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Gérson Alves da Silva Júnior

POLÍTICA DE ASSIMILAÇÃO:
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM ALAGOAS
A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Maceió – Alagoas
2008
1

Gérson Alves da Silva Júnior

POLÍTICA DE ASSIMILAÇÃO:
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM ALAGOAS
A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Alagoas, como
requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Educação Brasileira, sob
orientação do Dr. Moisés de Melo
Santana.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS


CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Maceió – Alagoas
2008
2

Gérson Alves da Silva Júnior

POLÍTICA DE ASSIMILAÇÃO: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA


EM ALAGOAS A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Linha de Pesquisa:
História e Políticas da Educação

Banca Examinadora

__________________________________________________
Prof. Dr. Moisés de Melo Santana (UFPE)
Orientador

__________________________________________________
Profª Drª Laura Cristina Vieira Pizzi (UFAL)

__________________________________________________
Prof. Dr. Scott Joseph Allen (UFAL)
3

Dedico este trabalho a meus


filhos e posteridade para que
eles nunca esqueçam o que são.

Cada um dos filhos que tive é uma forma


de continuação do que sou, assim como
sou a continuação de outros que me
antecederam. Nenhum deles veio por
acaso, nenhum deles foi acidente. Todos
eles vieram por um profundo desejo de
continuar e compartilhar minha natureza
com a natureza de outra pessoa a quem
desejei fundir-me e formar um só
enquanto houver vida.
4

AGRADECIMENTOS

• Aos meus avós e pais, pela doação, dedicação e esperança para


comigo;
• A Maria Salésia por toda a paciência e estímulo que me forneceu
durante minha caminhada;
• Ao amigo e grande orientador de vida Melquiades de Jesus, que nos
momentos de dificuldade me auxiliou a encontrar um rumo;
• Ao amigo e ouvidor Robson de Farias, por ter participado e contribuído
no meu processo de amadurecimento;
• Ao professor e primeiro orientador, no processo de monitoria de
Psicologia Geral e Experimental, Esperidião Barbosa Neto.
• A comunidade indígena da Mata da Cafurna, Palmeira dos Índios,
principalmente na pessoa considerada por mim Pajé, o senhor Lenoy
Tibiriçá.
• Ao companheiro Jorge Vieira do CIMI, por sua abertura ao diálogo que
tanto contribuiu na compreensão dos direcionamentos teóricos
relacionados à questão indígena brasileira.
• A José Gérson da SEE/AL, por sua incansável luta em prol dos povos
indígenas.
• E por fim, ao homem que mais paciência demonstrou para comigo no
campo profissional e que me permitiu acompanhá-lo desde a Graduação
em Psicologia, demonstrando durante todo o processo sabedoria e
humildade, a Moisés de Melo Santana, meu orientador, eternos
agradecimentos.
5

Somos parte da terra e ela é


parte de nós (...). Pertencemos
todos a mesma família.
Cacique Seattle (1854)
6

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo demonstrar o processo de


minimização da identidade indígena em Alagoas, assim como no Estado-
nacional como um todo, por meio de análise bibliográfica-documental da
educação e sua relação com os projetos sociais e processos políticos. A
educação “escolar indígena”1 alagoana, anterior a Constituição de 1988, atuou
sempre de modo a ajustar o homem nativo ao projeto de sociedade brasileira
instituído historicamente com fortes características eurocêntricas. Posterior a
Constituição de 1988, a partir da LDB de 1996, surge efetivamente, em alguns
Estados brasileiros, uma proposta de educação específica e diferenciada para
os povos nativos que permanecem em comunidades ditas indígenas. Conforme
Aires (2000a), os indivíduos de origem nativa que foram cooptados pela
comunhão nacional em períodos anteriores a 1988, tem suas memórias
históricas e suas visões tradicionais esquecidas, distorcidas e alteradas. Essa
distorção e esquecimento ao que tudo indica parece ser irreversível, a partir da
estrutura montada por meio da educação escolar indígena diferenciada. Pois, a
cosmovisão autóctone passa a ser entendida como realidade diferente da
realidade do brasileiro. Desta forma, pode-se concluir que a prática de
educação escolar indígena, posterior a Constituição de 1988, ainda que rompa
com a política de assimilação, não modifica as causas estruturais às quais a
política de assimilação estava a serviço.

Palavras-chave: Educação Indígena – Assimilação - Estado

1 Não havia de fato em Alagoas um projeto de educação escolar indígena, existiam escolas nas aldeias.
7

ABSTRACT

The goal of this dissertation is to demonstrate the process of


depreciation of the indigenous identity in Alagoas, as well as in all the Brazil,
through the analysis of education and its relation with the social projects and
politicians processes. Before the 1988´s Constitution, the "indigenous scholar” 2
education in Alagoas always acted to adjust native people to Brazilian´s society
project, instituted with strong eurocentric characteristics. After 1988’s
Constitution and since 1996’ LDB, in some Brazilian States, effectively appears
a specific and differentiated educational proposition for the native people who
remain in so-called indigenous communities. Other native originated people that
had been coed-opt by the national communion in before 1988’s periods, start to
lose their historical memories (AIRES, 2000a). Their traditional view was
distorted and modified, in apparently irreversible way, through the structure
mounted by differentiated indigenous scholar education. It happens because
the autochthon worldview has to be understood as a different reality contrasting
the Brazilian men and women´s one. This way, the indigenous scholar
education practice, after the 1988´s Constitution, although it breaches with the
politic of assimilation, does not modify the structural causes served by the
politic of assimilation.

Key-words: Indigenous Education - Assimilation - State

2 There wasn’t of fact a project of indigenous scholar education in Alagoas. There were only schools in the villages
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 09

HISTÓRIA DOS PROBLEMAS INDÍGENAS, POLÍTICA


DE ASSIMILAÇÃO E A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO 23
1.0 – Introdução 23
2.0 – Gêneses dos Problemas Indígenas 24
3.0 – Outro Olhar sobre a Formação do Estado Brasileiro 28
3.1 – Período Pré-Colonial e Início da Colonização 28
3.2 – O Governo Geral e o Fenômeno dos Quilombos 36
3.3 – A Família Real e o Estado Nacional como o Conhecemos 47

O PAPEL DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO


NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES 59
1.0 – Introdução 59
2.0 – O Que é Identidade? 60
3.0 – As Identidades Nacionais 65
4.0 – O Estado-Nação Brasil 73
4.1 – Nasce a Nação ou Apenas um Estado Republicano? 82
4.2 – Etnogêneses por Miscigenação: A Solução do
Problema da Nação Brasileira 86
5.0 – Identidades Pós-Modernas e o Retorno a Antigas Identidades 92

A QUESTÃO INDÍGENA ALAGOANA E A EDUCAÇÃO


ESCOLAR INDÍGENA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988 97
1.0 – Introdução 97
2.0 – A Questão Indígena Alagoana 97
2.1 – Antes da Independência até a Visita de D. Pedro II 97
2.2 – Aspectos Gerais dos Indígenas e Aldeamentos
Alagoanos da Atualidade 102
3.0 – Constituição, Decretos e a Questão Indígena 106
4.0 – A Educação Indígena e as Instituições Pesquisadas 110
4.1 – Os Trabalhos Sobre a Educação Indígena 110
4.2 – O Conselho Indigenista Missionário de Alagoas 113
4.3 – A Secretaria de Estado da Educação de Alagoas 115
4.4 – O Setor de Educação da Fundação Nacional
do Índio de Alagoas 120
5.0 – Fatos Históricos que Comprovam a Argumentação 123
5.1 – Alguns Processos de Escolarização Indígena
da Região Norte 123
5.2 – A Educação Escolar Indígena do Ceará 125
6.0 – Análise Geral da Educação 126

CONSIDERAÇÕES FINAIS 131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 134


9

INTRODUÇÃO

Aos sete anos de idade saí pela primeira vez de uma escola da periferia
para estudar em uma escola religiosa acessível a pessoas de uma classe
social mais elevada. Na época, o Cacique Juruna estava em evidência e as
propostas políticas no Brasil pareciam tomar um rumo diferente de tudo que
ocorrera antes. Bem, na realidade, não recordo muito do cenário político, com
exceção das discussões e passeatas que com freqüência se apresentavam na
televisão. Entretanto, do Cacique Juruna eu recordo bastante. Também, não
podia ser diferente, pois ao chegar a nova escola os alunos passaram a me
chamar de “filho do Cacique Juruna”. Todos me olhavam e riam enquanto
afirmavam que eu vim das selvas. Naquela nova escola não havia alunos
negros, nem alunos com características indígenas tão fortes que desse para
ficar camuflado no meio dos demais. Essa foi a primeira vez que me senti
diferente de outros seres humanos3.
Infelizmente eu não possuía estratégias comportamentais que
possibilitassem uma adaptação satisfatória, pois nunca antes havia passado
por um episódio destes. Tentei ignorar a situação e fingir que aquilo não era
comigo. Num determinado momento, explodi em agressividade, mas eram
muitos e pareciam se organizar em grupos contra o estranho. Restou implorar
aos meus pais para que me colocassem em outra escola. Nunca expliquei
muito bem porque quisera tanto sair daquele ambiente. Voltei para uma escola
da periferia onde tudo foi diferente, pois havia muitos outros alunos com
características semelhantes a minha, sem falar que também havia meninos
negros e assim as diferenças raciais não eram o mais forte pivô de chacotas e
brigas.
Mas, como nenhum paraíso dura para sempre este não seria diferente.
Fui estudar em outra escola religiosa, mas esta era muito mais acessível à
classe média baixa que exclusivamente as elites. Nesta, não houve choque
nem dificuldades de adaptação tão acentuadas como no primeiro contato
supra-referido. Agora, com dez anos, já possuía uma série de estratégias que

3Um trabalho bastante interessante para entender essa questão que pontuo aqui é o de Goffman (1988), intitulado
Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada.
10

facilitavam o processo adaptativo. Na verdade, estava preparado para lidar


com conflitos adaptativos com outros alunos, não estava para os problemas de
formação dos professores e do currículo escolar.
Numa aula de Geografia a professora me repreendeu duramente por eu
ter utilizado um termo (pocou) que conforme a mesma não existe no português.
Lembro que quando cheguei a minha casa contei a história. Minha mãe disse:
“meu filho, pocar4 é como outras palavras que nós utilizamos e não têm escrito,
como, por exemplo, pucuman5, biboca6, nhaca7”. Na época eu não entendi
muito bem a explicação de minha mãe, pois para mim não fazia sentido uma
palavra ser utilizada e não ser ensinada e registrada. Essa foi a primeira vez
que percebi que a escola tinha algo desconectado com a minha realidade.
À medida que fui amadurecendo percebi outros elementos dissonantes.
Ir à escola, por exemplo, era aprender a falar outra língua: o português. Todo
mundo diz que no Brasil se fala o português, penso que isso merece algumas
ressalvas, pois recordo o medo de falar o “português” que aprendera em meu
ambiente. O meu “português” era pobre de concordância e carente de alguns
fonemas, como os “L” e “LH”. Além disso, esse “português” possuía termos que
o alagoano Aurélio Buarque de Holanda esqueceu de colocar em seu famoso
Dicionário da Língua Portuguesa. Infelizmente, apenas muito tempo depois
descobri que no tupi não existe concordância verbal e nem os fonemas
supracitados, o que para mim explicava “filho” ser substituído por “fio”, “Mulher”
por “muié”, “flor” por “frô”, assim como tantos outros termos correlatos.
O papel da escola nunca foi o de compreender esta realidade, mas o de
educar, ou melhor, formatar para um modelo (ou a partir de um modelo) de ser
e existir europeu.
A escola me ensinou uma série de histórias e lendas, mas nenhuma era
como as histórias da Caapora (Caipora), do Curupira e outras que meu avô e
minha avó me contavam. Depois, percebi que fora Monteiro Lobato, que
criticou a Semana de Arte Moderna, pouca gente escrevia sobre o Saci Pêrere

4 Palavra tupi aportuguesada utilizada em diversas regiões do Brasil, principalmente pelas populações interioranas
do Nordeste. Significa estouro, explosão, romper.
5 Palavra de origem tupi que representa manchas escurecidas principalmente nas paredes das casas resultantes da

fumaça do fogo de lenha ou da junção de teias de aranhas.


6 Termo tupi que significa casa de barro, casa de taipa, casa de pau-a-pique.
7 O termo ao pé da letra significa odor, cheiro. Mas, na maioria dos casos, adquire a representação específica de

fedor.
11

e coisas nativas do Brasil8. Assim, eu começava a perceber que existiam


muitas realidades sociais dentro deste Brasil e que não podíamos falar em
cultura brasileira, mas em culturas brasileiras.
Minha avó ensinou-me a fazer bodoque, meu pai a construir arapuca,
meu tio mais novo arco e flecha, meu avô contou muitas histórias (para alguns
estórias) de como escapou da Caapora (Caipora) enquanto tirava caju com seu
irmão. Mas, em tudo isso havia dois processos comuns. O primeiro era a
naturalidade com que tudo era passado e ensinado, como se fosse algo que
todos soubessem, algo que pertencesse à realidade dos demais brasileiros. O
segundo era o fato de todos esses elementos indicarem uma origem
específica, singular, uma brasilidade diferente. Entretanto, na época, assim
como hoje ainda, um projeto social que dizia sermos brasileiros e nada mais,
fez-nos deixar de perceber e de dar importância de onde viemos e quem
somos.
Durante muito tempo tive claro que aqueles que me antecederam eram
um “povo do mato, sem instrução e formação” como colocavam meus avós.
Minha avó falava de como seus antecedentes foram “pegos a dente de
cachorro”, mas por alguma razão entendíamos que não éramos índios. Esse
entendimento provinha do fato de sermos brasileiros, batizados cristãos e de
não estarmos dentro do mato, nem falarmos uma língua estranha.
Todavia, à medida que fui aprofundando meus estudos fui também
aumentando meus questionamentos. Lembro que quando fazia o ensino médio
na Escola Técnica Federal de Alagoas (ETFAL9), perguntavam se eu era
indígena e alguns amigos tinham a iniciativa de responder por mim que não,
pois conheciam meus pais que moravam na cidade. Recordo que alguém dizia,
enquanto eu permanecia calado, que eu era descendente embora pudesse não
saber. Na verdade, eu sabia bem o que era, mas não queria ser visto como
diferente novamente (as experiências anteriores não foram boas). Entretanto,
num desses 19 de abril, foi um grupo de índios até a ETFAL e fiquei a me
questionar: aqueles devem ser índios de verdade?
Bom, se eu era de mentira eu não sei. Mas, a verdade, é que eu era
brasileiro, foi assim que me ensinaram, e ser índio era ser uma coisa muito

8 Muito interessante sobre esse aspecto é o trabalho Lendas do povo tupi, do Professor Joubert Di Mauro.
9 Hoje Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET)
12

diferente e distante. Na realidade, era ser uma criatura selvagem. Entretanto,


quando em 2000, se faziam os preparativos para comemorar os 500 anos de
“descobrimento” do Brasil, deu-me um sentimento de estranheza e profunda
confusão sobre o que eu era e o que era essa nação. Primeiro não tenho
características portuguesas, meus familiares têm impresso em seu corpo a cor
parda e os olhos repuxados, que denunciam a natividade, como poderíamos
comemorar uma mentira. Eu sempre me considerei brasileiro porque entendia
que ser brasileiro não era ser português ou descendente de português.
Acreditava que o povo brasileiro era resultado da tríade negro, índio e branco.
Neste sentido, a matriz indígena a qual pertenço seria considerada e eu
poderia ser visto como brasileiro de origem indígena.
Todavia, o momento histórico que vivia exigia um novo posicionamento.
Agora, ou nos afirmávamos como índios, ou não poderíamos mais ser
reconhecidos como brasileiros de origem indígena. Pois, a tentativa de se dizer
apenas brasileiro culminou com a negativa de nossa existência enquanto
membros constituintes da Nação. Além de todos os fatos históricos, a
campanha comemorativa de 500 anos de “descobrimento” do Brasil promovida
pela Rede Globo de Televisão, apoiada pelo Governo de Fernando Henrique
Cardoso ratificava essa forma de pensar. Esqueceram a nossa parte da
história, será que não pertencíamos, enquanto nativos, a construção da nação
e sociedade brasileira? Será que só somos quem somos se continuarmos nas
matas?
Embora se entenda que existam brasileiros de origem indígena, na
prática, ou se afirma indígena por completo ou nos é negado o direito de
afirmarmos nossa própria história.
O entendimento de que esta realidade acima narrada não é
exclusivamente minha, mas é uma realidade comum (com maior ou menor
intensidade) de outros tantos milhões de brasileiros, levou-me a investigar a
construção deste processo de um modo mais amplo no desenrolar da história.
Todavia, torna-se impossível analisar o processo sob todos os ângulos. Por
essa razão, neste momento, analiso o processo sob o ângulo das políticas de
assimilação correlacionando-as com o processo educativo.
A inquietação com esta questão começou anos antes, na verdade em
1999, véspera da comemoração dos 500 anos. Ainda neste ano se discutia
13

muito as políticas de educação diferenciada para os povos indígenas, eu


cursava o primeiro ano do curso de Psicologia e o tema era apreciado com
muito interesse por mim. Entre 1999 e 2000 construí uma monografia intitulada
Educação Inclusiva e Diferenciada Indígena10, que embora tenha sido
premiada como um dos melhores trabalhos do ano pelo Conselho Federal de
Psicologia, apresentava uma série de problemas e limitações. Neste trabalho
tentei demonstrar como a educação escolar, no sentido real da palavra, é um
fenômeno contextualizado historicamente e culturalmente. Em outras palavras,
educação escolar é um processo criado num determinado círculo cultural que
por diversas e diferentes razões ganha expansão ideológica e geográfica.
A monografia ficou pobre, por uma série de razões, mas foi o pontapé
inicial para alavancar o processo de pesquisa sobre o tema. A partir daí
comecei a desenvolver trabalhos de pesquisa relacionados à etnicidade,
conflitos e cultura brasileira como aluno bolsista do Programa de Iniciação
Científica do CNPq.
O presente trabalho dissertativo é, portanto, resultado de um longo
processo de maturação e pesquisa sobre as identidades étnicas, a brasilidade
e o papel da educação na dinâmica histórica e política do país.
Tradicionalmente os diversos povos e diferentes culturas nativas das
Américas não possuíam o modelo de educação escolar. Quando se observa o
aparecimento da educação escolar enquanto sala de aula, professores, alunos,
instituição, sociedade (comunidade) e tudo mais que cerca este fenômeno
verifica-se que ele surge num determinado modelo de sociedade, com uma
proposta específica.
Neste sentido é possível afirmar que não apenas os planos educacionais
seguem os modelos e propostas sociais, mas a própria estrutura institucional
que favorece a disseminação do saber, também está associada de modo
dependente e inerente à proposta de um modelo de sociedade específica.
Entretanto, é difícil para a maioria dos teóricos e estudiosos terem uma
visão por cima da água. Quase sempre ficam mergulhados em rios específicos
saboreando o gosto particular de sua água. Fica complicado tirar à cabeça da

10SILVA JÚNIOR, Gérson A. Educação inclusiva e diferenciada indígena. In: Psicologia: Ciência e Profissão. Ano
2000. nº 1. Brasília: Conselho Federal de Psicologia. 2000
14

água e enxergar a grandiosidade e a enorme diversidade de possibilidades que


existe.
A visão submersa é muito importante, visto que, a visão da superfície
nunca diz as riquezas que existem num pequenino rio. Mas, quando nunca se
emerge é provável imaginar que a realidade particular é única, exclusiva e
absoluta.
É extremamente difícil libertar-se das águas de um contexto histórico.
Como um imenso rio caudaloso essas águas arrastam e muitas vezes levam os
estudiosos para lugares distantes. Para enfrentar a força do rio prefere-se por
vezes submergir. Entretanto, embora seja perigoso ficar flutuando numa
correnteza, quando não se levanta a cabeça para ver o todo nunca se enxerga
mais além.
A escola surgiu para atender necessidades da educação e não o
contrário. A educação, por sua vez, dificilmente deixa de acompanhar o
momento histórico e os anseios e propostas sociais de determinados grupos.
Via de regra, a maioria das sociedades aposta numa estrutura orgânica
e os grupos que pensam fazer o papel de cabeça do organismo tentam por
meio de diversos mecanismos (ideológicos e repressores) determinar os rumos
que todo corpo toma11.
Com a estruturação dos Estados-nações no século XIX, muitas
comunidades e sociedades distintas tentam ser incorporadas numa dinâmica
maior. Como se diversos organismos tivessem que se agrupar num único e
grande corpo. Embora esse agrupamento seja fantasioso resulta numa série de
conflitos que tentaram e tentam dissolver por completo realidades menores
para a compactação num grande e único organismo social.
Contudo, não é possível esquecer que este processo conflitante entre
grupos é antigo na história da humanidade. Desde tempos imemoriais,
perpassando a realidade das monarquias absolutistas, a expansão
mercantilista até o mundo globalizado da hodiernidade, o conflito entre os
povos e a tentativa da montagem de impérios têm sido uma realidade. Todavia,
o discurso de liberdade democrática parece dar um viés de invisibilidade a
alguns processos de dominação que continuam de modo bastante mascarado.

11 Sociedades Orgânicas aqui está posto do mesmo modo que Mészáros (2004).
15

Continua-se a realizar massacres e a aniquilação de determinados grupos e


expressões culturais com o argumento de generosidade e proteção. Dentro
desta concepção é que entendo uma série de medidas e políticas que são
adotadas com relação aos povos indígenas e a educação para estes.
Refletir educação indígena desta maneira é bastante trabalhoso e
complexo. Exige uma ampla e vasta fundamentação rara de ser encontrada na
bibliografia tradicional.
Por essas dificuldades, seria bastante cômodo fazer um trabalho
analítico de uma comunidade indígena específica verificando a implantação da
educação diferenciada12, com seus sucessos e insucessos, vantagens e
desvantagens. Porém, isto seria ficar mergulhado em um rio. Diante da
exorbitante quantidade de trabalhos que abordam o tema a partir da análise
específica de uma determinada comunidade, acredito ser necessário a
construção de uma visão macro desta realidade. Embora com uma margem de
risco maior, em determinados momentos, é preciso levantar a cabeça para
enxergar além de nosso rio.
Contudo, para não ficar perdido nas infinitas possibilidades, foi
necessário certa delimitação do objeto de investigação. Por essa razão, o foco
deste trabalho recaiu sobre a realidade alagoana. Mas, mesmo concentrado
nesta realidade, evidentemente, não deixei de contemplar questões de ordem
mais geral para ficar compreendido que a dinâmica do Estado alagoano,
embora com suas especificidades, não é muito diferente da lógica maior em
que ela está inserida. Por esse motivo, foi bastante explorado pontos de cunho
histórico e social para dar profundidade e amplitude ao discurso13.
A pergunta inicial que mobilizou toda essa construção foi à tentativa de
compreender de que forma a educação escolar indígena alagoana atua como
ferramenta de ajuste ao projeto de sociedade brasileira instituído
historicamente? O centro da questão não foi o currículo, mas os processos

12 Educação diferenciada é assegurada a partir da constituição de 1988. Enquanto o discurso democrático clamava
pela igualdade, os povos indígenas lutavam pelo direito de serem diferentes. Neste contexto surge à reivindicação
educativa. Educação diferenciada consiste no direito a um currículo escolar distinto da escola regular, que
contemple as necessidades e realidades destes povos a partir da perspectiva dos mesmos.
13
Durante o início do século XX teve destaque um grupo de psicólogos alemães que defendiam um esquema
chamado figura-fundo. Esses psicólogos foram os proponentes da Psicologia da Gestalt. Parte da estratégia
metodológica expressa neste parágrafo assemelha-se a seu esquema de figura fundo. Figura é aquilo que focamos,
enquanto aquilo que não é evidenciado pela nossa percepção torna-se fundo, entretanto o fundo exerce papel
preponderante na significação da figura para a nossa consciência.
16

políticos, históricos e sociológicos que impactaram na formatação de legislação


para a educação, norteando assim a formulação dos currículos.
Embora o problema enfatizasse a realidade alagoana, a resposta para o
mesmo daria a possibilidade de transferir a compreensão de como a educação
escolar indígena, como um todo, funciona no ajustamento destes povos ao
projeto político da sociedade brasileira e não apenas da alagoana.
No desenrolar do trabalho será possível perceber como a compreensão
e a política adotada para com os povos indígenas sofre variações em nossa
dinâmica social a depender dos referenciais políticos de modelos estatais que
são adotados, permanecendo sempre uma constante: a política de
minimização identitária indígena.
Anterior a adoção de determinadas idéias do modelo republicano norte-
americano, a política de minimização identitária indígena se dava por meio da
assimilação através da miscigenação e/ou adoção de padrões e costumes
europeus. Posterior a adoção de certas idéias do modelo norte-americano a
realidade tornou-se mais perversa, pois foi dada à identidade indígena duas
possibilidades extremadas (secas e amargas) e que parecem diametralmente
contrárias: 1) a construção de reservas que isolam o ser e ou a comunidade, e
2) a abertura e integração social com conseqüente aniquilamento e perda de
sua identidade raiz. Esta possibilidade dual posterior ao modelo norte-
americano parece atender de maneira bastante satisfatória as pretensões e
projetos políticos da estrutura social brasileira.
Entretanto, este modelo mascara muitos pontos importantes e acaba
jogando as comunidades indígenas numa situação difícil de lidar perante o
Estado nacional. Embora a partir deste modelo seja possível “abandonar” a
política de assimilação adotada desde longínquas datas, defendo que isto só é
possível mediante as razões determinantes da assimilação não serem mais
uma preocupação de Estado. Assim sendo levanto a seguinte hipótese para o
este problema: A política e a prática de educação escolar indígena de Alagoas
posterior a Constituição de 1988 ainda que rompa com a política de
assimilação, não modifica as causas estruturais às quais a política de
assimilação estava a serviço.
A manutenção de uma estrutura como um Estado-nação só é possível
dentro de uma ideologia que perpetue valores, costumes e objetivos comuns às
17

diversas camadas e grupos da sociedade. A existência de uma classe, camada


ou grupo que tenha valores e ideais distintos dos da estrutura do Estado
automaticamente implica em ameaça à sobrevivência do modelo estatal. Do
mesmo modo que as classes dominantes tentam fazer parecer às demais
classes que os seus ideais são naturais e pertencentes a todos; os grupos
étnicos (muitas vezes configurados em classes sociais) dominantes também
forjam e disseminam para todos os outros seus ideais.
É difícil a manutenção de uma estrutura pluriétnica dentro de um Estado-
nação como o nosso. A aceitação da diversidade só é cabível quando esta é
bastante minimizada de modo a não oferecer problemas à linha dominante.
Como os grupos indígenas geralmente apresentam ideais e valores diferentes
dos estabelecidos nacionalmente, além de apresentarem o risco da
possibilidade de organização social sem intervenção estatal, os mesmos só
podem se perpetuar sendo minimizados ao ponto de não oferecerem riscos.
A confirmação deste discurso acima se dá na verificação das políticas
educacionais. A educação, e principalmente a educação escolar, tem
funcionado como mecanismo ideológico de difusão e padronização dos ideais e
costumes de determinado grupo ou classe. Neste sentido, é possível entender
porque somente após quase 500 anos de história a educação indígena
consegue o direito a ser uma educação diferenciada.
A educação diferenciada possibilitada a partir da Constituição de 1988 e
regulamentada por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) 9.394 de 1996 e de diversos outros decretos, só se estabelece e só é
possível neste momento histórico graças à minimização exagerada da
diversidade e representação indígena14. Desta maneira, o foco estatal é outro e
os pesquisadores por carência ou dificuldade de realizar análises mais amplas
(sob a perspectiva de expansão indígena) não são capazes de perceber a
dinâmica atual.
Desta forma, em face da necessidade essencial de compreender o
problema dentro desta nova ordem, foi traçado como objetivo geral a seguinte
proposição: Demonstrar que em Alagoas, assim como no Estado-nacional

14 A política atual lança na configuração de indígenas menos de 1% da população brasileira.


18

como um todo, independente da política adotada até a atualidade, minimiza-se


historicamente a identidade e a força das expressões indígenas.
Para efetuar este objetivo maior de modo claro e compreensível tive que
delinear outros objetivos menores que acabaram sendo configurados em
etapas discursivas críticas no interior de cada parte do trabalho. São estas
etapas que passo a apresentar nos próximos parágrafos.
Num primeiro momento, desta dissertação, foi realizada uma abordagem
histórica exaustiva enfocando a universalidade da natureza humana. Tentei
demonstrar neste primeiro tópico como o processo de dominação de povos
sobre povos está presente em toda a história da humanidade. Procurei, desta
maneira, desconstruir visões estereotipadas sobre os povos indígenas para
que fosse possível perceber de que modo os processos ideológicos atuam
sobre esta realidade.
Em seguida, passei a fazer, referendado em diversos teóricos, um
desmonte sobre uma série de processos históricos da sociedade brasileira.
Dos muitos teóricos que utilizei nesta fase destaco Décio Freitas e Clóvis
Moura. Embora esses teóricos construam uma argumentação voltada para a
africanidade no Brasil, os mesmos reúnem uma vasta documentação15 para
suas argumentações, de modo que este material é extremamente útil para
fundamentar também a defesa da presença e expressão indígena em nossa
história. Portanto, mesmo que estes autores não comunguem das mesmas
opiniões que exponho aqui, os documentos e os relatos não estão impedidos
de serem reinterpretados por isso.
Deste ponto em diante passo a trabalhar uma análise da montagem do
Estado brasileiro a partir de um referencial europeu, estabelecido de modo
mais efetivo e robusto principalmente após a vinda da Família Real. A primeira
etapa do trabalho finda levantando considerações sobre como a mestiçagem
vem gradativamente ocupando um lugar de destaque, minimizando diversas
identidades particulares.
Na segunda parte do trabalho, como identidade é um conceito central no
objetivo maior, passo a desenvolver as diferentes concepções de identidade.

15Os principais documentos são cartas oficiais que noticiavam informações de guerra e dos quilombos para o rei e
os governos das colônias, bem como, comunicados da corte para o comando de guerra e rebeldes.
19

Foram utilizados diversos teóricos, mas detive-me principalmente em Hall


(2005) para trabalhar a argumentação sobre identidade.
Com a finalidade de obter consistência política e fundamentação de
caráter sociológico passei a trabalhar o processo de montagem dos Estados-
nações. O primeiro tópico desta parte da dissertação foi articulado com a
concepção de Estado-nação para ser possível desenvolver uma compreensão
consistente das identidades nacionais de nosso momento histórico.
Depois de construída essa definição mais geral sobre as identidades
nacionais partiu-se para um momento mais específico em que se discute o
Estado-nacional brasileiro. Essa discussão mais específica leva em
consideração tanto aspectos políticos referentes ao nosso modelo estatal,
como a idéia de nação que é montada a partir da defesa da etnogêneses.
Esta parte do trabalho termina com a argumentação da dificuldade do
modelo de Estado-nação ser efetivado no Brasil devido à impossibilidade de
atender a particularidades identitárias. Por essa razão, retomo a concepção de
identidades pós-modernas e o fenômeno que ocorre na contemporaneidade de
povos indígenas ressurgentes16 por conta de processos históricos mal
interpretados e formas precárias do Estado lidar com determinadas realidades
sociais.
A exposição sobre identidade e a concepção de Estado-nação na
segunda parte do trabalho tem por finalidade demonstrar a dificuldade da
manutenção de identidades étnicas variadas numa estrutura social como a
nossa. Desta forma, fica justificado o objetivo maior em que argumentava que a
identidade indígena é minimizada para garantir a manutenção da concepção de
Estado-nação. Entretanto, embora fosse este o objetivo, não posso deixar de
esclarecer que a pergunta central que mobilizou essa empreitada procura
entender a forma que a educação atuou como ferramenta de ajuste destes
povos indígenas ao projeto de sociedade vigente. Portanto, nesta última parte
do trabalho, não pude deixar de aprofundar questões pontuais de nossa
realidade alagoana, da política e dos processos de educação para indígenas.
Desta maneira, nesta terceira parte da dissertação, começo trabalhando
a questão indígena em Alagoas para, logo em seguida, trabalhar questões

16 Povos indígenas ressugentes são povos que perderam seu direito de serem reconhecidos como indígenas devido
à inserção a comunhão nacional, mas que nas últimas décadas vêm se reafirmando como indígenas.
20

legais com um grande foco na educação. Em seguida passo a dar enfoque


direto à educação e a três instituições que investigo para ter leitura atual do
processo em que se encontra a educação escolar indígena. As três instituições
pesquisadas foram: 1) o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 2) a
Secretaria de Estado da Educação de Alagoas (SEE/AL) e 3) a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI).
Ainda na terceira parte há uma apresentação de alguns fatos históricos
da atualidade referentes à educação escolar indígena que comprovam a
argumentação que foi realizada em todo o trabalho: a educação funciona como
uma ferramenta de ajuste ao projeto de sociedade brasileira, minimizando as
expressões e identidades indígenas. Considero nesta defesa o fato da sutileza
deste processo, de tal modo que o mesmo só pode ser percebido com um olhar
histórico e crítico sobre a montagem do Estado brasileiro. Para finalizar esta
terceira parte faço uma análise geral da educação indígena. Em seguida,
encerro o trabalho com as considerações finais.
Metodologicamente, o trabalho, embora possua uma série de referência
a dados quantitativos produzido por outros teóricos, situa-se dentro dos
parâmetros de uma pesquisa qualitativa visto que a natureza da temática
requer este tipo de procedimento. Na realidade desenvolvo uma análise política
e os reflexos da mesma na educação para, em seguida, verificar como esta
última atua como ferramenta de ajustamento social. O foco não foi o currículo
escolar, mas as políticas que influenciam e norteiam a formatação destes
currículos e a proposta educativa como um todo. Como os processos políticos
encontram-se expressos por meio da formatação de leis e decretos tomei estas
como objeto de análise.
Entretanto, desejava analisar não apenas as leis e decretos em si, pois
as mesmas pareceriam vazias e desprovidas de sentido, por isso procurei
avaliar as circunstâncias sociais e históricas envolvidas durante o processo de
formulação das mesmas. Por esse motivo, fiz vasta pesquisa bibliográfica além
da simples revisão documental. Deste modo, este trabalho pode ser entendido
como resultado de uma pesquisa bibliográfica-documental.
Além da pesquisa supra-referida tive contato com profissionais das
supracitadas instituições que investiguei. Nestes contatos, não estabeleci um
roteiro para nossos diálogos, tinha apenas o tema como eixo norteador. Na
21

realidade, procurei durante o processo dialógico, apenas perceber o ponto de


vista destes profissionais sobre a atuação das instituições a que os mesmos
pertenciam. Trabalhamos encima das mudanças que as instituições sofreram
no desenrolar do tempo, sobre as dificuldades que as mesmas enfrentavam e
como elas faziam para classificar e diferenciar índios de não índios, dentre
outras questões que surgiam naturalmente durante o diálogo. As perguntas,
bem como as respostas, não estão transcritas na integra no corpo desta
dissertação. O leitor encontrará apenas fragmentos das mesmas no desenrolar
do texto. (MOREIRA & MEDEIROS, 2007)
A maior parte dos contatos para entrevistas foram efetuados durante o
segundo semestre de 200517. Foram registrados os pontos mais importantes e
a seqüência das conversas ainda enquanto as mesmas se processavam. Logo
em seguida transcrevi todos os detalhes e falas possíveis de serem
resgatadas. O fato de registrar a seqüência das conversas e os pontos mais
importantes se dava para que não se desviasse e destorcesse demais os
conteúdos que os interlocutores apresentavam. Do mesmo modo, a tentativa
de escrever todos os detalhes o mais rápido possível tinha esse mesmo
objetivo, além de evitar perdas naturais da memória18.
Ainda com relação ao plano metodológico, a maioria dos teóricos da
Antropologia entende que sempre que nos utilizamos da pesquisa de campo de
outrem para efetuarmos análises, este processo se configura como pesquisa
etnológica (MARCONI & PRESOTTO, 2001). Portanto, quando me utilizei de
referências de Clovis Antunes e Luis Sávio de Almeida para apresentar e
analisar questões referentes ao Ouricuri e modo de vida dos indígenas
alagoanos, ainda que de forma esporádica no interior do texto, utilizei-me de
uma estratégia etnológica. Embora a essência do trabalho não tenha sido
construída a partir de uma metodologia etnológica, é correto afirmar sob a
perspectiva antropológica que a mesma possui elementos etnológicos. A
Educação entende etnologia apenas quando a pesquisa como um todo toma
como base esta referência, além de ser necessário entender a mesma com

17Outros contatos foram realizados no ano de 2007.


