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LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO & EU

Luandino Vieira

Reservam-se todos os direitos desta edição à

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Rua Sebastião Desta Vez, n° 15-A, Vaiá dia
Luanda - República de Angola
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inclusive pela internet, sem prévia autorização da Editora.

Sérgio Guerra
José Mena Abrantes
Iracema Naiberg
Hugo Aranha Jr.
Kelly Cristina Araujo, Patrícia de Abreu, Verônica Aquino
Lica de Souza e Pedro Santana
Isabela Larangeira, Ana Lúcia Pereira,
Ma do Socorro Araújo e Sílvio Spínola
Lis Grdfica e Editora Ltda.

Edição

V6581 Vieira, Luandino (José Mateus Vieira da Graça)

Lourentinho, Dona Antônia de Sousa Neto eu / Luandino


Vieira. - - Luanda: Edições Maianga, 2004.
104 p. - (Biblioteca de Literatura Angolana).

ISBN 85-88543-05-2 (coleção).- ISBN 85-88543-07- 9 (v.).

1. Literatura angolana - prosa (português). 2. Prosa angolana


(português). I.Título. II.Série.
BIBLIOTECA DE
ACDD: 869.808

SBD-FFLCH-USP

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LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO EU - LUANDlNO VIEIRA

para Luísa

irmão sorri, desacredita? Sempre não queira ser sábio ig-


norante: rir é remendo na roupa rota - tapa só, esconde nada ... O
dito, repito: mandioqueira de musseque é superior criatura de
qualquer o douto vereador municipalesco!
Trintium de boca? dos livros, irmão, já disseram os muitos
doutores. O Espírito Santo até, o próprio Deus com Moisés seu
profeta: "Germinará a terra vegetação, ervas que dêem semente e
árvores frutíferas ... " - no terceiro dia do Génesis, logo-logo. Aí, o
homem, nem que era sombra de um sonho, jimboa-de-quimbundo
matriarca de netos já, se adoce ando para quizacas, sacafolhas.
Creia: a gente, junto com os paus, somos ainda foscas natu-
rezas. Se nem temos raízes, tudo só pó de rosas dos ventos ... O
que, bem ouvistas as coisas, pode nascer o seguinte já-agora: o que
que o irmão não sabe do que sabe?
Seus olhos boquiabertos, meu diploma: analfabeto, eu? Só
na cor. Estou preso; logo, penso. E, aprovado, dou o vade retro: o
que a gente sabemos das coisas é luz da luz que avança ou as três
trevas arrecuando? Isto é: a gente aprendemos, luz da inteligência
no para a frente; ou: as coisas nos ensinam - marcha-atrás de nos-
sa ignorância?
Silêncio seu, assim, é segurança de cartão-e-imposto, autoriza
vadiar a uso - não tem cipaio de rusgar por musseques do pensamento.
Só que mais a única pergunta, modo de dar encontro asa fria
de tirar panela no fogo: o irmão, branco assim, assim fulo - de cá
ou de lá?
Ingombota?!! Deus é grande, em meu coração a alegria de o
saber. E nada de perguntar por o perguntar. Pois tive um vizinho,
um chuio, nome dele o Manso Henriques, até que era casado com

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BIBLIOTECA DE LITERATURA ANGOLANA

uma cabrita benguelense e, filho nascido-filho registado lá nas terras grandes quinjongos. Um se descansa e cansa para dar travessia de
dele, Rubiães, Ruivães, Ruivões ou nome assim de raspar a língua tudo. Sempre a capital do mundo universo - qualquer lado a gente
depois de falar. Que não aceitava brancos-secundários para filhos olhávamos se viam mais eramos curvos horizontes. E quinjongada
dele, trafulho malagradecido. diferente hoje, falam: a pessoa lhe voando alto para asa ser só de ouro poente, em fim de tarde. Piápia
nasceram é em Lisboa ou no meio da rua e eles querem ser luandenses, e ferrão e pírula andorinham todo o ar, descem, procuram jinguna
camundongos, próprios caluandas de mentira, luandanos ... de levar no ninho dos filhos. A gente corríamos - capins sacudiam
Pois se de Ingombota - a mesma, que já não tem; ou a falsa o cheiro dos calores, espenujavam seus verdes, vinha a fresca festa
que lá está? -, da Ingombota dizia, então os amicíssimos inimigos: da noite, belas as estrelas. E, no xacato das pessoas, arco-Íris mui-
eu sou o que era, sempre do Kinaxixi, luandense da gema. Que tas vezes ninguém que sabia mais se é pó colorindo das areias ou
aceito amostra de areia musseque na direita, mar muxiluanda na amarelo zumbir das abelhas.
esquerda, d'olhos fechados, adivinho o sítio onde que saiu! A lagoa - palácio de sereia, água de meu susto contentamento.
Em Kinaxixi fui nascido; lá morri; e me ressurgiram. Hoje Lhe enchi mais é com minhas lágrimas. A mata - o irmão lembra
nem que sou mais sonho de nossa lagoa. Mas tempo teve nem aquela família de paus-de-acácia, os que moravam na esquerda, en-
nome eu que tinha, não usava coleira de papel. Era o eu; o tu; o trada maculussense? O pai, patriarca, canivete do Xôa não entrou,
ele - mais nada. Cada vez água - em dias de chuva, alcunhavam hora que ele quis sinalar o nome na casca. As filhas, siras; as das
minha técnica de urinar de mentira, rio do corpo; faganhoto, o chamas vermelhas, copa ardente; a do mel de alfarroba, as flores
"quinjongo", em meus voos de rede-e-rede, bassulas nas sombras todas de minúsculo violeta. Mupinhas, as tantas, onde que picas re-
das acácias; o "Catato-Vermelho" - por mais e meses, belo tardavam hora de ir no ninho, pipilam néctares. As buganvílias é que
cognominho. Que minha pele sempre não foi assim fula mulata. eram roxas descuidadas, cresciam copas e bissapas, sem escravatura.
Sóis muitos de vida minha assombraram a vermelha das areias Ah, irmão: tudo hoje é só nossas lágrimas no pó da alma, o
xacatadas, amussecando o que um branco pai me tinha dado. E fui verde cheiro da terra quinaxÍxica em baixo da chuva não tem mais.
pedra: a que matou o Candinho, me acusam em falso. Que dei, I Planície quinaxixe agora só acampamento, nómadas sedentários
hora da separação, eu para a Missão Quibalaú, ele, o Dinito, de terras e solos - bebem, sujam, cidadanizam verdes, tudo pastos
pseudo-sassino, para suas classes cabungas ainda. Capim fui - me nos rebanhos de suas ávidas macutas. Cegam o ar e o mar, civiliza-
chamavam um dia o "Bula-Matari", insulto que eles queriam xin- ção. Suicidam tudo. Que até prenderam minha alma - mafumeira
gar, mas já tudo só riso de meu coração. Um modesto capim da- de esbeltas saudades, irmã gémea ...
queles, refolhinhas de pedir desculpa de existir - e a força dele!'" Civilização? Irmão, sem ofensa: macacada atómica, séria e
E o "Nenangó" , sujo rebaptismo pagão em tempo das muitas grave, alegres suicidas. Ossos, pó, nada mais. Uma árvore só, úni-
gaiavas. Desapertado nos capins, enxotava as cores das borbole- ca sozinha, morta amostra de museu, nem que deixaram!
tas, gemia suores constipados. Os amigalhitos uatobavam' ria' per- Kinaxixi, agora, só capital do sonho novo.
dia as forças - tudo se esvoaçava de alegrias, vento nas b~cas 'secas Nasci lá - disse. E sou filho é só de minha mãe - negra. De
das ervas misturadas na planície quinaxíxil. seus panos do antigamente tive bondosa bênção até na morte. Me
Que Kinaxixi, o irmão não sabe, era a demasiada planície de ensinou orgulho de não saber quem é o meu pai, branco à-toa. Um
um só rio, a vala nossa. Por cima é que era a cubata onde fui nasci- homem, ela só disse, a vez única - e eu aprendi o sinónimo de cão
do, fronteiras do Marçal. Distâncias de voos multiplicados de os que mija em candeeiro, a ferrugem já não é mais com ele. Certeza

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de cada qual é só de mãe - voz de meu sangue. O que a vida não ombro. Assim, meses de todo o ano, dias vinticinco - nas águas
aceita: tem ismaéis e há isaques - encobertos filhos da carne, os luacentas, olho de luz de nossa sereia, quituta de Kinaxixi, ia adi-
uns; prometidos filhos do espírito, os outros ... antar receber canoazinha de oito doces, a caquinda.
E morri lá ainda, tarde noitenha de muita chuva, água de Superstições gentias? Me cacimbou todo era com água-ben-
toda a minha vida. Morri e ressurgi - o irmão, aqui, dificilita? ta da missa da Missão de S. Paulo, mamão E fazíamos pelo-sinal.
Então oiça e veja: no fundo da mata, a lagoa. Na água da Contanto, desculpe: o problema sempre não é esse - se sereia
margem, solitária - a mafumeira, esbeltas saudades. Ei-la, suma existe. Todo o problema é só um teorema: pessoa existe? De ver-
árvore. Que mais que grande, alta, bela, era minha alma. Pau dade mesmo - dono e patrão e escravo, sua a vida por conta e
bondadoso - quem que queria nele pendurava ninho, o de-junco risco, livre de nada mais?
até. Mistério de suas flores, abelhas que debicavam. Sardão se de- A si, confesso: sereia, sereia mesmo, própria quianda
fendia de berridas, espiralava tronco, ramos, galhos, com verde cazumbil, quituta de miondona - não existe! O que tem somos nós
folha camuflava. E nós? A gente víamos a couraça espinhosa, não mesmos divididos e multiplicados, muitos sítios, muitos tempos.
temíamos: o Xôa subia, gabarolia-se todo. Outros caíam - queri- A prova?
am. Sumaúma dela, culpa de sonos e sonhos nossos. Irmão: árvore Irmão: pessoa sempre não completa - o que no mundo
que era humana como nunca mais são os homens - o direito tron- vive é só a ínfima pior parte. O que nos falta é enorme.
co recto, não bajulava: um só. Crescia ramos nos quatro cantos Porque eu recebi as três chamadas, ainda tolo materialesco,
dos ventos todos, sem discriminações. Sol, nela, virava mínimo vaidade das vaidades salomónicas, não aceitei.
satélite - o de marcar doze signos de sombra com a gente suas Primeira vez, a que conto.
estrelas. E cada hora, horascópio de brincadeiras: pedrinhas A tarde que era a da chuva de março. Capins quinaxixes
cabebele-taxi; qui pia de bilha; bassula, gapse, prega-desprega, as perdidos dos olhos cegos, vento de areia de água. Todo o ar era
outras muitas todas, de lobo-e-cavalo-quem-da-serra-cai, até ver o azul, fechados nos dentros dele nossos gritos combairros. Se cor-
Bucha se masturbar. ria, tropeçava - a água vermelha fuafuava espumas, desfazia as
E, debaixo da mafumeira - eu. Cara lavada, quieto. Mamã trilhas. Rir de relâmpago fechava nossas bocas, alguns se davam as
reza e se grita nas palavras do quimbundo. Tudo por baixo de céu mãos amigas, travessia da planície. E eram os três grupos. De bai-
mudo, o que ainda não é da noite, da tarde é que já não é mais. xo, pelo ocidente da lagoa, no barro chapinhoso, o nosso: "Mis-
Chama, clama. Eu seguro a caquindazinha dos quitutes, oito, nú- são Quibalaú". O Nguxi, do Cayatte, mais-velho, nos empurran-
mero igual dos meus anos no dia da morte. O silêncio da árvore é do por margens que nem já víamos, só o xaxuaxo das folhas, san-
quem que ouve meu coração agradecido. Velha Pitra, digo: nga gue fresco da acácia-vermelha boiando à toa. Chapinhávamos be-
Nanana, senhora minha mãe - agradece vida, morte, surreição, leza de flores. E mais: eu, atrasadenho; o Zé-Marau arregando a
em seus saquidilos do antigamente. Derramo gotas de quinado, se nhufa do Cisquito, corajador nos silêncios de mão dada. Outros
abrem as águas em risos riscos redondos de margem a fundo. As nem eram quinaxixenses, esqueci nomes. E este, o Cisquito,
três moedas iguais, do macunhatano, um só chape de calar rãs. brancúnico lá em nossa escola, lhe chamavam por isso era o
Depois tem de se sentir o que o vento não fala nas folhas. Nessa "Herejes". Para cima, então, rota do Marçal, declinação para ve-
hora nada que vivia a sua vida, a mafumeira toda respeitosa. Passa- lha casa da velha Kapaxi, refúgio abandonado, os da "Escola-
va a mão nos espinhos, mamã cruzava seus panos milélicos sobre o Cabunga" ainda deram sinal de esperam-só. Queriam luta, peleja

