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Reitor:
Prof. Dr. Marcos Sidnei Bassi
Agradeço ao Prof. Dr. Roberto Elísio dos Santos, por tornar possível essa pesquisa;
aos autores Fábio Moon e Gabriel Bá, por contribuírem para o enriquecimento das
informações coletadas; e à minha família, Marco Antonio Tomé, Fátima de Lourdes Mola
Tomé, Rafael Marcos Tomé e Karla Harue Saito, pela paciência e incentivo ao longo do
desenvolvimento deste trabalho.
RESUMO
The objective of this dissertation is to identify how the comic book artists Fábio Moon
and Gabriel Bá use in innovative esthetic and narrative aspects in graphic novel Daytripper,
by then, also realize traces of authorship and highlight aspects of cultural hybridization in
Daytripper. This research is qualitative and exploratory survey with level hybrid delineation
to be composed of literature review, documental research, interview and content analysis with
an emphasis on applied semiotics. Daytripper is an independent creation, professionally
produced by publisher DC Comics, absolute sales success and acclaimed by audiences and
critics. It has experimental and commercial of the aesthetic and narrative viewpoint and,
which justifies being independent creation produced by a leading publisher of comics in the
world. How is a publication mainly with innovations within the narrative content, exhibits
strong traces of authorship and cultural hybridization.
Keywords: 1. Comics. 2. Fábio Moon and Gabriel Bá. 3. Daytripper. 4. Authorship. 5. Hybrid
culture.
LISTA DE FIGURAS
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10
3. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS:
ASPECTOS ESTÉTICOS E NARRATIVOS........................................................... 38
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 97
ANEXO
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1. INTRODUÇÃO
A origem deste estudo está relacionada ao interesse que desenvolvi ao longo de minha
vida acadêmica sobre os temas autoralidade e histórias em quadrinhos. Sou graduado em
Comunicação Social, com habilitação em Produção Editorial, e, durante a graduação, tive
meu primeiro contato e fui influenciado por reflexões, principalmente de Michael Foucault,
sobre a função do autor e o papel que ele exerce sobre suas obras. A ideia que mais me seduz
a respeito da autoralidade, vem de um texto em que o filósofo francês diz que a função do
autor “[...] não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar
simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos
podem vir a ocupar” (FOUCAULT, 2006, p.280). Foi também na época da graduação que tive
o primeiro contato com histórias em quadrinhos que não pertencem ao circuito comercial, de
autores europeus como Enki Bilal, Pierre Christin, Warnauts-Raives, Miguelanxo Prado, entre
outros.
Minha paixão pelos quadrinhos começou durante a infância, enquanto estava sendo
alfabetizado; meus pais compravam muitas revistas de diversos personagens da Turma da
Mônica como forma de incentivo à leitura. A escolha da minha graduação é resultado da
paixão que desenvolvi pelas histórias em quadrinhos ao longo dos anos. Meu sonho era ser
editor das revistas dos personagens da editora Marvel Comics e DC Comics. Na época, as
revistas Batman, X-Men, Homem Aranha, Conan, entre outras, eram publicadas pela Editora
Abril. As histórias desses super-heróis me seduziram no início da adolescência; foi, também
nessa época, que passei de simples leitor e apreciador para colecionador de quadrinhos,
prática que continua até hoje.
Quando conheci o Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul e o professor-doutor Roberto Elísio dos Santos, orientador
deste projeto, tive a oportunidade de aprender e conhecer alguns autores brasileiros que
realizavam trabalhos autorais, como Fábio Moon e Gabriel Bá.
A história em quadrinhos Daytripper, produzida por esses quadrinistas, possui
características divergentes que a caracteriza como obra comercial e autoral ao mesmo tempo.
A obra foi publicada nos Estados Unidos pela editora DC Comics, entre 2009 e 2010, e
ganhou diversos prêmios como o Eisner Awards (EUA), de melhor série; o Harvey Awards
(EUA), de melhor história, e o Eagle Awards (UK), de história em quadrinhos e história
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favorita, em 2011, e ficou várias semanas em primeiro lugar na lista do New York Times de
quadrinhos mais vendidos nos Estados Unidos. Em 2012, recebeu o prêmio de melhor história
em quadrinhos no Festival Internacional de Ficção Científica Utopiales, na França; essa foi a
primeira vez que autores brasileiros e uma publicação editada originalmente nos Estados
Unidos conquistaram a categoria (ASSIS, 2012). No Brasil, eles receberam os prêmios:
Angelo Agostini, de melhor roteirista, em 2004; de melhor desenhista, em 2005 e 2006; de
HQ Mix de destaque internacional, em 2008; melhor revista independente, em 2006; melhor
blog de artista, em 2003, 2004, 2005 e 2006; melhor desenhista nacional, em 2004 e 2006; e
de desenhista revelação em 1999.
Para compreender esse produto cultural, o ponto de partida foi a indagação: Quais são
as inovações no âmbito da estética e da narrativa e como se manifesta a hibridação na novela
gráfica Daytripper?
Como objetivo principal, pretendeu-se identificar de que maneira esses quadrinistas
utilizaram de forma inovadora aspectos estéticos e narrativos nesse trabalho. E, como
objetivos secundários, perceber os traços de autoralidade presentes em Daytripper, além de
destacar aspectos de hibridação cultural.
Por se tratar de um fenômeno editorial que alcançou sucesso de vendas, Daytripper é,
ao mesmo tempo, um marco do quadrinho autoral brasileiro reconhecido pelo público e pela
crítica no exterior. É uma história em quadrinhos autoral, ou seja, pode ser classificada como
experimental, inovadora e pessoal. Fábio e Gabriel misturam elementos artísticos,
característicos de suas formações culturais, com questões diárias da vida moderna, como
realização profissional, relacionamentos familiares e amorosos, tempo com os filhos etc. A
narrativa também incorpora o tema central da história com uma reflexão sobre a vida e a
morte, essas e outras características básicas de uma história em quadrinhos autoral são
incompatíveis com as histórias em quadrinhos comerciais, pois estas podem ser classificadas
como uma história que segue um modelo testado e aprovado pelo público que está
acostumado com esse formato.
Esta pesquisa pretendeu contribuir, portanto, para o mapeamento dos elementos
inovadores na estética e na narrativa das histórias em quadrinhos a partir de uma experiência
que é paralelamente autoral e comercial, brasileira e internacional.
O começo da carreira dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá foi marcada pela
produção de fanzines, pequenas publicações independentes e artesanais, produzidas por fãs e
direcionadas a públicos específicos (MAGALHÃES, 2004, 2005; GUIMARÃES, 2005). O
primeiro fanzine de Fábio Moon e Gabriel Bá surgiu na época do colégio com o nome Vez em
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quando, o segundo, quando cursavam a faculdade, com o titulo Ícones. O terceiro fanzine foi
nomeado 10 pãezinhos, e venceu o prêmio HQ Mix de melhor fanzine, em 1999. Este título é
utilizado até hoje pelos autores com a publicação de histórias, como O girassol e a lua; Meu
coração, Não sei por quê; Crítica!; e Mesa para dois. Os dois últimos foram vencedores do
prêmio HQ Mix de melhor edição especial nacional em 2004 e 2006, respectivamente.
Os quadrinistas fizeram diversas viagens ao exterior para divulgar seus trabalhos e
fazer novos contatos. Essa experiência permitiu que eles publicassem na Espanha, França,
Itália e, principalmente, nos Estados Unidos com editoras reconhecidas mundialmente, como
a Dark Horse e a DC Comics. As principais obras publicadas no exterior são Roland,
premiada pela Xeric Fundation Grant, em 1999; De:Tales; Ursula; Sugarshock!, esta
vencedora do prêmio Eisner Awards de melhor história em quadrinhos digital em 2008;
Umbrella Academy: Apocalypse Suite, vencedora dos prêmios Eisner Awards e Harvey
Awards como melhor série; e Scream Awards como melhor artista de história em quadrinhos,
em 2008; Umbrella Academy: Dallas; Pixu; BPRD:1947; Casanova – Luxúria; e Casanova –
Gula.
Fábio e Gabriel adaptaram para os quadrinhos o conto O alienista, de Machado de
Assis. A adaptação recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro didático e paradidático para
ensino médio ou fundamental em 2008. Eles também são constantemente convidados para
publicar histórias com outros autores em coletâneas no Brasil e no exterior, como Front 09 e
10; Dez na Área; Authobiographix; Gunned Down; 27 Seven 1 e 2; e Fligh 4. Atualmente,
produzem para o jornal Folha de S.Paulo uma tira de quadrinhos com temas filosóficos
chamada Quase Nada.
A escolha da novela gráfica Daytripper como objeto de estudo se deve ao fato de a
obra ser a primeira história em quadrinhos autoral desses artistas a atingir escalas
internacionais com grande repercussão e ser a mais premiada de 2011, período em que esta
pesquisa foi iniciada. Daytripper foi publicada nos Estados Unidos pelo selo Vertigo, da
editora DC Comics, entre 2009 e 2010, em dez edições, e posteriormente publicada em uma
única edição encadernada. Também foi publicada em edição única encadernada, com opções
de capa cartonada ou dura, pela editora Panini no Brasil, no segundo semestre de 2011, além
de ser publicada na França, em 2012. Portanto, o corpus de análise será formado pela
minissérie Daytripper, que servirá de base para a análise a ser desenvolvida a respeito do
mapeamento estético e narrativo proposto por esta pesquisa e a compreensão do fenômeno
autoral/comercial.
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Vale ressaltar que os resultados obtidos por essas análises não esgotam as
possibilidades de significação, a quantidade de significações possíveis são impossíveis de
serem mensuradas, pois dependem de muitas variáveis. Essa análise de conteúdo é qualitativa
e ao apropriar-se de ferramentas como a semiótica e a análise do discurso leva em
consideração o ponto de vista do analista ao aplicar os fundamentos bibliográficos desta
pesquisa sobre o objeto que inclui o local e a época em que foi produzido, o emissor e o
provável receptor da mensagem produzida.
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Por fim, foi aplicada uma entrevista em profundidade com os autores e desenhistas
Fábio Moon e Gabriel Bá. A escolha dos entrevistados foi intencional, pois, os produtores da
série Daytripper são, naturalmente, autores do objeto deste estudo. Conforme os conceitos de
Jorge Duarte (2006), a entrevista foi realizada por e-mail, foi utilizado um questionário
semiestruturado que obteve informações qualitativas para a pesquisa. Os dois autores
participaram da mesma entrevista, pois o mais relevante para a pesquisa é o resultado da
produção coletiva de ambos.
Foi importante para fins de profundidade na análise dos resultados que toda a
entrevista fosse documentada. Ela complementou as informações que não puderam ser obtidas
na análise bibliográfica, objetivando a melhor qualidade das informações coletadas, a
entrevista foi produzida e realizada após o levantamento e a análise de todo material
bibliográfico. A abordagem em profundidade foi semiaberta, ou seja, as questões foram
semiestruturadas como um roteiro que conduziu o tema da entrevista para respostas
indeterminadas, mas que foram aprofundadas pelo pesquisador. O resultado da entrevista
conteve informações que foram relacionadas com os outros resultados obtidos.
O capítulo dois, “Identidade e hibridação na cultura midiática”, foi dividido em duas
partes, “Identidade, pós-modernidade e mídia” e “Hibridação e sincretismo cultural”.
Na primeira parte, foram abordados inicialmente os conceitos de descentramento do
sujeito, responsáveis pela formação da identidade cultural do sujeito pós-moderno de Stuart
Hall. Também foram descritas como parte do processo, as características do sujeito moderno
de Douglas Kellner (2001) e sua passagem para a pós-modernidade. Para Stuart Hall (2006), a
pós-modernidade é formada pela cultura regional e pela cultura nacional, sendo inserida nesse
processo uma cultura globalizada regida pelo capital. Homi K. Bhabha (2010) e outros autores
completam o processo de formação da cultura ao explicar o desenvolvimento dela em um
terceiro espaço, deslocado da relação espaço-tempo. Douglas Kellner (2001) fecha essa
primeira parte inserindo o papel da mídia na formação cultural pós moderna.