18Embora este método não seja o mais seguro para garantir a fidedignidade das informações, nossa dificuldade em
gravar as entrevistas na integra justifica o uso deste método. De qualquer sorte, a forma como efetuamos o mesmo
minimiza a margem de distorções e esquecimentos, conforme atesta os diversos experimentos de memória
realizados na área de psicologia. Cf. Davidoff (2001); Dorin (1978); Lindzey (1977); Rodrigues (1981).
22

autores de linha fenomenológica (ANDRE, 2001; GATTI, 2000; GATTI, 2002;


MADEIRA, 2004). Do mesmo modo que a Educação deu uma especificidade
filosófica para a etnologia, também o fez para a etnografia. Pesquisas de
campo em que se registre modos de vida e expressões culturais são
entendidos pela Antropologia como pesquisa etnográfica independente da
orientação filosófica, pois etnografia faria referência ao procedimento e não à
epistemologia da pesquisa. Neste sentido, posso afirmar que as visitas aos
aldeamentos e os registros das comunicações, bem como, dos processos que
lá foram visualizados são também procedimentos etnográficos.
Evidentemente, entendo que a pesquisa como um todo é uma pesquisa
bibliográfica-documental, na qual foram utilizadas como fonte documental
principalmente as Leis, as Resoluções e outros dispositivos legais, além de
cartas oficiais e relatórios. Entretanto, não posso classificar de outra forma a
não ser etnologia e etnografia alguns procedimentos que foram tomados para
efetivação desta dissertação.
É válido destacar que para construir esta dissertação, foram visitados
todos os aldeamentos de Alagoas. Entretanto, o contato mais aprofundado e
continuado durante a pesquisa, para efetivação da etnografia, tenha se
estabelecido apenas nos aldeamentos do município de Palmeira dos Índios. A
realidade de Palmeira dos Índios não se diferencia muito dos demais
aldeamentos do Estado alagoano, como descrevo na última parte desta
dissertação.
Por fim, resta considerar ainda, para finalizar, que embora durante o
desenrolar da dissertação tenha aprofundado bem mais questões sociais e
políticas que propriamente as questões educacionais, tal processo foi realizado
pelo fato de ter clareza da subordinação das questões educativas com relação
aos projetos sociais de determinada sociedade. Em momento algum a estrutura
do trabalho se apresentou desta maneira por enxergar um valor reduzido dos
processos educacionais, mas devido, única e exclusivamente, minha filiação
teórica que coloca a educação como um processo interligado e dependente
dos projetos sociais.
23

HISTÓRIA DOS PROBLEMAS INDÍGENAS, POLÍTICA DE


ASSIMILAÇÃO E A FORMAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO

1.0 – Introdução

Abordar a temática indígena sem fazer uma remissão histórica


prolongada não é uma tarefa fácil. Ao observar a vasta bibliografia sobre o
assunto pude constatar que a maioria dos trabalhos encontra a mesma
dificuldade. Trabalhar educação escolar indígena em Alagoas após a
Constituição de 1988, requer uma contextualização ampla, ainda mais quando
se tem como propósito analisar a discussão da política assimilacionista atual
comparando-a com a praticada desde épocas imemoriais no Brasil.
A maioria dos estudiosos do assunto defende que a política
assimilacionista encontra-se ameaçada desde que a supra-referida constituição
tornou-se válida. O discurso comum sobre o tema é o de que gradualmente
vem se estabelecendo uma política mais justa sem primar mais pela lógica da
assimilação. Porém, como não compartilho desta opinião em absoluto, insisto
em discorrer mais uma vez sobre a história indígena para denunciar alguns
pontos específicos a fim de melhor trabalhar a reflexão sobre educação.
Como é impossível desvincular a reflexão educativa do contexto social
em que a educação se efetiva, fica por demais justificada a razão de trabalhar
determinados aspectos históricos, pois toda sociedade se produz e reproduz no
tempo, e isso determina sua historicidade. Sociedade e educação caminham
juntas. A proposta de sociedade possui íntima relação com sua proposta
educativa. Por esse motivo, embora este trabalho como um todo pretenda
abordar a educação escolar numa data e num contexto específico, seria um
atestado de mediocridade não iniciá-lo trabalhando a educação em sua
concepção mais ampla: as bases sociais e históricas.
24

2.0 – Gêneses dos Problemas Indígenas

Os problemas indígenas são bem anteriores à chegada de espanhóis e


portugueses, no final do século XV, nas Américas. Era comum a disputa por
territórios e escravidão ou submissão entre grupos nativos. Valentini; Vilela &
Ordoñez (1999, p. 148-149) afirmam que quando o povo mexica partiu da
região denominada Aztlán19 e entre os séculos XIII e XIV fundam a cidade de
Tenochtitlán20, eles conquistam diversas populações vizinhas obrigando-as a
pagarem impostos.
Pereira (2000) defende que os grupos do tronco lingüístico tupi chegam
à costa atlântica entre os séculos XIV e XV expulsando grupos de língua jê
para o semi-árido sertão localizado a oeste do atlântico. Entretanto, conforme o
mesmo autor, os tupi por sua vez foram expulsos de regiões andinas pelo
império inca que se fortalecia a custa da submissão de outros povos.
Ainda que todos os grupos indígenas descendam de um mesmo tronco
(o que é pouco provável) sabe-se que havia forte animosidade entre as
diferentes tribos. Prática comum era pendurar crânios e corpos de inimigos a
entrada das caiçaras21. Além disso, quando membros de outras tribos eram
pegos circulando por territórios habitados, eles dificilmente escapavam com
vida.
Os problemas humanos são inerentes à luta pela sobrevivência. As
Américas não eram um paraíso terrestre. Dominação de povos sobre povos
são fenômenos que acompanham a humanidade desde épocas primevas até a
hodiernidade. Dominações não são exclusivas deste continente ou de um
sistema econômico específico. As dominações ocorreram e continuam a
ocorrer, também na Europa, Ásia, África e Oceania, em diferentes momentos
históricos e sob sistemas econômicos distintos.
Observar o fenômeno, desta maneira, de forma realista e
contextualizada com outros fenômenos mundiais é importante, pois quebra a
percepção ingênua e mítica de um paraíso terrestre americano em que o
homem nativo é apresentado com propriedades inverídicas e completamente
distintas das observadas nos outros seres humanos. Essa visão romântica

19
Hoje localizada em território dos Estados Unidos. É do termo aztlán que se deriva o vocábulo asteca.
20
Atual Cidade do México.
21 Cerca que protege os aldeamentos.
25

como também o seu oposto à visão bárbara, acaba determinando problemas


estruturais.
A visão romântica/bárbara (visão estereotipada do homem americano)
se constrói desde os contatos iniciais com os europeus, foi fortalecida por parte
da literatura jesuítica, por cronistas protestantes22 e católicos, incluindo
romancistas do século XIX, como José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves
Dias (1823-1864), que deram o arremate final na construção do estereótipo do
homem nativo.
O problema da visão estereotipada romântica é que ela não corresponde
à realidade, fato que gera uma expectativa perceptiva que termina sendo
frustrada. Não é difícil, a partir da visão romântica, depositar nos grupos nativos
uma expectativa de pureza e harmonia inexistentes. Este descompasso entre o
ideal construído no imaginário e a realidade existente, provoca uma distorção
na percepção da realidade (FESTINGER, 1975), conhecida como dissonância
cognitiva. Esta distorção perceptiva devido ao descompasso, com relação aos
grupos indígenas, gera duas possibilidades: 1) aqueles que não correspondem
à idéia pré-conceituada não são percebidos como indígenas; ou 2) quando são
reconhecidos com sua identidade indígena, são percebidos como alterados e,
portanto, com o dever de lutar para resgatar seu modelo cultural anterior.
Além destas duas possibilidades é fácil observar que esta expectativa
perceptiva distorcida revela uma visão de cultura estanque e estática, que não
se altera com o tempo e o contato com grupos distintos.
A conseqüência prática deste descompasso perceptivo é o fato da
sociedade contemporânea encontrar dificuldade em reconhecer como indígena
as comunidades que não são isoladas.
Uma entrevista realizada em fevereiro do ano de 2006, com um
estudante universitário, revelou alguns dados interessantes. O acadêmico, de
23 anos de idade, possui ascendência indígena, mas devido sua família residir
em cidades a várias gerações não é identificado como tal, embora ele mesmo
reconheça sua origem indígena. Declara que com muito esforço conseguiu
entrar em um curso de Engenharia Elétrica numa faculdade privada de
Alagoas. Lá, o que mais lhe chocou foi à indignação da professora de Direito

22
Dos quais podemos destacar o francês Jean de Léry.
26

(filha de um ex-governador do Estado de Alagoas)23 que declarava


enfaticamente que os índios de Palmeira dos Índios (um município alagoano)
não são mais índios. O estudante afirma que, então, se perguntava: “o que eles
são e o que eu sou?”
Este fato demonstra ao que leva a visão estereotipada. As comunidades
indígenas do Nordeste, devido o contato de longas datas com grupos distintos
dos seus, não correspondem às expectativas pré-concebidas da população.
Portanto, não são vistas como tais ou são percebidas com a necessidade de
retorno cultural a um momento histórico passado.
Não é difícil perceber a partir daqui que a dominação de um povo é um
processo bastante complexo e não se limita apenas ao conflito armado
estabelecido geralmente no início da tentativa de dominação.
A dominação de um povo sobre o outro se dá, sobretudo, no plano
cultural-ideológico, passando a cultura do dominador a ser regra e fio condutor
dos demais aspectos existentes do dominado. Embora o processo não seja
unilateral, e o dominador acabe incorporando alguns elementos do dominado,
na prática, estes elementos entram como anexos ou acessórios de uma visão
estrutural do dominador. A esta característica específica chamamos de
assimilação24. Ou seja, a cultura dominadora incorpora alguns aspectos da
dominada a fim de mascarar o processo.
Mascarar o processo de dominação cultural trás inúmeras vantagens,
visto que, além de dificultar a resistência, também dificulta a organização dos
grupos que passam pelo processo de dominação. Por essa razão, sempre que
possível, como no caso da estruturação do Brasil, o conflito cultural de povos
distintos tende a ser mascarado pelo dominador que por diferentes
mecanismos tenta apagar a lembrança e a identidade do povo dominado.

23 Destaco o fato da professora ser filha de um ex-governador para ficar claro a que grupo pertence as elites e a
política do Estado.
24
O conceito de assimilação é amplamente utilizado por estudiosos da temática indígena. Por exemplo, fala-se que
a política oficial era assimilacionista à medida que tentava incorporar os nativos a unidade nacional destituindo-os
de seus modos culturais tradicionais. Munanga (1996) nomeia a cultura brasileira de assimilativa, com o mesmo
sentido. Ou seja, cultura assimilativa é aquela que possui uma base estrutural que se altera muito pouco, mas que
anexa outros caracteres secundários a fim de mascarar a intenções de dominar.
27

Neste sentido é possível estabelecer relação deste processo com aquilo que
Marx chama no Manifesto Comunista de classe em si25 e classe para si26.
Quando o processo se mostra de modo mascarado, em muitos casos,
temos a estruturação de uma nova sociedade em que dominados e
dominadores não terão identidades étnicas distintas como marcadores de
ordenamentos sociais (pelo menos não de modo objetivo), mas serão
configurados em classes sociais diferentes. Afinal a nova estrutura social não
destacará particularidades que possam ser ameaças à ordem. Em outras
palavras, não fica claro a percepção de que os pobres da nova ordem social
são resultantes dos grupos dominados e os ricos são em sua maioria os
descendentes dos grupos dominantes.
Entretanto, este fenômeno é tão visível sob um olhar crítico que
podemos constatá-lo em diversos paises que foram colônia de exploração no
passado. Para endossar este argumento, é válido fazer referência à pesquisa
do Professor Marcelo Paixão27. A pesquisa se baseia nos relatórios de
Desenvolvimento Humano das Organizações das Nações Unidas (ONU) de
1999 e numa análise estatística dos dados coletados pelo IBGE. Os resultados
desta apresentam uma diferença colossal entre os grupos étnicos brasileiros, o
que atesta o fato da pobreza ter cor e identidade étnica em nosso país.
Todavia, na mídia comum, nos meios de comunicação formais e informais do
país, não se destaca essa relação existente entre etnia e pobreza, pois o
destaque da mesma pode ser problemático.
Desta forma, é possível sintetizar o exposto até o presente momento
reafirmando que os problemas indígenas relacionados à dominação de grupos
não se iniciam com a colonização luso-espanhola. Sabemos, entretanto, que
esta dominação foi a que teve um peso ideológico maior, porém acreditar que
os problemas se iniciam com a mesma significa reforçar uma visão
romanceada e estereotipada do homem americano. Alimentar esta percepção
romântica significa desnaturalizar certos fenômenos e conduzir-se para uma

25 Classe ou grupo de pessoas que pertencem a uma mesma categoria ou segmento devido a fatores históricos e
econômicos, mas que não se percebem como categoria distinta de outras. Possuem profunda dificuldade de
organização e de decidir sobre seus destinos.
26 Classe de pessoas que pertencem a um mesmo segmento de realidade histórica, social e econômica, mas que

possuem consciência de que são uma classe diferenciada.


27
Coordenador do Projeto Brasil 2000 – Novos marcos para as relações raciais da Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional (FASE), professor do Departamento de Economia da UFRJ.
28

visão de culturas estanques e estáticas que não se atualizam. O fenômeno


vislumbrado desta maneira faz com que desprezemos a dinâmica étnica social
atual, impedindo a percepção mais ampla e crítica deste processo. Ou seja, o
romantismo, assim como a barbárie, são formas perceptivas que mascaram
uma estruturação social fragmentada e segregada em classes sociais distintas
que tomaram como ponto de partida à relação entre grupos étnicos diferentes.
Além disso, a visão estereotipada impede a tomada de consciência dos grupos
marginalizados de que possuem uma origem e uma história comum, que
pertencem a uma mesma categoria, caracterizando assim o conceito de classe
em si, e todos os prejuízos que esta caracterização pode determinar.
Apresentar a problemática desta maneira pode parecer extremamente
confuso para aqueles que não estão habituados a lidar com as relações étnico-
raciais no Brasil. Mas, este ponto possui íntima relação com o fato de haver
dificuldade de identificação étnica em nossa realidade.
A questão étnica pode parecer insignificante diante de tantos problemas
estruturais da nação, mas ela está na base da construção. Ela é fundamento,
alicerce. Portanto, ela apenas parece ser insignificante.
Possuir identidade étnica diferenciada significa produzir e reproduzir
cultura também diferenciada, e cultura é a transformação da natureza e tudo
que é transformado pela ação do homem. Alterar a base étnica (alterar o
entendimento que se tem da base étnica) significa alterar o modo como às
pessoas produzem suas vidas, seja numa comunidade ou em uma nação.
Portanto, refletir criticamente este processo de dominações de grupos étnicos
sobre outros se torna uma questão crucial.

3.0 – Outro Olhar sobre a Formação do Estado Brasileiro

3.1 – Período Pré-Colonial e Início da Colonização.

Quando Cristóvão Colombo chega as Américas em 1492 começa a


preocupação sobre a partilha de domínios entre os reinos de Portugal e
Espanha (esta última, ainda considerada Reino de Castela e Aragão). O Papa
Alexandre VI, em 1493, tenta dirimir o impasse por meio da bula Inter Coetera,
estabelecendo uma linha imaginária 100 léguas a oeste de Cabo Verde. O
29

regente de Portugal, Dom João II, sente-se prejudicado e por meio de pressões
políticas obteve uma nova divisão através do Tratado de Tordesilhas, em 1494.
A nova divisão estabelecia outra linha imaginária, agora a 370 léguas de Cabo
Verde. Esta nova linha capta parte do atual território brasileiro para os
portugueses.
Os historiadores modernos concordam que os europeus tinham
conhecimento da existência de terras a oeste do atlântico antes do lançamento
da esquadra de Cabral. Dentre os diversos argumentos que apresentam para
confirmar este raciocínio destacamos como evidência o fato dos irmãos Pinzón
terem chegado até o Cabo de Santo Agostinho em 1499, não tomando posse
por conta da existência do Tratado de Tordesilhas. Além disto, em 1498,
Duarte Pacheco Pereira, faz uma viagem secreta por ordem de Portugal e
atinge a região do Maranhão ou Pará e costeia a Ilha de Marajó28. (Queiroz,
2001, p. 71)
Além destes argumentos outros menos conhecidos figuram em textos de
historiadores portugueses como Daehnhardt (1993), que afirma uma
continuidade dos cavaleiros templários numa organização portuguesa chamada
Ordem de Cristo. Conforme Daehnhardt, Cabral era cavaleiro desta ordem e
estava no comando da esquadra por pertencer a esta organização. A
organização possuía conhecimento de planisférios em que o Brasil aparece
desde 1339. Os cartógrafos Mediceu, Solleri, Pinelli e Branco mostram uma
Ilha Brasil, sempre a oeste dos Açores desde o século XIV.
Entretanto, para todos os fins, foi propagado que a chegada dos
portugueses ocorre no dia 22 de abril de 1500, com uma frota de 13 navios
comandados por Pedro Álvares Cabral. Por razões econômicas Portugal não
se interessa pela nova terra de imediato e sua colonização se inicia apenas
trinta anos depois.
Os produtos existentes na nova terra americana não tinham valor
comercial que chegassem a substituir os lucros do Oriente. Portanto, para
lucrar com a nova terra era preciso investir. Mas, o volume de investimento
seria alto e o retorno incerto, portanto a coroa decide ser melhor dividir a nova
terra em lotes que foram dados a fidalgos e homens de destaque.

28
Este navegador português deixou um manuscrito da viagem entre 1505 e 1508. O manuscrito escrito pelo próprio
navegador ficou perdido nos arquivos portugueses por mais de quatro séculos.
30

A terra foi dividida em 15 lotes, conhecidos como capitanias hereditárias,


para doze donatários. A coroa portuguesa na verdade tentava transferir, com
essa estratégia, os custos da colonização para a iniciativa privada. Entretanto,
antes da implantação do sistema de capitanias hereditárias, a coroa
portuguesa entre 1500 e 1513 concedeu a particulares o direito da exploração
do pau-brasil (ymbyrapiranga)29. Depois de 1513 a exploração ficou livre desde
que se pagasse o tributo à coroa portuguesa (a quinta parte do lucro).
Ao que tudo indica a “descoberta” não é acidental. O contato de
europeus com grupos nativos das Américas é anterior à colonização que se dá
na década de trinta do século XVI. E, principalmente, não podemos interpretar
a chegada do europeu para colonizar as Américas desprovida de um projeto.
Estes pontos são importantes para a análise que se segue.
Todos os historiadores que trabalham sobre esse período pré-colonial
afirmam que a relação entre nativos e europeus neste momento inicial, salvo
raras exceções, se deu de modo harmonioso. Essa informação é importante
para ser articulada com os pontos supracitados nos parágrafos anteriores.
Acontece que devemos imaginar as grandes travessias dos europeus
movidas pelo desejo de lucrar. Porém, para o nativo que se encontrava na
costa brasileira vislumbrar a chegada de grandes embarcações, homens com
características e tecnologias diferentes, tinha um significado e um sentido
distinto do lucro europeu. Mas, mesmo sendo diferente a idéia de lucro, não
deixava de haver também a idéia de ganho.
Havia intensa disputa entre grupos tupi (que em sua maioria habitavam o
litoral) e jê (que se situavam quase totalmente nos sertões e a margem do São
Francisco30). Os tupi se fragmentavam em uma outra infinidade de tribos que
guerreavam entre si, assim como também os outros grupos, de troncos
lingüísticos diferentes, também guerreavam entre os seus. As organizações e
os padrões de cada um destes grupos eram distintos. Mas, todos eles sabiam
que era extremamente vantajoso fazer aliança com parceiros fortes e com

29
Destacou-se nesse período o novo cristão Fernando de Noronha.
30Em períodos pré-cabralinos os grupos jê habitavam o litoral e provavelmente foram expulsos para o interior por
grupos tupi entre cem e duzentos anos antes da chegada dos portugueses. Essas suposições são levantadas por
escritores quinhentistas baseados em relatos indígenas da época. As poucas pesquisas arqueológicas da
atualidade parecem confirmar esses dados.
31

tecnologia avançada, ainda que se interpretasse esta tecnologia como algo


sobrenatural.
Portanto é possível entender o entusiasmo inicial de muitos grupos
indígenas do litoral em fazer contatos e alianças com grupos de origem
européia. Dentro deste mesmo raciocínio, neste clima eufórico, também é
possível compreender a facilidade com que grupos de marinheiros europeus
tinham acesso as mulheres indígenas. Antes do período colonial formou-se
uma verdadeira rede de alianças fundamentadas nos contatos sexuais de
europeus com indígenas (que em muitos casos deixavam filhos) e na troca de
produtos e materiais.
A prática de manter contatos sexuais a fim de gerar filhos para facilitar o
contato e a interação entre povos é antiga. Quando Alexandre Magno
conquista a Pérsia, uma das propostas para manter sob controle o novo grupo
de relação era a miscigenação. O consagrado sociólogo brasileiro Gilberto
Freyre, em seu livro Casa grande e senzala, afirma que era prática comum dos
portugueses se miscigenarem a fim de facilitar relações. Outro estudioso da
história brasileira, Prado (1935), também afirma que sem a ajuda de certos
portugueses, com seus inúmeros filhos mestiços de índios, seria difícil a
colonização de determinadas capitanias do Brasil:

Sem aquela chusma de mamelucos, filhos de Caramurú e João


Ramalho seria quase impossível à tarefa do estabelecimento de
portugueses no litoral. Poderia ter-se malogrado por completo. (p.123)

Em outras palavras, quando o projeto colonial português começa há uma


rede de novos indivíduos que representam algo intermediário entre o nativo e
os homens que vêm de grandes embarcações atravessando o mar. Estes
novos indivíduos são os mestiços, conhecidos também como mamelucos ou
caboclos. O caboclo possui uma nova identidade enquanto indivíduo.
Para os indígenas do litoral brasileiro a identidade do indivíduo, ou seja,
aquilo que o individuo seria, é determinada pela paternidade (pater-linear) e
não pela maternidade31 (mater-linear). Porém, para o reino português, o fato de
ser filho de homens portugueses não era suficiente para obter o

31
Esta informação encontra respaldo na literatura dos viajantes, nos relatos do Padre Anchieta, nos romancistas do
século XIX e nos hábitos presentes ainda nos dias hodiernos em alguns grupos tupis da região amazonense.
32

reconhecimento de ser um dos seus. É importante a clareza sobre este ponto,


visto que no momento inicial da implantação das capitanias e em momentos de
crises e guerras com nativos, determinados mestiços eram extremamente bem
quistos a coroa portuguesa. Entretanto, salvo esses momentos acima citados,
os mestiços gradativamente começam a se tornar um problema.

Foi o mameluco, talvez, o primeiro brasileiro consciente de si, esse


brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que, não podendo identificar-
se com os que foram seus ancestrais americanos (que ele desprezava),
nem com os europeus (que o desprezavam), e sendo objeto de mofa
dos reinóis e dos luso-nativos, via-se condenado à pretensão de ser o
que não era, nem existia: o brasileiro. (RIBEIRO, 1995, p.128)

Talvez o maior problema do mestiço seja o fato dele sofrer de crise de


identidade. Essa crise de identidade perdura séculos e afeta de modo grave
ainda hoje nossa estrutura social. Mas, antes de aprofundar esta discussão
sobre identidade continuemos a velejar sobre as águas interessantes da
história da formação do Brasil.
A partir das discussões de ciência pós-moderna, em que a orientação
fenomenológica ganhou peso. Passou-se a discutir os aspectos históricos não
apenas pela perspectiva dos fatos registrados em documentação oficial.
Críticas a modelos unilaterais começaram a surgir com maior força. A reflexão
sobre o fato de a história ser contada com objetivos e por grupos vitoriosos,
que sufocam vozes oprimidas, aumentou (GARCIA, 2001, p.11-36 e
BENJAMIN, 1994).
Embora não tome a fenomenologia como fundamento epistemológico,
algumas propostas da mesma são interessantes, pois é possível entender a
narrativa que se conhece até hoje da formação do Brasil, a parti deste olhar,
como uma narrativa que omite e sufoca milhares de gritos e vozes. Vale
ressaltar que se estuda a história não para haver precisão dos fenômenos
ocorridos no passado, mas para termos clareza e entendimento do que ocorre
no presente. A história oficial que se conhece ordena uma determinada
seqüência de fatos sob a ótica de segmentos específicos da sociedade, o que
permite apenas uma compreensão pobre e insuficiente daqueles que foram
marginalizados.
33

Particularmente possuo algumas ressalvas sobre orientações pós-


modernas de ordem fenomenológica. Porém, são inegáveis algumas
contribuições, como a quebra da linearidade, na compreensão de alguns
processos. Portanto, nutrido desta nova orientação posso retomar a história
brasileira a partir do processo de colonização, iniciado na década de trinta do
século XVI, com as capitanias hereditárias.
Embora esteja claro que o projeto português não visava beneficiar o
homem nativo das Américas, pois o projeto visava única e exclusivamente ser
rentável. A percepção do nativo era a de poder obter benefícios com aquele
grupo tecnologicamente superior. O que a maioria dos grupos nativos não
percebeu foi que estava prestes a ruir o mundo como eles o conheciam.
Admitindo o contato a partir de Cabral, há uma margem de mais de trinta
anos para o início da colonização. Isto significa tempo suficiente para haver
contatos gradativos, aproximações sem causar espanto ou preocupação, doar
ferramentas e armas interessantes em troca de madeira e proteção, sem falar a
formação de filhos. Portanto, quando o projeto colonial começa efetivamente
deve não ter causado espanto de imediato, visto que de longas datas aqueles
homens diferentes andam por ali sem nunca terem tido interesse de se fixar a
terra ou dominar o povo da região. Outrossim, o andar daqueles homens era
sinônimo de recursos e facilidades em quase todos os casos.

E teriam chegado mansos, num primeiro momento, aproximando-se


cuidadosamente dos índios e dizendo que não pretendiam ficar
morando na terra, mas iam ficar um pouquinho e, depois desse
tempinho, iriam construir casas para ter onde se abrigar. Depois,
disseram que gostariam muito de ter onde plantar. Se o índio pudesse
ajuda-los... E, já que iam ficar mais um pouquinho, precisariam ter
mulheres. Para ter mulheres, como eram religiosos, precisariam casar
e, para casarem, a mulher teria que ser batizada. Então, a cooptação do
branco não é, pelo menos nesse primeiro momento, uma coisa
agressiva. Ou seja, nem os índios foram tão ingênuos, nem os brancos
chegaram matando. (DIAS & GAMBINI, 1999, p. 21)

Mas, como o projeto colonial português é de exploração, a política da


boa vizinhança não poderá ser eterna. Por isso, era necessário que os
portugueses de início firmassem alianças corretas e coerentes para que seu
projeto pudesse vingar.
34

Pereira (p.122), afirma que as faixas de terras das capitanias criadas


correspondem quase exatamente ao território habitado pelos grandes grupos
tupi existentes na costa brasileira. Com alguns grupos o contato com os
portugueses foi facilitado e a miscigenação era comum. Porém, como não eram
os portugueses os únicos a visitar estas terras, era natural que parte dos
grupos nativos fizesse aliança com outros europeus que não apenas os
portugueses. Desta forma, era importante neste período colonial inicial os
portugueses manobrarem os grupos indígenas para guerrearem entre si,
limitando determinados contatos destes, ao invés de comprar a briga para si
contra franceses e outros que pirateavam a costa brasileira.
Um ótimo exemplo deste jogo de interesses ocorre na Capitania de
Pernambuco (o atual Estado de Alagoas pertencia a esta capitania). Esta
capitania foi uma das únicas duas que floresceu durante o período colonial.
Quando Duarte Coelho recebeu posse da terra, como donatário, foi residir
numa aldeia de índios de tronco lingüístico tupi, denominados Caeté. A aldeia
recebeu o nome de Olinda, hoje cidade histórica com o mesmo nome.
Entretanto, Duarte Coelho fez aliança com os Tabajara que possuíam contenda
com os Caeté. Um dos líderes dos Tabajara chamava-se Arco-verde e o irmão
da esposa de Duarte Coelho, casou-se com uma filha de Arco-verde. Este
casamento e a aliança entre o donatário e os Tabajara causavam grande
preocupação nos Caeté. A animosidade entre Caeté e os indígenas aliados dos
portugueses aumentou ainda mais quando em 1554, Duarte Coelho, viajou
para Portugal e lá morreu, deixando a chefia da capitania com sua esposa e
cunhado, D. Brites de Albuquerque e Jerônimo de Albuquerque. Não é de se
estranhar que pouco tempo depois, pouco mais de dois anos, os Caeté sejam
acusados de matar o primeiro bispo do Brasil, D. Pero Fernandes Sardinha.
Enquanto esteve vivo Duarte Coelho consegue manter boas relações
com os Caeté apesar da contenda que estes possuíam com os Tabajara. Mas,
com sua morte, fica muito claro para os Caeté que os Tabajara ficarão sob
vantagem. Jerônimo de Albuquerque que já possuía filhos com sua esposa
índia Tabajara, ao que tudo indica, preocupa-se agora em manter os Tabajara
sob vantagem, afinal, além de tudo, os Caeté se comunicam e fazem trocas
com os franceses. A questão agora se torna de segurança para os
35

portugueses. Nada mais útil que encontrar uma justificativa para eliminar
aqueles que atrapalham o projeto colonial.
Nos anos seguintes à perda de ‘Nossa Senhora da Ajuda’, aumentaram
os conflitos entre Caetés e índios escravos dos colonos e os que eram
seus aliados, como os Tabajaras e de outras nações indígenas. A
população também crescera sensivelmente em Olinda com a vinda dos
migrantes (...). Eles chegavam esperançados de fazer fortuna na
colônia, com as explorações agrícolas, e nata do comércio da época.
Mas havia o obstáculo dos Caetés, que senhoreavam as melhores e
amplas terras da capitania para a plantação de canaviais e montagem
de engenhos de açúcar. Estes gentios não aceitavam de bom grado a
escravidão. Era mister pois excluí-los. (PEREIRA, p. 156-157)

Salvador (1918), afirma que por mais de uma vez Duarte Coelho
encontrou franceses negociando com grupos Caeté. Segundo Salvador, Duarte
Coelho dispensava os franceses e fazia amizade com os indígenas. De
qualquer sorte, supomos que a guerra é deflagrada contra os Caeté devido as
amizades que esses possuíam, pois, afirma Pereira, a existência de diversos
documentos jesuítas demonstrando que D. Pero Fernandes Sardinha foi morto
em Sergipe e não em Coruripe32. A morte do bispo era apenas a justificativa,
tão necessária em toda guerra.
Pereira (p.161) narra que após 1560 a guerra durou cerca de três a
cinco anos e que aproximadamente 30.000 índios foram parar no cativeiro.
Outra quantidade imensa (40.000) de indígenas fugiu para os sertões.
Frisemos que quem caça e efetivamente faz a guerra contra os Caeté são
outros indígenas, principalmente Tabajara, com o apoio dos portugueses. O
filho mestiço de Jerônimo de Albuquerque, que possui o mesmo nome do pai,
também participa desta guerra e começa a se destacar como chefe militar a
partir daí.
Após a guerra começa-se a divisão das terras e a construção de uma
série de engenhos de açúcar. Embora os indígenas capturados sejam muitos
começa timidamente o tráfico de mão-de-obra escrava negra africana.
A narrativa até o presente momento tem por objetivo demonstrar como a
presença indígena é muito forte neste período inicial de colonização. É possível
32
Até hoje todos os trabalhos que defendem a morte do Bispo Sardinha pelos Caeté fundamentam-se no trabalho
de Gabriel Soares de Souza (1587). No Anuário Estatístico de Alagoas do ano de 1998, figura uma afirmação de
que o naufrágio ocorre em um determinado ponto (baixios de Dom Rodrigues) e que caminhando em direção a
Pernambuco a tripulação foi atacada e devorada por índios no porto do Francês. De qualquer modo, é certo de que
se os tripulantes fossem franceses os caeté não os teriam devorado, caso tenham sido mesmo os caeté. (p.17).
36

subtrair também que a miscigenação com indígenas é muito comum. E por fim,
observar como alguns grupos indígenas participam efetivamente na formação
dos primeiros núcleos humanos enquanto outros são excluídos. As famílias
brasileiras deste período inicial eram famílias mestiças ou famílias indígenas
que começavam a se organizar sob a égide européia33. Os povoados eram
sempre desdobrados a partir de aldeamentos, e a maioria de seus habitantes
eram indígenas que aderiam à fé cristã.

