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roteiros e estações
Organizador
Luiz Francisco Dias
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Inclui referências.
ISBN: 978-85-7758-350-8
CDD : 418
12 APRESENTAÇÃO
Agnaldo Almeida
(Universidade Federal de Minas Gerais)
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Entendemos por gramatização o processo de descrição e instrumentalização de uma língua com base
em instrumentos linguísticos, como a gramática e o dicionário (AUROUX, 2009). Seguimos a divisão
da gramatização brasileira proposta por Eduardo Guimarães (1996). O autor, ao adotar um viés
histórico, distingue quatro momentos no processo de gramatização do português em terras brasileiras.
Interessa-nos, especialmente, o segundo e terceiros momentos, visto que são neles que se situa a
problemática aqui levantada, sem desconsiderar, evidentemente, os momentos anterior e posterior,
pois o texto e o discurso estão sempre em relação a outros textos e outros discursos, anteriores e
posteriores, realizados, possíveis ou imaginários.
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Língua e enunciação: roteiros e estações
de língua que nela comparece (O que é uma língua? Qual a relação da língua e seus
sujeitos falantes? Qual a importância da gramática no ensino de língua? Qual a
relação entre língua e Estado? etc.).
Ser gramático no Brasil naquele período é, conforme Orlandi (2013), assumir
uma responsabilidade política e intelectual frente às questões da constituição de um
Estado (independente, com suas instituições) e de uma língua nacional (unidade que
representaria a nação). Ambos, língua e Estado, se conjugam em sua constituição
(ORLANDI, 2013). A gramática, desse modo, apresenta-se como o lugar material de
construção e representação da unidade e identidade linguística, nacional e cidadã.
No século seguinte (XX), com o Estado já constituído, o funcionamento da
posição-sujeito gramático passa por deslizes. A questão da cientificidade faz com que
o gramático necessite da caução da Linguística, ciência capaz de dizer como é e
funciona a língua. Há um deslizamento cada vez maior de uma posição intelectual e
política para uma marcadamente científica (ORLANDI, 2013). E isso não se faz sem
consequências, nem de qualquer forma.
Nessa perspectiva, no presente trabalho, buscamos compreender os gestos de
autoria praticados pelo gramático Silveira Bueno, em sua Gramática normativa da
língua portuguesa: curso superior, posta em circulação no ano de 19442. Para tanto,
servimo-nos teórico-metodologicamente da Análise de Discurso materialista, iniciada
por Michel Pêcheux na França e desenvolvida no Brasil, principalmente, por Eni
Orlandi, e da História da Ideias Linguísticas, visto que ambas possibilitam-nos
observar os modos de constituição da língua, do saber sobre ela e dos sujeitos que a
falam. Constituição sempre marcada por divisões e rupturas, pelo jogo de sentidos
postos em funcionamento por diferentes posicionamentos ideológicos.
Interessa-nos compreender como o gramático em tela significa a língua, a
gramática, e a função desta no ensino de língua nas escolas brasileiras, observando
as suas filiações teóricas e filosóficas, e as possibilidades de deslocamentos que seu
dizer pode instaurar em relação ao saber linguístico produzido e em circulação na
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Como levamos em consideração as condições de produção do discurso, que lhe são constitutivas,
faz-se necessário apontar que trabalhamos com a 6ª. edição deste instrumento linguístico, publicada
em 1963. Porém, o texto que funciona como um prefácio, “Palavras necessárias”, e que aqui é
analisado, é datado de 1944, quando de sua primeira edição.
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época. Em sua Gramática normativa da língua portuguesa: curso superior, Bueno diz
empenhar-se na busca de uma ruptura do “excesso da análise lógica” que marcava
de forma contundente o ensino de língua portuguesa.
Nas escolas brasileiras, era adotada em larga escala a Gramática expositiva
(1907) de Eduardo Carlos Pereira, fundamentada nos princípios da gramática
filosófica portuguesa, tradição da qual Júlio Ribeiro, no final do século XIX, procura
distanciar-se, como mostramos parágrafos acima. Resta-nos, portanto, compreender
como o autor realiza, ou busca realizar, tal empreendimento. Para tanto, lançamos as
seguintes questões: (i) como funciona a relação entre Gramática, Filologia e
Linguística no instrumento linguístico em questão? (ii) quais as con(tra)dições
constitutivas das posições-sujeito e dos sentidos que ali comparecem? (iii) como o
autor organiza as discursividades da tradição gramatical e da ciência linguística,
buscando, por um lado, a ruptura com a “tradição lógica” e, por outro, conferir aos
estudos gramaticais o estatuto de cientificidade, sem abandonar a questão da
normatividade?
Iniciemos nosso percurso...
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O locutor e o enunciador são funções enunciativas do sujeito, definidas como aquele que se
representa como “eu” no discurso, e a perspectiva que esse “eu” constrói, respectivamente. Ao lado
destas, a autoria é uma função discursiva do sujeito. O autor é aquele que se coloca (imaginariamente)
na origem do dizer, respondendo por aquilo que diz ou escreve.