A segunda parte do capítulo, “Hibridação e sincretismo cultural dos países
‘emergentes’”, é composta principalmente pelos conceitos de Nestor Garcia Canclini (2011),
Peter Burke (2003) e Massimo Canevacci (1996) sobre hibridação e sincretismo cultural e
como esse processo afeta principalmente os países considerados “emergentes”. Nessa parte do
capítulo, os conceitos em torno da hibridação cultural foram apresentados como parte do
processo de formação cultural pós-moderna, além da inserção e influência da indústria
cultural em países como o Brasil.
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MIDIÁTICA
As sociedades do século XXI, cada vez mais, colocam em evidência a formação das
identidades culturais pós-modernas: as pessoas que formam a sociedade são os sujeitos que
precisam de alguma identificação cultural que os liguem aos seus antepassados e ao mundo
em que vivem. Esse sujeito pós-moderno é caracterizado por desenvolver diversas identidades
que são formadas por diferentes experiências culturais ao longo de sua vida. Cada identidade
cultural desenvolvida soma-se às outras e são acionadas pelo sujeito em diferentes situações
do seu dia a dia.
Antes do surgimento desse pensamento pós-moderno, o sujeito moderno era
caracterizado por refletir a complexidade de seu tempo. Ele era entendido como um ser
humano único e indivisível que formava uma única identidade centralizada constituída por
suas características genéticas, o seu “eu” e a sua inserção em uma determinada sociedade. O
sujeito moderno está subordinado às mudanças e inovações de sua identidade, que pode ser
móveis ou múltiplas. As identidades podem representar uma fase da vida ou o contexto social
no qual o sujeito está inserido; ele pode, por exemplo, representar, entre outros papéis, o de
ser mãe, filho, brasileiro, advogado, artista, religioso, socialista, homossexual. Todos esses
papéis também podem juntar-se em combinações e gerar mais possibilidades sociais.
Portanto, a modernidade também deve ser associada à individualidade. Como consequência, a
identidade pode tornar-se rígida e causar tédio, o problema da identidade moderna consiste no
modo como nos percebemos, nos interpretamos e nos representamos para os outros.
[...] para alguns teóricos, a identidade é uma descoberta e a afirmação de uma
essência inata que determina o que somos, enquanto para outros a identidade é um
construto e uma criação a partir dos papéis e dos materiais sociais disponíveis. O
pensamento pós-moderno contemporâneo, porém, tem rejeitado a noção
essencialista e racionalista de identidade, baseando-se na noção construtivista por ele
problematizada. (KELLNER, 2001, p.297-298)
Segundo Stuart Hall (2006), a cultura nacional foi a principal fonte responsável pela
formação da identidade cultural dos sujeitos durante a modernidade. Assim como qualquer
outro tipo de cultura, ela não é biológica, ou seja, não nasce com o sujeito. A cultura nacional
desenvolve-se no interior das representações do sujeito e contribui para a homogeneização de
elementos como língua, crenças e diversos outros aspectos geradores de prazeres e
preocupações responsáveis pela formação de uma sociedade.
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A cultura nacional é formada por discursos e narrativas que criam símbolos que são
representados e narrados por uma sociedade, são histórias contadas e recontadas na literatura,
na mídia e na cultura popular. De acordo com Hall
essas [narrativas] fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários,
eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as
experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à
nação. Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de
nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância
à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino
nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte. (2006, p. 52)
Como um efeito gerado pela globalização, Stuart Hall (2006) apresenta outro aspecto
da tradução cultural, no qual as culturas locais não ficam restritas aos seus locais de origem, a
relação espaço-tempo alterada pela globalização coloca as diversas culturas em contato umas
com as outras, gerando novas culturas híbridas.
Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e
intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas
para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares
de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são
obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no
velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e
culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e
não a uma “casa” particular). (HALL, 2006, p.88-89)
fragmentada, portanto, todos os significantes devem ser lidos juntos para formar o
significado.
Para Homi K. Bhabha (2010), a construção cultural ocorre no entre-tempo, conhecido
como o estágio que antecede a formação do signo, no entanto essa representação é subjetiva.
As representações culturais do sujeito ocorrem em um constante processo de reordenação dos
símbolos adotados para a leitura dos acontecimentos do passado e do presente, sendo que
[o] processo de reinscrição e negociação – a inserção ou intervenção de algo que
assume um significado novo – acontece no intervalo temporal situado no entremeio
do signo, destituído de subjetividade, no domínio do intersubjetivo. Através desse
entre-tempo – o intervalo temporal na representação – emerge o processo da agência
tanto como desenvolvimento histórico quanto como agência narrativa do discurso
histórico. O que se evidencia de forma tão clara na genealogia do sujeito de Lacan é
que a intencionalidade do agente, que parece “direcionada manifestamente” para a
verdade da ordem dos símbolos no imaginário social, é também um efeito da
redescoberta do mundo da verdade a que foi subjetividade (pois ela é intersubjetiva)
no nível do signo. É na tensão contingente que resulta que signo e símbolo se
sobrepõem e são indeterminadamente articulados através do “intervalo temporal”.
Onde o signo destituído do sujeito – intersubjetividade – retorna como subjetividade
direcionada à redescoberta da verdade, aí uma (re)ordenação de símbolos se torna
possível na esfera do social. Quando o signo cessa o fluxo sincrônico do símbolo,
ele apreende também o poder de elaborar – através do entre-tempo – agências e
articulações novas e híbridas. (BHABHA, 2010, p. 266)
A formação do “povo” que constitui uma nação também é organizada pelos discursos
da construção da identidade cultural. A relação social estabelecida pelas pessoas acontece por
meio do processo de ressignificação entre os acontecimentos do passado com os
acontecimentos do presente, e portanto é
[...] precisamente na leitura entre as fronteiras do espaço-nação que podemos ver
como o conceito de “povo” emerge dentro de uma série de discursos como um
movimento narrativo duplo. O conceito de povo não se refere simplesmente a
eventos históricos ou a componentes de um corpo político patriótico. Ele é também
uma complexa estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser
representativo provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação
discursiva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de ser
pensado num tempo-duplo; o povo consiste em “objetos” históricos de uma
pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no
preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste
também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer
presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios
prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do
presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo
reprodutivo. (BHABHA, 2010, p.206-207)
Homi K. Bhabha (2010) adota o discurso de Fredric Jameson para inserir a ideia de
classes no conceito de local da cultura. As novas fronteiras do mundo são estabelecidas entre
as diferenças culturais que são organizadas entre os sujeitos de diferentes classes dentro de
uma nação.
Jameson dissipa o potencial dessa “terceira” política do futuro-como-questão-aberta,
ou “nova ordem/fronteira do mundo”, ao transformar as diferenças sociais em
“distância” cultural e ao converter temporalidades intersticiais, conflituosas, que
podem não ser nem de desenvolvimento nem lineares (não “dispostas para cima ou
para baixo em uma escala temporal”) nos topoi da separação espacial. Através da
metáfora da distância espacial, Jameson mantém firmemente o “enquadramento”,
senão a face, do aparato de percepção centrado no sujeito que, em um contra-
movimento, busca deslocar na “realidade virtual” do mapeamento cognitivo, ou da
irrepresentabilidade do novo espaço internacional. E o pivô dessa dialética espacial,
reguladora – o olho da tormenta – é nada menos do que o próprio sujeito-de-classe.
(BHABHA, 2010, p. 302)
O discurso de Veena Das também é adotado por Homi K. Bhabha (2010), mas para se
referir ao sujeito subalterno, as chamadas classes mais baixas que formam o “povo” de uma
nação. O sujeito subalterno está na posição mais desfavorável dentro do grupo pertencente aos
países colonizados. O processo de significação no sujeito subalterno não é vazio. O sujeito
subalterno não incorpora de forma passiva e absoluta a cultura dos colonizadores, mas faz
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todo o processo de ressignificação entre a nova cultura e a cultura existente formando uma
cultura híbrida entre as duas assimiladas.
Esta ênfase no presente disjuntivo do enunciado permite ao historiador escapar de
definir a consciência subalterna como binária, como tendo dimensões positivas ou
negativas. Ela permite que a articulação da agência subalterna venha a emergir como
relocação e reinscrição. Na apresentação do signo [...] não há nem negação dialética
nem significante vazio: há uma contestação dos símbolos de autoridade dados que
fazem mudar o terreno do antagonismo. O sincronismo na ordenação social dos
símbolos é desafiado em seus próprios termos, mas as bases do embate foram
deslocadas em um movimento suplementar que exerce aqueles termos. Este é o
movimento histórico do hibridismo como camuflagem, como uma agência
contestadora, antagonística, funcionando no entre-tempo do signo/símbolo, que é um
espaço intervalar entre as regras do embate. (BHABHA, 2010, p.268)
A feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak (2012) tem uma visão completamente
diferente sobre a relação entre a cultura colonizadora e o sujeito subalterno. Sua análise foi
aplicada à mulher indiana na condição de sujeito subalterno, mas seu conceito pode ser
aplicado ao sujeito subalterno em qualquer situação.
O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um item
respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher
intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve
rejeitar como um floreio. (SPIVAK, 2012, p.165)
O sujeito subalterno não possui voz ativa, pois os valores globais se sobrepõem aos
valores locais também como forma de colonização. As imposições desses valores ocorrem
após os colonizadores negarem e subjugarem os valores locais, mesmo que o efeito disso
destrua apenas parte da cultura das gerações atuais, afeta diretamente as gerações futuras.
Qualquer tentativa de resistência à imposição da nova cultura torna-se ineficiente, pois os
valores locais são substituídos por valores globais.
Segundo Stuart Hall (2006), de todas essas características da pós-modernidade, a
relação espaço-tempo é a mais afetada pelos meios de comunicação. O espaço e o lugar são
elementos distintos, o lugar é fixo e cria raízes, enquanto o espaço é a distância entre dois ou
mais lugares. Com a globalização, os espaços diminuem cada vez mais reduzindo o tempo
necessário para se chegar de um lugar a outro. As mídias, meios portadores de identidades
culturais, são ótimos exemplos da diminuição do espaço-tempo, afinal, podem narrar culturas
em diferentes lugares independentemente do espaço entre elas, que está cada vez mais
reduzido através do tempo.
O que é importante para nosso argumento quanto ao impacto da globalização sobre a
identidade é que o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os
sistemas de representação. Todo meio de representação – escrita, pintura, desenho,
fotografia, simbolização através da arte ou dos sistemas de telecomunicações – deve
traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais. Assim, a narrativa traduz os
eventos numa sequência temporal “começo-meio-fim”; os sistemas visuais de
representação traduzem objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes
27
1
Veja a seção “3.2 Autoralidade nos quadrinhos”, no capítulo 3.
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aplicação surge nas ciências biológicas, mas também é aplicado ao se referir às linguagens e
às ciências sociais ao estudar os processos socioculturais que existem de forma separada, mas
se combinam para gerar novos processos. O termo sincretismo partilha praticamente da
mesma ideia, mas se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos
tradicionais.
O historiador inglês Peter Burke (2003) faz uma crítica aos termos “hibridação” e
“sincretismo”. Para o autor, o termo “hibridação” explora a combinação de elementos ligados
à biologia, enquanto “sincretismo” estuda as combinação que diz respeito às questões
religiosas. Nos dois casos, os termos parecem não valorizar a ação do sujeito, principal agente
na combinação de elementos culturais, portanto, o autor defende a utilização do termo
“tradução cultural” para tratar das combinações que envolvem os elementos das diversas
culturas existentes.
Os conceitos de sincretismo, de mistura e de hibridismo têm também a desvantagem
de parecerem excluir o agente individual. “Mistura” soa mecânico. “Hibridismo”
evoca o observador externo que estuda a cultura como se ela fosse a natureza e os
produtos de indivíduos e grupos como se fossem espécimens botânicos. Conceitos
como “apropriação” e “acomodação” dão maios ênfase ao agente humano e à
criatividade, assim como a ideia cada vez mais popular de “tradução cultural”, usada
para descrever o mecanismo por meio do qual encontros culturais produzem formas
novas e híbridas. (BURKE, 2003, p.55)
O processo de sincretismo cultural começa quando uma cultura global chega em uma
nova região e convive com uma cultura local, muitas vezes antagônica. Com o passar do
tempo, essa nova cultura se adapta ao novo ambiente e se expande do centro para a periferia.