3.2 – O Governo Geral e o Fenômeno dos Quilombos

Por meio do Regimento de 1548, foi criado o Governo Geral. Os direitos


da Capitania da Bahia foram comprados de seus donatários e esta passou a
ser considerada Capitania Real. O sistema de capitanias hereditárias
continuava a existir, porém a metrópole precisava centralizar a administração e
organizar melhor a defesa da colônia que era constantemente visitada por
estrangeiros.
Com exceção da Capitania de Pernambuco, da Capitania de São
Vicente e, posteriormente devido o investimento da coroa, a Capitania da Bahia
(Real), as demais regiões do Brasil permaneciam basicamente inalteradas.
Nestas capitanias em que o projeto português fluía, a miscigenação era intensa
com os grupos indígenas, bem como, a organização social sofria forte
influência destes grupos.
As famílias brasileiras deste período eram formadas basicamente de
casamentos inter-étnicos. Porém, a miscigenação não se dava com todos os
grupos. Fica visível, portanto, que alguns foram beneficiados e outros foram
massacrados. Os chefes indígenas não demoraram a entender que era
extremamente vantajoso casar suas filhas com portugueses, pois isso
significava facilidade de armamento para sua tribo e superioridade desta diante
das demais. Os chefes também não hesitavam em mandar seus filhos
guerreiros para ajudar os cunhados em momentos de dificuldade e guerras
com outras tribos adversárias. A briga dos portugueses tornava-se facilmente a

33 O primeiro Cardeal da América Latina é oriundo de família pernambucana mesclada com índios tabajara, mas que
assume hábitos e costumes portugueses. O Cardeal chama-se Dom Joaquim Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque
e foi sagrado Cardeal no ano de 1905.
37

briga de uma tribo a fim de provar o quanto consideravam seus amigos de


tecnologia superior.
As bandeiras e as entradas que eram organizadas neste período, eram
formadas basicamente de filhos mestiços de portugueses com uma centena de
tios e primos indígenas. Eram pouquíssimos os portugueses puros ou filhos de
portugueses puros nas bandeiras ou nas entradas. A missão das entradas e
das bandeiras era captar riquezas e capturar índios de tribos distintas para
trabalhos escravos.
Com a formação dos primeiros engenhos começa a chegar também a
mão-de-obra negra proveniente da África principalmente a partir do século
XVII. É bom frisar esta especificidade da origem negra, pois em alguns
documentos antigos encontramos os indígenas sendo referendados como
negros da terra. Tanto indígenas como africanos foram escravizados, e ambos
em muitos casos eram chamados de negros34.
Os grupos indígenas que não participaram do contato inicial com os
portugueses e ou aqueles que insistiam em viver de um modo distinto daquele
que tentava implantar o europeu, certamente ganhavam a perseguição seguida
de morte ou escravidão. Evidentemente que depois da estrutura social básica
montada não havia espaço para todos que aderissem ao estilo europeu de
vida. Visto que, até mesmo aqueles da estrutura social básica não conseguiam
sustentar o modelo europeu por completo numa terra nova. Portanto, ao
mesmo tempo em que existia uma sociedade excludente e fragmentada, é
possível perceber que esta sociedade possuía formas de despertar nos
indivíduos o sentimento de pertença, para evitar que a mesma fosse fragilizada
e outras com modelos alternativos se fortalecessem.
Parte deste sentimento de pertencimento era forjado pela religião. A
idéia dos padrinhos, das irmandades, da filiação comum a um pai celestial, era
extremamente inclusiva. Mas, mascarava uma sociedade semi-feudal que
tentava se estruturar colocando no topo da hierarquia um grupo seleto.
Não deve causar espanto o fato de alguns grupos perceberem esse
mecanismo e daí ter se posicionado de forma contrária, na medida do possível.

34Esta nomeação de negro da terra aos indígenas era tão comum, que mesmo a Rede Globo (que quase sempre
apenas reproduz a história oficial), na telenovela (1968) e na minissérie (2000) A Muralha, destaca esta forma de
conceituar o indígena. Tanto a telenovela como a minissérie foram baseadas no romance de mesmo nome escrito
por Dinah Silveira de Queiroz em 1954, em homenagem aos 400 anos da cidade de São Paulo.
38

Clóvis Moura, em seu livro Os quilombos na dinâmica social do Brasil,


afirma que o movimento quilombola, não deve ser entendido como um
fenômeno isolado, que ocorre em momentos diferentes, sem que se possa
traçar uma correlação e identificar uma ideologia maior que permeava a
resistência. Trago este movimento aqui por duas razões.
A primeira é para reforçar a análise de Clóvis Moura, de que os
quilombos não são movimentos isolados que estouram em pontos territoriais e
temporais diferentes, sem que haja correlação. A segunda razão é que os
quilombos, na maioria dos casos, são interpretados como movimentos
exclusivamente negros de raízes africanas, mas apresento ele aqui com uma
forte correlação com o movimento de resistência indígena. Não consigo de
forma alguma remontar a história de modo a reconhecer os quilombos como
um movimento de origem excepcionalmente africano.
É extremamente útil trazer esta reflexão neste momento, pois possibilita
o entendimento da dinâmica social do Brasil em sua gênese. Peguemos como
exemplo o Quilombo dos Palmares.
O Quilombo dos Palmares é um dos mais antigos de que se tem notícia,
existem documentos que atestam a existência de escravos fugidos na região
desde 1612 e por volta de 1640 os holandeses já consideram ameaçador sua
continuidade (ver THORNTON, 1987 e BARLEUS, [1647] 1974, p.253). Suas
dimensões também eram enormes compreendendo imensas porções de terras
na Zona da Mata onde hoje se localiza os Estados de Alagoas e Pernambuco.
Chegou inclusive a ser reconhecido pelo governo colonial no século XVII com
mérito de Estado. Palmares se subdividia em uma série de povoados humanos,
cujo qual, a história oficial afirma ser o principal Macacos, na Serra da
Barriga35, onde hoje se situa o município de União dos Palmares.
A realidade de Palmares não é muito diferente de outros problemas que
a coroa e outros colonos portugueses enfrentavam em outras regiões do
território, como muito bem atesta cartas do Rei de Portugal ao Governador do
Brasil e do Vice-rei aos Governadores de Pernambuco e outras capitanias (Ver,
por exemplo, FREITAS, 2004, p.252-283).

35 Possivelmente o aglomerado humano não era na Serra da Barriga, mas as margens do rio Mundaú.
39

Na atualidade Palmares é entendido como um movimento quilombola de


resistência negra em que a população de Alagoas, muitos estudiosos e por
conseqüência os demais interessados no assunto, identifica-o com a força da
expressão africana nas Américas. Porém, existem fortes evidências que
lançam a possibilidade desta crença se fundamentar em erro.
Contudo, a assimilação do ki-lombo angolano com o quilombo de
Palmares parece, à luz dos estudos de africanistas, insustentável. De
fato, o termo quilombo só foi usado no Brasil em 1691, segundo
Schwartz, estando ausente dos documentos anteriores que se referem
a Palmares. O ki-lombo angolano, por sua parte, foi um movimento
guerreiro muito específico e efêmero, datado do segundo quartel do
século XVII, posterior, portanto, ao início de Palmares (FUNARI, 1996).

O primeiro ponto que destaco com relação a Palmares é que os


primeiros registros de escravos fugidos na região são muito próximos ao final
da guerra contra os caeté. A guerra finda no final da década de 60 do século
XVI, um pouco mais de quarenta anos depois da mesma aparecem registros
dando conta da existência de escravos fugidos na região. Aproximadamente
30.000 índios são feitos escravos logo após a guerra e 40.000 fogem para um
ponto que considerando as distâncias, descritas em documentos da época,
situa-se na parte noroeste de Palmares. Além destes números, diversos
indígenas se deixam escravizar em grande quantidade depois da notícia das
vitórias dos índios aliados dos portugueses sobre os caeté.

À fama destas duas vitórias, ficou todo o gentio desta costa até ao São
Francisco tão atemorizado, que se deixaram amarrar dos brancos,
como se foram seus carneiros e ovelhas. E assim iam os barcos por
esses rios e os traziam carregados deles a vender por dois cruzados ou
mil réis cada um, que é o preço de um carneiro. (SALVADOR, p.201)

Ao que indica a bibliografia, praticamente a totalidade dos escravos de


Pernambuco (incluindo-se aí o território alagoano) eram indígenas até meados
do século XVI. Todavia, se a guerra dos caeté se deflagra depois desta data
resultando num número tão elevado de escravos indígenas, é possível
imaginar que os escravos de origem negra africana chegam timidamente e em
quantidades bastante simplórias até meados do século XVII. Pois, é apenas a
partir da segunda metade do século XVII que encontramos registro de grandes
levas de negros africanos trabalhando nos engenhos da região como escravos
40

(SCHWARTZ, 1995). É Preciso perceber que por este período Palmares já


possuía grande força e já representava ameaça.
Os primeiros registros de Palmares falam de escravos fugidos na Zona
da Mata nas décadas iniciais do século XVII. Neste período ainda era muito
pequeno o número de escravos negros africanos. Além disto, deve ser
lembrado que Palmares era uma série de povoados humanos, alguns se têm a
certeza de que eram aldeamentos indígenas.
Funari em seu texto sobre a República de Palmares descreve o ataque
holandês comandado por Baro ao principal acampamento de Palmares na
década de 40 do século XVII. Funari em nota do próprio texto acha que o
número de habitantes descrito (aproximadamente 6.000 que viviam no
acampamento principal), pode está exagerado. Entretanto, Funari, assim como
outros estudiosos, supõem que estes números podem estar inflados porque
leva em consideração apenas a escravidão negra africana, o que não
justificaria um número tão elevado de indivíduos em apenas um acampamento.
Na verdade, Funari cai no erro da maioria dos historiadores, que se
fundamentam apenas na história oficial difundida, que tende a ver Palmares
como uma expressão africana no Nordeste. Este afrocentrismo não encontra
fundamento em estudos mais críticos e desprendidos de pressões políticas e
regionais. O próprio Funari, na mesma nota, fala de sete indígenas, uma
quantidade não descrita de crianças mulatas (que significa cor de mulas e não
necessariamente de origem africana) entre 31 prisioneiros que são feitos no
ataque de Baro.
Caso Palmares seja interpretado como uma conseqüência da
perseguição aos caeté36, fica muito mais fácil de entender a quantidade
elevada de pessoas na região, bem como, o movimento se torna mais lógico e
compreensível em todos os sentidos. Allen (2000), ao retomar as pesquisas
arqueológicas em 1996 e 1997 na Serra da Barriga, onde se dizia localizar o
principal acampamento de Palmares, percebe como é forçoso interpretar
Palmares como um movimento africano no Nordeste brasileiro. Allen

36 Ao que tudo indica a Serra foi habitada ao longo de sua história por diferentes grupos humanos (sítio

multicomponencial) os vestígios mais antigos dão conta de grupos jê (arqueologicamente classificados como
Tradição Aratu), em seguida parece ter havido presença de grupos tupi na região. Por fim, há vestígios de uma
outra ocupação sem ser possível precisar o tipo de assentamento – supõe-se que é do quilombo ou posterior a sua
destruição. (Ver ALLEN 2001 e 2006)
41

demonstra ser um pesquisador de profunda coerência, talvez o fato de ser


estrangeiro e não está impregnado das histórias e pressões políticas da região,
possibilita-o de interpretar os fatos e os achados arqueológicos de uma
maneira bastante diferenciada do que se fazia até o presente momento.
A presença de grupos indígenas nos quilombos talvez ajudasse a
explicar a sua reportada população que parece ser muito alta, até
30.000. Quase sem exceção, pesquisadores têm desafiado o número
como exagerado, muitas vezes dependendo de estatísticas relevantes
quanto à importação de escravos na época. (...) Parece que
historiadores vêem dependendo demais dos registros históricos para
abordar essa questão, pois a presença indígena não faz parte do
discurso. (ALLEN, p.259-260)

Allen, na verdade, ao analisar os artefatos encontrados nas escavações


anteriores37 e os encontrados nas suas escavações comparando-os com a
produção cultural africana, percebe que o material das escavações é de origem
indígena e não apresenta características africanas. Buscando respostas para
estes dados materiais interessantes, aponta uma série de possíveis erros na
leitura histórica que se fez até o presente momento de Palmares.
A prática de arqueologia está integralmente ligada a agendas políticas
que são diversas e arqueólogos frequentemente sentem a pressão
dessas agendas incluindo desenvolvimento de turismo, conflitos
interétnicos, repasse de recursos, etc. Também, as suas
interpretações frequentemente ficam sob olhar de numerosas partes
da sociedade, interessadas em sua própria história. Esse fato resulta
às vezes, em enfoques que desviam ou enquadram interpretações ou
até mesmo em afirmações errôneas, tanto da parte do pesquisador
quanto por apropriação de cultura material por grupos de interesse.
Nesse caso, os ‘fatos históricos’ de um grupo são tratados como
pertences de outros na tentativa de realizar agendas políticas. (p.269)

Já destaquei em citações acima que antes da década de noventa do


século XVII, não se encontra o termo quilombo em nenhum documento. Mesmo
após esta data é extremamente raro encontrar o termo correlacionado com
Palmares. Uma das dificuldades na investida contra Palmares era a
consecução de recursos para o mantenimento da guerra. Outro ponto
importante é que na segunda metade do século XVII surge o movimento de
quilombos na África e é justamente neste período que a coroa portuguesa

37
Houve sondagens exploratórias iniciadas no ano de 1992 durante duas semanas e em 1993 mais 1 semana. Esta
primeira pesquisa era integrada por uma equipe de diversos pesquisadores, os quais destacamos: Pedro Paulo A.
Funari, o Professor Charles E. Orser Jr., da Illinois State University e o africanista britânico Michael Rowlands
(University College London)
42

passa a ter problemas com rebeliões em Angola. A guerra de Angola vem


solicitar homens para lutar naquele continente longínquo aqui. O medo de ser
levado a Angola assolou a muitos aqui durante o período. Portanto, não é de se
estranhar que num determinado momento histórico, diante dos fatos, as
autoridades no Brasil comecem a apresentar o movimento de Palmares como
um movimento quilombola, isto é, semelhante ao africano.
Uma revolta de chefes angolanos contra a dominação portuguesa
teve reflexo na vida dos palmarinos. Para debelar a revolta, a coroa
mandou recrutar no Brasil a ‘gente vadia’. Para fugir a isso, muita
gente pobre se engajou numa campanha contra Palmares, que veio a
ser das mais bem sucedidas. (FREITAS, p.239)

A aproximação do movimento palmarino com o movimento africano trás


inúmeras vantagens, ao passo que o reconhecimento de uma conseqüência da
luta travada em outro momento com nativos iria trazer prejuízos, pois poderia
levantar os ânimos de outros grupos nativos que na época se rebelavam com
facilidade (ver FREITAS, p. 252-277). Uma das principais armas numa guerra é
a propaganda, ou seja, o comércio de informações.
Difundir o movimento palmarino com características afro, na época, era
conveniente. Primeiramente, o fato da coroa está enfrentando problema
semelhante na colonização africana, facilitaria o entendimento, por parte desta,
dos problemas enfrentados pelos colonos brasileiros por associação com a
situação africana. Em conseqüência, o dimensionamento do problema desta
forma, aliado ao exagero da crueldade dos palmarinos, facilita a consecução de
recursos, o apoio e a preocupação da coroa portuguesa com o problema. Com
menor peso, mas não menos relevante, a associação do problema Palmares
com o movimento quilombola, daria um caráter mais africano ao movimento,
facilitando o recrutamento de índios na região para lutar contra algo que
pareceria nenhuma relação ter com os mesmos. Faria também com que parte
das aldeias envolvidas não se sentissem ameaçadas com o conflito iminente e
assim se envolvessem menos com a questão.
Não quero com esta argumentação excluir ou anular a representação
negra africana. Mas, apenas destacar que ela ocorre em profunda conjugação
com o movimento de resistência indígena e isto nem sempre é lembrado.
Afinal, ambos os grupos foram escravizados, ambos eram considerados
negros.
43

No livro, já referido, Os quilombos na dinâmica social do Brasil,


organizado por Moura (2001), é possível encontrar uma série de descrições de
mocambos e quilombos em que são presos grande quantidade de índios e
mestiços de índios nos mesmos. Além disto, existem momentos em que as
autoridades reconhecem como quilombos todo e qualquer ajuntamento de
negros, possuindo ou não habitação no local. Isto demonstra como existe
distância da noção de quilombo38 africano com os movimentos de resistência
aqui no Brasil.
O movimento de Palmares não é muito diferente de outros movimentos
de resistência negra em que a participação de índios é efetiva. Todavia, o
objetivo central aqui não é falar sobre os quilombos, mas apenas destacar a
participação indígena com um peso maior do que o que é percebido
costumeiramente por historiadores brasileiros.
Para findar este tópico e discutir outro ponto importante da história do
Brasil, é preciso lembrar que Palmares representava uma barreira inacessível
para os colonos do litoral que pretendiam atingir os sertões povoados por
indígenas e mestiços dos mesmos. Lembremos ainda que Domingos Jorge
Velho39, não sabia uma única palavra de português porque falava língua
indígena, era de origem indígena e possuía hábitos indígenas, que por sinal era
muito criticado por religiosos cristãos da época, pois possuía esposa conforme
as regras cristãs, mas, além disso, possuía sete índias concubinas. O exercito
de Domingos era composto quase que totalmente por índios de origem Cariri
(dito Tapuia – jê). Depois da destruição de Palmares muitos mamelucos do
exercito de Domingos passaram a ser proprietários de terras da região.
Diversas cidades do interior de Alagoas são formadas a partir deste momento
como Atalaia e Palmeira dos Índios, além disso, grande parte do seu exército
de índios recebe terras para formar aldeamentos, muitos dos quais subsistem
até hoje em Alagoas. Não muito diferente desta realidade é o que ocorre no
Brasil em outros lugares em que existem mocambos e quilombos. Portanto, já
que os destruidores de Palmares também possuíam identidade indígena, o fim
de Palmares não representa o fim da identidade índia.

38
Conforme Munanga em artigo publicado no livro de Moura (2001), Quilombo é uma palavra de origem Banto que
significa campo de iniciação. Na verdade, trata-se de um movimento militar que tenta reunir rapidamente pessoas,
independente da origem e etnia para lutar em prol de uma causa comum.
39 O bandeirante destruidor de Palmares.
44

Defendo a participação africana em Palmares, mas é de conhecimento


que não existe, nem existia, uma cultura homogênea na África. Os portugueses
sabiam explorar muito bem as diferenças entre os grupos africanos, de modo
que nunca deixavam grandes aglomerados de uma mesma etnia. Antes sim,
juntavam sempre grupos rivais ou com línguas diferentes. Some-se a este
cenário o fato de serem separados dos familiares, virem para cá na maioria dos
casos apenas os homens jovens. Estes foram espoliados, passaram fome,
torturas, atravessaram o oceano, vivendo numa terra nova, diferente e
desconhecida. Em outras palavras, era muito difícil que os africanos tivessem
condições de transportar para cá uma cultura pura, sem alterações, isto é
entender a cultura novamente com tendência estática, desconsiderando seu
aspecto dinâmico. Muito mais fácil é entender que aqui eles se mesclaram com
indígenas e formataram elementos que são exclusivamente nossos e com
profundos traços mestiços com forte participação indígena. Assim entendo a
umbanda40, a capoeira41 e outras expressões brasileiras ditas erroneamente de
origem exclusivamente africanas.
Da forma que o processo foi conduzido até o momento é possível
levantar questionamentos sobre fatos históricos de um modo diferente. Por
exemplo, embora a matança de indígenas seja elevada outros grupos
indígenas são relativamente “beneficiados”, desde que se integrando ao
sistema assimilacionista de estrutura portuguesa. O discurso de que os índios
foram massacrados, eliminados e exterminados, não é totalmente verdadeiro,
pois, na realidade, este discurso faz parte da guerra de propaganda impetrada
pelos colonizadores a fim de minimizar a expressão e a força de outros povos.
No início deste capítulo destacava que a dominação de um povo por
outro é um processo bem mais complexo que a luta armada e que o grupo
dominante tenta, por diferentes mecanismos, apagar a lembrança e a

40 Mesmo no candomblé (que sofreu menos influência que a umbanda) é possível encontrar uma série de traços
culturais indígenas, como por exemplo, o uso do milho, a oferta de mingaus, a adoção de algumas entidades como
Iemanjá que é representada como a deusa das águas indígena chamada Janaina.
41 A palavra capoeira por si já denuncia a forte influência indígena. A Confederação Brasileira de Capoeira expôs em

seu site, até o ano de 2007, uma concepção histórica da capoeira em que a mesma é resultado da fusão entre
elementos indígenas e afros aqui no Brasil. Não encontramos na África ou em qualquer outro país que tenha havido
tráfego de escravos africanos, uma expressão que se assemelhe a capoeira, mesmo assim muitos insistem em
defender uma origem africana a capoeira baseando-se numa dança, chamada dança da zebra, que nada tem haver
com a capoeira. Entretanto, na gramática do Pe Anchieta (escrita no século XVI) encontra-se o relato de que os
índios se divertiam jogando capoeira.
45

identidade dos grupos dominados. Por exemplo, o discurso de que os caeté


foram exterminados no século XVI, se esbarra com uma série de fatos que são
mal vistos, mal entendidos e mal interpretados. Como os caeté foram
exterminados no século XVI, se depois da segunda metade do século XIX
ainda havia no litoral, onde hoje localiza-se o município de Roteiro em Alagoas,
um aldeamento caeté. Os descendentes destes índios formam os primeiros
aglomerados humanos da região e deixam de ser reconhecidos e falados como
tais apenas no início do século XX. Observemos que este aldeamento
sobrevive em região litorânea, justamente onde a colonização é mais forte
(Anuário Estatístico de Alagoas, 1998, pg. 47).
Na Zona da Mata e no Sertão aonde a colonização chega algum tempo
depois provavelmente também houve resistência e sobrevivência de algum
modo. O dicionário da língua portuguesa mais conhecido do Brasil, Aurélio
Buarque de Holanda, afirma que cambembe é indivíduo cambaio, desajeitado,
sem importância, pobre, e que este termo é utilizado no município de Viçosa
em Alagoas com o sentido de gente humilde que mora no campo. Acontece
que existia uma subtribo dos caeté chamada caambembe42, que habitava parte
da região onde hodiernamente fica o município de Viçosa. Analisar a
conceituação do Aurélio referente ao termo cambembe, faz perceber as
associações que eram realizadas com aqueles que mantinham a identidade
indígena, preservavam a identidade caambembe. Evidentemente que esta
associação aliada à força política faz com que gradativamente as pessoas, que
até podiam ser maioria, evitem ser percebidas com uma identidade indígena
que se vincularia a elementos negativos.
Entretanto, no cuscuz, na pipoca, no maracatu, no culto a Janaína
mesclado com Iemanjá, no hábito de tomar banho todos os dias, estamos
impregnados e miscigenados com os grupos indígenas que habitavam o Brasil.
Fala-se constantemente em extermínio dos povos indígenas por meio de
violência armada e pestes trazidas pelos europeus, mas pouco se fala do
desaparecimento dos povos indígenas pelo fato destes serem introduzidos a
comunhão nacional. Ou seja, todos sabem e conhecem a política

42
Foi suprimido apenas um fonema da palavra primitiva que nomeava a tribo. Variação natural considerando a
influência da língua portuguesa que também tira o segundo “a” da palavra caapora e de outros termos como
caapoeira e caapim.
46

assimilacionista, mas parecem fechar os olhos para as suas conseqüências.


Nenhum historiador sério nega a política assimilacionista praticada pelo
processo de formação da nação, todavia, muitos parecem ofuscados ou
atônitos para os efeitos deste processo.
Existem inúmeras evidências deste processo assimilacionista, bem
como, do peso da expressão indígena na constituição da nação. Por exemplo,
até a segunda metade do século XVIII a língua praticada pelos jesuítas e falada
em praticamente todo domínio português era indígena, ou melhor, uma língua
de estrutura indígena, pois foi formatada pelos jesuítas a partir dos diferentes
dialetos do tronco lingüístico tupi43. Apenas quando o Marques de Pombal
(Sebastião José de Carvalho e Melo - Ministro de Negócios Estrangeiros de
Portugal) percebe que o Tratado de Madri irá se sobrepor ao de Tordesilhas é
que ele proibiu o tupi44 e expulsou os jesuítas45, a fim de consolidar a expansão
portuguesa por meio da língua e diminuição da representação indígena.
Entretanto, a análise da história desta forma pode aproximar o estudioso
ao personagem fictício Policarpo Quaresma46, que é ridicularizado pela
imprensa e colegas de repartição por querer trabalhar um nacionalismo
exagerado, tentando inclusive fazer com que a nação volte a falar tupi. Mas, se
for dada a devida atenção a ironia presente na obra, não se torna difícil
constatar que pelo exagero e associação ao ridículo se ofusca mais uma vez a
presença da expressão indígena na nação (biológica e culturalmente).
Diante dos fatos, natural então que se questione a partir de que
momento específico ou momentos a expressão portuguesa, ou melhor,
eurocêntrica, suplanta a nativa?

43 Alguns estudiosos da área, como Baptista Caetano d’ A. Nogueira (séc. XIX), defendem que o tupi ou língua geral
não foi criado pelos jesuítas. Conforme esses estudiosos, devido à semelhança entre os diversos dialetos do tronco
tupi não ficava difícil o entendimento entre as diversas tribos com linguagem semelhante.
44 Foi proibido em 1758, mas sabemos que essa proibição vigora apenas na linguagem de uso oficial, pois ainda

encontramos em regiões isoladas do país pessoas que fazem uso desta língua indígena. No interior do país o
português sofre forte influência da herança das línguas indígenas até hoje.
45 Expulsos em 1760.
46 Triste Fim de Policarpo Quaresma é um romance de Afonso Henrique de Lima Barreto, foi publicado pela primeira

vez entre Agosto e Outubro de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro.
47

3.3 – A Família Real e o Estado Brasileiro como o Conhecemos

Uma colônia de exploração possui profundas diferenças de uma colônia


de povoação. O Brasil indiscutivelmente escreve sua história como uma colônia
de exploração para alimentar a metrópole portuguesa. Numa colônia de
exploração, é muito pouco comum a migração de famílias já compostas para a
terra a ser explorada. Muito mais regular e natural é a vinda de homens que
formam famílias e se mesclam com mulheres nativas da região a ser
explorada. Acredito que este ponto já está bastante claro nesta obra e exaurido
na discussão da história do Brasil por muitos outros historiadores. Portanto, é
possível argumentar, sem grande contestação, que são muito poucos os
brasileiros que no período colonial não estão mergulhados na atmosfera
indígena de algum modo.
Para entender o que representa esta afirmação supracitada é preciso
observar a atualidade. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) liderada pelo geneticista Sérgio Danilo Pena chega à
conclusão, após analisar o (ácido desoxido ribonucléico) DNA da população
brasileira por regiões, durante dois anos47, que 60% da população branca
(exclua-se daí morenos, caboclos, negros, indígenas, etc) possuem
ascendência indígena ou africana. Ocorrendo que o percentual de
ancestralidade indígena é bem maior que africano. Aproximadamente quarenta
e cinco milhões de brasileiros da população branca têm antepassados
indígenas. A pesquisa detectou ainda que a maioria dos antepassados
indígenas são maternos.
Ora! Se na atualidade, após a vinda da corte portuguesa para cá, o
Brasil possui tanta mescla indígena, o que era o Brasil antes da chegada da
família real?
O Brasil era uma terra de caboclos que tentava massacrar outros
caboclos, escravizar e sufocar revoltas de origem indígena e negra africana.
Não era Brasil, era Pindorama. Aliás, Pindorama em tupi significa pátria das
palmeiras, qualquer semelhança com a denominação de Palmares pode ser
apenas coincidência. Levanto essa questão enquanto possibilidade apenas
porque como já destacava em outro momento a história nos foi contada por um
47
Os dados que apresentamos aqui são de 2004.
48

determinado segmento que agora é possível perceber que contou da forma que
melhor lhe parecia.
Um grande salto na mudança de panorama na cosmologia cultural
brasileira ocorre na segunda metade do século XVIII com os projetos de
expansão dos domínios portugueses do estadista Sebastião José de Carvalho
e Melo (1699-1782), conhecido na história como o Marques de Pombal. Após o
Tratado de Madri, em 1750, estoura a guerra guaranítica, os indígenas
apoiados por jesuítas se opõem ao tratado. Os portugueses vencem e os
jesuítas, capazes de organizar os indígenas são expulsos do Brasil por ordem
do Marquês de Pombal. Esse é o primeiro passo mais severo para estabelecer
características eurocêntricas à colônia portuguesa. Entretanto, a expulsão dos
jesuítas que dificultou parte da organização indígena, junto à proibição do tupi e
outras expressões tipicamente indígenas, não seria suficiente para fazer do
Brasil o país da América Latina com mais fortes características européias.
Devemos entender que os tratados firmados após a União Ibérica48, facilitaram
a expansão dos domínios portugueses, mas para isso era necessário que estes
domínios fossem revestidos com algum caráter português, mesmo que forçado
ou falseado. Justamente por isso os elementos culturais portugueses se fazem
mais presentes. Todavia, o fato que realmente consolida a estrutura cultural
eurocêntrica no país é a vinda da família real portuguesa para o Brasil.
É preciso imaginar uma colônia de exploração, com uma estrutura
rudimentar, pequenos aglomerados humanos cheios de caboclos, engenhos de
cana-de-açúcar com grande quantidade de escravos, uma quantidade imensa
de matas virgens e pouquíssimas cidades com estrutura européia (adaptada à
nova realidade americana). Visualizar tudo isso e a chegada de uma corte
imensa, com toda a nobreza, respectivos administradores e auxiliares. São as
cabeças pensantes e administrativas de uma nação chegando de maneira
organizada e em grande quantidade numa nova terra.
Quais as primeiras medidas que estes donos da nova terra terão?
Medidas que garantam a reprodução e perpetuação do modelo europeu,
evidente. Ocorre uma tentativa de transplantar o modo de pensar, administrar,
governar e tudo mais dos portugueses para cá.

48
Período de 60 anos compreendido entre 1580 e 1640, com a Dinastia Filipina, Portugal e Espanha passaram a
ser regidas por um único monarca.
49

Quando no início do século XIX tropas napoleônicas, sob o comando do


general Junot, invadem Portugal, a Família Real juntamente com toda a
nobreza faz do Brasil sua nova morada. Portanto, o Brasil deverá sofrer
reformas para comportar seus novos e “ilustres” moradores. O Brasil agora terá
que ter a cara de Portugal. Começa-se então o trabalho de mudança e o
primeiro é a abertura de portos para comunicação com nações amigas. Cria-se
a Imprensa Régia, publicando o primeiro jornal do Brasil: Gazeta do Rio de
Janeiro. Algum tempo depois a realeza estabelecida no Brasil funda as
instituições de saber que, conforme Schwarcz (1993) tinham a intenção de
reproduzir a perspectiva européia de mundo.
Sem entrar em detalhes, é interessante apreciar o fato da estrutura
portuguesa organizar os portos e conseqüentemente quem (e o que) entra e
quem (e o que) sai do país. Ser a responsável pela imprensa e, portanto, dos
primeiros mecanismos de difusão ideológicos, além da igreja, sua aliada. E
estruturar os primeiros centros de saber como as Faculdades de Medicina e
Direito, sem falar do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Inevitavelmente,
dentro desta dinâmica, a política no Brasil passaria a ter um caráter
eurocêntrico, bem como a forma de perceber e interpretar a realidade.
Não se fala ainda de um Estado-nação como se entende hoje, afinal
esta idéia ainda não havia se consolidado. As condições para o modelo de
Estado-nação começavam a aparecer na Europa. Entretanto, a organização de
Estado aqui ainda não seguia este modelo. Tendíamos a funcionar como uma
espécie de reino organizado a partir de feudos (os engenhos). Tínhamos um
caráter agrícola e não é necessário frisar que os trabalhadores agrícolas eram
negros, indígenas e mestiços. Mesmo a região das Minas com a exploração de
ouro e pedras preciosas, não fugia muito a esse contexto.
Esse detalhe da organização de Estado é muito importante para se
entender à noção de identidade do povo. Não é possível imaginar que no início
e meados do século XIX as pessoas tivessem a noção de identidade coletiva
enquanto cidadãos de um Estado-nação. A nação, ou melhor, a organização
social do Brasil era para um grupo étnico específico e restrito. Por essa razão
esse grupo tenta reproduzir apenas o seu modo de ser nas instituições de
saber e nos demais meios de difusão ideológica.
50

Na verdade, neste período, há um espaço territorial em que a identidade


das pessoas não é definida pelo espaço geográfico que nascem e habitam.
Nascer sob os domínios portugueses ou de qualquer outro império não significa
ser português. Assim dentro deste espaço territorial há diversas e diferentes
identidades. As políticas públicas definiam muito bem quem era o público. A
população como um todo não possuía direito estatal. Escravo é escravo, índio
é selvagem e o povo é outra história. Negros se quiserem algo devem se
organizar como negros, índios da mesma forma, pois o estado dos outros (na
verdade dos europeus e seus descendentes), já está organizado.
Entretanto, a partir da segunda metade do século XIX o mundo começa
a se configurar de um modo completamente diferente. Surge a concepção de
Estado-nação. Com esta nova concepção aparecendo na Europa, as pessoas
passam a ter uma nova noção de organização social. A identidade de um povo
passa a ser definida, na maioria dos casos, pelo espaço territorial. Surgem os
direitos sociais e trabalhistas. A idéia de pátria agora não é mais configurada
apenas pela língua ou pela origem, a noção de república se re-configura.
Esta nova dinâmica mundial gera impacto no Brasil, afinal agora temos
um sistema de organização que gera possibilidades de todos que habitam um
determinado espaço territorial passarem a ter direitos sociais (ou pelo menos
acreditarem que possuem). Todos, negros, índios, mamelucos, cafuzos e até
os brancos que nunca deixaram de ter. Certamente isto geraria um tremendo
impacto num país agrícola, com sistema escravocrata e com organização
social diferenciado em partes do europeu.
A partir desta perspectiva é possível entender a constituição da
identidade do brasileiro. Munanga (1996) afirma que existem três momentos49
de profunda reflexão da identidade nacional. O primeiro momento é com a
Abolição da Escravatura (1888), visto que a partir deste momento surge um
grande contingente populacional livre compartilhando com um grupo étnico
específico e dominante o mesmo espaço territorial. O segundo momento ocorre
com a Proclamação da República (1889), em que a ruptura com o governo
imperial de caráter português, faz repensar o que é o público, o que é o povo

49 Embora possa parecer importante, a Proclamação da Independência não toma a mesma importância para a
identidade do brasileiro, pois a Independência não tomou na época a dimensão que parece ter tomado hoje. Na
época ela não passou de uma negociata para perpetuar a Dinastia de Bragança.
51

brasileiro e como se define este povo, para que com isso seja possível pensar
o público. O terceiro e último momento, que é o mais significante até os dias
atuais, foi à política de Getúlio Vargas, que assume o poder de forma provisória
em 1930 e perdura quinze anos, exercendo uma política de construção da
identidade nacional.
Pode parecer estranho não ser destacado neste momento do trabalho as
constituições que foram promulgadas durante estes períodos e o impacto das
mesmas. Entretanto, isto ocorre porque tento destacar um outro detalhe que, a
meu ver, tem maior importância. Tento, na realidade, evidenciar como desde a
chegada da família real temos a montagem de um Estado com moldes
europeus e desprendidos dos anseios da população maior. Também tento
destacar como a abertura da imprensa e das instituições de saber são
administradas por uma concepção de mundo distinta da atmosfera nativa e
indígena que imperava antes. Imperava mesmo que fosse de forma subjetiva,
pois os seios familiares e a dinâmica dos costumes não podiam fugir a este
processo dado a natureza da constituição das populações no Brasil. A partir do
estabelecimento das instituições de saber, reproduzindo a cosmovisão
européia, validando quem é douto e quem não é, tem-se um processo que
ganha vida própria para definir as bases culturais das elites dominantes do
Brasil.
Existe aqui um cálculo estratégico interessante na organização do poder
nacional. Índios e negros não tinham acesso à alfabetização, mestiços quando
conseguiam acesso à educação era a custa de muita dificuldade e preconceito,
mas para fazer parte das oligarquias era preciso ter acesso ao saber (de base
eurocêntrica). Desta forma, mesmo que um índio, um negro ou um mestiço
ocupasse um cargo militar, um cargo jurídico ou qualquer outro de importância
ele o faria depois de passar por um processo formativo cunhado e forjado com
fogo e material europeu. Além disso, seria uma pequena minoria que
alcançariam estes postos de forma que a cosmovisão seja ela indígena ou
africana não prevaleceria numa atmosfera massivamente européia. Daí o
distanciamento intelectual, cultural e vivencial do homem que habita as cidades
e aqueles que habitam os povoados, os arraiais, os sítios e as fazendas. Os
primeiros são considerados esclarecidos e homens futuristas, os segundos são
caipiras, matutos, caboclos, atrasados, anti-progressistas, agressivos e tímidos.
52

As construções teóricas de tais ‘homens de sciencia’, que de dentro


das instituições das quais participavam tendiam a se auto-representar
como fundamentais para as soluções e os destinos do país,
constituem, portanto, material privilegiado para a recuperação do
período. Muitas vezes radicais em suas propostas, ou vistos como
‘estrangeiros’ devido ao estranhamento que suas idéias geravam, [...]
buscaram formular, pela primeira vez, modelos globalizantes, estudos
pioneiros, na tentativa de buscar uma lógica para toda a nação. [...]
esses grupos, crescentemente ligados a atividades urbanas,
passaram a fazer do ecletismo e da leitura e interpretação de textos e
manuais positivistas, darwinistas sociais e evolucionistas sua
atividade intelectual por excelência. (Schwarcz, p. 40-41)

Esta percepção atrasada do caboclo, do caipira ou matuto se cristalizou


de tal forma que mesmo em nossos dias é possível encontrar profundos
reflexos desta estrutura, que não é contemplada pelo projeto educativo. Por
exemplo, durante a noite do dia 22 de junho de 1998, foi ao ar na Rede
Bandeirantes (Band) de Televisão, o programa chamado Documento Especial.
Este programa teve como tema do dia o caipira, e começou afirmando que
vivendo no interior do Brasil, longe das grandes cidades e insistindo em manter
vivas as tradições, vive o caipira. Por incrível que pareça o programa destacava
a origem miscigenada com índios do caipira e seu estilo peculiar de vida.
Afirmava também que muitos destes se negam a fazer uso de aparelhos
elétricos e que possuem um estilo bem singular na forma de interpretar a
realidade50. Interessante é que nisto se verifica o que fora destacado na
introdução deste capítulo, ou seja, o fato da educação não está desconectada
do contexto social maior. Em outras palavras, existe um projeto de sociedade e
a educação atua como uma ferramenta para ajustar a maquina social a
funcionar em direção aos objetivos deste projeto. Isto ocorre de tal forma que
mesmo existindo na atualidade um indivíduo com esta formatação indígena ele
não corresponde aos objetivos do projeto social maior que não contempla os
aspectos autóctones. Portanto, tenderá a ser negligenciado também no projeto
educacional.

