavaleiro quanto há no mundo vero:
Guidon Selvaggio, de intrépido peito,
e os dois famosos filhos de Oliviero.
Nem quero falar, por já o ter feito,
do par de donzelas valente e fero.
Estes matavam gente sarracena,
em quantidades que contar dá pena.
CANTO XXXIX 619
31 O timoneiro, sem ter reparado 33 Mas não pôde fugir nem ser austero,
no inimigo, o barco ali trazia; com os presos, o barqueiro assustado.
tinha o porto milhas atrás deixado, Com Brandimarte foi, com Oliviero,
de Argel, onde fundear pretendia, com Sansonetto e outros mais, levado
por forte vento se ter levantado, onde Dudone e o duque, em gesto mero,
que a popa empurrou para onde não queria. aos amigos sorriam com agrado;
Pensava entre os seus se encontrar e em paz, e, por mercê, quiseram que o que os trouxe
como vai Procne7 para o ninho loquaz. ali ao remo condenado fosse.
32 Mas, quando vê a águia imperial, 34 Como digo, Astolfo muita atenção
os lírios de ouro e o leopardo8 em frente, deu aos cristãos, sendo bem recebidos,
fez-se branco como quem no trigal com banquete honrados no pavilhão,
o pé incauto pousou de repente e armas, de que eram desguarnecidos.
sobre a víbora perversa e mortal, Por eles, Dudone protelação
entre as ervas achatada e dormente; deu à partida; que os factos ouvidos
assustado e pálido o pé retira, desses barões acha mais importantes
e dali foge, pleno de asco e ira. do que partir um ou dois dias antes.
CANTO XXXIX 621
35 Em que estado se encontra, e de que jeito, 39 Era Fiordiligi, que tão aceso
a França e Carlos, informação teve; tinha no peito a Brandimarte amor
e onde, para obter melhor efeito que, quando junto à ponte o deixou preso9,
e segurança ter, aportar deve. esteve prestes a enlouquecer de dor.
Enquanto ele os escutava com proveito, O mar passara com ânimo teso,
ouviu-se um rumor que cresceu em breve, pois disse-lhe o pagão que foi autor
e um alarme tão feroz se seguiu que com muitos outros viera ele,
que mais que uma ideia a todos surgiu. para presos serem na terra de Argel.
36 O duque Astolfo e a companhia bela, 40 Quando fora embarcar, tinha encontrado
que juntos tanto tempo conversaram, um navio, em Marselha, do Levante,
num instante armados e sobre a sela, por um velho cavaleiro levado
donde o grito vinha a ir se apressaram, da longínqua corte de Monodante 1 0 ;
tentando ver se a razão se revela em muitas províncias tinha tentado,
de tal rumor; e a um lugar chegaram ora por mar ora por terra errante,
onde viram um homem tão feroz Brandimarte encontrar; sabido havia,
que à tropa, só e nu, dá trato atroz. no caminho, que em França o acharia.
37 Um bastão de pau em torno girava, 41 Reconhecendo ela nele Bardino,
que era tão duro, pesado e potente aquele Bardino que tinha raptado
que, ao baixar, de cada vez derrubava Brandimarte a seu pai em pequenino,
um, que ficava pior que doente. que em Rocca Silvana fora criado 1 1 ,
A vida a mais de um cento já faltava; e, ouvindo porque andava em tal destino,
ninguém se atrevia a fazer-lhe frente, fez com que ele dali tivesse zarpado
a não ser mandando de longe setas: e, com ele indo, contou-lhe o porquê
ninguém queria com ele meças directas. de Brandimarte em África pôr pé.
38 Dudone, Astolfo e Brandimarte, havendo 42 Chegados a terra, ouviram dizer
ao rumor acorrido, e Oliviero, que de Astolfo tinha assédio Bizerta;
admiravam-se do valor estupendo que Brandimarte com ele podem ver,
e da força que tinha aquele fero; consta-lhes, mas não como coisa certa.
nisto, viram num palafrém, correndo, Fiordiligi aproxima-se a correr
uma dama em traje negro severo, assim que o vê, mostrando bem aberta
que correu para Brandimarte e o saudou, a alegria, que o mal que sofrera
e os braços ao pescoço lhe deitou. transformou na maior que ela tivera.
43 O cavaleiro, não menos jucundo
de ver a mulher dilecta e fiel,
que amava mais que outra coisa no mundo,
para docemente a abraçar se impele;
não saciou com um, nem ao segundo,
nem ao terceiro beijo o desejo ele;
mas os olhos erguendo, deu de cara
com Bardino, que a mulher transportara.
44 As mãos estendeu, esperando abraço em troco,
e para perguntar por que ali surgia;
mas o tempo para o fazer saiu pouco,
pois toda a hoste em desordem fugia,
diante daquele bastão que o nu louco
girava em volta, e que lhe abria a via.
Fiordiligi olhou o homem sem veste,
gritando a Brandimarte: - O conde é este! -
622 ORLANDO FURIOSO
45 Também Astolfo, que ali perto estava, 51 E, se não fora de Olivier tão bom
teve, que ele era Orlando, lucidez, o elmo, seria o murro conciso:
por sinais que os santos velhos, lembrava, caiu como se houvesse feito dom
no paraíso deram com sagez. do espírito e da alma ao paraíso.
Mas aos outros presentes não restava Do chão se ergueram Astolfo e Dudon,
conhecimento do senhor cortês; embora tenha este inchado o viso;
por tanto desleixar-se, louco que era, com Sansonetto, que o pau cortou rente,
mais que de homem, tinha aspecto de fera. para cima de Orlando vão, num repente.
46 Astolfo, que de pena amargurado 52 Dudon por trás com muita força o abraça,
se sentiu, voltou-se lacrimejando; e tenta com o pé desequilibrá-lo;
disse a Dudone, que estava a seu lado, Astolfo e os outros os braços lhe enlaça,
e a Oliviero também: - Eis Orlando! - mas todos não conseguem segurá-lo.
Tendo estes os olhos nele fixado, Quem já viu um touro a que se dá caça,
foram o seu semblante confirmando; com feras nas orelhas a adentá-lo,
e o encontrá-lo em tal calamidade correr mugindo, e consigo arrastar
encheu-os de estranheza e de piedade. os cães, que de si não pode afastar,
47 Chorava dos senhores a maior parte: 53 imagine que Orlando fosse tal,
tal dor sentiram que os perturbou tanto. pois todo o grupo consigo impelia.
- É hora (disse Astolfo) de ter arte Volta então Oliviero à vertical,
para o sanar, e não para fazer-lhe o pranto. - de onde pelo colossal murro jazia;
Para o chão saltou, e também Brandimarte, e, vendo que assim se podia mal
Sansonetto, Olivier, Dudone santo 1 2 ; fazer o que Astolfo fazer-lhe queria,
para o sobrinho de Carlos a avançar pensou num modo, que pôs em acção,
todos a um tempo, para o agarrar. logrando Orlando assim deitar ao chão.
4s Orlando, ao ver que o cerco se formava, 54 Várias cordas ali trazer mandou,
girou o pau em desespero louco; e nós corredios nelas fez lesto;
e a Dudone, que a cabeça abrigava às pernas e braços do conde atou,
com o escudo, enquanto avançava um pouco, e através do corpo amarrou o resto.
fez sentir como aquele bastão pesava; Repartiu as pontas, e entregou
e, se com a espada Oliviero o soco uma a cada um, que a agarrou presto.
não apara, tinha o bastão injusto Da maneira que um ferrador aterra
quebrado elmo, escudo, cabeça e busto. cavalo ou boi, Orlando foi a terra.
49 Quebrou só o escudo, mas a pancada 55 Assim que vai ao chão, caem-lhe em cima,
no elmo Dudone lançou por terra. e com mais força lhe atam pés e mãos.
Vibrou Sansonetto a um tempo a espada, Orlando não pára, em constante esgrima,
e duas braças da vara lhe aferra mas os esforços que faz são todos vãos.
com tal força que em duas foi cortada. Astolfo a que o levem dali intima,
Brandimarte, que em cima se lhe cerra, pois diz que os miolos lhe quer pôr sãos.
com os braços os flancos bem lhe aperta, Dudone, que é grande, em si o empoleira,
e Astolfo as pernas tem e não liberta. e à praia o transporta, do mar à beira.
50 Mas Orlando sacode, e a dez passos 56 Manda-o Astolfo lavar sete vezes,
dali o inglês faz cair reverso; e sete vezes na água o mergulha,
Já Brandimarte os braços não tem lassos, para que do rosto e membros tão soezes
e às suas tentativas é adverso. saia a crosta de esterco que o embrulha;
Fazendo Olivier de avançar ameaços, com ervas próprias, de sete jaezes,
um murro lhe deu tão duro e perverso a boca, que sopra e bufa, lhe atulha;
que ao chão o levou, pálido e exangue, pois inspirar doutro modo não quis
dos olhos e nariz deitando sangue. que ele pudesse, a não ser pelo nariz.
CANTO XXXIX 623
57 Tinha Astolfo a ampola preparado, 63 Disse-lhe, entre outras razões para ele ir,
em que o senso de Orlando se encerrava; que doce coisa era a pátria, e que, quando
e tendo-a do nariz aproximado se dispusesse a seu gosto sentir,
no momento em que o ar ele inspirava, não mais gostaria de andar errando.
toda vazou: espantoso resultado! Brandimarte respondeu querer servir
Ao estado antigo a mente regressava; em toda esta guerra Carlos e Orlando;
ao seu pensamento a inteligência e, se pudesse ver-lhe o fim, então
voltou, mais lúcida que em precedência. pensaria melhor na situação.
58 Como quem de enfadonho e grave sono, 64 De manhã para a Provença dirigiu
em que monstro execrável e disforme, a frota o filho do dinamarquês.
que não tem da verdade algum abono, Orlando em ali ficar insistiu,
creu ver, ou fez coisa estranha e enorme, e o duque o ponto da guerra lhe fez;
muito se maravilha, quando dono Bizerta inteira de assédio cingiu,
é já de seus sentidos e não dorme: dando o honor, porém, ao duque inglês,
assim Orlando, de novo sensato, das vitórias; mas tudo era cumprido
ficou maravilhado e estupefacto. pelo duque, como pelo conde instruído.
59 E para Brandimarte, e de Alda o irmão 13 , 65 O que acordaram para assaltar sem falha
e aquele que o senso lhe restituiu, Bizerta, por qual dos lados e quando,
pensativo olha, e não faz menção que foi tomada à primeira batalha,
de como e quando ali se dirigiu. quem dividiu os louros com Orlando,
Para aqui, para ali, o olhar gira em vão, se ora não contar, a ninguém baralha,
pois de onde se encontra está arredio. pois nunca muito me vou afastando.
Espantado está, pois nu ali se vê, Entretanto, contar-vos estimaria
e a cordas preso dos ombros ao pé. como os Francos aos Mouros dão razia.
60 Depois disse, como disse Sileno 66 Agramante foi quase abandonado
aos que o ataram dentro da espelunca: quando era maior o perigo da guerra;
- Solvite me 14 -, com rosto tão sereno, com muitos, Marsilio tinha voltado,
e o olhar com expressão tão pouco adunca e Sobrino, à muralha que Arles cerra;
que o soltaram; deram-lhe traje ameno, na frota um ou outro tinha embarcado,
com panos que dos seus cada um trunca, com receio de não salvar-se em terra;
e consolaram-no todos da dor dos Mouros, muito duque e cavaleiro
que o oprimia, pelo passado error. tinha seguido desses o carreiro.
61 Depois de ao eu antigo regressado,
Orlando, inda mais prudente e viril,
de amor se encontrou também libertado;
e assim, a que tão formosa e gentil _-.:--:- .
antes achou, e tanto tinha amado,
apenas tem hoje por coisa vil.
É todo o seu intento e seu desejo
ter o que por amor não houve ensejo.
62 Entretanto, Bardino a Brandimarte
contou que morrera o pai, Monodante; /.
e que ao reino chamá-lo ele da parte
vinha, primeiro, do irmão Gigliante,
depois, das gentes que habitam à parte
nas ilhas, as últimas do Levante;
outro reino não havia no mundo
tão rico e populoso, e tão jucundo.
624 ORLANDO FURIOSO
79 Agramante inda nem soube que envia &o E assim a frota que Astolfo confiara
Astolfo para França armada tão grossa; a Dudon, com homens bem preparados,
mesmo que lho dissessem, não creria e que à tardinha os outros avistara,
que um ramo cem navios fazer possa; mudando o seu rumo para esses lados,
e vem sem suspeitar que em torno haveria o descuidado inimigo assaltara;
quem ousasse a seus barcos fazer mossa; lançando os arpões, ficaram ligados,
nem na gávea vigia manda pôr, ao verem, pela língua que se falava,
que aviso dê do que avista em redor. que de inimigos mouros se tratava.
626 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 Apenino [. . .] herbosa: na altura do degelo. 9 junto [. . .] preso: cf. XXXI:75-76.
2 1
Bucifar galhartÚJ: cf. nota a XXXVIII:35:5-6. 0 Monodante: pai de Brandimarte.
3 11
Rei da Sdrcia: Rodomonte (cf. XIV:25). Aquele [. . .] criado: história desenvolvida no Innamorato.
Bardino mais tarde fez as pazes com Monodante e encar
4 É [. . .] linh m: filho de Uggiero, o dinamarquês, foi regou-se de procurar Brandimarte.
age
feito prisioneiro por Rodomonte no O. Innamorato.
12
Dudone santo: já no Innamorato Dudone tinha este
5 Fez [...] selecção: fizera uma primeira (cf. XXXVIII:32), epíteto.
para formar a cavalaria.
13 De Aida o irmão: Oliviero.
6 CunhatÚJ tÚJ conde: Oliviero (pai de Grifone e Aquilante),
irmão de Aida, mulher de Orlando (conde). 14 Como [. . .] solvite me (soltai-me): Sileno, velho sátiro
sempre embriagado, foi certa vez amarrado por jovens
7 Procne: dom.ela transformada pelos deuses em andorinha. pastores, numa gruta onde dormia (cf. Vergílio, Éclogas,
VI:24).
8 Águia [. . .] leopardo: insígnias do Império Romano,
15
da França e da Inglaterra. Tormentos: cf. nota a XVI:56.
�
CANTO XL
�
4 Alfonsin Trotto, que esteve de facto, 6 Era de noite, e não se via lume,
Annibal, Pier Moro, Afranio e Alberto, quando iniciaram a feroz empresa;
três Ariostos, Bagno e Zerbinatto4 mas depois que enxofre, pez e betume
tanto me contaram que fiquei certo; espalharam, sendo proa e popa acesa,
as bandeiras esclareceram com tacto e a voraz chama ateia até ao cume
(vi muitas no templo expostas, de perto), navios e galês com pouca defesa,
e quinze galês na margem altivas com tanta clareza em redor se via
vi, com mais mil naves, todas cativas. como se a noite passasse a ser dia.
Quem arder e afundar viu essas naves, 7 E Agramante, que, enquanto o ar foi escuro,
tantos morrer, de modo tão variado, do inimigo fez errada estima,
vingando assim nossas ardidas traves, sem pensar ter opositor tão duro
até que cada navio foi tomado, que, resistindo-lhe, não o reprima,
imagina com que mortes e entraves quando das trevas se fez dia puro,
Agramante e o Mouro foi castigado, e viu a frota que lhe vem para cima,
na noite escura, em meio às ondas salsas, que era o dobro da sua constatou,
quando Dudon lhes assaltou as balsas. e a primeira ideia reformulou.
CANTO XL 629
s Com alguns passa para mais leve barca, 11 Cristãos verdadeiros, Astolfo e Orlando,
onde tem Brigliadoro5 e as coisas caras. que sem Deus não enfrentam risco algum,
Entre os navios vai silente o monarca, foram ao exército anunciando
até se encontrar em águas mais claras, que se farão orações e jejum;
longe dos seus, que Dudone açambarca, e que se encontre ao terço dia, quando
e leva a condições acres e amaras: for dado o sinal, pronto cada um
queima o fogo, fere o ferro, o mar suga, para Bizerta expugnar, que, conquistada,
mas ele, que é o motivo, vai em fuga. ao fogo será dada, e saqueada.
9 Foge Agramante, e ao lado tem Sobrino, 12 Assim, tendo abstinências e votos
a quem lamenta nele não ter crido devotamente sido celebrados,
quando adivinhou, com olho ladino, parentes, amigos, e os mais notos,
e previu todo o mal acontecido. fizeram-se uns dos outros convidados.
Mas vamos a Orlando paladino, Restaurados corpos e ávidos gotos,
que, antes que haja Bizerta recebido lacrimejaram juntos, abraçados,
ajuda, ao duque que a deite por terra modos usando e palavras sentidas,
diz, para que não faça a França mais guerra. como entre os mais caros nas despedidas.
10 Ordenou-se ao exército que a jeito, 13 Dentro, em Bizerta, os sacerdotes santos,
ao terço dia, esteja preparado. suplicando com o povo dolente,
Guardou navios Astolfo para o efeito, batem no peito e, com pungentes prantos,
Dudone não tinha todos levado; chamam por Maomé, que nada sente.
para os comandar foi Sansonetto eleito, Quantas vigílias, ofertas, e quantos
guerreiro, em mar ou em seco, prendado; dotes se prometem privadamente!
a frota ancorou em frente a Bizerta, Em público templos, altares, figuras,
entre ela e o porto uma milha certa. memória eterna das amargas juras!
630 ORLANDO FURIOSO
14 Após ter sido pelo Cádi benzido, 20 De todo o lado reforçar o assalto
o povo armas tomou, voltando ao muro. mandou Orlando, por mar e por terra.
Com Titono no leito adormecido De Sansonetto a frota, do mar alto
estava ainda Aurora, e o céu obscuro, partindo, entra no porto, e ali se aferra;
já Astolfo e Sansonetto, em sentido com fundas e arcos dá sobressalto,
oposto, ocupavam lugar seguro; e mais instrumentos de acesa guerra;
e, quando o sinal do conde escutaram, expedia lanchas, escadas e inda mais
Bizerta com grande ímpeto assaltaram. maquinaria, e munições navais.
15 Tinha Bizerta de dois lados mar, 21 Faz Oliviero, Orlando e Brandimarte,
dos outros dois assente em seco lido. e o que pelo ar fora tão destemidoª ,
Com construção excelente e singular áspera e feroz batalha, mas na parte
foi antigamente o seu muro erguido. da qual o mar se encontra mais escondido.
Pouco mais tem que a proteja ou ampare; Entre os quatro por igual se reparte
desde que Branzardo ficou retido o exército, entre eles quadripartido.
nela, poucos pedreiros arranjara Muralhas, portas, todo o lugar serve
para a fortificar e tempo escarreara. para que o valor dos guerreiros se observe.
6
16 Astolfo incumbiu o rei dos trigueiros 22 De cada um se vê assim mais claro
de às ameias causar tanto tormento, o valor, do que estando misturados:
com lança-chamas, fundas e archeiros, quem for digno de louvor, ou reparo,
que tolha de assomar-se o atrevimento; a mil olhos se mostra, não fechados.
para chegarem peões e cavaleiros Torres de pau com rodas e, não raro,
à muralha sem ter impedimento, outras os elefantes já treinados
que vão de pedras, de traves, machados levam sobre o dorso, e tão alto vão
e outros materiais bem carregados. que as ameias muito abaixo lhes estão.
17 Ora uma coisa ora outra é lançada 23 Vem Brandimarte, encosta a escada aos muros
para a fossa, sem haver interrupção; e sobe, e a subir outros encoraja;
a água um dia antes foi desviada, muitos sobem, afoitos e seguros:
aparecendo no fundo o lamarão. nada receia quem por guia o haja.
Num instante foi cheia e atulhada, Ninguém olha ou faz cálculos e apuros
subindo à altura do muro o chão. se tanto peso a escada não ultraja.
Astolfo, Orlando, Oliviero trabalha Brandimarte só no imigo atenta;
para os infantes subirem à muralha. iça-se, e uma mão numa ameia assenta.
1s Os Núbios, com tal pressa impacientes · 24 E com uma mão e um pé se agarra,
na esperança de tesouros imediatos, sobe às ameias, gira em volta a espada,
sem atentar nos perigos iminentes, fere, derruba, corta, fura e esbarra,
cobertos por cágados e por gatos7, toda a sua perícia é demonstrada.
levando aríetes, e expedientes Mas nesse instante eis que a escada se esgarra,
para torres e portas arrombar aptos, por de excessivo peso estar carregada;
galgaram depressa aqueles terrenos; excepto Brandimarte, ao fosso vão
mas estavam atentos os Sarracenos, de pés para o ar, em sobreposição.
19 que ferro, fogo, ameias, telhas graves 25 Por tal não perde o cavaleiro o ardor,
fazendo cair, como trovoadas, e que para trás deva voltar não crê,
por força abriam as tábuas e traves embora vendo não ter seguidor,
das máquinas para seu dano montadas. e que a cidade como alvo o vê.
No ar escuro e nos inícios insuaves, Pedem-lhe (mas ignorou o clamor)
sofreram muito as testas baptizadas; que regresse, e, sem que atenção lhes dê,
mas, ao ser pelo Sol as portas transpostas, da muralha à cidade foi de um salto,
Fortuna aos Sarracenos virou costas. e o muro trinta braças tinha de alto.
CANTO XL 631
2s Tais guerreiros (mais que todos, Orlando) , 30 De igual modo, terem tomado os muros
para quem Brandimarte tem privilégio, aqueles três foi um enorme passo,
ao saber que, se forem demorando, pois podem os outros subir seguros
perdem um companheiro tão egrégio, mil escadas, postas com desembaraço.
por escadas vão aqui e além trepando, Mentres, tinham os aríetes duros
e mostram seu ânimo altivo e régio causado à muralha tanto fracasso
com olhar tão galhardo e tão audaz que era possível, em mais que uma parte,
que de aterrar o inimigo é capaz. socorrer o arrojado Brandimarte.
29 Como, no mar que pela tormenta freme, 31 Com o furor com que o Pó altaneiro
assalta a onda o temerário lenho, quebra barreiras e as margens inunda,
a qual pela popa ou pelo lado do leme pelos campos de Ocno9 abrindo carreiro,
tenta entrar, com grande raiva e empenho, e a terra fértil e a seara fecunda,
e o mestre, pálido, suspira e geme, e com seu redil o rebanho inteiro,
porque lhe falta coragem e engenho; e cães e pastores na água afunda,
vem por fim uma onda e tudo ocupa, e sobre o olmo o peixe nada agora,
e onde entrou, entra o mar em catadupa. onde voavam pássaros outrora;
CANTO XL 633
32 com tal furor a impetuosa gente, 33 Homens mortos havia em todo o lado;
pelos pontos em que o muro estava partido, e das feridas e chagas infinitas
entrou com armas e expressão ardente, formara-se um charco escuro e cerrado,
para destruir o povo combalido. pior que as ondas infernais malditas 10 •
Homicídio, rapina, mão nocente Do incêndio casa a casa ateado
ao sangue e aos bens, levam num aulido ardiam palácios, pátios, mesquitas.
à rica terra ruína daninha, Prantos, gritos, e nos peitos pancadas,
ela que fora de África a rainha. saem das casas vazias, saqueadas.
CANTO XL 635
44 Se escutardes, senhores, o que vos digo, 50 Farei que os outros Núbios, que diferente
à esquerda há urna ilha pequenina viver o Nilo separa e as leis21 ,
para onde, se desejardes, eu sigo, Árabes, Macróbios22 , estes em gente
até que passe o furor da marina. - e ouro ricos, os outros em corcéis,
Agrarnante concordou; e do perigo Persas e Caldeus (pois toda essa enchente
fugiu, alcançando a praia esquerdina, e muitos mais são meus súbditos fiéis),
que, para bem dos barqueiros, se agasalha farei com que à Núbia façam tal guerra
entre África e de Vulcano a fornalha 1 8 • que não se deterão na tua terra. -
45 Habitantes, a ilha não denota; 51 Julgou Agrarnante muito oportuna,
tem rnirtos e zirnbros pouco alteados, das do rei Gradasso, a segunda oferta;
e solidão deleitosa e remota e achou-se bafejado pela Fortuna,
para cervos, lebres, cabritos, veados; que o levara àquela ilha deserta;
fora os pescadores, a poucos é nota; mas de modo nenhum se coaduna,
em silvados e espinheiros podados, pensando ele assim readquirir Bizerta,
a secar põem redes orvalhadas, que por si em batalha se envolvesse,
e os peixes gozam águas sossegadas. pois julga que o seu honor ofendesse.
46 Encontraram ali um galeão 52 - Se alguém desafia Orlando, sou eu,
levado pelo temporal, destruído; pois é a mim que tal pugna convém,
de Sericana o rei, grande campeão, e a fazê-la estou pronto (respondeu);
de Arles ali o tinha conduzido 1 9 • e seja o que Deus quer, ou mal ou bem. -
Com modo reverente e digno, vão - Façamos (disse o outro) a modo meu,
abraçar-se os dois reis em chão escorrido; de outro modo que à ideia me vem:
que amigos eram: pouco tempo antes fazemos esta batalha em conjunto
dos muros de Paris eram sitiantes. contra Orlando, e ele um outro terá junto. -
47 Com desprazer Gradasso soube dele 53 - Se eu também justar já me é lisonjeiro
as desventuras que a fortuna tece; (disse Agrarnante), primeiro ou segundo
a cortesia a confortá-lo o impele, eu seja, pois em armas companheiro
e a sua própria pessoa lhe oferece; melhor que tu não há em todo o mundo. -
mas que ele fosse ao país infiel Disse Sobrino: - E eu, onde enfileiro?
do Egipto, por ajuda, o aborrece. Se velho me achais, digo-vos que abundo
- Que lá seja (disse) perigoso ir, mais em experiência; e, em perigo parelho,
o exemplo de Pompeu pode advertir2º . a par da força convém ter conselho. -
48 E corno disseste que, socorrido 54 De urna velhice válida e robusta
pelos Etíopes, de Senapo a gente, era Sobrino, e de famosa prova;
Astolfo África tinha apreendido, e diz que em vigor na idade vetusta
e à capital dado fogo imponente, se sente igual à que foi verde e nova.
e Orlando está com ele, que diminuído Sua observação foi tida por justa;
pouco antes estava de senso na mente, E sem demora um mensageiro se aprova
julgo que para tudo num bom remédio para que ao africano lido se envie,
pensei, para fazer-te sair do tédio. e de sua parte Orlando desafie;
49 Por teu amor me encarrego da empresa 55 era intimado a ir com número par
de lutar com o conde em simples duelo. de armados cavaleiros a Lipadusa23 •
Sei que contra mim não terá defesa, É urna ilha que pelo mesmo mar
nem que de ferro ou cobre houvesse o pêlo. que ali os cerca é também circunfusa.
Morto ele, os cristãos são fácil presa: Foi ele à vela e a remos sem parar
corno para lobo esfomeado um vitelo. (toda a presteza necessária usa)
Pensei também (para mim é coisa leve) até Bizerta; onde encontrou Orlando
de África expulsar os Núbios em breve. pelos seus saque e cativos separando.
CANTO XL 637
65 Toda a gente lhe diz que foi a parte 71 As naves dos pagãos que se salvaram
do rei Agramante, o que o desanima. de ser por fogo e naufrágio engolidas
Ruggier ama Agramante, e, que se aparte foram, menos as que em fuga escaparam,
dele por isto, erro não leve estima. para Marselha por Dudon conduzidas.
Sua gente é desfeita e se desparte Sete desses que em África reinaram,
(isto já antes eu disse), e de cima depois de ver suas gentes vencidas,
da roda volúvel passa para o fundo, com seus navios se tinham entregado,
como apraz àquela que gira o mundo30 • estando cada um choroso e calado.
66 Para si Ruggier cismava e reflectia n Dudone tinha para a praia descido,
se ficar deve ou seu senhor seguir. que Carlos queria avistar nesse dia;
O amor da sua dama o reprimia, com cativos e despojos urdido
não o deixando para África ir: com pompa e adorno um triunfo havia.
dava-lhe a volta, e para a oposta via Estavam os presos formados no lido
o mandava, ameaçando de o punir e em volta os Núbios cheios de alegria,
se o pacto e o juramento fosse baldo, fazendo de Dudone aclamação
que acordou com o paladim Rinaldo. que ressoava por toda a região.
67 Doutro lado, não menos o aguilhoa 73 Aproximou-se esperançado Ruggiero
o constante e persistente cuidado de que esta fosse a frota de Agramante;
que, se de Agramante em tal caso voa, picou o corcel para saber o vero,
é tido por cobarde e assustado. mas reconheceu, ao chegar adiante,
Se para ficar a causa acharão boa o rei dos Nasamões com desespero,
muitos, para muitos será caso errado. Baliverzo, Agricalte e Farurante,
Dirão outros: não se deve observar Manilardo, Clarindo e Rimedonte32 ,
o que injusto e ilícito é jurar. que choravam e tinham baixa a fronte.
68 Todo esse dia e a noite sequente 74 Ruggier, que os ama, não permitiria
sozinho esteve e no seguinte dia, que estivessem na miséria em que estão.
dando voltas à indecisa mente, Pedir, sabe, de nada serviria
se partir deve ou cá fazer estadia. sem usar força, de vazia mão.
Pelo seu senhor concluiu finalmente, Baixa a lança e aos guardas dá razia;
por isso a África regressaria. faz do valor a usual exibição:
Muito podia o conjugal amor, puxa da espada, e num breve momento
mas mais podia o dever e o honor. deixa por terra em redor mais de um cento.
