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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LÍNGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS

CHARLES DICKENS:
UM ESCRITOR NO CENTRO DO CAPITALISMO

DANIEL PUGLIA

SÃO PAULO
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LÍNGÜÍSTICOS E
LITERÁRIOS EM INGLÊS

CHARLES DICKENS:
UM ESCRITOR NO CENTRO DO CAPITALISMO

DANIEL PUGLIA

TESE APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO


EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS, DO
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS DA FACULDADE
DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, PARA A OBTENÇÃO DO
TÍTULO DE DOUTOR EM LETRAS.

ORIENTADORA: PROF. DRA. SANDRA GUARDINI TEIXEIRA VASCONCELOS

SÃO PAULO
2006

1
AGRADECIMENTOS

À Prof. Dra. Sandra Vasconcelos e a todos que escreveram esse trabalho comigo.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pela
bolsa de estudos em nível de doutorado que me foi concedida.

2
RESUMO

O objetivo desta tese é uma análise do romance Dombey e Filho (1848), de Charles
Dickens. Esse é seu sétimo romance e representa um divisor de águas em sua obra: a
crítica social, a observação dos costumes e o diagnóstico da época passaram a ser feitos
de um modo mais incisivo. Sempre com a preocupação de relacionar a forma literária e
o processo social, nossa hipótese é a de que o narrador de Dombey e Filho, ao
materializar os paradoxos da sociedade inglesa em meados do século XIX, busca
soluções estéticas para contradições da realidade. A despeito das mudanças ocorridas
nesses cento e cinquenta anos, e agora num contexto mais amplo, partes substanciais de
tais contradições foram acentuadas, continuando em vigor, além disso, o certo estatuto
de normalidade que as acompanham. Nesse sentido, nosso desafio é procurar na própria
forma da obra os índices de algo que está para além dela: em seu presente e em seu
futuro.

palavras-chave: Dickens, romance, interpretação, forma literária, processo social

3
ABSTRACT

The aim of this thesis is the analysis of the novel Dombey and Son (1848), by Charles
Dickens. It is his seventh novel and represents a watershed in his work: in it, social
criticism, the observation of manners and the diagnosis of the age became more
incisive. Always bearing in mind the attempt to establish the relationship between
literary form and social process, I argue that the narrator in Dombey and Son tries to
elaborate aesthetic solutions for real contradictions while dealing with paradoxical mid-
nineteenth-century English society. Despite all the changes since then, and in a broader
context now, substantial parts of these contradictions have been emphasized, acquiring a
certain degree of accepted normality. In this sense, our challenge is to investigate in the
very form of the novel signs of something that goes beyond it: in its present and in its
future.

keywords: Dickens, novel, interpretation, literary form, social process

4
ÍNDICE

1. EM DEFESA DE DICKENS CONTRA SEUS ADMIRADORES ................ 6

2. UMA EMPRESA FAMILIAR ...................................................................... 26

3. UM SEGREDO MUITO PRODUTIVO ........................................................ 42

4. DINHEIRO OU A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS ............................ 73

5. FEIOS, SUJOS E MALVADOS .................................................................... 116

6. O INDISCRETO CHARME DA BURGUESIA ............................................. 145

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 167

5
1. EM DEFESA DE DICKENS CONTRA SEUS ADMIRADORES

Em nove de junho de 1870, Charles Dickens faleceu aos cinqüenta e oito anos.
Naquele dia, enquanto a rainha lamentava em Windsor a grande perda para a nação,
alguém ouvia de uma garotinha que vendia frutas em Drury Lane: “Dickens morreu?
Então quer dizer que o Papai Noel também vai morrer?”. A justaposição das declarações
da rainha e da menina pobre – descontada já a pitada de dramalhão com sabor
dickensiano – serve para dar uma idéia da imensa popularidade do autor que ainda em
vida adquirira caráter quase mitológico na vida inglesa1. Muito provavelmente a
pequena vendedora de frutas estava familiarizada com as adaptações e histórias
natalinas de Dickens que incessantemente inundavam os teatros, fazendo que seu nome
circulasse como moeda corrente de diversão – num fluxo que ia desde os bairros dos
teatros populares, passando pelos cafés e tabacarias2, percorrendo os lares das classes
médias e chegando até mesmo aos gabinetes de leituras dos mais ricos. No obituário
publicado pelo Daily News, Dickens foi descrito como “o único escritor que todos liam
e de quem todos gostavam; quem não lia quaisquer outros romances, lia os de Mr.
Dickens”. No mesmo dia, The Times dedicou seu artigo principal ao reconhecimento de
que aquela morte seria “sentida por milhões de indivíduos como nada menos que um
luto pessoal, pois o autor era um íntimo de cada domicílio”. Retirados os exageros
hagiográficos comuns nessas ocasiões, o ponteiro da popularidade talvez não estivesse
tão exacerbado assim: nosso autor havia nascido numa cultura urbana e feito desta
cultura seu assunto, num momento em que a vida nas cidades era uma das grandes

1
Collins, P. “The Popularity of Dickens”, Dickensian, 70 (1974).
2
Normalmente os trabalhadores se reuniam e, mediante o pagamento de uma pequena quantia para o chá,
o dono do estabelecimento ou alguém que soubesse ler fazia a leitura em voz alta da história que estava
sendo publicada naquele momento. Ver Altick, R. “Varieties of Readers’ Response: The Case of Dombey
and Son”. In: Writers, Readers, and Occasions: Selected Essays on Victorian Life and Literature.
Columbus: Ohio State University Press, 1989, pp. 113-40.

6
novidades da época. Vale lembrar também que desde sua estréia literária, em meados da
década de 1830, a tecnologia a vapor rapidamente pôde espalhar nacional e
internacionalmente sua fama precoce. Acresce que a publicação em formato seriado, em
fascículos, possibilitou que muitos leitores pudessem ter acesso à nova mercadoria, mais
barata em relação ao formato em volumes. Além disso, pelo próprio ritmo em que
apareciam no mercado, as histórias como que ficavam na boca do povo por um longo
tempo – num fenômeno semelhante ao das modernas telenovelas, com a diferença de
que seu autor era propagandeado, incensado e celebrado como um gênio criativo da
estirpe de Shakespeare, ou seja, como indefectível marca d’água nas cédulas da cultura.
Apenas dois anos após sua morte, o Daily Telegraph lembrava que as histórias
de Dickens se tornavam o assunto do momento no instante em que eram lançadas, algo
mais semelhante à política e ao noticiário em geral – como se pertencessem não tanto ao
universo da literatura mas ao dos fatos e eventos. Sem dúvida uma mercadoria que
passava a discutir a própria sociedade baseada em mercadorias, que mensalmente era
posta à disposição de leitores e ouvintes ávidos por informação, que tomava a pulsação
do espírito do tempo e era moldada por esse mesmo espírito: essa era uma mercadoria
bastante vendável. Cabe sublinhar que algumas medidas profiláticas tornavam a
trajetória de sucesso dessas histórias um tiro ainda mais certeiro. Embora irritasse
alguns dos leitores mais conservadores ao insistir nos ataques contra o sistema legal e
parlamentar e contra os privilégios aristocráticos, Dickens nunca apoiou causas
impopulares partilhadas por contemporâneos mais radicais, tais como o movimento
cartista3, os opositores à guerra da Criméia4, ou ainda os críticos da, digamos assim,
firme atuação britânica para conter os levantes nas colônias do Império – enfim, nosso
autor tentou evitar ao máximo que assuntos explicitamente polêmicos maculassem sua
imagem pública. Também tomou medidas para que as límpidas normas do decoro

3
Foi um movimento largamente apoiado pelos trabalhadores que advogavam modificações democráticas
radicais no sistema político. Foi ativo entre 1838 e 1848 e recebeu seu nome a partir da Carta do Povo,
que entre outras coisas exigia o sufrágio universal, o escrutínio secreto e uma renovação anual do
Parlamento.
4
Essa guerra, que opôs França, Inglaterra, Turquia e o Piemonte à Rússia, durou de 1854 a 1855. Desde
1850 as pretensões russas sobre o Império Otomano alarmavam, como bem sabemos, o sempre pacífico e
bem intencionado governo britânico, rompendo o equilíbrio político na Europa.

7
fossem seguidas à risca, expurgando de sua obra conteúdos sugestivamente sexuais,
filtrando qualquer vocabulário chulo, purificando sentenças e períodos para que tudo
transcorresse conforme o figurino da boa educação. No prefácio de As Aventuras de Mr.
Pickwick (1837) escreveu: “[o autor] confia que ao longo desse livro não ocorra nenhum
incidente ou expressão que possa ruborizar a mais delicada face ou ferir os sentimentos
da mais sensível das pessoas”5. Ademais, procurou agradar a vários gostos, dando uma
orientação narrativa que privilegiava uma ampla gama de acontecimentos, com vasta
galeria de personagens e com numerosos episódios de humor e suspense espalhados
vividamente por ambientes e cenários ricamente descritos. Como cereja do bolo, uma
insistência em algo que alguns definem como a filosofia de natal dickensiana: ênfase
nos valores familiares, no espírito infantil, na diversão simples e na confraternização e
generosidade.
Como sabemos, ainda hoje Dickens desfruta o posto de um dos mais conhecidos
romancistas ingleses, se não o mais conhecido, embora nomes como os de Jane Austen,
das irmãs Brontë ou de Thomas Hardy muitas vezes ganhem a preferência de um
público leitor que costuma se assustar quando defrontado com os catataus dickensianos.
De todo modo, sua popularidade vai sendo sustentada na medida em que seus
volumosos romances e histórias continuam a ser mais e mais adaptados para teatro,
televisão e cinema6. Mas esse duradouro favor junto ao público também encobre um
outro dado: a despeito de possuir, desde os primórdios, um seleto grupo de admiradores
dentre os estudiosos da literatura, até meados do século vinte houve uma firme
relutância no meio universitário de língua inglesa para aceitar Dickens no panteão dos
grandes autores – isso a despeito de sua popularidade e, segundo alguns comentadores,
talvez exatamente em virtude dessa imensa popularidade. Seja como for, nos últimos
cinqüenta anos o esforço elucidativo se apropriou da obra dickensiana, reforçando
grandes tendências anteriores da fortuna e miséria críticas, algumas vezes vendo um

5
Dickens, C. The Pickwick Papers. Oxford: Oxford University Press, 1982, p. viii.
6
Existem cerca de 130 filmes baseados em narrativas de Dickens e apenas Dracula e Dr.Jekyll and Mr.
Hyde superam Oliver Twist e Um Conto de Natal na disputa pela posição de obra de ficção mais adaptada
até o momento. Para dados referentes a cinema e televisão, ver Pointer, M. Charles Dickens on the
Screen: The Film, Television and Video Adaptations. Landham: Scarecrow, 1996 e também Zambrano, A.
L. Dickens and Film. Gordon Press Film Series. New York: Gordon, 1977. Para dados referentes a teatro
e rádio, ver Bolton, H. P. Dickens Dramatized. London: Mansell Publishing, 1987.

8
material apto, ou não, para canonização7, outras vezes primordialmente como o produto
bem acabado de uma ideologia pequeno-burguesa, hegemônica e patriarcal8, e por fim,
mais raramente, como uma obra rica em contradições e fissuras, ou seja, como o
testemunho dos embates da forma literária na batalha entre o revelar e o ocultar,

7
Essa corrente tem início com os primeiros comentadores, contemporâneos de Dickens, que reclamavam
do caráter efêmero da publicação em fascículos, principalmente para um autor que já começavam a
comparar com Cervantes, Fielding, Scott e Shakespeare. Ao mesmo tempo, as primeiras preocupações
começaram a surgir no sentido de que a obra dickensiana necessitava de um melhor acabamento estético,
mais condizente com o que seria de se esperar de um grande romancista. Ver, por exemplo, Lewes, G. H.
“Dickens in Relation to Criticism”, Fortnightly Review , (2) 1872. Para reservas em relação ao uso do
melodrama, ver Gissing, G. Charles Dickens: A Critical Study. London: Gresham, 1898. Um pouco mais
tarde, com a costumeira fatuidade que a caracteriza, Virginia Woolf viria a declarar que “seria capaz de
alegremente se transformar no gato de Shakespeare, ao passo que não atravessaria a rua para encontrar
Dickens”. Ver, a esse respeito, Nation, 12 de setembro de 1925. Por seu turno, E. M. Foster, no seu
Aspects of the Novel. London: Penguin, 1927, condenaria os personagens de Dickens por serem “planos”
e Aldous Huxley, no seu Vulgarity in Literature. London: Chatto & Windus, 1930, criticaria o que
chamava de vulgaridade e superficialidade em Dickens. Bem mais informados, cuidadosos e sofisticados
em suas análises, os estudos de G. K. Chesterton representaram – dentro dessa corrente – talvez os
primeiros passos em direção à percepção das complexidades da arte dickensiana, começando uma aposta
nos paradoxos e contradições que apareciam na forma dos romances. Ver, por exemplo, Charles Dickens,
The Last of the Great Men. New York: The Press of the Readers Club, 1906, e Appreciations and
Criticisms of the Works of Charles Dickens. New York: E. P. Dutton, 1911. Mais tarde, embora
inicialmente omitindo Dickens – com exceção de Tempos Difíceis (1854) – de seu The Great Tradition
(1948), F. R. Leavis ao menos sinalizou uma vereda que foi melhor aproveitada por outros expoentes do
New Criticism, expoentes estes que ampliaram o instrumental de análise dos textos. Ver Butt, J. and
Tillotson, K. Dickens at Work. London: Methuen, 1957 e Marcus, S. Dickens: From Pickwick to Dombey.
London: Chatto & Windus, 1965. Por fim, em Dickens – the novelist. London: Chatto & Windus, 1970,
de F.R. e Q.D. Leavis, Dickens seria finalmente ungido à posição de “Shakespeare dos romances”.
8
Ver, nessa corrente, Welsh, A. The City of Dickens. Cambridge: Harvard University Press, 1986 e
Slater, M. Dickens and Women. London: J.M. Dent & Sons, 1986. Como ganhos dessa abordagem, as
heroínas de Dickens foram reabilitadas, tiradas de um limbo em que permaneciam como simples
estereótipos de uma feminilidade insípida, para serem observadas sob um espectro psicológico mais sutil.
Consultar também Houston, G. T. Consuming Fictions: Gender, Class, and Hunger in Dickens’s Novels.
Carbondale: Southern Illinois University Press, 1994 e Michie, H. The Flesh Made Word. New York:
Oxford University Press, 1989. Extremamente interessante é o estudo de Poovey, M. “Reading History in
Literature”, em Smarr, J. L. Historical Criticism and the Challenge of Theory, Champaign: University of
Illinois Press, 1993. Esse trabalho de Poovey tem como peça central uma análise do romance de Dickens
Nosso Amigo Comum (1865), tomando como chave de entrada as relações entre a especulação financeira,
os fundamentos econômicos do Império e a discussão dos direitos das mulheres. A ficção é utilizada
como reflexão histórica acerca do papel feminino e sua domesticação: havia o temor daí subjacente de
que a professada fé vitoriana na estrita diferença entre os sexos poderia ser insustentável. O progresso
dessa leitura foi notável, pois ousou sair da por vezes rígida visada feminista, encampando outras
disciplinas e tirando conseqüências ferinas sem serem esbravejantes, e serenas sem serem acanhadas.
Num outro entroncamento da crítica, nos últimos vinte anos também os estudiosos da desconstrução
passaram a desenvolver trabalhos sobre Dickens. Ver, por exemplo, o ensaio de Steven Connor sobre
Casa Soturna (1853), em Charles Dickens. London: Longman, 1985. Os textos dickensianos parecem ser
especialmente atraentes para essa abordagem crítica, principalmente por seu caráter multifário, em que a
proliferação de sentidos surge a todo instante e a escrita parece brincar com os lapsos de significados.
Ver, a esse respeito, Schad, J. The Reader in the Dickensian Mirrors: Some New Language. New York:
Palgrave Macmillan, 1992, e Miller, D. A. The Novel and the Police. Los Angeles: University of
California Press, 1989.

9
considerada no atrito de sua fatura com a História9. Nesse estudo, optaremos por esse
último caminho, procurando girar a obra dickensiana como um prisma, especialmente
seu romance terminado em 1848, Dombey e Filho, que é de certa maneira um ponto de
inflexão propício para que ressaltemos algumas das facetas da hora da verdade burguesa

9
Nesta terceira corrente talvez possamos agrupar, um tanto quanto arbitrariamente, as contribuições da
psicanálise, do materialismo cultural e do marxismo, sendo que a primeira e o segundo aparecem bem
mais freqüentemente que o terceiro. No que diz respeito à psicanálise, já em meados do século vinte foi
traçado um paralelo entre o apreço de Dickens pelas formas de expressão paradoxais e contraditórias e a
natureza complexa dos sintomas como descritos por Freud. Talvez não por acaso seja comum, na trama
de seus romances, a descoberta de um passado oculto ou reprimido sob uma fachada respeitável, como
por exemplo em Oliver Twist (1839), Casa Soturna (1853), Pequena Dorrit (1857), Conto de Duas
Cidades (1859) e Grandes Esperanças (1861). Acresce que a atenção dickensiana dada aos significados
das formas de comportamento aparentemente marginais e desviantes, ao poder dos impulsos obsessivos e,
finalmente, à força dos chistes e do humor na cultura humana, tudo isso possibilita aproximações com o
campo conceitual psicanalítico. Nesse sentido, vale destacar o ensaio seminal de Edmund Wilson,
“Dickens: The Two Scrooges”, publicado em The Wound and the Bow. London: Methuen, 1961.
Consultar também Brooks, P. Reading for the Plot. New York: New York Vintage, 1985; Lukacher, N.
Primal Scenes: Literature, Philosophy, Psychoanalysis. Cornell: Cornell University Press, 1988 e Sadoff,
D. Monsters of Affection: Dickens, Eliot, and Brontë on Fatherhood. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1982. No campo do materialismo cultural, a obra de Dickens foi ligada à preocupação
com a crítica ao capitalismo industrial e suas conexões com um diagnóstico que pressupõe o
entendimento das condições materiais determinantes para a literatura. Os trabalhos de Humphry House
foram verdadeiros marcos: ver, por exemplo, “The Macabre Dickens”, em All in Due Time: The Collected
Essays and Broadcast Talks of Humphry House. London: Rupert Hart-Davis, 1955 e especialmente The
Dickens World. London: Oxford University Press, 1941. Evidentemente aqui merecem destaque os
trabalhos de Raymond Williams, que, em inúmeros de seus estudos sobre a cultura britânica, pegou o
bastão de House e aprofundou a análise da literatura dickensiana. Consultar, por exemplo, “Dickens and
Social Ideas”, em Sociology of Literature and Drama: Selected Readings. Elizabeth Burns and Tom
Burns (eds.). Harmondsworth: Penguin, 1973; e os clássicos: The English Novel: from Dickens to
Lawrence. New York: Oxford University Press, 1970; O Campo e a Cidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989 e Culture and Society. London: The Hogarth Press, 1993. Finalmente, a vertente marxista na
crítica dickensiana surge desde o momento em que os próprios Marx e Engels expressaram apreço pela
obra do romancista inglês, ainda no calor da hora em que era publicada. Em 1854, Marx posiciona
Dickens como um dos principais expoentes “daquela esplêndida irmandade de escritores ingleses de
ficção, cujas páginas eloqüentes forneceram ao mundo mais verdades políticas e sociais do que tudo que
foi pronunciado conjuntamente por políticos profissionais, publicistas e moralistas”. Os outros escritores
incluídos por Marx nessa irmandade são Thackeray, Charlotte Brontë e Elizabeth Gaskell. Ver Demetz, P.
(ed.), Marx, Engels and the Poets. Chicago: University of Chicago Press, 1959. Importante também foi o
primeiro ensaio crítico abertamente marxista da Grã-Bretanha: em 1889, George Bernard Shaw escreveu
“From Dickens to Ibsen”, não publicado até 1985, quando surgiu em Lawrence, D. H. and Quinn, M.
(eds.). Shaw on Dickens. New York: Frederick Ungar Publishing, 1985. Mas talvez um dos mais
penetrantes trabalhos de inspiração marxista seja o de T. A. Jackson, Charles Dickens: The Progress of a
Radical. New York: International Publishers, 1987, publicado originalmente em 1937. Nesse ensaio,
Jackson busca sempre a ligação de aspectos políticos e sociais com questões estéticas e estilísticas, como
numa das mais famosas de suas formulações, de certo modo uma resposta a E. M. Forster: “Dickens
esboçava seres humanos de maneira “plana” porque ele os via fundamentalmente como “planos”. E ele os
via desse modo porque assim eram – porque a constituição da sociedade os havia aplainado”. Entretanto,
conforme Dickens foi se tornando mais canônico, proporcionalmente também foram rareando as
explicações de linhagem marxista, embora finalmente começassem a circular de modo mais consistente as
traduções de alguns dos trabalhos da Escola de Frankfurt, como é o caso do ensaio de Adorno, “On
Dickens’ The Old Curiosity Shop: a Lecture”. In: Notes to Literature. v.2. New York: Columbia
University Press, 1992.

10
– quando o século dezenove estava às vésperas das revoluções que varreram o
continente e quando a era do capital vinha finalmente dizer a que veio. Em 1872,
nalguma parte de Erewhon, Samuel Butler escreveria: “Tem sido dito que o amor ao
dinheiro é a raiz de todos os males. O mesmo pode-se dizer em relação à falta de
dinheiro”. Se, de um lado, a obra de Dickens encontraria a partir de Dombey e Filho um
centro para a crítica da sociedade orientada pelo dinheiro, de outro, passaria a investigar
essa misteriosa devoção ao poder monetário sem deixar de esbarrar nos problemas da
produção e distribuição da riqueza social, problemas estes normalmente sob a alçada
da economia política, esta ciência que descreve e ao mesmo tempo acoberta a luta de
classes.
Podemos concordar até certo ponto com o que Auerbach escreve: “[...] Dickens
ou Meredith, Balzac ou Zola comunicavam-nos, partindo de um conhecimento seguro, o
que suas personagens pensavam ou sentiam ao agirem, de que forma deveriam ser
interpretadas suas ações ou pensamentos; estavam perfeitamente informados acerca de
seus caracteres”10. Possivelmente a afirmação consegue manter significativo grau de
acerto para grande parte da obra de Dickens. Contudo, se pensarmos nos trechos de
Dombey e Filho em que o narrador se ocupa da viagem de trem de Mr. Dombey e,
depois, da jornada de carruagem de Carker, perceberemos índices de imprecisão, dúvida
e incerteza no modo como este narrador realiza, ou não consegue realizar, a tarefa
estipulada. Por momentos, temos a impressão de ler monólogos interiores avant la
lettre, esboçados em meio a uma obra que deveria ser pura amostra do que a convenção
chama de realismo vitoriano, cabendo, seja dito de passagem, à análise formal detida o
trabalho de tentar revelar se esta é uma impressão que se confirma. Feitas essas
ressalvas, uma outra menção parece ser mais problemática: “[...] em Dickens [...], não
obstante o forte sentimento social e a sugestiva densidade do seu “meio”, quase nada se
faz sentir da agitação do pano de fundo político-histórico”11. Se tivermos a leitura da
obra tendo como fundo a realidade social e passarmos a compreender esta tendo aquela
em mente, isto é, se por meio do procedimento dialético buscarmos um termo de

10
Auerbach, E. Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1971, p.482.
11
Auerbach, E., op. cit., pp.440-441.

11
mediação que atue tanto na obra quanto na sociedade, compreenderemos que, em
verdade, a nota dominante, a agitação porventura existente na obra de Dickens, tem
como pano de fundo o processo social da Inglaterra no século dezenove. Diminuir o
potencial de revelação da elaboração artística relativamente ao meio em que foi gestada
significaria, assim, não apenas a perda de dimensões valiosas no que diz respeito à
apreciação estética: mais prejudicial seria o conseqüente apequenamento de sua
capacidade como elemento de explicitação e relevo, antecipação e denúncia.
Com outras preocupações e finalidade diversa, Bakhtin, por sua vez, enumera
Dickens ao lado daqueles escritores em que haveria “[...] uma ruptura com as grandes
realidades da vida”12, reservando a ele, porém, o papel de criador de uma obra que seria
a mais alta expressão do romance familiar europeu, em que estaria assegurada a
trajetória dos personagens desde “um mundo grande, mas estrangeiro, para o pequeno
mundo natal da família”13. A hora e o lugar obrigaram Dickens a formular determinadas
soluções estéticas, resultando isto num aparente distanciamento em relação ao que
Bakhtin chama de grandes realidades da vida. No entanto, sempre pensando nas
minúcias da forma de uma obra específica, bem pesados os desdobramentos do narrador
e os desenvolvimentos dos personagens, é perceptível a presença de tais realidades,
porém plasmadas nos detalhes daquilo que passa pelo corriqueiro do estilo e na aparente
irrelevância de longos trechos e passagens. Noutras palavras, as grandes realidades da
vida estão presentes na própria dificuldade encontrada para figurá-las de modo mais
explícito. Nesse sentido, a construção do pequeno mundo natal da família aparece como
desfecho precário para uma situação social inédita, plena de rupturas e novas
configurações, isto é, o novo tempo de acumulação capitalista da era vitoriana.
Observado em seu íntimo, o artíficio da família como idílio possível face à destruição
denota antes o desencaixe a que a obra procura dar substância. Ou seja, negando o valor
de face segundo o qual o núcleo familiar configura porto seguro ante os infortúnios, em
Dickens a parentela é nova fonte de distúrbio, repetindo em escala apequenada o giro

12
Bakhtin, M. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002, p.344.
13
Bakhtin, M., op. cit., p.339.

12
em falso do sistema, mesmo quando – como é o caso em Dombey e Filho – as linhagens
e descendências são arranjadas em conjuntos enganosamente harmônicos, grosso modo
como “ricos mas infelizes entre si” e “pobres mas solidariamente unidos”. O resultado
último de modo algum legitima a redenção artificial sugerida pelos desenlaces felizes:
ao longo do processo somos instruídos dos percalços e deslizes, das violências e
corrupções, todos eles impostos pelo sistema às famílias, que por seu turno fazem o jogo
sujo exigido e o retroalimentam. Visto ao microscópio, o tecido familiar degenera assim
como o social, e o encanto, a leveza, o humor e a acomodação devem ser matizados.
Neste ponto, lembremos o que o Lukács de A Teoria do Romance chega a
escrever: “Eis aqui o fundamento artístico que faz os romances de Dickens, tão
infinitamente ricos em personagens humorísticos, parecerem em última análise tão
rasteiros e pequeno-burgueses: a necessidade de configurar como heróis tipos ideais de
uma humanidade que se acomoda, sem conflitos internos, à sociedade burguesa
contemporânea e de envolver, em prol de seu efeito poético, as qualidades requeridas
para tanto com o duvidoso brilho da poesia, um brilho forçado ou para ela
inadequado.”14 Existem, é certo, tipos ideais atuando num mecanismo cujo
funcionamento visa ao molde firme de controles e restrições. Existe, também, a
tentativa de criar uma moldura edulcorada que abarque esse mecanismo. Todavia,
parece escapar à apreciação desse primeiro Lukács exatamente a tensão criada pelo mau
funcionamento dessas engrenagens, pois tal descompasso e insucesso são justamente a
pista para percebermos o quão o mundo pequeno-burguês pode ser rasteiro. Dito de
outra forma, à imagem e semelhança dos palhaços tristes que jamais foram engraçados,
num certo sentido os personagens humorísticos de Dickens representam não o
verdadeiro brilho da poesia acomodatícia, mas sim a nostalgia de algo que jamais
puderam dar. Aprisionados uns aos outros numa camisa-de-força que os trava a todos,
não fazem a louvação de um espetáculo, mas reproduzem uma corrida cuja apoteose é o
cansaço, a renúncia e a paralisia: todos eles indícios de que algo não vai bem, de que
uma segunda voz dissonante contamina o que em princípio seria uma melodia satisfeita

14
Lukács, G. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000, p.112.

13
em si mesma. Assim, se em Dickens a música da divisão do trabalho e das relações de
produção pretende ser orquestrada no interesse e ao gosto de uma única classe, durante
a execução algo desafina, mesmo que a partitura pareça bastante legível. Nesse sentido,
por um lado, vemos que as abordagens críticas preocupadas com a apreensão de
movimentos e tendências ganham em amplitude o que perdem nos prejuízos inerentes
aos grandes panoramas, ou seja, acabam fazendo generalizações úteis para detectar e
definir características gerais, mas que são, no mais das vezes, pouco precisas em relação
ao específico e singular de uma obra; por outro lado, devemos reconhecer que passagens
e citações às vezes arbitrariamente pinçadas no contexto de uma discussão mais ampla
não fazem jus à tônica crítica em sua totalidade, embora ainda assim não percam sua
utilidade como vestígios e sinais que permanecem, que são como que resquícios de um
certo Dickens em críticos de complexidade e importância inegáveis. Dessa forma,
enxergar em sua obra um distanciamento até certo ponto pronunciado em relação à
história de seu tempo; enquadrar sua fatura entre aquelas que apenas e tão-somente dão
margem a soluções estereotipadas; apontar seu veio estruturante como que fadado à
reprodução de fórmulas esquemáticas: tudo isso significa levar para casa o produto
domesticado, a mercadoria útil aos serviços de certa leitura que se propagou dentro e
fora da literatura inglesa.
Numa breve menção a Scott, Balzac e Dickens, Antonio Candido afirma que a
inclinação desses autores é “sugerir a realidade por meio da multiplicação, não da
subtração”15. Chamando atenção para a “audácia formal e crítica das boas obras
realistas, bem como sua antena para as feições mudadas do mundo”16, Roberto Schwarz
sublinha a necessidade formal dos chamados “pormenores inúteis”, criticando a
designação proposta pela perspectiva conformista e salientando o quanto tais
pormenores são verdadeiramente essenciais para a fatura narrativa. Ou seja, se
negarmos o caráter de multiplicação e acumulação presentes na obra, procederíamos
“[...] como se a composição dos romances de Stendhal, Balzac e Flaubert não buscasse

15
Candido, A.“A educação pela noite”. In: A Educação pela Noite e outros ensaios. São Paulo: Editora
Ática, 2000, p. 21.
16
Schwarz, R. Duas Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.104.

