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Ano XIII Nov 16

Número 12
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 6

SUMÁRIO
O TEATRO POLÍTICO NO AGORA:
TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

PÁGINA 24 PÁGINA 58 PÁGINA 84

POR UMA ARTE O ESCRACHE: CENA E FEMINISMOS


PANFLETÁRIA UMA ARMA PARA DECOLONIAIS
A TRANSFORMAÇÃO LATINO-
Nina Caetano SOCIAL AMERICANOS:
(Belo Horizonte/MG) subjetividades como
Pedro Diniz Bennaton zonas de confronto
(Florianópolis/SC)
Stela Fischer
(São Paulo/SP)
7 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

PÁGINA 106 PÁGINA 134 PÁGINA 154

NOTAS PARA O TEATRO NORDESTE, BRASIL,


RETOMADA NA URGÊNCIA: LATINOAMÉRICA
DO DEBATE como pensar o político no
SOBRE TEATRO interior do campo teatral? Fernando Yamamoto
E REVOLUÇÃO (Natal/RN)
NO BRASIL Sara Rojo
(Belo Horizonte/MG)
Rafael Litvin Villas Bôas
(Brasília/DF)
SUMÁRIO
O TEATRO POLÍTICO NO AGORA:
TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

PÁGINA 170 PÁGINA 190

A CRIAÇÃO TEATRAL EM PORTUGAL NO ENTRE O SUBLIME


CONTEXTO DAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS E O ESPÚRIO:
COMUNITÁRIAS uma breve exposição sobre
o conceito de justaposição
como procedimento
(Porto/Portugal) de montagem política

Santiago Sanguinetti
(Montevidéu/Uruguai)
GALPÃO CINE HORTO
EM FOCO EM FOCO

PÁGINA 222 PÁGINA 242

NÓS E A APOSTA FESTIVAL CENAS


NO RISCO CURTAS DO GALPÃO
CINE HORTO:
a liberdade criativa
Eduardo Moreira como atitude política
(Belo Horizonte/MG)
Marcos Coletta
(Belo Horizonte/MG)
EXPEDIENTE
Subtexto – Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
n. 12 – ISSN 1807-5959

PRODUÇÃO EDITORIAL:
Marcos Coletta

JORNALISTA RESPONSÁVEL:
Luciene Borges (MG 09820 JP)

CONSELHO EDITORIAL:
Chico Pelúcio, Marcos Coletta,
Nina Caetano e Sara Rojo.

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO:

Marcos Coletta, Nina Caetano, Pedro Diniz Bennaton, Rafael Litvin


Villas Bôas, Santiago Sanguinetti, Sara Rojo e Stela Fischer.

REVISÃO:
Élida Murta e Rachel Murta | Trema Textos

TRADUÇÃO:
Gabriela Figueiredo e Thiago Landi

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:


Estúdio Lampejo
CPMT – Centro de Pesquisa e
Memória do Teatro do Galpão Cine Horto

Rua Pitangui, 3613 – Horto. CEP 31030-065


Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil / Tel. +55 31 3481 5580
http://galpaocinehorto.com.br/cpmt/
centrodepesquisa@galpaocinehorto.com.br

A Revista Subtexto é uma publicação independente.


Todas as opiniões expressas nos artigos são de
responsabilidade exclusiva dos autores.

Publicação Eletrônica. Versão em Português.


NOVEMBRO DE 2016.
Editorial | 12

EDITORIAL
13 | Editorial
Editorial | 14

CARO LEITOR,

A décima segunda edição da Revista Subtexto de Teatro

IV Seminário Subtexto em Diálogo, ocorrido em 18 de junho


de 2016. Nesse evento bienal nosso principal desejo é levantar
questões e pensamentos acerca de temas pertinentes e
atuais que possam produzir ações e estratégias práticas,
além de promover intercâmbios e encontros entre artistas,
pesquisadores e o público presente no espaço do Galpão Cine
Horto. Como síntese do Seminário, a Subtexto conseguinte
reúne artigos dos palestrantes e mediadores, além de textos

mas que foram convidados a escrever por possuírem um


reconhecido trabalho artístico ou pesquisa sobre o tema
proposto a cada edição. Em 2016, o seminário propõe o
tema “O teatro político no agora: temáticas e explorações

o teatro político à luz de questões atuais e urgentes, que vêm


mobilizando debates em diversos campos e que reverberam
na cena teatral brasileira contemporânea.
15 | Editorial

Arte e política, em seu sentido mais amplo, são campos


historicamente interligados que cultivam uma relação
ontológica que se transforma e se renova a cada geração,
dando origem a variados movimentos, ações e reações.
No teatro mundial, as referências mais imediatas nos
status quo
de sua época, ao agitprop russo comunista dos anos 1920,
ao teatro épico-dialético de Bertolt Brecht e às performances e
aos happenings de coletivos da contracultura norte-americana,
como Bread and Puppet e Living Theatre, nos idos de 1970.
No Brasil, desde os movimentos de resistência à ditadura
militar, o teatro político se alinhou à esquerda marxista e aos
sonhos de revolução popular, resultando em experiências de
grupos historicamente emblemáticos como Arena, Opinião,

também, no desenvolvimento de poéticas importantes como


o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, internacionalmente
reconhecido. Com o restabelecimento da democracia e a
crescente ênfase dada ao trabalho do ator, ao processo criativo
e às questões técnicas do fazer teatral, o termo “teatro político”
acabou rotulado como algo datado, frequentemente usado de
forma pejorativa para categorizar propostas cênicas de forte
discurso, mas de pouco apuro estético, usadas apenas como
veículo de uma ideologia. Do “teatro político” derivam outros
termos como “teatro de resistência”, “teatro de militância” e

por ser costumeiramente relacionado à doutrinação e ao


maniqueísmo. Não é incomum um espetáculo ser “elogiado”

e desentendimentos.
Editorial | 16

Mas, para além dos rótulos, o teatro (assumidamente ou


não) político nunca deixou de ser realizado no Brasil e,

a partir de experimentações com variadas formas e


linguagens, em que se destacam obras híbridas de
caráter performático e convivial. Com a efervescência
de movimentos culturais e sociais voltados para setores
marginais e periféricos da sociedade, o teatro político de
hoje se propõe a discutir não mais (ou não apenas) a grande
política e as grandes ideologias, mas as micropolíticas
numa concepção molecular, dinâmica e rizomática.
Mais do que um embate entre comunismo/capitalismo,
democracia/ditadura, o cunho político das obras artísticas
atuais parece evidenciar o convívio e o confronto das

da sociedade. Manifestos e ações sobre questões de gênero,


de raça, de desigualdade social, de relações de poder e

de identidades têm sido vistos com frequência cada vez maior


na cena teatral do País. O que parece estar presente no teatro
político do agora é a visão de uma sociedade não homogênea,
não coesa, não unívoca, que se reconhece como diferente e

interpessoais, a realidade virtual, o advento das redes sociais,


a fragmentação, a diluição de fronteiras geopolíticas e o

contestadora do teatro – esta arte tão antiga,


mas nunca ultrapassada.
17 | Editorial

O que podemos considerar como “teatro político” hoje?


Para onde esse “teatro político” está mirando o seu olhar?
Que tipo de transformações ele deseja impulsionar?
Que estratégias e mecanismos cênicos ele tem desenvolvido
ou retomado? Questões como essas balizaram a realização
do Seminário e a produção da revista Subtexto. Nas páginas
a seguir, poderemos conhecer ideias e práticas de grupos
e artistas contemporâneos que, através de suas obras e
pesquisas, vêm movimentando discursos, saberes e afetos
que se querem políticos na medida em que interferem
diretamente nas relações sociais, nos nossos lugares de
enunciação e na ideia de corpos individuais e coletivos.
Editorial | 18

No texto que abre a seção principal, Nina Caetano (MG)

apoiada nos pensamentos de Ileana Dieguez, Judith Butler e


Eleonora Fabião e na própria experiência como performer e

como “campo de batalha”.

Em seguida, Pedro Bennaton (SC) aborda a experiência


político-artística do grupo argentino H.I.J.O.S. (Hijos por la
Identidad e Justicia contra el Olvido y el Silencio) e estabelece
relações entre os eixos performance, teatro, comunidade e
transformação.

Depois, Stela Fischer (SP) dá foco à cena de mulheres


artistas latino-americanas que tomam as subjetividades
como zonas de confronto e contra-atacam o colonialismo
histórico, as sequelas de governos ditatoriais, as dinâmicas
de neocolonização, o conservadorismo e outras situações de
opressão que se evidenciam na América Latina.

Rafael Litvin Villas Bôas (DF) propõe em seu texto um


mapeamento em forma de notas da retomada do teatro
político brasileiro, reavaliando o sentido contemporâneo do
debate sobre teatro e revolução e apontando para uma nova
geração de artistas que emerge na política, recuperando
táticas de luta, inventando métodos e se defrontando com um
cenário menos ofuscado pela ideologia.
19 | Editorial

No próximo artigo, Sara Rojo (MG) nos lança a pergunta


“Como pensar o político no interior do campo teatral?” e
tece alguns apontamentos sobre a prática teatral em diálogo

ideias com espetáculos teatrais recentemente montados em


Belo Horizonte.

Fernando Yamamoto (RN), do Clowns de Shakespeare,


relata a experiência do grupo em suas incursões pela América
Latina e como isto resultou no Projeto Latino(-)americano,
que envolve ações de criação, formação, pensamento, e cujo
primeiro fruto foi a Trilogia Latino(-)americana, formada por
três peças que dialogam com o passado e o presente político
do nosso país e do nosso continente.

Dois textos internacionais fecham a seção principal da revista:

a atual produção teatral portuguesa baseada num sentido


comunitário que impulsiona ações emancipatórias e expõem a
experiência do projeto PELE - Espaço de Contacto Social
e Cultural, desenvolvido na cidade do Porto.

analisa
o procedimento de justaposição de elementos dissonantes e
contraditórios para produzir a multiplicação dos sentidos de
uma obra, fazendo com que a forma seja tão ou mais política
que o conteúdo. Como exemplos, o autor nos apresenta e
disserta sobre as peças que formam a Trilogia da Revolução,
escritas e dirigidas por ele.
Editorial | 20

Na seção Galpão em Foco, o diretor, ator e dramaturgo


Eduardo Moreira (MG), um dos fundadores do Grupo

última montagem do grupo, Nós, estreada em 2016 sob


a direção de Marcio Abreu. A obra se destaca por buscar
novos horizontes na trajetória do Galpão e por se propor
política desde o início do processo de criação, resultando em
um espetáculo que traz para a cena o peso e os dilemas de
uma companhia de 35 anos de existência e os relaciona com
temas sociais e políticos da atualidade.

Na seção Cine Horto em Foco, o Festival Cenas Curtas


do Galpão Cine Horto é observado pelo ator, dramaturgo e
pesquisador Marcos Coletta (MG), enfatizando sua potência
política ao proporcionar um espaço de liberdade criativa,
experimentação estética e pluralidade temática há 17 anos.
O autor destaca as duas últimas edições do projeto, quando
integrou a equipe de curadoria e contribuiu para uma guinada
ainda mais engajada e crítica do Festival.
21 | Editorial

Com estes dez artigos, a décima segunda Revista Subtexto


deseja contribuir com a discussão sobre os caminhos e

coerente com o nosso tempo e atravessado pelas questões


e tensões sociais que vivemos hoje, buscando articulações
que possam reverberar em ações e pensamentos artísticos
comprometidos com o presente e atentos ao futuro.

Boa leitura!

Marcos Coletta

Coordenador editorial da Revista Subtexto


O TEATRO POLÍTICO
TEMÁTICAS E EXPL
ESTÉTICAS URGENT
O NO AGORA:
LORAÇÕES
TES
POR UMA ARTE
PANFLETÁRIA

Nina Caetano 1
(BELO HORIZONTE/MG)
1 - Nina Caetano (MG) é performer, pesquisadora e

ativista. Professora do Programa de Pós-Graduação

em Artes Cênicas da UFOP, ela coordena o NINFEIAS –

Núcleo de Investigações Feministas (Ouro Preto/MG) e

integra o OBSCENA – agrupamento independente de

pesquisa cênica (BH/MG).


27 | Por uma Arte Panfletária

QUAL É A EFETIVIDADE DA AÇÃO NA CENA


CONTEMPORÂNEA?

Essa questão, lançada pela pesquisadora cubana Ileana Diéguez


no Colóquio Pensar a Cena Contemporânea2, tem sido mote
para muitas das discussões e práticas em torno das possíveis

as artes da presença e a ação política, que realizo dentro do


projeto de pesquisa “Corpos Estranhos, Espaços de Resistência”,
desenvolvido junto aos coletivos NINFEIAS e Obscena3.
[Famoso cartaz pró-aborto, concebido

pela ativista feminista estadunidense


“Seu corpo é um campo de batalha”

Barbara Kruger, em 1989]


O Teatro Político no Agora | 28
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O projeto investiga ações performativas e escritas performadas


(em suas múltiplas dimensões e suportes) que têm como eixo
as diferentes corporeidades e práticas espaciais produzidas
nas relações de enfrentamento e convívio ocorridas no espaço
urbano. Interessam-me, sobremaneira, as corporeidades vistas
a partir das questões de gênero4, sendo objeto de investigação
as práticas parodísticas e de (auto)invenção que visam a
perturbar as lógicas de padronização e espetacularização
das subjetividades e colocar em xeque discursividades e
representações que materializam os corpos, ou seja, são objeto
de experimentação as práticas que desejam evidenciar os
efeitos de poder que pesam sobre nossos corpos, tornando-os
(ou não) inteligíveis:

Nesse sentido, o que constitui a

movimentos, será plenamente material,


mas a materialidade será repensada como
o efeito do poder, como o efeito mais
produtivo do poder. [...] O ‘sexo’ é, pois, não
simplesmente aquilo que alguém tem ou
uma descrição estática daquilo que alguém
é: ele é uma das normas pelas quais o
‘alguém’ simplesmente se torna viável, é

no interior do domínio da inteligibilidade


29 | Por uma Arte Panfletária

seria possível, para o âmbito desta discussão, considerar


ainda outros marcadores identitários, como o imperativo
étnico-racial, que tendem a fazer de determinados corpos e
comportamentos o padrão socialmente visível, e tornar outros
corpos invisíveis ou abjetos.

Desse modo, vejo, nas articulações entre ativismo e performance,


uma possibilidade de considerar a prática performática como
uma nítida colocação/tomada de posição de corpos políticos
marcados pela diferença e, talvez, marcados pela opressão e
pela invisibilidade: o corpo da mulher, mas também o corpo dx
negrx, dx transgênerx, dx gordx e tantos, tantos outros corpos julho de 2015, sob o tema
possíveis! Nesse sentido, considero que a performance pode, “Teatros do Real”, o colóquio
contou com a participação de

diretamente com os movimentos sociais, performatizando-os. Autônoma do México) e de José

Castilla-La Mancha, na Espanha),


importantes referências mundiais
para a pesquisa da cena
contemporânea, principalmente
no contexto ibero-americano.

3 - No cerne da pesquisa de
ambos os coletivos está o
interesse em dialogar diretamente
com a cidade e seus habitantes,
fazendo parte de sua investigação
as relações entre corpo, espaço
e poder – ainda que, no caso do
NINFEIAS, as pesquisas centrem-

performativas feministas.

Problemas de
gênero: feminismo e subversão
da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
O Teatro Político no Agora | 30
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Dessa perspectiva, sem dúvida nenhuma é possível também


alinhar a essa discussão aquilo que Ileana Diéguez chama de
performances ou “ações cidadãs”, ou seja, “os gestos simbólicos
que colocam vontades coletivas na esfera pública e constroem

produzem uma linguagem que absorve a percepção e suscitam


olhares a partir do campo artístico”5. Essas ações cidadãs podem
abarcar desde as marchas silenciosas das Mães de Maio, na
Argentina, até a Praia da Estação6 e outras ações ativistas, ligadas
à militância política dos movimentos sociais e ao cyber ativismo.

A arte activista está profundamente


intrincada no movimento de resistência

muito para além do que inicialmente


se poderia considerar de âmbito
artístico. Não devemos esquecer que
desde muito cedo a arte de vanguarda
sempre procurou posicionamentos
questionadores e alternativos aos poderes
e representações dominantes da sua
época. Por outro lado, a segunda metade

colaboração interdisciplinar entre diversas


áreas do saber, daí o alargamento
maleável do conceito de activismo, de
modo a articular-se com outras práticas

resistência cultural (VIEIRA, 2007, p. 14).


31 | Por uma Arte Panfletária

É importante destacar que, embora


a aproximação entre performance
e ativismo não seja tão recente –
remontando às décadas de 1950 e
1960 – parece haver, atualmente,
um estreitamento desses laços. Se,
por um lado, como salienta Diéguez,
podemos notar o “ressurgimento
de uma politização na arte, através
de práticas carnavalescas, lúdicas e
corporais”, por outro lado, é bastante
perceptível “o desenvolvimento de
uma atitude estetizante das práticas
políticas”7 de diversos movimentos
sociais – do feminismo e do ativismo
LGBTT ao movimento negro –
fazendo com que a experimentação
expressiva do corpo possa acontecer
em variados níveis. Na organização
da Marcha das Vadias, só para citar
um exemplo, é possível observar da
construção de um corpo coletivo à
individuação das marcas de opressão
(ou de reivindicação de liberdade)
nos corpos que performam múltiplos
discursos sobre a mulher. Pois pensar
o corpo da mulher já não nos coloca
inúmeras questões, tais como: o que

6 - Para saber mais sobre


o ativismo performático da
feminino? O que pode o corpo de Praia da Estação, consulte:
MELO, Thálita Motta. Praia
uma mulher? E o que não pode?
da Estação: carnavalização e
performatividade. Dissertação
(Mestrado em Arte). Escola de

de Minas Gerais, 2014.


O Teatro Político no Agora | 32
Temáticas e explorações estéticas urgentes

atores a peça Translations.


Ferran Utzet ensaia com

Foto: Marina Raurell


33 | Por uma Arte Panfletária

Nesse contexto, a performance pode ser especialmente


produtiva, pois, sendo uma linguagem artística aberta, que não

bem lembrou a estudiosa Denise Pedron, no especial sobre


performance do programa Brasil das Gerais8 –, ela pode levar

ampla das imbricações entre formação sensível e o papel político


que exercem, como explicita Eleonora Fabião:

Esta é, a meu ver, a força da performance:


turbinar a relação do cidadão com a polis;
do agente histórico com seu contexto; do
vivente com o tempo, o espaço, o corpo,
o outro, o consigo. Esta é a potência da
performance: des-habituar, des-mecanizar,
escovar a contra-pêlo. Trata-se de buscar
maneiras alternativas de lidar com o
estabelecido, de experimentar estados
psicofísicos alterados, de criar situações
que disseminam dissonâncias diversas:
dissonâncias de ordem econômica,
emocional, biológica, ideológica,
psicológica, espiritual, identitária, sexual,
política, estética, social, racial.
(FABIÃO, 2008, p.237)

8 - Programa da Rede Minas. O


especial sobre performance foi ao
ar no dia 19/04/13 e contou com
a presença também da autora do
presente artigo e dos estudiosos
e performers Roberson Nunes e
Marco Paulo Rolla, responsável
pela MIP – Manifestação
Internacional da Performance.
Disponível em:
http://bit.ly/2e22lvg .
O Teatro Político no Agora | 34
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Evidentemente, não é exclusividade da performance


a possibilidade de “disseminar dissonâncias”, até
mesmo porque ela não escapa da institucionalização
ou mercantilização de sua produção9. No geral, essa
tem sido a tarefa de toda arte que se pretende política.
No campo das artes da presença, me interessam
especialmente as diversas modalidades cênicas que,
escapando de uma taxonomia teatral mais tradicional,
experimentam as relações entre arte e vida, estética e
ética, imbricando criação artística e ato ético.

Pois foi justamente considerando as práticas ou


modalidades cênicas que buscam relacionar sua
experimentação artística ao campo ético-político ou,
como enunciado por Ileana Diéguez, que pensam
a “prática artística como a forma estética de um
ato ético”10, que chegamos11 ao tema “O Teatro
Político no Agora: Temáticas e explorações estéticas
urgentes” para orientar as discussões do IV Seminário
Subtexto em Diálogo, realizado no dia 18 de junho
de 2016, no Galpão Cine Horto, com a presença de
cinco palestrantes de várias regiões do País: Stela
Fischer (Rubro Obsceno/SP), com o tema “Cena e
feminismos latino-americanos: subjetividades como
zonas de confronto”; Fernando Yamamoto (Clowns
de Shakespeare/RN), que tratou das “Temáticas
políticas na cena nordestina atual”; Pedro Bennaton
(ERRO Grupo/SC), com o tema “Modus operrante -
procedimentos estratégicos para jogos, intervenção
urbana e teatro situacional nas ruas”; Rafael Villas
Boas (projeto Terra em Cena/DF), que falou sobre os

com o tema “Cenas de Rua”.


35 | Por uma Arte Panfletária

O evento trouxe ainda a mesa de debates “Políticas,


engajamentos e identidades na cena belo-horizontina”12, na qual
a questão apresentada por Diéguez – sobre a efetividade da ação
na cena contemporânea – foi levantada para discutir as práticas 9 - Mas este é tema de outros
textos... Para quem se interessar,
cênicas realizadas em Belo Horizonte nos últimos anos, por sugiro a leitura do artigo de
alguns dos artistas e pesquisadores presentes. E aqui, quando Josette Féral (2015), O que restou
da performance art? Autópsia de
penso práticas cênicas, quero fazê-lo no sentido ampliado, uma função, nascimento de um
proposto por Diéguez (2011, p.14), em que essa denominação gênero, bem como meu artigo
“tenta quebrar a sistematização tradicional e procura expressar A performance morreu? Antes ela
do que eu, publicado no Portal
o conjunto de modalidades cênicas – incluindo as não Primeiro Sinal e disponível em:
sistematizadas pela taxonomia teatral – como as performances, http://www.primeirosinal.com.
br/artigos/performance-morreu-
intervenções, ações cidadãs e rituais. Mas, sobretudo, essa antes-ela-do-que-eu .
pesquisa se abre a outro território não teatral, não estético”,
em que incluo não somente as micropolíticas cotidianas, mas La “efectividad” de la “acción” en
também ações paralelas, realizadas por artistas ou agentes la “escena contemporánea”: ¿La
práctica estética como acto? Texto
culturais, como, por exemplo, esse seminário e também
inédito apresentado no colóquio
encontros e mostras como a MOTEH - 1ª Mostra de Teatro e Pensar a Cena Contemporânea, já
Direitos Humanos de Belo Horizonte que, fruto da colaboração citado anteriormente.

11- Quando digo chegamos, estou


28 de agosto de 2016, “apresentações de teatro, performances e me referindo a Marcos Coletta,
Sarah Rojo e eu que, junto com
intervenções urbanas, além de ações formativas como debates, Luciene Borges e Fernando
13
. Mencarelli, fomos responsáveis
pela curadoria do seminário.

12 - Mediada por mim e Marcos


Coletta, a mesa foi protagonizada
pelos artistas e pesquisadores

de Arte da Periferia), Sara Rojo


(Grupo Mayombe de Teatro), Igor
Leal (Afazeres Queer), Alexandre
de Sena (Grupo Espanca!),
Marina Viana (Grupo Mayombe
de Teatro e Primeira Campainha)
e Clóvis Domingos (Obscena
Agrupamento).

13 - Informações retiradas do
site do evento: http://www.
osconectores.wix.com/moteh .
O Teatro Político no Agora | 36
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Outras práticas cênicas poderiam, no âmbito da cena política e


no contexto da mesa de debates, ser aqui citadas. Trago duas, em
razão, talvez, da implicação dos corpos envolvidos na criação:
as Cenas Pretas, conjunto de três cenas curtas – O que não vaza
é pele, Não conte comigo para proliferar mentiras, Rolezinho:
nome provisório – dirigidas por Alexandre de Sena, artista negro
que traz no trabalho um nítido recorte étnico-racial; e Calor
na Bacurinha, espetáculo dirigido por Marina Viana, com viés
claramente debochado-revolucionário-feminista:

As Bacurinhas são um bando, formado


por mulheres artistas da cidade de Belo
Horizonte. [...] Em Calor na Bacurinha,
realizam um levante de diversas vozes
e modos de ser mulher que re-existem
diante da cultura patriarcal. Questionam
os lugares aos quais esta cultura colocou
e ainda coloca as mulheres e parodiam,
debocham e ironizam para manifestar
e se posicionar diante disso. Calor na
Bacurinha trata-se de uma manifestação
de liberdade em que com seus corpos nus,
parodiam a própria nudez e celebram o
direito ao corpo livre, corpo este que é o
protagonista da obra14.
37 | Por uma Arte Panfletária

É também a partir dessa implicação do (meu) corpo que quero e


posso falar: como mulher, como performer e ativista feminista,
me sinto convocada a correr o risco de fazer aqui o elogio a uma
cena que, como diria Marina Viana (e ela o disse nesse dia),
tem “levantado a bandeira”, a uma cena que, sem pudor, tem se

a.

3. Fig. Que se vale da ironia e da sátira


para criticar ou atacar algo ou alguém; de
discurso crítico, irônico, satírico e mordaz

4. Fig. Que defende uma ideia, posição,


doutrina ou movimento etc. de modo
contundente e com extremada ênfase

sm.

14 - Release do espetáculo,

br/2016/calor-na-bacurinha/ .

15
. 15 - Dicionário Caldas Aulete
digital, disponível em:
http://www.aulete.com.br/
O Teatro Político no Agora | 38
Temáticas e explorações estéticas urgentes

como diria a militante transexual candidata à


vereadora em sua cidade, o próprio corpo16? Como
não marcará uma posição contundente uma arte
produzida a partir das condições de risco em que
vivem determinados corpos no mundo? A partir
de corpos que, como bem lembra o cartaz-epígrafe
que abre este texto, são campos de batalha? Cartaz-

discurso publicitário, desorganizando as narrativas


estereotipadas do mercado (“não sou uma estrela,
eu sou uma arma”...). Pois se o meio é mensagem,
não é possível tratar de arte política somente a
partir do aspecto temático: parece-me necessário
pensar em suas formas (“política da percepção”) ou
em seus modos de produção.

Voltemos então à questão colocada por Diéguez.


