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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

MARCEL LUIZ TOMÉ

AS INOVAÇÕES ESTÉTICAS E NARRATIVAS NOS QUADRINHOS AUTORAIS


DE FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ: Um estudo de Daytripper

São Caetano do Sul


2013
TOMÉ, Marcel Luiz.
As inovações estéticas e narrativas nos quadrinhos autorais de Fábio
Moon e Gabriel Bá: Um estudo de Daytripper/ Marcel Luiz Tomé. São
Caetano do Sul: USCS/ Programa de Mestrado em Comunicação. 2013.
110 f. il.
Orientador: Prof. Dr. Roberto Elísio dos Santos.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Municipal de São Caetano do
Sul, Programa de Mestrado em Comunicação, 2013.
Referências Bibliográficas. p. 100-103

1. História em Quadrinhos. 2. Fábio Moon 3. Gabriel Bá. 4.


Daytripper. 5. Autoralidade. 6. Cultura híbrida.
MARCEL LUIZ TOMÉ

AS INOVAÇÕES ESTÉTICAS E NARRATIVAS NOS QUADRINHOS AUTORAIS


DE FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ: Um estudo de Daytripper

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado em Comunicação Social da
Universidade Municipal de São Caetano do
Sul como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Comunicação.

Orientador: Prof. Dr. Roberto Elísio dos


Santos

São Caetano do Sul


2013
UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL
Campus Centro – R. Santo Antônio, 50 – Centro – São Caetano do Sul (SP)

Reitor:
Prof. Dr. Marcos Sidnei Bassi

Pró-Reitor de Pós-graduação e Pesquisa:


Profª. Drª. Maria do Carmo Romeiro

Gestor do Programa de Mestrado em Comunicação:


Prof. Dr. Herom Vargas Silva
Dissertação defendida e aprovada em 26 de junho de 2013 pela Banca Examinadora
constituída pelos professores:

Prof. Dr. Roberto Elisio dos Santos


Universidade Municipal de São Caetano do Sul

Prof. Dr. Herom Vargas Silva


Universidade Municipal de São Caetano do Sul

Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto


Universidade Federal da Paraíba
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Prof. Dr. Roberto Elísio dos Santos, por tornar possível essa pesquisa;
aos autores Fábio Moon e Gabriel Bá, por contribuírem para o enriquecimento das
informações coletadas; e à minha família, Marco Antonio Tomé, Fátima de Lourdes Mola
Tomé, Rafael Marcos Tomé e Karla Harue Saito, pela paciência e incentivo ao longo do
desenvolvimento deste trabalho.
RESUMO

O objetivo desta dissertação é identificar de que maneira os quadrinistas Fábio Moon e


Gabriel Bá utilizam de forma inovadora aspectos estéticos e narrativos na novela gráfica
Daytripper, para então, verificar os traços de autoralidade e destacar aspectos de hibridação
cultural na publicação. A pesquisa é qualitativa e de nível exploratório com delineamento
híbrido por ser composta por revisão bibliográfica, levantamento documental, entrevista e
análise de conteúdo com ênfase em semiótica aplicada. Daytripper é uma criação
independente, produzida profissionalmente pela editora DC Comics, sucesso absoluto de
vendas e aclamada pelo público e pela crítica. Possui características estéticas e narrativas
experimentais e comerciais, fato que justifica ser uma criação independente produzida por
uma das maiores editoras de história em quadrinhos do mundo. Como é uma publicação com
inovações principalmente no âmbito do conteúdo narrativo, apresenta fortes traços de
autoralidade e hibridação cultural.

Palavras-chave: 1. História em quadrinhos. 2. Fábio Moon e Gabriel Bá. 3. Daytripper.


4. Autoralidade. 5. Cultura híbrida.
ABSTRACT

The objective of this dissertation is to identify how the comic book artists Fábio Moon
and Gabriel Bá use in innovative esthetic and narrative aspects in graphic novel Daytripper,
by then, also realize traces of authorship and highlight aspects of cultural hybridization in
Daytripper. This research is qualitative and exploratory survey with level hybrid delineation
to be composed of literature review, documental research, interview and content analysis with
an emphasis on applied semiotics. Daytripper is an independent creation, professionally
produced by publisher DC Comics, absolute sales success and acclaimed by audiences and
critics. It has experimental and commercial of the aesthetic and narrative viewpoint and,
which justifies being independent creation produced by a leading publisher of comics in the
world. How is a publication mainly with innovations within the narrative content, exhibits
strong traces of authorship and cultural hybridization.

Keywords: 1. Comics. 2. Fábio Moon and Gabriel Bá. 3. Daytripper. 4. Authorship. 5. Hybrid
culture.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Ilustração da minissérie Daytripper....................................................................13


Figura 2 - Tira Quase nada, n. 108..................................................................................... 36
Figura 3 - Pixu (edição brasileira encadernada), p. 44........................................................ 40
Figura 4 - Rolando (edição brasileira encadernada), p. 90.................................................. 40
Figura 5 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 1, p. 10............................................ 41
Figura 6 - Umbrella Academy – Dallas, nº 4, p. 1.............................................................. 42
Figura 7 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 3, p. 7.............................................. 42
Figura 8 - Umbrella Academy – Dallas, nº 5, p. 1.............................................................. 43
Figura 9 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 16............................................ 43
Figura 10 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 11.......................................... 44
Figura 11 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 3, p. 22.......................................... 45
Figura 12 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 20.......................................... 45
Figura 13 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 22.......................................... 46
Figura 14 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 7............................................ 46
Figura 15 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 22.......................................... 47
Figura 16 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 11.......................................... 47
Figura 17 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 16.......................................... 48
Figura 18 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 6-7........................................ 48
Figura 19 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 12.......................................... 49
Figura 20 - Umbrella Academy – Free, p. 2........................................................................ 50
Figura 21 - Umbrella Academy – Free, p. 1........................................................................ 50
Figura 22 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 19.......................................... 51
Figura 23 - Pixu (edição brasileira encadernada), p. 15...................................................... 52
Figura 24 - Rolando (edição brasileira encadernada), p. 99................................................ 53
Figura 25 - Umbrella Academy – Dallas, nº 1, p. 23.......................................................... 53
Figura 26 - Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 1, p. 13.......................................... 54
Figura 27 - Umbrella Academy – Dallas, nº 2, p. 1............................................................ 54
Figura 28 - Ilustração de Fábio Moon e Gabriel Bá............................................................ 64
Figura 29 - Capas dos fanzines, da esquerda para a direita:
O girassol e a lua; Crítica!; Meu coração, Não sei por quê;
Mesa para dois; e Fanzine.................................................................................................. 66
Figura 30 - Capas das novelas gráficas, da esquerda para a direita:
Roland; De: Tales; Umbrella Academy;
Pixu; e Casanova................................................................................................................. 67
Figura 31 - Da esquerda para a direita, capa da adaptação: O alienista;
capas das coletâneas: Dez na área e Gunned down............................................................ 68
Figura 32 - Tira Quase nada, n. 1...................................................................................... 69
Figura 33 - Capas da novela gráfica: Daytripper, n. 1-10................................................... 70
Figura 34 - Daytripper, n.1, p.3...........................................................................................72
Figura 35 - Daytripper, n.3, p.10.........................................................................................72
Figura 36 - b_arco, 27/11/2011........................................................................................... 72
Figura 37 - Daytripper, n.1, p.15-16................................................................................... 74
Figura 38 - Daytripper, n.6, p.8...........................................................................................75
Figura 39 - Da esquerda para a direita Daytripper, n.3, p.16;
Daytripper, n.5, p.13; e Daytripper, n.10, p.15................................................................... 76
Figura 40 - Daytripper, n.7, p.4...........................................................................................77
Figura 41 - Daytripper, n.2, p.8...........................................................................................78
Figura 42 - Daytripper, n.4, p.1...........................................................................................78
Figura 43 - Daytripper, n.5, p.8...........................................................................................79
Figura 44 - Daytripper, n.5, p.11.........................................................................................80
Figura 45 - Daytripper, n.1, p.1...........................................................................................81
Figura 46 - Daytripper, n.7, p.1...........................................................................................81
Figura 47 - Daytripper, n.3, p.13.........................................................................................82
Figura 48 - Daytripper, n.2, p.5-6....................................................................................... 83
Figura 49 - Daytripper, n.1, p.13.........................................................................................83
Figura 50 - Daytripper, n.1, p.13.........................................................................................83
Figura 51 - Daytripper, n.3, p.21.........................................................................................84
Figura 52 - Daytripper, n.5, p.22.........................................................................................85
Figura 53 - Daytripper, n.8, p.22.........................................................................................85
Figura 54 - Daytripper, n.8, p.3...........................................................................................86
Figura 55 - Daytripper, n.8, p.7...........................................................................................87
Figura 56 - Daytripper, n.2, p.1...........................................................................................87
Figura 57 - Daytripper, n.3, p.10.........................................................................................88
Figura 58 - Daytripper, n.5, p.1...........................................................................................89
Figura 59 - Daytripper, n.5, p.1...........................................................................................89
Figura 60 - Daytripper, n.9, p.9...........................................................................................90
Figura 61 - Daytripper, n.1, p.10.........................................................................................90
Figura 62 - Daytripper, n.9, p.22.........................................................................................91
Figura 63 - Daytripper, n.3, p.18.........................................................................................92
Figura 64 - Daytripper, n.4, p.9...........................................................................................93
Figura 65 - Daytripper, n.5, p.2...........................................................................................94
Figura 66 - Daytripper, n.2, p.17.........................................................................................95
Figura 67 - Daytripper, n.2, p.19.........................................................................................96
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10

2. IDENTIDADE E HIBRIDAÇÃO NA CULTURA MIDIÁTICA........................... 18

2.1. IDENTIDADE, PÓS-MODERNIDADE E MÍDIA...............................................18


2.2. HIBRIDAÇÃO E SINCRETISMO CULTURAL
DOS PAÍSES “EMERGENTES”...........................................................................29

3. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS:
ASPECTOS ESTÉTICOS E NARRATIVOS........................................................... 38

3.1. NARRATIVAS GRÁFICAS SEQUENCIAIS...................................................... 38


3.2. AUTORALIDADE NOS QUADRINHOS............................................................ 55

4. INOVAÇÕES NOS QUADRINHOS


DE FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ........................................................................ 64

4.1. TRAJETÓRIA DOS AUTORES........................................................................... 64


4.1.1. Publicações experimentais e comerciais...................................................... 65
4.2. ANÁLISE DA NOVELA GRÁFICA DAYTRIPPER.......................................... 70
4.2.1. Inovações narrativas.....................................................................................71
4.2.2. Inovações estéticas....................................................................................... 76
4.2.3. Inovações de conteúdo................................................................................. 90

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 100

ANEXO
10

1. INTRODUÇÃO

A origem deste estudo está relacionada ao interesse que desenvolvi ao longo de minha
vida acadêmica sobre os temas autoralidade e histórias em quadrinhos. Sou graduado em
Comunicação Social, com habilitação em Produção Editorial, e, durante a graduação, tive
meu primeiro contato e fui influenciado por reflexões, principalmente de Michael Foucault,
sobre a função do autor e o papel que ele exerce sobre suas obras. A ideia que mais me seduz
a respeito da autoralidade, vem de um texto em que o filósofo francês diz que a função do
autor “[...] não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar
simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos
podem vir a ocupar” (FOUCAULT, 2006, p.280). Foi também na época da graduação que tive
o primeiro contato com histórias em quadrinhos que não pertencem ao circuito comercial, de
autores europeus como Enki Bilal, Pierre Christin, Warnauts-Raives, Miguelanxo Prado, entre
outros.
Minha paixão pelos quadrinhos começou durante a infância, enquanto estava sendo
alfabetizado; meus pais compravam muitas revistas de diversos personagens da Turma da
Mônica como forma de incentivo à leitura. A escolha da minha graduação é resultado da
paixão que desenvolvi pelas histórias em quadrinhos ao longo dos anos. Meu sonho era ser
editor das revistas dos personagens da editora Marvel Comics e DC Comics. Na época, as
revistas Batman, X-Men, Homem Aranha, Conan, entre outras, eram publicadas pela Editora
Abril. As histórias desses super-heróis me seduziram no início da adolescência; foi, também
nessa época, que passei de simples leitor e apreciador para colecionador de quadrinhos,
prática que continua até hoje.
Quando conheci o Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul e o professor-doutor Roberto Elísio dos Santos, orientador
deste projeto, tive a oportunidade de aprender e conhecer alguns autores brasileiros que
realizavam trabalhos autorais, como Fábio Moon e Gabriel Bá.
A história em quadrinhos Daytripper, produzida por esses quadrinistas, possui
características divergentes que a caracteriza como obra comercial e autoral ao mesmo tempo.
A obra foi publicada nos Estados Unidos pela editora DC Comics, entre 2009 e 2010, e
ganhou diversos prêmios como o Eisner Awards (EUA), de melhor série; o Harvey Awards
(EUA), de melhor história, e o Eagle Awards (UK), de história em quadrinhos e história
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favorita, em 2011, e ficou várias semanas em primeiro lugar na lista do New York Times de
quadrinhos mais vendidos nos Estados Unidos. Em 2012, recebeu o prêmio de melhor história
em quadrinhos no Festival Internacional de Ficção Científica Utopiales, na França; essa foi a
primeira vez que autores brasileiros e uma publicação editada originalmente nos Estados
Unidos conquistaram a categoria (ASSIS, 2012). No Brasil, eles receberam os prêmios:
Angelo Agostini, de melhor roteirista, em 2004; de melhor desenhista, em 2005 e 2006; de
HQ Mix de destaque internacional, em 2008; melhor revista independente, em 2006; melhor
blog de artista, em 2003, 2004, 2005 e 2006; melhor desenhista nacional, em 2004 e 2006; e
de desenhista revelação em 1999.
Para compreender esse produto cultural, o ponto de partida foi a indagação: Quais são
as inovações no âmbito da estética e da narrativa e como se manifesta a hibridação na novela
gráfica Daytripper?
Como objetivo principal, pretendeu-se identificar de que maneira esses quadrinistas
utilizaram de forma inovadora aspectos estéticos e narrativos nesse trabalho. E, como
objetivos secundários, perceber os traços de autoralidade presentes em Daytripper, além de
destacar aspectos de hibridação cultural.
Por se tratar de um fenômeno editorial que alcançou sucesso de vendas, Daytripper é,
ao mesmo tempo, um marco do quadrinho autoral brasileiro reconhecido pelo público e pela
crítica no exterior. É uma história em quadrinhos autoral, ou seja, pode ser classificada como
experimental, inovadora e pessoal. Fábio e Gabriel misturam elementos artísticos,
característicos de suas formações culturais, com questões diárias da vida moderna, como
realização profissional, relacionamentos familiares e amorosos, tempo com os filhos etc. A
narrativa também incorpora o tema central da história com uma reflexão sobre a vida e a
morte, essas e outras características básicas de uma história em quadrinhos autoral são
incompatíveis com as histórias em quadrinhos comerciais, pois estas podem ser classificadas
como uma história que segue um modelo testado e aprovado pelo público que está
acostumado com esse formato.
Esta pesquisa pretendeu contribuir, portanto, para o mapeamento dos elementos
inovadores na estética e na narrativa das histórias em quadrinhos a partir de uma experiência
que é paralelamente autoral e comercial, brasileira e internacional.
O começo da carreira dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá foi marcada pela
produção de fanzines, pequenas publicações independentes e artesanais, produzidas por fãs e
direcionadas a públicos específicos (MAGALHÃES, 2004, 2005; GUIMARÃES, 2005). O
primeiro fanzine de Fábio Moon e Gabriel Bá surgiu na época do colégio com o nome Vez em
12

quando, o segundo, quando cursavam a faculdade, com o titulo Ícones. O terceiro fanzine foi
nomeado 10 pãezinhos, e venceu o prêmio HQ Mix de melhor fanzine, em 1999. Este título é
utilizado até hoje pelos autores com a publicação de histórias, como O girassol e a lua; Meu
coração, Não sei por quê; Crítica!; e Mesa para dois. Os dois últimos foram vencedores do
prêmio HQ Mix de melhor edição especial nacional em 2004 e 2006, respectivamente.
Os quadrinistas fizeram diversas viagens ao exterior para divulgar seus trabalhos e
fazer novos contatos. Essa experiência permitiu que eles publicassem na Espanha, França,
Itália e, principalmente, nos Estados Unidos com editoras reconhecidas mundialmente, como
a Dark Horse e a DC Comics. As principais obras publicadas no exterior são Roland,
premiada pela Xeric Fundation Grant, em 1999; De:Tales; Ursula; Sugarshock!, esta
vencedora do prêmio Eisner Awards de melhor história em quadrinhos digital em 2008;
Umbrella Academy: Apocalypse Suite, vencedora dos prêmios Eisner Awards e Harvey
Awards como melhor série; e Scream Awards como melhor artista de história em quadrinhos,
em 2008; Umbrella Academy: Dallas; Pixu; BPRD:1947; Casanova – Luxúria; e Casanova –
Gula.
Fábio e Gabriel adaptaram para os quadrinhos o conto O alienista, de Machado de
Assis. A adaptação recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro didático e paradidático para
ensino médio ou fundamental em 2008. Eles também são constantemente convidados para
publicar histórias com outros autores em coletâneas no Brasil e no exterior, como Front 09 e
10; Dez na Área; Authobiographix; Gunned Down; 27 Seven 1 e 2; e Fligh 4. Atualmente,
produzem para o jornal Folha de S.Paulo uma tira de quadrinhos com temas filosóficos
chamada Quase Nada.
A escolha da novela gráfica Daytripper como objeto de estudo se deve ao fato de a
obra ser a primeira história em quadrinhos autoral desses artistas a atingir escalas
internacionais com grande repercussão e ser a mais premiada de 2011, período em que esta
pesquisa foi iniciada. Daytripper foi publicada nos Estados Unidos pelo selo Vertigo, da
editora DC Comics, entre 2009 e 2010, em dez edições, e posteriormente publicada em uma
única edição encadernada. Também foi publicada em edição única encadernada, com opções
de capa cartonada ou dura, pela editora Panini no Brasil, no segundo semestre de 2011, além
de ser publicada na França, em 2012. Portanto, o corpus de análise será formado pela
minissérie Daytripper, que servirá de base para a análise a ser desenvolvida a respeito do
mapeamento estético e narrativo proposto por esta pesquisa e a compreensão do fenômeno
autoral/comercial.
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A dissertação está vinculada à Linha de Pesquisa 2 – Inovações na Linguagem e na


Cultura Midiática, na qual são trabalhadas as narrativas e gêneros ficcionais das mídias de
massa, incluindo as histórias em quadrinhos.
A minissérie Daytripper (Figura 1) foi analisada sob dois aspectos inovadores,
autoralidade e produção comercial de uma novela gráfica no mercado norte-americano. As
linguagens utilizadas e a narrativa foram criadas para contar uma história que propõe uma
reflexão sobre a vida, e é concebida do ponto de vista construído pela experiência dos autores.

Figura 1 – Ilustração da minissérie Daytripper.

O professor-doutor Roberto Elísio dos Santos, orientador desta dissertação, é


pesquisador de histórias e de gêneros ficcionais midiáticos, além de vice-coordenador do
Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP.
A pesquisa desenvolvida é qualitativa e de nível exploratório com delineamento
híbrido por ser composta de revisão bibliográfica, levantamento documental, entrevista e
análise de conteúdo com ênfase em semiótica aplicada.
A história é dividida em dez capítulos, e várias cenas (pequenas sequências gráficas)
foram analisadas. Cada capítulo é narrado pelo protagonista Brás de Oliva Domingos em um
momento de sua vida. O sonho de Brás é ser um escritor reconhecido, mas passa boa parte de
sua vida escrevendo obituários para um jornal na cidade de São Paulo. Apesar de não se sentir
realizado escrevendo obituários, é este trabalho que permite ao personagem, além de ganhar a
vida, refletir sobre ela. No final de cada capítulo, o personagem narra a sua morte, como se
estivesse escrevendo o próprio obituário.
A revisão bibliográfica reveste-se da importância para fundamentar, do ponto de vista
teórico, questões contemporâneas relativas à identidade e hibridação cultural, sincretismos,
autoralidade e aspectos estéticos da linguagem e da narrativa das histórias em quadrinhos.
14

São necessários documentos que comprovem a aplicação dos fundamentos aqui


desenvolvidos, portanto, o levantamento documental foi composto por cenas da minissérie
Daytripper que compõe a amostra e o corpus da pesquisa.
O procedimento para a análise do objeto e demais documentos foi a análise de
conteúdo com ênfase na semiótica aplicada e análise do discurso como ferramentas para a
análise dos elementos verbais, visuais e narrativos (FONSECA JÚNIOR, 2006).
Por se tratar de uma narrativa gráfica sequencial, foram utilizadas categorias narrativas
de focalização, tempo, espaço e personagem como categorias para compor os elementos de
representação da cultura brasileira.
A principal ferramenta utilizada para a análise dos elementos verbais e não verbais foi
a Semiótica, uma teoria geral dos signos, que pode ser aplicada em diversas áreas da
comunicação social, como publicidade e propaganda, construção de embalagens, arte e até
mesmo histórias em quadrinhos, como na análise feita por Umberto Eco sobre uma página de
Steve Canyon (SANTAELLA, 2002; ECO, 2008b).
Os discursos adotados por seus autores também devem compor a análise, por isso, a
análise do discurso (MANHÃES, 2006), considera os ditos explícitos e implícitos do emissor
sem desconsiderar a época e o ambiente no qual determinado discurso foi produzido.
Imagens não verbais compõem a maioria dos elementos de uma história em
quadrinhos, e estas possuem um caráter mágico e essencial para a compreensão das imagens:
Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os
elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é
circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se
torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a
imagem é o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imagética por ciclos.
Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos
preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do
significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo
que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia.
Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações causais entre eventos.
(FLUSSER, 2002, p. 8)

Vale ressaltar que os resultados obtidos por essas análises não esgotam as
possibilidades de significação, a quantidade de significações possíveis são impossíveis de
serem mensuradas, pois dependem de muitas variáveis. Essa análise de conteúdo é qualitativa
e ao apropriar-se de ferramentas como a semiótica e a análise do discurso leva em
consideração o ponto de vista do analista ao aplicar os fundamentos bibliográficos desta
pesquisa sobre o objeto que inclui o local e a época em que foi produzido, o emissor e o
provável receptor da mensagem produzida.
15