14
de fato imitar e apreender o ritmo da sociedade contemporânea – o verdadeiro objeto
novo de nosso tempo”17. Tendo isso em mente, cabe ressaltar que Dickens escreve
numa época de profunda transformação do romance como forma e num lugar onde
surgem diferentes modos de experiência. Uma vez reconhecido o caráter ilusório e
discricionário da dicotomia entre os campos estético e social, chega a ser redundante
destacar que ambos conjuntamente determinaram novos métodos criativos. Nesse
sentido, o romance deve ser visto como um composto de formas criadas pela tradição de
acordo com necessidades históricas, mas uma tradição que vem do concreto da vida e a
partir da rotina cotidiana. Noutras palavras, a chave de aproximação deve ser o romance
como resposta a novas condições de vida, tendo de absorver não apenas instituições e
crenças radicalmente novas, num contexto de diferentes públicos e leitores, mas
também um vasto universo de conformações lingüísticas, de histórias populares, de
canções e paródias18. Com relação ao romance dickensiano, a conseqüência estilística
desse processo é o tom ambíguo, muitas vezes jocoso e cínico, outras vezes enfático
mas dissimulado, em que temos dificuldade de perceber a nuance humorística e a
irônica observação da realidade num veio popular. Tudo isso levado a termo por um
método dramático singularmente próprio para expressar “a experiência de viver nas
cidades, que são vistas como fato social e paisagem humana”19. Desse modo, e
contrariamente aos princípos da perspectiva conformista, Dickens está respondendo a
contradições reais, ao progresso e desintegração definidos pelas forças sociais e
econômicas em sua época.
É nessa chave que, num romance como Dombey e Filho, questões morais
individuais tornam-se rapidamente questões sociais e, a partir delas, procedimentos de
intervenção criativa. Acresce ainda o fato de que a proliferação de personagens e
situações não ocorre a esmo, mas seguindo uma premissa de construção que deve ser
compreendida por meio da utilização de técnicas vindas do melodrama. São criadas

17
Schwarz, R., op.cit., p. 104.
18
Para uma discussão detalhada, ver Raymond Williams. “Charles Dickens”. In: The English Novel –
from Dickens to Lawrence. New York: Oxford University Press, 1970, pp. 28-59.
19
Williams, R., op. cit., p. 37.

15
figuras de inocência e pureza, mas não como elaborações morais de uma era estável e
sim como personagens dramáticas de uma época em que individualidade e
desenvolvimento “são paradoxais e em que, como uma ênfase e uma intervenção, as
mais simples qualidades humanas do amor e da bondade devem ser deliberadamente
mantidas”20. Numa sociedade em que os eventos perderam sua coerência aparente, o
recurso ao melodrama surge como esforço do autor para restaurar alguma coesão e
unidade: é um meio técnico que intenta amalgamar enormes quantidades de uma
matéria nova, desconhecida e acaso ameaçadora. Sintoma do colapso de uma certa
concepção da realidade, o uso do melodrama também é índice de algo cuja natureza o
autor sente estar além de seu poder de comunicação21. Além disso, em Dombey e Filho
ocorre a construção do romance em torno de uma idéia direcionadora, com um marcante
desejo de convencer e persuadir o leitor, fazendo uso, entretanto, de uma gama
complexa de possibilidades de experiência que dão ênfase e suporte ao enfoque central,
possibilidades estas que podem ou não ser explicitamente mencionadas. O romancista
elabora, assim, um caleidoscópio cuja lei de movimento resta estabelecer, verificando
como os dados externos são incorporados e se tornam elementos internos da obra. Para
isso, temos de observar o romance por diversos ângulos, numa tentativa de melhor
compreender seu conjunto – nas complementaridades e contradições entre a forma
objetiva, socialmente determinada, e a forma literária, com sua filiação aos textos e sua
fidelidade aos contextos.
Em Dickens existe assimilação e incorporação de idéias de seu tempo, esse
processo resultando num modo de ver a vida como totalidade. Decorre daí não um
simples encadeamento de exemplos ou, como querem alguns, somente um esforço para
ilustrar eventos pontuais: o romance torna possível ao autor conceber uma visão a partir
deles e, se estivermos corretos, nos detalhes da forma esboçar um caminho utópico22.
Existe, nesse sentido, uma preocupação com a falsa consciência, com as racionalizações

20
Williams, R., op. cit., pp. 54-55.
21
Ver a esse respeito Fredric Jameson, “Metacommentary” (1971). In: The Ideologies of Theory.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, pp.3-17, especialmente páginas 8 e 9.
22
Consultar o texto de Fredric Jameson, “Marcuse and Schiller”. In: Marxism and Form. New Jersey:
Princeton University Press, 1971, p.91.

16
desumanizadoras e as deformações hipócritas. Se muitas das idéias que circulavam em
seu tempo eram registros bem acabados de tais racionalizações e deformações, na forma
da obra dickensiana não aparece, todavia, um tratamento analítico dessas teorias e
concepções: elas são tratadas como matéria para elaboração artística, cabendo à crítica o
esforço interpretativo e a decomposição analítica. Dickens teve de se haver com a
tensão entre idéias ortodoxas, que buscavam ratificar um determinado estado de coisas,
e uma realidade de injustiça e desigualdade que, cada vez mais, colocava à prova o
ordenamento social justificado por esse conjunto de idéias. Desponta, dessa maneira,
um certo radicalismo na fatura da obra dickensiana que tem como cerne uma visão
acerca do que é bom e benévolo, do caráter em última instância benigno de uma vida
plena de sentido. Tal visão gera a possibilidade de transcender criativamente as posições
e racionalizações calcadas no imediatismo do interesse. Ocorre concomitantemente, sem
dúvida, um movimento em direção a atos de transcendência no lugar de ruptura,
entrando na zona nebulosa em que a obra num passo se torna negação e, noutro, uma
efetiva afirmação. Porém, nessa dinâmica nem sempre aparente, mas fincada no chão
histórico a que dá relevo e feitio, interessa salientar o potencial utópico que a obra
adquire – mesmo que tal potencial esteja em luta constante contra uma retranca formal
de verniz conservador. Nesse sentido, o reformismo até certo ponto radical e o
radicalismo de viés reformista têm de ser compreendidos dentro da constelação de
idéias na qual a obra de Dickens foi mais um dos vértices.
O nascente capitalismo industrial fomentou a atmosfera propícia para que
fossem desafiados e afirmados, questionados e legitimados, os próprios alicerces que
estruturavam sua condição de existência como sistema. Nas relações de Dickens com o
utilitarismo existem alguns dos índices dessa particular configuração histórica. O
principal preceito do utilitarismo visava submeter todas as instituições aos testes de uma
utilidade racional, no intuito de possibilitar felicidade à maioria dos indivíduos. Foi
nesse espírito que o movimento incentivou campanhas por reformas políticas, sociais e
judiciárias que, devemos reconhecer, de maneira geral resultaram em melhorias da
sociedade inglesa no período. Outro preceito se referia à possibilidade de uma ética

17
objetiva, em que o julgamento das ações corretas e erradas seria dependente de cálculos
relativos à quantidade de prazer ou de dor que tais ações produziriam. Mais como
tendência do que propriamente em seus princípios e procedimentos, o utilitarismo
influenciou de modo marcante o pensamento radical, num sentido não somente diverso
mas em muitos aspectos semelhante à influência exercida pelo próprio Dickens, uma
vez que ele também, como nos lembra Williams, “teria aceitado a felicidade ou o prazer
como critérios absolutos, na contracorrente da maioria dos sistemas filosóficos e
religiosos da época”23. Esse é um dos sentidos em que temos de assinalar os pontos de
contato entre ele e os reformadores utilitaristas. Assim como estes, Dickens rejeitava de
maneira veemente qualquer idealização conservadora com referência ao passado,
partilhava a crença na necessidade de reforma do sistema legal, bem como desprezava a
aristocracia e suas pretensões sociais. A respeito disso basta lembrarmos o modo como
o narrador em Dombey e Filho por vezes enfatiza aspectos positivos da construção de
ferrovias e seu correlato impulso modernizador na vida inglesa, ao mesmo tempo em
que sugere a precariedade legislativa como uma das causas da bancarrota na casa
comercial de Mr. Dombey. Mas os pontos de contato não obscurecem os desacordos e
as diferenças entre o radicalismo de nosso autor e a ética utilitarista.
A relativa indiferença de Dickens com referência aos Reform Acts de 1832 e
1867 evidencia sua opinião de que ambos não eram suficientes para modificar a
estrutura de poder baseado em classes na sociedade vitoriana24. Se muitos apontam uma
miopia política do escritor neste caso, vale a pena destacar que o segundo Ato, embora
tenha feito dobrar o número de eleitores, incluiu apenas os operários que viviam nas
cidades, deixando ainda de fora os mineiros e os trabalhadores do setor agrícola que

23
Seguimos aqui a argumentação e o vocabulário de Raymond Williams em seu ensaio “Dickens and
Social Ideas”. In: Sociology of Literature and Drama: Selected Readings. Ed. Elizabeth Burns and Tom
Burns. Harmondsworth: Penguin, 1973, p. 339.
24
Ver Grahame Smith, Charles Dickens: a literary life. London: Macmillan, 1996. Também Peter
Ackroyd. Dickens. London: Harper Collins, 1990 e Alexander Welsh. From Copyright to Copperfield:
the identity of Dickens. Cambridge: Harvard University Press, 1987. Para relações com o contexto
vitoriano, ver Fred Kaplan, Dickens: a biography. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998 e
Edgar Johnson, Charles Dickens: His Tragedy and Triumph. Harmondsworth: Penguin, 1979. Além
desses trabalhos, merece menção especial o estudo clássico do amigo e biógrafo de Dickens, John Forster,
The Life of Charles Dickens. London: J.M. Dent &Sons, 1928.

18
viviam em pequenos vilarejos, assim como todo o contingente feminino. As reformas do
período vitoriano tinham, dessa maneira, um passo demasiado lento e uma timidez que
não coadunavam com o diagnóstico dickensiano. Orientada em larga medida pelo
princípio do laissez-faire, a ordem social vigente criava uma realidade em que os mais
bem-postos na vida tinham acesso a bens e serviços granjeados pelo liberalismo
econômico, ao passo que aos despossuídos restava contar com a benevolência dos
proprietários, em caridade esclarecida para uns ou cristã para outros. A atuação direta
do governo no processo educacional, possivelmente a mais veemente reivindicação de
Dickens, foi exercida de modo precário até o Education Act de 1870, que por sua vez
fracassou como instrumento para a obrigatoriedade do ensino. O desenvolvimento
desigual e irregular do sistema legal desde tempos medievais foi decisivamente levado a
efeito apenas com o Judicature Act de 1873, portanto três anos após a morte do
romancista. E, por fim, os mais emergenciais e urgentes problemas de saúde pública e
saneamento básico foram remediados somente com o Public Health Act de 1875,
embora tentativas anteriores tivessem sido feitas. Dito isso, percebemos que para
compreender as divergências de Dickens em relação aos reformadores utilitaristas, é
necessário perceber a contradição dentro do próprio utilitarismo, não tanto como um
sistema intelectual mas como uma tendência política e social. Conforme aponta
Williams, em certo momento da história inglesa durante a revolução industrial os
preceitos do utilitarismo e do radicalismo filosófico estiveram inextricavelmente ligados
aos fundamentos e prescrições da economia clássica e do controle e reclusão da
pobreza.
Enquanto Dickens estava escrevendo, a ênfase do utilitarismo era um composto
de racionalismo e laissez-faire econômico, a despeito da substancial contradição entre a
defesa da utilidade geral e a recomendação da não interferência. Noutras palavras, ao
mesmo tempo em que era preconizada a mínima ingerência governamental nas ações
dos indivíduos, a população miserável era vista como uma ameaça e um estorvo, um
possível foco de distúrbio e violência. Nesse contexto, aquilo que pareciam ser idéias
contraditórias configurava, de fato, o decisivo e primordial interesse de uma classe. É

19
nesse sentido que, quando atacava tais idéias, Dickens dirigia uma crítica mais geral à
predominância da racionalidade prática e da exploração reinantes na sociedade inglesa,
as quais, não surpreendentemente, eram as responsáveis diretas por novos tipos de
abusos e desigualdades, mesmo quando reformavam antigas distorções. A velada
simbiose desse mecanismo, com a perspectiva histórica que o olhar de hoje nos permite,
parece até certo ponto evidente. Entretanto, essa lógica de reformas, balizadas pelo
interesse de uma classe e observadas naquilo que têm de benéfico e prejudicial,
constituía uma realidade pouco explícita e de difícil apreensão. O advento de certa
racionalidade teve efeito catalisador para a economia, mas como instrumento de uma
classe com ímpetos agressivamente reformistas, ímpetos estes que forjaram uma
determinada alienação, em que os cálculos dos interesses foram separados de quaisquer
outras motivações e vínculos humanos. Desse modo, se no princípio houve a tentativa
de estabelecer chicanas com máscaras supostamente éticas, o que acabou por ser
aplicado – com a chancela de economistas e mais diretamente para o favor de uma
classe – foram preceitos de transação capitalista. Assim, conviveram na mesma época a
sensação de efetivos progressos e a experiência de uma realidade excludente, aspectos
estes intimamente ligados ao processo de acumulação do capital. Como dissemos
anteriormente, o procedimento artístico de Dickens não será a análise, a decomposição
ou o veredicto acerca das dicotomias aparentes do sistema: um dos prováveis méritos de
sua obra é transpor justamente para sua estrutura essas ambigüidades e ambivalências.
Nesse sentido, na tentativa de figurar uma dinâmica histórica profunda, ocorre no plano
formal a sedimentação de um julgamento a respeito das alianças necessárias à
manutenção do sistema, bem como de suas conseqüências nefastas.
Dito isso, e pensando especificamente em Dombey e Filho, a presença de uma
perspectiva revolucionária deixa marcas sugestivas na forma do romance, o que não
significa dizer – ao menos não diretamente – que Dickens estivesse escrevendo o
negativo estético do Manifesto Comunista25. Como obras diversas mas de modo algum
alheias, constituem sintomas de época, sendo que no romance a solução passa pela

25
Dombey e Filho foi publicado em periódicos de 1846 a 1848. O Manifesto Comunista é de 1848.

20
revolução do espírito humano: o sistema, as instituições e as estruturas socias devem ser
resgatados e redimidos por uma transformação operada pelo amor e pela inocência.
Assim, o diagnóstico de que mudanças sociais são necessárias surge, muitas vezes,
numa linguagem de religiosidade popular associada à inocência infantil. No entanto,
isso não constitui um apelo fácil de Dickens à salvação ou à redenção nalgum outro
lugar, menos vil e impuro, onde a justiça finalmente encontraria sua razão de ser. Já
sabemos que quanto mais os homens oferecem aos deuses mais retiram de si mesmos:
para Dickens, o que parece estar em jogo é a intervenção humana com intuito de
modificação, tudo pautado por um espírito de inocência e pureza. Existe, é certo, um
pendor pelo escapismo idealista, uma vez que o tom de superfície pode ser até carola –
mas o impulso profundo é lúcido e transformador. Estão presentes na fatura da obra os
elementos de um mundo dominado pela ação humana, das interferências e alterações
recíprocas do homem e seu meio e, por fim, das conseqüências desagregadoras desse
processo, em que a exploração de uns por outros não possibilita mais um
reconhecimento de origem comum. O estilo não representa, assim, somente o incômodo
de uma situação real, mas também o reconhecimento dessa situação e, portanto, de uma
necessária transformação. Por outro lado, se a mudança nos corações precede a
mudança do sistema, tanto a revolução quanto as reformas atenuantes parecem ser
rejeitadas. Estamos, é claro, no campo da “fase heróica do liberalismo”26, em que a
melhora das condições gerais pressupõe o mundo dos interesses guiado pelos
“inocentes” e com “critérios humanos”. Como podemos perceber, tal conciliação não
foi legitimada pela história, o que impôs à obra dickensiana problemas e desafios cujas
marcas formais incitam a decepção estética em uns, mas geram a curiosidade crítica
naqueles que acreditam na relevância da literatura.
“O que Dickens via como uma redenção por meio do amor e da inocência, Marx
via como revolução, e esta diferença é fundamental”27. Todavia, ambos defendiam a
necessidade de mudanças estruturais na sociedade, criticando portanto ações limitadas,

26
Williams, R. “Dickens and Social Ideas”, op.cit., p.347.
27
Williams, R. “Dickens”. In: The English Novel – from Dickens to Lawrence. New York: Oxford
University Press, 1970, p. 50.

21
aparentemente avançadas mas regressivas em essência. A firme convicção de Dickens
nas qualidades da inocência e do amor como impulsos redentores essenciais tem sido
desconsiderada como simples sentimentalismo. No entanto, tal recurso deve ser visto
como um elemento formal, como que a improvisada solução para aplacar conflitos,
mitigar contradições e abrandar paradoxos por meio de reconciliações forçadas. Na
tentativa do autor de figurar uma dada conformação histórica para a qual ainda não
possui os elementos formais necessários, surgem falhas, fraturas e lapsos reveladores na
tessitura da obra. Mas, por outro lado, estariam aí presentes os índices de transformação
e as brechas utópicas. Nesse sentido, a milagrosa intervenção da bondade em Dickens
seria, como nos lembra Williams, “[...] genuína porque é incompreensível”. Em fim de
contas, o que é passível de compreensão é o sistema que foi estruturado consciente e
inconscientemente. “Acreditar que existe um espírito humano, em última instância mais
poderoso até mesmo que esse sistema, é um ato de fé, mas um ato de fé em nós
mesmos.”28 Sendo assim, não deve causar surpresa o fato de que a execução desse
processo tenha se tornado mais e mais difícil para Dickens; mas, ao fim e ao cabo e
sofrendo crescente pressão, é o que ele acaba não apenas tencionando mas realizando
por meio de sua obra. Noutras palavras, a saída estética para o mascaramento e a
ocultação dos conflitos e antagonismos sociais é a construção de um espaço em que a
reconciliação não só é levada a termo como irrompe em nota a um só tempo
apaziguadora e instável, reconfortante e perturbadora: desse duplo caráter emerge seu
potencial utópico, revolucionário – ainda que sem ter uma perspectiva efetivamente
materialista.
Correndo o risco do exagero e da extrapolação, talvez possamos dizer que o
movimento da narrativa em Dombey e Filho incorpora e mimetiza o próprio movimento
de um sistema baseado na circulação de mercadorias. Evidentemente que dizer isso
mais de cento e cinqüenta anos após sua publicação pode ser apenas um exercício de
vontade interpretativa, endossando assim nosso ingresso nas fileiras daqueles que “[...]
têm forçosamente uma visão intrumentalizada da esfera cultural, em que não vêem

28
Williams, R. “Dickens”, op.cit., p. 53.

22
novidade, e quando ligam literatura a sociedade é para fazê-la dizer o que já estavam
dizendo”29. Nesse sentido e fazendo valer esse alerta, é necessário que as características
do narrador sejam discutidas como forma, sem que, entretanto, tal discussão fique
restrita ao plano formal ou se esgote nele mesmo30. Dito isso, vemos que será função da
análise mostrar o narrador em sua mobilidade, agindo como se a todo momento devesse
apagar pequenos focos de perturbação que teimam em surgir, invadindo a sua
perspectiva e, a seus olhos, ameaçando conspurcá-la. Os esforços, à revelia de si
mesmo, acabam por ter de honrar os compromissos e débitos de sua tarefa: deixam
transparecer o que originalmente deveriam encobrir. A revelação, entretanto, nunca
chega a termo. Daí certa impressão de quebra de nitidez no texto, possivelmente
tributária do modo de vivenciar o novo tempo a que o romance procura dar forma.
Veremos que a mobilidade do narrador em Dombey e Filho sinaliza em termos estéticos
a crescente consciência acerca da sociedade como criadora dos vícios e das virtudes, das
instituições como instâncias de fomento e controle da vida social. As condições
materiais de existência assumem, portanto, o papel prevalente naquilo que
anteriormente era visto como falhas e qualidades inerentes à alma. Essa nova
perspectiva, contudo, tem custo alto, observável, aliás, no preço a pagar que a
inquietude do narrador sistematiza e realça. Uma vez identificada a responsabilidade
humana na criação das distorções e no levar a efeito a exploração, cabe ao narrador
ensaiar malabarismos e manobras: novamente, um tributo pago à inexistência de
recursos formais que traduzam a nova conformação histórica. A mobilidade de que
falamos busca abarcar quase tudo, com voracidade e motivação notáveis, permeando
toda e qualquer instância da vida no romance, como se não pudesse deixar espaços em
branco.
Se estivermos corretos, isso carrega afeições e afinidades próximas às do
movimento da circulação de mercadorias, no ritmo dado por um modo de produção que

29
Schwarz, R. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”. In: Que horas são? São
Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.147.
30
Essa idéia e esse vocabulário tomamos emprestado de Roberto Schwarz. Um mestre na periferia do
capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990, p. 10.

23
coloniza todas as esferas da existência. Dessa maneira, o narrador estipula um
andamento renovador, porém com travo de desagregação, resultado do passo dúbio na
dança para escamotear o viés de classe que carrega consigo. Isso provoca – no enredo,
nos desenvolvimentos de seu registro como narrador e na construção dos personagens –
a conseqüente reordenação de recursos escassos para manutenção do sistema de
desigualdades, mas com o renovado ímpeto de manter o que é abjeto e espúrio sob o
verniz reconfortante da solidariedade, da compaixão e do entendimento. Com a
felicidade forçada pela ótica dos proprietários e um alijamento até certo ponto
disfarçado dos despossuídos, surge algo como a energia hipoteticamente desinteressada
do amor puro e da franca inocência, ambos a serviço de uma elaboração sutil: num
primeiro nível, legitima consentimento e aprovação para um ordenamento social em que
uns possuem licença para matar e outros, a permissão para morrer; num segundo nível,
contudo, indica a existência de certo desencaixe, em que a necessidade de formular
saídas e oferecer respostas sugere muito mais do que inicialmente tencionado. É
manifesta, assim, a necessidade de verdadeiras transformações, o desejo de
modificações estruturais do sistema, para efetivamente desmanchar o que é sólido sem
apenas e tão-somente aparar arestas. Dito de outra forma, se com lágrimas e sorrisos é
perpetrado um simulacro de sociedade reconciliada, também é inscrito na memória o
desejo de liberdade. Acresce que essa síntese profunda do movimento histórico adquire
ainda maior relevância: consumação de tendências e categorias gestadas em séculos
anteriores e adquirindo uma particular configuração no século dezenove, a arena de
conflito e antagonismo social – cuja matriz o texto de Dombey e Filho reverbera –
acarreta conseqüências até os dias de hoje.
Sabemos que reconhecer a dialética da forma literária e processo social “[t]rata-
se de uma palavra de ordem fácil de lançar e difícil de cumprir”31. Por outro lado,
quando a reflexão acontece somente no nível da literatura, corre o risco de não ser
relevante nem mesmo sob um ponto de vista estritamente literário, o que, aliás, não
deve ser motivo de preocupação para os que dizem estar apenas interessados em

31
Schwarz, R. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da Malandragem’”, op.cit., p.129.

24
literatura, sobretudo se lembrarmos que eles têm, de fato, outros interesses. Algo
reducionista, repetitivo e desatualizado como o desejo de liberdade seria, em sua visão
amodernada, apenas um recurso passadista e retórico dos que teimam em dizer sempre
as mesmas coisas. De mais a mais, estaríamos num mundo mais confortável se, por
acaso, a obra de Dickens mostrasse apenas e tão-somente aspectos residuais do que seria
passível supor como fase já superada do capitalismo, o que em muitas frentes de
revelação e em várias de suas características intrínsecas de fato ocorre. No entanto, com
o reordenamento dos aspectos hegemônicos a que agora estamos expostos, existe a
alternativa de que os ditos aspectos residuais não sirvam apenas de museu para
enriquecimento erudito, mas para o diagnóstico de formas emergentes às quais não
estamos completamente despertos. Isso posto, cabem algumas perguntas: seria plausível
inferir que o romance de Dickens sedimenta em sua forma configurações específicas da
Inglaterra do século XIX? Poderíamos dizer que, se isto ocorre, Dombey e Filho sugere
um princípio de generalização da Inglaterra em particular e do capitalismo em geral?
Além do caráter de reforço e manutenção, o melodrama, o sentimentalismo e a
compaixão carregariam, de fato, um índice de caráter utópico? Estariam presentes, nessa
configuração dada pela obra, novas formas de sociabilidade? Por fim, como é possível
que a mesma época ofereça um diagnóstico relevante das modificações sociais a serem
feitas e, concomitante a isso, legitime soluções parciais, provisórias, de conteúdo
eminentemente paliativo, em que atenuação e dissimulação caminham de mãos dadas?
A força e atualidade da obra de Dickens, nesse sentido, estariam em trazer em ponto
renovado e compasso atualizado discussões esquecidas, posto que em certa medida
anacrônicas, porém reveladoras, uma vez que nossos progressos podem ser um atraso.
Em suma, o ovo da serpente pode insinuar uma incômoda advertência e sugerir um
traço de esperança.

25
2. UMA EMPRESA FAMILIAR

Como linhas bastante gerais, o enredo do sétimo romance de Dickens traz a


história do inflexível e rigoroso Mr. Dombey, preocupado com seu desejo de ter um
herdeiro para sua empresa, a Dombey e Filho, ao mesmo tempo em que ignora e
despreza sua filha, Florence. O romance começa com o nascimento de seu filho, Paul, e
a morte de Mrs. Dombey logo após o parto. O menino é visto quase que exclusivamente
como um novo parceiro nos negócios e, para cuidar de seu novo sócio, Mr. Dombey tem
de contratar uma ama-de-leite, Polly Toodle. Conforme vai crescendo, Paul parece
gostar mais de sua irmã do que de seu pai. Freqüenta primeiramente a escola de Mrs.
Pipchin e depois a de Dr. Blimber, mas aos olhos de quase todos parece ser uma criança
estranha, fisicamente debilitada e, no entanto, intelectualmente perspicaz, tendo por
hábito desconcertar continuamente os adultos com suas perguntas surpreendentes e sua
percepção aguçada. Florence, por sua vez, numa visita que faz ao bairro de Stagg’s
Gardens, é raptada mas acaba sendo salva pelo jovem Walter Gay, funcionário da
Dombey e Filho e sobrinho de um modesto vendedor de instrumentos náuticos, Sol
Gills. Constitucionalmente fraco, o pequeno Paul Dombey morre, e o período de luto
serve para separar ainda mais Florence de seu pai, a despeito da dedicação com que ela
procura o amor dele. Após a morte do filho, Mr. Dombey viaja de trem até Birmingham,
onde encontra uma jovem e orgulhosa viúva, Edith Granger. Em um arranjo bastante
assemelhado às transações comerciais, disfarçado por trejeitos e maneirismos de bons
modos, Mrs. Skewton oferece sua filha Edith a Mr. Dombey, o que causa a humilhação
de uma e o pronto aceite de outro. Não obstante isso, a nova Mrs. Dombey desenvolve
uma genuína afeição por Florence, irritando o marido. Em virtude dessa nova situação,
mas também como decorrência da frieza com que é tratado pela esposa, Mr. Dombey
usa o gerente-geral Carker na tentativa de impor obediência servil a Edith. A

26
contragosto desta e para satisfação de Carker, que percebe uma possibilidade de ampliar
sua influência tanto na empresa quanto na casa, ambos acabam moldando uma relação
de cumplicidade hostil. Num primeiro momento, o leitor é levado a ter a impressão de
que ambos fogem juntos. Mas não há conluio amoroso: já na cidade de Dijon, Edith
enfatiza de modo definitivo seu desprezo por Carker, e o abandona. Com a fuga de sua
esposa, Mr. Dombey tem um momento de descontrole e bate em Florence, que busca
refúgio na loja de Sol Gills. Na seqüência destes eventos, enquanto tenta escapar da
perseguição de Mr. Dombey, Carker morre ao ser atingido por uma locomotiva. O
decorrente declínio físico e mental de Mr. Dombey acompanha em paralelo as
dificuldades financeiras em seus negócios. A Dombey e Filho, por fim, vai à falência.
Mas Florence, agora já casada com Walter, evita o suicídio de seu pai. Desse modo,
somente como um homem arruinado, Mr. Dombey pode finalmente corresponder ao
amor de sua filha.
Observada assim, na enumeração dos acontecimentos e no elenco dos
personagens, condensados mal e parcamente num só fôlego, a toada melodramática do
enredo não escapa aos olhos do leitor mais ressabiado. E mesmo o esboço inicial de
Dickens, relatado a seu amigo e biógrafo John Forster, guarda semelhanças com a
maneira como aqui esquematizamos o romance32. Desde o princípio, de forma inédita
até aquele momento na composição de seus livros, existe um planejamento a ser
seguido, num padrão que será adotado daí em diante. A morte de Paul, a rejeição e a
constância do amor de Florence, bem como a insolvência de Dombey já estavam
previstos em tal planejamento. Mas isso, entretanto, não significa que o tracejado
melodramático seja a única preocupação que o autor tinha em mente. Sabemos que as
intenções do escritor não devem servir de mapa da mina, uma vez que a obra é
historicamente determinada, porém é interessante notar a inquietação de Dickens numa
carta enviada a Forster a partir de Lausanne, onde escreve o romance: “[...] a dificuldade
[ para conseguir um ritmo de produção acelerada ] é tremenda: é quase uma

32
Em suas cartas de 25 e 26 de julho de 1846, Dickens faz um detalhado esboço do romance. Ver
Tillotson, K. (ed.). The Letters of Charles Dickens. Volume Four: 1844-1846. The Pilgrim Edition.
Oxford: Clarendon, 1977.