Ao tratar da efetividade da ação na cena
contemporânea, ela o faz colocando em xeque,
inicialmente, o sentido desses três termos:
efetividade, ação e cena contemporânea.
39 | Por uma Arte Panfletária

No que tange à cena contemporânea, a pesquisadora questiona,


em primeiro lugar, que tipo de cena se tem em mente quando
usamos esse termo, uma vez que, segundo ela, “a noção de
‘cena’ se deslocou dos campos artísticos e cada vez mais tem
sido considerada como lugar de onde se observam ou onde se
17
como, por
exemplo, nas expressões “a cena hip hop” ou “a cena política
atual”. Em seguida, Diéguez discute em que sentido “ação” está
sendo considerada: “a ação como execução performática ou
teatral, ou como acontecimento artístico em geral? Ou a ação
como ato que compromete a unidade do ser”, ou seja, a ação
como um ato em que o sujeito esteja eticamente engajado? E,
por último, ela se pergunta em que sentido uma ação pode ser
considerada efetiva, ou seja, “para quem ou para o que [ela] é
efetiva e a partir de quais critérios – pragmáticos, artísticos, éticos
– pode se medir esta ‘efetividade’” da ação?

Com essas questões como horizonte, Diéguez mergulha em


Bakhtin18 para discutir as
aproximações e os limites entre arte e vida: “quando nos
perguntamos se uma ação na arte pode ser concebida e
sustentada como um ato na vida”. Continuando, a pesquisadora

resultado da interação entre dois sujeitos distintos, não como


relação formal, mas no sentido de uma responsabilidade concreta
que condiciona o ser-para-outro. 16 - “Meu corpo é o meu

17 - Esta e todas as citações


neste parágrafo referem-se a
La “efectividad”
de la “acción” en la “escena
contemporánea”: ¿La práctica
estética como acto? Texto inédito
apresentado no colóquio Pensar
a Cena Contemporânea, já citado
anteriormente.

18 - BAKHTIN, Mikhail. A Estética


da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
O Teatro Político no Agora | 40
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Ainda segundo Diéguez, essa noção de implicação


é o fundamento real do ato que implica também a
prática artística como forma estética do ato ético.
No entanto, nunca como uma ação técnica ou,
muito menos, como um espetáculo do corpo. Em
relação ao corpo do performer, ela salienta que o
corpo do atuante (seja ator ou praticante):

[...] não é somente uma presença


material que executa uma partitura
performativa dentro de um marco
autorreferencial e estético. [...]
A presença é um ethos que assume não

a eticidade do ato e as derivações


de sua intervenção. A condição de
performer enfatiza uma política da
presença ao implicar uma participação
ética, um rasgo em suas ações sem
o encobrimento das histórias e
personagens dramáticos.

Ou seja, a presença abarca não só o aspecto


físico, material, do performer, mas também a
responsabilidade ética que ele toma para si ao
colocar-se em um espaço cênico, assumindo todos
os riscos daquilo que Eduardo Pavlovsky chama de
“ética do corpo”.
41 | Por uma Arte Panfletária

A partir daí, Diéguez vai abordar algumas experiências das


artes do corpo que aconteceram em “realidades em que se
violam, somem ou aniquilam corpos”. Experiências artísticas
atravessadas pelo contexto histórico em que o corpo dx artista
está não somente instalado, mas diretamente implicado. Como
o corpo negro de um homem que, em resposta a um episódio de
violência policial racista, sofrido em Blumenau (SC), transmuta

fábula na qual “um indivíduo de cor chega a uma terra onde tudo
é branco, causando reações que vão da surpresa à violência”19 .
Em O que não vaza é pele
invadido o tempo todo pela dimensão do real: desde a presença
aparentemente descompromissada dos atuantes até a disruptiva
exibição da matéria de um jornal televisivo que revela para
nós, espectadores, o fato de que o indivíduo de cor, narrado
na “singela” fábula, é o diretor (e ator) Alexandre de Sena. Ao

da cena se apresenta em todo o seu vigor, evidenciando, pelo


caráter performativo, o íntimo cruzamento entre a dimensão
pessoal e a política20.

19 - Sinopse da cena curta O que


não vaza é pele, disponível em:
http://picumah.com/o-que-nao-
vaza-e-pele/.

20 - Questão já expressa pela


feminista Carol Hanisch, em artigo
de 1969 intitulado justamente
O Pessoal é Político, no qual
reivindica o direito de tratar
como políticas as questões
ligadas ao corpo e à sexualidade
da mulher, desprezadas pela
esquerda da época como
problemas de âmbito privado.
O Teatro Político no Agora | 42
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A experiência do racismo, quando lida


por outros negros presentes no teatro,
fazia com que o texto do artista fosse, ao
mesmo tempo, o texto de muitos, em um
exercício de encontro entre o eu e o outro.
A voz embargada do espectador ao realizar
a leitura denota o impedimento social que
é imposto aos negros de falarem. Como
se algo estivesse sempre entalado, preso,
impedido de sair de dentro21.
43 | Por uma Arte Panfletária

Esse impedimento social vai repercutir no grito lancinante que


encerra a última das cenas dessa trilogia dirigida por Alexandre
de Sena: Rolezinho – nome provisório (2014). Aqui, o caráter
performativo ganha força, enfatizando, de modo mais estreito,
as relações entre arte e vida, entre ato ético e prática estética.

“rolezinho” – episódio protagonizado, em 2013, por jovens,


em sua maioria negros e pobres das periferias de São Paulo,
que demandavam o direito de frequentar espaços de lazer
como os shoppings centers – a cena traz à tona a questão da
(in)visibilidade de corpos negros e periféricos.

O que tanto assustava a classe média


brasileira, a presença de um grupo de
jovens negros e de periferia usufruindo o
direito de frequentar espaços antes a eles
negados, de se tornarem visíveis onde
ninguém os queria ver, era, assim como
se dá na cena, uma performance sobre
poder – poder ser, poder existir, poder se
fazer ver. Não é diferente no teatro. Ainda
são minoria os atores negros ocupando
os palcos brasileiros, assim como no 21 - Trecho de crítica de Soraya
Belusi às Cenas Pretas, no
público22. site Ágora – crítica teatral,
disponível em: http://www.
agoracriticateatral.com.br/
criticas/50/o-que-n%C3%A3o-
vaza-%C3%A9-pele,-n%C3%A3o-
conte-comigo-para-proliferar-
mentiras,-rolezinho

22 - Trecho de crítica de Soraya


Belusi às Cenas Pretas, no
site Ágora – crítica teatral,
disponível em: http://www.
agoracriticateatral.com.br/
criticas/50/o-que-n%C3%A3o-
vaza-%C3%A9-pele,-n%C3%A3o-
conte-comigo-para-proliferar-
mentiras,-rolezinho.
O Teatro Político no Agora | 44
Temáticas e explorações estéticas urgentes

É interessante perceber que o


processo de criação da cena,
inspirado pela performance
Presença Negra23, foi conduzido
pela experimentação performática
de outros “rolezinhos”, para os
quais foram convocados “artistas
negros da cidade de BH através de
redes sociais”, de modo a promover
encontros de criação e ensaios em

como performances e intervenções


urbanas), que pretendiam “culminar
numa cena que promova uma

da linguagem teatral negra


contemporânea”24.
45 | Por uma Arte Panfletária

negra sai da plateia e adentra o palco. Retira da mochila alguns


“adereços de proteção (joelheiras, cotoveleiras, guias)” e,
exercendo seu papel de corifeu – do coro negro que em breve
se formará – pede “ao técnico do teatro um pedestal com
23 - “Pensada pelos artistas Peter
microfone. Ele entra e instala. O técnico representa, ali, todos de Brito e Moisés Patrício a ação
os trabalhadores dos bastidores”. Ela, então, retira do bolso performática A presença negra
(2014) surgiu em resposta à
um celular e começa a ler um texto, seu manifesto. “A atriz lê
‘desproporção na representação
lentamente” e, à medida que lê, o palco vai sendo tomado
por pessoas negras: algumas trajando roupas comuns, outras em certos espaços sociais, e mais
precisamente no contexto das
trazendo a marca de sua ancestralidade. A primeira a responder
é uma senhora que atende ao seu insistente chamado: “Vem, manifesto de fevereiro de 2015
(publicado na revista O Menelick
dá cá sua mão (se referindo ao público): eu existo!” (e eu, ali na
2º . Ato, número 15)”. BISPO;
cadeira, me sentindo convocada a fazer o mesmo a cada vez que LOPES. Presenças: a performance
a frase se repetia: dá cá sua mão!). Logo o palco está inundado negra como corpo político. Artigo
disponível em: http://www.
de corpos negros, diversos em sua força e em sua beleza. “Neste coletivoasa.dreamhosters.com/
momento a atriz levanta seu braço direito com o punho cerrado. wp-content/uploads/2015/06/
CorpoPolitico.pdf .
O coro inspira profundamente e emite um forte grito em direção
24 - Trechos retirados de Projeto
Rolezinho, disponível em: http://
de todxs desde a primeira cena, me atravessa e me afoga.
picumah.com/rolezinho-nome-
provisorio/
mar embala o grito. Black out”25.
25 - Assisti ao conjunto das Cenas
Pretas no projeto Conexões, em

profundamente marcadas, mas,


para a descrição de algumas
das ações trazidas aqui, tive que
recorrer ao link “texto e roteiro”,
disponível em: http://picumah.
com/rolezinho-nome-provisorio-
cena-curta/ .
O Teatro Político no Agora | 46
Temáticas e explorações estéticas urgentes

um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-

transformadora, ou seja, um momento de trânsito


da forma, literalmente, uma trans-forma. As
escalas de transformação são evidentemente
variadas e relativas, oscilam entre um sopro e um
renascimento. Programas criam corpos – naqueles
que os performam e naqueles que são afetados
pela performance [...]. Corpos são vias, meios.
Essas vias e meios são as maneiras como o corpo é

[por Espinosa] pelos afetos que é capaz de gerar,


gerir, receber e trocar. (FABIÃO, 2008, p.237-238)
47 | Por uma Arte Panfletária

No arremate deste texto, quero tecer meu manifesto e, para isto,


retomo rapidamente a expressão de Carol Hanisch – “o pessoal

campo de batalha que é o meu corpo. O grito de um corpo que


sente na carne as violências decorrentes de uma performance
de gênero imposta socialmente. E que, quando não o sente
diretamente, se propõe a ser palco para a voz de outras tantas
mulheres, silenciadas por uma estrutura machista, cruel: seja na
forma de neutralização de sua voz política ou na naturalização e
romantização de relações que violam ou aniquilam seus corpos.
Não, em um país em que se mata, em média, 13 mulheres por
dia26, esta não pode mais ser tratada como uma questão de
âmbito estritamente privado, doméstico. Não, essa não é uma
questão pessoal.

Espaço do Silêncio é uma performance de rua. Nela trago, além


de uma carta-manifesto, 365 etiquetas que tento, ao longo de
uma ação que dura, atualmente, entre 5 e 8 horas, imprimir a
um branco lençol de casal. Na boca, trago uma cruz vermelha.
Essas vão se multiplicando ao longo das horas. Sob cada cruz,
cada uma das etiquetas se transmuta em uma espécie de lápide,
construindo “um cemitério simbólico [...]. Esse ritual silencioso
vocifera de historicidade e traça seu legado de injustiças. O
26 - Sobre estatísticas de violência
gestual é suave e decidido. O olhar duro carrega uma revolta contra a mulher, ver Mapa da
contida. Quem cruzou o olhar com a atriz sente que ela cobra Violência 2015, disponível em:
http://www.compromissoeatitude.
a parcela que cabe a cada um da responsabilidade de estar no org.br/dados-nacionais-sobre-
mundo”27. De fato, sinto que essa ação a cada dia vem cobrar a violencia-contra-a-mulher/ .

mim a minha parcela de estar mergulhada de corpo inteiro neste 27 - Trecho da crítica Esse silêncio
mundo e de fazer dele minha matéria. Pois não é a performer, grita por humanidade, de Ivana
Moura, publicada no blog
parafraseando Eleonora Fabião (2008, p.238), quem, ao evidenciar
Satisfeita, Yolanda? Disponível
o corpo, deseja tornar evidente o corpo-mundo? em: http://www.satisfeitayolanda.
com.br/blog/2015/12/21/esse-
silencio-grita-por-humanidade/ .
Todos os dias, nas ruas da cidade,
mulheres são construídas.

Mulher princesa. Mulher boneca.


Mulher rosa. Mulher sobremesa.
Mulher de cama e mesa. Mulher doce
dócil muda. Mulher morta. Mulher,
uma obra em construção: Sorriso.
Batom Boca Beijo. Depiladores
hidratantes sutiãs pregadores
talheres gleidy sachê vassoura escova
progressiva inteligente. Silicone.
Peito. Bunda. Coxa. 100% completa.
Como você gosta. Pronta para
consumo imediato. Sarada. Turbinada.

Esquartejada. Morta. Jogada pros


cachorros. na lagoa. no lixo. Como
você gosta?

Desculpe o transtorno, estamos


trabalhando para você.

Mulher. Ser humano do sexo feminino


capaz de conceber e gerar outro ser
humano e que se distingue do homem
por essa característica. A mulher em
relação ao marido. Esposa. Casar.
Amar. Amar e respeitar até que a
Nina Caetano na performance

morte os separe. Cuidar. Limpar. Lavar.


Passar. Sujeitar. Sorrir. Servir bem para
Foto: Marúzia Morais.

servir sempre. Agradar. Transar. Mesmo


Espaço do Silêncio.

sem vontade. Mesmo sem vontade


apanhar. Compreender. Apanhar.
Perdoar. Apanhar. Esquecer. Esquecer.
Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.
49 | Por uma Arte Panfletária

Todos os dias, nas ruas da cidade,


mulheres são destruídas. A cada 15
segundos, uma mulher é espancada
no Brasil. Destruir. Ex-terminar. 70%
das mulheres mortas no país são
vítimas de seus namorados, noivos,
maridos. Eliza, 25 anos, esquartejada
e jogada pros cachorros a mando

Júlia, 80 anos, morta a tiros pelo


marido. Leonice, 21 anos, 13 facadas,
ex-companheiro. Maria Islaine, 31
anos, ex-marido. Ele apontou a
arma para ela e atirou 7 vezes, sem
que ela reagisse. Jacqueline, 26
anos, estrangulada e esquartejada,
namorado. Arabela, 37 anos, 12
facadas, ex-marido. Eloá, 15 anos,
ex-namorado: morta com 1 tiro na
cabeça, sem que ninguém reagisse.
Natália, 16 anos, grávida de 3 meses,
morta pelo namorado com pelo
menos 80 facadas, sem que ela eu
você, sem que ninguém reagisse28.

28 - Carta-manifesto exposta ao
transeunte durante a performance
urbana Espaço do Silêncio,
realizada por mim em espaços

pedestres, como a Praça 7 (BH/


MG) ou o Vale do Anhangabaú
(SP/SP).
O Teatro Político no Agora | 50
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Post scriptum

Em relação à minha parcela de estar no mundo,


constato, a cada dia, que a ação Espaço do Silêncio,
antes de tudo, me convoca a uma espécie de
missão. Qual missão eu ainda tateio, ainda tateio
o que preciso fazer com o que faço. Pois essa
performance tem se revelado muito maior do que
eu. Ela tem me revelado dimensões inusitadas e
alcances inesperados. E penso que realizá-la é a
minha chance de conhecê-la. Nesse tatear, vou
então a alguns fatos, que trago em notas sobre ela.
51 | Por uma Arte Panfletária

1. 2.
Em maio de 2014, eu fazia a ação na Em junho de 2015, uma moça de 20
anos, Débora Souza, foi assassinada
no colo, e parou para ler minha em frente à casa que eu mantinha
carta-manifesto. À medida que lia, em Ouro Preto. Isso aconteceu em
ela nos co-movia – pois se alterava um sábado de manhã, numa rua
e, se alterando, me alterava também. movimentada do bairro. Após reagir
a um assédio, ela é morta a facadas
olhos e disse: Eu quero me juntar
a você. E eu, de olho nela e um aguarda processo em liberdade após
pouco pasma, perguntei: agora? A alegar “legítima defesa”. Três dias
moça pensou no bebê, pensou em Espaço do Silêncio
como podíamos e respondeu: agora no mesmo local, em memória de
não. Pediu meus contatos – que eu, Débora. Chovia. Algumas mulheres,
desesperada, rascunhei na carta- em estado de luto, se aproximaram
manifesto – e partiu. Nunca mais a vi. de mim, como quem se aproxima
da família em um velório. Outras
pessoas – homens e mulheres – em
minha volta e movidos pela ação,
discutiam o caso. Alguns achavam
que ela merecia aquilo, porque tinha
bebido com seu assassino algumas
horas antes.
O Teatro Político no Agora | 52
Temáticas e explorações estéticas urgentes

3.
Em 29/7/2016 fui procurada via
Messenger por Rosy Souza. Ela
me disse que havia visto, em
compartilhamentos do Facebook,
materiais sobre Espaço do Silêncio.
Nesses materiais, estava o nome de
sua tia, Osailda de Sousa Coelho,
de 45 anos, assassinada por
envenenamento pelo marido, em
Dom Expedito Lopes, Piauí. Rosy me
disse que ela havia visto o nome da
tia e resolvido me procurar. Rosy quer
justiça, ela luta para que o crime,
ocorrido em fevereiro de 2015, seja
julgado como tal e o feminicida –
que permanece em liberdade – seja
punido. Ela luta para que o crime não
seja esquecido e para que a memória
de sua tia não seja apagada.
Espaço do Silêncio, o lençol.

Foto: Nina Caetano


53 | Por uma Arte Panfletária
O Teatro Político no Agora | 54
Temáticas e explorações estéticas urgentes

4.
Em 3/9/2016, fui novamente procurada via
Messenger. Agora, por uma atriz e amiga que havia

“Feminicídio: o corpo da artista e a fabricação


do corpo feminino”, da qual participei na II Bienal

ação Espaço do Silêncio e Vanessa Biffon, tendo


vivido recentemente uma perda, lembrou-se de mim:

a irmã de uma grande amiga, foi assassinada pelo

também em memória a ela.

E eu a farei, Vanessa. Em memória de sua amiga. E em memória de Osailda. E de


Débora. E de Adelina de Abreu. Adriana Almeida. Alessandra de Moraes. Alessiane

Tamy. Aline Gouveia. Amanda Bueno. Amanda Linhares. Amanda Pedro. Ana
Alice Moreira. Ana Carolina Florenzano. Ana Carolina Nascimento. Ana Maria dos
Santos. Ana Paula da Silva. Ana Paula Barros. Ana Tereza Leone. Anaíldes dos
Santos. Andreia Aquino. Andressa da Conceição. Anete Silva. Angelina Filgueiras.
Arabela Bastos. Bárbara Richardelle. Batistina Feijó. Beatriz Cândido. Beatriz de
Oliveira. Berenice Correia. Brenda Esteves. Bruna da Silva. Bruna Alves. Bruna
de Oliveira. Bruna Brito. Camila Albrecht. Camila Belegante. Cara Burke. Caroline
Barbosa. Caroline Gomes. Celina Rodrigues. Christiane de Souza. Cícera Ferreira.
Clarinda Maciel. Cláudia da Silva. Claudiana Barbosa. Claudiane Martiniano.
Cléia Dallin. Cleia Quevedo. Cleomara Sorotenik. Cleusa de Lima. Cleuza Pereira.
Conceição Lima. Cristiana Ribeiro. Cristiane Ferreira. Cristina da Silva. Daiane
Sousa. Dalete Gonçalves. Dalvânia Correia. Damiana Andrade. Damiana Pereira.
Dandara Aguiar. Daniane Lemes. Daniela de Moura. Daniela Maria da Conceição.
Daniela Pavanelo. Daniele Cardoso. Danielle Oliveira. Dara dos Santos. Dayane
Barbosa. Dayane Mozer. Débora de Araújo. Deise Ferreira. Deiviane Mello.
55 | Por uma Arte Panfletária

Delzita Martins. Denise Lima. Denise Soares. Dineuza Rodrigues. Divana Peres.
Edislene Rezende. Edmaria Rocha. Edna Oliveira. Edneia Jeronymo. Eduvirgem
Queirós. Elaine Bezerra. Elaine Nunes. Elba Medeiros. Eliana Soares. Eliane

Eliérica Augusto. Elisângela Gonçalves. Elisângela dos Santos. Eliza Samudio.


Eloá Pimentel. Érica Sales. Érica Pontes. Estélia Viana. Ester dos Santos. Eurides
de Castro. Eva Mara dos Santos. Fabiana Cardoso. Fabiana de Paula. Fabiana
Nakamura. Fernanda Botto. Fernanda Carla Therese. Fernanda de Almeida.
Fernanda Marques. Fernanda Pimenta. Flávia do Nascimento. Flaviana Batista.
Francielle Sena. Francileide Ramos. Francine Carvalho. Gabrielli Soares. Geni
Pereira. Geovani da Silva e sua mãe, Arminda. Gerlândia da Silva. Gislene Alves.
Gorete Mendes. Grazielle Del Soto. Helen Vieira. Ignez Gasperini. Ilinéia Gomes.
Inara Romano. Ingrid Clemente. Ingrid Fernandes. Iolanda Nunes. Isabel de

Mendes. Isis Santos. Irene Andriazzi. Ivaneide Lima. Jaci Almeida. Jaciele dos
Santos. Jackeline Rodrigues. Jacqueline Batista. Janaína da Silva. Janaína Dalben.
Jandeilma dos Santos. Jane Fernandes. Janete Belini. Jaqueline Vieira. Jayne
Vieira. Jemima da Veiga. Jéssica Camilo. Jessica Furtado. Jéssica Nogueira.
Jéssica Ramos. Jocélia Boeno. Joelma de Sá. Joelma Viana. Jorgelina de Almeida.
Joseilda Marques. Josiane Faria. Josiene Azevedo. Josina Silva. Joyce Soares.
Júlia Fernandes. Juliana Paiva. Justina de Jesus. Karine de Abreu. Kássia Pereira.
Kassia Mattos. Katia Candido. Keila Benízia. Keila Campos. Keila Fernandes. Keila
Nascimento. Keliane de Oliveira. Kely Ostwald. Kemilly Andrielli. Laida Romualdo.
Laila Sousa. Laís Alves. Laissy Carvalho. Larissa Câmara. Larissa Velasco. Laura
Rosolem. Leidiane Miotto. Leila Bloemer. Leonice Sizinande. Letícia Guedes.
Letícia Santos. Letícia Soares. Lidiane Barros. Liliane Ferreira. Lindalva Barra.
Lívia de Aguiar. Lizete Meurer. Lorraine Ventura. Louise Ribeiro. Luana Oliveira.
Lucélia Salazar. Lucélia Rodrigues. Luciana Pereira. Luciara Aguiar. Luciene de
Azevedo. Lucimar Arruda. Lucimar Silva. Lucivania da Silva. Luzia Coelho. Luzia
Steinbach. Luziene Andrade. Madalena Souza. Marcelina Santos. Márcia Pereira.

Proença. Maria Alice Seabra. Maria Antônia de Souza. Maria Antônia Lagos.
O Teatro Político no Agora | 56
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Maria Antônia Lima. Maria Aparecida da Cunha. Maria Aparecida Dantas. Maria
Aparecida Alves. Maria Aparecida Oliveira. Maria Augusta Magalhães, Maria
Cristina Gomes. Maria das Dores Ramos. Maria das Graças da Silva. Maria de
Fátima dos Santos. Maria de Jesus. Maria de Nazaré. Maria Divina Pereira. Maria
do Carmo Santos. Maria do Carmo Alves. Maria do Carmo Rocha. Maria do
Socorro Duarte. Maria dos Remédios de Sousa. Maria dos Santos. Maria Francisca
Santana. Maria Gorete Pereira. Maria Graciela Graunke. Maria Helena Alves.
Maria Helena Feitosa. Maria Islaine de Morais. Maria Joana de Jesus. Maria José
de Pauli. Maria Ligia Siqueira. Maria Lina Dias. Maria Lúcia Nunes. Maria Regina
dos Santos. Maria Rizomar. Maria Vilani. Marildete de Lemos. Marilene Soares.
Marinalva Macena. Marina da Silva. Marinete Gomes. Mariza Fialho. Marlene de
Sena. Marli Silva de Souza. Marlúcia Moreira. Mércia Nakashima. Milena Alves.
Mirian Gabe. Mylena Bessa. Nádia Guerra. Nadir Farias. Natália Luiz. Natália
Vitorina. Natália Eger. Nayanne Carvalho. Neruracir Santos. Nilma Lacerda.
Nilzete Cerqueira. Noêmia Bordignon. Noêmia Pereira. Patrícia de Melo. Patrícia
Moura. Patrícia Pereira. Patrícia Peixoto, sua irmã Cristiane Vendramini e sua avó
Damiana Lopes. Paula Nascimento. Paula Lima. Pollyana Lopes. Priscila Sousa.
Raíssa (travesti). Raquel Soares. Regiane Alves. Regiane Barcelos. Regina Bastos.
Regina de Jesus Belo. Renata Araújo. Rildeny Modesto. Rita de Cássia Evangelista.
Rita Rodrigues. Rosana Cândido. Rosana Ferreira. Rosane Berteli. Rosângela
Fernandes. Rosenilda Pereira. Rosiane Borges. Rosimare Alves. Rozineide Bauer.
Salete Macedo. Sandra Alfonso. Sandra Gomide. Sandra Santos. Sara Teixeira.
Sebastiana Paniagua. Shirley Cavalcante. Shirley da Silva. Shirley Souza. Sidilene
Alves. Silvana Lima. Silvia Miranda. Simone Maldonado. Sintia de Sousa. Solange
da Silva. Solange Campos. Stéphanie Rodrigues. Sueldia Claudino. Suênia Sousa.
Tainá Caetano. Tatylla Marçal. Terezinha Gomes. Thainá Batista e sua mãe, Isaura
Medeiros. Thais Borges. Thaís Muniz. Thajela Oliveira. Tânia Galvão. Thaynara
Gualberto. Úrsula Raimundo. Valdenize Santos. Valcicléia da Cruz. Vanda Brígida
Pereira. Vanessa da Silva. Vanessa da Silva Santos. Vanessa Peloi. Vanessa Ribeiro.
Vandressa França. Veridiana Carneiro. Vilma Coutinho. Vilma Lima. Viviane da Lima.
Viviane Garcia. Waleska Cordeiro. Yasmim Ferreira. Yasmin França. Yoná Azevedo.
57 | Por uma Arte Panfletária

Referências:

BERNSTEIN, Ana. Marina Abramovic: do corpo do artista ao

Carlito (Org.). Vozes Femininas: gênero, mediações e práticas


de escrita. Rio de Janeiro: 7 letras: Fundação Casa Rui Barbosa,
2003, pp.378-398.

Corpos que pesam.


(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.

A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer.


Petrópolis, Editora Vozes: 2014.

Cenários Liminares: teatralidades,

FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da


cena contemporânea. In: Revista Sala Preta, v.8, n.1. São Paulo,

online: http://revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/
view/263.

FÉRAL, Josette. Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro. São


Paulo: Perspectiva, 2015.