69 Torna para Arles, onde encontrar espera 75 Dudone, ouvindo, o morticínio vê
frota que o leve aos africanos hortos: que faz Ruggier, porém não o conhece.
nem no mar nem no rio lenho enumera, V ê que os seus à fuga deram o pé
nem Sarracenos vê senão os mortos. com terror e aflição, em pranto e prece.
Quando partiu, tudo o que ali estivera De corcel, elmo e escudo se provê,
levou Agramante ou ardeu nos portos. pois a armadura já o guarnece;
Falido o plano, tomou o caminho salta a cavalo e faz-se dar a lança,
que a Marselha vai pelo lido marinho. não esquecendo que é paladim de França.
70 Em qualquer barco seguirá tal trilho, 76 Que de perto lhe saiam grita enquanto
quer o leve à força ou em harmonia. o cavalo esporeia dos dois lados.
Chegara do dinamarquês o filho3 1 , Ruggiero outros cem matara entretanto,
que a armada dos cativos trazia. dando grande esperança aos aprisionados;
Não se podia nem um grão de milho e ao ver aproximar-se Dudon santo
à água lançar, pois toda a cobria sozinho, ficando os outros apeados,
o enxame de naves amontoadas, calculou deles ser chefe e senhor,
de vencedores e vencidos carregadas. e ao encontro lhe foi com grande alor.
CANTO XL 639
77 Dudon primeiro avançara, mas, quando 80 Mas porque à amada sempre o mais pequeno
observou Ruggiero sem lança a vir, agravo pensava dar que podia,
a sua atirou longe, desdenhando e sabia que manchando o terreno
com tal vantagem o cavaleiro ferir. com o sangue deste a dama ofendia
Ruggier, no cortês acto reparando, (das casas de França instruído em pleno,
disse para si: - Não pode este mentir Armelina, mãe de Dudon, sabia
que não é um dos guerreiros esmerados que era de Beatrice irmã, à qual
que paladins de França são chamados. Bradamante tinha laço filial),
78 Vou tentar persuadi-lo a que revele 81 por tal, nunca de ponta lhe fez passe,
seu nome antes de lhe tocar no arnês. - e de lâmina raramente o feria.
E perguntou, e soube que era ele Protegia-se onde a maça acertasse,
Dudone, de Uggiero, o dinamarquês. ou aparando ou abrindo-lhe via.
Dudon Ruggier a igual coisa compele, Crê Turpin34 que Ruggier Dudon poupasse,
e do mesmo modo o achou cortês. pois Dudon morto em poucos golpes teria:
Depois à luta se desafiaram, nunca, em nenhuma vez de que teve azo,
e a vias de facto logo passaram. o atingiu senão com o lado raso3 5 •
79 Tinha Dudon, em ferro, aquela maça 82 Podia o raso usar, tal como o fio,
que em mil feitos lhe deu eterno honor; Ruggier da espada de folha potente;
com ela tem mostrado que é da raça e, como quem moscas mata, desferiu
daquele dinamarquês de alto valor. em Dudon com força golpe frequente:
A espada33 , que abre todo elmo e couraça, por vezes o olhar tão turvo sentiu
não conhecendo o mundo outra melhor, que pouco faltou para cair para a frente.
sacou Ruggier, e fez demonstração Mas, para ser a quem me ouve mais cortês,
a Dudon do seu valor em acção. o canto protelo para outra vez.
NOTAS
�
1 A vós [ . .] Egipto: seria como «ensinar o padre-nosso 5 Brigliadoro: fora-lhe oferecido por Ruggiero, que o
ao vigário». herdara de Mandricardo (cf. XXX:75:5).
2 Eu não vi: Ariosto recorda a batalha de Polesella (22 de 6
Rei dos trigueiros: rei do povo negro, Senapo (rei da
Dezembro de 1509), à qual não assistiu por ter sido envia Núbia).
do por Ippolito d'Este a Roma, pedir ajuda ao papa Júlio
II ( Grande Pastor). 7 Cágados [ . .] gatos: sistemas de defesa usados na
Antiguidade. Na formação em cágado, ou tartaruga (em
3
Leão de Ouro: Veneza. português, «testudo»), os soldados romanos avançavam
em bloco com os escudos ao alto sobre as cabeças, uni
4 A/fomin [ ..] Zerbinatto: Alfonso Troni era feitor de dos uns aos outros, formando como que uma carapaça
Alfonso I; Annibale Collenuccio e Piero Moro eram cor de tartaruga gigante. O gato era uma espécie de escudo
tesãos de Ippolito; Afranio era conde de Pavia; Alberto munido de um pequeno aríete capaz de abrir brechas em
Cesrarelli era um clérigo ao serviço de Ippolito; três portas e paredes.
Ariostos poderiam ser o primo Alfonso e os irmãos do
poeta, Alessandro e Cario; Ludovico da Bagno, homem 8 O que [ . .] destemido: Astolfo.
da corte, era padrinho de Virginio, filho de Ariosto;
9
Francesco Zerbinato era também cortesão e amigo pes Ocno: herói etrusco que fundou Félsina, accual Bolonha.
soal de Ariosto.
640 ORLANDO FURIOSO
10 23
Ondas [. . .} malditas: o Estige, rio dos Infernos. Lipadusa: ilha de Lampedusa, entre a costa da Tunísia
e Malta.
11
Pol vo: rei de Fez (cf. nota a XXXVIII:35).
24
Durindana [. . . } Gradasso: Durindana, abandonada
12
Duque do Leopardo: Astolfo. O leopardo é a sua insígnia. por Orlando na floresta quando enlouqueceu e dali leva
da por Mandricardo (cf. XXIV:57 ss.); por morte deste,
13
O filho de Pepino: Carlos Magno. ficou em poder de Gradasso (cf. XXX:74:7-8).
14 25
Norandino: rei de Damasco (cf. XVII:23). De A/monte: que fora de Almonte (cf. nota a I:28), e
que Brunello roubou a Orlando e deu a Agramante (no
15 Aníbal [. . .} sofreram: Aníbal, depois de derrotado Orlando Innamorato) .
pelos Romanos, refugiou-se junto de Prúsias, rei da
26
Bitinia, que se sentia receoso por lhe dar protecção. Com Brigliador [. . .} Troiano: Brigliadoro, abandonado por
medo de que ele o entregasse aos Romanos, Aníbal sui Orlando quando enlouqueceu, e agora em poder de
cidou-se. Jugurta, rei da Numídia derrotado por Roma, Agramante (filho de Troiano) .
exilou-se junto do sogro, Boco, rei da Mauritânia; foi
27
por este entregue aos Romanos e executado. Seu cunhado: Oliviero (cf. nota a XXXIX:30:5).
16 28
Ludovico [. . .} Ludovico: Ludovico Sforza, il Moro, foi traí junto [. . .} encerra: onde Bradamante as encerrou,
do pelos seus mercenários suíços (cf. nota a XXXIII:36:5-6), depois de derrotar Rodomonte (cf. XXXV:53).
que o entregaram ao rei de França, Luís XII (outro Ludovico).
29
Guerreiro de Claramonte: Rinaldo.
17
Perdesse [. . .} aliança: fossem expulsos de Itália os
30
Franceses, seus aliados, e nela ganhassem ascendente o Da roda [. . .} mundo: a sorte, inescapável, abandona-o.
papa Júlio II e os aliados Espanhóis (aliança) .
31
Do [. . . } filho: Dudone.
18
Entre [. . .} fornalha: entre a costa africana e a Sicília.
32
Talvez a pequena ilha de Linosa, pouco distante da de O rei [. . . } Rimedonte: o rei dos Nasamões é Puliano
Lampedusa (ambas italianas), ou uma ilha imaginária. (cf. nota a XIV:22:3); Baliverzo é um rei africano já refe
rido em XIV:24, XV:6 e XVI:75, sem identificação do seu
19 De Sericana [. . .} conduzido: Gradasso, querendo reino; Agricalte é o rei de Amónio (cf. nota a XIV:22:4);
regressar ao Oriente (cf. XXXIII95), ali naufragara. Farurante é rei de Maurina (cf. nota a XIV:21:4); Ma
nilardo é o rei de Norizia (cf. nota a XII:69:1); Clarindo é
20
O exemplo [. . .} advertir: Pompeu, o Magno, general e rei de Bolga (cf. XIV:24: 1); e Rimedonte é o rei de Getúlia
estadista romano (106-48 a. C.) que venceu Sertório e (cf. nota a XIV:23:7).
unificou a Península Ibérica; derrotado em Farsália (48
33
a. C.), refugiou-se no Egipto junto do rei Ptolomeu XIV, A espada: Balisarda.
que o mandou matar.
34 Turpin: cf. nota a XIII:40:2.
21
Os outros [. . .} leis: cf. XXXIII:101:3-4.
35
Com o lado raso: com a face plana da lâmina da espada.
22
Macróbios: povos etíopes, assim designados por goza
rem de vida longa.
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CANTO XLI
�
4 Ruggiero, que, em cada seu digno gesto, 10 Ou de frente ou de trás o vento expira,
de cortesia e alto valor mostrava e este para a frente e aquele para trás rechaça;
sempre sinal mui claro e manifesto, outro vem de través e o barco gira,
e sempre mais nobre se revelava, e cada um de naufrágio ameaça.
também mostrou ser com Dudon honesto, Aquele que está ao leme alto suspira
com o qual (como eu acima narrava) e a face mostra temerosa e baça;
dissimulara quanto era bem forte, e grita em vão, e em vão com a mão acena
por sentir relutância em dar-lhe morte. ou para girar ou para baixar a antena2 •
5 Dudon bem vira e tivera por certo 1 1 Mas de pouco o aceno ou o grito vale:
que Ruggier matá-lo não tinha querido; perde-se a visão na chuvosa noite.
estava exausto e de forças tão deserto A voz, sem se ouvir, pelo ar sobe e bale,
que defender-se não teria podido. pelo ar que feria com maior açoite
Ao entender e ver de modo aberto dos navegantes o grito geral
que o respeita e na luta é comedido, e o estrondo das ondas, sem que se acoite
valendo menos em força e vigor, na proa ou na popa, ou em qualquer banda,
não será em cortesia inferior. um som que se ouça da voz que comanda.
6 - Por Deus (disse), senhor, a paz reclamo 1 2 Da cólera do vento que se fende
que façamos; a vitória que eu queria nas enxárcias, saem horríveis sons;
minha, não o será; já me proclamo de espessos relampos o ar se acende,
vencido, e presa de tua cortesia. - trovões estalam em assustadores tons.
Ruggier respondeu: - Tanto a paz eu amo Corre-se ao timão, aos remos se atende;
como tu; mas na condição seria vão, por uso, ao ofício em que são bons:
que os sete reis que aqui tens amarrados um cansa-se a soltar, outro a amarrar,
deixasses que livres me fossem dados. - outro água vaza, e torna o mar ao mar.
7 E indicou-lhe os sete reis que eu disse 13 Chega estridindo a horrível procela
que atados estavam, rosto saturnino; que o súbito furor de bóreas tinge;
e acrescentou que não o impedisse ah, como a vela a árvore flagela
de tomar de África com eles destino. e o mar se eleva, e quase o céu atinge.
Deixou que com eles, livres, seguisse, Quebram-se os remos; desfortuna aquela:
concedendo inda mais, o paladino: tanto a impetuosa raiva a constringe
com sua licença o lenho tomou que a proa vira, e à mercê da onda
que escolheu, e para África zarpou. deixa o costado, sem que nada o esconda.
s Zarpou o lenho e hasteou a vela, 14 Toda sob água está a esquerda banda,
e deu-se ao pérfido vento em possança, e está para se virar para cima o fundo.
o qual de início a enfunada tela Aos gritos, asilo a Deus se demanda,
guiou, dando ao timoneiro confiança. pois certos estão de descer ao profundo.
Foge o lido e nunca mais se revela, Um mal após outro a procela manda:
parecendo que sem lido o mar avança. mal passa o primeiro, vem o segundo.
Ao escurecer do dia, tornou o vento O lenho em muitos pontos se deslaça,
clara a sua perfídia e traimento. e a onda inimiga para dentro passa.
9 Logo da popa para o lado fugiu, 15 Move cruel e assustador assalto
depois para a proa, mas deu outro arranco de todo o lado o tempestuoso inverno3 •
girando a nave, e os arrais confundiu; Às vezes o mar vêem vir tão alto
sopra atrás, de frente, e também do flanco. que parece chegar ao céu superno.
Onda alterosa e sinistra surgiu: Outras, pela onda acima dão tal salto
mugindo vai pelo mar o grege branco. que crêem olhar em baixo o Inferno.
De tantas mortes em receio estão, Nenhuma ou pouca esperança há que os conforte,
quantas as águas que feri-los vão. e está presente a inevitável morte.
CANTO XLI 64 3
�·�·.
quer, com o freio no dorso estendido,
com um moto a dizer: Até que venha 1°.
Em veste de ouro e bem digna se empenha.
646 ORLANDO FURIOSO
31 Fez voto Brandimarte que no dia 37 Dum lado e outro, até à nova luz,
da batalha, por amor a seu pai de guarda estão os servidores armados.
e por seu honor, não se adornaria, Brandimarte, à noite, os passos conduz
e só sobreveste negra usar vai. aonde estão os mouros alojados;
Fez Fiordiligi o melhor que sabia, com ordem do chefe, à conversa induz
e um belo debrum nela sobressai. o rei africano; amigos chegados
Fê-lo com ricas gemas manifesto, foram: Brandimarte para França avante
de negro e discreto tecido o resto. veio sob a bandeira de Agramante 1 3 •
32 Fez a dama com suas mãos as sobre 38 Após as saudações e o mão-na-mão,
vestes, que pediam armas mais finas 1 1 , muitos motivos, como amigo, disse
com que a couraça o cavaleiro cobre, o fiel cavaleiro ao rei pagão,
e ao corcel a garupa, o peito e as crinas. para que a não batalhar o persuadisse;
Mas desde que iniciou esta obra nobre, que as cidades todas suas serão
até chegar às últimas faxinas, que entre Gibraltar e o Nilo cobice;
e mesmo após, nunca sinal de riso de bom grado Orlando lhas oferecia,
se lhe viu, nem de alegria no viso. querendo ele crer no Filho de Maria.
33 No peito sempre um temor, um tormento, 39 - Porque vos amei e amo até aqui,
de perder seu Brandimarte tão querido. este conselho (dizia) vos dou;
Tinha-o já visto em lugares mais de um cento quando eu, senhor, para mim o elegi,
em batalhas perigosas envolvido; é porque, crede, ser bom ele provou.
mas nunca, como ora, a tinha o espavento Em Cristo achei Deus, de Maomé descri;
gelado no sangue e empalidecido; desejo pôr-vos na via em que estou:
e esta novidade, de ter temor, à via da salvação eu vos chamo,
no peito lhe incute duplo langor. senhor, e a todos aqueles que eu amo.
34 Com armas e todo o arnês equipados, 40 Aí está vosso bem; e não perfilho
os cavaleiros as velas dão aos ventos. que outra diferente decisão vos valha;
São Astolfo e Sansonetto encarregados e, menos que qualquer, que com o filho
de capitanear os fiéis armemos. de Milon 1 4 vos envolvais em batalha;
Fiordiligi, com temores arraigados, que o lucro de vencer, o empecilho
enchendo o céu de votos e lamentos, da tão grande perda todo o esfrangalha 1 5 •
enquanto pode acompanha com a vista Vencendo vós, pouco adquirir podeis;
a vela, que dali já muito dista. mas não perdereis pouco, se perdeis.
35 Sansonetto e Astolfo com árduo jeito 41 Se Orlando matardes, e a nós, trazidos
a afastaram da onda facunda, aqui para morrer ou vencer com ele,
ao palácio a levando, onde no leito eu não vejo como é que isso os perdidos
a deixaram prostrada e tremebunda. domínios a readquirir vos impele.
De cavaleiros o belo grupo eleito Vós não deveis esperar ver invertidos
suave brisa entretanto secunda. os factos, por nossa morte e daquele,
Chegou o lenho à ilha sem atrito, pois Carlos de homens presto se socorre
onde se iria ver tanto conflito. para aqui pôr, até à última torre. -
36 Descendo à praia o cavaleiro de Anglante, 42 Dizia assim Brandimarte, e quisera
o cunhado Oliviero e Brandimarte, dizer outras coisas que se propôs;
com seu pavilhão o lado levante mas foi com voz irada e face fera
ocuparam, e talvez não sem arte 1 2 • pelo outro interrompido, que interpôs:
No mesmo dia chegou Agramante, - É temeridade e loucura vera
o qual acampou na oposta parte; a tua, e de qualquer um que se pôs
mas, como avançada já ia a hora, jamais a dar conselhos de bandeja,
a liça adiaram para a outra aurora. sem que chamado a dar conselhos seja.
CANTO XLI 647
43 E que o conselho que me dás advenha 45 Agora podes ir; que se melhor
do bem que me quiseste e inda queres ora, aqui não estiveres amanhã armado
não julgo que crer em tal me convenha, do que hoje me pareces ser orador,
se aqui com Orlando te vejo agora. estará Orlando mal acompanhado. -
Creio é que, porque em seu poder te tenha Às últimas palavras deu alor
o infernal dragão que as almas devora, o peito aceso de Agramante irado.
queres contigo para o sofrimento eterno Regressou um e outro e repousou-se;
poder todos arrastar, para o Inferno. por fim do mar novo dia elevou-se.
44 Que eu vença ou perca, ou ao meu reino antigo 46 Ao clarear da nova alva armados
eu volte ou fique sem o seu comando, estavam todos, e num instante a cavalo.
já em sua mente Deus pensou consigo, Poucos ritos entre eles são usados:
e nem eu, nem tu, nem o sabe Orlando. demora não houve, nem intervalo,
Haja o que houver, não poderá acto imigo já ferros e lanças estão abaixados.
de um rei inclinar-me ao temor nefando. Mas, senhor, faria eu grande resvalo
Se souber que morro, quero antes morto se, por tanto destes contar, deixasse
ficar do que ao meu sangue fazer torto. Ruggier tanto no mar que se afogasse.
648 ORLANDO FURIOSO
47 O jovem pés e mãos desembaraça, 53 que, quando chegou perto: - Saulo, Saulo
e vencendo vai a onda profunda. (gritou) , por que persegues minha fé?
O vento e a tempestade o ameaça, (como dissera o Senhor a São Paulo,
mas sem que a consciência lhe confunda. para que o salvífico golpe lhe dê 1 6) .
Teme que Cristo ora vingança faça: O mar já passaste. E o frete do gaulo 17?
se para baptizar-se na água munda Outrem defraudaste de tal mercê.
por sua incúria a ocasião foi falsa, Vês que Deus te alcança (longa mão tem),
ora o baptize nesta amara e salsa. quando mais longe pensas que ele vem 1 8 • -
48 À mente lhe voltou que o prometeu, 54 E prosseguiu aquele santo eremita,
e tantas vezes à sua dama o fez; que Deus em visão avisado havia
e o que jurara quando se envolveu na noite antes que, com ajuda bendita,
contra Rinaldo, e nada satisfez. Ruggier àquele escolho chegar devia.
A Deus que aqui o não fizesse réu Sua vida passada lhe foi dita,
pediu repeso, quatro vezes, dez; e a futura, e a morte à felonia;
e prometeu com coração e fé filhos, netos e cada descendente
ser cristão, se em terra pusesse pé; lhe revelara Deus inteiramente.
49 e não mais pegar em espada nem lança 55 Continuou o eremita admoestando
contra os fiéis, para ajudar sarracenos; Ruggier de início, e por fim confortou-o.
e que voltava de imediato a França, Por sob o suave jugo ir protelando
e a Carlos ia render honores plenos; pôr o pescoço'9, primeiro censurou-o,
e a Bradamante não dar falsa esperança, e o que houvera a fazer de livre mando
mas fim honesto aos seus amores amenos. quando Cristo lhe pediu, e chamou-o;
Milagre houve: ao terminar aquele voto só o fizera ao sentir-se apertado
sentiu mais forças e mais leve o moto. e ao ver-se pelo seu chicote ameaçado.
50 A força cresce, e o ânimo é constante; 56 Mas confortou-o que não nega o Céu
as ondas Ruggiero corta e constringe: Cristo, tarde ou cedo, a quem lho indaga;
ondas que vão em sequência incessante, do Evangelho os operários encareceu,
e, enquanto uma o ergue, a outra o restringe. que receberam todos igual paga20 •
Subindo e descendo, assim segue avante Com caridade e zelo procedeu
com grande esforço, e ao fim a areia atinge; a instruí-lo, e sobre a fé divaga,
do lado em que é suavemente inclinado caminhando para a cela em passo quedo,
o escolho, sai do mar todo encharcado. que era escavada no meio do penedo.
5 1 Ficaram os outros no mar austero,
a todos o mar austero venceu.
Ao solitário escolho foi Ruggiero,
como à bondade divina aprazeu.
Quando se achou no monte inculto e fero
salvo do mar, novo temor nasceu:
de exilado ficar em tal confim,
e de ali morrer à míngua por fim.
52 Mas de peito indómito, e perseverante
em sofrer o que pelo Céu lhe é prescrito,
pela pedra dura os firmes pés para diante
moveu, com intento de ao cimo ir fito.
Cem passos ainda não dera avante
e viu, pelos anos e abstinência aflito,
homem que de eremita hábito e signo
tinha, de muito respeito e honor digno;
CANTO XLI 649
57 Em cima existe, da devota cela, 63 Entre o Adige e o Brenta, aos pés dos montes25
uma pequena igreja que responde de que o troiano Antenor gostou tanto,
a oriente2 1 , mui cómoda e bela; com doces nascentes, sulfúreas fontes,
dela um bosque desce até ao mar, onde terras lavradas e prados de encanto,
há loureiros e zimbros e murtela22 , que ao Ida preferiu tais horizontes,
e palmeiras que dão frutos avonde; e ao suspirado Ascânio e ao caro Xanto26 ,
é irrigado por límpida fonte, irá dar à luz na floresta agreste
que a sussurrar se despenha pelo monte. que pouco distante é do frígio Ateste27 •
58 Há já quarenta anos que se implanta 64 E por beleza e valor favorecido,
o frade eremita naquele rochedo; seu filho também Ruggier será dito,
para levar vida solitária e santa, e por tais troianos reconhecido
lugar escolheu o Salvador com dedo. de seu sangue, para seu senhor predito;
Dos frutos que dá uma ou outra planta e de Carlos, que ajudar terá ido
e de água pura a vida leva ledo, contra os Lombardos inda jovenzito,
que saudável, robusta e sem afano domínio da região terá de vez,
já atingira o octogésimo ano. e o honroso título de marquês.
59 Na sua cela o velho acende a lareira 65 E porque em latim dirá Carlos: - Este
e a mesa põe com variegados frutos, senhor aqui -, quando fizer o dom,
nos quais Ruggiero restaura a canseira, no século futuro chamado Este
com vestes e cabelos já enxutos. será o lugar, com augúrio bom;
Ali ouviu, de cómoda maneira, e assim perderá o nome de Ateste
da fé grandes mistérios e estatutos; as duas primeiras letras do som.
e baptizado foi na pura fonte Fizera-lhe Deus também predição,
ao outro dia, pelo velho, no monte. de Ruggier, da futura vingação:
60 Pese embora o lugar, contente estava 66 que numa visão à fiel consorte
Ruggier: que o servo de Deus prometia aparecerá, pouco antes de ser dia28 ;
que para o lugar que ele mais desejava e lhe contará quem lhe deu a morte,
dentro de alguns dias o mandaria. mostrando-lhe o lugar em que jazia;
De muita coisa entretanto falava: · onde ela após, com a cunhada forte,
ou ao reino de Deus se referia, a ferro e fogo Ponthieu destruía;
ou coisas à sua vida pertencentes, e aos de Mogúncia não dá menos danos
ou do seu sangue para as futuras gentes. seu filho Ruggier, quando tiver anos.
61 Tinha o Senhor, que tudo escuta e vê, 67 Não de Azzi, e de Alberti e de Obizzi só
revelado ao santíssimo eremita lhe falara, e da sua estirpe bela,
que Ruggier, desde o dia em que houve a fé, de Borso, Leonello, Niccolo,
sete anos de vida, não mais, tem escrita; Ercole, Alfonso, Ippolito e Isabella29 •
pois sua dama matou, mas ele se crê Mas tem na língua o santo velho um nó,
ter sido (que a morte lhe foi prescrita), e nem tudo o que sabe lhe revela:
Pinabel23 ; e Bertolagi24 igualmente. narra a Ruggier o que narrar convém,
Matam-no os de Mogúncia, ímpia gente. e, aquilo que deve reter, retém.
62 Será tal traimento tão oculto 68 Neste interim Orlando e Brandimarte
que busca para dele saber será vã; e o marquês Olivier, com o ferro lasso30 ,
pois no próprio local será sepulto vão defrontar o sarraceno Marte
onde o matará a gente malsã; (que assim se pode nomear Gradasso)
por isso, tarde o vingarão do insulto e os outros dois que na oposta parte
sua mulher e também sua irmã. moveram os cavalos mais que a passo;
Com o ventre prenhe, por longa via digo eu, rei Agramante e rei Sobrino:
sua fiel mulher o buscaria. ribomba ao galope o lido marino.
650 ORLANDO FURIOSO
NOTAS
�
1 19
Ícaro [. ..] dano: Ícaro, filho de Ébalo, rei da Lacónia, Por [. .. } pescoço: por ter protelado a sujeição à fé cris
deu a beber aos seus ceifeiros um vinho vivificante, o que tã (suave jugo) .
reverteu em seu dano, pois os ceifeiros embriagados, jul
20
gando-se envenenados, mataram-no. Do Evangelho [. ..} paga: a parábola dos trabalhadores
que receberam paga igual para tempo de trabalho desi
2 Antena: mastro, vela. gual (Evangelho de S. Mateus, XX: 1 - 1 6).
3 21
Inverno: tempestade. Igreja [. . . } oriente: as antigas igrejas tinham o altar
virado para o Oriente.
4
A Falerina [. ..} Brune/lo: cf. nota a VIl:76: 1 .
22
Murtela: murta.
5
Monte de Carena: cf. nota a VII:67:5.
23
Sua dama [. ..} Pinabel: Ruggiero é considerado cul
6
Não a conhecendo: Orlando desconhece que se trata pado da morte de Pinabello, que na verdade foi morto
das armas de Heitor, que Ruggiero herdou de Man por Bradamante (cf. XXIl:97).
dricardo quando o matou (cf. nota a XIV:31:5-6, e cf.
24
XXX:74:6-8). Berto/agi: cf. XXVI: 1 3.
7 25
Invioldvel e fadado: cf. XII:49: 1 -3. Entre [. ..} montes: os montes Euganei, que ficam
entre aqueles dois rios do Nordeste de Itália.
8
Qµadrado: insígnia de Orlando (cf. nota a XV111:
26
147:1-4). Ida [. ..} Xanto: o monte Ida e os rios Ascânio e Xanto,
junto a Tróia.
9
O alto Babel: a torre de Babel, símbolo da soberba
27
pagã vencida pelo Céu. Frlgio Ateste: castelo de Ateste, edificado, segundo a
lenda, pelo troiano (ftlgio) Antenor. Ateste é o nome pri
10
A té que venha: até que a presa se aproxime. mitivo de Este.
11
Pediam [. ..}finas: as armas que Brandirnarte e os compa 28
Pouco [. . . } dia: hora em que os sonhos nos parecem
nheiros iam usar nesta expedição eram de qualidade muito mats reais.
inferior à das suas próprias, de que estavam desprovidos.
29
Azzi [. ..} Isabel/a: alguns dos descendentes de Ruggiero
12
Não sem arte: para que o Sol não lhes batesse nos e Bradamante (cf. III:22 ss.) .
olhos, durante o combate.
30
Lasso: baixo.
13
Brandimarte [. ..} Agramante: no Innamorato,
31
Boiardo não diz que Brandimarte veio para França com Absorto: sem dar acordo.
o exército de Agramante, mas sim com Orlando, que já
32
o convertera ao cristianismo. Gorjal: parte da armadura que protegia o pescoço.
14
Filho de Milon: Orlando (cf. nota a I:57: 1). 33
Encanto: as armas de Gradasso eram fadadas (cf.
XXXIIl:82:5-8).
15
O lucro [. ..} esfrangalha: o risco (empecilho) de perder
34
a vida não é justificado pelo lucro que que a possível No meio [. ..} liça: entre os dois pares que lutam, i.e.,
vitória dará. Oliviero/Agramante e Gradasso/Orlando.
16 35
Saulo [. ..} dê: o grito que na estrada de Damasco, O aço [. ..} Heitor: Oliviero envergava a armadura
acompanhado por um raio, surpreendeu Saulo de Tarso, deixada por Ruggiero no navio abandonado (cf. 28-29),
cidadão romano que perseguia os cristãos. Convertido, a qual pertencera a Heitor.
tornou-se Apóstolo de Cristo (S. Paulo) .
36
E o mais [. .. } feito: cf. 83:7-8.
17
Gaulo: antiga embarcação fenícia.
18
O mar [. ..} vem: Ruggiero é advertido por não ter pago
a Deus o devido tributo (frete do gaulo) para fazer a sua tra
vessia. Tal como a Saulo, a mão de Deus alcançou-o.
