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RESUMO:
[ok]
PALAVRAS-CHAVE:
INTRODUÇÃO
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Letícia Pereira Burtet é acadêmica de Filosofia e Canto Lírico, além de cantora e coordenadora geral do
Illvminata – Grupo Livre de Pesquisa e Performance em Música Antiga, sediado em Curitiba/PR. Com enfo-
que na performance historicamente orientada, o grupo realiza repertórios que transitam do Medieval ao Bar-
roco, encontrando-se atualmente na fase transitória entre o período Medieval e Renascentista (Ars Nova).
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soluções para as questões da vida e da existência por um prisma baseado na pessoa humana e
não mais justificado em razão da fé. Assim, é preciso notar que tais transformações em muito
se deram devido ao avanço das relações comerciais e à crescente influência de uma nobreza
livre dos grilhões da igreja e da era medieval, assim como ao cisma da Inglaterra, ao movi-
mento reformista, entre outros. No contexto econômico e social do mundo renascentista, a
produção científica, intelectual e artística ganhou enorme fôlego, atrelando-se agora não ape-
nas à questão do sagrado, mas também atendendo aos interesses da aristocracia opulenta e dos
novos ricos comerciantes. A arte, portanto, passou a servir como elemento de ostentação, de
demonstração de equivalência ou superioridade entre cortes.
Neste “despotismo esclarecido”, a nobreza passou a incentivar as artes e a ciência
como forma de mostrar ao mundo sua superioridade. As cortes demonstravam sua riqueza e
domínio contratando os melhor médicos, engenheiros, músicos e diversas outras categorias
profissionais devendo estes estarem ali para atender as necessidades do seu contratante (me-
cenas) de acordo com o que lhes era solicitado. Os Medici, por exemplo, foram grandes, se-
não os maiores apoiadores das artes e dos intelectuais daquele período.
Este clima de novidade e fomento, que ficou conhecido por Mecenato, foi uma
das alavancas para a formação da Camerata Fiorentina no final do século XVI. Nela, Giovan-
no Bardi, Conde de Vernio, liderou em Florença, na Itália, um grupo de músicos e intelectuais
que se reuniram livres das amarras do catolicismo (apesar de não perderem a fé, a arte e as
ciências já não estavam mais submissas exclusivamente à questão de Deus).
Dentro deste quadro, é importante lembrarmos que a finalidade da música até este
estágio tratava de duas vias principais: ou destinava-se ao religioso, ou ao entretenimento.
Não existia neste momento o conceito de música voltada para uma plateia que ficava sentada
assistindo e apreciando a figura de um performer, mas sim músicos que tocavam profissio-
nalmente em igrejas ou em festas variadas (casamentos, por exemplo), bem como compu-
nham músicas para o entretenimento caseiro (as famílias compravam estas músicas e tocavam
em casa, por diversão).
A fundação da Camerata Fiorentina causou enorme revolução na forma de com-
posição e apreciação de música na Itália naquele tempo também por criticar o uso exacerbado
da polifonia (que surgiu na Alta Idade Média mas encontrou seu apogeu no século XV e iní-
cio do século XVI) e introduzir o conceito de monodia, onde a linha melódica solo era acom-
panhada por instrumentos tais quais o alaúde ou cravo e que tratavam de respaldar a palavra
cantada, mas não apenas isso, visto que a música vocal solo já existia e era executada há mui-
to tempo.
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Ainda, na obra “O Canto dos Afetos”, Ibaney Chasin (2006) identifica concei-
tos e dados históricos essenciais para o entendimento deste momento e das vias por onde evo-
luiu o pensamento renascentista rumo à produção barroca, passando pela descoberta dos tex-
tos aristotélicos por Girolamo Mei, sua mentoria à Camerata Fiorentina e os desdobramentos
desta produção que chegaram à Claudio Monteverdi, mais expressivo compositor do período,
e originaram o gênero operístico na Itália.
Na continuação deste pensamento, Chasin elucida ainda mais a questão, quan-
do em “Música Serva D’Alma” (2009), traz uma interpretação de algum modo contra consen-
sual em relação à maneira que esta composição e execução musical deve ser executada nos
dias de hoje. Defende, veementemente, que a habilidade virtuosística do intérprete é de suma
importância na exploração dos ornamentos vocais que em tanto caracterizam essa música in-
telectualizada, tornando-se a virtuose elemento fundamental para a explanação desta música
retórica.