REDE MINAS. Especial sobre Performance. Programa Brasil das


Gerais, da Rede Minas. Link: https://youtu.be/Yv5w8OxW298

VIEIRA, Teresa de Jesus Batista. Artivismo: estratégias artísticas


contemporâneas de resistência cultural. Dissertação (Mestrado

Porto, 2007.
O ESCRACHE :
UMA ARMA PARA A
TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL
Pedro Diniz Bennaton 1
(FLORIANÓPOLIS/SC)
1 - Pedro Diniz Bennaton (SC) é doutorando em Teatro

na UDESC, pesquisador, performer, diretor e autor

do ERRO Grupo, com o foco em intervenções urbanas

realizadas no Brasil, na América do Sul, na Europa

e nos EUA, bem como contempladas por uma série

de prêmios de arte nacionais e estaduais. Bennaton

lecionou na UDESC, de 2009 a 2012, como colaborador,

e em oficinas ministradas pelo ERRO.


O Teatro Político no Agora | 60
Temáticas e explorações estéticas urgentes

ESTE ARTIGO ABORDA

contemporâneo, a experiência política analisada a seguir é


capaz de integrar teorias artísticas, que assumem características
de transformação social, mesmo que constituída como uma
performance política em seus procedimentos de ação. Não
resta dúvida de que o objeto de pesquisa em questão pode ser
utilizado como um exemplo claro de teatro político atual que visa
à transformação da realidade.
61 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

para a manutenção do status quo. Podemos dizer que Brecht se

conscientemente a manutenção do status quo e que se utilizam de


teatralidades e performatividades para prolongar a continuação
nefasta do capitalismo como regime econômico da sociedade.
Cabe ao teatro político que visa à transformação de nosso
sistema e das lógicas de dominação incorporar táticas de ação
de movimentos e organizações sociais que pretendem também

quanto os mecanismos de dominação da arte como produto e do


mercado.

O foco principal deste artigo é analisar a experiência político-


artística do grupo argentino H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad e
Justicia contra el Olvido y el Silencio) à luz de referências teatrais,
performances políticas
deste grupo contemporâneo para caracterizá-lo como um teatro

entre teatro, comunidade e transformação.


O Teatro Político no Agora | 62
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Vivemos numa época na qual não De acordo com Jan Cohen-


vemos no teatro uma força de Cruz, em seu livro Radical Street
transformação social como aquela Performance (1998), o teatro de
transformação social na atualidade
exemplo, em manifestações de Agit- é parte das manifestações de
Prop. Existem diversas, pequenas e muitas ONGs (Organizações
grandes, revoluções sendo formadas Não-Governamentais) e de outros
nos quatro cantos do mundo, movimentos políticos/sociais,
guerras que, porém, por enquanto, como, no Brasil, com o Movimento
não estão relacionadas ao fazer dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
teatral como estavam no começo do (MST), divulgando suas ideologias
século passado. Contudo, o teatro e suas ânsias de mudança em suas
de transformação social sobrevive, e comunidades de atuação.
pode virar arma, tanto nas periferias
de Paris como em Buenos Aires, São
Paulo e Bagdá.
63 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

Aires), enxerga nas performances do grupo político-performático


argentino H.I.J.O.S. expressões de teatro de transformação social
contemporâneo. Vinculado à questão das pessoas desaparecidas
durante a ditadura militar da Argentina (1976-1983) e a uma nova
expressão de cobrança de justiça, o grupo tem em seu modo
de manifestar, tanto estética como ideologicamente, ideias de
um teatro político, caracterizando-se como um efetivo teatro de
comunidade, e de transformação social por também ter o auxílio,
em sua formação, dos coletivos artísticos argentinos Etcétera e
G.A.C. (Grupo de Arte Callejero).

O H.I.J.O.S. realiza suas performances como práticas de


intervenções essencialmente urbanas, criando situações,
interferindo no cotidiano das pessoas, comunicando seus
ideais e transformando quem assiste e quem realiza a
performance. É o teatro para a comunidade: uma performance
que busca fugir do mercado, do formato de mercadoria, do
produto e interferir na estrutura urbana, penetrar o sistema e
invadir sua base, comunicando seus ideais para as pessoas e
enfrentando o poder instituído.
O Teatro Político no Agora | 64
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A performance realizada, chamada de escrache pelo H.I.J.O.S.,


surpreende diversas camadas dessa sociedade, desestabilizando
o sistema e concretizando objetivos motivados por ideais
políticos. O termo escrache, segundo a pesquisadora e
professora da N.Y.U. (New York University) Diana Taylor, está
etimologicamente relacionado a “exasperar = expelir, e é

um general torturador na ditadura militar foi preso após uma


performance de H.I.J.O.S. em Buenos Aires. Outro general,
Massera, que estava internado no Hospital Naval, em Buenos
Aires, foi vítima do grupo em uma das performances e acabou
performances,
tamanha é sua interferência no cotidiano. A performance
política, elucidada por Jan Cohen-Cruz, tem a “capacidade
de transformação” (1998, p.13). Assim, o grupo foge do que

e, por sua vez, cria armas contra o domínio do capitalismo,


da injustiça. O H.I.J.O.S. investe nas brechas deixadas pela
onipresença exacerbada das políticas de desenvolvimento
na Argentina. O grupo destrói o que os oprime, sem inventar

escrache, nome utilizado


para suas performances políticas:
(http://www.hijos.org.ar/)
cartografia do H.I.J.O.S.

para seus escraches.


Foto de cartaz da
O Teatro Político no Agora | 66
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O escrache é uma ferramenta para poder derrubar


o muro da impunidade, é informar o que a história

silêncio. O escrache é testemunho transformado


em denúncia e mobilização. É a agitação em massa,
o canto, é protesto transformado em criatividade.
Se não existe justiça, existe escrache. (Tradução do
H.I.J.O.S, 2000)
67 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

O grupo argentino invade uma rua


onde está situada uma casa de um
torturador da ditadura militar, ou
onde ele estiver, e o denuncia para
a população. Nos escraches os
H.I.J.O.S., além de seus corpos, usam

podem ser estranhas ou cotidianas,


que eles consideram próprias para
o escrache ter mais impacto e para
os confrontos com policiais), tintas
(para pichar nos muros e nas paredes
os nomes das vítimas do escrache,
torturadores e até instituições,
com seus endereços e acusação),
bombas de tinta vermelha (usadas
para manchar a casa da vítima),
entre outras “armas”. Dependendo
da situação os integrantes do grupo
têm que se disfarçar para invadir
o espaço e surpreender a vítima,

violação dos direitos humanos do


general Alfredo Astiz, quando o
grupo realizou o escrache em pleno
tribunal. Porém, geralmente, mesmo
fazendo a invasão no espaço público,
o H.I.J.O.S. divulga o escrache com o
endereço da vítima, dia, hora, lugar
de início e, às vezes, os crimes que a
vítima cometeu.
O Teatro Político no Agora | 68
Temáticas e explorações estéticas urgentes

performance do grupo argentino


foi preciso encontrar outros teóricos que também o analisavam.
A pesquisadora Diana Taylor apoia-se em Richard Schechner para
elucidar o escrache como performance:

Por performance se entende o restaurado,


o (re)iterado, o que Richard Schechner chama
de twice behaved behavior – “repertório
reiterado de condutas repetidas”. Cria um
espaço privilegiado para o entendimento de
trauma e memória. Trauma, e seus efeitos
“pós-traumáticos” seguem manifestando-se
corporalmente muito depois de que passou o
golpe original. O trauma regressa, se repete
em forma de comportamentos e experiências
involuntárias. Ainda que a performance não
seja uma (re)ação involuntária, o que se
assemelha com o trauma e que também se
caracteriza como o reiterado. Performance
(o mesmo que memória, o mesmo que
trauma) é sempre uma experiência no
presente. (TAYLOR, 2000, p.34)
69 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

Considerando o conceito proposto por Taylor,


o H.I.J.O.S. pratica um teatro de transformação

espaço público escolhido estrategicamente para a


ação, ou transforma momentaneamente os usos
deste espaço e as pessoas que estão nele durante
o escrache, no mínimo eles transformam a eles
mesmos, pois estão lidando com seus traumas e
memórias. São traumas e memórias, pois, no início
de sua formação, em 1996, o grupo foi fundado
basicamente por jovens que tinham perdido seus
pais durante a ditadura militar na Argentina. Nesse
período os militares que estavam no governo

mais de 30.000 pessoas. Esses jovens queriam


tentar reaver seus pais ou pelo menos os corpos,
e o escrache foi um modo de protesto, uma matéria
de ações, que eles criaram para serem escutados.
O Teatro Político no Agora | 70
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Contudo, o que caracteriza o escrache como um


modo tão efetivo de ser não apenas um teatro
para a comunidade, mas um teatro com e por
comunidade é a presença, hoje em dia, de sessões
de H.I.J.O.S. por toda a América Latina e por
alguns países da Europa. Inclusive no Brasil, como
podemos ver, atualmente, pelos escrachos em
aeroportos aos políticos golpistas, e em 2013, com
a intervenção na placa da ponte estaiada em São

nem mencionar aqui) pelo do Jornalista Vladimir


Herzog (assassinado na Ditadura Militar no Brasil).
O escrache, atualmente, é uma arma difundida
em outros territórios, em outras comunidades,
e operada por atores, e não atores, do H.I.J.O.S.
ou não. O escrache não precisa ser feito por
integrantes do grupo, pois a intenção sempre foi
que diversas pessoas participassem dele, tomando

autêntico teatro político de transformação, nos


moldes em que Augusto Boal propôs com suas
estratégias em seu Teatro do Oprimido. A fórmula
do H.I.J.O.S. pode ser menos clara como teatro,
mas é tão intervencionista, participativa e efetiva no
sentido da transformação social quanto um teatro
político tradicional.
71 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

Ao redor do mundo, inúmeros jovens órfãos


encontraram suas raízes parentais depois do
trabalho de H.I.J.O.S., destes, alguns até se
descobriram órfãos, pois viviam com famílias

torturadores que os roubaram, e os criaram,


após matarem seus pais. O fundamental, portanto,
é que o grupo atua concretamente no cotidiano
das pessoas, no espaço público, e estabelece uma

organizar e executar o escrache. Esse teatro político


de transformação pode ser feito por qualquer
pessoa, de qualquer comunidade, de inúmeras
maneiras, pois todas as comunidades neste mundo
de terror capitalista estão de alguma maneira
oprimidas, e reprimidas, pela lógica do mercado.

Diana Taylor elucida a ideia de performance como sendo uma


teoria que provém de “estudos antropológicos que focam
em dramas sociais e coletivos e de estudos teatrais”. Nessa

acontecimentos sociais “ao vivo, peças teatrais, bailes, rituais,


manifestações políticas, esportes, festas (entre muitos)”. Renato
Cohen (1989, p.87-88) esclarece as ideologias da performance
quando diz que:
O Teatro Político no Agora | 72
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O artista é um relator de seu tempo… O discurso da


performance é o discurso radical. O discurso do combate
(que não se dá verbalmente, como no teatro engajado, mas
visualmente com as metáforas criadas pelo próprio sistema),
da militância, do underground…

Diana Taylor frisa a relação substancial que


a performance do H.I.J.O.S. pode ter com o
teatro, quando coloca que esta, em “termos
de conteúdo dramático, alcança a dimensão
da tragédia aristotélica” e “o alívio catártico
ajuda os H.I.J.O.S. a superarem suas perdas”.
escraches é costumeiro entre
os participantes se abraçarem e chorarem
descarregando suas emoções. “Os escraches
são menos solenes e mais carnavalescos”, diz
Taylor (2000, p.38-39), por causa da libertação
emocional que ocorre no instante da ação.
Cartaz de divulgação de um

escrache do H.I.J.O.S.

(http://www.hijos.org.ar/)
uma arma para a transformação social
73 | O Escrache:
O Teatro Político no Agora | 74
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Os participantes do grupo são atores da vida, do “espetáculo”


real, que transformam o roteiro da história de quem está na
performance. O escrache,
legítima violência, invade, pressiona, violenta e chantageia a
mídia e os poderes vigentes. Nessa ótica, o H.I.J.O.S. também faz,
performer, de Renato Cohen (1989, p.47):

o homem de suas amarras condicionantes,


e a arte dos lugares comuns, impostos pelo
sistema. Os praticantes da performance fazem
parte de um último reduto que Susan Sontag
chama de “heróis da vontade radical”, pessoas
que não se submetem ao cinismo do sistema,
e praticam, à custa de suas vidas pessoais,
uma arte de transcendência.
75 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

A performance
como um teatro de apresentação, no qual os
atores/performers realizam uma ação no presente
instante das próprias vidas e das vidas de diversas
pessoas. Nesse sentido, o grupo argentino opera
de modo concreto, não só quando realiza a
performance no instante do cotidiano das pessoas
como na transformação social, quando inverte a
lógica do Estado, que sempre oculta, desaparece,
extermina, anula e evidencia, mas traz à tona
atrocidades cometidas no passado que incomodam
culturalmente o presente de toda uma nação.
O Teatro Político no Agora | 76
Temáticas e explorações estéticas urgentes

do funcionamento do escrache é o
fato de este acontecer na cidade,
nas ruas e com a participação dos
cidadãos, da comunidade. A ação no
espaço urbano da rua proporciona
uma releitura da vida social, atuando
em seu âmago, com o objetivo de

se o lugar de um ato intrinsecamente


revolucionário no âmbito da vida real.

Cartaz de divulgação de um

(http://www.hijos.org.ar/)
escrache do H.I.J.O.S.
O Teatro Político no Agora | 78
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em um mundo onde a arte é feita para o comércio, o teatro se


resume em festivais, e temporadas são bancadas por projetos
de leis de incentivo, a arte é produto e, ainda, patrimônio do
capital – censura e dinheiro unidos em um único projeto. É a
morte da arte de transformação. O que interessa é a alienação
nos simulacros tecnológicos do poder que é invisível, mas
que ainda deixa brechas. É por essas brechas que a arte deve
penetrar. A rua, nesse caso de uma sociedade consumista, opera
como a libertação da arte como mercadoria, ou seja, talvez o
teatro político de transformação social seja essencialmente um
fenômeno urbano, e hoje em dia sua potência se suceda no
espaço urbano.
79 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

O teatro de transformação social contemporâneo é, segundo


Taylor, o teatro que consegue extrair ou transformar imagens
culturais comuns de um arquivo coletivo, porém atuando em
contextos sociais. Dessa maneira, a performance que invade o
espaço público não só provoca uma transformação dentro de um

do Estado” (TAYLOR, 2000, p.35). O ambiente da rua, atualmente,


não é, e nunca foi, livre; pelo contrário, é onde enxergamos as
provas da repressão, mas por isso sempre foi e sempre será
berço de “revoluções” e transformações.
81 | O Escrache:
uma arma para a transformação social

Acredito que o trabalho que o H.I.J.O.S. vem


desenvolvendo oferece táticas importantes
para essa aproximação, e que educadores e
“fazedores” de teatro devem considerar, para
escrache, para expandir
e aprofundar um tipo de teatro que atua para,
com e pela comunidade, com o objetivo de
uma transformação social, utilizando-se de
ferramentas igualmente violentas quanto à dura
realidade que a pressiona. No ERRO Grupo

procedimentos estratégicos de ação urbana


oriundos de movimentos político-sociais para que
no início do grupo começássemos a desenvolver
nossas formas de ação. Procedimentos como

e invisibilidade foram fundamentais para uma


construção poética do ERRO Grupo, assim como

além do contexto artístico. É tarefa articular ações


em pesquisas e obras para ir além na comunicação
com a cidade e seus habitantes, construindo
maiores vínculos de aproximação com a vida de
de uma prisão militar clandestina

cada um que faz, participa, não apenas contempla


Cartaz de denúncia do H.I.J.O.S.

um teatro político de transformação social.


(http://www.hijos.org.ar/)
utilizada na ditadura.
O Teatro Político no Agora | 82
Temáticas e explorações estéticas urgentes

BENNATON, Pedro. Deslocamento e invasão: estratégias para a


construção de situações de intervenção urbana. Dissertação de

COHEN, Renato. A Performance como linguagem.São Paulo: Ed.


Perspectiva, 1989.

Radical Street Performance. New York: Ed.


Routledge, 1998.

H.I.J.O.S. – periódicos - año 6, nº 9, Verano 2001, Buenos Aires.

http://www.hijos.org.ar/ e http://www.
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SAGASETA, Julia Elena. Teatro y Performance. Urdimento: Revista


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SCHECHNER, Richard. The Future of Ritual – writings on culture


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TAYLOR, Diana. Disappearing Acts: Spectacles of Gender and


Nationalism in Argentina’s “Dirty War”. Durham, NC: Duke

TAYLOR, Diana. El espectáculo de la memoria: trauma,


83 | O Escrache:
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performance y política. Teatro al Sur nº 15, 2000, pp. 34-40.

TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: Performing


Cultural Memory in the Americas
Press, 2003.
CENA E FEMINISMOS
DECOLONIAIS
LATINO-AMERICANOS:
SUBJETIVIDADES COMO
ZONAS DE CONFRONTO
Stela Fischer 1
(SÃO PAULO/SP)
1 - Stela Fischer (SP) é doutoranda em Artes Cênicas na

Universidade de São Paulo, Mestre em Artes/Teatro pela

Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro

Processo Colaborativo e Experiências de Companhias

Teatrais Brasileiras (Hucitec, 2010). Coordena na

cidade de São Paulo o Coletivo Rubro Obsceno, um

agrupamento de mulheres artistas com a finalidade de

discutir as questões de gênero nas artes da cena.


O Teatro Político no Agora | 86
Temáticas e explorações estéticas urgentes

AO TRATAR DA CENA DE MULHERES ARTISTAS


latino-americanas que tomam as subjetividades como zonas de
confronto, inevitavelmente abre-se a discussão sobre o momento
presente, no qual vivemos nas frestas das reedições de processos
de colonização. Na compreensão de como ainda se perpetuam
as condições de subalternidade e de controle dos nossos modos
de existir, utilizo alguns exemplos de cenas criadas como
contravenção às situações de opressão que se evidenciam neste
momento atual de instabilidade política na maioria dos países
da América Latina. Sobretudo, no contra-ataque: ao colonialismo
histórico; às sequelas de governos ditatoriais; às dinâmicas de
neocolonização dos nossos governos (legítimos ou não) cada
vez mais conservadores, com tendências religiosas apenas pelo
interesse pelo eleitorado; aos nossos sistemas de informação,
comunicação e entretenimento, muitas vezes alinhados aos
interesses das políticas neoliberais globalizadas, etc.; dispositivos
estes que atuam como aparelhos biopolíticos com distribuição e
produção de “anatomias estandardizadas que mantêm vigentes/

(SAYAK, 2014).
87 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

No Brasil, por exemplo, uma problemática que se ergue


são as articulações de dominação por parte de governantes,

dos corpos femininos ou feminilizados sob a perspectiva


heterossexual, branca, cristã, misógina é o crescente número
de adesões e tentativas incoerentes de aprovação de Projetos
de Leis que controlam os direitos de gênero e sexualidade
brasileiros. Por exemplo, o Estatuto do Nascituro (PL 487/07),
que prevê que o aborto seja proibido em qualquer circunstância,
atribuindo ao embrião o status jurídico e moral de pessoa nascida
e viva, e seu desdobramento na “Bolsa Estupro”2; o Estatuto da

social formado a partir da união entre um homem e uma mulher,


excluindo a união entre pessoas do mesmo sexo como família; o
PL 5069/2013, que restringe o atendimento pelo Sistema Único de
Saúde às vítimas de violência sexual; o PL 2731/2015, que propõe
alterar o Plano Nacional de Educação blindando a discussão
de gênero nas escolas; entre tantas outras proposições em 2 - A “Bolsa Estupro”, de autoria
dos deputados federais Luiz
tramitação. Todos esses PLs ilustram bem o quanto a sexualidade Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini
e as mulheres brasileiras têm sido cada vez mais vigiadas e há, (PHS-MG), é uma assistência

sem dúvida, uma iminência de retrocesso em nosso Congresso


que tenham sido vítimas de
Nacional. Considerando que essa realidade é também resultado estupro e que decidam levar
de uma crescente onda conservadora contra os governos sua gravidez adiante, ao invés
de abortar. Nesse caso, o
de esquerda em grande parte dos países latino-americanos, pai terá direito de registrar a
vejo tentativas hostis de dominação que geram formas de criança, ser o responsável pela
pensão alimentícia e ter direito,
pensamento normativo e condutas que incentivam a formação
consequentemente, à visita
de frentes de violências de gênero. a criança. O projeto também
inviabiliza pesquisa com células-
tronco e fertilização in vitro.
O Teatro Político no Agora | 88
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Grupos invisibilizados como os das mulheres,


dos imigrantes, dos negros e dos cidadãos de
sexualidades dissidentes e policiadas aparecem
nos estudos multiculturais e decoloniais como
categorias fundamentais para observar as lógicas
coloniais e são colocados no centro de suas
discussões emancipatórias. Nessa direção, tenho
especial interesse pelos estudos e manifestações
decoloniais que, como esclarece a linguista
estadunidense radicada no Equador, Catherine
Walsh, em seu ensaio Notas pedagógicas desde
las grietas decoloniales (2014), vêm das margens,
das bordas, das pessoas e comunidades, dos
movimentos coletivos que transgridem as matrizes
de poder colonial em suas práticas de ser, de
existência, de criação e do pensamento.

Essas informações estão aqui sumariamente

necessário e imprescindível tratar das questões


sobre a legitimação de direitos e descolonização
dos corpos desses grupos ainda invisibilizados em
diversos âmbitos, inclusive no artístico; da cena

trançados ética e politicamente, expandindo sua


capacidade de resistência do campo social global,
nas negociações entre os espaços poéticos e os do
89 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

Essa expansão da dimensão poética das artes para o campo


social é o que Ilena Diéguez, ao apropriar-se de conceitos
propostos pela teoria do antropólogo Victor Turner sobre a
liminaridade, sugere como o espaço intersticial das artes no

a arte, a condição ética e a criação estética, como uma ação da

2011, p.20). O sujeito/a sujeita da representação decolonial está


para além do artista, incorporando uma presença social, atuando
também como representante da cidadania na qual está imbricado
o trabalho artístico. E esse artístico está inteiramente envolto
pelo tecido intersubjetivo e social que desmonta as formas de
representações convencionais para dar lugar à presença e às
corporeidades que questionam as derivações de dominação e
colonização ainda presentes em nossas culturas subalternas. O
corpo é, então, tomado como zona de confronto, de resistência.
O Teatro Político no Agora | 90
Temáticas e explorações estéticas urgentes

É importante destacar que práticas de artistas


mulheres latino-americanas apontam em direção

e, consequentemente, de gênero, nos quais se


transcende a condição de vitimização. Nesse
panorama, o entendimento da arte feminista

e códigos binários como opressor/vítima,


ativo/passivo, homem/mulher, heterossexual/
homossexual não são mais seus pontos fortes, mas,
sim, a ambiguidade, a marginalidade, a subversão,
a resistência, as subjetividades que a constituem.
Muitas vezes esses discursos são articulados com
outros temas para além das questões de gênero,
como a militarização de países da América Latina

lógica do sistema neoliberal global; os processos


discriminatórios relacionados à racialização e à
vulnerabilidade dos povos indígenas e das classes
empobrecidas pelo sistema de poder capital; os
vestígios do trauma e da memória social de nossos
governos ditatoriais; entre outros temas que tocam
tantas questões identitárias, entretanto alinhadas às
atuais discussões de gênero.
91 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

Essa contemporização dos feminismos no teatro e na


performance é validada pelo crescente interesse de artistas
e ativistas latino-americanas em realizar trabalhos com a
prerrogativa de denúncia e intervenção nos contextos sociais e
políticos nos quais se inserem. Artistas que permitem, com sua
prática de resistência e seus testemunhos pessoais, autenticar
suas histórias de exploração, nas quais protagonizam os
questionamentos sobre identidades tidas como expatriadas,
a “outra”, a subalterna, a marginal sob a ótica colonial e da
performer
guatemalteca Regina José Galindo3, em Piedra (2013), na qual
ocupa o espaço de cena nua, com o corpo inteiro negro, pintado
de carvão. Deitada sobre os calcanhares, imóvel e em silêncio,
consente que três pessoas urinem em suas costas. No chão,

3 - Regina José Galindo é


ritual de desonra. A performance me afeta pela violência histórica
artista autodidata e performer
a que somos subjugadas e me coloca numa experiência de guatemalteca. Pesquisa o corpo
humilhação, disciplinamento, exclusão e silêncio, como todos em situação de resistência física
como meio de abordar sua
os corpos colonizados de milhares de mulheres das Américas. estética decolonial, transmitindo
Nos dizeres de Galindo: memória social e identidade.
Não há como negar que sua
condição como mulher latina
imprime em suas performances
uma historicidade marcante.
Sobre Galindo, Diana Taylor
Sobre o corpo das mulheres latino-americanas (2012, p.134) ressalta ainda o seu
está inscrita a história da humanidade. físico aparentemente frágil, uma
mulher de pequena estatura,
Sobre os corpos conquistados, marcados,
magra, de cabelos negros, como
a representação dos corpos de
torturados pode-se ler as nefastas histórias todas as mulheres da Guatemala,
mas de extrema valentia quando
de luta e poder que formam nosso passado. toma seu corpo como zona de
Corpos frágeis somente na aparência. É o resistência a violentas forças
sociais.
corpo da mulher que sobreviveu à conquista e
à escravidão. Que como pedra guardou o ódio 4 - Texto extraído do Catálogo/
Programa do 8º Encontro do
e o rancor em sua memória para transformá-
Instituto Hemisférico Cidade/
lo em energia e vida4. Corpo/Ação: A Política das
Paixões nas Américas. São Paulo,
2013, p. 60.
Performance Piedra. São

Paulo, janeiro de 2013.

Fotos: Julio Pantoja /

Instituto Hemisférico.
O Teatro Político no Agora | 92
Temáticas e explorações estéticas urgentes
93 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto
Violeta Luna em Requiem

for a lost land / Requiem

para una tierra perdida.

Foto: Fidel Ugarte.