Por fim, foi aplicada uma entrevista em profundidade com os autores e desenhistas
Fábio Moon e Gabriel Bá. A escolha dos entrevistados foi intencional, pois, os produtores da
série Daytripper são, naturalmente, autores do objeto deste estudo. Conforme os conceitos de
Jorge Duarte (2006), a entrevista foi realizada por e-mail, foi utilizado um questionário
semiestruturado que obteve informações qualitativas para a pesquisa. Os dois autores
participaram da mesma entrevista, pois o mais relevante para a pesquisa é o resultado da
produção coletiva de ambos.
Foi importante para fins de profundidade na análise dos resultados que toda a
entrevista fosse documentada. Ela complementou as informações que não puderam ser obtidas
na análise bibliográfica, objetivando a melhor qualidade das informações coletadas, a
entrevista foi produzida e realizada após o levantamento e a análise de todo material
bibliográfico. A abordagem em profundidade foi semiaberta, ou seja, as questões foram
semiestruturadas como um roteiro que conduziu o tema da entrevista para respostas
indeterminadas, mas que foram aprofundadas pelo pesquisador. O resultado da entrevista
conteve informações que foram relacionadas com os outros resultados obtidos.
O capítulo dois, “Identidade e hibridação na cultura midiática”, foi dividido em duas
partes, “Identidade, pós-modernidade e mídia” e “Hibridação e sincretismo cultural”.
Na primeira parte, foram abordados inicialmente os conceitos de descentramento do
sujeito, responsáveis pela formação da identidade cultural do sujeito pós-moderno de Stuart
Hall. Também foram descritas como parte do processo, as características do sujeito moderno
de Douglas Kellner (2001) e sua passagem para a pós-modernidade. Para Stuart Hall (2006), a
pós-modernidade é formada pela cultura regional e pela cultura nacional, sendo inserida nesse
processo uma cultura globalizada regida pelo capital. Homi K. Bhabha (2010) e outros autores
completam o processo de formação da cultura ao explicar o desenvolvimento dela em um
terceiro espaço, deslocado da relação espaço-tempo. Douglas Kellner (2001) fecha essa
primeira parte inserindo o papel da mídia na formação cultural pós moderna.
A segunda parte do capítulo, “Hibridação e sincretismo cultural dos países
‘emergentes’”, é composta principalmente pelos conceitos de Nestor Garcia Canclini (2011),
Peter Burke (2003) e Massimo Canevacci (1996) sobre hibridação e sincretismo cultural e
como esse processo afeta principalmente os países considerados “emergentes”. Nessa parte do
capítulo, os conceitos em torno da hibridação cultural foram apresentados como parte do
processo de formação cultural pós-moderna, além da inserção e influência da indústria
cultural em países como o Brasil.
16

Como o capítulo anterior, o capítulo três, “Histórias em quadrinhos: aspectos estéticos


e narrativos”, foi dividido em duas partes, “Narrativas gráficas sequenciais” e “Autoralidade
nos quadrinhos”.
Na primeira parte, destinada às “Narrativas gráficas sequenciais”, tomou-se por base
os autores Will Eisner (2010), Scott McCloud (2005), entre outros, que conceituam as
histórias em quadrinhos e apresentam seus principais elementos da composição estética, na
qual elas são construídas. Enquanto Marcelo Bulhões (2009) destaca a importância dos
elementos que formam a narrativa, Paulo Ramos (2009) e Najara Ferrari Pinheiro (2002)
apresentam as diferenças entre os conceitos de gênero e hipergênero nas histórias em
quadrinhos.
Em “Autoralidade nos quadrinhos” é tratada a função do autor, com base em Michel
Foucault (2006). Os conceitos de experimentalismo e vanguarda são diferenciados tendo por
base trabalhos de Umberto Eco (2008) e Philadelpho Menezes (1994), e para o estudo dos
elementos de autoralidade, especialmente na Nouvelle Vague, foi utilizado o trabalho de
Adriano Medeiros da Rocha (2006). Ao falar especificamente das histórias em quadrinhos, a
análise esteve focada nos elementos que compõem os quadrinhos poético-filosóficos, de
Elydio dos Santos Neto (2012), enquanto a classificação da arte dos desenhos como parte da
autoralidade nas histórias em quadrinhos baseou-se no estudo de Douglas Wolk (2011). Para
o estudo das produções independentes das histórias em quadrinhos, como os fanzines, optou-
se pelos trabalhos de Waldomiro Vergueiro (2011), Henrique Magalhães (2004) e Edgard
Guimarães (2005); as definições de novela gráfica como produção mainstream (DUNCAN;
SMITH, 2009) estão baseadas em Santiago García (2012) e Roberto Elísio dos Santos (1995).
O quarto e último capítulo, “Inovações nos quadrinhos de Fábio Moon e Gabriel Bá”,
também foi dividido em duas partes: “Trajetória dos autores”, e “Análise da novela gráfica
Daytripper”. Nesses dois casos, a análise é enriquecida com as informações obtidas na
entrevista, que se encontra no Anexo, realizada com os autores.
Na “Trajetória dos autores” foi analisada a carreira artística de Fábio Moon e Gabriel
Bá, a produção de fanzines, os convites para a produção de histórias em quadrinhos em outros
países com diferentes autores e os prêmios conquistados.
Em “Análise da novela gráfica Daytripper” foram analisadas algumas cenas em três
categorias: inovações narrativas, inovações estéticas e inovações de conteúdo.
A primeira, “Inovações narrativas”, traz a análise dos elementos narrativos, e a
categoria seguinte, “Inovações estéticas”, analisa os elementos estéticos, teorizados no
17

capítulo 3. E, por fim, “Inovações de conteúdo”, trata dos conceitos pós-modernos, de


hibridação e de autoralidade, explicados nos capítulos 2 e 3.
18

2. IDENTIDADE E HIBRIDAÇÃO NA CULTURA

MIDIÁTICA

2.1 Identidade, pós-modernidade e mídia

As sociedades do século XXI, cada vez mais, colocam em evidência a formação das
identidades culturais pós-modernas: as pessoas que formam a sociedade são os sujeitos que
precisam de alguma identificação cultural que os liguem aos seus antepassados e ao mundo
em que vivem. Esse sujeito pós-moderno é caracterizado por desenvolver diversas identidades
que são formadas por diferentes experiências culturais ao longo de sua vida. Cada identidade
cultural desenvolvida soma-se às outras e são acionadas pelo sujeito em diferentes situações
do seu dia a dia.
Antes do surgimento desse pensamento pós-moderno, o sujeito moderno era
caracterizado por refletir a complexidade de seu tempo. Ele era entendido como um ser
humano único e indivisível que formava uma única identidade centralizada constituída por
suas características genéticas, o seu “eu” e a sua inserção em uma determinada sociedade. O
sujeito moderno está subordinado às mudanças e inovações de sua identidade, que pode ser
móveis ou múltiplas. As identidades podem representar uma fase da vida ou o contexto social
no qual o sujeito está inserido; ele pode, por exemplo, representar, entre outros papéis, o de
ser mãe, filho, brasileiro, advogado, artista, religioso, socialista, homossexual. Todos esses
papéis também podem juntar-se em combinações e gerar mais possibilidades sociais.
Portanto, a modernidade também deve ser associada à individualidade. Como consequência, a
identidade pode tornar-se rígida e causar tédio, o problema da identidade moderna consiste no
modo como nos percebemos, nos interpretamos e nos representamos para os outros.
[...] para alguns teóricos, a identidade é uma descoberta e a afirmação de uma
essência inata que determina o que somos, enquanto para outros a identidade é um
construto e uma criação a partir dos papéis e dos materiais sociais disponíveis. O
pensamento pós-moderno contemporâneo, porém, tem rejeitado a noção
essencialista e racionalista de identidade, baseando-se na noção construtivista por ele
problematizada. (KELLNER, 2001, p.297-298)

O jamaicano Stuart Hall (2006, p.34-46) explora principalmente a identidade cultural


pós-moderna. Na passagem do sujeito moderno para o sujeito pós-moderno, ele conceitua a
19

descentralização do sujeito moderno e destaca cinco mudanças na teoria do pensamento social


como responsáveis por acelerar essa nova dinâmica da formação da identidade cultural.
O primeiro descentramento pertence ao pensamento marxista, no qual o sujeito age
com base nas condições históricas criadas por gerações anteriores. O segundo, refere-se a
teoria do inconsciente de Freud, na qual o sujeito se forma gradativamente de acordo com a
relação que estabelece com outras pessoas. O terceiro descentramento se dá na área da
linguística: Ferdinand de Saussure afirma que a língua é um sistema social pronto, e ao
articularmos seus significados, estamos apenas ativando os sistemas culturais já existentes. O
quarto, está no pensamento do filósofo Michael Foucault, que conceitua o poder disciplinar
preocupado em regulamentar e vigiar o sujeito nas instituições e nos espaços públicos,
controlando suas preocupações e seus prazeres para que se torne um indivíduo dócil. E, por
fim, o quinto descentramento, consiste na teoria e no movimento feminista, que questionou a
homogeneização da identidade feminina no que diz respeito à identidade das mulheres terem
como modelo a identidade masculina.
Esses cinco descentramentos são responsáveis pela formação da identidade cultural do
sujeito pós-moderno, mas não o coloca como autor de nenhum sistema cultural, todos os
descentramentos descritos por Stuart Hall situam o sujeito apenas como um articulador de
elementos culturais. Essa articulação depende da formação das linguagens que o sujeito
domina, além das pessoas que o cerca e do sistema social, político e econômico no qual ele
está inserido.
Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os “autores” das
afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Nós
podemos utilizar a língua para produzir significados apenas nos posicionando no
interior das regras da língua e dos sistemas de significado de nossa cultura. A língua
é um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós. Não podemos,
em qualquer sentido simples, ser seus autores. Falar uma língua não significa apenas
expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a
imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos
sistemas culturais. (HALL, 2006, p.40)

Segundo Stuart Hall (2006), a cultura nacional foi a principal fonte responsável pela
formação da identidade cultural dos sujeitos durante a modernidade. Assim como qualquer
outro tipo de cultura, ela não é biológica, ou seja, não nasce com o sujeito. A cultura nacional
desenvolve-se no interior das representações do sujeito e contribui para a homogeneização de
elementos como língua, crenças e diversos outros aspectos geradores de prazeres e
preocupações responsáveis pela formação de uma sociedade.
20

A cultura nacional é formada por discursos e narrativas que criam símbolos que são
representados e narrados por uma sociedade, são histórias contadas e recontadas na literatura,
na mídia e na cultura popular. De acordo com Hall
essas [narrativas] fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários,
eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as
experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à
nação. Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de
nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância
à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino
nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. (2006, p. 52)

As narrativas da cultura nacional sustentam as memórias do passado, o desejo por


viver em conjunto e a perpetuação da herança. Essas características podem até mesmo gerar
novos e atuais costumes apenas para reforçar o desejo de uma cultura “tradicional”, com a
ilusão de que um novo costume é uma memória do passado, mantém-se o desejo de viver em
conjunto, mesmo que para isso perpetue-se uma “falsa” herança de nossos antepassados.
Não importa se as pessoas pertençam a classes, gêneros ou raças diferentes, a
representação deve ser homogeneizada para gerar lealdade, união e identificação simbólica de
uma nação, isto é, uma estrutura de poder cultural, na qual “... deveríamos pensá-las como
constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou
identidade” (HALL, 2006, p. 61-62). Toda unificação cultural passa por um processo de
conquista violenta, na qual os países que foram colonizados sofreram muitas influências da
cultura de seus colonizadores, também chamada de cultura dominante. As nações são
formadas por várias etnias, essa distinção não é genética, mas sim cultural. Para formar uma
cultura nacional, a nação precisa estabelecer pontos generalistas, porém em comum entre as
diferentes etnias. Fator este que reforça a intolerância entre as diferentes culturas e alimenta o
racismo étnico ou cultural.
A formação da identidade cultural do sujeito pós-moderno também se desenvolve a
partir dos conceitos da globalização, da diferença e do deslocamento cultural, do local da
cultura e do sujeito subalterno, que serão abordados nesta dissertação. Inicialmente, a pós-
modernidade traz a globalização como um dos elementos mais importantes e responsáveis por
este período, além de ser capaz de deslocar e diminuir as influências das culturas nacionais. A
globalização se desenvolveu intensamente a partir do final do século XX, mas é um fenômeno
que se iniciou com o capitalismo. Esse modelo econômico é mundial, portanto não fica
restrito apenas a uma nação. O processo de globalização agride a cultura nacional, mas, por
outro lado, valoriza a cultura local ao inserir elementos de uma cultura global regida por
fatores econômicos e com isso gera novas culturas híbridas.
21

Desde o final do século XX, a cultura nacional sofre a mesma homogeneização


cultural que ela implantou por meio de conquistas violentas e colonizações. A cultura global
apenas age de forma diferente, ela entra nas nações com uma sedução econômica muito forte
e tem como aliada as culturas locais, antes suprimidas pela cultura nacional. Na pós-
modernidade, a força do capital aliada à cultura local gera uma série de novos produtos
étnicos; este processo de transformar uma cultura em produtos gera uma hibridação que
valoriza a diferença cultural como uma forma de pluralizar a mercantilização étnica. Para Hall
Há, juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A
globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de
“nichos” de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de
pensar no global como “substituindo” o local seria mais acurado pensar numa nova
articulação entre “o global” e “o local”. Este “local” não deve, naturalmente, ser
confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem
delimitadas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto,
parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades
nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, novas
identificações “globais” e novas identificações “locais”. (2006, p.77-78)

O processo de globalização cultural acontece de forma desigual entre os países mais


desenvolvidos economicamente e os chamados países periféricos. Os primeiros sofrem essa
homogeneização cultural ao mesmo tempo que determinam as características da
mercantilização cultural que chega posteriormente aos chamados países periféricos. Em um
primeiro momento, isso pode parecer agressivo e ameaçador às culturas dos países onde a
globalização é tardia, mas uma das consequências geradas pela globalização é o fato das
culturas dos chamados países periféricos estarem dentro dos países desenvolvidos e
contribuindo na formação e difusão da cultura globalizada. De acordo com Hall “A
globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades
culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo”
(2006, p. 80-81).
A pós-modernidade enfatiza as diferenças culturais com a exploração das culturas
locais, culturas que antes eram suprimidas pelas culturas nacionais. Apesar de o termo ser
comumente tratado como diversidade cultural, o crítico indo-britânico Homi K. Bhabha
(2010) afirma que este não se aplica aos conceitos das culturas na pós-modernidade, o termo
diversidade designa a multiplicidade de culturas fechadas, onde as identidades coletivas são
únicas e não sofrem interferências externas, portanto são utópicas e não condizem com os
conceitos sobre a identidade cultural pós-moderna. Ao analisar as identidades como
diferenças culturais, as afirmações de cada cultura acontecem por meio da comparação com a
outra, como método de significação cultural.
22

A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto do


conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação
da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de
identificação cultural. Se a diversidade é uma categoria da ética, estética ou
etnologia comparativas, a diferença cultural é um processo de significação através
do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e
autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. A
diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-
dados; mantida em um enquadramento temporal relativista, ela dá origem a noções
liberais de multiculturalismo, de intercâmbio cultural ou da humanidade. A
diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical da separação
de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais
históricos, protegidas na utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva
única. A diversidade cultural pode inclusive emergir como um sistema de
articulação e intercâmbio de signos culturais em certos relatos antropológicos do
início do estruturalismo. (BHABHA, 2010, p.63)

Homi K. Bhabha se apropria do pensamento de Walter Benjamin sobre o signo para


conceituar o processo de significação entre as diferenças culturais. As culturas são traduzidas
constantemente pelos sujeitos que dominam e interpretam as linguagens culturais
diferenciando-as delas mesmas.
O pensamento de Benjamim pode ser reelaborado em uma teoria da diferença
cultural. É somente se envolvendo com o que ele denomina o “ambiente linguístico
mais puro” – o signo como algo anterior a qualquer lugar de sentido – que o efeito
de realidade do conteúdo pode ser dominado, o que torna então todas as linguagens
culturais “estrangeiras” a elas mesmas. E é dessa perspectiva estrangeira que se
torna possível inscrever a localidade específica de sistemas culturais – suas
diferenças incomensuráveis – e, através dessa apreensão da diferença, desempenhar
o ato da tradução cultural. No ato da tradução cultural, o conteúdo “dado” se torna
estranho e estranhado, e isso, por sua vez, deixa a linguagem da tradução, Aufgabe,
sempre em confronto com seu duplo, o intraduzível – estranho e estrangeiro.
(BHABHA, 2010, p.230-231)

Como um efeito gerado pela globalização, Stuart Hall (2006) apresenta outro aspecto
da tradução cultural, no qual as culturas locais não ficam restritas aos seus locais de origem, a
relação espaço-tempo alterada pela globalização coloca as diversas culturas em contato umas
com as outras, gerando novas culturas híbridas.
Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e
intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas
para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares
de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no
velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e
culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e
não a uma “casa” particular). (HALL, 2006, p.88-89)

Conforme Homi K. Bhabha (2010), o local de desenvolvimento do discurso cultural


independe do local geográfico ou de tempo, a cultura não se desenvolve apenas de um lado ou
de outro da fronteira geográfica, nem no passado ou no presente, mas sim em um terceiro
23

local, dividido em entre-tempo e entre-lugar, em que ocorre a construção do discurso como


significação cultural.
É apenas quando compreendermos que todas as afirmações e sistemas culturais são
construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos
a compreender porque as reivindicações hierárquicas de originalidade ou “pureza”
inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorrermos a instâncias
históricas empíricas que demonstram seu hibridismo. [...] É o Terceiro Espaço, que
embora em si irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação que
garantem que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez
primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-
historicizados e lidos de outro modo. (BHABHA, 2010, p.67-68)

Para compreender o desenvolvimento da cultura no Terceiro Espaço, é preciso


destacar um dos principais aspectos da pós-modernidade, descrito pelo britânico David
Harvey (2007), no qual o retrato da pós-modernidade depende de um modo particular de
experimentar, interpretar e ser no mundo. A fragmentação da cultura e a representação que o
sujeito faz do mundo ao seu redor por meio de uma linguagem instável gera uma
personalidade esquizofrênica, portanto
[...] a mais problemática faceta do pós-modernismo: seus pressupostos psicológicos
quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a
fragmentação e a instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por
exemplo, a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se
concentra na esquizofrenia (não deve-se enfatizar, em seu sentido clínico estrito).
(HARVEY, 2007, p.56)

O teórico norte-americano Fredric Jameson (1985) parte da teoria do psicanalista


francês Jacques Lacan ao definir a esquizofrenia como um distúrbio temporal. O passado, o
presente e o futuro se misturam entre a ação e a memória do sujeito. O esquizofrênico não
consegue ter uma experiência temporal contínua, é como se todas as experiências temporais
pertencessem ao presente. Portanto, a experiência esquizofrênica impede o sujeito de
reconhecer sua identidade, ao mesmo tempo que proporciona maior intensidade em uma
experiência fragmentada, desse modo
[...] o esquizofrênico vivencia mais do que nós, e com nitidez, uma experiência
muito mais intensa de um definido instante do mundo, pois nosso próprio presente é
sempre parte de algum conjunto mais amplo de projetos, o que nos obriga a focalizar
e a selecionar nossas percepções. Em outras palavras, não receptamos o mundo
exterior globalmente como uma visão indiferenciada: estamos sempre empenhados
em utilizá-lo, sempre enveredamos por ele, sempre atentamos neste ou naquele
objeto ou pessoa que nele está. Contudo, o esquizofrênico não só é “ninguém” por
não ter uma identidade pessoal, como seu desempenho é nulo, pois ter o projeto
significa estar apto a se envolver com alguma continuidade futura. (JAMESON,
1985, p.22-23)

A linguagem utilizada na construção cultural também pode ser entendida como


esquizofrênica, pois se apresenta como um distúrbio do relacionamento entre os significantes.
Os vários significantes não podem ser significados individualmente, a cultura pós-moderna é
24

fragmentada, portanto, todos os significantes devem ser lidos juntos para formar o
significado.
Para Homi K. Bhabha (2010), a construção cultural ocorre no entre-tempo, conhecido
como o estágio que antecede a formação do signo, no entanto essa representação é subjetiva.
As representações culturais do sujeito ocorrem em um constante processo de reordenação dos
símbolos adotados para a leitura dos acontecimentos do passado e do presente, sendo que
[o] processo de reinscrição e negociação – a inserção ou intervenção de algo que
assume um significado novo – acontece no intervalo temporal situado no entremeio
do signo, destituído de subjetividade, no domínio do intersubjetivo. Através desse
entre-tempo – o intervalo temporal na representação – emerge o processo da agência
tanto como desenvolvimento histórico quanto como agência narrativa do discurso
histórico. O que se evidencia de forma tão clara na genealogia do sujeito de Lacan é
que a intencionalidade do agente, que parece “direcionada manifestamente” para a
verdade da ordem dos símbolos no imaginário social, é também um efeito da
redescoberta do mundo da verdade a que foi subjetividade (pois ela é intersubjetiva)
no nível do signo. É na tensão contingente que resulta que signo e símbolo se
sobrepõem e são indeterminadamente articulados através do “intervalo temporal”.
Onde o signo destituído do sujeito – intersubjetividade – retorna como subjetividade
direcionada à redescoberta da verdade, aí uma (re)ordenação de símbolos se torna
possível na esfera do social. Quando o signo cessa o fluxo sincrônico do símbolo,
ele apreende também o poder de elaborar – através do entre-tempo – agências e
articulações novas e híbridas. (BHABHA, 2010, p. 266)

O local conhecido como entre-lugar, é onde os símbolos – que representam as


experiências que aconteceram no passado, vividas ou narradas por outras pessoas, somadas às
ações vividas no presente – são reordenados e representados de diferentes formas gerando
novas identidades no sujeito.
A globalização cultural é figurada nos entre-lugares de enquadramentos duplos: sua
originalidade histórica, marcada por uma obscuridade cognitiva; seu “sujeito”
descentrado, significativo na temporalidade nervosa do transicional ou na emergente
provisoriedade do “presente”. A transformação do globo em um projeto teórico
cinde e duplica o discurso analítico no qual ele está incrustado, à medida que a
narrativa de desenvolvimento do capitalismo tardio se defronta com sua persona
fragmentada pós-moderna e que a identidade materialista do marxismo é
estranhamente rearticulada nas não identidades psíquicas da psicanálise. (BHABHA,
2010, p.297-298)

O processo de formação das identidades culturais no entre-lugar engloba o contato


existente nas diferenças culturais. Independentemente de o choque entre diferentes culturas
acontecer entre fronteiras territoriais ou na relação temporal de passado e presente, o processo
de ressignificação ocorre e com isso a assimilação de novos símbolos culturais são
representados sob diferentes ópticas.
O que deve ser mapeado como um novo espaço internacional de realidades
históricas descontínuas é, na verdade, o problema de significar as passagens
intersticiais e os processos de diferença cultural que estão inscritos no “entre-lugar”,
na dissolução temporal que tece o texto “global”. É, ironicamente, o momento, ou
mesmo o movimento, desintegrador, da enunciação – aquela disjunção repentina do
presente – que torna possível a expressão do alcance global da cultura. E,
25

paradoxalmente, é apenas através de uma estrutura de cisão e deslocamento – “o


descentramento fragmentado e esquizofrênico do eu” – que a arquitetura do novo
sujeito histórico emerge nos próprios limites da representação, para “permitir uma
representação situacional por parte do indivíduo daquela totalidade mais vasta e
irrepresentável, que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo”.
(BHABHA, 2010, p.298)

A formação do “povo” que constitui uma nação também é organizada pelos discursos
da construção da identidade cultural. A relação social estabelecida pelas pessoas acontece por
meio do processo de ressignificação entre os acontecimentos do passado com os
acontecimentos do presente, e portanto é
[...] precisamente na leitura entre as fronteiras do espaço-nação que podemos ver
como o conceito de “povo” emerge dentro de uma série de discursos como um
movimento narrativo duplo. O conceito de povo não se refere simplesmente a
eventos históricos ou a componentes de um corpo político patriótico. Ele é também
uma complexa estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser
representativo provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação
discursiva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de ser
pensado num tempo-duplo; o povo consiste em “objetos” históricos de uma
pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no
preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste
também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer
presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios
prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do
presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo
reprodutivo. (BHABHA, 2010, p.206-207)