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de pedra em tarde feia?A gente é que apedregámos os outros outros, Escorria chuva meu nariz, chuva - o cheiro que a água tem da
os do "Colégio" - cabeçário deles um peludo, o Montargir. Eles vi- chuva é o que sempre nada mais tem. Vertigem? Vala sempre aber-
nham às boas, cagaço de trovão comia as manias deles. A gente não ta frente de meus cerrados olhos. Aí, malembelembe, muito triste
demos a cúnfia, vuzámos pedras e fisgas: eles calçavam sempre sapa- como quando se beija um morto, ouvi a luz, seu gosto de formiga
to, não se podiam falar. Chovia sempre. O mulato Pipoca, piorenho trincada nos meus beiços, água.
de todos - usava óculos, já vendia alma dele. Agora, na hora, nos Tremi: ela, a leve pétrea mafumeira, me olhava de lá. Bela,
gritava de mucueto do outro lado da lagoa. E vi só o Olímpio, aleija- assim tal-igual: olhava. Olhava - como quando cego cafofo nos vê
do, em seus sempres olhos de cão cuatado: curtia saudade de nossas nos olhos e a gente não sabemos ele está vendo o que o próprio
brincadeiras forras ou tudo só mágoa de perna de madeira-armada? nunca pode ver: os fundos do de dentro de cadaqual. Copa de
A ele atirei osso, adeus de mão, mano a irmão. Chovia - o que a ninhos, os ramos quietos. Tronco brilhava, o ar por volta pó de
palavra queria dizer em aqueles antigamentes de tempos e meses. E um sol escondido adonde? Nela sempre não chovia, auréola santa
não era só alinhavo de água no pano da tarde: tinha berro e ferro de tarde fresca. Rezei: "Mam'etu! ... " - a árvore me doeu. A outra
trovoar, relâmpago ria, uivo bufio do vento. A água desaparecia tudo dor que não é nossa, vem de fora, fere nosso coração. Sem peso,
- o mundo se evaporando de nossos olhos. Chapas de cubatas voa- corpo de sumaúma - eu. Que até mirei pés de barro quinaxixense:
vam. Aí, longes ecos, senti o grito-de-índio, sinal de combairros. Lon- capins, em sob eles, reerguiam as cabeças, sacudiam sementes.
gínquas sombras, seriam centopeia dos da-cabunga? Dinito e seus Mundo sem sílaba de gosto, cheiro, engoli lágrimas. De lá, sem-
ferrenhos para nascente do rio, davam encontro o vau. Com Zito e pre, ela olhava - e o oco do meu coração virou parecia era saco
Ginito e a menina quilumba Xana - eu queria estar lá; então fugi o vazio. Era minha casa: nela, mínimo, caroço, sentia bater todo o
grupo, traí a retaguarda ... enorme corpo. Desmaiado? Então era com as clarividentes luzes
Aqui se carece mais é o ponto de acautelação: toda a qual- todas de ouvidos, olhos, alma. Mas aviso não ouvi, asa de mexer
quer vala é para ser saltada - e está na frente de meus pés, desafio. de flor a folha, grito de chuva, nada. Silêncio de todo o tudo. A
O irmão pense e oiça: vida é estória de mudo, tudo são os beleza do pau, gema de um ovo de tempestade. E a tristeza minha
sinais. Mas é no barulho - ou no silêncio que ele vazia? companheira, desde aí: a de não saber o que se sente que se sabe.
A vala sorvia o ar para suas espumas. Era o ronco de rã de Irmão, sem ofensa: só levando-lhe a passear no meu silêncio, mão
muitas águas roucas de areia. E o peso da chuva, peso do mundo em mão, podia mostrar ao senhor o que hoje ainda sinto - falar é
no meu corpo. Fixei margem de lá - onde que os capins eram mais babélica maldição, creia. Pense em morto vendo-se morrido,
verdes. E amarrei os quedes. Quem que me segurou, a vez primei- morrente. Pode? Aceita? Assim era eu, estava lá.
ra? Rir de água ou trovão? Só procurei verdade do que ansiava- E saltei na mesma - eu tinha já oito anos e o homem sempre
lá, alhures, em nossa planície, os dinitos cruzavam e descruzavam, lhe nascem corrompido. Vaidade é do ovo, nada do calor da gali-
alegrias, vozes, chuvas: com eles a moça, menininha e nossa, Xana, nha ... Nós em nossas fanfurras - quando nosso macaquético avô
a de cara de porcelã ... veio sujar as paisagens do éden já os paus estavam perfeitos ... "E
Prisioneiro do ar, quis voar - caíram as asas, saca de livros. assim foi. E a terra produziu vegetação, ervas, árvores ... e Deus
Só que nada não ouvi: gafanhoto pesado de chuva não salta e o viu que estava bem feito. Alguma vez o irmão leu que o Criador, ao
cafuca se afunda é com mais vida, água não leva. Nem ainda neblinar sexto dia, olhou e viu que estava bem feito o que tinha feito? Não
de a qualquer sombra, por longes pertos. Ver, que visse, nada vi. está lá no Génesis, com todas as letras, efes-e-erres: Deus não

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mente - ele mesmo não olhou para trás, o homem não lhe agra- tocava na ponta do ramo. Como ele quer, provas de ponta-de-cigar-
ro-e-fósforo, então 25 de março era data do dilúvio. Com ele, ou-
Desculpe, saí da vala de nosso rio, já ia pelos quinaxixes da tros: os brancos do bairro - polícias; comerciantes quitandeiros; um
toleima, dificilito tudo. O curial então, materialesco, o que barbeiro amulatando-se com sua mulher da terra. Excepção: o sapa-
matéria de resumo, vida não sendo da casca o branco de um ovo teiro pai do Zeca. Bíblico homem, com seu caçula às cavalitas bifur-
- s6 o de dentro, o que é mistério de adivinhação ... cado no pescoço, viu; ouviu; releu - veio com estória de corvo e
Água me engoliu e cuspiu - eu berrei berros antes; quis na- pomba e raminho de oliveira, lhe enxotaram de xalado. Também
dar só depois, nada sabia mais nos turbilhões. O que sempre era, não ceito: Deus já fez o que tinha a fazer, o resto é com nossa vaida-
era a mafumeira brilhando na curva em baixo. Deusa seca na tem- de. O que tem é mais mundos, mais nós mesmos.
pestade das águas, me afundei, última visão: alta, bela, árvore de a dona
Deus, a copa fosforescia sumaúmas, brilho queimou meus olhos. Alice, segurando o petromaxe na noite já calada, lua por testemu-
Morri. nha. O Macandumba ajudando a me retirar morto cheio de água,
Me ressurgiram. dos braços da mafumeira. Mamã Nanana xinguilara, me conta-
E aqui, as missangas de um rosário dos católicos: meus os ram. E na voz da vizinha já sorrira. O sô Bexilas berrava de dentro
padres-nossos, suas as avé-marias. Mas o credo, primeiro: não tro- da vala: "O Eu sei que mamã viu
co nomes; não invento cenas, casos. Isto, irmão, é só a toda verda- a luzinha atravessar a lagoa, mesmo no luar da noite - sereia, a
de por extenso. Nada é único, o mundo é enorme demasiadamen- quianda me salvara, me devolvendo vivo. No seu coração nasciam
te. Tudo por multiplicação e divisão, é repetitivo, aqui e alhures. doces, quinado, moedas, cara minha lavada, suas orações de
Pois eu tinha calção de suspensório de pano ... - uma força quimbundo - o que eu até já contei ao irmão ...
tem que ter que aguenta o que as coisas não querem ser, rebeldes, Pois se viver é perguntar só, ninguém nunca responde -per-
xibia! Amarra! Cipaio, no mundo. Se não, veja: eu não tinha sido gunto saber: o Macandumba, mensageiro de vitórias do Eixo com
agarrado na mafumeira; morria de vez; mamã só no mundo, nin- seu brado de vender jornal, Kinaxixi acima, conhecedor de trilhos
guém ou alguém que sustentava - outros filhos? Meretrícia? Se da casa de cadaqual, bêbado até, é quem se perdeu? Desviou cami-
podia dar assassínio até, luta de inrivais, serena era a beleza dela, nho dele, chocou na mafumeira, tacteou, água, vala e lama, soltou
velhinha. E mais as milheirentas consequências ... Isto, só uma via. seu santo-e-senha: me deu encontro pendurado
Porque, veja: estrouta - eu, morto; não estava aqui; o senhor tam- de galho, águas luzindo em sombra minha, meio da tempestade?
bém não, a esta hora e sol- estaria onde? Ali, com o guarda Acácio? Ele quem que era quilamba, mamã murmurou só para seu
Acoli, com aquele, o Brasileiro? O Boinas? O Doutor? Ou o San- coração - pé torto, aleijado, inclinando à esquerda; mão direita
tas-Orações? Ou: quem sabe mesmo? Cá dentro? Lá fora? Resu- seca, mirrada, outro baloiçar. Os máximos sinais.
mo: podia ser, anarquia desorganizada assim, o mundo todo? O acaso - é o irmão que rouqueja? O à-toa tem suas fErreas
Eu usava calção de zuarte e suspensório do mesmo - mas o diferentes, todas anárquicas. Coincidências? - no atrás já ou-
ramo da mafumeira era mais que a minha altura. E o· pau, meu 'Destino? Milagre? Bem vistas e meditadas as coisas, tudo na
irmão, mergulhava os pés na vala, mas o corpo lá em cima, margens. é milagre, irmão.
O sô Cardoso falou que a vala ia demais cheia, disse de nível Então, a direito por outras luzes. Vamos à vida - que é onde
e prumo, provou de raiz quadrada: na hora de eu boiar, a corrente () homem se entorta por direitas linhas, como Deus quis.