Essa expansão provoca uma mutação entre os elementos não compatíveis, não de modo
predatório, mas descentrado. Alguns elementos entre as culturas passam a ser assimilados uns
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com os outros sem nenhum tipo de anulação, ou seja, essa mistura entre as culturas mantém
suas pluralidades.
O argentino Nestor Garcia Canclini (2011) adota o termo hibridação e emprega
diversos conceitos do termo de forma positiva. A hibridação está associada à modernidade,
que é composta por quatro movimentos básicos: um projeto “emancipador”, voltado a uma
produção autoexpressiva e autorregulada das práticas simbólicas, um processo de
racionalização da vida social. Um projeto “expansionista”, como extensão do conhecimento,
da produção e da circulação dos bens de consumo, não apenas visando o lucro, mas também o
desenvolvimento científico e industrial. Um projeto “renovador”, com constantes inovações
na relação com a natureza e com a sociedade sob dois aspectos, o da liberdade, ou de como o
mundo deve ser, e o do desgaste natural dos signos resultado do consumo massificado. E, por
fim, um projeto “democratizador”, que por meio da educação e da difusão cultural é possível
alcançar uma evolução racional e moral. Esses quatro projetos, ao se desenvolverem, entram
em conflito:
Contudo, a modernização econômica, política e tecnológica – nascida como parte do
processo de secularização e independência – foi configurando um tecido social
envolvente, que subordina as forças renovadoras e experimentais da produção
simbólica. Para captar o sentido desta contradição, não vejo lugar mais propício que
o desencontro ocorrido entre a estética moderna e a dinâmica socioeconômica do
desenvolvimento artístico. Enquanto os teóricos e historiadores exaltam a autonomia
da arte, as práticas do mercado e da comunicação massiva – incluídos às vezes os
museus – fomentam a dependência dos bens artísticos de processos extraestéticos.
(CANCLINI, 2011, p.32)
Os quatro projetos são contraditórios e não podem ser lidos de forma unificada. O
projeto expansionista está ligado ao capital, portanto, a expansão só é possível se forem
obedecidas as leis de mercado. O de emancipação acontece apenas quando não existe ligação
com o projeto expansionista e quando o projeto renovador está voltado ao aspecto da
liberdade ou de como o mundo deve ser. Diante dessas diferentes leituras dos movimentos da
modernidade, o projeto democratizador passa a ser regido pela leitura do projeto mais forte
que está ligado ao capital, democratizando apenas o sonho dos bens de consumo, pois nem
todos possuem o mesmo poder financeiro.
As vanguardas levaram ao extremo a busca de autonomia na arte, e às vezes
tentaram combiná-la com outros movimentos da modernidade – especialmente a
renovação e a democratização. Seus dilaceramentos, suas relações conflitivas com
movimentos sociais e políticos, seus fracassos coletivos e pessoais, podem ser lidos
como manifestações exasperadas das contradições entre os projetos modernos.
(CANCLINI, 2011, p.43)
Umberto Eco (2008b) também disserta sobre a democratização cultural ao fazer uma
crítica aos três níveis de cultura – alta, média e baixa. Não existem mais divisões culturais, as
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ideias de alta, média e baixa cultura se misturam porque as diferentes classes sociais
consomem as mesmas culturas. Além disso, nenhuma cultura pode ser considerada melhor ou
pior com base na dificuldade de compreensão dos signos. Tanto o preparo cultural exigido
pela compreensão, quanto a noção de belo de uma obra de arte são igualmente aplicados no
que é considerado alta ou baixa cultura. E, por fim, o gosto coletivo se transforma com o
tempo, portanto, o que é considerado baixa cultura pode se tornar alta cultura e vice-versa.
Esse ideal de uma cultura democrática impõe uma revisão do conceito dos três
níveis (high, middle e low), despojados, aqui, de algumas conotações que os tornam
tabus perigosos. a) Os níveis não correspondem a uma nivelação classista. Isso já é
ponto pacífico. Sabe-se que o gosto high brow não é necessariamente o das classes
dominantes; [...] b) Os três níveis não representam três graus de complexidade
(pedantemente identificadas com o valor). Em outros termos: somente nas
interpretações mais esnobes dos três níveis é que se identifica o “alto” com as obras
novas e difíceis, compreensíveis apenas pelos happy few. [...] c) Os três níveis não
coincidem, portanto, com três níveis de validade estética. Pode-se ter um produto
high brow, que se recomende por suas qualidades de “vanguarda”, e reclame para
ser fruído certo preparo cultural (ou uma propensão à sofisticação), e que, todavia,
mesmo no âmbito das apreciações próprias daquele nível, venha a ser julgado “feio”
(sem que por isso, seja low brow). E pode haver produtos low brow, destinados a
serem fruídos por um vastíssimo público, que apresentem características de
originalidade estrutural tais e tamanha capacidade de superarem os limites impostos
pelo circuito de produção e consumo em que estão inseridos, que nos permitam
julgá-los como obras de arte dotadas de absoluta validade.[...] d) A transmigração de
estilemas de um nível superior para um inferior não significa, necessariamente, que
os citados estilemas tenham encontrado foros de cidadania no nível inferior só
porque se “consumiram” ou se “compromissaram”. Em certos casos, é o que
realmente acontece, em outros, assistimos a uma evolução do gosto coletivo que
obteve e desfruta, a nível mais amplo, descobertas já antecipadas por via puramente
experimental, a nível mais restrito. [...] (ECO, 2008b, p.54-56)
Canclini (2011) apresenta esses diferentes tipos de cultura como arte antiga ou
primitiva e arte ingênua ou popular, em qualquer um dos casos, essas artes tornam-se cultas
quando são valorizadas por historiadores e chegam aos museus. Mas independentemente da
posição que qualquer tipo de cultura ocupa na sociedade, ela não consegue se sustentar, pois a
cultura apropriada pela indústria cultural, mesmo que pertencente ao mesmo sistema cultural,
será mais forte e irá se sobrepor àquela que não possui valor de mercado, independentemente
de ser ou não considerada culta.
[...] a arte do Ocidente, confrontada com as forças do mercado e da indústria
cultural, não consegue sustentar sua independência. O “outro” do mesmo sistema é
mais poderoso que a alteridade de culturas distantes, já submetidas econômica e
politicamente, e também mais forte que a diferença dos subalternos ou marginais da
própria sociedade. (CANCLINI, 2011, p.66).
das vanguardas europeias, mas, com o tempo, perceberam que esses movimentos artísticos
precisavam de algum tipo de identificação mais forte com a cultura brasileira, pois as
realidades vividas no Brasil e na Europa eram completamente diferentes. Hoje, com a redução
da relação espaço-tempo entre as culturas, acelerada pelos elementos que envolvem a
globalização, os países apresentam relações culturais convergentes. Portanto, além das
características autorais, os artistas que desejam obter forte repercussão de suas obras devem
basear-se nas inovações estéticas, nos recursos jornalísticos e publicitários, em viagens e
importantes contatos. A relação entre cultura e modernidade atualmente encontra-se nas mãos
das empresas privadas, interessadas apenas no ganho do capital. A nova regra de dominação
cultural está relacionada ao lucro que uma determinada produção cultural pode trazer para as
empresas, do contrário, perderá espaço para as outras produções culturais mais vantajosas do
ponto de vista empresarial.
Ao chegar à década de 90, é inegável que a América Latina efetivamente se
modernizou. Como sociedade e como cultura: o modernismo simbólico e a
modernização socioeconômica já não estão tão divorciados. O problema reside em
que a modernização se produziu de um modo diferente do que esperávamos em
décadas anteriores. Nessa segunda metade do século, a modernização não foi feita
tanto pelos Estados quanto pela iniciativa privada. A “socialização” ou
democratização da cultura foi realizada pelas indústrias culturais – em posse quase
sempre de empresas privadas – mais que pela boa vontade cultural ou política dos
produtores. Continua havendo desigualdade na apropriação dos bens simbólicos e no
acesso à inovação cultural, mas essa desigualdade já não tem a forma simbólica e
polarizada que acreditávamos encontrar quando dividíamos cada país em
dominadores e dominados, ou o mundo em impérios e nações dependentes.
(CANCLINI, 2011, p.96-97)
A nova relação entre cultura e modernidade nos faz refletir sobre a relação entre o
artista, o público e seus intermediários. De um lado estão os artistas, perdidos em questões
sobre inovar ou democratizar suas obras, enquanto os produtores os pressionam a favor da
democratização que oferece maior lucro em menor tempo, e, do outro, está o público, que
principalmente nos casos dos países “emergentes”, possuem pouca escolaridade e formação
limitada. Esse tipo de público não compreende as artes com a devida profundidade, pois
geralmente analisam as obras superficialmente ao associá-las apenas a questões de seu
cotidiano ou a temas como o sucesso ou o fracasso, principais preocupações das pessoas
envolvidas em uma sociedade.
Trabalhos totalmente inovadores tendem a ser rejeitados pelo público, pois a nova
forma de articular determinados signos dificulta sua compreensão. Existem formatos com os
quais grande parte do público está acostumado, portanto sua compreensão ocorre de maneira
mais natural e a propagação cresce rapidamente. Esse tipo de democratização artística
34
estimula a imitação nas criações, pois os artistas conseguem produzir mais e agradar seus
produtores que esperam o lucro garantido.
Diante das imitações e competições, resta ao leitor o ritual das dedicatórias e dos
autógrafos que dão “autenticidade” ao livro. Em meio à venda proliferante que torna
anônimo qualquer leitor, essa relação “pessoal” com o escritor simula restaurar a
originalidade e a irrepetibilidade da obra e do leitor culto. (CANCLINI, 2011,
p.109).
Peter Burke (2003, p.70-71) apresenta dois locais favoráveis para o desenvolvimento
das culturas híbridas. O primeiro local importante de trocas culturais é a metrópole, o seu
tamanho favorece que pessoas de diferentes origens se encontrem e interajam tanto no
comércio quanto na cultura. O segundo local importante é a fronteira, pois é considerada uma
zona de trocas culturais. As extremidades, além de dividirem uma região da outra permitem
que as culturas se sobreponham misturando-se umas às outras. Burke afirma que essas
[...] zonas de fronteiras podem ser descritas como “interculturas”, não apenas locais
de encontro, mas também sobreposições ou interseções entre culturas, nas quais o
que começa como uma mistura acaba se transformando na criação de algo novo e
diferente. (2003, p.71)
Para Néstor Garcia Canclini (2011), os principais conceitos que justificam a ideia da
cultura híbrida se desenvolver nesses dois locais consistem em descolecionar e
desterritorializar a cultura. O conceito de descolecionar refere-se a fragmentação do conteúdo
das mídias proporcionado pelo videoclipe, pelo videocassete e pela fotocopiadora ou
proporcionado pelas próprias mídias fruto de hibridações como a internet, o videogame, o
grafite e as história em quadrinhos. A memória colecionável é destruída porque essas mídias
ou esses instrumentos permitem o recorte e várias combinações de colagens que geram
diversas mensagens. Portanto, a hibridação cultural é um processo contínuo e pós-moderno.
As culturas estão em constante transformação, compostas de colagens de diferentes partes de
35
outras culturas, sendo que essas partes variam na profundidade cultural de acordo com a
necessidade na qual ela é incorporada.
O conceito de “desterritorializar” é formado por duas ideias distintas. A primeira diz
respeito à modernização da cultura latino-americana, resultado da união entre o popular, que
oferece os elementos tradicionais da cultura, e o nacional, que modernizou os elementos
tradicionais da cultura. A segunda, consiste na migração multidirecional, é quando por
qualquer motivo, o sujeito nascido em um determinado local e detentor de uma cultura migra
para um outro local e incorpora uma nova cultura gerando uma terceira, diferente das duas
primeiras. Ao multiplicarmos esse processo de todas as partes do mundo para diversas outras
partes do mundo, a quantidade de hibridações culturais passa a ser inimaginável. Portanto, se
pensarmos esse processo nas artes ou em qualquer outro meio, pode-se dizer que toda forma
de cultura se desenvolve em relação com outras formas de cultura. O artesanato, por exemplo,
“[...] migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram
acontecimentos de um povo são intercambiados com outros” (CANCLINI, 2011, p. 348).