27
impossibilidade. Suponho que isso aconteça em parte devido à pausa de dois anos
[desde que terminara Martin Chuzzlewit ], em parte devido à ausência das ruas e de
pessoas em quantidade. Não consigo expressar o quanto me fazem falta. É como se me
dessem ao cérebro algo de que ele não pode prescindir se quiser trabalhar. Por uma
semana ou quinze dias posso escrever maravilhosamente num lugar afastado (como em
Broadstairs), e um dia em Londres basta para me reerguer e reanimar. Mas a fadiga e o
trabalho de escrever, dia após dia, sem aquela lanterna mágica, são imensos!! [...]
Somente menciono isso como um fato curioso, que nunca havia tido a oportunidade de
perceber antes. Meus personagens parecem dispostos à paralisia sem uma multidão ao
seu redor”33.
Não será por mero acaso que Walter Benjamin escolhe justamente essa
passagem para inserir como citação no seu estudo sobre Baudelaire, no momento em
que discute a importância da multidão, da nova realidade citadina – em diferentes
chaves e conformações – tanto para a obra de E.T.A. Hoffmann quanto para a de Edgar
Allan Poe. Benjamin escreve que “[...] ao viajar, Dickens se queixará da falta do
barulho da rua, que era indispensável para a sua produção”34. Poucas linhas à frente,
enfatiza: “Às margens do lago, Dickens se lembra nostalgicamente de Gênova, onde
tinha duas milhas de ruas iluminadas para vagar à noite sem rumo certo”35. Mas o
homem que vaga pela cidade absorto em pensamentos não é o mito burguês da
realização individual na grande tarefa que tem pela frente. Se os ritmos dos novos
tempos tentam ser esculpidos numa fôrma que lhes dê sentido, a atuação da História não
deixa que se realize um aprisionamento à mercê das intenções autorais. Certamente em
Dombey e Filho Dickens contrasta a fria infelicidade do lar-empresa dos Dombey com a
alegria calorosa da família Toodle e de Sol Gills e seu sobrinho Walter. Estão presentes
as relações entre empresa e família, pais e filhos, homens e mulheres, riqueza e pobreza,
o velho e o novo. Entretanto, tudo isso recebe o influxo de algo que lhes dá o enfoque.

33
Carta de 30 de agosto de 1846. Tillotson, K., op. cit., 1977. Ver também Coolidge, A. C. “Dickens’s
Complex Plots.” Dickensian, 57 (1961), 174-82.
34
Benjamin, W. Charles Baudelaire. Um Lírico no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas III. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p.46.
35
Benjamin, W., op.cit., p.47.

28
Assim, digamos grosso modo que o esqueleto – e até alguma gordura – provém, de fato,
de um certo modelo lacrimoso e maniqueísta; mas os nervos e músculos têm sua origem
em outra esfera, cujo dinamismo será papel da análise realçar.
Tanto Martin Chuzzlewit (1844) quanto Dombey e Filho têm personagens
centrais dominados por um traço determinante, nomeadamente, o individualismo no
primeiro e o orgulho no segundo. Ambos os romances também adotam a derrocada de
protagonistas e a reconciliação final como eixo estruturante para resultados e
desdobramentos36. Diferentemente de como procedera nos romances anteriores – As
Aventuras de Mr. Pickwick (1837), Oliver Twist (1839), Nicholas Nickleby (1839), Loja
de Antigüidades (1841) e Barnaby Rudge (1841) –, Dickens usa nesses dois livros
padrões imagéticos que surgem com recorrência cuidadosamente elaborada. Tendo,
pois, em essência tais fatores como base, muitos comentadores assinalam a proximidade
entre as duas obras, mesmo reconhecendo o avanço representado por Dombey e Filho.
Ainda no plano das influências estritamente intra-literárias, parte da crítica chama
atenção para as semelhanças com a tragédia shakespeareana Rei Lear. Nesse aspecto, a
maioria das configurações significativas dos personagens no romance manteria alguma
afinidade com os da peça37. Mr. Dombey estaria para Lear, assim como Florence para
Cordelia, bem como Carker seria um paralelo de Edmund. A pesquisa da psicologia da
relação entre pai e filha, entre desmandos do poder e conseqüências familiares, seria um
dos motivos recuperados na fatura do romance. Além disso, a comparação do herói de
Dickens com o de Shakespeare serviria para uma elevação trágica de sua estatura. Já
outros estudiosos, menos satisfeitos com o resultado final obtido por Dickens,
argumentam que Dombey e Filho seria um fracassado Rei Lear do romancista inglês; no
entanto, um insucesso necessário, quase que uma preparação para aquilo que viria a ser

36
Ver a introdução de Alan Horsman para a edição da Clarendon de Dombey and Son. The Clarendon
Dickens. Oxford: Clarendon, 1974. A discussão de Horsman é bem mais ampla do que esse tópico. Sua
menção aqui se justifica pela acuidade com que capta esse ponto do debate acerca de Dombey e Filho
para relativizá-lo criticamente.
37
Para uma discussão das similaridades e diferenças, ver Welsh, A. From Copyright to Copperfield: The
Identity of Dickens. Cambridge: Harvard University Press, 1987, pp.74-103; Meckier, J. “Dickens and
King Lear: A Myth for Victorian England.” South Atlantic Quarterly, 71 (1972), 75-90 e Harbage, A.
“The Welcome Message.” In: A Kind of Power: The Shakespeare-Dickens Analogy. Memoirs of the
American Philosophical Society, 105. Philadelphia: American Philosophical Society, 1975, pp.55-56.

29
o seu Hamlet, ou seja, sua obra seguinte: David Copperfield (1850)38. Talvez – e aqui as
dúvidas merecem reforço e ênfase extras – nada disso esteja propriamente errado.
Ocorre, entretanto, que circunscrever a compreensão de uma obra somente à linha
evolutiva no progresso de um autor ou, ainda, procurar o estabelecimento de similitudes
e conformidades no âmbito das influências literárias, isoladas de condições reais,
inscritas no tempo e em determinado espaço, tudo isso pode restringir e esterilizar o
eventual alcance cognitivo que a própria obra, como forma, possa vir a ter. Ficamos no
campo do achado de laivo erudito e da tirada com fumaças de agudeza, mas, de fato,
pouco ganhamos em profundidade analítica.
Dito isso, vale ressaltar que a grande novidade de Dombey e Filho – para além
do campo das obras que influenciam outras obras – é a atualização com as matérias e
preocupações de sua época. Tal característica ocorre não apenas com a centralidade que
a sociedade adquire para a fatura e composição, mas sobretudo pela postura de um
narrador ostensivamente mais crítico e cáustico em relação aos dos romances anteriores.
Muitos comentadores apontam o uso das ferrovias no desenvolvimento da narrativa
como um índice de modernidade. De fato, o bairro de Stagg’s Gardens é completamente
alterado, Mr. Toodle é um trabalhador das ferrovias, Mr. Dombey viaja de trem para
Birmingham e Mr. Carker é estraçalhado por uma locomotiva. Entretanto, a importância
do aparecimento das vias férreas como um ponto de virada fundamental – não apenas na
obra de Dickens, mas, como querem alguns, para a própria história do romance em geral
– deve ser posta em perspectiva39. Certamente sua presença oferece oportunidade para
magníficos efeitos narrativos, como quando são descritas as viagens e também as
transformações necessárias para que sejam construídas novas malhas ferroviárias – mas

38
Ver Leacock, S. Charles Dickens: His Life and Work. London: Peter Davies, 1933, pp. 113-17. Como
curiosidade, vale citar a maneira como esse autor aproxima Shakespeare e Dickens, passando por Milton
e Scott: “Shakespeare escreveu sobre reis; Milton, sobre o inferno; e Scott, sobre a Idade Média. Restou
ao século dezenove disparar um fluxo de lágrimas sobre seu próprio sofrimento”. Esta categorização fez
escola para descrever as características aparentes desses autores. Consultar também Gager, V.
Shakespeare and Dickens: The Dynamics of Influence. Cambridge: Cambridge University Press, 1996,
pp. 212-22.
39
Para a importância primordial das ferrovias em Dombey e Filho ver, por exemplo, Cockshut, A. J. The
Imagination of Charles Dickens. London: Collins, 1961, pp. 97-113. Para uma opinião divergente,
consultar Collins, P. “Dombey and Son – Then and Now”. Dickensian, 63 (1967), 82-94.

30
tudo isso não é preponderantemente essencial para dominar todo o livro. Noutras
palavras, corremos o risco de confundir causas e conseqüências, ou seja, as ferrovias são
extremamente importantes sim, mas apenas como um dos artíficios a mais que o
narrador utiliza para tentar figurar um novo tempo histórico, pleno de transformações
em suas forças produtivas, propício à modificação nas relações de produção. Nesse
sentido, é mais importante enfatizar o novo esforço que esse narrador dickensiano leva a
efeito: abarcar as benesses e os malefícios do progresso por meio de uma visão que
capte a totalidade do panorama social, perseguindo seus personagens no campo vasto
das ruas, na intimidade das lareiras, nos escritórios e na vida subalterna40. Daí advém
sua peculiaridade de realizar um diagnóstico incisivo sobre os fluxos do comércio, as
andanças da circulação de mercadorias, ao mesmo tempo em que procura criar saídas
amenizadoras na esfera privada. Dessa maneira, o narrador de Dombey e Filho acaba
retratando um interessantíssimo beco sem saída: liberdade, igualdade, fraternidade, mas
não para todos, esbarrando assim – de maneira incômoda – nos limites das promessas
burguesas41.
No próprio século dezenove, algum tempo após a publicação de Dombey e
Filho, um crítico como Hippolyte Taine chegava a escrever que um “negociante
principesco em sua casa contábil” era um personagem que só “poderia ser produzido
num país cuja atividade comercial abarca o globo terrestre, cujos mercadores são
verdadeiros potentados, onde uma companhia de comerciantes especulou em todos os
continentes, manteve guerras, destruiu reinos, fundou um império de cem milhões de

40
Jaffe, A. “Dombey and Son: The World Within and the World Without.” In: Vanishing Points: Dickens,
Narrative, and the Subjet of Omniscience. Berkeley: University of California Press, 1991, pp.71-111.
41
Vale lembrar que Dombey e Filho foi terminado na época da eclosão das revoluções que varreram a
Europa em 1848: uma série de eventos que, de certa forma, forneceram o pano de fundo para uma
mudança na escrita de Dickens a partir dessa data, iniciando sua segunda e última fase, mais sombria,
mais ácida em termos de crítica social. Nesse sentido, Dombey e Filho seria um divisor de águas nas
considerações dickensianas acerca do mundo governado pela produção e circulação de mercadorias, isto
é, pela escalada da era do capital. Ver Goldberg, M. “Carlyle, Dickens, and the Revolution of 1848”.
Dickens Studies Annual, 12 (1983), 223-32. Também do mesmo autor, “From Bentham to Carlyle:
Dickens’ Political Development”. Journal of the History of Ideas, 33 (1972), 61-76 e “The World of
Mammonism: Dombey and Son.” In: Carlyle and Dickens. Athens: University of Georgia Press, 1972,
pp. 45-58.

31
homens”42. Embora caudatário de alguns estereótipos, neste trecho específico o
comentário de Taine tem a propriedade de perceber o quanto o romance estava em
sintonia com questões contemporâneas. A partir desse momento Dickens passava a se
preocupar mais firmemente com a colocação de instituições no centro de seus livros.
Mais tarde, por exemplo em Casa Soturna (1853) e Pequena Dorrit (1857), isso ficará
ainda mais claro. No caso de Dombey e Filho, como o próprio título revela, a
necessidade histórica faz que uma empresa comercial desempenhe um papel de
proeminência e relevância no tecido narrativo. Como adiante veremos, alguns
estudiosos acham que a firma e os escritórios não receberam a atenção devida, porém
concedem que a intenção inicial é contemplada, ou seja, a demonstração de que uma
família não pode ser gerida segundo os mesmos padrões de uma empresa. Todavia, num
e noutro caso, parecem perder de vista que a empresa e a família são carne da mesma
carne, dinheiro do mesmo cofre, sangue do mesmo lucro e dividendos do mesmo
sangue. Uma das realizações do narrador dickensiano foi justamente mostrar a
indiferenciação das divisas, a contaminação recíproca dos documentos, afagos e
alianças. Império e país, empresa e funcionários, família e indivíduos são mostrados,
assim, como vasos comunicantes para a circulação de algo a um só tempo mais viscoso
que o sangue e mais sorrateiro que os afetos.
Paul Dombey – assim como Tom e Louisa Gradgrind em Tempos Difíceis
(1854) – é vítima de uma concepção monetária acerca dos usos e destinos da infância.
Mas a ausência de afeto paterno e o excessivo apego para com a irmã não se restringem
apenas ao alerta acerca das conseqüências de um espírito frio e calculista de
Mr.Dombey ou na suposta elegia ao poderes miraculosos do amor fraternal. Para além
disso, estamos no campo do tratamento econômico – predominante à epoca e talvez
tristemente atual – das crianças como unidades de memória e aprendizado, como

42
Taine, H. “Le Roman: Dickens”.In: Histoire de la Littérature anglaise. Tome cinquième et
complementaire: Les Contemporains. Paris: Hachette, 1864, pp.1-69. Alguns extratos desse estudo foram
reproduzidos em Charles Dickens: A Critical Anthology. Ed. Stephen Wall. Harmondsworth: Penguin,
1970, pp.99. Para uma breve discussão acerca das similaridades e diferenças entre Dickens e Balzac na
abordagem dos novos tempos históricos, também tratadas por Taine, ver: Sobel, M. “Balzac’s Le Père
Goriot and Dickens’s Dombey and Son: A Comparison.” Rice University Studies, 59 (1973), 71-81.

32
esponjas prontas para absorver fatos, números, estatísticas e referências que as tornem
mais úteis, mais aptas para competir numa sociedade orientada pelo dinheiro. Levando
isso em consideração, a primeira parte de Dombey e Filho, que se atém primordialmente
à história do nascimento e morte do pequeno Paul, talvez possa ser lida como um ataque
incisivo contra a perspectiva que vê na criança nada mais que uma unidade econômica
em potencial. Mesmo que, como filho e legítimo herdeiro de Mr.Dombey e de sua casa
comercial, o futuro de Paul fosse uma promessa de poder e riqueza, os sacrifícios
impostos desde o nascimento até a morte prematura iluminam aspectos pouco
meritórios da norma burguesa. Por outro lado, cabe ressaltar que tanto o presente quanto
o possível futuro das crianças em uma das pontas do núcleo pobre da trama, a família
Toodle, eram marcadamente mais sombrios: não obstante o carinho e a atenção que
recebiam, a situação do conjunto familiar é de total precariedade, dependendo ora de um
emprego como ama-de-leite, no caso da mãe, ora de um posto nas ferrovias, no caso do
pai. Em outras palavras, muito embora por algumas vezes o narrador trace panoramas
da riqueza desditosa e da pobreza afortunada, os desdobramentos do sistema a que todos
estão submetidos distribui amplamente – de modo desigual, é certo – parcelas de
estorvo, violação e penúria. Todos acabam levando seu quinhão de mazelas e as rédeas
do narrador necessariamente são forçadas para caminhos outros. O que de início talvez
tenha sido um ensaio para retratar os percalços da infância no âmbito restrito de uma
classe se transforma, desde cedo, em um mapeamento mais complexo, menos
confortável.
Isso posto, vemos que o romance também é norteado pelo relato das vicissitudes
de um orgulhoso homem de negócios, que a duras penas tem de aprender a amar e a
reconhecer o amor que recebe. Todavia, nosso narrador equilibrista realiza sua tarefa
com passos maiores do que a boa indicação da segurança burguesa sugeriria: é feita uma
abrangente pesquisa sobre os ritmos da sociedade inglesa, por vezes tateando e, uma ou
outra vez, firmemente soerguendo aquelas que parecem ser forças controladoras de cada
esfera de poder, da mais diminuta à mais ubíqua. Nesse sentido, a primeira parte, a
história de Paul, não pode ser separada do restante do livro, contrariamente ao que

33
chegam a defender alguns críticos43. Cumpre perceber que a narração da infância e
morte do primeiro herdeiro de Mr.Dombey está intrinsecamente ligada à segunda parte,
cujo cerne corresponde à busca por um novo herdeiro em seu malfadado casamento com
Edith Granger. Essas partes unidas constituem um dos pontos nodais do romance: a
descoberta por Mr. Dombey, a partir do fracasso de todas suas esperanças, de que o
amor personificado por sua filha estava todo o tempo muito perto, despercebido,
desprezado. Realçando tal coesão formal, o mundo dos negócios e o das peripécias
íntimas aparecem entrelaçados por meio das relações siamesas de ambição e fantasia,
lucro e desejo, patrimônio e emoção. Todos esses laços sendo expressos e dados a
conhecer por meio de estrutura e estilo, numa interação de dinâmicas diversas mas
nunca apartadas. Acresce que os capítulos, que eram agrupados em números mensais,
estabelecem uma certa arquitetura compacta, interdependente, e alicerçada em quatros
seções, com pontos de inflexão mais ou menos simétricos ao fim dos números 5 (morte
de Paul), 10 (segundo casamento de Mr.Dombey), 15 (fuga de Edith), e 18 (morte de
Carker), ficando para o número duplo 19/20 a resolução e seu final, evidentemente,
feliz. Ademais, essa simetria e interdependência ocorre também dentro dos números, no
jogo dos capítulos entre si. O nascimento de Paul e morte de Fanny Dombey, ambos no
capítulo 1, abrem por assim dizer dois feixes de desenvolvimento para possíveis cursos
narrativos no que concerne ao conflito central. Dessa maneira, o capítulo 2 focaliza
Miss Tox, Mr. e Mrs. Chick, e a família Toodle, como que enfatizando uma
continuidade das rotinas de vida após a dura materialidade da morte; ao passo que o
capítulo 3 volta a reforçar, no tratamento da ambiência doméstica, o acorde soturno e
melancólico derivado da negatividade do capítulo inicial; mas na seqüência, no capítulo
4, vemos o surgimento de Walter Gay, futuro genro de Mr. Dombey, filho substituto e
continuador mercantil, o que faz inclinar novamente o pêndulo para o lado de
predomínio positivo.

43
Ver, por exemplo, Leavis, F. R. “The First Major Novel: Dombey and Son.” In: F. R. Leavis and Q. D.
Leavis. Dickens – the novelist. London: Chatto & Windus, 1970.

34
Contudo, se tais exemplos funcionam, ainda que superficialmente, como
ilustração das sutilezas entre parte e todo presentes no romance, mais essencial para a
análise é o fato de que em Dombey e Filho existe um aprimoramento da técnica e do
artesanato narrativos que ultrapassam a dimensão formal, sem descuidá-la. Dickens
alcança nessa obra um esboço abrangente, um complexo panorama sócio-histórico em
direção ao qual, com avanços e retrocessos, parecia se mover desde o início de sua
carreira. Pela primeira vez as classes mais privilegiadas ganham cores e contornos não
totalmente caricatos. Suas poses não são somente o vestígio de uma estatuária antiga ou
a presunção de monumentos presentes: são figuras representativas dos próprios conflitos
de interesse que dão argamassa e tutano ao romance, historicamente considerado.
Noutro extremo, com o maquinista Mr.Toodle e a ama-de-leite Polly Toodle, temos
também pela primeira vez a incorporação da classe trabalhadora à trama, não como
criminosos ou serviçais fiéis, mas com papel e relevância independentes, ocupando uma
função significativa, esclarecedora – para os leitores interessados em identificar as
conexões existentes entre dominação e exclusão. É nesse sentido que, na casa comercial
de Dombey, o narrador de certo modo encontra um centro organizador para a sociedade
inglesa do período. Como já mencionamos, alguns comentadores sugerem que o retrato
da rotina de trabalho e funcionamento da empresa é demasiadamente vago44. Isso é visto
como uma fraqueza, uma falta de entendimento do autor no que se refere aos usos e
costumes dos processos inerentes às atividades desse tipo de empreendimento.
Entretanto, contrariamente a essa concepção estreita acerca da fidelidade realista, é
fundamental destacar que as tarefas comerciais estão intrinsecamente conectadas ao
hábitat doméstico. Se as próprias relações entre os personagens não forem indício
suficiente, basta lembrar que eventos importantes para o desenrolar da trama – como o
batismo de Paul, o segundo casamento de Mr. Dombey, a chegada após a lua-de-mel, a
fuga de Edith e a bancarrota da empresa – todos esses eventos são comentados por dois
coros: as reações dos funcionários do escritório e as reações do empregados da casa.

44
Ver a esse respeito Philip Hobsbaum, A reader’s guide to Charles Dickens, New York: Farrar, Straus
and Giroux, 1972. Embora um tanto quanto superficial em suas discussões, e até por conta disso, o autor
consegue realizar um compêndio de alguns tópicos presentes na tradição da crítica dickensiana.

35
São criadas, assim, associações de significado que revelam de modo recíproco
mecanismos de atuação, alianças de oportunidade e estratagemas de solidariedade:

At the counting-house, the clerks discuss the great disaster in


all its lights and shades, but chiefly wonder who will get Mr.Carker’s
place. They are generally of opinion that it will be shorn of some of its
emoluments, and made uncomfortable by newly devised checks and
restrictions; and those who are beyond all hope of it are quite sure
they would rather not have it, and don’t at all envy the person for
whom it may prove to be reserved. Nothing like the prevailing
sensation has existed in the counting-house since Mr. Dombey’s little
son died; but all such excitements there, take a social, not to say jovial
turn, and lead to the cultivation of good fellowship. [...]
Mr. Dombey’s servants are becoming, at the same time, quite
dissipated, and unfit for other service. They have hot suppers every
night, and “talk it over” with smoking drinks upon the board. Mr
Towlinson is always maudlin after half-past ten, and frequently begs
to know whether he didn’t say that no good would ever come of living
in a corner house? They whisper about Miss Florence, and wonder
where she is; but agree that if Mr Dombey don’t know, Mrs Dombey
does. [...] They all agree that she [Edith Dombey] was too high, and
Mr Towlinson’s old flame, the housemaid (who is very virtuous),
entreats that you will never talk to her any more about people who
hold their heads up, as if the ground wasn’t good enough for’em.
Everything that is said and done about it, except by Mr.
Dombey, is done in chorus. Mr.Dombey and the world are alone
together45.

45
Nos escritórios, os empregados discutem os mais minuciosos aspectos da grande tragédia [a fuga de
Edith aparentemente com Carker], mas principalmente fazem especulações sobre quem obterá o lugar de
Mr. Carker. Prevalece a opinião geral de que o cargo será despojado de uma parte de suas vantagens e de
que será incômodo devido às novas limitações e novas restrições; aqueles que não têm qualquer esperança
de serem indicados declaram que não o desejariam, e que não invejam a pessoa que vier a merecê-lo.
Desde a morte do filhinho de Mr. Dombey, nada havia gerado tamanha comoção; mas toda essa excitação
adquiria um tom de sociabilidade até mesmo jovial, levando ao cultivo de um bom companheirismo. [...]

36
Nesses trechos específicos, logo após a fuga de Edith, ao que tudo indica com o
gerente-geral Carker, todo o encadeamento de um padrão de troca, de remuneração e
compensação – material e emotiva – revela sua coexistência na mesa de funcionários e
empregados, no fio da meada das conversas, bem como na reprodução em segunda
ordem do que acontece nos platôs da hierarquia. Não se trata, é claro, de uma
demonstração da mesquinhez dos de baixo, nem do andamento vil de sua indiferença.
Cobiça e cálculo de possíveis vantagens – que existem, de fato, na discussão de um
cargo vago, assim como na suspensão temporária da vigilância e autoridade coercitivas
– não surgem como acontecimentos anômalos, destituídos da base que lhes dê campo de
crescimento. Tal campo e tais conseqüências vêm antes como resultado, numa
interferência de mão-dupla. Noutras palavras, a menção quase de passagem ao outro
evento que causara a mesma comoção e burburinho, a morte do pequeno Paul, lembra
que a lógica de governar vida e morte sob desígnios financeiros determina um leque de
fatalidades, porém com revés e infortúnio bastante administrados, reificados sob o
propósito firme de circulação e acumulação monetária. No caso dos funcionários do
escritório, a atmosfera de camaradagem, que sucede as tramóias pelo reconhecimento e
as esquivas de dissimulação, vai reverberar na suspensão do trabalho mal remunerado
dos empregados domésticos em meio ao fausto da mansão Dombey e, temporariamente,
criar um viso êfemero de nova sociabilidade, uma brecha que contrasta a solidão de Mr.
Dombey. Mas esta e aquela carregam mais afinidades do que propriamente relações
causais. Com efeito, por meio da unidade formal do romance, ficam aparentes
mutualismos e dependências. Em cada nível no mundo de Dombey e Filho as mesmas
forças parecem estar em atividade. Das suntuosas mansões da aristocracia em Brook

Ao mesmo tempo, os criados de Mr. Dombey começam a dissipar-se e já não estão à altura de seu
serviço. Todas as noites fazem uma ceia quente e ‘discutem o caso’ com bebidas fumegantes em cima da
mesa. Mr Towlinson sempre fica mais sensível depois das dez e meia, e freqüentemente pergunta se não
dissera que não se podia ser feliz quando se vivia numa casa de esquina? Murmuram a respeito de Miss
Florence, perguntando-se onde estaria ela; mas concordam que se Mr. Dombey não sabia, Mrs. Dombey
sabia. [...] Todos estão de acordo de que ela [Edith Dombey] tinha um ar excessivamente superior, e a
velha chama de Mr. Towlinson, a criada de quarto (que é muito virtuosa), pede que nunca mais lhe falem
de pessoas que levantam tanto a cabeça como se o chão não fosse bastante bom para elas.
Tudo que é dito e feito a respeito, à exceção de Mr. Dombey, é feito em coro. Mr. Dombey e o mundo
estão sozinhos juntos. [Dickens, C. Dealings with the firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for
exportation. London: Penguin, 1985. pp. 814-816. Nas demais citações dos trechos do romance, faremos
a tradução e apresentaremos entre colchetes apenas a notação DS, sempre referente a essa edição, seguida
pelas páginas correspondentes. ]

37
Street até o casebre onde viceja a miséria de Good Mrs Brown, a avidez desbragada, a
ganância competitiva e a indiferença em relação aos demais criam um terreno fértil,
espaço de aragem e cultivo para o sistema econômico de uma sociedade baseada no
conflito e antagonismo. A lâmina perpassa diversas áreas, com corte irregular, de vinco
e sulcos em diferentes profundidades, mas reconhecer sua presença significa garantir à
obra seu poder de mapeamento – sem, ao mesmo tempo, reduzi-la a inventário de
mensuração ou tratado de economia estatística.
“Everything that is said and done about it, except by Mr. Dombey, is done in
chorus. Mr.Dombey and the world are alone together”. O isolamento e reclusão de Mr.
Dombey, como enfatizados pelo narrador, podem ser uma tentativa para atenuar as
imbricações, separando o destino do magnata da morte do filho ainda pequeno, esta
morte e este destino das cogitações dos funcionários e das conversas entre empregados,
e tudo isso do ar solene de Edith, bem como do cargo ocupado por Carker na empresa.
Ocorre, porém, que tais separações não existem, nada é estanque. Tudo está superposto.
A gama de infiltrações é de natureza vária, e o que aparenta ser fracasso individual é
apenas parte de arranjo e disposição estruturais. Em virtude disso, o atrativo da posição
do gerente-geral, tão perto do lucro e tão longe da efetiva propriedade, resvala para a
necessária sanha em desviar recursos do escritório, fenômeno correlato ao que seria
seduzir a consorte do patrão. O suposto orgulho e pretensão desta, por sua vez, é o
manto ressentido para encobrir a transação de compra e venda travestida de casamento;
a fuga, por extensão, nada mais que o troco tomado à força. No palacete Dombey, o diz-
que-diz-que dos empregados faz esboroar, ilusoriamente, as correntes da subordinação,
trazendo como brinde à nova liberdade o ímpeto de espicaçar o enfraquecido carcereiro.
Na sociedade comercial Dombey, o mexerico entre funcionários realiza o sonho
vingativo da promoção, em que usufruir o que Carker até ali desfrutara seria galgar mais
um passo, além de vencer onde ele havia tropeçado. Por fim, a morte do filho não é o
contrário da vida, mas sim a impossibilidade da posse: a ameaça da quebra na
transferência de patrimônio, a ruptura na cadeia de heranças. O ultraproprietário Mr.
Dombey tem, pois, o dissabor de ver frustrado o destino que imaginava adquirir, ou

38
seja, tem de arcar com o custo de uma diferença: a discrepância entre o que lhe foi
prometido e o efetivamente entregue46.
Recapitulando: morte cujo contrário não é a vida, mas a posse; promoção sem
possibilidade real, uma vez que a empresa é uma ruína; liberdade ilusória, pois as
condições da submissão permanecem intocadas; altivez maculada, de sorte que a
alcunha da prostituição jamais escapa do horizonte, mesmo na fuga; e, por último, poder
precário, de modo que, mesmo na trapaça, a venda da força de trabalho demonstra que
os ocupantes dos cargos não são sujeitos, isto é, os cargos eles mesmos pertencem, de
fato, às remunerações, às gratificações e aos emolumentos e estes, num processo às
avessas, escolhem suas pessoas a bel-prazer. Noutras palavras, a morte de Paul, os
funcionários do escritório, os empregados domésticos, a fuga de Edith e o poder de
Carker ilustram o quanto o engano de Mr. Dombey não é uma exceção, contrariamente
ao que, em parte, sugere o narrador. Se estivermos corretos, a proposição num primeiro
momento não deixa dúvidas: “Everything that is said and done about it, except by Mr.
Dombey, is done in chorus”. Entretanto a frase imediata, “Mr. Dombey and the world
are alone together”, problematiza o que parecia ser o retrato solitário, o drama do
homem desventurado em seu gabinete, sofrendo a difamação de um mundo infenso.
Solitariamente juntos, unidos em solidão, Mr. Dombey e o mundo estão isoladamente
na mesma realidade. Dizendo em outros termos, desaparecem as paredes que fazem o
cárcere do indivíduo, pois o aprisionamento elaborado pela ideologia não é obra de
indívíduos: é o peso de uma estrutura. Mas, numa leitura a contrapelo, o instante de
maior fragmentação cria circunstâncias, se não para efetiva resistência, ao menos para o
reconhecimento das situações, sofridas sobre cada calcanhar, é certo, mas em passo e
marcha de comunhão coletiva, forçada a toque sistêmico. Destituído da ostentação, à
beira da ruína material, o proprietário poderia contemplar o ilusório em que assentava
sua vida. Aliviados, ainda que em lapso momentâneo da hierarquia, os funcionários e

46
Para uma leitura em outra direção, que prefira apenas enfatizar o conflito moral como origem das
decepções e dissabores dos personagens, consultar Gold, J. “A Metaphysical Sort of Thing: Dombey and
Son”. In: Charles Dickens: Radical Moralist. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1972, pp. 155-
74.