95 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

Ou também em Requiem for a lost land / Requiem para una


tierra perdida (2012), da performer mexicana Violeta Luna5.
Em passagem pelas fronteiras estéticas e conceituais entre o
teatro e a performance, Luna executa uma série de ações em
procedimento ritual para lembrar os inúmeros assassinatos
cometidos na “guerra às drogas” no México. A cena mais
marcante de sua performance é quando se desfaz a longa e
negra trança dos cabelos de origem marcadamente indígena
e os penteia com uma violência crescente. Abaixa-se com os
cabelos jogados para frente, cobrindo seu rosto e neles coloca,
com a destreza de um prestidigitador, fotos 3x4 de pessoas com
rostos desconhecidos. Em seguida, derrama sobre os cabelos

os rostos das fotos que nos remetem à identidade dos inúmeros


mortos, dos corpos esquartejados, das mulheres violadas, das
crianças sem pais, dos inocentes sequestrados. Retrato da
violência com que muitos cidadãos, inclusive as mulheres, são
afetados pela cultura da violência incitada pelo ex-presidente 5 - Violeta Luna é atriz, performer
e ativista mexicana, radicada
em São Francisco, Califórnia.
Trabalhou com o grupo La Pocha
responsabilidade pela militarização da América Latina. Dessa Nostra e atualmente com Secos
& Mojados. Também desenvolve
forma, esse trabalho me força a olhar para o recente cenário trabalhos solos e é membro do
de destruição e violência no México, no qual Luna submete seu The Magdalena Project, rede
internacional de artistas mulheres
corpo em cena como “território político”, estabelecendo uma zona
do teatro, pela qual viaja levando
de confronto sensível, um depoimento vivo do trauma. seu trabalho para diversos países.
Mais informações sobre a artista
no site: www.violetaluna.com.
O Teatro Político no Agora | 96
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Outra ação é Para aquelas que não mais estão (2015), parceria
entre Violeta Luna e o coletivo Rubro Obsceno6, agrupamento do
qual faço parte em São Paulo. Nessa performance tratamos do
tema do feminicídio por acreditarmos ser imprescindível denunciar

padrões históricos que naturalizam o discurso da violência contra

de sua radicalização são os genocídios de Ciudad Juárez (México),


enunciado por Rita Laura Segato como uma “nova forma de
guerra” (2012).

Foi divulgado no mês de outubro de 2015 o último “Mapa da


Violência” informando que o Brasil é o quinto país do mundo

Guatemala e a Rússia. O estudo informa que, entre 2003 e 2013,


o número de homicídios de mulheres passou de 3.937 para
4.762, um aumento de 21%. Isso representa uma média de 13
mulheres assassinadas por dia, sendo que 61% são de mulheres
97 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

6 - O coletivo Rubro Obsceno é


um agrupamento cênico criado
em 2013 na cidade de São Paulo,
a partir dos encontros do The
Magdalena Project no Brasil.
Realiza projetos artísticos sociais,
com um teatro mais voltado
para o empoderamento de
diferentes grupos de mulheres,
por exemplo, mulheres com
HIV, mulheres em situação de
Após todo o itinerário traçado durante a violência, mulheres com mais
de 60 anos e, agora, mulheres
performance para materializar uma denúncia presidiárias. São atividades de
poético-cênica da violência contra as mulheres formação e também de criação
cênica pautada em suas histórias
que constantemente cai em esquecimento e
pessoais. Também produziu a
Mostra ObsCENAS (SP, 2014),
um memorial às vítimas de feminicídio na América que reuniu artistas de várias
cidades e contou com a presença
Latina nos últimos anos. Em silêncio, ajoelhadas de Julia Varley, atriz do Odin
diante das fotos das vítimas de feminicídio, Teatret e fundadora da rede The
Magdalena Project. Em março
acendemos velas dizendo os nomes e idades de
deste ano, organizou a “Ocupação
mulheres assassinadas. Também convidamos o Mulheres Performance e Gênero”,
público para acender suas velas. A atmosfera é a de junto ao Coletivo Dodecafônico

um velório, um ritual em celebração a essas vidas de Andrade, que resultou na


descontinuadas. No total são acesas 150 velas, 150 apresentação ininterrupta de 16
horas de performances de artistas
mulheres, apenas 150. Infelizmente, neste exato
mulheres. A performance Para
momento, este número continua a crescer... aquelas que não mais estão foi
concebida para a programação da
II Bienal Internacional de Teatro

estreou em 18 de dezembro de

do Hemispheric Institute of
Performance and Politics, em
Santiago do Chile, julho de 2016.
Violeta Luna, Stela Fischer e

Leticia Olivares, em Para aquelas

que não mais estão, no instante

final da performance: acender

velas, evocar os nomes e

reverenciar a vida.

Fotos: Roderick Steel


O Teatro Político no Agora | 98
Temáticas e explorações estéticas urgentes
99 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

Partilhamos a dor da morte de nossas


“irmãs”. Nossa cena associa-se ao
real, não no sentido de substituí-lo,
pois o espaço da arte não pode suprir
o estado de luto, visto que este está
atravessado pelo esquecimento, pela
indiferença, pela escassez de justiça.
É, antes de tudo, um memorial
para celebrar e recordar aquelas
que viveram entre nós, dilatando
a inteligibilidade da violência
que acomete muitas mulheres.

teatro para criar outra espacialidade


performativa: a de visibilizar os
vestígios dessas mortes e reunir as
memórias das mulheres assassinadas
em uma cerimônia pública na qual se
expõe muito mais do que uma ação

invés de um lugar para representar”


O Teatro Político no Agora | 102
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Então...

As artistas aqui enunciadas utilizam seus corpos, discursos

consonância com os feminismos latino-americanos decoloniais


que subvertem os binarismos e validam a visibilidade dos modos
de existir em desobediência às delimitações e segregações
impostas pelas formas coloniais operantes na atualidade.
Articulam, a partir de suas criações, outros temas numa dinâmica
capaz de envolver afetos múltiplos, principalmente quando se
trata de construção de subjetividades com valores sociais que
desestabilizem as construções e os códigos hegemônicos de
interesses corporativados.
103 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

E é na interseção entre performance, teatro, ativismo social e


as atuais teorias feministas que me interessa destacar essas

que convocam as identidades marginalizadas de diversas


mulheres para tomar o centro das discussões, pelo viés político,

momento de anacronismos políticos que efetuam exclusão

cena realizada nas articulações do pensamento decolonial,


a partir das políticas do corpo e das artes como campos de
experimentação identitária, no qual as diferenças são aceitas
e estimuladas, e as relações de poder e a ilegitimidade dos
nossos governos são denunciadas.
O Teatro Político no Agora | 104
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Referências

Estética relacional. São Paulo: Martins


Fontes, 2009.

Cenários Liminares: teatralidades, performances


e política

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Córdoba: DocumentA/Escénicas, 2013.

Catálogo/Programa do 8º Encontro do
Instituto Hemisférico Cidade/Corpo/Ação: A Política das Paixões
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TAYLOR, Diana. Performance. Buenos Aires: Asunto Impreso


ediciones, 2012.
105 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos:
subjetividades como zonas de confronto

Mapa da Violência 2015: homicídio de


mulheres no Brasil
Flacso e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2015.
Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/
MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: jul. 2016.

WALSH, Catherine. Notas pedagógicas desde las grietas


decoloniales. E-misférica, vol.11, n.1. 2014. Disponível em: <http://
hemisphericinstitute.org/hemi/es/e-misferica-111-gesto-decolonial/
walsh>. Acesso em: jul. 2016.
NOTAS PARA RETOMADA
DO DEBATE SOBRE
TEATRO E REVOLUÇÃO
NO BRASIL
Rafael Litvin Villas Bôas 1
(BRASÍLIA/DF)
1 - Rafael Litvin Villas Bôas (DF) é professor da

Faculdade UnB Planaltina, do PPG em Literaturas e

do Mestrado Profissional em Artes da Universidade

de Brasília. Integrante do Coletivo Terra em Cena e

coordenador do grupo de pesquisa Modos de Produção

e Antagonismos Sociais.
O Teatro Político no Agora | 108
Temáticas e explorações estéticas urgentes

CINQUENTA E DOIS ANOS após iniciar o último golpe de


Estado no Brasil, que nos manteve sob ditadura militar por vinte
e um anos (1964-1985), estamos vivendo o primeiro golpe de

anteriores. O atual estado de exceção é decorrente de um golpe


midiático-jurídico-parlamentar e, também, para os movimentos
sociais do campo, é repressivo, por meio da articulação de
setores da justiça com forças policiais estaduais.

Na década de 1960 a Revolução Brasileira era uma questão


debatida não apenas no plano da especulação teórica,
estava ao rés do chão, debatida no plano da estratégia,
como possibilidade concreta vislumbrada por setores da
esquerda brasileira. Diversos segmentos de trabalhadores
da arte tomaram parte no debate, muitas obras precipitaram
o debate ao dar forma estética às contradições da realidade
nacional. Falar em revolução não era algo deslocado diante
das condições objetivas do contexto, considerado por muitos
como o único período pré-revolucionário que o Brasil viveu no
109 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

Todavia, um dos efeitos das derrotas políticas


é a expropriação da memória dos perdedores.
Retirar do horizonte estratégico a perspectiva da
revolução foi uma das principais conquistas da
classe dominante. Partidos limitados ao horizonte
das eleições da democracia representativa, que
elegeram o marketing político como a arma
principal de diálogo com as massas, sempre em
registro apelativo, em detrimento do trabalho de
base, da formação e da capilaridade do trabalho
de agitação e propaganda: é a imagem do
cenário de terra arrasada da política brasileira,
vitimada por sucessões intermitentes de ciclos de
contrarrevoluções preventivas, em que práticas
distintas, como as preservadas e fortalecidas por
movimentos sociais ou por coletivos de teatro
político, aparecem hoje como residuais.
O Teatro Político no Agora | 110
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Este texto propõe um mapeamento, em forma de notas,


dessa guinada histórica regressiva, e pretende destacar, em
contraparte, as possibilidades contra-hegemônicas do cenário
em que se insere a retomada do teatro político brasileiro,
com o intuito de reavaliar o sentido contemporâneo do
debate sobre teatro e revolução. Quais experiências em
andamento indicam a superação dos limites impostos pela
forma mercadoria? Em que medida o teatro político pode
atuar na reconstrução de um bloco histórico de esquerda
em perspectiva anticapitalista? Quais fissuras no poder
hegemônico as crepitações mais acirradas da luta de classes,
desde julho de 2013, no Brasil, foram capazes de causar, e em
que medida elas podem ser expandidas, com potencial de
ruptura com estruturas de poder?

A despeito da conjuntura pessimista, levantamos elementos


que nos permitem avaliar que novas possibilidades surgem
no mesmo compasso em que novas gerações emergem na
política, recuperando táticas de luta, inventando métodos e
se defrontando com um cenário, talvez, menos obnubilado
pela ideologia. “Mais que o fim de nossas esperanças no
futuro, vivemos o fim de uma época de ilusões”, finaliza Nildo
Ouriques, no texto “Crise no Brasil: o eclipse da inocência”,
para a revista argentina Confluencia: la unidad es nuestra
apuesta revolucionária (n.7, 2016).
111 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

1.
De quando o teatro brasileiro falava em
Revolução

Há dezoito anos Iná Camargo Costa publicava no


livro Sinta o Drama (1998) um breve texto que
sintetizava o argumento de sua tese de doutorado
A hora do teatro épico no Brasil 2, publicada em
1996: Teatro e revolução nos anos 60.

2 - Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1996.
O Teatro Político no Agora | 112
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A autora descreve no texto o movimento de ascenso da


produção do teatro político evidenciando o acúmulo no campo
da dramaturgia e da organização do trabalho, destacando a
superação dos limites tradicionais impostos ao teatro pela
forma mercadoria: “se alguma vez houve revolução no teatro
brasileiro, esta aconteceu no CPC” (COSTA, 1998, p. 186).

do teatro épico:

depois de [Arena conta] Tiradentes, o teatro


épico não tinha mais chances na dramaturgia
brasileira, o que não impediu, nem poderia,
a adoção de seus achados técnicos, só que
agora totalmente desvinculados das condições

no Brasil como em outros países, depois de


derrotado o movimento que lhe dava sentido,
o teatro épico se transformou em mais um
recurso que o vencedor pode utilizar como
bem entender, assim como faz com as batatas
(op. Cit, 189).
113 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

2.
O protagonismo do teatro político na luta
da década de 1960

Entre muitos méritos de A hora no teatro épico no


Brasil, escrito há vinte anos, está o valor de explicar
quais foram as providências que posicionaram
o teatro político daquele período como um dos
grandes protagonistas da luta popular e de
esquerda do contexto.

O teatro participou daquele momento histórico


como força estética produtiva. Cumpriu a função
de socialização da experiência de luta dos
trabalhadores, para os trabalhadores, e agia como
veículo de integração, na medida em que, por

só o conteúdo dos embates era transmitido, mas


também o próprio processo de produção das obras.
Duas peças são emblemáticas
desse período, por trazerem como
protagonistas a luta operária e a luta
camponesa como matéria central
das obras: Eles não usam black-tie,
de Gianfrancesco Guarnieri, escrita
em 1958, e encenada pelo Teatro de
Arena, e Mutirão em Novo Sol, escrita

Dalton Trevisan e Modesto Carone, em


19613. Os casos são exemplares da
procura dos trabalhadores do teatro
pelo chão histórico, pelos sujeitos e
espaços das lutas do período.
Nelson Xavier com elenco do Coletivo Terra em

Sol, em 2012, no Encontro Unitário dos Povos

do Campo, das Águas e Floresta, com público


MST após apresentação de Mutirão em Novo

de 5 mil camponeses, quilombolas, índios e


Cena (UnB) e Brigada Nacional de Teatro do

pescadores. Foto: Luara del Chiavon


3 - A tese de doutorado Teatro
político e questão agrária: 1955-
1965. Contradições, avanços
e impasses de um momento
decisivo, de Rafael Villas
Bôas, aborda o contexto de

estético da obra. Disponível


em: http://repositorio.unb.br/
bitstream/10482/4435/1/2009_
RafaelLitvinVillasBoas.pdf.
Acesso em: 26 jul. 2016. E,
posteriormente, o Laboratório de
Investigação Teatro e Sociedade
Mutirão
em Novo Sol, com extensa
pesquisa sobre a peça (São Paulo:
Expressão Popular, 2015).
O Teatro Político no Agora | 116
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O volume de contradições se Ao começarem a circular pelo Brasil,


acumulava para a forma do teatro os grupos encontram movimentos
como espetáculo, vendido como com articulações entre as esferas
mercadoria: o sujeito das lutas não da Cultura e da Política muito
frequentava os aparelhos teatrais Movimento
convencionais, posicionados nos de Cultura Popular (MCP)4, de
centros das capitais, pequenos; Pernambuco, cuja aliança entre
a matéria social das lutas não professores, artistas, estudantes,
encontrava na tradição do realismo
dramático o suporte necessário como municipal e depois estadual, sob a
forma de expressão e começava a vigência dos governos de Miguel
transbordar os limites do drama; ao Arraes como prefeito e depois como
se colocarem em movimento em governador, permitiu a construção
busca do povo, os grupos precisam de metodologias de educação
reorganizar sua dinâmica coletiva, popular e formação política da classe
trabalhadora até então inusitadas no
encontro de um público-povo não Brasil, sobretudo, pela questão da
pagante, mas em luta; e quando escala.
encontra este público organizado
em movimentos sociais, os grupos
vão percebendo que as demandas
são maiores do que a reivindicação
do momento de fruição estética;
os trabalhadores demandam a
socialização dos meios de produção.
117 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

Esse conhecimento de organizações


da classe trabalhadora em luta, a
participação do teatro nos espaços
de formação e decisão, como a
apresentação de Mutirão em Novo
Sol no 1º Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais, em 1961, a
circulação dos coletivos teatrais
pelo circuito dos sindicatos, das
Ligas Camponesas, pelas praças

trabalhadores vai interferindo nas


condições de produção do trabalho
teatral, na carpintaria da dramaturgia,
na concepção de interpretação e

politizando ambos os polos da


experiência.

4 - A principal referência é
COELHO, Germano. MCP: história
do Movimento de Cultura Popular.
Recife: Ed. do Autor, 2012.
O Teatro Político no Agora | 118
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Os Centros Populares de Cultura (CPCs)5 foram, a seu modo,


a expressão mais avançada do processo, como organização
de trabalhadores com objetivo de produção de arte política
diretamente voltada para segmentos da classe trabalhadora.
Gestado como síntese dialética das contradições de grupos

organização cultural que mais rapidamente se espalhou pelo País


e, fugindo aos padrões tradicionais da dinâmica da arte como
mercadoria, conseguiu montar uma estrutura de produção de
baixo custo em diversas linguagens.

Portanto, o teatro desempenhou o papel de meio de comunicação


e intervenção vinculado organicamente às demandas dos
segmentos engajados na luta de classes, operando por meio
da mediação dialética entre a matéria do processo social e a
forma estética, uma leitura crítica da experiência brasileira em
andamento, que não se dava a ver em outras manifestações
de linguagem, como a forma notícia e os documentos político-
partidários.
119 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

3.
O teatro não tinha a TV
como concorrente

A mídia do período, tão parcial e conservadora


quanto é hoje, era, entretanto, menos poderosa,
porque a televisão como meio de comunicação
de massa era ainda incipiente, restrita às casas da
elite brasileira. A popularização do meio ocorre
de forma estratégica, com suporte do governo
militar, para que fosse o principal meio a expressar
a propaganda do regime autoritário, ao mesmo
tempo que potencializava como nunca antes a
venda de mercadorias, das concretas às simbólicas,
para uma população ainda majoritariamente rural,

os centros urbanos, portanto, ciosa em adquirir


novos hábitos, valores e padrões de consumo que
melhor lhe garantissem a inserção no mundo do
trabalho urbano. De modo que o teatro político
daquele período não se defrontou com o poder 5 - De fortuna crítica mais ampla
e polêmica que o MCP indicamos
da TV privada no Brasil como meio ideológico de como referências básicas as
manipulação e distorção em massa. obras: Impressões de viagem:
CPC, vanguarda e desbunde,
1960/70, de Heloisa Buarque de
Hollanda (São Paulo: Brasiliense,
1980); As imagens de um teatro
popular, de Julian Boal (São
Paulo: Hucitec, 2000); CPC: uma
história de paixão e consciência,
de Jalusa Barcellos (Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994);
e o livro de Iná Camargo Costa,
A hora do teatro épico no Brasil,
já mencionado.
Os dispositivos acionados com
o golpe empresarial e militar
de 1964 não foram desativados
com o retorno à democracia
depois de 21 anos de ditadura.
A contrarrevolução preventiva
deixou consolidado no bloco
histórico hegemônico a poderosa
estrutura da indústria cultural que,
por meio da articulação com os
setores mais conservadores da
sociedade brasileira, é capaz de
neutralizar o potencial democrático
da Constituição de 1988, impedindo
a consolidação da Reforma Agrária,
e a quebra do monopólio dos meios
de comunicação de massa no
Brasil, além de chancelar a tortura
e o extermínio da juventude negra
como prática corrente do sistema
repressivo.
Brigada Semeadores de Agitprop do MST,

em intervenção conjunta com Coletivo

Intervozes, na frente do Ministério das

Comunicações, em Brasília.

Foto: Rafael Villas Bôas


123 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

4.
Avanços e limites que tivemos da década de 1980 ao
momento atual

Desde a década de 1980 surgem na cena política brasileira


novos partidos, centrais sindicais e movimentos sociais.
Os novos instrumentos políticos recolocam a possibilidade
de socialização dos meios de produção para a classe
trabalhadora. No caso teatral, possivelmente o exemplo com
maior capilaridade no território nacional tenha sido a parceria
de Augusto Boal e o Centro do Teatro do Oprimido com o
MST que, por meio da socialização dos meios de produção
da linguagem teatral, permitiu a formação de um grupo de
multiplicadores do Teatro do Oprimido que foi responsável
pela criação de mais de quarenta grupos de teatro no MST. E,

repertórios de peças, esses militantes coringas da Brigada


Nacional de Teatro do MST encontraram diversas funções
formação da Brigada Nacional do Teatro

para a linguagem teatral no MST: teatro como ação direta de


Augusto Boal, durante a 5a etapa de

Agitprop em ações de massa; Teatro do Oprimido em trabalho


do MST Patativa do Assaré com o

Centro do Teatro do Oprimido do

de educação popular e formação política com comunidades


rurais e urbanas; uso de técnicas teatrais como o Teatro
Rio de Janeiro, em 2005.

Foto: Rafael Villas Bôas

Imagem e o Teatro Fórum em inúmeros cursos de formação,


como processo avaliativo por meio dos núcleos de base;
pesquisa com formas cênicas populares regionais; trabalho
com as peças didáticas de Brecht em processos de formação
sobre o materialismo histórico dialético, etc.
O Teatro Político no Agora | 124
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A partir da década de 1990 o trabalho de coletivos

Paulo, e algumas vitórias são obtidas, como a Lei


do Fomento a produção, pesquisa e circulação
do trabalho teatral, o que permitiu a abertura de
um horizonte não mediado pelas expectativas de
mercado e supostas demandas de público pagante
consumidor de teatro.

Cabe, pelo viés dessas duas dentre outras frentes abertas do


teatro político, analisar o efeito da retomada do processo de
socialização dos meios de produção sobre as consequências
dos efeitos de retardamento causado pela ditadura militar-
empresarial: o contexto não tem mais no horizonte a perspectiva
de formação da nação, de radicalização da estrutura democrática.
O projeto se consolida num momento em que o povo é inserido
não como sujeito, mas como massa consumidora, num ambiente
cujos marcos de continuidade do processo histórico impactado
pela ditadura são maiores do que os traços de ruptura. Segundo
Paulo Arantes:
125 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

O golpe de 64 foi tão profundo e traumático,


que a retomada de agora pode, sem dúvida,
relembrar os momentos decisivos daquela
construção interrompida, porém apenas
na forma de escombros colecionados: uma
outra herança sem testamento. [...] Daí a
nota dissonante do período: o atual terceiro
ciclo de politização [do teatro político
brasileiro] é menos uma reação ofensiva, do
que uma maneira radical de sobreviver na
adversidade6.

6 - ARANTES, Paulo Eduardo.


A Lei do Tormento. In: Teatro
e vida pública: o fomento e os
coletivos teatrais da cidade de
São Paulo. São Paulo:
Hucitec, Cooperativa Paulista de
Teatro, 2012.
O Teatro Político no Agora | 126
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O fato de termos herdado o fardo de derrotas


históricas sucessivas tem consequências para a
capacidade de organização do teatro político: se
evidencia na situação paradoxal da multiplicação
de focos aglutinados pela identidade setorial
que, entretanto, não convergem para uma ação
estratégica que tenha como alvo a totalidade do
sistema ao qual pretendem se contrapor. O que
talvez permaneça, das lutas da década de 1960,
como potencial aprendizado ainda não absorvido
e refuncionalizado pelos coletivos e movimentos
atuais é a perspectiva da práxis.

Os coletivos que decidem viver de teatro precisam


se especializar no ofício de produção de projetos,
disputa de editais, e sobreviver habilmente
sabendo obter essas verbas provisórias e incertas,

complicar na prestação de contas e, além de tudo


isto, fazer o trabalho que cabe aos grupos, produzir
127 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

Como a Lei Rouanet transfere a responsabilidade


do Estado para as empresas decidirem quais
trabalhos artísticos devem ser aprovados,

bastante limitado.

um espaço atraente para mostras, festivais e para apresentações


desses grupos. De modo que, com a dinâmica da circulação
por esses espaços, os coletivos de teatro político acabam por
legitimar os mecanismos de mercantilização da cultura por meio

promovendo para seu público restrito, a classe média cliente dos


bancos, frequentadora dos espaços, uma oferta cultural variada.
O Teatro Político no Agora | 128
Temáticas e explorações estéticas urgentes

de inserir a cultura como elemento central na estratégia das


organizações, potencializando as dimensões de formação,
articulação e organização. Sem condições de circulação com o
repertório e de formação permanente, os grupos formados têm,
em geral, vida curta.

Nas universidades, a forma do espetáculo ainda predomina e as


experiências do teatro político, quando muito, e salvo exceções,
entra como objeto de análise em pesquisas esporádicas.
129 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

5.

Todavia, ao menos nesses três polos de


experiências e sobrevivências do teatro político,
nos últimos anos os grupos e movimentos parecem
ter chegado coletivamente à percepção crítica dos
pontos de saturação que delimitam, de um lado,
os gargalos da vida precária do teatro político e, de
outro, a distância de nosso trabalho em relação à
dinâmica da luta de classes.

Pensar nas possibilidades de fortalecimento do


poder de intervenção formativa e organizativa
do teatro político implica pensá-lo não a partir de
suas contradições internas, mas da articulação da
dinâmica do teatro político com a perspectiva de
construção de um projeto de poder popular em
chave anticapitalista.
O Teatro Político no Agora | 130
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Nesse sentido, está em andamento a construção de


redes que integrem e intercambiem experiências
dos coletivos no âmbito da produção e circulação
de seus trabalhos envolvendo coletivos

sociais, como a Rede Teatro e Sociedade, que reúne


organizações, coletivos e movimentos do Brasil, da

A pesquisa sobre o teatro político desenvolvida


por grupos nas universidades ou por militantes
de movimentos sociais está avançando em
passos largos e disponibilizando informações que
desfazem preconceitos, erros de compreensão.
Cito, como exemplo, os livros produzidos pelo
Laboratório de Investigação Teatro e Sociedade
(LITS), coordenado por Sérgio de Carvalho, da
7
; o livro Agitprop: cultura política, produzido
a partir da demanda da militância do MST8;
as produções do grupo Modos de Produção e
Antagonismos Sociais e do Coletivo Terra em Cena
9
; e os livros elaborados pelos coletivos de
teatro político de São Paulo, como os Cadernos de
Erros, da Brava Companhia, a Revista Contrapelo,
da Cia Kiwi, a Vintém, da Cia do Latão, o Caderno
de Ensaios, do Teatro de Narradores, a Revista
Metáxis, do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de
Janeiro, e o blog do Instituto Augusto Boal10, dentre
tantos outros.
131 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

conta dos circuitos que emergem em consequência


das lutas posteriores às crepitações de julho de
2013, como as ondas de escolas públicas ocupadas
pela juventude. Temos ainda que nos aliar àqueles
que fazem a luta pela democratização dos meios
de comunicação, de forma estratégica e tática, não
apenas tomando como alvo o efeito ideológico
da produção dos bens simbólicos hegemônicos,
mas considerando o ataque à estrutura econômica
e política do monopólio, que é ligado à estrutura
de poder conservadora que tomou de assalto o
parlamento brasileiro com caixa dois e tradicional
política de favores do “sistema cordial” brasileiro.