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LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO EU - LUANDINO VIEIRA
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Subi a serra.
Daí, de nosso Kinaxixi, cresci - que é o que nem tem estória,
Cheguei lá - onde a segunda chamada me agarrou. Serra da
é só resumo que Deus quer, modo de abreviar ida para seus para-
Chicuma, para lá, para cá, como queira. Dali é que eram as poucas
ísos, infernos alheios. Cheguei na idade de olhar na sombra e já
horas a Caluquembe; vice-versa à Chicuma, povoação. E tinha rios,
lhe achava demasiada demais. Pois tudo que tem sombra, morre.
Saí; aprendi; vivi terras e serras - aos doze anos, ajudante de águas - as que só correm é na pedra fria, água azul, sem poeira de
barro. Verdes eram os morros, escuros; lavados os pastos, o ar
carrinha, escola de contar as estrelas e as chapadas.
O tempo, então, passou. Passou - ainda passa? Hoje, irmão, seco de eucaliptos foscos. Vacas de chocalho; estábulos - casa de
nem mais sei. Tudo vem e vai e volta, está comigo se eu quero. musseque é inferior, qualquer. Tão altas as suas serras, os seus
Tempo não é só árvores que a gente vemos no comboio de nossa frios vales fundos, e secos os ares. Menos árduos, os caminhos
vida? Para o Sul, cruzeiros do sul, sempre mais a fundo, Luanda pelos capins. Um regato flui dizia risos de mulheres, pó de fuba
ficando longe, mais perto do coração. Amar maior é sempre para quindele secando nas pedras. Era rio todo o ano, falarido das lava-
lá. Corri Cela e Cheia, laranjais de Camacupa - aprendendo deiras, ventos domésticos. Nossa casa, tudo só orientação solar,
tractores; roças; porrada; sisal. Lá, onde os cuanhamas vivem li- desprezo de bufios de xaxualho - ventania era caso de só nuvens
berdade de seus rebanhos, bebem leite azedo e o ar é sempre mais saberem, nós no fundo, vale. Mata de eucaliptos refolheando a
frio, virei chofer - a vida me dava as cartas. noite, nas sombras do quarto. E fazia muito frio, dormia cedo -
E sonhava. Por onde que andava, sonhava, chorava: eu que- friorenho camundongo.
ria rever meu Kinaxixi, mafumeira era já só de luz, recordação Era o paraíso?
encantada. Mamã Nanana; Luanda; o mar. Senhora dona Guidinha, bondosos dentes de cavalo, abusou
O mar! Mar! MAR!. .. meu sono, me tirou a costela ... o
O mar, irmão! Por ele despedi num bóer, sem razão. Ouviu, e o resto no quimbundo umbundo, o que
calou: me deu jantar de despedida e aumento - eu disse que não. ela falava como água bebe a sede. A Nangasole, olhos em baixo.
Mandou senhora dele, chicronha, me pedir revogação da ida - eu Murmurou-se: Nos deixou frente a lado, um e ou-
disse que não. A menina Ellen, cinco anos, cinco risos - eu disse tra - a eva que eu media os passos na minha solidão, sem coragem,
que não. Irmão: quem que nadou nu em fimba de mar de Luanda minha patroa desamarrou o primeiro nó.
e Samba nunca mais na vida pode viver onde só tem seara de trigo: Dei de namorar, fins do trabalho - debaixo da varanda da
no sol, com o vento sul, lágrimas salgam nosso coração, esse sosso frente, outras que passavam, gentias de riso escondido, com seus
mar de mentira. óleos e penteados. A Nangasole, sempre os olhos baixos, me ouvia
Fugi de noite - o bóer me apanhou no caminho; baixei os com muita atenção demais. E eu marcava pontos, no dia-a-dia:
olhos; ele me deixou na estação da Ganda, sem uma palavra. Mas como o pano que ela gosta no nome, dei o lenço; prendas, ensovais
sei: até na hora da morte eu posso voltar lá, na fazenda "N~va-
- minha legenda de caluanda, camundongo camuelo, caía.
Holanda", meu amigo Fandarval, míope bondoso.
A gente temos a má-fama por terras sulanas e huilanas. E eu
Só que o homem é muito variável - no interim de sozinho
mulato - mesmo que pouco fulo. Para gentia similada era mas
em banco de pau de estação, na madrugada cacimbenha, virei. O
branco atrasado: casas com branco e ninguém que te respeita
vento sopra de onde quer que, o capim s'inclina ... - jurei não adi-
mulher de branco - lucro de fogo de relâmpago: queima a
antar ver nunca lobitango mar, primeiro sempre tinha de ser o
rasa, não coze feijão ...
muxiluanda, azul-grená.
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E as noites sempre minhas - não lhe convencia para os E lhe dei encontro. Nem sei mais se ri tê-la, se chorei vê-la.
três passos do pátio, boquinha da noite se armava de rosário. A pobre triste coitada, exilada de seus calores, gigante anã. Mas
Minha cama dormia fria. Aí, por dá-cá-qualquer coisa eu sempre com sua direiteza - tamanho não sendo documento, se
desalvorava, dava grandes passeios ao sereno. "Lourentinho ... " excedia em rectos troncos e ramos. Os picos delicados, não agres-
- ia pregando meus botões - "Lourentinho! Não é pena para o tes. Sem ninhos em copa, tão menina na sombra das alheias adul-
teu chapéu .... " Que ela, a Nangasole, era similada, pouco nada tas. E rocei meus olhos, dei os passos e arranquei: gravado a fogo,
gentia: aos domingos vestia óculos escuros, até ia missa a em tábua do rijo pau-ferro, se lia o que o tempo me guardava:
Caluquembe com a senhora dona Cuida, madrinha. Até que, Kacy Bombax - 4/5/1935. Para alemão, mesmo suíço, numa árvo-
como ela soube não sei - me voltou tudo que era dela era meu, re sempre não pode ter só nome de quimbundo. Sobrevivia nos
o lenço até: "Eye katetiwile evamba ... " - eu ainda ouvi, sussur- latins mortos - e era a mafumeira, mafuma, só.
ro chorosa para madrinha casamenteira. Ela queria-me como Irmão: vida sempre não é mais anarquia muito bem dirigida?
Deus mandou Abraão - circunciso para o pacto. "Isso passa! O homem-quê?! Sem ofensa: um macaco faz, não cria! O
... " - dona Cuidinha em mim seu bondoso sorriso cavalar. Mas homem é só pirisca no cinzeiro do mundo - sobra no jogo de
as outras, as das tardes do fim do dia, com suas enxadas e seios cartas, os parceiros são invisíveis ...
empoados, riam mais desabotoadas. A ver vai - uma alegria nunca vem só.
Então, atrás de alguns, nasceram os outros dias. Pois me deitei, pesado choro de meu coração, saudades - Lu-
Eu andava cheio de bizarras bezerrices: regava flores às noi- anda, meu Kinaxixi. Choro de pedra, parecia era o rio em baixo, rio
tes; desmontei ao tractor o motor; falava só, mudo para o mundo; de vale de lágrimas, nem a foz, nem a nascente, o que dói em nós. Só
comer, não comia requeijão - sinais de Luanda outra vez luz de nosso, dor do mundo afinal. E abri os olhos: a copa se redondava,
minhas coitadas saudades. poeira de sol cimentando folhas, maternal. E, subitamente, o anti-
Me aventurei a cortar capins e matos por ondes que nem gamente - eu, leve; sem peso sobre os capins se erguendo; os olhos
tinha conhecido - para lá das águas do Caluícatito, na fazenda é que ouviam o silêncio daquela luz toda, ouvidos moucos na cor de
bandonada dum suíço-alemão, Anse-Joiaquim, perto do rio gran- ouro do brilho. De certeza - que sempre não ouvi nunca mais o rir
de, Cubal, mas o da Hanha. do rio: Cubal secou. Secou? Água era onde eu dormia, parecia era.
Fazendão dos de antes-da-guerra, cortava o coração, nas Brilhada; bela; minha deusa de ouro - e tão dolorosa, ramos ergui-
ruínas de tudo. Só os capins prosperavam. As árvores ganhando dos na catedral do silêncio, o cântico meu tremer.
alforria, varriam os chãos com as copas. Entrei em pequeno bos- E o homem parou diante de mim, o pasmo nos seus olhos
que, lugar escolhido. De lá a pedrada, o rio espumejava. E ali é suados. Olhei, súbito terror - ah: uma mafumeira é uma mafumeira
que não era mais o jardim-das-plantas, orgulho do ido Joiaquim- é uma mafumeira, alegria minha. Olhos impuros podiam olhar o
ele fora dono de árvore e pau, e arbusto, essência, bissapas, flores que eu vira? Toda outra vez espinhos e copa e ramos, sem ninhos.
e sebes, tudo arrumado e marcado. Assim a modo que inventário Só. "Acorde. Ou não ouviu? .." - e tocaram a buzina: de lá, ela.
do éden, teimosias - que, ali, por frios, a palmeira-dendém não dá Primeira vez que a vi: a saia de quatro machos, camurça castanha;
e lá estavam, selváticas, raquíticas. Avancei-me - tudo perene, só blusa azulão - a gola o riso, renda branca serrilhada. E o que nela
sustava eram mais os sardões e lagartos. nunca vira noutra - a enorme grandúnica trança, ouro ao sol por
Passarada. cima do ombro. Os olhos é que eram brancos, tão azuis.

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LOURENTINHO, DONA ANTÓNIA DE SOUSA NETO EU - LUANDINO VIEIRA
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alegria de camundongo, bem batido o ritmo em caixa de fósforos. Frescamente, como aquela água sabia, minhas lágrimas com
Dona Guidinha se levantou, relógio meia-noite. "Só mais uma, ela. Era sol de meio-dia. No ar quente e seco, asas de borboleta
tia. Aquela que o Lourentinho m' ensinou ... " reviravam cores; um bando de pombos bravos de repente, o azul
A dua, meus olhos nas rosas pálidas de suas bocas frescas, nu de nuvens, infinito.
alegria virou saudade demais, chorei lás menores, dós maiores - Descalcei mexicanas, tinha cigarras zingarreando; a camisa;
"Luanda fica longe, aía aía mama, Luanda fica longe ... " - o canto camisola; devagar no ritmo de peregrinação das águas, as abelhas
dos rusgados para S. Tomé. eram por demais.
E na cara sanada de sua tia, Nangasole arrumando as costu- Caluícatito nem é rio -leve escorrer de uma luz na areia bran-
ras, a mão dela pousou nos galhos da minha - uma fucumba rola ca, margens de altos capins. Nas curvas, para descanso, faz pegos
treretremida. verdes, limos luminosos no fundo. Mergulhei; nadei; de costas vi o
Porque já nem era nova mas esbelta, jovem de alma em seus céu e o sol - nu, tronco acastanhado a boiar. Fimbas - arranquei
trinta anos e alguns. Desculpava, vezes: "É do ar, é do sol, é do frio, verdes limos, na luz eram serpentes mortas. E fechei meus olhos, que-
é da tia! ... " - dizia e ria, corria, sol de todo o dia. ria ser sal daquela água, derreter, ir com ela - entrar o Cubal-da-
Como já disse: o que nos falta é demasiado, irmão. Não Hanha; no massangano do Catumbela, sentir barros de montanha.
somos só isto, nunca estamos sós - há outros nós que nos vigiam. Então, no silêncio das vozes das mulheres que já não faziam fuba,
Uma árvore, pau; numa pedra; o simples pássaro ... Quem que me ouvi cantar. Cantar! Nadei, pânico. Vinha a voz - aquela voz de leite
chamava se fresco era o ar, triste alegre a menina Miss? A gente espesso, o pouco acre dela, música diferente, arrumadíssima. Corri
somos só retalho de peça infinita, alma de cadaqual um grão de na roupa - ela, corça, saiu dos altos capins, lá mesmo, parece é agora:
espírito? Não sei se. chapéu era de palha gentia, a fita encarnada; e por baixo é que o lenço
Verdade é que em saudade de Luanda e Kinaxixi, atoleimava enlutava os cabelos cor de mel. Viu-me, calou-se, velha subitamente-
a alegria de tudo. A venenosa, a que a miss menina deixou nos o vestido todo flores, sem mangas, sem gola, sem roda. Caiu seu blo-
meus dedos? Ela era professora num liceu - quando acordava lu- co de desenhos, caixa de tintas, tudo. Meio metro de minha roupa no
zia longínqua virada mulher-da-lua, a estrela da manhã. chão, era distância infinita de nossos olhos. E ela, a menina Miss,
Desalvorei por dias, rebelde às sombras. Sol já me dava en- muito devagar como quem levanta todo o peso de sua vida, ergueu o
contro beira-rio, lá na fazenda da ex-"Flor da Hanha" - eu procu- dedo, um, só, até tocar meus lábios secos - eu vi o céu girar , seu
rava milagre de outra-vez. E mafumeira só árvore em meu coração· berro, grito único em minha vida. Berrava; gritava; se rasgava, mur-
dividido. Queria chorar; trabalhava, dentes cerrados. Parti relhas murava - morria a cada vez, morreu vezes e vezes, sempre assim.
à charrua. Patrão Abelha - Deus te conserve em saúde em seu Porque ela queria morrer, era sua nova felicidade - morrer; desapare-
santo seio, mais-velho sábio sereno! - a palmada nas costas: cer; voltar num princípio de vida só dela, ovo.
"Lourentinho. De tarde, leva as senhoras ao passeio " Me entra- Calo a boca, irmão: ainda não tem palavras para quando se
ram as lágrimas de não sei quê, ele deu conta: "Vai Estás a preci- vê nascer o mundo outra vez - nem que é o débil fluir das águas,
sar de umas férias, rapaz. Havemos d'ir pro mês a Lobito ... " risosinho descansado ou choro enternecidamente. O que, dela, já
Atravessei a fazenda parecia era um bárbaro - botas repisan- ouvia e bebia; depois o vento, nosso suor sua bandeira; as cigarras
do mandiocas de lavrazitas, até. E vim às margens de areia do que todo o tempo calavam, serras que saem detrás do azul, nosso
Caluícatito, sentei-me como quem espera. transrespirar ...