Outros dois conceitos que Peter Burke (2003) apresenta como reação são o de
adaptação e o de circularidade cultural. Alguns elementos culturais podem não se encaixar em
um novo ambiente, neste caso, eles podem sofrer algumas mudanças para facilitar sua
adaptação. “A adaptação cultural pode ser analisada como um movimento duplo de des-
contextualização e recontextualização, retirando um item de seu local de origem e
modificando-o de forma a que se encaixe em seu novo ambiente” (BURKE, 2003, p. 91). O
outro conceito pode ser compreendido a partir da metáfora do círculo, começa e termina no
mesmo lugar. Para Burke “A metáfora do círculo é útil também para nos referirmos a
adaptações de itens culturais estrangeiros que são tão completas que o resultado pode às vezes
ser ‘reexportado’ para o lugar de origem do item” (2003, p. 94). Uma cultura que sai do seu
local de origem e se mistura com outra, pode receber influências fortes o suficiente para que,
agora híbrida, retorne ao seu local de origem e propague suas novas características.
A história em quadrinhos é um meio de comunicação com essência híbrida, não
apenas as linguagens que compõe o meio, mas também, todos os aspectos culturais envolvem
hibridações.
Precursor das histórias em quadrinhos modernas, Will Eisner (2010) teorizou a
linguagem da história em quadrinhos ao considerar suas imagens e seus textos como
linguagens análogas e, a partir da união dessas duas linguagens, obter uma terceira linguagem
imagem-texto como resultado híbrido (Figura 2).
36
Peter Burke (2003) também considera linguagem hibrida a união da imagem com o
texto, e vai além ao dizer que tanto a imagem quanto o texto também são linguagens híbridas
mesmo separadas. A imagem possui duas questões importantes enquanto linguagem híbrida.
A primeira refere-se à “importância dos estereótipos ou esquemas culturais na estruturação da
percepção e na interpretação do mundo” (p.26). Enquanto a segunda é “a importância do que
poderiam ser chamadas de ‘afinidades’ ou ‘convergências’ entre imagens oriundas de
diferentes tradições” (p.27). No que diz respeito aos textos, “as traduções são os casos mais
óbvios de textos híbridos, já que a procura por aquilo que é chamado de ‘efeito equivalente’
necessariamente envolve a introdução de palavras e ideias que são familiares aos novos
leitores mas que poderiam não ser inteligíveis na cultura na qual o livro foi originalmente
escrito”.
Canclini (2011) considera os aspectos de hibridação cultural ao aplicar os conceitos de
descolecionar e desterritorializar a história em quadrinhos como um produto cultural. A
2
Imagem publicada pelos autores Fábio Moon e Gabriel Bá, no site:
<http://www.flickr.com/photos/10paezinhos/5424991535/in/set-72157606185530624>.
37
história em quadrinhos não possui espaço para colecionar elementos culturais, a inovação dos
elementos estéticos e narrativos seguem a mesma ideia da colagem de elementos culturais,
enquanto tradicional e moderno, culto e popular, hegemônico e subalterno se misturam.
[...] há gêneros constitucionalmente híbridos, por exemplo o grafite e os quadrinhos.
São práticas que desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção
patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular,
aproximam o artesanato da produção industrial e da circulação massiva.
(CANCLINI, 2011, p. 336)
Com o objetivo de analisar o resultado que a hibridação pode provocar, Peter Burke
(2003) considera os efeitos que a hibridação provoca sobre a arte nos dias de hoje e atribui um
resultado negativo, afinal, “privilegiar um publico global em vez de um público local
modifica a própria obra de várias maneiras importantes que ainda não foram, que eu saiba,
analisadas em detalhes nem em profundidade” (BURKE, 2003, p. 110).
Esse resultado pode ser considerado pior, pois a previsão é de uma cultura mundial
homogênea em um futuro próximo. Todos os processos de hibridação que acontecem no
mundo são contínuos, portanto, se considerarmos que todas as culturas passarão várias vezes
pelo processo de hibridação, a tendência é que no futuro, o mundo todo partilhe de uma
mesma cultura.
38
ESTÉTICOS E NARRATIVOS
História em quadrinhos é descrita por Will Eisner (2010, p.2) como palavras e
imagens sobrepostas, na qual o leitor precisa exercer habilidades interpretativas visuais e
verbais: “As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria pincelada) e as regências da
literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente”. Portanto, é
um ato de percepção estética e esforço intelectual.
O quadrinista norte-americano Scott McCloud (2005, p.20) define histórias em
quadrinhos, a partir das definições de Eisner, como “imagens pictóricas e outras justapostas
em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no
espectador”.
As histórias em quadrinhos também são consideradas narrativas gráficas sequenciais,
pois assim como no cinema, as imagens são exibidas em uma sequência. A grande diferença é
que no cinema as emoções são expressas por centenas de imagens sobrepostas em uma
determinada velocidade capaz de emular o movimento real, enquanto que no meio impresso, a
quantidade de imagens é limitada e apenas simula o movimento. Este suposto obstáculo
técnico pode ser superado com a aquisição de certa habilidade.
Tal desafio, no entanto, não é uma desvantagem. Na verdade, ele proporciona aos
quadrinhos a singular possibilidade de permitir a leitura de várias imagens ao
mesmo tempo, ou a partir de pontos de vista diferentes, algo impossível de
reproduzir no cinema. (EISNER, 2010, p.20)
mas utiliza vários quadros para mostrar o que a sarjeta ação-pra-ação poderia mostrar com
menos quadros, possui a função de detalhar a ação, mostrar cada pequeno momento.
A sarjeta aspecto-pra-aspecto (Figura 9), na qual, por definição, não acontece nada,
aparece com menos frequência. Por exemplo, uma sequência de imagens com comércio,
trânsito e pombos para retratar uma metrópole.
Por fim, a sarjeta non-sequitur (Figura 10), não se preocupa com os eventos ou com
qualquer proposta da narrativa e têm como objetivo conseguir resultados mais experimentais.
44
A quantidade e o tamanho das imagens necessárias foram descritas por Will Eisner
(2010) com o objetivo de marcar o ritmo da passagem do tempo:
O número e o tamanho dos quadrinhos também contribuem para marcar o ritmo da
história e a passagem do tempo. Por exemplo, quando é necessário comprimir o
tempo, usa-se uma quantidade maior de quadrinhos. A ação então se torna mais
segmentada, ao contrário da ação que ocorre nos quadrinhos maiores, mais
convencionais. Ao colocar os quadrinhos mais próximos uns dos outros, lidamos
com a “marcha” do tempo no seu sentido mais estrito. (EISNER, 2010, p.30)
No que diz respeito ao requadro formado por uma página inteira (Figura 18), pode-se
classificá-la como página de apresentação e metaquadrinho. Eisner (2010, p.64) define página
de apresentação como a primeira página de uma história, que deve prender a atenção do leitor
e prepará-lo para os eventos que se seguem, além de estabelecer um “clima” e de ter uma
função decorativa.
Assim como o quadrinho, a página tem de ser usada para contenção (Figura 19),
dentro desta página de contenção uma ação pode ser trabalhada como uma unidade mais
sólida e esteticamente fica mais atrativa.
Segundo Eisner (2010, p.92), o requadro também é responsável pela perspectiva que o
leitor tem da ação. A perspectiva pode ser considerada como a posição da câmera no ambiente
e apresenta-se em duas diferentes situações: alta e baixa. A perspectiva baixa (Figura 20)
oferece a sensação de o leitor estar próximo à cena, ele acompanha a ação vendo o objeto
maior do que aparenta, essa perspectiva engrandece o objeto.
50
Desse modo, uma das funções do leitor é o preenchimento do que não foi dito pela
recuperação dos implícitos e pela percepção dos efeitos de sentido desejados pelo
autor. As inferências são processos mentais de decodificação, enriquecimento,
reconhecimento, pressuposição, processamento, validação e conclusão de uma
palavra e/ou enunciado, em um contexto. (FRANCO; OLIVEIRA, 2009, p.423-424)
Os textos ou letreiramentos, como descrito por Eisner (2010, p.26), possuem funções
estéticas e práticas: “O letreiramento manual sempre será o modo mais idiossincrático e
expressivo de inserir palavras nos balões e nas caixas de texto”. Os textos elaborados
manualmente garantem que as letras jamais sairão exatamente iguais, isso “humaniza” a
narrativa gráfica e coloca personalidade aos personagens. Fabio Luiz Carneiro Mourilhe Silva
(2010) complementa este conceito ao inserir os textos aos balões com o objetivo de conduzir a
narrativa por meio do pensamento de um personagem de forma mais direta e expressiva.
Os formatos e funcionalidades do balão atuam em um processo de significação
conjunto com outros elementos dos quadrinhos, visando a expressividade, o sentido
e a condução narrativa, e realizando um confinamento semântico do nível verbal
através do que aqui designo como representação do suporte do discurso, que é
sobreposto ao nível imagético. Temos assim um caráter midiático que realiza não só
uma ponte entre os níveis imagéticos e verbais, mas também a exposição do
pensamento de forma direta ao mesmo tempo em que indica o personagem/fonte
sonora, com o qual ele forma um binômio. (SILVA, 2010, p.10)
Na arte em cores planas (Figura 24) “as formas assumem mais significância. O mundo
se torna um playground de forma e espaço” (McCLOUD, 2005, p.192); enquanto na arte em
cores mais expressivas (Figura 25) “os quadrinhos podem transmitir sensações que só a cor é
capaz de proporcionar”.
Além das cores, o estilo artístico também possui seus significados. A definição de
McCloud (2005) define o estilo em três categorias: realismo, plano das figuras/abstração e
icônico. A arte realista atrai pelo senso de beleza da natureza, pois sua similaridade com o
mundo real é enorme, este estilo é tão completo e rico em detalhes que impede o artista de
54
acrescentar sentido ou visão à sua narrativa. A arte no plano das figuras ou da abstração
(Figura 26) atrai pela beleza da arte; nesta, o artista pode conduzir a narrativa inserindo ou
retirando apenas os elementos responsáveis por aquilo que ele quer transmitir. A semelhança
com o mundo real existe em menor escala, pois o objetivo não é reproduzir o mundo real. Por
fim, a arte icônica (Figura 27) atrai pela beleza das ideias, nela, podemos cortar toda a relação
existente com o mundo real, apenas os elementos responsáveis por transmitir a ideia são
necessários.
deve se preocupar desde o início com a interpretação da sua história pelo artista, e o artista
deve aceitar submeter-se à história ou à ideia” (EISNER, 2010, p.127). Na prática dos
quadrinhos modernos, essa relação está cada vez mais difícil, pois os processos de produção
não permitem essa interação entre as partes e a separação entre a criação escrita e o desenho
está diretamente envolvida com a estética do veículo.
O trabalho do escritor, do artista e das condições de produção de uma história em
quadrinhos implica no resultado final de uma publicação. Para explicar essa relação,
precisamos nos apropriar do conceito de hipergênero e gênero.
Segundo Paulo Ramos (2009), os diferentes tipos de publicações de histórias em
quadrinhos são hipergêneros. Diferentes características das publicações de histórias em
quadrinhos definem-nas como undergrounds, fanzines, novelas gráficas, comerciais, entre
outras1. Cada um desses tipos de publicações possuem regras, formas de se apresentarem.
O hipergênero daria as coordenadas de formatação textual de vários gêneros, que
compartilhariam tais elementos. Uma carta teria uma estruturação própria
(cabeçalho, texto em primeira pessoa, cumprimentos finais, assinatura) e poderia ser
usada em diferentes gêneros: carta pessoal, carta comercial, carta de admissão de
emprego. Vemos o mesmo raciocínio na área de quadrinhos. Um hipergênero
anteciparia informações textuais ao leitor e ao produtor e funcionaria como um
guarda-chuva para diferentes gêneros, todos autônomos, mas com características
afins. (RAMOS, 2009, p.365-366)
Segundo Najara Ferrari Pinheiro (2002, p.265), a noção de gênero está associada à
certas especificidades e parâmetros a partir dos quais um texto é produzido e consumido. As
representações socioculturais envolvem emissores e receptores na produção de sentido e estão
diretamente ligadas ao conteúdo.