Homi K. Bhabha (2010) adota o discurso de Fredric Jameson para inserir a ideia de
classes no conceito de local da cultura. As novas fronteiras do mundo são estabelecidas entre
as diferenças culturais que são organizadas entre os sujeitos de diferentes classes dentro de
uma nação.
Jameson dissipa o potencial dessa “terceira” política do futuro-como-questão-aberta,
ou “nova ordem/fronteira do mundo”, ao transformar as diferenças sociais em
“distância” cultural e ao converter temporalidades intersticiais, conflituosas, que
podem não ser nem de desenvolvimento nem lineares (não “dispostas para cima ou
para baixo em uma escala temporal”) nos topoi da separação espacial. Através da
metáfora da distância espacial, Jameson mantém firmemente o “enquadramento”,
senão a face, do aparato de percepção centrado no sujeito que, em um contra-
movimento, busca deslocar na “realidade virtual” do mapeamento cognitivo, ou da
irrepresentabilidade do novo espaço internacional. E o pivô dessa dialética espacial,
reguladora – o olho da tormenta – é nada menos do que o próprio sujeito-de-classe.
(BHABHA, 2010, p. 302)

O discurso de Veena Das também é adotado por Homi K. Bhabha (2010), mas para se
referir ao sujeito subalterno, as chamadas classes mais baixas que formam o “povo” de uma
nação. O sujeito subalterno está na posição mais desfavorável dentro do grupo pertencente aos
países colonizados. O processo de significação no sujeito subalterno não é vazio. O sujeito
subalterno não incorpora de forma passiva e absoluta a cultura dos colonizadores, mas faz
26

todo o processo de ressignificação entre a nova cultura e a cultura existente formando uma
cultura híbrida entre as duas assimiladas.
Esta ênfase no presente disjuntivo do enunciado permite ao historiador escapar de
definir a consciência subalterna como binária, como tendo dimensões positivas ou
negativas. Ela permite que a articulação da agência subalterna venha a emergir como
relocação e reinscrição. Na apresentação do signo [...] não há nem negação dialética
nem significante vazio: há uma contestação dos símbolos de autoridade dados que
fazem mudar o terreno do antagonismo. O sincronismo na ordenação social dos
símbolos é desafiado em seus próprios termos, mas as bases do embate foram
deslocadas em um movimento suplementar que exerce aqueles termos. Este é o
movimento histórico do hibridismo como camuflagem, como uma agência
contestadora, antagonística, funcionando no entre-tempo do signo/símbolo, que é um
espaço intervalar entre as regras do embate. (BHABHA, 2010, p.268)

A feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak (2012) tem uma visão completamente
diferente sobre a relação entre a cultura colonizadora e o sujeito subalterno. Sua análise foi
aplicada à mulher indiana na condição de sujeito subalterno, mas seu conceito pode ser
aplicado ao sujeito subalterno em qualquer situação.
O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um item
respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher
intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve
rejeitar como um floreio. (SPIVAK, 2012, p.165)

O sujeito subalterno não possui voz ativa, pois os valores globais se sobrepõem aos
valores locais também como forma de colonização. As imposições desses valores ocorrem
após os colonizadores negarem e subjugarem os valores locais, mesmo que o efeito disso
destrua apenas parte da cultura das gerações atuais, afeta diretamente as gerações futuras.
Qualquer tentativa de resistência à imposição da nova cultura torna-se ineficiente, pois os
valores locais são substituídos por valores globais.
Segundo Stuart Hall (2006), de todas essas características da pós-modernidade, a
relação espaço-tempo é a mais afetada pelos meios de comunicação. O espaço e o lugar são
elementos distintos, o lugar é fixo e cria raízes, enquanto o espaço é a distância entre dois ou
mais lugares. Com a globalização, os espaços diminuem cada vez mais reduzindo o tempo
necessário para se chegar de um lugar a outro. As mídias, meios portadores de identidades
culturais, são ótimos exemplos da diminuição do espaço-tempo, afinal, podem narrar culturas
em diferentes lugares independentemente do espaço entre elas, que está cada vez mais
reduzido através do tempo.
O que é importante para nosso argumento quanto ao impacto da globalização sobre a
identidade é que o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os
sistemas de representação. Todo meio de representação – escrita, pintura, desenho,
fotografia, simbolização através da arte ou dos sistemas de telecomunicações – deve
traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais. Assim, a narrativa traduz os
eventos numa sequência temporal “começo-meio-fim”; os sistemas visuais de
representação traduzem objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes
27

épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-


tempo. (HALL, 2006, p.70)

Já o teórico estadunidense Douglas Kellner (2001) analisa os meios de comunicação


como uma ferramenta pós-moderna de difusão cultural. Diferente dos autores citados
anteriormente, Kellner não trabalha com os termos culturas colonizadoras e colonizadas, em
vez disso adota os termos “dominantes e dominadas” ao se referir às diferenças culturais. A
sociedade pós-moderna é multicultural, cada cultura é movida por uma ou mais ideologias e
estão presentes nos meios de comunicação como normas sociais. O “eu” apresentado nos
meios de comunicação, o articulador do enunciado, carrega várias informações ideológicas
que são apresentadas como verdades e ideais, como parte de uma cultura dominante e sempre
mostram sua maior importância diante das diferenças. Conforme Kellner a
[...] ideologia pressupõe que “eu” sou a norma, que todos são como eu, que qualquer
coisa diferente ou outra não é normal. Para a ideologia, porém, o “eu”, a posição da
qual a ideologia fala, é (geralmente) a do branco masculino, ocidental, de classe
média ou superior; são posições que veem raças, classes, grupos e sexos diferentes
dos seus como secundários, derivativos, inferiores e subservientes. A ideologia,
portanto, diferencia e separa grupos em dominantes/dominados e
superiores/inferiores, produzindo hierarquias e classificações que servem aos
interesses das forças e das elites do poder. A ideologia, portanto, faz parte de um
sistema de dominação que serve para aumentar a opressão ao legitimar forças e
instituições que reprimem e oprimem. Em si mesma, constitui um sistema de
abstrações e distinções em campos como sexo, raça e classe, de tal modo que
constrói divisões ideológicas entre homens e mulheres, entre as “classes melhores” e
as “classes mais baixas”, entre brancos e negros, entre “nós” e “eles”, etc. Constrói
divisões entre comportamento “próprio” e “impróprio”, enquanto erige em cada um
desses domínios uma hierarquia que justifique a dominação de um sexo, uma raça e
uma classe sobre os outros em virtude de sua alegada superioridade ou da ordem
natural das coisas. Por exemplo, diz-se que as mulheres por natureza são passivas,
domésticas, submissas, etc., e que seu domínio é a esfera privada, o lar, enquanto a
esfera pública é reservada aos homens, supostamente mais ativos, racionais e
dominadores. Diz-se com frequência que os negros são preguiçosos, irracionais e
burros, portanto inferiores à raça branca dominante. (2001, p.83-84)

As ideologias transmitidas pelos meios de comunicação representam os pensamentos e


as normas de conduta das minorias dominantes de uma sociedade. Questões políticas,
econômicas ou sociais são constantemente apresentadas em diversos produtos da mídia com o
objetivo de seduzir para formar opiniões que vão ao encontro dos interesses das minorias
dominantes.
O sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1999) chama de aldeia global a ideia da
globalização dos padrões sociais e culturais em decorrência dos meios de comunicação. A
aldeia global generaliza a representação de diferentes realidades sociais e por meio de
narrativas, imagens, sons e diversas outras formas de linguagem traduzem os elementos
sociais mais complexos de uma sociedade.
28

Essa faculdade da mídia globalizada explica-se, em boa medida, porque o mundo da


cultura diz respeito ao modo pelo qual o indivíduo, o grupo, a classe, a coletividade,
o povo, a tribo, a nação, a nacionalidade, a comunidade ou a sociedade tendem a
ver-se, imaginar-se ou traduzir-se. Toda realidade mais ou menos complexa,
problemática ou não, sempre se traduz em representações, imagens, metáforas,
parábolas e alegorias, assim como em descrições e interpretações. E é por meio das
linguagens que isso ocorre, envolvendo palavra, imagem, som, forma, movimento
etc. Por isso é que os meios de comunicação colocam-se diretamente no âmago do
mundo da cultura, das condições e possibilidades de representação e imaginação.
(IANNI, 1999, p.132)

As campanhas publicitárias, os produtos jornalísticos e principalmente os produtos


culturais, como os filmes, os seriados, as novelas, as histórias em quadrinhos, entre outros,
são produtos dos meios de comunicação que contribuem para a formação ideológica do
sujeito. As ideologias apresentadas por esses meios são compostas principalmente por
elementos cognitivos e utópicos. O reconhecimento dos fatores existentes no mundo real são
importantes para o sujeito estabelecer ligações com as questões ideológicas, mas apenas as
fantasias capazes de satisfazer as necessidades e os anseios das sociedade é que vão seduzir e
aprisionar o sujeito nessas ideologias.
A ideologia precisa ter alguns aspectos cognitivos e utópicos para atrair os
indivíduos. Se a ideologia não passasse de mentira e mistificação, não teria poder
sobre a experiência de vida, e, se não tivesse aspectos interessantes, não atrairia as
pessoas. (KELLNER, 2001, p.146-147)

O multiperspectivismo ideológico também é importante para se compreender alguns


aspectos culturais da sociedade. O produto cultural não precisa necessariamente posicionar-se
com uma ou outra ideologia, ele pode apresentar-se como uma resistência à qualquer
ideologia dominante. Produções culturais autorais muitas vezes refletem os anseios de um
determinado grupo que não necessariamente é o de cultura dominante, neste caso o
articulador do enunciado posiciona-se contra a ideologia dominante ao destacar as diferenças
culturais entre as duas ideologias para se afirmar.1 O conceito de multiperspectivismo
ideológico organiza-se sobre a ideia de análise de três aspectos: “horizonte social”, “campo
discursivo” e “ação figural”. A análise sobre o “horizonte social” baseia-se nos
acontecimentos reais de uma determinada sociedade, é o contexto em que o produto cultural é
construído. A análise sobre o “campo discursivo” diz respeito à forma como o conteúdo do
“horizonte social” é articulado, de acordo com o posicionamento dos elementos do “campo
discursivo” é possível identificar o posicionamento a favor de uma ou outra ideologia
dominante ou de um posicionamento contrário às ideologias dominantes, como é o caso das
resistências culturais. Por fim, a análise sobre a “ação figural” corresponde à personificação

1
Veja a seção “3.2 Autoralidade nos quadrinhos”, no capítulo 3.
29

ideológica, é a figura responsável por carregar e articular todas as ideologias de um


determinado produto cultural.
A expressão “horizonte social” refere-se às experiências, às práticas e aos aspectos
reais do campo social que ajudam a estruturar o universo da cultura da mídia e sua
recepção. [...] A cultura da mídia também articula experiências, figuras, eventos e
práticas sociais, assim como discursos. A moda, o visual e os artefatos
contemporâneos, bem como outros signos da contemporaneidade, suturam ou
costuram o público nos textos cinematográficos. Na verdade, para funcionar diante
de seu público, a cultura da mídia precisa repercutir experiência social, “encaixar-
se” no horizonte social do público, e assim a cultura popular da mídia haure medos,
esperanças, fantasias e outras inquietações da época. (KELLNER, 2001, p.137-138)

Os meios de comunicação merecem um papel de destaque na análise cultural das


sociedades atuais. Todas as questões de formação das múltiplas identidades culturais de um
sujeito estão relacionadas com o ambiente em que ele está inserido, fatores específicos da pós-
modernidade, como a globalização, diminuiu as distância entre as fronteiras e intensificou as
diferenças culturais entre culturas dominantes e contraculturas. Os meios de comunicação
surgem como potencializadores desses fatores, pois são instrumentos que diminuem ainda
mais a noção de espaço-tempo entre as culturas, e são registros culturais que espelham as
sociedades enquanto são espelhadas por elas mesmas. Portanto, Kellner (2010) atribui
extrema importância à leitura diagnóstica da cultura da mídia, pois:
[...] possibilita a compreensão da situação política atual, dos pontos fortes e
vulneráveis das forças políticas em disputa, bem como das esperanças e dos temores
da população. Dessa perspectiva, os textos da cultura da mídia propiciam uma boa
compreensão da constituição psicológica, sociopolítica e ideológica de determinada
sociedade em dado momento da história. Sua leitura diagnóstica também permite
detectar as soluções ideológicas que estão sendo oferecidas aos vários problemas e
conflitos sociais e aquilatar as ideologias dominantes e as forças contestadoras
emergentes. Por conseguinte, a crítica política diagnóstica possibilita perceber as
limitações das ideologias políticas conservadora e liberal predominantes, além de
ajudar a decifrar a atração constante que exercem. Possibilita apreender os anseios
utópicos de dada sociedade, desafiando os progressistas a desenvolverem
representações culturais, alternativas políticas e práticas e movimentos que lidem
com essas predisposições. (KELLNER, 2001, p.153)

2.2 Hibridação e sincretismo cultural

Os termos hibridação e sincretismo são comumente utilizados para designar a


combinação de dois elementos distintos que geram um terceiro elemento com características
que diferem dos outros dois que o geraram. Serão apresentados os conceitos de hibridação e
sincretismo, pois tratam das misturas culturais presentes nas diversas sociedades. O termo
hibridação também pode aparecer como hibridização ou hibridismo dependendo do autor
citado. Eles possuem o mesmo significado, mas para fins de padronização, será adotado
apenas o termo hibridação. Diversas áreas do conhecimento utilizam o termo hibridação, sua
30

aplicação surge nas ciências biológicas, mas também é aplicado ao se referir às linguagens e
às ciências sociais ao estudar os processos socioculturais que existem de forma separada, mas
se combinam para gerar novos processos. O termo sincretismo partilha praticamente da
mesma ideia, mas se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos
tradicionais.
O historiador inglês Peter Burke (2003) faz uma crítica aos termos “hibridação” e
“sincretismo”. Para o autor, o termo “hibridação” explora a combinação de elementos ligados
à biologia, enquanto “sincretismo” estuda as combinação que diz respeito às questões
religiosas. Nos dois casos, os termos parecem não valorizar a ação do sujeito, principal agente
na combinação de elementos culturais, portanto, o autor defende a utilização do termo
“tradução cultural” para tratar das combinações que envolvem os elementos das diversas
culturas existentes.
Os conceitos de sincretismo, de mistura e de hibridismo têm também a desvantagem
de parecerem excluir o agente individual. “Mistura” soa mecânico. “Hibridismo”
evoca o observador externo que estuda a cultura como se ela fosse a natureza e os
produtos de indivíduos e grupos como se fossem espécimens botânicos. Conceitos
como “apropriação” e “acomodação” dão maios ênfase ao agente humano e à
criatividade, assim como a ideia cada vez mais popular de “tradução cultural”, usada
para descrever o mecanismo por meio do qual encontros culturais produzem formas
novas e híbridas. (BURKE, 2003, p.55)

Para o antropólogo Massimo Canevacci (1996), sincretismo é um termo incialmente


associado à mistura de religiões, ou seja, elementos de duas ou mais crenças totalmente
diferentes se misturam ignorando qualquer postura antagônica entre as mesmas. Portanto,
sincretismo cultural tem essa mesma lógica aplicada às questões socioculturais, dois
elementos culturais incompatíveis se fixam na formação de um terceiro elemento. Na maioria
das vezes, o terceiro elemento sincrético mantém a postura de rejeição cultural ou de cultura
rejeitada diante das outras culturas que o geraram, ou seja, o antagonismo cultural permanece
mesmo depois de se misturarem. Conforme Canevacci
[...] o sincretismo apaixona-se pelas coisas triviais, secundárias, alheias: ele inclui
quer o replacement quer o displacement. No primeiro caso, substitui-se uma
parcialidade familiar por outra, estranha; no segundo, obtém-se um desorientamento
do sujeito, um deslocamento de sua ordem espacial (ou temporal, ou espaço-
temporal) normal. O objeto sincrético, por fim, resultará perturbador no jogo-da-
mistura entre o familiar e o estrangeiro. (1996, p.22)

O processo de sincretismo cultural começa quando uma cultura global chega em uma
nova região e convive com uma cultura local, muitas vezes antagônica. Com o passar do
tempo, essa nova cultura se adapta ao novo ambiente e se expande do centro para a periferia.
Essa expansão provoca uma mutação entre os elementos não compatíveis, não de modo
predatório, mas descentrado. Alguns elementos entre as culturas passam a ser assimilados uns
31

com os outros sem nenhum tipo de anulação, ou seja, essa mistura entre as culturas mantém
suas pluralidades.
O argentino Nestor Garcia Canclini (2011) adota o termo hibridação e emprega
diversos conceitos do termo de forma positiva. A hibridação está associada à modernidade,
que é composta por quatro movimentos básicos: um projeto “emancipador”, voltado a uma
produção autoexpressiva e autorregulada das práticas simbólicas, um processo de
racionalização da vida social. Um projeto “expansionista”, como extensão do conhecimento,
da produção e da circulação dos bens de consumo, não apenas visando o lucro, mas também o
desenvolvimento científico e industrial. Um projeto “renovador”, com constantes inovações
na relação com a natureza e com a sociedade sob dois aspectos, o da liberdade, ou de como o
mundo deve ser, e o do desgaste natural dos signos resultado do consumo massificado. E, por
fim, um projeto “democratizador”, que por meio da educação e da difusão cultural é possível
alcançar uma evolução racional e moral. Esses quatro projetos, ao se desenvolverem, entram
em conflito:
Contudo, a modernização econômica, política e tecnológica – nascida como parte do
processo de secularização e independência – foi configurando um tecido social
envolvente, que subordina as forças renovadoras e experimentais da produção
simbólica. Para captar o sentido desta contradição, não vejo lugar mais propício que
o desencontro ocorrido entre a estética moderna e a dinâmica socioeconômica do
desenvolvimento artístico. Enquanto os teóricos e historiadores exaltam a autonomia
da arte, as práticas do mercado e da comunicação massiva – incluídos às vezes os
museus – fomentam a dependência dos bens artísticos de processos extraestéticos.
(CANCLINI, 2011, p.32)

Os quatro projetos são contraditórios e não podem ser lidos de forma unificada. O
projeto expansionista está ligado ao capital, portanto, a expansão só é possível se forem
obedecidas as leis de mercado. O de emancipação acontece apenas quando não existe ligação
com o projeto expansionista e quando o projeto renovador está voltado ao aspecto da
liberdade ou de como o mundo deve ser. Diante dessas diferentes leituras dos movimentos da
modernidade, o projeto democratizador passa a ser regido pela leitura do projeto mais forte
que está ligado ao capital, democratizando apenas o sonho dos bens de consumo, pois nem
todos possuem o mesmo poder financeiro.
As vanguardas levaram ao extremo a busca de autonomia na arte, e às vezes
tentaram combiná-la com outros movimentos da modernidade – especialmente a
renovação e a democratização. Seus dilaceramentos, suas relações conflitivas com
movimentos sociais e políticos, seus fracassos coletivos e pessoais, podem ser lidos
como manifestações exasperadas das contradições entre os projetos modernos.
(CANCLINI, 2011, p.43)

Umberto Eco (2008b) também disserta sobre a democratização cultural ao fazer uma
crítica aos três níveis de cultura – alta, média e baixa. Não existem mais divisões culturais, as
32

ideias de alta, média e baixa cultura se misturam porque as diferentes classes sociais
consomem as mesmas culturas. Além disso, nenhuma cultura pode ser considerada melhor ou
pior com base na dificuldade de compreensão dos signos. Tanto o preparo cultural exigido
pela compreensão, quanto a noção de belo de uma obra de arte são igualmente aplicados no
que é considerado alta ou baixa cultura. E, por fim, o gosto coletivo se transforma com o
tempo, portanto, o que é considerado baixa cultura pode se tornar alta cultura e vice-versa.
Esse ideal de uma cultura democrática impõe uma revisão do conceito dos três
níveis (high, middle e low), despojados, aqui, de algumas conotações que os tornam
tabus perigosos. a) Os níveis não correspondem a uma nivelação classista. Isso já é
ponto pacífico. Sabe-se que o gosto high brow não é necessariamente o das classes
dominantes; [...] b) Os três níveis não representam três graus de complexidade
(pedantemente identificadas com o valor). Em outros termos: somente nas
interpretações mais esnobes dos três níveis é que se identifica o “alto” com as obras
novas e difíceis, compreensíveis apenas pelos happy few. [...] c) Os três níveis não
coincidem, portanto, com três níveis de validade estética. Pode-se ter um produto
high brow, que se recomende por suas qualidades de “vanguarda”, e reclame para
ser fruído certo preparo cultural (ou uma propensão à sofisticação), e que, todavia,
mesmo no âmbito das apreciações próprias daquele nível, venha a ser julgado “feio”
(sem que por isso, seja low brow). E pode haver produtos low brow, destinados a
serem fruídos por um vastíssimo público, que apresentem características de
originalidade estrutural tais e tamanha capacidade de superarem os limites impostos
pelo circuito de produção e consumo em que estão inseridos, que nos permitam
julgá-los como obras de arte dotadas de absoluta validade.[...] d) A transmigração de
estilemas de um nível superior para um inferior não significa, necessariamente, que
os citados estilemas tenham encontrado foros de cidadania no nível inferior só
porque se “consumiram” ou se “compromissaram”. Em certos casos, é o que
realmente acontece, em outros, assistimos a uma evolução do gosto coletivo que
obteve e desfruta, a nível mais amplo, descobertas já antecipadas por via puramente
experimental, a nível mais restrito. [...] (ECO, 2008b, p.54-56)

Canclini (2011) apresenta esses diferentes tipos de cultura como arte antiga ou
primitiva e arte ingênua ou popular, em qualquer um dos casos, essas artes tornam-se cultas
quando são valorizadas por historiadores e chegam aos museus. Mas independentemente da
posição que qualquer tipo de cultura ocupa na sociedade, ela não consegue se sustentar, pois a
cultura apropriada pela indústria cultural, mesmo que pertencente ao mesmo sistema cultural,
será mais forte e irá se sobrepor àquela que não possui valor de mercado, independentemente
de ser ou não considerada culta.
[...] a arte do Ocidente, confrontada com as forças do mercado e da indústria
cultural, não consegue sustentar sua independência. O “outro” do mesmo sistema é
mais poderoso que a alteridade de culturas distantes, já submetidas econômica e
politicamente, e também mais forte que a diferença dos subalternos ou marginais da
própria sociedade. (CANCLINI, 2011, p.66).