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E nos amámos mais, sempre em surdina, berrava, rola, mu- assim, então, a felicidade - nascer de novo, o que doutro
lher de murmorrer no amor. modo ouviu Nicodemos, ao sol da Galileia?
Mas minha alma ansiava diferentes alegrias. As que me deu: Que é um bem cumulado de todos os bens - tem quem saiba
de todo o tempo, em meu peito, ouvir sua voz em choro de felici- e diga. Não aceito, irmão: ganhei curso de 4 classe de adultos; li
dade, rezar as palavras que eu não aceito que me expliquem: bons livros; bons empregos; escrevi a amigos; mulheres - tudo o
uFainiu! Fainiu! Fainiu!... " - abre-te césar de esses dois dias. mais quanto é. Vivi, vi. E sempre minha vida era uma espera, só
Que assim ficámos: nus, ao sol, Caluícatito nosso escravo. À perguntas. Hoje? Três anos já aqui; meu amigo, um único; sauda-
sombra da alegria - as milheiríssimas folhas de uma árvore zum- de de minha mafumeira; mamã falecida; Luanda, vilecida - come-
bindo abelhas de faz-de-conta volta do favo do sol; ou os meus ço a ser feliz. Felicidade, irmão, não é sol de procurar; se evita é
olhos nos de água dela, esperar até o coração mais não possa - o nuvens que lhe escondem ...
que é certeza de que cadaqual ouviu o que o outro não falou. Irmão, veja: céu é minha testemunha, céu de planalto
Como ela: "Não penses mais nesse nome" - a verdade vira que serrenho, o que é de azul onipotente - ela, a menina Miss, falava
minha interrogação era a essa: "Eu, mulato ..." - e tudo mais que seus novos nomes e o mundo novo outra vez.
atrás vinha. Que achei até que Caluícatito era sempre largo amazonas,
Chorava deliciosamente: "Fainiu!... Fainiu!... " Eu quis sa- na outra margem selvagem é que era a fazenda "Brancas Flores" -
ber. "Menina ... " - e ela, mão em boca minha. "Nunca mais me café; sisal; laranjal - de meu patrão sôr Abelho e da gentia
chames por esse nome! Jura!", Que tinha nascido ali, nunca mais Nangasole. Rio sem vau - menina Miss sempre em seu riso chora-
queria ser a mesma. Beijava era meu corpo - para liceu de meninas do, estrangeiras coisas, que alegria eram: "Fainiu!... Fainiu!... " -
voltaria nunca mais. "Jura!Jura!" - jurei. E ela disse, riso entre as no meu peito repetia. Triste? Nem sei mais, se eu se ela. Perguntei
lágrimas: "Só tu, no mundo, podes saber novo nome!" Se deitou; saber, me respondeu: "Português é língua para amor de casamento
sua trança serpente d' ouro por baixo do queixo eu passei, levantar e baptizado! ... " Que nosso era o dos livros, falando em inglês
seus cacimbados olhos. E disse: "Ravinha? Lavinha?! Neva! Tu nunca Íamos ter vergonha de estar nus. Era meio xaladita? O amor
deste voz à minha vida, não ma tiraste! " Eu disse que sim. não é deste mundo ...
"Titanha? Neva! Isto não é estória de fadas " Sempre dizia "neva" "Eu, Desdéma; tu, o Môrotelo, meu profeta ... " - rara mu-
nunca dizia não. "Bianca?" - se riu, lágrimas maiores - "Para bran- lher de felicidade de fio de missangas, sem emendas, nunca se sabe
ca basto eu!" Me perguntou, eu disse que não - que gostava era é o princípio, meio, fim. Nossos corpos queriam secar os rios. Es-
assim, nada muito branca. E pedi licença de cariciar aquelas per- corriam as grossas missangas do suor, rosários. Amor transborda-
nas sem sombras, macias, farinha triga saindo no saco do corpo. va suas marés: baixamor, preamor, lua cheia - transtornava. Ela
"Não peças licença. São tuas!" E eu beijei. Contava suas palavras nunca parava, tudo sendo uma só vez sem emenda.
nos dedos - ao contrário, mulher toda melhor diferente nunca vi: E nunca disse a palavra amo-te, eram as duas horas quase -
fechava a mão, lhes soltava, iam voando, um e um e um. Eram vozes longe vinham, iam. Então, vi o que sempre via e ouvia, a
longos, assustados. "Titanha? Ravinha? Bianca?... " Até que gri- meniria Miss longe: serras que não eram azuis, castanhas no ar
tou: "Desdéma!" - e eu vi seus quinze anos, onde e quando. Pal- todo seco, escuras, amarelas; distâncias de verdes plainos, do ará-
mas e risos, festa - o nascer da felicidade. "Desdéma! E tu o bica; o sujiverde dos sisais em flor; o Caluícatito, rugas de ventos;
Môrotelo, meu profeta ... ". eucaliptos novos; capins e relvas, mais capins. Perguntei-me: estar
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aqui, esta mulher eu nunca vi, corpo tão quindele junto de mim, E lhe vi os olhos, meu pasmo: ajuizados serenos de quando
quer dizer é o quê, então? Pra quê? - se eu vou morrer, ela viver as gentias vinham com seus erectos seios ao vento e ela corava,
eterna não vai? Nos encontramos só - como a abelha a flor? Para baixava.
. Tive medo - pus máscara; o azul faiscar das soldas, gastei,
ISSO,para IStO....
Ela era professora. Era minha; era nova, comigo. Podia per- acabei.
guntar? Resposta ia ser choro seu de alegria, o de tempos de tem- Patrão Abelho então veio, disse suas qualquer-coisas. Só ouvi:
pos, o que repetia ainda, parecia minha sombra não saíra de cima "... a Caluquembe. Hoje, ainda, vê lá se podes! ... " - agradeci, súbi-
ta alegria me entristecendo.
de seu corpo: "Fainiu! ... Fainiu! ... Fainiu! ...
Fui; podia voltar mas dormi. Queria vê-la, queria fugir. O
Amar não é questionário - tudo são respostas ...
leve vestido de musselina pura; caramanchão das todas flores; aque-
Aquela tarde doeu-me como uma criança muda - me rebelei
le silêncio do tinido das chávenas; o incenso do perfume do chá;
contra o mangonhar das horas, tão minutas que eram. Os olhos,
seus olhos, água, luz, inocentes - e as pernas assim, palavrão no
nossos, se perseguindo, insombráveis - falar não queríamos o de
silêncio dessa igreja!. ..
dantes, novo ainda sem palavras.
Aqui, irmão, não oiça: vida de cadaqual não é fábula - não
Soldei ferro de charrua. Era em mim que o azul faiscava.
se pode tirar a lição.
Num segundo de sós, tive medo - seus assustados dedos,
Cada um é mais diferente - para mim, jinzéu, azar; para ti,
garras em o que eu tinha de homem. Vi água ferver nos olhos
quissonde é sorte ... Eu vi a Nangasole tinha visto nossos olhos se
gelados dela.
alvorecerem, no reencontro, ela já regando as flores estranho ma-
E era o chá. Mudou vestido, veio de musselina toda branca,
tinal, eu de barba feita lá em Caluquembe, E que ouviu o que ela
nus os pés em chinelo de ráfia, a rosa enorme em cada um. Não ria dissera - Caluícatito é palavra de todo o gentio saber. Pois, em
como rira - dentes cerrados, só a trança juvenil. Desculpei com minha turva alegria, nem dei-lhe saudação cristã, vaidade das vai-
serviço da charrua, não fui - me tratavam era como filho que Deus dades.
não dera. Faisquei o azul, gastei eléctrodo à toa. Ouvi que ela ria Fomos - nos despimos sem uma palavra, ferozes. Durante
outra vez - baixei a máscara. De lá - nem eram dez passos, à va- todo o tempo vi seus olhos nascerem o ódio de não morrer, me
randa - dei adeus geral, só para ela. A Nangasole veio com a chá- matar. Só em terceira vez ela sorriu, renascia da cinza da fogueira
vena e o bolo, teimosias - ela mesma me pôs na boca, tudo. Espe- do corpo: "Meu Môrotelo ... " - e começou outra vez a chorar. Co-
rava, mas seus seios gentios não vi - os meus olhos eram de lá, no bri-a com minha sombra - ela já não berrava, seu rio se alargara,
sorriso que floria debaixo da trepadeira. E se levantou tão, no saíra da terra de pedra, já sabia correr em chana de capim: mur-
voltar ainda lhe vi a roda do vestido ir. murante e lento. Que tinha trazido vestido de botões de acima-a-
Sentou. O lugar era de frente para mim. baixo. Se abriam: por dentro nada; tudo branquez de espuma de
Bateu aí onde em todo o homem dói e o suor nasce. Como leite tenro. Era de flores tuticolores num chão de pano verde ca-
um soco, exactamente. Ou o fogo azul da soldadura me queiman- pim: ela abria sua campina, eram os prados europeus, flores, vesti-
do as retinas. De lá, que era ali dentro dos meus olhos, ela cruzara do só enfiado nas mangas.
as pernas, se mostrava para mim: nua, alvisombras. Quando a vi.
Tinha trinta anos e mais - emaluquecera? Nangasole.
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Ela, olhos de onça - quatro patas no chão, de entre os ca- Fugi, é o que é.
pins. Riso mau, de sofrer o que não sabe. Animal, pronta - espia De quem? De quê? Fugi, só - Nangasole se sentara até junto
Saí - saltei. Corri; fui mas voltei: minha menina Miss, ser- de mim, varanda vazia. Chorava; acreditar não queria; nunca po-
pente convulsa, de gritos e berros, urros de morder de dedos, ras- deria - vi bem. Mas fugi - a pé, para Caluquembe.
gar unhas em braços dela mesma - desilusão de ventre vazio na Aí, evitei rota batida dos Quilengues. De boleia, por picada:
hora de chegar aos outros mundos. Nangasole riu, alta gargalhada Bissapa - até na estrada para onde o sol se nasce. Cusse; Cusse,
- soltei palavrão, adâmico, feito fera. Cuíma; Cuíma, Huambo. Deixei terras sulenhas. No Dondo, voei
O que não sei contar, irmão: a Nangasole só atirou a pedra, de jipe, um Xico Benguela, agrónomo das horas vagas, o que ele
da mão dela veio - e eu parei, fascinado. Vi-a passar, errar seu era mais era um poeta. Caminho inteiro, para me alegrar, recitou
alvo; o ar se mexer em meu suor, sua trajectória por de cima. Todo, até poemas de amigos lá dele, gente nova. Angola é grande, irmão!
tudo: o bater cheio no ninho pardo onde os marimbondos não - nuvens de Kinaxixi nunca mais via, viagem ia: de tudo, um verso
fazem o mel; o lento cair dos zumbidos já - os primeiros gritos; os ficou, refrão de ainda sempre que nossas riquezas vejo por aí:
berros; o terror ...
Quem viu isso não esquece mais - eu já tinha visto soldado "Come e arrebenta
morrer assim no veneno dos marimbondos, foz do Caporolo. Fugi, O que sobra vai no mar... "
irmão, estou aqui diante de si com meu crime e castigo: saudade.
Fugi - ela voava, seu vestido aberto no vento, os soltos cabe- Viemos - eu querendo ouvir o gosto do sal no ar das matas;
los enxameados. "Tia! Tia! Tia!" - urros. Partiu sem dizer meu ele falando o que eu não creditava, Luanda bíblica Babilónia já
nome: minha lição, remorso. Lhe levaram num colchão carrinha parecia. O que me admirava: dizia mal- adultérios' nitridos' to r-
na Ganda - na hora que chegou a Benguela, já estava morta. pes lascívias, maldição de cidade nossa natal- e era só o amor dele
Hoje, irmão, começo saber: mufumeira deu aviso, era meu quem que xingava.
outro eu - antigo ou moderno? Me avisava sempre - e três vezes Pois, entre o Mucozo e o do-Itombe, meu coração secou.
não lhe ouvi. Na hora já era tarde demais -lá, em meu Kinaxixi, De longe ainda, deitei minhas ilusões ao mato: "Lourentinho,
lenço de nuvens acenando por cima de tanta serra ... A gente so- ainda não a hora e a vez... "
mos mais é filhos de tudo - filho pródigo rebelde, tolo vaidoso. Porque a carrinha até já estava de patas no asfalto, de novo.
Descemos das árvores, irmão, pensamos nunca lá morámos - copa Pela valeta é que era o apocalipse: caixas e caixotes, cama de cam-
d'árvore é família mais é de macaco! ... panha até. O ajudante e o motorista, meios-vivos para Luanda,
Dificilito? nem já que se ouvia buzina aberta do carro que lhes levava. Um
O irmão é luandista, veja: pessoa que desceu no musseque, duma "Volvo" - o Italvino, vila-florenho, conhecido de vistas -
subiu na Baixa, ele mesmo quem que não credita depois que misé- desamarrava o cabo do reboque, os alemanhas é que falavam
ria existe ... Nos chama é de vadios, mangonheiros. O homem - o quimbundo deles. Dois: um que arranhava erres em português,
mesmo: desceu dos paus - árvore ou pedra ou pássaro, agora tudo modo de fazer trabalhar os serventes; o outro se via bem que era
é matéria bruta!... Macacagem!. .. jacaré d'água salgada: até vestia capacete e balalaica, homem de
Perdoe - calma é bênção. No afinal de contas, fujo do meu alvo conhecer as áfricas de Angola nos livros só. Discutiam que é ma-
final: por dentro santíssima paciência, por fora humilde disciplina... neira de se falarem em sua língua - o chefe-do-posto me viu e veio.
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"Olha quem! ... " Xico Benguela também. "Logo dois!... " Se sor- Frascos; frasquinhos; pipetas e bocetas, retortas - o mundo viaja-
ria, o bigodezinho cabo-verdiano meu conhecido de outras mecas. va nos caixotes do alemão. Último dia é que veio o Kambuiji, o da
Foi ele quem amarrou o nó - aí, meu coração aos pulos, que já não cobra-cão-de-passear. Se parou no meio do terreiro, vieram a cor-
via nuvem ou ar de mar por sobre as matas. Luanda fica longe rer, Erre Fagangue foi logo-logo. Ó diabo de homem alegre - asso-
sempre, mesmo a gente morando lá. Veio; o alemão cafrealizado biava e dançava, seu quimbundo de cobras-e-Iagartos: "Gute! Gute!
lado a lado. Se chegou às boas - mas sem apresentação. Me expli- Caputo, nada, nada!... Caputo, chon, chon! ... " Deu quinhentos
cou: que era um senhor doutor; um serpentológico, colobrósofo escudos.
ou lá o que era. Le.: pescador de cobras - que vinha e agora ia Era a suije, venenosa de cuspos, dois braços nos compri-
ficar: carrinha virara, sem chofer. Ordenado em dinheiros estran- mentos. A que gosta mais é de ovos e cantos de casa. Sua beleza
geiros, vezes sete. E depois: "Progajo não ir badalar mal d'Angola ... sendo a gravata amarela em seu fato escuro, acastanhento. E o
Fazes o jeito ao camóne?" Kambuiji olhava a nota, olhava a cobra já no vidro grande. Se
Nunca arrependi a hora que eu disse sim - e despedi com o babava um pouco - tinha saudades do bicho amaldiçoado? Que
Xico, recém-amigo, me marcando encontro tardenho para lhe con- nem lhe cuspira, quanto mais. Um João Capítia, hora da tarde, em
tar as cenas. Que até disse: "Tens sorte, pá! Gramava ir com esse meio quimbundês ou portumbundo dele até que me contou os
boche!" - e desapareceu montado em tubo de escape. casos que sempre são com tia e mãe de quem conta: a velha tirou
E fui, fomos - no que Angola é demais: cobras. as malas e mabundas no sol. Aí, a suije, do canto da casa no canto
Por estradas picadas, na sombra de todas as matas dos da mala - se escondeu. A velha abriu-lhe para chamar o ar nas
Dembos. Corremos fazendas - eu pensava que alemão era na Ale- coisas - nem viu, nem ouviu, tudo é cuspo venenoso. Milongo de
manha e afinal se multiplicavam, solteiros, pelas sombras de seus branco, nada; um homem de Kambeji quem que veio com seus
belos cafés e tangerinas. jissacos-sacos e chifres de pólvora, remédios de quimbundo. Um
No Erre Cherengue - ou Xerengue -, fazendão com cães e mês; a pele caía; pessoa puxa, pele sai fica como casca de cebola
macacada de jaula, passou discurso no pessoal formado e ordem ou casca da própria cobra ...
de ganhar dinheiro: conforme que fosse a cobra, conforme que A Kambeji mesmo, por lá fomos - a gente corria era atrás da
era o cobre. Ali, um meio xalado duma sanzala, veio com sua ser- famada k'hongolo, cóngolo, a serpente arco-íris. E por aí, por lás,
pente parecia era cão de passear com ele: amarrada no fio, trás- sobado dito de Kambeji, dembado de Kambeji, soberano por
atrás. O Fagangue - Erre meu patrão, o da balalaica - quem que Quissala, Quimbundo e o próprio Kambeji - este, sanzalão onde
ensinava, em parada. Se corta é um pau assim - catana; se limpa uma pessoa morre lá, você cá não sabe quem é... Com seus bairros,
assim - catana; só deixa a forqueta, forquilha. distritos populenhos: Cassequele, São Miguel; Cazanga e Cal ala;
" Kukuara ngó o jinhoka ... " - simplesmente, o Anivete, con- até no Bonguiamé - Mbonge ia Menia.
tratado alforriado, intrépido intérprete. Aqui é que o Fagangue, meu patrão, todo o dia escarrava
E gritos, palmas, saquidilos - duas semanas. Traziam: patrão suas sílabas: "Loirrantin! ... " tropelava meu nome cristão. "Trazerre
Fagangue pagava: cem, cinquenta, cencinquenta. Cobras e 'bras e caputo, trazerre caputo, muito. Filechelan!" - português dele só
cobras. O Mateujo - um rapazete ainda, esperto nos olhos apren- rasto de cobra serpente, ainda.
dia ofício, mãe dele com lenço e panos tudo novo. Punha injecção, Dias e dias - cobras; dinheiro; serpentes ... Até que veio ou
já está: cobra dentro do vidro, dormia. Mais tarde, descamava. passou um branco amigo do Erre Fagangue, nome dele o Gristél.