No entanto, o que se pode destacar é que os textos midiáticos, enquanto gêneros, são
formas de representar práticas socioculturais dentro de outras práticas socioculturais
institucionalizadas que envolvem participantes (produtores e receptores) mediados
pelo texto, a partir de contratos tácitos que vinculam as duas pontas do processo de
comunicação (produtores e receptores), numa incessante tarefa de produção de
sentido a partir do querer dizer do produtor e do que é interpretado pelo receptor.
(PINHEIRO, 2002, p.287)
1
Os hipergêneros underground, fanzines, novela gráfica e comerciais serão tratados mais adiante neste capítulo.
56
Não podemos buscar o autor apenas do lado do escritor, nem apenas do lado do
locutor fictício, a função autor está na cisão entre esses dois elementos. O texto traz somente
uma característica singular do discurso, todos os discursos que possuem a função autor
comportam-se com essa pluralidade de ego.
Quanto mais presente é a função autor dentro de um texto, maiores são as chances de
aparecerem características experimentais e de vanguarda em uma obra. Experimentalismo é o
ato de testar, renunciar ao passado, rejeitar os padrões preestabelecidos para trazer novas
possibilidades de criação que existem apenas com a experimentação. Revelar para a sociedade
o que é descoberto, adapta a forma de trabalhar a arte diante de um novo material. Segundo
Umberto Eco (2008a, p.227), a ação experimental é o ato de questionar um novo material para
lhe atribuir novas possibilidades de organização e de formação.
O método experimental apresenta-se, portanto, como o método que não só procura
estudar o objecto directamente, em vez de o fazer através das lentes deformantes de
uma sabedoria tradicional e autoritária, mas decide também mudar o próprio método
com que ia abordá-lo e adequá-lo ao fenómeno a investigar, falando com
simplicidade, a essência do método experimental reside no facto de, no momento em
que se pergunta o que é um fenómeno, o cientista decidir deixar de acreditar em tudo
o que até aí sabia sobre ele, e recomeçar tudo do princípio. (ECO, 2008a, p.228-229)
O autor experimental também pode desejar ser reconhecido, mas caso não utilize um
método que seja compreendido facilmente pelas pessoas, pode tornar-se incompreendido ao
reestruturar alguns princípios que podem ser classificados como ofensivos. O autor coloca em
dúvida tudo o que se sabe e faz novos testes para encontrar novas formas de estudá-lo e novas
definições para um método experimental. A crítica que pode surgir a partir de uma atitude
experimental se perde ao ser reproduzida, pois transforma-se em uma nova regra. Quando isso
acontece, o autor experimental abandona aquilo que tornou-se uma nova norma e busca novas
experiências experimentais: “Se experimentar quer dizer agir de modo inovador em relação à
tradição, toda obra de arte que nós celebramos como significativa foi, a seu modo,
experimental” (ECO, 1989, p.92).
Philadelpho Menezes (1994, p.164) descreve o experimentalismo nas vanguardas, em
que a ruptura com os modelos tradicionais artísticos, conhecido como experimentação, é um
gesto permanente e também volta-se contra os outros movimentos de vanguarda.
[...] deve-se ressaltar o papel de contribuição das próprias vanguardas para a
configuração desse quadro. Afinal, ao contrário dos modernistas, que pregavam a
manutenção das esferas tradicionais da cultura, o experimentalismo vanguardístico
sempre teve por escopo a inserção dos seus produtos no campo da grande produção
e do consumo de massa no sentido, não de se comercializar, mas de inserir, nos
padrões de gosto e de sensibilidade, novos elementos estéticos que representassem a
nova era moderna, segundo a óptica das vanguardas. (MENEZES, 1994, p.166-167)
Para Philadelpho Menezes (1994, p.167), como uma característica pós moderna, a
vitória das vanguardas é a sua derrota, o seu desaparecimento. Esse aspecto não apaga seus
procedimentos experimentais, basta olhar ao redor e examinar a moda, as construções, o
urbanismo, o design etc., para perceber as marcas deixadas pelas vanguardas. O último efeito
pretendido pelas vanguardas é ser assimilada pela cultura, esse poder conquistado é a forma
como sua arte é representada pela sociedade, configurando os padrões de sensibilidades em
todas as manifestações cotidianas.
Além dos conceitos sobre a função do autor, o experimentalismo e a vanguarda,
também por parte do autor, devemos examinar a definição de obra aberta de Umberto Eco
(2008a), pois esta coloca o receptor como parte do processo autoral. Para compreendermos
este conceito, devemos considerar dois aspectos:
a) o autor realiza um objecto acabado e definido, segundo uma intenção bem precisa,
aspirando a uma fruição que o reinterprete tal como o autor o pensou e quis; b) o
objecto é fruído por uma pluralidade de fruidores, cada um dos quais sofrerá a
acção, no acto de fruição, das próprias características psicológicas e fisiológicas, da
própria formação ambiental e cultural, das especificações da sensibilidade que as
contingencias imediatas e a situação histórica implicam. (ECO, 2008a, p.153-154)
Ou seja, cada fruição é pessoal e a obra sempre será vista sob um dos aspectos
possíveis, por mais que haja empenho e fidelidade à obra. O autor geralmente não ignora essa
situação, mas produz a obra como aberta a essas possibilidades, ele orienta o leitor, o conduz
às diferentes respostas, a um mesmo sentido definido por ele mesmo.
Essa noção de autoralidade e experimentalismo surge de forma evidente com a
Nouvelle Vague. Para Adriano Medeiros da Rocha, o termo “Nouvelle Vague” refere-se aos
cineastas franceses que transgrediram os padrões do cinema comercial sem muitos recursos
financeiros. A teoria autoral é uma das bases do movimento e foi desenvolvida por Truffaut
por volta de 1954, por meio dela
[...] o filme, assim como a música ou a poesia, seria parte do próprio autor (diretor),
ou seja, a representação de suas ideias ou ainda sua forma de ver o mundo. Os
adeptos da nova onda francesa promoveram inovações que vão da estética às
técnicas de realização. A busca era por uma linguagem fora dos processos de
encenação convencionais impostos pela tradição clássica americana. (ROCHA,
2006, p.4)
personagem, com isso o número de cortes é menor e o plano-sequência passa a ser mais
utilizado, proporcionando uma leitura livre e autônoma da cena por parte do espectador.
A narrativa é pessoal, espontânea, com improvisos e fora dos estúdios. Nela, a vida
cotidiana é retratada de forma complexa e cheia de dramas. O herói sai de cena para dar lugar
a personagens mais humanos com qualidades e defeitos. Essa aproximação com a realidade
leva o espectador a assumir uma posição diante do filme, além de fazê-lo refletir sobre os
aspectos da vida sobre um novo ponto de vista a partir de uma arte mais madura e reflexiva.
Nas histórias em quadrinhos, o professor Elydio dos Santos Neto analisa alguns
aspectos dos quadrinhos poético-filosóficos. Uma política de gestos poéticos, o retrato da
experiência perinatal, além de aspectos como a transgressão, a transcendência e a esperança
são extremamente importantes e estão presentes na teoria autoral.
A capacidade poética é, pois, aqui compreendida como a possibilidade que nós
humanos temos de simbolizar, significar e recriar o mundo, e nossa relação com ele,
a partir de nossa imaginação. Sem essa capacidade de poetizar o mundo seríamos
seres de pura adaptação e não seres de criação, transformação e mudança. Porque
poéticos podemos desejar, sonhar, pensar e criar mundos novos. Por isso é possível
falar numa “política dos gestos poéticos”. (SANTOS NETO, 2012, p.35)
esperança alimenta a luta humana no presente para que o futuro seja outro [...]” (SANTOS
NETO, 2012, p.27).
Além dos aspectos poético-filosóficos da narrativa dos quadrinhos anteriormente
descritos, Douglas Wolk aponta para a importância do estilo apresentado nos desenhos dos
artistas, chamando-os de art comics (quadrinhos artísticos). Wolk estreita a relação escritor e
artista pela expressão direta na intenção específica do trabalho. A arte ou o estilo do desenho é
fundamental para a expressividade do autor, é por meio desta arte que parte de sua liberdade
criativa e experimental pode ser colocada no papel como uma parte da construção do foco
narrativo.
First of all, art comics’ style is at least as important as the content of their narrative,
and always a direct expression of their creators’ idiosyncrasies and work-specific
intentions. “Expressiveness” is more the point of art comics than characters or plot
points; they privilege the distinctiveness of the creator’s hand, rather than the
pleasures of the tools of genre and readerly expectations. The content of art comics
is also almost invariably owned by their creators – which means that most of the
fundamental restrictions on what they look like and what happens in the course of
their narratives are set by the creators alone. (WOLK, 2008, p.30-31)
Para os professores Roberto Elísio dos Santos e Elydio dos Santos Neto (2010 p.59),
as narrativas gráficas desempenham um papel extremamente importante na difusão do
pensamento humano e são ideais para manifestações artísticas que provoque profunda
reflexão sobre o ser humano e tudo que o cerca.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que as histórias em
quadrinhos autorais surgem a partir da publicação dos quadrinhos underground. Segundo
Waldomiro Vergueiro (2011), estes quadrinhos são produzidos de forma independente e
destinados a um público mais maduro. No Brasil, a produção de quadrinhos underground é
muito grande pela impossibilidade de se entrar no mercado mainstream de quadrinhos. Esses
quadrinhos amadores, apesar de serem produzidos de forma artesanal, em pequenas
quantidades e distribuídos de mão em mão, são livres para expressar exatamente o que seus
produtores desejam. Esse sistema informal de produção e distribuição sobrevive em um
espaço muito limitado que envolve apenas familiares, amigos e colegas desses artistas.
As faculdades e os campi universitários são um espaço fértil e privilegiado para a
disseminação desse tipo de quadrinhos, pois os estudantes universitários em geral se
interessam muito por histórias em quadrinhos e têm, em função de sua idade e
ambiente em que vivem, uma forma muito crítica de encarar a produção
massificada. (VERGUEIRO, 2011, p.48)
magazine, e significa revista feita por fã. Portanto, fanzine é uma revista de qualquer gênero,
editada por um fã de algum tipo arte, voltada para um público aficionado.
O quadrinista e também pesquisador Edgard Guimarães, afirma que as revistas
profissionais que são vendidas em bancas não são fanzines, pois são feitas para um mercado
específico, que, além de ter grandes tiragens, são produzidas para dar lucro.
Como precisa vender para se sustentar, a revista profissional tenta oferecer aquilo
que uma parcela do público leitor quer, ou seja, a revista profissional é feita em
função do leitor. O Fanzine, ao contrário, é a forma de expressão do editor, ou grupo
de editores. O que define a pauta do Fanzine é aquilo que seu editor deseja
compartilhar com seus leitores. O Fanzine é caracterizado pela independência do
editor. (GUIMARÃES, 2005, p.12)
Will Eisner foi um dos primeiros quadrinistas e teórico dos quadrinhos a utilizar o
termo graphic novel (novela gráfica) para a publicação de narrativas ambiciosas que abordam
temas atraentes e desafiadores para um público cada vez mais sofisticado e crítico, para ele
O futuro das graphic novels depende de autores que de fato acreditem que a
aplicação da arte sequencial, com seu entrelaçamento de palavras e imagens,
estabelece uma dimensão comunicativa que contribui – de maneira cada vez mais
relevante – para o fazer literário que se ocupa de investigar a experiência humana. O
estilo, a apresentação – apesar da falta de espaço e do suporte tecnológico de
reprodução limitado –, os balões e os quadrinhos ainda são as principais ferramentas
do artista sequencial. (EISNER, 2010, p.149)
63
O professor Roberto Elísio dos Santos afirma que as “Graphic Novels são o espaço
mais indicado para a experimentação, para a renovação estética das HQs [...]” (SANTOS,
1995, p.57). Seguindo a mesma linha de raciocínio, o espanhol Santiago García (2012, p.303)
conceitua uma nova tradição da novela gráfica ao romper com as tradições anteriores de
oferecer um produto maciço e barato de entretenimento, agora incapaz de competir com os
meios de comunicação tecnologicamente superiores e rivais. Para esse autor
Essa tradição da novela gráfica reconhece as outras tradições e as integra em seu
DNA, mas em muitos sentidos é completamente nova, pois nada parecido havia sido
visto até vinte ou trinta anos atrás. Uma de suas características é o nascimento do
autor de quadrinhos, por fim, o autor livre e adulto. Livre nos conteúdos, mas
também nos formatos, com uma liberdade que não se tinha desde Rodolphe Töpffer,
o primeiro quadrinista da história, o único que conseguiu trabalhar antes que os
quadrinhos existissem como meio. (GARCÍA, 2012, p.303)
GABRIEL BÁ
Os brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá (Figura 28) são irmãos gêmeos e trabalham
juntos como autores e desenhistas de histórias em quadrinhos. Mesmo quando estão em
projetos separados, analisam e dão sugestões para os trabalhos um do outro. Os dois
cresceram no bairro da Vila Madalena em São Paulo, sempre foram apaixonados por
quadrinhos de todos os tipos, começaram a produzir suas próprias histórias ainda na
adolescência e estudaram Artes Plásticas, o que contribuiu para que aprimorassem seus
conhecimentos e técnicas sobre arte.