-fJ:lffe
CANTO XLII
�
3 Invicto Alfonso, igual ira acendeu 7 Qual nómada pastor que relanceia,
vossa gente o dia em que pedra grossa rastejando em fuga, a cruel serpente
vos atingiu a fronte, e a ofendeu, que o seu filho, que brincava na areia,
pensando estar perdida a vida vossa3 ; lhe matou com seu venenoso dente,
tal fúria a tomou que não defendeu e o bastão com raiva e fúria maneia,
vosso inimigo dique, muro ou fossa: tal a espada, que as outras mais pungente,
todos mortos foram, sem que um escapasse maneia em ira o cavaleiro de Anglante;
para que tal notícia a outrem levasse. quem primeiro encontrou foi Agramante,
4 O ver-vos cair provocou a dor s que, sangrando e sem ferro defensivo,
que aos vossos deu furor e crueldade. com meio escudo e o elmo deslaçado,
Estivésseis vós em pé, talvez menor e feridas que a descrever eu me esquivo,
das espadas tinha sido a autoridade. tinha às mãos de Brandimarte escapado,
Bastar-vos-ia a Bastia ao dispor como a garra de açor gavião mal vivo,
voltar a ter, e em menor quantidade solto atrás dele por caçador estouvado.
de horas que em dias vos fora tirada, Chegou Orlando, e o golpe deu sem custo
por gente de Córdova e de Granada. onde a cabeça confina com o busto.
5 Talvez Deus vingador haja deixado 9 Solto o elmo e desarmado o pescoço,
que em tal função estivésseis impedido, rente o cortou como se fosse um junco.
para que o excesso cruel e celerado Caiu a última vez, um destroço,
que antes tinham feito fosse punido; o torço do rei africano, trunco6 •
assim que em mão tiveram, derrotado, Correu o espírito ao infernal fosso,
o infeliz Vestidel, lasso e ferido, pescando-o Caronte com dedo adunco.
sem armas, por cem espadas foi inciso4 Mas Orlando sobre ele não se detém:
pelo povo em maioria circunciso5 • com Balisarda o sericano vem.
6 Mas porque eu quero concluir, vos digo 10 Conforme viu Gradasso de Agramante
que nenhuma outra ira se despeja cair o tronco do crânio diviso,
como, senhor, parente, afecto antigo o que nunca sentira ora é flagrante:
que à nossa frente injuriar se veja. o coração tremeu, turvou-se o viso;
Normal é pois que, por tão caro amigo, e, ao ver-lhe perto o cavaleiro de Anglante,
de Orlando o peito pela ira se reja, pareceu, a seu mal aceitar, deciso.
se pelo horrível golpe desferido Para se defender gesto nem esboçou
por Gradasso o vê no chão falecido. quando o mortal golpe sobre ele tombou.
CANTO XLII 657
32 com tal acordo, Rinaldo então teria 33 Embora a Malagigi tal pedido
tirado Malagigi da prisão. de Rinaldo importuno lhe parecesse,
Fazê-lo ora espontaneamente queria, que o seu amor muito tinha crescido
quando vantagem não há nem razão. indício manifesto lhe fornece.
E diz-lhe que recordar-se devia Vão não será o rogo a si expandido,
do mal que lhe fez naquela ocasião; e nas águas do olvido fenece
pois por aos seus pedidos ficar mouco qualquer lembrança da injúria velha;
para deixá-lo ali morrer faltou pouco 1 5 • para lhe dar socorro já se aparelha.
660 ORLANDO FURIOSO
46 Quando muitas milhas já tinha andado 50 Ao peito o monstro a serpente lhe induz,
o paladim pelo bosque, aventuroso, e sob a armadura o coração gela;
de vilas e de aldeias distanciado, depois pela viseira lha introduz,
onde era o sítio mais áspero e perigoso, e deixa-a errar pelo rosto e pela goela.
viu de repente todo o ar turvado Rinaldo mais para longe se conduz,
e o Sol escondido pelo céu nebuloso, e esporeia o cavalo e dá-lhe trela;
e, saindo duma caverna escura, de coxa a Fúria infernal não tem nada:
um estranho monstro em feminil figura. de um salto está na garupa montada.
47 Sem pálpebras, olhos mil na cabeça 51 De través, a direito ou em torção,
tem, que não fecha, e que durma não creio; consigo tem sempre a maldita peste;
tem de orelhas, como de olhos, remessa; de se livrar dela não vê feição,
por crinas, tem de serpentes floreio. embora o corcel a escoucear se aleste.
Das trevas diabólicas se arremessa Como folha lhe freme o coração:
à luz o ser assustador e feio. não que mais que antes a cobra o moleste,
Por cauda, tem fera e maior serpente, mas tal repulsa lhe inspira e fobia
que se enrosca no peito atrás e à frente. que grita, geme, e vê-la morta queria.
48 O que a Rinaldo em mil e mil empresas 52 Por áspero caminho, pela via pior
nunca lhe aconteceu, ora acontece: corre, busca o mais intricado bosco,
conforme o monstro vê que para as torpezas o vale onde é mais espinhoso, o pendor
se prepara, e em seu caminho aparece, que é mais íngreme, onde o ar é mais fosco,
um medo, que talvez com tais asperezas na esperança de assim causar dissabor
ninguém sentiu, as veias lhe entorpece; ao monstro horrível, peçonhento, tosco;
mas o arrojo usual simula e finge, mau fim tivera ele, se não chegasse
e com trépida mão a espada cinge. ali em breve quem o ajudasse.
49 O monstro a modo se ajeita ao assalto
que permite ver que é mestre de guerra;
vibra a serpente venenosa ao alto,
depois contra Rinaldo se desferra;
daqui, dali, sobre ele vem de um salto.
Rinaldo contra ela ataca e erra:
golpes dá, a direito e de través,
mas nenhum à fera causa revés.
662 ORLANDO FURIOSO
75 Tem sua própria porta cada arcada, 81 Cada uma seus pés firmes havia
e entre a porta e cada uma há um arco: em duas estátuas baixas que pisava,
o tamanho é par, mas em mui variada e a boca destas aberta dizia
decoração não foi o mestre parco. que o canto e a harmonia as deleitava;
Por cada arco é fácil a escalada: parecia que em tal gesto transparecia
besta carregada avança como em charco. que todo o seu acto e estudo exaltava
Um outro arco encima cada escala; as damas que sobre os ombros sustêm,
e por cada um se entra numa sala. se fossem quem de pedra cara têm.
76 Cada arco de cima é saliente, 82 As figuras baixas tinham na mão
para que cobertura a porta conforte; compridas e muito vastas escrituras,
em colunas cada um está assente, dando com louvores clara indicação
umas de bronze, outras de pedra forte. dos nomes das mais ilustres figuras;
Tempo precisarei para que comente ao lado, dos próprios nomes menção
os ornados aposentos da corte; podia ver-se, em letras não obscuras.
e, além do que se vê, no subterrâneo Rinaldo viu, à luz dos candeeiros,
muito cómodo havia consentâneo. uma a uma as damas e os cavaleiros.
77 Por altas colunas, capitéis de ouro, 83 A primeira que sob os olhos teve,
os preciosos tectos eram sustidos; com louvor Lucrezia Borgia epitoma,
os mármores tão raros que dão decoro, cuja beleza e virtude pôr deve
por mão douta em várias formas esculpidos, antes da antiga23 a sua pátria, Roma.
pinturas, relevos, e mais tesouro O par que a sobre si suster se atreve
(muitos estão de noite aos olhos escondidos) dama em que tal excelência e honra assoma,
que de dois reis riquezas dão indício o escrito diz: Antonio Tebaldeo,
não bastaram para tão rico edifício. Ercole Strozza24 : um Lino e um Orfeu25 •
78 Mais que outros ornamentos ricos, belos 84 Estátua não menos prazenteira e bela
(muitos se viam na formosa estância), ao lado se vê, e a inscrição diz:
uma fonte havia que em vários elos - Esta é a filha de Ercole, Isabella26 ,
espalhava fresca água em abundância. por quem Ferrara será mais feliz,
Tinham posto ali a mesa os donzelas, muito mais, por ali ter nascido ela,
que estava ao meio por igual distância; que por outro bem que a boa e fautriz
avistava, e era vista igualmente, e benigna Fortuna dar-lhe deve,
por quatro portas da casa imponente. passando os anos no seu curso leve. -
79 Feita por mestre diligente e douto 85 Os dois que mostram ter desejo ardente
era a fonte, com muita e subtil obra, que a glória dela sempre se mencione,
como uma lójia ou pavilhão, que em outo Gian Iacobi se chamam igualmente,
faces diviso em volta se desdobra. um Calandra, e o outro Bardelone27 •
Céu de ouro, que era na parte de soto No terço e quarto ponto em que indolente
pintado a esmalte, no alto lhe sobra; fio de água aquele pavilhão abandone,
e são oito estátuas de mármore branco duas damas que pátria, estirpe e honor
que esse céu sustêm com o braço manco. a par têm, e beleza e valor.
80 Na mão direita o corno de Amalteia22 86 Elissabetta28 uma, e Leonora29
tinha esculpido o mestre daquele castro, se chama a outra; e seria, por quanto
de onde a água se derrama e gorjeia, narrava a inscrição, delas agora
vindo cair em vaso de alabastro; tão orgulhosa a cidade de Manto30
semblante de alta mulher alardeia, que de Vergílio, que tanto a honora,
com grande arte feito, cada pilastra. como destas não se ufanará tanto.
Cada rosto e cada veste é diferente, Tinha aquela, aos pés do traje selecto,
mas graça e beleza tendo igualmente. Pietro Bembo e Iacobo Sadoletto3 1 •
CANTO XLII 665
NOTAS
�
1 12
Elmo eleito: quando Pátroclo foi morro, usava as armas Frente ao { . .} repousa: diance de seu irmão Ottaviano
de Aquiles, que este lhe emprestara. Fregoso, que foi doge em Génova e se empenhou na paz
e prosperidade da cidade.
2 Quem { . .} arrastou: Aquiles, depois de matar Heitor,
13
dilacerou-lhe o corpo, arrastando-o, preso ao seu carro. O ordculo da gruta: c[ III:7 ss.
3 Pedra { . .} vossa: facto que ocorreu junto às muralhas 14 O encanto: o encanto das fomes de oposto efeito (cf. I:78).
de Baseia, em Janeiro de 1512.
15
Grande espanto { . .} pouco: nas oitavas 32 e 33,
4 Assim que { . .} inciso: o comandante da fortaleza de Malagigi exprime o seu espanto por Rinaldo agora amar
Baseia (Vestidello Pagano) foi morto pelos assaltantes tanto Angelica, quando no passado (O. lnnamorato) a
espanhóis depois de ter sido feito prisioneiro (cf. III:54, situação era inversa (c( i:75:7-8, e 77:7-8). Angelica pro
e respectiva nota).. metera a Malagigi livrá-lo da prisão se ele conseguisse
persuadir Rinaldo a amá-la, mas Rinaldo mostrara-se
5 Povo { . .} circunciso: muçulmanos que integravam o surdo aos regos e às razões do primo.
exército espanhol.
16
O corcel {..} galhardo: infringindo as regras da cava
6 Trunco: truncado. laria, Gradasse faltara à palavra dada a Rinaldo e apode
rara-se de Baiardo (c( XXXIIl:93-95).
7
O cunhada: Orlando.
17
Pobre infante: modesto soldado de infantaria (Medoro).
8
Facto: facto de armas.
18
Jugo { . .} cimeiro: insígnia pintada no penacho do elmo
9 Federigo Pulgoso: Federico Fregoso, almirante geno (cimeiro).
vês, deu caça aos piratas no Mediterrâneo.
19
Tobias: israelita a quem foi restituída a vista pelo
1 0 Berberia: c[ nota a XVlil:157:5. próprio filho, mediante instruções do arcanjo S. Rafael.
11 20
Fu!gosa estirpe: família de Federigo Pulgoso. Serpentino: mármore com listas sinuosas.
668 ORLANDO FURIOSO
21 Pórfi 38
ro: mármore esverdeado ou purpúreo, salpicado Anfriso: rio da Tessália, junto ao qual Apolo pasto
de diversas cores. reou os bois do rei Admeto.
22 39
Corno de Ama/teia: ou Corno da Abundância (cor A terra [. . .] vaso: Pesaro, onde o lsauro (hoje, Foglia)
nucópia). lança as suas águas no Adriático (maior vaso).
23 40
Antes da antiga: à frente da beleza e virtude da anti Mauro: Mauritânia (equivale aqui a Ocidente).
ga heroína Lucrécia (cf. nota a XXIX:28)
41
Mais [. . .] caso: mais fama virá a Pesaro pelo nome
24
Antonio [...] Strozza (Scrozzi): Antonio Tebaldeo, desse poeta, do que pelo facto de nessa cidade os Gálios
poeta, foi tutor de Isabella d'Este e secretário de Lucrezia terem pesado o ouro pago pelos Romanos como tributo.
Borgia; Ercole Strozzi, poeta da corte de Ferrara, era Que esse facto tenha dado o nome à cidade (pesar. .. auro,
amigo de Ariosto (já referido em XXXVIl:8, e respectiva v. 5) será fantasia de Ariosco, pois não se comprova.
nota).
42
Guido Postumo[...} doa: Cuido Silvestri, por alcunha il
25
Lino [. .. ] Orfeu: um poeta e um músico de excelên Postumo, natural de Pesaro, foi poeta e médico na corte de
cia, na mitologia grega. Ferrara. Por isso tem dupla coroa (v. 7): uma atribuída por
Palas, deusa da ciência, outra por Apolo, deus da poesia.
26
Isabel/a: Isabella d'Este, cujo encómio Ariosco já fize
43
ra (cf. XIII:59-61). Diana: filha de Sigismondo d'Este, prima de Alfonso,
Ippolico e lsabella.
27
Gian [. . .] Bardelone: Gian lacopo Calandra e lacopo
44
Bardelone, poetas da corte de Mântua; o primeiro foi Celio Calcagnin: poeta e professor da Universidade
secretário de lsabella. de Ferrara.
28 Bissa 45
betta: Elisabetta Gonzaga, irmã do marquês Monese: rei dos Partos (séc. I a. C.).
Francesco II Gonzaga e mulher de Guidobaldo I de
46
Montefeltro, duque de Urbino. Juba: Juba II, rei da Mauritânia (séc. I a. C.).
29 47
Leonora: sobrinha de Elisabetta, casou com ·Marco [. . .] monte: jogando com o nome de Marco
Francesco Maria della Rovere, que herdou o ducado de Cavallo, poeta de Ancona, Ariosco diz que ele fará surgir
Urbino de seu tio Guidobaldo 1. na sua terra uma fonte de poesia tão fecunda como a
fonte que Pégaso, o cavalo alado, fez brotar do monte
30
Manto: Vergílio (Eneida, X:198 ss.) atribui à ninfa Hélicon com o casco.
Manto o nome da cidade de Mântua (cf. xiii:59:7-8, e
48
respecciva nota). Beatrice [. . .] cativa: cf. XIIl:62-63, e respectivas
notas.
3 1 Pietro [...} Sadokto: Pietro Bembo (cf. nora a XXXVII:8);
lacopo Sadoleto: homem de letras, foi secretário de Leão X 49 Um [. ..] Coreggio: Nicolo da Correggio, poeta da
e mais tarde cardeal. corte de Alfonso d'Esce.
32 50
Baldassare Castiglione: cf. nota a XXXVII:8. Timoteo: Timoteo Bendedei, poeta de Ferrara.
33
Muzio Arelio: Giovanni Muzzarelli, poeta de Mântua. 51 Rio [...] recolheu: o Pó (cf. IIl:34:3-6 e respecúvas notas).
34
Então: no tempo de Carlos Magno. 52
Cipriota estrela: Vénus (deusa venerada em Chipre).
35 53
Lucrezia Bentivoglia: filha natural de Ercole I d'Esce, Em alabastro (93:3) [. . .] escondidos (95:8): tudo indi
casou com Annibale Bentivoglio, da família reinante em ca que a dama representada na última estátua é
Bolonha (cf. XXXIIl:37 e 39). Alessandra Benucci, e que o cavalheiro solitário que lhe
serve de pedestal é Ariosto. A indumentária (alvo véu,
36
Camil: Camillo Paleotti, poeta bolonhês. negra veste) é o traje de viuvez da época.
37 54
Reno e FeLsina: Félsina é o antigo nome de Bolonha, Cimeira da Cornualha: cimeira era o distintivo usado
perto da qual corre o rio Reno. sobre o elmo. Este jogo de palavras quer dizer algo como
«distintivo dos cornudos».
--ê$,
CANTO XLIII
�
4 Que direi da bela dama que puna 10 Por que não te conheci há dez anos,
seu virtuoso e belo e fiel amante, para me poder aconselhar contigo
e à sua servidão, mais que coluna, antes de começarem meus afanos
indiferente fique, firme e constante? e prantos, de que cegar corro perigo?
Depois, vem a Avareza e se lhe aduna Mas da cena vou levantar-te os panos,
de tal modo que, parece, a encante: para meu mal veres e te doeres comigo;
num dia, sem amor (mas que surpresa!), vou contar-te o princípio e o argumento
de um velho, feio, monstro a torna presa. deste meu incomparável tormento.
5 Não é sem motivo que tal censuro: li Viste a cidade que perto domina,
quem quiser, entenda; eu estou entendido. em torno da qual um rio faz um lago;
Nem é a propósito que transcuro, depois estende-se e neste Pó declina,
nem que a matéria de meu canto olvido: e dá-lhe Benaco o primeiro afago' .
ao que disse adaptar mais não procuro Foi feita a cidade quando em ruína
que ao que direi, o que aqui elucido. caiu o muro do agenóreo drago2 •
Agora, voltemos ao paladino, Ali nasci, de estirpe muito nobre,
que o vinho quase provou repentino. mas que em tecto e património era pobre.
6 Dizia eu que ele quis pensar um pouco, 1 2 Se não tive da Fortuna ternura,
antes que aos lábios o vaso levasse. pois não me deu, quando nasci, riqueza,
Pensou, e disse: - Seria bem louco foi compensada a falta pela Natura,
quem o que não quer achar procurasse. que mais que a qualquer um me deu beleza.
Se ela é mulher, que fraca é, evoco. Damas, donzelas, pela minha figura,
Que a crença que tenho não se devasse: mais que uma na juventude vi presa;
se tal crença até hoje útil tem sido, que à figura juntei modos macios;
que ganho se à prova for submetido? bem que a mim dar não devesse elogios.
7 Pode dar pouco agrado e muito enfado, 13 Havia na cidade um homem culto,
pois tentar Deus provoca o seu desdém. em todo o assunto o mais possível douto,
Não sei se nisto sou sábio ou estouvado, que ao expirar o seu último singulto
mas mais não quero saber do que convém. contava os anos por cento e vinte outo.
Que este vinho daqui seja levado: Viveu sempre só a vida de adulto,
sede não tenho, e ter não quero também; menos a extrema; pois, de Amor devoto,
tal certeza foi por Deus proibida teve a dinheiro uma matrona bela,
mais que ao primeiro pai a Árvore da Vida. e, secretamente, uma filha dela.
s Pois como Adão quando a maçã provou, 14 E para impedir que sua filha igual
a qual de viva voz Deus lhe interdisse, à mãe fosse, a qual por certa valia
da satisfação no pranto tombou vendeu a castidade, que, só, vale
e para sempre foi depois infelice, mais que todo o ouro que o mundo havia,
se o homem de sua mulher tentou retirou-a do convívio social;
tudo saber, o que ela fez e disse, e, onde mais solitário lugar via,
da alegria cai em prantos e ais, este palácio, amplo e rico tanto,
dos quais não se livrará nunca mais. - os demos mandou fazer por encanto.
9 Tal dizendo, o bom Rinaldo entretanto 15 Velhas mulheres castas fez nutrir
afastava o odiado recipiente; a filha, aqui, que em beleza cresceu;
e viu brotar um grande rio de pranto não podia outro homem ver, ou ouvir
dos olhos do senhor lá residente, mencionar nessa idade, estabeleceu.
que disse depois, serenando um tanto: E, para que houvesse exemplos a seguir,
- Maldito quem, sendo tão convincente, toda a pudica dama, que ofereceu
a prova me fez fazer! De tal sorte contra o ilícito amor resistência,
que me tirou minha doce consorte. mandou esculpir ou pintar-lhe a aparência:
CANTO XLIII 671
16 não só aquelas da virtude amigas 22 Não porque fosse mui gentil e bela,
que ao mundo antigo deram tanto adorno, nem por eu saber que tanto me amasse,
das quais a fama, pelas histórias antigas, nem pelos presentes, e as promessas que ela
não deixa de ao mundo fazer retorno; tantas me fez, ou porque muito instasse
mas, do futuro, castas raparigas conseguiu jamais que uma só parcela,
que de Itália serão belo contorno para lhe dar, ao primeiro amor tirasse;
mandou retratar, com sua nobre fronte, por saber ser minha mulher fiel,
como as oito que aqui vês nesta fonte. era meu desejo a ela revel.
17 E, quando a filha o velho achou madura 23 Toda a esperança, a confiança e a certeza
a ponto dum homem colher-lhe os frutos, na constância de minha mulher tida
por minha desgraça ou minha ventura far-me-ia desprezar quanta beleza
eleito fui, por mostrar mais estatutos. a filha de Leda4 haja tido em vida,
Os campos que à muralha dão moldura, ou quanta sabedoria e riqueza
tanto os piscatórios como os enxutos, foi oferecida ao pastor do monte lda5 •
tudo em volta, vinte e mais uma milha, Mas meu desprezo não bastou, por fim,
entregou-mos como dote da filha. para conseguir afastá-la de mim.
1s Ela era bela e educada tanto 24 Fora do palácio um dia encontrou-me
que melhor desejar não se podia. a maga, que se chamava Melissa;
De pespontos e de bordados, quanto ali, com todo o à-vontade falou-me,
Palas3 soubesse, ela também sabia. minha paz logrando pôr enfermiça;
Vendo-a a andar, ouvir-lhe o som e o canto: com o ferrão do ciúme atiçou-me,
coisa celeste e não mortal parecia. tornando a fé, antes firme, mortiça.
E às artes liberais tanto atendeu Começa por louvar minha intenção
que quase, ou como o pai, disso entendeu. de a quem me é fiel não fazer traição.
19 Ao grande engenho e à não menor beleza, 25 «Que te é fiel, não podes garantir
que até às pedras teria agradado, enquanto disso uma prova não vês.
aliava-se um amor, uma macieza, Se ela firme for, podendo cair,
que só de o recordar fico enlevado. que te é fiel e pudica então crês.
Outro prazer não tinha nem fraqueza Mas se sem ti não a deixares sair,
que estar comigo sempre, em todo o lado. se de outros homens ver não lhe dás vez,
Muito tempo vivemos sem querela; como ousas afirmar que não claudica,
depois tivemos: fui culpado dela. e me queres garantir que ela é pudica?
20 Morto o meu sogro passados cinco anos 26 Afasta-te de casa, e tua ida
de eu me submeter ao nó conjugal, faz saber por aldeias e cidades;
começaram sem demora os afanos que tu foste, e ela em casa está retida,
e inda os sofro; conto o caso real. aos pretendentes dá facilidades.
Enquanto a de quem teço louvores lhanos Se com rogos, dons, não for convencida
me envolvia nas asas de amor tal, a cometer conjugais falsidades,
uma nobre mulher desta região nem faça, crendo que não se revele,
concebeu por mim ardente paixão. então poderás dizer que é fiel».
21 Sabia encantos e feitiçaria, 27 Com tais falas e idênticas não cessa
tanto quanto disso sabe uma maga: a maga, até me dar disposição
fazia a noite clara, escuro o dia, de querer ver a fidelidade expressa
detinha o Sol, tornava a Terra vaga. de minha dama, e pô-la em provação.
Mas meu desejo fazer não podia «Mas suponhamos (contraponho) que essa
com que lhe sanasse a amorosa chaga, seja de molde a não dar dedução:
pois remédio não lhe podia dar como posso saber com evidência
sem à minha dama injúria causar. se é digna de louvor ou penitência?»
CANTO XLIII 67 3
28 Melissa disse: «Vou dar-te uma taça 34 Ela tantas vezes o repeliu
que possui virtude rara e arcana; que por fim de tentá-la ele deixou;
a qual, para o irmão saber da trapaça mas a beleza dela Amor esculpiu
que Genevra lhe fez, criou Morgana6 • na sua memória, e não apagou.
Bebe dela o de mulher de boa raça, Tanto Melissa tentou e insistiu
mas não consegue o que a tiver magana: que a tomar a forma dele me levou;
quando crê que para a boca o vinho corre, mudou-me (como foi não sei dizê-lo)
todo se espalha e pelo peito lhe escorre. o rosto, a fala, os olhos e o cabelo.
29 Antes da partida, farás a prova, 35 Tendo com minha mulher simulado
e, pelo que julgo, beberás com jeito; que tinha partido, indo para o Levante,
pois creio que ainda é fiel na alcova no daquele pretendente transformado
tua mulher: mas tu verás o efeito. o andar, a voz, o hábito e o semblante,
Porém, se ao regressar experiência nova regresso, tendo Melissa a meu lado,
fizeres, já não respondo pelo teu peito: que como pagem era figurante;
se o não molhares, e o vinho houveres bebido, de ricas gemas leva a bolsa cheia,
és de todos o mais feliz marido». como vindas da Índia ou Eritreia.
3 0 A oferta aceito; o vaso ela me oferece; 36 Sendo do meu palácio bem ciente,
faço a prova, e sucede o já esperado; entro seguro, e Melissa comigo;
agora, pudica e boa aparece encontro a dama tão independente
minha mulher, como era desejado. que não tem pagem nem aia consigo.
Diz Melissa: «Agora, desaparece; Meus rogos exprimo, e com o impudente
um mês ou dois está dela separado; estímulo de mal fazer a instigo:
quando voltares, de novo o vaso apanhas; os rubis; as esmeraldas, os diamantes,
verás se bebes, ou se o peito banhas». que movem os ânimos mais constantes.
3 1 Muito duro para mim era partir; 37 E digo-lhe que é pequena esta oferta
não porque de sua fé duvidasse, à vista de quanto esperar deveria;
mas por dois dias eu não resistir, recordo que é comodidade certa
uma hora até, que ela sem mim ficasse. a que, estando ausente o marido, havia.
Disse Melissa: «Posso conseguir Lembro-lhe que há muito tempo encoberta
que vejas de outro modo o desenlace. tinha esta paixão, como ela sabia;
Vou mudar teu falar e vestimentas, e que amá-la com tal dedicação
e com rosto alheio aqui te apresentas». me torna digno de compensação.
3 2 Perto uma cidade, senhor, defende 38 Ao início a senhora perturbou-se,
o Pó, que um corno e outro corno contorna7 ; fez-se vermelha, ouvir não pretendeu;
cuja jurisdição daqui se estende mas as gemas, como se fogo fosse,
aonde o mar foge do lido e torna. luzindo, o coração lhe amoleceu;
Perde em antiguidade, mas contende e respondeu com fala breve e doce
com as outras na riqueza e no que a orna. aquilo que de lembrar morro eu:
Os que sobraram de Tróia a fundaram, que me comprazia, desde que cresse
que do flagelo de Átila escaparam8 • que outra pessoa jamais o soubesse.
33 Encurta e solta a esta terra a brida 39 Foi como se envenenado cutelo
um jovem cavaleiro, rico e belo, minha alma trespassasse, ou férreo espeto:
que um dia, atrás de um falcão em corrida, pelos ossos e veias correu-me um gelo,
se encontrou no interior do meu castelo; a voz, de sair, na fauce houve veto.
viu a dama, e à primeira investida Erguendo, então, de seu encanto o velo,
agradou-lhe: levou no peito um elo; Melissa devolveu-me o meu aspecto.
não poucas tentativas depois fez Imagina de que cor se tornou,
para aos seus desejos a dobrar de vez. quando em tal erro ante mim se encontrou.
674 ORLANDO FURIOSO
48 Se por cobiça tua dama, faminta, 54 Pelo corno destro o barco tomou lastro,
a fazer-te traição foi induzida, deixando avançar para Veneza o manco;
não te espantes: nem primeira é nem quinta passou Bondeno 1 0 , e já o escuro astro
mulher a ser em tal luta vencida; a oriente era menos carranco,
levada é mente ainda mais distinta, pois, esvaziando de flores o canastro,
por menor preço, a coisa mais infida. tornava-o a Aurora rubro e branco.
Por ouro, quantos homens traiçoeiros Nisto, aparecendo ao longe de Tealdo
foram de seus senhores e companheiros? os fortes' 1 , a cabeça ergueu Rinaldo.
49 Atacando com armas tão brutais, 55 - Ó cidade afortunada (gritava),
não podias querer ver nela defesa. que Malagigi, de meu pai sobrinho,
Ao ouro, nem mármores nem pedras tais estrelas fixas e errantes contemplava
nem o duro aço oferecem firmeza. e, forçando algum espírito adivinho,
Creio que a tentá-la erraste tu mais nos séculos futuros, me informava
do que ela, que depressa ficou presa. (fazendo com ele eu este caminho),
Se ela igualmente te houvesse tentado, a glória tua tanto crescerá
não sei se tinhas mais força mostrado. - que Itália de ti bem se orgulhará. -
50 Terminou Rinaldo e ergueu-se da mensa 56 Tal disse e, embora em apressada rota,
ao mesmo tempo, e pediu para dormir;
. .
no navio que parecia que voava
quer repousar um pouco, e depois pensa, correndo o rei dos rios, na ilhota 1 2
antes do dia uma hora ou duas, ir. mais propínqua à cidade o curso trava;
Tem pouco tempo, e esse pouco dispensa embora erma fosse então e remota,
com conta e medida, sem o gualdir. alegrou-se de a ver, e festejava,
O senhor disse que a seu bel-prazer saudando-a, pois bem sabia quanto ela
para dormir se podia recolher, seria, anos depois, ornada e bela.