Avançando nesta perspectiva, o modo com que a música deste período é executa-
da hoje em dia é também posta em discussão neste estudo, visto as diferenças ideológicas nas
vertentes acadêmicas de interpretação e execução atuais. De modo geral, uma corrente valori-
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za a segurança que se tem nos tratados por meio da certeza histórica que o documento traz,
consubstanciada pela comprovação de importância do autor. Já para a segunda, apesar de o
tratado possuir também indicativo sobre como as coisas aconteceram na época, sua aplicação
integral não teria o condão de representar todo o arcabouço intelectual e artístico da música
daquele período. Para eles, essa era uma música que continha no improviso parte fundamen-
tal, indispensável para sua existência.
É nesta via que este artigo se apresenta: na compreensão dos cenários que antece-
deram e culminaram na magistral música Barroca da primeira metade do século XVII, pas-
sando pelo surgimento da figura do performer (cantor orador) e da plateia, e consequente sur-
gimento da ópera, além de discutir as vertentes consideradas na atualidade para a execução
destes repertórios.
1 – O RENASCIMENTO
[O século XII na Europa] foi de muitas formas uma era de vida fresca e vigo-
rosa. A época das Cruzadas, do surgir de cidades e dos mais novos estados burocrá-
ticos do Ocidente, viu o culminar da arte Romanesca e o início da Gótica; o emergir
das literaturas vernaculares; o renascimento dos clássicos latinos e da poesia latina e
da lei romana; a recuperação da ciência grega, com suas adições árabes, e de muito
da filosofia grega; e a origem das primeiras universidades europeias. O século XII
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Humanismo aqui, refere-se ao I) movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade
do século XVI, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura moderna;
II) ...movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do ho-
mem (Dicionário de Filosofia, Nicola Abbagnano; tradução da 1ª edição brasileira coordenada e revisada por
Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti – 6ª ed. – São Paulo:
Ed WMF Martins Fontes, 2012)
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deixou sua assinatura na educação superior, na filosofia escolástica, nos sistemas le-
gislativos europeus, na arquitetura e na escultura, no drama litúrgico, no latim e na
poesia vernacular... (1955, p. viii, introdução, tradução nossa)
Dante Alighieri colocara São Tomás no Paraíso [em sua obra Divina Comé-
dia] exercendo certa liderança sobre os demais teólogos que lá se encontravam, nu-
ma homenagem à concretização realizada por ele da antiga pretensão da cultura cris-
tã de harmonizar Fé e Razão. (2001, p.165, explicação nossa)
Petrarca, no século XIV, desdenhava dos séculos que o antecederam por meio de
suas obras (em especial, poesia), tendo inclusive introduzido o termo tenebrae, ou tenebroso,
ao que viria posteriormente a ser conhecido por “idade das trevas”. Witt ilustra esse momento
da vida do historiador e poeta italiano quando diz que “a grande era de Roma terminou para
Petrarca no início do segundo século A.D. e depois iniciaram a era das sombras (tenebrae)
que presumivelmente suportou a geração de Petrarca.” (2012, p.704). Assim também diz
Franco Junior: “Admirador dos clássicos, o italiano Francesco Petrarca (1304- 1374) já se re-
ferira ao período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Tre-
vas.” (2001, p.9).
Esta espécie de lacuna que deixou a decadência do domínio intelectual da Igreja
fez, portanto, com que o homem renascentista italiano fosse em busca de uma renovação de
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seus valores e encontrasse na cultura greco-romana as ferramentas para tal, visto o sucesso
das realizações destas sociedades antigas. Ainda nas palavras de Franco Junior:
Girolamo Mei, mais expressivo historiador dos textos aristotélicos de seu tempo,
subsidiado por Giovanni Bardi (Conde de Vernio) e compartilhando seus achados em especial
com ele e Vicenzo Galileu, foi o grande pivô intelectual da revolução que estaria prestes a se
desenhar nos feitos da Camerata Fiorentina.