50 É importante frisar que não é o fato de fazer uso de produtos derivados da tecnologia moderna que afasta o

homem de suas origens. Porém, é muito mais importante perceber que a maior parte destes que se negam a
abraçar tais produtos resultantes da modernidade o fazem por não terem domínio da tecnologia de produção, daí
sentem-se inseguros para fazer uso de algo que pode gerar uma dependência semelhante a um processo de
escravização.
53

De que adianta ter estudo, de que adianta ter estudo, se eu posso me


comparar, porque também eu sou doutor na minha arte popular. Eu
pego meu berimbau, o meu tambor e o meu pandeiro e me jogo neste
mundo, mas com meu jeito brasileiro. E vocês que são formados que
diz que tem educação, às vezes vocês vão ver o que eu presto
atenção. (música de capoeira).

No período colonial a educação jesuítica catequética despertava o


sentimento de pertencimento a uma sociedade excludente, por meio do
direcionamento para um projeto futuro que parecia fraternal. Com a expulsão
jesuítica o processo foi interrompido, mas ele já havia começado há séculos,
portanto para os caboclos e indígenas que já haviam entrado nesta dinâmica
só restava aguardar o que os projetos civilizatórios tinham reservado para eles.
Com a chegada da família real o objetivo do projeto de sociedade fica
claro. Este ponto é tão interessante que quando se rebusca a história do
surgimento dos municípios brasileiros, constata-se que grande parte deles
passam a ser oficializados e reconhecidos no século XIX, justamente depois do
estabelecimento da família real. Muitos historiadores podem pensar ser
desnecessário destacar este ponto, pois é evidente que apenas após a
chegada da família real é que o Brasil passa a ter caráter de reino com registro
oficial. Entretanto, não é o fato de registrar os povoados neste período que
causa indignação, mas é o fato do registro e o reconhecimento só começar
quando os representantes brancos e de origem portuguesa chegam. Nas
entrelinhas percebe-se que já havia comunidades nas regiões onde hoje são os
municípios, mas a história dos mesmos sempre começa sendo contada a partir
do feito ou da chegada das famílias Tenório, Vieira, Toledo, ou outras de
origem portuguesa. E maior indignação deveria causar quando hoje se defende
um mundo em que a história e a educação são mais críticas, mas continuam a
reproduzir a história apenas sob esta perspectiva.
Como já foi posto em outro momento, a história nos é interessante
apenas quando nos faz compreender a atualidade. Também foi posto que a
história havia sido ordenada numa determinada perspectiva que não permitia
contemplar e compreender a realidade hodierna. Pois bem, observem se
entendendo a realidade da forma que foi apresentada até aqui não fica muito
mais fácil de compreender o distanciamento do povo simples com a política,
visto que a política não era a política do povo, mas apenas de uns
54

determinados grupos. Vejamos se não fica simples compreender uma série de


revoltas populares, em que não fica claro nem era destacado seu caráter
étnico, como, por exemplo, Canudos, registrado na história como uma
sociedade em que se partilhavam os frutos do trabalho51 e que seus últimos
habitantes mortos foram um velho, um menino, um negro e um índio.
Atentemos se desta maneira não é inteligível a revolta dos cangaceiros52 contra
o Estado, e o fato dos mesmos serem protegidos pelos sertanejos.
Observando a história a partir desta perspectiva que aqui foi
apresentada é possível entender porque as expressões artísticas que tentavam
ser clássicas (reproduzir o modelo europeu) não faziam tanto sucesso como
Jackson do Pandeiro que cantava as expressões mestiças e caboclas de um
povo. Será possível entender também porque um grande sucesso na produção
cinematográfica brasileira foram às obras que apresentavam as aventuras do
caboclo/caipira Mazzaropi.
Não deve ser desconsiderado ainda da compreensão deste processo
analítico o êxodo rural, que levava grande quantidade de mestiços, negros e
caboclos para as zonas urbanas. Quem ia para as zonas urbanas não ia
tentando adaptar o urbano a seu universo de vida, mas já possuía
predisposição para adaptar seu universo de vida a concepção urbana de
mundo. Deve ser levado em consideração também que o urbano do final do
século XIX e início do século XX, mesmo diante de todo o bombardeio cultural
montado, não era alheio por completo das influências de grupos étnicos
nativos. Este ponto de discussão é tão importante que ocupava grande parte
das preocupações dos homens de ciência do século XIX e início do século XX.
Estes homens, influenciados por teorias raciológicas ultrapassadas da Europa,
afirmavam enfaticamente que as mazelas sociais do Brasil eram devidas ao
grande contingente de sangue indígena e negro presente na população, visto
que, conforme a concepção destes homens, índio e negro não podiam ser
civilizados devido sua própria natureza ser selvagem. Schwarcz, afirma que a
solução encontrada para resolver o problema do grande contingencial mestiço,
51
As formulações de Marx e Engels não exerceram nenhum tipo de influência nesta forma de organização social
que quando comparado com os sistemas de aldeamentos indígenas não possuíam grande diferença com relação à
partilha dos bens.
52 São tratados na história oficial como um grupo de assassinos que praticavam crimes a mando de fazendeiros,

entretanto eram homens mestiços que se organizaram em grupos armados depois de serem expulsos de suas
terras por grandes proprietários.
55

negro e indígena presente na população brasileira, foi inserir mais sangue


europeu. Justamente por este ponto específico ser preocupante que, conforme
Schwarcz, Munanga e muitos outros, se abre às portas do Brasil para a
imigração estrangeira. É nesta perspectiva de preocupação com as expressões
nativas e negras que deve ser entendido, por exemplo, a imigração italiana e
outras para o Brasil. Desta maneira, o êxodo rural não seria tão impactante,
visto que os principais centros urbanos já reproduziam muito bem o modelo
cultural europeu.
Consideremos ainda neste processo que a inspiração para a república
segue alguns padrões norte-americanos (EUA). A maior parte das regiões
norte-americanas, não possuíam população miscigenada com indígenas, nem
tampouco praticavam a política de assimilação de populações indígenas a
unidade nacional. Os republicanos brasileiros procuravam respostas para os
problemas sociais de nossa nação em alguns discursos norte-americanos,
assim, também assimilaram a dicotomia racial existente na maior parte dos
Estados americanos53: negros (africanos) e brancos (europeus). Sem que
percebessem que nossa realidade era diferente, pois o universo indígena era
bastante presente, passaram a polarizar as análises sociais apenas entre duas
matrizes raciais. Desta forma tentou-se estabelecer uma política alienígena a
nossa realidade para lidar com a questão indígena em nosso país. Essa
política é assimilativa, com um eixo norteador bem definido, e respondia bem a
necessidade de Estado que se tentava montar.
Sabe-se do grande contingencial indígena que havia sido assimilado ao
estilo de vida proposto pela estrutura portuguesa, mas a versão do modelo
republicano que se espelharam não possuía este problema. Pois, lidava com a
questão indígena definindo reservas territoriais. A preocupação dos EUA era
maior com a presença negra nos centros urbanos e integrados ao estilo de vida
daquele povo. Para nós havia uma situação racial trina54, pois não tínhamos
apenas a presença negra africana nos centros urbanos, tínhamos também a
presença indígena.

53 Muitointeressante para verificar esta proposta é a obra de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil.
54
Não estou negligenciando a enorme diversidade étnica dos nativos brasileiros, estou colocando aqui o termo raça
e uma situação trina, apenas para ilustrar três grandes matrizes: África, Europa e América.
56

Durante o período colonial havia larga miscigenação com os grupos


indígenas, de tal forma que praticamente todas as famílias, mesmo as de
orientação portuguesa, estavam de algum modo conectadas as expressões
indígenas. No período imperial minimizaram-se as expressões culturais
indígenas, pela montagem sistemática dos mecanismos de difusão cultural
eurocêntricos, mas mesmo assim a presença indígena marcante não podia ser
negada, de tal modo que funcionava em diversos momentos políticos como
inspiração para expressões de revoltas nacionalistas. No período republicano a
inspiração norte-americana deixava-nos com pouca luz para esta problemática
trina. Qual, pois então, seria a solução para a nossa situação?
Exaltou-se o mestiço como forma de minimizar as identidades étnicas
específicas55. Passou-se a proferir o discurso de que todo brasileiro é mestiço.
O mestiço virou símbolo nacional. Passou a fazer parte do discurso oficial a
tríade: negro, índio e branco na composição do povo brasileiro. Entretanto
parece que nossa inspiração baseada em um determinado modelo norte-
americano fez-nos cegar ou apagar do discurso à presença indígena na
composição do brasileiro.
Passaram a ter um entendimento do indígena como um ser alheio a
nossa realidade. O indígena inserido no contexto nacional, nos centros
urbanos, nos povoados não é indígena. Mestiço de branco com índio passou a
ser branco, o mestiço de negro com índio passou a ser negro. Conceberam
que indígena mesmo, só o puro sangue, aquele que ainda vive isolado nas
matas, não sabe falar o português e que mantém ao máximo o estilo pré-
cabralino de vida. Ridículo, mas é a realidade para a maioria dos brasileiros.
Depois de todo bombardeio ideológico-cultural porque passamos, depois
de sermos persuadidos a nos inserir a unidade nacional, depois de perdermos
a propriedade da terra, agora somos apagados da existência como se todos
tivéssemos morrido por guerras, pestes ou fugíssemos para nos isolar em
lugares longínquos e inacessíveis. O índio que não se pinta, ou possui
vestimentas folclóricas não é considerado índio, o mestiço de índio é um ser
sem identidade, ou que não tem espaço de se identificar com sua matriz nativa.

55
A partir desta perspectiva é possível entender melhor as obras de Gilberto Freyre.
57

Todavia, quem ratifica este raciocínio esquece de um detalhe


importante. Desde que o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) é criado, até a sua
substituição pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) perdurando até a
Constituição de 1988, toda política referente as populações indígenas era de
integração a unidade nacional. Integração a unidade nacional representa ser
brasileiro como a maioria de nós e deixar de ser índio que é um ser visto como
ultrapassado. Este processo teve um impacto tão grande que houve estados do
Nordeste reconhecidos historicamente pela presença indígena, como, por
exemplo, o Ceará, que declaravam, na década de 80 do século XX, não
possuir mais populações indígenas. Deixava-se com esse discurso de
considerar de maneira mais enfática nos projetos de educação a dinâmica
indígena.
A política de criar um novo tipo racial brasileiro (resultante da mistura),
iniciada no final do século XIX, acentuada, financiada e propagada no governo
de Getúlio Vargas, é a solução encontrada para minimizar as identificações
étnicas particulares do Brasil. Mas, esta política que é extremamente
assimilativa e desmantelava as expressões indígenas é tratada como se nunca
tivesse existido. A história brasileira é percebida sem a presença indígena nos
espaços urbanos. E ainda confinam os demais indígenas em aldeamentos.
A população passa a reconhecer como indígenas apenas aqueles que
estão confinados nas aldeias, enquanto o homem simples do povo continua a
ser o pobre, o matuto, o caipira e, às vezes, até reconhecido como caboclo,
mas que nada tem haver com a expressão indígena. Estes índios urbanos
talvez estejam numa condição pior que os que brigam por reservas, pois nem
sequer sabem o que são. Em outras palavras, são uma classe em si, sem
consciência de sua história, de onde vieram e para onde vão56.
Desde o período colonial até os dias atuais exerceu-se uma política de
minimização das expressões e da identidade indígena. Mesmo compreendendo
que muitos grupos indígenas participam ativamente da formação do contexto
social, passa-se a reconhecer como indígenas apenas os grupos isolados e
que não sofrem influências dos padrões civilizados. Como o projeto de
educação se comporta numa realidade social destas, já que a educação é uma

56Embora o marxismo não utilize o termo classe em si com essa significação, entendemos a possibilidade de
ampliação do conceito para empregarmos o mesmo aqui.
58

ferramenta de ajuste ao projeto de sociedade? Se hoje temos uma política


educativa específica para os povos indígenas, como definimos o que é e o que
não é ser indígena numa sociedade pluriétnica como essa? Será que os grupos
e os indivíduos de origem indígena que abraçaram a identidade nacional
apagaram por completo suas lembranças e origens? Será que a Constituição
de 1988 é a solução dos problemas indígenas ou, pelo menos, dos problemas
relacionados à educação? Será que a partir dela teremos uma política diferente
da assimilativa praticada até o seu surgimento? Será que esta constituição irá
apreciar a questão étnica do Brasil de um modo diferente? Será que
possibilitará um sistema educacional que veicule expressões nativas e mais
realistas com a história e formação de nosso povo? Vamos então mergulhar
profundamente no que foi montado, no Estado de Alagoas, referente à
educação escolar indígena a partir da Constituição de 1988, conhecida como
cidadã, para tentar responder as perguntas acima.
59

O PAPEL DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO NA


FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES

1.0 – Introdução

No desenrolar desta parte da dissertação trabalho a identidade como


tema central. A partir de autores diversos aprofundo a construção dos Estados-
nações e a relação dos mesmos com a estrutura identitária dos sujeitos.
Detalho ainda aspectos políticos e históricos da formação do Estado brasileiro.
A crítica exposta nesta parte do trabalho é mais um pilar necessário para
sustentação do entendimento global da análise seguinte que faço da educação
escolar indígena.
Nesta parte do trabalho fui pouco específico com relação à questão
alagoana e indígena. Entretanto, acredito que a análise macro realizada no
mesmo, facilitará o entendimento de questões mais localizadas que serão
tratadas na próxima parte do trabalho.
Um ponto delicado desta parte do trabalho são os referenciais teóricos
que utilizo. Não recorro a uma diversidade de teóricos com formação
antropológica. Utilizo-me de Hall e articulo o mesmo com uma abordagem
psicológica chamada comportamental que é bastante criticada e mal entendida
por profissionais de outras áreas.
Desde o advento da Fenomenologia e de abordagens ligadas ao
Materialismo histórico-dialético, a Psicologia, em certos segmentos, tende a ser
acusada como mantenedora de posturas tradicionais ortodoxas que pouco
contribuíram com as reflexões críticas57. Este entendimento, em partes, é
resultado de uma postura contemporânea que procura valorizar teóricos de
seus próprios ciclos.
A reflexão que apresento a seguir toma por base uma série de
pressupostos da teoria comportamental. Porém, antes de ter o objetivo de
despertar animosidade e predisposição a rejeição, entendo que as teorias
possuem a finalidade de responder as questões a que nos propomos, e não
satisfazer todas as inquietações comuns aos espíritos pesquisadores.

57Cavalcante (2002) em sua Tese de Doutorado, apoiada em diversos teóricos, aponta a libertação da Educação e
de outras áreas, tais como a Análise do Discurso, de psicologismos.
60

O Multiculturalismo não foi trabalhado pelo fato do mesmo possuir uma


proposta finalista. Ou seja, é um modelo de organização que prospecta uma
alternativa de convivência dentro dos Estados-nações pluriétnicos. Entretanto,
independente da proposta das diferentes linhas do Multiculturalismo, como
pretendo realizar uma análise dos processos históricos na relação com a
educação, de modo que seja possível repensar os fatos sob novas
perspectivas sem necessariamente fazer prospecções futuras das melhores
alternativas para solucionar o problema, o Multiculturalismo não aparece
enquanto proposta. Independente de sua versão, o Multiculturalismo, nunca
conseguiu se estabelecer como uma realidade efetiva em nosso contexto
social, pois a política de assimilação adotada aqui era avessa ao mesmo. Por
essa razão não há espaço para contemplá-lo neste momento.
Enquanto a política de assimilação pretende minimizar as diferenças
oferecendo um modelo geral de identificação, o Multiculturalismo propõe
valorizar e respeitar a diversidade. Entretanto, a diversidade cultural e étnica
sempre foi vista na sociedade brasileira como uma ameaça para a identidade
da nação. Embora defensores de representação mundial do Multiculturalismo,
como Wieviorka e Gruzinski exponham fatores positivos de inovação no
hibridismo e na maleabilidade das culturas, pensar de forma multicultural
sempre passou por profundas dificuldades em nossa realidade.
Mesmo que a Constituição de 1988 abra margem para um universo de
relações multiculturais, o cerne da proposta legal da sociedade brasileira
fundamenta-se numa visão bastante monocultural. Por essa razão, neste ponto
do trabalho tento aprofundar o raciocínio que está por trás da defesa da
construção de um modelo identitário geral e padrão.

2.0 – O que é Identidade?

Identidade é tema de interesse em diversas áreas: sociologia, psicologia,


antropologia, política, teologia, etc. Cada uma destas ciências tenta abordar o
conceito de identidade de diferentes formas. Isto pode levar ao raciocínio
errado de que identidade é um objeto de estudo bastante sólido e palpável. Na
realidade, a própria concepção de identidade é extremamente variável e
61

instável. Portanto, é necessário ter claro que enquanto o conceito de identidade


surge para compreender determinados aspectos comportamentais da
expressão humana, este mesmo conceito é muito complexo e variável assim
como é a compreensão e expressão dos sujeitos.
Hall (2005, p.8) defende que o conceito de identidade é
demasiadamente complexo e pouco compreendido pela ciência social, de tal
forma que não se pode fundamentar alegações conclusivas sobre fenômenos
que se alicercem no mesmo. Hall afirma ainda que existam diferentes formas
de se compreender identidade a depender da postura filosófica que se adota.
Para ilustrar esta afirmativa, Hall destaca três modelos básicos de identidade:
1) a identidade do sujeito iluminista, que forma uma continuidade desde o
nascimento, acompanhando todo o desenvolvimento do sujeito (o centro
essencial do eu seria a identidade); 2) a identidade do sujeito sociológico, em
que existe uma profunda interação entre o eu e a sociedade, mas que não
negaria o núcleo do sujeito chamado de “eu-real”; 3) e a identidade do sujeito
pós-moderno que afirma a possibilidade de diversas e diferentes identidades
em um mesmo sujeito, muitas das quais poderiam ser contraditórias.
Embora haja uma infinidade de formas identitárias que se agrupam ou
são compreendidas em categorias e modelos diferentes, é possível observar
que a necessidade da produção de uma (ou de várias) identidade(s) é uma
constante na história da humanidade e de cada ser humano em particular.
Desde tempos remotos por meio de sistemas religiosos diversos a
identidade humana é objeto central de reflexão. Por exemplo, a filosofia oriental
fundamentada no bramanismo apresenta uma reflexão em que no nosso
recôndito mais profundo somos seres que se confundem com o todo, com o
cosmos, com o absoluto.
Se esta reflexão for aprofundada será possível perceber que o fato de
ser tudo acaba gerando uma indiferenciação com o todo que aniquilaria o eu
particular. Assim é possível concluir também que a identidade para essa
corrente de pensamento será uma espécie de prisão, de revestimento ilusório e
fantasioso que o homem constrói para não se perder no todo e expressar sua
existência.
62

Contrários a esta posição, muitos filósofos e cientistas ocidentais


(LOCKE58, 1632-1704; HUME59, 1711-1776; WATSON60, 1878-1958)
chegaram a afirmar que o homem seria uma tábua rasa sobre a qual se
escreve sua história, seus padrões e conseqüentemente sua identidade.
Na atualidade, a idéia de que o homem é uma tábua rasa ou uma folha
de papel em branco na qual se inscreve tudo o que ele é, tornou-se obsoleta.
Também é considerada supersticiosa e infundada a idéia de um homem
completo e absoluto em sua profundidade.
A afirmativa de um ser completo e absoluto encontra respaldo tanto na
filosofia religiosa oriental como também em algumas correntes do pensamento
grego. Parmênides, Sócrates e Platão são exemplos de pensadores que
afirmam a existência de algo ou um lugar em que as coisas já são perfeitas
precisando apenas encontrar o caminho para atingi-las ou manifesta-las61.
Entretanto, os rumos que a ciência na pós-modernidade vem tomando
apontam para conclusões diferentes das propostas deterministas e
absolutistas, bem como, das que atribuem exclusividade a educação e a
influência social.
No pensamento pós-moderno o homem passou a ser percebido como
mais um ser no planeta que compartilha a existência simultânea com muitos
outros seres. O homem não é um ser exclusivo. Mas, para fugir desta dura
realidade formulou explicações sobrenaturais de sua própria existência. O
homem não passa de mero animal que habita o planeta junto com outras tantas
espécies. Desta forma, torna-se impossível não perceber que a natureza
humana está intimamente ligada com o todo. O homem é organismo vivo e,
como todo organismo, possui uma história inscrita em sua própria estrutura
biológica. O corpo humano, assim como o corpo de outros animais, é um
imenso estatuto histórico sobre o qual se inscreve a luta pela sobrevivência de
milhares de gerações.

58
John Locke, filósofo Inglês.
59
David Hume, filósofo escocês.
60
John Broadus Watson, psicólogo comportamentalista norte-americano.
61
O caminho encontrado por Platão para atingir o absoluto (mundo das idéias) é o do logos, da razão. Durante o
Período Patrístico defendeu-se que apenas por meio de devoção religiosa através da Igreja Católica Romana seria
possível atingir este plano superior que passa a ser identificado com o próprio Céu divino. Na atualidade, não é
difícil encontrar missionários orientais defendendo a contemplação interior como forma de alcançar todas as
respostas existenciais.
63

Neste contexto, é inegável o peso do processo evolutivo. A


compreensão sobre o processo evolutivo possibilitou um salto incrível no
conhecimento humano. Não apenas estruturas anatômicas e fisiológicas são
alteradas por meio da seleção natural, mas também determinados
comportamentos, ou melhor, padrões de respostas são selecionados
evolutivamente.
A expressão humana pela sobrevivência possui uma série de respostas
que seguem o padrão natural da espécie. Mas, também possui a possibilidade
de variabilidade e de alteridade. Sem os elementos ofertados pela cultura
torna-se impossível a sobrevivência orgânica. A estrutura orgânica e
principalmente a arquitetura cerebral humana é moldada por meio da seleção
natural não apenas para sobreviver em um ambiente natural repleto de
intempéries, mas também para se sobressair em um ambiente social cheio de
conflitos, disputas, solidariedade, aceitação, repúdio, etc. (CALEGARO, 2001)
Afirmar o homem como um ser determinado exclusivamente pelo
ambiente social e cultural no qual ele se insere é semelhante a ratificar a idéia
de tábua rasa. Do mesmo modo, entender o ser humano como um ser
resultante unicamente das estruturas biológicas seria simplório e descabido,
além de parecer determinístico. Por essa razão a postura que mais tem
ganhado força na atualidade afirma ser o homem um organismo vivo, com uma
plasticidade imensa (adquirida evolutivamente), que tenta sobreviver em
variados ambientes sociais que a depender dos momentos históricos reforçam
algumas expressões modificando padrões de respostas. Este fenômeno recebe
o nome de aprendizagem. Neste raciocínio, aprender é possuir a capacidade
de apresentar um conjunto de respostas adequadas a uma dada situação
(momento histórico e geográfico).
Em que entra a identidade nesta história? Entra como resultado desta
dinâmica. A identidade ou as identidades seriam respostas construídas pela
estrutura orgânica humana para sobreviver nos diferentes contextos sócio-
ambientais e experienciar os mesmos.
Na exposição de Hall, historicamente a concepção de identidade muda a
depender de uma série de fatores. Por exemplo, a concepção do sujeito
iluminista inspira profundamente as primeiras versões da concepção de
personalidade, de tal forma que a psicanálise freudiana formula um sistema
64

que se estrutura até os cinco ou seis anos de idade (com a fase fálica)
entrando em um período de latência até a puberdade. Para a psicanálise o
resto da vida do sujeito não causa mudanças estruturais ela apenas dá
continuidade ao sistema montado na infância (FREUD, 1972, p.177-250).
Todavia, modelos explicativos surgiram na psicologia com o intuito de
questionar a proposta psicanalítica, outros, porém, eram diferentes em
conseqüência de sua filiação filosófica.
Entretanto, a partir de Hall, embora a leitura do que seja identidade
possa mudar e suas explicações detalhadas e aprofundadas possam divergir
conforme o contexto histórico e filiação filosófica em que o estudioso se
encontra, entendo a identidade ou as identidades como tema recorrente
sempre ligado à expressão e sobrevivência do homem e de grupos na
coletividade. Desta forma, entendo ainda que se num determinado momento,
histórico ou geográfico, a concepção de homem é estática e imutável tender-
se-á a realizar e compreender a identidade como um elemento estático e
imutável também. Do mesmo modo, se num outro momento concebe-se o
homem como resultado exclusivo das interações sociais, esta concepção irá
interferir no entendimento do modelo de identidade correspondente. Todavia, é
necessário reafirmar que mesmo havendo divergências sobre o entendimento
da concepção de identidade, esta sempre aparece como um elemento na
afirmação do homem ou de um grupo de homens diante de outros homens.
Neste sentido, ela pode reivindicar semelhança ou diferenciação de terceiros.
Pode ser múltipla, diversificada e contraditória ou ser uma constante busca de
coerência que no fundo não nega a possibilidade de haver contradições. Ela
sempre é construída coletivamente com profunda articulação com a estrutura
biológica, mas pode ser direcionada para a coletividade ou apenas para a
diferenciação individualista a depender das representações que existem no
ambiente social.
Como nenhuma concepção filosófica da atualidade admite o humano
como estático e imutável deve-se concordar com Hall e seu modelo de
identidade pós-moderna. Para Hall não somos os mesmos sempre. A depender
do lugar e do momento em que o homem se encontra, muda-se a opinião sobre
ele mesmo, do mesmo modo que se assumem atitudes e comportamentos
65

diferentes. As atitudes, comportamentos e opiniões sobre a própria expressão


particular podem, inclusive, ser contraditórias.
A leitura do renomado psicólogo F. B. Skinner (1904-1990), neste
contexto, corrobora ainda mais as elaborações de Hall, visto que, durante os
longos anos de pesquisa, Skinner chegou à conclusão que o homem que é
organismo vivo adquire diversos repertórios comportamentais. Conforme
Skinner (1953), a depender da situação e do ambiente em que o sujeito se
encontra, este é levado a apresentar uma série de comportamentos que podem
ser completamente diferentes e até mesmo divergentes dos que poderiam ser
apresentados numa outra situação a depender das circunstâncias. A
possibilidade da manifestação de conduta e opinião contraditória se explica,
segundo Skinner, devido o sujeito aprender respostas bem sucedidas
diversificadas em ambientes físicos e sociais também diferentes. Em outras
palavras, o organismo programado para sobreviver amplia um leque de
comportamentos modelando e especializando alguns ao mesmo tempo em que
reduz outros que interpreta não serem úteis em determinadas condições (como
as condições são múltiplas o leque de comportamento também se altera de
maneira dinâmica a depender das circunstâncias).
Desta forma, torna-se infinito a possibilidade de identidades que podem
surgir em um único sujeito social. Além das identidades nacionais é possível ter
uma infinidade de outras formas identitárias, tais como religiosas, raciais,
culturais, etc.