51 que preparado estava o quarto e o leito; 57 Da outra vez que correu esta via,
mas, se quisesse aceitar opinião, disse Malagigi, com quem viera,
podia dormir toda a noite a eito, que setecentas vezes giraria
e ao mesmo tempo avançar um quinhão. unida com carneiro a quarta esfera 1 3 ,
- Um barco (disse) mando pôr-te a jeito, e esta ilha a mais amena seria
e nele, voando, sem perturbação de quantas em mar, lago ou rio houvera;
toda a noite a dormir quero que vás, assim, depois de vê-la, não se ouve
e assim uma jornada avançarás. - já quem a pátria de Nausícaa 14 louve.
52 A Rinaldo a proposta comprazeu, 58 Disse-lhe que em belas casas suplanta
agradecendo ao castelão cortês; aquela que a Tibério foi tão cara 1 5 ;
junto ao rio sem demora compareceu, das Hespérides ofuscam cada planta 1 6
onde os barqueiros estavam, por sua vez. as que ali haverá, cada qual mais rara;
Muito cómodo em repouso jazeu, toda a espécie de animais, mais que quanta
enquanto o barco o curso do rio fez; nos pastos ou redis Circe 1 7 guardara;
movido a seis remos, ligeiro e suave que Vénus, com as Graças e Cupido
pelo rio deslizou, como pelo ar ave. ali viveria, e não em Chipre ou Cnido 18 ;
53 Logo que pôde encostar a cabeça, 59 e seria, pela diligência e esmero
o cavaleiro de França adormentou-se; de quem ao saber e poder unida
tendo dado ordens, logo que apareça tinha a vontade, de dique e severo
Ferrara, para que despertado fosse. muro em redor a cidade munida,
Melara na margem esquerda atravessa, estando contra o mundo, de modo austero,
na direita Sermide ultrapassou-se; sem de ajuda precisar, defendida;
por Figarolo e Stellata o navio de Ercole filho e pai de Ercole será 1 9
passa, e baixa os cornos o Pó bravio9 • o senhor que tudo isso ali fará.
676 ORLANDO FURIOSO
78 Vê um vilão que com grande bastão 82 Por essa altura a minha pátria há-de
em volta de umas moitas se afadiga. mandar um orador ao Padre Santo,
Adonio ali se detém, e a razão que vai ficar com Sua Santidade
de tanto trabalho quer que lhe diga. algum tempo, mas não foi dito quanto.
Que dentro do mato, disse o vilão, Dita a sorte ao juiz a actividade:
tinha visto serpente muito antiga, foi tal coisa para ele causa de pranto.
mais longa e grossa que ela em vida sua Muito pediu, rogou, deu, prometeu,
não vira, e que não verá insinua; para não partir; forçado, enfim, cedeu.
79 que não havia de dali partir 83 Não cria menos cruel e malvado
sem a ter encontrado e deixar morta. ter de suportar tão terrível dor,
Quando Adonio ouviu tal coisa referir, que se lhe tivessem aberto o lado
é com pouca paciência que o suporta. para de seu coração com mão dispor.
Sempre soía as serpentes nutrir, De ciúme pálido, e preocupado
pois por insígnia no sangue as transporta, com a mulher enquanto em viagem for,
que origem teve sua antiga gente roga, com modo que acha conveniente,
nuns dentes semeados de serpente. que fiel seja enquanto está ausente,
80 Disse e fez com o vilão de maneira s4 dizendo-lhe que à mulher nem beleza,
que, seu mau grado, abandonou a empresa; nem nobreza ou grande fortuna basta
não deu à serpente morte certeira, para que cresça seu honor em alteza,
nem foi achada, ofendida nem presa. se em palavras e obras não for casta;
Depois vai Adonio aonde se inteira e que a virtude muito mais se preza
não ser conhecida sua pobreza; se, sendo tentada, não se desgasta,
resiste com desconforto e afano, tendo agora ocasião, com esta ausência,
longe dali, até ao sétimo ano. de fazer da pudicícia experiência.
81 Mas nem pela distância nem pela estreiteza 85 Com tais palavras e outras mais procura
do viver, que não deixa a ideia vaga, persuadi-la a que lhe seja fiel.
cessa Amor, que contra ele tem mão tesa, Queixa-se ela da partida tão dura,
de o coração lhe ferir com fogo e chaga. com que lágrimas, meu Deus, com que fel!
Por fim, força-o a voltar à beleza E mais depressa o Sol escurecer, lhe jura,
que o olhar, por rever, tanto divaga. se verá do que ela ser tão cruel
Barbudo e alquebrado e maltrapilho, que o atraiçoe; preferia ter ensejo
para à sua terra voltar, fez-se ao trilho. de morrer a ter jamais tal desejo.
CANTO XLIII 679
86 Embora no que ela prometa e jure 92 Pede-lhe que não faça, enquanto ausente
faça fé, tranquilizando-se um tanto, ele se encontrar, na cidade demora,
não se contém sem que ouvir mais procure, mas na casa de campo, onde agilmente
encontrando mais motivos para pranto. poderá viver, de outros convívios fora.
Um amigo pretende que lhe augure Assim dizia porque a humilde gente,
o futuro, pois tinha esse encanto, que no rebanho e nos campos labora,
e de feitiços e mágica arte não cria que da mulher o pudor
ou sabia tudo ou a maior parte. contaminasse, ou lhe instigasse error.
87 Muito rogando, deu-lhe a empreitada 93 Enquanto com seus braços inda enlaça
de ver se sua mulher, chamada Argia, ao receoso marido o colo Argia,
enquanto dele se encontrasse apartada, e o rosto de lágrimas lhe repassa
fiel e casta ou o oposto seria. com o rio que dos olhos lhe saía,
Cedeu aos rogos: dos astros fixada entristece-a que culpada ele a faça,
a posição, do céu estudos faria. parecendo que infiel ser já soía;
Deixa-o Anselmo obrar, e, um dia após, e porque a causa da suspeita é
pela resposta a ele regressa veloz. que ele não tenha na sua fé fé.
88 O astrólogo em silêncio se quedava, 94 Longo será eu ir aqui lembrando
para com sua fala o doutor não magoar, tudo o que então disseram, a preceito.
e desculpas para calar encontrava. «Que honor guardes (disse enfim) te demando»:
Mas, vendo que ele quer saber seu azar, despedindo-se, partiu com efeito;
disse por fim que ela o atraiçoava e o coração sente em verdade, quando
mal pusesse o pé fora do limiar, gira o cavalo, sair-lhe do peito.
não por beleza ou rogos induzida, Ela segue-o, enquanto ele se descobre,
mas por ganho e por lucro corrompida. com olhar que de pranto a face cobre.
89 Ao temor e dúvida que o domina 95 Mentres, Adonio, abatido e mesquinho,
juntando a ameaça que os astros dão, e (como eu disse) pálido e barbudo,
se as dores de amor conheces, imagina para à pátria voltar tomara caminho,
em que estado estava o seu coração. esperando ter para os conhecidos escudo29 •
E a desdita que mais o amofina Chega ao lago, da cidade vizinho,
e à mente lhe dá mais consumição onde acudira pelo bicho sanhudo
é saber que, vencida pela avarícia, que era assediado, no matagal forte,
por um preço vendia a pudicícia. pelo vilão que lhe queria dar morte.
90 Com a intenção de arranjar mezinha 96 Chegando ali mesmo ao romper do dia,
para que em tão grave erro ela não caísse inda no céu brilhava alguma estrela,
(a míngua a roubar altares encaminha em bela e arcana veste aparecia,
às vezes o homem por gulodice), ao seu encontro vindo, uma donzela
tudo o que em jóias e dinheiros tinha de senhoril feição que, todavia,
(e bastante era) que era seu lhe disse; pagem ou aia não tinha com ela.
as rendas e lucros de que dispõe, Com amável expressão o acolheu,
e o que tem no mundo, nas mãos lhe põe. e a língua depois a tais falas deu:
91 «Com liberdade (disse) que em qualquer 97 «Bem que não me conheças, cavalheiro,
necessidade, e não só, gozes, gastes, sou parente, e estou-te em obrigação:
ou deles faças o que te aprouver, parente, pois de Cadmo30 altaneiro
que os consumas, dês, vendas ou desgastes; descende de nós dois a geração.
contas deles não quero quando vier, Sou a fada Manto, e o seixo primeiro
desde que do que ora és não te afastes: lancei para fundar esta povoação;
desde que, tal te deixo, te manténs, e, como decerto haverás ouvido,
mesmo que casa já não tenha ou bens». de meu nome dei a Mântua apelido.
680 ORLANDO FURIOSO
98 Das fadas uma sou; e para que tal 1 04 E porque sei que no antigo nó
condição tu saibas o que comporte, em que Amor te envolveu inda estás preso,
nascemos de modo a de a todo o mal quero ensinar-te o modo de teres pró,
estarmos sujeitas, com excepção da morte. e aliviares de teu desejo o peso.
Mas temos, com esse grau de imortal, Estando o marido ora longe, e ela só,
não menos má que a morte, uma outra sorte: ao meu conselho não darás desprezo;
cada uma, ao sétimo dia, certa vais ver a dama que morada tem
está que à forma de bicha se converta. no campo, e eu irei contigo também».
99 Ver com feia pele o corpo composto, 105 E prosseguiu, dizendo de que guisa
e serpentear, é coisa repulsiva; quer que ele à sua amada se apresente;
maior que outro no mundo é tal desgosto, digo, como vestir, como precisa
cada uma queixa-se de estar viva. mente fale, como peça e a tente;
E obrigação te devo (faço gosto e diz-lhe a forma em que se caracteriza;
em dizer-te também de onde deriva), pois, fora o dia em que faz de serpente,
pois nesse dia, sendo esse animal, nos outros pode mudar-se segundo
em perigo estamos de infinito mal. lhe apetece, em quanta forma há no mundo.
1 00 Não é odiado outro animal na Terra, 1 06 Vestiu-o de romeiro pobrezinho,
como a cobra; e, tendo dela a caraça, que vai de porta em porta a pedir esmola;
sofremos de todos ultraje e guerra; fez-se ela um cão, mas mais pequenininho
quem nos vê, bate-nos e dá-nos caça. do que no mundo haja símil bestiola:
Quem buraco não acha, e não se enterra, de pêlo longo, mais branco que arminho,
sente o peso do braço que a ameaça. gracioso, e de habilidades com escola.
Melhor poder morrer que estropiadas Assim mudados, tomaram a via
e mutiladas ficar, das pancadas. que levava a casa da bela Argia;
101 Estou-te obrigada porque uma ocasião, 107 e, dos trabalhadores nas cabanas,
passando por estas sombras amenas, em primeiro lugar o jovem parou;
tu livraste-me das mãos dum vilão começou a tocar as suas canas,
que muita maçada me dera e penas. e o cão, ao som, pôs-se em pé e dançou.
Sem ti não tinha tido salvação Chegam à patroa vozes e hosanas
sem cabeça e costas de chagas plenas, de tal modo que por ver se interessou.
e sem que ficasse derreada e torta, Mandou chamar o romeiro à sua corte,
embora não pudesse ficar morta; pois assim queria do doutor a sorte.
1 02 pois nesses dias que pelo chão o peito 1 08 E ali Adonio o cão com artimanhas
levamos, e em cobra a pele se reforça, comandou, e o cão sempre obedeceu,
o céu, outras vezes3 1 a nós sujeito, fazia danças das nossas, e estranhas,
nega obediência e priva-nos de força. com passos e jeitos a modo seu;
Noutras vezes o Sol tem-nos respeito: e fez com modos humanos façanhas,
à nossa voz detém-se e a luz escorça, seguindo os comandos que ele lhe deu
gira a imóvel Terra e desaquartela, com tanta atenção que quem o admira
inflama-se o gelo, e o fogo congela. não pestaneja e quase não respira.
103 Pois eu estou aqui para render mercê 1 09 Grande maravilha e enorme desejo
do benefício feito nessa hora. teve a dama de ter o cão gentil;
Nenhuma graça pedem que eu não dê, pela ama, ao peregrino tem ensejo
quando da pele de cobra estiver fora. de por ele oferecer preço não vil.
Três vezes o que herdaste do pai, crê «Mais tesouro houveras do que é almejo
que é a riqueza que te dou agora; da ambiciosa avidez feminil
e pobre não hás-de ser novamente: (respondeu ele), suficiente não é
que quanto mais gastares, mais aumente. para comprar sequer de meu cão um pé».
CANTO XLIII 681
110 E, para mostrar que falou com decoro, 1 14 A outra aparição que Adonio fez
quer que a ama com ele para um lado passe, foi do doutor a ruína e a morte.
dizendo ao cão que uma moeda de ouro Fazia surgir moedas dez a dez,
para ela, por cortesia, deitasse. pérolas e gemas de toda a sorte;
Sacudiu-se o cão, e viu-se o tesouro. e o coração soberbo liquefez,
Disse Adonio à ama que o apanhasse, que a opor-se ainda foi menos forte,
juntando: «Achas que um preço se prevê, quando soube que quem tinha diante,
pelo qual tão belo e útil cão eu dê? e a queria, era o cavaleiro seu amante.
1 1 1 Qualquer que seja a coisa que eu demando, 1 1 s Os conselhos de sua ama tão puta,
não me deixa ficar de mão vazia; os rogos do amante e a sua aparência,
pérolas, anéis e, de vez em quando, o ver que riqueza dali desfruta,
com bela e cara veste me obsequia. do infeliz doutor a longa ausência,
Diz à dama que o tem sob seu comando, o crer que ninguém o erro lhe imputa
não por ouro, que ouro o não pagaria; fazem ao casto voto tal violência
mas, se uma noite comigo ela passa, que ela o cão aceita, e em seu abono
que o cão tenha, e dele o que quiser faça». ao amador se dá com abandono.
1 1 2 Tal disse, e duma gema fez tiragem, 1 1 6 Longamente Adonio o fruto colheu
que lhe deu, para que à patroa a apresente. de sua bela dama, à qual a fada
Acha a ama que há nisso mais vantagem amor induziu; e afecto lhe deu
que pelo cão vinte ducados avente. tal que foi a estar com ela obrigada.
Regressa à dama, e leva-lhe a mensagem; Todos os signos o Sol percorreu
e aconselha-a depois: que se contente antes de ao juiz ser licença dada;
de comprar o belo cão, pois comprá-lo voltou por fim, cheio de suspeição,
pode por preço que não custa dá-lo. lembrando do astrólogo a previsão.
1 13 De início a relutância Argia intima; 1 1 7 Já na pátria, o primeiro protocolo
em parte, porque a fé quebrar lhe dói, fez ao astrólogo, a quem perguntou
em parte, porque as palavras dele estima se lhe fizera a dama engano e dolo,
que alguma falta de verdade obstrói. ou se fidelidade lhe guardou.
Lembra a ama, e dentro se rói e lima, Localizou ele o sítio do pólo,
que tanto bem suceder raro sói: e aos planetas todos lugar marcou;
fez que adiasse a ocasião fautriz, depois respondeu que quanto temera,
pois sem tantos olhos o cão ver quis32 • conforme ele previra, lhe acontecera:
682 ORLANDO FURIOSO
118 que, por mui ricas prendas seduzida, 1 24 Foi buscá-la o servo ao campestre abrigo,
a dar-se a outro ela se persuadira. para fazer dela o que o senhor mandou.
Isto ao doutor fez no peito tal ferida Pegando no cão para o levar consigo,
como lança ou pique não conseguira. montou a cavalo e a via encetou.
Para mais certeza ter, vai de seguida Tinha-a o cão avisado do perigo,
(mas crê que o bruxo a verdade profira) mas, a seu conselho, ir não evitou;
procurar a ama e chama-a de parte, estava tudo bem planeado sem susto,
e usa, para o vero saber, toda a arte. e auxílio haveria no momento justo.
1 1 9 Com grandes cercos vai-a pondo à prova, 125 Esquivara-se o servo à via primeira;
tentando aqui e ali encontrar pista; e por outras de total soledade
de início nada dela desencova, foi ter, a propósito, a uma ribeira
por muita diligência com que insista, que Apenino desce e este rio invade;
que ela, para quem tal coisa não é nova, selva havia ali negra e altaneira,
negava, mantendo imóvel a vista; distante de aldeias e da cidade.
estando bem instruída, mais de um mês Pareceu-lhe o lugar bem ermo e disposto
estar entre o certo e o duvidoso o fez. para o cruel acto que lhe foi imposto.
1 20 Devera o duvidoso ter por bom, 126 Puxou da espada e à patroa disse
pensando na dor que vinha do certo! o que o seu senhor ordenado havia;
Após ter tentado, com rogo e dom, por isso, antes de morrer, que pedisse
que a ama a verdade tivesse aberto, a Deus perdão de culpa mal-sadia.
não tocou tecla em que se ouvisse som Não sei dizer como ela se encobrisse:
senão falso; sendo ele um homem experto, quando o servo pensou que feri-la ia,
pôs-se à espera que surgisse discórdia; já não a viu, e, tendo procurado
que, onde há mulheres, há rixas e mixórdia. tudo em redor, sentiu que foi logrado.
121 E tal como esperara lhe sobreveio; 1 27 Torna ao patrão com vergonha e afronta,
ao primeiro amuo que entre elas nasceu, com ar atónito e rosto estarrecido,
sem ele a procurar, a ama veio e depois o caso insólito conta,
contar-lhe tudo, e nada lhe escondeu. sem saber como tinha acontecido.
Indizível do coração o anseio, Que ao seu serviço tinha a mulher pronta
e o desespero que a mente sofreu a fada Manto, ignorava o marido;
do pobre juiz, que, de tão mofino, pois a ama, que o resto lhe narrara,
pouco faltou para que perdesse o tino; tal facto, não sei porquê, ocultara.
1 22 ao fim se dispôs, pela ira retinto: 1 28 Não sabe o que fazer: a ofensa grave
morrer, mas primeiro matar a mulher; não vingara, e pela dor ainda geme.
possa dos dois sangues um ferro tinto O que era uma palha, ora é uma trave,
dela a nódoa, dele a dor remover. tanto lhe pesa e o coração lhe preme.
À cidade torna, com o instinto O erro oculto ora não tem entrave;
movido pelo irado e cego querer; que em pouco tempo se propale, teme.
dali, à quinta um de confiança manda, Podia o primeiro esconder-se; o segundo33
e aquilo que deve fazer comanda. em breve será noto em todo o mundo.
1 23 Comanda o servo para à mulher, Argia, 1 29 Bem sabe que após a má intenção
voltar, ao campo; e em seu nome lhe diga mostrada pelo infeliz contra essa,
que uma febre tão forte o assedia para não voltar à sua sujeição,
que de não o encontrar vivo periga; a um poderoso ela se endereça;
por isso, sem esperar por mais companhia, o qual a guardará, com derisão
com ele venha, se acaso é sua amiga e ignomínia do marido expressa;
(virá, sabe; desculpas não levanta); em seu poder, talvez, algum a tem,
e no caminho lhe corte a garganta. que adúltero é e alcoviteiro também.
CANTO XLIII 683
1 30 Assim, para a tal obstar, à pressa manda 1 32 Mandara à fada fazer entretanto
cartas e arautos à sua procura; a bela Argia, com nobre decoro,
na Lombardia aqui e além demanda de alabastro um palácio por encanto,
faz, e nenhuma cidade descura. todo forrado, dentro e fora, a ouro.
Vai depois em pessoa a toda a banda, Língua dizer não pode, ou mente, quanto
e aonde não vai tem espião que apura; primor fora tinha, dentro tesouro.
mas não consegue achar a menor pista O do meu senhor, que ontem percebeste
que com qualquer nova dela o assista. ser tão belo, é um tugúrio ao pé deste.
131 Por fim chama o servo a quem foi imposta 1 33 Ricas tapeçarias e cortinas,
a cruel obra que não teve efeito, urdidas em mui variados padrões,
e, onde fora da vista lhe foi posta ornavam os estábulos e as cantinas
Argia, quer que lhe mostre a preceito; como ornavam salas, quartos, balcões;
se a uma moita de dia ali se encosta, em ouro e prata diversas terrinas;
e à noite a um tecto, quer ver o jeito. gemas esculpidas dão forma a jarrões,
Leva-o o servo aonde encontrar crê pratos, taças, em rubro, verde e azul,
tal selva, e um grande palácio vê. e, em ouro e seda, tecidos de tule.
684 ORLANDO FURIOSO
1 34 O juiz, como atrás eu vos dizia, 1 36 Mais ninguém vendo, Anselmo se compele
encontrou este palácio pela frente, a perguntar de quem é a distinta
quando nem uma cabana julgaria casa; para tal, aproxima-se dele,
lá achar, mas só o bosque silente. que como seu o palácio lhe pinta.
Pelo grande espanto que por tal sentia, Tem o juiz a certeza que aquele
creu que se lhe tinha turvado a mente: esteja dele a troçar e que lhe minta;
pensou que estivesse ébrio ou que sonhasse, mas a jurar o negro sempre afirma:
ou que o seu juízo a voar andasse. «A casa é minha e não venham pedir-ma»;
135 Em frente à porta um etíope vê, 1 37 e oferece-lhe, se acaso a quiser ver,
com grande boca e nariz; e ajuízo que nela entre e busque como queira;
que antes ou depois ter visto descrê e se algo houver que faça gosto em ter,
. . .
para s1 ou para os amigos, que o reque1ra.
tão desagradável e sujo viso;
o corpo, como de Esopo se lê34, O cavalo ao servo deu a suster
um santo assustava no paraíso; Anselmo; depois, passou a soleira;
porco e besuntão, roupa de mendigo, e, por salas e quartos sendo guiado,
da feiúra nem metade vos digo. de alto a baixo tudo foi admirado.
CANTO XLIII 685
13s A forma, o local, todo aquele tesouro 1 40 Argia, que estava escondida perto,
vai contemplando, e o ornamento régio; depois de o ver no seu erro caído,
e repete: «Não podia quanto ouro surgiu e gritou: «Mas que passo certo
sob o Sol há pagar tal sítio egrégio». vejo, de doutor por tão sábio tido!»
A isto responde-lhe o feio mouro: Apanhado naquele vicioso aperto,
«Mas tem um preço que é um privilégio; pensa tu: ficou rubro e emudecido.
se não de ouro ou prata, também se ajusta Ó Terra, para ele se te meter dentro,
por aquilo que dar menos vos custa». por que ali não te abriste até ao centro?
1 39 E a mesma proposta a fazer se apresta 141 Argia expande-se, e, para envergonhar
que à sua mulher Adonio fizera. Anselmo, censura-o com gritaria,
Pela pretensão tão feia e desonesta, dizendo: «Como te hei-de castigar
bestial, mentecapto o considera. se vil homem a isso te alicia,
Três, quatro recusas ele não contesta, quando eu, por a natura secundar
e para o persuadir de tal modo opera, e ao meu amante ceder, morreria?
oferecendo o palácio como prémio, E era belo e gentil, e prémio tal
que a seu alvitre aceitar, por fim, preme-o. me deu que o palácio ao pé nada vale.
686 ORLANDO FURIOSO
142 Se eu te pareci ser digna de uma morte, 148 Federico45 não estava nessa hora,
reconhecerás que és digno de um cento; nem a Issabetta, nem o bom Guido,
e crê que neste lugar sou tão forte nem Francesco Maria ou Leonora46 ,
que em ti posso cumprir o meu intento; para ter, com cortês força, convencido
mas não quero dar-te de pior sorte a mais de uma noite fazer demora
outra vingança pelo teu falimento. ali o guerreiro tão conhecido;
O haver e o dar, marido, a par porás; como fazem há anos, e farão,
e, como eu a ti, a mim perdoarás; com cavaleiros e damas que lá vão.
1 43 façamos pazes e acordo imediato: 1 49 Uma vez que ninguém ali o prende,
erros passados caiam no olvido; desce para Cagli, para a directa via47 •
que eu mais não possa por palavra ou acto Pelo monte que o Metauro e o Gauno fende48
lembrar teu erro, e o meu seja esquecido». passa Apenino, e da destra o desvia,
Pareceu aceitar o marido o pacto, Úmbria49 , Etrúria50 , e até Roma se estende;
mostrando ser o perdão acolhido. de Roma a Ostia51 , e faz a travessia
À paz e concórdia assim regressaram, por mar até à cidade em que Anquises
e um ao outro para sempre se estimaram. - foi sepultado pelas suas raízes52 •
144 Tal disse o barqueiro; em Rinaldo riso 1 50 Muda de barco, e faz-se a toda a brida
provocou do final da história o modo; à ilha de Lipadusa53 levar;
e, por vergonha do doutor, o viso a que pelos combatentes foi escolhida,
logo se lhe tornou vermelho a rodo. e onde já tinham estado a batalhar.
Rinaldo Argia louvou por ter siso Dá aos barqueiros pressa desmedida:
para ao pássaro montar aquele engodo, fazem por isso, à vela e a remar;
apanhando-o na mesma rede em que ela mas o vento foi-lhe adverso e cobarde,
caíra, e por mais grave escorregadela. fazendo-o, só por pouco, chegar tarde.
145 Quando o Sol mais alto caminho fez, 151 Chegou lá quando o príncipe de Anglante
o paladino mandou pôr a mensa, findara a útil obra e gloriosa:
pois tinha à noite o mantuano cortês morte dera a Gradasso e Agramante,
provido o barco de boa despensa. mas com dura vitória e sanguinosa.
A esquerda a bela terra35 nitidez Morto estava o filho de Monodante,
perde, e à mão direita a palude imensa; e, de estocada violenta e perigosa,
vem e foge Argenta e sua muralha, Oliviero enlanguescia no chão,
e o rio onde o Santerno a água espalha36 • do pé sofrendo pena e aflição.
1 46 Inda a Bastia ali não estava à beira, 1 52 Não pôde o conde ter enxuto o viso
de que não se gabaram os de Espanha quando abraçou Rinaldo; e então narrou-lhe
de muito ter hasteado ali bandeira37 ; que morreu Brandimarte de improviso,
mais se hão-de lamentar os da Romagna38 • e outro amigo tão fiel não se escolhe.
Dali, pelo ramo destro da ribeira Também Rinaldo, quando viu diviso
metem o barco, e ninguém os apanha3 9 • seu rosto, é forçado a que os olhos molhe;
Seguem depois por uma fossa morta40 , depois para o abraçar se dirigiu
que ao meio-dia junto a Ravenna os porta. a Olivier, que em luta o pé partiu.
1 47 Embora Rinaldo poucos dinheiros 1 53 Consolação foi dar-lhe com brandeza,
costume ter4 1 , tantos trazia agora embora para si tê-la não lograsse;
que cortesia fez aos marinheiros, pois só chegara ali para a sobremesa,
antes de os deixar ir em boa hora. ou depois que a mesa se levantasse.
Trocando de montadas e escudeiros, Levam os servos para a cidade acesa54
na mesma noite Rimini42 aflora; de Bizerta, para que se sepultasse
nem espera em Montefiore43 o matutino e se houvesse testemunho probante,
sol, quase a par do qual alcança Urbino44. os corpos de Gradasso e de Agramante.
688 ORLANDO FURIOSO
1 54 Deu a vitória que obtivera Orlando 1 60 - Ai, por que, Brandimarte, te deixei
a Astolfo e Sansonetto alegria; sem mim ir a tão grande empresa? (disse).
mas não tanta como teriam quando Nunca, vendo-te partir, eu fiquei
Brandimarte a vida ali não perdia. sozinha, sem que contigo seguisse.
Sabê-lo morto o gáudio vai minando Tinha-te ajudado, se fosse, sei,
tanto que um e outro rosto embacia. com meu olhar fixo em ti com faguice;
Da nova qual será o portador se Gradasso por trás te desse assalto,
a Fiordiligi, e causar tanta dor? tinha-te avisado, gritando alto;
1 5 5 Na noite antes de se dar o transtorno, 161 ou talvez conseguisse ser tão lesta
Fiordiligi sonhou que aquele vestido 55 , que, no meio entrando, o golpe aparava;
que, para ao seu Brandimarte dar adorno, escudo te faria com minha testa,
com suas mãos tinha feito e tecido, pois, morrendo eu, pouco dano causava.
via aspergido ao meio e todo em torno À mesma morro, mas não terá esta
de gotas rubras, como se chovido morte algum proveito, nem desagrava;
houvesse: como se assim o tivesse enquanto morrendo em tua defesa,
bordado ela, e depois se arrependesse. findava a vida com toda a nobreza.
1 56 E a si dizia: - Mas o senhor meu 1 62 Porém, se a ajudar-te os duros factos
mandou negra fazer a veste inteira; tivesses tido e todo o Céu adverso,
por que motivo fui bordá-la eu, beijos seriam meus últimos actos,
contrariando-o, de diversa maneira? - e tinhas de meu pranto o rosto asperso;
Um mau augúrio nesse sonho leu, e, antes que viessem os anjos beatos
e à noite veio a notícia certeira; levar ao Fautor teu espírito terso,
Astolfo depois que oculta lha teve, dir-lhe-ia: Vai em paz, e por mim espera;
com Sansonetto a ir dar-lha se atreve. contigo estou em breve, em qualquer esfera.