Segundo Canclini (2011), o processo de hibridação cultural sempre apresenta relações


distorcidas entre modernização e modernismo. Países como o Brasil investiam muito em
determinadas produções culturais, mas a maioria dessas produções não estava acessível à
maioria da população. Os artistas brasileiros se preocupavam em trazer para o Brasil as ideias
33

das vanguardas europeias, mas, com o tempo, perceberam que esses movimentos artísticos
precisavam de algum tipo de identificação mais forte com a cultura brasileira, pois as
realidades vividas no Brasil e na Europa eram completamente diferentes. Hoje, com a redução
da relação espaço-tempo entre as culturas, acelerada pelos elementos que envolvem a
globalização, os países apresentam relações culturais convergentes. Portanto, além das
características autorais, os artistas que desejam obter forte repercussão de suas obras devem
basear-se nas inovações estéticas, nos recursos jornalísticos e publicitários, em viagens e
importantes contatos. A relação entre cultura e modernidade atualmente encontra-se nas mãos
das empresas privadas, interessadas apenas no ganho do capital. A nova regra de dominação
cultural está relacionada ao lucro que uma determinada produção cultural pode trazer para as
empresas, do contrário, perderá espaço para as outras produções culturais mais vantajosas do
ponto de vista empresarial.
Ao chegar à década de 90, é inegável que a América Latina efetivamente se
modernizou. Como sociedade e como cultura: o modernismo simbólico e a
modernização socioeconômica já não estão tão divorciados. O problema reside em
que a modernização se produziu de um modo diferente do que esperávamos em
décadas anteriores. Nessa segunda metade do século, a modernização não foi feita
tanto pelos Estados quanto pela iniciativa privada. A “socialização” ou
democratização da cultura foi realizada pelas indústrias culturais – em posse quase
sempre de empresas privadas – mais que pela boa vontade cultural ou política dos
produtores. Continua havendo desigualdade na apropriação dos bens simbólicos e no
acesso à inovação cultural, mas essa desigualdade já não tem a forma simbólica e
polarizada que acreditávamos encontrar quando dividíamos cada país em
dominadores e dominados, ou o mundo em impérios e nações dependentes.
(CANCLINI, 2011, p.96-97)

A nova relação entre cultura e modernidade nos faz refletir sobre a relação entre o
artista, o público e seus intermediários. De um lado estão os artistas, perdidos em questões
sobre inovar ou democratizar suas obras, enquanto os produtores os pressionam a favor da
democratização que oferece maior lucro em menor tempo, e, do outro, está o público, que
principalmente nos casos dos países “emergentes”, possuem pouca escolaridade e formação
limitada. Esse tipo de público não compreende as artes com a devida profundidade, pois
geralmente analisam as obras superficialmente ao associá-las apenas a questões de seu
cotidiano ou a temas como o sucesso ou o fracasso, principais preocupações das pessoas
envolvidas em uma sociedade.
Trabalhos totalmente inovadores tendem a ser rejeitados pelo público, pois a nova
forma de articular determinados signos dificulta sua compreensão. Existem formatos com os
quais grande parte do público está acostumado, portanto sua compreensão ocorre de maneira
mais natural e a propagação cresce rapidamente. Esse tipo de democratização artística
34

estimula a imitação nas criações, pois os artistas conseguem produzir mais e agradar seus
produtores que esperam o lucro garantido.
Diante das imitações e competições, resta ao leitor o ritual das dedicatórias e dos
autógrafos que dão “autenticidade” ao livro. Em meio à venda proliferante que torna
anônimo qualquer leitor, essa relação “pessoal” com o escritor simula restaurar a
originalidade e a irrepetibilidade da obra e do leitor culto. (CANCLINI, 2011,
p.109).

Equivocadamente, a cultura considerada moderna é vista como culta e hegemônica,


enquanto a cultura considerada tradicional é vista como popular e subalterna. As relações
moderna/tradicional, culta/popular e hegemônica/subalterna são antagônicas, portanto não
deveriam se misturar. Essa definição deve ser desconstruída e reorganizada ao levarmos em
consideração os aspectos de hibridação cultural. A cultura pode ser tradicional e moderna ao
mesmo tempo, pode ir do culto ao popular e do hegemônico ao subalterno dependendo do
contexto social e econômico. Para Canclini
[...] o tradicionalismo é hoje uma tendência em amplas camadas hegemônicas e pode
combinar-se com o moderno, quase sem conflitos, quando a exaltação das tradições
se limita à cultura enquanto a modernização se especializa nos setores social e
econômico. (2011, p. 206)

Peter Burke (2003, p.70-71) apresenta dois locais favoráveis para o desenvolvimento
das culturas híbridas. O primeiro local importante de trocas culturais é a metrópole, o seu
tamanho favorece que pessoas de diferentes origens se encontrem e interajam tanto no
comércio quanto na cultura. O segundo local importante é a fronteira, pois é considerada uma
zona de trocas culturais. As extremidades, além de dividirem uma região da outra permitem
que as culturas se sobreponham misturando-se umas às outras. Burke afirma que essas
[...] zonas de fronteiras podem ser descritas como “interculturas”, não apenas locais
de encontro, mas também sobreposições ou interseções entre culturas, nas quais o
que começa como uma mistura acaba se transformando na criação de algo novo e
diferente. (2003, p.71)

Para Néstor Garcia Canclini (2011), os principais conceitos que justificam a ideia da
cultura híbrida se desenvolver nesses dois locais consistem em descolecionar e
desterritorializar a cultura. O conceito de descolecionar refere-se a fragmentação do conteúdo
das mídias proporcionado pelo videoclipe, pelo videocassete e pela fotocopiadora ou
proporcionado pelas próprias mídias fruto de hibridações como a internet, o videogame, o
grafite e as história em quadrinhos. A memória colecionável é destruída porque essas mídias
ou esses instrumentos permitem o recorte e várias combinações de colagens que geram
diversas mensagens. Portanto, a hibridação cultural é um processo contínuo e pós-moderno.
As culturas estão em constante transformação, compostas de colagens de diferentes partes de
35

outras culturas, sendo que essas partes variam na profundidade cultural de acordo com a
necessidade na qual ela é incorporada.
O conceito de “desterritorializar” é formado por duas ideias distintas. A primeira diz
respeito à modernização da cultura latino-americana, resultado da união entre o popular, que
oferece os elementos tradicionais da cultura, e o nacional, que modernizou os elementos
tradicionais da cultura. A segunda, consiste na migração multidirecional, é quando por
qualquer motivo, o sujeito nascido em um determinado local e detentor de uma cultura migra
para um outro local e incorpora uma nova cultura gerando uma terceira, diferente das duas
primeiras. Ao multiplicarmos esse processo de todas as partes do mundo para diversas outras
partes do mundo, a quantidade de hibridações culturais passa a ser inimaginável. Portanto, se
pensarmos esse processo nas artes ou em qualquer outro meio, pode-se dizer que toda forma
de cultura se desenvolve em relação com outras formas de cultura. O artesanato, por exemplo,
“[...] migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram
acontecimentos de um povo são intercambiados com outros” (CANCLINI, 2011, p. 348).
Outros dois conceitos que Peter Burke (2003) apresenta como reação são o de
adaptação e o de circularidade cultural. Alguns elementos culturais podem não se encaixar em
um novo ambiente, neste caso, eles podem sofrer algumas mudanças para facilitar sua
adaptação. “A adaptação cultural pode ser analisada como um movimento duplo de des-
contextualização e recontextualização, retirando um item de seu local de origem e
modificando-o de forma a que se encaixe em seu novo ambiente” (BURKE, 2003, p. 91). O
outro conceito pode ser compreendido a partir da metáfora do círculo, começa e termina no
mesmo lugar. Para Burke “A metáfora do círculo é útil também para nos referirmos a
adaptações de itens culturais estrangeiros que são tão completas que o resultado pode às vezes
ser ‘reexportado’ para o lugar de origem do item” (2003, p. 94). Uma cultura que sai do seu
local de origem e se mistura com outra, pode receber influências fortes o suficiente para que,
agora híbrida, retorne ao seu local de origem e propague suas novas características.
A história em quadrinhos é um meio de comunicação com essência híbrida, não
apenas as linguagens que compõe o meio, mas também, todos os aspectos culturais envolvem
hibridações.
Precursor das histórias em quadrinhos modernas, Will Eisner (2010) teorizou a
linguagem da história em quadrinhos ao considerar suas imagens e seus textos como
linguagens análogas e, a partir da união dessas duas linguagens, obter uma terceira linguagem
imagem-texto como resultado híbrido (Figura 2).
36

Por mais de um século os autores de tiras e histórias em quadrinhos vêm se


desenvolvendo em seu trabalho de integração entre imagens e palavras. Durante o
processo, creio eu, conseguiram uma hibridação bem-sucedida de ilustração e prosa.
(EISNER, 2010, p.2)

Figura 2 - Tira Quase nada, n. 108.2

Peter Burke (2003) também considera linguagem hibrida a união da imagem com o
texto, e vai além ao dizer que tanto a imagem quanto o texto também são linguagens híbridas
mesmo separadas. A imagem possui duas questões importantes enquanto linguagem híbrida.
A primeira refere-se à “importância dos estereótipos ou esquemas culturais na estruturação da
percepção e na interpretação do mundo” (p.26). Enquanto a segunda é “a importância do que
poderiam ser chamadas de ‘afinidades’ ou ‘convergências’ entre imagens oriundas de
diferentes tradições” (p.27). No que diz respeito aos textos, “as traduções são os casos mais
óbvios de textos híbridos, já que a procura por aquilo que é chamado de ‘efeito equivalente’
necessariamente envolve a introdução de palavras e ideias que são familiares aos novos
leitores mas que poderiam não ser inteligíveis na cultura na qual o livro foi originalmente
escrito”.
Canclini (2011) considera os aspectos de hibridação cultural ao aplicar os conceitos de
descolecionar e desterritorializar a história em quadrinhos como um produto cultural. A

2
Imagem publicada pelos autores Fábio Moon e Gabriel Bá, no site:
<http://www.flickr.com/photos/10paezinhos/5424991535/in/set-72157606185530624>.
37

história em quadrinhos não possui espaço para colecionar elementos culturais, a inovação dos
elementos estéticos e narrativos seguem a mesma ideia da colagem de elementos culturais,
enquanto tradicional e moderno, culto e popular, hegemônico e subalterno se misturam.
[...] há gêneros constitucionalmente híbridos, por exemplo o grafite e os quadrinhos.
São práticas que desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção
patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular,
aproximam o artesanato da produção industrial e da circulação massiva.
(CANCLINI, 2011, p. 336)

Com o objetivo de analisar o resultado que a hibridação pode provocar, Peter Burke
(2003) considera os efeitos que a hibridação provoca sobre a arte nos dias de hoje e atribui um
resultado negativo, afinal, “privilegiar um publico global em vez de um público local
modifica a própria obra de várias maneiras importantes que ainda não foram, que eu saiba,
analisadas em detalhes nem em profundidade” (BURKE, 2003, p. 110).
Esse resultado pode ser considerado pior, pois a previsão é de uma cultura mundial
homogênea em um futuro próximo. Todos os processos de hibridação que acontecem no
mundo são contínuos, portanto, se considerarmos que todas as culturas passarão várias vezes
pelo processo de hibridação, a tendência é que no futuro, o mundo todo partilhe de uma
mesma cultura.
38

3. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: ASPECTOS

ESTÉTICOS E NARRATIVOS

3.1 Narrativas gráficas sequenciais

História em quadrinhos é descrita por Will Eisner (2010, p.2) como palavras e
imagens sobrepostas, na qual o leitor precisa exercer habilidades interpretativas visuais e
verbais: “As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria pincelada) e as regências da
literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente”. Portanto, é
um ato de percepção estética e esforço intelectual.
O quadrinista norte-americano Scott McCloud (2005, p.20) define histórias em
quadrinhos, a partir das definições de Eisner, como “imagens pictóricas e outras justapostas
em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no
espectador”.
As histórias em quadrinhos também são consideradas narrativas gráficas sequenciais,
pois assim como no cinema, as imagens são exibidas em uma sequência. A grande diferença é
que no cinema as emoções são expressas por centenas de imagens sobrepostas em uma
determinada velocidade capaz de emular o movimento real, enquanto que no meio impresso, a
quantidade de imagens é limitada e apenas simula o movimento. Este suposto obstáculo
técnico pode ser superado com a aquisição de certa habilidade.
Tal desafio, no entanto, não é uma desvantagem. Na verdade, ele proporciona aos
quadrinhos a singular possibilidade de permitir a leitura de várias imagens ao
mesmo tempo, ou a partir de pontos de vista diferentes, algo impossível de
reproduzir no cinema. (EISNER, 2010, p.20)

Ao pensarmos nas histórias em quadrinhos como narrativas gráficas sequenciais, não


devemos considerar apenas a leitura linear de uma margem para a outra. Segundo Jason
Dittmer, a geografia da página de uma história em quadrinhos permite múltiplas
possibilidades narrativas simultâneas, na qual a participação do leitor é fundamental para o
desenvolvimento da história. Essa experiência narrativa é o que diferencia completamente as
narrativas gráficas sequenciais do cinema e das histórias em quadrinhos, além de desqualificar
qualquer comparação que coloque uma mídia como melhor ou pior que a outra.
39

Simply put, comic book visualities open geographers up to uncertainty, tangentiality


and contingency by picking apart the linear montage of film (and consequently the
cinematic unconscious) and replacing this linearity with the more open comics page
and the multiple paths through its frames – and consequently opening us to its
multiple possible narratives. Similarly, the mechanised and standardised temporality
of filmic projection can be replaced with the forward-and-back temporality of
plurivectorial reading practices and comics’ potential for simultaneity in thought and
speech. Utilising the spatial grammar of the comics page can open geography up to
new understandings of phenomena, replacing the seemingly ‘correct’ succession of
images and meanings with a more contingent and provisional ‘event’, highlighting
the importance of the ‘readers’ of phenomena in producing those very phenomena.
(DITTMER, 2010, p.234-235)

No campo das estruturas narrativas, o brasileiro Marcelo Bulhões (2009) descreve as


categorias narrativas de focalização, espaço, tempo e personagem como fundamentais para as
obras de ficção.
A categoria focalização, também conhecida como foco narrativo, é o papel exercido
pelo narrador que revela aos espectadores o mundo representado nas ficções midiáticas como
procedimento para a constituição de uma história. Existem três tipos de focalização: externa,
interna e onisciente. Na focalização externa, “há a mera representação de características
superficiais de ações, ambientes e personagens, e o espectador (ou o leitor de quadrinhos
digitais, o jogador de games etc.) apenas observa a exterioridade dos elementos ficcionais”
(BULHÕES, 2009, p.84). Já na focalização interna (Figura 3), a narração parte do ponto de
vista de um personagem principal ou secundário inserido na ficção. “Trata-se, pois de uma
perspectiva limitada, que só narra aquilo que vê ou que faz parte do campo de sua consciência
ou de suas impressões internas” (BULHÕES, 2009, p.84). Por fim, a focalização onisciente
(Figura 4) é uma narração que age como uma entidade poderosíssima ao mostrar
conhecimento ilimitado a tudo que acontece na ficção. “As informações narrativas são
transmitidas por uma espécie de visão voraz e penetrante, que tudo transpassa, que não deixa
passar detalhe algum, nem mesmo os pensamentos mais ocultos ou inconfessáveis dos
personagens” (BULHÕES, 2009, p.85).
40

Figura 3 – Pixu (edição brasileira encadernada), p. 44.

Figura 4 – Rolando (edição brasileira encadernada), p. 90.

A categoria espaço (Figura 5) diz respeito à importância do ambiente em que se


desenrola a história. O cenário da narrativa é rico em elementos que influenciam no
desenvolvimento dos personagens, da história e do tempo – outra importante categoria
narrativa.
O espaço tem o poder de ilustrar contextos sociais, delinear condições psicológicas e
existenciais dos personagens, esboçar caracteres de identificação histórico-
contextual, constituir uma atmosfera plástica de grande poder sugestivo no interior
de uma narrativa. (BULHÕES, 2009, p.88-89)
41

Figura 5 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 1, p. 10.

A categoria tempo está relacionada à variação da passagem do tempo presente na


narrativa, as narrativas gráficas sequenciais podem representar o tempo tanto como nós o
vivenciamos naturalmente, como com saltos temporais para o passado ou para o futuro. Em
alguns momentos as categorias de espaço e de tempo caminham juntas, pois como já foi dito
anteriormente, um dos indicativos da passagem do tempo são as mudanças do ambiente em
que a história se desenvolve.
Quando aprendemos a ler quadrinhos, aprendemos a perceber o tempo
espacialmente pois, nas histórias em quadrinhos, tempo e espaço são uma única
coisa. O problema é que não há norma de conversão. Os poucos centímetros que
nos transportam de segundo pra segundo numa sequência podem nos levar por
centenas de milhões de anos em outra. (McCLOUD, 2005, p.100)

Nas histórias em quadrinhos, a categoria tempo precisa levar em consideração outros


recursos como a sarjeta – divisão ou espaço existente entre uma imagem e outra – e a
quantidade e o tamanho das imagens necessárias para marcar a passagem do tempo.
Scott McCloud (2005, p.76-77) classifica seis sarjetas como responsáveis por provocar
a conclusão, por parte do leitor, da ação que não é mostrada entre uma imagem e outra nas
histórias em quadrinhos. Momento-pra-momento, ação-pra-ação, tema-pra-tema, cena-pra-
cena, aspecto-pra-aspecto e non-sequitur. Considerando as histórias como séries de eventos
interligados, há a predominância das sarjetas de ação-pra-ação (Figura 6) e de cena-pra-cena
(Figura 7), pois são facilmente explicadas e mostram o que está acontecendo de forma
eficiente. Raramente utilizadas, a sarjeta de momento-pra-momento também retrata a ação,
42

mas utiliza vários quadros para mostrar o que a sarjeta ação-pra-ação poderia mostrar com
menos quadros, possui a função de detalhar a ação, mostrar cada pequeno momento.

Figura 6 – Umbrella Academy – Dallas, nº 4, p. 1.

Figura 7 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 3, p. 7.

A sarjeta tema-pra-tema (Figura 8) também é muito utilizada, e mostra diferentes


imagens de um mesmo ambiente ou de uma mesma ideia.
43

Figura 8 – Umbrella Academy – Dallas, nº 5, p. 1.

A sarjeta aspecto-pra-aspecto (Figura 9), na qual, por definição, não acontece nada,
aparece com menos frequência. Por exemplo, uma sequência de imagens com comércio,
trânsito e pombos para retratar uma metrópole.

Figura 9 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 16.

Por fim, a sarjeta non-sequitur (Figura 10), não se preocupa com os eventos ou com
qualquer proposta da narrativa e têm como objetivo conseguir resultados mais experimentais.
44

Figura 10 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 11.

A quantidade e o tamanho das imagens necessárias foram descritas por Will Eisner
(2010) com o objetivo de marcar o ritmo da passagem do tempo:
O número e o tamanho dos quadrinhos também contribuem para marcar o ritmo da
história e a passagem do tempo. Por exemplo, quando é necessário comprimir o
tempo, usa-se uma quantidade maior de quadrinhos. A ação então se torna mais
segmentada, ao contrário da ação que ocorre nos quadrinhos maiores, mais
convencionais. Ao colocar os quadrinhos mais próximos uns dos outros, lidamos
com a “marcha” do tempo no seu sentido mais estrito. (EISNER, 2010, p.30)

O personagem é a última categoria narrativa descrita de uma obra ficcional, conforme


Marcelo Bulhões (2009, p.98): “O personagem é, pois, um vetor do próprio desenvolvimento
narrativo, a um só tempo peça decisiva para a organização das etapas da narração e essencial
para a atitude de projeção e identificação por parte do espectador ou leitor”. É uma das
categorias mais importantes, afinal, o personagem é a peça de articulação entre todos os
elementos narrativos.
Próprio das narrativas gráficas sequenciais, as histórias em quadrinhos retratam a
relação entre os ambientes, os personagens e os detalhes por meio do enquadramento. A
função do escritor e do artista de história em quadrinhos é registrar um fluxo contínuo de
experiências e mostrá-lo tal como pode ser visto pelos olhos do leitor: “Isso é feito
45

arbitrariamente, dividindo-se o fluxo ininterrupto em segmentos de cenas ‘congeladas’,


encerrados num quadrinho” (EISNER, 2010, p.40).
O pesquisador brasileiro Nadilson Manoel da Silva (2002) classifica os diferentes
enquadramentos como planos, e os divide em seis categorias principais: plano geral (veja a
Figura 11), plano total (Figura 12), plano americano (Figura 13), plano médio (Figura 14),
primeiro plano (Figura 15) e plano de detalhe (Figura 16).
Os planos se dividem em seis principais: o plano geral, um enquadramento em que é
possível se observar todo o ambiente em que se desenvolve a ação; o plano total, em
que o enquadramento coloca as dimensões do espaço próximas ao personagem; o
plano americano, que recorta as personagens a partir dos joelhos; o plano médio, que
mostra a personagem acima da cintura; o primeiro plano, que limita o espaço ao
ombros; e por último o plano de detalhe, em que é mostrado apenas uma parte do
corpo ou de um objeto qualquer. (SILVA, 2002, p.46)

Figura 11 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 3, p. 22.

Figura 12 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 20.


46

Figura 13 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 22.

Figura 14 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 7.


47

Figura 15 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 4, p. 22.

Figura 16 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 6, p. 11.

Outra importante característica dos quadros nas histórias em quadrinhos é quando a


imagem não fica restrita à moldura do requadro (Figura 17). Há duas definições para essa
característica, a primeira é ausência de requadro, definida por Will Eisner (2010, p.44) como:
“A ausência do requadro expressa espaço ilimitado. Tem o efeito de abranger o que não está
visível, mas que tem existência reconhecida”. A segunda é quadro sangrado e pertence a
Scott McCloud (2005, p.103): “Em ‘quadros sangrados’ – aqueles que extrapolam a margem
da página – esse efeito é composto. O tempo não é mais contido pelo ícone familiar do
quadro fechado. Ele sofre uma hemorragia e escapa pro espaço infinito”.
48

Figura 17 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 16.

No que diz respeito ao requadro formado por uma página inteira (Figura 18), pode-se
classificá-la como página de apresentação e metaquadrinho. Eisner (2010, p.64) define página
de apresentação como a primeira página de uma história, que deve prender a atenção do leitor
e prepará-lo para os eventos que se seguem, além de estabelecer um “clima” e de ter uma
função decorativa.

Figura 18 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 6-7.

Já metaquadrinho, também chamado de superquadrinho, consiste em planejar a


decomposição de uma ação sobre um quadro de página inteira:
49

As páginas são a constante na narração da revista em quadrinhos. Elas deverão ser


trabalhadas logo que a história estiver solidificada. Como os agrupamentos de ação e
outros eventos não se decompõem necessariamente sempre do mesmo modo,
algumas páginas têm de conter mais cenas individuais que outras. É preciso ter em
mente que quando o leitor vira uma página, ocorre uma pausa. Isso permite uma
mudança de tempo, um deslocamento de cena, uma oportunidade de controlar a
atenção do leitor. Trata-se, aqui, de uma questão de atenção e de retenção. (EISNER,
2010, p.65)

Assim como o quadrinho, a página tem de ser usada para contenção (Figura 19),
dentro desta página de contenção uma ação pode ser trabalhada como uma unidade mais
sólida e esteticamente fica mais atrativa.

Figura 19 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 12.