39
serviçais teriam a possibilidade de esquadrinhar peso e ônus de suas correntes. Longe do
matrimônio mercantil, Edith estaria apta a desmontar os falsos motivos para a presunção
insegura que forçara a si mesma. Na falha de suas artimanhas, Carker presenciaria
diante dos olhos as engrenagens pelas quais regulara espírito e atos, pensando enganá-
las quando mais chafurdava em sua mecânica. Em suma, num sistema que premia
sobretudo êxitos e façanhas individuais, a derrota coletiva seria o instante da mudança
de curso: o isolamento causado pelo todos-contra-todos, tornado explícito, traria a
saudável fagulha de modificação.
Nada disso acontece. Mas se os personagens não trilham esse caminho, a
possibilidade é dada pelo narrador, talvez até a contragosto. A suspensão temporária do
ordenamento a que estão submetidos fica como resíduo, deixando suas marcas no
desenrolar da narrativa. Se assim for, vemos que redenções repentinas, punições
exemplares, arrefecimentos e rupturas orquestradas em chave sentimental não dão
espessura apenas a um conformismo mantenedor: denunciam, chegam a dar notícia de
uma insuficiência, de uma necessária tomada de fôlego utópica. Sob a camada da ordem
restabelecida de maneira pouco convincente, com emendas lassas e de encaixes
artificiosos, repousa um substrato que carrega certa tendência inquieta, ameaçando subir
à superfície. Assim, de enredo com cores melodramáticas, mas com brilho e vigor
advindos da emergente sociedade comercial inglesa, na era de ferrovias e transações
marítimas, Dombey e Filho registra os abalos e reparações sofridos num poliedro com
arestas na psicologia de norma burguesa, na vigência da economia política, no
dinamismo e transformações que impregnavam o espírito do tempo, tudo isso levando
de roldão concepções e arranjos estéticos que salientavam novos impasses da forma
romance. Se a saga familiar esbarra na contingência íntima, isso não delimita seu espaço
de movimento. A morte do herdeiro, os casamentos como negociatas, as reconciliações
e os arrependimentos, bem como as novas continuidades, todos operam um ciclo vicioso
de reprodução, em que tudo é passível de compra e venda. Nesse sentido, quando
quaisquer anseios humanos devem necessariamente ser reduzidos a escalas
quantitativas, os muitos desencaixes entre os que conseguem sua quota-parte e os que

40
ficam à míngua tornam-se mais e mais visíveis. Assim, o elemento caótico, reflexo
dessa distorção, reivindica seu direito de presença na forma da obra, o que faz lembrar
um comentário de George Bernard Shaw: “não é nossa desordem mas nossa ordem que
é horrível”. Para leitores do século vinte e um, uma empresa familiar como a de
Dombey e Filho tem também o estranho sabor de um empreendimento bastante
conhecido, uma empreitada nada incomum: um sistema em que tudo é mercável.

41
3. UM SEGREDO MUITO PRODUTIVO

Dealings with the firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for
exportation47: em sua forma completa, o título do romance dickensiano já é
deliberadamente ambíguo na dupla referência a um núcleo de parentesco e a um
empreendimento comercial. Aproximar família e sociedade mercantil, lar e entreposto
de negócios, não deve soar como grande novidade ao leitor dos dias de hoje,
forçosamente acostumado ao vocabulário da cultura empresarial, cujas formulações
passaram a fazer parte do cotidiano, balizando comportamentos e servindo como regra
de atitude. Contudo, a indiferenciação entre vida íntima e mercado pode ter
representado, em meados do século dezenove, um ímpeto renovador, uma originalidade
até mesmo ansiosamente esperada pelos leitores que vivenciavam conformações
inéditas e às quais procuravam dar sentido. Observado em minúcia, no entanto, o título
faz as vezes de um pequeno engodo: talvez não fique explícito, numa leitura ligeira, o
assunto de índole doméstica. Embora as palavras “Dombey and Son” ocupem o centro
da formulação, vêm antecedidas por “firm”, o que já parece não deixar dúvidas quanto
ao verdadeiro caráter do que vai ser lido. Acresce ainda que “Dealings”, “wholesale”,
“retail” e “exportation” criam uma rede de afinidades semânticas de campo definido,
em certa medida distante dos laços de parentesco. Mas, mesmo assim, ainda que pouco
acostumados ao jargão dos negócios, os leitores não teriam dificuldades em identificar
o lastro familiar da sociedade comercial. Como ficamos então? O título é apenas uma
ironia falha ou é, de fato, uma elaboração pertinente? Promete algo que não irá cumprir?
Revela mais do que deveria? O que prevalece: família ou empresa? Embora possíveis,
essas questões não são necessariamente relevantes, uma vez que não dão conta do que,
em nossa análise, parece ser um aspecto fundamental do título: a presença de uma certa

47
Negociações com a empresa Dombey e Filho – atacado, varejo e exportação.

42
noção de movimento, que não finda em pares de opostos, que não estabelece
dicotomias, mas que aproveita dualidades, assimilando-as para avançar em nova
instância.
Já sabemos que as famílias geralmente podem ser definidas como grupos de
indivíduos mais ou menos ligados pelo sangue e muitas vezes em pé de guerra por
motivos financeiros. Fazer uso de uma designação que remetesse ao universo
empresarial, como que para enfatizar tal característica das famílias, seria, portanto, uma
tentativa de contemplar as disputas e desavenças familiares nessa chave de tostões e
níqueis. Em outros termos, ocorreria uma inversão irônica da conhecida frase “Esta
empresa é uma grande família” – já por si só reveladora – e usualmente utilizada em
sentido positivo. Como as empresas nunca são exatamente o éden terreno, transportar
uma instância para outra – no caso da família para a empresa, como que para purgar as
eventuais impurezas do ambiente de negócios – faria o efeito contrário, pois famílias e
empresas, estudadas de perto, são duas formações muito semelhantes e até
relativamente congênitas. De outro lado, sugerir que as tramitações do sangue se
imiscuem nos laços monetários e vice-versa não significaria uma grande ousadia, afinal
sangue e dinheiro circulam para manutenção de certo sistema e, mais que isso, um é
derramado para a obtenção de outro, numa equação cujos termos são intercambiáveis,
mas nem sempre com resultado favorável para os que têm mais sangue a dar do que
dinheiro a receber. Para resumir: de um lado, teríamos a consideração de espaços
separados, a família e a empresa, com transportes mútuos para a crítica ou para o
enaltecimento; de outro, uma certa ligação sistêmica, com embaralhamento de fronteiras
e barragens. Se estivermos corretos, o título procura fincar pé na acumulação dessas
alternativas, englobando-as, apontando para uma superação e síntese, em procedimento
ao mesmo tempo reverente e desabusado no que diz respeito aos novos tempos da
sociedade industrial num sistema produtor de mercadorias48.

48
Essa característica do romance foi elogiada logo numa das primeiras resenhas, no Economist, dez dias
após o lançamento do fascículo inicial. O comentador elogia a introdução de um tema em conexão com os
assuntos correntes da época, retratando a vasta repercussão do mundo dos negócios londrinos. Ver
“Literature: Dealings with the Firm of Dombey and Son”. Economist, 10 Oct. 1846, pp.1324-25.
Reproduzido parcialmente em Collins, P. (ed.). Dickens: The Critical Heritage. London: Routledge,

43
Dealings with the firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for
exportation: todos os termos estão, assim, nivelados entre si, de modo que guardam
certa distância homogênea em relação à matéria tratada – seja ela a família, a empresa
ou a combinação de ambas. Todavia, considerados em conjunto, indicam um vetor que
ultrapassa esse nivelamento. Além do relativo efeito cômico, a menção a “wholesale,
retail and for exportation” lembra que a realidade a ser representada não se restringe ao
universo do habitual e do conhecido, com implicações e decorrências tangíveis. O todo
do atacado e as partes do varejo são agora exportados, num funcionamento complexo e
de varredura abrangente. Nesse contexto, talvez seja oportuno lembrar a frase atribuída
a Napoleão: “A Inglaterra é uma nação de lojistas”. Tendo isso em mente, bem como
seu tom derrisório, parece que o título de Dombey e Filho aceita, ressoa, rebate e ao
mesmo tempo renega a frase napoleônica, como se afirmasse: que a nação de lojistas é
realmente uma nação de lojistas; que a lógica comezinha dos armarinhos de secos e
molhados permeia todas as rotinas desse país de lojistas; que a freguesia agora se
espalha por todos os cantos do planeta; e, finalmente, que agora a nação de lojistas não é
mais somente uma nação de lojistas49. No entanto, além das digitais do império
comercial inglês, surge um outro componente. Talvez não seja exagero perceber que
“Dealings with the firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for exportation” tem
semelhanças com os títulos de relatório de atividades, com o cabeçalho para descrições
de aferição dos lucros e rentabilidade do semestre, com os rótulos e designações para a
divulgação de balanços e resultados. Existe algo de afastamento, de observação
distanciada, num aparente espírito objetivo que faz a enumeração dos procedimentos,
das transações e dos passos rotineiros de uma empresa. Por outro lado, a formulação

1971, pp. 214-215. Para uma observação que se refere ao crescente impacto causado em Dickens pela
nova sociedade do comércio e da produção, consultar Wiener, M. J. “Middle-Class Intellectuals and
Gentry Values”. In: English Culture and the Decline of the Industrial Spirit, 1850-1980. Cambridge:
Cambridge University Press, 1981, pp.30-40.
49
Para uma apreciação dos aspectos econômicos e históricos desse processo, consultar Bowden, W.,
Karpovich, M. and Usher, A. P. Economic History of Europe since 1750. New York: American Book Co.,
1937. Para implicações relativas ao universo das finanças, consultar Bloch, M. Esquisse d’une Histoire
Monétaire de l’Europe. Paris: Librairie Armand Colin. Cahiers des Annales n.9, 1954. Também para a
interação e interdependência dos capitais, ver Mackenzie, K. The Banking Systems of Great Britain,
France, Germany, and the United States of America. London: Macmillan, 1945 e Jenks, L. H. The
Migration of British Capital to 1875. London: Jonathan Cape, 1938.

44
abre espaço para uma experiência de leitura em que está implícita a participação num
condomínio de cotistas em determinado investimento ou, ainda, numa reunião de comitê
de acionistas. Noutras palavras, o título pode também funcionar como a capa de um
relatório profissional, um pouco sisudo, porém dizendo respeito e interessando a todos
que vivemos sob os auspícios do contrato capitalista.
Desse modo, como experimento distanciado, mas no qual o leitor é
imediatamente colocado como co-participante, resulta um primeiro contato com as
ambigüidades do narrador. Se os leitores somos jogados dentro da arena, isso é um
mérito narrativo: afinal somos todos um pouco coadjuvantes, ora mais e ora menos
descontentes, da matriz social cuja arqueologia em certa medida o texto resgata50.
Contudo, a observação mais ou menos isenta também parece ter sido um objetivo do
narrador: algo que obviamente não alcançou e que merece ser analisado como forma.
Levando isso em consideração, podemos ver que, tributária de tais incapacidades
historicamente determinadas e talvez já com indícios perceptíveis desde o próprio título
do romance, existe uma determinada mobilidade nos modos de apreender os traços do
conjunto social, mobilidade esta às vezes menos expressa, outras vezes mais gritante,
mas sempre presente. É nesse sentido que em Dombey e Filho a mobilidade do narrador
é quase agressiva, de uma ousadia até certo ponto disfarçada, não obstante sua prontidão
para o combate. Mas esse movimento não tem cadência marcada por eventuais
rompantes denunciatórios ou manifestações categóricas que façam do acinte seu golpe
dileto. Embora gesto e pendor beligerantes anunciem sua presença sob uma camada de
leve ironia, a energia dos propósitos decai e reflui, a violência é aplacada e o ferino
decanta, torna-se contido. É desse modo que, num primeiro momento, a abrangência de
perspectivas, a maleabilidade de pontos de vista e a galeria dos assuntos abordados
buscam o favor do leitor. A porção de alegrias e tristezas é distribuída, ao menos como
intenção inicial, de forma homogênea, equilibrada, numa ponderação talvez até então

50
Em tempos de triunfo liberal essa arqueologia pode ser útil, principalmente como alerta quanto ao
pretenso ineditismo dos museus de novidades. Ver, por exemplo, Polanyi, K. The Great Transformation:
The Political and Economic Origins of our Time. Boston: Beacon Press, 1957; Dobb, M. H. Studies in the
Development of Capitalism. New York: International Publishers, 1981 e Hobsbawm, E. J. Da Revolução
Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.

45
inédita na obra dickensiana. O cortejar e o seduzir são como que pedras de toque de um
comportamento geral que tem na experiência de leitura recompensadora uma de suas
metas essenciais. O narrador avança fronteiras, mas sabe que existe uma audiência que
deve acompanhá-lo nos novos territórios.
Isso posto, vemos que o narrador dickensiano se move de um lugar a outro, da
perspectiva deste personagem para a daquele, muitas vezes adotando diferentes estilos,
numa tentativa de estabelecer conexões e mapear novos contextos. Cabe ressaltar,
contudo, que essa mobilidade violenta aqui e regeneradora acolá, sutil em alguns
momentos e desastrada em outros, não é um reflexo direto do romance e não é um
reflexo direto do processo de circulação das mercadorias; é uma mobilidade que não
deve ser tomada como o traço predominante da época, nem também da obra, mas como
um terceiro elemento que nos ajuda na compreensão de ambas. Nesse sentido, para
descrever tal mobilidade como um padrão de composição e como mimese estética dos
rumos do capital, a leitura atenta do primeiro capítulo já nos possibilita uma chave de
entrada. Nele estão condensados desde o caráter de teor trágico da morte de Fanny
Dombey, logo após dar à luz o pequeno Paul, até os conteúdos mais triunfalistas da
crença liberal do progresso contínuo baseado numa economia de mercado. Pontuando
uma e outra instância, aparecem as várias indiferenças de Mr. Dombey para com o real
estado de sua esposa, para com Florence e para com tudo o mais que não esteja
diretamente relacionado ao pequeno Paul. Salta para primeiro plano o próprio narrador,
que a despeito dos personagens ou das situações retratadas, realiza um esforço notável
de captar o maior número possível de perspectivas. A nota constante de seu
comportamento parece ser a inquietante demonstração daquilo que já estava sugerido no
título do romance: as conseqüências deletérias de um sistema que reduz tudo a
mercadorias, do nascimento de um filho até a morte de uma esposa, da felicidade
ilusória como patriarca até à própria alienação como simples agente do capital51.

51
Alguns comentadores apontam a movimentação do narrador como um recurso para que os leitores
sejam envolvidos por um tom que oscila da leve comédia até a tragédia da vida real. Nesta tensão entre
respostas conflitantes residiria o poder do capítulo. Ver Horton, S. The Reader in the Dickens World:
Style and Response. Houndmills: Macmillan, 1981, pp. 14-23. Também da mesma autora, Interpreting
Interpreting: Interpreting Dickens’s Dombey. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1979. Neste

46
Permanece, assim, uma certa camada encoberta, abaixo dessa superficie de constante
transacionamento de mercadorias e que, no entanto, fornece seus pilares e alicerces
práticos. Noutros termos, o trabalho social aparentemente apagado – num âmbito
particular, pelas alegrias do nascimento e pelas tristezas da morte e, num âmbito
universal, pelas potencialidades do comércio mundial – enfim, esse trabalho social
obscurecido é o verdadeiro tensionamento que força passagem através do tecido
estético. Assim como a circulação de mercadorias tem como seu segredo produtivo essa
camada encoberta, também este parece ser o ingrediente secreto da produção estética
em Dombey e Filho. Decerto isso não significa que todas as dimensões humanas devam
necessariamente ser reduzidas à economia, mas serve como lembrança de que foi o
modo de produção ora vigente, desde seus primórdios, que reduziu a vida humana a um
apêndice da economia.
Como o capital tem tudo a ver com trabalho morto, comecemos primeiramente
com uma morte para depois chegarmos ao comércio mundial, ao menos nos termos de
Dombey e Filho. A morte como árbitro equânime, atuando como o juiz sentencioso a
quem todos devemos prestar contas: este parece ser o tom apropriado e conveniente que,
ao final do primeiro capítulo, o narrador insinua como caminho necessário de
compreensão a seus leitores. Da tristeza em compasso binário de todo o capítulo, com
os pequenos interlúdios de Mrs. Chick e Miss Tox, com a ligeira pantomima médica de
Dr. Parker Peps e Mr. Pilkins, restaria agora o remate preciso da filha nos braços da mãe
que morre, tudo isso para comoção e solidariedade dos que já pressentem as provações
de Florence:

último, a leitura do primeiro capítulo de Dombey e Filho guarda inusitadas afinidades e semelhanças com
aquela realizada por F. R. Leavis, em que o eminente crítico destaca esta abertura de romance como uma
das melhores escritas por Dickens, principalmente no que diz respeito à intensidade, controle e
profundidade na percepção do real, com sua tensão entre contrários. Ver Leavis, F. R. and Leavis, Q.D.
“The First Major Novel: Dombey and Son”. In: Dickens the Novelist. London: Chatto & Windus, 1970,
pp. 1-33. Todavia, talvez as afinidades e semelhanças entre a abordagem de Horton, de referencial pós-
estruturalista, e a de Leavis não sejam tão inusitadas assim. Afinal, nada mais belo que o jogo entre
opostos, dos antagonismos e tensionamentos que se revelam no detalhamento minucioso, desde que
evidentemente toda esfera de conflito fique restrita às composições internas do texto, numa boa medida
de segurança dos velhos, novos e redivivos idealismos. Por outro lado, sabemos que talvez a verdade nem
mesmo exista, e assim é possível que o compromisso com ela e com o conhecimento seja apenas uma
rabugice, uma retrógrada teimosia dos materialistas, esses históricos maus perdedores.

47
The Doctor gently brushed the scattered ringlets of the child,
aside from the face and mouth of the mother. Alas how calm they lay
there; how little breath there was to stir them!
Thus, clinging fast to that slight spar within her arms, the
mother drifted out upon the dark and unknown sea that rolls round all
the world.52

A construção da figura angelical de Florence passa pela menção aos cabelos


anelados que se espalham pelo rosto da mãe. Mas o cuidado do médico que gentilmente
afasta os cabelos da menina aparentemente não condiz com a subserviência desatenta e
a falsa preocupação demonstradas ao longo do capítulo. Exceto se, como é provável,
tenha sido o gesto mecânico de alguém acostumado a agradar e fazer serviço aos
poderosos. De todo modo, médico e criança estão compostos na cena menos como
forças individuais e mais como figuras de um retrato que é estático na montagem
embora inquieto na expressão. Com efeito, médico e criança, esta com os caracóis e
aquele com o gesto, existem para ressaltar a rigidez da morte na face de Fanny Dombey.
No entanto, indo um pouco mais longe, vemos que mesmo Mrs. Dombey não deixa de
possuir certa função acessória ao narrador. Todo o arranjo é feito no sentido de mostrar
que a mãe de Paul e Florence quase já não respira. O centro da atenção, contudo, muda
repentinamente dela para o narrador, que no seu comentário quebra o ritmo do que
vinha sendo relatado: “Alas how calm they lay there; how little breath there was to stir
them!”. A escolha do verbo não é fortuita; tampouco o antagonismo, brando porém
significativo, entre o termo que sinaliza a calma, a inércia dos cabelos encaracolados, e
o verbo de movimento. Embora num primeiro instante a intervenção do narrador pareça
meio fora de esquadro, um pouco como uma solução de ocasião para servir de ênfase,

52
O doutor removeu gentilmente os caracóis esparsos do cabelo da criança, afastando-os do rosto e da
boca da mãe. Ai quão calmos eles lá repousavam; quão pouca respiração havia para movimentá-los!
Então, agarrando-se firme e subitamente àquele tênue apoio entre seus braços, a mãe deslizou sobre o
escuro e desconhecido oceano que ondula ao redor de todo o mundo. [DS, p.60]

48
seu aparecimento acentua uma tensão já anunciada pela dinâmica entre repouso e
movimentação. Isso, no entanto, não minimiza o artificialismo do recurso, uma vez que
o leitor é como que tomado de assalto, ficando explícita a quebra abrupta entre cena e
comentário, entre o melancólico da descrição de um leito de morte e o até certo ponto
atabalhoado apelo do narrador – como que sublinhando a seriedade do momento,
requisitando ao leitor extrema emoção. Ou seja, a cena da pequena criança agarrada à
mãe agonizante não parece ter a força necessária para introduzir aquela agulha no
coração dos leitores, aquele objeto delicado e preciso com o qual o narrador tenta
perfurar o músculo dos renitentes e dos desconfiados. Por um lado, como contribuição
para o funcionamento do tecido estético, essa mão pesada do narrador acrescenta mais
um ferimento ao texto, mas, por outro, sua simples presença ajuda a análise: ela é
indicativa de uma certa insuficiência na justaposição e contigüidade de cena e
comentário, talvez numa reverberação do que acontece desde a abertura do capítulo até
esses momentos finais53. A busca pelo sentido desta insuficiência, no entanto, irá nos
remeter para outro trecho deste mesmo capítulo, como veremos mais adiante. Por ora,
fiquemos ainda por um instante na percepção das conseqüências mais imediatas e
internas desses dois parágrafos finais, uma vez que constituem algo como a maquete do
que parece ser o edifício completo formado pelo primeiro capítulo.
“Thus, clinging fast to that slight spar within her arms, the mother drifted out
upon the dark and unknown sea that rolls round all the world”. Essa frase de
encerramento é, em aparência, bastante simples, quase banal na sua tentativa de
comunicar aos leitores a morte de Mrs. Dombey. Tem em seu início um advérbio

53
Um resenhista de primeira hora, em matéria não assinada, descreveu a morte de Fanny Dombey como o
alto preço a pagar para que fosse restaurada a integridade da empresa, isto é, por meio do nascimento de
um herdeiro. Desse modo, o veio melodramático seria utilizado para abordar circunstâncias privadas que
teriam amplas e sugestivas conseqüências para todo o romance. Vale ressaltar a posição avançada desse
resenhista, principalmente se considerarmos o quanto a crítica posterior foi reticente em relação ao
melodrama dickensiano. Ver “Dealings with the Firm of Dombey and Son, Wholesale, Retail, and for
Exportation”. Athenaeum, 31 Oct. 1846, pp.1113-15. Para os usos do leito de morte como recurso formal
não só em Dickens mas na ficção vitoriana como um todo, consultar: Sanders, A. Charles Dickens:
Resurrectionist. New York: St. Martin's Press, 1982. Para as representações da morte e seu papel no
imaginário da época, consultar: Richardson, R. Death, Dissection and the Destitute. London: Routledge,
1988 e Wheeler, M. Death and the Future Life in Victorian Literature and Theology. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990.

49
indicativo de conseqüência, como que reforçando a causalidade que o escrito anterior
prepara, assinala e reforça. O tom imprime uma certa aura solene, de enlevo sóbrio, sem
que entretanto a morte adquira o primeiro plano, o que chega a ser surpreendente. Se
nossa leitura estiver correta, é possível notar que o desfecho desse retesamento passa
daquilo que efetivamente deve ser dito para uma certa elaboração de estilo, talvez
excessiva, talvez de gosto discutível, é certo, porém de coerência e pertinência notáveis,
e isso não somente no que tange ao desenlace do capítulo, nem tampouco na esfera
restrita deste, mas principalmente no que diz respeito ao romance considerado em sua
totalidade. Dito de outra forma: o trabalho formal levado a efeito nesta última sentença
amplia o jogo de relações possíveis por meio do qual o narrador tenta arranjar suas
peças no tabuleiro. Desse modo, a escolha vocabular, que prima pelas referências
náuticas; o ritmo imposto à leitura, que reproduz a um só tempo a sinuosidade e o
envolvente da imagem; o sentido de contenção e relaxamento, que estabelece início e
fim de ciclos, assim como possíveis recomeços: tudo isso, muito mais do que achados
de estilo, são recursos necessários, impostos ao narrador. De resto, se entendermos a
forma como conteúdo sócio-histórico sedimentado, para usar uma boa formulação,
veremos que não é acaso o constante recurso, no decorrer de todo o livro, às imagens
marítimas; que não é preciosismo estilístico o uso de retraimentos e distensões; que não
é, por fim, aleatório o uso de composições que dêem conta de forças cíclicas e vorazes,
que a tudo queiram abarcar54.
Lembrando uma vez mais a sentença: “Thus, clinging fast to that slight spar
within her arms, the mother drifted out upon the dark and unknown sea that rolls round

54
Os momentos finais de Fanny Dombey no capítulo um, de Paul no capítulo dezesseis, de Mrs. Skewton
no capítulo quarenta e um, e finalmente de Carker no capítulo cinqüenta e cinco ocorrem todos com uma
sucessão de imagens relativas aos rios e oceanos como motivo condutor de representação da morte. No
caso de Carker, não aparecem referências explícitas aos oceanos, mas sua fuga, momentos antes de
morrer, se torna quase um caudoloso rio que personificaria o tempo cobrando sua fatura, o mesmo tempo
que ceifara as vidas de Mrs. Dombey, de Paul, e de Mrs. Skewton. Ver: Robinson, R. “Time, Death and
the River in Dickens’ Novels”. English Studies, 53 (1972), 436-54. Acresce que o uso de motivos
condutores – temas, idéias e imagens associados a um personagem, a uma situação, etc. e que aparecem
com insistente freqüência – surge em Dombey e Filho quase como uma antecipação do mesmo recurso
em romances posteriores: como a ubíqua neblina em Casa Soturna (1853) ou a prisão em Pequena Dorrit
(1857). Ver: Stone, H. “Dickens and Leitmotif: Music-Staircase Imagery in Dombey and Son”. College
English, 25 (1963), 217-20.

50
all the world”. Se o parágrafo anterior isolava, como dissemos, os gestos do médico, os
cabelos da criança e até mesmo o desfalecimento da mãe para, assim, ressaltar a
intervenção do narrador, nessa sentença final as personagens de mãe e filha estão
jungidas não apenas figurativamente, mas plasmadas na própria força interna da frase.
Mas mais importante que isso, mais significativo para a fatura total do romance, não é a
ocorrência pura e simples desse fenômeno e sim o modo pelo qual o narrador tem de
realizá-lo. Noutras palavras, agora mãe e filha, tanto uma quanto outra, são trazidas da
esfera rebaixada em que estavam, em que eram apenas figuras a serviço do narrador,
para serem como que elevadas ao mesmo plano em que está situado esse narrador.
Ocorre que este, por sua vez, já não está no plano anterior da intervenção quase que
descabelada e histriônica: agora ele também está transposto para uma dimensão em que
enredo, personagens e, evidentemente, o próprio ponto de vista têm de abarcar muito
mais do que apenas e tão-somente a história íntima de uma família, algo circunscrito e
limitado. Ou seja, âmbito familiar e contexto social estão artificiosamente separados e,
nesse sentido, o transporte operado pelo narrador é indício dessa quebra arbitrária. Seu
deslocamento de um plano para outro, trazendo os personagens e ampliando
perspectivas, é portanto o resultado do acerto de contas com a separação ilusória entre
desdobramentos domésticos e condicionantes sociais. Assim, a estranha movimentação
presente na imagem de morte comparada à navegação, se estivermos certos, assimila e
supera a tópica comum da morte como mergulho nas profundezas do desconhecido.
Esse passo adiante do narrador tem, pois, força de revelação: retrospectiva para o
capítulo e direcionadora para o romance. No detalhe da seleção vocabular e do
estabelecimento da sintaxe fica inscrito um significado que redimensiona o caminho já
percorrido pelo leitor e, ademais, prepara o porvir. O drama familiar será lido, assim,
necessariamente tendo como contraparte os novos tempos da economia e estes, por seu
turno, serão configurados em torno daquele. Lar e rendimentos, afetos e finança, dessa
maneira, navegam pelas mesmas águas.