1 57 Logo que entraram, e que ela o seu viso 1 63 É este, Brandimarte, o reino teu
viu ao gáudio da vitória furtivo, cujo ceptro tomar ora devias?
sabe, sem outro anúncio ou outro aviso, Assim, contigo, a Dammogire58 vou eu
que o seu Brandimarte já não é vivo. ora, onde assento real me darias?
O coração fica de um mal inciso, Ah, Fortuna cruel, que o sonho meu
o olhar tanto à luz se torna esquivo, destróis! Oh, que esperanças de mim desvias!
e todo o sentido tanto se cerra Se meu bem perdi, por que não me apresto
que como morta se deixa ir a terra. a perder, ai de mim, também o resto? -
1 58 Ao tornar a si, aos cabelos mete 1 64 Isto e mais dizendo, nela irrompeu
as mãos e àquele rosto belo assaz, com todo o ímpeto raiva e furor,
enquanto o nome caro em vão repete, e de novo a crina a arrancar se deu,
fazendo o dano e estrago que é capaz: como se a crina fosse o causador.
arranca as crinas, e em gritos compete Também as mãos molestou e mordeu,
com mulher que o demónio louca faz, e à boca e seio deu com as unhas dor.
ou como nos dizem que ao som do corno Volto a Orlando e à companhia, enquanto
correm Ménades56 e giram em torno. ela se consome e derrete em pranto.
1 59 A um e outro pede, para conforto, 165 Orlando, com o cunhado que não pouco
lhe traga um cutelo que o peito fira; precisava de médico e de cura,
quer correr aonde o navio ao porto e para em digno lugar abrir cabouco
dos dois senhores defuntos57 chegar vira, e dar a Brandimarte sepultura,
e um e outro assim como está, morto, direito ao monte vai, de fogo e oco,
mutilar, e a fazer vingança aspira; que a noite aclara e a luz com fumo obscura59 •
ou quer passar além do mar salgado, Propício é o vento, e à direita mão
para ir do seu senhor morrer ao lado. já pouco longe está aquele chão.
CANTO XLIII 689
166 O vento fresco e a favor não os priva: 1 72 Tu, ganho houveste, e perda sofri eu;
à noite a vela içam sem transtorno, no aquisto estás só, não eu no dano.
deixando-os ver a taciturna diva60 Participantes são do sofrer meu
a via, com o luminoso corno; Itália, o reino franco e o alamano.
ao outro dia a embarcação deriva Meu senhor e meu tio pelo que ocorreu,
para a costa amena, de Agrigento6 1 em torno. e os paladins, sofrerão grande afano!
Para essa noite, Orlando tudo disse Sofre o Império, e a cristã Igreja,
que para a cerimónia fúnebre se urdisse. que já não terão quem mais os proteja!
167 Vendo que o que ordenara estava quite, 1 73 Ai, quanto perderão, por tua morte,
e o mundo do Sol já não tinha alento, os inimigos terror e espavento!
com a nobreza que viera a convite Oh, quanto a Pagânia62 será mais forte!
dos lugares em redor para Agrigento, Quanto ânimo terá, e atrevimento!
e na praia com tochas luz emite, Ai, como deve estar tua consorte!
ouvindo-se os seus choros e o lamento, Daqui sinto o pranto e o grito cruento.
torna Orlando onde o corpo foi deixado, Sei que me acusa, e ódio, talvez, me porta;
que vivo e morto com fé tinha amado. por mim, em ti está sua esperança morta.
16s Bardino, ali, dos muitos anos grave, 1 74 Mas, Fiordiligi, que reste um conforto
estava chorando junto ao ataúde; a nós, de Brandimarte tão exclusivos:
com tanto que já chorara na nave, devem invejá-lo, com glória morto,
seus olhos não terão muita saúde. todos os guerreiros que hoje estão vivos.
Ao Céu e estrelas chama nome insuave, Décios63 , e o no foro romano absorto64 ,
e qual leão raivoso ruge amiúde. o Codro65 tão louvado pelos Argivos,
Cruéis e feras eram as mãos dele não mais ganho aos outros e a si honor
para as brancas crinas e a rugosa pele. deram, ao morrer, do que o teu senhor. -
169 Ergueu-se, ao ver tornar o paladino, 1 75 Palavras assim ia dizendo Orlando.
mais alto o grito, e redobrou o pranto. Os frades negros, brancos e mulatos,
Orlando chegou-se ao corpo supino, e os outros padres, iam desfilando
e sem falar esteve a olhá-lo um tanto, dois a dois em procissão, mui cordatos,
pálido qual ligustro ao matutino por alma do defunto a Deus rezando
ar colhido à noite está, ou acanto; que repouso lhe desse entre os beatos.
após grande suspiro, tendo o olhar Luzes à frente, ao meio e em volta havia,
nele fixo, começou a falar: parecendo ter mudado a noite em dia.
170 - Ó forte, ó fiel companheiro que adoro, 176 Erguem o esquife, e dão-lhe pousadouro
morto aqui estás, mas hás no Céu castelo, ao ombro e à vez condes e cavaleiros.
e a vida que ganhaste não deploro: Purpúrea seda o cobria, que de ouro
já não te molestam calor nem gelo; e pérolas tinha enfeites fagueiros;
perdoa-me, se tanto vês que choro, não menos belo lavor e decoro
mas por ter cá ficado me flagelo, tinham, de gemas, ricos travesseiros;
por em tal letícia não estar contigo; jazia o cavaleiro ali, com veste
não por cá em baixo não estares comigo. que de cor e lavor par se reveste.
171 Sem ti, só me encontro; sem ti, na Terra, 1 77 Trezentos aos outros tinham adianto,
todo o prazer que houvera já está gasto. escolhidos entre os mais pobres da terra;
Se estava contigo em procela e guerra, todos vestiam idêntico manto,
por que não na bonança e ócio fasto? de negro tecido e a chegar à terra.
Bem grande é minha culpa, se me emperra Cem pagens em cavalos, que eram quanto
de sair desta lama pelo teu rasto. de melhor se podia ter para a guerra;
Se nas aflições estive, por que agora corcéis e pagens levavam de rojo
contigo não estou nessa boa hora? pelo chão suas sobrevestes de nojo.
690 ORLANDO FURIOSO
1 78 Muitas bandeiras adiante e atrás, 181 Foi posto na igreja; depois que entone
com diversas insígnias distinguidas, das mulheres lágrimas e inútil pranto69 ,
desfraldadas, o esquife em torno traz; dos sacerdotes kyrie eleison70
foram tiradas a hostes vencidas e prece dirigida a todo o santo,
para César e para Pedro66 , em luta audaz, que a arca em colunas se posicione:
pelas forças que jaziam fenecidas67 • assim Orlando quis, e que haja um manto
Escudos havia muitos que de dignos de ouro a cobri-la, até que seja posto
guerreiros, que os perderam, tinham signos. em mais rico túmulo, a ser composto.
1 79 Havia mais de cem, para tantos usos 1 82 E da Sicília Orlando não se parte,
das exéquias chamados; tinham estes sem mandar por pórfiros e alabastros.
e os outros tochas acesas; reclusos, Mandou fazer o desenho, e, dessa arte,
mais que vestidos, em lúgubres vestes. por bom prémio, a mestres com bons cadastros.
Depois Orlando, com os olhos infusos As lajes fez, ao vir para esta parte,
de lágrimas, rubros, mestos, agrestes; colocar Fiordiligi, e os pilamos;
nada mais ledo que ele Rinaldo vinha; até cá (tendo Orlando já partido)
Oliviero, o pé quebrado o retinha. veio, trazida do africano lido.
1 80 Longo será se vos disser em versos 1 83 E como o seu chorar era incessante,
as cerimónias, e se forem contados e porque continuamente suspire,
os mantos negros e roxos dispersos68 , e o ser de ofício e missa praticante
os archotes que ali foram queimados. não faz que seu desgosto se retire,
Até na catedral estarem imersos, que dali não se afastará garante,
deixaram, ao passar, olhos molhados: até que do seu corpo a alma expire;
tão belo, tão bom, tão jovem, piedade mandou fazer no sepulcro uma cela
causou em cada sexo, classe, idade. na qual se fechou, e fez vida nela.
CANTO XLIII 691
184 Embora cartas, recados lhe mande, 187 Disse haver, dali a pouca extensão,
Orlando em pessoa vai, para levá-la. um eremita em ilhota perdida,
Terá em França privilégio grande, ao qual nunca se recorria em vão,
que aia de Galerana7 1 quer torná-la; conselho ou ajuda fosse pedida;
ou, se acaso ao pai regressar demande, e tinha às vezes sobre-humana acção:
até Lizza72 quer ir acompanhá-la; dar luz a cegos, a mortos dar vida,
ou uma abadia lhe edificava, deter o vento a um sinal da cruz,
se servir a Deus era o que almejava. e o mar, quando grande fúria o induz;
185 Ficou no sepulcro; e ali, consumida 188 que não devem duvidar, procurando
pela penitência, orando noite e dia, esse eremita que a Deus é tão caro,
não durou muito tempo: da sua vida que Oliviero ele venha a curar, quando
a Parca os fios em breve interrompia. de seu poder já deu sinal mais claro.
Já tinham da ilha dado partida, Tanto o conselho agradou a Orlando
que os Ciclopes em grutas ter soía73 , que ao santo lugar foram, por amparo;
os três guerreiros de França, e se queixam sempre a direito a proa o barco guia,
porque o quarto companheiro ali deixam. e avistam o escolho ao romper do dia.
186 Não queriam sem um médico zarpar, 189 Guiando a nave homens do mar sabidos,
que a Olivier procurasse dar cura; com segurança chegaram àquele.
a qual, por ter demorado a iniciar, Por marujos e servos assistidos,
se veio a tornar difícil e dura; fazem descer o marquês ao batel;
e, por ele tanto ouvirem lamentar, pelas espumosas ondas são conduzidos
sentem todos pelo seu caso amargura. ao escolho, e dali vão ao santo hotel;
Falando entre si, ao barqueiro nasceu ao santo hotel e àquele que o catecismo
uma ideia que a todos comprazeu. a Ruggier deu, e também o baptismo.
692 ORLANDO FURIOSO
190 O servo do Senhor do Paraíso 195 Ruggier, desde que ali chegara a nado,
Orlando acolheu e os companheiros seus; tinha estado no escolho até agora.
abençoou-os com jucundo viso, Entre os guerreiros, o velho abençoado
e de seus casos quis tirar os véus; está docemente, conforta-os e ora
contudo, de sua vinda tinha aviso para, a lama e lodo tendo-se esquivado,
recebido antes dos heróis dos Céus. mundos saírem do atoleiro para fora
Orlando respondeu que ali viera que se chama vida, e que agrada aos tolos,
porque ajuda para o seu Olivier espera, e os olhos, no caminho do Céu, pô-los.
191 que, enquanto lutava pela fé de Cristo, 1 96 Orlando um homem mandou ir buscar
fora a triste condição reduzido. pão, vinho, queijo, presunto ao navio;
O santo aplacou-o do mal previsto, ao homem de Deus, que gosto a manjar
e prometeu total cura para o ferido. esquecera, habituado ao fruto bravio,
Não se encontrando de unguento provisto, para comer carne houve que suplicar,
nem de humana medicina instruído, e ao vinho e ao resto não ser fugidio.
foi à igreja e orou ao Salvador, Quando à mesa se tinham restaurado,
e voltou a sair com grande alor; muito assunto entre eles foi conversado.
192 e em nome de cada eterna Pessoa, 1 97 E como no falar sucede à gente,
Pai e Filho e Espírito Santo, deu que uma coisa vai outra demonstrando,
a Olivier o sinal que abençoa. Ruggier reconhecido finalmente
Que virtude dá Cristo a quem nele creu! foi por Rinaldo, Oliviero e Orlando,
Livrou-o de toda a paixão não boa, como aquele Ruggiero em armas excelente,
e a saúde do pé restabeleceu: cujo valor cada um vai louvando;
como nunca, são e ágil ficou; nem sequer Rinaldo o tinha associado
e Sobrino tudo isto observou. àquele com quem lutara no cercado.
193 Sobrino das chagas sofria tanto 198 Tinha-o o rei Sobrino conhecido
que em cada dia que pioram sente; assim que o vira com o velho surgir;
assim que observou daquele monje santo mas preferiu estar quedo e emudecido
o milagre tão grande e evidente, a falar à sorte e depois falir.
dispôs-se a Maomé meter num canto Mas quando pelos restantes foi sabido
e Cristo confessar vivo e potente; que era Ruggier, de quem podia ouvir
pediu, com o coração de fé contrito, o brio, cortesia e valor profundo
a iniciação ao nosso santo rito. mencionar e enaltecer todo o mundo,
194 Baptiza-o o homem justo, e, de um só tranco, 199 e sabendo-se já que era cristão,
reza e devolve-lhe o antigo vigor. todos com leda e com serena face
Orlando e os cavaleiros, ao seu flanco, se lhe chegam: há quem lhe aperte a mão,
mostram pela conversão tanto favor quem o beije, quem o cinja e abrace.
como por ver que já curado e franco Sobretudo o senhor de Montalvão,
estava Olivier do perigoso langor. em festa e honra fazer, é tenace.
Mais gáudio que os outros Ruggier sentiu, Por que o faz ele mais só vou contar
e em fé e devoção mais se expandiu. no outro canto, a quem quiser escutar.
CANTO XLIII 69 3
NOTAS
--ê$.'i:-
1 16 Das [. . .} planta: mais belas que as plantas dos jardins
A cidade [. . .] afago: Mântua, banhada pelo Mincio,
afluente do Pó que nasce no lago de Garda (ou Benaco). das Hespérides.
Junto a Mântua o rio alarga-se, formando três lagos.
17
Circe: feiticeira que (Odisseia, X) transformava os
2 O muro [. . .} drago: as muralhas de Tebas, cidade fim homens em porcos.
dada por Cadmo, filho de Agenor (agenóreo), ajudado
18
por guerreiros nascidos dos dentes de um dragão. Cnido: na costa da Ásia Menor. Lugar de veneração
de Vénus, tal como Chipre.
3
Palas: a deusa Atena, tecedeira e bordadeira exímia
19
(cf. nota a XI:75:6). De Ercole [. ..} serd: Alfonso I d'Este; filho de Ercole I
e pai de Ercole li.
4
A filha de Leda: Helena de Tróia, filha de Leda e de
20
Zeus. San Georgio: povoação nos arredores de Ferrara.
5 Sabedoria [. ..} Ida: Atena e Hera prometeram sabe 21
Do destro [...} Gaibana: o ramo do rio (destro corno) que
doria e riqueza a Páris, no monte Ida, para que ele as banhava as muralhas de Ferrara partia-se a seguir em dois: no
favorecesse (cf. nota a XI:70). da direita havia as duas torres referidas, que já não existem.
6 22
Para o irmão [. ..} Morgana: Morgana deu ao irmão Cidade [. . .} ronceiro: junto a Mântua, o Mincio
(o rei Artur) uma taça que lhe permitiria descobrir a infi torna-se tão indolente (ronceiro) que forma pântanos em
delidade da rainha Ginebra (com Lancelote). torno da cidade.
7 23
Cidade [. . .} contorna: Ferrara, situada entre dois Longa veste: roga.
grandes braços do Pó, no tempo de Ariosto.
24
Ulpiano: Domício Ulpiano, o mais prolífico dos
8
Os que [. ..} escaparam: Ferrara teria sido fundada por juristas romanos.
gentes de Pádua (cuja fundação a lenda atribui ao troia
no Antenor) fugidas a Átila, a quem chamaram «flagelo 25 Saído [. . .} serpente: de Tebas (cf. nota a 11:6).
de Deus».
26 Manto: cf. nota a XLil:86:4.
9 Melara [. .. } bravio: Melara e Ficarolo ficam na mar
27
gem esquerda do Pó, e Sermide e Stellata na margem Tibério imperador: imperador de Constantinopla no
direita. Em Stellata o rio dividia-se em dois braços, per séc. VI, acumulou enorme riqueza.
dendo impetuosidade (baixa os cornos). Um dos braços
28
dirigia-se para Ferrara; o outro tomava a direcção de Pela [. ..} olvidava: por ter ficado na miséria. A pri
Veneza. meira razão era amá-la.
10 29
Bondeno: cidade situada na confluência do Pana:ro Esperando [...} escudo: esperando não ser reconhecido.
com o Pó.
11
3
° Cadmo: cf. nota a 11:6.
Os fortes: fortes que Tealdo d'Este mandou construir
31
em 970, na margem esquerda do Pó. Por conseguinte, Outras vezes: nos dias em que não são serpentes.
ainda não existiam no tempo de Carlos Magno.
32
Sem [. ..] quis: quis ver o cão sem a presença de tan
12
Ilhota: ilhota de Belvedere, junto a Ferrara. No tos observadores.
tempo de Ariosto era muito aprazível, pelas vivendas e
33
jardins sumptuosos que possuía e variedade de animais Primeiro [. . .] segundo: o primeiro erro fora o adulté
raros. rio; o segundo, a tentativa de homicídio.
13
Setecentas [. . .} esfera: o Sol (quarta esfera) «gira» na 34
Como [. . .} lê: como consta que era Esopo: feio e dis
constelação de Carneiro na Primavera. Quer dizer que forme.
teriam de passar setecentos anos.
35 Bela terra: Ferrara.
14 Nausícaa: filha do rei dos Feácios (Odisseia, VII), a
cuja ilha Ulisses é levado pela tempestade. 36 Rio [. . .} espalha: o Reno, de que o Santerno é afluen
te; confluem perto de Argenta.
15 Aquela [...} cara: a ilha de Capri, refúgio predilecto
37
do imperador Tibério. Bastia [. . .} bandeira: cf. 111:54, e respectiva nota.
694 ORLANDO FURIOSO
38
Mais [ . .] Romagna: sofrerão mais com as represálias 56
Ménades: Ménades, o u Bacantes, são as seguidoras do
de Ferrara do que, propriamente, com os mercenários deus Dioniso. Possuídas pela loucura mística, erram pelos
espanhóis. campos praticando uma dança violenta e actos insensatos.
39 57
Ninguém os apanha: vão muito velozes. Dois senhores defantos: Agramante e Gradasso.
4
° Fossa morta: ramo do Pó que estagnava antes de 58
Dammogire: capital do reino que Brandimarte her
Ravenna. dara por morte do pai (cf. XXXIX:62) .
41 59
Embora [ .. ] ter: cf. nota a Il:4:4. Monte [ .. ] obscura: o Ecna, para indicar a Sicília.
42 60
Rimini: na costa adriática. Taciturna diva: a Lua.
43 61
Montefiore: povoação a sul de Rimini; hoje chama-se Agrigento: cidade na costa sudoeste da Sicília.
Montefiorito.
62
Pagânia: cf. nota a XVIII: 1 56:2.
44
Urbino: cidade interior, da região das Marcas.
63 Décios: Públio Décio Mure e seu filho deram a vida
45
Federico: Federico da Montefeltro, duque de Urbino, pela pátria oferecendo-se às lanças inimigas, cumprindo um
pai de Guidobaldo. voto feito pela vitória; um, em batalha contra os Latinos, e
o outro contra os Etruscos.
46
Issabetta (Elisabetta) [ .. ] Leonora: já referidas no
64
canto xlii:86 e respectivas notas. O { .. ] absorto: Marco Curzio; para aplacar os deuses,
atirou-se para um abismo que se abriu nos Foros Romanos.
47
Desce [ .. ] via: vai tomar, em Cagli, a Via Flaminia
65
(directa via), que o leva a Roma. Codro: rei de Atenas que se deixou matar pelos
Espartanos, porque o oráculo previra que a batalha seria
48
Pelo [ .. ] fende: monte de Piecra Pertusa, onde se ganha por aqueles cujo rei nela perecesse.
atravessa os Apeninos por uma galeria natural ( Gola de!
66
Furlo). Perco corre o Metauro e o seu afluente Para [ .. ] Pedro: para o Império e para a Igreja.
Candigliano ( Gauno).
67 Pelas [ .. ] fenecidas: pela força do cavaleiro que jaz
49
Úmbria: região do centro da península itálica. A capi morto.
tal é Perugia.
68
Dispersos: distribuídos pelos carpidores e povo em
50
Etrúria: região histórica da Itália Central entre o geral.
Tibre e o Arno, povoada pelos Etruscos.
69
Inútil pranto: porque não traz benefício à alma do
51
Ostia: antigo porto romano na foz do Tibre. É hoje defunto.
estância balnear (Lido di Oscia) .
70
Kyrie eleéson: curta prece, geralmente cantada. Do
52
Cidade [ .. ] raízes: Trapani, na Sicília, onde Anquises grego Kyrie eleeson, pelo latim tardio, significa «Senhor,
foi sepultado pelo filho, Eneias (cf. Vergílio, Eneida, tem piedade».
IIl:707 ss.) .
71
Galerana: a mulher de Carlos Magno.
53
Lipadusa: Lampedusa.
72
Lizza (Laodiceia) : reino do pai de Fiordiligi. Accual
54
Acesa: em chamas. Latáquia, na Síria (cf. XVlII:74:7) .
55 73
Vestido: a sobreveste negra (cf. XLl:3 1 ) . 1/ha [ .. ] sola: os Ciclopes habitavam a Sicília.
�
CANTO XLIV
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4 O santo velho, em sua húmil parança, s Achava essa dívida de tal sorte
de as visitas receber com nó forte que a respeitá-lo e amá-lo o impelia;
de vero amor teve melhor possança, sentia pena e contratempo forte
do que outros teriam em real corte. por não o ter feito em anterior dia,
Foi esse nó de tal perseverança quando um estava na africana corte
que mais não se desfez até à morte. e outro Carlos imperador servia.
Todos bondosos o velho achou serem, Ora, que já cristão vem encontrá-lo,
e alvo como o cisne o coração terem. o que não fez, em fazer tem regalo.
5 Achou todos corteses e dementes, 9 Promessas infindas, honras e festa
não falsos como os que acima se pinta, fez a Ruggiero o paladim cortês.
que nunca conseguem ser transparentes O p1 udente eremita, perante esta
e apresentam sempre aparência infinta. intimidade, aproveitou a vez.
De tudo em que antes foram contendentes Disse de entrada: - Mais fazer não resta
qualquer lembrança foi entre eles extinta; (e espero seja obtido sem revés)
se duma semente e um ventre nascidos, que, como entre vós se fez amizade,
por mais amor não seriam unidos. seja entre vós feita outra afinidade;
6 Sobretudo o senhor de Montalvão 10 que de uma e outra estirpe tão ilustre,
festas e honras fazia a Ruggiero; que em nobreza não têm par no mundo,
não só por já ter com as armas na mão nasça linhagem que a Terra mais lustre
sentido como era arrojado e fero, que o claro Sol em seu curso rotundo,
ou por ver nele o cavaleiro mais são e de anos futuros esperança não frustre,
e afável que havia no mundo, e vero, sempre mais bela, e que dure (segundo
mas mormente por, por mais de uma via, Deus me diz, para vos dar a saber tal)
conhecer que obrigações lhe devia. enquanto o céu houver o curso usual. -
7 Sabia que tinha de um perigo certo 1 1 E o seu falar seguindo para diante,
salvado o seu Ricciardetto uma vez 1 , tal faz o santo velho que persuade
quando foi pelo rei hispano descoberto Rinaldo a dar a Ruggier Bradamante
no leito da filha e cativo o fez; (de aos quais pedir não há necessidade).
e do duque Buovo tinha liberto Aprova Oliviero e o senhor de Anglante
um filho e outro da atroz malvadez a realização dessa afinidade;
dos Sarracenos (como eu fiz denúncia2) que Amon3 e Carlos aprová-la queira
e Bertolagi, o iníquo de Mogúncia. esperam, e que concorde a França inteira.
12 Porém não sabiam que Amou sua mão,
com acordo do filho de Pepino,
de dar prometera ter intenção
ao imperador da Grécia, Costantino,
que para seu filho lha pedira então,
Leone, o seu herdeiro genuíno.
Por ela, por seu valor tão gabado,
tinha-se ele, sem a ver, apaixonado.
13 Respondera Amou que de afogadilho
não respondia definitivamente,
sem antes de tal falar com seu filho
Rinaldo, que da corte estava ausente;
o qual cria não ver nisso empecilho,
e com gosto o teria por parente;
porém, pelo respeito que lhe merecia,
tomar a decisão sem ele não queria.
CANTO XLIV 697
24 Para a Sardenha voou num piscar de olho, 2s Para preitear os que eram o suporte
e da Sardenha foi ao lido corso; do Santo Império, e a maior coluna,
dali, o mar sobrevoou sem escolho, Carlos mandou que a nobreza da corte
dando à canha ao freio com pouco esforço 1 3 • no Saône 1 7 , para os esperar, se reúna.
Das costas da Provença no restolho Saiu ele depois, com o escol mais forte
por fim deixou do hipogrifo o dorso; de reis, capitães (e sua dama aduna),
depois, com o alado corcel fez quanto das muralhas, e o séquito de belas,
lhe tinha dito o evangelista santo. nobres e bem ajaezadas donzelas.
25 Recomendou-lhe o santo evangelista 29 O imperador, com calma e leda fronte,
que ao voltar à Provença não o pique, os paladins, amigos e parentes,
e que ao ímpeto fero não resista nobres, plebe, não há quem não aponte
com sela e brida, para que livre fique. a todos sinais de amor evidentes;
Já tirara o baixo céu 1 4 , que conquista sobe o grito: Mongrana e Claramonte 1 8!
o que perdemos 1 5 , ao corno 16 o repique; Pondo fim aos abraços insistentes,
mudo ficara, não apenas rouco, Rinaldo, Orlando, e também Oliviero,
logo que ele chegara ao divino loco. a Carlos apresentaram Ruggiero;
26 A Marselha chegou quando em conjunto 30 contaram-lhe que de Ruggier de Risa
lá chegaram Orlando e Oliviero, era filho 1 9 , em virtude ao pai igual;
e o de Montalvão, e, com eles junto, se valente é e forte, e de que guisa
o bom Sobrino e o excelente Ruggiero. sabe ferir, nossas hostes hão sinal.
A lembrança do companheiro defunto Nisto, vem Bradamente com Marfisa,
impediu que os paladinos, com esmero, aquele nobre e gracioso casal:
manifestassem toda a alegria Marfisa vai abraçar seu irmão,
que uma vitória tão grande merecia. a outra mostra maior discrição.
27 Da Sicília Carlos fora avisado 31 O imperador Ruggier manda subir
dos dois reis mortos e Sobrino preso, para o corcel, pois por respeito se apeara,
e que Brandimarte tinha tombado; lado a lado consigo o fazendo ir,
também com Ruggiero estava surpreso; e em tudo para louvá-lo se prepara,
tinha ledo o peito e o rosto animado, não querendo nenhum ponto preterir.
por descarregar o intolerável peso Bem sabia que à fé ele regressara,
que sobre os ombros se agravara tanto pois, assim que pisaram chão enxuto,
que algum tempo o deixará em quebranto. a Carlos deram fé do seu estatuto.
700 ORLANDO FURIOSO
32 Com pompa triunfal e festa grande, 33 Em vários sítios, ao virar das esquinas
voltaram juntos até à cidade, encontram arcos, troféus, artefactos
que verdes ramos e grinaldas brande, que de Bizerta fogos e ruínas
e panos nas ruas em quantidade; mostram pintados, e outros dignos factos;
nuvem de flores do alto se expande noutras partes, palcos com pantominas,
e a toda a volta os vencedores invade, jogos, espectáculos, cénicos actos;
que de balcões e janelas amenas e por todo o lado o título sério
damas, donzelas deitam às mãos plenas. está escrito: «Aos libertadores do Império».
CANTO XLIV 70 1
43 Sei quanto, ai, ai!, devo fazer, sei quanto 49 Dos outros bens todos, o que concede
aos deveres da boa filha convém; Natura à gente, ou próprio estudo aquista,
sei, mas de que vale, se não pode tanto em tão larga parte a eles acede
a razão, se os sentidos não contém? que outros tão bem dotados não avista;
Se Amor a afasta e lhe dá ataranto, qualquer outra beleza à sua cede,
e não deixa que disponha também e à sua força é raro o que resista;
de mim, senão no que a ele satisfaça, em heroicidade e régio esplendor
e que só quanto dite eu diga e faça? nenhum mais que ele é do troféu credor.
44 De Beatrice e Amon sou criação, 50 Mas o vulgo, em cujo arbítrio os honores
e sou, desgraçada!, serva de Amor. estão, pois lhe parece que os tira e doa
De pai e mãe espero merecer perdão (do vulgo não excluo, nem por favores,
e compaixão se cair em errar; excepto o homem prudente, uma pessoa;
mas se Amor ofender, quem oração nem os papas, reis, ou imperadores
lhe fará que me exima ao seu furor, dele exime o ceptro, a mitra ou a coroa;
que queira um só motivo meu escutar só a prudência e o juízo bom,
sem de imediato a morte me querer dar? graças de que o Céu a poucos faz dom);
45 Oh, eu!, fiz longa e obstinada prova 51 o vulgo (para meu dito concluir),
para fazer Ruggiero à fé anuir; que apenas reverencia a riqueza,
por fim fi-lo; mas o que é que isso inova, não vê no mundo algo que mais admire;
se do meu gesto outro alguém vai fruir? sem ela nada aprecia, nem preza
Também não para si a abelha renova a beleza e coragem que existir,
seu mel ao ano, sem o possuir. o vigor do corpo e a sua destreza,
Quero antes morrer que vir a ser vero valor, senso, bondade; e é manifesto
que um marido eu tenho que não Ruggiero. mais no de que ora falo2 1 que no resto.