Cabe a nós inventar novos circuitos e novas


condições de sobrevivência e inserção do teatro 7 - VIANNA FILHO, Oduvaldo.
Peças do CPC: A mais valia vai
político nas lutas sociais que possam reconstruir acabar, seu Edgar e Mundo
uma plataforma de esquerda radical, anticapitalista. enterrado. São Paulo: Expressão
Popular, 2016 / Primeira Feira
Há um mundo pelo interior do País, de pequenas
Paulista de Opinião. São Paulo:
e médias cidades ocupadas por igrejas e botecos Expressão Popular, 2016 / Além do
como alternativas culturais, há o circuito dos já mencionado livro Mutirão em
Novo Sol.
centros de formação dos potentes movimentos
sociais do campo brasileiro (o MST tem mais 8 - COSTA, Iná Camargo et al
(Org.). Agitprop: cultura política.
de trinta centros de formação, e temos no Brasil São Paulo: Expressão Popular,
mais de setenta movimentos do campo, além dos 2015.

atingidos pelas Barragens – MAB – dos atingidos 9 - Cadernos 2 do Residência


pela Mineração – MAM – etc.), além dos territórios Agrária da UnB Cultura, Arte e
Comunicação e 4 Teatro Político,
formação e organização social.
contra o setor violento e arcaico hoje chamado com Disponíveis no blog
o nome moderno de ‘agronegócio’. www.matrizesprodutivasda
vidanocampo.wordpress.com

10 - www.institutoaugustoboal.
org
O Teatro Político no Agora | 132
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Fernando Kinas (2013, p.36), da Kiwi Companhia de Teatro, aponta


uma perspectiva:

Aos artistas e grupos de teatro caberia, então,


neste novo contexto, que, entretanto, mantém
em funcionamento velhos hábitos e antigas
estruturas, “não recuar diante da realidade”,

de nossos antecessores durante a ditadura:


escrevendo e montando peças, inventando
formas, propondo agitprops, assinando e
divulgando manifestos, organizando debates e
publicando suas ideias.11

Vale, nesse sentido, recuperar a avaliação de Brecht (1967, p.103):

A existência do teatro épico pressupõe,


além de determinados padrões técnicos,
um poderoso movimento social que tenha
interesse na livre manifestação de questões

e que possa defender este interesse contra


todas as tendências contraditórias.12
133 | Notas para retomada do debate
sobre teatro e revolução no Brasil

estruturas da tradição da conciliação como forma


de fazer política, da permanente pactuação com
a classe dominante, sempre traída quando os
detentores de poder se sentem ameaçados,
temos a aprender também com as experiências
estrangeiras, de coletivos e movimentos com os
quais estamos nos articulando, como no recente
Encontro Internacional de Teatro do Oprimido que
ocorreu na Escola Nacional Florestan Fernandes,
em que a experiência da Escola de Teatro Político
do Movimento Popular La Dignidad foi relatada,
entusiasmando os coletivos e movimentos do

Argentina uma Escola Latino-americana de Teatro


Político e Audiovisual. Ou, como o Jana Sanskriti,
um coletivo enorme de praticantes do Teatro
do Oprimido da Índia, que reúne trinta grupos
montando o mesmo repertório, com cada grupo
atuando em dez cidades, abrangendo um total de
trezentas cidades e atingindo diretamente mais de
duzentas mil pessoas.

Recolocar o teatro político no horizonte

urgente quanto necessário.


11 - KINAS, Fernando. Teatro,
verdade e poder. In: Revista
aParte XXI nº6: revista do teatro
da universidade de São Paulo.

12 - BRECHT, Bertolt. Teatro


dialético. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
O TEATRO NA URGÊNCIA:
COMO PENSAR O
POLÍTICO NO INTERIOR
DO CAMPO TEATRAL? 1
1 - Algumas das ideias presentes neste texto estão mais bem trabalhadas

no livro Teatro latino-americano em diálogo: produção e visibilidade.

Belo Horizonte: Editora Javali, 2016.

Sara Rojo 2
(BELO HORIZONTE/MG)
UFMG/CNPQ*
2 - Sara Rojo (MG) é chilena radicada em Belo Horizonte.

Professora, pesquisadora e diretora teatral. Possui

graduação em Letras pela Pontificia Universidad Católica

de Chile, mestrado em artes pela State University of

New York e doutorado em Literaturas Hispânicas pela

State University of New York. Realizou pós-doutorados

na Università degli Studi di Bologna e na Universidad

de Chile. Atualmente é bolsista de produtividade do

CNPq, professora Titular da UFMG e diretora do Grupo

Mayombe de Teatro.
O Teatro Político no Agora | 136
Temáticas e explorações estéticas urgentes

DESDE QUE ERA ESTUDANTE


do Chile, e fui convidada a participar de um grupo teatral pela
primeira vez, o ato de pesquisar e o de fazer teatro estiveram
inter-relacionados e perpassados pela questão política.
O professor-coordenador desse grupo, Ignacio Ossa Galdames
(1943-1975), foi assassinado pela ditadura militar chilena no
centro de tortura Villa Grimaldi (localizado em Santiago de Chile)3.
Portanto, entrei no teatro no marco de um regime autoritário e
de um sistema de universidade pago. Posteriormente, estudei
direção teatral em um curso livre, em pós-graduações orientadas
para teatro e participei ativamente de diversos tipos de grupos
tanto no Chile quanto no Brasil. Desde 1995 até o presente
tenho o prazer de ser professora de uma universidade pública,

1995, nasceu o Mayombe Grupo de Teatro4, do qual sou diretora.


Minha experiência nesse coletivo, que tem mais de 20 anos de
exercício resistente em nossa cidade, abrange desde a montagem
de textos dramáticos latino-americanos até a direção de criação
de textos coletivos ou de autoria de integrantes do grupo.
A pequenina América e sua avó $ifrada de escrúpulos, estreada
em 2010, foi um ícone de nosso grupo na procura por uma
imagem resistente que falasse da América Latina:
137 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

3 - Seus torturadores foram o


coronel Marcelo Moren Brito;
o tenente Miguel Krassnoff
A pequenina América.

Foto: Tomas Arthuzzi.

Romo Mena.

4 - O grupo nasceu dependente

e com caráter amador, mas


adquiriu vida própria e hoje está
constituído por atores e atrizes
O Teatro Político no Agora | 138
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em 2014, comecei a trabalhar, também como


diretora, com um segundo coletivo nascido do
Curso de Teatro da Escola de Belas Artes, Mulheres
Míticas, formado por jovens críticos e utópicos que
me ajudam a seguir em frente.

hora em que as urgências culturais, sociais e


políticas parecem nos levar a agir sem ter o
tempo necessário ao pensamento, é produto
desse percurso brevemente esboçado nas linhas
anteriores. As ações coletivas criam sonhos de
utopias, as práticas vão traçando o roteiro desse
campo conceitual, mas é necessário parar para ver
que práticas são essas. Dessa forma, eu agradeço

alguns pontos relevantes do fazer e do pensamento


teatral. Eu desenho as coordenadas quase como
um roteiro escolar que sirva para disparar dardos e
estimular respostas, sem a pretensão de “verdades”.
139 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

Alguns apontamentos sobre a prática teatral

Produção - As maneiras de realizar uma obra envolvem


determinadas éticas de produção (JAMESON, 2013, p.75). Não
é viável pensar que, com uma estrutura de produção baseada
na sociedade de consumo, poderemos transformar os valores
desta sociedade. Portanto, “o que fazemos” está relacionado
diretamente com “o que somos”, isto é uma questão ontológica.
Em um exercício de imaginação pensemos que estamos frente
a um grupo (em referência a Belo Horizonte, terra frutífera em
agrupamentos teatrais): a forma em que se divide o coletivo e
o que cada um faz nele, ou, como diria Rancière (2005), onde
se dá a partilha, são determinantes na proposta defendida
por este grupo. Como se estabelece a divisão entre as partes

seu resultado e é neste lugar que se encontra o político. Não é


viável acreditar que uma estrutura hierárquica e conservadora
possa gerar um trabalho renovador e revolucionário. Esse
trabalho exige uma procura por formas de interagir democráticas
e efetivas.
O Teatro Político no Agora | 140
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Agrupamento - Desde o momento em que


nasce um coletivo até como se constrói a forma
de agrupamento, de divisão do trabalho e da
maneira em que se realiza a procura pela inserção
no circuito (festivais, mostras, programação, etc.)
existe uma questão política. O processo envolve
relações humanas e visibilidades resultantes,
ambas com um peso ético iniludível. Como
inserimos essas visibilidades numa dinâmica

movimento artístico num determinado lugar,


isto requer uma análise do dispositivo (contexto,
subjetividades, posições, objetivos, afetos) para
criar a metodologia que o grupo deseje e possa
assumir. A maneira de organizar um grupo, a forma
de trabalhar e de estruturar um processo criativo
são, desta forma, questões de metapolítica porque,
como diz Rancière, elas “intervêm na distribuição
geral das maneiras de fazer e nas suas relações
com maneiras de ser e formas de visibilidade”
(RANCIÈRE, 2005, p.17).
141 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

O ponto anterior conduz até os


eixos centrais da criação que são a imagem e a questão da
“visibilidade”: assumir que trabalhar com determinadas
imagens que envolvem certas questões é excluir outras, que as
visibilidades sempre geram invisibilidades e que esta escolha
não é ou não deveria ser arbitrária é uma questão artística, mas
também ética. Portanto, não deveria estar pautada nem pelos
editais nem pelas regras impostas pelo consumo. Mas, atenção,

pelos desejos pessoais. Entendo que o artista vive num tempo


e num lugar determinados e não deveria se abstrair deste fato,

dúvida, responde às urgências raciais e genéricas que vivemos


no Brasil e ilustra bem os eixos de imagem e visibilidade é
Madame Satã, do Grupo dos Dez, dirigida por João das Neves,
e que teve sua estreia em 2015 dentro do projeto do
Galpão Cine Horto.
O espectador - As práticas grupais respondem não apenas a comandos
ideológicos dos integrantes, mas também a subjetividades coletivas e
individuais que nascem dentro do próprio fazer dos artistas com o público,
criando zonas criativas espaço-temporais. A cultura do abuso está minando
nossa existência. Hoje acredito que devemos criar cumplicidades resistentes
que possibilitem olhar o mundo que estamos habitando e como estamos
inseridos nele. Esse caráter de cumplicidade com o público se realiza com
grande efetividade na peça de rua À Tardinha no Ocidente, do grupo belo-
horizontino Primeira Campainha.
Foto: Guto Muniz.
Madame Satã.
143 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?
A imagem e sua dupla condição
Segundo Rancière (2011, p.47), a
imagem tem uma dupla condição e
responde a duas ordens diferentes
(a da arte e a do imaginário). Essa
condição, a partir de meu olhar,
exige dos artistas não só uma
atuação formal-estética, como
também uma responsabilidade

uma vez e para sempre com a


divisão entre forma e conteúdo.
As imagens falam de duas coisas
simultaneamente e o artista deve
tentar responder a elas com a

o(s) imaginário(s) e o(s) ativará


com linguagens, portanto o artista
transita em ambos os campos. Eles
estão entrelaçados, não é possível
separá-los.
À Tardinha no Ocidente.

Foto: Guto Muniz.


O Teatro Político no Agora | 146
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A imagem crítica - A importância das imagens


dialéticas (tensionadas temporal, espacial e
socialmente) tem a ver com a entrega de visões
múltiplas e em tensão, portanto críticas, inclusive

sobre o fazer artístico e, portanto, é uma crítica


sobre si mesma, é Ignorância, do Quatroloscinco
Teatro do Comum, dirigida por Assis Benevenuto
e Marcos Coletta, estreada em 2015.

É necessário saber, até onde seja


possível (sabemos que existe um
campo não controlado), o que
colocamos em tensão e por que.
É válido para isso recorrer a

de anacronia de Didi-Huberman
(2011), que remete a temporalidades
em tensão no interior da imagem.
Acredito que as imagens críticas
exigem tanto do artista quanto do
espectador um pensamento aberto

e um tipo de imersão na subjetividade


caracterizada pela horizontalidade.
147 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

Foto: Guto Muniz.


Ignorância.
O Teatro Político no Agora | 148
Temáticas e explorações estéticas urgentes

destaco as temporalidades diferentes presentes numa imagem;

projetando um futuro; a intermitência da imagem teatral; a


anacronia presente como sintoma dialético; a imagem crítica, a
relação entre o fazer e a visibilidade; o papel crítico do espectador
no teatro atual; a necessidade de diferentes tipos de visibilidade;
e o estímulo do pensamento dialético.

O teatro na América Latina sempre contou com agentes críticos


e espaços que procuraram o reconhecimento do território no

em cada momento histórico. Não obstante, sempre foram (e

sociais, culturais e artísticos requer um esforço pela criação de

Benjamin (2009, p.728) dizia: “Em época alguma a arte respondeu


a exigências puramente estéticas”, porque sempre existiram,
por detrás da arte, outros interesses, sejam econômicos, seja
de poder. Nosso interesse por assumir que a necessidade do
fortalecimento desse campo tem um caráter que também se
relaciona com uma questão de poder - poder exercer a prática

democrático - abre as comportas de uma cidadania plena.


149 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

Hoje faltam veículos especializados na mídia regular para


exercer a crítica; as revistas indexadas são somente para
especialistas e a internet, mesmo tendo aberto novos espaços,
continua sendo restrita. Sem interlocutores massivos, e, às
vezes, sem um diálogo com os artistas, a crítica pode cair em um
tecnicismo vazio, em análises de tipo formal ou estrutural sem
um compromisso afetivo do enunciador com o objeto enunciado.
Isso é complexo, pois criar consciência crítica é criar condições de
transformação social.

Segundo minha leitura, o diálogo entre a crítica e


a obra passa pelas decisões políticas e estéticas
presentes tanto no artista quanto no crítico. Existem
redes e circunstâncias que colocam determinadas
questões no tapete. A crítica não é alheia a essas
redes nem aos dispositivos nos quais surgem, não
é um discurso isolado e descontaminado por essas
constantes. Por isso não é possível separar o que
se quer dizer da forma como se diz, o extraestético
do estético. O tempo, as subjetividades, o espaço
em que se vive determinam o campo crítico de
interesse e o que faço com ele – e este último
aspecto é uma questão ética.
O Teatro Político no Agora | 150
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Segundo Didi-Huberman (2010, p.246): “Portamos


o espaço diretamente na carne. Espaço que não
é uma categoria ideal do entendimento, mas o
elemento despercebido, fundamental, de todas as
nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas”.
Acredito, por isso, que temos de restabelecer
a importância de ver além do que está à nossa
frente em cada abordagem crítica, conectar de
maneira consciente nosso corpo sensorial com

de Walter Benjamin (2009, p.728) já mencionadas


sobre a arte não ser produto só das necessidades
estéticas. É importante assumir a impossibilidade
do entendimento da imagem (seja esta dentro

conceitual) separada de suas formas e condições


de reprodução. Portanto, não é possível pensar em
nada separado do dispositivo no qual foi criado ou
das ressonâncias que o mesmo produz. De acordo
com minha leitura, a última obra do Grupo Galpão,
Nós, dirigida por Márcio Abreu, alcança múltiplas
ressonâncias pelo contexto social e político no qual
estamos inseridos e pela subjetividade presente
na trama que escolhe a atriz Teuda Bara para ser
“expulsa” do coletivo:
Teuda Bara em Nós.

Foto: Guto Muniz.


Dessa forma, não posso pensar
numa crítica separada do objeto a ser
analisado ou do dispositivo dentro do
qual foi criada, e é isto o que desejo
compartilhar neste texto.
O Teatro Político no Agora | 152
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Referências teóricas:

BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução do alemão Irene Aron, do


francês Cleonice Pães Barreto Mourão. Belo Horizonte e São Paulo:
.

. Ante el tiempo. Traducción de Oscar


Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011. 394 p.

O que vemos, o que nos olha.


Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010. 260 p.

JAMESON, Frederic. Brecht e a questão do método. Tradução Maria


Silva Betti. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 256 p.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução de Mônica


Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005. 72 p.

RANCIÈRE, Jacques. El destino de las imágenes. Traducción de


Pablo Bustinduy Amador. Pontevedra: Politopías, 2011. 146 p.

RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Traducción de Ariel


Dilon. Pontevedra: Ellago Ensayo, 2010. 134 p.

ROJO, Sara. Teatro latino-americano em diálogo: Produção e


visibilidade. Belo Horizonte: Editora Javali, 2016. 230 p.
153 | O Teatro na Urgência:
Como pensar o político no interior do campo teatral?

Referências de espetáculos teatrais citados:

Madame Satã, dramaturgia de Marcos Fábio


de Faria e Rodrigo Jerônimo, direção de João das Neves, 2015.=

Nós, dramaturgia de Eduardo Moreira e Márcio


Abreu, direção de Márcio Abreu, 2016.

A pequenina América e sua avó


$ifrada de escrúpulos, texto de Éder Rodrigues, Marcos Coletta e
Marina Viana, direção de Sara Rojo, 2010.

PRIMEIRA CAMPAINHA. À Tardinha no Ocidente, dramaturgia de


Marina Viana, direção coletiva, 2014.

Ignorância, texto e
direção de Assis Benevenuto e Marcos Coletta, 2015.
NORDESTE,
BRASIL,
LATINOAMÉRICA

Fernando Yamamoto 1
(NATAL/RN)
1 - Fernando Yamamoto (RN)  é diretor, professor e

pesquisador teatral. Integrante e cofundador do grupo

Clowns de Shakespeare, no qual dirigiu diversas obras.

Como pesquisador, desenvolveu a Cartografia do Teatro

de Grupo do Nordeste. Atualmente dirige o Departamento

de Programas, Projetos e Eventos da Secretaria de

Cultura de Natal, e coordena o projeto de idealização da

Escola Livre de Teatro dos Clowns de Shakespeare.


O Teatro Político no Agora | 156
Temáticas e explorações estéticas urgentes

I. PRIMEIRO PRÓLOGO

O ensaísta mexicano Adolfo Reyes propõe que o drama


latino-americano é composto por um palco, um coro e uma
personagem. O palco seria o andamento cadenciado da sua
caminhada, de quem acabou chegando tarde “ao banquete da
civilização europeia” e, assim, vive a saltar etapas para tentar
acelerar seu amadurecimento compensatório, nos possibilitando
um gosto pela improvisação e pela audácia, geradas pela falta de
compromisso com a tradição. O coro é essa miscigenação das
mais diferentes etnias, gerando todas as virtudes e os problemas

seria uma inteligência própria, peculiar.


157 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

II. SEGUNDO PRÓLOGO

O pesquisador paraibano Durval Muniz de Albuquerque Jr.


defende que o Nordeste, como espaço de identidade regional,
é uma invenção que começa a ganhar força no início do século

da cana-de-açúcar. Com o advento da política do “café com leite”,


o declínio dessa aristocracia faz com que se crie um espaço de
saudosismo aos tempos de glória da região, com um projeto
que sempre aponta para o passado. Esse imaginário opta pelo
retrocesso, pela miséria, pela seca, como forma de manutenção
do poder por parte desses grupos que, de elite rural, passou
a manter as mesmas estruturas de poder, agora num âmbito
urbano. A produção artística e cultural da região acaba, até hoje,
reforçando esse clichê como verdade absoluta, insistindo na
simbologia do chão rachado, do chapéu de couro, dos vilarejos
com seus delegados, coronéis, padres e cangaceiros, como única

conceitos sexistas e de violência. O Nordeste urbano, litorâneo,


contemporâneo, é relegado a um lugar que coloca essas elites –
da região e do País –, em situação de conforto para perpetuarem
a relação de dominação.
O Teatro Político no Agora | 158
Temáticas e explorações estéticas urgentes

III. A LATINOAMÉRICA É O NORDESTE DO MUNDO

Em suma, essas duas narrativas evidenciam que a Latinoamérica


e o Nordeste vivem forçados à manutenção de um lugar
simbólico de retrocesso, forçados à manutenção desse lugar de
subalternidade, mas que lutam e buscam caminhos fora da curva
159 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Quando falamos em América Latina, pensamos em um conjunto


de países com idiomas de origem latina, porém de difícil

totalidade: a Guiana e o Suriname, na América do Sul, e Belize,


na América Central, não se reconhecem como Latinoamérica. O
México, por sua vez, é o único país norte-americano a integrá-la,

que seus membros falam espanhol, português e até francês – e,


por outro lado, o Canadá é francófono, porém não se encaixa
nessa categoria. A formação étnica também diverge, muito
mais que converge. Além das inúmeras civilizações originais
indígenas, cada país apresenta uma diversidade de populações
migratórias das mais diferentes origens, notadamente
europeias e africanas. Dessa forma, o que nos resta é o
autorreconhecimento, movido pelo sentimento de pertencimento,
pelo desejo de ser latino-americano, por mais que existam tantas
diferenças, mas como uma identidade de quem não se assume
como apêndice da Europa ou da América Latina.

Na diversidade que compõe o Nordeste, região com mais


estados da federação, que inclui do Maranhão e sua forte matriz
amazônica a Salvador e sua identidade afro, o sentimento de
pertencimento também surge como um raro caminho possível

Nordeste do mundo.
O Teatro Político no Agora | 160
Temáticas e explorações estéticas urgentes

IV. OS CLOWNS, A AMÉRICA LATINA E O


TEATRO DE GRUPO BRASILEIRO

Na última década, os Clowns de Shakespeare, grupo do qual


sou integrante e fundador, vem incursionando pela América
Latina nas mais diferentes formas: circulando com espetáculos,
realizando projetos de pesquisa através de intercâmbios,
residências e laboratórios com grupos de diversos países,
conhecendo grupos estrangeiros em festivais pelo Brasil, e até
mesmo em viagens a passeio. A resultante disso foi um crescente
desejo de aproximação e aprofundamento desses encontros, de
mergulhar nesse universo que nos é tão próximo, e ao mesmo
tempo tão distante, ao sentirmos na pele todo o eurocentrismo
que sabíamos que temos, mas só constatamos in loco. Assim
surgiu o projeto Latino(-)americano, que envolve ações nas
mais diversas frentes – criação, formação, pensamento –, cujo
primeiro fruto foi a Trilogia Latino(-)americana, formada pelas
obras Nuestra Senhora de las Nuvens, texto de Arístides Vargas e
minha direção; Abrazo, criação dramatúrgica coletiva coordenada
por César Ferrario e direção de Marco França; e Dois Amores y
um Bicho, do venezuelano Gustavo Ott, com direção do carioca
Renato Carrera.
las Nuvens, montagem do grupo
Espetáculo Nuestra Senhora de

Clowns de Shakespeare, 2014.

Foto: Rafael Telles.


O Teatro Político no Agora | 162
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A trilogia surge a partir de 2014, na ocasião dos cinquenta anos


do golpe civil e militar de 1964, como uma tentativa de resposta à
discrepância de preservação da memória dos anos de chumbo no
Brasil e em outros países do continente, como Argentina e Chile.
Enquanto ainda temos os arquivos militares mantidos em sigilo,
e uma comissão da verdade que anda a passos tímidos, nos
nossos vizinhos a memória está impressa nas ruas, nas peles,
nos museus, nos discursos, numa empenhada postura para evitar
que isso volte a acontecer. Foi nesse exato intuito que surgiu
a nossa trilogia, sem a ideia de que, em menos de dois anos,
estaríamos vivenciando semelhante situação de exceção, com
o golpe legislativo-midiático-jurídico de 2016. Por mais irônico
que seja, o golpe ascendeu os espetáculos a outro patamar de
urgência, de necessidade.
163 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Após o afastamento da presidenta Dilma Roussef, ao circularmos


pelo País com nossas obras, pudemos observar que uma série
de outros espetáculos, anteriores ao golpe, já indicavam o futuro
bicudo que despontava, mesmo que, em alguns casos (como no
nosso), inconscientemente. É o caso, por exemplo, de À Tardinha
no Ocidente, com a Primeira Campainha, e Rosa Choque, do
Coletivo Os Conectores, ambos de Belo Horizonte (MG). Seja
pelo viés da deliciosa literalidade lúdica do primeiro, convidando

seja numa racional organização de um pensamento acumulado


acerca da questão da mulher e de gênero do segundo, é fato
que, de alguma forma, os grupos já anteviam o que poderia vir a
acontecer.

Para onde esses trabalhos, esses grupos, e nosso posicionamento


artístico e político vão agora?
Espetáculo Abrazo, montagem do

grupo Clowns de Shakespeare, 2014.

Foto: Cacá Diniz.


O Teatro Político no Agora | 166
Temáticas e explorações estéticas urgentes

V. EPÍLOGO OU (RE)PRÓLOGO: GOLPE E DESAFIOS

Essas e outras questões estiveram na roda no III Congresso


Brasileiro de Teatro, realizado entre 11 e 14 de agosto de 2016,
em Goiânia. Coletivos e artistas de 20 estados brasileiros se
reuniram para discutir o contexto da articulação política do teatro
em tempos de golpe, tentando ainda dar fôlego aos ecos das
ocupações dos espaços do Ministério da Cultura nos 26 estados e
no Distrito Federal – que resultou na primeira derrota imposta ao
governo ilegítimo –, e fundou a Frente Brasileira de Teatro.

O panorama que se apresenta é de um cenário ainda mais


nebuloso do que já estamos vivendo, com o desmonte nos
atropelando a largos passos. Com a efetivação do governo
usurpador, pensar no lugar do diálogo, sua forma, e sua

de já termos mostrado força no episódio das ocupações, a


esperança de algum tipo de política pública para o teatro de
grupo e de pesquisa é nula.

Assim, me parece que o que nos resta é um ataque em


frentes paralelas. De um lado, a mobilização para a disputa de
pensamento, encontrando o lugar de diálogo/confrontação com
esse governo. Do outro, correr atrás do tempo perdido para a

dando vazão ao que temos de mais genuíno, a criatividade.


167 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Isso toca em um ponto delicado da nossa formação, que é a


transição do chamado “teatro amador” dos anos 1970 e 1980
para o “teatro de grupo” que entendemos hoje. Por mais que
a linha hereditária seja natural, lógica, a transformação que o
mundo sofreu desde então, quando o termo amador deixou
de ser motivo de orgulho e ganhou conotação pejorativa,
negativa, criou uma cisão mal resolvida. Algumas experiências
desse teatro de inclinação coletiva conseguiram, graças aos
avanços sociais do País da última década, sentir o doce gosto da

que trazemos na nossa medula não nos fez antecipar o que


estaria por vir e aproveitar o ambiente favorável para criar
estratégias que caminhassem paralelamente à dependência do

apropriação no blog da sua Pequena Cia. de Teatro, de São Luís:


http://pequenacompanhiadeteatro.blogspot.com.br/2016/08/
entretecendo-teia-da-revolucao.html
O Teatro Político no Agora | 168
Temáticas e explorações estéticas urgentes

O jogo está posto. Trabalhar ainda


mais, buscar outras soluções,
reinventar a nossa existência, numa
atitude propositiva, discutindo éticas,
estéticas, e jamais esquecendo o
afeto – a potência de afetarmos e
sermos afetados – que é elemento
constitutivo mais puro do nosso
DNA. Ir ao encontro do público e ao
encontro uns dos outros, artistas.

E talvez ampliar os laços com os


hermanos latino-americanos, de
tantos problemas e potências
semelhantes aos nossos.
Espetáculo Dois Amores y Um

Bicho, montagem do grupo

Clowns de Shakespeare, 2015.