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Mas, como? a irmão crê caputo é kaputu, quimbundo ver- Era por subidas e morros. Depois: baixas; ribeiro; mubangas
náculo - o governo português? Assim a modos como o Doutor de agriculturas nativas; se subia e descia-se - era lá, depois do rio
Fagangue pagava hospitalidade - serpentes e cobras de ingratidão? onde que ninguém toma banho ao meio-dia: duas horas de vida e,
Sem ofensa: não leio por dicionário tal. a Fagangue não era o e... Nos receberam de sexa assada e batuque, fama do Erre Fagangue
alemão das arábias, só científico - e caputo dele era mesmo o tal era volátil. O patrão Fóguer nem que parecia alemão: pequenin,ote;
sinal: se cobra morde, caputo vida!. ..
seco; riscado; cabelo todo branco de flor de café, risca recta.
A tal máquina, então. De lavar pratos ou chocar saudades, pri- los sem aros, calção, meia-alta. Nos braços do das cobras, só fica-
meira que eu vi em vida minha. a que não era tudo. O Diobe - quero
vam os grossos sapatos cardados a esgaravatar o chão. Pessoal ria,
dizer: sô Diobe, como todos diziam já sem erres, aportuguesando por
os erres rasgavam o ar, vogais quimbundas tão musicais.
muitos e bons anos ali fechado, ele mesmo tinha elevador para comi-
E por lá as cobras eram poucas - ninguém sabia dizer os
da. Regra: no que ele comia, pessoa não metia a mão. Solteiro, como
quês do caso.
sempre. Maravilhava estranho e visita com sua casa, torre de vidro:
O patrão que era meio xalado, uns da terra, voluntários, me
de onde é que via terreiro e armazém, caminhos das tongas, aos qua-
contaram: homem de castigar quem estraga árvores à-toa. A roça
tro ventos. Os contratados lá, por fogueira ou picada, já inventavam
"Dalaidinha" - nome antiquérrimo, de um ex-condenado de
as estórias maravilhas, passavam palavras: a máquina, as máquinas.
Para alguns: feitiço dos brancos. Ora eu, naquelas horas, já não era Mpungu a Ndongo, do tempo das ritas-do-norton ou do
simples - me maravilhar era só com o de Deus. Ia para a mata, seguia caparandanda - era uma floresta. Seu café dela, propalavam que
contratados, voltava. À noite pensava: então um homem assim, çomo era pena - demasiado ensombreado. O Fóguer ria, dava os om-
solteiro, com máquina igual? a Moisés, tractorista-ajudante era esca- bros, o que baste é o que queria. Me simpatizei logo-logo. E as
lado para limpeza, lavagem, lubrificagem semanal, mil-cuidados; o mafumeiras eram longas, erectas como devem ser: bonitas.
Reno - monandengue órfão - serviçodele só tirar de prato tudo quanto Ao que, o capataz-chefe me deu lamiré: se quisesse, se preci-
não era prato até ao último bago de arroz; o Txá-Vimbi, bailundano, sava. Experiência minha, utilíssima. E que, apesar-de, o Fóguer não
cozinheiro, é que trabalhava com a geringonça.Três pessoas, três al- era declarado inimigo de mestiços, não apaniguava com os outros.
mas, três vidas - tudo num trabalho qualquer o candengue, outro Fiquei de dizer o sim, dizer não. E cobra veio, apareceu quan-
inutilizado contratado podia fazer, lavar pratos? Se branco é estúpi- do ninguém mais falava caso delas. Mateujo apenas, descamava e
do, estrangeiro pior... arrumando, colando etiquetas do ainda meu patrão Fagangue, ca-
Deu de nascer ódio naquela traquitana. Barulho só, me tira- ligrafias góticas para palavras lá dum latim zoológico.
va apetite: fugia na mata. Debaixo da fresquidura da muanza lim- Trouxeram a k'hongolo - o pessoal fugia, euês pelo terreiro.
pava os olhos daquela caranguejola, roía o pão com bife. Se ficou sem ar de respirar , exclamar - beleza dela calava tudo.
Surdinamente, como o mês das chuvas vem, saudade de Luanda Pagou um mil escudos e quinhentos!
voltava, fugia... Ah, irmão, Deus é grande e muito vária sua sabedoria: ajoe-
As matas dos Dembos estão mais cheias de mafumeiras, é o lhei minha alma, até em amaldiçoo de sua boca, excelsa!
que era. A beleza daquela serpente dava vontade de usar ao pescoço,
Se saiu embora. Debaixo de chuva fina. Destino: roça colar multicolorido. A cobra arco-irizinho - depois dela, eu não
"Dalaidinha", do meu patrão que ia ser, o Fóguer, algures do oce- podia ver mais outra. Critiquei, em minha alegria: "Senhor Deus,
ano verde. serpente assim, devias fazer sem veneno algum ... " - o que disse,
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por atrevido feliz, ao senhor Fóguer. Ele me olhou, estra- Pois então, cá estou, na roça "Dalaidinha", eu e o capataz-
nhadamente, macio. E me deu sua bênção: "Primerro mulato com chefe, um beirão, o Zé-Esquim - grande, ruivo e, ao presente, meu
alma que n' Angola vêrre!... " amIgo.
E assim, tudo às-boas, foi: o Fóguer mesmo falou no Erre ''Já estava farto de quimbundo e alemão" - a sua boa vinda.
doutor, expedição estava em fins, caixotes de vidros poucos já. Ele Palmada nas costas, tu cá, tu lá em uma semana - mas eu ainda
mesmo sorriu, deu o sim diante do enorme frasco brilhando, a estudando seus olhos, cartilha onde que aprendi o que não sei...
deusa dos Dembos, a cóngolo em seu sono de morte a caminho do Grandes e direitos; claros. E, porém, da casca deles a gente
mundo. não passávamos. Vivia com sua mulher-da-terra e seus mulatos -
No que logo-logo ali me chegou saudade dela: venenenta; quatro, machos. "São sagrados!... " - aí eu via o certo estranho
grossa; comedora de galinhas; berradora em seu giro - tudo o de brilho dos olhos. Como quando brugau racha ou leão desconfia.
pintão e diabo. Mas: vestia as todas cores do arco-íris-da-chuva, Semana, era mouro trabalhador, beirão das arábias. No quimbundo
todas - sete vezes sete e sete, sete... com sua companheira, funje e funje o mais, arroz de vezes em
Irmão: Angola é assim, aquela nossa serpente arco-íris ... quando. O patrão Fóguer falava-me parecia ele era um contratado
Fiquei - vi lágrima no olho cinzento do Erre Doutor de pele branca - mas tinha medo, eu vi lo-logo.
Fagangue? Adeus dei - carrinha-jipe nas poeiradas, para lá, para Nem três meses que passaram, se passou. Veio o Zé-Esquim
lá, a mão branca do lenço do Mateujo, kadotorito kiá. - isto, um sábado, dia que ele começava a aportuguesar mais. E me
Ora agora, idas as cobras, voltemos no paraíso: a mata. Diga chamou, de grito e ordem. Fui ver, era verdade: as raízes da árvore
com abertos ás de admiração, pronúncia de português matumbo. estalavam as paredes, reboco dos adobes não aguentava. Rachas já
Que para ar entrar, circular. Doces são seus cheiros demais, para fundas; telhado, os zincos empenados. "Um perigo, as crianças." E
abelhas e colibris pica-flores suficientes. As matas assim, do Fóguer com suas palavras-podres - que eram sagrados, carago, e ele nem
- cortar lenha nem que fosse, só com autorização dele ver mesmo. era escravo contratado nem da estranja. Eu também disse que sim.
Matas e matas ... A acácia - uma robusta acácia-rubra, a fogo-da-mata - crescera
Sem ofensa, irmão - e para poder rematar: o que é uma suas raízes sob a casa dele, modo de chegar aos balneários, lado
mata, já 'gora? Bosque e muxito; floresta; jungla ou selva? Qual contrário. "Pega-me no buldôza e arranca-me esta filha da... " Eu
jangal!. .. - o irmão diz palavras e uma mata é do de antes. começava a ver a cor de verdade de seus olhos.
Também eu, lá, perguntei saber num contratado, Domi~gos Não disse sim, disse talvez - passei a mão na casca rugosa,
Coqueiro, mais-velho da beira-mar, o que mata era o quê, então. senti seiva na escuridão subir do para a luz. "É melhor dizer
Sem hesito - duas palavras: um deserto! ao Fóguer, primeiro ... " Riu, arrancou seus pêlos ruivos do peito. "
Subi no tractor - ele se desdentava ainda mais no sorriso. 'Tás a cortá-las, anh?" Ouvi o bater das botas pela varanda da
Mas hoje, aqui, que mata é só o que coração guarda, eu penso residência. Em minuto, o Fóguer vinha com ele - passarito e pas-
que sim. Deserto, o deserto pleno. E deserto e mata só que podem sarão. Abanava seus braços. Viu-me, cresceu altura dele, até.
ser morada de Deus - o resto é para vaidosos macacúmenos. O tudo "Lourentinho. O só Joaquim ... ". 'Já sei, patrão Fóguer... " -
e o nada - iguais, afinal. Lá é que nós somos puras criaturas: ou tudo e olhei a árvore, só flores que era, o ar ardia vermelho por todos
está feito ou nada a fazer. Areias verdes, areias altas, areias de ar. os lados de sua copa. Ela se cobria de suas flores muito tempo
Uma mata é assim: um suspiro eterno e suas sombras ... antes de ter folhas - aquelhas folhinhas tão divididas por leques