1
Ilustração feita por Fábio Moon e Gabriel Bá utilizada na home do site 10 pãezinhos.
65
O selo 10 pãezinhos é utilizado até hoje pelos autores para a publicação das histórias:
O girassol e a lua; Meu coração, não sei por quê; Crítica!; Mesa para dois e Fanzine, que
reúne as primeiras histórias por eles publicadas durante o período do colégio e da faculdade.
As duas últimas foram vencedoras do prêmio HQ Mix de melhor edição especial nacional em
2004 e 2006 respectivamente (Figura 29).
2
Os depoimentos de Fábio Moon e Gabriel Bá foram concedidos em 31/05/2013. Veja o Anexo.
66
Figura 29 – Capas dos fanzines, da esquerda para a direita: O girassol e a lua; Crítica!;
Meu coração, não sei por quê; Mesa para dois; e Fanzine.
Fábio e Gabriel fazem muitas viagens para vários países da Europa e para os Estados
Unidos para divulgar seus trabalhos. A participação e divulgação de suas obras em feiras e
eventos especializados, como a Comic Con, em San Diego, foram fundamentais para que as
principais editoras de quadrinhos do mundo e importantes quadrinistas conhecessem sua arte
e os convidassem para desenvolver trabalhos em conjunto com outros desenhistas e escritores.
Essa experiência permitiu que publicassem na Espanha, França, Itália e principalmente nos
Estados Unidos com editoras reconhecidas mundialmente, como Dark Horse e DC Comics.
Os principais títulos publicados no exterior são Roland, vencedor do prêmio Xeric Fundation
Grant, em 1999; De:Tales; Ursula; Sugarshock!, vencedor do prêmio Eisner Awards de
melhor história em quadrinho digital, em 2008; Umbrella Academy: Apocalypse Suite,
67
vencedor dos prêmios Eisner Awards e Harvey Awards de melhor série e Scream Awards de
melhor artista de história em quadrinhos, em 2008; Umbrella Academy: Dallas; Pixu;
BPRD:1947; Casanova – Luxúria; e Casanova – Gula (Figura 30).
Esse novo produto cultural produzido por eles continua com as características de
autoralidade que Fábio Moon e Gabriel Bá construíram ao longo de suas carreiras, a arte e a
história são trabalhadas uma em função da outra. Com estilos próprios e desenvolvimento
artístico pessoal, pode-se afirmar que existe a autoralidade de Fábio Moon e a de Gabriel Bá
nas histórias em quadrinhos, mesmo quando eles não são os escritores.
Fábio e Gabriel também adaptaram para os quadrinhos o conto O alienista de
Machado de Assis. A adaptação recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro didático e
paradidático para ensino médio ou fundamental em 2008. Eles também são constantemente
convidados para publicar histórias com outros autores em coletâneas no Brasil e no exterior
como Front 09 e 10; Dez na Área; Authobiographix; Gunned Down; 27 Seven 1 e 2; e Fligh 4
(Figura 31). Atualmente, eles produzem para o jornal Folha de S.Paulo uma tira com temas
filosóficos chamada Quase Nada (Figura 32).
Os aspectos de uma cultura tradicional, vista como popular e até mesmo subalterna,
assim como os aspectos de uma cultura moderna, culta e hegemônica são encontrados nos
trabalhos dos autores. Quando seus trabalhos são apropriados pela indústria cultural, eles
ganham muito mais força e expansão, em contrapartida, passam a ser regidos pelas regras do
mercado. Essas regras passam a interferir na produção dos trabalhos que ao buscar maior
aceitação por parte do público, deve lutar para não perder seu potencial de inovação. A
maioria do público tende a rejeitar trabalhos muito inovadores ou que apresentem propostas
muito diferentes daquelas a que está acostumado. Uma das explicações para isso é que o
público precisa se sentir participante na condução de uma novela gráfica sequencial, fazer
70
parte do processo, da autoria; como a maioria desse público não tem muito conhecimento
sobre arte e gosta de se sentir familiarizado com a articulação dos signos linguísticos adotados
por esse tipo de narrativa, por repetição ele é capaz de refazer esse processo sem muito
esforço (CANCLINI, 2001).
A novela gráfica Daytripper (Figura 33) realizada por Fábio e Gabriel é a primeira
história em quadrinhos autoral desses artistas a atingir escalas internacionais com grande
repercussão na imprensa ao ficar várias semanas na lista de mais vendidos do jornal New York
Times, e de ser a história em quadrinhos mais premiada de 2011. Daytripper foi publicada nos
Estados Unidos pelo selo Vertigo, da editora DC Comics, entre 2009 e 2010, em dez edições
e posteriormente, em uma única edição encadernada. Daytripper também foi publicada em
uma edição única encadernada com opções de capa, cartonada ou dura, pela editora Panini, no
Brasil, no segundo semestre de 2011, e também na França em 2012.
Gabriel: Depois de vários anos mostrando trabalho para vários editores no mercado
americano e publicando aos poucos nossas histórias por lá, um destes editores, o
Bob Schreck, foi para a Vertigo, um lugar onde ele sabia que poderia publicar o tipo
71
de histórias que nós contamos. Foi então que ele pediu que mandássemos idéias e
eles gostaram da idéia que resultou no Daytripper.
Fábio: Tivemos total liberdade pra criar idéias e, uma vez escolhida uma,
desenvolvemos totalmente a história que queríamos contar. Fomos convidados a
fazer o nosso tipo de história, não algo que se encaixasse nos moldes da Vertigo.
Daytripper é uma novela gráfica porque é uma publicação profissional, com história
fechada, voltada para o público jovem e adulto, e apesar de seguir as regras de publicação do
mercado preserva inúmeras características experimentais que inovam na narrativa, na estética
e na história apresentada.
Os aspectos, comercial e autoral, que caracterizam Daytripper são totalmente
antagônicos, mas estão presentes nesse tipo de publicação sem anularem as qualidades umas
das outras. Os aspectos comerciais são compostos principalmente pela utilização de elementos
narrativos e estéticos comuns, enquanto os aspectos autorais são compostos especialmente
pelas inovações no conteúdo da história e em alguns elementos narrativos e estéticos
inovadores.
Fábio: Não pensamos no lado comercial das nossas histórias, e sim na sua
relevância. Acredito que, se você tem algo a dizer que acredita valer a pena, deve
tentar de todas as maneiras possíveis colocar isso para fora, aos olhos do público. Se
o trabalho for o melhor que você pode fazer, e for relevante, chamará atenção e, se
tudo der certo, terá algum retorno financeiro como conseqüência, nunca como meta.
Se não, tente novamente no próximo projeto, na próxima história. Quando pensamos
nas editoras, já procuramos editoras que tenham ao menos uma linha editorial que
nos interessa, que pareça aberta ao nosso tipo de história. É importante conhecer as
editoras com quem você pode ou quer trabalhar para não fugir do perfil da editora e
depois não entender porque seu projeto não foi aceito ou não foi bem trabalhado.
“While reading the newspaper first thing that morning, Brás felt many things… None
of them good.” (Enquanto lia o jornal logo cedo naquela manhã, Brás teve várias sensações...
Nenhuma agradável. 3)
“He would have liked to think that his father objected when he was told the date of the
ceremony…” (Ele gostaria de crer que seu pai teria reclamado ao saber da data da
cerimônia...)
“... that his dad would have said that he had a very important previous engagement.”
(...que seu pai teria dito que havia um compromisso de grande importância já agendado.)
O espaço no qual a novela gráfica Daytripper é desenvolvida, retrata principalmente a
cidade de São Paulo (Figura 35), mas também cidades como Salvador e Rio de Janeiro em
alguns capítulos.
3
As traduções entre parênteses são da edição brasileira.
73
O centro cultural b_arco (Figura 36) está localizado na rua Dr. Virgílio de Carvalho
Pinto, número 426, no bairro da Vila Madalena em São Paulo. Apesar de o local não ser
mencionado na história, existe uma semelhança muito forte do desenho com a fotografia
tirada por mim no local. Segundo Fábio Moon e Gabriel Bá (em palestra sobre o lançamento
da série Daytripper no Brasil, na b_barco em 27/11/2011), o local também era frequentado
por eles que moravam naquela região e sempre gostaram de arte.
Gabriel: O Daytripper não é um cartão postal e por essa razão não precisamos ficar
nomeando e situando todos os locais que aparecem na história. Mas, muitas vezes,
para conseguir uma veracidade na história, um sentimento autêntico, precisamos
buscar locais reais ou nos inspirar em situações reais para criar eventos fictícios. Os
elementos reais são costurados para contar melhor a história, que é uma ficção.
Fábio: Quando você coloca um lugar real na história e o leitor reconhece esse lugar,
ele é transportado para dentro da história. [...]
Gabriel: Em uma história de ficção, não é importante o que existe e o que foi
inventado. Se fizermos um bom trabalho, essa dúvida sempre vai surgir, mas a
resposta não é importante. Se o leitor ficar curioso a ponto de procurar saber mais
sobre os lugares, personagens e acontecimentos da história, melhor ainda. A idéia é
enfeitiçar o leitor e sua imaginação. [...]
Gabriel: Usamos muitas imagens diferentes para montar nossa história, nem sempre
é um só lugar, mas uma colagem de locais diferentes. O importante, mais uma vez, é
conseguir uma sensação de um local que exista, que o leitor consiga imaginar, se
reconheça.
história se passar no Brasil, se existe, existiu quando a primeira criança foi nomeada
de Brás, e talvez tenha existido quando Machado nomeou seu personagem, mas não
foi por isso que escolhemos esse nome.
Metaquadrinho é quando uma página inteira faz a função de requadro (Figura 43). Na
maioria das vezes, esse requadro apresenta a visão geral de uma cena e é composto por outros
requadros menores em seu interior que detalham uma ação que acontece naquele espaço.
As sarjetas são responsáveis pela conclusão do que acontece entre um requadro e outro
nas histórias em quadrinhos. Na novela gráfica Daytripper, há o predomínio das sarjetas de ação-
pra-ação e de cena-pra-cena (Figura 48). A sarjeta de ação-pra-ação mostra a mudança de
movimento em uma mesma cena entre um requadro e outro, essa continuidade do movimento
geralmente acontece em uma mesma página. Enquanto, a sarjeta de cena-pra-cena mostra a
mudança de uma cena para outra, essa mudança geralmente acontece entre uma página e outra.
83
mensagem, o texto mostra outra mensagem e as duas informações juntas acabam por criar
uma terceira mensagem (Figura 52). Por exemplo, ao final do capítulo cinco, o personagem
Brás narra uma de suas mortes quando estava com 11 anos. Após voltar do sítio dos avós, ele
morre eletrocutado enquanto brinca com uma pipa nas ruas da cidade de São Paulo.
“And with light, the little miracle was gone.” (E, com a luz, o milagrinho se foi.)
O letreiramento utilizado nas histórias em quadrinhos precisam ser feitos a mão pelo
artista para que os diferentes formatos das letras acrescentem personalidade aos narradores e
personagens da história narrada. Daytripper é formada por três tipos de letreiramento. O
primeiro é quando as palavras do narrador no início do primeiro capítulo e no encerramento
de todos os capítulos são como um obituário, com exceção dos capítulos 9 e 10 que finalizam
como um livro e como uma carta, respectivamente. Nessa narração são utilizadas fontes em
caixa alta e caixa baixa (Figura 53).