Foto: Rafael Telles


A CRIAÇÃO TEATRAL EM
PORTUGAL NO CONTEXTO
DAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS
COMUNITÁRIAS
1

(PORTO/PORTUGAL)

1 - Hugo Cruz (Porto/Portugal) é criador, programador Irene Serafino (Porto/Portugal) é Mestre em Políticas

cultural e professor na Escola Superior de Música, Artes Sociais e Serviço Social pela Universidade de Bolonha

e Espetáculo – Porto. Cofundador da PELE, pesquisador (UNIBO), Doutoranda em Sociologia na Faculdade de

no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional – Letras da Universidade do Porto (FLUP) com bolsa de

Universidade Nova de Lisboa. Consultor Artístico do estudo SFRH/BD/100168/2014, pela Fundação para a

Festival de Teatro de Almada. Leciona em diversas Ciência e Tecnologia (FCT), e Investigadora integrada do

instituições nacionais e internacionais no âmbito das Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (ISUP).

Práticas Artísticas Comunitárias. Coordenou o livro Arte e

Comunidade, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.


S
O Teatro Político no Agora | 172
Temáticas e explorações estéticas urgentes

1. INTRODUÇÃO

No panorama cultural português e europeu assistimos a um


fenômeno em contínua expansão no que diz respeito às práticas
performativas, e que se pode propor como uma deslocação da
arte para espaços caracterizados pela heterogeneidade.
Emergem inúmeras experiências locais, nacionais e
internacionais de práticas artísticas com fortes ligações aos
contextos comunitários, entre as quais as práticas teatrais,
associadas a questões sociais e que revelam preocupações
sociopolíticas. Nesse quadro, destacam-se projetos teatrais,
por exemplo, nos estabelecimentos prisionais, no âmbito dos
serviços de saúde mental, com migrantes e em territórios
socialmente desfavorecidos (por exemplo, áreas rurais e

concentração de problemáticas socioeconômicas). Paralelamente,


multiplicam-se também os festivais, as áreas de programação

investigações e publicações sobre o assunto. No mesmo sentido


também se inserem as diretrizes legislativas das políticas

ações de caráter cultural integradas com o setor social, da


educação e da saúde. Essa integração tem o propósito de
alcançar objetivos transversais entre instituições com diferentes
matrizes, conforme o veiculado na legislação.
173 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias

inicial sobre as práticas artísticas comunitárias atuais em


Portugal, com destaque no teatro, centrando nos casos
concretos que possuem um maior enfoque sociopolítico nos
seus conteúdos e ações, trazendo alguns exemplos de temas
que se têm destacado nas dramaturgias e nos posicionamentos
éticos e estéticos. Após uma breve contextualização das práticas
artísticas comunitárias em Portugal, abordamos o percurso que
a PELE - Espaço de Contacto Social e Cultural tem construído
na cidade do Porto, propondo-se como um espaço de criação
teatral que assume “a criação artística como uma alavanca para o
desenvolvimento comunitário, social e econômico, contribuindo
para a coesão social e territorial” (PELE, s/d).

Este texto, escrito a quatro mãos, resulta do encontro de duas


visões distintas e complementares sobre o percurso da PELE,
com o objetivo de incentivar uma aproximação efetiva entre
a pesquisa acadêmica e as práticas neste domínio. Por um
lado, a experiência na primeira pessoa de quem sempre teve
um papel ativo na fundação da associação e na direção dos
projetos artísticos, por outro lado, a observação sistemática

sociologia que vem acompanhando e pesquisando o trabalho


desenvolvido pela PELE nos últimos dois anos.
O Teatro Político no Agora | 174
Temáticas e explorações estéticas urgentes

2.
comunitárias

Os processos de criação coletiva em teatro que


convocam a participação das comunidades
enquadram-se no campo mais vasto das práticas
artísticas comunitárias. Estas assumem-se em
notável expansão nos mais diversos contextos
mundiais, nomeadamente no contexto dos países
ibero-americanos. Apesar de não serem uma
realidade nova, estando fortemente ligadas aos
movimentos artísticos e de transformação social
dos anos 1960, essas práticas integram hoje

desenvolvimento de acordo com as complexas


realidades atuais. Interessa ter presentes as

Oprimido (BOAL, 2005), inspirado pela Pedagogia


do Oprimido, de Paulo Freire (FREIRE, 1987), e pelo
Teatro Épico de Bertolt Brecht (BRECHT, 1964).
Mais recentemente, também na América Latina,
o movimento do teatro comunitário argentino
(BIDEGAIN, 2007) assume um forte destaque com
bases no desenvolvimento do Teatro Popular e

do devising theatre (ODDEY, 1994) ou do living


theatre, e também da arte participativa na Inglaterra,
que emerge no início dos anos 1990 como tentativa
de despolitização da arte comunitária e, antes
disto, na França, a importante ação e animação
sociocultural resultante do movimento de educação
175 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias

Atualmente, é possível, recorrendo às várias

artísticas comunitárias, reunir uma série de


elementos comuns a essa realidade em permanente
construção (p.ex.: quem é envolvido, de que forma,
qual é o material-base de pesquisa, o tipo de relação
entre artistas e comunidades, entre outros) (BOEHM

PRENTKI & PRESTON, 2009). Com base nos diversos


elementos e no seu cruzamento, consideram-se as
práticas artísticas comunitárias como:

um campo próprio de ação e pensamento


que destaca a participação nos processos
de criação artística coletivos activados pelas
culturas, identidades, histórias, tradições
de pessoas e lugares que artisticamente
trabalhadas, sustentam o desenho de uma
dramaturgia e permitem uma projecção
alternativa colectiva no futuro. É de esperar de
um processo desta natureza qualidade estética

tensão construtiva entre o tradicional e o


O Teatro Político no Agora | 176
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Particularmente no caso de Portugal, tendo em


consideração as suas características culturais,
sociais, econômicas, políticas e ambientais, é
muito interessante destacar a proximidade à
América Latina, nomeadamente no funcionamento
comunitário e no sentido de pertencimento,
também motivado pelos processos pós-
revolucionários assentes em princípios de
Educação Popular (p.ex.: F.A.O.J. – Fundo de Apoio
aos Organismos Juvenis). Por outro lado, é de
destacar, do ponto de vista formal e estético, a

da Europa Central. Assume assim Portugal, também


pelo seu lugar no sul da Europa, um espaço
privilegiado e estratégico de diálogo no contexto

(Holanda), uma das maiores referências mundiais


neste campo de estudo, tem pelo fenômeno das
práticas artísticas comunitárias que se desenvolve
em Portugal.
Espetáculo Entrado, dirigido por

Hugo Cruz e protagonizado por

reclusos do Estabelecimento

Prisional do Porto. 2010.


no contexto das práticas artísticas comunitárias
177 | A criação teatral em Portugal

Foto: Paula Preto.


O Teatro Político no Agora | 178
Temáticas e explorações estéticas urgentes

3.
Uma breve apresentação do percurso da PELE no âmbito da criação artística
comunitária

A PELE, presente no território portuense desde 2007, surgiu num contexto de conjunturas

que passam pelas questões econômicas, mas também sociais e políticas. Referimo-nos
às dinâmicas destacadas por estudos sociológicos relacionadas com o aumento das
índice de Gini2
e que apresenta valores mais elevados nos países do sul da Europa, como Portugal, ao
enfraquecimento dos sistemas clássicos de suporte informais como a família e a comunidade

que se enfatizou após o ano de 2008 e que ainda parece permanecer, associada a uma
fase de deslegitimação política e de enfraquecimento dos Estados-Providência europeus,
Europa
do Sul , no qual Portugal se insere. Mas também é um contexto caraterizado por uma nova
3

facilidade de interação internacional e de novas propostas de ações coletivas espontâneas


que parecem possuir uma nova centralidade em nível estratégico na estruturação das
sociedades modernas, e que podem ser inseridas em uma visão glocal das dinâmicas sociais
(BECK, 2000). Nessa perspectiva, as ações coletivas podem mostrar-se como redes de apoio,
mas também como espaços de participação cívica e política, e é neste duplo sentido que
se insere a proposta da PELE, que atua no espaço de diálogo entre o socioeducativo e o
artístico (PELE, s/d). Esse posicionamento rejeita a discussão entre a ideia da “arte pela arte”
e da “arte com função de transformação social” de forma antagônica, colocando o foco na
tensão que se gera entre as dimensões artística e política e como estas se interpenetram de
forma complementar. O real necessita do poético para se inspirar no sentido das mudanças
e o poético pede um real como terreno inesgotável de criação. É exatamente no espaço
entre o real e o poético, o fatual e o imaginado, o individual e o coletivo que se produz o
distanciamento necessário à criação de outras realidades possíveis. Esse é o espaço do
estranhamento onde se podem experimentar outras formas de funcionamento do ponto de

RANCIÈRE, 2005).
179 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias

2 - Instrumento de medição
estatística que indica o grau
de concentração de renda em
determinado grupo. Apresenta
valores de 0 a 1, em que 0
representa a igualdade da
distribuição da riqueza e 1, a
concentração de toda a riqueza

uma situação de desigualdade


extrema.

3 - Sobre a perspetiva do modelo


corporativo, ver Esping-Andersen
(1994). Para o modelo da Europa
do Sul, ver Adão e Silva (2002).
O Teatro Político no Agora | 180
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A partir da análise dos quarenta e cinco projetos desenvolvidos

2) projetos com grupos populacionais que apresentam


caraterísticas homogêneas (p.ex.: pessoas reclusas, pessoas
surdas, pessoas em situação de sem abrigo); 3) projetos de Teatro
do Oprimido; 4) formação.

Analisando diacronicamente a trajetória da associação, é possível

mantiveram ao longo do tempo, mas que deram espaço também

sobre este fazer, concretizada também através de publicações de


livros e documentários centrados nos processos criativos. Cada
projeto e o seu desenvolvimento dependem de peculiaridades

espaço privilegiado de diálogo e criação coletiva (PELE, s/d).


181 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias

Afunilando para o âmbito dos processos criativos coletivos de


Teatro Comunitário no qual se concentra este texto, a PELE
desenvolveu até hoje dezoito projetos, abrangendo cerca de
quinhentos participantes. Pelas próprias caraterísticas que
constituem as práticas artísticas comunitárias, em que a criação
é partilhada num movimento de colaboração, e pelas conjunturas
estruturais de cada contexto em que são desenvolvidas,
torna-se difícil pensar esses projetos como um todo homogêneo.
As caraterísticas próprias das comunidades com que se trabalha,
e das quais emergem as temáticas e os seus desenvolvimentos,
oferecem leques diferenciados de narrativas e de expressões
artísticas. Além disso, os enquadramentos institucionais e

encontramos projetos com caraterísticas muito diferentes no que


diz respeito à duração, à prossecução do acompanhamento dos
grupos e aos âmbitos das apresentações, criando um continuum
entre diferentes graus de institucionalização e de continuidade
(SERAFINO, 2015). Mas existem aspectos peculiares transversais
às práticas de criação coletiva comunitária e, de forma mais

que atravessam diferentes esferas da vida e com uma forte

dos grupos, a experimentação, a proposta de momentos de


diálogo e o questionamento e a abertura de outras possibilidades
de acesso ao circuito cultural da cidade.
Espetáculo MAPA – O jogo da

cartografia, dirigido por Hugo

Cruz e produzido pela PELE

– Espaço de Contacto Social

e Cultural. 2014.

Foto: Patrícia Poção.


O Teatro Político no Agora | 182
Temáticas e explorações estéticas urgentes
183 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias
O Teatro Político no Agora | 184
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Esses projetos propõem-se como um estímulo à colaboração,


visando a objetivos comuns na tentativa de contrastar os
impulsos de competição que permeiam a nossa sociedade.
A dinâmica dos processos criativos leva a abordar assuntos

, podem

como inspirações na escrita das dramaturgias (p.ex.: o emprego


e a falta dele; os processos de desindustrialização que marcam
os equilíbrios familiares e o ordenamento urbano; a viabilidade

negligência de determinados territórios por parte do poder


político; os ciclos migratórios: do rural ao urbano, internos
à própria malha metropolitana e de nível internacional; a
violência doméstica, de gênero e entre gerações; o resgate
de tradições, de rituais e de identidades; a construção de
narrativas alternativas que visem à superação de estereótipos;
a importância do acesso ao teatro e à arte; a possibilidade de
cada pessoa poder ser inserida e fazer parte na construção de
experiências culturais, participativas e afetivas).
185 | A criação teatral em Portugal
no contexto das práticas artísticas comunitárias

4.
Algumas considerações

inacabada, sobre a produção e o fazer teatral num sentido


comunitário. Em síntese destacamos como aspectos essenciais
das práticas artísticas comunitárias: a ligação ao lugar; a
relevância da continuidade e autonomia dos grupos; o trabalho
com grupos heterogêneos e diversos; uma dramaturgia baseada
nas memórias, histórias, identidades, culturas, em suma, nas

comunidade; o foco nos processos participativos de criação


coletiva; o envolvimento da comunidade em todas as fases do
processo criativo; uma participação voluntária e sem recorrer
a seleção; a aceitação de diferentes formas de participação no
processo; e trabalhar de forma contínua o equilíbrio frágil entre
ética, estética e empoderamento.
O Teatro Político no Agora | 186
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Pelas questões aqui levantadas, parece-nos que


as práticas artísticas comunitárias podem adquirir
a forma de uma ação emancipatória assente num
movimento colaborativo que incentiva o debate
estético e ético em torno das possibilidades
de atuação na realidade, da criação de novas
narrativas e das representações alternativas à
visão dominante da sociedade. As produções
teatrais caraterizadas por processos coletivos e
que se integram neste âmbito podem representar
a reivindicação de uma independência em relação
aos modelos expressivos da indústria cultural e
podem-se inserir em lógicas de políticas de caráter
comunitário. No entanto, torna-se fundamental
entender e levar em consideração as dinâmicas
de apropriação intrínsecas ao sistema no qual
estamos inseridos, para não perspectivar de forma
ingênua as práticas artísticas comunitárias, uma
vez que podem existir apropriações políticas e
institucionais das mesmas, que tendencialmente
as descaracterizam e englobam em dinâmicas
controversas. e produzido pela PELE – Espaço de
cartografia, dirigido por Hugo Cruz

Contacto Social e Cultural. 2014.


Espetáculo MAPA – O jogo da

Foto: Patrícia Poção.


O Teatro Político no Agora | 188
Temáticas e explorações estéticas urgentes

La sociedad del riesgo global


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ENTRE O SUBLIME
E O ESPÚRIO:
UMA BREVE EXPOSIÇÃO SOBRE O CONCEITO DE JUSTAPOSIÇÃO
COMO PROCEDIMENTO DE MONTAGEM POLÍTICA1

1 - Este texto conjuga as ideias expostas em dois artigos diferentes. Em primeiro

lugar, Entre lo sublime y lo espurio, publicado na Revista Conjunto (Casa de

las Américas, La Habana, Cuba, n. 173, out.-dez. 2014, p. 83-87); em segundo

lugar, o artigo Una trilogía de la revolución como alternativa al principio de no

contradicción, publicado na Revista Apuntes de Teatro, n. 139, 2014, ISSN 0716-4440

©Escuela de Teatro – Pontificia Universidad Católica de Chile.

Santiago Sanguinetti 2
(MONTEVIDÉU/URUGUAI)
2 - Santiago Sanguinetti (Montevidéu/Uruguai) é ator,

dramaturgo, diretor e professor, egresso da Escola

Multidisciplinar de Artes Dramáticas. Estudou em

Avignon, Barcelona, Nottingham, Santiago, Buenos

Aires e Montpellier. Vencedor de diversos prêmios, entre

eles o Prêmio Nacional de Literatura do Uruguai. Seus

textos foram encenados em nove países. Autor dos livros

Dramaturgia imprecisa (2009), Sobre la teoría del eterno

retorno aplicada a la revolución en el Caribe (2013) e

Trilogía de la revolución (2015).


O Teatro Político no Agora | 192
Temáticas e explorações estéticas urgentes

PAUL AUSTER, em seu livro Diário de Inverno, conta que


James Joyce, de passagem por uma festa na noite da Paris dos
anos vinte, foi abordado por uma mulher, que lhe pediu um
aperto na mão que havia escrito Ulisses. “Permita-me recordá-
la, senhora, que esta mão também fez muitas outras coisas”,
respondeu Joyce 3
. O valor cultural suposto
pelo fato de ter conhecido Joyce, ter lido Ulisses e apertado a

se viu contrastado com a inevitável escatologia da imaginação


mais perversa: um produto cultural de elite se misturando com
possíveis limpadas de bunda, masturbações – próprias ou alheias
–, assoadas de nariz, retiradas de remelas dos olhos e cera dos
ouvidos, espremidas de espinhas e limpezas de penugem do
umbigo. Caso Joyce tivesse aceitado, sem mais, apertar a mão
da mulher em questão, o ato comunicativo teria sido encerrado.
No entanto, e aqui está a genialidade, Joyce amplia seu sentido,
abrindo mais um jogo na dinâmica da linguagem. Ele mesmo
se torna uma imagem de justaposição. Sua mão, a mesma mão,
passa a ser lida como mãos diferentes, com referências a dois
campos semânticos aparentemente contrários. Joyce une em si
dois opostos: o sublime e o espúrio, tudo num mesmo instante
e num mesmo corpo. “Fair is foul, and foul is fair”, tal como
Macbeth, de William Shakespeare, no início
do primeiro ato.
193 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Víktor Shklovski (1991, p. 55), no começo de seu artigo A arte


como artifício, lembra que “a arte é o pensamento por meio
de imagens”4, e complementa: “Todo o trabalho das escolas
poéticas não é outra coisa senão a acumulação e a revelação de
novos procedimentos para dispor e elaborar o material verbal,
e consiste muito mais na disposição das imagens que em sua
criação”5 (SHKLOVSKI, 1991, p. 56).

Essa concepção da arte como “revelação de novos


procedimentos” (SHKLOVSKI, 1991, p. 56) ilumina
nosso caminho para entender, no que toca ao teatro
político, qual pode vir a ser a relação entre cena e
contexto social. Por que não pensar em conteúdos
ideológicos claros, porém apresentados sob o
obscurecimento da forma?

3 - Do original: “Permítame
recordarle, señora, que esta mano
también ha hecho muchas otras
cosas”. Tradução nossa.

4 - Do original: “El arte es el


pensamiento por medio de
imágenes”.Tradução nossa.

5 - Do original: “Todo el trabajo


de las escuelas poéticas no es
otra cosa que la acumulación
y revelación de nuevos
procedimientos para disponer
y elaborar el material verbal,
y consiste mucho más en la
disposición de las imágenes que
en su creación”. Tradução nossa.
O Teatro Político no Agora | 194
Temáticas e explorações estéticas urgentes

do objeto como visão e não como


reconhecimento; os procedimentos da arte
são os da singularização dos objetos, o que
consiste no obscurecimento da forma, no

percepção. O ato da percepção é, na arte, um

meio de experimentar o devir do objeto: o que


já está realizado não interessa para a arte.6
(SHKLOVSKI, 1991, p. 60)

Como um dos tantos procedimentos de manipulação de imagens,


a justaposição de elementos dissonantes produz a multiplicação
de seus sentidos. A percepção sofre um impacto, a provocação
surte efeito, a recepção se desautomatiza. Os exemplos abundam,

Último tango em Paris e em Maria Schneider masturbando


Marlon Brando debaixo da mesa de um bar enquanto sussurra:
“não quero te ver mais, nossa relação acabou”. O objeto
devém, se recria e se instala no terreno do desconhecido e do
irreconhecível. Deixa de ter nome.
195 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

A teorização acerca da relação entre o teatro e a política foi, e segue sendo,


problemática, ainda mais quando não são poucos os que restringem o uso
da locução “teatro político” unicamente ao teatro didático portador de uma
“mensagem”. São vários os pontos de partida para se pensar o político no
teatro. Estrear uma obra fora dos centros hegemônicos, seja qual for seu tema,
é, por si só, um ato político de resistência. Cobrar ingressos populares, “passar
o chapéu”, permitir o acesso gratuito e livre são, também, atos políticos. É
um ato político estrear peças de autores latino-americanos e não clássicos
europeus. Gerar procedimentos de criação horizontais e cooperativos é um ato
político. Sair dos teatros para trabalhar em espaços não convencionais é um
ato político. Subverter e deslocar o funcionamento da apresentação nos teatros
convencionais é também um ato político. E também o são seus contrários:

cobrar preços elevados, fazer publicidade nesse ou naquele jornal. São todos
atos políticos, mas o são em sua forma, não no conteúdo. Ao falar de conteúdo,
falamos necessariamente das ideias que vão além da própria teatralidade.
Falamos das ideias sobre as quais se sustenta o mundo real. No meu ponto de
vista, é justamente aí, na interação entre o âmbito da representação e o âmbito
puramente extrateatral, onde acontece o jogo da relação entre teatro e política.

6 - Do original:
del arte es dar una sensación
del objeto como visión y no
como reconocimiento; los
procedimientos del arte son
los de la singularización de los
objetos, y el que consiste en
oscurecer la forma, en aumentar

la percepción. El acto de la

sí y debe ser prolongado. El arte


es un medio de experimentar el
devenir del objeto: lo que ya está
realizado no interesa para el arte”.
Tradução nossa.
O Teatro Político no Agora | 196
Temáticas e explorações estéticas urgentes

algo mais que ele mesmo? Há teatralidade, como essência do


dramático – se é que isto existe –, fora do teatro? O teatro é mais
do que puro procedimento e soma de regras? O teatro é um meio

sem minúcias epistêmicas, qual é a relação entre o mundo real e


o mundo da cena.

Rafael Spregelburd (2003, p.142-143) aborda a problemática


sem duvidar em evitar a construção de verdades apriorísticas na
composição dramática. Em seu teatro, pelo menos na teoria, o
procedimento vem antes do símbolo.
197 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

O teatro mais vivo, mais interessante que


se faz hoje em Buenos Aires […] é um teatro
que foge do símbolo como da peste. […]
A sua “verdade” radica mais no procedimento
lúdico de construção de sentidos a posteriori
do que na exposição de verdades conhecidas
a priori. […] O teatro que nos coloca de frente
com as coisas do mundo sem orientar suas
7

Muito antes, outros teóricos parecem ter-se


inquietado pelas mesmas questões, chegando

p.61) cita duas correntes opostas, as quais chamou


de “pressão literária” – teatro como meio –

7 - Do original: “El teatro más


vivo, más interesante que se hace
hoy en Buenos Aires […] es un
teatro que huye del símbolo como
de la peste. […] Su “verdad”
radica más en el procedimiento
lúdico de construcción de
sentidos a posteriori, que en
la mostración de verdades
conocidas a priori. […] El teatro
que nos enfrenta a las cosas
del mundo sin orientar su
Tradução nossa.
O Teatro Político no Agora | 198
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em todas as épocas e em todos os lugares, o teatro experimentou


a pressão de duas forças da dramaturgia: a literária e a teatral.
O predomínio, no drama, de elementos literários emergia à
superfície do palco sempre que o teatro deixava de ser um

pronunciar com comodidade. […] Os mestres do diálogo em


romances e contos vão ao teatro depois de se desprenderem do
tempo dedicado aos romances e contos. […] Dessas entranhas,
brota o repugnante fedor do teatro tendencioso e do teatro
de conversação8, nos quais o autor utiliza o palco para expor
uma série de opiniões sobre a sociologia, as relações entre
casais e, inclusive, sobre a medicina. Na Rússia, França, Itália,

uma mesma tendência: os teatros buscam a dramaturgia dos


propagandistas, dos romancistas ou, simplesmente, dos homens
de negócios.9
199 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

8 - Do original: “teatro de
conversación”.Tradução nossa.

9 - Do original: “En todas las


épocas y en todos los lugares
el teatro ha experimentado
la presión de dos fuerzas de
la dramaturgia: la literaria y
la teatral. El predominio en el
drama de elementos literarios

escenario siempre que el teatro


ha dejado de ser un objetivo
para convertirse en un medio. Un
púlpito desde el que se puede
predicar con comodidad. […]
Los maestros del diálogo en
novelas y relatos van al teatro
tras desprenderse del tiempo
empleado en novelas y relatos.
[…] De estas entrañas brota el
repugnante hedor del teatro
tendencioso y del teatro de
deve existir unicamente por e para conversación, en los que el autor
utiliza el escenario para exponer
si? Se examinarmos as seguintes
toda una serie de opiniones sobre
palavras de Peter Brook (1973, p.50), la sociología, las relaciones de
pareja e incluso la medicina. En
Rusia, Francia, Italia, Inglaterra,
próprios da cena – em oposição
àqueles valores que lhe são alheios –, del siglo XIX observamos una
misma tendencia: los teatros
tenderíamos a pensar assim.
buscan la dramaturgia de los
propagandistas, de los novelistas
o, sencillamente, de los hombres
de negocios”. Tradução nossa.
O Teatro Político no Agora | 200
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Se partimos da premissa de que um palco


é um palco – e não o lugar adequado para
desenvolver um romance, uma conferência,
uma história ou um poema teatralizados –, a
palavra dita nesse palco existe, ou deixa de
existir, somente em relação às tensões que
cria em dito palco e dentro das circunstâncias
determinadas pelo lugar. Em outras palavras,
ainda que o dramaturgo dê à obra sua vida,
que se nutre da vida que a rodeia – um

escolhas que faz e os valores que observa têm


força somente em proporção ao que criam na
linguagem teatral. Exemplos disso acontecem
sempre que um autor, por razões morais ou
políticas, tenta fazer com que sua obra seja
portadora de alguma mensagem. Seja qual
for o valor de tal mensagem, apenas surtirá
efeito caso caminhe de acordo com os valores
próprios da cena.10
201 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

No entanto, há algo que ainda nos provoca


estranhamento, pois, quais seriam, então, esses

como meio deve apresentar sua matéria semântica?