Nas palavras de Pelisca, musicólogo tradutor das cartas de Mei a Galilei e Bardi:
Com o trabalho de Mei encontramos pela primeira vez uma pesquisa históri-
ca pura no caminho da música. Não só por sua objetividade, mas ainda por seu al-
cance exaustivo, a investigação de Mei sobre a música grega supera toda e qualquer
tentativa anterior neste campo. (1977, p.35)
[Mei] não era um músico e não compartia dos pré-juízos dos teóricos musi-
cais de sua época, o que provavelmente foi uma de suas maiores vantagens, pois o
salvou de cair nos erros de seu contemporâneos. Mas Mei tinha uma vantagem ainda
maior: era o único filólogo e historiador especializado dentre os que buscavam os
segredos da música grega. (1977, p.2)
Chasin (2004), acerca dos ditos de Pelisca, reflete que “é exatamente por esta
condição – a de ser um humanista (renomado) conhecedor dos labirínticos espaços da música
grega, que Mei é procurado por Bardi e Galilei.”
Por tudo isso, Girolamo Mei trabalhou para o Conde de Vernio e a Camerata Fio-
rentina trazendo o norte filosófico aristotélico, comunicando-se com Galilei através de um
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Epistolário composto de seis cartas (entre 1572 e 1581), Destas, nos atentaremos à primeira3,
por ser na qual Mei mais dá maior ênfase e dedica-se à explanação do efeito da música antiga
grega nas emoções humanas.
Nela, Mei discorre acerca do conceito de mimese (mimesis), imitação pensada
ainda por Platão necessária à transposição das emoções do mundo ideal para o mundo sensí-
vel. Aristóteles retoma esse conceito em Poética, a fim de justificar a retratação das intenções
da alma por meio da oratória. Para o estagirita, a poesia é concebida como verdade (diferen-
temente que para Platão) e a mimesis é algo inerente ao homem. Afirma ele: “[...] o imitar é
congênito ao homem, sendo este entre todos os seres viventes, o mais imitador, apreendendo
por imitação as suas primeiras noções de vida, e além disso, o homem se compraz no imita-
do."(ARISTÓTELES, 1984, p.243). Assim, Aristóteles relaciona o conceito de imitação com
a arte representativa e a conecta com a busca pela catarse (kátharsis), sendo este o apogeu da
produção artística.
Sobre o conceito de kátharsis, Abbagnano descreve o pensamento de Aristóteles:
Esta é a base filosófica construída pelos achados de Mei, que foram levados pelo
Conde do Vernio aos músicos e intelectuais que estavam se reunindo em sua casa e compondo
o que viria a ser conhecido por Camerata Fiorentina ou Camerata Bardi, grupo de fundamen-
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Ver FIGURA 1: Carta de Girolamo Mei a Vicenzo Galilei descrevendo o efeito da música antiga grega nas
emoções humanas (em anexo).
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tação teórica humanista que buscava a execução musical aos moldes clássicos e que determi-
naria a história da música moderna, deixando seu legado nas práticas musicais até os dias de
hoje. Os estudos de Mei também embasaram o Diálogo della musica antica et della moderna
(1581), que viria a ser escrito por Vicenzo Galilei inspirado em seus estudos com Zarlino,
seus diálogos com Mei e suas práticas com a Camerata.
[...] A música do período barroco, que alguns teóricos encaram como tendo
começado ainda em 1570, na Itália, e terminado durante a segunda metade do séc.
XVIII, em países como a Inglaterra e a Espanha, tem o número variado de caracte-
rísticas de estilo e espírito, incluindo o uso do baixo contínuo e a aplicação da dou-
trina dos afetos. A ênfase nos contrastes (de textura, andamento, volume sonoro, etc)
na música do início do barroco, em comparação com a do final do Renascimento,
também é uma nítida característica. Entre os primeiros compositores barrocos mais
importantes incluem-se Monteverdi, Giovanni Gabrieli e Schülz [...] (1994, p.77)
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As damas da corte, por exemplo, dedicavam seus dias inteiros ao esmiuçar de par-
tituras que passavam a serem recentemente comercializadas e, reunidas em seus salões de mú-
sica, produziam amadoramente em busca de divertimento. Os compositores, por outro lado,
viam nesse interesse da corte em entretenimento sua forma de subsistência e, mais e mais,
compunham neste novo estilo que caía nas graças da sociedade da época.
O ensaio de Giustiniani catalogado por MacClintock:
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Legato (It., “ligado”) termo que indica notas suavemente ligadas, sem interrupção perceptível de som, nem
ênfase especial[...]. (SADIE & LATHAM, 1994, p.527)
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Trinado Ornamento que consiste da alternância mais ou menos rápida de uma nota com a nota um tom ou
semitom acima dela. O trinado pode começar na nota superior ou na principal, dependendo em parte de sua
função ser mais melódica ou harmônica. (SADIE & LATHAM, 1994, p.960)
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Rasi, Francesco (1574 – após 1620) Compositor e tenor italiano. Tido como aluno de Caccini, fez grande
sucesso como cantor e executante de chitarrone, tendo sido também poeta. (SADIE & LATHAM, 1994, p.