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que a acácia tem e arejam. A copa, aí, só labareda - força de beleza Foi quando recebi carta, mamã Nanana doente, pedindo o
invertendo ordem vulgar de Lineu. Pois, só meses depois, em óbi- regresso. Só que era o tempo da colheita, tudo numa fona. "Muito
to de flores, as folhas recebiam licença de sair do luto fechado, querido meu filho Lourentinho José da Silva. Eu a sua mãe Nanana
esverdejavam ansiosas, cadaqual e todas, uma sombra era um dia, tou-te escrever. .. " - guardei as lágrimas no bolso, voz de senhora
o chimpanzé Calamuto todo fresco aí cochilava. mãe minha na caligrafia do escrevente, quimbundos e portugue-
Patrão Fóguer: "Lourentinho ... quantos anos?" Apontava a ses. Porque, pela picada acima, ele vinha: apitava, enchia o ar de
árvore. Vi os olhos do capataz - como já disse: leão farto descon- outra saudade. Patrão Fóguer descendo escadas, chave de boas vin-
fiado; muito mexer das bissapas ruivas à volta. Respondi pergunta das, cabelo bem alisado. E outra vez o Erre Fagangue lhe cobriu a
cortês, dei cicatriz de poda velhíssima: "Cinquenta, patrão Fóguer?" sombra, só os pés de fora ficaram. "Vou já com ele!" Jurei, corri.
Uma flor ou mão vermelha de sangue, caiu entre nós. Patrão Fóguer, Patrão das cobras, me levantou de abraço; Mateujo abria bocas de
dono: "Custarre menos {azerre um casa novo que {azerre um árvo- pessoal.
re novo!" Dixite, desapareceu - quando olhei, o Zé-Esquim calca- "Vidersê! Vidersê!" Mas não fui; o Erre tinha vindo despedir
va o terreiro, fulo a caminho da tonga. Deixava só veneno no ar: comigo, declarou alto e bom som. Mas rota era por Dondo, via a
"Mulato e alemão - a pulga e a mão! ... " Kibala, para Lobito.
Quis rir, ar secou. Lá adiante, patrão Fóguer colhia flor na "Vidersê! Vidersê!" - o próprio Mateujo, na hora. Que ia
trepadeira, pendurava na camisa; na escada - minúsculo, amigo de com o doutor, lhe levava estudar lá, cobras e lagartos, veterinário.
minhas amigas. Até hoje, sempre gostei de alemanhas: respeitam a Cujo o Mateujo, na hora de despedir com a gente, já ia cheio de
natureza, não enchem de mulatos o mundo! ... alemanias: lacinho gato, óculo de um só olho. A malta da
'li"" "I
E a casa fez-se ... - Diga? Jura, pelas chagas de Cristo? Fomos miudagem gritando: "Kadisu! Kadisu!". Que mamã ficara choran-
para assar judeus? Sabão de quê? .Irmão: cale-se! Não posso credi- do primeiro; se rojando, xinguilo, guardando no pano pó que car-
tar: eles não fazem mOala uma flor! rinha pisou, depois. O Mateujo ria todo não sei mais quê ao lado
Agradeço - deu silêncio: um dia, vai-me contar os casos. do Erre Fagangue ... Xenósofo? Xenófilo? - português, irmão, é
Sem ofensa: sou de compreender devagar, preciso de muitos quês. difícil mas não custa.
A casa fez-se; o Zé-Esquim querendo sempre ser unha de Partiram - "Vidersê, Loirrantin!", últimas palavras pelas matas
minha carne ... Fomos de assar criaturas? - não posso afastar ideia. dos Dembos.
Irmão: entremos na mata, tudo aí é puro, mesmo a morte com Vidersê, meu Erre da cobra!
suas leis de natureza. Vidersê ...
Cale-se ou veja: uma árvore - é primeiro um murmurar de Pois foi um sábado - o chamado, o último das vezes, três, e
luz, um pássaro calado depois. Se espenuja e cata, abre as cores das nunca ouvi: por isso aqui estou, a seu lado.
asas; o estremecer de uma folha; a teia da aranha e a aranha. Suar Sábado, hora da manhã. Domingo era o dia do Zé-Esquim
verde, silencioso xuaxo. Nascer de um céu, a copa. Um voltar na terra dele em vinho-véritas como dizia um não sei mais
caxinjianguele que desce, ou esquilo que sobe? Tudo de luz e água quem é. Que era homem rei-de-copas - para cima, encontrado:
- à frente de qualquer estrela, luzeiro do céu - como Ele quis e sua patrícia, funje diário, mulatitos; desencontrado para baixo:
assim fez: uma árvore. em mata dêmbica, domingos, todos, enchia o ar com bacalhau as-
Irmão, creia: eu ainda espero ser árvore! sado e batatas cozidas. Sem faltar um - cinquenta domingos e tal,
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por ano. Bacalhau com batatas. Cozinhava ele mesmo, sozinho. altas. Vi o sol ainda não em suas copas arredondadas. Céu de
Manhãzinha cedo, berridava mulher e filhos: "Ide lá prà vosso manchaverde, todo azul. Uma mafumeira é um aquário de pássaros
avô!" Expulsos, caminho da sanzala, outros lados da mata. Do _ me sentei em sombras, reli a carta: "Querido meu filho ...". Não
terreiro via-se e ouvia-se, porém. Ele, então, descascava, assava, senti mais a grita do pessoal, trabalho acelerado - bailundos de sons
cozia - falava só as zinhas coisas lá dele. Ninguém que se aproxi- muito do nariz como eu sabia, as palavras centopeias, enormes.
mava, todos respeitavam - riam. Então, aí, em fins de almoço Vi a mata, em pensamento, lá, no Kinaxixi, nossa miniatura
labrego, saía com cadeira-de-preguiça, prantava-se em sombra de daquela. Mamã onde estaria morar agora? Direcção era da caixa
seu maracujá. Deitava-se, garrafão fiel rafeiro a seus pés. Antes, postal da Missão, só. Guardei; cumprimentei a quifuane, a
porém: a antigualha, ferrovelho - de enorme orelha campanula, munguba, nossos mognos com quem são parecidas mortas e
agulha de prego, manivela: um gramofone. Seus discos só dois, esventradas. E as que para febre melhor não tem: casca delas, rala-
tarde toda cheia deles. Fados: o da-rua, outro não lembro, aquelas da - a bela quibaba. O que tinha mais por ali eram as munguelas -
músicas todas iguais. Dos velhos - a gente não sabe que língua é de onde se fizeram tambores de batuques de sábado à noite. As
aquela que eles falam ... folhas desmaiadas, de veludo ou malva. Mas é pecado inventariar
Bebia; tocava; manivelava - bebia e bebia. Depois: cantava mata. Digo só, irmão: se nunca em baixo de muanza esteve, não
ele mesmo, mesmos fados. Até a tarde se encher de sombras e sabe o que é sombra. Ela, cacimbo duro e seco, chora água para
sono. Se levantava para cai não cai - puxava seu apito: três vezes, seus cafés. É da grande família de nossas acácias citadenhas, pare-
passarinhos calavam, o Calamuto, chipanzo, arreganhava inteli- cida da-alfarroba, folhas assim. A de muitos nomes: mbanze ou
gência. Lá, na sanzala, os netos despediam o avô, ngana Kibuku mubanze, a muanza, a muanze ... Me chegou sede de mubafo, fru-
virava outra vez dona Felicidade, voltando no pai das crianças. to desta, safú de mentira. Útil mubafo, é o mais que eu posso falar
Isto, sempre assim - cacimbo e chuvas, domingos de cinco litros. dele: resinas de consertar barro ou de fazer candeeiro e vela. E se
Que até um dia passei perto e parei, bonitos versos eu aprecio é grande! Como ela a muzunje - mutsundji, na pronúncia verde
sempre mesmo em música de choradeira. Que eram, mais ou mal: dos homens da mata. E taculas por demais, o que todos sabem e
conhecem. Vermelhas. Quitibas; quifuanes, outra vez; uma alta
... Na Rua do Capelão mussuemba - árvore de pesca, folhas minúsculas. Se pila e rala a
Juncada de rosmaninho ... casca; os peixes morrem com isso - peixe morre; pessoa come,
não morre.
O que o irmão nunca ouviu. Pois soletre: juncada - eu não E as, a mafumeira - que é a rainha das árvores, minha elei-
posso esquecer esta palavrita. Juncada: faz eco, a gente vê é a rua ção. Não é útil como a oliveira, do azeite que honra Deus e os
se alargar, encher de sol. E arrozmaninho pode ser o que não é homens; doce figueira, também não; menos ainda mãe da alegria
uma flor? Ele me viu, rosnou: "Desaparece, nharro!" - outra vez dos homens, sangue de Cristo, a videira ... Porque ouvi um dia, um
aqueles olhos de brilho de aço. pastor de missão falar esse caso de escolha da rainha das árvores -
Foi então em vésperas do tal domingo, deixei tractor e rebo- e que aceitou só o espinheiro ... Mafumeira tem espinho: não é ela,
que no carregamento da mububa, entrei a outra mata, a de sem esse, o que não conheço na mata?
derruba. Na trilha do rio, meus fofos passos. Até no tufo das várias, Mas as árvores não foram feitas para bandeiras de vento, eu
irmãs, família de muitas mafumeiras. A mata era velha, elas jovens e deleitava-me em sua sombra. Quando sucedeu.