Quais são os procedimentos que resultam no
“teatral”? Como se mede a tensão que a palavra
dramática – não a narrativa ou a poética – exerce
em cena? Como deixar de lado o político-temático
a partir de uma ótica ideológica emancipatória que 10 - Do original: “Si partimos de
la premisa de que un escenario
não negue o teatral, mas, tampouco, o restrinja à es un escenario –no el lugar
sua versão didática? adecuado para desarrollar
una novela, una conferencia,
una historia o un poema
Enfrentando essas perguntas, comecei a
esboçar procedimentos de direção cênica que en ese escenario existe, o deja
de existir, sólo en relación
abordem certo universo de ideias, promovendo, con las tensiones que crea en
ao mesmo tempo, sua combustão espontânea. dicho escenario y dentro de las
circunstancias determinadas
Apresentando um argumento semântico e o seu
de ese lugar. En otras palabras,
contra-argumento referencial, numa espécie aunque el dramaturgo traslada
de palimpsesto ideologicamente incômodo, a la obra su propia vida, que se
nutre de la vida circundante –un
se consegue ampliar e defender, por partes, as escenario vacío no es una torre
opções de discussão, instalando, assim, um debate
y los valores que observa sólo
sério, um cruzamento argumentativo maduro e
tienen fuerza en proporción a lo
não linear, antecipado ou guiado. que crean en el lenguaje teatral.
Ejemplos de esto se dan siempre
que un autor, por razones morales
o políticas, intenta que su obra
sea portadora de algún mensaje.
Sea cual fuera el valor de dicho
mensaje, únicamente surtirá
efecto si marcha acorde con los
valores propios de la escena”.
Tradução nossa.
O Teatro Político no Agora | 202
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A justaposição – assim chamaremos esse procedimento de montagem


política – permitirá que entendamos alguns aspectos da sinuosa relação que
costuma se estabelecer entre a política e as artes cênicas no meio teatral
contemporâneo. Manteremos o foco em algumas estreias montevideanas
recentes, tomando como exemplo central o projeto Trilogia da revolução,
composto pelas peças Argumento contra a existência de vida inteligente no
Cone Sul (Teatro Solís, 2013), Sobre a teoria do eterno retorno aplicada à
revolução no Caribe (Teatro Solís, 2014) e Breve apologia do caos por excesso
de testosterona nas ruas de Manhattan (Teatro Circular de Montevideo, 2014)11.

Entenderemos a justaposição como um tipo particular de montagem, conceito


abordado por Peter Bürger (1997) em sua Teoria da vanguarda como uma
das categorias de estudo da obra de arte vanguardista. Da colagem cubista

criados como denúncia na Alemanha nazista, a justaposição entendida como


coexistência de elementos dissímeis em uma mesma imagem, num mesmo
golpe de recepção, supõe, de fato, uma recusa ao realismo. Implica, também,
uma construção poética da realidade e propõe uma alternativa ao cotidiano;
mas se limita a isso.
203 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

É claro que os procedimentos tomados em si não


possuem conteúdos semânticos imanentes.
As montagens dos futuristas italianos, associados
ao fascismo de Mussolini, carecem do mesmo
recorte ideológico que as dos futuristas da

Negando toda a síntese, renunciando a

a superposição de imagens, longe de estabelecer


limites para a compreensão racional, parece estar
fundada na irrepresentabilidade conceitual da
matéria artística tratada.

O sentido não é anulado, simplesmente se torna

assim apresentada, a obra de arte assume a


contradição em si mesma e estabelece um novo
método de recepção e de crítica, que deve se
encontrar na metade do caminho entre o estudo
do procedimento como tal – método formal – e
a captação do sentido – método hermenêutico.
Basicamente, trata-se de um pesadelo para aqueles
que pretendem encontrar uma única mensagem
numa obra de arte ou, como é o nosso caso, numa
obra de teatro.
11 - No original: “Trilogía de la
revolución – Argumento contra
la existencia de vida inteligente
en el Cono Sur; Sobre la teoría
del eterno retorno aplicada a la
revolución en el Caribe; y Breve
apología del caos por exceso
de testosterona en las calles de
Manhattan”.Tradução nossa.
Argumento contra a existência de

vida inteligente no Cone Sul,

primeiro espetáculo do projeto Trilogia

da Revolução, texto e direção de

Santiago Sanguinetti. 2012.

Foto: Alejandro Persichetti.


O Teatro Político no Agora | 206
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A justaposição como procedimento


de montagem nega a possibilidade de

Essas montagens não admitem


a tradução, tampouco guardam
outro discurso a ser revelado.
Elas obscurecem a pretensão de se
encontrar uma mensagem única.

Tal mecanismo sustenta as encenações das peças que compõem a


Trilogia da Revolução. Em Argumento…, quatro jovens estudantes
pretendem executar um atentado em três universidades do Cone
Sul como ação direta inaugural para a transformação social.
Em seu apartamento, referências permanentes à cultura pop de
herança norte-americana dos oitenta e noventa se cruzam
com tópicos emblemáticos da esquerda revolucionária latino-
Taxi Driver,
Wonder Woman, Beetlejuice, E.T., Wolverine; de outro, José Carlos
Mariátegui, Carlos Quijano, Che Guevara, Fidel Castro.
O episódio de maior amplitude semântica, e de maior repercussão
crítica na margem extensa do leque político local, consistiu numa

vídeo, que mostrava as personagens lendo artigos de revistas


paradigmáticas do pensamento socialista latino-americano
(a peruana Amauta e a uruguaia Marcha) com seus rostos cobertos
pelas máscaras de Wakko, Yakko e Dot, as protagonistas do
desenho animado Animaniacs, da Warner Brothers. Por um lado,
houve quem viu essa cena como uma ridicularização dos ideais
revolucionários, e, por outro, quem a viu como uma atualização
temática de abordagem política pouco comum no meio local

que voltavam a ser encenadas; que voltavam a ser recordadas,


comentadas e debatidas.
207 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Em Sobre a teoria..., quatro capacetes azuis

Porto Príncipe, são submetidos a um violento


assédio por parte do povo haitiano, que,
manifestando plena consciência das injustiças
da ordem econômica global que fizeram de
seu país o mais pobre da América, decidiu
empreender um levante armado. Os soldados
descobrem, no entanto, que eles mesmos
foram os culpados pela rebelião, já que levaram
consigo uma bibliografia revolucionária – Marx,
Engels, Lenin –, que compartilharam com os
locais. O paroxismo do ridículo: um largo
monólogo no qual um dos soldados explica
a seus companheiros, por meio de desenhos
infantis num quadro negro, o funcionamento
da “Dialética do senhor e do escravo”, tal como
a comenta Hegel em sua Fenomenologia do
espírito. Entre bonecas infláveis, preservativos,
bolsas de água quente, ursos de pelúcia, posters
da Madonna e bonecos de Vudu que emergem
das caixas de ajuda humanitária que compõem a
cena, Hegel – e em seguida Nietzsche... – aparece
na boca de um soldado raso. Esses elementos
– materiais e conceituais – simplesmente não
deveriam estar juntos.
O Teatro Político no Agora | 208
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A peça que completa a trilogia, Breve apologia do caos…, apresenta um jovem que, junto a
seu avô, viaja para Manhattan para propagar um vírus que havia criado e que, ao combinar
DNA de gorila com testosterona, tem por efeito tornar os seres humanos extremamente
violentos. A epidemia planejada irá provocar um apocalipse sistêmico que permitirá que as
utopias revolucionárias se tornem realidade, quando tudo começar outra vez do zero. E tal
como antes foram Mariátegui, Quijano e Hegel, agora será a vez de Trotsky. O avô, velho
trotskista, fundamentará a ação do grupo apoiando-se no conceito de revolução permanente
e, para isto, recorre ao mapa naïf do tabuleiro do jogo WAR. Tanto a obra A revolução
permanente como o jogo infantil são atravessados, provocando puro ruído semântico, pura
estática de sentido.
Sobre a teoria do eterno

retorno aplicada à revolução no

Caribe, segundo espetáculo do

projeto Trilogia da Revolução,

texto e direção de Santiago

Sanguinetti. 2012.

Foto: Alejandro Persichetti.


uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)
209 | Entre o sublime e o espúrio:
O Teatro Político no Agora | 210
Temáticas e explorações estéticas urgentes

A peça de dois dias consecutivos Bem-vindo à casa12, dirigida


por Roberto Suárez, em 2012, com a companhia Pequeño Teatro
de Morondanga, é, em si, um grande exemplo de justaposição.
Sua primeira parte cria a ilusão, enquanto a segunda a destrói ao
evidenciar o artifício. Seria Joyce escrevendo Ulisses com uma
mão enquanto coça o umbigo com a outra.

A justaposição, dissemos, é a convivência de elementos


dissonantes, a presença de uma contradição quase sem salvação.
Mas não todas as justaposições têm o mesmo impacto; não
todas são dramáticas, se pensarmos bem. A meu ver, de todos
os tipos possíveis de justaposição, o mais interessante é o que
implica uma discussão de sentidos, entendendo por “sentido”
toda a construção linguística que privilegia o uso cognitivo ou
de conteúdos proposicionais de todo ato comunicativo – em
detrimento de seu uso pragmático ou força ilocucionária.

contraditórios convivendo em cena. E não falo de qualquer


sentido, mas de um sentido político. O sublime e o espúrio no

stencil encontrado em uma rua de Buenos Aires que mostra


Che Guevara com o rosto de Marilyn Monroe; pensemos – cruel
convivência – na moeda de um dólar equatoriana, que mostra,
de um lado, uma mãe indígena carregando seu bebê e, de outro,
a águia norte-americana junto aos dizeres “in God we trust”.
211 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Destaco que, ao tocar no político, não estou me referindo ao


relacionamento mínimo cotidiano das pessoas, mas penso nos

as características globais das inter-relações, os macrorrelatos


que sustentam e determinam os vínculos, as normas que afetam
o contato entre pares, as regras de convivência, os acordos
e desacordos sobre o modo de organização imperante, as
características do marco amplo que habilita a vida coletiva,
as formas nas quais o poder é exercido em uma sociedade.

Aristóteles, no livro I da Política, diz duas coisas fundamentais


sobre o homem. A primeira: o homem é por natureza um animal
político (1989, p.135); a segunda: o homem é o único ser dotado
de logos, linguagem, através da qual é capaz de expressar o
bem e o mal (1989, p.136). Isso supõe, como recupera Hannah
Arendt (2009) em A condição humana, que a vida política é uma
vida que privilegia o discurso sobre todas a coisas; é a vida dos
homens preocupados, antes de mais nada, por falarem entre si.
Para Arendt (2009, p. 211), o teatro é justamente a arte política por
excelência, já que “é a única arte cujo assunto é, exclusivamente,
o homem nas suas relações com outros homens”13.

12 - No original: “Bienvenido a
casa”. Tradução nossa.

13 - Do original: “[…] es el único


arte cuyo solo tema es el hombre
en su relación con los demás”.
Tradução nossa.
Breve apologia do caos por

excesso de testosterona nas ruas

de Manhattan, terceiro espetáculo

do projeto Trilogia da Revolução,

texto e direção de Santiago

Sanguinetti. 2014. Foto: Alejandro

Persichetti.
O Teatro Político no Agora | 212
Temáticas e explorações estéticas urgentes
213 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)
O Teatro Político no Agora | 214
Temáticas e explorações estéticas urgentes

É a partir desse ponto de vista que considero que as


justaposições de sentido político são mais dramáticas que
outras. As últimas peças de Gabriel Calderón são bons exemplos.
Recordemos duas: OR – talvez a vida seja ridícula, estreada no
Teatro Circular de Montevidéu em 2010, codirigida por Gabriel
Calderón e Ramiro Perdomo; e EX – que se explodam os atores14,
estreada no Teatro La Gringa em 2012, também dirigida por
Calderón. Na primeira, uma menina, que acreditavam estar
desaparecida em razão da ditadura, reaparece anos depois
para revelar que sua desaparição foi resultado de uma abdução
extraterrestre. Na segunda, um jovem inventa uma máquina do
tempo para permitir que sua namorada reconstrua sua história
pessoal, trazendo do passado familiares já mortos, protagonistas
do golpe de Estado.

Em ambas, o político – com o sentido que já determinamos –

referenciais antagônicos, colocando em debate duas linguagens


opostas, ampliando sentidos de interpretação, gerando novas
ideias nascidas a partir do confronto entre mundos cujos
vínculos simplesmente não correspondem. Esse procedimento,
certamente iconoclasta, amplia o horizonte do possível através
da provocação, leva a questionamentos não apenas sobre os

em termos de recepção, aos alcances das abordagens com


pretensões miméticas.
215 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

O que em Calderón é um procedimento de


construção global, em outros casos é um
procedimento de montagem de cenas particulares.
Antígona Oriental,
escrita por Marianella Morena a partir de Sófocles
e depoimentos de ex-presas políticas, e dirigida
por Volker Losch, que estreou no Teatro Solís em
2012. Nessa peça, Antígona se apresenta ao coro
de ex-presas trajando um exuberante e justo

até o proscênio com sapatos de salto, esboça um


largo sorriso intencionalmente falso para cantar

agora no sistema estou, no sistema”. Vemos, assim,


corpos insurgentes adaptados ao sistema, como a
mãe indígena na moeda de um dólar equatoriana.
Estabelece-se uma justaposição política que
desconstrói o relato histórico.

14 - Do original: “OR – tal vez


la vida sea ridícula e EX – que
revienten los actores”.Tradução
nossa.
O Teatro Político no Agora | 216
Temáticas e explorações estéticas urgentes

De tudo isso, surge uma pergunta inevitável: por


que defender esse palimpsesto semântico como
maneira particular de abordar o político, cheia de
amplitude e de multiplicação de sentidos, que pode
se prestar a interpretações às vezes antagônicas?
Por que não ser mais claro com o que se pode
encenar? Por que os autores e/ou diretores que
procedem com esse modo habilitam leituras que
podem ir contra as próprias convicções políticas?
A razão é simples. Apresentar uma ideia e o seu
contrário coexistindo na mesma imagem implica
naturalmente um questionamento imediato das
razões de semelhante convivência. A justaposição
forçada aborrece e produz uma comoção frente

indiferente quem assiste a uma espécie de missa


macabra com um padre grávido e um papa violador
A metade de Deus, escrita e
dirigida por Gabriel Calderón, estreada pelo grupo
A metade de Deus, texto

Comédia Nacional no Teatro Solís, em 2013. O


incômodo nascido da provocação habilita um
e direção de Gabriel

Foto: Kevin Toro.

diálogo e um cruzamento de argumentos imediatos,


Calderón. 2013.

e justamente este diálogo e este cruzamento


de argumentos, segundo Hannah Arendt, são a
essência da política e a essência do teatro.
Trata-se de ver no teatro um
diálogo compreendido como ação
comunicativa entre iguais e não como
ação estratégica – esta que o autor
e/ou diretor, em cima de um hipotético
pedestal, induz os espectadores,
deliberadamente e sem se importar
com os meios, à aceitação de uma
verdade prévia pensada dentro de
um escritório. Nesse caso não haveria
debate nem diálogo possíveis.
O Teatro Político no Agora | 218
Temáticas e explorações estéticas urgentes

Já Javier Daulte (2004), em seu artigo Jogo e compromisso,


faz uma distinção similar, diferenciando o teatro lúdico – o qual
defende – do teatro comprometido com o social – o qual chama
de “ditatorial”. Ainda que a sua abordagem global pareça mais
que acertada, seu artigo padece de um problema fundamental:
ignora a importância da produção de sentido. Daulte deixa de fora
o tratamento da matéria política por medo de uma abordagem
unidirecional e didática. Parece claro que o teatro não deve ser
didático – como o foi na Grécia Antiga – dado que a verticalidade
da didática, fundada na transposição daquele que detém o saber
para aquele que não o detém, não condiz com a horizontalidade do
diálogo teatral proposto nas poéticas contemporâneas – esse que
conduz à horizontalidade do pensamento. Felizmente, podemos

não linear, não óbvia, não didática. Teatro e política estão unidos

para abordar tal relação.

Falar da recuperação da função política é falar da reinvenção


de sua função de ágora, de assembleia, de debate dos
assuntos políticos. A justaposição de sentidos – ou palimpsesto
ideológico – é uma intuição poética e um procedimento
estético de montagem que gera uma ocasião oportuna para a
abertura semântica, para o encontro dialógico público e para a
desautomatização perceptiva através do impacto e da ampliação
do horizonte de expectativas do espectador.
219 | Entre o sublime e o espúrio:
uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Obras citadas:

ARENDT, Hannah. La condición humana. Buenos Aires: Paidós,


2009. Impresso.

ARISTÓTELES. Política. Bogotá: Publicaciones del Instituto Caro y


Cuervo, 1989. Impresso.

Diario de invierno. Barcelona: Anagrama, 2012.


Impresso.

BROOK, Peter. El espacio vacío. Barcelona: Península, 1973.


Impresso.

BÜRGER, Peter. Teoría de la vanguardia. Barcelona: Península,


1997. Impresso.

Juego y compromiso: el procedimiento. EOLIA –


Escola Superior d’Art Dramàtic. Recurso eletrônico. Julho, 2004.

MEYERHOLD, Vsevolod. Conferencia Nº2: Introducción a la


, 28 de julio de 1918. Lecciones de dirección
escénica. Ed. Jorge Saura. Madrid: Publicaciones de la Asociación
de Directores de Escena de España, 2010. Impresso.

SHKLOVSKI, Víktor. . Teoría de la literatura


de los formalistas rusos
1991. p. 55-70. Impresso.

Prólogo. Un momento argentino. Nuevo


teatro argentino. Ed. Jorge Dubatti. Buenos Aires: Interzona, 2003.
p. 133-179. Impresso.
GALPÃO EM
FOCO
NÓS E
A APOSTA
NO RISCO

Eduardo Moreira 1
(BELO HORIZONTE/MG)
1 - Eduardo Moreira (MG) é ator, dramaturgo, diretor

e um dos fundadores do Grupo Galpão. Autor da

dramaturgia do espetáculo Nós (2016), junto com o

diretor Marcio Abreu.


Cine Horto em Foco | 224

Não há nada senão vários “nós”, potências eminentemente situadas

social que se decompõe e recompõe sem parar.

Comitê invisível em “Crise e insurreição”


225 | Nós e a aposta no risco

de 2016, trinta e quatro anos de trabalho teatral contínuo


e ininterrupto. Foram vinte e três espetáculos montados e,
certamente, mais de três mil apresentações, por todo o Brasil e
em dezoito países do mundo. A marca, por si só expressiva, se
encorpa ainda mais se considerarmos a frequente ocorrência
de multidões espremidas nas ruas, a exaltação do público e da

pelos mais diversos recantos do País e do mundo ocidental.

Esse histórico de conquistas traz consigo, para o bem e para o


mal, uma tendência à institucionalização. Todo novo trabalho vem
precedido de grandes e naturais expectativas: pela aprovação
generalizada, pelo retorno do público, pela sanção da crítica, pelo
reconhecimento dos amigos e companheiros de classe, parceiros
e patrocinadores. Espera-se, em suma, corresponder a todas as
demandas projetadas sobre um trabalho que se tornou, de certa
maneira, emblemático.
Cine Horto em Foco | 226

Não se trata, de maneira


alguma, de negar ou desprezar
essas circunstâncias, mas de,
reconhecendo-as, saber romper o
perigoso círculo de expectativas que Não é coisa de fácil realização.
pode muito facilmente se tornar uma Exige vontade e persistência,
prisão. Nesse sentido, ao pensar coragem de fazer escolhas e de
assumir consequências. Ter a
continua a ser a busca de horizontes humildade de saber que, no ofício
desconhecidos, o encontro com do ator, estamos sempre de volta
possíveis riscos, uma desconexão
navalha. Olhando de frente para o
espelho, sem reconhecer o próprio
novos caminhos nos reponham em rosto. Encarando constantemente o
sintonia com o teatro como um lugar exercício do vazio, como retornar ao
de permanente aprendizado e de espaço familiar da sala de ensaio e
aprimoramento espiritual. dali extrair matéria insuspeitada,
que seja visceral e fresca.

Esse tem sido nosso princípio


norteador, que nem sempre se
concretiza. Ou que consegue ser
menos ou mais efetivo, conforme
a conjuntura do grupo, sempre
associado ao estado de crise a
que o teatro está constantemente
submetido. Manter a tensão entre o
institucional e esse estado de crise,
necessário ao fazer artístico, parece

grupo como o Galpão.


Detalhe do espetáculo Nós.

Direção de Marcio Abreu. 2016.

Foto: Adalberto Lima.


227 | Nós e a aposta no risco
Cine Horto em Foco | 228

os rumos da criação e da montagem do nosso último projeto


artístico, Nós, com direção de Marcio Abreu: como foi que a
escolha, a gestação e o processo criativo se articularam com
esses princípios que perseguimos, como se inseriram nessa

O caminho foi longo. Na virada de 2014 para 2015, em


nossas intermináveis discussões sobre que projeto artístico

só pela qualidade de seus espetáculos, mas também por sua


visão de teatro, que conhecemos e aprendemos a admirar nos
inúmeros contatos que já havíamos feito, tanto no Cine Horto
como na sede da Companhia Brasileira de Teatro, em Curitiba.

uma espécie de antítese da linguagem teatral mais popular,


reconhecível no trabalho do Galpão. Mas esse já poderia ser, em

isso mesmo, enriquecedor.


229 | Nós e a aposta no risco

de espetáculo ele imaginava montar com o Galpão. A resposta


veio de bate-pronto: um espetáculo político. O entendimento
desse termo tão amplo e complexo foi se dando aos poucos. Num
primeiro momento, ele nos enviou uma série de provocações
que questionavam as relações do “dentro” e do “fora”. Como um
corpo reage no espaço do dentro, na esfera íntima, no estar em
casa, escondido e resguardado? E, por outro lado, como o corpo
reage ao espaço de fora, onde está desprotegido, exposto ao
inesperado?

Com o intuito de criar um discurso coletivo multifacetado


e polifônico, Marcio nos sugeriu a criação de um manifesto
pessoal, em que cada um tentasse expressar o que está bem e o
que está mal no mundo e como reagimos a essa ação do mundo
sobre nós. A partir daí foram surgindo novas questões referentes
ao público e ao privado, ao indivíduo em relação ao coletivo, à
possibilidade de convívio entre as diferenças, à tolerância e à
intolerância. A ideia de uma refeição coletiva também constava
das primeiras indicações propostas pelo diretor.
Detalhe do espetáculo Nós.

Direção de Marcio Abreu. 2016.

Foto: Adalberto Lima.


Grupo de atores que sempre trabalhou com diretores diferentes, o Galpão
sustenta, há um bom tempo, a prática de elaboração interna de cenas a
serem apresentadas ao diretor. Debruçamo-nos, então, sobre as provocações
propostas pelo Marcio, no intuito de construir ideias que servissem ao
desenvolvimento do trabalho. O momento coincidiu com nosso fértil encontro
com a diretora Miwa Yanagizawa. A diretora paulista, que dava em Belo
Horizonte os primeiros passos de uma parceria com o grupo Luna Lunera, nos
Cine Horto em Foco | 232

Nesse caldeirão de ideias e de encontros, surgiram os improvisos


que resultariam na cena da expulsão de uma pessoa que não
quer sair e é brutalmente excluída de um espaço interno. Em
seguida, improvisamos o reverso disso: a mesma pessoa quer
sair e é violentamente impedida pelo coletivo, que não admite
essa possibilidade.

Outro eixo de nossos improvisos foi a ideia da “última sopa”,


cujo preparo em comum emolduraria a exposição das razões
de cada participante para que fosse aquela a sua última
refeição ali compartilhada.
233 | Nós e a aposta no risco

Os chamados exercícios do “fora” (retirar alguém à força de


um determinado lugar) e do “dentro” (não deixar que esse

desde então, como o eixo do nosso projeto dramatúrgico.


Além desses dois momentos, teríamos também a cena da
preparação da sopa, em que diferentes assuntos viriam à
tona, como se aqueles “personagens”, encarnações tênues
de nós mesmos, reproduzissem, como ecos, as vozes que se
multiplicam pelas ruas.

Entre os meses de outubro e novembro, já sob o comando do


diretor, trabalhamos os manifestos pessoais, em que cada ator
expunha a questão do “como eu reajo diante da ação do mundo
em mim”. Esses manifestos foram muito importantes para que
cada ator encontrasse o seu chão dentro do trabalho. Além disso,

começo, a dança da Lydia sobre a mesa e o meu homem-bomba,


Cine Horto em Foco | 234

Outro momento fecundo do


processo com o Marcio foi o da
experimentação em presença do
público. Abrimos a sala de ensaio
do Galpão para que espectadores
compartilhassem e discutissem
conosco as cenas que estavam
sendo improvisadas. Todo o
material desenvolvido foi
apresentado e reapresentado,
disposto em combinações diferentes,
a cada uma das quatro noites.

diante do público aquele rascunho


ainda tão frágil foi fundamental
para que entendêssemos o limite
sutil construído pelo teatro do Marcio
entre uma forma teatral e um ato
performático.
Direção de Marcio Abreu. 2016.
Detalhe do espetáculo Nós.

Foto: Adalberto Lima.


235 | Nós e a aposta no risco

Depois de uma pausa de férias,


voltamos para os três meses

de fato montamos a dramaturgia


e o espetáculo. O texto foi sendo
construído e desconstruído ao longo
de exaustivas repetições, em que
nós, paradoxalmente, buscávamos,
dentro do rigor, o frescor cotidiano
dos diálogos – diálogos simultâneos
e cruzados, cuja sequência obedecia
ao desenho de uma partitura
musical extremamente precisa.
Cine Horto em Foco | 236

a possibilidade de nos surpreendermos sempre com o texto.


Trabalhá-lo como algo que nasce e acontece no aqui e agora, a
salvo do padrão e da forma que se repetem automaticamente
na boca do ator. A isso Marcio se refere como a “exumação de
um cadáver” e procura incessantemente extirpar da fala de seus
atores. É exatamente essa busca de uma atuação no aqui e agora
que turva, no seu teatro, os limites entre a representação e a
performance, algo a que o ator deve atribuir forma e rigor, ao
mesmo tempo que precisa esquecer.

Dentro de uma dramaturgia de rupturas, em que os


atores precisam se ater mais ao ato de estar em cena do
que ao desenvolvimento de um enredo, a interpretação deveria
buscar muito mais o exercício de escuta de uma peça coral do
que se prender a intenções e psicologismos.
237 | Nós e a aposta no risco

Essa premência do teatro como ato do aqui e agora continua


sendo a provocação mais incisiva do nosso encontro com o
teatro de Marcio Abreu. A estrutura da peça não pode se assentar,
ganhar sedimento. Ela precisa ser repetida, mas também
esquecida. Desconstruída num permanente encontro com os
diferentes públicos, em espaços diversos, e que devem alterar
constantemente o estado de presença do ator. O jogo entre
representação e performance nos empurra para um lugar de

acomodação com que recebe o ato teatral. É surpreender.