Segundo Eisner (2010, p.92), o requadro também é responsável pela perspectiva que o
leitor tem da ação. A perspectiva pode ser considerada como a posição da câmera no ambiente
e apresenta-se em duas diferentes situações: alta e baixa. A perspectiva baixa (Figura 20)
oferece a sensação de o leitor estar próximo à cena, ele acompanha a ação vendo o objeto
maior do que aparenta, essa perspectiva engrandece o objeto.
50

Figura 20 – Umbrella Academy – Free, p. 2.

A perspectiva alta (Figura 21) é quando a cena é acompanhada de cima, distante da


ação, o leitor está fora da cena e possui uma visão geral dos acontecimentos, essa perspectiva
diminui o objeto e cria a sensação de que ele é menor do que aparenta ser.

Figura 21 – Umbrella Academy – Free, p. 1.

Outro elemento narrativo muito utilizado e próprio das histórias em quadrinhos é o


movimento (Figura 22). Segundo McCloud (2005, p.108), as histórias em quadrinhos sempre
51

lutaram para resolver o problema de mostrar o movimento em um quadrinho estático. Com a


ascensão do cinema, alguns pintores de vanguarda, na época, começaram a explorar a
representação do movimento em uma única tela. Marcel Duchamp, na França, e os futuristas,
na Itália, foram os pioneiros nessa decomposição sistemática da imagem em movimento em
um meio estático:
Duchamp, mais preocupado com a ideia do movimento do que com a sensação,
reduziu o conceito do movimento a uma única linha. Ele partiu pra outra, os
futuristas debandaram e os artistas plásticos perderam o interesse neste tipo de
“imagem em movimento”. No entanto, nesse mesmo período, outro meio de
comunicação estava investigando essa área. (McCLOUD, 2005, p.109)

Figura 22 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 2, p. 19.

A relação texto e imagem nas histórias em quadrinhos está diretamente ligada ao


conceito de dizer e/ou mostrar. McCloud (2005, p.153-155) lista sete diferentes tipos de
combinações entre os textos e as imagens: específicas de palavras, específicas de imagens,
duo-específicas, aditiva, paralelas, montagem e interdependente. Na primeira, combinações
específicas de palavras, as imagens ilustram, mas não acrescentam quase nada a um texto. Nas
combinações específicas de imagem, os textos apenas acrescentam uma trilha sonora a uma
sequencia visualmente falada. Depois, nas sequencias duo-especiíficas, os textos e as imagens
transmitem a mesma mensagem ou ideia. Nas combinações aditivas, os textos ampliam ou
elaboram sobre uma imagem. Nas combinações paralelas, os textos e as imagens seguem
cursos diferentes, sem interseção. Na montagem, os textos são parte integrante de imagens. E,
por último, a combinação mais comum nas histórias em quadrinhos é a de interdependência,
onde palavras e imagens se unem para transmitir uma ideia que nenhuma das duas poderia
exprimir sozinha.
Kátia Regina Franco e Mônica Lopes Smiderle de Oliveira depositam no leitor a
função de trabalhar os sentidos compostos por textos e imagens em uma narrativa híbrida, na
qual o leitor é guiado pelo caminho desejado pelo autor:
52

Desse modo, uma das funções do leitor é o preenchimento do que não foi dito pela
recuperação dos implícitos e pela percepção dos efeitos de sentido desejados pelo
autor. As inferências são processos mentais de decodificação, enriquecimento,
reconhecimento, pressuposição, processamento, validação e conclusão de uma
palavra e/ou enunciado, em um contexto. (FRANCO; OLIVEIRA, 2009, p.423-424)

Os textos ou letreiramentos, como descrito por Eisner (2010, p.26), possuem funções
estéticas e práticas: “O letreiramento manual sempre será o modo mais idiossincrático e
expressivo de inserir palavras nos balões e nas caixas de texto”. Os textos elaborados
manualmente garantem que as letras jamais sairão exatamente iguais, isso “humaniza” a
narrativa gráfica e coloca personalidade aos personagens. Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva
(2010) complementa este conceito ao inserir os textos aos balões com o objetivo de conduzir a
narrativa por meio do pensamento de um personagem de forma mais direta e expressiva.
Os formatos e funcionalidades do balão atuam em um processo de significação
conjunto com outros elementos dos quadrinhos, visando a expressividade, o sentido
e a condução narrativa, e realizando um confinamento semântico do nível verbal
através do que aqui designo como representação do suporte do discurso, que é
sobreposto ao nível imagético. Temos assim um caráter midiático que realiza não só
uma ponte entre os níveis imagéticos e verbais, mas também a exposição do
pensamento de forma direta ao mesmo tempo em que indica o personagem/fonte
sonora, com o qual ele forma um binômio. (SILVA, 2010, p.10)

Quando um artista escolhe as cores ou a ausência das cores em uma história em


quadrinhos, é extremamente importante que ele tenha em mente a forma como transmitirá a
mensagem ao público. Para Scott McCloud (2005, p.191-192), as histórias em quadrinhos
podem ser em preto e branco, em cores planas ou em cores expressivas. A arte em preto e
branco (Figura 23) exige do artista experimentos mais audaciosos, é mais profunda e afeta
cada nível de experiência de leitura, nesta, “as ideias por trás da arte são comunicadas de
maneira mais direta. O significado transcende a forma”.

Figura 23 – Pixu (edição brasileira encadernada), p. 15.


53

Na arte em cores planas (Figura 24) “as formas assumem mais significância. O mundo
se torna um playground de forma e espaço” (McCLOUD, 2005, p.192); enquanto na arte em
cores mais expressivas (Figura 25) “os quadrinhos podem transmitir sensações que só a cor é
capaz de proporcionar”.

Figura 24 – Rolando (edição brasileira encadernada), p. 99.

Figura 25 – Umbrella Academy – Dallas, nº 1, p. 23.

Além das cores, o estilo artístico também possui seus significados. A definição de
McCloud (2005) define o estilo em três categorias: realismo, plano das figuras/abstração e
icônico. A arte realista atrai pelo senso de beleza da natureza, pois sua similaridade com o
mundo real é enorme, este estilo é tão completo e rico em detalhes que impede o artista de
54

acrescentar sentido ou visão à sua narrativa. A arte no plano das figuras ou da abstração
(Figura 26) atrai pela beleza da arte; nesta, o artista pode conduzir a narrativa inserindo ou
retirando apenas os elementos responsáveis por aquilo que ele quer transmitir. A semelhança
com o mundo real existe em menor escala, pois o objetivo não é reproduzir o mundo real. Por
fim, a arte icônica (Figura 27) atrai pela beleza das ideias, nela, podemos cortar toda a relação
existente com o mundo real, apenas os elementos responsáveis por transmitir a ideia são
necessários.

Figura 26 – Umbrella Academy – Apocalypse Suite, nº 1, p. 13.

Figura 27 – Umbrella Academy – Dallas, nº 2, p. 1.

Para os quadrinhos amadurecerem como meios de comunicação, eles devem


expressar as necessidades e ideias de cada artista. No entanto, cada artista tem
diferentes necessidades interiores, diferentes pontos de vista, precisando encontrar
diferentes formas de expressão.. (MCCLOUD, 2005, p.57)

Todas essas características estéticas e narrativas devem ser trabalhadas em conjunto


entre escritores e artistas. O ideal é que o escritor e o artista de uma história seja a mesma
pessoa, quando isso não acontece “cada componente está subordinado ao todo. O escritor
55

deve se preocupar desde o início com a interpretação da sua história pelo artista, e o artista
deve aceitar submeter-se à história ou à ideia” (EISNER, 2010, p.127). Na prática dos
quadrinhos modernos, essa relação está cada vez mais difícil, pois os processos de produção
não permitem essa interação entre as partes e a separação entre a criação escrita e o desenho
está diretamente envolvida com a estética do veículo.
O trabalho do escritor, do artista e das condições de produção de uma história em
quadrinhos implica no resultado final de uma publicação. Para explicar essa relação,
precisamos nos apropriar do conceito de hipergênero e gênero.
Segundo Paulo Ramos (2009), os diferentes tipos de publicações de histórias em
quadrinhos são hipergêneros. Diferentes características das publicações de histórias em
quadrinhos definem-nas como undergrounds, fanzines, novelas gráficas, comerciais, entre
outras1. Cada um desses tipos de publicações possuem regras, formas de se apresentarem.
O hipergênero daria as coordenadas de formatação textual de vários gêneros, que
compartilhariam tais elementos. Uma carta teria uma estruturação própria
(cabeçalho, texto em primeira pessoa, cumprimentos finais, assinatura) e poderia ser
usada em diferentes gêneros: carta pessoal, carta comercial, carta de admissão de
emprego. Vemos o mesmo raciocínio na área de quadrinhos. Um hipergênero
anteciparia informações textuais ao leitor e ao produtor e funcionaria como um
guarda-chuva para diferentes gêneros, todos autônomos, mas com características
afins. (RAMOS, 2009, p.365-366)

Segundo Najara Ferrari Pinheiro (2002, p.265), a noção de gênero está associada à
certas especificidades e parâmetros a partir dos quais um texto é produzido e consumido. As
representações socioculturais envolvem emissores e receptores na produção de sentido e estão
diretamente ligadas ao conteúdo.
No entanto, o que se pode destacar é que os textos midiáticos, enquanto gêneros, são
formas de representar práticas socioculturais dentro de outras práticas socioculturais
institucionalizadas que envolvem participantes (produtores e receptores) mediados
pelo texto, a partir de contratos tácitos que vinculam as duas pontas do processo de
comunicação (produtores e receptores), numa incessante tarefa de produção de
sentido a partir do querer dizer do produtor e do que é interpretado pelo receptor.
(PINHEIRO, 2002, p.287)

3.2 Autoralidade nos quadrinhos

Segundo os conceitos de autoralidade de Michel Foucault, o texto não é um material


inerte que o autor produz sem nenhum tipo de vínculo. O texto sempre contém certo número
de signos que remetem ao autor. Signos como pronomes pessoais, advérbios de tempo e de
lugar determinam o papel do autor nos textos que exigem a sua presença. Por exemplo, o

1
Os hipergêneros underground, fanzines, novela gráfica e comerciais serão tratados mais adiante neste capítulo.
56

autor exerce papel fundamental nos romances atualmente, enquanto é dispensável na


produção de textos científicos. Foucault analisa a função do autor nos romances e considera
primeiro os pronomes pessoais e por último os advérbios de tempo e de lugar.
Nesses últimos, tais “mecanismos” remetem ao locutor real e às coordenadas
espaço-temporais do seu discurso (embora certas modificações possam se produzir:
quando se relatam discursos na primeira pessoa). Nos primeiros, em compensação,
seu papel é mais complexo e mais variável. É sabido que, em um romance que se
apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente
do indicativo, os signos da localização jamais remetem imediatamente ao escritor,
nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio gesto de sua escrita; mas a um
alter ego cuja distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao
longo mesmo da obra. (FOUCAULT, 2006, p.278-279)

Não podemos buscar o autor apenas do lado do escritor, nem apenas do lado do
locutor fictício, a função autor está na cisão entre esses dois elementos. O texto traz somente
uma característica singular do discurso, todos os discursos que possuem a função autor
comportam-se com essa pluralidade de ego.
Quanto mais presente é a função autor dentro de um texto, maiores são as chances de
aparecerem características experimentais e de vanguarda em uma obra. Experimentalismo é o
ato de testar, renunciar ao passado, rejeitar os padrões preestabelecidos para trazer novas
possibilidades de criação que existem apenas com a experimentação. Revelar para a sociedade
o que é descoberto, adapta a forma de trabalhar a arte diante de um novo material. Segundo
Umberto Eco (2008a, p.227), a ação experimental é o ato de questionar um novo material para
lhe atribuir novas possibilidades de organização e de formação.
O método experimental apresenta-se, portanto, como o método que não só procura
estudar o objecto directamente, em vez de o fazer através das lentes deformantes de
uma sabedoria tradicional e autoritária, mas decide também mudar o próprio método
com que ia abordá-lo e adequá-lo ao fenómeno a investigar, falando com
simplicidade, a essência do método experimental reside no facto de, no momento em
que se pergunta o que é um fenómeno, o cientista decidir deixar de acreditar em tudo
o que até aí sabia sobre ele, e recomeçar tudo do princípio. (ECO, 2008a, p.228-229)

Dessa forma, o artista contemporâneo comporta-se como um revolucionário, pois


destrói uma ordem por completo e propõe outra: “Mas no sentido em que qualquer obra que
produz tem para ele o valor de um facto histórico que em política se verifica uma vez a cada
século.” (ECO, 2008a, p.229). O artista contemporâneo deve cada vez mais começar uma
criação a partir do vazio e compor sua obra seja de que maneira for. Portanto, ao propor essa
revolução, o artista, independentemente da formação ideológica, está propondo uma nova
maneira de pensar, uma revolução no campo das formas. “No momento em que constrói as
bases de um novo modo de formar, contribui para a modificação de uma visão do mundo a
todos os níveis, quer o saiba quer não” (ECO, 2008a, p.231-232).
57

O autor experimental também pode desejar ser reconhecido, mas caso não utilize um
método que seja compreendido facilmente pelas pessoas, pode tornar-se incompreendido ao
reestruturar alguns princípios que podem ser classificados como ofensivos. O autor coloca em
dúvida tudo o que se sabe e faz novos testes para encontrar novas formas de estudá-lo e novas
definições para um método experimental. A crítica que pode surgir a partir de uma atitude
experimental se perde ao ser reproduzida, pois transforma-se em uma nova regra. Quando isso
acontece, o autor experimental abandona aquilo que tornou-se uma nova norma e busca novas
experiências experimentais: “Se experimentar quer dizer agir de modo inovador em relação à
tradição, toda obra de arte que nós celebramos como significativa foi, a seu modo,
experimental” (ECO, 1989, p.92).
Philadelpho Menezes (1994, p.164) descreve o experimentalismo nas vanguardas, em
que a ruptura com os modelos tradicionais artísticos, conhecido como experimentação, é um
gesto permanente e também volta-se contra os outros movimentos de vanguarda.
[...] deve-se ressaltar o papel de contribuição das próprias vanguardas para a
configuração desse quadro. Afinal, ao contrário dos modernistas, que pregavam a
manutenção das esferas tradicionais da cultura, o experimentalismo vanguardístico
sempre teve por escopo a inserção dos seus produtos no campo da grande produção
e do consumo de massa no sentido, não de se comercializar, mas de inserir, nos
padrões de gosto e de sensibilidade, novos elementos estéticos que representassem a
nova era moderna, segundo a óptica das vanguardas. (MENEZES, 1994, p.166-167)

Umberto Eco (1989, p.93-94) define alguns elementos entre experimentalismo e


vanguarda para que os dois conceitos não se misturem. O experimentalismo joga com a obra
em si, da obra extrapola-se uma poética, enquanto a vanguarda joga com o grupo de obras ou
pequenos exemplos de poéticas, onde da poética extrapola-se a obra. O experimentalismo faz
uma provocação interna, isto é, deseja mudar algo em uma determinada instituição literária,
enquanto a vanguarda faz uma crítica externa, ou seja, quer que a sociedade reconheça sua
nova proposta como um modo ofensivo de tratar determinadas instituições artísticas.
A vanguarda joga com um grupo de obras ou não obras que são apenas exemplos de
poética que extrapola uma obra. Não existe obra de vanguarda, mas sim a obra produzida no
âmbito de um movimento de vanguarda e
Deste estado de coisas resulta uma situação paradoxal; porque se, numa certa
encruzilhada da evolução da arte contemporânea, a “vanguarda” surgia como a
ponta de lança que provoca uma subversão da ordem constituída, ainda que só a
nível das formas artísticas, hoje pode muito legitimamente insinuar-se que qualquer
operação de vanguarda só serve para alimentar uma certa ordem constituída, a de
uma sociedade que contempla, a título de evasão, o comércio e o consumo
domesticado dos produtos de vanguarda. [...] Numa espécie de dialéctica entre
formas novas e habituação dos seus fruidores, e entre forma e forma, a vanguarda
não faz mais do que produzir formas que, uma vez produzidas, deixam de ser de
vanguarda e exigem um novo gesto de vanguarda: por consequência, a vanguarda
58

torna-se não a exceção mas a regra na civilização artística contemporânea e surge,


portanto, como a única forma possível e aceitável da academia. (ECO, 2008, p.234)

Para Philadelpho Menezes (1994, p.167), como uma característica pós moderna, a
vitória das vanguardas é a sua derrota, o seu desaparecimento. Esse aspecto não apaga seus
procedimentos experimentais, basta olhar ao redor e examinar a moda, as construções, o
urbanismo, o design etc., para perceber as marcas deixadas pelas vanguardas. O último efeito
pretendido pelas vanguardas é ser assimilada pela cultura, esse poder conquistado é a forma
como sua arte é representada pela sociedade, configurando os padrões de sensibilidades em
todas as manifestações cotidianas.
Além dos conceitos sobre a função do autor, o experimentalismo e a vanguarda,
também por parte do autor, devemos examinar a definição de obra aberta de Umberto Eco
(2008a), pois esta coloca o receptor como parte do processo autoral. Para compreendermos
este conceito, devemos considerar dois aspectos:
a) o autor realiza um objecto acabado e definido, segundo uma intenção bem precisa,
aspirando a uma fruição que o reinterprete tal como o autor o pensou e quis; b) o
objecto é fruído por uma pluralidade de fruidores, cada um dos quais sofrerá a
acção, no acto de fruição, das próprias características psicológicas e fisiológicas, da
própria formação ambiental e cultural, das especificações da sensibilidade que as
contingencias imediatas e a situação histórica implicam. (ECO, 2008a, p.153-154)

Ou seja, cada fruição é pessoal e a obra sempre será vista sob um dos aspectos
possíveis, por mais que haja empenho e fidelidade à obra. O autor geralmente não ignora essa
situação, mas produz a obra como aberta a essas possibilidades, ele orienta o leitor, o conduz
às diferentes respostas, a um mesmo sentido definido por ele mesmo.
Essa noção de autoralidade e experimentalismo surge de forma evidente com a
Nouvelle Vague. Para Adriano Medeiros da Rocha, o termo “Nouvelle Vague” refere-se aos
cineastas franceses que transgrediram os padrões do cinema comercial sem muitos recursos
financeiros. A teoria autoral é uma das bases do movimento e foi desenvolvida por Truffaut
por volta de 1954, por meio dela
[...] o filme, assim como a música ou a poesia, seria parte do próprio autor (diretor),
ou seja, a representação de suas ideias ou ainda sua forma de ver o mundo. Os
adeptos da nova onda francesa promoveram inovações que vão da estética às
técnicas de realização. A busca era por uma linguagem fora dos processos de
encenação convencionais impostos pela tradição clássica americana. (ROCHA,
2006, p.4)

A inovação presente na Nouvelle Vague é composta pela estética e pela história


narrada. A mudança estética mostra a ruptura com o passado, o excesso de zoom e as cenas
tremidas resultam de a câmera tornar-se mais flexível ao sair do tripé e acompanhar o
59

personagem, com isso o número de cortes é menor e o plano-sequência passa a ser mais
utilizado, proporcionando uma leitura livre e autônoma da cena por parte do espectador.
A narrativa é pessoal, espontânea, com improvisos e fora dos estúdios. Nela, a vida
cotidiana é retratada de forma complexa e cheia de dramas. O herói sai de cena para dar lugar
a personagens mais humanos com qualidades e defeitos. Essa aproximação com a realidade
leva o espectador a assumir uma posição diante do filme, além de fazê-lo refletir sobre os
aspectos da vida sobre um novo ponto de vista a partir de uma arte mais madura e reflexiva.
Nas histórias em quadrinhos, o professor Elydio dos Santos Neto analisa alguns
aspectos dos quadrinhos poético-filosóficos. Uma política de gestos poéticos, o retrato da
experiência perinatal, além de aspectos como a transgressão, a transcendência e a esperança
são extremamente importantes e estão presentes na teoria autoral.
A capacidade poética é, pois, aqui compreendida como a possibilidade que nós
humanos temos de simbolizar, significar e recriar o mundo, e nossa relação com ele,
a partir de nossa imaginação. Sem essa capacidade de poetizar o mundo seríamos
seres de pura adaptação e não seres de criação, transformação e mudança. Porque
poéticos podemos desejar, sonhar, pensar e criar mundos novos. Por isso é possível
falar numa “política dos gestos poéticos”. (SANTOS NETO, 2012, p.35)

A experiência perinatal, termo utilizado por Stanislav Grof, consiste no aprendizado


que os seres humanos adquirem no processo de nascimento, também conhecido como morte-
nascimento, traz em si uma dramaticidade e um risco muito grande. Durante o nascimento, o
feto luta contra a morte e “Simbolicamente pode-se dizer que tal processo é uma ‘descida aos
infernos’ e uma ‘subida para a ressurreição’: morte e renascimento” (SANTOS NETO, 2012,
p.50). Nos primeiros instantes de sua vida, o ser humano passa por uma incrível experiência
que o acompanhará em todos os momentos de sua vida.
Outro aspecto importante é o de transgressão. Uma pessoa ou ideia que transgride é
aquela que rompe com o estabelecido, destrói o que havia antes, separa as relações de
domínio, desse modo “podemos pensar que a transgressão é uma forma de trazer saúde para
ambientes, organizações sociais e paradigmáticas ‘adoecidos’” (SANTOS NETO, 2012,
p.23).
A transcendência, outro tipo de superação, diferentemente do aspecto anterior, não
está voltada para o exterior, mas sim para o interior, para o próprio homem que tenta
constantemente superar-se a si mesmo: “Um ser chamado a ‘ser mais’, mas que pelos
processos de dominação e exploração pode render-se ao ‘ser menos’ e desumanizar-se”
(SANTOS NETO, 2012, p.26).
E, por último, a esperança, o homem como um ser inacabado e responsável por sua
própria história e pela história da humanidade crê que sempre há uma esperança: “A
60

esperança alimenta a luta humana no presente para que o futuro seja outro [...]” (SANTOS
NETO, 2012, p.27).
Além dos aspectos poético-filosóficos da narrativa dos quadrinhos anteriormente
descritos, Douglas Wolk aponta para a importância do estilo apresentado nos desenhos dos
artistas, chamando-os de art comics (quadrinhos artísticos). Wolk estreita a relação escritor e
artista pela expressão direta na intenção específica do trabalho. A arte ou o estilo do desenho é
fundamental para a expressividade do autor, é por meio desta arte que parte de sua liberdade
criativa e experimental pode ser colocada no papel como uma parte da construção do foco
narrativo.
First of all, art comics’ style is at least as important as the content of their narrative,
and always a direct expression of their creators’ idiosyncrasies and work-specific
intentions. “Expressiveness” is more the point of art comics than characters or plot
points; they privilege the distinctiveness of the creator’s hand, rather than the
pleasures of the tools of genre and readerly expectations. The content of art comics
is also almost invariably owned by their creators – which means that most of the
fundamental restrictions on what they look like and what happens in the course of
their narratives are set by the creators alone. (WOLK, 2008, p.30-31)