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diferentes posições-sujeito; como o sujeito se significa, textualiza-se; o jogo entre
posicionamentos ideológicos distintos perpassados no dizer de um mesmo sujeito.
Tudo isso atesta a heterogeneidade constitutiva do texto, do discurso, e também dos
sentidos e dos sujeitos, sempre divididos.
Sendo assim, com a assunção da autoria, o sujeito (no caso, o gramático)
coloca-se, imaginariamente, na origem do sentido, responsabilizando-se pela
produção do texto que produz. Em momentos distintos, ao organizar as
discursividades que o afetam, o gramático produz gestos de autoria – lugar de
intepretação – e, a partir da posição-sujeito que se identifica, significa a gramática, a
língua e os seus sujeitos falantes, significando também a si mesmo.
Aos postulados acima arrolados, articulamos os trabalhos circunscritos à área
de História das Ideias Linguísticas, para a qual há uma articulação constitutiva entre
a história da língua e a história de seu conhecimento linguístico, visto que as formas
da produção desse conhecimento permitem-nos compreender o direcionamento da
produção de efeitos de sentido dos e sobre os instrumentos linguísticos e políticas
linguísticas desenvolvidos em nosso país. Nas palavras de Orlandi (2013):
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É importante pontuar que a Universidade de São Paulo é fundada no ano de 1934.
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estudo. Na literatura, usando o pseudônimo de Frei Francisco da Simplicidade, Bueno
escreve Cartas de muito amor, 1934; e Cartas esquecidas, 1951. Afora os textos
jornalísticos que escreveu como redator e colaborador de diversos jornais.
Do ponto de vista discursivo, podemos tirar proveito dessas informações do
seguinte modo: o discurso é determinado pelas suas condições de produção, que
incluem o sujeito, a situação (imediata; contexto sócio-histórico e ideológico), e a
memória discursiva. Observando as condições de produção do discurso de Silveira
Bueno, sabemos que aquele momento histórico é marcado pela dominância dos
estudos filológicos nos cursos de nível superior, os quais entram em relações tensas
e contraditórias com os trabalhos que se sustentam na tradição gramatical, por um
lado, e com os estudos de Linguística (Estruturalismo), que mais tarde ocuparão o
terreno da Filologia, principalmente a partir dos anos de 1960, quando passa a ser
uma disciplina obrigatória nos currículos dos curso de Letras de todo o Brasil, por
determinação do Conselho Federal de Educação.
Sendo assim, levantamos como hipótese que Silveira Bueno se identifica a
diferentes formações discursivas, assume diferentes posições-sujeito, ao buscar
organizar as discursividades que o tomam e o constituem enquanto autor/gramático.
E esse trabalho é marcado por tensões e contradições, as quais afetam o
funcionamento dos sentidos e do próprio sujeito, que ao significar a língua, a
gramática, a Filologia etc., significa a si mesmo, como mostraremos na seção
subsequente.
Em seu trabalho sobre e com a língua portuguesa, Silveira Bueno transitou por
diversos lugares sociais (professor, gramático, filólogo, linguista), fato que nos
oferece, ao pensarmos a projeção desses lugares no discurso, um ponto de escuta
para compreender como ele significa a língua, seu saber, e papel da gramática no
ensino de língua materna no Brasil. Desse modo, a questão que norteia esta seção é
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Se o trabalho com somente uma única perspectiva nos oferece diversas
questões e problemáticas, a conciliação (se é que é possível) dos três vieses faz com
as questões se multipliquem. É isto, o enlace entre essas três perspectivas de estudos
da linguagem, que Bueno busca em sua Gramática normativa da língua portuguesa:
curso superior. E isso, como veremos abaixo, se faz com a tomada de
posicionamentos contraditórios, assentada principalmente em uma divisão material do
texto, com vistas a separar o que é oriundo da tradição gramatical do que vem se
pensando e questionando, na época, no âmbito dos estudos linguísticos e filológicos.
De um lado, a práticasuturas; do outro, a abertura de cicatrizes. Como o sujeito e os
sentidos se constituem nessas con(tra)dições?
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expressão do pensamento. Há verdade nas duas correntes: o erro
está no exclusivismo de uma e de outra, ou, melhor, na confusão de
ambas (PEREIRA, 19535, p. 9).
(2) Esta é uma das razões por que a “Gramática Expositiva’ de Eduardo
Carlos Pereira conseguiu totalizar as preferências do Brasil: apesar de
aparecer em 1907, representava uma volta aos lugares-comuns do
ensino ginasial. Desviava-se da estrada recém aberta por Maximino
Maciel para regressar aos batidos caminhos de Freire da Silva, do
Padre Massa e de outros que ainda defendiam a gramática filosófica
e da lógica na linguagem. A rotina encantou com a terminologia difícil
e superabundante do mestre paulista, mas, sobretudo, se deliciou com
a vasta e pormenorizadíssima atenção dedicada à análise lógica
(BUENO, 1963, p. XIII).