51
Nossa tradução55, porém, muito mais literal do que propriamente literária, deixa
escapar um detalhe fundamental, talvez mais aparente ao leitor familiarizado com a
língua de origem e, com toda a certeza, mais explícito para aqueles na Inglaterra
vitoriana. Muito mais do que o deslizar de uma navegação corriqueira, Mrs. Dombey
adota o procedimento dos náufragos, cuja última possibilidade de salvação é agarrar-se
aos escombros e destroços de uma embarcação. A palavra “spar”, que traduzimos
grosso modo por “apoio”, tem como um de seus significados os mastros transversais
que servem de apoio às velas e que, em geral, são as últimas partes visíveis de um navio
que afunda. É nesse sentido que temos a possibilidade de dar o passo seguinte. Se o
narrador chega a sugerir, numa breve passagem do capítulo, que os dez anos de vida em
comum com Mr. Dombey foram um período de infelicidade para Fanny Dombey,
também implícita fica a consolação representada pela filha Florence. Dessa forma, a
morte após o parto, trágica já por si mesma, aparece como a coroação em negativo de
uma existência marcada pela desagregação e pelo isolamento a que ambas estariam
sujeitas. Acresce que, como vimos, mãe e filha são trazidas pelo narrador a esse novo
estágio de consideração que encerra o capítulo, em que o universo doméstico, como não
podia deixar de ser, é vazado por determinações sócio-históricas. Vemos, portanto, que
estabelecer semelhança de mãe e filha com elementos participantes num naufrágio não é
pouca coisa: representa a tentativa formal de figurar uma dada realidade, pressentida a
todo o momento ao longo do capítulo, mas que esbarra na resistência do projeto burguês
a tudo o que signifique anteparo a seus desejos pantagruélicos. Em outros termos, as
conexões entre vida familiar desfigurada e exigências mercantis estão continuamente
exigindo seu direito de voz, o que o narrador não pode deixar de reconhecer e, ao
mesmo tempo, não pode assumir completamente. Por fim, a alusão à força envolvente
tanto das águas quanto da finitude humana se apresenta como último alento e recurso.
Mas, a despeito do narrador e – sem chegar a ser propriamente um paradoxo –
em virtude de sua própria habilidade, é possível perceber que abarcar o mundo de forma
irrestrita e ilimitada não é prerrogativa do oceano e da morte. Aquele como privilégio da

55
Ver segundo parágrafo da nota 52, página 48.

52
natureza e esta como processo natural, ambos trazem a forte conotação de dados
imutáveis, que a todos atinge, sem distinção nem arbítrio, como fenômenos quase que
eternos e inexplicáveis, como se a História fosse varrida para o fundo do mar. Ocorre,
porém, que ilustrar como naufrágio certos aspectos da norma burguesa é resultado de
um tempo e lugar que vê o oceano como território de significados compartilhados, isto
é, predominantemente para fins de uso e expansão imperial, especialmente se tivermos
em mente a Inglaterra de meados do século dezenove. Por outro lado, comportar a morte
como o horizonte último de aspirações e fracassos é a tentativa de estabelecer o
momento em que estariam niveladas todas as vidas. Mas sabemos que expirar ao pé da
lareira não é o mesmo que morrer com a cara na sarjeta. Oceano e morte, assim, nos
usos e implicações da frase, surgem menos inexpugnáveis do que parecem e, de fato,
remetem a algo um pouco mais explicável em sua origem, um tanto quanto nefasto em
suas decorrências: um sistema capaz de recriar na confortável casa de Mr. Dombey uma
ruína que advém, direta ou indiretamente, das próprias condições que tornaram possível
tal aconchego e comodidade. Ou seja, o sistema que gera a riqueza extrema traz,
também a seus beneficiários, algo da violência e destruição causada noutra parte. Desse
modo, “the dark and unknown sea that rolls round all the world” tem força diluviana,
nada devendo escapar ao seu desígnio. Distribui suas ondas, tanto benignas quanto
malignas, desde o escritório da Dombey e Filho até a mansão da família, desta para
todos os empregados, destes para as respectivas famílias; estas por sua vez têm relações
que alimentam a Dombey e Filho e ao mesmo tempo dela são dependentes, mas a
empresa ela mesma está sujeita às marés do mercado, tanto que vai à falência, o que por
sua vez não será impeditivo para que ao final do romance uma nova empresa, agora sob
os cuidados de Walter, volte aos negócios, numa nova onda de expansão.
Nesse sentido, a utilização pelo narrador da recorrente imagem dos oceanos e
sua relação com enredo, personagens, linguagem e temas talvez seja um pouco mais
complexa do que um mero recurso simbólico para garantir unidade ao romance.
Entretanto, na visão de alguns comentadores as ondas seriam um símbolo transcendente,

53
mas de padrão verbal um tanto quanto excessivo para os leitores modernos56. Ou ainda,
o oceano poderia estar correlacionado ao conceito de amor dentro do romance, como
um reino para além deste plano terreno, em que as aparentemente inescapáveis
separações entre as pessoas seriam transcendidas e a reciprocidade do amor seria enfim
possível57. Existem ainda os que advogam que as ondas em Dombey e Filho, embora
antecipem a utilização da prisão e da neblina como símbolos estruturantes em romances
posteriores, são demasiadamente sentimentais e inadequadas para o tratamento das
preocupações sociais. Nessa perspectiva, o uso das ondas como simbologia para lidar
com algo para além do mundo da vida privada seria inútil, sem capacidade de alcance e
varredura social58. Contudo, tais reservas apegadas às transcendências de conteúdo
moral e simbólico podem e devem ser matizadas. Principalmente se o oceano e suas
ondas em Dombey e Filho forem observados à luz do conjunto de imagens econômicas
no período vitoriano, o que talvez auxilie na compreensão dessas ondas como a
corporificação de certos aspectos das vidas regidas pela economia. Possivelmente tais
imagens alegorizam a caracterização do próprio Mr. Dombey e de seus objetivos
mercantis. E mais importante: os oceanos sugerem – bem como as ferrovias – uma
figuração dos ciclos dos negócios e das crises especulativas que cada vez mais passaram
a fazer parte do mundo que Dickens retratava. Uma imagem bastante usual que
representava, por exemplo, os ciclos dos negócios era a do movimento ondulatório, em
que as ondas do oceano eram tomadas como metáfora predominantemente aceita. Os
preços e a produção aumentavam gradualmente; depois, mais rapidamente, até
atingirem seu ápice e, então, baixavam e diminuíam, como uma onda que espraiava.
Assim, o tamanho desse ciclo podia ser mensurado – ou ao menos assim se desejava –
de uma crista, de um ápice de preços e produção, até outra crista59. Dessa maneira,

56
Tillotson, K. Novels of the Eighteen-Forties. Oxford: Clarendon Press, 1954, p.127.
57
Miller, J. H. Charles Dickens: The World of His Novels. Bloomington: Indiana University Press, 1958,
pp.148-150.
58
Barnard, R. Imagery and Theme in the Novels of Dickens. New York: Humanities Press, 1974,
pp. 50-58.
59
Galbraith, J. K. Money: Whence It Came, Where It Went. Boston: Houghton Mifflin, 1975, p. 104.

54
sucesso e fracasso porventura poderiam ser determinados a partir da correta decifração e
mapeamento dessa força da natureza, o mercado.
O padrão de movimento em ondas, que pretensamente dava curso de navegação
para a economia, era parte integral da consciência vitoriana: “O ciclo comercial é
normalmente completado em cinco ou sete anos, dentro dos quais serão encontrados,
tendo como referência nossa história comercial nos últimos setenta anos, períodos
alternados de prosperidade e depressão”60. Outros escritores, empolgados com os mais
recentes desenvolvimentos da ciência estatística, passaram a engrossar o coro de vozes
que mais e mais entoava o cântico das crises econômicas periódicas: “A história daquilo
que temos por hábito chamar de ‘a situação das transações comerciais’ oferece uma
lição instrutiva. Podemos perceber que ela está sujeita a várias condições que retornam
periodicamente, aparentemente girando em torno de um ciclo estabelecido:
primeiramente, temos uma situação de quietude; a seguir, desenvolvimento; depois,
crescente confiança; então, prosperidade; daí, excitação; comércio excessivo;
convulsão; pressão; estagnação; ruptura; terminando novamente em quietude”61. De
passagem, é interessante notar que talvez somente mesmo sob o ponto de vista de um
banqueiro as ondas dos ciclos econômicos possam terminar em calma e tranqüilidade, o
que efetivamente oferece uma lição bastante instrutiva do quanto as espumas dos
ideólogos podem esconder – uma multidão de náufragos, afogados e feridos. De todo
modo, a descrição das transações comerciais seguindo um movimento em ondas é um
dos vários exemplos que perfazem uma estrutura de sentimento vitoriana, um arranjo
dentro do qual Dombey e Filho é escrito: ao mesmo tempo como roteiro de viagem e
bússola em pesquisa. Dessa forma, distante de conotações metafísicas e simbólicas, “the
dark and unknown sea that rolls round all the world” reitera a presença de motivações e
ingerências bastante específicas e determinadas, num quadro de relações para além do
traçado narrativo. Serve como indício de tal presença a tentativa de justapor cena e
comentário, o que obriga a reconsiderações e estas necessariamente dão novo sentido ao

60
Artigo publicado em 1833, de autoria do jornalista John Wade, e citado em Mitchell, W. C. Business
Cycles: The Problem and Its Setting. New York: National Bureau of Economic Research, 1968, p.10.
61
Escrito em 1837 pelo banqueiro e economista Lord Overstone e citado em Mitchell, op. cit., p.11.

55
capítulo. Por outro lado, anteriormente mencionamos essa tentativa como uma indicação
de insuficiência no que se refere à capacidade de representar certa realidade. Nesse
sentido, se estivermos corretos, a verificação e confirmação desse passo hesitante do
narrador pede referência a outro trecho do capítulo, em que o comércio mundial vem
auxiliar o desvendamento do segredo das ondas.
De modo figurado, os mares e oceanos levaram Fanny Dombey e mais tarde
estarão nos momentos finais de Paul, de Mrs. Skewton, e até mesmo mais indiretamente
nas tribulações de Edith. No plano material, esses mares e oceanos são os que
impulsionam a frota mercante da Dombey e Filho. Com efeito, nos dois últimos
parágrafos comentados anteriormente e nos dois parágrafos a seguir ficam evidenciados
os esforços do narrador para dar vazão a um assunto que se impõe e, ao mesmo tempo,
coibir suas conseqüências últimas. Durante todo o capítulo, a apresentação das cenas
ocorre sem grandes sobressaltos, embora algumas inferências possam ser feitas a partir
dos detalhes da seleção de palavras, da sugestão dos diálogos e dos esparsos
comentários do narrador. A extração de deduções mais categóricas, entretanto, se
beneficia do que temos na seguinte passagem, começando pelo nome do pequeno Paul:

‘His father’s name, Mrs Dombey, and his grandfather’s! I


wish his grandfather were alive this day! There is some inconvenience
in the necessity of writing Junior,’ said Mr Dombey, making a
fictitious autograph on his knee; ‘but it is merely of a private and
personal complexion. It doesn’t enter into the correspondence of the
House. Its signature remains the same.’ And again he said ‘Dombey
and Son,’ in exactly the same tone as before.
Those three words conveyed the one idea of Mr Dombey’s
life. The earth was made for Dombey and Son to trade in, and the sun
and the moon were made to give them light. Rivers and seas were
formed to float their ships; rainbows gave them promise of fair
weather; winds blew for or against their enterprises; stars and planets

56
circled in their orbits, to preserve inviolate a system of which they
were the centre. Common abbreviations took new meanings in his
eyes, and had sole reference to them. A. D. had no concern with Anno
Domini, but stood for anno Dombei – and Son62.

Vemos que o primeiro parágrafo retrata a ênfase de Mr. Dombey no


estabelecimento de uma linha sucessória, como se, ao final desta, tivesse realizado um
objetivo, a consecução de uma tarefa já predeterminada. Em certo sentido, a antecipação
da meta a ser alcançada ocorreu, assim como o relativo sucesso – um novo Dombey,
afinal de contas, veio à luz. Porém, predeterminação e êxito têm de ser ponderados.
Embora sejam citados pai e avô, e haja referência ao neto, a pedra fundamental assenta
noutro solo, que não o dos cuidados e orgulhos íntimos. Como façanha do clã, o bebê é
um ativo da empresa. “There is some inconvenience in the necessity of writing Junior”,
é o que afirma o próprio Mr. Dombey. Assim, o pequeno Dombey não existe como
individualidade a ser considerada: sua chegada é uma etapa no planejamento estratégico
dos negócios. Felizmente, a necessidade de agregar “Junior” ao nome é algo de natureza
pessoal e privada, “it is merely of a private and personal complexion”. Dessa forma, o
narrador sublinha o verdadeiro jogo de relações, as reais linhas para o movimento das
marionetes: com o destaque dado ao pronome possessivo em itálico “Its” , em “Its
signature remains the same”, fica explícito que a empresa comercial é o sujeito das
ações, credora e merecedora dos dividendos. A instituição – a despeito de quaisquer

62
“O mesmo nome do pai, Mrs Dombey, e do avô! Gostaria que o avô dele estivesse vivo hoje! Há
alguma inconveniência na necessidade de escrever Junior,” disse Mr. Dombey, fazendo uma assinatura
fictícia no próprio joelho; “mas é meramente algo de natureza pessoal e privada. Não entra na
correspondência da Empresa. Sua [da Casa Comercial Dombey e Filho] assinatura permanece a mesma”.
E novamente ele disse “Dombey e Filho”, exatamente no mesmo tom de antes.
Aquelas três palavras exprimiam a única preocupação da vida de Mr. Dombey. A Terra foi feita para
que Dombey e Filho comerciassem, e o sol e a lua foram feitos para os iluminar. Os rios e os mares foram
formados para que seus navios navegassem; o arco-íris para lhes prometer o bom tempo; os ventos
sopravam pró ou contra seus empreendimentos; as estrelas e os planetas percorriam as suas órbitas para
assegurar a perenidade de um sistema do qual eram eles o centro. Abreviações usuais tomavam um novo
sentido aos seus olhos, e se referiam unicamente a eles. A. D. já não era Anno Domini, mas sim anno
Dombei – e Filho. [DS, p.50]

57
pessoas, inclusos aí todos os Dombey – é a legítima proprietária do nome. Na imediata
seqüência do trecho destacado podemos ler: “He [Mr. Dombey] had risen, as his father
had before him, in the course of life and death, from Son to Dombey, and for nearly
twenty years had been the sole representative of the Firm”63. O narrador menciona os
eventos da vida e da morte como que reforçando o caráter cíclico que a sucessão da
empresa exigia: rituais de nascimento ou de falecimento ganham ou perdem relevância
na medida em que estejam relacionados à continuidade da Dombey e Filho. Como
instrumento do capital, esta surge como sujeito e os vários Dombeys nada mais são que
seu predicado. Desse modo, sujeito e predicado aparecem invertidos: o que não chega a
surpreender, uma vez que estamos num sistema em que os produtores comumente
aparecem como produto de seu produto. Ou seja, a intervenção humana – de
capitalistas e de trabalhadores, mais destes do que daqueles – cria a empresa e, no
entanto, esta aparece como entidade com verdadeira autonomia, que aciona tanto
capitalistas quanto trabalhadores. Aqui o narrador tangencia o segredo de produção do
capital, a quantidade de trabalho social acumulado, que se torna capital acumulado,
mais-valia capitalizada. Se, ao entrar no processo de produção, o capital tenha sido
propriedade pessoal adquirida mediante trabalho de seu aplicador – por exemplo, das
gerações e gerações de Dombeys –, mais cedo ou mais tarde torna-se apropriação de
trabalho alheio não-pago, pois cada geração de capitalistas necessita de trabalhadores
que vivem e morrem, ciclicamente adicionando valor ao capital. Em suma, a assinatura
da empresa talvez permaneça a mesma, mas foram necessárias milhares de mãos para
que a caneta fosse empunhada.
O excerto começa pelo ânimo de Mr. Dombey em sintonia com a elocução de sua
árvore genealógica, passa pelo ligeiríssimo devaneio meditativo acerca do título da
empresa, resgata uma rápida justificativa fornecida em lavra própria, para finalmente
terminar com o embevecimento radicado no prazer de dizer “Dombey and Son”. A
apresentação é ágil, a entonação sugerida plena de nuances. O narrador percorre em

63
Ele ascendera, como seu pai antes dele, no curso da vida e da morte, desde a posição de Filho à posição
de Dombey, e fora durante vinte anos o único representante da Empresa. [DS, p.50]

58
poucos segundos uma variedade surpreendente de temperamentos, principalmente se
tomarmos nota da modorra que paira a maior parte do tempo sobre o semblante do
insosso e anódino Mr. Dombey. Mas cabe lembrar que a fisionomia de basbaquice
elevada, nada incomum na gente da alta-roda, parece ter sido acentuada no decorrer da
história. Estamos aqui ainda nos inícios do romance e a vida dada ao personagem parece
ser uma contaminação advinda do comentário que, na seqüência, o narrador solta como
um petardo, ou seja, o trecho que se inicia por “The earth was made for Dombey and
Son to trade in [...]”. Como chute forte ou estampido, serve para acordar o leitor. Antes
disso, deve ter feito as funções combinadas de advertência e válvula de escape – no
contato que este narrador passa a estabelecer com a matéria tratada, especificamente
com o inflamável de sua substância. Existe ainda, é certo, um último refúgio ameno, na
preparação ofertada pelo comentário às palavras “Dombey and Son”: “Those three
words conveyed the one idea of Mr Dombey’s life”. A partir desse momento, entretanto,
há uma quebra e o narrador traz outro registro. Destoando do resto do capítulo no modo
de organizar estilo e energia assertiva, surge uma intervenção em larga medida irônica,
pontuando um novo andamento para a prosa. O deslocamento causa incômodo, como se
nossos olhos tivessem de se acostumar, saindo do abrigo das sagas familiares e devendo
contemplar o atlas de um sistema em funcionamento: “The earth was made for Dombey
and Son to trade in, and the sun and the moon were made to give them light. Rivers and
seas were formed to float their ships; rainbows gave them promise of fair weather;
winds blew for or against their enterprises; stars and planets circled in their orbits, to
preserve inviolate a system of which they were the centre”.
Forçando uma visada mais ampla, o narrador situa sua perspectiva em altitude.
“The earth was made for Dombey and Son to trade in”. O mundo existia para que a
empresa dos Dombey fizesse seu comércio. Tudo o mais estaria em função disso: “[...]
and the sun and the moon were made to give them light”. Assim como o próprio poderio
imperial, cujo ímpeto de mercadejar não conhece confinamentos, o diagnóstico não se
contenta com hemisférios: agrupa sol e lua, retorna em mergulho aos rios e mares, lança
olhadela ao arco-íris, situa o sentido dos ventos, regressa para estrelas e planetas. Indo

59
do ínfimo ao descomunal, do portentoso ao chão, a ambição parece ser a de não deixar
escapar nada. Mas mais significativo que o comportamento geral no grupo de sentenças
é o movimento interno a cada uma delas. Na apresentação de diversos elementos é
realizada uma condensação primorosa, em que são aglutinados aspectos do mundo
natural e do trabalho humano. Surgem as conotações residuais dos modos de produção
anteriores, bem como os dominantes à época, talvez numa tentativa de encaminhar o
que de fato estava surgindo. Assim, rios, oceanos, arco-íris e ventos – quase que
resquícios naturais a partir da luneta e dos aparatos da metrópole londrina – começam a
ser alocados para além de um valor de uso: as águas para dar sustentação à frota de
negociantes; o arco-íris, como predição do tempo em nota desencantada; os ventos,
como prognósticos para a sina da viagem mercantil. O mundo natural é transformado,
submetido a termo utilitário, porém já reduzido e retomado como fetiche entre fetiches:
“[...] stars and planets circled in their orbits, to preserve inviolate a system of which
they were the centre”. Um sistema do qual eram o centro: várias camadas estão
superpostas aqui. Se nossa leitura for possível, a palavra sistema acumula em ponto de
chegada um movimento presente em todo o período. Mas, por outro lado, também é um
ponto de transição, de marca limítrofe para a passagem final do parágrafo: “Common
abbreviations took new meanings in his eyes, and had sole reference to them. A. D. had
no concern with Anno Domini, but stood for anno Dombei – and Son”. Como ponto de
chegada, esse é o sistema em que está presente o domínio da natureza, a expansão
marítima, o comércio em todos os cantos do planeta: tudo isso numa era em que o
cientificismo começa a ocupar altares antes reservados a outros deuses. Acresce que
mesmo este cientificismo também é um santo secundário frente ao deus secularizado da
modernidade, o dinheiro – e talvez frente a sua entidade-mor, seu deus-pai, o capital,
que fica sugerido como onipresença, mesmo parecendo estar fora do alcance do
narrador. Assim, para o devido exorcismo, é necessário sair do plano estrito dessa
passagem, e recuar brevemente um passo atrás para retomá-la dois passos à frente, após
a verificação de alguns dos vestígios do feitiço monetário.

60
Num passo atrás: os personagens do primeiro capítulo orbitam em torno de Mr.
Dombey. Tomando-o como centro de forças, oscilam sob sua esfera de influência. Os
médicos teatralizam a própria importância, em submissão, em capachismo servil mas
sempre interessado. Em segundo grau, reproduzem entre si os molejos do antagonismo
de classe. Temos, desse modo, Dr. Pilkins e Dr. Peps, aquele dependente deste, mas não
só: Dr. Peps mantém estreita proximidade parasitária com a aristocracia e, agora, com a
alta burguesia; porém, Dr. Pilkins, como médico da família Dombey e mesmo sendo
mais chinfrim, está mais perto dos novos donos do dinheiro. É, portanto, um contato útil
para Dr. Peps64. A irmã de Mr. Dombey, Mrs. Chick, por sua vez, faz do fingimento sua
receita de agrados ao irmão que tanto admira – não podemos esquecer quais as razões
de tamanho respeito, por exemplo, quando fala do irmão para Miss Tox: “And as to his
property, my dear!”, enfatizando e logo reforçando, “Im – mense!”65. Aves treinadas na
rapinagem, Dr. Peps e Mrs. Chick são adestrados conforme o sistema de compra e
venda. Nesse sentido, sabem que é o “esforço” burguês o combustível dos novos
tempos. Dr. Peps afirma que Fanny necessita deste esforço para superar sua condição à
beira da morte: “[...] Nature must be called upon to make a vigorous effort in this
instance”66. Mrs. Chick, falando com Fanny quando esta já está praticamente em coma,
diz: “[...] It’s necessary for you to make an effort, and perhaps a very great and painful
effort which you are not disposed to make; but this is a world of effort you know,
Fanny, and we must never yield, when so much depends upon us. Come! Try! I must
really scold you if you don’t”67. No mundo da disputa e competição capitalista, o
chamado “esforço” pode ser, quem sabe, a arma secreta para vencer a morte. O
problema é que, sob tal ordem de coisas o contrário da morte não é a vida, mas a

64
Para uma apreciação acerca dos serviços prestados pela burguesia remediada que gravita em torno da
riqueza, e a forma como assegura seu precário equilíbrio por meio de uma calculada mistura de lisonja
despudorada e orgulho contido, ver : Smithers, D. W. “Dombey and Son (1848)”. In: Dickens Doctors.
Oxford: Pergamon, 1979, pp.48-51. De menor interesse é o breve sumário em Cosnett, J. E. “Dickens and
Doctors: Vignettes of Victorian Medicine”. British Medical Journal, 305 (1992), 1540-42.
65
“E a fortuna dele, minha querida! [...] Imensa!” [DS, p.58]
66
“[...] a Natureza deve ser chamada a fazer um vigoroso esforço nestas circunstâncias” [DS, p.53]
67
“[...] É necessário que você faça um esforço, e talvez um grande e doloroso esforço que não está
disposta a fazer; mas, você sabe, este é um mundo de esforço, Fanny, e nós nunca devemos ceder quando
tanto depende de nós. Vamos! Tente! Eu realmente vou repreendê-la se você não tentar” [DS, p. 60]

61
aquisição e a manutenção especulativa de posses. A retórica de Dr. Peps e o ridículo de
Mrs. Chick, sem prejuízo de sua hipocrisia e de seu malefício, alimentam a impotência
burguesa diante do sistema que os consome a todos. Dickens opera aqui um diagnóstico
das vicissitudes da grande burguesia quando no recesso daquilo que deveria ser seu
recanto sagrado, o doce e faustoso lar68.
O modo de pensar calcado no laissez-faire, reduzindo todas as relações a uma
equação de permuta e intercâmbio comercial, faz da doutrina econômica o jugo que
subordina os sentimentos humanos à mão forte do poder monetário. O sistema que
orbita em torno de Mr. Dombey; sua indiferença para com pobres e subalternos; sua
insistência em atingir objetivos custe o que custar; o comportamento que ilustra a teoria
da iniciativa e do empreendimento pecuniários: tudo isso funciona como as peças do
quebra-cabeça que tem como quadro final a sôfrega necessidade de acumulação. Numa
passagem, o narrador sublinha: “But what was a girl to Dombey and Son! In the capital
of the House’s name e dignity, such a child was merely a piece of base coin that
couldn’t be invested”69. Florence é uma moeda barata, falsificada, um níquel sem valor
para transação comercial, se comparada ao novo herdeiro que nasceu. Vimos que o bebê
veio ao mundo com uma esplendorosa missão – “This young gentleman has to
accomplish a destiny. A destiny, little fellow!”70, diz Mr. Dombey debruçado sobre o
berço – um destino a cumprir, já traçado e como que inscrito em lista patrimonial.
Florence nem sequer é uma mercadoria a ser trocada por Paul; existe apenas como
estorvo. Todavia, como fica claro nas cogitações de Mr. Dombey quanto à alteração ou
não do nome da empresa, também Paul não é uma pessoa com valor em si mesmo.
Como filho-mercadoria, deve retornar ao bolso de Mr. Dombey, isto é, retornar já como
capital expandido, num movimento que não deve conhecer limite algum. Nessa
circulação sempre renovada, o valor da empresa pode manter suas taxas de crescimento,

68
Dickens dispensa grande atenção ao arranjo doméstico de seus personagens e às interações que
estabelecem entre si, o que serve para ilustrar os limites das percepções que têm e como sofrem as
ingerências de um mundo que não respeita as paredes da frágil fortaleza do lar burguês. Ver, nesse
sentido, Romano, J. Dickens and Reality. New York: Columbia University Press, 1978, pp. 83-168.
69
“Mas o que era uma filha para a Dombey e Filho! No capital referente ao nome e reputação da Casa,
uma criança dessa espécie era meramente uma moeda inadequada para investimento [...]” [DS, p.51]
70
“Este jovem cavalheiro tem um destino a realizar. Um destino, meu homenzinho.” [DS, p.52]

62
à revelia do que seja feito do pequeno. Noutras palavras, Paul tem existência apenas
como encarnação possível da Dombey e Filho. Mas a empresa, que tem o mundo natural
e o do trabalho humano para comerciar, já não é uma empresa, mas um país em ação. E
este país de lojistas é um império, cuja existência se justifica como fase específica do
sistema econômico capitalista. Por fim, tal sistema tem certas leis de movimento, das
quais as próprias movimentações do narrador não podem escapar, sem serem, ao mesmo
tempo, puro espelhamento.
Nos últimos parágrafos do capítulo há uma aceleração das descrições nas cenas e
nos comentários, acompanhando em larga escala a rapidez com que se aproxima o
desfecho. Tudo isso indo pari passu com a dificuldade de conciliar ritmo próprio ao
que deve ser comunicado, como se o tempo da narrativa fosse invadido pelo andamento
imperioso dos novos tempos que, necessariamente, têm de ser retratados – causando,
por sua vez, descompassos que precisam do socorro do narrador71. Assim como no
trecho em que apresenta o mundo feito objeto mercável à mercê da Dombey e Filho,
também nas frases finais do capítulo o narrador lança mão do recurso da intervenção
direta. Entre outras coisas, tal artíficio denota e manifesta a ligação dos acontecimentos
narrados com uma lógica aparentemente externa em sua magnitude, mas
intrinsecamente invasiva em suas conseqüências. Quaisquer espaços recônditos – as
intenções íntimas de uma irmã, os meneios de alguns médicos, os segundos finais entre
mãe e filha, a frustração de um homem poderoso – são trespassados pela seta monetária.
O que seriam os círculos independentes de uma suposta vida privada ficam, pois, unidos
pelo ferimento comum. Desse modo, o narrador estabelece uma perspectiva avançada e
contra-intuitiva: no miolo de um mundo que faz da coroação do indivíduo a conquista
suprema, o narrador sugere que interferências externas e desconhecidas desempenham
papel fundamental nesse ritual de coroação, atrapalhando a cerimônia. Mas o indivíduo
e a satisfação de suas necessidades não seriam objetivo último dessa liturgia? Ou, por

71
Para uma breve discussão da ênfase vitoriana nos detalhes cotidianos plasmados em imagens que
tentam reproduzir também o ritmo desse cotidiano ver Greenstein, M. “Measuring Time in Dombey and
Son”. Dickens Quarterly, 9 (1992), 151-57. Para a ironia e crítica implícita em tal procedimento ver
Sucksmith, H. P. The Narrative Art of Charles Dickens: The Rhetoric of Sympathy and Irony in His
Novels. Oxford: Clarendon, 1970.