Para os professores Roberto Elísio dos Santos e Elydio dos Santos Neto (2010 p.59),
as narrativas gráficas desempenham um papel extremamente importante na difusão do
pensamento humano e são ideais para manifestações artísticas que provoque profunda
reflexão sobre o ser humano e tudo que o cerca.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que as histórias em
quadrinhos autorais surgem a partir da publicação dos quadrinhos underground. Segundo
Waldomiro Vergueiro (2011), estes quadrinhos são produzidos de forma independente e
destinados a um público mais maduro. No Brasil, a produção de quadrinhos underground é
muito grande pela impossibilidade de se entrar no mercado mainstream de quadrinhos. Esses
quadrinhos amadores, apesar de serem produzidos de forma artesanal, em pequenas
quantidades e distribuídos de mão em mão, são livres para expressar exatamente o que seus
produtores desejam. Esse sistema informal de produção e distribuição sobrevive em um
espaço muito limitado que envolve apenas familiares, amigos e colegas desses artistas.
As faculdades e os campi universitários são um espaço fértil e privilegiado para a
disseminação desse tipo de quadrinhos, pois os estudantes universitários em geral se
interessam muito por histórias em quadrinhos e têm, em função de sua idade e
ambiente em que vivem, uma forma muito crítica de encarar a produção
massificada. (VERGUEIRO, 2011, p.48)

Os fanzines de quadrinhos são muito comuns no Brasil e fazem parte do meio


underground. O cartunista e pesquisador Henrique Magalhães (2004, p.11) explica que o
termo “fanzine” é composto pela união de duas palavras de origem inglesa, fanatic e
61

magazine, e significa revista feita por fã. Portanto, fanzine é uma revista de qualquer gênero,
editada por um fã de algum tipo arte, voltada para um público aficionado.
O quadrinista e também pesquisador Edgard Guimarães, afirma que as revistas
profissionais que são vendidas em bancas não são fanzines, pois são feitas para um mercado
específico, que, além de ter grandes tiragens, são produzidas para dar lucro.
Como precisa vender para se sustentar, a revista profissional tenta oferecer aquilo
que uma parcela do público leitor quer, ou seja, a revista profissional é feita em
função do leitor. O Fanzine, ao contrário, é a forma de expressão do editor, ou grupo
de editores. O que define a pauta do Fanzine é aquilo que seu editor deseja
compartilhar com seus leitores. O Fanzine é caracterizado pela independência do
editor. (GUIMARÃES, 2005, p.12)

Por não ficarem amarrados a nenhuma editora voltada ao mercado, os fanzines, na


maioria das vezes, são experimentais e misturam conteúdos ou estéticas filosófica e poética.
“Dentro dos Fanzines de quadrinhos surgiram alguns artistas misturando HQ e poesia, e hoje
há um número significativo de artistas produzindo dentro dessa linha que é chamada de
fantasia filosófica” (GUIMARÃES, 2005, p.41). De forma geral, os fanzines mantêm contato
com diversas formas de arte e manifestações menos cotadas como a colagem, por exemplo.
Mesmo que os fanzines sejam edições mais simples quanto à forma, é comum
surgirem alguns fanzines em formato de álbum com material inédito ou que reúnam várias
histórias já publicadas. “A apresentação com alta qualidade gráfica não descaracteriza o
Fanzine, pois continua sendo uma edição feita com espírito independente” (GUIMARÃES,
2005, p.44-45).
Culturalmente, o fanzine é extremamente importante e está diretamente ligado à
cultura brasileira, uma vez que contribui para o “amadurecimento de artistas ou a satisfação
pessoal dos editores e colaboradores de estarem divulgando seus trabalhos, ou a ampliação de
amizades entre os que participam desse mundo dos Fanzines” (GUIMARÃES, 2005, p.52).
Henrique Magalhães também considera os fanzines como um objeto da
“folkcomunicação”, que “é o processo de intercâmbio de informações e manifestações de
opiniões, ideias e atitudes de massa através de agentes e meios ligados direta e indiretamente
ao folclore” (MAGALHÃES, 2005, p.16). Inicialmente, o termo folkcomunicação remetia
apenas a expressão de grupos marginalizados cultural e geograficamente, mas também
devemos inserir outros setores excluídos de uma sociedade, como o das pessoas sem acesso
aos meios de comunicações de massa.
Essa nova definição, mais abrangente, afinal contempla o fanzine em vários aspectos
de sua produção. O fanzine é um veículo de indivíduos e de grupos de fãs, sujeitos
que dificilmente possuem acesso à grande imprensa. A divulgação das novas bandas
de rock é feita, sobretudo, por intermédio do fanzine. Os novos autores de poesias e
história em quadrinhos têm no fanzine o espaço para a difusão de sua obra. É o
62

fanzine o veículo que se contrapõe ao descaso do mercado editorial, que não


contempla de forma adequada o fluxo da produção dos artistas nacionais, muito
menos a obra dos novos autores. A concentração da indústria cultural, em particular
as grandes editoras, no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, é um empecilho a mais para a
veiculação das expressões regionais. (MAGALHÃES, 2005, p.17)

Enfim, fanzine é um produto de grupos marginalizados cultural e geograficamente, é o


porta-voz das culturas que denominamos underground, contracultura, cultura alternativa ou
independente.
Na pós-modernidade, as manifestações culturais regionais são incorporadas pelas
indústrias culturais. Com as histórias em quadrinhos isso não é diferente, as grandes editoras
se interessam em editar esse tipo de publicação independente, e a esse mercado chamamos
mainstream. Quando uma grande editora decide publicar uma história com pouco apelo
popular, o faz por conta da alta qualidade narrativa e estética dos quadrinhos, e este trabalho
recebe, portanto, uma produção diferenciada, pois se destina a um público também
diferenciado. O tipo de papel de miolo e capa é de melhor qualidade e muitas vezes este
álbum recebe capa dura e uma quantidade maior de páginas. Conhecidas como novelas
gráficas, essas publicações passam a ser comercializadas em livrarias e lojas especializadas
em quadrinhos. Umas das principais características das publicações mainstream é a forma
como elas conciliam o conteúdo que na maioria das vezes é autoral e experimental com os
padrões comerciais de produção e distribuição, afinal, precisam gerar lucro às grandes
editoras.
Because the Big Two command so much of the comics readers’ attentions, they are
often referred to as forming the mainstream, which is both a concession to their
preeminence in the field and a critique of their conservative publishing practices.
Such large publishers have the burden of having to return large profits. As a result,
much of what they sell is what is popular, rather than being cutting edge or pertinent
to smaller interest groups. The mainstream publishers then become caught up in a bit
of a conundrum, as they are leading the industry in terms of reach but also
subservient to the demands of appealing to a mass of readers. This results in a
market that is largely homogeneous and imitative. (DUNCAN; SMITH, 2009, p.91)

Will Eisner foi um dos primeiros quadrinistas e teórico dos quadrinhos a utilizar o
termo graphic novel (novela gráfica) para a publicação de narrativas ambiciosas que abordam
temas atraentes e desafiadores para um público cada vez mais sofisticado e crítico, para ele
O futuro das graphic novels depende de autores que de fato acreditem que a
aplicação da arte sequencial, com seu entrelaçamento de palavras e imagens,
estabelece uma dimensão comunicativa que contribui – de maneira cada vez mais
relevante – para o fazer literário que se ocupa de investigar a experiência humana. O
estilo, a apresentação – apesar da falta de espaço e do suporte tecnológico de
reprodução limitado –, os balões e os quadrinhos ainda são as principais ferramentas
do artista sequencial. (EISNER, 2010, p.149)
63

O professor Roberto Elísio dos Santos afirma que as “Graphic Novels são o espaço
mais indicado para a experimentação, para a renovação estética das HQs [...]” (SANTOS,
1995, p.57). Seguindo a mesma linha de raciocínio, o espanhol Santiago García (2012, p.303)
conceitua uma nova tradição da novela gráfica ao romper com as tradições anteriores de
oferecer um produto maciço e barato de entretenimento, agora incapaz de competir com os
meios de comunicação tecnologicamente superiores e rivais. Para esse autor
Essa tradição da novela gráfica reconhece as outras tradições e as integra em seu
DNA, mas em muitos sentidos é completamente nova, pois nada parecido havia sido
visto até vinte ou trinta anos atrás. Uma de suas características é o nascimento do
autor de quadrinhos, por fim, o autor livre e adulto. Livre nos conteúdos, mas
também nos formatos, com uma liberdade que não se tinha desde Rodolphe Töpffer,
o primeiro quadrinista da história, o único que conseguiu trabalhar antes que os
quadrinhos existissem como meio. (GARCÍA, 2012, p.303)

Diante de um cenário econômico e cultural desfavorável, a novela gráfica é o produto


mainstream com maiores condições de se adaptar a esse novo cenário, pois carrega consigo
características de experimentação e comercial capazes de transcender as novas tradições
culturais.
Seguindo Eddie Campbell, Santiago García (2012, p.305) afirma que a novela gráfica
contemporânea representa essa consciência de liberdade do autor, um movimento distinto,
mas que estabelece uma tradição irmã das demais.
O fenômeno da novela gráfica é tão recente que ainda não se solidificou, portanto,
está neste momento sofrendo processos de mudança muito importantes, que fazem
com que possamos imaginar que veremos uma paisagem muito distinta em um prazo
muito curto. (GARCÍA, 2012, p.310)
64

4. INOVAÇÕES NOS QUADRINHOS DE FÁBIO MOON E

GABRIEL BÁ

4.1 Trajetória dos autores

Figura 28 - Ilustração de Fábio Moon e Gabriel Bá.1

Os brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá (Figura 28) são irmãos gêmeos e trabalham
juntos como autores e desenhistas de histórias em quadrinhos. Mesmo quando estão em
projetos separados, analisam e dão sugestões para os trabalhos um do outro. Os dois
cresceram no bairro da Vila Madalena em São Paulo, sempre foram apaixonados por
quadrinhos de todos os tipos, começaram a produzir suas próprias histórias ainda na
adolescência e estudaram Artes Plásticas, o que contribuiu para que aprimorassem seus
conhecimentos e técnicas sobre arte.

1
Ilustração feita por Fábio Moon e Gabriel Bá utilizada na home do site 10 pãezinhos.
65

No decorrer de suas carreiras, os quadrinistas foram vencedores de muitos prêmios


individuais. Receberam os prêmios Eisner Awards de melhor antologia, em 2008, e Harvey
Awards de melhor artista, em 2009, ambos nos Estados Unidos. No Brasil, receberam os
prêmios Angelo Agostini de melhor roteirista, em 2004, e melhor desenhista, em 2005 e 2006,
e HQ Mix de destaque internacional, em 2008, melhor revista independente, em 2006, melhor
blog de artista, em 2003, 2004, 2005 e 2006, melhor desenhista nacional, em 2004 e 2006, e
desenhista revelação em 1999.

4.1.1 Publicações experimentais e comerciais

No início, os quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá se dedicavam à produção de


fanzines. A cada semana, poucas páginas eram escritas, desenhadas e fotocopiadas para serem
vendidas aos colegas e familiares. O primeiro fanzine de Fábio Moon e Gabriel Bá surgiu na
época do colégio com o título Vez em quando, o segundo surgiu na época da faculdade com o
nome Ícones. Para o terceiro fanzine, escolheram o título 10 pãezinhos, que venceu o prêmio
HQ Mix de melhor fanzine em 1999.
Fábio: No início da nossa carreira, as editoras brasileiras não estavam mais
publicando material nacional autoral, então começamos nos auto-publicando.
Quando o mercado nacional começou a ressurgir e as editoras voltaram a se
interessar por quadrinhos, apresentávamos projetos prontos, inteiramente
desenhados.2

O selo 10 pãezinhos é utilizado até hoje pelos autores para a publicação das histórias:
O girassol e a lua; Meu coração, não sei por quê; Crítica!; Mesa para dois e Fanzine, que
reúne as primeiras histórias por eles publicadas durante o período do colégio e da faculdade.
As duas últimas foram vencedoras do prêmio HQ Mix de melhor edição especial nacional em
2004 e 2006 respectivamente (Figura 29).

2
Os depoimentos de Fábio Moon e Gabriel Bá foram concedidos em 31/05/2013. Veja o Anexo.
66

Figura 29 – Capas dos fanzines, da esquerda para a direita: O girassol e a lua; Crítica!;
Meu coração, não sei por quê; Mesa para dois; e Fanzine.

As histórias retratadas nos fanzines são de pessoas “normais” que enfrentam os


problemas do cotidiano. Os personagens, que narram as histórias, carregam não apenas os
signos criados para o desenvolvimento da narrativa, mas também os signos que remetem
diretamente aos autores. Isso se torna mais evidente naquelas em que os
personagens/narradores são os próprios autores, Fábio e Gabriel. Os fanzines criados são
livres de qualquer interferência externa, tanto os produtores como os leitores não
influenciaram no conteúdo das publicações, o que permitiu o amadurecimento dos artistas em
experimentações e em diferentes formas de expressar seus sentimentos. Não se deve
confundir o experimentalismo dos autores com o experimentalismo das vanguardas artísticas.
Aquele tem como objetivo de provocar uma mudança interna, articular os signos utilizados
nas histórias em quadrinhos de forma inovadora, para que os mesmos se adaptem às
necessidades de expressão dos autores.
Gabriel: As histórias são as responsáveis pela repercussão do nosso trabalho. Alguns
prêmios também ajudam a colocar o trabalho em foco. Sem os trabalhos, não
haveria prêmios nem convites para viagens.

Fábio e Gabriel fazem muitas viagens para vários países da Europa e para os Estados
Unidos para divulgar seus trabalhos. A participação e divulgação de suas obras em feiras e
eventos especializados, como a Comic Con, em San Diego, foram fundamentais para que as
principais editoras de quadrinhos do mundo e importantes quadrinistas conhecessem sua arte
e os convidassem para desenvolver trabalhos em conjunto com outros desenhistas e escritores.
Essa experiência permitiu que publicassem na Espanha, França, Itália e principalmente nos
Estados Unidos com editoras reconhecidas mundialmente, como Dark Horse e DC Comics.
Os principais títulos publicados no exterior são Roland, vencedor do prêmio Xeric Fundation
Grant, em 1999; De:Tales; Ursula; Sugarshock!, vencedor do prêmio Eisner Awards de
melhor história em quadrinho digital, em 2008; Umbrella Academy: Apocalypse Suite,
67

vencedor dos prêmios Eisner Awards e Harvey Awards de melhor série e Scream Awards de
melhor artista de história em quadrinhos, em 2008; Umbrella Academy: Dallas; Pixu;
BPRD:1947; Casanova – Luxúria; e Casanova – Gula (Figura 30).

Figura 30 – Capas das novelas gráficas, da esquerda para a direita: Roland;


De: Tales; Umbrella Academy; Pixu; e Casanova.

Os quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá materializam a cultura de onde vivem em


histórias em quadrinhos contemporâneas inovadoras e levam suas produções para diversos
lugares do mundo. As histórias em quadrinhos não colecionam elementos culturais, mas as
inovações dos elementos estéticos e narrativos seguem a mesma ideia da colagem de
elementos culturais, enquanto o tradicional e o moderno, o culto e o popular e o hegemônico e
o subalterno se misturam (CANCLINI, 2011, p.336).
Nos principais centros produtores de histórias em quadrinhos do mundo, essas
produções se adaptam a uma realidade profissional e são novamente exportadas para muitos
outros lugares do mundo, inclusive para o país de origem dos autores, que passam a ser mais
reconhecidos pelo público e pelos produtores brasileiros: “A adaptação cultural pode ser
analisada como um movimento duplo de descontextualização e recontextualização, retirando
um item de seu local de origem e modificando-o de forma a que se encaixe em seu novo
ambiente” (BURKE, 2003, p.91). Produtores de uma cultura híbrida, os autores produzem e
divulgam seus trabalhos nas principais metrópoles consumidoras de história em quadrinhos,
esse espaço é considerado o mais fértil para o desenvolvimento e para a aceitação de culturas
cada vez mais híbridas. Como afirma Peter Burke (2003), o tamanho da metrópole favorece
que pessoas de diferentes origens se encontrem e interajam com trocas, tanto no comércio
quanto na cultura.
68

Esse novo produto cultural produzido por eles continua com as características de
autoralidade que Fábio Moon e Gabriel Bá construíram ao longo de suas carreiras, a arte e a
história são trabalhadas uma em função da outra. Com estilos próprios e desenvolvimento
artístico pessoal, pode-se afirmar que existe a autoralidade de Fábio Moon e a de Gabriel Bá
nas histórias em quadrinhos, mesmo quando eles não são os escritores.
Fábio e Gabriel também adaptaram para os quadrinhos o conto O alienista de
Machado de Assis. A adaptação recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro didático e
paradidático para ensino médio ou fundamental em 2008. Eles também são constantemente
convidados para publicar histórias com outros autores em coletâneas no Brasil e no exterior
como Front 09 e 10; Dez na Área; Authobiographix; Gunned Down; 27 Seven 1 e 2; e Fligh 4
(Figura 31). Atualmente, eles produzem para o jornal Folha de S.Paulo uma tira com temas
filosóficos chamada Quase Nada (Figura 32).

Figura 31 – Da esquerda para a direita, capa da adaptação: O alienista;


capas das coletâneas: Dez na área e Gunned down.
69

Figura 32 – Tira Quase nada, n. 1.

Fábio Moon e Gabriel Bá (2003) criam histórias e personagens que representam


pessoas comuns destinadas a essas mesmas pessoas. Certamente esse é um dos aspectos
responsáveis para que a narrativa de suas obras recebam elementos que estão presentes no dia
a dia de cada um dos brasileiros. As experiências dos autores em suas viagens, em encontros
com amigos, mulheres e em outras situações do cotidiano são facilmente identificadas pelo
público brasileiro e encantam o de outros países pela apresentação de um universo inovador.
Gabriel: Hoje recebemos muitos convites para projetos diferentes, mas isso já
acontece há vários anos. Continuamos fazendo somente os nossos próprios projetos,
ou aqueles que acreditamos ter algo a acrescentar à nossa carreira, algum desafio.
Isso sempre foi assim, tanto aqui quanto no exterior.

Os aspectos de uma cultura tradicional, vista como popular e até mesmo subalterna,
assim como os aspectos de uma cultura moderna, culta e hegemônica são encontrados nos
trabalhos dos autores. Quando seus trabalhos são apropriados pela indústria cultural, eles
ganham muito mais força e expansão, em contrapartida, passam a ser regidos pelas regras do
mercado. Essas regras passam a interferir na produção dos trabalhos que ao buscar maior
aceitação por parte do público, deve lutar para não perder seu potencial de inovação. A
maioria do público tende a rejeitar trabalhos muito inovadores ou que apresentem propostas
muito diferentes daquelas a que está acostumado. Uma das explicações para isso é que o
público precisa se sentir participante na condução de uma novela gráfica sequencial, fazer
70

parte do processo, da autoria; como a maioria desse público não tem muito conhecimento
sobre arte e gosta de se sentir familiarizado com a articulação dos signos linguísticos adotados
por esse tipo de narrativa, por repetição ele é capaz de refazer esse processo sem muito
esforço (CANCLINI, 2001).

4.2 Análise da novela gráfica Daytripper

Figura 33 – Capas da novela gráfica: Daytripper, n. 1-10.

A novela gráfica Daytripper (Figura 33) realizada por Fábio e Gabriel é a primeira
história em quadrinhos autoral desses artistas a atingir escalas internacionais com grande
repercussão na imprensa ao ficar várias semanas na lista de mais vendidos do jornal New York
Times, e de ser a história em quadrinhos mais premiada de 2011. Daytripper foi publicada nos
Estados Unidos pelo selo Vertigo, da editora DC Comics, entre 2009 e 2010, em dez edições
e posteriormente, em uma única edição encadernada. Daytripper também foi publicada em
uma edição única encadernada com opções de capa, cartonada ou dura, pela editora Panini, no
Brasil, no segundo semestre de 2011, e também na França em 2012.
Gabriel: Depois de vários anos mostrando trabalho para vários editores no mercado
americano e publicando aos poucos nossas histórias por lá, um destes editores, o
Bob Schreck, foi para a Vertigo, um lugar onde ele sabia que poderia publicar o tipo
71

de histórias que nós contamos. Foi então que ele pediu que mandássemos idéias e
eles gostaram da idéia que resultou no Daytripper.

Fábio: Tivemos total liberdade pra criar idéias e, uma vez escolhida uma,
desenvolvemos totalmente a história que queríamos contar. Fomos convidados a
fazer o nosso tipo de história, não algo que se encaixasse nos moldes da Vertigo.

Daytripper é uma novela gráfica porque é uma publicação profissional, com história
fechada, voltada para o público jovem e adulto, e apesar de seguir as regras de publicação do
mercado preserva inúmeras características experimentais que inovam na narrativa, na estética
e na história apresentada.
Os aspectos, comercial e autoral, que caracterizam Daytripper são totalmente
antagônicos, mas estão presentes nesse tipo de publicação sem anularem as qualidades umas
das outras. Os aspectos comerciais são compostos principalmente pela utilização de elementos
narrativos e estéticos comuns, enquanto os aspectos autorais são compostos especialmente
pelas inovações no conteúdo da história e em alguns elementos narrativos e estéticos
inovadores.
Fábio: Não pensamos no lado comercial das nossas histórias, e sim na sua
relevância. Acredito que, se você tem algo a dizer que acredita valer a pena, deve
tentar de todas as maneiras possíveis colocar isso para fora, aos olhos do público. Se
o trabalho for o melhor que você pode fazer, e for relevante, chamará atenção e, se
tudo der certo, terá algum retorno financeiro como conseqüência, nunca como meta.
Se não, tente novamente no próximo projeto, na próxima história. Quando pensamos
nas editoras, já procuramos editoras que tenham ao menos uma linha editorial que
nos interessa, que pareça aberta ao nosso tipo de história. É importante conhecer as
editoras com quem você pode ou quer trabalhar para não fugir do perfil da editora e
depois não entender porque seu projeto não foi aceito ou não foi bem trabalhado.

4.2.1 Inovações narrativas

De acordo com Marcelo Bulhões (2009), os quatro principais elementos narrativos


são: focalização, espaço, tempo e personagem.
A focalização corresponde ao agente narrador da história. Na novela gráfica
Daytripper, a focalização é oniexistente, ou seja, a narração é focada no personagem principal
Brás, é feita em 3ª pessoa e pode descrever o que é e o que não é mostrado na imagem, além
dos pensamentos e sentimentos dos personagens (Figura 34).
72

Figura 34 – Daytripper, n.1, p.3.

“While reading the newspaper first thing that morning, Brás felt many things… None
of them good.” (Enquanto lia o jornal logo cedo naquela manhã, Brás teve várias sensações...
Nenhuma agradável. 3)
“He would have liked to think that his father objected when he was told the date of the
ceremony…” (Ele gostaria de crer que seu pai teria reclamado ao saber da data da
cerimônia...)
“... that his dad would have said that he had a very important previous engagement.”
(...que seu pai teria dito que havia um compromisso de grande importância já agendado.)
O espaço no qual a novela gráfica Daytripper é desenvolvida, retrata principalmente a
cidade de São Paulo (Figura 35), mas também cidades como Salvador e Rio de Janeiro em
alguns capítulos.

Figura 35 – Daytripper, n.3, p.10. Figura 36 – b_arco, 27/11/2011.