46 E se a meu pai não for obediente, 52 Dizia Ruggier: - Se Amon está disposto
nem a minha mãe, ao irmão sou eu, a que a filha a imperatriz aceda,
que muito mais do que eles é sapiente, a Leon tão cedo não faça o gosto:
e a idade o juízo não lhe comeu. por prazo um ano ao menos me conceda,
E isso que Rinaldo quer, consente pois do império ver por mim deposto
ainda Orlando: os dois do lado meu; Leon e o pai espero que me suceda;
dois que o mundo mais preza e mais receia das coroas lhes tirar havendo signo,
que da nossa gente toda a alcateia. já Amon me achará um genro digno.
47 Se são o escol, se toda a gente estima 53 Mas se fizer, com imediato efeito,
a glória e o esplendor de Claramonte, sogro de sua filha Costantino,
sobre todos os eleva e sublima se não tiver pela promessa respeito
para além da distância do pé à fronte, de Rinaldo e de Orlando paladino,
por que hei-de deixar que por mim se exprima feita perante aquele velho perfeito,
Amon, que Rinaldo e o conde mais conte? do marquês Olivier e rei Sobrino,
E mais: em dúvida ao grego oferecida que farei? Vou sofrer tão grave torto?,
fui, enquanto a Ruggier fui prometida. - ou, em vez de o sofrer, antes ser morto?
48 Se a donzela se aflige e se atormenta, 54 Deus, que farei? Farei então vingança
não estava a mente de Ruggier mais quieta; deste grande ultraje contra o pai dela?
pela cidade ainda não se comenta Por agora, que o faça não se afiança,
a nova, mas a ele não é secreta. nem se errada ou sensata é tal cautela.
De sua sorte para si se lamenta, Mas suponhamos que eu faço matança
que a fruição desse bem lhe intercepta, do velho iníquo e toda a parentela:
por reinos não lhe ter dado ou riquezas, não retiro daí nenhum contento;
tendo, com mil indignos, tais larguezas. aliás, contraria o meu intento.
CANTO XLIV 703
55 Foi sempre meu intento, e é, que me ame 61 - Ruggiero, tal sempre fui, tal ser quero
a dama, e não que seja rancorosa; até morrer, e mais, se mais se pode.
mas se Amon mato, ou coisa faça, ou trame, Seja-me Amor benigno, orgulho fero,
que ao irmão e outros seus seja danosa, Fortuna no alto ou baixo me rode,
não dou justa causa para que me chame imóvel sou em fé, qual escolho austero
imigo, e não queira ser minha esposa? que a toda a volta vento e mar sacode:
Que devo então fazer? Devo admitir? nunca por bonança nem tempestade
Isso não! Antes me quero extinguir. oscilei, e nada a tal me persuade.
56 Melhor: extinguir-me, não; de morte pena, 62 Escopro de chumbo se verá, ou lima,
com razão, tenha esse Leone Augusto22 esculpir em formas várias um diamante,
que perturbou minha alegria amena; antes que golpe de sorte reprima,
quero que morra, e o seu pai injusto. ou ira de Amor, meu peito constante;
Ao amador de Tróia a bela Helena e mais fácil é ver voltar para cima
não custou tanto, e em tempo mais vetusto do alpe o rio turbulento e sonante
Prosérpina a Pirítoo23 , como é gosto que, por bons ou maus acontecimentos,
meu que custe a filho e pai meu desgosto. mudarem de via os meus pensamentos.
57 Será, vida minha, que não te custa 63 A vós, Ruggier, todo o domínio dei
deixar o teu Ruggier por esse grego? sobre mim, maior do que muitos crêem.
Por teu pai querer, será que a ti se ajusta, Sei que qualquer novo príncipe ou rei
não tendo teus irmãos a ele apego? maior fé ser-lhes jurada não vêem.
Que com Amon concordes bem me assusta, E de estado mais seguro, bem sei,
e não queiras mais ter em mim conchego; reis e imperadores não se provêem.
e que aches um César24 melhor partido Fossa ou torre não há que construir,
que um cidadão privado para marido. com medo de outrem vo-lo subtrair.
58 Mas será possível que um nome régio, 64 Pois, sem que contrateis outra pessoa,
um título imperial, grandeza e pompa, não há assalto a que se não resista.
da minha Bradamante o ânimo egrégio, Para me expugnar, riqueza não é boa:
o seu valor e virtude corrompa? vil preço leal peito não aquista.
Terá ele um tão grande sortilégio Nem nobreza, ou eminência de coroa,
que as juras e as promessas feitas rompa? que ao vulgo tolo sói toldar a vista,
Ou será que de Amon se torne imiga, nem beleza, que em leve ânimo actua,
e aquilo que sempre me disse diga? - poderei ver que a vossa desvirtua.
59 Dizia estas e outras coisas tais, 65 Não deveis recear que forma nova
para si falando Ruggier; certo excesso no meu coração entalhar se possa:
da voz as dava a ouvir a quem mais impossível é que dele se remova,
perto dele estava e lhe tinha acesso; tão bem esculpida aí se encontra, a vossa.
e repetido, o seu tormento e ais Coração de cera não ter, fiz prova;
àquela por quem sofria era expresso, com cem pancadas, não uma, fez mossa
a quem menos não custava saber Amor antes que lasca lhe arrancasse,
do sentir dele que o seu próprio sofrer. para que à vossa imagem o modelasse.
60 Mais a faz sofrer do que outra maleita 66 Marfim, pérola e toda a pedra dura
que atormenta Ruggier, de que se inteira, que melhor do entalhe se defende
o saber que se aflige por suspeita pode quebrar; mas não outra figura
de que ela o deixe, e aquele grego queira. tomar: só a primeira que apreende.
Assim, para o tranquilizar e desfeita Meu coração não difere da natura
seja em seu peito a crença nessa asneira, do mármore, que com ferro contende.
por uma camareira mui leal, Mais depressa Amor todo o despedaça,
destas palavras lhe mandou aval: que doutra beleza nele faça traça. -
704 ORLANDO FURIOSO
67 Com estas escreveu outras placidezes 69 Sei que conhecer qual ele é almeja,
plenas de amor, de lealdade e conforto, mas primeiro, pela real fé, prometa
que à vida o fariam voltar mil vezes, me faz mercê; depois, quero que veja
se mil vezes tivesse sido morto. que minha petição é justa e recta. -
Mas, crendo-se já salvas dos reveses - Que o que pedes te dê, tua sobeja
da tempestade essas esperanças, no porto, virtude merece, ó jovem dilecta
por nova rajada impetuosa e escura (respondeu Carlos); e juro, se parte
sopradas, para o mar foram, para a lonjura: do meu reino pedires, contentar-te. -
68 pois Bradamante, querendo conseguir 70 - O dom que suplico à Alteza Vossa
muito mais do que tinha dito e feito, é que nunca deixe marido dar-me
com o arrojo com que sói agir, (disse a donzela) que em armas não possa
e pondo de parte todo o respeito, mais valor que eu mostrar e desarmar-me.
a Carlos se apresentou; disse: - Sire25, Com quem me quiser, com hasta se esboça
se a Vossa Majestade algum efeito liça e com espada, para o que vale mostrar-me.
jamais fiz, que lhe parecesse ser bom, O primeiro que me vença, que me ganhe;
faça a graça de não negar-me um dom. quem for vencido, de outra se acompanhe. -
71 Disse o imperador, com o rosto de afecto
pleno, que era a pretensão dela digna;
e que conservasse o ânimo quieto,
pois tudo fará como ela designa.
O colóquio entre eles não é secreto,
e logo a nova a outros se consigna;
nesse mesmo dia chegou da velha
Beatrice e do velho Amon à orelha.
n Os quais, igualmente, arderam de grande
indignação pela filha e de grande ira; ·
bem viram, porque tais coisas demande,
a Ruggiero, mais que a Leone, aspira;
e lestos, para impedir que se mande
a efeito a pretensão que tem em mira,
às ocultas a tiraram da corte,
levando-a consigo para Roccaforte.
73 Era esta uma fortaleza segura,
de que Amon, de Carlos, fora aceitante;
Perpignan e Carcassonne moldura
lhe dão, à beira-mar, e é importante.
Ali a retinham como em clausura,
para que um dia a mandassem para o Levante;
assim, querendo ou não querendo, deixaria
Ruggiero e com Leone casaria.
74 A valorosa dama, que igualmente
é submissa, como valente e forte,
embora não tendo guarda presente,
e podendo entrar e sair à sorte,
ao freio do pai era obediente;
mas a antes sofrer prisão ou morte,
martírio, rigor que lhe fosse imposto,
e Ruggiero amar, tinha-se proposto.
CANTO XLIV 705
75 Rinaldo, que sua irmã não tutela 81 São quatro os gregos contra um; adiante
por astúcia de Arnon, que a tem na mão, têm naves para pontes dar ao rio;
vendo-se impedido de dispor dela que à força querem passar, no semblante
e que a Ruggiero a prometeu em vão, fero revelam, para o esquerdo baixio.
do pai se queixa, a língua desfivela, Mentes Leone, com sagaz talante
o respeito filial pondo no chão. do rio se afasta, fazendo desvio
Mas Arnon, com tal, pouco se incomoda; largo; ao rio depois voltando, arremessa
quer agir com a filha à sua moda. pontes à outra banda e passa à pressa;
76 Ruggier, disso sabendo, tem temor 82 e, com muita gente a cavalo e a pé
de ficar de sua dama cativo, (de vinte mil, não menos, tem cornpanha),
e que a tenha, pela força ou por amor, ao longo do rio cavalgou, até
Leon, se muito tempo estiver vivo; que ao flanco do inimigo se assanha.
sem dizer a ninguém, quer com ardor O imperador, assim que o filho vê
matá-lo, e ser, em vez de Augusto, Divo26 ; surgir de lá do rio, na margem canha,
e a um tempo, se a esperança não falhar, ponte a ponte juntando, barca a barca,
a ele e ao pai vida e reino tirar. com o exército a outra banda abarca.
77 Com as armas que do troiano Heitor 83 Dos Búlgaros o rei e capitão,
foram, e de Mandricardo, se veste; Vatrano, cauto guerreiro e brioso,
a sela ao bom Frontino manda pôr, para cá e para lá, esforçava-se em vão
troca cimeira, escudo e sobreveste. par se opor a ímpeto tão furioso;
Não quis ser nesta empresa portador quando, cercando-o com robusta rnão30 ,
da sua águia branca em fundo celeste; Leone a seu corcel no chão deu pouso;
prefere que um licorne o escudo lhe cubra, corno cativo ser não contemplou,
cândido corno o lírio, em terra rubra. com mil espadas a vida lhe tirou.
78 Dos seus escudeiros escolhe o mais fiel, 84 Os Búlgaros até agora testa
que quer ter por única companhia; fizeram; mas vendo o seu rei deposto,
e recomenda-lhe que não revele e que a toda a volta o inimigo infesta,
em parte alguma que Ruggier seguia. dão as costas para onde estava o rosto.
Passa o Mosela, o Reno, e a ir se impele Ruggier, que se mistura aos Gregos e esta
das terras austríacas à Hungria; perda vê, sem mais pensar sente gosto
ao longo do lstro27 , pelo destro lado em aos Búlgaros dar socorro bom,
tanto cavalga que chega a Belgrado. pois Costantino odeia e, mais, Leon.
79 Onde ao Danúbio vai unir-se o Sava28 , 85 Pica Frontin, que a correr é um vento,
e até ao mar com ele faz longa estrada, e adiante dos outros corcéis passa;
em pavilhões e tendas gente estava mete-se entre a gente que, por espavento,
sob a insígnia imperial agrupada; para o monte foge e do plano se espaça.
pois Costantino reaver tencionava Muitos detém; fá-los virar o rnento
a cidade, pelos Búlgaros tirada. para o inimigo, e a lança arregaça;
Tem Costantino e o filho ali conchego, com rosto tão fero o seu corcel espreme
com todo o exército do império grego29 • que no Céu Marte e Júpiter o teme.
80 Em Belgrado e fora, por todo o monte 86 Em frente aos mais, um cavaleiro lobriga
abaixo até ao rio que os pés lhe lava, que, bordada no vermelho peitilho,
o exército búlgaro está defronte; a ouro e seda, ostentava urna espiga
tanto um corno outro vem beber ao Sava. com todo o pé, parecendo ser de milho;
No rio o Grego para lançar a ponte, pela irmã, a Costantino se liga
e o Búlgaro a esquivar, armado estava por sobrinho, mas quer-lhe corno a filho;
quando Ruggier chegou; grande batalha escudo e couraça, qual vidro, desfaz,
viu que entre urna e outra banda se espalha. e um palmo a lança lhe aparece atrás.
706 ORLANDO FURIOSO
97 Cumprimenta-o um, outro se lhe inclina, 100 Leon tem na fuga tanta vantagem
uns a mão, outros lhe beijam o pé; (melhor dizer fugir que retirar-se)
cada um a estar-lhe perto se obstina que encontra desobstruída a passagem;
e feliz se acha quem de perto o vê, faz as barcas da ponte incendiar-se.
e mais quem lhe toca; porque divina Chega Ruggier quando do Sol imagem
coisa e sobrenatural tocar crê. já não há, e não sabe onde alojar-se.
Pedem-lhe, e chega ao céu a gritaria, Vai cavalgando, que havia luar,
que seja seu rei, capitão e guia. mas sem castelo nem casa avistar.
98 Ruggier responde-lhes que capitão 1 01 Por não saber onde pousar, caminha
e rei será, o que for mais do agrado; toda a noite e o cavalo não alija.
mas nesse dia não quer pôr na mão Ao romper do novo sol, por vizinha
bastão32 ou ceptro, e não entra em Belgrado: cidade à esquerda ver se regozija;
antes que tenha mais distanciação todo o dia ali ficar acarinha,
Leone Augusto, e o rio haja passado, para que a ofensa ao seu Frontin corrija,
segui-lo quer e não perder-lhe o rasto, pois, sem repouso e sem tirar-lhe o freio,
até achá-lo e lhe dar fim nefasto; por tantas milhas toda a noite veio.
99 mais de mil milhas para isso somente 1 02 Ungiardo era o senhor daquela terra,
tinha andado, e por mais nenhum motivo. súbdito a Costantino muito querido,
Assim, sem tardar, deixa aquela gente, o qual a pé e a cavalo para a guerra
pelo trilho que dizem que o fugitivo grande número lhe tinha oferecido.
Leon tomou para a ponte velozmente, Como entrada a estranhos lá não se cerra,
talvez de que o cortem apreensivo. Ruggier foi ao chegar bem acolhido,
Segue-lhe o rasto com rapidez tal não precisando de ir mais para diante
que nem para o escudeiro vir faz sinal. por lugar melhor e mais abundante.
708 ORLANDO FURIOSO
103 À noite, no albergue que escolhera, 104 Assim que o escudo viu reconheceu
da Roménia um cavaleiro alojou-se, que o cavaleiro, que a insígnia porta,
que com Ruggiero na batalha fera é aquele que aos Gregos derrota deu,
esteve, em que aos Búlgaros auxílio trouxe; por cujas mãos foi tanta gente morta.
de ser morto por ele risco correra, Correu ao paço e audiência requereu,
e mais do que qualquer outro assustou-se; para dizer ao senhor coisa que importa;
treme ainda, crendo que inda o contorne e, logo recebido, disse quanto
o cavaleiro do branco licorne. reservo para dizer no outro canto.
NOTAS
-l$r-
1 19
jd [ .. } vez: cf. XXV:8 ss. De Ruggier [ ..} filho: cf. XXXVl:72-74.
2 20
E do [ . .} denúncia: cf. XXV:72 ss., e XXVI:3 ss. Disfarce: máscaras.
3 Amon: pai de Rinaldo, Bradamante, etc. 21
Mais [ . .} fa/,o: em questões de matrimónio.
4 E contudo [ . .} Frontino: cf. nota a XLI:26:6-8. 22
Augusto: sinónimo de imperador.
5 23
Noto: vento que sopra de sul. Amador [ .. ] Piritoo: Helena custou a Páris a vida, na
Guerra de Tróia. Pirítoo pagou com a vida a ousadia de des
6
Filho do dinamarquês: Dudone, filho de Uggiero. cer aos Infernos para raptar Prosérpina, esposa de Hades.
7 Tomou [ . .} levez: voltaram à sua primitiva forma de 24 Um César: um imperador.
folhas (cf. XXXIX:26-28).
25 Sire: tratamento que se dava aos reis de França, a
8 Poder: exército. imperadores, a senhores feudais, etc.
9 Uterino claustro: o odre em que Astolfo encerrara o 26
Em vez [ ..} Divo: em ve:z. de imperador, deus. Crítica
vento (cf. XXXVIIl:29-30) . Do latim claustrum e uter, sarcástica ao hábito romano de divinizar os imperadores
recipiente de pele de cabra para guardar líquidos. após a morte.
10 Austro: vento forte, quente e seco, de sudeste. 27
Istro: Danúbio.
11 28 Onde [..} Sava: o Danúbio recebe o Sava junto a Belgrado.
Turpino: cf. nota a XIII:40:2.
12 29
Em pedra [ ..] muar: os cavalos voltaram a ser pedras Pois Costantino [ ..} grego: para as personagens de
(cf. XXXVIIl:33-34) . Costantino e de seu filho Leone, talve:z. Ariosto se tenha
inspirado em Constantino V de Constantinopla (71 8-775),
13
Dando [ ..} esforço: desenhando uma ligeira curva e em seu filho e sucessor, Leão IV. Pai e filho envolve
para a esquerda. ram-se, de facto, em lutas com os Búlgaros; além disso,
Leão IV iniciou negociações matrimoniais, depois abor
14 Baixo céu: o céu da Lua. tadas, com uma princesa da corte de Carlos Magno. São
apenas suposições, não conferindo a estas personagens o
15 Conquista o que perdemos: cf. XXXIV:73. estatuto de figuras históricas.
16 30
Como: o corno mágico que Logistilla deu a Astolfo. Mão: corpo de tropas (em latim, manus, us).
17 31
Saône: afluente do Ródano. Sumo coro: cf. nota a XVIII: 166:8.
18 32
Mongrana e Claramonte: cf. nota a XXXVl:75:5. Bastão: insígnia de capitão.
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CANTO XLV
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Quanto mais vês nos altos carretéis 4 Vê-se pelos exemplos, que tantos tem
da roda instável 1 o homem ir em rota, quer a antiga quer a moderna história,
mais depressa onde os pés tinha vereis que o bem persegue o mal, e o mal o bem,
a cabeça, fazendo a cambalhota. e um do outro serão vergonha e glória;
Disso, exemplo é Polícrates2 , e os reis e que ao homem fiar-se não convém
Creso3 e Dionísio4 , e outros de quem nota em seu tesouro, seu reino e vitória,
não dou, que um dia da glória suprema nem desesperar-se por Fortuna adversa,
caíram, passando à miséria extrema. pois a roda sempre em giro se versa.
2 Pelo contrário, quanto mais declinado,
quanto mais da roda ele está no fundo,
mais àquele ponto se encontra chegado
em que há-de subir, se o giro é rotundo.
Há quem a cabeça haja quase dado
ao cepo, e depois deu a lei ao mundo.
Sérvio5 , Mário6 e Ventídio7 dão-nos prova
na era antiga, e o rei Luís8 na nova:
3 o rei Luís, que foi sogro do filho
do duque meu9 , e em Saint-Aubin derrota
sofreu e do imigo houve barbilho,
não tendo por pouco a cabeça rota.
Matias Corvino 1 0 em maior sarilho
se viu em data pouco mais remota.
Foi um, do franco, superado o passo,
feito rei, e outro do húngaro espaço.
710 ORLANDO FURIOSO
25 A mãe raiva e indignação sentiu 31 E, quando por vezes lhe torna à mente
contra a filha; porém, por seu honor, o que Ruggier dizia a tal respeito,
com belas, ricas vestes a floriu, de seu grande erro repesa se sente,
de vários tecidos, mais de uma cor. por ciúme sentir e o ter por suspeito;
Bradamante à corte com o pai seguiu, e, como se estando Ruggier presente,
e, ali não encontrando o seu amor, culpada se afirma e bate no peito.
nem lhe pareceu, aquela corte, aquela - Fiz mal (diz ela), e reconheço o errar,
que antes lhe saía parecer tão bela. mas quem é causa inda causa pior.
26 Quem tiver visto em Abril ou em Maio 32 Causa é Amor, que em meu peito gravou
jardim que tem de belas flores adorno, a forma tua, tão formosa e bela;
e o reveja depois que o Sol o raio bravur� e engenho junto colocou,
inclina ao austro 16 , e encurta o dia em torno, e a virtude, que a todos se revela;
encontra-o deserto, bravio, baio; e acho impossível, se se propiciou
assim a dama vê, no seu retorno, que te visse alguma dama ou donzela,
a corte que Ruggiero abandonara, não te querer, e não usar toda a arte
sem lhe parecer a que ao partir deixara. para ao meu amor tirar-te e ao seu ligar-te.
27 Perguntar não ousa o que dele seria, 33 Houvesse Amor gravado em minha ideia
para não levantar de si mais suspeita; teu pensamento, tal gravou teu vulto!
mas está à escuta e busca, todavia, Estou certa de que o veria, sem peia,
sem perguntar fazer boa colheita. igual a como o imagino oculto;
Sabe-se que partiu, mas por que via, e não me envolveria do ciúme a teia,
ninguém ali tem ideia perfeita; não tendo dele a toda a hora insulto;
porque ao partir nada disse a ninguém, e, enquanto a custo 0 1 8 levo de vencida,
excepto ao escudeiro que partiu também. morria e saía da minha vida.
2s Oh, como ela suspira! Oh como teme, 34 Sou como o avaro, que no peito esboço
ouvindo que partiu como fugido! tem do tesouro, e tão enraizado
Oh, quanto mais que outro temor a preme que longe dele vive em alvoroço,
que para olvidá-la ele tenha partido! e no temor de ele lhe ser tirado.
Que vendo Amon opor-se, a esperança estreme Ruggier, ora que te não vejo e ouço,
de alguma vez poder ser seu marido, mais que a esperança, o temor tenho exaltado.
e dela se queira afastar para assim E, embora o creia mentiroso e vão,
procurar que o seu amor tenha fim; não posso evitar estar na sua mão.
29 e que tenha tido alguma intenção, 35 · Mas logo que a imagem tiver surgido
para tirá-la do peito mais depressa, aos meus olhos do teu rosto jucundo,
de ir buscando, numa e noutra nação, que incrivelmente de mim está escondido,
outra por quem o primeiro amor esqueça, em que parte não sei, Ruggier, do mundo,
como em tábua com um prego pressão logo o falso temor será vencido
17
se faz, para que o outro prego amoleça • pela esperança, e empurrado para o fundo.
Outro pensamento se segue àquele, Ah, Ruggier, volta a mim, volta e conforta
pintando-lhe um Ruggier muito fiel; a esperança, pelo temor já quase morta!
30 e a si, por dar ouvidos, repreende, 36 Como, ao partir o Sol, se faz maior
a tanta suspeita ofensiva e bruta. a sombra, e o vão temor se conjectura,
Se um seu pensamento Ruggier defende, e como ao ressurgir do seu esplendor
o outro o acusa: e ela os dois escuta, se vai a sombra, e o tímido se cura,
e agora a este e agora àquele se prende, assim sinto, sem Ruggiero, temor;
sem nenhum ter por firme, irresoluta. quando o vir, temor em mim não perdura.
Mas para a opinião mais depressa corre Volta para mim, Ruggier, volta e anima
que mais lhe agrada, e a contrária aborre. a esperança, que o temor mais não oprima!
CANTO XLV 713
37 Tal como à noite qualquer chama é viva, 39 Torna, meu sol, traz de volta a serena,
e se apaga quando o dia o céu orna, a doce e desejada Primavera!
também, quando o meu sol de si me priva, Dissipa gelo e neve, e asserena
o temor contra mim vem e me encorna; a mente minha, nebulosa e fera. -
mas, assim que no horizonte se aviva, Qual Procne se lamenta ou Filomena 1 9 ,
o temor logo foge e a esperança torna. que a buscar cibo para os filhos correra
Ai, volta, por Deus, volta, caro lume, e o ninho acha vazio; ou se desola,
antes que o que temo em mim se consume! por ter perdido o companheiro, a rola,
38 Se o Sol se inclina e torna os dias breves, 40 assim Bradamante se lamentava,
tudo o que a Terra tinha belo esconde; pois seu Ruggier ter perdido temia,
fremem os ventos, trazem gelos, neves, e o rosto às vezes em lágrimas lava,
a ave não canta, não há flor nem fronde; o mais secretamente que podia.
assim, quando para longe de mim leves, Oh, quanto mais da dor seria escrava,
meu sol, a tua luz, não sei para onde, se soubesse aquilo que não sabia:
mil temores, todos de iníquo dano, que em pena e humilhação o seu consorte
Invernos me dão muitos num só ano. estava preso, aguardando cruel morte!
714 ORLANDO FURIOSO
51 Ruggiero fica com tal cortesia 57 Certo é que pungente dor, logo que esta
tão confuso, tão cheio de maravilha, palavra disse, o peito lhe aferventa,
e tanto da ideia se desvia e que noite e dia sempre o molesta,
que até cá o fez andar tanta milha sempre o aflige e sempre o atormenta,
que, se uma ideia e a outra avalia, e lhe torna sua morte manifesta;
nada esta àquela e aquela a esta afilha. mas arrependimento não ostenta;
A primeira era de ódio, ira e veneno; em vez de a Leon desobedecer,
a segunda, de apego e de amor pleno. mil vezes, não uma, prefere morrer.
52 De noite e de dia muito ele pensa, 58 Está certo que morre; porque se a amada
mais nada o preocupa nem deseja perde, tem de perder também a vida:
que a obrigação que lhe tinha, imensa, dor e pena dar-lhe-ão a machadada;
pagar com cortesia que par seja. se acaso dor e pena o não trucida,
Acha que se toda a vida dispensa com suas mãos romperá a camada
em servi-lo, curta ou longa a preveja, que a alma cinge, e ela achará saída;
e se para mil mortes certas se oferece, pois qualquer coisa é mais fácil que veja
nunca fará tanto como ele merece. que vê-la a ela sem que sua seja.
53 Ali entretanto chegara a nova 59 A morrer está disposto; mas que sorte
do édito feito pelo rei de França, de morte escolha, não sabe dizer.
que quem quiser Bradamante faz prova Pensa talvez fazer-se menos forte,
de força com ela, com espada e lança. e à dama o flanco desnudo2 1 oferecer;
Leon tal coisa ouvir tão pouco aprova pois nunca houve mais beata morte
que extrema palidez seu rosto alcança; que poder às mãos da amada perecer.
pois, sendo homem de seu valor consciente, Depois vê que, se ela mulher não for
sabe que em armas ela é mais potente. de Leone, lhe fica devedor;
54 Reflecte para si, e vê que prover 60 porque prometeu contra Bradamante
pode com ardil, se em vigor é manco, entrar em campo, em singular batalha22 ;
se com suas insígnias comparecer não para simular, fazer só semblante,
o campeão, cujo nome tem em branco; e assim ser a Leon de pouca valha.
o qual julga que em denodo e poder Será, pois, ao prometido constante;
não perde, em confronto com qualquer franco; se ora uma ideia ora outra o baralha,
e crê que, se lhe confiar a empresa, todas afasta, e só a esta cede:
Bradamante ganha, por indefesa. à que para se manter leal lhe pede.
55 Mas duas coisas falta: uma, dispor 61 Leon preparara mui diligente,
o cavaleiro para que o feito aceite; com licença de seu pai, Costantino,
outra, em sua vez no campo este pôr, armas, cavalos, e em número gente
sem que ninguém que lá esteja suspeite. quanta convinha, e seguiu para o destino;
Chama-o, conta-lhe do caso o teor, levava Ruggiero, ao qual fez presente
e pede, de modo que ele não enjeite, das suas armas boas e Frontino;
que a essa pugna aceite estar presente, e tanto um dia, e outro, e outro andaram,
com nome alheio e insígnia diferente. até que a França e a Paris chegaram.
56 A eloquência do grego assaz podia; 62 Leon da cidade quis ficar fora,
mas mais que a eloquência era pesado e no campo os seus pavilhões montou;
o imposto que Ruggiero lhe devia, no mesmo dia a nova, sem demora,
de nunca mais dele ser desobrigado; de sua chegada a Carlos mandou.
e aquilo que tão duro lhe parecia, O rei estimou-o, o que se corrobora
impossível quase, mostrando agrado por dons e visitas com que o honrou.
no rosto, que não no peito, lhe disse Da sua vinda o motivo lhe disse
que faria tudo o que lhe pedisse. Leon, pedindo que o desimpedisse;
716 ORLANDO FURIOSO
75 Como no assédio a uma cidade forte, 79 Quando mais faltou a esperança, cresceu
com bons flancos e com muralha grossa, a par a ira, e redobrou o açoute;
se teima em delir da porta o suporte, romper a armadura empreendeu,
ou de alta torre, ou atulhar a fossa, que num dia nem vê que se amarrote;
e em vão o exército se leva à morte, como um que no trabalho amoleceu,
não achando modo como entrar possa; que fazer devia, e vê já ser noute,
assim muito em vão se esforça e trabalha e em vão se apressa, se aflige e se cansa:
a dama, sem romper chapa nem malha. a um tempo o fim força e dia alcança.