3.0 – As Identidades Nacionais

O mundo contemporâneo possui uma divisão territorial que também


corresponde a poderes políticos e administrativos autônomos e independentes.
Embora seja possível questionar a idéia de autonomia e independência de
cada um dos territórios em que o mundo está dividido, em linhas gerais, esta é
a definição conceitual dos Estados-nações. Em outras palavras, os países
existentes na atualidade são organizações chamadas Estados-nações que
teoricamente possuem poder político e administrativo livre de subordinação
estrangeira, constituindo o que chamam: soberania nacional.
66

O homem contemporâneo possui no mínimo uma identidade nacional


que lhe confere direitos políticos e uma liberdade condicionada a Carta Magna
da nação a que pertence. Por essa razão, antes de se discutir qualquer forma
ou modelo identitário, deve-se ter em mente a dinâmica política e relacional do
mundo contemporâneo. É também por esse motivo que os livros atuais que
falam de identidade pós-moderna colocam em destaque primeiramente as
identidades nacionais e a crise por que passa o modelo de Estados-nações no
mundo capitalista.
Parece fato comum para a maioria das pessoas que elas se identifiquem
com o Estado-nação a que pertencem. Na verdade, para a maioria, além de ser
fato comum, parece também inquestionável a forma como este modelo é
montado e as razões que levam o sujeito a abraçar uma identidade nacional. A
maior parte das pessoas imagina inclusive que este modo de se identificar
sempre existiu e que o modelo de Estado-nação que existe hoje é bastante
antigo remontando muitas vezes aos primórdios da humanidade. Poucos
entendem que a organização mundial atual se deve a dinâmica política e
econômica que o mundo está mergulhado.
A concepção de Estado atual é relativamente recente datada do século
XIX. Conforme Hobshawm (1990), o termo nação começa a aparecer no
contexto político a partir de 1830. Segundo o mesmo autor, o termo pode ser
entendido em três etapas que correspondem ao seu desenvolvimento: 1)
estava ligado a terra, a idéia de território (produzida pela economia liberal); 2)
“formou-se a idéia nacional” vinculado a língua, religião ou raça (estimulada
pelos intelectuais, pequeno-burgueses); 3) Surgiu a consciência nacional
enfatizada pelo Estado e os partidos políticos.
O modelo de Estado-nação, embora possa parecer contraditório, provém
do avanço da economia liberal que necessitava de ambientes estáveis e
confiáveis para perpetuação de seus contratos financeiros e mercados
consumidores. As alterações que o modelo de Estado-nação sofreu, bem como
as mudanças que continuam a ocorrer na atualidade, são resultantes dos
processos político-econômicos. Portanto, deve-se entender a forma como os
sujeitos sociais se identificam na atualidade, também, como um reflexo da
realidade político-econômico de seu tempo.
67

Primitivamente o termo nação provém do substantivo latino natio, que


toma a representação de parto, era empregado principalmente para fazer
referência ao nascimento de animais numa mesma cria. Conforme Ávila (1978,
p.407), por extensão, passou a significar indivíduos de uma mesma mãe, e
ainda no latim passou a representar indivíduos provenientes de uma mesma
localidade ou origem. A Igreja Romana, no período de transição da Antiguidade
para a Idade Média, utilizou o termo nação como representativo de povos
pagãos em oposição ao termo povo de Deus. Povo representava um grupo de
pessoas com um regimento político e jurídico, não obrigatoriamente
representava povos de uma mesma origem, etnia ou cultura, significava
apenas adesão a um determinado sistema político-ideológico e jurídico. Nação,
por outro lado, tomava uma representação biológica fazendo menção a
indivíduos de uma mesma origem sem necessariamente possuir um estatuto
civil e político.
Neste sentido primitivo, a identificação nacional (relacionada à nação)
era algo que o indivíduo não podia fugir, ele estaria condicionado a esta forma
identitária por fatores intrínsecos a sua realidade existencial enquanto
condições concretas de existência. Não se pode fugir ou negar as origens
biológicas. É justamente neste sentido de nação que os portugueses faziam
referência aos grupos indígenas como nações indígenas.
Conforme Chaui (2001, p15-16), antes do surgimento da nação como
Estado-nação, havia a concepção de pátria. Pátria provém de pater palavra
latina que pode ser traduzida por pai, mas não o pai que gera filhos, antes sim
um pai definido pelo antigo direito romano. Pai neste sentido representa o
senhor absoluto, geralmente era o dono de um determinado território no qual
possuía o direito de decidir sobre a vida e a morte de todos os outros que ali
estavam. Esta concepção vai além da definição de clã. Um clã é montado, na
maioria dos casos, por um macho forte que possui muitos filhos, comumente
com mais de uma esposa, formando um grande grupo de filhos que formam
famílias (podendo resultar outros clãs), que ficam ligadas pela figura do
ancestral comum, quase sempre vivo. Uma tribo por sua vez é formada pela
reunião de vários clãs. Nas tribos, em muitos casos conhecidos, é possível
remontar um ancestral comum muito antigo que é anterior aos diversos clãs
68

que existem dentro de uma tribo, desta maneira, a tribo geralmente também é
formada por indivíduos com laços consangüíneos.
A noção de pátria proveniente do direito romano transcende esta
concepção de clã e tribo porque incorpora na sua estrutura indivíduos que não
possuem laços de consangüinidade. Ou seja, existiam os patrícios que eram os
filhos do pater, mas existiam também os escravos que geralmente são
prisioneiros de guerra ou pessoas que tinham dívidas e perdiam a liberdade.
Além destes, membros de outras clãs se subordinavam a um determinado
domínio de um pater, possuindo um valor secundário aos dos patrícios. Esta
concepção de pátria perdura por longas datas sendo o senhor feudal uma
espécie de pater mais recente. O Senado romano era formado pelos donos da
terra (patrícios) e o povo era representado pelo tribuno da plebe. O plebeu era
um homem livre, mas este título de liberdade não o desobriga da subordinação
ao Senado e ao Estatuto jurídico que é determinado pelo próprio Senado. O
Senado, entretanto, não passa de um conselho (reunião para decisões) de
patrícios com apenas um representante plebeu o que significa uma
subordinação indireta dos plebeus aos patrícios.
Segundo Chaui a Igreja Romana substitui os pais da terra por Deus-Pai
demarcando uma diferença da Roma pagã. Agora diante de Deus todos são
um só povo, o povo de Deus, em oposição as nações pagãs. Todavia, parece
que este discurso religioso omitia a perpetuação da estrutura do direito romano
que continuou durante todo o feudalismo medieval. Por exemplo, a nobreza e a
realeza eram títulos estabelecidos entre os senhores feudais que eram os
donos da terra com poderes equivalentes ao do pater romano. Um reino era a
propriedade de um rei que partilhava a posse do mesmo com outros senhores
chamados de nobres ou patrícios. Um reino podia ser ainda definido pela
reunião de um grupo de patrícios que deliberava um entre os seus para
administrar questões mais genéricas de segurança, unidade do território e
propriedade privada.
A identidade das pessoas das regiões em que esta estrutura
administrativa estava estabelecida neste período era determinada por
diferentes razões. Se o indivíduo possuía laços consangüíneos com os donos
da terra ele era visto e se fazia representar com poderes a altura. Porém, se
ele não fosse membro desta família ele deveria mostrar seu valor ou sua
69

importância no ofício que executava, na qualidade que possuía ou nos feitos


que realizara, tornando-se estes ofícios e qualidades sinônimos do próprio
sujeito. Assim era comum encontrar pessoas com sobrenomes de ferreiros,
carpinteiros, alfaiates e ainda outros com sobrenomes de piedade, valentia,
bondade, etc. Quando os indivíduos eram escravos de um determinado senhor
eles recebiam um primeiro nome de batismo e um sobrenome que indicava de
quem ele era propriedade. Era muito comum ainda neste contexto,
principalmente entre os que não estavam ligados a uma família de poder, a
identificação ou a auto-identificação com a região, cidade ou povoado de
origem, desta forma, também era comum encontrar sobrenomes que faziam
referência de lugares da época. (AZEVEDO, 1999)
O nome, o comportamento e a idéia que um indivíduo assumia de si
mesmo eram condicionados por fatores situacionais que indicavam a classe
social, o poder e a representação que uma pessoa possuía nesta estrutura de
sociedade. A identidade é a forma pela qual o organismo vivo faz se
representar diante de outros para melhor favorecer a sobrevivência. Portanto,
não é difícil entender que o indivíduo que não tinha a estrutura comprometida
por baixa auto-estima, ou seja, uma percepção negativa da representação de si
mesmo, tentava dentro das condições que lhe era possível enaltecer e
fortalecer sua identidade. Pois, ao enaltecer sua identidade ele fortalecia e
enaltecia a si mesmo enquanto ser.
Quando o feudalismo começa a ser substituído pela burguesia
determinadas formas identitárias sofreram alterações profundas. É justamente
neste contexto que surge o novo modelo de Estado, que vai se configurando no
atual Estado-nação, modelo pelo qual se define politicamente os países da
atualidade.
Se dentro desta análise deixar de considerar os subversivos a ordem
posta cometerei um erro crasso. Enquanto durou o Império Romano e o
sistema feudal, sempre existiram aqueles que se posicionaram e se
organizaram de modo distinto ao estabelecido. Negar estes indivíduos é
acreditar numa história linear e homogênea. Tal crença é incompatível com a
natureza de nosso trabalho.
Mesmo na Europa com a expansão do Império Romano e
posteriormente com o discurso civilizatório da religiosidade cristã, muitos
70

grupos humanos permaneciam ligados a estruturas tribais, mantendo vivas as


idéias de clãs e outros sistemas primitivos de organização humana. (Cf.
BURNS, 1989, p.666)
Em outras palavras, desde o surgimento da organização social política
que transcende os laços de consangüinidade e ancestralidade até os modelos
de organizações sociais da atualidade observa-se como fenômeno ressurgente
e recorrente o aparecimento de grupos humanos que tentam se organizar e
unificar a partir da lembrança de um antepassado ou laços de sangue. Essa
proposta de unidade forma o que se chama tribo ou um povo específico com
uma concepção diferente da proposta por muitas organizações imperiais,
monárquicas, republicanas, etc. A sobrevivência desta forma identificatória é
que vai amparar em partes as primeiras versões de Estado-nações.
Historicamente falando, a identidade sempre foi um grande problema.
Todos os grandes impérios para serem absolutos e estáveis precisavam
aniquilar formas de identificação e expressões particulares e singulares. Todos
os impérios ou governos centralizados se deparavam com o problema da
possibilidade de organização diferenciada da proposta pelo centro
administrativo.
Quando no século III a.C. os Tsin fizeram a união da China, o primeiro
imperador realizou esta façanha a custa do massacre de muitas expressões
locais e regionais a fim de impor uma forma identitária maior que se
sobrepusesse as menores e anteriores. Para tanto o primeiro imperador chinês
tentou destruir os diversos sistemas de escrita ideográfica para estabelecer
apenas um, destruiu diversos reinos e tribos para estabelecer um governo
geral, erigiu monumentos gigantescos a fim de fazer com que todos
reconhecessem um novo e grande poder que ultrapassava todos os outros.
Na Mesopotâmia, centro originário do mundo civilizado, a muitos séculos
antes de cristo encontramos problemas administrativos devido a diversidade de
tribos, línguas e religiões existentes que produziam identidades distintas. Os
Persas massacravam os subjugados e impunham o seu sistema ideológico
para impedir insubordinações em seus domínios. Os gregos quando expandem
seus domínios com Alexandre fundam as Alexandrias, e o grego passa a ser a
língua oficial vista como erudita nos territórios dominados. Com os romanos a
história não é diferente, os símbolos, a língua e outros elementos utilizados
71

pelos romanos estão presentes ainda hoje servindo como signos


identificatórios de muitos povos ditos latinos.
Durante a formação dos Estados-nações a identidade novamente torna-
se assunto em evidência. Afinal, o discurso da construção de uma nação maior
terá que suprimir o poder das pequenas nações e outras formas de
identificação. Burns (p.587) afirma que no ano de 1848 homens de diversas
regiões do norte e centro da Europa se reúnem em Frankfurt, no que ficou
conhecido como a Assembléia de Frankfurt, para discutir sobre a formação de
uma nação alemã. Aqueles que estavam na Assembléia imaginavam que era
possível unir nacionalismo e liberalismo, mas viam seu projeto de formar uma
grande nação ameaçado pela formação de outros sistemas identificatórios
nacionais.

Quem, perguntavam, eram os alemães? Na maioria, os delegados


defendiam a tese de que eram todos aqueles que, por motivo de
língua, cultura, ou geografia sentiam-se comprometidos com o que
ora empreendiam em Frankfurt. A nação alemã a ser constituída
deveria incluir um máximo desses ‘alemães’. [...] Os pan-germânicos
viram-se obstruídos, porém, pela relutância de outras nacionalidades
em serem incluídas em seu redil. [...] Quando as forças imperiais
esmagaram as rebeliões tcheca e húngara e quando os Junkers
prussianos deram fim ao governo polonês, os liberais viram-se
obrigados a aplaudir. Forçosamente, tinham de apoiar a supressão
das minorias étnicas; de outra forma, não haveria nenhuma nova
Alemanha.

Nesta linha de pensamento é possível entender a Igreja e qualquer outra


religião que pratica o proselitismo como um excelente instrumento de difusão
ideológico e com isso de unificação identitária. Os sistemas religiosos
proselitistas lançam a proposta de unidade de povos na figura de um profeta,
mensageiro ou do próprio transcendente, independente dos laços de
consangüinidade que os povos possuam. Maomé, por exemplo, reúne as
diversas tribos árabes que viviam dispersas no Oriente Médio com o discurso
de cumprir uma mensagem divina. As tribos árabes a partir de Maomé passam
a assumir uma identidade comum. Embora posteriormente à diversidade
comece a se tornar acentuada entre os próprios maometanos, muitas
diferenças são esquecidas sobre o nome de Alá.
A proposta cristã, anterior ao muçulmanismo, segue a mesma linha.
Com a adesão ao cristianismo todos passam a ser irmãos e ficam submetidos
72

ao projeto divino que será administrado pela Igreja. Com este argumento
durante muito tempo os papas eram verdadeiros chefes de Estados com
poderes seculares, capazes inclusive de exercer influência em outros Estados
ou Reinos, com poderes maiores que os seus governantes locais. A identidade
religiosa neste caso confundia-se com a identidade política e gerava problemas
a administração política local.
É por essa razão que quando os Estados-nações começam a se
estruturar um dos carros chefes do movimento é a diminuição do poder da
Igreja. Data deste período do surgimento dos Estados-nações as rupturas entre
Estado e Igreja. No fundo, conforme se observa, o que se esta tentando é
produzir um sistema identificatório mais unificado e ligado as bases e
concepção nacional local. Para tanto é necessário reduzir a representatividade
de instituições que se professam católicas (universais), pois estas dificultariam
a formatação de identidades regionais e com isto impediriam a centralização do
poder administrativo da nação.
Desta maneira, pode-se concluir que para a formação do que se chama
Estado-nação, não é útil um sistema universal de identificação, pois aniquila a
possibilidade de poderes estatais centralizados. Do mesmo modo é
extremamente nocivo a diversidade cultural e étnica dentro de um determinado
território, pois gera uma multiplicidade difícil de administrar. Por razões
semelhantes, argumentei no primeiro capítulo deste trabalho sobre a
dominação de povos sobre povos, afirmava que toda dominação se dá
principalmente no plano ideológico, na medida do possível apagando a
lembrança e a identidade dos dominados para que seja possível reconfigurá-
los numa nova ordem social. Na formação de um Estado-nação um ponto
fundamental de discussão é a questão da identidade, entretanto, a identidade
não é dada apenas pela natureza biológica do sujeito, ela é produzida por
diversas e diferentes formas, podendo inclusive ser múltipla em si. Muito
embora por diversos momentos históricos tenha-se a necessidade da
formatação de identidades mais homogêneas e coerentes, este fenômeno não
é perene e sofre variações a depender do momento histórico e geográfico.
A I e a II Guerra Mundial tiveram como pano de fundo questões
econômicas e étnicas. Tanto que depois da I Guerra percebeu-se como era
73

importante demarcar os territórios levando-se em consideração as identidades


culturais ali presentes. Com a II Guerra a percepção não foi diferente.
Ainda hoje existem grandes problemas no mundo ligados a questões
territoriais. Na África, por exemplo, existem problemas gigantescos devido à
demarcação de territórios que levavam em consideração os interesses dos
exploradores, mas que desconsideravam as estruturas e organizações étnicas
ali presentes.

4.0 – O Estado-Nação Brasil

Os registros de diferentes autores afirmam a existência de uma


variedade imensa de grupos indígenas existentes no território brasileiro quando
da chegada dos portugueses. Rodrigues (1994) afirma que havia mais de 1.200
línguas no período da chegada dos portugueses. Este número lingüístico
proporciona uma percepção da quantidade de nações indígenas que aqui
viviam. Desta diversidade é possível entender também como o território
brasileiro não podia ser compreendido como uma unidade, pois cada região
específica era habitada por inúmeros grupos étnicos distintos.
No litoral durante a chegada dos portugueses eram predominantes os
grupos de tronco lingüístico tupi. Entretanto imaginar que estes grupos
possuíam o mesmo padrão cultural equivale a perceber argentinos, franceses,
italianos e portugueses como idênticos apenas por falarem uma língua de
origem latina. No litoral da Paraíba tínhamos dentre outros os Potiguara; em
Pernambuco e Alagoas destacavam-se os Caeté e Tabajara; na Bahia os
Tupiniquim e os Tupinambá; mais ao sul até onde fica o Rio de Janeiro
predominavam os Tamoio e em São Paulo tínhamos um grupo predominante
que se identificava apenas como Tupi. No Sul do país até o Paraguai havia
uma quantidade enorme de grupos Guarani. A Oeste e Norte do país se
encontrava mais uma infinidade de grupos do tronco lingüístico macro-jê, pano,
aruaque, yanomami e muitos outros. Essa infinidade de grupos étnicos e
lingüísticos distintos não é um problema apenas para a formação de um
Estado-nação, é um problema para qualquer sistema administrativo
centralizado.
74

Embora, conforme Pereira, inicialmente as capitanias tenham sido


divididas levando em consideração os grandes grupos indígenas do litoral
brasileiro, o projeto português rapidamente tenta minimizar as diferenças. Um
dos primeiros projetos é a criação de uma língua geral, daí o surgimento do tupi
compilado pelos jesuítas a partir dos radicais dos diversos dialetos existentes
no litoral. O tupi, segundo Edelweiss (1961), não é língua de nenhuma tribo,
mas uma uniformização léxica racional de vários dialetos, utilizado e ensinado
pelos jesuítas na catequese indígena.
O professor Bueno afirma na introdução de seu livro que:
Foram os Jesuítas que a impuseram, em seus aldeamentos,
unificando, portanto, as diferenças existentes entre os fatores de cada
tribo, criando o grande instrumento de comunicação, quer entre várias
tribos aldeadas, quer entre missionários e missionados, quer ainda,
no decorrer do tempo, entre portugueses e nativos. Criou-se então
verdadeira língua geral que, pela costa atlântica, desceu do norte para
o sul do país. (BUENO, 1998, p. 13)

Navarro (1998) defende que o tupi antigo era a língua comum às


populações nativas do Maranhão até o Paraná, formando uma grande unidade
cultural. Diga-se unidade cultural montada forçosamente para atender aos
anseios de cetralização administrativa dos portugueses.
No século XVIII o tupi é proibido por decreto, numa tentativa do Marques
de Pombal em dar um aspecto mais português ao Brasil. Exatamente cinqüenta
anos após a proibição do tupi chega à família real ao Brasil.
Antes da chegada da família real havia apenas uma terra de caboclos. O
padre Antonio Vieira observava no século XVII: “É certo que as famílias dos
portugueses e índios de São Paulo [como também nos outros Estados] estão
ligadas umas às outras e que a língua que nas ditas famílias se fala é a dos
índios. E a portuguesa, a vão os meninos aprender à escola.”
Todavia, com a família real portuguesa nestas terras é necessário fundar
um Estado português aqui. Estado português e não brasileiro como muita gente
pensa. O projeto português, da Dinastia de Bragança, não visava beneficiar a
gente nativa, os negros ou os mestiços, visava unicamente instaurar aqui nesta
terra uma estrutura administrativa que pudesse dar continuidade aos projetos,
estruturas culturais e empreendimentos portugueses.
75

Os números da época falam de uma população brasileira de 3,5 milhões


de pessoas, dos quais 1 milhão eram de escravos os quais não há segurança
para afirmar o percentual dos que tinham origem africana, indígena e mestiça.
Do mesmo modo, não se sabe precisar também quanto dos 2,5 milhões de
homens livres tinha sangue puro português ou de outras nacionalidades
européias, e quantos eram resultado de miscigenação com indígenas da
região. A única coisa que se sabe por meio de registros de escritores da época
e por meio das investigações genéticas de hoje que eram extremamente raros
os casos em que não havia miscigenação. É importante destacar ainda que
nestes números apresentados não estão inclusos as nações indígenas não
cristianizadas. Quando uma nação indígena tornava-se cristã ela perdia sua
identidade indígena, muitas vezes associada à selvageria, e passava a se
professar cristã e subjetivamente súdita da monarquia portuguesa.
Todos estes números e a história contada desta maneira permitem a
formulação de uma idéia mais consistente do que era à diversidade de nossa
terra. Diversidade neste sentido que apresento não combina com unidade.
A família real vem acompanhada com mais de 15.000 pessoas. Se for
considerado o total da população conhecida e o número de habitantes das
capitanias (províncias) da época, será possível perceber que este contingente
populacional é imenso. Toda a corte acompanha a família real. Toda a
administração. E sua chegada não é só festa, pois muitas residências de
brasileiros são tomadas para abrigar os portugueses.
Quando é proclamada a independência do Brasil, não se deve entender
esta independência como foi contada na escola. Deve-se, antes sim, fazer uma
leitura de como funcionava as relações de poder no período. As monarquias
funcionavam em estruturas familiares que expandiam seus domínios colocando
parentes como governantes de territórios ocupados. Desta forma fica fácil
entender porque Dom João VI, quando retorna a Portugal deixa a
recomendação a seu filho Dom Pedro, que se necessário proclame a
independência “antes que um outro aventureiro o faça.” Assim o Brasil
continuaria sobre o domínio da Dinastia de Bragança.
Não importava a terra ou os súditos importava apenas que os Braganças
continuassem como soberanos (patrícios). Isto é tão verdadeiro que quando D.
João VI retorna a Portugal sob ameaça de perder o trono por conta de
76

movimentos liberais, ele arrasta consigo todos os recursos financeiros, pois


para ele pouco importa como irá ficar o Reino do Brasil caso seu poder seja
usurpado.
Quando Dom Pedro abdicou o trono português o fez em favor de sua
filha Maria da Glória. Quando o trono foi usurpado por seu irmão Dom Miguel,
que se proclamou rei de Portugal e do Algarve, Dom Pedro não teve mais paz
em seu trono americano, afinal ele era pai e português. Logo Dom Pedro
abdica o trono brasileiro em favor de seu filho Dom Pedro II, e vai em socorro
de seu trono português.
Quando Dom João VI retorna a Portugal havia interesse por parte de
muitos portugueses que o Brasil retornasse a condição de colônia. Entretanto
isto seria extremamente prejudicial aos negócios de muitos comerciantes
estabelecidos aqui e que já estavam habituados a lucrar com importações e
exportações. Não seria difícil que o Brasil ou pelo menos muitas províncias se
proclamassem independentes de Portugal para manter seus lucros com o
comércio exterior.
Entretanto, torna-se lógico e evidente que os donos de comércio e
negociantes são de origem européia e não representam significativamente a
maioria da população brasileira. Assim, os temores da família real em perder o
poder não se dão, na maioria dos casos, com relação a organizações de cunho
nativo, mas com outras de origem européia. A representação em termos de
contingente populacional deste grupo europeu com relação à população total
era infimamente menor, não chegando sequer a ser representativa. Todavia
este pequeno contingente populacional dominava tanto os grupos armados
como os mecanismos ideológicos que atuavam principalmente por meio da
religião.
Neste contexto é interessante lançar a pergunta sobre como funcionava
a identidade das pessoas. Ora a escravidão indígena não era de um todo
proibido, portanto identificar-se como indígena e não cristão era atrair para si a
candidatura de escravo. Tornar-se cristão era a porta de entrada para um novo
estilo de vida no qual ficava claro a renúncia a possíveis filiações tribais. Num
determinado ponto da história muitos portugueses contraíram casamentos com
mulheres indígenas, gerando tantos filhos mestiços, que para os indígenas
remanescentes, e já convertidos ao cristianismo, não havia tanta diferença
77

entre eles e aqueles caboclos. Esta percepção de uma condição de igualdade


relativa, não aniquila uma valorização maior para aqueles que possuíam
sangue português, gerando, desta maneira, uma pressão para miscigenação
com brancos.
Ser um nativo, no sentido real da palavra, não era algo desejável.
Portanto, se for recordada a discussão anterior sobre a definição de identidade,
será possível perceber que determinada identidade só é apresentada se for útil
para favorecimento da sobrevivência e afirmação de si. Desta forma, em
termos comportamentais e de auto-afirmação facilmente se compreende
porque os hábitos nativos eram abandonados e a aproximação com a cultura
portuguesa era tão evidente. Com relação ao biológico (as características
manifestas no biótipo) o sujeito não podia negar sua condição, mas tentava
faze-lo se miscigenando com outros de origem européia.
Para muitos brasileiros da atualidade, ser nativo, primitivo e selvagem é
uma associação, ou melhor, condição sine qua non para reconhecimento do
indígena. Se a condição de indígena hoje ainda sofre tal associação, não é
difícil imaginar o que era identificar-se como tal numa época em que nada nem
ninguém falava bem do ser nativo. É fácil compreender desta maneira porque
no imaginário popular cultura tupiniquim representa cultura atrasada.

As pessoas que são preguiçosas são descendentes dos índios, as


que trabalham muito e agüentam peso descendem dos negros, e as
que têm jeito para negociações, são sorridentes, descendem dos
brancos. (Professora de História do Brasil do 2° grau, atual ensino
médio, no ano de 1995 – Centro Educacional Cristo Redentor –
Palmeira dos Índios – Alagoas)62

Os negros de origem africana, no Brasil Colônia e Império, estavam


quase todos na condição de escravos, portanto ser negro também não era uma
posição privilegiada. Isso explica porque também é tão comum esconder a
ascendência negra, pois, para muitos, representa esconder uma condição de
inferioridade.
Em suma, mesmo não estando claro quem são os brasileiros, sabe-se
que não é bom ser indígena ou negro nesta terra. O Brasil Colônia e Império

62A presente fala foi proferida em sala de aula, durante discussão sobre a formação do povo brasileiro, para alunos
do terceiro ano, com idade variando entre 16 e 19 anos.
78

nunca beneficiou nativos ou negros, muito mal beneficiou os mestiços


portugueses, ditos brasileiros de verdade, justamente por essa razão houve
diversas revoltas no Grão-Pará, no Maranhão, em Pernambuco (por conta da
relação difícil com portugueses donos de estabelecimentos comerciais), na
Bahia, Minas Gerais e no Sul do país.
O Brasil sempre era administrado por uma minoria que pouca ou
nenhuma relação possuía com a população maior. Por exemplo, na eleição
para regente em 1838, da população de 4,5 milhões de pessoas, apenas 6.289
pessoas votaram (um pouco mais de 0,1% da população), se for levado em
consideração as 15.000 pessoas que vieram com a corte este número supra-
referido não chega sequer a metade. Apenas a elite rural votava. A coroa
estava preocupada com as pessoas e as relações de seu interesse, não com
um povo que quase nenhuma ou nenhuma relação possuía consigo.

Um profundo espírito de revolta dominava todo o vasto interior do


país. Do Grão-Pará ao Rio Grande do Sul havia inquietação que
ameaçava tornar-se em coisa mais grave. Afinal, a independência fora
um assunto nitidamente da corte, sem praticamente a participação
das províncias e do povo. (QUEIROZ, 2001, p.93)

Toda e qualquer tentativa do Brasil em distanciar-se de Portugal era


reprimida violentamente. Recordemos o caso dos Andradas que, durante a
reunião da Assembléia Constituinte são presos e deportados do Brasil.

Através de seu jornal, O Tamoio, os Andradas iniciaram uma


campanha destruidora de tudo quanto fosse ou lembrasse Portugal e
os portugueses. Logo a seguir, outro jornal, A Sentinela, saiu em
apoio aos Andradas, e os ataques redobraram em violência. [...] A
resposta [de Dom Pedro] chegou finalmente sob a forma de um
decreto de dissolução da Assembléia Constituinte. Os Andradas
foram presos e deportados. A impressão na cidade era de espanto e
tristeza ao mesmo tempo. (QUEIROZ, p.91)

Até o momento fica evidente que ainda não está estabelecida a idéia de
Estado-nação. Para se ter idéia um brasileiro, ou seja, um indivíduo nascido
aqui, durante longo período da fase imperial, não poderia jamais chegar ao
cargo de oficial na hierarquia militar, este cargo era reservado aos reinóis, isto
é, aqueles nascidos no reino de Portugal. Em outras palavras o Brasil possuía
uma estrutura administrativa governamental que de certa forma não precisava
79

possuir afinidade com os anseios das massas, muito menos identidade com as
mesmas.
Estas questões, relativas à história colonial e imperial do Brasil, são
elencadas aqui apenas para que se perceba que o Brasil como muitos o
entendem é uma construção teórica montada intencionalmente para mascarar
conflitos reais e potenciais existentes em seu seio. Destaco que é uma
construção teórica montada encima de um mito fundador, como muito bem
atesta Chaui em seu livro, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária.
Chaui explica que mito fundador, no sentido utilizado por ela, é uma
tentativa de resolver problemas e conflitos reais por meio de uma narrativa do
passado que se torna atemporal de tal maneira que nunca cessa. Deste modo,
o presente e a realidade são sempre interpretados a partir desta história que
nunca termina. Cria-se daí uma idéia de continuidade e unidade ilusória.
(CHAUI, p.9)
Isto explica porque ainda hoje conserva-se no imaginário a idéia de
unidade nacional e cultura brasileira, quando na verdade o correto seria pensar
em culturas brasileiras, pois é possível constatar muitos Brasis dentro do Brasil.
Como formar uma idéia de nação com tantos povos distintos, tantas culturas e
tantos idiomas.
Se for dado um salto na história brasileira, ao final do Brasil Império,
será possível perceber que mesmo aí, com todo trabalho que é feito por Dom
Pedro II, a identidade do brasileiro continua sendo um problema. Este problema
da identidade do povo vai culminar no problema da identidade nacional. A
abolição da escravatura em 1888, liberta da noite para o dia 700.000 almas. Já
era alto o contingente de mestiços, negros e caboclos que tinham direito a
liberdade antes da abolição. Será que estes povos poderão pertencer ao
contingente populacional da nova pátria, do novo Estado-nação que está
prestes a se formar?
Da pátria sim, pois como vimos à idéia de pátria não implica
necessariamente na liberdade individual ou na igualdade de direitos políticos.
Entretanto, a nova concepção que começa a surgir é de Estado-nação. Esta
nova concepção liberal é extremamente problemática, principalmente para os
territórios ocupados por uma grande diversidade étnico-cultural. Sabe-se que
não é impossível o sujeito possuir várias identidades, mas neste momento e
80

nesta situação específica ter várias identidades significa sabotar a construção


de uma identidade nacional maior.
Como os lideres republicanos do Brasil, inspirados no liberalismo e
numa determinada versão do modelo de estado norte-americano, irão lidar com
a diversidade de tribos nativas presentes no território? Como resolverão o
número exagerado de mestiços da população? Como trabalharão com o
grande contingente de negros de diferentes etnias da África? Como produzir
uma idéia de nação se antes de tudo a idéia nacional implica numa consciência
coletiva de unidade? Como formular a idéia do que é o (indivíduo) brasileiro e
do que é da cultura brasileira?
Na formação da Alemanha os prussianos esmagaram outras minorias
étnicas e o grande problema dos germanos não era com relação à falta de
unidade e homogeneidade racial, o problema se concentrava na formação
anterior de outras unidades menores de nações germânicas. Os franceses se
percebiam de modo homogêneo bem antes da revolução francesa. Os
italianos, japoneses e muitos outros povos que se estruturaram como Estado-
nação, antes já possuíam uma idéia de vinculação racial ou cultural.
Entretanto, o Brasil é um caso a parte, pois além de haver grande
quantidade de mestiços, existem negros e indígenas que não eram vistos como
membros do contexto estatal imperial. Além disso, há brancos de origem
européia que se sentiam donos do Estado como patrícios romanos.
Toda sociedade organizada precisa em algum momento de sua
instituição convergir em termos de propostas para que essa possa existir de
fato e de direito em algum período da história. Essa convergência não implica
na aceitação tácita de todos os seus membros de um único projeto social.
Muito pelo contrário, a convergência representa a força de um determinado
grupo que consegue fazer valer, por diversos meios, os seus valores e a sua
visão de mundo sob as demais. Essa convergência materializa-se na
Constituição, nos projetos de lei, e nas propostas governamentais em suas
variadas esferas.
É exatamente isto que ocorre no Brasil. Um determinado grupo de
orientação marcadamente militar e eurocêntrica toma as rédias da “nação”,
para decidir e organizar o destino de todos. Como o modelo de Estado
adotado, em que diversas etnias subsistem, é o modelo norte-americano todas
81

as suas políticas serão adotadas ipsis litteris. Isto é, opta-se pela filiação a uma
identidade maior minimizando-se expressões particulares. Esta posição é
antagônica ao que expomos na introdução desta parte do trabalho sob o nome
de multiculturalismo.
A maior parte da política estatal norte-americana lida com questões
pluriétnicas e de diversidade religiosa de um modo bastante singular. Desde o
princípio da colonização, de predominância inglesa, na região norte-americana
a forma como se lidou com indígenas e negros era marcadamente diferente da
forma que lidavam os portugueses e espanhóis.
A colonização da maior parte das regiões norte-americana era
profundamente diferente da ocorrida aqui no Brasil. Acontece que na maior
parte das regiões da América do Norte iam famílias compostas de colonos para
povoar a região. Estas famílias eram na maioria dos casos de orientação
protestante ou cristã anglicana, o que fomentava desde os primórdios um
senso de organização entre os colonos mais nacionalista e de defesa da
comunidade como um todo. Desta maneira, o colonialismo inglês crescia na
América do Norte acuando e expulsando os grupos indígenas de seus
territórios. Não havia proposta ou trabalho de manipulação ideológica para
seduzir os grupos indígenas norte-americanos a um contexto civilizado e de
moldes europeus. A miscigenação entre as populações indígenas e os colonos
também era praticamente inexistente na maioria das regiões, pois as famílias já
compostas desde a Europa não precisavam de elementos nativos ou afro para
completar sua formação. A rigidez de costumes e de forte preservação da
estrutura familiar e da descendência impedia, de um modo muito mais rigoroso
que o português, relações sexuais com indígenas e ou escravos africanos.
Já no caso brasileiro são raríssimos os casos em que famílias já
compostas vêem para cá. Praticamente todos os colonos se casavam com
mulheres indígenas. A miscigenação era uma prática estratégica para
minimizar conflitos, afinal o objetivo não era de se estabelecer, mas de explorar
e enviar para outra região as riquezas. Portanto não era necessário expulsar os
indígenas e tomar seus territórios, era necessário apenas montar um esquema
que pudesse seduzi-los a trabalhar, serem pacíficos e impedisse que os
mesmos fossem capazes de se organizar enquanto grupo. O sistema religioso
cristão católico trabalhava em manter viva a força e autoridade da metrópole,
82

para tanto não estimulava o diálogo ou a organização das comunidades,


estimulava apenas a ordem e a obediência cega e incondicional. Dentro de
pouco tempo não havia identidade indígena viva, as que sobreviviam
conseguiam a custa do isolamento e distanciamento. Aqui a política não era de
dizimação por guerra de extermínio, como ocorria na América do Norte. A
extinção indígena aqui ocorria por abraçar uma identidade cristã e depois
nacional que no fundo jogava e joga estes indivíduos no vácuo.
O extermínio das nações indígenas aqui não se deu por meio do cano
das armas, mas pela aceitação do convite para se tornar cidadão brasileiro.
Como nem todos ouviram o convite (muitos porque estavam distantes outros
porque não tinham boa relação com os donos da festa) alguns ficaram fora,
estes são os 734.127 indígenas63 que existem ainda hoje.

4.1 – Nasce a Nação ou Apenas um Estado Republicano?

