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br/imprima2378
maio 2008
LITERATURA
O bestiário do Cristo
Sem a desconfiança dos primeiros homens da Igreja, ciosos em preservar o
dogma cristão contra aquilo que identificavam como um vestígio das idolatrias
pagãs, Charbonneau-Lassay vai buscar não só a interpretação religiosa, mas as
numerosas fontes pagãs e o modo como os primeiros cristãos se apropriaram de
antigos emblemas locais: a águia, o golfinho, a fênix, o íbis no Egito, o leão em
Roma
Pablo Simpson
Simbolismo, emblemática
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Mas a interpretação não se interrompe aí. A maior parte dos animais do Bestiário
representaria igualmente “o Cristo Jesus enquanto princípio de toda a vida,
redentor e restaurador do Bem contra os poderes do mal”. Assim, o leão será
emblema de sua vigilância, representado com olhos bem abertos no deserto; ou
do verbo divino (rugido e poder da palavra do Cristo); ou dos amores humano e
eucarístico; ou das provações da vida, a partir do episódio de Davi; ou da morte
do Cristo, desta vez inspirado num episódio bíblico em que Sansão mata um leão
e, pouco depois, encontra-o tomado por um enxame de abelhas. Por fim, será
emblema também da ressurreição do Cristo, como demonstra uma
representação recorrente no século 13, detalhe de um vitral da catedral de Le
Mans na França e trecho de um poema do Bestiaire divin de Guillaume de
Normandie: neles um leão desperta seu filhote com um sopro e uma lambida
depois de três dias de nascido, “Iusque li pere, au tierz iior/ Le souffle et leche
par amor”, “Até que o pai, no terceiro dia/ O sopra e o lambe por amor”.
Os animais estão por todos os lados na poesia surrealista. São faisões, corvos,
grilos, estrelas-do-mar em André Breton, pássaros e insetos voadores em Louis
Aragon, touros em Michel Leiris, animais de montaria e rebanho em René Char.
Não raro, aliam-se à descoberta do inconsciente e à sua exploração pela poesia.
Residem, tanto mais, numa espécie de primazia poética conferida à imagem. Os
autores surrealistas vão buscá-las nos minotauros de Pablo Picasso, nos animais
disformes ou pouco identificáveis de Max Ernst, como o gigante Célèbes. Em
sentido inverso, Salvador Dali ilustraria a saga monstruosa dos Cantos de
Maldoror de Lautréamont. Para Claude Maillard-Chary, há uma variedade de
representações que não exclui a presença de micro-organismos infecciosos,
animais investidos de poderes hipnóticos, seres extraordinários [4]. Mas há
também referências religiosas. Gustave Apollinaire em seu Bestiaire, belamente
ilustrado por Raoul Dufy e anterior ao período surrealista, traria poemas não
muito distantes do universo de Jorge de Lima de Invenção de Orfeu, capazes de
relacionar a mitologia e o Cristo. No estranho posfácio, afirma: “Orfeu inventou
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Eu entro numa igreja (é mais uma capela). Está lotada; não do tipo de gente que
normalmente se vê nesses lugares, mas daquele tipo dos bistrôs: caras,
espertezas, bondades, narizes em forma de tomate ou em fio de ferro, bigodes e
aquele orgulho canalha que flutua nos lábios dos que apenas sobrevoam o
cardápio. Algumas mulheres: conto três, quatro, cinco, seis no total, não sete,
olhei direito, só seis, dispersas, em cabelos, em lenços. Tentei classificá-las:
trinta, quarenta-e-cinco, sessenta anos, duas bem jovens, mesmo assim
mulheres se julgo pelos olhos e pela vivacidade dos olhares. Representam o quê
na minha vida? É mais difícil dizer: vejo apenas as cabeças e ainda, no caso de
cinco delas, de três quartos, a sexta, só vejo a nuca. Imagino que elas são... por
que me interessam essas mulheres, se o que há de mais extraordinário nessa
assembléia é um cavalo? [5]
***
[1] O primeiro com sua História dos animais (Perizôôn historias), o segundo com sua História natural
(Naturae historiarum libri).
[2] Essas hipóteses estão no estudo de Jacques Voisenet. Bestiaire chrétien, L’im agerie anim ale des
auteurs du Haut Moyen Âge (Ve-XIe s.), préface de Pierre Bonnassie, Presses Universitaires du Mitrail,
Toulouse, 1994. As fábulas de Esopo foram representadas, mais recentemente, no século 19, no portal
da Imaculada Conceição da Catedral de Sevilha.
[5] Le Bestiaire, Ram say, Paris, 1991. Giono está estranhamente de fora do panoram a de Claude
Maillard-Chary.
[6] Hermétisme et emblématique du Christ dans la vie et dans l’œuvre de Louis Charbonneau-Lassay
(1871-1946), Archè, Edidit, 1996.
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