63
outra, Mr. Dombey não está plenamente satisfeito agora, com o nascimento do herdeiro
e pavimentando assim o caminho para a passagem do cetro e tudo mais? Mas quem são
os soberanos: Mr. Dombey, seu filho ou, na verdade, a Dombey e Filho? Nesse ponto, é
necessário lembrar que o preconceito comum costuma confundir a empresa individual –
por exemplo, uma loja como a de Sol Gills, um médico como Dr. Peps – com a empresa
capitalista na qual o trabalho é feito por assalariados e o dono nem sempre está presente
– por exemplo, a Dombey e Filho. Na empresa individual, o proprietário retira o
necessário para reproduzir sua força de trabalho e a concorrência entre as numerosas
pequenas empresas a impede de ganhar mais do que seus gastos habituais. Ou seja, na
pequena produção de mercadorias não há acumulação. Mas para uma empresa
capitalista como a Dombey e Filho a acumulação é sua alma. Os lucros existem não
para que sejam consumidos pelos patrões, mas para que sejam acumulados: dessa
forma, a empresa pode ter êxito na sua tarefa de encarnar o deus-pai capital. Nascer e
morrer é apenas um mau hábito dos devotos súditos, demasiado humanos, com seus
pequenos dilemas de vida privada – reles indivíduos, pífios ante um sistema que tem
mais o que fazer.
Tal sistema, que como ideologia faz a coroação do indivíduo, na prática
administra o aniquilamento de qualquer individualidade. Sua lógica é a da restrição
máxima da liberdade individual em prol da liberdade comercial, embora retoricamente
seja afirmado que as duas liberdades caminhem juntas. Nesse ponto, podemos retomar a
discussão que deixamos aberta, tentando avançar dois passos à frente: “The earth was
made for Dombey and Son to trade in, and the sun and the moon were made to give
them light. Rivers and seas were formed to float their ships; rainbows gave them
promise of fair weather; winds blew for or against their enterprises; stars and planets
circled in their orbits, to preserve inviolate a system of which they were the centre.
Common abbreviations took new meanings in his eyes, and had sole reference to them.
A. D. had no concern with Anno Domini, but stood for anno Dombei – and Son”. Nessa
quase que epígrafe às heranças do Iluminismo transformadas agora em mitificação, o
mundo natural e mundo do trabalho humano estão imbricados numa lógica

64
avassaladora. Do berço ao túmulo, com discórdias, heranças, navegações, lucros e
amores, a liberdade idealizada do individualismo sem amarras deve coincidir com a
irrestrita capitulação geral de todos os indivíduos ante uma cega máquina social avessa
a discussões: o capital. Dominando casas, oceanos e o firmamento, o novo ídolo dita ao
processo de trocas com a natureza uma cadência irracional segundo regularidades
mecânicas. Se o mecanicismo científico considerava a natureza como uma máquina
universal unitária, “stars and planets circled in their orbits, to preserve inviolate a
system of which they were the centre”, assim também a economia deveria ser aceita
como máquina universal automática da sociedade, a cujas engrenagens os homens têm
de se submeter: “this is a world of effort you know, Fanny”. Na dominação social da
natureza, a mesma lógica da razão abstrata preside, simultaneamente, a ordem
econômica do mundo das trocas, as formas de dominação política e a esfera do
conhecimento científico. Dombey e Filho, nesse sentido, ajuda a revelar os elementos
destrutivos do progresso, em que o predomínio do aparato econômico condiciona a
consciência e o inconsciente dos indivíduos. De resto, o domínio irracional sobre a
natureza e um idêntico domínio do homem sobre o homem se condicionam
reciprocamente.
“Common abbreviations took new meanings in his eyes, and had sole reference
to them. A. D. had no concern with Anno Domini, but stood for anno Dombei – and
Son”: mais ciumento que os outros deuses, o deus secularizado do mercado deseja
transformar quaisquer idéias e todos os sentimentos em material do processo de
valorização, o que é ao mesmo tempo anúncio de uma nova etapa histórica e
conservação e superação das etapas anteriores. Sabemos que o período de acumulação
da economia mundial durou, grosso modo, do século dezesseis ao dezoito, tendo como
resultado a Revolução Industrial. Iniciada na Inglaterra, na segunda metade do século
dezoito, com a descoberta e aplicação na manufatura de máquinas movidas a vapor, foi
o nascedouro da indústria moderna, que se expandiu a partir da Grã-Bretanha pela
Europa e, mais tarde, América do Norte. E o que é fundamental: foi uma indústria que
se orientou desde cedo para o mercado mundial – a Europa deixava assim de ser

65
entreposto comercial para se tornar exportadora de manufaturas, afinal “the earth was
made for Dombey and Son to trade in, and the sun and the moon were made to give
them light. Rivers and seas were formed to float their ships”, em negociações como
aquelas feitas pela “firm of Dombey and Son – wholesale, retail and for exportation”.
Em meados do século dezenove, o predomínio da Grã-Bretanha era tão forte nesse tipo
de comércio que ela passou a ser considerada a “oficina do mundo”. Como
característica marcante desse estágio da economia mundial houve a concentração das
atividades industriais nos países metropolitanos do hemisfério norte e a conseqüente
desindustrialização das colônias, forçadas a se tornar fornecedoras de matérias-primas.
Mas mais importante do que o predomínio colonial foi a doutrina do livre-câmbio, a
livre circulação de mercadorias pelas fronteiras nacionais que assegurava a
superioridade, no mercado mundial de produtos industriais, dos países que se
industrializaram mais cedo. Na primeira metade do século dezenove o livre-câmbio foi
adotado por numerosas nações e isso fez a hegemonia industrial britânica alcançar seu
ápice. Dombey e Filho, escrito entre 1846 e 1848, capta exatamente este momento de
chegada e, conseqüentemente, de incertezas. A partir da segunda metade daquele
século, países como a Alemanha e os Estados Unidos passariam a adotar medidas
protecionistas para suas indústrias e, como resultado, puderam enfrentar a competição
inglesa e rapidamente começaram a se industrializar.
Um comentador, recordando a reticência de Dickens em relação às negociações
efetivamente feitas pela Dombey e Filho72, especula e levanta hipóteses acerca da
natureza das atividades da empresa. Mr. Dombey seria um proprietário de navios e
mercador com área de influência nas Índias Ocidentais, o que conferia enorme poder e
prestígio junto às demais classes de mercadores. Sua atuação no mercado envolveria a
exportação de artigos produzidos principalmente em Manchester com destino ao Caribe,
onde os navios seriam então recarregados com açúcar, retornando para os portos
ingleses. Acresce que Mr. Dombey poderia fazer parte do poderoso grupo de

72
Ver a respeito dessa reticiência o trabalho de Butt, J. and Tillotson, K. Dickens at Work. London:
Methuen, 1957, pp.13-34, 90-113.

66
comerciantes que se reuniam para a defesa de interesses nas Índias Ocidentais:
historicamente tal grupo foi bastante hábil para manter a demanda por açúcar em alta,
exercendo influência política contra mercados rivais e influenciando políticas
governamentais. Assim, se o fictício Mr. Dombey pertencesse, de fato, a esse grupo de
conchavos e mancomunações, poderia desenvolver uma certa postura de incauta
segurança – o que justicaria em parte a decorrente ruína comercial da Dombey e Filho73.
Talvez tais conexões e paralelismos ajudem ao menos a entender o grau da ironia
praticada pelo narrador quando traz o comércio mundial e suas implicações para
dialogar com o nascimento de Paul. Se os rios e os mares haviam sido formados para
serem navegados pela empresa de Mr. Dombey e “A. D. had no concern with Anno
Domini, but stood for anno Dombei – and Son”, tudo conspirava para o melhor dos
mundos, evidentemente que com uma certa ajuda dos grupos e classes interessados: em
1842, Lord Palmerston – por diversas vezes ministro britânico dos negócios estrangeiros
e que iniciou uma guerra contra a China de 1840 a 1842 para obrigá-la a se abrir aos
ocidentais – tinha confiança “de que o comércio pode evoluir livremente, levando a
civilização com uma das mãos, e a paz com a outra, para tornar a humanidade mais
feliz, inteligente e melhor [...] este é o desígnio da Providência”74.
Ao mesmo tempo, para uso interno e externo, o discurso do liberalismo clássico
defendia a possibilidade de se provar cientificamente que a existência de uma classe de
capitalistas donos dos meios de produção beneficiava a todos, inclusive aos
trabalhadores que vendiam sua força de trabalho, exatamente como poderia ser
cientificamente comprovado, por exemplo, que os interesses da Grã-Bretanha e da
Jamaica estariam melhor servidos se aquela produzisse mercadorias manufaturadas e
esta produzisse açúcar natural. Desse modo, o aumento da riqueza das nações dependia
da continuidade das operações das empresas privadas e da acumulação de capital. Além
disso, a sociedade economicamente muito desigual – como sabemos, resultado

73
Essas hipóteses e especulações são feitas em Russell, N. The Novelist and Mammon: Literary
Responses to the World of Commerce in the Nineteenth Century. Oxford: Clarendon, 1986, pp.17, 29-33,
99, 164, 198-201.
74
Citado em Robinson, R. and Gallagher, J. Africa and the Victorians: The Climax of Imperialism in the
Dark Continent. London: St. Martin’s Press, 1961, p.2.

67
inevitável das operações da indômita e perene natureza humana, com sua intrínseca
fúria eterna – não era incompatível com a igualdade natural de todos os homens nem
com a justiça: assegurava aos mais pobres, desde que se esforçassem, condições de vida
melhores e, ademais, se baseava na mais eqüitativa de todas as relações, a saber, o
intercâmbio de valores equivalentes no mercado. Assim, nada dependia da benevolência
dos outros, pois para tudo havia algo a ser devolvido em troca, um equivalente75.
Ocorre, entretanto, que os ricos ficavam mais ricos e os pobres cada vez mais pobres: o
capitalismo não era apenas injusto, mas funcionava mal e produzia resultados opostos
aos prometidos por seus defensores. A igualdade burguesa estranhamente parecia ser
uma igualdade de fachada: todos eram iguais, mas alguns eram mais iguais que outros;
todos eram iguais, e alguns eram até piores. De fato, o comércio em grande escala e
principalmente o comércio internacional e mais ainda o comércio mundial exigiam
livres proprietários de mercadorias, desembaraçados em seus movimentos, capazes
todos de realizar transações: livres para contratar de igual para igual, para contratar
trabalhadores, para vender sua força de trabalho76. Contudo, aqueles que tinham apenas
e tão-somente sua força de trabalho para vender já entravam no mercado em condições
desiguais: eram a fonte do valor, podiam conservar o valor das matérias-primas e, por
meio de seu trabalho, ampliavam o valor do produto, mas estavam desprovidos dos
meios de produção de mercadorias. Para além disso, sua situação era perpetuada: para
que a acumulação se realize é necessário que apenas parte desse trabalho seja pago, e o
tempo de trabalho não-pago será materializado como mais-valia, cristalizada em lucro,
juros, renda etc. Em suma, a acumulação de capital e a riqueza das nações não dependia
somente da circulação das mercadorias, mas sobretudo do trabalho humano. Não
somente do mercadejar dos produtos da Dombey e Filho, mas sobretudo da exploração
do trabalho dos funcionários e serviçais que criavam direta e indiretamente tais
produtos, num imenso encadeamento de trabalho social.

75
Para essa discussão, ver Roll, E. A History of Economic Thought. London: Faber & Faber Ltd., 1961.
76
Consultar, por exemplo, Engels, F. Anti-Düring. São Paulo: Paz e Terra, 1990, pp. 81-90.

68
Mas, afinal, como esse segredo de produção – muitíssimo produtivo,
soberbamente lucrativo – surge também como um segredo de produção estética? Vimos,
como o título do romance prepara de antemão o leitor: a rígida divisão entre esfera
pública e privada não auxilia o estabelecimento de correlações, o discernimento de
causas e efeitos. Nesse sentido, a saga de uma família é também a saga de uma empresa,
e a saga de ambas também é a saga de todo um modo de produção, pois as partes
ajudam a compreensão do sistema em sua totalidade, e o todo desse sistema esclarece
cada uma de suas partes. Em seguida, vimos como um detalhe aparentemente
inofensivo, a mãe agonizante nos braços da filha, pode guardar implicações que nos
ajudam a entender um pouco a pulsação da época, uma vez que a reflete, embora não a
esgote. Noutro passo, vimos como o narrador alça um certo vôo panorâmico para
abarcar o comércio em todos os cantos do planeta, como que para nos familiarizar com
uma mobilidade que exige jogo constante entre o detalhe e o contexto, entre o diminuto
e o total, entre o microscópico e o macroscópico. Depois disso, vimos como esse
narrador, após colocar como grande moldura o comércio mundial, retorna para os
detalhes vis que, por exemplo, o capachismo servil de médicos e parentes fazem
pontilhar sobre a tela de cenas da vida privada, vividamente mortiça – detalhes que, por
sua vez, funcionam em conjunto como o registro de um sistema que consome a todos.
Então, finalmente, mantidas todas as etapas anteriores, o caráter desse sistema pôde
surgir historicamente recuperado, uma vez que o narrador mantém um olho nos
desdobramentos práticos do processo histórico e outro na retórica do liberalismo
clássico. Está armada a dança e contradança do narrador, que vai dilatar as
conseqüências concretas da usurpação bem como as retóricas que lhe dão respaldo, ou
seja, colocando sob mira ora os antagonismos de classe, ora as tentativas de
acobertamento – e às vezes ficando um pouco vesgo, e interessantíssimo, fazendo da
denúncia uma certa legitimação das idéias burguesas e fazendo desta legitimação já o
material para sua denúncia. Ocorre que essa atenção dividida pode apenas confundir,
mas, por outra, pode ajudar: o invisível, o encoberto, o que deve a todo momento

69
permanecer oculto, isto é, aquilo que o narrador irá procurar por toda parte, ele passa a
nos revelar – e mais uma vez fazendo uso das totalidades de um detalhe.
Assim, ainda nesse primeiro capítulo, quando se dirige a uma enfermeira – que
já acompanhara o nascimento de Florence, portanto não era uma desconhecida – quando
se dirige a essa enfermeira, ordenando-lhe que tome conta do recém-nascido Paul, Mr.
Dombey nem sequer sabe o nome dela ou simplesmente o esqueceu, fazendo apenas
uma pausa, após a seguinte frase: “I needn’t beg you [...] to take particular care of this
young gentleman, Mrs – ”77. Ela, então, diz: “Blockitt, Sir?”. E o narrador completa:
“suggested the nurse, a simpering piece of faded gentility, who did not presume to state
her name as a fact, but merely offered it as a mild suggestion”78. E Mr. Dombey finaliza
sua ordem: “Of this young gentleman, Mrs Blockitt”79. As reticências em superioridade
de Mr. Dombey e a modéstia ressabiada da enfermeira Blockitt colocam em visibilidade
a camada invisível do sistema: os demandos da acumulação conquistam o mundo e mais
um pouco, num espetáculo gigantesco, mas a golpes cotidianos, milimétricos, de esfola
feita à pinça, que de tão repetida passa por imutável, natural, em anestesia que faz o
abjeto virar lei e preceito. Se a exploração é um fato que não ousa dizer seu nome, o
narrador mesmo assim registra sua presença – e esta é o segredo da produção estética
desse mesmo narrador, um segredo, aliás, também dele oculto a sete chaves. Falar e não
falar da exploração do trabalho humano será sua obsessão, ainda que constantemente
metamorfoseada, pois a variedade dos sintomas faz o charme do distúrbio, a variedade
das manifestações empresta forma ao mal-estar. Acresce que a constante metamorfose
de dinheiro em mercadorias e destas em mais dinheiro, ou seja, a circulação frenética de
mercadorias, é isso uma das obsessões do próprio capital – que, por seu turno, esconde o
quanto pode a exploração do trabalho alheio não-pago, mas não pode viver sem ele. A
enfermeira não existe, mas deve zelar pelo recém-nascido.

77
“Nem é preciso lhe dizer que tome especial cuidado com este jovem cavalheiro, senhora ...” [DS, p.52]
78
sugeriu a enfermeira, uma tímida peça de fidalguia que perdeu o viço, que não cometeu a indelicadeza
de pronunciar seu nome como um fato, mas meramente o ofereceu como modesta sugestão. [DS, p.52]
79
“Com este jovem cavalheiro, senhora Blockitt”. [DS, p.52]

70
Por outro lado, vale lembrar que Mrs. Blockitt está sendo explorada, e mesmo assim
mantém, precisa manter, é necessário que mantenha, um certo decoro exagerado, uma
certa afetação que talvez camufle – para si e para o mundo? – a expropriação a que está
sendo submetida80. De fato, a carne viva da mais-valia não é um espetáculo agradável,
principalmente para quem o sente na pele. Isso, entretanto, deve servir de alerta: negar
sua existência não faz estancar o sangue. “Dentro de uma situação social dominada pela
produção capitalista, também o produtor não capitalista está dominado pelas concepções
capitalistas. Em seu último romance, Les Paysans, Balzac, sobretudo excelente pela
profunda compreensão das condições reais, descreve magistralmente como o pequeno
camponês, para conservar a boa vontade de seu usurário, faz para ele de graça toda
espécie de trabalho e acredita que nada lhe dá de presente porque seu próprio trabalho
não lhe custa nenhuma despesa em dinheiro. O usurário, por sua vez, mata dois coelhos
com uma só cajadada. Poupa um desembolso efetivo em salários e enreda o camponês,
o qual ao se privar do trabalho no próprio campo se arruína progressivamente, mais e
mais na teia de aranha da usura”81. Todavia, felizmente já temos a ventura de saber que
tanto o camponês de Marx quanto a serviçal de Dickens estão démodé e outdated, são
uns exemplos fora de moda e ultrapassados que não explicam mais nada – sem
mencionar que, fato estranho, nem o pensador alemão e nem o escritor inglês utilizou a
imagem do operário esfalfado pela fábrica como a personificação do momento em que a
exploração acontece. Estariam sugerindo que o proletariado constitui uma vastíssima
camada das populações, muito além do chão fabril, abarcando até mesmo, por exemplo,
os que se dedicam ao trabalho imaterial? Trabalhadores manuais e trabalhadores
intelectuais, todos levando cajadadas? De todo modo, possivelmente também isso pode
ser um passado confortavelmente remoto. Afinal de contas, como bem argumentam
alguns dos satisfeitos trabalhadores intelectuais de nosso tempo, o capital já não precisa

80
Dickens a descreve como “a simpering piece of faded gentility”, que traduzimos por “tímida peça de
fidalguia que perdeu o viço”, sendo particularmente meticuloso no uso da palavra “gentility”, já com as
conotações de fidalguia falsificada, de recato excessivo, de polidez exacerbada, que passaram a circular a
partir da década de 1840. Ver a esse respeito Gilmour, R. The Idea of the Gentleman in the Victorian
Novel. London: George Allen & Unwin, 1981, p. 85.
81
Marx, K. O Capital: Crítica da Economia Política. v. III, t.1. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 31.

71
da mais-valia: segundo eles, já não vivemos sob um sistema baseado na liberdade para o
dinheiro e na coerção para o material humano. Mas seria isso realmente verdade? Ou
valeria a pena aventar a hipótese de estarem ligeiramente descalibrados tais
argumentos? E, nesse caso, estariam seus proponentes enredados nas teias de aranha de
um capcioso sistema de produção? Um sistema que, incidentalmente, lhes permitisse
um nome – mas os visse apenas como úteis babás: amas-secas zelosamente devotadas à
manutenção de um segredo?

72
4. DINHEIRO OU A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS

Examinar Dombey e Filho – assim como David Copperfield (1850) e, em menor


escala, Grandes Esperanças (1861) – revela um dos recursos caros a Dickens: seu uso
da ressabiada impertinência infantil aliada à ingênua perspicácia encobridora, uma
impertinência que revela, mas uma perspicácia que obstrui. Para isso, especialmente em
Dombey e Filho, o narrador dickensiano destaca a importância das crianças como
observadores privilegiados, com olhinhos de águia para os aspectos grotescos que
passam despercebidos pelos adultos. As crianças seriam, assim, capazes de perceber o
normal e respeitável como monstruoso, e aquilo que seria natural e inevitável como
essencialmente irracional82. Ocorre que, para investigar a bizarra normalidade dos
moldes burgueses, o narrador utiliza o grotesco para caracterizar o próprio Paul, descrito
como “one of those terrible little Beings in the Fairy tales”83. Dando armas para o
pequeno, o narrador parece desejar que o tiro saia pela culatra. Arguto, uma vez que é
criança, mas anômalo, pois parece vir de um reino de esquisitices, Paul pode até estar
certo, porém sua falha é uma nódoa quase indelével: ainda não é o homem, adulto,
proprietário e empreendedor. Acresce ainda que a criança vislumbra as distorções, mas
não tem o arcabouço analítico. Os adultos, por sua vez, teriam tal arcabouço, mas,
envoltos na razão prática, não discernem o emaranhado em que se encontram. Como
ficamos então? Dentre as vantagens da propriedade não estaria também, para seus
legítimos possuidores, o usufruto do conhecimento e dos progressos da época? Como é
possível que tanto Paul quanto Mr. Dombey estejam desprovidos de um vocabulário
esclarecedor? O campo é minado e o narrador pressente isso, principalmente porque

82
Hollington, M. “The Child’s Perception of the Grotesque: Dombey and Son and David Copperfield.”
In: Dickens and the Grotesque. London: Croom Helm, 1984, pp.170-91. Do mesmo autor, ver “Dickens
and Grotesque Art.” Dickens Studies Newsletter, 13 (1982), 5-11. Também para a estranheza do diálogo
entre Paul e Mr.Dombey, consultar Grant, A. A Preface to Dickens. London: Longman, 1984, pp.103-09.
83
um daqueles terríveis pequenos seres dos contos de Fadas. [DS, p. 151].

73
sairão chamuscados todos: Paul, Mr. Dombey e ele mesmo. Ou seja, o narrador tem
intuições acerca do impasse, não mais que isso, e embora seja capaz de julgar os
personagens adultos, não vai muito além deles em termos de capacidade e recursos
diagnósticos, considerada a matéria social sob escrutínio. Sabemos que o menino é o
resultado tragicômico dos esforços de seu pai para acelerar seu progresso em direção à
condição de moderno homem mercantil. Seu desenvolvimento é acelerado porque seus
anos de infância não podem ser diretamente transformados em dinheiro; o resultado é
que ele envelhece prematuramente e morre84. Mr. Dombey verá seus esforços
fracassarem, a soberba terá de ser engolida após a ruína do casamento, da empresa e da
hereditariedade, e ele apenas será resgatado ao final por sua filha, organizada agora num
novo centro de lucros, ou seja, casada com um marido promissor. Já o narrador terá
montado todo um entrecho com vistas à crítica de um modo de vida – e, talvez sem o
saber, de um modo de produção – cujas leis de movimento, no entanto, lhe escapam. Ao
final do romance, no último capítulo, acaba por produzir uma grande elegia pacificadora
– que, todavia, a despeito dos esforços atenuantes de nosso narrador, será espertamente
precisa no que deixa sugerido: o novo recomeço da família Dombey acontece em bases
promiscuamente sujeitas ao capital, essa entidade caprichosa.
Estaria Dickens investigando com vigor e acuidade cada vez maiores uma das
contradições centrais de sua carreira, ou seja, seus papéis concomitantes de vitoriano
bem sucedido e, ao mesmo tempo, desiludido? Talvez com a memória dos tempos do
trabalho infantil na fábrica de graxa para sapatos, aliada às demandas da escrita contra o
relógio, de trabalhador intelectual que tinha de entregar seu produto ao mercado
periodicamente, talvez tudo isso desse a Dickens o bom antídoto dos sentimentos
ambíguos, de aspirar aos substantivos benefícios da cultura burguesa e simultaneamente
desprezar as expressões da falta de sensibilidade dessa mesma cultura85. Por certo os
questionamentos de Paul aos adultos demonstram a inabilidade da sociedade burguesa

84
Stuby, A. M. “The Allegorization of Time as a Criticism of Capitalism in Dickens’s Novel Dombey
and Son”. Zeitschrift für Anglistik und Amerikanistik, 34.2 (1986), 116-27, e Dunn, A. A. “Time,
Character, and Narration in the Victorian Novel.” English Symposium Papers, 4 (1974), 1-40.
85
Raina, B. “Dombey and Son: The Critical Self-Image.” In: Dickens and the Dialectic of Growth.
Madison: University of Wisconsin Press, 1986, pp.62-76.

74
em oferecer respostas para seus contrastes e distorções. De certa forma suas perguntas
retomam o pedido de Oliver, em Oliver Twist (1839), quando este pede mais comida no
infame abrigo para crianças. Sem desconsiderar a experiência de Dickens como
trabalhador infantil e muito menos a de trabalhador intelectual, devemos ir além do
cipoal da trajetória biográfica e perceber que a curiosidade de Paul em relação ao
dinheiro86 pode ser vista como uma superação que ainda conserva a barriga vazia de
Oliver. Noutros termos, o narrador em Dombey e Filho sabe que agora suas
interpelações e invectivas devem ser dirigidas à economia política87. Assim, vale
lembrar que desde As Aventuras de Mr. Pickwick (1837), passando por Oliver Twist
(1839), Nicholas Nickleby (1839), Loja de Antigüidades (1841), Barnaby Rudge (1841)
e até Martin Chuzzlewit (1844), as ingerências do capital já apareciam como assunto.
Em Dombey e Filho, às vesperas de 1848, o ritmo insidioso dos novos tempos impregna
a forma. Dickens passa a realizar não só a estética da produção industrial, mas também
e sobretudo a produção industrial da estética:

86
Smith, G. “The Middle Years: Dombey and Son.” In: Dickens, Money, and Society. Berkeley:
University of California Press, 1968, pp. 103-24. Para uma das primeiras abordagens sobre os malefícios
da obsessão com o dinheiro numa obra de Dickens, ver Wulcko, C. T. “Money According to Dombey and
Son.” Dickensian, 28 (1932), 109-10.
87
A mais famosa história natalina de Dickens, Um Conto de Natal (1843), além da possibilidade imediata
de ser um produto rentável, foi inspirada pela percepção de que as novas classes abastadas, os homens de
negócios, os pensadores utilitaristas e os economistas políticos não preservavam o que seria, para
Dickens, a essência dessa data. Desse modo, achou necessário descrever não a nostalgia do natal
celebrado pelas tradicionais e antigas famílias, mas sim como era vivido pelos trabalhadores pobres da
Inglaterra vitoriana. Julgava que os leitores deviam ser advertidos: antigos dogmas estavam sendo
transformados pela nova sociedade, contudo o coração humano seria essencialmente compassivo, e os
negócios poderiam coexistir com a bondade. Desde o começo Um Conto de Natal foi imensamente
popular e gerou uma onda de narrativas natalinas por autores como Thackeray, Gaskell e Trollope.
Convém notar que o natal dos pobres não melhorou significativamente com a venda dos livros. Em
Dombey e Filho, poucos anos mais tarde, ficará demonstrado que a bondade na economia política pode
ser aceita apenas como a economia política da bondade, ou seja, não a benevolência purificando as
negociatas, mas as negociatas agindo como se fossem benevolência.