A República Brasil é proclamada em 1889, pouco mais de um ano após


a abolição da escravatura. Os dois primeiros presidentes são militares da
Província de Alagoas. Alagoas conseguiu o título de província independente de
Pernambuco por trair a revolução Pernambucana e permanecer fiel ao Império.
O pai do Marechal Deodoro da Fonseca (primeiro presidente) figura nas
negociações tentando manter o cofre no povoado de Alagoas do Sul (hoje
município alagoano de nome Marechal Deodoro) ficando em desacordo com o
primeiro governador da província, Melo e Póvoas64, designado pelo Imperador
D. Pedro II.
Antes mesmo da aprovação da Constituição saíram alguns decretos,
dentre os quais pode-se destacar a separação entre Igreja e Estado
estabelecendo a Lei do casamento civil e a da grande naturalização. Este
último decreto tornava automaticamente cidadão brasileiro todo estrangeiro em
solo nacional que não fizesse declaração contrária.
Para quem pensa que estes decretos são suficientes para definir a
identidade do brasileiro, pois ser cidadão brasileiro é está em solo brasileiro,
engana-se profundamente. Mesmo após a constituição diversos Estados, como

63
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados no censo de 2000.
64
Prefere colocar o cofre em Maceió por ser cidade portuária (Porto de Jaraguá).
83

muito bem atesta Santos (2002), criavam dispositivos legais que impediam o
acesso de negros e mestiços as escolas que recebiam financiamento do
governo. Além disso, revoltas estouravam em toda parte do país.
A primeira Constituição da República (e segunda do Brasil) é uma cópia,
revista por Rui Barbosa, da constituição norte-americana. Em 24 de fevereiro
de 1891, a Assembléia Constituinte promulgou a Constituição. Neste mesmo
dia Deodoro é eleito presidente e Floriano Peixoto vice-presidente. Deodoro
dura menos de um ano no poder e renuncia após ser ameaçado pela esquadra
liderada por Custódio José de Melo que da baía de Guanabara ameaçava
atacar.
Quando o segundo presidente militar assume o poder, este assume
como um verdadeiro soldado sufocando e repreendendo diversas revoltas para
manter a unidade. Findo o seu mandato o primeiro presidente civil, Prudente de
Moraes, assume com a missão de aniquilar mais uma quantidade enorme de
revoltas. A destruição de Canudos se dá em seu governo. Embora a história de
Canudos não seja bem conhecida sabe-se que a forma como se organizava
não era muito diferente dos sistemas de organizações indígenas, sabe-se
também que lá havia grande quantidade de indígenas desaldeados, negros e
mestiços. O certo é que em Canudos não havia brancos da elite nacional.
Em seguida assume a presidência Campos Sales que faz empréstimos
vultosos para pagar outros e financiar alguns serviços públicos. No governo de
Campos Sales começa a “política dos governadores” que vai subsidiar o que foi
apelidado pelo povo de “política do café-com-leite”, em que o poder ficava
alternando nas mãos de paulistas e mineiros. Os paulistas possuíam grande
plantações de café e os mineiros grande criações de gado.
O último presidente do que ficou conhecido como República Velha,
marcada pela “política do café-com-leite” organizada pelas elites agrárias, foi
Washington Luís (1926-1930). De todos os presidentes da República Velha o
único de origem humilde foi Nilo Peçanha (1909-1910), também foi uma
exceção no governo, pois foi bastante chegado ao povo. Nilo deu bastante
atenção em seu curto período de governo às questões agrárias e criou o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
O SPI não praticava a política de proteção no sentido de preservação da
identidade indígena. A proteção do SPI acompanhava a política e ideologia da
84

época. Embora tenha sido uma boa iniciativa, o viés ideológico ao qual estava
associado tornava o mesmo uma peçonha para a vida indígena. Todavia
muitos movimentos hodiernos relacionados a questões indígenas também são
repletos de boa intenção, mas pela vinculação ideológica acabam se tornando
extremamente perigosos a sobrevivência dos povos.
A política do SPI era de integração das comunidades indígenas a
comunhão nacional. Esta política não começa com o SPI, ela era praticada
desde o Brasil Império. Todavia, quando esta política de integração (a unidade
imperial) das comunidades indígenas foi empregada, no fundo ela era uma
versão melhorada do desmantelamento da identidade indígena utilizada na
época colonial. Ou seja, era uma forma evoluída de apagar a lembrança e a
identidade dos povos dominados.
Como em outros momentos da história brasileira esta integração do
elemento indígena a unidade nacional não foi harmoniosa, o SPI visava
proteger o índio de esquemas de integração violentos e agressivos que
causassem mortes e aumentassem o número de revoltas. Em outras palavras,
o SPI atuaria ideologicamente seduzindo e convidando os indígenas a se
tornarem brasileiros e negarem suas antigas identidades, vistas como pré-
históricas, atrasadas e motivo de dificuldade da implantação da civilização.
Esta política do SPI chamava-se de política de assimilação e atuava em
consonância com a produção teórica do país e diversas outras instituições
estatais.
No fundo o SPI estabelecia o ideal de nação tentando minimizar um
problema: a heterogeneidade do povo brasileiro.
Desde o segundo reinado (D. Pedro II), devido os movimentos
nacionalistas, as teorias raciológicas e evolucionista que começavam a surgir
na Europa, começa uma inquietação no Brasil para definição do povo
brasileiro. Desde a década de 70 do século XIX até o surgimento da República
Nova em 1930 os governantes adotam uma serie de leituras, procurando
revesti-las com ciência, para explicar e formatar o que seria o povo brasileiro.
Muitas teorias científicas mal fundamentadas da época eram adotadas
pelos homens de ciência para explicar e justificar suas ações e a estrutura
social. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), por exemplo, na introdução de
seu livro, Os africanos no Brasil, afirma categoricamente que a diferença do
85

Brasil e dos EUA em termos de progresso civilizatório ocorre devido o caráter


essencialmente branco dos norte-americanos. Segundo Rodrigues, o grande
grau de miscigenação dos brasileiros com povos indígenas e negros faz com
que haja dificuldade de civilizar o país.
Naquele momento histórico era comum teorias racistas com caráter
científico além do relato de inúmeros viajantes denunciando a idéia vigente de
que seria impossível civilizar o país. Pois, o Brasil era entendido como
“exemplo de nação degenerada de raças mistas”. Schwarcz (1993, p. 36) relata
dentre inúmeros teóricos da época o exemplo do filósofo argentino, José
Ingenieros (1877-1925), e de Louis Couty que insistiam na problemática de um
país mestiço.
O conde francês Joseph Arthur Gobineau (1816-1882) faz viagem ao
Brasil e, rememorando a viagem, também critica a mestiçagem expondo os
problemas da mesma. Gobineau foi autor de Ensaio sobre a desigualdade das
raças humanas. Nesta obra, Gobineau, introduz o conceito de
degeneressência, em que as raças mistas seriam inferiores as raças puras.
Seu argumento previa a impossibilidade do progresso para algumas
sociedades compostas por “sub-raças mestiças e não civilizadas”.
Ernest Renan (1823-1892) segue a mesma linha de Gobineau,
entretanto para Renan, os grupos negros, amarelos, indígenas e miscigenados
seriam grupos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem
incivilizáveis, não perfectíveis e insuscetíveis ao progresso.
Havia ainda aqueles que se fundamentavam em concepções
evolucionistas de Lamarka, como é o caso de Thomas Buckle (1821-1862),
para interpretar o atraso das nações. Conforme Buckle, que nunca veio ao
Brasil, mas que dedica muitas paginas de sua obra a este país, os homens
nativos daqui sem a ajuda estrangeira teriam regredido.
Em nenhum outro lugar há tão precioso contraste entre a
grandiosidade do mundo externo e a pequenez do interno. E a mente
acovardada por essa luta desigual não só foi incapaz de avançar, mas
sem a ajuda estrangeira teria indubitavelmente regredido (BUCKLE,
1845, p.692 apud SCHWARCZ, 1993, p.36)

Todas essas teorias supracitadas e muitas outras na mesma linha eram


bastante populares entre os homens de ciência do final do império e início da
república. Não é de se estranhar que para muitos o Estado-nação Brasil fosse
86

algo impossível e inexeqüível. Entretanto, os homens de ciência do Brasil


conseguiram encontrar uma solução inteligente para o problema: o Mestiço.

4.2 – Etnogêneses por Miscigenação: A Solução do Problema da Nação


Brasileira

Embora teóricos, como Nina Rodrigues, discordassem abruptamente da


miscigenação como saída para os problemas da heterogeneidade da nação,
pois entendiam que a miscigenação dificultaria o processo civilizatório, muitos
outros teóricos apontaram a miscigenação como a saída viável para a
formação da nação brasileira.
Evidentemente essa miscigenação para tais teóricos não seria aleatória,
nem tampouco visaria fortalecer características nativas ou de outras raças
consideradas inferiores. Havia uma diversidade étnica enorme no Brasil e a
quantidade de mestiços era imensa. Francisco José Oliveira Viana (1883-
1951), do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é um dos muitos que
formula o processo de etnogêneses por meio da miscigenação, em que deve
ser imperante o Ideal de Branqueamento.
Conforme Schwarcz, o ideal de branqueamento é uma tendência de
percebemos o homem e a cultura branca (de origem européia) como sendo o
modelo de mais alta plenitude e perfeição, esta tendência por sua vez é
construída histórica e socialmente no Brasil entre 1870 e 1930. Deve ser
lembrado que neste período vigoram teorias raciológicas de hierarquização
racial em que o elemento branco ocupa o topo da pirâmide enquanto indígenas
e negros estariam na base.
Fundamentado nesta concepção, a solução apontada por Oliveira Viana
seria eliminar a diversidade e a pluralidade racial existente na origem histórica
da formação do povo brasileiro. Isso seria possível através do ideal de
branqueamento onde o Brasil alcançaria uma pureza étnica (identidade
nacional) por meio da miscigenação que aconteceria da seguinte forma: a)
reprodução natural do homem branco que seria superior a dos índios e negros;
b) elevada imigração européia; c) maior taxa de mortalidade dos índios e
negros que viviam em condições miseráveis; d) controle político e ideológico
87

sobre a miscigenação. Oliveira Viana afirma, ridiculamente, que os próprios


mestiços fogem de suas origens quando se intitulam de “morenos”.
Não tarda para aparecer uma infinidade de teóricos afirmando que a
característica principal do brasileiro é a miscigenação. Deste ponto em diante,
mesmo com um fundamento extremamente negativo, o mestiço é apontado
como única saída viável para a formação de uma nação. O projeto conforme
pensado entra em execução e se abrem as portas para a imigração estrangeira
de origem européia.
Durante a República Velha, na “política do café-com-leite”, na
presidência de Afonso Pena (já havia sido vice-presidente no governo anterior
de Rodrigues Alves) incrementa-se a imigração e começa-se a dar ênfase à
colonização estrangeira.
Por mais que a propaganda nacional veicule o sofrimento dos imigrantes
estrangeiros nas lavouras de café, esta não era a realidade absoluta. O Estado
estava montado para recebê-los e dar-lhes condições favoráveis de expansão.
Até mesmo durante o Governo militar esta política continua em menor
intensidade de tal maneira que grandes porções de terras com financiamentos
são dados em diversas partes do país para pessoas de origem estrangeira.
Alagoas o Estado em questão neste trabalho não foge desta regra, imigrantes
ou descendentes de imigrantes italianos, alemães, etc. recebem grandes
porções de terras aqui.
O quadro começa a ser pintado de modo a fazer sentido. Nilo Peçanha,
o presidente que havia comentado no tópico anterior, o fundador do SPI, era
vice de Afonso Pena. Como já havia esboçado anteriormente o SPI não
pretendia preservar as identidades indígenas da nação. A medida prioritária do
SPI era a assimilação do indígena ao projeto nacional. Para tanto a política
adotada era a dos aldeamentos. Passava-se a reconhecer como indígena
apenas os indivíduos ligados a comunidades isolados e que preservavam os
seus hábitos pré-cabralinos. Como a Constituição brasileira possuía os moldes
da Constituição norte-americana, passou-se a lidar com os fenômenos sociais
do Brasil do mesmo modo que os norte-americanos. Muito embora nossa
constituição histórica e social fosse terminantemente diferente.
O sistema de aldeamento (para os americanos é o mais lógico, pois sua
política na maioria das regiões nunca foi de integração com as comunidades
88

indígenas), adotado pelo governo norte-americano, no Brasil resolveria uma


série de problemas. Primeiro isolaria as comunidades indígenas. Segundo,
negaria a identidade indígena de todo e qualquer indivíduo que não estivesse
ligado à comunidade, deste modo todos os demais indivíduos da nação que
pudessem cogitar identidade indígena estariam reivindicando algo sem sentido.
Por fim, o sistema de aldeamento dificilmente ofereceria condições favoráveis
de vida e expansão, o que provocaria a saída de alguns indivíduos das aldeias,
entretanto, os indivíduos que tentassem sobreviver saindo dos aldeamentos
rapidamente teriam sua identidade apagada.
O mesmo esquema não pode ser utilizado com as populações negras de
origem africana, justamente por essa razão a política adotada com este grupo
foi diferente. Entretanto em termos de miscigenação, presença cultural e social
os grupos e indivíduos de origem indígena são bem mais presentes na
composição social do Brasil, mas todas as leituras sempre enfatizam mais o
pólo afro ou europeu. Não é difícil para um indivíduo de origem indígena no
Brasil ser visto de outra forma. Também se tornou hábito ver muitos costumes
de origem indígena no Brasil interpretados como possuindo outra origem.
O indígena mergulhado no contexto nacional tornou-se um grito sem
som, uma imagem que nunca é vista e nunca é reconhecida. Os indivíduos que
fazem tapioca e comem tapioca não sabem por que comem nem com quem
aprenderam a fazer. Cortaram cana e vieram do mato, seus pais ou avós
dormiam em rede e eles mesmos escutaram muitas histórias sobre caapora,
boitatá e pegaram pássaros de arapuca, mas com tudo isso eles não sabem o
que são porque a nação que ele julga pertencer lhe nega a identidade.
Porque a identidade indígena é algo tão perturbador de tal forma que
para ser reconhecida precisa de aprovação governamental? É simples de
responder. Quando um indivíduo se vê como indígena (e melhor ainda quando
uma comunidade) ele ou ela sai do vazio de ser brasileiro. Ele se percebe
como um ser que não precisa esperar pelos projetos políticos de instâncias que
são tão superiores a ele que ele nunca pode alcançar. Ele liberta-se do mito
fundador do Brasil e passa a perceber que ele e todos os seus antepassados
foram dominados e explorados. Percebe que ele não deve satisfações ao
Estado-nação maior, mas que o Estado se quiser continuar deve atender as
89

necessidades de seus membros65. Percebe que ele tem a obrigação e o dever


de organizar seus familiares e sua comunidade politicamente, independente da
intervenção do Estado maior. Tudo isso é uma séria ameaça ao Estado
brasileiro. Esses pontos discutidos neste tópico são suficientes para silenciar a
auto-afirmação indígena. Além destes, uma análise minuciosa poderá
denunciar muitos outros como, por exemplo, dificuldades administrativas por
conta da descentralização do poder, mas como este não é o foco central
retomo a discussão avançando na questão da miscigenação do Brasil.
Já foram expostos diversos posicionamentos teóricos relativos à
heterogeneidade do povo brasileiro. Foram apresentados posicionamentos
radicais como os de Nina Rodrigues e outros que apontam o mestiço como
solução da identidade nacional. Entretanto outros personagens com maior peso
e maior repercussão entram na mistura.
Gilberto Freyre vai cair como uma luva para o novo cenário político que
começa a se formar. Diferentemente dos teóricos anteriores Freyre irá
apresentar o mestiço como um ser positivo. Primeiro vai fazer uma leitura
distorcida dos acontecimentos históricos do Brasil, defendendo a tese de
relação harmônica entre portugueses e os grupos subjugados. Em seguida vai
afirmar categoricamente que todo brasileiro é mestiço, se não for no “sangue é
na alma”.
Esta nova argumentação vai dirigir os projetos políticos da República
Nova. Getulio Vargas, percebendo a grande fragmentação cultural e divisão
étnica que possui o Brasil, toma uma série de medidas para minimizar as
diferenças regionais e apresentar a formulação de uma cultura nacional.
Depois de Getúlio Vargas não há mais movimentos sociais armados
contra o Estado nacional. Um grande movimento armado no sertão nordestino
contra o Estado foi o Cangaço. Coronéis nordestinos (grandes proprietários de
terras) invadiam e tomavam terras de caboclos sertanejos que não tinham a
quem se queixarem porque a estrutura estatal estava a serviço dos coronéis.
Grupos de pequenos proprietários, quase todos caboclos e cafuzos, começam

65Na entrada do quartel do 59º Batalhão do Exército Brasileiro, localizado no Bairro do Farol em Maceió, Capital de
Alagoas, figura desde a década de 90 até os dias atuais, a ridícula frase: “A Pátria nada se pede, tudo se deve.”
Certamente quem escreveu não parou para pensar porque deve existir algo que serve apenas para nos tornar
devedores.
90

a se armar e formam um movimento que depois é distorcido pela propaganda


governamental.

Levanta Maria Bonita/ levanta pra fazer café


Que o dia já vem raiando/ e a polícia já ta de pé
A Polícia de Pernambuco/ vai abandonar o sertão
Com medo das lambedeiras/ e dos fuzis do meu capitão
Cabelos pretos estirados/ olhos castanhos repuxados
Quem não ama a cor morena/ morre cego e não ver nada.
(Musica de cangaço)

Antes de Vargas não apenas o Cangaço era uma ameaça, muitos outros
movimentos lutavam contra tudo que representasse forças estatais. Um outro
bom exemplo era a capoeira.
Oh seu chefe de polícia/ o barulho ta formado
Tem um cabra lá na praça/ batendo nos seus soldados
Oi zum, zum, zum / Bezouro Mangangá
Bateu foi na polícia/ na polícia militar
Oi zum, zum, zum / Bezouro Mangangá
Bateu foi na polícia/ de soldado a generá
(Musica de capoeira)

Getúlio Vargas e sua Equipe percebe que o Estado da forma que estava
estruturado fomentava a formação de Estados paralelos que não tardariam em
aparecer. Aproveitando as proposições de Freyre elege a mestiçagem como
genuína representação do Brasil. Retira a capoeira do código penal, estimula e
financia festas carnavalescas com o samba como música nacional. Dá direitos
trabalhistas a população e educação para as camadas mais baixas. Por meio
da educação pode agora difundir a idéia de Estado. A educação agora se torna
a ferramenta principal de progresso e manutenção do Estado.
Se alguém hoje pensa e acredita numa identidade nacional brasileira,
deve esta graça ou moléstia ao inteligente governo populista de Vargas. A
identidade nacional, com todos os símbolos e crenças que temos hoje, foi
inventada e propagada em seu governo. Ao mesmo tempo que oprimia e
massacrava movimentos populares armados, fazia-os parecer sem sentido
visto que agora a nação possuía um pai pronto a atender todas as
necessidades do povo.
91

Embora a dinâmica política do país tenha se intensificado e diversificado


após o governo de Getúlio Vargas, para este trabalho interessa apenas o fato
das bases estruturais para o entendimento da nação ter sido consolidado em
seu governo. É de conhecimento geral a política desenvolvimentista praticada
nos governo de Juscelino Kubitschek que amplia a divida nacional (CARDOSO,
1978), das diversas constituições que foram promulgadas (FÁVERO, 2001) e
do golpe militar de 1964 com a retomada da democracia consolidada na
Constituição de 1988. Mas o ponto crucial deste debate é que a formatação da
identidade nacional ocorre em Vargas. Em termos de identidade ou políticas
nacionais para lidar com as diversas identidades tem-se uma continuidade
desde a Era Vargas.
Em 1967, em pleno governo militar, é criada a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), encarregada de tutelar o índio, gerir o seu patrimônio, prestar-
lhe assistência educacional, em fim zelar de todas as formas pelos interesses
do índio, exercendo para isso poderes especiais. Posteriormente, em
dezembro de 1973, surge a Lei 6.001 (Estatuto do Índio) que irá regular a
situação jurídica do indígena ou silvícola, dando apoio as ações da FUNAI, o
propósito do estatuto é preservar a cultura indígena ao passo que integra os
mesmos, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.
Em outras palavras, FUNAI e o Estatuto do Índio são instituições estatais
que dão continuidade à política assimilativa praticada desde épocas imemoriais
no Brasil.
Posterior a Vargas, principalmente por meio de Darcy Ribeiro, ganha
peso à idéia de etnogêneses. Conforme Ribeiro, o povo brasileiro forma uma
unidade por meio da miscigenação na qual o elemento indígena ocupa papel
de destaque. Todavia, o brasileiro para Ribeiro é um novo povo resultado da
etnogêneses.
Sem querer conceber a cultura como elemento estático e a etnogêneses
como um argumento de mascaramento social, deve-se ter cuidado e ser
bastante crítico na análise do povo brasileiro. Embora a etnogêneses seja uma
realidade possível ela é um forte argumento para calar vozes cansadas de
gritar.
Atualmente a “nação” brasileira é regida pela Constituição de 1988,
reconhecida como constituição cidadã. Nela, argumentam os estudiosos da
92

hodiernidade, os povos indígenas encontram direitos nunca antes


reconhecidos. Novas políticas são elaboradas em consonância com o que foi
essa grande conquista democrática brasileira. A imensa maioria dos teóricos
afirma novos tempos, em que mudanças políticas para favorecimento de
culturas e identidades massacradas encontram respaldo.
Todavia, de minha parte, embora quisesse que a descontinuidade
histórica atuasse aqui, na realidade percebo as novas políticas referentes às
identidades étnico-culturais, da forma que estão sendo conduzidas, como o
coroamento e a consolidação de velhas práticas do arranjo chamado Brasil.

5.0 – Identidades Pós-Modernas e o Retorno a Antigas Identidades

Durante todo o desenrolar desta parte do trabalho discutiu-se a


formulação das identidades das pessoas, detive-me particularmente na
discussão sobre as identidades nacionais. Concordando com Hall, expus a
possibilidade da sustentação de várias identidades em um único sujeito.
Evidenciei também como a formulação das identidades nacionais estavam
ligadas a questões de ordem políticas e econômicas. Além disto, nas
entrelinhas desta discussão tentei deixar claro como a idéia de nação-liberal é
uma tentativa de manter velhos e antigos modos de identificação (para defesa
e sobrevivência) junto com novas dinâmicas de produção e economia (que
parece ameaçador). Todavia, desde o surgimento do pensamento liberal até
seu avanço com a industrialização, a expectativa dos grupos que estavam à
frente no processo de produção sempre foi uma: romper com toda e qualquer
barreira que impedisse seus lucros e ganhos.
Esta ruptura não levava em consideração o processo de
desmantelamento, desestruturação e, muitas vezes, aniquilamento de grupos
humanos habituados a estilos de vida diferentes e que não conseguiram
responder a nova dinâmica imposta. Diversas colônias foram produzidas no
mundo principalmente durante o século XIX. Culturas foram alteradas
forçosamente e a tentativa de expandir os impérios para a venda de produtos
aniquilava de maneira extremamente cruel identidades regionais que
dificultavam o processo de expansão dos mercados.
93

Pode parecer hilário, mas mesmo nos dias atuais muitos não entendem
como a alteração ou a perpetuação de modelos culturais facilita ou prejudica o
consumo e consequentemente a economia liberal66. Vou tomar como exemplo
para explicar esta questão o hábito de cozinhar. A maioria dos grupos de
caçadores recoletores, e mesmo diversas outras sociedade não
industrializadas, costumam preparar seus alimentos em fogo a lenha. Coletam
a lenha e acendem o fogo na mesma com alguma técnica específica bastante
trabalhosa, mas que o hábito a faz parecer fácil. Levam então as panelas de
barro ao fogo (quase sempre as panelas são fabricadas pela própria família) ou
constroem uma espécie de jirau (ou ainda usam espetos). Essa forma de
cozinhar era bastante utilizada no interior do nordeste brasileiro há pouco mais
de 70 anos atrás. Gradativamente a industrialização começou a chegar para
essas comunidades. O primeiro produto que foi extremamente revolucionário
foi o palito de fósforo. Agora bastava passar um palito numa caixa e pronto
estava ali o fogo. Entretanto, nenhuma sociedade não industrializada produz
fósforo. Automaticamente o produto que tem um custo baixíssimo inicialmente
passa a ser comprado e bastante utilizado. Dentro de pouco tempo são
esquecidas as técnicas de fazer fogo e o produto pode agora ser ofertado por
um custo maior. Posteriormente as panelas de barro são substituídas por
panelas metálicas e num curto período são abandonadas as técnicas de
produção de panelas de barro. Por fim, aparece o fogão e o fogo a lenha é
substituído por um botijão de gás butano. Rapidamente nenhum dos produtos é
mais produzido pela comunidade, todos eles precisam ser comprados.
Evidentemente a comunidade que teve seus hábitos modificados não
necessariamente perderá sua identidade. Mas, terá grande prejuízos na
organização administrativa interna quando modifica seus hábitos de modo a
deixar de ser auto-sustentável. Este exemplo supra-referido ilustra como a
mudança de costumes afeta diretamente a economia. Uma comunidade auto-
sustentável com mudanças culturais específicas rapidamente se torna
totalmente dependente.
Interessante que a dependência das comunidades a estruturas externas
se torna tão latente que no caso do nordeste brasileiro, grupos que estavam

66
Muito interessante o trabalho de ARAPIRACA (1982) sobre o acordo entre o MEC e a USAID, para alteração de
alguns construtos culturais brasileiros a fim de fomentar o consumo.
94

habituados a determinados modos, depois da mudança cultural precisam


receber financiamento do governo federal para sobreviver. Durante a primeira
gestão do governo de Luís Inácio (Lula), por exemplo, foi criado o vale gás,
para atender diversas comunidades carentes.
Esta percepção de que a globalização afeta as culturas particulares de
modo a alterar antigos costumes, apenas para favorecer o consumo de
determinados produtos industrializados, não é recente. Por essa razão defendi,
no primeiro parágrafo deste tópico, que a tentativa de criar uma cultura mundial
que favoreça o consumo de determinados produtos data do surgimento do
pensamento liberal. A discussão em torno da formação de diversos Estado-
nações e a defesa exagerada da manutenção de muitos hábitos culturais
locais, não surgiram de modo inocente, mas como uma tentativa de se proteger
contra a submissão de forças estranhas.
Ortiz (2003), em seu livro Mundialização e cultura, defende que se tende
cada vez mais a uma cultura mundial. Sua defesa é verdadeira em partes,
porém ingênua, pois não destacar os aspectos imperialistas e de dominação de
mercados. Ortiz defende que a cultura mundial é símbolo de modernidade e as
locais acabam representando o passado. Não se sabe o que ocorre, mas Ortiz
parece ter a visão turva para os processos de dominação econômica da
atualidade que no fundo são a concretização de expectativas antigas do
capitalismo.
No Brasil, o conflito entre rock x samba revela a mesma contradição.
Enquanto símbolo da identidade nacional, isto é, um valor aceito
internamente, o samba vê-se ameaçado por uma musicalidade
estranha às suas raízes históricas. Na verdade, nos encontramos
diante de um fenômeno mundial, no qual as novas gerações, para se
diferenciarem das anteriores, utilizam símbolos mundializados. [...]
Escutar rock-roll significa estar sintonizado com um conjunto de
valores, vividos e pensados como superiores. Preferir outros tipos de
canções é sinônimo de descompasso, de um comportamento
inadequado aos ‘tempos modernos’. Samba, ‘enka’, canção francesa
são, desta forma, relegados ao pretérito, sinal de um localismo
limitante da comunicação ‘universal’. (ORTIZ, 2003, p. 202)

O discurso de cultura mundial e identidade global não começa com a


pós-modernidade como é comum na argumentação de diversos autores com
carência de informações históricas. Diversos estudiosos já tentavam
argumentar de longas datas sobre o desaparecimento de identidades locais, de
95

etnia e raça. (DEUTSCHER, 1966). Acreditavam que com o avanço da


industrialização e com a formação de nações heterogêneas, juntamente com o
trato de instituições impessoais, gradativamente determinadas identidades
étnico-raciais desapareceriam para abraçar a identidade das nações (essas
nações por sua vez tenderiam a ter um caráter global de cultura).
Entretanto, parece que o contrário do que foi previsto começa a ocorrer.
Nunca se verificou tantas manifestações de racismo e xenofobia, bem como de
outros processos discriminatórios, como observados na hodiernidade.
Conforme Silvério (2003, p.79), ninguém questiona que as questões raciais
ocupam lugar de destaque. E quando se fala sobre lugar de destaque, não se
fala apenas com relação ao Brasil. No mundo inteiro, Europa, África, etc.
grupos neo-nazistas, mulçumanos e muitos outros aparecem com tamanha
força que tornam-se destaques nos principais jornais do mundo. No Brasil,
além do preconceito racial está acirrado, com relação à questão indígena
verifica-se um movimento bastante interessante: grupos indígenas
ressurgentes.
Ao que tudo indica, o mundo de cultura universal é uma desculpa que
tenta ser implantada de longas datas para gerar um direcionamento específico
no mercado (que beneficia apenas alguns blocos econômicos). Como efeito
colateral também produz uma sensação de insegurança e vazio nas pessoas
(ver PEREIRA, 1996). Semelhante ao discurso da filosofia oriental, na medida
em que o homem se torna global e universal, sente a necessidade de ter
particularidades específicas. Ser parte de uma cultura homogênea em
comunhão com o todo provoca um sentimento de não pertencimento, o sujeito
sente-se no vazio e inseguro, sem grupos de referência específicos67.Talvez,
isto explique o retorno na atualidade de identidades antigas, da busca
exagerada pelas origens, da tentativa de filiações a grupos étnicos e ou
religiosos específicos. Hoje que o discurso da pós-modernidade fala da quebra
de barreiras nacionais e paradigmas para ascensão de um homem universal, a
busca pelas origens primitivas e a ressignificação das identidades parece
levantar-se como um gigante adormecido e furioso.

67
Muito interessante o artigo Transcendendo a mente tribal (2001), da Professora Dr. Silvia Helena Cardoso da
Universidade Estadual de Campinas. No qual ela expõe o fato de nossa arquitetura cerebral ser moldada para o
comportamento em pequenos grupos (tribos).
96

Alguns discursos manifestam múltiplas identidades em um único


sujeito, afirmando a necessidade de identidade étnica para que o sujeito
mantenha um vínculo com seu passado. Outros reinvidicam a totalidade de
uma identidade plena que se manifeste em todos os setores da vida. E nesta
última categoria encontra-se aqueles que falam da convivência com culturas
outras e os que afirmam da impossibilidade da convivência com o diferente.
Entretanto, em todos estes fica claro a identidade como um elemento
aglutinador, que liga o sujeito a algo maior que ele e que ao mesmo tempo
consegue manter vínculos de solidariedade e proteção.
As identidades antigas ressurgem porque os Estados-nacionais que
apareceram com a proposta de atender as demandas do grupo diante da
catastrófica e caótica dinâmica da economia (enquanto não apenas questões
de mercados e finanças, mas a tudo que represente condições básicas de
subsistência), parecem não responder satisfatoriamente a este processo.
Neste contexto é possível compreender o ressurgimento de diversas
comunidades indígenas a partir de comunidades pobres do Norte e Nordeste
do Brasil. A identidade é uma forma de defesa e sobrevivência.
97

A QUESTÃO INDÍGENA ALAGOANA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR


INDÍGENA APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

1.0 – Introdução

As exposições e apreciações anteriores visavam unicamente


fundamentar e subsidiar as análises que se processarão a partir desta etapa do
trabalho. Na verdade, o centro da dissertação, enquanto problema e hipóteses
encontram-se melhor configurados nesta parte da dissertação.
Nesta parte do trabalho, além de situar a questão indígena em Alagoas
realizo análise da educação escolar indígena, articulando com a exposição das
duas partes anteriores.
Foram observados, com relação à educação indígena em Alagoas, a
atuação de três instituições, a saber: Conselho Indigenista Missionário
(CIMI/AL), Fundação Nacional do Índio (FUNAI/AL) e a Secretaria Estadual de
Educação de Alagoas (SEE/AL).
Não deixei de apreciar e citar trabalhos de inúmeros Estados e Regiões
do país. Todavia, me detive, como fonte ilustrativa e comparativa, nos trabalhos
que falam das comunidades indígenas e a questão educativa do Estado do
Ceará e alguns da Região Norte.

2.0 – A Questão Indígena Alagoana

2.1 – Antes da Independência Até a Visita de Dom Pedro II

Como já foi exaustivamente exposto, no primeiro capítulo desta obra,


Alagoas está intimamente ligada a Pernambuco. No início da colonização
Alagoas e Pernambuco formavam uma mesma capitânia, posteriormente
formam uma mesma província. No aspecto humano a realidade também não é
tão diferente, os grupos indígenas que habitavam a região alagoana quase
sempre eram os mesmos que habitavam as terras pernambucanas68, salvo

68
As famílias de origem portuguesa alagoanas são correlacionadas com as pernambucanas. Mesmo com as
invasões, devemos considerar que os holandeses ocuparam tanto terras de Pernambuco como Alagoas.
98

alguns grupos da região sertaneja de Pernambuco e outros da região das


Lagoas Mundaú e da margem do São Francisco (Paraguaçu para os índios).
Havia em Alagoas grupos de diferentes etnias e muitos dialetos.
Predominavam no Litoral, Zona da Mata e na margem do São Francisco,
durante o período do descobrimento e colonização, os grupos do tronco
lingüístico tupi, em destaque os Caeté e em menor quantidade os Tabajara
(quando da chegada dos portugueses estes dois grupos não mantinham uma
boa relação entre si). Havia ainda uma outra infinidade de grupos de tronco
lingüístico macro-jê que habitavam principalmente a região sertaneja.
Nos registros dos historiadores alagoanos, sem aprofundamento dos
sistemas de organização específicos dos índios, encontra-se menção a grupos
Aconan, Potiguara, Abacatiara, Carapotó, Cariri, Pancararu, Funiô, Xucuru,
Vouvé, Uman, Xocó, Pipiano, Romari, Moriquito, além dos Caeté dominantes,
suas sub-tribos e seus inimigos Tabajara, todos eles habitando a região
alagoana e pernambucana. (ALTAVILA, 1962; BRANDÃO, 1937; COSTA,
1928; DUARTE, 1953; ESPÍNDOLA, 1871; JORGE, 1902; SANTIAGO, 1961).
Embora nem sempre as relações entre indivíduos de um mesmo tronco
lingüístico fossem boas, como era o caso dos Tabajara e Caeté, a disputa
ainda era mais acirrada com grupos de troncos lingüísticos diferentes. Assim,
de um modo geral, os tupi não possuíam bom convívio com os do tronco
macro-jê (chamados pelos tupi de tapuia).
Desde antes da colonização dos portugueses, como já destaquei, houve
amplo processo de miscigenação de europeus com nativos, de tal forma que as
grandes famílias tradicionais alagoanas e pernambucanas encontram-se todas
mescladas com sangue indígena. Por exemplo, uma grande família em
Alagoas e Pernambuco são os Albuquerques, O primeiro casal Albuquerque, é
Jerônimo Albuquerque e a índia filha do principal dos Tabajara (Arco-verde).
Os filhos deste casal, que são inúmeros, casam-se posteriormente, em sua
grande maioria, com indígenas também. Entretanto, não se encontra nenhum
registro de Albuquerque que se identifique na atualidade com a questão
indígena em Alagoas e Pernambuco.
Sabe-se que os Tabajara não foram perseguidos pelos portugueses
como os Caeté, mas eles também desaparecem da história destes dois
Estados. Atualmente não existe um único grupo indígena nestes Estados que
99

afirme descendência dos Tabajara. Ora, os Tabajara foram beneficiados pelos


portugueses com relação aos Caeté, qual a razão de terem desaparecido? A
resposta: inserção a comunhão nacional.
Como já colocava em outro momento, ser brasileiro e ser indígena não
era algo tão distante nem diferente, por isso era simples abandonar a
identidade associada ao primitivo e selvagem, pois mantendo a identidade de
brasileiro mantinha-se a origem sem a associação do primitivo.
Entretanto, em Alagoas e Pernambuco ocorrem episódios únicos. Um
deles é a perseguição aos Caeté. Outro bastante interessante é Palmares.
Para destruição de Palmares Domingos Jorge Velho e outros bandeirantes
mobilizaram uma quantidade enorme de indígenas. Partem de São Paulo e
durante a viagem convocam inúmeras tribos Cariri para a batalha palmarina.
Os grupos indígenas provenientes de São Paulo e outras regiões formam um
enorme cerco às regiões habitadas pelos grupos palmarinos. O cerco se
estende do oeste na região do agreste-sertão, passando o sul na margem do
São Francisco, estendendo-se pelo leste no litoral, região das lagoas e rios
Paraíba e Mundaú. Se for observada a distribuição dos aldeamentos da
atualidade ver-se-á que eles ainda seguem esta mesma distribuição de cerco à
região dominada pelos palmarinos.
Este episódio serve para ser possível entender porque embora haja
predominância de indígenas nesta região, apenas algumas comunidades
indígenas e aldeamentos conseguem sobreviver como tais. Como já foi
exposto exaustivamente, a política de integração a comunhão nacional sempre
foi executada desde épocas imemoriais, mas como e porque algumas
comunidades resistiram?
Para uma comunidade resistir a tal fenômeno ela precisa manter viva a
sua identidade, entretanto esta identidade tentará ser apagada
incessantemente pelo grupo dominante (Cf. primeira parte do trabalho). A
manutenção da identidade, dentre outros fatores, pode se dar por: 1)
isolamento e falta de contato com outros grupos; 2) fomento de alguma
instituição do próprio grupo (como a religião); 3) pura necessidade de
sobrevivência de seus membros em ambiente interpretado como hostil. No
caso alagoano as duas últimas causas são mais pronunciadas.
100