76 Agora o escudo, agora o elmo eleito 80 Ó infeliz, se bem visses aquele
é, ou a couraça faz que cintile30 , que queres sujeitar a mortais vexames,
com golpes que aos braços, cabeça e peito se o teu Ruggier reconhecesses nele,
dá a direito e de través, uns mil, do qual dependem de tua vida os estames33 ,
mais espessos que no tecto e parapeito sei que matares-te a ti, antes que a ele
das casas o granizo tamborile. querias: creio que mais que a ti o ames;
Ruggier, de atalaia, o corpo defende e, quando que ele Ruggiero é souberes,
com grande destreza, e não a ofende. servirão estes golpes para sofreres.
77 Ou pára, ou volteia, ou o pé retira, 81 Carlos, e mais, que este é Leone e não
e às vezes a mão acompanha o pé. Ruggiero, facilmente devaneia;
Ora estende o escudo, ora a espada gira, vendo que em armas, em comparação
aonde a mão inimiga vir vê. com Bradamante, muita arte alardeia,
Ou não a atinge ou, quando atinge, mira e, que sem a ferir, com muita aptidão
parte em que menor dano fazer crê. se defendia, mudaram de ideia
A dama, antes que este dia decline e disseram: - Um ao outro convém;
quer que, por ela, a batalha termine. ele é digno dela, ela dele também. -
78 Pensa no édito, o que lhe recorda 82 Depois de Febo no mar já ter pouso,
o perigo em que incorre, se não for lesta; Carlos, mandando cessar a batalha,
se num dia não mata ou ata à corda3 1 crê que a dama tome Leon para esposo,
o seu pretendente, a ser dele se apresta. certa de que a recusa nada valha.
Já os limites de Alcides32 aborda Ruggier, sem que ali faça algum repouso,
Febo, para no mar mergulhar a testa, sem tirar elmo ou aliviar a malha34 ,
quando ela a temer por sua possança sobre um pequeno rocim, acelera
começa, e a sentir fugir-lhe a esperança. para o pavilhão onde Leone o espera.
83 Os braços Leon estende para que abrace
Ruggiero, fraternalmente a estreitá-lo;
depois de o elmo lhe tirar da face,
vai dos dois lados com amor beijá-lo.
_,., - Quero (disse) que de mim para ti passe
tudo o que queiras; de te dar regalo
não me cansarei; de mim e meu estado
te sirvas, para o que te é mais desejado.
84 Nem recompensa jamais haverá que esta
dívida que te tenho vá compôr;
nem mesmo se retirasse da testa
a minha coroa, e ta viesse pôr. -
Ruggier, cuja mente muito o molesta
e angustia, e à vida tem horror,
pouco responde, e as insígnias lhe entrega
-- que usara; e depois, no licorne pega.
718 ORLANDO FURIOSO
93 Cílaro e Aríon36 sei que mais coroas 95 Se Ruggier ali se aflige e atormenta,
que tu não mereceram, nem mais louvor; e aves e feras à piedade move
nem outro corcel de quem deram loas (pois mais ninguém em seus gritos atenta,
Gregos ou Latinos em seu favor. nem vê o pranto que em seu seio chove),
Se iguais te foram em mais coisas boas, não deveis pensar que mais se contenta
duma sei que nenhum houve o sabor: Bradamante em Paris, ou prazer prove,
de poder-se gabar de ter gozado pois já desculpa não tem que a defenda
o honor e o apreço a ti dispensado; de aceitar Leon, ou tempo lhe renda.
94 pois à dama, de quantas há e havia 96 Ela, antes de aceitar outro consorte
a mais gentil e valorosa e bela, que não Ruggier, fará todo o possível:
tão caro foste que ela te nutria, faltar ao dito; com Carlos e a corte,
e te dava de sua mão freio e sela. família, amigos, ser incompatível;
À minha dama eras caro. Dizia e outro modo não tendo, dar-se morte
minha? Porquê, se minha não é ela? com a espada ou com veneno bebível;
Se a outro a dei? Ah, mas por que protelo, muito melhor acha acabar com a vida
e o peito com a espada não flagelo? - que viver de Ruggiero subtraída.
CANTO XLV 721
97 - Ai, Ruggier (dizia), onde terás ido? 1 03 Fez de manhã a donzela atrevida,
Poderás estar assim tão afastado Marfisa, a Carlos audiência pedir,
que não tenhas este edital ouvido, dizendo que a seu irmão infligida
a mais ninguém, só a ti, ocultado? fora ofensa, e que não queria admitir
Se soubesses, eu sei que comparecido ser-lhe tirada a mulher prometida,
nenhum tinha, como tu, apressado. sem uma palavra lhe transmitir;
Que infeliz sou! Que outra ideia, que error e está pronta a provar, a quem quiser,
me ocorrerá, senão o que é pior? que de Ruggier Bradamante é mulher.
98 Como é possível, Ruggier, que pareça 1 04 E antes dos outros, quer provar-lhe a ela,
não teres ouvido, como toda a gente? caso de negá-lo seja capaz,
Se acaso ouviste, e não vieste à pressa, que a Ruggiero fez na presença dela
morto ou preso te encontras certamente! as promessas que quem se casa faz;
Decerto te estendeu laçada avessa e que, com a cerimónia que tal sela,
o filho de Costantino pela frente! se ligaram de modo tão tenaz
Ter-te-á o traidor impedido a via, que já não poderão de si dispor,
para saber que antes de ti chegaria. nem deixar-se, para ter outro amador.
99 A Carlos pedi graça, que a nenhum 1 05 Marfisa, vero ou falso o que dissesse,
menos forte que eu viesse a ser dada, certo é que dizia, para que, crer quero,
na crença de que tu fosses esse um o plano de Leone interrompesse
contra quem eu não me aguentasse armada. a bem ou mal, mais que para falar vero;
Fora tu, não cria que houvesse algum: e que aquilo por vontade fizesse
dessa audácia fui por Deus castigada; de Bradamante, que reaver Ruggiero
este, afinal, que nunca fez empresa e excluir Leon queria, e mais honesta
honrosa na vida, assim me tem presa. ou breve maneira não via que esta.
1 00 Mas se a ele eu estou presa, é por não ter
de o matar ou prender possibilidade,
o que justo não acho; e àquele parecer
que teve Carlos não dou prioridade.
Bem sei que inconstância vou transparecer,
porque o que antes disse ora me dissuade;
mas primeira não sou, nem derradeira,
que parece inconstante e o é, inteira.
101 Basta que em ser fiel ao meu amante
tão firme como um escolho eu seja, ou mais,
e, nisso, a todas muito passe adiante,
quer dos tempos velhos quer dos actuais.
Que no resto me chamem inconstante
não importa, se me der lucros tais:
que eu seja, a ser dele não sendo obrigada,
mais volúvel que a folha considerada. -
1 02 Estas palavras e outras, que alternas
amiúde eram com suspiros e pranto,
toda essa noite lhe foram fraternas,
a que o infeliz dia houve adianto.
Mas depois de nas cimérias cavernas
Nocturno entrar37 , com seu sombrio manto,
o Céu, que determinara guardá-la
para mulher de Ruggier, veio ajudá-la.
722 ORLANDO FURIOSO
106 O rei, como tal coisa o amofina, 109 Pois, supondo (coisa que não admito
Bradamante chama imediatamente; e em que nem quero crer) que tenha aquela
e quanto Marfi.sa a provar se obstina nesciamente a Ruggier isso predito,
lhe comunica, estando Amon presente. como dizeis, e ele igualmente a ela;
Bradamante os olhos para o chão inclina, quando foi e onde? Mais bem descrito,
e, confusa, não nega nem consente, mais claro e explícito quem mo desvela?
de modo que logo se deduziu Sei que não se passou; só se passado
que Marfi.sa a verdade transmitiu. foi antes de Ruggier ser baptizado.
107 Agradou a Rinaldo e ao de Anglante 1 10 Mas se aconteceu antes de cristão
tal coisa ouvir, que pode ser razão Ruggiero ser, a mim não me atrapalha;
para aquele parentesco não ir avante, pois, sendo ela cristã e ele pagão,
de que Leon tinha confirmação; não parece que o matrimónio valha.
e assim Ruggiero a bela Bradamante Não deverá por isso ter em vão
terá, mau grado Amon, que diz que não; Leon corrido o risco da batalha;
e poderão sem liça, e sem tirá-la nem o imperador estará disposto
da mão do pai à força, a Ruggier dá-la. a da palavra que deu ser deposto.
10s Pois se entre eles foi ajustado o plano, 111 Dizeis ora o que eu queria saber quando
a coisa é firme, e não cairá por terra. muda era a coisa, e não corria o boato
Manterão sua promessa38 sem dano, a que, a rogo dela, Carlos deu mando,
com honestidade e sem nova guerra. e à liça trouxe Leon, candidato. -
- Isto é (dizia Amon), é um engano Assim contra Rinaldo e contra Orlando
que me urdiram; mas vossa ideia erra; falava Amon, para romper o contrato
inda que vero fosse o que fingido entre os amantes; e Carlos, que ouvia,
haveis entre vós, eu não estou vencido. nem por um nem por outro intercedia.
CANTO XLV 723
1 12 Como se ouvem, se austro ou bóreas expira, 1 15 Leon, que está, tendo a seu lado o esmero
pelas altas selvas murmurar as frondas, do guerreiro do licorne, seguro
ou como costumam, quando Éolo39 se ira de que vitória lhe obterá Ruggiero,
com Neptuno40 , no mar fremir as ondas, e nenhum caso lhe parecerá duro,
assim um rumor que corre e que gira, sem saber que foi pelo martírio fero
e que pela inteira França faz rondas, levado ao bosque solitário e escuro,
isso dá a falar e a ouvir tanto mas que em breve volta, pois em passeio
que tudo o mais fica mudo, a um canto. foi, perto, aceita aquele parecer alheio.
113 Uns por Leone, outros por Ruggier estão, 1 16 Mas em breve se arrependerá, pois
mas Ruggier tem protecção mais maciça: aquele de quem mais que a conta queria
por um que Amon tem, dele mais de dez são. não viu tal dia, nem nos outros dois
O imperador com nenhum se derriça, a seguir, nem notícia dele havia;
remetendo a causa à boa razão, e, sem ele contra Ruggiero depois
e ao parlamento a manda por justiça. batalhar, seguro não lhe parecia;
Marfisa vem, depois de diferido para que dano e vergonha o não transtorne,
o esponsal, e apresenta outro partido; mandou buscar o campeão do licorne.
1 14 e diz: - Decida-se que ela não possa 1 17 Por cidades, vilas, quintas mandou,
doutro ser, enquanto meu irmão vive; próximas e distantes, encontrá-lo;
se Leon a quiser, que faça mossa não lhe bastando, no corcel montou
com seu valor, e que da vida o prive; ele próprio, e pôs-se a procurá-lo.
o que deles mandar o outro para a fossa, Mas sinal ou nova dele não achou,
sem rival, a contento sobrevive. - nem acharia, ou de Carlos vassalo,
Carlos isto a Leon faz manifesto, se não fosse Melissa, que fez quanto
como também fizera todo o resto. reservo para contar no outro canto.
NOTAS
�
1 Roda instdvel: roda da Fortuna. 8 O rei Luís: Luís XII de França. Foi preso e esteve
prestes a ser decapitado, mas acabou por subir ao trono.
2 Polícrates: tirano de Samos; reuniu enorme fortuna,
9
mas foi torturado e morto. Sogro [ .. ) meu: Ercole II, filho de Alfonso d'Este,
casou com Renata, filha de Luís XII.
3
Creso: cf. nota a XXXVIIl:2:4.
1 0 Corvino: Matias Corvino, rei da Hungria, foi prisio
4 Dionísio: Dionísio II, o Novo, tirano de Siracusa; rico neiro do rei Ladislau, seu antecessor, e só por morte
e poderoso, acabou por ser deposto e obrigado a viver deste readquiriu a liberdade e subiu ao trono.
como um cidadão comum.
1 1 A pé e não: a pé e a cavalo.
5 Sérvio: Sérvio Túlio (filho de uma escrava) foi o
sexto rei de Roma. 12 Ela: a Fortuna.
6 Mdrio: Caio Mário, modesto soldado, veio a ser côn 1 3 Fortuna [ .. ) crina: cf. nota a XXX:35:6.
sul de Roma.
14
Novengrado: cidade da margem esquerda do Sava.
7
Ventldio: Públio Ventídio, trazido para Roma como
prisioneiro após a batalha de Ascoli, chegou a cônsul, 1 5 Beleticche: talvez Beletinec, a norte de Zagreb.
tendo derrotado os Partos no Oriente.
724 ORLANDO FURIOSO
°
2 Filho do César: Leone. 34 Aliviar a malha: retirar a armadura.
4 Vejo outra, mas ao mesmo sangue adscrita, 7 Se do meu senhor de Bozolo2 1 eu olho
Genevra5 , e está de lulia6 acompanhada; mulher, mãe, manas e primas divinas,
vejo Ippolita Sforza7 e a erudita e ainda as Torelli e as Bentivoglio,
Trivulzia, no sacro antro alimentada8 ; Visconti e Pallavicino22 , tão finas,
vejo Emilia Pia9, e tu, Margherita 10 , entre todas as que hoje existem, escolho,
de Angela Borgia 1 1 e Graziosa 1 2 ladeada. e quantas gregas, bárbaras, latinas
Com Ricciarda d'Este 13 vejo as louçãs já houve, e de quem se ouve fama alma,
Bianca e Diana 1 4, e as outras irmãs 1 5 • a que em graça e beleza leva a palma:
Eis a bela, mas mais sábia e honesta, s Iulia Gonzaga23 , que, onde põe o pé
Barbara Turca 16 , e a companheira Laura 17 ; e para onde os serenos olhos gira,
não vê o Sol mais bondade que a desta não só qualquer menos formosa é,
parelha, desde o Indo à extrema maura 1 8 • mas, como se deusa fora, a admira.
Eis Genevra 19 , que à casa Malatesta Com ela a cunhada24 , que a sua fé
deu, com seu mérito, dourada aura: não renegou por lhe ter tido ira
nunca palácios régios e imperiais Fortuna, que lhe fez embargo vasto.
tiveram luxos e ornamentos tais. Eis Ana de Aragão25 , a luz do Vasto;
6 Se em Rimini estivesse, hospitaleira, 9 Ana, bela, cortês, sábia, sadia,
quando, soberbo porque a Gália toma, de castidade, fé e amor um templo.
César hesita, se além da ribeira Com ela a irmã26 , que, aonde irradia
devia ir, hostilizando Roma20 , sua beleza, outra assim não contemplo.
creio que, dobrada cada bandeira, Eis a que eximiu à margem sombria
e dos troféus esquecendo a grande soma, do Estige, e faz, num nunca visto exemplo,
aceitaria leis e pactos dela, malgrado as Parcas e malgrado a Morte,
não tendo, talvez, de opressor a estrela. esplender no céu seu ilustre consorte27 •
CANTO XLVI 727
10 Eis minhas damas de Ferrara, e aquelas 14 Eis mais dois Alessandri naquele elo4 5,
da corte de Urbino; mais além tosco dos Orologi um, o outro Guarino46 •
as de Mântua, e quantas damas belas Eis Maria d'Olvito47 , e eis o flagelo
tem a Lombardia e o país tosco28 • dos reis, o divino Pietro Aretino48 •
O cavaleiro que entre elas vem, e elas Eis dois leronimi; que um é, revelo,
tanto honram, se não tenho o olho fosco, o Veritade, e o outro o Cittadino49 •
pela luz dos belos rostos encandeado, Vejo o Mainardo, vejo o Leoniceno50 ,
Unico Accolti é, de Arezzo, afamado29 • o Pannizzato, o Celio e o Teocreno51 •
11 Benedetto, o sobrinho, também vejo, 15 Lá, Bernardo Capei; lá, vejo Pietro
que purpúreo tem o chapéu e o manto30 , Bembo, que o nosso puro e doce idioma,
e o cardeal de Mântua3 1 e o Campeggio32 , expurgado do seu vulgar uso tetro,
esplendor e glória do conselho santo; como se quer, em seu exemplo assoma52 •
noto neles (ou será que o almejo?), Guasparro Obizi é o que lhe vem retro,
no rosto e gesto, que se alegram tanto e olha e admira a tinta que ele bem doma53 •
com meu regresso que não posso agir Vejo o Fracastorio, e o Bevazano54 ,
por forma às obrigações retribuir. Trifon Gabriele, e o Tasso55 noutro plano.
12 Lattanzio e Claudio Tolomei33 vejo eu, 5
16 Vejo Nicolo Tiepoli 6, e ao lado
57
o Paulo Pansa, o Dresino, e o Latino Nicolo Amanio , cujo olhar brilha;
Iuvenal, e o Molza, e o Sasso meu34 , Anton Fulgoso58 , que ao ver-me chegado
e os Capilupi, e o Florian Montino35; ao lido mostra gáudio e maravilha.
e aquele que nos guia ao regato ascreu O meu Valeria é aquele que afastado
pelo caminho mais plano e mais contínuo: das damas está; e se calhar aguilha
Iulio Camillo36 ; e ali, na parte interna, Barignan, que tem perto, e preterido
Marco Antonio Flaminio, o Sanga, o Berna37 • é por elas, a não ser seduzido5 9 •
13 De Alessandro Farnese38 chega a vez, 17 Vejo engenhos excelsos e fidedignos
em companhia tão douta e serena! por sangue e amor juntos: o Pico e o Pio60 •
Pedro, Capella e Porzio39 , o bolonhês O que com eles vem, e que os mais dignos
Filippo, o Volterrano, o Madalena40 , honoram, até hoje negligencio61 ;
Blosio, Pierio, e o Vida, cremonês4 1 mas, se me foram dados veras signos,
de facunda e infindável cantilena, é o homem que tanto ver aprecio:
e Lascari42 e Mussuro e Navagero43 , lacobo Sanazar62 , que faz baixar
e Andrea Marone e o manje Severo44 . do monte as Camenas à beira-mar63 •
.:...
_ D-__ - .--� �- ...,.__ ;::....::: _ _ -� ..... _.
,"'
(..._. e.
728 ORLANDO FURIOSO
30 Leon com a mais doce e mais suave 33 E prosseguiu com seu rogo eficaz,
voz, e as palavras com que mais amor com falar tão humano e tão benigno
pode mostrar, diz-lhe: - Não haja entrave que Ruggier resistir não é capaz;
para a razão me dizeres da tua dor; de aço ou pedra no peito não tem signo,
pois pouco sofrer no mundo é tão grave e vê que, se a recusar for tenaz,
que o homem não lhe possa dar estertor, fará acto descortês e maligno.
se a razão se souber; nem negativo Responde; mas a voz inda embatoca
deve de esperança ser, enquanto é vivo. três vezes, antes que saia da boca.
31 Bem me dói que esconder-me tenhas querido 34 - Senhor meu (disse enfim), em tu sabendo
teu mal, sabendo-me teu vera amigo, quem eu sou (e vou-to dizer agora),
não só desde que te estou tão unido tenho a certeza de que em ti acendo
que jamais deste teu nó me desligo, menos contento que se eu morresse ora.
mas já desde que causa tinha tido Sou aquele que de ódio te está moendo:
para ser sempre teu mortal inimigo; eu sou Ruggiero, que te odiou outrora;
de mim deves sempre esperar guarida, e foi com intenção de dar-te morte
com meus bens, meus amigos, minha vida. que há muitos dias deixei esta corte,
32 Não hesites em dar-me confidência 35 para que por ti não me fosse tirada
de tua dor, e deixa que eu ausculte Bradamante, por estar a intenção
se força ou lisonja tem influência, de Arnon para teu favor toda virada.
se tesouro ou arte em teu bem resulte. Mas, ao que o homem põe, disposição
Fruto não dando minha diligência, Deus dá: fez a cortesia mostrada
então, que a morte alívio te faculte; por ti que eu mudasse de opinião;
mas não queiras chegar a esse efeito não só o meu ódio por ti depus,
sem fazer tudo o que pode ser feito. - como a ser teu para sempre me dispus.
CANTO XLVI 731
66 Vazia fica de sua força toda, n e de França partir não esteja à espreita,
faltando, para em pé se ter, vigor, para de suas hostes ser capitão,
bem que saibais que de forte se apoda pois de toda a terra que hajam sujeita
e é dona de grande ânimo e valor. obriga o pai a fazer rejeição.
Não mais quem ao cepo, ao laço ou à roda Não tem Ruggier virtude mais perfeita
está condenado, ou pena não menor, para satisfazer da mãe a ambição,
e já nos olhos tenha a venda negra, de Bradamante, e fazer que o genro ame,
graça ouvindo gritar, que ela se alegra. como ouvir dizer que ora rei se chame.
67 Alegra-se Mongrana e Claramonte74, 73 Fazem-se as núpcias esplêndidas, reais,
por novo nó vir unir os dois ramos; de harmonia com aquele que as perfilha:
dói-se Ganelon75 porque tal o afronte, perfilha-as Carlos, e fá-las iguais
e Anselmo, Falcon, Gini com açamos, às que faria casando uma filha.
e Ginami76, ocultando em falsa fronte Os méritos da donzela eram tais,
sua inveja e ódio sem acabramos; e os que o resto da família partilha,
e aguardam da vingança a ocasião, que ao rei não parecia deformidade
como a raposa faz espera ao lebrão. gastar com ela do reino metade.
68 Não só Rinaldo e Orlando, desse friso, 74 Que é corte aberta anuncia em redor,
muitos vez e outra haviam matado, para que todos saibam que podem vir;
embora esses casos com muito siso nove dias campo franco79 ao dispor
o rei, e as ofensas, haja aquietado, terá quem questões tem para decidir.
como há pouco lhes apagara o riso, Mandou no campo um adorno compor,
de Pinabel e Bertolagi o fado77 ; e intricados ramos e flores urdir,
mas a vingança trazem encoberta, vestido a seda e ouro, e tão jucundo
fingindo ter a coisa como incerta. que sítio mais belo não viu o mundo.
69 Os emissários búlgaros que à corte 75 Paris não teria capacidade
de Carlos (disse eu) vieram direito, para as inúmeras gentes peregrinas,
com fé de encontrar o guerreiro forte pobres, ricas, de toda a qualidade
do licorne, que seu rei fora eleito, que havia, gregas, bárbaras, latinas.
sabendo-o cá, chamaram boa sorte Tanto senhor e personalidade
à sua, que à fé tinha dado efeito; de todo o mundo, e das casas mais finas,
reverentes, aos pés se lhe lançaram, em pavilhões, tendas, choupanas estavam,
e que à Bulgária fosse suplicaram, e todos com conforto se alojavam.
70 que em Adrianópolis78 reservado 76 Mui rica e singularmente adornado
para si estava o ceptro e a real coroa. tinha a noite anterior Melissa, a maga,
E querem que vá defender o estado, o aposento nupcial preparado,
contra o qual mais uma vez se arrazoa sonho que ela há já tanto tempo afaga.
que um exército maior preparado Já longamente tinha desejado
tem Costantino, que vai em pessoa; esta união essa dama pressaga:
e esperam, se de seu rei refrigério do futuro áuspice, sabia quanta
tiverem, conquistar-lhe o grego império. bondade tinha o fruto dessa planta.
71 Ruggiero o reino aceitou; satisfez 77 Pusera o nupcial leito fecundo
os rogos: na Bulgária comparece, no meio dum pavilhão amplo assaz,
prometeu, após o terceiro mês, o mais rico, o mais ornado e jucundo
quando a Fortuna a tal não se opusesse. que jamais houve, ou em guerra ou em paz,
Leone Augusto ouviu com nitidez, quer antes quer depois, em todo o mundo;
e disse a Ruggier que em seu dito cresse: da trácia costa obtê-lo foi capaz:
quando houver dos Búlgaros o destino, de cima de Costantino elevado
paz se faz entre eles e Costantino; o tinha, quando na praia acampado.
CANTO XLVI 735
90 Depois, inda jovem, cardeal feito1 00 , 96 Vê-se que além, em armas reluzente,
no Vaticano assiste ao consistório; para a Igreja ajudar à pressa corre;
com facúndia dá do intelecto efeito, levando impreparada e pouca gente,
e admiração causa a todo o auditório. com um exército instruto concorre106 ;
- Como será com idade a preceito mas só o facto de ele estar presente
(parecia ser, de espanto, o falatório)? os eclesiásticos muito socorre,
Oh, se de Pedro lhe calhar o manto, que o fogo apaga antes de estar a arder:
que idade ditosa!, que século santo! - foi, pode dizer, chegar, ver, vencer. 1 07
91 Noutra parte o livre entretenimento 97 Vê-se também junto à costa nativa
estava, e os jogos do jovem ilustre. a batalhar contra a mais forte armada
Enfrenta ursos no alpino assento, que, contra Turcos, contra gente argiva1 08 ,
ou javalis no vale fundo e palustre; pelos Venezianos jamais foi mandada:
num ginete quase ultrapassa o vento, destrói-a e vence-a, e ao irmão cativa
para que corço ou velha cerva o não frustre: a dá, com toda a riqueza saqueada 109 ;
alcança-a, e em duas partes cortada, de algo haver para si, ideia não tem;
iguais, se vê, a um golpe de espada. só honor, que não se dá a ninguém.
92 Além, de filósofos e poetas 98 Damas e cavaleiros todas miram,
no meio está, em mui douta contenda. sem nada compreender, as figuras;
Um descreve-lhe o curso dos planetas, pois de ninguém informação ouviram
outro a Terra, e outro o céu lhe desvenda; que tudo aquilo são coisas futuras.
versos ledas, elegias discretas, Comprazem-se com os rostos que admiram,
poemas heróicos fazem que ele aprenda. belos, bem feitos, e em ler as escrituras.
Músicos ouve e outros sons, acolá, Só Bradamante o bordado desnoda,
e sem suma graça um passo não dá. pois por Melissa soube a história toda.
93 Em toda a primeira parte se pinta 99 Ruggier não estava, como Bradamante,
do sublime rapaz a puerícia. instruído; porém, volta-lhe à mente
Cassandra a outra fizera distinta, que entre a sua prole costumava Atlante
com gestos de justiça e de perícia, Ippolito lembrar frequentemente.
de bravura, de modéstia, e da quinta, Quem poderia haver que em versos cante
que tem com essas mui estreita amicícia: quão cortês é Carlos com toda a gente?
a virtude que dá e que despende1 º1 ; Muita festa há com jogos e folias,
por essas cinco iluminado, esplende. e a mesa sempre cheia de iguarias.
94 É aqui que com o jovem se vê 100 Aqui se vê quem bom cavaleiro é:
o duque dos Ínsubres1º2 infeliz: por dia mil lanças quebradas são;
em paz, com ele se reúne e provê; fazem-se liças a cavalo e a pé,
ou com ele leva os pendões serpentis103 ; ou ao par, ou em grande associação.
a mesma lealdade nele se lê, Ruggiero é o que com mais valor se vê:
nos dias bons como nos tempos vis. vence sempre, com luz ou escuridão;
Na fuga o acompanha, e o conforta seja em dança, em luta, ou em qualquer obra,
na adversidade, e no perigo o exorta. é para ele sempre que o grande honor sobra.
95 Está noutra parte em pensamento atento, 101 Quando o último dia 1 1 0 sobrevém,
pela salvação de Alfonso e de Ferrara, tendo a grande festa já começado,
procurando um eficaz argumento, e Carlos à mão esquerda Ruggier tem
que encontra; e faz ver como coisa clara e Bradamante do direito lado,
ao justíssimo irmão o traimento das bandas da planície à pressa vem
que lhe prepara a família mais cara1 04 : direito à mesa um cavaleiro armado,
e por isso ser herdeiro mereceu de negro vestido e o corcel de igual,
do nome que Roma a Cícero deu 1 º5 • rosto altivo e estatura colossal.
CANTO XLVI 737
1 02 Era o rei de Argel 1 1 1 , que, pela felonia 10s e de a causa defender é capaz,
que sobre a ponte sofreu da donzela 1 1 2 , sem chamar para o auxiliar ninguém,
tinha jurado que armas não vestia, mas gostava de mostrar-lhe, aliás,
nem espada usava, nem montava sela, que para ajudá-lo muita gente tem.
sem que tivesse um ano, um mês e um dia Ali Rinaldo, ali Orlando faz,
estado, como eremita, numa cela. como o marquês e os dois filhos 1 16 também,
Os cavaleiros a si, com tais processos, Dudon e Marfisa, do pagão fero,
soíam punir nesse tempo os excessos. propósito de defender Ruggiero,
1 03 Embora houvesse de Carlos sabido, 109 dizendo que, sendo ele novo esposo,
e de seu rei, qual fora todo o efeito 1 1 3 , não devia conturbar suas bodas.
não se armou, para seu voto ser cumprido, Ruggier respondeu: - Ficai em repouso,
fingindo aquilo não lhe dizer respeito. que para mim essas desculpas são nodas. -
Mas, estando o ano e o mês já consumido As armas vestiu do tártaro iroso 1 1 7 ,
e mais um dia completo, a preceito, e logo pôs fim às demoras todas.
com novas armas, corcel, espada e lança, As esporas Orlando a Ruggier constringe,
vem-se apresentar na corte de França. e Carlos ao flanco a espada lhe cinge.
1 04 Sem desmontar, sem inclinar a testa, 1 10 Por Bradamante e Marfisa a couraça
e sem sinal algum de reverência, lhe fora posta, e o resto do arnês.
mostra que despreza Carlos e a festa, Segurou-lhe Astolfo o corcel de raça,
e a presença ali de tanta eminência. e o estribo o filho do dinamarquês 1 1 8 •
Pasmo e assombro geral se manifesta, Fizeram lestos em torno abrir praça
por este assim mostrar tanta insolência. Rinaldo, Namo 1 1 9 , e Olivier marquês.