3
As traduções entre parênteses são da edição brasileira.
73

O centro cultural b_arco (Figura 36) está localizado na rua Dr. Virgílio de Carvalho
Pinto, número 426, no bairro da Vila Madalena em São Paulo. Apesar de o local não ser
mencionado na história, existe uma semelhança muito forte do desenho com a fotografia
tirada por mim no local. Segundo Fábio Moon e Gabriel Bá (em palestra sobre o lançamento
da série Daytripper no Brasil, na b_barco em 27/11/2011), o local também era frequentado
por eles que moravam naquela região e sempre gostaram de arte.
Gabriel: O Daytripper não é um cartão postal e por essa razão não precisamos ficar
nomeando e situando todos os locais que aparecem na história. Mas, muitas vezes,
para conseguir uma veracidade na história, um sentimento autêntico, precisamos
buscar locais reais ou nos inspirar em situações reais para criar eventos fictícios. Os
elementos reais são costurados para contar melhor a história, que é uma ficção.

Fábio: Quando você coloca um lugar real na história e o leitor reconhece esse lugar,
ele é transportado para dentro da história. [...]

Gabriel: Em uma história de ficção, não é importante o que existe e o que foi
inventado. Se fizermos um bom trabalho, essa dúvida sempre vai surgir, mas a
resposta não é importante. Se o leitor ficar curioso a ponto de procurar saber mais
sobre os lugares, personagens e acontecimentos da história, melhor ainda. A idéia é
enfeitiçar o leitor e sua imaginação. [...]

Gabriel: Usamos muitas imagens diferentes para montar nossa história, nem sempre
é um só lugar, mas uma colagem de locais diferentes. O importante, mais uma vez, é
conseguir uma sensação de um local que exista, que o leitor consiga imaginar, se
reconheça.

O tempo pode ser retratado de diversas maneiras em uma história em quadrinhos. Na


Daytripper, estão evidentes três maneiras de mostrar o tempo por meio da narrativa. A
primeira, e mais comum, é a passagem do tempo de um quadrinho para o outro (Figura 37).
Aqui, o tempo da narrativa pode durar poucos segundos ou muitas horas entre um quadro e
outro. O fator determinante para essa percepção do tempo são os elementos estéticos, como a
preservação ou mudanças de ambientes, do céu, da roupa dos personagens, entre outros
fatores.
74

Figura 37 – Daytripper, n.1, p.15-16.

A segunda é a indicação do tempo por meio de acontecimentos históricos. Na maioria


das vezes, o reconhecimento de acontecimentos históricos não é fundamental para o
entendimento de uma narrativa, mas pode enriquecer a leitura e levar o leitor a maior
profundidade narrativa (Figura 38). Nesse caso, o personagem presencia um dos piores
acidentes aéreos do Brasil. No dia 17 de julho de 2007, um Airbus da TAM Linhas Aéreas
não conseguiu frear durante o pouso no aeroporto de Congonhas, atravessou a pista e bateu
em um depósito da própria empresa. Reconhecer esse acidente em uma história de ficção é o
mesmo que situar aquele momento da história à data do acidente, mesmo que essa data não
seja mencionada na história.
Fábio: Nós viajamos muito e é impossível não pensar naquele evento todas as vezes
que estamos no Aeroporto de Congonhas, decolando ou pousando, ou apenas
buscando algum amigo. Isso deve acontecer com milhares de pessoas todos os dias.
75

Figura 38 – Daytripper, n.6, p.8.

Por último, a idade do personagem em cada capítulo da novela gráfica Daytripper é


uma marcação de tempo inovadora, pois além de não ocorrer em sequência linear está
relacionada ao conteúdo da narrativa proposta pelos autores. No primeiro capítulo, por
exemplo, o personagem Brás está com 32 anos, no capítulo dois ele está com 21, no capítulo
seguinte com 28, depois com 41, os capítulos seguem com as idades de 11, 33, 38 e 47 anos.
No penúltimo capítulo Brás está sonhando, portanto, a história mostra vários momentos de
sua vida retratados nos capítulos anteriores, ou seja, com idades diferentes, por fim, no último
capítulo, ele está com 76 anos de idade.
O personagem é o elemento responsável por conduzir a narrativa. Na Daytripper, sua
inovação não está apenas na responsabilidade de conduzir, mas sim de sustentar a narrativa. O
personagem principal é Brás de Oliva Domingos (Figura 39), semelhanças e referências ao
nome do personagem tem forte relação com a cultura brasileira. A primeira semelhança é com
o nome do país de nacionalidade do personagem e local onde a história se desenvolve, o
Brasil; outra característica marcante é o fato de Brás de Oliva Domingos ser escritor de
obituários para um jornal. Impossível não relacionar esse fato com o personagem Brás Cubas
de Machado de Assis, no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, em que ele está morto
e narra sua própria biografia, ou seja, há semelhança no nome dos personagens e no fato de
ambos escreverem sobre a morte. Essas referências evidenciam a relação de Daytripper ao
clássico da literatura brasileira.
Fábio: A relação maior é com o Brás Cubas, pois existe essa relação entre o
questionamento da vida e da morte em ambas as histórias, e porque achamos que
para um escritor conceituado como o pai do Brás, dar ao filho um nome de
personagem clássico da literatura brasileira parece uma boa idéia. A relação com a
76

história se passar no Brasil, se existe, existiu quando a primeira criança foi nomeada
de Brás, e talvez tenha existido quando Machado nomeou seu personagem, mas não
foi por isso que escolhemos esse nome.

Figura 39 – Da esquerda para a direita Daytripper, n.3, p.16;


Daytripper, n.5, p.13; e Daytripper, n.10, p.15.

4.2.2 Inovações estéticas

Segundo os conceitos de Jason Dittmer (2010) e Fredric Jameson (1985), aplicados à


novela gráfica Daytripper, uma página, que é composta por vários quadros; uma edição, que é
composta por várias páginas; e toda a história, composta por várias edições, devem ser vistas
como um elemento único. No que diz respeito à estética, será considerada uma ou poucas
páginas necessárias para narrar uma cena. Fábio Moon e Gabriel Bá utilizam poucas páginas e
poucos quadros em cada página para formar uma cena. Com uma média de sete quadros por
página, os autores constroem cenas limpas e harmônicas (Figura 40).
77

Figura 40 – Daytripper, n.7, p.4.

Na composição dessas páginas, são utilizados em média um ou, no máximo, dois


recursos descritos por Will Eisner (2010) e Scott McCloud (2005): ausência de requadro,
requadro sangrado ou metaquadrinho por página.
A ausência de requadro é quando a imagem não é delimitada pela borda (Figura 41), o
que cria uma sensação de infinito e destaca o objeto representado, pois o coloca como o
centro do que acontece em uma determinada página.
78

Figura 41 – Daytripper, n.2, p.8.

O requadro sangrado é quando a imagem começa e/ou termina na extremidade da


página, ou seja, o tamanho do requadro é determinado pelo tamanho da página (Figura 42).
Esse recurso cria a sensação de amplitude do cenário representado, pois a continuidade da
imagem é sugerida pelo limite da página, e não do requadro.

Figura 42 – Daytripper, n.4, p.1.


79

Metaquadrinho é quando uma página inteira faz a função de requadro (Figura 43). Na
maioria das vezes, esse requadro apresenta a visão geral de uma cena e é composto por outros
requadros menores em seu interior que detalham uma ação que acontece naquele espaço.

Figura 43 – Daytripper, n.5, p.8.

De forma inovadora, Fábio e Gabriel mesclam algumas características de ausência de


requadro, requadro sangrado e metaquadrinho ao comporem algumas páginas da Daytripper
(Figura 44). O foco principal de uma cena, por exemplo, é dividido em dois requadros
sangrados, a parte inferior da imagem é posicionada no topo da página e a parte superior em
sua base. O topo ou a base do requadro sangrado quando voltados para o centro da página não
possuem linhas de demarcação do requadro, ligando-os aos requadros posicionados ao centro
da página. Parte desses requadros sobrepõem o os requadros sangrados para enfatizar a função
de metaquadrinho, pois os requadros ao centro detalham a ação representada na imagem de
maior destaque, o que nesse caso é um detalhe da cena, e não uma visão geral.
80

Figura 44 – Daytripper, n.5, p.11.

Outro elemento estético inovador em Daytripper é a composição da primeira página


de cada capítulo. A novela não possui uma página de destaque que difere das demais, elas
podem ser compostas apenas por simples requadros, pela ausência de um requadro, por um
metaquadrinho ou por uma requadro sangrado (Figura 45). Um elemento característico de
cada capítulo é o texto do título, que contém sempre um número que indica a idade do
personagem Brás, e o número do capítulo. Essas informações nem sempre aparecem na
primeira página do capítulo (Figura 46), podem aparecer na segunda, na terceira, quarta,
quinta ou, até mesmo, na última página, como é no caso do nono capítulo, cujo título é o
único que não indica a idade do personagem e é denominado “Sonho”.
81

Figura 45 – Daytripper, n.1, p.1. Figura 46 – Daytripper, n.7, p.1.

Toda narrativa gráfica sequencial utiliza diversos enquadramentos da imagem para


narrar sua história. Fábio e Gabriel variam na utilização de diversos enquadramentos ao
representarem uma cena de forma clara e objetiva. Esses enquadramentos são descritos por
Nadilson Manoel da Silva (2002) como planos. A sequência, por exemplo, segue a estrutura
cinematográfica, o plano total mostra o personagem por inteiro e o ambiente que ele está
inserido (Figura 47, primeiro requadro); o primeiro plano, mostra o personagem a partir dos
ombros (Figura 47, segundo requadro); o plano médio, mostra o personagem, ou um objeto,
da cintura para cima, ou pela metade (Figura 47, terceiro requadro); e, por fim, o plano
detalhe, mostra um detalhe do personagem ou do objeto (Figura 47, quarto requadro).
82

Figura 47 – Daytripper, n.3, p.13.

As sarjetas são responsáveis pela conclusão do que acontece entre um requadro e outro
nas histórias em quadrinhos. Na novela gráfica Daytripper, há o predomínio das sarjetas de ação-
pra-ação e de cena-pra-cena (Figura 48). A sarjeta de ação-pra-ação mostra a mudança de
movimento em uma mesma cena entre um requadro e outro, essa continuidade do movimento
geralmente acontece em uma mesma página. Enquanto, a sarjeta de cena-pra-cena mostra a
mudança de uma cena para outra, essa mudança geralmente acontece entre uma página e outra.
83

Figura 48 – Daytripper, n.2, p.5-6.

Além dos enquadramentos, a perspectiva também ajuda na narrativa gráfica


sequencial. Os autores mesclam o uso da perspectiva alta, que coloca o leitor para fora da
cena, em que ele presencia a ação de cima (Figura 49), e da perspectiva baixa, que coloca o
leitor dentro da cena, e faz com que presencie a ação mais próxima dos personagens (Figura
50).

Figura 49 – Daytripper, n.1, p.13. Figura 50 – Daytripper, n.1, p.13.


84

As histórias em quadrinhos representam o movimento diferentemente de outras


narrativas gráficas sequenciais. Por utilizar imagens estáticas que não simulam o movimento,
como no caso do cinema, as histórias em quadrinhos utilizam linhas que indicam o
movimento de um personagem ou de um objeto em uma cena. Como um recurso inovador dos
autores em Daytripper, não são inseridos novos elementos estéticos que representam o
movimento. Eles estilizam personagens, objetos e cenários que já fazem parte da ação. Na
Figura 51, vê-se linhas de movimento no asfalto, como marcas de pneus; trajetórias da fumaça
lançada pelos carros e da luz dos automóveis, como os efeitos provocados por lentes
fotográficas comuns ao registrar um objeto em movimento; gotas de suor espirrando dos
cabelos de um personagem que está correndo, entre outros. Quanto maior a intensidade do
movimento, mais evidente é a estilização dos personagens, objetos ou cenários representados.

Figura 51 – Daytripper, n.3, p.21.

Seguindo um padrão utilizado por diversas histórias em quadrinhos, Daytripper utiliza


a combinação interdependente entre textos e imagens, ou seja, a imagem mostra uma
85

mensagem, o texto mostra outra mensagem e as duas informações juntas acabam por criar
uma terceira mensagem (Figura 52). Por exemplo, ao final do capítulo cinco, o personagem
Brás narra uma de suas mortes quando estava com 11 anos. Após voltar do sítio dos avós, ele
morre eletrocutado enquanto brinca com uma pipa nas ruas da cidade de São Paulo.

Figura 52 – Daytripper, n.5, p.22.

“And with light, the little miracle was gone.” (E, com a luz, o milagrinho se foi.)
O letreiramento utilizado nas histórias em quadrinhos precisam ser feitos a mão pelo
artista para que os diferentes formatos das letras acrescentem personalidade aos narradores e
personagens da história narrada. Daytripper é formada por três tipos de letreiramento. O
primeiro é quando as palavras do narrador no início do primeiro capítulo e no encerramento
de todos os capítulos são como um obituário, com exceção dos capítulos 9 e 10 que finalizam
como um livro e como uma carta, respectivamente. Nessa narração são utilizadas fontes em
caixa alta e caixa baixa (Figura 53).

Figura 53 – Daytripper, n.8, p.22.


86

“His words will live forever in his books, in the memory of his readers and in the hearts of his
wife, Ana, and their son, Miguel.” (Suas palavras vão viver para sempre em seus livros, na
memória de seus leitores e nos corações de sua esposa, Ana, e do filho deles, Miguel.)
A segundo e o terceiro tipo de letreiramento, é quando a história é narrada normalmente e
quando os personagens estão dialogando. Nesses dois casos, o texto é utilizado sempre em
caixa alta. A separação entre narração e personagens é feita principalmente pela utilização de
caixa ou balões de texto (Figura 54).

Figura 54 – Daytripper, n.8, p.3.

“Brás Always insisted on waking up early to enjoy breakfast with Ana and Miguel
before they would leave the house.” (Brás sempre fez questão de acordar cedo para tomar café
da manhã com Ana e Miguel antes deles saírem.)
“We were at home, but then it was a cave full of bats… and a big monster appeared
with eight hairy arms and six eyes on fire.” (A gente tava em casa, mas era uma caverna cheia
de morcegos... e apareceu um monstro bem grandão com oito braços peludos e seis olhos de
fogo.)
Segundo o conceito de art comics de Douglas Wolk (2008), os elementos estéticos de
uma narrativa gráfica sequencial carregam as expressões de sentimentos do autor, ou seja,
tanto os desenhos quanto as cores, também fazem dos artistas, autores de uma narrativa
gráfica não escrita por eles. Em Daytripper as cores foram feitas pelo colorista Dave Stewart
a convite de Fábio e Gabriel, que não somente o conheciam, como já haviam trabalhado com
ele em outros projetos.
87

Fábio: Escolhemos o Dave, com quem já havíamos trabalhado em outros projetos.


Gostamos muito do trabalho dele e acreditamos que ele se transforma em cada
história para encontrar uma forma de colorir que combine com os diferentes artistas
e com as diferentes temáticas. Mandamos muitas fotos e comentários preliminares
para cada capítulo para ajudá-lo a entender o que a história precisava, e mandamos
algumas aquarelas preliminares que fizemos, ele absorveu tudo isso e o resultado
final não poderia ter ficado melhor.

Dave Stewart pode ser considerado um dos autores dessa novela gráfica ao conseguir
transmitir emoções mesclando cores planas e cores mais expressivas. Apesar de a maior parte
de Daytripper ser colorida com cores planas, em tons vibrantes e pastel, para que a
representação se assemelhe à realidade dos leitores (Figura 55), em algumas páginas foram
utilizadas cores mais expressivas, o que atribui uma característica inovadora a essa arte para
expressar o sentimento que o artista deseja, livre do compromisso de representar a realidade
dos leitores (Figura 56).

Figura 55 – Daytripper, n.8, p.7. Figura 56 – Daytripper, n.2, p.1.

Outro aspecto marcante no trabalho de Dave Stewart é a utilização de cores quentes


para determinar o foco da cena (Figura 57). No primeiro quadro, o foco está no personagem
Brás e nas telas de mulheres, o tema da exposição. No terceiro quadro, o foco determinado
pelas cores quentes sai do personagem Brás, que continua observando a pintura, e se dirige
para seu amigo Jorge que se aproxima, olhando para ele, carregando duas taças.
88

Figura 57 – Daytripper, n.3, p.10.

Definido por Scott McCloud (2005) como vocabulário, a arte de Fábio e Gabriel em
Daytripper é praticamente toda no plano das figuras, um estilo que valoriza a expressão a ser
transmitida (Figura 58). Em alguns poucos momentos, a arte passa para o plano icônico, pois
intenta valorizar mais a expressão de ideias e, para isso, distancia-se um pouco da expressão
figurativa (Figura 59).
89

Figura 58 – Daytripper, n.5, p.1. Figura 59 – Daytripper, n.5, p.1.

Fábio e Gabriel não escondem sua preferência pela arte em preto e branco, característica de
artistas experimentais, pois ela permite maior expressividade por parte dos artistas.
Gabriel: Estamos sempre sendo influenciados por desenhistas e escritores novos.
Gostamos muito da arte do Will Eisner, Jeff Smith, Frank Miller, Mike Mignola,
pois todos eles usam muito bem o desenho em preto e branco. Nos últimos anos, nos
atraiu o trabalho do Eduardo Risso, Frederik Peeters, Sergio Toppi, Gipi. E nossa
maior influência continua sendo o Laerte.

É natural que, mesmo tendo as mesmas influências artísticas, os autores de Daytripper


desenvolvam diferentes traços para expressar suas artes, pois cada um coloca um pouco de si
naquilo que desenvolve. Para não haver diferença na arte de Daytripper, Fábio desenhou
todos os capítulos (Figura 60) com exceção do capítulo 9.
Fábio: Eu desenho todos os capítulos, para que exista uma unidade visual durante na
história inteira. Ficar tentando descobrir quem desenhou qual parte pode distrair o
leitor da história, e esse não era o nosso intuito. Os únicos momentos em que o Bá
desenhou páginas são os momentos em que o personagem sonha. Somente essa
mudança entre sonho e realidade nos possibilitou variar o estilo e,
conseqüentemente, o artista.

Gabriel Bá ficou responsável pela arte do capítulo 9 (Figura 61), que retrata um sonho
do personagem Brás, e pelas capas de todas as edições, que, assim como no sonho, permitem
uma arte diferente.
Gabriel: As capas (que, na edição encadernada, são as ilustrações que dividem os
capítulos) também foram feitas pelo mim, pois estão deslocadas da narrativa,
podendo ter outro estilo.
90

Figura 60 – Daytripper, n.9, p.9. Figura 61 – Daytripper, n.1, p.10.

4.2.3 Inovações de conteúdo

Daytripper traz uma série de inovações narrativas e estéticas, mas inova


principalmente no conteúdo da história criada. Narrada em dez capítulos de forma não linear,
cada um deles aborda um dos anseios vividos pelo personagem em uma fase de sua vida. A
insatisfação com o trabalho de escritor de obituários para um jornal, o desejo e o peso de fazer
sucesso como escritor de romances, o relacionamento complicado com o pai, que é um
escritor famoso, a paixão, a desilusão amorosa, o amor, o nascimento do filho, a morte do pai,
a família, a amizade, ser um escritor famoso, acompanhar o crescimento do filho, essas são
todas as aflições que o personagem principal Brás sofre durante a narrativa (Figura 62),
características de um personagem com uma identidade pós-moderna e de fácil identificação
por parte do público.
91

Figura 62 – Daytripper, n.9, p.22.

Daytripper traz diversas características de um trabalho autoral, assim como a Nouvelle


Vague, a narrativa é pessoal e retrata a vida cotidiana de forma dramática (Figura 63).
Situações do cotidiano, como a que o personagem Brás está passando no caixa de uma
padaria, olha para traz e se apaixona por uma moça que está fazendo compras no mesmo
local. Nesse tipo de história, o herói sai de cena para dar entrada a um personagem mais
humano, com qualidades e defeitos. Isso provoca maior reflexão por parte dos leitores a
respeito do que é narrado, está mais próximo do dia a dia das pessoas.
Gabriel: Os elementos que tratamos durante a história são coisas que acreditamos
ser importantes na vida das pessoas, mas que normalmente passamos despercebidos
por elas. São coisas simples, que podem acontecer com qualquer pessoa. Justamente
por não serem extraordinárias, podemos não dar muita atenção a elas, mas quando
colocamos o foco em cima delas, as pessoas podem se identificar e, quem sabe,
refletir sobre suas próprias vidas.
92

Figura 63 – Daytripper, n.3, p.18.

Todos os acontecimentos e as aflições do personagem giram em torno de uma poética


sobre a vida e a morte (Figura 64). Ao final de cada capítulo, ou seja, nos diversos momentos
de sua vida, Brás narra a sua própria morte. Como um exercício de reflexão sobre os
momentos cruciais de sua vida, ele coloca em discussão sua forma de viver.
93

Figura 64 – Daytripper, n.4, p.9.

Apesar de Daytripper ter sido lançada originalmente nos Estados Unidos, foi feita por
brasileiros com personagens e cenários brasileiros. Esses aspectos revelam um espaço para o
desenvolvimento de uma cultura híbrida que engloba não apenas a cultura, mas também a
língua.
Fábio: Nosso estilo de escrever é muito despretensioso. Na maioria das vezes, nosso
texto não é rebuscado, não usa palavras difíceis. Tentamos escrever de forma clara,
mas sem exagero de gírias, e fizemos isso em inglês com Daytripper e, durante a
tradução, buscamos manter o nosso estilo de escrever também em Português.

Mesmo durante a produção dos textos em inglês, que aconteceu antes da tradução para
o português, Daytripper revela, em meio a toda a hibridação cultural e de línguas existentes,
que dois autores que dominam uma língua estrangeira e escrevem nessa língua, apresentam
um texto que já nasce como tradução, afinal, o posicionamento deles será sempre o de um
estrangeiro (Figura 65).
94

Figura 65 – Daytripper, n.5, p.2.

“His cousins, on the other hand, didn’t see it to be quite as super.” (Os primos dele,
por outro lado, não acham tão superassim.)
“No way.” (Impossível)
“You’re making it up.” (Cê ta inventando.)
“No, I’m not.” (Não tô, não.)
A cultura brasileira representada por Fábio Moon e Gabriel Bá em Daytripper também
traz elementos de uma cultura cada vez mais híbrida. Segundo os conceitos sobre o local da
cultura, de Homi K. Bhabha (2010), a representação da cultura brasileira feita pelos autores é
pessoal, ou seja, traz a experiência de vida deles, além de incorporar elementos culturais de
diferentes lugares e mesclar culturas do presente e do passado.
Os traços de autoralidade de Fábio e Gabriel estão presentes na arte da novela toda e
também são representados pelo personagem Brás. Assim como os autores, Brás possui grande
afinidade com a arte, essa afinidade faz parte da experiência de vida dos autores e acrescenta
um valor peculiar à história. Os locais frequentados pelos personagens são recortes dos locais
e das situações vividas e percebidas pelos autores para tornar possível uma narrativa atraente
e inovadora.
Fábio: O que acontece conosco nos traz um certo sentimento. É esse sentimento que
tentamos reproduzir na história e criamos situações para os personagens, que são
diferentes das nossas vidas, para que esse sentimento seja transmitido.
95

Em Daytripper, Brás vive em meio a uma cultura facilmente reconhecida pelo público
brasileiro, mais especificamente pelo público paulista, pois a maior parte da história se passa
na cidade de São Paulo. O dia a dia de Brás, sua ida ao trabalho, o café com o amigo, a
arquitetura ao seu redor, a visita à casa de avós no interior, as brincadeiras de criança, como
soltar pipa, o velório, as viagens, as festas religiosas etc. Todas essas ações são comuns à
qualquer tipo de pessoa, na maior parte do mundo, mas o jeito de fazer, é culturalmente
paulista. A manifestação cultural que ilustra de forma mais completa essa análise é a festa de
Iemanjá da qual Brás participa em sua viagem a Salvador (Figuras 66 e 67).