75
On one of these occasions, when they had both been perfectly quiet
for a long time, and Mr Dombey only knew that the child was awake
by occasionally glancing at his eye, where the bright fire was
sparkling like a jewel, little Paul broke silence thus:
‘Papa! what’s money?’
The abrupt question had such immediate reference to the subject of
Mr Dombey’s thoughts, that Mr Dombey was quite disconcerted.
‘What is money, Paul? he answered. ‘Money?’
‘Yes,’ said the child, laying his hands upon the elbows of his little
chair, and turning the old face up towards Mr Dombey’s; ‘what is
money?’
Mr Dombey was in a difficulty. He would have liked to give him
some explanation involving the terms circulating-medium, currency,
depreciation of currency, paper, bullion, rates of exchange, value of
precious metals in the market, and so forth; but looking down at the
little chair, and seeing what a long way down it was, he answered:
‘Gold, and silver, and copper. Guineas, shillings, half-pence. You
know what they are?’
‘Oh yes, I know what they are,’ said Paul. ‘I don’t mean that, Papa.
I mean what’s money after all?’
Heaven and Earth, how old his face was as he turned it up again
towards his father’s!88

88
Numa dessas ocasiões, quando se encontravam absolutamente silenciosos havia muito tempo, e quando
Mr. Dombey sabia que o filho estava acordado senão pelo olhar que ele lhe lançava de vez em quando,
em que o fogo cintilava como uma jóia [estavam sentados em frente à lareira], o pequeno Paul quebrou
bruscamente o silêncio:
– Papai, o que é o dinheiro?
A pergunta repentina achava-se em relação tão direta com as próprias meditações de Mr. Dombey que
este ficou bastante perturbado.
– O que é o dinheiro, Paul? – respondeu. – O dinheiro?
– Sim – disse o garoto, repousando as mãos sobre os braços de sua pequena cadeira e erguendo o velho
rosto para o de Mr.Dombey, – o que é o dinheiro?
Mr. Dombey estava em apuros. Gostaria de responder dando uma explanação servindo-se de termos tais
como meio circulante, instrumento monetário, depreciação da moeda, circulação fiduciária, papel moeda,
espécies metálicas, taxas de câmbio, cotação dos metais preciosos no mercado e assim por diante; mas,
lançando um olhar à pequena cadeira e vendo a que distância ela se encontrava abaixo dele, respondeu: –
É o ouro, a prata e o cobre; as libras, os xelins e os pence. Você sabe o que é isso?
– Ah, sim, sei o que é – disse Paul. – Não é isso que eu queria dizer, papai. Quero saber o que é o
dinheiro, afinal?
Pelo céu e pela terra, como seu rosto estava envelhecido quando novamente olhou para seu pai!
[DS,p.152]

76
Esse diálogo seria banal, não fossem dois componentes. O primeiro deles é a
pergunta direta de Paul: “what is money?”; o segundo, a explicação de Mr.Dombey. Ao
mesmo tempo, na intervenção do narrador, “Heaven and Earth, how old his face was as
he turned it up again towards his father’s!”, vai sintetizado um inventário de
insuficiências, começando pela mais evidente: como poderia uma reles criança
adoentada fazer indagações desse naipe, como poderia aquele ser combalido divagar
sobre umas das mais espinhosas questões do tempo? Contudo, a precocidade de Paul
não aponta para uma fagulha de gênio, uma tirada sagaz que já antecipa o brilhante
futuro do herdeiro. Sua atitude parece mais um reflexo, quase um lapso que escapa após
uma meditação antes atônita que esclarecedora. Podemos ler que “the abrupt question
had such immediate reference to the subject of Mr Dombey’s thoughts, that Mr Dombey
was quite disconcerted”. Tanto pai quanto filho estão na aconchegante cena da lareira já
envoltos pela preocupação, um ar quase que de cogitação metafísica. Paul insiste e seu
pai deve dar uma resposta. O narrador permite acesso ao que efetivamente Mr. Dombey
gostaria de responder, servindo-se dos termos “circulating-medium, currency,
depreciation of currency, paper, bullion, rates of exchange, value of precious metals in
the market, and so forth”. Desse modo, o narrador nos vende Mr.Dombey como
conhecedor, pai da matéria, alguém que detém ao menos uma forma de sabedoria
técnica. Este não responde ao filho usando tais termos porque a criança não
compreenderia. Então, como ainda não é possível, apenas oferece: “Gold, and silver,
and copper. Guineas, shillings, half-pence”. Paul insiste novamente, pois queria saber
“what is money after all?”. Da pergunta do início, passando pela resposta ideal,
resvalando pela efetivamente proferida e chegando no retorno da pergunta, temos um
percurso, uma trilha que será abruptamente interrompida pela intervenção direta do
narrador. Tal intromissão não nos esclarece acerca da real natureza do dinheiro, porém
dá parâmetros para a compreensão do andamento desse narrador. Qual a finalidade da
intervenção? O que dizer da pergunta de Paul? O que há de errado na resposta de Mr.
Dombey?

77
Falamos mais acima de insuficiências e, se estivermos certos, a intervenção do
narrador assinala tais insuficiências quebrando o jogo entre perguntas e respostas. Até
certo ponto simples na construção, esse jogo fornece uma cadência valiosa, que nos
aproxima do compasso do romance. Quando insiste na pergunta, Paul demonstra que
“Gold, and silver, and copper. Guineas, shillings, half-pence” é uma réplica precária
para o que efetivamente queria saber. Por seu turno, ao cogitar a terminologia técnica,
“circulating-medium, currency, depreciation of currency, paper, bullion” etc., Mr.
Dombey assume as escassas chances de ser compreendido. No entanto, a pergunta
“what is money” também estava em relação direta com as próprias meditações de Mr.
Dombey: “had such immediate reference to the subject of Mr Dombey’s thoughts”. Ou
seja, por um lado, a resposta dada pela economia do senso comum, em que o dinheiro é
a moeda palpável, não satisfaz Paul; por outro, a resposta dada pela economia política,
com seu jargão supostamente correto, também não é de todo suficiente nem mesmo para
Mr. Dombey . Em princípio, quando o narrador insinua que o pai seria capaz de atender
ao pedido do filho utilizando a terminologia específica, somos induzidos a reconhecer
um limite conjuntural, como se nos fosse dito que a resposta era possível, mas não
naquelas circunstâncias, não naquelas condições. Entretanto, num exame mais atento,
vemos que a lista dos itens técnicos impressiona num primeiro instante, causa certo
colorido especial ao trecho, hipoteticamente ensinando o leigo e divertindo o
economista político, mas avança muito pouco em relação à compreensão acerca do
dinheiro. O narrador tenta, assim, emprestar a Mr. Dombey o conhecimento de algo que
para ele, narrador, também é obscuro. Dessa forma, às insuficiências de Paul e de Mr.
Dombey podemos acrescentar as do próprio narrador. Dito isso, vale ressaltar que serão
tais insuficiências que farão girar as engrenagens do romance: sem ter completamente
entre os dedos a matéria a ser tratada, esta irá se impor de forma objetiva. A mais
comum e a mais esdrúxula das mercadorias, o dinheiro, surge como o enigma a ser
desvendado. Dombey e Filho será a tentativa ampliada de resposta, uma tentativa
também ela, como veremos, insuficiente, porque centrada no dinheiro, mas abrangente,
pois capaz de apontar a própria insuficiência do dinheiro como o enigma a ser

78
descoberto – uma vez que, salvo engano, a verdadeira charada inacessível ao narrador
parece ser a circulação de mercadorias e o processo de valorização no modo de
produção capitalista, sendo o dinheiro apenas parte constituinte. Noutras palavras, a
mobilidade levada a efeito pelo narrador – necessária para dar conta do caráter mutável
do dinheiro – fará do registro estético uma crítica à economia política.
As constantes mudanças de perspectiva, de Paul para Mr.Dombey, deste para
aquele, de ambos para o narrador e dele novamente para os personagens, colocam em
funcionamento um modelo de apreensão da realidade, modelo este sensível às
metamorfoses do dinheiro. Mais relevante do que perceber se Paul atua como porta-voz
das teses de Dickens89, é reconhecer que este não tinha completo domínio sobre tais
teses. Sabia a tendência geral, porém desconhecia sua força de propulsão, bem como
seus motivos ocultos. Isso não denegria suas escolhas ou enfraquecia o teor de verdade
e o potencial de revelação da obra. Numa operação notável, a escrita era atualizada e
compartilhava com a comunidade de leitores o pasmo e a perplexidade ante os novos
tempos. Fazendo da acumulação intra e extraliterárias sua baliza para atender às ordens
do dia, o narrador dialogava com a tradição do romance e com os tensionamentos da
Revolução Industrial. A matriz histórico-social assinalava um ponto de ruptura e o novo
patamar alcançado em Dombey e Filho dá testemunho disso. O ritmo do tempo passava
a ser o ritmo da metamorfose das mercadorias, e o mundo transformado em mercadoria
surgia obedecendo aos ritos do deus temporal da modernidade, o dinheiro. Assim, a
pergunta de Paul adquiria certo caráter blasfemo, como também de pecadilho tentador.
Sua estudada descortesia em relação aos adultos parece pouco provável e David, em
David Copperfield (1850), ou Pip, em Grandes Esperanças (1861), seriam espertos o
bastante para dissimular seu comportamento perante o mundo adulto90. De todo modo,
muito mais que moldura alegórica91, a conversa de Paul com seu pai era uma heresia
que ecoava firmes alicerces realistas. Em outros termos, investigar o dinheiro podia não

89
Ellison, E. A. “Dombey and Son: The Child as Judge and Redeemer”. In: The Innocent Child in
Dickens and Other Writers. Burnet: Eakin, 1982, pp.103-13.
90
Carey, J. The Violent Effigy: A Study of Dickens’s Imagination. London: Faber and Faber, 1991.
91
Pook, J. “Allegory and Thematic Imagery in Dombey and Son and Hard Times.” Anglo-Welsh Review,
20 (1971), 101-08.

79
ser coisa para crianças ou principiantes, mas quem se dedicasse a tal investigação
descobriria que para o dinheiro as crianças eram fundamentais: sua força de trabalho era
parte relevante na geração da riqueza capitalista. Ausente do diálogo, como também do
conteúdo manifesto do romance, a grande indústria e sua utilização do trabalho infantil
formam uma das muitas sombras que pairam sobre o narrador: suas idas e vindas no
labirinto sobre o dinheiro – as insuficiências explicativas que mencionamos
anteriormente – somente seriam resolvidas se a esfera da produção de mercadorias fosse
incorporada à análise. Sabemos que fazer da criança, do ser humano totalmente não
formado, um trabalhador é o processo correlato de transformar os trabalhadores quase
que em crianças abandonadas à negligência, lutando por meios de subsistência. Uma
criança se preocupar com “what is money” não parece, ou não deveria parecer, algo
mais grotesco do que um mercado que se apropriava mais e mais do trabalho infantil. A
grande indústria, junto com o fundamento econômico do antigo sistema familiar e do
trabalho familiar, que lhe corresponde, dissolvia também as próprias relações familiares
antigas. Pai e filho adentram um território em que o lar vai sendo cravejado por espantos
e sofrimentos coletivos, tremendamente silenciados, mas latentes e de vasto alcance92.
Como uma pedra lançada no lago das cenas de vida burguesa, a interrogação
“what is money” se propaga em ondas que se alastram pelo romance. Após a morte de
Paul, as “fragilidades da riqueza” são motivo de reflexão para Mr. Dombey: “What
could it [o dinheiro] do, his boy had asked him. Sometimes, thinking of the baby
question, he could hardly forbear inquiring, himself, what could it [o dinheiro] do
indeed: what had it done?”93. Mais adiante, a memória da morte parece estar esvaecida
ante o poder material, isso no momento em que, mostrando as reformas realizadas na

92
O impacto dos questionamentos de Paul além das fronteiras inglesas ajuda na comprensão do caráter
cada vez mais sistêmico e envolvente do modo de produção capitalista. Ver, por exemplo, Field, K. “The
Story of Little Dombey”. In: Pen Photographs of Charles Dickens’s Readings. Boston: Loring, 1868. pp.
63-74. Essa autora assistiu às leituras públicas que Dickens fez nos Estados Unidos e relata a
dramaticidade com que as falas do pequeno Dombey eram interpretadas para a audiência, quase um
cântico em monótono soprano. Certamente deve ter sido uma experiência interessante, especialmente
quando consideramos platéias superlotadas ouvindo discussões quase ingênuas e quase ferinas tendo o
dinheiro como assunto de nova homilia.
93
[...] O que [o dinheiro] poderia fazer, seu filho havia perguntado. Algumas vezes, pensando na questão
feita pela criancinha, mal conseguia evitar indagar, ele próprio, o que [o dinheiro] poderia, de fato, fazer:
o que tinha feito? [DS, p.345]

80
sua mansão, Mr.Dombey enfatiza ter dado instruções para que “no expense should be
spared; and all that money could do, has been done, I believe”94. Sua sogra faceiramente
retruca: “And what can it not do, dear Dombey?”95. Nosso protagonista concorda, “It is
powerful, Madam”96, mas ao mesmo tempo com seu modo solene olha para Edith, e
esta, com indiferença beligerante para com o marido, não diz palavra. Numa passagem
posterior, procurando informações sobre o paradeiro de Carker e Edith, Mr. Dombey
afirma resolutamente que “money [...] will bring about unlikely things”97. Mais tarde, já
transcorrida sua via-crúcis, quando está quase à morte, em devaneio dos arruinados, Mr.
Dombey enlaça a pergunta inicial de Paul como uma âncora que o detivesse à realidade
e à vida: “He would repeat that childish question, ‘What is money?’ and ponder on it,
and think about it, and reason with himself, more or less connectedly, for a good
answer; as if it had never been proposed to him until that moment”98. Assim, nas várias
situações em que o dinheiro é diretamente referido, podemos perceber que o diálogo
entre Paul e Mr. Dombey contamina o tecido narrativo, fazendo variações sobre o
mesmo tema, repisando como lembrete aspectos da linha melódica seguida. Nesse
procedimento, algo do estilo de Dickens é revelado: trata-se de uma forma extensiva,
pouco dada ao golpe de mestre capaz de isolar um fragmento genial ou cunhar frases de
espírito, citáveis nas antologias, merecedoras de créditos quanto ao corte e profundidade
analíticos. O desenvolvimento ocorre, portanto, de acordo com uma ambição
totalizadora, cuja força motriz acontece numa via de mão-dupla, impulsionando o
diagnóstico enquanto realiza a si mesma e fazendo desta realização, na sua fatura, o
impulso deste diagnóstico. Sobressai a capacidade concomitante de captar a longa
duração dos processos históricos e as penúrias e iluminações do excessivamente
corriqueiro, do monotamente banal. O narrador de Dombey e Filho leva isso ao limite:

94
“nenhuma despesa fosse controlada; e tudo que o dinheiro podia fazer, foi feito, acredito” [DS, p.583]
95
“E o que ele não pode fazer, querido Dombey?” [DS, p.583]
96
“Ele [o dinheiro] é poderoso, senhora [DS, p.583]
97
“o dinheiro é capaz de realizar coisas improváveis” [DS, p.819]
98
Ele repetiria aquela questão infantil, “O que é o dinheiro?”, e ponderaria, e refletiria, e raciocinaria
consigo mesmo, de um modo mais ou menos conexo, buscando uma boa resposta; como se a pergunta
nunca lhe tivesse sido proposta até aquele momento. [DS, p.957]

81
por um lado, mostra que a vida cotidiana está nas garras do tempo e do lugar; por outro,
revela que os detalhes particulares moldam, em coletivo, seu contexto.
Isso posto, é necessário retornar ao diálogo entre Paul e Mr. Dombey: “Gold,
and silver, and copper. Guineas, shillings, half-pence. You know what they are?”. No
narrador, na busca de seu grande panorama, existe um frêmito, um certo frenesi pela
procura. Quando levada a extremos, essa busca sofre uma inflexão, faz um movimento
contrário ao do grande expansionismo, e desse modo faz do detalhe quase imperceptível
sua nova tendência, o seu foco de atenção. Mas não se detém por muito tempo:
abandona o novo achado, deixa ao leitor a tarefa de discernir. Veremos que tais
dilatações e contrações perfazem um vaivém que não é fortuito: é a pesquisa de uma
mediação frente ao mediador universal, o dinheiro. Este parece ser a um só tempo
obstáculo intransponível e espectro impalpável. Mas passado o tempo em que os mortos
governavam os vivos, é chegada a hora do capital, em que os vivos são cada vez mais
governados pelos mais vivos. Numa viravolta em seus pendores idealistas, de saída
moral, o narrador principia o exorcismo das fantasmagorias pelo detalhe que as encarna
no mundo dos vivos: “Gold, and silver, and copper. Guineas, shillings, half-pence”.
Somente na situação em que o próprio dinheiro funciona como capital mercadoria, em
que é produto direto de um processo de produção e não forma transmutada desse
produto, é que desaparece sua forma excêntrica, atípica: portanto na produção do
próprio material monetário. Vale recordar que essas mercadorias que funcionam como
dinheiro não entram no consumo individual nem no produtivo. São trabalho social
fixado numa forma que serve como mera máquina de circulação. Assim, ouro, prata,
cobre, como mercadorias monetárias, constituem para a sociedade custos de circulação
que derivam apenas da forma social de produção. São despesas imprevistas da produção
de mercadorias em geral, que crescem com o desenvolvimento da produção de
mercadorias e sobretudo da produção capitalista. É uma parte da riqueza social que
precisa ser sacrificada ao processo de circulação. Nesse aspecto, como mercadoria, fica
o primeiro lembrete de que há ali trabalho humano. Nem ao mar, nem à terra, nem para
consumo individual, nem para consumo produtivo, as mercadorias monetárias ficam

82
solidificadas, mensageiras que condensam em seu próprio corpo o trabalho social
necessário para a produção de todas as mercadorias, um trabalho que fica comumente
encoberto: “Gold, and silver, and copper” etc. é dinheiro, mas o dinheiro não é apenas
“gold, and silver, and copper”.
De modo ideal, Mr. Dombey gostaria de explicar o dinheiro elencando os termos
dos experts, as gírias dos espertos: “circulating-medium, currency, depreciation of
currency, paper, bullion, rates of exchange, value of precious metals in the market”.
Numa lista, vão juntas as potencialidades dedilhadas meio que matreiramente pelo
narrador. Em posse dos experts, dos peritos, esses são os termos que fazem a roda da
economia política girar; mas também no tesouro dos espertos, dos velhacos, são os
códigos da ladroagem com requintes de ciência econômica. Mas em qual grupo está Mr.
Dombey? Qual fileira abriga o narrador? Aqui, num primeiro momento, Mr. Dombey
pode aparecer como sabedor, mas é bom lembrar que sua empresa foi à bancarrota e ao
longo do romance ele aparece no mínimo como empresário ausente, com certeza
desinteressado, talvez inepto. Por outro lado, como veremos quando empresta dinheiro a
Walter, domina os meandros da mesquinhez monetária, fazendo do uso da exploração
do trabalho alheio a base prática da sovinice empreendedora. Negociante quase ingênuo
ou larápio que domina o beabá da economia política? As alternativas não se excluem, e
estão interligadas até mesmo no narrador. Este deseja mostrar em que maus lençóis se
encontra Mr. Dombey quando não pode utilizar a terminologia apropriada. Talvez exista
nisso também alguma parte de censura, de demonstrar certa inabilidade do protagonista
em sair de seu mundo das finanças e lidar com a simplicidade infantil. Ocorre que,
como vimos, para apequenar Mr. Dombey o narrador coloca a si mesmo um degrau
acima, como se dissesse mais ou menos assim: “o conhecimento que Mr. Dombey tem
sobre o dinheiro é técnico mas pouco pedagógico; o meu, como narrador, é um
conhecimento que além de técnico – afinal emprestei ao personagem os termos que
deseja utilizar – é também pedagógico, pois sou capaz de transmiti-lo aos leitores”.
Entretanto, sem o saber, o narrador partilha uma pilantragem: oferece um conhecimento
que não tem, fornece dicas que são apenas tijolinhos de montar ideologia. Assim, a falsa

83
alternativa entre tecnicalidade isenta e logro social, entre experts e espertos, mostra a
síntese histórica sugerida por nosso narrador: a economia política tornou-se a
legitimação da pilantragem e a pilantragem passa a ser a legitimação da economia
política99. Dessa forma, “circulating-medium, currency, depreciation of currency, paper,
bullion, rates of exchange, value of precious metals in the market” etc. são
manifestações do dinheiro, mas, novamente, o dinheiro não é apenas suas
manifestações.
Dito isso, vale lembrar que, por seu turno, tais manifestações e aparências não
são tão-somente engano. O narrador finge ter um conhecimento que verdadeiramente
sente, finge dominar uma economia política que deveras vivencia, que está impregnada
no ar que respira – mas, novamente, se consegue decompor e separar alguns de seus
elementos constituintes, não alcança analisá-los. De todo modo, “circulating-medium,
currency, depreciation of currency, paper” etc. não são unicamente tapeação, convidam
efetivamente ao estudo da história do dinheiro. Assim, numa economia de mercado, a
resposta a “what is money?” começa pelo mais evidente, ou seja, como algo que é usado
para fazer compras. Infelizmente, é necessário ganhar dinheiro antes, geralmente
fazendo vendas: eis aqui uma das camadas encobertas no diálogo entre pai e filho. E
uma das vendas mais importantes – de fato, a mais importante – é a venda de uma parte
do ser humano, de sua força de trabalho. Com isso, dinheiro é ganho sob a forma de
salário e, depois, com esse dinheiro outras coisas são compradas. Nesse sentido, a
economia de mercado é essencialmente uma economia de trocas: no caso dos
assalariados, sua força de trabalho é trocada pelas mercadorias de que precisam ou que
desejam; no caso dos capitalistas, trocam seu capital adquirindo força de trabalho, meios
de produção, além das parcas mercadorias de que precisam ou que moderadamente
desejam. A equação não é exatamente justa, mas, para uma primeira faceta, basta a
impressão imediata da vida cotidiana: a percepção de que a moeda é um meio de troca.

99
Numa nota cômica, convém mencionar que o Conselheiro Acácio, de O Primo Basílio, era economista
político. Como não bastasse, era autor de Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e a sua
Distribuição, segundo os Melhores Autores. A serviço da diplomacia, Eça de Queirós foi transferido em
1874 para a Inglaterra, onde escreveu O Primo Basílio, romance editado em volume em 1878.

84
Para além disso, faz-se necessário um recuo histórico demandado por termos como
“circulating-medium” e “rates of exchange” – meio circulante e taxas de câmbio – no
esboço feito por nosso narrador, pois a origem histórica da moeda em grande parte pode
ser explicada pela dificuldade em generalizar as trocas de dinheiro. Porém, quando há
uma mercadoria desejada por todos, independentemente da sua utilidade, esta pode ser
considerada um equivalente geral, que será amplamente aceito. Desse modo, a
especialização de uma mercadoria para servir de meio de troca facilita a generalização
dessas trocas em qualquer economia de mercado. Observando em retrospectiva, com o
desenvolvimento da divisão social do trabalho e com a multiplicação dos produtos
levados ao mercado, ocorre o surgimento de uma mercadoria, geralmente a que mais
freqüentemente se produz e se troca, que passa a ser aceita, não para ser consumida, mas
para ser, por sua vez, trocada novamente. Assim aconteceu nas várias economias
baseadas em trocas, ainda em estágio de circulação simples de mercadorias. Temos
aqui, então, uma segunda faceta: esta é a primeira forma histórica de moeda, chamada
moeda mercadoria, isto é, uma moeda que, na realidade, é uma mercadoria com funções
de dinheiro, com funções de meio de troca. Vale lembrar que inúmeros mercados
surgiram, cada um com seu dinheiro específico e que quase tudo já serviu como moeda,
desde o gado até o sal.
Mas é conveniente que a moeda mercadoria não seja perecível: durável, deve ser
divisível homogeneamente e, além disso, de fácil transporte. Devido a tais exigências,
algumas moedas mercadorias são mais adequadas que outras. Numa espécie de
consenso ao longo da história, calcado no resultado de séculos de experiência prática,
cristalizou-se uma terceira faceta: a moeda mercadoria deveria ser de metal precioso,
basicamente ouro e prata, também cobre e níquel. O “gold, and silver, and copper” de
Mr. Dombey. Todavia, na pesquisa conduzida pelo narrador, essas três facetas – meio
de troca, moeda mercadoria, metal precioso como moeda mercadoria – são
insuficientes, uma vez que o dinheiro não é só um intermediário de trocas.
Acrescentando uma outra função às anteriores, a moeda passa a ser utilizada para
pagamentos em que ficam separadas no tempo a transação comercial e sua liquidação.

85
Noutras palavras, as mercadorias são compradas a prazo para serem vendidas
novamente, inclusive a mercadoria força de trabalho, em que o empregado em geral
trabalha por um período, recebendo seu salário ao final. Portanto, a existência da moeda
abre caminho para o surgimento do crédito. Em mais um dos ritos da religião lastreada
no dinheiro, que a um só tempo superou e conservou os ritos de outras religiões, vale
lembrar que o crédito é crença, é fé no devedor: uma crença que o credor – emprestando
o dinheiro ou adiantando a mercadoria – tem no devedor de que ele vá realmente, no
prazo combinado, pagar. O funcionário Walter vende sua força de trabalho para Mr.
Dombey na confiança de que receberá seu salário. Numa passagem posterior ao diálogo
com Paul, Mr. Dombey empresta dinheiro a Walter e, desse modo, realiza como
capitalista a quintessência de uma das possilidades abertas pelo crédito: os
expropriadores tornam-se benfeitores dos expropriados, devolvendo como filantropia o
que já foi anteriormente roubado – e que deverá retornar, evidentemente com juros e
correções. Assim, esse empréstimo, o diálogo sobre o dinheiro, bem como os detalhes
desse diálogo, ajudam a ilustrar as raízes históricas da nova etapa demandada pelo
narrador. Sabemos, por exemplo, que umas das prerrogativas dos senhores feudais era o
assalto contumaz aos mercadores em seu território. Para evitar esse tipo de perdas, o
crédito permitiu que se substituísse a moeda mercadoria por instrumentos de crédito.
Desse modo, se a letra de câmbio caísse em mãos de assaltantes, como os senhores
feudais, estes não teriam meios de convertê-la em moeda. Surge a quarta faceta, em que
o papel passa a circular em lugar do ouro: cria-se uma segunda moeda que é uma
representação da primeira, uma moeda símbolo.
Tal mecanismo inibiu algumas formas de furto e possibilitou outras. Dos
senhores feudais, passando pela assim chamada acumulação primitiva, até Mr. Dombey,
“paper, bullion, rates of exchange, value of precious metals in the market, and so forth”
é a tentativa de arqueologia que o narrador realiza no seu inquérito acerca do dinheiro,
num rastreamento do latrocínio pressentido. Das facetas elencadas – meio de troca,
moeda mercadoria, metais preciosos como mercadoria, moeda símbolo – pode ser
retirado um testemunho histórico que traz à baila tanto os progressos e avanços em

86
direção ao capitalismo, quanto os mecanismos mais recônditos e perversos que lhe são
inerentes. Provavelmente quando menciona o “papel moeda”, Mr. Dombey vislumbra
conotações ampliadas da palavra “dinheiro”, de acordo com sua posição como
empresário e comerciante mundial. No centro financeiro londrino, a palavra “dinheiro”
dispunha de um palco vasto, em que o crédito comercial e os meios para sua obtenção
eram dotados de um poder infinitamente maior do que o simples ouro, prata e cobre em
circulação. Assim, na conversa com o filho, o “papel” podia designar não apenas os
certificados acionários dos empreendimentos comerciais, mas também as letras de
câmbio para transações regionais e internacionais, num mecanismo que correlacionava
vida doméstica, economia nacional e expansão imperial. Porém, mesmo para Mr.
Dombey todas essas conexões aparecem em sua forma mais visível, de superfície, como
se fossem um oceano em que a empresa Dombey e Filho transporta suas mercadorias. O
que, então, está submerso? Qual investigação deve ser feita? Quais são as pistas dadas
pela circulação de mercadorias? Se for abstraído o conteúdo material dessa circulação, o
intercâmbio dos diferentes valores de uso, e se forem consideradas apenas as formas
econômicas engendradas por esse processo, então encontraremos como seu produto
último o dinheiro. Mas esse produto último da circulação de mercadorias é a primeira
forma de aparição do capital. Como é uma aparição sob disfarce, o narrador realiza seus
procedimentos de averiguação a partir das evidências precárias que amealha. O capital
parece ser o verdadeiro sujeito oculto de uma cena de crime, de uma tramóia em que o
dinheiro aparece como principal suspeito, quando não passa de um dos vários
coadjuvantes, não obstante fundamental.
Na diferença entre capital e dinheiro, os leitores de Fielding, Richardson e, em
menor medida, Jane Austen, talvez possam perceber que, historicamente, até chegar ao
seu modo de atuação nos tempos de Dickens, o capital se defrontou com a propriedade
fundiária, vestindo sua máscara de dinheiro, ou seja, como fortuna em dinheiro, capital
comercial e capital usurário. Assim, na avassaladora saga da acumulação, houve a
antítese entre o poder da propriedade fundiária, que repousava sobre relações pessoais
de servidão e senhorio, e o poder impessoal do dinheiro. A partir da época de Dickens,

87
essa histórica formação do capital culmina na prevalência do dinheiro sobre a
propriedade fundiária, como se o capital devesse quase que se autonomizar, livre de
quaisquer amarras, num processo que, aliás, se desenvolve diariamente, tendo o
dinheiro como sua primeira aparição. Cada novo capital ao entrar nos mercados, isto é,
no mercado de mercadorias, no mercado de trabalho ou no mercado de dinheiro, como
que repete a história pregressa do capital até aquele momento e reinicia sua própria
história – sempre ainda como dinheiro, dinheiro que deve transformar-se em capital por
meio de determinados processos. De modo mais específico, a enigmática transformação
do dinheiro em capital passeia diariamente ante os olhos de todos, mas de forma
dissimulada, pois seu segredo último, o modo como gera valor, esconde uma
rapinagem: a exploração de trabalho alheio não-pago. Dessa maneira, as pesquisas do
narrador se aproximam a todo instante desse segredo, quase chegam a tocá-lo, mas
recuam. As explicações de Mr.Dombey não convencem; Paul tem de repetir as
perguntas; o narrador ilustrará ao longo do romance as tentativas de resposta, e estas,
por sua vez, gerarão novas perguntas. Dito isso, vale lembrar que, na circulação de
mercadorias para valorização do capital, a lógica é comprar para vender mais caro, tanto
mercadoria e dinheiro funcionando apenas como modos diferentes de existência do
próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo particular, por
assim dizer apenas camuflado, de existência. Nessas metamorfoses o valor passa
continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, como que
transformado num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição, então
se obtêm as explicações usuais: capital é dinheiro, capital é mercadoria. Até esse ponto
nosso narrador parece chegar, inclusive incorporando certo automatismo, muitas vezes
observando personagens e descrevendo cenas, mas sem aprofundar causas e efeitos – o
que é, aliás, o seu limite de possibilidade de apreensão, limite este imposto: de modo
particular, por seu viés de classe; de modo geral, pelo momento histórico.
Ocorre, entretanto, que o valor, por meio de uma mudança constante das formas
de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, faz sua autovalorização.
Esse automatismo parece retirar forças de seu próprio movimento, como se tivesse a