“His words will live forever in his books, in the memory of his readers and in the hearts of his
wife, Ana, and their son, Miguel.” (Suas palavras vão viver para sempre em seus livros, na
memória de seus leitores e nos corações de sua esposa, Ana, e do filho deles, Miguel.)
A segundo e o terceiro tipo de letreiramento, é quando a história é narrada normalmente e
quando os personagens estão dialogando. Nesses dois casos, o texto é utilizado sempre em
caixa alta. A separação entre narração e personagens é feita principalmente pela utilização de
caixa ou balões de texto (Figura 54).
“Brás Always insisted on waking up early to enjoy breakfast with Ana and Miguel
before they would leave the house.” (Brás sempre fez questão de acordar cedo para tomar café
da manhã com Ana e Miguel antes deles saírem.)
“We were at home, but then it was a cave full of bats… and a big monster appeared
with eight hairy arms and six eyes on fire.” (A gente tava em casa, mas era uma caverna cheia
de morcegos... e apareceu um monstro bem grandão com oito braços peludos e seis olhos de
fogo.)
Segundo o conceito de art comics de Douglas Wolk (2008), os elementos estéticos de
uma narrativa gráfica sequencial carregam as expressões de sentimentos do autor, ou seja,
tanto os desenhos quanto as cores, também fazem dos artistas, autores de uma narrativa
gráfica não escrita por eles. Em Daytripper as cores foram feitas pelo colorista Dave Stewart
a convite de Fábio e Gabriel, que não somente o conheciam, como já haviam trabalhado com
ele em outros projetos.
87
Dave Stewart pode ser considerado um dos autores dessa novela gráfica ao conseguir
transmitir emoções mesclando cores planas e cores mais expressivas. Apesar de a maior parte
de Daytripper ser colorida com cores planas, em tons vibrantes e pastel, para que a
representação se assemelhe à realidade dos leitores (Figura 55), em algumas páginas foram
utilizadas cores mais expressivas, o que atribui uma característica inovadora a essa arte para
expressar o sentimento que o artista deseja, livre do compromisso de representar a realidade
dos leitores (Figura 56).
Definido por Scott McCloud (2005) como vocabulário, a arte de Fábio e Gabriel em
Daytripper é praticamente toda no plano das figuras, um estilo que valoriza a expressão a ser
transmitida (Figura 58). Em alguns poucos momentos, a arte passa para o plano icônico, pois
intenta valorizar mais a expressão de ideias e, para isso, distancia-se um pouco da expressão
figurativa (Figura 59).
89
Fábio e Gabriel não escondem sua preferência pela arte em preto e branco, característica de
artistas experimentais, pois ela permite maior expressividade por parte dos artistas.
Gabriel: Estamos sempre sendo influenciados por desenhistas e escritores novos.
Gostamos muito da arte do Will Eisner, Jeff Smith, Frank Miller, Mike Mignola,
pois todos eles usam muito bem o desenho em preto e branco. Nos últimos anos, nos
atraiu o trabalho do Eduardo Risso, Frederik Peeters, Sergio Toppi, Gipi. E nossa
maior influência continua sendo o Laerte.
Gabriel Bá ficou responsável pela arte do capítulo 9 (Figura 61), que retrata um sonho
do personagem Brás, e pelas capas de todas as edições, que, assim como no sonho, permitem
uma arte diferente.
Gabriel: As capas (que, na edição encadernada, são as ilustrações que dividem os
capítulos) também foram feitas pelo mim, pois estão deslocadas da narrativa,
podendo ter outro estilo.
90
Apesar de Daytripper ter sido lançada originalmente nos Estados Unidos, foi feita por
brasileiros com personagens e cenários brasileiros. Esses aspectos revelam um espaço para o
desenvolvimento de uma cultura híbrida que engloba não apenas a cultura, mas também a
língua.
Fábio: Nosso estilo de escrever é muito despretensioso. Na maioria das vezes, nosso
texto não é rebuscado, não usa palavras difíceis. Tentamos escrever de forma clara,
mas sem exagero de gírias, e fizemos isso em inglês com Daytripper e, durante a
tradução, buscamos manter o nosso estilo de escrever também em Português.
Mesmo durante a produção dos textos em inglês, que aconteceu antes da tradução para
o português, Daytripper revela, em meio a toda a hibridação cultural e de línguas existentes,
que dois autores que dominam uma língua estrangeira e escrevem nessa língua, apresentam
um texto que já nasce como tradução, afinal, o posicionamento deles será sempre o de um
estrangeiro (Figura 65).
94
“His cousins, on the other hand, didn’t see it to be quite as super.” (Os primos dele,
por outro lado, não acham tão superassim.)
“No way.” (Impossível)
“You’re making it up.” (Cê ta inventando.)
“No, I’m not.” (Não tô, não.)
A cultura brasileira representada por Fábio Moon e Gabriel Bá em Daytripper também
traz elementos de uma cultura cada vez mais híbrida. Segundo os conceitos sobre o local da
cultura, de Homi K. Bhabha (2010), a representação da cultura brasileira feita pelos autores é
pessoal, ou seja, traz a experiência de vida deles, além de incorporar elementos culturais de
diferentes lugares e mesclar culturas do presente e do passado.
Os traços de autoralidade de Fábio e Gabriel estão presentes na arte da novela toda e
também são representados pelo personagem Brás. Assim como os autores, Brás possui grande
afinidade com a arte, essa afinidade faz parte da experiência de vida dos autores e acrescenta
um valor peculiar à história. Os locais frequentados pelos personagens são recortes dos locais
e das situações vividas e percebidas pelos autores para tornar possível uma narrativa atraente
e inovadora.
Fábio: O que acontece conosco nos traz um certo sentimento. É esse sentimento que
tentamos reproduzir na história e criamos situações para os personagens, que são
diferentes das nossas vidas, para que esse sentimento seja transmitido.
95
Em Daytripper, Brás vive em meio a uma cultura facilmente reconhecida pelo público
brasileiro, mais especificamente pelo público paulista, pois a maior parte da história se passa
na cidade de São Paulo. O dia a dia de Brás, sua ida ao trabalho, o café com o amigo, a
arquitetura ao seu redor, a visita à casa de avós no interior, as brincadeiras de criança, como
soltar pipa, o velório, as viagens, as festas religiosas etc. Todas essas ações são comuns à
qualquer tipo de pessoa, na maior parte do mundo, mas o jeito de fazer, é culturalmente
paulista. A manifestação cultural que ilustra de forma mais completa essa análise é a festa de
Iemanjá da qual Brás participa em sua viagem a Salvador (Figuras 66 e 67).
antepassados para se tornar verdadeiras e/ou ser transmitidas para gerações futuras. Essa
cultura, híbrida por natureza, é desenvolvida a partir da hibridação entre o personagem Brás e
os autores, entre São Paulo e Salvador, entre o passado e o presente.
Um dos elementos inovadores que Daytripper traz são aqueles que formam o conteúdo
da narrativa, pois eles caracterizam os aspectos de uma arte autoral, na qual o discurso é
formado pela pluralidade de egos dos autores e do locutor fictício (FOUCAULT, 2006), o que
cria condições para o desenvolvimento de uma arte experimental, para novas possibilidades
de organização para aquele discurso específico (ECO, 2008). De outro modo, os elementos
que compõem a estética e a narrativa também permitem inovações, porém mais discretas.
Afinal, o público precisa estar acostumado com alguns modelos narrativos que facilite a sua
compreensão para um produto cultural seja democratizado (CANCLINI, 2011). É preciso
atender à expectativa do público para atingir grandes números de exemplares vendidos e se
obter algum lucro, justificar sua publicação por uma das maiores editoras de história em
quadrinhos do mundo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A novela gráfica Daytripper dos autores Fábio Moon e Gabriel Bá apresenta muitas
inovações no âmbito da estética e principalmente no da narrativa, e muitas outras inovações
ficam por conta do conteúdo da narrativa, ou seja, nos elementos culturais expressos a partir
dos traços de autoralidade.
As inovações no âmbito da narrativa estão presentes na passagem do tempo de um
capítulo para o outro, que acontece de forma não linear para valorizar os anseios vividos pelo
personagem Brás, principal foco da narrativa, que também apresenta características
inovadoras, pois não apenas conduz a história, como também carrega em sua construção todo
o conteúdo narrativo.
No âmbito da estética, as inovações são compostas pela utilização do requadro de
destaque em cada cena, que em muitos casos mescla as características da amplitude do
cenário por meio do requadro sangrado, com a ausência da linha do requadro, somada à
sobreposição de requadros menores como condutores de uma ação, da mesma forma que o
metaquadrinho. Outra inovação estética é a discrição e simplicidade na criação da primeira
página, que não recebe destaque diferenciado das demais páginas, apenas a identificação
discreta do capítulo e do título que não aparece necessariamente na primeira página, essas
informações podem estar na segunda, terceira, quarta, quinta, ou até mesmo na última página
do capítulo. O movimento também possui características inovadoras em Daytripper, pois os
autores não acrescentam novos elementos para representá-lo, eles estilizam os personagens,
objetos e cenários utilizando variações com efeitos de fotografia ou com estudos
desenvolvidos pelas artes. Em alguns breves momentos da narrativa, Fábio Moon e Gabriel
Bá utilizam traços icônicos, esse tipo de arte possui características experimentais, pois inovam
na forma de expressão do artista. O colorista Dave Stewart, outro artista que também
contribuiu para a expressividade de Daytripper, foi escolhido pelos autores por sua
capacidade de se adaptar ao estilo de cada artista e, assim, compor uma arte uniforme e
variada. As inovações de Dave Stewart nesta publicação estão presentes nas poucas páginas
em que pôde utilizar coloração mais expressiva e nas constantes aplicações de foco por meio
da utilização de cores quentes contrapostas às frias e neutras.
Os outros aspectos estéticos e narrativos de Daytripper são comerciais, pois são
comumente encontrados em outras histórias em quadrinhos, teorizados como modelos para
uma narrativa em arte sequencial (McCLOUD, 2005; EISNER, 2010). Os modelos narrativos
98
personagem são uma mescla de lugares conhecidos e frequentados pelos autores, como o
centro cultural b_arco, a arquitetura das construções e as cidades por onde o personagem
passa, entre outros elementos.
Daytripper é uma publicação híbrida e sincrética por natureza. Como história em
quadrinhos, é constituída por elementos híbridos originados da união entre texto e imagem
(EISNER, 2010); como novela gráfica e produção mainstream, é o resultado do sincretismo
de uma arte experimental e autoral com modelos preestabelecidos de um produto da indústria
cultural, nesse caso as qualidades de uma, não altera ou anula as qualidades da outra
(CANEVACCI, 1996). Outros dois aspectos de hibridação estão na inserção da cultura
brasileira representada por autores brasileiros em um produto da indústria cultural criado no
Brasil, mas produzido e comercializado originalmente nos Estados Unidos, e na abordagem
de temas característicos de uma sociedade pós-moderna e globalizada: a formação da
identidade cultural do personagem Brás e seus anseios quanto à relação entre pai e filho, nas
questões profissionais, amorosas, de amizade e com relação ao nascimento e à morte.
Por fim, a novela gráfica Daytripper é uma criação independente, produzida
profissionalmente pela editora DC Comics, sucesso absoluto de vendas, aclamada pelo
público e pela crítica. Possui características estéticas e narrativas experimentais e comerciais,
fato que justifica ser uma criação independente produzida por uma das maiores editoras de
história em quadrinhos do mundo. Como é uma publicação com inovações principalmente no
âmbito do conteúdo narrativo, apresenta fortes traços de autoralidade e hibridação cultural.
100
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103
WOLK, Douglas. Reading comics: how graphic novels work and what they mean. New
York: Da Capo Press, 2008.
ANEXO
Entrevista com Fábio Moon e Gabriel Bá, autores de Daytripper
Fábio: Acho que sim. Nosso estilo de escrever é muito despretensioso. Na maioria das vezes,
nosso texto não é rebuscado, não usa palavras difíceis. Tentamos escrever de forma clara, mas
sem exagero de gírias, e fizemos isso em inglês com Daytripper e, durante a tradução,
buscamos manter o nosso estilo de escrever também em Português.