Praticamente todos os aldeamentos indígenas de alagoas da atualidade


não são compostos apenas por índios nativos da região. Este fato é importante,
pois se percebe a partir daí que para os grupos da própria região,
principalmente os de origem tupi, não havia necessidade de auto-afirmação.
Com exceção dos Caeté, os demais grupos não são perseguidos e além disto
estão em suas regiões de origem, portanto não sentem necessidade de afirmar
a todo instante o que são nem de defenderem seus domínios. Este mecanismo
fez com que a maioria das comunidades indígenas de Alagoas se
miscigenasse se integrando à comunhão nacional. Entretanto, os grupos
provenientes de outras localidades, de certa forma ocupam uma posição
desconfortável69.
Este é o caso dos grupos Cariri vindos com Domingos Jorge Velho, pois,
além de estarem numa terra estranha a sua, eram de origem tapuia, etnia
diferente da tupi (que geralmente formava aliança com os portugueses).
Portanto, os próprios índios de origem tupi (que tendiam a se perceber como
mais cultos e nobres que os tapuias) enxergavam, numa manifestação de
etnocentrismo, os tapuias como bárbaros, selvagens e primitivos. Assim, basta
considerar o fato de na época a figura do indígena de um modo geral ser
associada à barbárie que fica simples entender que muito facilmente
abandonava-se a identidade indígena tupi alagoana para tornar-se cristão,
enquanto os tapuias e demais indígenas estrangeiros mesmo tornando-se
cristãos não conseguiam tão facilmente negar a identidade indígena.
Desta forma, os grupos tapuia provindos do Sudeste e do Sertão para
destruição de Palmares mantiveram a identidade indígena como elemento
aglutinador e protetor numa terra estranha, de predominância tupi, e portanto
interpretada como hostil. Como a figura do indígena era associada ao primitivo
e selvagem, os grupos tupi, principalmente os já convertidos ao cristianismo,
entendiam apenas os tapuias como indígenas visto que consideravam estes
selvagens e arcaicos.
Essa argumentação encontra respaldo no fato de não existir na
atualidade nenhum grupo tupi que se afirme indígena nos Estados de Alagoas

69
Este fenômeno é bastante conhecido, grupos em terras estranhas tendem a afirmar sua identidade com maior
força do que afirmariam em suas terras, do mesmo modo ocorre quando são perseguidos. Ver a história dos
hebreus e posteriormente dos judeus, bem como, a afirmação de diversas tradições mantidas em comunidades de
estrangeiros.
101

e Pernambuco, muito embora nem todos os grupos tupi tenham sido


perseguidos. Além disso, todos os aldeamentos que existem na hodiernidade
no Estado alagoano são, praticamente todos, de etnia Xucuru-Cariri. Quando
no século XIX, Dom Pedro II solicitou relatório sobre a quantidade de índios,
aldeamentos e etnias indígenas na Província de Alagoas, os relatores daquela
época afirmavam a grande miscigenação dos índios, a procedência Xucuru-
Cariri de praticamente todas as aldeias e a formação das mesmas por prêmio
pela destruição de Palmares.
Evidentemente que temos indígenas de outras etnias nestes
aldeamentos, pois era prática comum da época considerar o índio como um ser
genérico desrespeitando suas diferenças e particularidades identitárias.
Portanto, rapidamente aqueles que desejavam manter sua identidade indígena,
ainda que membros de outra etnia, precisavam se concentrar nas áreas Cariri.
É fácil perceber que mesmo sendo índio é melhor não se afirmar como tal
dentro de um sistema deste. Afinal, afirmar-se índio de uma outra etnia ou
brasileiro, em ambos os casos, implicava sempre numa mesma coisa: apagar
parte de sua identidade.
Conforme os relatórios enviados da província alagoana no século XIX
para o imperador Dom Pedro II, os Cariri, oriundos do Sudeste e Sertão,
chegam a Alagoas para destruir Palmares no século XVII. Os Xucuru são de
origem sertaneja pernambucana e chegam ao Estado alagoano, no século
XVIII e XIX, fugindo da seca (ALMEIDA, 1999). Vale frisar que tanto os Cariri
como os Xucuru procedem do mesmo tronco macro-jê.
O próprio imperador D. Pedro II em visita a Província de Alagoas, na
segunda metade do século XIX entra em contato com comunidades indígenas
Cariri. Algumas comunidades indígenas alagoanas da atualidade ainda fazem
referência a documentos e contatos com as autoridades imperiais para
confirmar sua identidade e garantir seus direitos. Este é o caso de
comunidades de Porto Real do Colégio e Palmeira dos Índios, por exemplo.
Na atualidade, temos grupos indígenas em Alagoas que não se
nomeiam como Cariri ou Xucuru, mas isto ocorre pelo fato de terem ido para
regiões específicas e assumirem nomes compatíveis com as características
particulares dos lugares, como, por exemplo, os cariri que foram para o
município de Feira Grande, uma região abundante de um determinado tipo de
102

cipó, daí passaram a se chamar pelo nome do cipó que em sua língua é tingui-
botó. Também houve migrações de outros grupos já no século XX como os
Pankararu (de tronco macro-jê também). Mas, os de origem tupi não existem
ou não se reconhecem como tais, embora as comunidades do interior do
Estado, em diversos municípios, tenham claro que muitos dos seus
antepassados são indígenas.
O rítimo de vida imposto pela modernidade tem alterado bastante os
costumes das comunidades interioranas de Alagoas, mas entre os mais velhos,
não é difícil encontrar aqueles que confeccionem artesanatos, utilizem
bodoque, arapuca, mundé, conheçam ritos do catimbó e acreditem em
entidades indígenas como a caapora, o boitatá e o curupira. Todavia, nenhuma
escola estadual ou municipal, muito menos as da rede privada, considera em
seus conteúdos curriculares estes aspectos e a ligação dos mesmos com a
realidade sócio-histórica do Estado alagoano e do Brasil. Certamente com isso
a educação está seguindo seu propósito de formar cidadãos para um
determinado modelo de sociedade. O problema é: que sociedade pode ser
considerada ideal quando é fragmentada de sua historicidade?

2.2 – Aspectos Gerais dos Indígenas e Aldeamentos Alagoanos da Atualidade.

Quem vai a um aldeamento indígena alagoano sem aviso prévio e em


dias não festivos, ao visitar um povoado interiorano dos municípios do mesmo
Estado, logo perceberá que não há diferença estrutural nenhuma dos primeiros
com relação aos segundos. E neste caso, não estou destacando apenas a
problemática do grande grau de aculturação e miscigenação dos indígenas,
mas de como é presente a cultura indígena entre a população alagoana.
Durante o segundo semestre do ano de 2006 coordenei um trabalho
etnográfico das disciplinas Comportamento do Consumidor e Antropologia nos
cursos de Administração e Comunicação Social da Escola Superior de
Administração, Marketing e Comunicação de Alagoas (ESAMC-AL). A maior
parte dos alunos da referida instituição são de classe alta e residem em bairros
nobres de Maceió. Durante uma visita, no mês de outubro, um grupo de alunos
que se locomoviam em um carro tipo furgão separou-se acidentalmente dos
demais ficando longe da orientação e supervisão. A separação ocorreu
103

enquanto íamos da cidade de Palmeira dos Índios em direção ao aldeamento


da Mata da Cafurna (Serra da Boa Vista) em que toda comunidade aguardava.
O carro do referido grupo adiantou-se dos demais e ao pedir informação a um
transeunte este se identificou como indígena e disse que os conduziria até a
aldeia, porém ele levou o pequeno grupo a aldeia da Fazenda Canto, esta
aldeia não fora avisada antes e nem aguardava visita. Quando os alunos lá
chegaram procuraram as lideranças da comunidade e estes informaram que
deveria haver algum engano, disseram também que se tivessem sidos
avisados se preparariam melhor. Um dos lideres comunitários se dispôs a
conduzir o grupo à outra aldeia e assim nos reencontramos e demos
prosseguimento ao nosso trabalho. Porém, o engano foi registrado e os relatos
foram bastante interessantes.
Os alunos em sua maioria estavam habituados a viagens em grandes
centros urbanos e ambientes estilizados, próprios das classes sociais mais
elevadas, que em sua maioria são de origem européia. Portanto, ao longo da
viagem grande parte relatava as características indígenas da população
interiorana, fato que nunca haviam atentado, mas o clima de ter um primeiro
contato com indígenas aguçava suas percepções. Quando se perderam e
retornaram falavam que mesmo diante de toda leitura que fora realizada e de
toda preparação prévia esperavam que as comunidades indígenas tivessem
algo distintivo. “Não vejo a diferença da aldeia que visitamos enganados de um
povoado qualquer”70.
Caso um indígena alagoano não se identifique como tal ele passa
despercebido, como, por exemplo, ia passando o transeunte que conduziu o
grupo para a aldeia. Isto não ocorre pelo fato do biótipo do indígena está
completamente alterado, mas pelo fato de ser comum encontrar na população
alagoana indivíduos com biótipo indígena que afirmam não possuir relação
alguma com grupos indígenas, na maioria dos casos por desconhecimento de
suas raízes.
Todos entendem que um indivíduo que possua traços negróides possui
ancestrais de matrizes africanas, ninguém diz: ele parece com negro. Todos
afirmam: ele é negro. Do mesmo modo ocorre se for encontrado alguém com

70 Aluno de Administração durante exposição em sala de aula na disciplina comportamento do consumidor.


104

traços caucasóides, ninguém dirá que ele parece com branco, mas afirmará
categoricamente que ele é branco. Jamais alguém recriminará ou achará
estranho se este negro ou branco se afirmar como tal e assumir
comportamentos próprios de suas matrizes culturais. Entretanto, em Alagoas (e
na maioria dos Estados do Brasil) quando alguém possui traços indígenas
todos falam que ele parece com índio, como se ele não fosse de origem
indígena. Parece existir uma quebra, uma desconexão entre aquele indivíduo e
seu passado, entre ele e seus ancestrais. Isto ocorre de tal maneira que as
pessoas não conseguem perceber o ser fragmentado e destituído de
identidade que criam. Como se nós enquanto seres humanos não fossemos
uma espécie de continuidade daqueles que nos antecederam. Some-se ainda a
este fato a possibilidade do indivíduo ser ridicularizado caso se assuma
culturalmente com seu passado e historicidade.
O brasileiro de origem caucasóide não precisa negar suas origens
européias, pois existe espaço social para ele. Do mesmo modo ocorre com o
brasileiro de origem negróide que não precisa negar sua origem africana,
embora haja discriminação, ele tem direito de ser reconhecido com suas
origens. Mas, ao indivíduo de origem indígena negam-lhe todos os espaços
sociais e de afirmação étnica dentro do contexto social maior. O branco
continua sendo branco ao se afirmar brasileiro, o negro continua sendo negro
ao se afirmar brasileiro e membro da comunhão nacional, mas o indígena
perde o reconhecimento e o direito de se afirmar como tal quando assume a
identidade de brasileiro. O indígena só pode ser indígena no aldeamento,
mesmo que este não possua diferença alguma das demais realidades sociais.
Ele pode ser índio e brasileiro, mas nunca um brasileiro índio.
Em Alagoas existem nove municípios com aldeamentos indígenas que
se professam de onze etnias diferentes. O município de Joaquim Gomes na
Zona da Mata alagoana abriga os Wassú-cocal. Na margem do São Francisco
há os municípios de Porto Real do Colégio com os Cariri-xocó e Traipú com os
Aconã. No Agreste encontramos Palmeira dos Índios em que ficam os Xucuru-
cariri, São Sebastião com o grupo Carapotó e Feira Grande com os Tingui-
botó. No Sertão temos Inhapi com os Coiupanca, Água Branca com o grupo
Calancó e o município de Pariconha com três grupos, os Geripancó, Catoquim
e Caruazú. Todos os aldeamentos de Alagoas falam o português e
105

desconhecem sua língua nativa, salvo algumas frases ou cantos cerimoniais


em que utilizam à língua nativa quase sempre sem saber o significado dos
termos. Os aldeamentos são na verdade típicos povoados alagoanos com
características de profunda pobreza. São servidos de luz elétrica, utilizam gás
butano na cozinha na maioria dos casos, em outras palavras, estão no mesmo
rítimo e estilo de vida dos que são ditos não-índios. A única exceção são as
festas e cerimoniais de caráter político-religioso.
Como foi posto no tópico anterior à manutenção da identidade se dá
basicamente por três fatores. Em Alagoas são mais destacados os aspectos
institucionais e a hostilidade de uma terra estranha. Praticamente todos os
aldeamentos alagoanos possuem um ritual chamado Ouricuri. O fato de este
ritual existir quase sem alteração em praticamente todos os aldeamentos é
indicativo da origem e ancestralidade comum de quase todos os grupos. O
Ouricuri é um cerimonial religioso que cada vez mais vem adquirindo estatuto
de organização política para a sobrevivência dos grupos e manutenção da
identidade.
Não existem registros antigos da prática do Ouricuri, embora
pesquisadores indiquem pinturas rupestres que remetem ao mesmo. O
historiador Clóvis Antunes relata uma série destas praticas de Ouricuri, mas
sabe-se que inicialmente não eram tão freqüentes como são hoje. Ao
questionar um cacique de Palmeira dos Índios sobre a freqüência das práticas
obtive a seguinte resposta: “Meu filho eu sei que sou índio você sabe que é,
mas como eu faço para esses meninos entenderem o que é ser índio. A festa é
necessária porque faz sentir orgulho do que é e ao mesmo tempo o faz saber o
que é”.
A cerimônia, ou pelo menos o aumento da freqüência das cerimônias,
parece ser uma reação à tentativa de assimilar os indígenas à comunhão
nacional. A cerimônia, portanto, é uma instituição política para organizar e
manter o grupo coeso em torno de uma identidade que os diferencia dos
demais. Entretanto, deve-se ter em mente que a mesma não era tão freqüente.
O Ouricuri de hoje é um cerimonial que remete a um tempo e espaço
cósmico em que passado e presente se encontram para entender a realidade e
avaliar o futuro. No Ouricuri os antepassados se comunicam com os vivos e
formam uma grande unidade dançando juntos o toré. Se o indivíduo é mestiço
106

ou vive como branco, não importa, pois no Ouricuri sua parte indígena se
expandirá e formará um com seus antepassados tornando-se neste momento
índio puro e verdadeiro.
Pode-se dizer que o Ouricuri, para os grupos aldeados, é a razão
principal da sobrevivência na atualidade da identidade indígena, entretanto este
sistema ritualístico é característico de grupos macro-jê, os tupi foram
catequizados, convertidos ao cristianismo. Pelo menos neste caso parece que
Cristo no lugar de ser salvação foi à razão da perdição.
Por fim, em termos de biótipo nada diferencia o indígena alagoano do
que chamam apenas de alagoanos. Com relação a traços comportamentais,
também não é possível encontrar este elemento distintivo a não ser pela auto-
afirmação e aqueles construídos politicamente no seio da comunidade. Os
povoados indígenas, bem como suas construções, arquiteturas e padrões não
se distinguem dos demais povoados não-índios. Os elementos distintivos
parecem ter sido todos instituídos politicamente, e com isso não estou tentando
negar o viés político de toda identidade, mas de como a política neste caso
tenta minimizar ao máximo as expressões indígenas fora dos aldeamentos.
Desta maneira, é possível concluir que, ou Alagoas tem forte expressão
indígena ou os indígenas em Alagoas absorveram ao máximo os padrões da
cultura local, de alguma forma as duas afirmativas juntas também são
verdadeiras.

3.0 – Constituição, Decretos e a Questão Indígena

Embora no Brasil exista um distanciamento das definições legais oficiais


e os processos que se executam de fato no seio da sociedade. Os regimentos
legais oficiais expressam a postura das classes sociais dominantes e das elites
com relação aos ideais sociais e propostas administrativas de questões cruciais
da sociedade. Em outras palavras, o projeto de sociedade que definirá a
proposta educativa aparecerá ainda que de modo subjetivo nas determinações
legais.
Mesmo que se admita a instituição democrática das lideranças
nacionais, não se pode conceber uma ruptura histórica na forma de tratar
107

algumas questões e problemas que acompanham a dinâmica do que chamam


sociedade brasileira desde os seus primórdios.
A ideologia que permeou a montagem da estrutura nacional, desde
épocas primevas, possui um padrão (no sentido antropológico do termo)
europeu. Esta ideologia sempre promoveu a minimização e supressão de
outras expressões que não fossem condizentes com sua proposta.
Dentro desta lógica e em consonância com a exposição realizada,
qualquer teórico concordará que as forças repressoras só são necessárias
quando os mecanismos ideológicos não cumprem o seu papel. Fundamentei
nesta premissa a hipótese deste trabalho. Pois, a Constituição de 1988 pode
apresentar flexibilidade, reconhecimento das diferenças e uma proposta
inovadora, visto que ideologicamente falando as ameaças à idéia de unidade
nacional perderam tanta força que a administração do problema não é mais
algo preocupante. Não há necessidade da utilização de mecanismos
repressores. O sistema montado ganhou vida própria inclusive no discurso
daqueles que poderiam se manifestar de modo contrário. Nesta linha, a
Constituição de 1988 não é uma constituição cidadã de reconhecimento de
diferenças. Ela não é uma constituição que rompe com a política
assimilacionista. Ela é simplesmente o coroamento de um processo que se
inicia a mais de 500 anos.
Durante todo o desenrolar desta dissertação tentei deixar claro como por
meio de diversas estratégias a produção da sociedade nacional tentava
promover a incorporação de indivíduos de origem indígena à comunhão
nacional. A política de integração foi praticada de modo avassalador e
declarada. Esta proposta recebe o nome de política assimilacionista. Esta
política pode mudar o seu formato, mas nunca o seu objetivo e finalidade. Ou
seja, a política de integração/assimilação existiu para cumprir um papel
determinado pelo contexto histórico. Este papel era minimizar as diferenças a
fim de garantir a unidade nacional necessária para a sustentação de uma
identidade coletiva do Estado. Evidentemente, se em decorrência dos
processos de assimilação (que se estabeleceram desde os contatos iniciais) a
diferenciação não se tornar mais um problema a identidade nacional maior, a
política assimilacionista não necessariamente precisará ser efetivada.
108

Dentro desta proposta, torna-se possível entender que a Constituição de


1988 subsidia um novo momento histórico em que a política assimilacionista
não precisa ser efetivada de modo declarado como se procedia em outros
momentos de nossa história.
Sempre que a questão indígena aparecia em qualquer documento oficial
incorporado ao discurso encontrava-se a proposta assimilacionista. Todas as
Constituições e Decretos Leis anteriores a 1988 expunham declaradamente a
integração dos indivíduos e comunidades indígenas a comunhão nacional.
Comunhão nacional significando sempre abandono da identidade indígena.
O Estatuto do Índio criado pela Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973,
dispõe no artigo primeiro sobre a definição do próprio estatuto que: “Esta Lei
regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva
e harmonicamente, à comunhão nacional.” Engraçado a contradição posta,
“preservar a sua cultura e integrá-los”. Como é possível integrar um povo a um
novo sistema de valores sem alterar a cultura dos mesmos?
O mesmo Estatuto ainda encontra-se em vigor e no artigo quatro ele
define três categorias de indígena: 1) o isolado, 2) em vias de integração e 3) o
integrado. Entretanto, no artigo dois ele afirma que os cuidados são extensivos
apenas aos índios não integrados. No desenrolar dos demais capítulos e
artigos fica explícito que o índio integrado não é mais percebido como indígena.
O Estatuto da FUNAI, posterior a constituição de 1988, adota a mesma
postura. O Estatuto foi instituído pelo Decreto 564, em 08 de junho de 1992. No
seu segundo artigo ele define que a finalidade da FUNAI é “exercer, em nome
da União, a tutela dos índios e das comunidades indígenas não integradas à
comunhão nacional”. E no mesmo artigo, um pouco mais abaixo, afirma como
princípio à “preservação da aculturação espontânea do índio, de forma a
processar-se sua evolução sócio-econômica, a salvo de mudanças bruscas.”
No mesmo artigo encontra-se a declaração explícita do Estado nacional
de que suas instituições oficiais que tratam da questão indígena estão
montadas para indígenas não integrados e que por sua vez ainda são regidas
pelo princípio de integrá-los a unidade nacional por meio da aculturação. Pelo
menos no âmbito legal, mesmo que na prática de fato não mais se execute
esta política de modo generalista.
109

Nesta mesma linha o segundo artigo define ainda a proposta educativa


da FUNAI que é “promover a educação de base apropriada ao índio, visando a
sua progressiva integração na sociedade nacional”.
Como se pode observar a política de integração/assimilação ainda
encontra-se presente depois da Constituição de 1988. Entretanto, como havia
exposto anteriormente, esta preocupação com a integração possui uma
especificidade, isto é, ela cumpre o papel de garantir a unidade nacional
sufocando e minimizando as diferenças. Se aqueles que se declaram
diferentes por sua vez passam a se reconhecer como membros do Estado que
outrora os apagava, não haverá necessidade do Estado manter a política de
integração e assimilação.
Por esta razão encontra-se nas ultimas décadas o discurso de que a
política de assimilação vem sendo minimizada desde a Constituição de 1988.
Por exemplo, O Regimento Interno da FUNAI, aprovado pela Portaria nº 542,
em 21 de dezembro de 1993, amortiza a proposta assimilacionista explicita
quando define que uma das finalidades da FUNAI é resguardar a identidade
diferenciada do índio no contexto da sociedade nacional.
É preciso observar que a proposta assimilacionista não precisa mais se
efetivar da forma que se processava em outro momento. Afinal, como afirmei
acima, estamos em um novo momento histórico, e neste novo momento em
que já se minimizou bastante a expressão indígena basta negar a identidade
indígena dos indivíduos integrados (como se eles não tivessem passado) e
garantir os direitos à diferença de uma pequena minoria (muito inferior a meio
por cento da população nacional). Essa minoria terá sempre um aspecto
folclórico, inofensivo como se fosse apenas um pequeno quadro numa parede,
dando um retoque diferenciado e não percebido numa imensa construção.
É validando este esquema que a educação indígena vem se
processando em Alagoas e nos demais Estados da Federação.
Desde a primeira parte deste trabalho defendi a idéia de que a educação
é uma ferramenta de validação e efetivação do projeto de sociedade.
Justamente por essa razão durante toda a dissertação explorava
exaustivamente questões de cunho histórico e social, fazendo parecer que a
educação ocupava um papel secundário nesta obra. Na realidade, tentava
demonstrar a subordinação social das propostas educativas.
110

A educação enquanto tema central só pode ser trabalhada, analisada e


refletida de modo mais profundo quando incorporada à análise do contexto
histórico-social em que a mesma se efetiva.
Para finalizar esta discussão retomo a necessidade do Estado de manter
viva durante tanto tempo a política assimilacionista. Entretanto, discordo da
negativa do reconhecimento de que o Estado nacional está repleto de
indivíduos indígenas integrados. Discordo da negativa tácita do Estado de que
existe o brasileiro índio.
Os pobres e desfavorecidos de nossa estrutura social são de grupo
étnico distinto da classe dominante, entretanto não se percebem como tais,
pois o Estado nacional lhes nega o acesso as suas raízes históricas. Por essa
razão, além de pobres são despersonificados, sem identidade, sem
possibilidade de organização e reivindicação social. São seres dependentes
das decisões estatais, mas de um Estado que apresenta uma ruptura entre o
que são suas raízes históricas e as pretensões políticas para este grupo.

4.0 – A Educação Indígena e as Instituições Pesquisadas.

4.1 – Os Trabalhos Sobre a Educação Indígena

Para concretização deste trabalho analisei todos os resumos disponíveis


no banco de dados de teses e dissertações da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) referentes à questão
indígena de um modo geral. Até o início de 2007 havia 1.497 trabalhos que
faziam referência à questão indígena. Com relação aos trabalhos que tratavam
sobre a educação indígena, além da análise dos resumos, procurei ter contato
com os trabalhos na íntegra. Na CAPES havia 155 trabalhos disponíveis até o
mês de fevereiro de 2007.
Além destes trabalhos consultei as publicações promovidas pelo
Ministério da Educação (MEC) por meio da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), publicações de encontros
de educadores indígenas e os trabalhos apresentados nos Encontros de
Pesquisa Educacional do Norte Nordeste (EPENN) de 2003 e 2005, XVI
111

EPENN e XVII EPENN respectivamente, que tratavam sobre a temática da


educação escolar indígena.
Em Alagoas as discussões e publicações sobre a temática indígena
possuem três momentos históricos bem definidos. O primeiro perdura até a
década de 80 do século XX. As publicações até este período estavam
envolvidas com a figura do Professor da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL) Clóvis Antunes. O segundo momento perdura até o final da década de
90 do século passado e início do nosso século com o também Professor da
UFAL Luis Sávio de Almeida. E o terceiro momento, que perdura até os dias
atuais, é o do surgimento de diversos pesquisadores de diferentes instituições
se debruçando sobre a temática.
Entretanto, tanto os trabalhos dos pesquisadores alagoanos como todos
os demais pesquisados possuem uma característica comum. Todos eles, sem
exceção, falam da realidade apenas dos índios aldeiados. Na verdade, todos
eles de um modo subjetivo, talvez de modo que nem os próprios pesquisadores
tenham percebido consideram indígena apenas os indivíduos que permanecem
ou estão ligados a aldeias. Diferente do indivíduo de origem africana e o de
origem européia o indivíduo nativo só merece a consideração dos
pesquisadores brasileiros quando estão ligados as suas comunidades de modo
menos alterado possível.
Nenhum trabalho, nenhuma publicação dedica atenção ao que o
Estatuto do Índio chama de índio integrado. Índio integrado é um sujeito
invisível, sem reconhecimento e sem direito de existir. Índio integrado é um
sujeito inexistente. Inexistência esta que parece ser validada pela ciência.
No livro organizado por Grupioni (2006), promovido pela SECAD,
encontramos nos trabalhos de Ângelo a referência à diversidade cultural da
montagem do Estado brasileiro. Esta autora trabalha a integração de grupos
indígenas a comunhão nacional, mas, mesmo sendo uma exceção com essa
consideração, não consegue se libertar da concepção que admite e reconhece
como índio apenas o indivíduo aldeiado. Este trabalho não se diferencia dos de
muitos outros pesquisadores.
Praticamente a totalidade destes trabalhos são produzidos por
indivíduos não índios, mas que se encontram bastante envolvidos com a
temática indígena. Na imensa maioria dos casos estes indivíduos são
112

provenientes das elites da sociedade e no princípio observavam o indígena


como um ser exótico e distante de sua realidade. Realmente essa questão é
quase sempre distante da realidade da maioria dos pesquisadores que são
oriundos das elites urbanas. Este fato contribuiu para que o assunto no Brasil
tomasse o rumo que tomou. Pois, estes indivíduos tendem a ver suas
realidades como a realidade total do país, daí concebem que o indígena é um
ser completamente distinto da realidade da maioria dos brasileiros de origem
humilde. Por isso tratam à temática como algo exótico, digno de pena e
apreciação, como se a comunhão nacional fosse algo e a questão indígena
fosse outra. Para eles, mesmo com toda a sua grande boa vontade, índio e
aldeia são uma mesma realidade. Educação indígena merece ser discutida
apenas no âmbito da realidade das aldeias dos índios não integrados.
Mesmo com todos os méritos e louvores que estes pesquisadores
merecem não se pode deixar de evidenciar uma cegueira geral que conduz
todo o processo de análise da questão indígena nacional. No Brasil a questão
indígena vai muito além da realidade das aldeias, ela é tema central na própria
estruturação da sociedade nacional e principalmente da pobreza e exclusão
social.
Perpetuar o discurso de educação indígena restrita a realidade das
aldeias é validar o processo de desmantelamento destes povos que se executa
a séculos. Deve ser lembrado que o maior massacre dos povos indígenas no
Brasil não se deu por epidemias e guerras, mas pelo processo de inserção
destes grupos a comunhão nacional. Não é possível discutir educação escolar
indígena como se esta fosse uma realidade apenas das aldeias. A realidade
indígena perpassa toda a realidade nacional, com exceção das elites, e não
apenas a realidade das aldeias.
Ou o sistema educacional brasileiro incorpora a realidade do brasileiro
índio no seu currículo escolar, ou o índio brasileiro estará fadado a desaparecer
enquanto realidade existencial, passando a ser apenas uma figura folclórica e
montada para apresentações e satisfação da curiosidade do olhar do outro.
113

4.2 – O Conselho Indigenista Missionário de Alagoas

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) é uma instituição da Igreja


Católica Apostólica Romana. No Brasil a Igreja Romana atuou, durante o
período colonial, como instituição ideológica difusora e formatadora dos
padrões do mundo e estilo de vida europeu. Entretanto, durante este percurso
não foram raros os casos de personalidades que exaltaram e valorizaram o
estilo de vida ameríndio71. Embora durante toda a história da Igreja seja
possível encontrar muitos personagens que entendem a missão cristã como a
luta pelos desfavorecidos, apenas no século passado verificou-se diversos
segmentos da Igreja com a proposta de implantar uma dinâmica efetiva de
atuação organizando as camadas mais baixas da sociedade.
Neste contexto surgem os movimentos eclesiais de base, a teologia da
libertação e as diversas pastorais. Estes movimentos, ou pelo menos alguns
deles, inicialmente não são bem vistos por setores mais tradicionais da Igreja.
Além disso, muitas vezes, estes movimentos aparecem vinculados à execução
de determinadas propostas políticas o que contribuía ainda mais para uma má
interpretação destes movimentos. Todavia, mesmo com todas as críticas esta
forma de atuação religiosa tem ganhado peso e contribuído significativamente
com a organização de inúmeros segmentos sociais que são marginalizados e
excluídos.
O CIMI aparece configurado com este “novo” modo operante da Igreja.
Embora, em seu nome destaque-se o termo missionário, a proposta do CIMI
não é a de conversão dos povos indígenas, nem tampouco a de integrá-los ao
contexto nacional. Antes sim, a missão declarada do CIMI é a de favorecer e
contribuir com a continuidade e sobrevivência dos grupos indígenas como tais.
O CIMI surge no ano de 1972 e possivelmente pelo fato de ser parte de
uma estrutura milenar que lida com os povos indígenas a séculos, pode
oferecer a seus missionários uma visão bastante diferenciada do que é ser
índio no Brasil.

71
O Pe. Antonio Vieira elogia a forma que os indígenas tratam suas crianças e diversos outros aspectos da cultura
indígena. Durante a guerra guaranítica a Companhia de Jesus, ou pelo menos grande parte de seus membros,
rompe com a postura ortodoxa da Igreja e fica do lado dos indígenas. Muitos outros missionários da Igreja
compreendem que a efetivação da proposta cristã não está em abraçar a conversão ao cristianismo, mas na luta
pela manutenção de sistemas culturais específicos e diferenciados.
114

Durante entrevista, realizada no segundo semestre do ano de 2005, com


missionário do CIMI, este argumentava que o índio é índio na aldeia ou na
Ponta Verde72. Contava de uma situação que havia presenciado na Região
Centro-Oeste com os índios terenas. Conforme o missionário havia queixas
devidas a candidaturas indígenas para vereadores, o argumento era que os
índios iriam deixar de ser índios com esse tipo de participação (afinal essa
atuação indígena rompe com o ideal folclórico). Na verdade, dizia o
missionário, o que se verificou não foi o abandono da identidade índia, mas
uma nova forma de atuação indígena. Em outras palavras, o índio não se
mantém índio apenas no contexto da aldeia, da reserva73. Evidente que algo
muda neste sujeito, mas ele não se destrói enquanto ser.
A atuação do CIMI em Alagoas tem se mostrado bastante pertinente na
organização interna de diversas comunidades e no apoio e articulação política
aos povos ressurgentes (sobreviventes). No Brasil inteiro muitos povos foram
declarados extintos, desaparecidos e(ou) perderam o direito de serem
reconhecidos oficialmente como tais. Graças à atuação do CIMI junto a outras
pastorais diversas comunidades conseguiram se reorganizar e reivindicar
direitos anexados a identidades diferenciadas.
O CIMI em Alagoas resgata a identidade de muitas comunidades
marginalizadas e sua atuação é bastante respeitada pelas comunidades
indígenas de Alagoas.
Com relação à Educação o CIMI não mantém nenhuma escola indígena,
pois sua principal missão não é a de manter instituições dentro das
comunidades indígenas, mas a de auxiliar e prestar assessoria a estas
comunidades para que elas possam se organizar e reivindicar seus direitos
junto às autoridades competentes. Neste sentido o CIMI parece ser muito
competente mantendo uma atuação significativamente efetiva. Além disso, o
CIMI, mesmo com a escassez de recursos promove uma boa comunicação das
comunidades indígenas com as demais comunidades da comunhão nacional.
Todavia, manter uma proposta diferenciada no meio de um projeto
imenso, em que todos gritam com vozes confusas, não é fácil. De tal modo que

72
Bairro nobre de Maceió, Capital de Alagoas.
73 Muito interessante sobre este assunto é o trabalho de Marcos Terena publicado em 2003, pelo Programa
Diversidade na Universidade do Ministério da Educação.
115

mesmo esta proposta de atuação terá suas distorções devido à ideologia do


momento. Para compreender isso é preciso ver o posicionamento do CIMI com
relação aos índios na cidade:
As intensas e constantes pressões sobre os territórios e culturas
indígenas resultam em migrações constantes de povos inteiros ou de
famílias indígenas. Nesta busca por melhores condições de vida
muitos índios tem se deslocado para centros urbanos. Esta situação se
coloca como um novo desafio para a atuação do Cimi. É necessário
conhecer melhor esta realidade, os motivos que empurram algumas
famílias indígenas para fora de suas áreas tradicionais e iniciar um
diálogo sistemático com eles, na perspectiva de garantir os seus
direitos e articular suas lutas à questão indígena mais ampla74.

Embora a visão seja bastante diferenciada do modo operante de


diversas outras instituições governamentais e não governamentais, notemos
que a colocação “novo desafio” da uma conotação de que o problema é
recente e nunca ocorreu antes. Ou seja, mesmo o Cimi, em muitos casos não
consegue fazer uma leitura consistente e realista da configuração indígena no
Brasil, principalmente quando esta se dá no contexto urbano.

4.3 – A Secretaria de Estado da Educação de Alagoas

Na Constituição de 1988 o artigo 231 é dedicado especificamente às


populações indígenas. Este artigo reconhece o direito à diferença: “São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições [...]”.
Posterior a Constituição surge uma série de reformulações nas políticas
referentes à questão indígena, muitas delas modificando o papel central que
antes ocupava a FUNAI. No ano de 1991, por exemplo, o Presidente Fernando
Collor promulgou o Decreto n° 26. No artigo primeir o determinou-se o Ministério
da Educação para “coordenar as ações referentes à educação indígena, em
todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai”. E no artigo segundo
assegurou-se que as ações previstas no artigo primeiro seriam desenvolvidas
pelas Secretarias de Educação dos Estados e Municípios.