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Tudo diferente. Ouvi a voz do capataz, longe. Por cima, Vi caras admiradas: em domingo de ir na terra dele, o Zé-Esquim
traquinou o sumbo, bater castanholas do vermelho bico. Caiu a queria companhia de mulato?
pena azul, dele, de curto rabo ou extremo de asa - um azul bêbado Patrão Fóguer limpava seu cachimbo; beira da varanda, modo
de tanto céu. E vi: tudo era sem mais traços negros por volta, dele de pensar fundo.
coisas limitadas, limite era o sem fim do ar, espaço. Negro. De E o Zé-Esquim me recebeu de palmada e riso. Que, porque,
cores coloridas o resto. Acamaleando - vi folhas vermelhas e céu porquanto - funcionários os superiores, não éramos, ali? Se almo-
às riscas de fogo. Mafumeira metia braços por terra, erguia-se. Eu, çou. Verdade vos diga: o homem sabia pimentar um bacalhau. Se
girava, imóvel e sereno. Fui - vim: viagem até dentro de folha que bebeu - do de-capacete, que tudo era o ruivo menos aleijado de
me cobriu. E ela, a árvore-rei, só brilho, um peso de perigo em mão. Eu falei minha nossa Luanda, sem gabos, às boas coexistênci-
meu coração. Ouvi mamã chamar? as. No que ele pôs em chifre-de-Iua Santa Comba Dão. Mas amá-
Era o Zé-Esquim: "Dormes d'olhos abertos?" O tractor, o veis, bebedores - eu menos, luz pesada de coração não deixando.
reboque, tudo pronto e cheio. Eu estava coberto de formigas. Olhei Tarde veio e foi - ele aí já gaguejando suas queixas. E, de repente,
o capim, almofada desses minutos. Minutos? Estava seco como se dedo vermelhusco dele, no meu nariz: "Lourentinho. Sabes porque
pedregulho lhe asfixiasse por meses e meses. Aceitei milagre: um te convidei?" Calei, vi os olhos dele - queriam ser o que não eram:
corpo é uma pedra e eu tinha-lhe abandonado. Sem leveza d'alma, amigos e limpos. "D'homem para homem, pá. Temos que o denun-
pesa toneladas. E queima tudo, fede. ciar!" ... Nem abri a boca, ouvir é melhor que falar. Pois então,
Irmão: eu só vi bem que era imortal foi lá nas matas dos meu silêncio para ele era bater palmas. "O Fóguer é espião ... " Se-
Dembosl gundo ele: o alemão tinha mapa marcado - cruzes: diamantes,
Atrás do Zé-Esquim ... - todo o dia tractorei, mudo e cego, ferro, urânio; estrelas: sítio de magala e cipaio; agás: pontes e jan-
surdo, só aquela luz melancólica por dentro do sol. Enchi terrei- gadas... "Bufos! Espiões! Agentes subversivos! ... " Não via eu a cúnfia
ros, patrão Fóguer, fim do dia, me deu alvíssaras: "Lourrentino é que ele dava nos contratados, menos nos empregados europeus -
de ferro! ..."... eu e ele? "Comunistas!" Bebi golo e galo; ele falava, eu queria
Não sou: dia seguinte, com sol para lá do armazém é que desamarrar laços de seus olhos avinhados. Por que eu ri, sorri?
acordei. Beleza de mundo - macio de ar e cheio de silêncio, vento Nossa alma tem coisas, no perigo ... Cada olho, serpente então, no
de se ouvir laranjeira abrir as flores. atrás das bissapas vermelhas. Silabou: "Nem levam o pessoal ao
"Nem me lavo..." - domingo é dia para alma, o corpo tem posto para palmatórias, nem nada ... " Que eram falsos, herejes,
toda a semana. Tirei a esteira; debaixo daquela acácia; dormitei com suas bíblias de papel higiénico. E me olhou, fero, arcanjo pu-
mistérios cá meus e com mamã Nanana, saudades do bóer Fandarval, rificador dos Dembos e matas. ceVamos?!" - era uma ordem e eu
a menina Miss caminhando para figura só de mentira, o Erre lembrei a mafumeira, o céu de fogo, o capim queimado. Quis rir,
Fagangue, a cobra arco-Íris... Veio me chamar, o Coqueiro. Que sô amaciar os casos. Só disse, meio estarola: "Porque é que não escre-
Joaquim quem que mandava. Fui - tudo está amarrado nesta ves ao Salavisa? ... " - voz de vinho mais que minha. E ele saltou na
alegrezita anarquia do viver. Vida, irmão, é pau de fósforo aceso _ cadeira, homem tocado em santo de seu altar. Que até os pêlos das
dum lado queima os alheios; do outro nos queimamos nós... orelhas dele tremeram de raiva. ceDobra-me essa língua, narro
Porque eu sabia que o Zé-Esquim já me odiava - caso da todo sereno, logo-logo, assassinesco. ceDoutor Salazar! António de
acácia e amizade do patrão Fóguer. E fui - nem mexia sobrolhos. Oliveira Salazar! da minha terra, tás àvir? ... "
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E entrou em casa. gritar, berrar, virar o profeta das areias sepultas: "Desce, senta-te
Quando fugi, era já tarde demais, a tarde cheia de pólvora e no antigo dos musseques, ó tenra filha de Babel!. .." - e só buzi-
som, gritos dos contratados em fuga, patrão Fóguer - o homem de nar era que me respondia. Luanda não tem mais vozes de pessoa,
tempestade e raio! - desarmando o Zé-Esquim em dois jujutos. Só cadaqual fala só por ronco de motor, trinido de moeda ...
o terceiro tiro que me apanhou, meio do terreiro já, a perna es- Mas - veja, irmão: o mundo não é à-toa; tem de ter lei que
querda, meu sangue no sangue da mabuba deixei; o capataz-chefe explica o que não é da lei. Eu penso que é só problema de ainda, é
fechado no armazém; nga Kibuku em choro e grita, de lá da sanzala preciso paciência muita e menos arrogância ... Não é que a
vindo com seus sagrados mulatitos ... mafumeira estava lá? Luanda não encontrei; mamã, só suas sauda-
Vida, a minha? Sem ofensa, irmão: muito barulho, nenhum des em ramo de flores; amigos-inimigos; Kinaxixi, selva de gaiolas
som ... Tudo só viver, o que é da casca. Túnica em mãos de mulher de macacáfila humana; nossa mata, petrificada - e minha mafumeira
de Putifar - o que prova?
sempre lá! Ao sol, todo o sol; no luar, toda a lua; cacimbo e chu-
Salvou-me patrão Fóguer - amarrou-me; a ferro e fogo ti- vas, estrelas. Eterna - eu com ela, idem.
rou a bala; cortou e queimou. E o Bento Mutu, da sanzala, com Escrevi ao Fóguer - prometi voltar, um ano.
seus chiftes e pós de paus, teias de aranha e sabão de lavar feitiço ...
E procurei emprego ... Vá vendo, irmão! Negas; desculpas;
Aqui, irmão - já que não insiste - temos de voltar a meus
nadas - Luanda é só fazenda de crime; roça de vigarice, cambala-
penates: Kinaxixi. Lá onde sempre não deixo de estar: nossa lagoa
cho - quando queriam, queriam mais tractorista industrial de
e mafumeira. No que eu mesmo me confessei - sereia quianda é
catrapila, niveladora, motoscrape, buldôza ...
que não existe. Que tudo menos não é que o mais de nós mesmos
No que gastei suor e sola. Até que um dia o Zeca, filho do
por aí: mundo e árvores, diversificados entes de um só espírito.
remendeiro bíblico - aliás: José Matos Serra, engenheiro - deu o
Mas ... - o povo crê, acredita.
nó cego no ponto, se misturou em minha sombra.
Dou-lhe os trópicos, o irmão faz a demarcação: lá, no
Kinaxixi, tinha a lagoa - uma; longes azuis da fazenda "Brancas- Eu pegara mania de muçulmano - peregrinação. À noite,
flores" onde passou a segunda vez, o Cubal fuafuava a voo de caminho de casa, ia lá. O que mais amava, meias noites idas, no
gafanhoto - duas; na mata, os Dembos, o rio era só mais lá em silêncio. E via as casas, muitas - cegas, dormidas; o asfalto espre-
baixo - três. Sereia é espírito de estar onde água esteja - doce, guiçava cacimbos. Só a luz falsa dos candeeiros é que era muito
salobra ou salgada. Ao que dizem, digo com eles: Luanda é superi- pornográfica - parti a lâmpada, pedrada de infância. O céu agra-
or terra de mascaria ... deceu azul mais fundo e deu estrelas. Tão teimosa e mais débil só
E agora? a mafumeira era de verdade, então. Todo o mais, tudo trocado de
Olhe: vim; para convalescença e radiografias, nas humidades morte. Abraçava seu tronco, ficava por ali - minha vida é o quê
da mata sempre era dor de alfinete de fogo. E dei encontro com então? Meditava. A mafumeira não era que tinha visto nascer tudo
mãe já morta e enterrada; Luanda suja, grande nódoa comendo o à volta? Tinha. Mafumeira não era que tinha-me visto nascer, cor-
ar à volta; cidade de soma e cega. Chorei; choro do antigamente rermos, crescermos? Tinha. E ia ver o fim de tudo?
guardado eu tinha para ela. E em sábado à tarde de beira-praias - Meu coração estremia - ia para casa; sonhava; gritava.
Cunhá; Mussesse; Rotunda, praias humildes - me sentei e li: que Acordava - de manhã, rua abaixo, lhe tirava meu chapéu, o
não queria voltar para as matas do meu Erre Fóguer, patrão. Só menequeno.
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Assim sendo, dia desses lá estavam, de longe vi: sombrinha e E todos, à-uma, soltaram catanas e machado e berraram a
réguas, o óculo meu conhecido de matas, roças e demarcações. fuga: "Kianda! Kiandaf" E quando cheguei no Dioko, ele perdera
Engenharias de marcar limites no que é de Deus. Saudei a suas falas, repetia à toa os quiximbis, iximbis, que é como eles
mafumeira, secreto - ela sempre como meu coração mandava: ufana alcunham no mussorongo deles - a quianda, sereia, espírito tute-
e humílima; única. "Ouve lá, matumbo ... " - não era a voz, só lar de águas e fontes, habitava a mínha mafumeira!
que sem verdura dela, voz secando dos lados já, caminho de cair Porque serviço era o aquele assim, o Zeca disse: terraplenar
da árvore da vida? "Põe a régua direita, filho da puta" - era ele; ele o terreno, na cota não sei quê; derrubar a árvore, limpar; compactar
não era. O Zeca. O Zeca? Sim, o Zeca. O Zeca virara asneireiro? nossa afogada lagoa. Lhe olhei bem dentro dos seus óculos, queria
Onde que estava sua Bíblia de seu pai, sapateiro-remendeiro, mal- os olhos do antigamente - os de zangado profeta, puro. "Zeca... "
dições morais em nossas pelejas? eu disse. E ele, sem mais: "São as minhas ordens... " Foi o Dioko
Até usava óculos, já. A caminho de caribala, xingando meio quem deu o primeiro machado - saiu sangue de minha alma, san-
mundo. Mas me abraçou, tudo largou: "Tininho, pá!" - e ria, os gue de minha árvore, juro. Corridas; gritos; o povo, na hora de
serventes admirados, murmurantes. "Tininho! ... " - parecia via um descer em serviços, logo-logo por volta. Confusões, cicios - todo
morto ressurgido. O que eu disse. E olhei a mafumeira, dei o mote, muito respeito. O Zeca veio de lá, xingava o pessoal, arreguenhava.
mas ele não se acareou comigo, minha tristeza. Lhe curti o caminho, segurei o braço: "Calma." "Quem és tu?... "
Foi ele que arranjou emprego - mas onde os olhos bons tão ainda disse, mas leu meus olhos tristes. Fomos na sombra do pau,
zangados do Zeca? Ainda em oficina, me perguntava. Que mais para a fresca manhã que ela nascia, sol por cima. "Zeca" - eu disse - "É
mecânico de tractores me meteu no parque. Que ia haver serviço; um erro." E lhe expliquei o que estava a passar. "Percebes?Lem-
ali terraplanavam, para uma feira; era só ele inscrever - escreveu. bras-te?" "Superstições reaccionárias!" - ele vetou. Olhei minha
Irmão: aqui, abra sua alma; limpe, sacuda, arrume; deite mafumeira - não era que ramo alto sobre o passeio da rua, come-
fora tudo que é velho; lembre só o que venho contando - e oiça: çara a secar, tinha verdes quietos onde que o vento não passava?
Veio o dia. Eu sabia. Primeira vez que passei mão em sua Olhei a ferida no tronco - suava um sangue escuro, doloroso.
sombra de silêncio, nos picos tão anciãos, mafumeira, soube logo. "Zeca! Mira... " - como se criança, ainda. Ele só queria os
Mas não creditei - era ainda muito tosco material, barro bruto. olhos em baixo. Roguei: "Pode ser símbolo da Exposição, a
Porque o Zeca veio. Na cara dos outros eu dava-lhe sór en- mafumeira do antigamente, elo do progresso... " Ele me olhou en-
genheiro, indiscriminação que ele queria. E ele a mim o tu, o tão. Aí, fui com empurro de medo: símbolo, árvore bem tratada; o
Tininho. E disse: "Vem cá, pá." E foi chamar o tractorista do D-6: lago dos barcos para recreio, por de volta; iluminação, ninho de
nhó Antonho. Este quem escolheu serventes: quitexense Oioko, lâmpadas, olhos de pássaros coloridos - enfim: em meu amor e
pequenete, de muitas palavras e poucos amigos; o Puati, fiote medo acanalhava a beleza daquela árvore. Ao que, eu mesmo, rea-
cabinda, de rosário ao pescoço: o último, um lucalense ou cacuso, firmei: "É uma bela árvore, Zeca!" Esperei como quem devagari-
os outros lhe chamavam é o Garrafa-de-gás: corpo igual de baixo nho morre. Cada mexer de folha, o Zeca ciliava-se. Riu sua mio-
a cimas, cabeça de passarinho. O nome dele, cristão baptizado, era pia: "Enganei-me, pá. Devia meter-te no Gabinete de Urbanização,
Emanuel. E tudo digo e lembro, modo de o irmão ver que todos com o Taquelim ... " O Zeca odiava? Modo como ele desprezou
não eram iguais em nada. Que o preto-preto era só o Emanuel; o aquele nome m' assustou e alegrou: nome era de alguém que tinha
fiote, mascavado. Quase albino era o Dioko, quiassa. alma. Isso mesmo eu disse, ele virou sério, feroz: "Paramim, pá, tu