765)
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Os tratados de música que perduraram ao longo destes séculos nos trazem relatos
concisos das práticas musicais da época, a exemplo do Le Nuove Musiche de Caccini, escrito
importantíssimo sobre a forma dita adequada de se executar a música do final do século XVI
e início do século XVII. Acerca de Guilio Caccini:
Tendo em vista a riqueza de detalhes que alguns tratados nos deixaram, a execu-
ção destes repertórios hoje é, para uma certa corrente, necessariamente atrelada aos escritos
teóricos da época. Isto é compreendido devido à segurança que estes tratados nos trazem em
termos de formas de execução e de racionalização dos feitos musicais relacionados ao repertó-
rio daquele tempo.
O que a corrente antagônica de pensamento discute, contudo, é que a música da-
quele tempo era composta por improvisos e livre sobre o tema, onde os cantores contavam
inclusive com o aval de compositores para florearem sobre as “diminuições”, que no futuro
viriam a categorizarem-se como coloraturas. Sobre isso, em citação a Sadie, Monteiro nos ex-
plana:
Assim, o que esta corrente de algum modo tida como “antitradicionalista” afirma
portanto, é que se houve tratados, é porque este tipo de música era livre e improvisativa por
natureza, e assim os tratados seriam uma forma de balizar sua execução sim, mas também de
engessá-la sobre conjecturas que nunca poderão ser comprovadas, visto que não se pode via-
jar no tempo, e, novamente, as gravações não existem.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário De Filosofia. São Paulo: Wwf Martins Fontes, 2014.
ALVES, Eduardo F. Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio De Janeiro: Zahar,
1994.
CHASIN, Ibaney. O Canto dos Afetos, Um Dizer Humanista. 1ª edição. São Paulo: Pers-
pectiva, 2006.
JÚ NIOR, Hilário F. A Idade Média: Nascimento Do Ocidente. Saõ Paulo: Brasiliense,
2001.
HASKINS, Charles H. The renaissance of the twelfth century. Cambridge: Harvard Uni-
versity Press, 1955.
MACCLINTOCK, Carol. The Solo Song, 1580 – 1730. New York: W.W. Norton, 1973.
PELISCA, Claude. Girolamo Mei (1519-1594): Letters On Ancient and Modern Music to
Vicenzo Galilei and Giovanni Bardi, 2. Ed. rev. aum. American Institute of Musicology,
1977.
MONTEIRO, Thiago. A Voz de Orfeu: Um Estudo Sobre a Vida de Francesco Rasi (Are-
zo 1574 – Pistóia 1622). 2016. 119 f. Dissertação (Mestrado em Musicologia) +Programa de
Pós-graduação em Música. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.
ABSTRACT
This article is characterized by the search for an understanding of how the rediscov-
ery of Aristotelian rhetoric modified the way of appreciating, writing and perform-
ing music at the end of the 16th century and its development until the first half of the
17th century. From the intellectual production of Camerata Fiorentina and its rela-
tion with Aristotelian rhetoric, this article seeks to contextualize the way in which
the rescue of Aristotle's texts about rhetoric, besides the social and economic rela-
tions of the period, directly influenced the compositional and performatic musical
practice in Italy at the end of the 16th century, taking the performance from the
background and bringing it to the center of events. In the contemporaneity, this arti-
cle intends to point out the main current academic aspects regarding the execution of
the repertoire in question, drawing a parallel between the lines of thought put into
practice at the present time.
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KEYWORDS
ANEXOS
FIGURA 1: Carta de Girolamo Mei a Vicenzo Galilei descrevendo o efeito da música antiga grega nas emoções
humanas. FONTE: https://en.wikipedia.org/wiki/Girolamo_Mei#/media/File:Girolamo_mei_letter.jpg Acessado
em: 07/05/2017
Letícia, o texto já estava excelente. Com esta última lapidada ficou ainda melhor. Quase todos
os detalhes técnicos foram acertados, com exceção do espaçamento das notas de rodapé.
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Meus parabéns; uma produção filosófica de ótima qualidade. Vc pode tentar publicar seu ar-
tigo em revistas de graduação.
Valeu!
Nota 10