Enquanto Pereira não vê com bons olhos os rumos científicos dos estudos
gramaticais abertos por Júlio Ribeiro, mas busca, segundo ele, uma articulação do
moderno com o tradicional, Bueno, em direção oposta, critica o retorno de Pereira à
gramática filosófica, da qual Júlio Ribeiro distancia-se, promovendo um corte
epistemológico na produção do saber linguístico do português brasileiro. As
discursividades da tradição e da cientificidade são, portanto, significadas de modos
distintos, o que atesta a identificação de ambos os sujeitos a diferentes formações
discursivas. E essas diferenças não se encerram aí.
Sobre a definição do que é a gramática e sua função, Pereira, em sua
Gramática expositiva: curso elementar (1907), define a gramática portuguesa como “o
estudo das regras para se falar e escrever corretamente a língua portuguesa”
(PEREIRA, p. 1, 1943). A língua portuguesa, por sua vez, é significada como “o
conjunto sistemático das palavras de que se servem o povo português e o povo
brasileiro para comunicarem suas ideias e pensamento (PEREIRA, p. 1, 1943). Em
sua Gramática expositiva: curso superior, o referido autor assim distingue os tipos de
gramática: gramática geral: o estudo comparado de um grupo de línguas congêneres;
gramática particular: estudos dos “fatos de uma língua particular, quer encarados em
seu estado atual, quer em suas transformações históricas” (PEREIRA, p. 19, 1943);
gramática histórica: o estudo (histórico-comparativo) das transformações de uma
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Como já tivemos oportunidade de afirmar, não utilizamos a primeira edição das gramáticas aqui
trabalhadas. Os textos analisados, de cunho introdutório ou prefacial, são assinados na data de
publicação da primeira edição, mas fazemos referência à data da edição em uso.
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desânimo e a confusão no espírito de alunos, que não têm ainda o
indispensável conhecimento prévio do latim (que só começa no 3.º
ano dos ginásios), para poderem compreender as leis glóticas
rudimentares da evolução histórica do português (PEREIRA, 1953,
p. 10).
Silveira Bueno, por seu turno, afirma que a problemática que circunda o ensino
de língua é o “excesso da análise lógica”:
Nos enunciados (4) e (5), é possível observar mais uma vez o embate entre as
discursividades da cientificidade e da tradição, as quais são significadas de maneiras
diferentes, como mostramos na análise dos enunciados (1) e (2). Como forma de
organizar essas discursividades, os autores, com o intuito de, ao mesmo tempo,
retomar a tradição e estar no moderno, utilizam Notas e, no caso de Pereira, algumas
Observações.
(7) Queremos ser dos nossos dias, mas, dando, atenção ao passado,
colocamos nos parágrafos a doutrina assente e aceite pela maioria,
vindo logo, imediatamente abaixo, a nota explicativa em que, muito
frequentemente, já divergimos do assunto, comprovando o nosso
asserto com razões e exemplos de valor. Quem quiser permanecer no
passado, ficará com a doutrina do parágrafo; quem quiser pertencer
ao momento, antecipando conclusões que, certamente, hão de vir, no
acompanhará na explicação das notas. Tudo está documentado e
discutido. Procuramos exemplos clássicos e modernos. Citamos
autores portugueses e brasileiros, e, quando o assunto transcende os
limites propostos pela obra, apelamos para autores superiores,
facilmente compulsáveis (BUENO, 1963, p. XV, grifo do autor).
Essa divisão material do texto, que é por natureza heterogêneo, atesta o jogo
entre diferentes formações discursivas e, assim, de diferentes posicionamentos
ideológicos. Os autores, ao seu modo, colocam-se dentro das discussões postas em
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jogo pela Filologia e pela Linguística, sem abandonar os velhos moldes de fazer uma
gramática. A título de exemplo, ao tratar dos casos facultativos do artigo indefinido,
Bueno argumenta em uma nota que:
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Filiando-nos à perspectiva da História das Ideias Linguísticas, ao observar que a
constituição da língua se dá ao mesmo em que seu saber se constitui, consideramos
que o português aqui falado e escrito não é o mesmo de Portugal. Falamos a mesma
língua, mas de modos distintos, pois a historicização da língua portuguesa no território
brasileiro ocorreu em novas condições espaço-temporais. Ao reportar-se apenas ao
português de Portugal como preceito para o que é “certo” ou “errado”, apagamos a
historicidade da língua, que se constituiu por muitas bocas, muitos sotaques, muitas
outras línguas (indígenas, africanas, de outras partes da Europa...).
Breve arremate
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Referências
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ORLANDI, E. P. (1996). Interpretação: autoria, leitura e efeito do trabalho simbólico.
5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2012b.
PEREIRA, E. C. (1907). Gramática expositiva: curso elementar. 97. ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1943.
PEREIRA, E. C. (1907). Gramática expositiva: curso superior. 88. ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1943.
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