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não és um homem; isto, não é um terreno; aquilo, não é uma árvo- vel, macho, o das pedras negras da Samba: quituta gosmeiro de
re! um problema!" E que problemas eram para se resolver, o quitutes e vinhos, dinheiro. Fazedor de calemas de óbitos.
mundo só isso sendo e ele seu inimigo deles e de amigos deles. Luanda é assim... - que até branco cangundo sereia tem.
Saiu; me deixou - berrou. Tiveram, encontraram: nas barrocas do Cemitério, seus olhos cho-
Irmão, sem ofensa: para macacamecos bárbaros, o mundo é ravam águas milagrentas, uns portugas naqueles sítios tiraram suas
um desafio. Pode ter paz no mundo? Perdoe: ser sereno é uma fortunas de areia para fazer casas...
bênção ... Eu falava; Baiolinda duvidava - mas meu coração todo olhos:
O Zeca - e não digo mais: Zeca; melhor: o engenheiro - o povo era demais, fama de sereia corre. Os serventes quietos; nhô
berrava, serventes terrorizados não iam. Antonho roncava nas terraplenagens - meu serviço era depois, com
Eu dei de sorrir. O povo murmuresco, rodeava. Nhô o compactado r atrelado, ele é que era o mestre do buldôza, branco.
Antonho, vinha vindo, deixara seu serviço. O engenhocas, raivado, Foi quando vi o Zeca tinha perdido a alma, era mesmo enge-
berrava e berrava - o Baiolinda, mecânico-ajudante, rapaz funda- nheiro: veio com a polícia.
do, veio para meu lado. E os serventes largaram as catanas, em Mas respeito do povo é superior de medo de polícia - o
fila, quietos, os olhos baixos. "Ah, sim?" - só vimos o pó que carri- Dioko, ele mesmo o mais pequeno, cruzou seus braços; sem saber,
nha faz, mau-arranque. O engenheiro saíra embora. o cabinda Puati contava missangas de seu rosário; sério, homem
"Baiolinda ..." - naquele silêncio eu queria alguém que falas- todo ele, Emanuel. Catanas no chão, no chão o machado. Que
se minha língua. "Acreditas que o quituta mora ali, ou ele mesmo é não, não diziam - faziam só com seus olhares. O povo silencioso -
aquela árvore?" Ele disse que não. Que sabia ler e escrever, que de longe, olhavam.
era duvideiro dessas coisas. No que não quis rir. Eu, irmão, já não Nem com porrada de cassetete -lhes carregaram é numa carri-
sabia: mafumeira continuava a escorrer sangue ... nha, caminho de não se sabe mais onde nunca mais, polícia ao lado.
Acrescentei casos outros - Luanda, cidade de muitas e des- Sem uma palavra.
vairadas sereias: a da ponta da ilha de Luanda, ex-ilha das Cabras "Greve!" - tinha rosneado o engenheiro. Aí nhô Antonho
- velho muxiluanda Angostinho ou Fuxi, um que ainda vira prín- veio e ouviu; foi lá - e não viu. Se subiu em seu corcel de ferro:
cipe Dom Luís Filipe, uma hora deu encontro: cantava; bela a homem calmo, tão vermelho nunca vi. Os bondosos olhos que ele
mulher; nua; embrulhada em seus cabelos, ovo de lã. Que lhe con- tinha, azulavam. Subi na lagarta, segurei sua mão, pedi: "Nhô
vidou para, na areia ... No sítio dela morar os brancos, fizeram Antonho! ..." Ele ouviu o choro que eu ainda não chorara. "Que
casas redondas, a sereia virou-as quadradas no fundo das areias do queres, rapaz! Ordens são ordens... Lá que é uma bela árvore, lá
mar - hoje, só ruínas de pescar ... E outra, a da Praia-do-Bispo, isso é - 'tou contigo!"
dum antigamente gasto, que era bondadosa. Deu privilégios, fa- E eu vi o que ia passar, o povo todo se ouvia farfalhar de
mas: uma senhora Ximinha, dos Coqueiros, irmã-em-Cristo, rece- seus panos e fraldas. "Nhô Tonho~.." - berrei, corri. O engenheiro
beu um filho que tinham-lhe roubado em Portugal, num patrão; e veio também, mandou: "Tempo é dinheiro! Cala a boca!" Nhô
escritor cego, grande de nossa terra, vê melhor as coisas do mundo Antonho lá ia, aquele ruído salteado de trinir de cavilha e rolete e
para seus livros. Ou esta, a que era nossa: sereiazinha de meninos fuafo de escape que o buldôza faz, andar de caracol. "Nhô
e mais-velhos - que aparecia era como luz de vela no sobre as Antonho!" - eu não podia deixar morrer um inocente. "Nhô
águas da lagoa do Kinaxixi, noites de baile do Luso Clube. Terrí- Antonho! ... " - e apontei. Ele sorriu: "Não tenhas medo, rapaz!" A

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terra, ali por onde ere ia, tinha acastanhado, vermelha - por mais Nunca sabe o que se passa
à volta era só de pó. Terra que bebeu muita água, eu lembrei ali era Sabe só o que se escrever ...
o fundão da lagoa, perto da mafumeira. Tractor ali, lagarta dele,
esquerda, desnivelou. Nhô Antonho, cavaleiro, não sentiu falta de 'Zeca!" - eu disse. E ele me olhou, mais que espantado:
ferradura - atirou o buldôza contra o pau, encostou a lâmina. Eu alegre. "Eu vou! ... " - ele tirou os óculos mas os olhos não eram
pedi: "Nhô Antonho! ..." - o povo fez às e silêncio, no ar só o meus conhecidos. "Lourentinho ... " - tristeza dele, de mentira; uma
negro fumo do gasóleo, o ronco crescente do acelero. Mafumeira raiva de se ver vencido por uma árvore alfabeta. "É a tua vez.
estremeceu, baixei a cabeça - do corte correu vermelho sangue, Vinga o senhor António, era da tua profissão!" Ele estava todo
caíram sumaúmas, lentas. Sonos. podre por dentro, se ouvia bem. "Arranca-me aquela puta assassi-
Corri. Era tarde: a lagarta esquerda em chão molhado, na com o Dê-Oito?"
largarta direita no seco entulho, pó, girar de roletes acelerados, Subi. Sou davide, dê-oito gigante: mas me senti deus, Deus
fumo, o súbito buraco cavado, suores de nhô Antonho, o sol. me perdoe.
t O tractor virou de um só salto - ficaram as lagartas a faiscar, Liguei o motor, aquele ruído nasceu o silêncio de muito povo,
nhô Antonho nunca soube que morreu. à volta. Uns fugiram, todos m'amaldiçoaram. - eu sabia. Toquei
Mais tarde, eu, com 0-8, outro, virei o 0-6, não quis ver manete esquerda, lagarta girou de lento, curva. Olhei: o Baiolinda,
nhô Antonho. Dele guardo aqueles olhos tão magoados e humil- sorrindo; o engenheiro José Matos Serra - ar à volta era só dele,
des, a vida presa. dono dos destinos do mundo.
Irmão, dê pausa, deixe o povo murmurar suas sílabas de E minha mafumeira, adejar de silêncio, sem pássaros, sem
quianda e sereia: para mim, aquela árvore era eu, como que podia família, sozinha na cidade de ferro e pus - sangrava.
assassinar? Fechei os olhos. Vi-a ao sol, dourada e nossa - nós: o Zeca;
Olhei-a muito tempo. Vi a copa - era de folhas. Já tinha sido o Dinito dos olhos amarelos, em prisão de manicómio; a Xana -
céu, meu? Seu erecto tronco, dera ordem a ramo para me segurar única paixão de todos; eu e o Gigi; o Xoa, chefe; vieram eles e os
em redemoinho de águas do antigamente? Eu queria, fazia força, outros, os Pinheiros e o Jão, Kinaxixi todo de tudo, capins e chu-
mas já não podia: ali, uma estranha, alheia; pedra de verde, o ve- vas de infância. A vala, a morte - eu; a sereia; a mafumeira, árvore
getal calhau. Me perdera eu em nossos caminhos, únicos? do paraíso.
Morrera um homem - caminho de ela a mim, nosso cami- Rezei: "Zeca, perdoa ..." - acelerei o Dê-Oito para berros e
nho, tapado por cadáver d'olhos obedientes ... sangue.
E o Baiolinda - quem que lhe soprava na alma? "Sôr enge-
nheiro! Deixe-me, deixe-me! Com o D-8, varro a gala!" Estou aqui, irmão: a seu lado, pátio de nossa solidão, cadeia,
Nem tive raiva, dó, tristeza -lembrei o caderno do Candinho, ao sol - e ainda agora vi seus gritos, o afiado brilho dos óculos, o
capa de menino e menina no baloiço da vida, caligrafia purada choro dele, migalhadas pernas ...
dele. Os versos. Era poeta, morreu cedo. Escrevera e o caderno Eu?
está comigo, recordação que dona Oonaname deu, fins de óbito. Aprendiz de vida - seta doida em procura de meu alvo:
Lá se pode ler o que no Baiolinda também estava escrito: sereníssima paciência na alma, para o corpo só livre disciplina.
Sem ofensa: só espero alegria de morrer em Luanda.
Quem teve a grande desgraça
De só aprender a ler Tarrafal, 28-6-71 / 6-7-71.

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