2. A arte da minissérie Daytripper foi desenvolvida por vocês dois, e é natural que exista
diferenças entre a arte de cada um, mas a história favorece esse tipo de situação, pois cada
capítulo retrata um período da vida dos personagens e a diferença entre os desenhos pode ser
justificada pelo tempo não ser sempre o mesmo. Quais foram os cuidados que vocês tiveram
na hora de definir as páginas que cada um desenhou?
Fábio: Eu desenho todos os capítulos, para que exista uma unidade visual durante a história
inteira. Ficar tentando descobrir quem desenhou qual parte pode distrair o leitor da história, e
esse não era o nosso intuito. Os únicos momentos em que o Bá desenhou páginas são os
momentos em que o personagem sonha. Somente essa mudança entre sonho e realidade nos
possibilitou variar o estilo e, conseqüentemente, o artista.
Gabriel: As capas (que, na edição encadernada, são as ilustrações que dividem os capítulos)
também foram feitas pelo mim, pois estão deslocadas da narrativa, podendo ter outro estilo.
3. É natural que a arte de vocês tenha sido e continue sendo influenciada por muitos
outros artistas. Percebo que seus trabalhos atuais seguem o mesmo estilo da época dos
fanzines, desconsiderando o aperfeiçoamento natural que ocorre. Quais foram as principais
influências artísticas do começo de carreira e quais são as principais influências artísticas
atualmente?
Gabriel: Estamos sempre sendo influenciados por desenhistas e escritores novos. Gostamos
muito da arte do Will Eisner, Jeff Smith, Frank Miller, Mike Mignola, pois todos eles usam
muito bem o desenho em preto e branco. Nos últimos anos, nos atraiu o trabalho do Eduardo
Risso, Frederik Peeters, Sergio Toppi, Gipi. E nossa maior influência continua sendo o Laerte.
Gabriel: O Daytripper não é um cartão postal e por essa razão não precisamos ficar
nomeando e situando todos os locais que aparecem na história. Mas, muitas vezes, para
conseguir uma veracidade na história, um sentimento autêntico, precisamos buscar locais reais
ou nos inspirar em situações reais para criar eventos fictícios. Os elementos reais são
costurados para contar melhor a história, que é uma ficção.
Fábio: Quando você coloca um lugar real na história e o leitor reconhece esse lugar, ele é
transportado para dentro da história.
5. O artista Schlomo Lerner, o local Acemira, a montanha que abre o capítulo sobre a
viagem para Salvador e o prédio em que puderam avistar a fumaça do acidente de Congonhas
são reais ou foram criados com algum significado específico?
Gabriel: Em uma história de ficção, não é importante o que existe e o que foi inventado. Se
fizermos um bom trabalho, essa dúvida sempre vai surgir, mas a resposta não é importante. Se
o leitor ficar curioso a ponto de procurar saber mais sobre os lugares, personagens e
acontecimentos da história, melhor ainda. A idéia é enfeitiçar o leitor e sua imaginação.
Fábio: Schlomo e Acemira são inventados, são misturas de várias pessoas, lugares e situações
que queríamos para a história, a montanha existe na Chapada Diamantina, na Bahia, e o
prédio, por fora, é o Edifício Martinelli (por dentro eu inventei).
Gabriel: Nem todo leitor precisa conhecer estes lugares para aproveitar a história. Tem gente
no Brasil que nunca foi pra Chapada da Diamantina, ou conhece o Edifício Martinelli. Ao
redor do mundo, então, muita gente nunca veio ao Brasil. Mas isso não atrapalha a leitura da
história. Pra quem conhece esses lugares, dá uma camada nova de leitura.
6. A água da praia foi retratada como muito limpa e cristalina, vocês se basearam em
alguma praia específica ou refere-se apenas a algum significado estético?
Gabriel: Qualquer pessoa que conhece algumas praias do litoral brasileiro sabe que temos
praias lindíssimas. E quem não conhece, ao menos sabe da fama da beleza natural do Brasil.
Fábio: A praia em Salvador existe e é daquele jeito mesmo.
Fábio: Nós viajamos muito e é impossível não pensar naquele evento todas as vezes que
estamos no Aeroporto de Congonhas, decolando ou pousando, ou apenas buscando algum
amigo. Isso deve acontecer com milhares de pessoas todos os dias.
8. A ideia do trem que vai para o litoral foi teve como base algo já existente?
Fábio: Não, foi somente a minha visão otimista de um futuro com trens ligando São Paulo ao
litoral.
9. Alguns desses locais citados nas perguntas 4, 5, 6, 7 e 8 foram desenhados com base
em alguma imagem anterior, fotografia, desenho, pintura, filme ou algo parecido? Se sim, é
possível ver essas imagens?
Gabriel: Usamos muitas imagens diferentes para montar nossa história, nem sempre é um só
lugar, mas uma colagem de locais diferentes. O importante, mais uma vez, é conseguir uma
sensação de um local que exista, que o leitor consiga imaginar, se reconheça.
10. A história narra vários conflitos que uma pessoa pode ter nas diversas etapas de sua
vida. O personagem Brás encara questões como: relação entre pais e filhos sob os dois pontos
de vista, problemas familiares, viagens de lazer e trabalho, arte como expressão da vida,
sucesso e fracasso no amor, morte e nascimento, infância, desastres que marcam suas vidas,
loucura diante de algo inexplicável, sucesso e frustração profissional, envelhecimento.
Algumas dessas questões foram baseadas diretamente na experiência de vida de vocês ou de
algum conhecido? Caso a resposta seja positiva, com quem foi e o que aconteceu?
Gabriel: Os elementos que tratamos durante a história são coisas que acreditamos ser
importantes na vida das pessoas, mas que normalmente passamos despercebidos por elas. São
coisas simples, que podem acontecer com qualquer pessoa. Justamente por não serem
extraordinárias, podemos não dar muita atenção a elas, mas quando colocamos o foco em
cima delas, as pessoas podem se identificar e, quem sabe, refletir sobre suas próprias vidas.
Fábio: O que acontece conosco nos traz um certo sentimento. é esse sentimento que tentamos
reproduzir na história e criamos situações para os personagens, que são diferentes das nossas
vidas, para que esse sentimento seja transmitido.
11. Entendo que o nome do personagem principal, Brás de Oliva Domingos faz
referências à cultura brasileira. A primeira semelhança é com o nome do país de origem do
personagem e o local onde a história se desenvolve, o Brasil. Outra característica marcante é o
fato de o personagem Brás de Oliva Domingos ser escritor de obituários para um jornal,
portanto, impossível não relacionar este fato com o personagem Brás Cubas de Machado de
Assis. No romance Memórias póstumas de Brás Cubas o personagem está morto e narra sua
biografia, ou seja, existe uma semelhança entre o nome dos personagens e o fato de os dois
escreverem sobre a morte. Esta observação está correta? Existe mais alguma relação entre o
nome com algo que não foi mencionado?
Fábio: A relação maior é com o Brás Cubas, pois existe essa relação entre o questionamento
da vida e da morte em ambas as histórias, e porque achamos que para um escritor conceituado
como o pai do Brás, dar ao filho um nome de personagem clássico da literatura brasileira
parece uma boa idéia. A relação com a história se passar no Brasil, se existe, existiu quando a
primeira criança foi nomeada de Brás, e talvez tenha existido quando Machado nomeou seu
personagem, mas não foi por isso que escolhemos esse nome.
12. Como foi a escolha do colorista Dave Stewart? A escolha partiu de vocês ou da
editora? Como foi o desenvolvimento do trabalho com esse artista? Em muitas cenas o foco
principal é atribuído às cores quentes ou vivas em contraponto às cores frias ou opacas do
restante das imagens. Essa característica realmente existe? Se sim, é uma característica de
vocês ou do Stewart?
Fábio: Escolhemos o Dave, com quem já havíamos trabalhado em outros projetos. Gostamos
muito do trabalho dele e acreditamos que ele se transforma em cada história para encontrar
uma forma de colorir que combine com os diferentes artistas e com as diferentes temáticas.
Mandamos muitas fotos e comentários preliminares para cada capítulo para ajudá-lo a
entender o que a história precisava, e mandamos algumas aquarelas preliminares que fizemos,
ele absorveu tudo isso e o resultado final não poderia ter ficado melhor.
13. A minissérie Daytripper foi editada pela editora Vertigo. Como aconteceu o convite
da editora? Houve alguma imposição ou a editora deu carta branca para que vocês
produzissem com total liberdade?
Gabriel: Depois de vários anos mostrando trabalho para vários editores no mercado
americano e publicando aos poucos nossas histórias por lá, um destes editores, o Bob
Schreck, foi para a Vertigo, um lugar onde ele sabia que poderia publicar o tipo de histórias
que nós contamos. Foi então que ele pediu que mandássemos idéias e eles gostaram da idéia
que resultou no Daytripper.
Fábio: Tivemos total liberdade pra criar idéias e, uma vez escolhida uma, desenvolvemos
totalmente a história que queríamos contar. Fomos convidados a fazer o nosso tipo de história,
não algo que se encaixasse nos moldes da Vertigo.
14. O tratamento que vocês recebem das editoras brasileiras atualmente é diferente do
tratamento recebido no começo da carreira de vocês? Se sim, o que motivou essa mudança de
atitude?
Fábio: No início da nossa carreira, as editoras brasileiras não estavam mais publicando
material nacional autoral, então começamos nos auto-publicando. Quando o mercado nacional
começou a ressurgir e as editoras voltaram a se interessar por quadrinhos, apresentávamos
projetos prontos, inteiramente desenhados. Só isso mudou, pois hoje em dia a conversa com
as editoras acontece muitas vezes antes de começar a desenhar.
Gabriel: As editoras brasileiras mudaram um pouco desde que começamos a publicar aqui no
Brasil, mas não somos tratados de maneira diferente. Hoje recebemos muitos convites para
projetos diferentes, mas isso já acontece há vários anos. Continuamos fazendo somente os
nossos próprios projetos, ou aqueles que acreditamos ter algo a acrescentar à nossa carreira,
algum desafio. Isso sempre foi assim, tanto aqui quanto no exterior.
Gabriel: Tivemos o melhor retorno possível do público, em todos os lugares. Não teve um
público que gostou mais ou menos, tivemos a mesma receptividade em todos os países onde o
livro foi publicado.
Fábio: O público brasileiro reconhece alguns lugares, a camiseta da Gaviões da Fiel no
primeiro capítulo, estes pequenos detalhes, e isso teve sempre uma resposta positiva.
16. A quantidade de viagens que vocês fazem é a principal responsável por colocar os
trabalhos de vocês em evidência? Que outros fatores consideram importantes para alcançar
toda essa visibilidade?
Gabriel: As histórias são as responsáveis pela repercussão do nosso trabalho. Alguns prêmios
também ajudam a colocar o trabalho em foco. Sem os trabalhos, não haveria prêmios nem
convites para viagens.
17. Quando vocês estão desenvolvendo uma história em quadrinhos, existe algum tipo de
preocupação se o que está sendo feito é comercial o suficiente para ser produzido por uma
editora? E quais são os principais elementos comerciais a serem considerados?
Fábio: Não pensamos no lado comercial das nossas histórias, e sim na sua relevância.
Acredito que, se você tem algo a dizer que acredita valer a pena, deve tentar de todas as
maneiras possíveis colocar isso para fora, aos olhos do público. Se o trabalho for o melhor
que você pode fazer, e for relevante, chamará atenção e, se tudo der certo, terá algum retorno
financeiro como conseqüência, nunca como meta. Se não, tente novamente no próximo
projeto, na próxima história. Quando pensamos nas editoras, já procuramos editoras que
tenham ao menos uma linha editorial que nos interessa, que pareça aberta ao nosso tipo de
história. É importante conhecer as editoras com quem você pode ou quer trabalhar para não
fugir do perfil da editora e depois não entender porque seu projeto não foi aceito ou não foi
bem trabalhado.
Fábio e Gabriel: Sim, desde que nos enviem ao menos duas copias de cada publicação.