Depois de um ano de troca de impressões e de sugestões, quatro


meses e meio de ensaios concentrados e mais de quarenta
apresentações de Nós, e
vivo do que nunca. Tão potente e arriscado que, hoje, o Grupo
não tem dúvida de que nossa próxima montagem deve ser
outra parceria com Marcio Abreu. Talvez como uma forma de
“entender” e digerir melhor todos os riscos com que ainda nos
defrontamos. E também, é claro, buscar trajetórias artísticas
inesperadas.
2017 será um ano festivo para
uma companhia que, no Brasil,
completará 35 anos de existência.
Em comemoração a essa marca
histórica, cuidaremos para que nosso
teatro continue a nos propiciar novas
surpresas, encontros enriquecedores

nossa e do público, que sempre nos


brinda com seu aplauso e com seu
inestimável prestígio.
2016. Foto: Adalberto Lima.
Direção de Marcio Abreu.
Cena do espetáculo Nós.
CINE HORTO
EM FOCO
FESTIVAL CENAS CURTAS
DO GALPÃO CINE HORTO:
A LIBERDADE CRIATIVA
COMO ATITUDE POLÍTICA
Marcos Coletta 1
(BELO HORIZONTE/MG)
1 - Marcos Coletta (Belo Horizonte/MG) é formado

pelo Curso Técnico de Formação de Atores do Teatro

Universitário da UFMG; licenciado pelo Curso de

Graduação em Teatro da UFMG; Mestre em Artes/Artes

Cênicas pela EBA/UFMG. Desenvolve trabalhos como

ator, diretor, dramaturgo, improvisador e pesquisador. É

integrante e cofundador do Grupo Quatroloscinco – Teatro

do Comum. Atua como dramaturgo e dramaturgista para

outros grupos e coletivos mineiros. Desde 2014, coordena

o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine

Horto. Integrou a equipe de curadoria do Festival de Cenas

Curtas do Galpão Cine Horto nos anos de 2015 e 2016 e

coordenou os Debates do Dia Seguinte, dentro do Festival.


Cine Horto em Foco | 244

FOI NO ÚLTIMO ANO DO SÉCULO PASSADO,


em 2000, que se realizou a primeira edição do Festival Cenas
Curtas do Galpão Cine Horto, espaço aberto para que os
artistas de Belo Horizonte pudessem experimentar ideias
e práticas cênicas com muita liberdade e pouco dinheiro.
Naquela época, o Galpão Cine Horto, fundado há pouco mais
de um ano, ainda buscava conquistar seu lugar como um
centro cultural de referência, impulsionado pela já consagrada
trajetória do Grupo Galpão. O havia acabado de
estrear sua segunda edição e outros projetos importantes na
2

história da casa como Cena 3x4, Pé na Rua e Galpão Convida


ainda não tinham saído do papel. A Escola de Belas Artes da

Teatro), criando um novo campo de estudo e formação para o


artista cênico belo-horizontino.
245 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

Em 2000, FHC estava em seu segundo mandato e um enorme


blecaute atingia onze estados brasileiros, prenunciando a crise
energética dos anos seguintes, conhecida como a “crise do
apagão”, metáfora pertinente para a complicada situação política
e econômica do País na época. Na contramão do seu contexto,
o Galpão Cine Horto acendeu todas as luzes e abriu as suas
portas para receber uma demanda represada de artistas em
busca de espaço para concretizar seus projetos. Em um ato
quase irresponsável, Chico Pelúcio3 decidiu anunciar no boletim
informativo do centro cultural: “Não percam! No segundo
semestre o 1º Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto”, ainda
que ninguém, nem mesmo ele, soubesse ao certo o que seria
este evento. Com 66 inscrições e 16 cenas selecionadas para
se apresentarem ao longo de quatro dias, a primeira edição do
Festival Cenas Curtas chamou a atenção por seu despojamento
e irreverência. Sua abrangência local movimentou a classe
artística belo-horizontina, reunindo criadores de diferentes
estéticas e gerações, proporcionando encontros até mesmo
inusitados e alimentando expectativa e interesse para a
segunda edição. Mantendo grande abertura e o desejo de
um diálogo cada vez mais polifônico, o Cenas Curtas cresceu
junto com o centro cultural. Reconhecido como celeiro de
realizou o espetáculo Noite de
grupos e espetáculos, o Cine Horto fez do festival um ambiente Reis, direção de Chico Pelúcio,
privilegiado para o risco, a experimentação e o encontro de estreado em janeiro de 1999.
A segunda edição do projeto
realizou o espetáculo Caixa Postal
popular e abrangente – se, na primeira edição, o Festival 1500, direção de Júlio Maciel,
recebeu inscrições apenas de Minas Gerais, em 2014, por estreado em janeiro de 2000.

exemplo, vieram propostas de 16 estados brasileiros. 3 - Integrante do Grupo Galpão


e Diretor Geral do Galpão Cine
Horto.
Cine Horto em Foco | 246

A curadoria do festival também se aperfeiçoou ao longo das


edições. Se, nos primeiros anos, a pluralidade de linguagens
e a praticidade técnica das montagens guiavam a seleção, aos
poucos o olhar curatorial se tornou mais aguçado e mais atento
às questões artísticas, políticas e sociais de cada presente.
O próprio crescimento no número de inscrições e a crescente
qualidade dos projetos exigiram uma seleção mais criteriosa.
É importante destacar que o festival soube aproveitar bem a

um orçamento enxuto, e tanto sua organização quanto as


próprias cenas souberam encontrar soluções criativas de grande
inventividade e baixo custo. Levando isso em conta, a curadoria

que não exigissem grandes demandas técnicas. Tal realidade


ajudou a moldar a identidade do festival ao apresentar cenas
focadas no trabalho do ator, no uso da metáfora e dos signos,
na relação com o espectador e na exploração da teatralidade.
A equipe de seleção costuma ser composta por membros do
Galpão Cine Horto e artistas convidados, vindos de diferentes
áreas, garantindo assim um olhar variado e heterogêneo. A
cada ano essa equipe sofre alterações para que novos olhares
sejam somados ao conceito curatorial e contribuam para sua
renovação e atualização. Como a seleção é realizada a partir
de projetos escritos sem a obrigação de que a cena esteja
pronta, não há garantia de que a qualidade da cena apresentada
Plateia do Festival Cenas

corresponda à proposta inicial, o que, de certa forma, alimenta


o caráter de risco, exposição e experimentação do Festival e
Foto: Guto Muniz.
Curtas em 2016.

aguça a expectativa do público, da equipe e dos demais artistas


participantes. Surpresas (boas e ruins) já fazem parte do evento e
são esperadas com ansiedade pela plateia.
Cine Horto em Foco | 248

Não é possível analisar o Festival Cenas Curtas sem lançar


um olhar sobre seu público – o coração do projeto. Reunindo
o espectador mais cativo do Galpão Cine Horto, mas também
ampliando, a cada ano, seu alcance, a plateia do Teatro Wanda
Fernandes4 é calorosa, espontânea e reativa. A venda de bebida
alcoólica durante as cenas, o bar após as apresentações e a
realização de entreatos garantem o clima festivo e esportivo que
dá ares de arena ao teatro. O público é o grande protagonista
do Festival não só por votar em sua cena preferida, mas por
ser, durante toda a sua participação, o termômetro do evento,
o que ajuda a balizar a avaliação posterior feita pelo Galpão
Cine Horto a cada edição. Não raramente, recebemos retornos
dos artistas participantes elogiando a energia do público e o
clima amistoso do evento. O público cativo do Cenas Curtas
espera assistir, numa mesma noite, a cenas leves, dramáticas,
abstratas, engraçadas, provocativas, e consegue passear por
tantos universos com rapidez e naturalidade. Graças ao público, o
Festival cresceu e se tornou talvez a principal vitrine da produção
teatral contemporânea realizada na cidade, mobilizando uma
parte considerável da classe artística belo-horizontina. Em seus
17 anos, o Cenas Curtas recebeu diversas gerações de artistas e
proporcionou encontros que geraram os mais diversos frutos.

Teatro e Primeira Campainha são alguns dos coletivos surgidos a


partir de cenas apresentadas no Festival.
249 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

A reverberação crescente de cada edição fez com que o Galpão


Cine Horto lançasse o projeto Cena Espetáculo que, entre 2008

para a criação de um espetáculo de longa duração. Também


culminou na realização, em 2013, do Festival Cena Espetáculo
que apresentou 15 espetáculos belo-horizontinos criados a
partir de cenas experimentadas em diferentes edições do Cenas
Curtas Festival
na produção teatral da cidade. Ao mesmo tempo, a vida útil
das cenas curtas tornou-se cada vez mais possível a partir

gênero em diversos estados do Brasil, movimento bastante


Cenas
Curtas. Podemos citar, entre outros, o Festival Breves Cenas, em
Manaus (AM); o Festival Dulcina de Cenas Curtas, em Brasília
(DF); o Festival de Esquetes de Cabo Frio (RJ) e o Niterói em
Cena (RJ). Com pequenas alterações a cada edição, o festival
consolidou seu formato tradicional que termina com uma festa
de encerramento no último dia de apresentações, na qual são
anunciadas as cenas mais votadas pelo público. Estas são
reapresentadas na Temporada das mais votadas, que costuma
acontecer no próprio Galpão Cine Horto, uma semana após
o Festival
de público. Em alguns anos, a Temporada das Mais Votadas
também ocorreu fora de BH, como em Araxá e Ipatinga (MG),
em parcerias ocasionais com outros festivais e instituições.
A escolha por não existir um prêmio em dinheiro tem por
objetivo não salientar o caráter competitivo do festival, mas a
potência dos encontros, a experiência convivial e a possibilidade
de se apresentar mais de uma vez. Também evitamos títulos
como “melhor cena”, “melhor atuação” e deixamos para o
público a escolha democrática daquilo que mais o cativou.

4 - O teatro do Galpão Cine Horto.


Cine Horto em Foco | 250

As últimas edições do Cenas Curtas deram ainda


mais foco à potência política do festival. Primeiro,
por seu já reconhecido espaço de liberdade criativa,
e, segundo, pela ação de resistência de um evento

constante renovação, mesmo quando enfrenta

artistas e coletivos de Belo Horizonte tem ajudado


a viabilizar a sobrevivência do projeto e a criar uma
rede de parceiros que fortalece a sua realização. A
curadoria vem se mostrando ainda mais atenta ao
espírito da época e aos contextos sociais e políticos
que motivam as propostas artísticas de cunho cada
vez mais questionador e crítico. Nesse sentido, o
Festival impulsionou a criação de uma comunidade
que, a cada ano, se empenha e se mobiliza para a

do Galpão Cine Horto extrapolam suas funções e se

de votos do público. Do seu planejamento à sua


execução, podemos reconhecer a construção
de uma micropolítica própria do Festival, uma
microssociedade alinhada em torno de uma missão
e guiada por uma ética de trabalho em comum,
bastante parecida com a coletividade do teatro de
grupo, característica herdada do Grupo Galpão.
Cena Ruim (MG). 2015. Foto:

Dila Puccini.
251 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política
Little Boxes (MG). 2015.

Foto: Dila Puccini.


2015: Diversos sempre fomos

Pela primeira vez integrando a equipe de


organização e curadoria do Festival, pude
experimentar na prática a complexidade de eleger
16 projetos dentre quase 300 propostas vindas
de todo o País. Cada inscrição trazia em si um
desejo e um universo próprios. Em meio a tantas
possibilidades, a equipe curatorial precisou ser
rigorosa ao propor um recorte que não fosse
incoerente com a tradição do Festival, mas que
lançasse olhares novos e também mais arriscados.
Com o tema “Diversos sempre fomos”, a 16ª edição
frisou a palavra diversidade representada não
apenas no pluralismo estético, já tão praticado
pelo Festival, mas reverberando discussões sobre
diversidade sexual, de gênero, raça e cultura
que tanto têm ocupado o centro dos debates
atuais e ganhado visibilidade na mídia e na
política. A informatização do processo de seleção,
agora realizado apenas em plataforma digital,
também contribuiu para o aumento no número
das inscrições, já que o custo de impressão e
postagem de um projeto pode desestimular muitos
proponentes. Ganhamos em democratização.
Esse processo também padronizou o formato dos
projetos e permitiu uma análise mais focada no
conteúdo e no conceito das propostas.
Cine Horto em Foco | 254

Em 2015, a curadoria acordou um conceito pessoa negra no centro do evento teatral,


comum para a escolha das cenas sem que ainda é majoritariamente branco e
desconsiderar o lugar de fala e as preferências elitizado, referindo-se diretamente aos
artísticas pessoais de cada integrante, o que “rolezinhos” que ocuparam os noticiários
gerava consensos e dissensos, embates e e arranharam o bem-estar social da
discussões. Ao chegarmos aos 40 projetos classe média conservadora. Como
aponta a crítica e jornalista Soraya Belusi,
tornaram ainda mais acaloradas, explicitando “o que tanto assustava a classe média
o interesse e o envolvimento da equipe em brasileira, a presença de um grupo de
montar uma programação que realmente jovens negros e de periferia usufruindo
o direito de frequentar espaços antes a
cenas escolhidas formaram um mosaico artístico eles negados, de se tornarem visíveis
bastante heterogêneo, passando pelo registro onde ninguém os queria ver, era, assim
dramático, contemporâneo, teatro-dança, como se dá na cena, uma performance
cordel, street dance, manipulação de boneco, sobre poder – poder ser, poder existir,
técnica circense, performance e outras formas poder se fazer ver” 5. Outras cenas
híbridas. A pluralidade de discursos postos em que se destacaram pela contundência
cena também revelou um desejo quase geral temática foram Little Boxes (MG), que
problematizou os absurdos do universo
A presença de artistas e coletivos inéditos ou dito feminino construído a partir dos
pouco recorrentes no Festival também balizou estereótipos da mulher e dos padrões
a curadoria, buscando abrir o espaço do Galpão socialmente impostos, e Sala de Espera
Cine Horto para propostas pouco frequentes e (SP), que evidenciou a cultura da
rostos menos familiares ao seu público cativo.
Expandimos o olhar para cenas que habitavam e a desumanização das relações de
fronteiras entre o teatro e manifestações artísticas trabalho no sistema neoliberal.
vistas como “marginais”, como a cena Feita de
som e fúria (BH), que trouxe para oTeatro Wanda
Fernandes a dança de rua e a cultura hip-hop e
cujo elenco não era composto por nenhum ator
b-boys.Também se destacou
a cena-manifesto Rolezinho - nome provisório,
proposta pelo artista belo-horizontino Alexandre
de Sena, uma vigorosa ocupação performática
de corpos negros que fez urgir a discussão sobre
visibilidade e desigualdade racial, colocando a
255 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

Nesse ano de 2015, outra novidade importante se


deu na proposição de uma programação voltada
para a rua. Vale lembrar que, em edições passadas,
o Cenas Curtas já havia experimentado uma mostra
de cenas para a rua em caráter não competitivo,
mas desde 2009 o Festival limitou suas atividades
dentro das dependências do Galpão Cine Horto.
Em 2015, no sábado, penúltimo dia do Festival,
fechamos um quarteirão da Rua Pitangui (onde se
localiza o centro cultural) e realizamos uma feira
de publicações independentes, acompanhada de
música, food-truck e apresentações de b-boys, que
durou até o início da noite, pouco antes da mostra

a necessidade de reabrir o Festival para o entorno


do Galpão Cine Horto e dialogar mais diretamente
com a rua, seus passantes e sua profusão de
informações e acontecimentos – o que culminaria 5 - Crítica publicada na revista
na proposta do ano seguinte. eletrônica AGORA. Disponível em:
http://www.agoracriticateatral.
com.br/criticas/50/o-que-
n%C3%A3o-vaza-%C3%A9-pele,-
n%C3%A3o-conte-comigo-para-
proliferar-mentiras,-rolezinho.
Cine Horto em Foco | 256
257 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

Feito de som e fúria

Foto: Dila Puccini.


(MG). 2015.
Cine Horto em Foco | 258

2016 – Que lugar você ocupa?

Mais uma vez como parte da equipe de curadoria do festival,


agora integrada por novos artistas convidados, pude desenvolver
um trabalho à luz da experiência do ano anterior. Nessa décima
sétima edição, o Cenas Curtas parecia desejar um tom mais sóbrio,

sombrios que pareciam ameaçar a democracia brasileira no ano de


2016. A crise política e institucional e o processo de impeachment
da presidenta Dilma Rousseff contribuíram para um clima de
instabilidade que acirrou relações de ódio, preconceito e agressão,
principalmente na internet e nas redes sociais, onde quase tudo é

para decidir o tema do Festival surgiu a pergunta: “Que lugar


você ocupa?”, soada como uma provocação, uma incitação a fazer

ação de guerrilha. Ainda que as propostas de cenas enviadas não


soubessem previamente do tema, em sua maioria os projetos
vieram ao encontro do nosso objetivo de montar uma programação

o próprio lugar do Galpão Cine Horto como centro cultural em

recentemente, vem “concorrendo” com novos equipamentos


culturais de grande porte, localizados em regiões mais nobres ou
centrais da cidade (como CCBB, SESC Palladium, Cine Theatro Brasil
Vallourec, entre outros). Qual é a missão e qual é a importância
de um espaço como o Cine Horto? Qual é o seu diferencial, a sua
essência? O que mudou de 1999 para cá? Que público o frequenta?

queremos ocupar a partir de agora? Nesse sentido, a pergunta-tema

grade de programação, mas a própria estrutura do evento.


259 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

Motivados pela experiência em 2015, enfatizamos a ocupação


da rua e o diálogo com os espaços culturais parceiros que
se localizam no nosso entorno: Gruta! – Casa de Passagem,
Teatro 171 e Zona Last, espaços que já se tornaram referência
para uma geração jovem e alternativa da cidade ligada a
movimentos artísticos, políticos e sociais. A parceria deu origem
à convocatória “Rolê”, destinada a apresentações cênicas e
performáticas de formato livre em uma programação paralela
para ocorrer antes ou depois das cenas e que emendava no
bar do festival, pela primeira vez realizado fora do Cine Horto,
ocupando os espaços parceiros e atravessando a madrugada.
A efetivação de um corredor cultural movimentou a vizinhança
e expandiu o alcance do evento, mobilizando um número de
público há algum tempo não visto no Cenas Curtas. Em suas
diversas formas e estéticas, os “Rolês” enfatizaram universos
marginais como o queer e o
manifesto sem perder o bom humor e o clima festivo do Festival.
Também expandimos a Feira de Publicações ocorrida na tarde
de sábado, dessa vez acrescida pelo Slam Clube da Luta, uma
competição de poesias autorais faladas que vem conquistando
reconhecimento e público em Belo Horizonte desde 2014, e que
também se destaca por seu caráter político-performático ao
agregar vozes marginais e periféricas.
Cine Horto em Foco | 260

A identidade visual criada para a


17ª edição do Cenas Curtas também
dialogou diretamente e fortaleceu
o tema proposto. Desenvolvida
pelo Espaço Lampejo, que desde
2012 trabalha junto ao Cine Horto,
estabelecendo um diálogo íntimo
com os projetos da casa, o conceito
visual do festival se deu a partir
de bandeiras pretas e brancas

conduzidas por diversos espaços


públicos da cidade, onde eram
fotografadas para composição das

demarcação, combate e manifesto.


Essas bandeiras também foram
estendidas na fachada do Galpão
Cine Horto durante o festival e muitas
vezes transportadas nas ruas pelas
mãos de artistas e do público durante
os “Rolês”.
Movimentação do público

Foto: Gabriel Augusto.


nos “Rolês” do Cenas

Curtas. 2016.
261 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política
Imagem produzida para a

identidade visual do 17º

Festival Cenas Curtas. 2016.

Foto: Athos Souza.


Cine Horto em Foco | 264

As cenas apresentadas nessa edição, oriundas de cinco estados brasileiros,


abordaram diretamente diversos temas urgentes como o machismo, a
homofobia, a invisibilidade social de pessoas em condição de rua e a falta

mobilizaram o País, como as manifestações de 2013, as ações black bloc e


o próprio impeachment. Mas também houve espaço para propostas mais
existenciais, universos oníricos e linguagens poéticas, todas com algum grau
de crítica social. Para além das cenas, público e artistas transpiraram uma
efervescência política e contestadora que frequentemente explodia em gritos
de ordem e manifestações espontâneas. A tradicional festa de encerramento
do Cenas Curtas foi mantida dentro do Cine Horto, no Teatro Wanda Fernandes,

participantes, equipe do festival e público para juntos comemorarem mais

projeto que, a cada ano, se reinventa e se fortalece na cena teatral brasileira.


Para a jornalista e crítica teatral Joyce Athiê, que nessa última edição realizou
a cobertura crítica do Festival, o que se viu durante a programação foi
“uma mostra de trabalhos potentes em suas linguagens, com alto nível de
habilidades técnicas, formas e discursos. No público, percorrem os burburios

ocupa?’, que guiou o pensamento curatorial do festival presenteou o público

variadas formas do como fazer teatro político nos dias de hoje. Os discursos e

com o posicionamento em cena, como também modos de potencializar o


encontro e o atrito. Para quem estamos abrindo uma conversa sobre aquilo

da cidadania, estamos também no teatro promovendo conexões com saberes


distintos, pensamentos e ideologias contrastantes ou falamos para nossos
pares? Se o discurso é antifascista, para quem deve levá-lo a ouvir?”6
uma dramaturgia de

atitude (MG). 2016.

Foto: Guto Muniz.


Autocuradoria:
6 - Trecho da crítica escrita no dia
17/09/2016, pela jornalista e crítica
teatral Joyce Athiê. Disponível
em: http://galpaocinehorto.com.
br/no-calor-da-cena-17-09/
Cine Horto em Foco | 266

Para onde o Festival Cenas Curtas caminha e de que forma ele se realizará
em 2017 ainda não sabemos, uma vez que todos os projetos do Galpão
Cine Horto dependem da disponibilidade de patrocínios para se manterem

empresas, a desatualização das leis de fomento e o desmonte de diversas


políticas culturais e sociais conquistadas nos últimos anos apontam para
panoramas futuros de incerteza e apreensão a todo o setor artístico e
cultural. De qualquer maneira, a equipe do Galpão Cine Horto se mantém

muitos braços que reconhecem a importância deste lugar como espaço de


experimentação, troca, discussão e liberdade.
267 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto:
a liberdade criativa como atitude política

Oswald Rói Ubu (PR). 2016.

Foto: Guto Muniz.


Cabaré Voltei –
Cine Horto em Foco | 268

UM BALANÇO DAS
AÇÕES REALIZADAS
PELO GALPÃO
CINE HORTO EM 2015
Em 2015 foram realizados 13 projetos para um público

Festival de Cenas Curtas: 16ª edição: 262 inscrições de 16


estados brasileiros e apresentação de 16 cenas selecionadas.
Público: mais de 1.500 pessoas.

Projeto Sabadão: Seis edições – com Grupo Bagaceira (CE),


Teatro Commune (SP), Eduardo Moreira (MG), Eid Ribeiro (MG),
Cristiano Araújo (MG) e Grupo Armatrux (MG).

Cursos Livres de Teatro: 470 alunos, divididos em 27


módulos. Público: mais de 1.000 pessoas nas Mostras dos
Cursos (1º e 2º Semestres).

Núcleos de Pesquisa: Cinco módulos de Núcleos de Pesquisa nas

Cultural e Dramaturgia, totalizando 128 alunos pesquisadores.

Curso de Gestão Cultural – O Avesso da Cena: realizado em


Sabará (MG) para 30 alunos.

Tião Vieira (MG), e “Eu-personagem”, com Joaquim Elias (MG).


Total de 20 participantes.

Cine Horto na Estrada: mais de 600 espectadores em cidades


do interior de Minas Gerais.
101 apresentações. Público: 8.400 crianças de
escolas públicas.

Ações Formativas: participação de 95 professores.

Biblioteca do CPMT: mais de 250 novos itens adquiridos


e catalogados. 51 novos usuários cadastrados. Mais de 600
empréstimos de materiais. Público: mais de 1.500 pessoas.

Portal Primeiro Sinal de Teatro: 37 mil visualizações de


página. 58 novos conteúdos publicados (artigos, vídeos,
exposições, entrevistas, periódicos).

E mais 33 espetáculos ocuparam o Teatro Wanda

de 10.200 pessoas.
EQUIPE
GRUPO GALPÃO
Atores |

Antonio Edson Inês Peixoto


Arildo de Barros Júlio Maciel
Beto Franco Lydia Del Picchia
Chico Pelúcio Paulo André
Eduardo Moreira Simone Ordones
Fernanda Vianna Teuda Bara

Beto Franco, Eduardo Moreira,


Fernando Lara, Gilma Oliveira e Lydia Del Picchia
| Fernando Lara
Coordenação de produção | Gilma Oliveira
Beatriz Radicchi
Coordenação de planejamento | Aline Pereira
Assistente de planejamento | Soraya Monteiro
Coordenação de comunicação | Beatriz França
Analista de comunicação | Ana Carolina Diniz
Coordenação administrativa | Wanilda D’artagnan
Assistente administrativa | Andréia Oliveira
Cláudio Augusto e Cleber Bordinhon
Recepção | Cídia Edvania Santos
Serviços gerais | Andréa Pereira
Coordenação técnica e iluminação | Rodrigo Marçal
Cenotécnico | Helvécio Izabel
Sonorização | Fábio Santos
William Teles
Consultoria de planejamento | Romulo Avelar
Assessoria jurídica | Drummond & Neumayr Advocacia
Artmanagers
Drummond Consultores Associados
Assessoria contábil | Infogrupo – Maurício Silva
EQUIPE GALPÃO
CINE HORTO
Direção Geral: Chico Pelúcio
Conselho Gestor: Beto Franco, Chico Pelúcio, Gisele Milagres,
Lydia Del Picchia e Romulo Avelar.
Coordenação geral: Gisele Milagres
Coordenação de Produção: Graziella Medrado
Bernardo Gondim
Coordenação Técnica: Orlan Torres (Sabará)
Técnicos: Wellington Santos (Baiano) e Jésus Lataliza
Comunicação: Daniel Bandeira
Estúdio Lampejo
Coordenação de Planejamento: Fernanda Diniz
Coordenação de Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Marcos Coletta
Bibliotecário do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Tiago Carneiro
Assistente do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Bárbara Ribeiro
Estagiários: Igor Cerqueira e Larissa L.O. Rodrigues
Coordenação Pedagógica: Lydia Del Picchia

Fábio Furtado
Coordenação Pedagógica dos Núcleos de Pesquisa: Ana Luísa Santos
Secretaria de Cursos: José Junior
Equipe Pedagógica: Camila Morena, Fábio Furtado, Gláucia Vandeveld,
Juliana Martins, Kelly Crifer, Leandro Acácio e Letícia Castillo

Reginaldo Santos
Atores-Monitores: Dayane Lacerda, Fabiano Lana e Mariana Blanco
Coordenação Administrativo-Financeira: Maria José dos Santos
Leandro Dias
Coordenação Operacional: Ricelli Piva
Recepcionista: Dayane Nonato
Porteiro: Eberton Pereira
Serviços Gerais: Juarez Pereira e Rita Aparecida Rosa da Silva
Assistente de Planejamento e Projetos: Tania Araujo
Assessoria Contábil: Infogrupo – Maurício Silva
Familia Tipográfica utilizada: Univers
Galpão Cine Horto
Novembro de 2016
Ministério da Cultura e
Governo de Minas Gerais
apresentam

CA 0506/001/2014

Patrocínio

Apoio

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