74
[citado 03 fevereiro de 2007]. Disponível na World Wide Web: < http://www.cimi.org.br > .
116

Muitas escolas indígenas no Brasil passaram a ser administradas pelos


Municípios, outras passaram a ser geridas pelos Estados. Entretanto, esta
indefinição de quem realmente seria o responsável pela educação indígena fez
com que Estados e Municípios ficassem passando as responsabilidades um
para o outro enquanto o tempo passava e nada era efetivamente realizado ou
amarrado com relação à educação indígena.
Em Alagoas este jogo de empurra-empurra perdurou anos. A
precariedade dos municípios alagoanos em que havia aldeamentos conduziu
os índios a reivindicar por diversos momentos que o Estado assumisse a
execução do processo educativo.
Neste contexto entra em cena o Núcleo Interinstitucional de Educação
Escolar Indígena (NIEEI/AL) tendo como delegada Maria Ângela Cavalcante de
Melo (MEC-AL) e a participação da Antropóloga da UFAL, Silvia Aguiar, do
Departamento de Ciência Sociais (CSO) e de Carmem Bandeira do Centro Luis
Freire, além de muitos outros participantes. O NIEEI/AL tinha a função de
articular à dificuldade de comunicação e efetivação de políticas entre as
diferentes instituições envolvidas no processo de execução da educação
escolar indígena.
Neste período havia quatro escolas municipais em Joaquim Gomes com
os Wassu-cocal, duas em Palmeira dos Índios (Fazenda Canto e Mata da
Cafurna) com os Xucuru-cariri, uma em Feira Grande com os Tingui-botó, uma
em São Sebastião com o grupo Carapotó (Fazenda Taboado), outra em Porto
Real do Colégio dos Cariri-xocó e uma em Pariconha com os Geripancó. No
total havia dez escolas em áreas indígenas ligadas às redes municipais de
educação.
O Estado, embora desse assistência, não possuía nenhum programa
específico de educação indígena e como a partir da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB) 9.394 de 1996 ficou definido que a
responsabilidade do Estado seria prioritariamente sobre o Ensino Médio, este
não necessariamente desprenderia esforços para a educação indígena já que
esta em Alagoas se detinha mais no Ensino Fundamental. As comunidades
indígenas alagoanas simplesmente não tinham demanda que justificasse a
estruturação de uma escola de nível médio em suas aldeias. Desta maneira, os
117

municípios assumiam a responsabilidade das escolas das aldeias que


trabalhavam apenas com o ensino fundamental75.
No ano de 1999 o Conselho Nacional de Educação (CNE) formula um
parecer que culmina em março numa resolução que lança a responsabilidade
da educação indígena para o Estado, mas por conta de uma brecha no artigo 9
a execução continuou sendo do município. Terreno confuso, um é responsável,
mas o outro era quem efetivava a ação.
Além disso, havia muitas escolas municipais e estaduais que não eram
indígenas em áreas rurais e outras em áreas urbanas que atendiam a alunos
indígenas. Isso geralmente ocorria por incapacidade estrutural das escolas das
comunidades indígenas atender suas carências. Os alunos indígenas que
desejavam cursar o ensino médio não podiam efetivar este processo na própria
comunidade visto que apenas uma pequena minoria conseguia chegar a este
nível de escolaridade.
Mesmo com todas essas dificuldades e indefinições legais a Secretaria
de Estado da Educação de Alagoas (SEE/AL), por meio da figura de José
Gerson de Farias, mostrou-se bastante atuante e participativa nas discussões
em torno dos rumos da educação indígena em Alagoas. Entretanto, as
dificuldades eram e são ainda hoje inúmeras. Desde a parte estrutural até a
parte pedagógica com carência de professores e dificuldades na definição de
um currículo diferenciado.
Com tudo isso, a SEE/AL junto às comunidades indígenas consegue
montar um projeto piloto para construção de escolas indígenas nas
comunidades. O projeto das escolas na verdade foi montado pelos próprios
índios com a coordenação da SEE/AL. Os índios então solicitam ao Fundo
Escola (SEE/AL) que construíssem as escolas e administrassem as mesmas.
Como até então não havia nenhum programa ou projeto de financiamento para
construção de escolas indígenas, o dinheiro viria via educação rural.
Foi firmado neste período (1999/2000) um convênio entre a União e o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para construções de escolas,
como não havia ainda projeto concluído no período, aprovou-se o projeto das
escolas indígenas que se tinha na época. Faltou uma série de detalhes no

75
Neste mesmo ano de 1996 o Fundo Nacional de Educação (FNDE) financia capacitação de
professores indígenas em Alagoas por intermédio da UFAL.
118

mesmo, como, por exemplo, abastecimento de água encanada, o que


acarretou em problemas posteriores.
Em seguida uma série de problemas do Estado alagoano referente à
aplicação específica de recursos e ao ajuste fiscal, fez com que o mesmo
ficasse impedido de receber qualquer tipo de financiamento para construção de
escolas. Acontece que existe a determinação de que 25% do orçamento seja
para aplicar na educação, entretanto na época este percentual girava em torno
de 24,7%, com a gestão de Ronaldo Lessa. Conforme minha fonte de dados,
no governo anterior a Ronaldo Lessa apenas 9% eram destinados a
educação76.
Para que o projeto pudesse se tornar exeqüível a solução encontrada,
após solicitação dos índios de que o Ministério Público intervisse, foi firmar o
convênio com a FUNAI. Foram firmados dois convênios, um para construir em
2000 e outro para equipar em 2001. No total foram construídas seis escolas até
2002, entretanto uma ficou inacabada (Fazenda Canto), pois a empresa
responsável pela obra faliu. Este episódio foi um contratempo que demandou
uma série de problemas até que fosse resolvido em partes anos depois. O
quadro abaixo lista os aldeamentos e as cidades que foram construídas
escolas indígenas.

Quant. Aldeia Cidade


1 Wassu-cocal Joaquim Gomes
1 Mata da Cafurna (Xucuru-cariri) Palmeira dos Índios
1 Fazenda Canto (Xucuru-cariri) Palmeira dos Índios
1 Tingui-botó Feira Grande
1 Cariri-xocó Porto Real do Colégio
1 Geripancó Pariconha

As escolas não possuíam bebedouros e só poderiam funcionar conforme


as determinações legais com abastecimento de água e com bebedouros. O
Estado compra os bebedouros e até o final de 2005, além dos bebedouros,
possuía todos os equipamentos comprados para o funcionamento das escolas,
porém os mesmos ainda não estavam nas referidas escolas em 2006. As
escolas, por sua vez, começavam a ser utilizadas pelas comunidades mesmo
de modo precário.

76Todos os dados numéricos deste parágrafo foram obtidos em entrevista a José Gérson, realizada em novembro
de 2005 no Setor de Educação Indígena da SEE/AL.
119

Com relação a SEE/AL, durante este período, ela passava por


transformações. No ano de 2000, com a gestão da Secretária Maria José,
houve uma reestruturação da SEE/AL. De núcleo passou a ter patamar de
setor subordinado diretamente ao Gabinete da SEE/AL, designado como um
projeto dentre os programas desenvolvidos pela SEE. Passou a ser designado
Projeto de Educação Escolar Indígena ou Pró-Indígena. Na prática está
mudança estrutural não trouxe grandes contribuições.
Depois de todos os clamores, pressões e solicitações, das comunidades
indígenas e entidades não-governamentais em junho de 2003 o Governador
em exercício Luis Abílio, por meio de decreto, faz a estadualização das escolas
indígenas de Alagoas77. O Estado de Alagoas passa a ter quinze escolas
indígenas no total. Pois, outras construções bastante precárias, tipo palhoções,
foram levantadas posteriormente.
Muitas comunidades indígenas devido à precariedade dos municípios
em que estão inseridas, as dificuldades internas e falta de demanda suficiente,
são supridas pela rede formal de ensino, sem nenhuma diferenciação curricular
ou formação específica dos professores. Este ponto reforça a idéia que a
reserva é no fundo uma espécie de limitação, de exclusão e de extinção das
possibilidades de expressões e construções indígenas. Visto que, continuam
funcionando como reduções da época jesuítica. Como muitos migram, reduz-se
bastante a quantidade populacional de algumas comunidades indígenas, daí
elas perdem força política de reivindicação. Suas populações são então
obrigadas a viverem em conjunto com as instituições educacionais da rede
normal de educação que quase nada oferece de expressão indígena, mesmo
com a constituição da nação enquanto povo e história tendo um enorme peso
destas sociedades. E os que migram dentro de algumas gerações são
apagados da história e da possibilidade de identificação indígena.
Nos últimos anos, com o surgimento da SECAD, as novidades foram à
definição da atuação desta secretaria e a elaboração de propostas mais
condizentes com a Lei 10.172 de 09 de Janeiro de 2001 (Plano Nacional de
Educação). Como resultado surgiram as Resoluções FNDE/CD Nº 12 de 05 de
maio de 2005 e FNDE/CD/Nº010 de 28 de março de 2006 definindo os papeis

77 Decreto Nº 1.272, de 04 de junho de 2003


120

das secretarias de estado, dos estados, dos municípios e das entidades


privadas sem fins lucrativos. Estas resoluções indicam as fontes de
financiamento e a forma de solicitação das mesmas, bem como as
responsabilidades para a formação de professores indígenas e construção de
escolas. Todavia, mesmo com todas essas definições legais, a atuação da
Secretaria Estadual de Educação de Alagoas ainda mostra-se bastante tímida,
principalmente por conta de nunca ser tratado pelo governo como ação
prioritária a educação indígena.
Esta atuação da SEE/AL continua pautada na idéia das reservas e
mesmo que suas lideranças considerem de maneira bastante ampla a
identidade indígena, na prática não há possibilidades com os recursos
disponíveis de trabalhar a realidade indígena fora dos aldeamentos. Este fato
conduz-nos a pensar a identidade indígena como algo limitado e condicionado
a aldeia.
O processo de assimilação estabelecido durante séculos foi substituído
pelo direito à educação diferenciada, que quando se executa, executa-se de
modo precário apenas nas comunidades indígenas. Nas demais escolas do
Estado de Alagoas e da nação toda estrutura de ensino ainda é eurocêntrica
tentando trabalhar elementos da cultura africana.

4.4 – O Setor de Educação da Fundação Nacional do Índio de Alagoas

A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) surge em pleno governo militar


no ano de 1967, substituindo o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Ambas as instituições aparecem com a tentativa de facilitar o processo de
integração do indígena a comunhão nacional. Como vimos, a partir da
Constituição de 1988, essa política de assimilação começa a ser reduzida,
entretanto minha argumentação é de que esta política se manteve para cumprir
um papel, como na atualidade histórica não é mais necessário esse papel, a
legalidade que ampara as práticas políticas também pode ser alterada. Hoje os
povos indígenas somam menos de 0,5% da população nacional, não são mais
ameaça (este percentual não leva em consideração os indígenas das zonas
urbanas e os integrados).
121

Subjetivamente a FUNAI que não possui mais o mesmo raio de ação,


continua exercendo a mesma política de minimização das expressões
indígenas.
A FUNAI hoje não é mais a responsável direta pela educação indígena.
Mesmo assim possui um setor de educação indígena que na prática funciona
muito mais como um órgão fiscalizador da atuação e desempenho das demais
entidades que se envolvem com o trabalho indígena.
A FUNAI, comparada ao passado, não ocupa mais um papel central,
mas, alguns elementos são interessantes para nossa análise. Primeiramente,
para muitas comunidades indígenas e índios quem valida a identidade do ser
índio é o reconhecimento da FUNAI. Não possuir o reconhecimento dos órgãos
oficiais é o mesmo que não possuir identidade indígena. Este ponto faz com
que muitos povos que oficialmente deixaram de existir, hoje mantenham uma
luta constante para o seu reconhecimento como povos indígenas via FUNAI e
Procuradoria Geral da República. Este é o caso, por exemplo, dos povos ditos
ressurgentes, que se proclamam como sobreviventes.
Na primeira parte desta dissertação terminei com uma série de
perguntas que acredito já devem ter sido respondidas no desenrolar desta
dissertação. Entretanto, uma pergunta em especial será destacada a seguir:
será que os brasileiros de origens indígenas inseridos na comunhão nacional
estão dispostos a renunciar suas identidades indígenas?
Pois bem, durante entrevista a funcionárias da FUNAI, no ano de 2005,
referente à educação indígena registrei exposições bastante consistentes e
esclarecidas da questão indígena em Alagoas.
Os funcionários da referida instituição chegam em alguns casos a sofrer
ameaças por reivindicarem a favor da questão indígena, como foi um caso
relatado por funcionária que recebeu visita de um prefeito de Pariconha
nervosíssimo e extremamente irritado pelo posicionamento da FUNAI em favor
dos indígenas em questão referente à educação. Alguns funcionários da FUNAI
são indígenas. Indígenas que moram na cidade e possuem todo o estilo de
vida de um cidadão comum, mas pelo fato de estarem ligados a FUNAI, e isso
lhes parecer conveniente, continuam com a identidade indígena.
Dentro desta realidade, uma fala chamou a atenção. Enquanto
conversava sobre a questão educativa e a identidade indígena, uma
122

funcionária começou a falar do Programa Universidade para Todos (PROUNI)


do Governo Federal. Mostrava-se bastante indignada, pois a Constituição não
define critérios claros para quem é ou quem deixa de ser indígena, daí ocorreu
que como o programa privilegiava indígenas, muitos cidadãos se identificaram
como tais e se inscreveram no programa como indígenas. Muitos ganharam
bolsas como indígenas e a funcionária reclamava e afirmava que estava de
viajem marcada para resolver este problema em Brasília. Conforme sua fala:
“não é porque a pessoa parece com índio e diz que é índio que ela realmente
é.”
Nesta fala da funcionária encontrei a síntese de nossa discussão: o que
realmente faz alguém ser indígena no Brasil? Embora legalmente a auto-
afirmação defina o ser indígena, segundo a funcionária indígena só é indígena
aquele que nasce numa reserva ou numa aldeia, possuindo como referencial a
sua isolada comunidade. Isolada, pois os sistemas legais parecem ignorar o
processo histórico que se deu no Brasil e a dinâmica das identidades. Pois,
embora o sistema aceite a auto-identificação os programas de apoio e qualquer
outro benefício são específicos para as aldeias isoladas.
Entretanto, de minha parte, contrário a concepção dos funcionários da
FUNAI, pergunto-me: o que é realmente o brasileiro?
Entendo que se alguém se identificou como indígena, mesmo que tenha
sido para ser beneficiado por um programa, algo desta identidade este sujeito
carrega. Identidade é a forma como as pessoas se afirmam no mundo,
principalmente quando se fala de identidade étnico-cultural. Ela não está
condicionada a chancela de órgãos oficiais, embora de longas datas eles
tentem fazer isso para exercer o controle.
Em síntese a identidade indígena chegou a um ponto dito ótimo para as
expectativas e projetos do Estado. Ela que sempre foi um contra-senso a
estruturação e montagem do Estado nacional, hoje parece precisar dele para
ser validada e reconhecida. A identidade desta forma é inofensiva, limitada e
condicionada a uma força externa. Deixa de ser neste contexto algo
relacionado à afirmação do homem enquanto ser histórico. Deixa de ser
elemento aglutinador que favorece a defesa de um grupo.
123

5.0 – Fatos Históricos que Comprovam a Argumentação

Posterior a Constituição de 1988 há uma movimentação diferente


referente às posturas educacionais e a relação com as identidades étnicas
particulares. Como já explorei estes pontos no desenrolar da dissertação,
penso ser conveniente, neste momento final, apresentar alguns casos que
comprovam a argumentação realizada até o presente.
O primeiro caso é o da Ilha de Marajó e o do povo Mura da floresta
amazônica, situado na Região Norte do País. O Segundo caso diz respeito aos
povos indígenas do Ceará e a sua escola diferenciada.

5.1 – Alguns Processos de Escolarização Indígena da Região Norte

Um pressuposto fundamental desta dissertação é a crença na


impossibilidade de sobrevivência de grupos isolados. Este pressuposto está
fundamentado no fato de que nenhum grupo conseguiu esta façanha em
nenhum momento histórico conhecido.
Sempre que os grupos tentam praticar a sobrevivência cultural sem a
perspectiva da expansão e difusão dos seus modos de vida eles acabam
ilhados e enfraquecidos. O modelo educacional diferenciado, da forma que vem
sendo trabalhado, apresenta o coroamento final do processo de isolamento de
grupos.
Não defendo que o processo de educação diferenciado deixe de existir,
defendo que além do processo de educação diferenciada deve existir uma
releitura curricular da forma que é apresentado o elemento indígena no ensino
formal normativo. Esta defesa se fundamenta no peso deste elemento na
constituição do que chamam sociedade brasileira. Defendo também a
necessidade de uma releitura do que se entende como indígena.
O trabalho de Araújo (2003) sobre a forma em que são identificados os
povos da floresta, ilustra bem essa argumentação acima. Conforme a autora, a
forma como os sujeitos são identificados é um exemplo típico de sujeitamento
do sujeito78. A pesquisa de Araújo na Ilha de Marajó denuncia a origem

78
A idéia de sujeitamento do sujeito parte de algumas linhas da Análise do Discurso. Neste caso a autora
se referenda em Michel Focault.
124

indígena da população que passa a ser classificada a partir de seus modos de


produção. Passando a serem chamados de pescadores, vaqueiros, caçadores,
etc. de tal modo que esses dizeres gradativamente afastam esses povos de
sua ancestralidade indígena visto que há uma interpretação negativa do
homem dito caboclo.
Este processo acima foi e continua sendo comum em diversas regiões
do país e a educação normativa por não contemplar uma realidade indígena de
um modo diferenciado continua validando e dando força a este processo
secular. Tanto que Araújo quando propõe a composição de seu texto ela o faz
como elemento de reflexão para a relação cultura-escola, pois a escola formal
não contempla esses aspectos.
O povo Mura, por exemplo, que agora encontra processos de formação
escolar diferenciado, quase deixa de ser reconhecido como povo indígena.
Hoje, em decorrência do intenso e violento contato com a sociedade
regional, os Mura foram progressivamente absorvidos pela civilização,
perdendo grande parte do seu acervo cultural. Segundo o
Mapeamento Antropológico, realizado pela SEDUC, na região de
Autazes, em 1998, das antigas práticas culturais tradicionalmente
realizadas pelos Mura, apenas as atividades de artesanato ainda são
praticadas. (CAVALCANTE et all, 2003)

Como se verifica, na citação acima a principal razão de desaparecimento


e redução dos Mura foi à inserção a comunhão nacional. Este povo mesmo
depois de já está bastante integrado e ter vários de seus costumes tradicionais
esquecidos foi resgatado graças aos novos direcionamentos políticos da
sociedade brasileira. Hoje a grande discussão que se faz é com relação à
proposta educacional escolar para este grupo que deve ser diferenciada.
A mesma sorte não tiveram as outras milhares de comunidades
indígenas que se integraram à comunhão nacional antes da Constituição de
1988.
De qualquer modo, é possível entender que mesmo que estes povos
tenham sido integrados em períodos bem anteriores a constituição isto não é
razão para tratar à identidade indígena no seio da sociedade brasileira como
inexistente e desaparecida. É difícil entender porque o currículo escolar ainda
trata a população brasileira como se a mesma não possuísse o elemento
indígena na sua composição. Este elemento existe e com grande peso.
125

A minimização deste elemento no seio da sociedade faz com que esta


expressão perca força política. Daí, a educação escolar diferenciada acaba
sendo prejudicada também, pois as vozes que poderiam reclamar pela falta de
recursos não têm força. Este é o caso de Alagoas em que as escolas e todo o
sistema de educação indígena se encontram em situação precária devido à
falta de força das comunidades que são pequenas e precisam reclamar
sozinhas, sem o apoio e a participação social.

5.2 – A Educação Escolar Indígena do Ceará

O Estado do Ceará contempla uma realidade semelhante à alagoana.


Até a década de oitenta afirmava-se que não havia mais grupos indígenas no
Ceará. Do mesmo modo se fazia à leitura com relação aos demais Estados do
Nordeste.

A idéia do ‘desaparecimento’ dos índios aconteceu nas declarações de


políticos e na produção intelectual local, desde a segunda metade do
século XIX [...]. Até recentemente, a região do nordeste brasileiro ficou
conhecida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e por
antropólogos como a porção do território nacional em que não havia
um número tão expressivo assim de índios ou que, até mesmo, não
mais existiriam, como se acreditava no Ceará. (AIRES, 2000a)

Entretanto, como muito bem atesta Nascimento (2005) em sua defesa


da existência destes povos no Ceará é possível entendê-lo também em muitas
outras partes do país.

Assim, por exemplo, anterior ao período atual, os povos cearenses


continuavam existindo, mas, apenas se utilizavam de outras
estratégias, como o silêncio, para garantir sua sobrevivência física e
cultural.
Hoje diversas comunidades indígenas do Ceará são reconhecidas como
tais. Na atualidade essas comunidades negociam a prática de educação
indígena diferenciada como se verifica nos últimos trabalhos apresentados no
EPENN XVII, no ano de 2005, por Nascimento e por Souza, ambos tratando da
Educação escolar indígena diferenciada.
Embora estas conquistas sejam significativas elas podem ser
consideradas não expressivas quando observado o contexto de formação da
126

sociedade cearense como um todo. O peso da identidade indígena no Ceará,


historicamente falando é tão significativo que o habito indígena de dormir em
redes tornou-se marca registrada do cearense enquanto estereótipo79, assim
como também o reconhecimento de cabeças chatas (característica dos crânios
indígenas).
Embora a conquista de educação diferenciada seja um grande salto ela
representa muito pouco se for considerado o processo de minimização da
identidade indígena que se estabeleceu historicamente. Utilizando o exemplo
do Ceará, a educação escolar daquele Estado como um todo deveria ter fortes
características da educação indígena, e não apenas uma pequena quantidade
de grupos deveriam ter acesso a um modo autóctone de compreender a
realidade existencial.
Mudança curricular do ensino normativo não é simples. Mas, muitos
pontos precisam ser rediscutidos e re-analisados sobre outros olhares.
Discutir a educação indígena e o processo de sobrevivência destes
povos é bem mais complexo do que a maioria dos estudiosos considera e
entende. Índio na sociedade brasileira não é um ser alienígena e exótico que
nada tem haver com o próprio ser da maioria dos brasileiros.

6.0 – Análise Geral da Educação

O problema desta dissertação é compreender de que forma a educação


escolar indígena alagoana atua como ferramenta de ajuste ao projeto de
sociedade brasileira instituído historicamente?
Primeiramente deve ser destacado que antes da Constituição de 1988
não havia uma proposta educativa específica para indígenas. Não havia
proposta curricular específica e muito menos uma reflexão objetiva das
instituições governamentais sobre o direcionamento diferenciado da educação
que se deveria processar com indígenas.
A política educativa praticada com os povos indígenas antes da
Constituição de 1988 era a mesma praticada com os demais brasileiros

79Conforme Rodrigues (1981) o estereótipo não é um tipo inexistente, ele geralmente é um tipo que aparece com
muita freqüência em um determinado grupo, mas ele não corresponde à realidade de todos os membros daquele
grupo.
127

entendidos como não-índios. As raras exceções de escola nas aldeias,


mantidas pela FUNAI ou entidades religiosas, insistiam em se fazer presentes
para aliciar os indígenas as suas propostas específicas. A escola que lá havia
tentava trabalhar uma visão de mundo pautada nos referenciais eurocêntricos e
mergulhar o indígena na atmosfera nacional apagando-lhe a identidade nativa.
Durante séculos o acesso à educação para indígenas se processava de
modo a promover a integração deste a sociedade nacional. Este processo se
dava por meio do desmantelamento da identidade nativa associando-a ao
passado e ao precário. Ao mesmo tempo se ofertava um novo modelo
identitário alinhado aos projetos políticos de uma identidade nacional geral
pautada na idéia de etnogêneses, em que o mestiço é a figura central. Todavia,
essa figura do mestiço referenda-se numa história de perspectiva eurocêntrica,
de tal modo que se negligenciam todos os aspectos e manifestações nativas na
maneira de compreender a historicidade da nação.
Embora não seja possível imaginar um único ser pensando e
direcionando o rumo histórico da educação, as bases cristãs de nossa
sociedade, a arquitetura das famílias monogâmicas, o discurso jurídico e
demais manifestações do modo de ser da dita nação brasileira, deixam claro
um determinado modo cultural que foi reproduzido e não deu espaço a outro.
Educação até antes de 1988 era entendida no discurso jurídico oficial
como uma base sólida que não precisava ser processada de um modo
diferente para pessoas diferentes. Educação era inquestionável e deveria ser
igual para todos, não havia educação indígena, havia “educação para o povo
brasileiro”.
Este formato de educação geral para o povo brasileiro obrigava o
indígena a ser povo brasileiro e não mais indígena brasileiro.
Posterior a Constituição de 1988 começa a surgir no discurso oficial, em
diversos pontos do país, uma proposta de educação específica para os povos
indígenas. Alagoas começa a se preparar para entrar na dinâmica do restante
do país. Todavia, este discurso esconde a faceta histórica da real proposta
educativa: minimizar a expressão da identidade indígena.
A proposta de educação diferenciada da maneira que é processada,
embora venha salvaguardar os grupos indígenas sobreviventes até o momento,
não atende apenas os interesses de grupos indígenas específicos, mas
128

também coroa o processo de minimização da expressão indígena como um


todo na nação. A partir deste momento político os demais brasileiros passam a
ser apenas brasileiros e obrigados a perceberem sua história dentro de moldes
com referenciais europeus.
O brasileiro índio deixa de existir negligenciando-se todo o processo de
montagem histórico de nossa nação, em que o elemento indígena sempre
esteve tão presente. O abismo fica lançado e a nação deixa de se perceber
com a presença do elemento indígena no contexto social. Essa direção reduz
ao extremo a população que pode ser reconhecida e afirmada como indígena.
O número de indígenas presentes no território nacional passa a ser folclórico e
não significativo.
Dentro desta perspectiva torna-se possível analisar a educação sobre
dois aspectos: 1) a partir dos currículos escolares e práticas pedagógicas, e 2)
a partir das perspectivas históricas e políticas que definem os direcionamentos
dos processos educativos no plano macro. Neste trabalho detive-me sobre a
perspectiva histórica e política da educação indígena. Para analisar esta
perspectiva histórica e política, poderia fazê-lo recorrendo exclusivamente aos
tratados legais e os direcionamentos dos mesmos. Entretanto, por trás das leis
e decretos existe uma visão de mundo que define os rumos e as propostas
legais. Esta visão de mundo é formada a partir do plano ideológico da
sociedade, a partir dos grupos/classes dominantes, por meio das expressões
culturais. Por essa razão, o destaque dos processos históricos e sociais que
produziram a legalidade vigente e as formas identitárias contemporâneas,
esteve presente em todo desenrolar do trabalho.
Em nenhum momento tive a pretensão de analisar, criticar ou trabalhar a
proposta curricular da educação escolar indígena. Mas, antes sim, tive o
objetivo de analisar historicamente e politicamente o rumo dado ao processo de
educação escolar alinhado com os projetos e propostas que visualizavam a
identidade indígena como ameaça a constituição da nação. O discurso de
educação diferenciada só se faz presente na atualidade pelo fato da expressão
indígena ter se tornado mera expressão folclórica reduzida ao extremo.
Um grito sem força chama-se silêncio. Os reflexos desta dinâmica em
Alagoas são os seguintes:
129

• Não há uma prática efetiva de educação diferenciada, pois os


professores indígenas, além de serem poucos, passaram por práticas
formativas precárias e de orientação eurocêntrica. As discussões e
propostas para educação diferenciada começam a surgir agora,
referendadas em práticas de outras comunidades indígenas com
realidades históricas diferentes.
• Embora o Estado de Alagoas tenha estadualizado todas às escolas
indígenas, não existe no quadro de funcionários do Estado um único
servidor com cargo de professor indígena, visto que tal cargo ainda não
foi criado e nem tampouco possui previsão para existir. As autoridades
entendem que existem muitas outras prioridades, e que a questão
indígena, devido a quantidade reduzida de pessoas e o afastamento dos
centros urbanos, não chega sequer a ser uma prioridade.
• Como não existe cargo de professor indígena, também não pode haver
concurso público para um cargo que não existe. O incansável José
Gérson da SEE/AL já enviou inúmeros projetos para criação do cargo de
professor indígena e realização de concurso específico, entretanto os
projetos ficam estacionados entre a Secretaria de Estado da Gestão
Pública de Alagoas (SEGESP/AL) e a Assembléia Legislativa Estadual
de Alagoas (ALE). José Gérson, não é índio, é uma das poucas vozes
que reclama a favor dos indígenas alagoanos, que teriam muito mais
força caso outros alagoanos pudessem se identificar com essa história.
Todavia, o processo foi construído de tal modo que o problema não é
prioridade e nem tampouco parece ter algo haver com a realidade dos
demais alagoanos.
• Não há em Alagoas nenhuma escola indígena bem estruturada que sirva
de modelo. Mesmo as construídas recentemente, são mal equipadas e
não passam por nenhuma manutenção, o cuidado com a estrutura e
equipamentos das mesmas se dá por meio de voluntários da própria
comunidade indígena.
• A vigilância com os equipamentos e materiais da escola, cuidado e
reparo dos mesmos é efetuado pelos próprios membros das
comunidades que nada recebem por isso.
130

• Os professores são mal remunerados e, muitas vezes, tem seus salários


atrasados ou suspensos, visto que atuam como professores, mas são
registrados como monitores ou simplesmente são inseridos em algum
programa que lhes paga na forma de pró-labores.
• As comunidades indígenas atuais são semelhantes a favelas, a maioria
sem um trato adequado com o lixo. Nas escolas não há um trabalho que
dê alguma orientação sobre o que deve ser feito com o lixo.
• Os poucos professores que existem procuram através de esforços
próprios por materiais específicos sobre a história, língua e costumes
dos indígenas alagoanos. Não há em Alagoas um centro estruturado
para pesquisa e elaboração didática para a escola indígena.
• Nem as aldeias, nem o sistema educativo atual oferecem uma
perspectiva/proposta de vida digna nas comunidades. Na maioria dos
casos só reside nas aldeias os indígenas que não possuem outras
alternativas para partirem.
• Os indígenas que passam por algum processo de formação superior
quase nunca permanecem nas comunidades. Aqueles que possuem
algum tipo de renda maior, ou possuem empregos que lhes garanta
algum status, também optam por morarem nas cidades.
131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação “escolar indígena”80 alagoana, anterior a Constituição de


1988, atuou sempre de modo a ajustar o homem nativo ao projeto de
sociedade brasileira instituído historicamente com fortes características
eurocêntricas. Posterior a Constituição de 1988, a partir da LDB de 1996, surge
efetivamente, em alguns Estados brasileiros, uma proposta de educação
específica e diferenciada para os povos nativos que permanecem em
comunidades ditas indígenas. Os demais indivíduos de origem nativa que
foram cooptados pela comunhão nacional em períodos anteriores a 1988,
passam a ter suas memórias históricas e suas visões tradicionais esquecidas,
distorcidas e alteradas, de modo aparentemente irreversível, a partir da
estrutura montada por meio da educação escolar indígena diferenciada. Pois, a
cosmovisão autóctone passa a ser entendida como realidade diferente da
realidade do brasileiro.
Com este modelo de educação escolar diferenciado os grupos indígenas
que vivem na atualidade em comunidades ficam, até certo ponto,
salvaguardados, com relação a sua história e modelos culturais. Todavia, a
população total de indígenas que residem em comunidades indígenas é inferior
0,5% da população brasileira. Este processo cria uma situação insustentável:
condiciona a identidade indígena à vida na comunidade e a um determinado
estilo de vida. Desta forma, passa a existir um modelo educativo específico que
no futuro validará quem é, e quem não é indígena, sem permitir que aqueles
que têm suas identidades negadas possam escolher o modelo educativo que
preferem participar. Com essa estratégia afasta-se por completo os demais
brasileiros da possibilidade de se verem com a identidade indígena.
Desta maneira podemos validar nossa hipótese de que a política e a
prática de educação escolar indígena de Alagoas, posterior a Constituição de
1988, ainda que rompa com a política de assimilação, não modifica as causas
estruturais às quais a política de assimilação estava a serviço. Neste sentido a
realidade alagoana não pode e não deve ser vista apartada da realidade dos
demais brasileiros que passaram por um processo semelhante.

80Não havia em Alagoas projeto de educação escolar indígena específico, existiam apenas escolas nas aldeias com
o mesmo projeto da educação normativa..
132

A política de assimilação existe, e existiu com mais força no passado,


para cumprir um propósito. Pois bem, se a realidade modificou-se a política
certamente será alterada, mas o seu propósito certamente permaneceu e
permanecerá. Por essa razão tomei como objetivo geral aquilo que julgava ser
o propósito real da política de assimilação: demonstrar que em Alagoas, assim
como no Estado-nacional como um todo, independente da política adotada até
a atualidade, minimiza-se historicamente a identidade e a força das expressões
indígenas. Evidentemente, esse propósito não é desprovido de razão, e a
necessidade de se formar uma nação dentro dos moldes de sociedade
moderna, justificava para muitos a necessidade de agregar os nativos a um
novo modelo identitário que lhes negava seu formato anterior.
Ao aprofundar as conseqüências deste processo de assimilação forçoso,
foi possível perceber os problemas estruturais da sociedade alagoana e
brasileira como um todo. Embora a pobreza e a marginalidade possuam cores
e origens diferentes das classes e grupos dominantes, os oprimidos são
incapazes de se visualizarem como classe e/ou grupo diferente dos que hoje
ocupam socialmente posição de vantagem. Como destaquei no inicio deste
trabalho, o processo de dominação torna-se perfeito quando o dominado perde
sua identidade e passa a ver sua história a partir da perspectiva daquele que
lhe domina.
Garantir a educação diferenciada para um grupo minoritário, folclórico e
impossível de sobreviver sem a intervenção do Estado que os minimizou, não é
resolver o problema indígena de Alagoas, nem do Brasil. É necessário uma
reflexão profunda em torno da identidade geral do brasileiro e das identidades
particulares destes. Neste sentido, torna-se interessante uma reflexão sobre o
que se quer para a nação, a partir do multiculturalismo que tenta ser praticado
e implantado no Canadá, em que o próprio Estado alimenta uma
contextualização maior ao mesmo tempo em que fomenta o respeito e a defesa
das identidades particulares.
A idéia de ordem generalista em torno de uma identidade padrão e única
faz validar um sistema legal e jurídico impossível de se sustentar num país com
as diferenças e dimensões do Brasil. O sistema montado desta maneira
certamente atende os interesses de determinados segmentos sociais que
nenhuma, ou quase nenhuma relação possuem com a natividade do país.
133

Os determinantes deste processo que analiso são sociais, mas parte de


sua manifestação e sustentação se valida e efetiva, principalmente, por meio
da educação.
Particularmente não acredito no fim dos povos indígenas, mas com o
rumo atual que foi dado ao processo, não acredito em muita coisa além de pura
animação de festa e realidade fantasiosa para estes grupos. Ser povo é ser
capaz de produzir e reproduzir sua existência primando na medida do possível
pela auto-sustentabilidade sem depender de um sistema que o oprime. O modo
que se produz à auto-sustentabilidade pode modificar-se, mas quando ele
deixa de ser uma busca e luta constante o povo também deixa de existir. Neste
sentido, a maioria dos povos indígenas brasileiros deixaram de possuir
identidade de povo há muito tempo. E o brasileiro... Continua em crise de
identidade, enquanto alguns se beneficiam com o atordoamento dessa massa
gigantesca que acredita numa identidade mestiça omissora das demais
expressões que não se filiam aos padrões eurocêntricos.
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