O banquete e a conversa se suspende, Fizeram sair todos do cercado,
para escutar o que o guerreiro pretende. que para aquele fim está sempre preparado.
105 Tendo Carlos e Ruggiero de fronte, 111 Damas, donzelas, com sua face baça,
gritou num alto e orgulhoso feitio: tementes à guisa de pombas estão,
- Sou (disse) o rei da Sárcia 1 1 4 , Rodomonte, que do chão granoso ao ninho escorraça
e a ti, Ruggiero, à luta desafio; a raiva dos ventos que a bramir vão
e vou provar-te, antes que o Sol tramante, com trovões e lampos, e o ar ameaça
que à fé de teu senhor foste arredio; com chuva, granizo, e danos o chão;
e que não mereces, pois és traidor, temem por Ruggiero, que a elas mal
entre estes cavaleiros ter honor. àquele fero pagão parecia igual.
1 06 Embora a traição tenhas descoberta, 1 12 O mesmo a toda a plebe e à maior parte
pois, sendo cristão, não podes negá-la, dos cavaleiros e dos barões parecia;
contudo, para a fazer parecer mais certa da sua memória inda não se parte
estou aqui, para neste campo prová-la; o que o pagão em Paris feito havia;
e, se alguém aqui tens que faça oferta pois, sozinho, a ferro e fogo teve arte
de combater por ti, quero aceitá-la. de em parte a destruir, e inda se via
Se uma não basta, quatro ou seis aceito, e se há-de ver muito tempo o sinal:
e nada de quanto te disse enjeito. - nenhures tivera o reino dano igual.
1 07 Ruggiero, a tais palavras, elevou-se, 1 13 Ninguém tinha no coração temor
pediu a Carlos para autorizá-lo, como Bradamante; não que ela cresse
e que ele mentia disse, e outro que fosse que o sarraceno, em força e no valor
que de traidor quisesse apelidá-lo; do ânimo, mais que Ruggier pudesse;
com seu rei 1 1 5 , correctamente, portou-se, nem que razão, que amiúde dá o honor
ninguém pode com razão censurá-lo; a quem a tem, Rodomonte tivesse;
e que estava pronto para rebater mas não pode estar sem apreensão,
que para com ele fez sempre o seu dever; pois, amando, para temer tem razão.
738 ORLANDO FURIOSO
114 Oh, quanto sobre si preferiria 11s Com brida e esporas com eles instando,
ter o cargo daquela pugna incerta, fizeram-nos erguer os cavaleiros;
embora que sua vida perderia largando as hastas e as espadas sacando,
em tal caso estivesse mais que certa! voltam a atacar-se os cruéis guerreiros:
Morrer mais de uma vez escolheria, para cá, para lá, com mestria girando
se é que de mais que uma morte há oferta, os bravos corcéis, aptos e ligeiros,
mais depressa que ver o seu consorte tinham as pontas das espadas mais caro
correr o risco de um perigo de morte. os pontos onde o ferro era mais raro.
115 Mas não há rogo que faça e que valha 1 1 9 Não cobria com a pele de serpente,
para que Ruggiero a si deixe a empresa. que era tão dura, o peito Rodomonte,
Por isso a observar fica a batalha nem de Nemrod 1 2 1 a espada tão pungente,
com coração trémulo e face tesa. nem o seu elmo lhe cobria a fronte;
Ruggier e o pagão, cada um na esgalha, essas armas, quando lhe foi nocente
ao encontro do outro o ferro entesa. a dama de Dordonha sobre a ponte,
No choque as lanças gelo ser pareceu; tudo no túmulo ficou suspenso,
os troncos, aves a subir para o céu. tal como atrás ter-vos contado penso 1 22 •
1 20 Tinha ele outra mui boa armadura,
mas não como a primeira tão perfeita;
nem esta ou aquela, nem outra mais dura,
a Balisarda faria desfeita;
à qual não se opõe encanto ou feitura,
nem fineza de aço, nem têmpera eleita.
Tão bem Ruggier cá e lá trabalhou
que em mais de um sítio as armas lhe furou.
121 Vendo o pagão que tanto enrubesceu
a armadura, e sem poder esquivar
tantos dos golpes que Ruggier lhe deu,
sem que lhe fossem a carne encontrar,
com mais raiva e mais furor se moveu
que em pleno Inverno o tempestuoso mar.
Larga o escudo e com todo o seu poder,
com duas mãos, de Ruggiero o elmo fere.
1 16 A lança do pagão, que fez fragor 1 22 Com a mesma extrema força com que cai
a meio do escudo, teve fraco efeito: a máquina no Pó, em duas naves
assim o aço, para o egrégio Heitor (com homens, roldanas, para cima atrai
por Vulcano temperado, era perfeito. e deixa cair nas agudas traves 1 23) ,
Ruggier também a lança lhe foi pôr do pagão o golpe em Ruggier descai,
no escudo, e trespassou-o a direito, com mãos acima de outro peso graves:
embora fosse quase um palmo grosso, salva-o o elmo encantado, sem o qual
dentro e fora em aço, e no meio em osso. pelo meio abria ele e o animal.
117 E se não fosse a lança não suster 1 23 Braços, pernas abre, e a cabeça a pino
o embate, e partir-se ao primeiro assalto, duas vezes tem para cair pendor.
que feita em lascas pareceu penas ter Repete o fero golpe o sarracino,
pelo ar subindo, tanto voou alto, sem dar-lhe tempo para se recompor;
que a couraça lhe abrisse era mister, ensaia o terço, mas o ferro fino
inda que houvesse diamantino esmalto 1 20 , não tem, para tanto martelar, vigor;
e acabava a batalha; mas quebrou-se, fez-se em pedaços, e ao cruel pagão
e fez que a grupa ao chão dos corcéis fosse. de si desarmada deixou a mão.
CANTO XLVI 739
124 Rodomonte, por isso, não desiste, 1 30 Na face do elmo e no ombro malha;
e atira-se a Ruggier, que nada sente Ruggier do golpe tanto se ressente
(tão atordoada a cabeça persiste, que por isso vacila e se atrapalha,
de tal modo ofuscada tem a mente!). e direito se tem dificilmente.
Para o acordar, o sarraceno insiste: Quer o pagão entrar, mas o pé falha,
cinge-lhe o colo com o braço potente, pois, pela ferida da coxa, era impotente:
e com tal nó e tanta força aferra querendo avançar mais que quanto podia,
que da sela o arranca e o deita à terra. logo um joelho em terra lhe caía.
125 Mal o chão toca, logo se endireita, 1 31 Ruggier não perde tempo, e, com alento,
mais do que de ira, de vergonha pleno, no peito e na face logo o devassa;
porque para Bradamante os olhos deita, bate-lhe, e tão perto o tem um momento
e vê turvar-se aquele rosto sereno. que até com a mão no chão o amassa.
Vendo-o cair, ela o pior suspeita, Mas alça-se o pagão num movimento,
quase perdendo o seu senso terreno. e Ruggier contra si aperta e abraça:
Ruggier, para corrigir aquela afronta, gira um e outro, sacode-se e aperta,
saca da espada e o pagão defronta. e às extremas forças a arte concerta.
126 Lança o corcel contra Ruggier, mas ele 1 32 Da força, a Rodomonte, grande parte
sabiamente o evita e o pé retira, o flanco e a coxa aberta retirara.
e ao passar agarra o freio ao corcel Ruggier tinha destreza e muita arte,
com a mão canha, e em torno o regira, para a luta tendo habilitação dara:
enquanto com a destra ao infiel sente-se em vantagem, não se desparte;
ferir o flanco, o ventre, o peito mira; onde vê que o sangue mais o encharcara,
com duas pontas o fez ficar branco, e, onde que o pagão mais ferido está vê,
uma na coxa e a outra no flanco. põe braço e peito, põe um e outro pé.
127 Rodomonte, que inda na mão trazia 1 33 Rodomonte, cheio de ira e despeito,
o punho e os copos da espada quebrada, Ruggier no pescoço e nos ombros prende;
no elmo de Ruggier com tal batia, ora puxa ora empurra, ou sobre o peito
querendo aturdi-lo com tanta pancada. o levanta do chão e o suspende,
Mas Ruggier, que, justo, vencer devia, gira-o de quando em vez e tem-no estreito,
tomou-lhe o braço e deu tal badalada, e para o fazer cair muito contende.
juntando à mão direita a outra mão, Ruggier, recolhido, à acção intima
que por fim tirou da sela o pagão. senso e valor, para lhe ficar por cima.
12s A força ou destreza fez que caísse 1 34 Tanto foi os gestos mudando o franco
o pagão, de Ruggier ficando a par: Ruggiero que Rodomonte cingiu;
em pé; e porque espada possuísse calcou-lhe o peito no sinistro flanco,
Ruggier, em vantagem parecia estar. e com toda a sua força o oprimiu.
Que o pagão se lhe chegasse interdisse, A perna destra os joelhos dum tranco
não o deixando muito aproximar: barrou ao pagão, e ali comprimiu;
quer ter longe de si, a todo o custo, a tirar os pés do chão o obrigou,
um corpo que é tão grande e tão robusto. e, de cabeça, na terra o esticou.
129 Porém vai vendo o flanco e a coxa quanto 1 35 A cabeça e as costas Rodomonte
se ensanguentam, e as restantes feridas. na terra imprimiu, e com tal pancada
Espera que venha a enfraquecer tanto que o sangue das feridas, como de fonte,
que tenha de pôr fim às investidas. longe foi, fazendo a terra encarnada.
Punho e copos o pagão entretanto Ruggier, que agarra a Fortuna pela fronte 1 24 ,
agarrou, com suas forças reunidas, querendo que ele para se erguer não tente nada,
arremessando-os, e Ruggier colheu: aos olhos o punhal com a mão lhe avança,
muito mais que antes, ora entonteceu. outra na goela, e os joelhos na pança.
74 0 ORLANDO FURIOSO
136 Como às vezes onde se cava o ouro 137 Pela viseira do elmo lhe apresenta
(ou na Panónia 1 25 ou nas minas iberas), a ponta do seu punhal, de imediato;
aos que ali vão, ávidos de tesouro, ameaçando-o, que ele se lhe renda tenta,
surpreendem derrocadas severas, propondo-lhe, de o deixar vivo, pacto.
mal podendo escapar-se por um poro Mas ele, a quem menos morrer espaventa
seu bafo, pois opressos estão deveras, que de cobardia um mínimo acto,
assim foi o sarraceno oprimido torce-se e abana, e para o outro montar
pelo campeão, quando ao chão foi expelido. usa a força, sem resposta lhe dar.
CANTO XLVI 741
finis
Pro bano malwn: na primeira edição, de 1 5 16, este Posteriormente, fo ram cunhadas medalhas com
moto surgia a encerrar o poema, circundando wna gravura a efígie de Ariosto, que apresentavam, na face oposta,
que representava wn enxame em fuga de wna colmeia a que o mesmo moto a circundar a gravura atrás descrita,
fora ateado fogo. Desconhece-se se algwna intenção particu ou uma outra, na qual se vê uma mão segurando uma
lar moveu Ariosto a fazê-lo. Talvez reflicca a sua mágoa pela tesoura que corta a língua a uma serpente. De toda
pouca generosidade que enconuou nos homens, ou pela a vasta simbologia associada à serpente, lembremos
insensibilidade dos que não sabem apreciar a dádiva da poe apenas que ela sempre foi atributo da poesia e das
sia, da qual o mel é metáfora. Ou calvez fosse, simplesmen artes.
te, wna forma elegante de rematar o poema com wn epigra Como tradução do moto, pode sugerir-se: «por bem
ma que exprime wn sentimento hwnanirário. fazer, mal haver».
742 ORLANDO FURIOSO
1
-.-
NOTAS
35 Os Capilupi { . .] Montino: os cinco irmãos Capilupi, 46 Mais dois [ .. ] Guarino: Alessandro degli Orologi,
homens de letras de Mântua, e Floriano dei Floriani, de homem de letras de Pádua, e Alessandro Guarino, pro
Montagnana, amigo de Ariosto. fessor em Ferrara e secretário de Alfonso I d'Este.
36 E aquele { . .] Camillo: Giulio Camillo Delminio, 47 Maria d'Olvito: Mario Equicola, de Alvita, na Cam
autor de um manual de Eloquência. Regato ascreu é a pânia. Foi secretário de Isabella d'Este na corte de
fonte das Musas, junto a Ascra, na Beócia. Mântua e notabilizou-se pela sua obra Libra di natura
d'amore.
37 Marco { . .] Berna: Marco Antonio Flaminio, poeta
de Treviso. Giambattista Sanga, romano, poeta e secre 48 Pietro Aretino: escritor que nas suas sátiras e prosa
tário de Clemente VIL Francesco Berni, poeta florentino, libertina não poupava ninguém (flagelo dos reis) . Chamou
expoente máximo da poesia satírica do séc. XVI, em opo a si próprio «divino» e valeu-se das suas capacidades
sição ao petrarquismo; reescreveu o Orlando lnnamorato, literárias para conquistar fama, poder e a protecção de
de Matteo Maria Boiardo, em língua toscana, com o personagens ilustres. Foi considerado «escritor obsceno»
intuito de lhe melhorar o estilo, obra que conheceu graças aos seus diálogos de cortesãs (Ragionamenti, o Sei
grande sucesso. giornate).
38 49
Alessandro Parnese: romano, homem de letras e pro Eis dois [ . .] Cittadino: Girolamo Verità, poeta
tector das artes; veio a ser o papa Paulo III. veronês, e Girolamo Cittadini, poeta lombardo que
vivia em Ferrara.
39 Pedro, Capei/a e Porzio: Tommaso Inghirami, de
Volterra, alcunhado de Pedro por ter representado o pa 50 Mainardo [. . . ] Leoniceno: Giovanni Mainardi,
pel de Pedra do Hipólito, de Séneca; foi professor de médico de Ferrara, e Niccolà Leoniceno, médico e
Eloquência e prefeito da Biblioteca Vaticana. Bernardino homem de letras, professor em Ferrara e em Bolonha.
Capella, romano, poeta latino. Camillo Porzio, também
romano, poeta e professor de Retórica. 5 1 Pannizzato { .. ] Teocreno: Niccolà M. Pannizzato,
literato e poeta latino, professor em Ferrara; Celio
40 O bolonhês { . .] Madalena: Filippo Beroaldo, de Bo Calcagnini, poeta e professor na Universidade de
lonha, poeta latino, foi prefeito da Biblioteca Vaticana. Ferrara; Benedetto Tagliacarne, por alcunha Teocreno,
Mario Maffei, de Volterra (o Volterrano), poeta lati de Sarzana (perto de La Spezia), preceptor dos filhos
no. Evangelista Paolo Maddaleni (o Madalena), poeta de Francisco I de França.
latino.
54 Vejo o { . .] Bevazano: Girolamo Fracastoro, médico
41 Blosio { . .] cremonês: Biagio Paliai (Blosio), romano, e homem de letras veronês, e Agostino Bevazano, poeta
foi secretário de Clemente VII e Paulo III. Giampietro em língua latina das cortes de Leão X e Clemente VIL
Valeriano Bolz.ani, de Belluno, poeta, historiador e arqueó
logo; alcunhado de Pierio por ser cultor das Musas ou 55 Trifon [ .. ] Tasso: Trifon Gabriele, nobre veneziano,
Piérides (de Piéria, região da Trácia); Marco Girolamo grande humanista; Bernardo Tasso, poeta de Bergamo e
Vida, de Cremona, poeta latino, foi bispo de Alba e par secretário na corte estense, pai do poeta Torquato Tasso,
ticipou no Concílio de Trento. autor de Gerusalemme Liberata.
42
Lascari: Iános Lascaris, grego refugiado em Itália 56 Nico/à Tiepoli: patrício veneziano, poeta em latim,
após a queda de Constantinopla, fixou-se em Florença, foi doutorado pelo papa Júlio II, em virtude da sua
onde fez parte do círculo cultural de Lorenzo de' competência para o debate.
Mediei. Em 1 S 13 fundou em Roma o Colégio Grego. 57 Nico/à Amanio: poeta de Cremona, amigo de
Foi diplomata na corte de Francisco I de França. Matteo Bandello e por este recordado na primeira das
suas Novel/e (214, divididas em quatro volumes e de
4 3 Mussuro e Navagero: Marco Musurro, grego, discí temas variados).
pulo de Lascaris; humanista, ensinou Grego em Pádua
e foi ordenado cardeal por Leão x. Andrea Navagero, 58 Anton Pulgoso: Antonio Fregoso, poeta e filósofo
humanista, poeta e historiador, foi embaixador da Re genovês.
pública Véneta em Espanha e em França.
59 Valeria { . .] seduzido: Gianfrancesco Valerio, fidal
44 Andrea [ . .] Severo: Andrea Marone, improvisador go veneziano que Ariosto apresenta como misógino
de versos latinos na corte de Ippolito d'Este. Severo da (afastado das damas), e que tenta incutir ideias idênti
Volterra (manje Severo), poeta e monje da Ordem dos cas em Pietro Barignan (poeta de Brescia). Já em
Camaldulenses (fundada por São Romualdo em 1012, XXVII: 137 ss. tinha contado ao taberneiro a história
em Camaldoli, no alto dos Apeninos). misógina que ele narra a Rodomonte.
45 Elo: grupo. 60 Vejo { . .] Pio: trata-se de Gianfrancesco Pico della
Mirandola, sobrinho do filósofo e humanista
Giovanni Pico della Mirandola, do círculo de Lorenzo,
744 ORLANDO FURIOSO
75
il Magnifico, e seu primo Alberto Pio di Carpi, com Ganel on: Ganelon de Mogúncia, considerado, nas
panheiro de estudos de Ariosto. lendas carolíngias, o traidor de Roncesvalles (desfila
deiro dos Pirenéus navarros, onde os Bascos, em 778,
61
Negligencio: nunca conheci. derrotaram a retaguarda de Carlos Magno, após a sua
falhada expedição a Saragoça). Em Roncesvalles,
62
lacobo Sanazar: lacopo Sannazaro, poeta de Roland (Orlando) e muitos outros foram vítimas da
Nápoles. A sua obra Arcadia, primeiro exemplo de sua emboscada. Ganelon era, antes da traição, paladi
romance pastoril, teve enorme difusão e imitadores na no de Carlos Magno; como tal é referido em XV:8:7
Europa, entre os quais os escritores portugueses Sá de ( Ganel one) , e XVIIl:10:2 ( Ganelon tra idor) .
Miranda, Diogo Bernardes e Camões.
76
Anselmo [ . .] Ginami: Anselmo de Altaripa e outros
63 Faz baixar [ . .} beira-mar: nas suas Egloghe pescato membros da família de Mogúncia, inimigos figadais
rie, Sannazaro desloca as Camenas (ninfas das fontes, dos de Mongrana e Claramonte que hão-de matar
associadas às Musas) dos montes para as praias. Ruggiero (c( XLI:61:8), encobrem (com açamos) , por
enquanto, as suas intenções.
64 Secretdrio Pistofilo: Bonaventura Pistofilo, notário,
77
secretário de Alfonso d'Este, a quem Ariosto dedicou De [ . .} fado: a morte de ambos. O primeiro foi
uma das suas sátiras. Contribuiu para que o poeta morto por Bradamante (cf. XXII:97), e o segundo por
entrasse ao serviço do duque, depois de Ippolito ter Ricciardetto e Aldigieri (cf. XXVI: 13).
dispensado os seus serviços.
78
Adrianópolis: actual Edirne, cidade turca da Trácia;
65 Os Acciaiuol i e Angiar: Pietro Antonio, lacopo e fundada pelo imperador Adriano, é aqui apontada
Archelao Acciaiuoli, florentinos, funcionários da corte como capital dos Búlgaros.
de Ferrara; e, supõe-se, Pietro Martire d'Anghiari
79
(Angiar) , poeta e viajante. Campo franco: recinto disponível para !iças e duelos.
66 80
Annibal [ . .} parente: Annibale Malaguzzi, natural Bando [ . . } guerrilha: os anjos rebeldes.
de Reggio Emilia tal como Ariosto, e seu primo; é
81 Em pl eno forno: ao calor do meio-dia.
nomeado em duas das suas sátiras.
67 82
Adoardo [ . .} grito: Adoardo, poeta conterrâneo de /tio: Tróia.
Ariosto, que aqui profetiza que ele fará chegar a fama
83
da sua terra de Gibraltar ( Calpe) às Índias, ou seja, do Depois [ .. } exorte: Sínon foi o esp1ao que os
Ocidente ao Oriente. Gregos, simulando que partiam definitivamente, dei
xaram em Tróia. Fazendo-se passar por vítima dos
68
Vittor [ . .} Tancredi: o grego Vittor Fausto, profes compatriotas, instigou os Troianos a introduzir na
sor de Grego em Veneza e também superintendente do cidade o grande cavalo de madeira, em cujo bojo se
Arsenal veneziano. Angiolo Tancredi era professor na escondiam os guerreiros gregos que destruíram Tróia.
Universidade de Pádua.
84 Menelau [ . .} deu: na Odisseia, Proteu é um deus
69
Que agora adiante passe: que prevaleça. do mar que apascenta os rebanhos marinhos de
Posídon. Ariosto atribui-lhe a mesma função no episó
7
° Falsa insígnia: a insígnia de Leone, que ele usou dio da ilha de Ebuda (c( VIIl:51 ss.). Aqui, porém,
para travar o duelo com Bradamante. Proteu surge como rei do Egipto, identificação que lhe
foi atribuída por Heródoto. Nesta versão da lenda,
71 O [ . .} Ruggier: o escudeiro que acompanhara Proteu reinava em Mênfis quando Helena e Páris
Ruggiero para o Oriente (c( XLIV:78:1-2) e que ele lá foram arrastados para a costa egípcia por uma tempes
deixara ao regressar (c( XLIV:99:7-8). tade. Levados à presença do rei, este decidiu que Páris
regressasse a Tróia, retendo Helena e os tesouros trazi
72
A dguia [ . . } vermelho: insígnia do Império dos de Esparta, que devolveu a Menelau quando ele ali
Romano, pertencente a Leone (cf. XLV:69:3-4). a foi procurar, após a Guerra de Tróia. Porém, no que
concerne ao pavilhão feito por Cassandra e oferecido
73
O encanecido [ . .} pronta: Egeu, rei de Atenas, ins por Menelau em troca de Helena, é um acréscimo de
tigado pela mulher, Medeia, preparara um cálice enve Ariosto.
nenado para dar a beber a Teseu, filho que ele nunca
85
vira. No último instante, porém, reconheceu-o pela Ptol omeus: dinastia egípcia que terminou com
espada com que cortou a carne. Fora ele que a dera à Prolomeu XV, filho de César e Cleópatra. Octaviano
mãe de Teseu quando este foi concebido, para que a mandou-o executar após a sua vitória em Accio contra
usasse em adulto e pudesse ser reconhecido pelo pai. António e Cleópatra.
74 Mongra na e Claramonte: cf. nota a XXXVI:75:5.
CANTO XLVI 745
86 1 02
Agripa: Marco Vipsânio Agripa, político e general Duque dos Ínsubres: Ludovico Sforza, il Moro,
romano, foi o estratega da batalha naval de Áccio (31 a. C.). cunhado de Ippolito, era duque de Milão (Ínsubres, cf.
nota a IIl:26:6). Infeliz, pois foi feito prisioneiro pelos
87
Mar leucddio: mar circundante da ilha de Lêucade Franceses.
(Lefkds), muito próxima do promontório de Áccio (na
1 03
região grega de Acarnânia), onde se desenrolou a batalha. Ou [. . . } serpentis: ou, se em guerra, com ele leva a
bandeira dos Visconti, insígnia de Milão, com a figu
88
Augusto: sucessor de César. O Senado atribuiu-lhe ra da serpente (pendões serpentis) .
o título de Augusto, que passou a designar os impera
1 04
dores. Com ele se iniciou a era dos imperadores roma O traimento [. . . } cara: a conspiração que Giulio e
nos, e um dos períodos mais brilhantes da história de Ferrante d'Este preparavam contra Alfonso e Ippolito
Roma (o «século de Augusto»). Foi o patrono de (cf. nota a III: 10:7).
Vergílio.
105
E por isso [. .. } deu: por ter descoberto a conjura de
89
Tibério: sucessor de Augusto, de quem era entea Giulio e Ferrante, Ippolito seria merecedor do cogno
do. Governou o império com mão de ferro. me de «pai da pátria». Roma deu a Cícero essa distin
ção, por ele ter descoberto perante o Senado a conjura
9° Constantino: Constantino I, o Grande, aclamado urdida por Catilina, com os seus quatro discursos
imperador pelo seu exército. Reconstruiu Bizâncio e ( Catil inárias) , que constituem a obra-prima da orató
para lá transferiu a capital (o Tibre em tédio teve) do na romana.
Império, mudando-lhe o nome para Constantinopla.
1 06
Converteu-se ao cristianismo, que impôs como reli Em armas [. . .) concorre: supõe-se que se aluda à
gião do estado. guerra contra os Bentivoglio, que tentaram tirar
Bolonha ao Papa.
91
Mastaréu: a coluna central.
1 07
Chega r, ver, vencer: célebres palavras de Júlio César
92
Apeles: o mais famoso pintor grego da Antiguidade. após a vitória sobre Fárnaces, rei do Ponto (veni, vidi,
vict) .
93 As Graças: divindades da Beleza que espalham a
108
alegria na natureza e nos corações. Gente argiva: Gregos.
94 Rainha: Leonor de Aragão, filha de Fernando de 1 09
Vê-se [. .. } saqueada: alusão à batalha de Polesella
Aragão, rei de Nápoles, mulher de Ercole I d'Este e (cf. nota a IIl:57, e XXXVl:2).
mãe de Alfonso, Ippolito, Beatrice e Isabella.
110
Último dia: último dia dos nove que duram os fes
95
]ove [. . . } Marte: divindades que atribuem ao tejos (cf. 74:3).
recém-nascido as qualidades que os caracterizam:
111
Júpiter é símbolo do poder e da majestade; Mercúrio, Rei de Argel: Rodomonte.
entre outros atributos, é caracterizado pela eloquência
112
(facundo) ; Vénus e Marte são a deusa da beleza e o Donzela: Bradamante (cf. XXXV:48 ss.).
deus da guerra.
1 13
Embora [. . . } efeito: embora tivesse sabido do desfe
96 Mostrava [. .. } menino: Matias Corvino, rei da cho da guerra entre Mouros e cristãos.
Hungria, era tio de Ippolito e seus irmãos, pois casou
1 14
com Beatriz de Aragão, irmã de Leonor, mulher de Sárcia: cf. nota a XIV:25:3.
Ercole I d'Este. Mandou buscar Ippolito para a sua
11 5
corte, ainda em criança. Seu rei: Agramante.
97 1 16
Há quem [. .. } mão: Matias Corvino nomeou O marquês [. . . } fil hos: Oliviero e seus filhos
Ippolito bispo de Esztergom (cidade húngara a noroes Grifone e Aquilante.
te de Budapeste), com apenas sete anos de idade.
117
Tártaro iroso: Mandricardo, morto por Ruggiero
98
Fusco: Tommaso Fusco, que foi preceptor e depois (cf. XXX:64).
secretário de Ippolito d'Este.
118
O filho do dinamarquês: Dudone.
99
Das [. .. } parte: explicando os clássicos.
119
Namo: o duque da Baviera (cf. i:8).
1 00
Inda [. . . } feito: Ippolito foi ordenado cardeal aos
1 20
catorze anos, por Alexandre VI. Esmalto: esmalte, revestimento.
101 121
A virtude [. .. } despende: a liberalidade. Nemrod: cf. nota a XIV: 119:1.
746 ORLANDO FURIOSO
122 1 24
Tudo [ . .} penso: cf. XXXV:52:3-4. Agarra [ . .} fronte: tem a sorte do seu lado (cf. nota
a XVIIl:161:5-6).
A mdquina [ . .} traves: bate-estacas, máquina com que
1 23
1 25
se eleva, por meio de um guindaste, um peso que depois Panónia: antiga região da Europa Central, entre o
se solta e cai sobre a estaca que se quer cravar no chão. Danúbio, o Sava e os Alpes. Foi província romana, e
Ariosto certamente observou-a no Pó, apoiada em duas faz hoje parte do território húngaro.
barcas (duas naves), cravando estacas no fundo do rio.
ÍNDICE
Canto I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Canto II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
notas 70
Canto III 71
notas 82
Canto IV 85
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
Canto V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
notas 1 06
Canto VI 1 07
notas 1 19
Canto VII 121
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32
Canto VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 33
notas 145
Canto IX 147
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 59
Canto X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
notas 1 77
Canto XI 1 79
notas 1 89
748 ORLANDO FURIOSO
Canto XXXI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 99
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 14
Canto XXX.II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 528
Canto XXX.III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 529
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 548
Canto XXX.IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 564
Canto XXXV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 565
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 576
Canto XXXVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 586
Canto XXXVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 587
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 1
Canto XXXVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 603
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 614
Canto XXX.IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 615
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 626
Canto XL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 627
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 639
Canto XLI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 1
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 654
Canto XLII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 655
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 667
Canto XLIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 669
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 693
Canto XLIV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 695
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 708
Canto XLV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 709
notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 723
Canto XLVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 725
notas 742
cava lo de ferro
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