Figura 66 – Daytripper, n.2, p.17.

A representação da festa de Iemanjá é feita pela óptica de um turista. Brás é paulista e


relata os acontecimentos, chama a atenção para os detalhes de maneira diferente caso ele fosse
baiano ou estrangeiro. As religiões de origem africana praticadas no Brasil sincretizam
crenças de religiões tradicionais africanas com religiões cristãs (CANEVACCI, 1996). Muitas
das práticas atuais são criadas ou recriadas no presente como se fossem tradições dos
96

antepassados para se tornar verdadeiras e/ou ser transmitidas para gerações futuras. Essa
cultura, híbrida por natureza, é desenvolvida a partir da hibridação entre o personagem Brás e
os autores, entre São Paulo e Salvador, entre o passado e o presente.
Um dos elementos inovadores que Daytripper traz são aqueles que formam o conteúdo
da narrativa, pois eles caracterizam os aspectos de uma arte autoral, na qual o discurso é
formado pela pluralidade de egos dos autores e do locutor fictício (FOUCAULT, 2006), o que
cria condições para o desenvolvimento de uma arte experimental, para novas possibilidades
de organização para aquele discurso específico (ECO, 2008). De outro modo, os elementos
que compõem a estética e a narrativa também permitem inovações, porém mais discretas.
Afinal, o público precisa estar acostumado com alguns modelos narrativos que facilite a sua
compreensão para um produto cultural seja democratizado (CANCLINI, 2011). É preciso
atender à expectativa do público para atingir grandes números de exemplares vendidos e se
obter algum lucro, justificar sua publicação por uma das maiores editoras de história em
quadrinhos do mundo.

Figura 67 – Daytripper, n.2, p.19.


97

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A novela gráfica Daytripper dos autores Fábio Moon e Gabriel Bá apresenta muitas
inovações no âmbito da estética e principalmente no da narrativa, e muitas outras inovações
ficam por conta do conteúdo da narrativa, ou seja, nos elementos culturais expressos a partir
dos traços de autoralidade.
As inovações no âmbito da narrativa estão presentes na passagem do tempo de um
capítulo para o outro, que acontece de forma não linear para valorizar os anseios vividos pelo
personagem Brás, principal foco da narrativa, que também apresenta características
inovadoras, pois não apenas conduz a história, como também carrega em sua construção todo
o conteúdo narrativo.
No âmbito da estética, as inovações são compostas pela utilização do requadro de
destaque em cada cena, que em muitos casos mescla as características da amplitude do
cenário por meio do requadro sangrado, com a ausência da linha do requadro, somada à
sobreposição de requadros menores como condutores de uma ação, da mesma forma que o
metaquadrinho. Outra inovação estética é a discrição e simplicidade na criação da primeira
página, que não recebe destaque diferenciado das demais páginas, apenas a identificação
discreta do capítulo e do título que não aparece necessariamente na primeira página, essas
informações podem estar na segunda, terceira, quarta, quinta, ou até mesmo na última página
do capítulo. O movimento também possui características inovadoras em Daytripper, pois os
autores não acrescentam novos elementos para representá-lo, eles estilizam os personagens,
objetos e cenários utilizando variações com efeitos de fotografia ou com estudos
desenvolvidos pelas artes. Em alguns breves momentos da narrativa, Fábio Moon e Gabriel
Bá utilizam traços icônicos, esse tipo de arte possui características experimentais, pois inovam
na forma de expressão do artista. O colorista Dave Stewart, outro artista que também
contribuiu para a expressividade de Daytripper, foi escolhido pelos autores por sua
capacidade de se adaptar ao estilo de cada artista e, assim, compor uma arte uniforme e
variada. As inovações de Dave Stewart nesta publicação estão presentes nas poucas páginas
em que pôde utilizar coloração mais expressiva e nas constantes aplicações de foco por meio
da utilização de cores quentes contrapostas às frias e neutras.
Os outros aspectos estéticos e narrativos de Daytripper são comerciais, pois são
comumente encontrados em outras histórias em quadrinhos, teorizados como modelos para
uma narrativa em arte sequencial (McCLOUD, 2005; EISNER, 2010). Os modelos narrativos
98

de focalização oniexistente, os espaços representados na narrativa, a passagem do tempo de


um requadro para o outro e a inserção de acontecimentos reais, o papel do personagem como
condutor da narrativa, além dos modelos estéticos de requadro sangrado, metaquadrinho ou
ausência de requadro em quase todas as páginas, os planos de enquadramentos utilizados na
linguagem cinematográfica, as cenas em perspectiva alta ou baixa, a utilização de elementos
visuais para representar o movimento, a combinação interdependente entre texto e imagem, o
letreiramento diferenciado para diferentes narrativas e personagens da história, e a maior parte
da arte no plano das figuras e em cores planas são facilmente reconhecidos e interpretados
pelo público exatamente pela quantidade de vezes que ele foi exposto a essas estruturas
narrativas.
As principais editoras de histórias em quadrinhos estão investindo nas produções
mainstream (DUNCAN; SMITH, 2009), ou seja, na produção profissional de quadrinhos
underground ou independente, que possam trazer algum lucro à empresa. Chamada de novela
gráfica, a história em quadrinhos independente, produzida por uma grande editora, é a que
mais permite inovações. Produzida principalmente para o público adulto, o experimentalismo
das novelas gráficas serve para reciclar as linguagens dos quadrinhos, que como qualquer
outra linguagem de um produto cultural da mídia, se torna saturada, e pequenas inovações
começam a ser exigidas pelo público. A novela gráfica Daytripper é uma história
independente, produzida por uma das maiores editoras de história em quadrinhos do mundo, a
DC Comics, é uma produção comercial de um produto independente, pois é uma publicação
que comporta tanto inovações quanto modelos clássicos das linguagens estéticas e narrativas.
Muitas das inovações da novela gráfica Daytripper estão no âmbito do conteúdo da
narrativa. Da mesma forma que o cinema autoral francês, essa é uma publicação autoral
inovadora, afinal, por meio de uma narrativa pessoal, retrata a vida cotidiana e une as
experiências e histórias de vida dos autores aos elementos ficcionais (ROCHA, 2006).
Portanto, o resultado será sempre uma representação diferente, nunca antes produzido. O
personagem Brás de Oliva Domingos, de Daytripper, é fictício, afinal, foi criado pelos autores
com uma personalidade, com amigos e familiares, com uma profissão, vivendo em um
determinado lugar, e agindo de modo específico no desenvolvimento da proposta da narrativa.
Mas é impossível negar que a essência do personagem não contenha a experiência de vida de
Fábio Moon e Gabriel Bá. Brás é uma fusão de elementos fictícios com traços históricos e
culturais dos autores, como se pode notar, a afinidade do personagem com a arte e a sua
profissão de escritor está ligada ao fato de os autores também serem escritores, de quadrinhos,
e possuírem formação acadêmica em artes plásticas. Os espaços frequentados pelo
99

personagem são uma mescla de lugares conhecidos e frequentados pelos autores, como o
centro cultural b_arco, a arquitetura das construções e as cidades por onde o personagem
passa, entre outros elementos.
Daytripper é uma publicação híbrida e sincrética por natureza. Como história em
quadrinhos, é constituída por elementos híbridos originados da união entre texto e imagem
(EISNER, 2010); como novela gráfica e produção mainstream, é o resultado do sincretismo
de uma arte experimental e autoral com modelos preestabelecidos de um produto da indústria
cultural, nesse caso as qualidades de uma, não altera ou anula as qualidades da outra
(CANEVACCI, 1996). Outros dois aspectos de hibridação estão na inserção da cultura
brasileira representada por autores brasileiros em um produto da indústria cultural criado no
Brasil, mas produzido e comercializado originalmente nos Estados Unidos, e na abordagem
de temas característicos de uma sociedade pós-moderna e globalizada: a formação da
identidade cultural do personagem Brás e seus anseios quanto à relação entre pai e filho, nas
questões profissionais, amorosas, de amizade e com relação ao nascimento e à morte.
Por fim, a novela gráfica Daytripper é uma criação independente, produzida
profissionalmente pela editora DC Comics, sucesso absoluto de vendas, aclamada pelo
público e pela crítica. Possui características estéticas e narrativas experimentais e comerciais,
fato que justifica ser uma criação independente produzida por uma das maiores editoras de
história em quadrinhos do mundo. Como é uma publicação com inovações principalmente no
âmbito do conteúdo narrativo, apresenta fortes traços de autoralidade e hibridação cultural.
100

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ANEXO
Entrevista com Fábio Moon e Gabriel Bá, autores de Daytripper

Entrevista com os artistas Fábio Moon e Gabriel Bá para o desenvolvimento da


dissertação de mestrado: “Representação cultural e autoralidade de Fábio Moon e Gabriel Bá:
uma análise de Daytripper” realizada pelo aluno Marcel Luiz Tomé do curso de Comunicação
Social da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.
As questões realizadas com os autores referem-se as suas experiências culturais e
autorais presentes na minissérie Daytripper, na relação com a editora Vertigo e com o
mercado de quadrinhos nacional e internacional e na formação e vivência dos autores:

1. Os textos e diálogos da edição brasileira de Daytripper são muito próximos da forma


como nós, brasileiros, falamos e pensamos no dia a dia. Em um dos eventos de divulgação da
minissérie Daytripper, vocês disseram que os textos e diálogos foram pensados em inglês,
mas eu percebo uma semelhança muito grande na estrutura dos textos das duas edições. Vocês
acreditam que o público norte-americano percebe a mesma naturalidade dos textos como os
brasileiros percebem?

Fábio: Acho que sim. Nosso estilo de escrever é muito despretensioso. Na maioria das vezes,
nosso texto não é rebuscado, não usa palavras difíceis. Tentamos escrever de forma clara, mas
sem exagero de gírias, e fizemos isso em inglês com Daytripper e, durante a tradução,
buscamos manter o nosso estilo de escrever também em Português.

2. A arte da minissérie Daytripper foi desenvolvida por vocês dois, e é natural que exista
diferenças entre a arte de cada um, mas a história favorece esse tipo de situação, pois cada
capítulo retrata um período da vida dos personagens e a diferença entre os desenhos pode ser
justificada pelo tempo não ser sempre o mesmo. Quais foram os cuidados que vocês tiveram
na hora de definir as páginas que cada um desenhou?

Fábio: Eu desenho todos os capítulos, para que exista uma unidade visual durante a história
inteira. Ficar tentando descobrir quem desenhou qual parte pode distrair o leitor da história, e
esse não era o nosso intuito. Os únicos momentos em que o Bá desenhou páginas são os
momentos em que o personagem sonha. Somente essa mudança entre sonho e realidade nos
possibilitou variar o estilo e, conseqüentemente, o artista.
Gabriel: As capas (que, na edição encadernada, são as ilustrações que dividem os capítulos)
também foram feitas pelo mim, pois estão deslocadas da narrativa, podendo ter outro estilo.

3. É natural que a arte de vocês tenha sido e continue sendo influenciada por muitos
outros artistas. Percebo que seus trabalhos atuais seguem o mesmo estilo da época dos
fanzines, desconsiderando o aperfeiçoamento natural que ocorre. Quais foram as principais
influências artísticas do começo de carreira e quais são as principais influências artísticas
atualmente?

Gabriel: Estamos sempre sendo influenciados por desenhistas e escritores novos. Gostamos
muito da arte do Will Eisner, Jeff Smith, Frank Miller, Mike Mignola, pois todos eles usam
muito bem o desenho em preto e branco. Nos últimos anos, nos atraiu o trabalho do Eduardo
Risso, Frederik Peeters, Sergio Toppi, Gipi. E nossa maior influência continua sendo o Laerte.

4. Uma das características do trabalho autoral é a experiência de vida dos autores


presente em suas obras. No capítulo 3 da minissérie Daytripper, Brás visita uma exposição no
espaço cultural b_arco. No dia 27/11/2011, em uma divulgação de Daytripper realizada no
espaço cultural b_arco, vocês disseram que frequentavam o local, pois moram naquela região
e sempre se interessaram por diversos tipos de arte. Lugares como a casa do personagem Brás,
a praça em que ele lê o jornal, o local onde ele toma café e o bar onde ele compra cigarros, a
padaria onde ele conhece a esposa, o local do velório e do cemitério foram baseados em
lugares específicos da vivência de vocês? Existe alguma ligação em suas vidas com o Teatro
Municipal, o hospital Santa Catarina, os locais retratados em Salvador e no Rio de Janeiro,
como os acontecimentos no sítio, na escola e na festa do dia de Iemanjá?

Gabriel: O Daytripper não é um cartão postal e por essa razão não precisamos ficar
nomeando e situando todos os locais que aparecem na história. Mas, muitas vezes, para
conseguir uma veracidade na história, um sentimento autêntico, precisamos buscar locais reais
ou nos inspirar em situações reais para criar eventos fictícios. Os elementos reais são
costurados para contar melhor a história, que é uma ficção.
Fábio: Quando você coloca um lugar real na história e o leitor reconhece esse lugar, ele é
transportado para dentro da história.
5. O artista Schlomo Lerner, o local Acemira, a montanha que abre o capítulo sobre a
viagem para Salvador e o prédio em que puderam avistar a fumaça do acidente de Congonhas
são reais ou foram criados com algum significado específico?

Gabriel: Em uma história de ficção, não é importante o que existe e o que foi inventado. Se
fizermos um bom trabalho, essa dúvida sempre vai surgir, mas a resposta não é importante. Se
o leitor ficar curioso a ponto de procurar saber mais sobre os lugares, personagens e
acontecimentos da história, melhor ainda. A idéia é enfeitiçar o leitor e sua imaginação.
Fábio: Schlomo e Acemira são inventados, são misturas de várias pessoas, lugares e situações
que queríamos para a história, a montanha existe na Chapada Diamantina, na Bahia, e o
prédio, por fora, é o Edifício Martinelli (por dentro eu inventei).
Gabriel: Nem todo leitor precisa conhecer estes lugares para aproveitar a história. Tem gente
no Brasil que nunca foi pra Chapada da Diamantina, ou conhece o Edifício Martinelli. Ao
redor do mundo, então, muita gente nunca veio ao Brasil. Mas isso não atrapalha a leitura da
história. Pra quem conhece esses lugares, dá uma camada nova de leitura.

6. A água da praia foi retratada como muito limpa e cristalina, vocês se basearam em
alguma praia específica ou refere-se apenas a algum significado estético?

Gabriel: Qualquer pessoa que conhece algumas praias do litoral brasileiro sabe que temos
praias lindíssimas. E quem não conhece, ao menos sabe da fama da beleza natural do Brasil.
Fábio: A praia em Salvador existe e é daquele jeito mesmo.

7. O acidente de Congonhas afetou a vida de vocês diretamente?

Fábio: Nós viajamos muito e é impossível não pensar naquele evento todas as vezes que
estamos no Aeroporto de Congonhas, decolando ou pousando, ou apenas buscando algum
amigo. Isso deve acontecer com milhares de pessoas todos os dias.

8. A ideia do trem que vai para o litoral foi teve como base algo já existente?
Fábio: Não, foi somente a minha visão otimista de um futuro com trens ligando São Paulo ao
litoral.
9. Alguns desses locais citados nas perguntas 4, 5, 6, 7 e 8 foram desenhados com base
em alguma imagem anterior, fotografia, desenho, pintura, filme ou algo parecido? Se sim, é
possível ver essas imagens?

Gabriel: Usamos muitas imagens diferentes para montar nossa história, nem sempre é um só
lugar, mas uma colagem de locais diferentes. O importante, mais uma vez, é conseguir uma
sensação de um local que exista, que o leitor consiga imaginar, se reconheça.

10. A história narra vários conflitos que uma pessoa pode ter nas diversas etapas de sua
vida. O personagem Brás encara questões como: relação entre pais e filhos sob os dois pontos
de vista, problemas familiares, viagens de lazer e trabalho, arte como expressão da vida,
sucesso e fracasso no amor, morte e nascimento, infância, desastres que marcam suas vidas,
loucura diante de algo inexplicável, sucesso e frustração profissional, envelhecimento.
Algumas dessas questões foram baseadas diretamente na experiência de vida de vocês ou de
algum conhecido? Caso a resposta seja positiva, com quem foi e o que aconteceu?

Gabriel: Os elementos que tratamos durante a história são coisas que acreditamos ser
importantes na vida das pessoas, mas que normalmente passamos despercebidos por elas. São
coisas simples, que podem acontecer com qualquer pessoa. Justamente por não serem
extraordinárias, podemos não dar muita atenção a elas, mas quando colocamos o foco em
cima delas, as pessoas podem se identificar e, quem sabe, refletir sobre suas próprias vidas.
Fábio: O que acontece conosco nos traz um certo sentimento. é esse sentimento que tentamos
reproduzir na história e criamos situações para os personagens, que são diferentes das nossas
vidas, para que esse sentimento seja transmitido.

11. Entendo que o nome do personagem principal, Brás de Oliva Domingos faz
referências à cultura brasileira. A primeira semelhança é com o nome do país de origem do
personagem e o local onde a história se desenvolve, o Brasil. Outra característica marcante é o
fato de o personagem Brás de Oliva Domingos ser escritor de obituários para um jornal,
portanto, impossível não relacionar este fato com o personagem Brás Cubas de Machado de
Assis. No romance Memórias póstumas de Brás Cubas o personagem está morto e narra sua
biografia, ou seja, existe uma semelhança entre o nome dos personagens e o fato de os dois
escreverem sobre a morte. Esta observação está correta? Existe mais alguma relação entre o
nome com algo que não foi mencionado?
Fábio: A relação maior é com o Brás Cubas, pois existe essa relação entre o questionamento
da vida e da morte em ambas as histórias, e porque achamos que para um escritor conceituado
como o pai do Brás, dar ao filho um nome de personagem clássico da literatura brasileira
parece uma boa idéia. A relação com a história se passar no Brasil, se existe, existiu quando a
primeira criança foi nomeada de Brás, e talvez tenha existido quando Machado nomeou seu
personagem, mas não foi por isso que escolhemos esse nome.

12. Como foi a escolha do colorista Dave Stewart? A escolha partiu de vocês ou da
editora? Como foi o desenvolvimento do trabalho com esse artista? Em muitas cenas o foco
principal é atribuído às cores quentes ou vivas em contraponto às cores frias ou opacas do
restante das imagens. Essa característica realmente existe? Se sim, é uma característica de
vocês ou do Stewart?

Fábio: Escolhemos o Dave, com quem já havíamos trabalhado em outros projetos. Gostamos
muito do trabalho dele e acreditamos que ele se transforma em cada história para encontrar
uma forma de colorir que combine com os diferentes artistas e com as diferentes temáticas.
Mandamos muitas fotos e comentários preliminares para cada capítulo para ajudá-lo a
entender o que a história precisava, e mandamos algumas aquarelas preliminares que fizemos,
ele absorveu tudo isso e o resultado final não poderia ter ficado melhor.

13. A minissérie Daytripper foi editada pela editora Vertigo. Como aconteceu o convite
da editora? Houve alguma imposição ou a editora deu carta branca para que vocês
produzissem com total liberdade?

Gabriel: Depois de vários anos mostrando trabalho para vários editores no mercado
americano e publicando aos poucos nossas histórias por lá, um destes editores, o Bob
Schreck, foi para a Vertigo, um lugar onde ele sabia que poderia publicar o tipo de histórias
que nós contamos. Foi então que ele pediu que mandássemos idéias e eles gostaram da idéia
que resultou no Daytripper.
Fábio: Tivemos total liberdade pra criar idéias e, uma vez escolhida uma, desenvolvemos
totalmente a história que queríamos contar. Fomos convidados a fazer o nosso tipo de história,
não algo que se encaixasse nos moldes da Vertigo.
14. O tratamento que vocês recebem das editoras brasileiras atualmente é diferente do
tratamento recebido no começo da carreira de vocês? Se sim, o que motivou essa mudança de
atitude?

Fábio: No início da nossa carreira, as editoras brasileiras não estavam mais publicando
material nacional autoral, então começamos nos auto-publicando. Quando o mercado nacional
começou a ressurgir e as editoras voltaram a se interessar por quadrinhos, apresentávamos
projetos prontos, inteiramente desenhados. Só isso mudou, pois hoje em dia a conversa com
as editoras acontece muitas vezes antes de começar a desenhar.
Gabriel: As editoras brasileiras mudaram um pouco desde que começamos a publicar aqui no
Brasil, mas não somos tratados de maneira diferente. Hoje recebemos muitos convites para
projetos diferentes, mas isso já acontece há vários anos. Continuamos fazendo somente os
nossos próprios projetos, ou aqueles que acreditamos ter algo a acrescentar à nossa carreira,
algum desafio. Isso sempre foi assim, tanto aqui quanto no exterior.

15. Que retorno vocês tiveram do público norte-americano e do brasileiro com a


minissérie Daytripper?

Gabriel: Tivemos o melhor retorno possível do público, em todos os lugares. Não teve um
público que gostou mais ou menos, tivemos a mesma receptividade em todos os países onde o
livro foi publicado.
Fábio: O público brasileiro reconhece alguns lugares, a camiseta da Gaviões da Fiel no
primeiro capítulo, estes pequenos detalhes, e isso teve sempre uma resposta positiva.

16. A quantidade de viagens que vocês fazem é a principal responsável por colocar os
trabalhos de vocês em evidência? Que outros fatores consideram importantes para alcançar
toda essa visibilidade?

Gabriel: As histórias são as responsáveis pela repercussão do nosso trabalho. Alguns prêmios
também ajudam a colocar o trabalho em foco. Sem os trabalhos, não haveria prêmios nem
convites para viagens.
17. Quando vocês estão desenvolvendo uma história em quadrinhos, existe algum tipo de
preocupação se o que está sendo feito é comercial o suficiente para ser produzido por uma
editora? E quais são os principais elementos comerciais a serem considerados?

Fábio: Não pensamos no lado comercial das nossas histórias, e sim na sua relevância.
Acredito que, se você tem algo a dizer que acredita valer a pena, deve tentar de todas as
maneiras possíveis colocar isso para fora, aos olhos do público. Se o trabalho for o melhor
que você pode fazer, e for relevante, chamará atenção e, se tudo der certo, terá algum retorno
financeiro como conseqüência, nunca como meta. Se não, tente novamente no próximo
projeto, na próxima história. Quando pensamos nas editoras, já procuramos editoras que
tenham ao menos uma linha editorial que nos interessa, que pareça aberta ao nosso tipo de
história. É importante conhecer as editoras com quem você pode ou quer trabalhar para não
fugir do perfil da editora e depois não entender porque seu projeto não foi aceito ou não foi
bem trabalhado.

Vocês autorizam a publicação total ou parcial dessas informações em dissertações


acadêmicas, artigos científicos, livros ou capítulos de livros por período indeterminado?

Fábio e Gabriel: Sim, desde que nos enviem ao menos duas copias de cada publicação.

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