88
qualidade oculta de gerar valor porque é valor. Mas seu verdadeiro combustível é a
mais-valia, o trabalho alheio não-pago, a instância a ser calada. O valor ora assume, ora
abandona a forma dinheiro e a forma mercadoria, mas se conserva e se dilata nessa
mudança. E precisa, antes de tudo, de uma forma autônoma, por meio da qual sua
identidade consigo mesmo seja confirmada: essa forma ele só possui no dinheiro. Este
constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de valorização. O
narrador de Dombey e Filho concentra suas atenções nas conseqüências de tal processo,
fazendo quase que um inventário das cenas que compõem o crime em sua totalidade.
Por um lado, no próprio trecho representado por “circulating-medium, currency,
depreciation of currency, paper, bullion, rates of exchange, value of precious metals in
the market, and so forth” é listada uma possível súmula das metamorfoses do dinheiro,
como vimos ponto final e ponto de partida da valorização; por outro lado, o simples
agrupamento, a nomeação em paralelo, a ausência de qualificadores que indiquem
correlação e causalidade entre os termos, tudo isso vai como registro de pistas a serem
seguidas, de uma trama com seu tanto de labiríntica e misteriosa100. De fato, as ilações

100
Muitos dos romances de Dickens apresentam uma certa dose de suspense, com estratagemas, artifícios
engenhosos, perseguições e figuras de pendor policialesco. Para abarcar o ritmo dos novos tempos,
ditados misteriosamente pela valorização do capital, terá sido necessário desenvolver uma forma que
tentasse ordenar um quebra-cabeças, cujas peças ocultas seriam a mercadoria, o valor, o dinheiro, o
capital, as forças de trabalho, os antagonismos de classe? Se assim for, terão as influências mútuas dos
campos econômico e estético desenvolvido uma modalidade que investigasse os movimentos
subterrâneos, recônditos, mas determinantes para o relevo social? Alguns historiadores da literatura
reconhecem no Inspetor Bucket, de Casa Soturna (1853), um dos precursores dos detetives na ficção
britânica. Bucket, por sua vez, tem alguns de seus padrões dedutivos antecipados num personagem de
Martin Chuzzlewit (1844), o agente Nadgett. De todo modo, Dickens trata de modo diferenciado o
profissionalismo sagaz de Bucket em detrimento do comportamento mais amadoresco de outros
personagens. Blathers e Duff, por exemplo, que atabalhoadamente tentam esclarecer um assalto frustrado
em Oliver Twist (1839) são objeto de sátira. Também Pip, em Grandes Esperanças (1861), ridiculariza
aqueles que “guiam suas mentes por meio de falsas idéias, e persistem em tentar encaixar as
circunstâncias nas suas idéias, em vez de extrair idéias a partir das circunstâncias”. Guardadas as devidas
proporções, temos nestas palavras de Pip nada mais nada menos que uma declaração de princípios
materialista. Assim, o modo de produção capitalista parece gerar um vasto cenário passível de
investigação, em que as evidências devem ser examinadas com nova acuidade, grosso modo, da terra para
entender os céus, isto é, a partir das condições materias e não das elocubrações metafísicas. Avançando
mais um pouco: se, de um lado, a realidade moldada pelo capital se torna mais complexa, de outro, ela
propicia progressos técnicos e no conhecimento que podem ser usados para a elucidação de seus próprios
mecanismos secretos. Noutras palavras, o jogo vai ficando cada vez menos para principiantes – como
alguns dos detetives amadores dickensianos – e a tarefa parece exigir profissionais que mergulhem além
da casca aparente dos objetos sobre os quais se debruçam, sejam tais objetos a família, a propriedade, a
herança, o dinheiro etc. O narrador de Dombey e Filho ainda não é esse profissional da elucidação, mas
também não é nenhum amador. Quando coloca sua lupa sobre o dinheiro sabe que ali está o vestígio de

89
suscitadas pela pergunta “what is money?” exigem certo espírito detetivesco. Nesse
sentido, a insistência de Paul, na imediata continuação do diálogo, prossegue com as
diligências para apuração, numa sindicância com viés moral, mas de crítica à
onipotência da lógica econômica:

‘What is money after all!’ said Mr Dombey, backing his chair a


little, that he might the better gaze in sheer amazement at the
presumptuous atom that propounded such an inquiry.
‘I mean, Papa, what can it do?’ returned Paul, folding his arms
(they were hardly long enough to fold), and looking at the fire, and up
at him, and at the fire, and up at him again.
Mr Dombey drew his chair back to its former place, and patted him
on the head. ‘You’ll know better by-and-by, my man,’ he said.
‘Money, Paul, can do anything’. He took hold of the little hand, and
beat it softly against one of his own, as he said so.
But Paul got his hand free as soon as he could; and rubbing it
gently to and fro on the elbow of his chair, as if his wit were in the
palm, and he were sharpening it – and looking at the fire again, as
though the fire had been his adviser and prompter – repeated, after a
short pause:
‘Anything, Papa?’
‘Yes. Anything – almost,’ said Mr Dombey.
‘Anything means everything, don’t it, Papa?’ asked his son: not
observing, or possibly not understanding, the qualification.
‘It includes it: yes,’ said Mr Dombey.

algo. Não sabe quanto pode revelar, mas percebe o quanto deve esconder. Para as relações de Dickens
com as narrativas detetivescas ver: Glover, D. Victorian Detective Fiction, London: Bodley Head, 1966;
Most, G. e Stow, W. (eds.) The Poetics of Murder: Detective Fiction and Literary Theory, New York:
Harcourt Brace Jovanovich, 1983; Ousby, I. Bloodhounds of Heaven: The Detective in English Fiction
from Godwin to Doyle, Cambridge: Harvard University Press, 1976; Lawrence, F. Victorian Detective
Fiction and the Nature of Evidence : The Scientific Investigations of Poe, Dickens and Doyle. New York:
Palgrave Macmillan, 2003. Caberia lembrar ainda a frase de Walter Benjamin: “Em tempos de terror ,
quando cada qual tem em si algo do conspirador, o papel do detetive pode também ser desempenhado”.
In: Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p.38.

90
‘Why didn’t money save me my Mama?’ returned the child. ‘It
isn’t cruel, is it?’
‘Cruel!’ said Mr Dombey, settling his neckcloth, and seeming to
resent the idea. ‘No. A good thing can’t be cruel.’
‘If it’s a good thing, and can do anything,’ said the little fellow,
thoughtfully, as he looked back at the fire, ‘I wonder why it didn’t
save me my Mama.’
He didn’t ask the question of his father this time. Perhaps he had
seen, with a child’s quickness, that it had already made his father
uncomfortable. But he repeated the thought aloud, as if it were quite
an old one to him, and had troubled him very much; and sat with chin
resting on his hand, still cogitating and looking for an explanation in
the fire.
Mr Dombey having recovered from his surprise, not to say his
alarm (for it was the very first occasion on which the child had ever
broached the subject of his mother to him, though he had had him
sitting by his side, in this same manner, evening after evening),
expounded to him how that money, though a very potent spirit, never
to be disparaged on any account whatever, could not keep people alive
whose time was come to die; and how that we must all die,
unfortunately, even in the City, though we were never so rich. But
how that money caused us to be honoured, feared, respected, courted,
and admired, and made us powerful and glorious in the eyes of all
men; and how that it could, very often, even keep off death, for a long
time together.101

101
– O que é o dinheiro, afinal! – repetiu Mr. Dombey, recuando um pouco a sua cadeira para melhor
contemplar, com todo seu assombro, o átomo presunçoso que formulava tal pergunta.
– Quero dizer, papai, o que ele pode fazer? – insistiu Paul, cruzando seus braços (eram tão curtos que
mal podia cruzá-los), e olhou para o fogo, depois para seu pai, e para o fogo, e novamente para seu pai.
Mr. Dombey aproximou sua cadeira e, dando leves tapinhas na cabeça de Paul, disse: – Você
compreenderá melhor daqui a pouco, meu rapaz. O dinheiro, Paul, pode fazer qualquer coisa. – e, dizendo
isso, pegou-lhe na mãozinha e acariciou-a entre as suas.
Mas Paul desprendeu a mão, logo que pôde; e friccionando suavemente o braço da cadeira, como se
sua perspicácia estivesse na palma de sua mão e ele a afiasse – e contemplando o fogo novamente como
se este fosse o seu conselheiro, repetiu, após uma curta pausa:
– Qualquer coisa, papai?
– Sim. Tudo...ou quase – disse Mr.Dombey.
– Qualquer coisa quer dizer tudo, não é, papai? – perguntou seu filho: sem notar, ou possivelmente
sem compreender a restrição.

91
Atentando bem para a continuação do inquérito familiar, é perceptível a ênfase
dada na tintura com ligeiras pitadas fantasmagóricas e macabras, ainda que mirins. Ao
jogo investigativo de perguntas e respostas é adicionado, ou melhor, reforçado o caráter
de fábula moral já antecipado no início do capítulo, aliás em consonância com a
descrição geral do pequeno Paul. Noutros termos, a conversa sobre o dinheiro é séria,
mas vai diluída – ao menos aparentemente. A lareira, a criança que olha o fogo, seu ar
meditabundo: estamos prestes a presenciar grandes revelações, que talvez aplaquem o
temor burguês ante o imprevisível: a fatalidade da morte? a força descomunal do
dinheiro? ou ainda, como fica este diante daquela e aquela sob o reinado deste? Mas as
revelações não vêm, a não ser um tanto quanto mal-ajambradas nas tentativas de Mr.
Dombey ao justificar o poderio imanente do dinheiro. Paul mantém uma conversa
secreta com sua própria imaginação, enquanto fala com seu pai e contempla o lume102.
Aliando o ar reflexivo a uma disposição naturalmente doce e com pinceladas do senso
de humor infantil, o conjunto pareceria estranhamente definível, ora mórbido, ora

– Sim, tudo – disse Mr.Dombey.


– Por que o dinheiro não salvou a minha mãe? – prosseguiu a criança. – O dinheiro não é uma coisa
cruel, não é?
– Cruel! – disse Mr. Dombey, que endireitou a gravata, parecendo ofendido por aquela idéia. – Não.
Uma coisa boa não pode ser cruel.
– Se é uma coisa boa e se pode fazer tudo – disse o homenzinho pensativo, olhando de novo para o
fogo – fico imaginando por que não salvou a minha mãe.
Não perguntou para seu pai dessa vez. Talvez tivesse percebido, com a vivacidade infantil, que a
pergunta deixara seu pai incomodado. Mas pensou em voz alta, como se fosse algo que o preocupasse há
muito tempo, e ficou com o queixo apoiado sobre a mão, refletindo e procurando uma explicação no fogo.
Mr. Dombey, refeito de sua surpresa, para não dizer de sua inquietação (pois era a primeira vez que o
pequeno falava de sua mãe, embora passasse todas as noites a seu lado, daquela maneira), explicou-lhe
que o dinheiro, embora fosse um espírito muito poderoso do qual não se devia dizer mal sob nenhum
pretexto, não podia conservar vivas as pessoas que tinham chegado à hora de morrer; e como todos nós
devemos morrer, infelizmente, mesmo quando se pertencia à City e por mais rico que se fosse. Mas esse
dinheiro nos tornava homenageados, temidos, respeitados, cortejados e admirados, e nos fazia poderosos
e gloriosos aos olhos de todos os homens; e muitas vezes ele podia até mesmo, durante algum tempo,
afastar a morte. [DS, pp.152-153]
102
Esta técnica, de misturar a figura da criança sensível, absorta num mundo do qual os adultos estão
excluídos, e que parece alguém proveniente dos contos de fadas, seria usada mais tarde por D. H.
Lawrence. Numa nota um pouco mais tenebrosa, seria uma peculiar antecipação da criança demoníaca,
recorrente na moderna ficção científica e geralmente em contato com alienígenas ou forças extraterrenas.
Ver Stewart, G. Dickens and the Trials of the Imagination. Cambridge: Harvard University Press, 1974,
pp. 156-57, 161-63. Embora o autor não aborde dessa maneira o assunto, estamos evidentemente no
campo de representação reservado àqueles geralmente barrados na festa da individualidade burguesa,
numa forma de figurar os historicamente excluídos que perpassa os realistas, passando pelos modernistas
e que desemboca na ficção científica mais conseqüente.

92
caricato, sem deixar de ser angelical103. Acresce que a atmosfera feérica sofre uma
gradação: ao redor da lareira, lugar para manter a família unida e promover sérias
reflexões. Paul e Mr. Dombey estão diante do fogo, o que estabeleceria certa
solidariedade e ligação, diante de um símbolo da coesão doméstica104. Mas como a
síndrome das felicidades burguesas e seus símbolos não resistem mais que alguns
minutos diante da possibilidade de algo que seja efetivamente sério ou que se aproxime,
de fato, da reflexão, o quadro é desmontado pela teimosia do dinheiro em permanecer
sob as luzes da ribalta. Mais ou menos como se as fadas, os mitos e os duendes – Paul é
quase caracterizado como um duende – decidissem assumir o papel de detetives e
descobrir quem paga a conta dos que gostam de usar reinos encantados e congêneres
para justificar concepções hegemônicas: lembremos que o dinheiro é, afinal, descrito
por Mr. Dombey como “um espírito muito poderoso”.
Ao lado de Barnaby Rudge (1841) e Nosso Amigo Comum (1865), Dombey e
Filho talvez possa ser colocado dentre os romances dickensianos que enfatizam a
crueldade daqueles pais hábeis em fazer de seu amor um cofre cujo segredo é
monetário, ignorando os sentimentos dos seus filhos. De passagem, nada mais que um
dos muitos cantos escuros da família burguesa, uma das fábricas de neuroses no
composto fabril capitalista. Assim, o encanto que houvesse no diálogo entre pai e filho é
posto em chave realista pelo narrador, que usa ironia e ingenuidade de maneira
compósita, mas com mordacidade crédula, fazendo que o mundo dos interesses
materiais marque de modo assertivo sua presença. Durante grande parte do romance
Mr.Dombey é despersonalizado e feito ícone de uma classe vitoriana que igualava a
grandeza da Inglaterra à prosperidade material. O pequeno Paul é visto apenas como um
ativo, enquanto Florence é tratada com indiferença e marcado desprezo, principalmente

103
Dudley, A. “Poètes et romanciers modernes de la Grande-Bretagne XII: Charles Dickens, Dombey and
Son – Londres, 1847-1848.” Revue des deux mondes, 21 Mar. 1848, pp. 901-22; Adye, F. “Old-Fashioned
Children”. In: Macmillan’s Magazine, 68 (1893), 286-92.
104
Lane, M. “Dickens on the Hearth.” In: Dickens 1970. Ed. Michael Slater. London: Chapman & Hall,
1970, pp.153-71.

93
após a morte de Paul105. Seria o dinheiro um ente cruel? “It isn’t cruel, is it?”, pergunta
a criança, e pouco adiante Mr. Dombey responderá que o dinheiro “though a very potent
spirit, never to be disparaged on any account whatever, could not keep people alive
whose time was come to die”. Desse modo, o dinheiro já não pertence ao mundo das
coisas e dos objetos, existe algo nele de vontade dos deuses, numa ordem que não deve
ser questionada e à qual os homens devem aquiescer. Mas fica, no entanto, registrada a
hipótese da crueldade dessa divindade, em si um pouco perturbadora. Mercadorias não
costumam ser risonhas, tristes ou cruéis. Entretanto, o dinheiro já não é mais apenas e
tão-somente uma mercadoria, embora, de fato, seja o equivalente geral de todas as
mercadorias, e ele mesmo uma mercadoria. De onde emana seu poder? Seria do mundo
dos homens? Seria do sistema engendrado pelos homens e que tem na subserviência ao
dinheiro um de seus pilares? Em todo caso, pode-se argumentar: a morte da mãe de Paul
não é culpa do dinheiro; ademais, enxergar nessa morte reflexos do processo de
valorização do capital seria simples exagero, ou seja, procurar correlações onde elas não
existem. Todavia, vale lembrar que o narrador demonstra ser a ambição máxima de Mr.
Dombey ter um herdeiro, dar continuidade aos negócios, e que tudo girava em torno
disso. O casamento com Fanny Dombey funcionava apenas como manufatura em escala
doméstica, uma manufatura para a produção de um filho homem. Como a esfera da
produção é normalmente a esfera da esfola, assim também as mulheres dos proprietários
têm de pagar em sacríficio a parte que lhes cabe no butim do privilégio106.

105
Adrian, A. Dickens and the Parent-Child Relationship. Athens: Ohio University Press, 1984, 99-105,
120-22. Ver também Spilka, M. “On the Enrichment of Poor Monkeys by Myth and Dream; or How
Dickens Rousseauisticized and Pre-Freudianized Victorian Views of Childhood.” In: Sexuality in
Victorian Literature. Ed. Don Richard Cox. Tennesee Studies in Literature, 27. Knoxville: University of
Tennessee Press, 1984, pp. 161-79.
106
Personagens vulneráveis, como a mãe de David Copperfield ou a mãe de Paul, parecem morrer não
apenas das complicações do parto, mas sobretudo devido à opressão conjugal. Ampliando da família para
a sociedade, em Casa Soturna (1853) a febre fatal que acomete Jo é resultado direto da negligência e
abandono sociais. Assim, doenças e problemas de saúde adquirem em Dickens uma dimensão em sintonia
fina com as vozes progressistas do século dezenove, que apontavam como raiz de muitas das
enfermidades um sistema econômico perverso: sua vontade imperiosa exigia sacrifícios individuais e
coletivos no altar do lucro. Ver, por exemplo, Bailin, M. The Sickroom in Victorian Fiction. Cambridge:
Cambridge University Press, 1995 e Wohl, A. S., Endangered Lives: Public Health in Victorian Britain,
Cambridge: Harvard University Press, 1983.

94
Embora extrair causas a partir de conseqüências visíveis seja uma das
determinações do narrador, seu ímpeto reflui ante o perigo iminente. Criticar a carcaça
das ilusões burguesas não significa, ainda nesse ponto da obra dickensiana,
compreender o sistema que as fundamenta. Desse modo, Paul pode revelar que a vida
orientada pelo dinheiro além de absurda é cruel, mas, ao mesmo tempo, por ser uma
criança saída das fábulas encantadas diretamente para uma mansão londrina, pode ser
desautorizado. Sabemos que uma das marcas da formação ideológica burguesa é a
exclusão107 e a estratégia do narrador é marota: permite que o personagem fale umas
verdades, embora já o encaixe como ligeira aberração no meio em que vive. Prodígio,
ponto fora da curva, Paul nocauteia as noções da economia vulgar, quase vence por
pontos a economia política. Ocorre que o conceito de mais-valia não faz parte das
elocubrações da criança nem, obviamente, das do narrador. Sem prejuízo de erro crítico,
sempre possível, conviria supor que as tergiversações de Mr. Dombey refletem algo dos
rodeios do narrador em torno da pergunta sobre o dinheiro. A resposta propícia somente
pode ser esboçada com a noção de que o trabalho alheio não-pago é a variável que falta
na equação da valorização do capital – valorização esta fundamental para os
financiamentos do privilégio, como, por exemplo, casar com um rico mercador e, como
contrapartida, parir um herdeiro. Como o narrador de Dombey e Filho é mais perspicaz
que os defensores do purismo estético, que têm urticárias quando as estesias são
iluminadas pela produção material que lhes dá fundamento e, aliás, nova amplitude –
este narrador pressente que o dinheiro mascara um embate, que em parte quer denunciar
mas em parte acha legítimo. Assim, identifica e enfraquece aquela criança, o inimigo
presumido. Deslegitima o suposto adversário nas deficiências conhecidas: ainda não é
um adulto, ainda não é o indivíduo burguês, homem-feito, empreendedor, proprietário
etc. Porém atira no que vê e acerta o que está embaixo do tapete. Paul Dombey, por ser
criança, e ainda que do sexo masculino e abastado, forma ao lado das mulheres e dos
assalariados proletários, ou seja, dos sujeitos ocultos na valorização do capital. Desse

107
Feltes, N.N. “Realism, consensus, and ‘exclusion itself’: interpellating the Victorian bourgeoisie”. In:
Textual Practice, 1.3 (1987), 297-308.

95
modo, os deserdados da história teimam em aparecer, ainda que diluídos na figura do
pequeno homenzinho herdeiro. Noutra volta do parafuso, o narrador não pode evitar que
o pequeno Paul toque o nervo exposto, o segredo do modo de produção capitalista.
Nas palavras de Paul, se o dinheiro é “a good thing, and can do anything, [...] I
wonder why it didn’t save me my Mama”. Numa leitura simples, e talvez desejada num
primeiro momento pelo narrador, a pregação moral seria resumida nas limitações do
dinheiro, algo como se plenitudes na vida não estivessem ligadas ao vil metal; num
sentido pedestre, a consolação de que o dinheiro não compra felicidade, não é tudo etc.
etc. O narrador aposta nessa mensagem, mas é pragmático e sabe que, de fato, este
“espírito poderoso” pode comprar formas bastante agradáveis de tristeza: pode fazer
com que sejamos “honoured, feared, respected, courted, and admired, and [...] powerful
and glorious in the eyes of all men; and how that it could, very often, even keep off
death, for a long time together”. Mas, por outra, que tipo de homenagens e glórias são
essas? Quais os sacrifícios necessários para que sejamos agraciados por esse espírito
poderoso? Acima mencionamos a esfola que a produção de mercadorias representa,
mais precisamente seus reflexos nos vários âmbitos e ramificações do sistema
capitalista, por exemplo, a vida domiciliar como esfera de produção em segundo grau:
as violências do chão de fábrica andam de mãos dadas com as tiranias da divisão de
tarefas e alçadas no doce lar, constituindo uma imensa malha de vasos comunicantes,
sem refúgios possíveis – a produção da riqueza é eminentemente a produção de várias
pobrezas, desde os sofrimentos e ignorâncias trabalhadoras até as vacuidades e
filisteísmos burgueses. Assim, a morte da mãe de Paul não é mero acidente de percurso,
efeito efêmero ou custo colateral. Na lógica do sistema estão implícitos sacríficios,
renúncias e privações de todos os quilates. Regidos ou beneficiados pela vontade do
“espírito poderoso”, os personagens de Dombey e Filho estão diante de um modo de
produção que prega e promete a melhoria da vida, mas que na verdade precisa da vida
para aprimorar a si mesmo. Na circulação simples de mercadorias, estas são o ponto de
partida e o ponto de chegada, são compradas para satisfazer necessidades. Na circulação
do dinheiro como capital, partida e chegada são constituídas pelo dinheiro: mais dele

96
deve ser retirado da circulação do que foi lançado no começo. Ocorre um incremento ao
dinheiro originalmente adiantado. Esse excedente sobre o valor original, a mais-valia,
deve ser continuamente acumulado. Como tal excedente não é obra da graça divina,
deve ser obtido por meio de trabalho não-pago, em que, grosso modo, uma imensa
maioria vende mais força de trabalho do que efetivamente recebe. Para a continuidade
do processo, desempenha papel fundamental o raciocínio gatuno de que o valor se
origina apenas na esfera da circulação: na verdade, o mercado como divina providência,
superando e conservando algumas das fisionomias desta. Ao mesmo tempo, é
necessário que os verdadeiros produtores do valor fiquem invisíveis e que o dinheiro
apareça como “espírito poderoso”, que tudo pode realizar.
Potência das potências, capaz de qualquer coisa para atingir seu fim absoluto,
essa entidade é admirável: já não é mais um deus ciumento, agora vai com qualquer um,
não gosta de relacionamentos possessivos e, a bem da verdade, passaria muito bem sem
os seres humanos. Pena que estes teimem em existir e, sendo assim, nosso “espírito
poderoso” tem de ser famélico e devorador. Novamente: a circulação simples de
mercadorias serve de meio para um objetivo final que está fora da circulação, a
satisfação de necessidades; mas a circulação de dinheiro como capital é, pelo contrário,
uma finalidade em si mesma, pois a valorização do valor só existe dentro desse
movimento sempre renovado: por isso o movimento do capital é insaciável. Mr.
Dombey aparece como portador desse movimento, em que o possuidor do dinheiro
torna-se capitalista. Seu bolso é o ponto de partida e o ponto de retorno do dinheiro. O
conteúdo objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua meta subjetiva. O
narrador faz o registro disso: vemos como Mr. Dombey funciona como capitalista ou
capital personificado, quase que dotado de vontade e consciência. A escolha do narrador
é certeira: o mercador Mr. Dombey, na defesa de seus interesses, consegue definir o
dinheiro apenas do ponto de vista da circulação e se, de um lado, a empresa Dombey e
Filho representa um velho modelo mercantil face ao novo modelo da grande indústria,
de outro, está na linha de frente dos pressupostos liberais segundo os quais o comércio,
o consumo e a distribuição de produtos são os geradores da riqueza; bons para os

97
negócios, bons para as pessoas. Mas sabemos que o exercício retórico de “mais e
melhores mercadorias para todos” não passa de balela sem fundamento de base
econômica, uma vez que os valores de uso nunca devem ser tratados como meta
imediata do capitalismo. Tampouco o lucro isolado é essa meta, mas apenas o
incessante movimento do ganho. De modo rasteiro, as mercadorias existem em prol do
lucro, e não o contrário; por isso ainda que alguém como Mr. Dombey jamais
menospreze o lucro já alcançado, seu olhar está, no entanto, sempre voltado para lucros
futuros. E vale enfatizar: os lucros também não agem para Mr. Dombey e para os
agentes do capital de modo geral, mas sim tendo a acumulação como verdadeiro
motivo. Assim, as desgraças sofridas pelos endinheirados, um pouco na linha “os ricos
também choram”, são um recurso melodramático do narrador, dando forma para sua
frutífera ambigüidade, ora justificando a ordem estabelecida, ora criticando a face mais
radiante desta mesma ordem: se o capital faz o que faz com os mais bem aquinhoados,
qual não será a trilha de destruição que deixa atrás de si?
Para que sejamos “honoured, feared, respected, courted, and admired” e
“powerful and glorious in the eyes of all men”, já na época de Mr.Dombey o dinheiro
precisa se transformar em capital, para que assim sejam transmitidas qualidades à
burguesia diferentes daquelas de períodos históricos anteriores. As condições de
existência do capital de modo algum estão presentes na circulação mercantil e monetária
pregressas: seu surgimento somente acontece quando o possuidor de meios de produção
e de subsistência encontra o trabalhador livre como vendedor de sua força de trabalho
no mercado, numa nova etapa da história mundial. Nessa moderna época do processo de
produção social, a força de trabalho assume, para o próprio trabalhador, a forma de uma
mercadoria que lhe pertence, conseqüentemente seu trabalho assume a forma de
trabalho assalariado. Concomitante a isso, a partir desse momento a forma mercadoria
dos produtos do trabalho fica universalizada. De mais a mais, coisas que originalmente
não são mercadorias, como por exemplo afetos, consciência, honestidade, integridade
etc. podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por
meio de seu preço, a forma mercadoria – como, aliás, bem sabem os integrantes da

98
burguesia gerencial, como Carker, e intelectuais e artistas, como o nosso narrador,
quando aderem ao mercado como se fizessem uma pequena revolução, ora sorridentes,
ora emburrados. De passagem, fique registrado que suas mágoas e ressentimentos em
relação à mão invisível do mercado que lhes dá de comer, que os faz bibelôs teúdos e
manteúdos, tais muxoxos são quase que um caso patológico de ingratidão. No caso
desses laboriosos serviçais do trabalho imaterial, vale o adágio: quem se vende,
geralmente recebe mais do que vale. Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um
preço, sem ter um valor. Na sociedade precificada, o capital compra, dentre inúmeras
coisas, a subserviência; e homenagens, temores, respeitos e admirações, como assinala
Mr. Dombey. No dinheiro, toda a diversidade das mercadorias desaparece porque ele é a
forma de equivalência comum a todas elas. Acresce que a produção capitalista não é
apenas produção de mercadorias: é essencialmente produção de mais-valia. Uma vez
que os trabalhadores produzem senão para o capital, apenas são produtivos na medida
em que fornecem mais-valia para o capitalista ou servem à autovalorização do capital.
“Se for permitido escolher um exemplo fora da esfera da produção material, então um
mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas trabalha as cabeças das
crianças, mas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário. O fato de que este
último tenha investido seu capital numa fábrica de ensinar, em vez de numa fábrica de
salsichas, não altera nada na relação”108.
O dinheiro, “a very potent spirit, never to be disparaged on any account
whatever”, também é, num sentido um pouco menos etéreo, nada mais que a forma
transformada do produto do trabalho humano. Esse trabalho é continuamente
transacionado, mas fica oculto. Primeiramente a forma mercadoria dos produtos e,
depois, a forma monetária das mercadorias disfarçam a transação. Aquela, a forma
mercadoria, perambula como se tivesse brotado em árvores; esta, a forma monetária,
paira como se fosse um espírito poderoso: e tanto uma quanto outra fazem papel de
agulha e linha para tecer um véu de aparências. Em outras palavras, o dinheiro
representa a possessão iminente de todos os objetos, pois seu atributo é a capacidade de

108
Marx, K. O Capital: Crítica da Economia Política. v.I, t. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 106.

99
tudo comprar; ao mesmo tempo, a universalidade desse atributo constitui sua
onipotência: vale como ser onipotente; um espírito muito poderoso, como diria Mr.
Dombey. Como gigolô entre as necessidades e os objetos, entre a vida e os meios de
vida do homem, funciona como um mediador universal. Assim, como elo de ligação
entre pessoas e coisas, amplia seu escopo de atividades, transformando-se na corrente
comum que aprisiona um ser humano a outro, fazendo das outras existências mais um
punhado de mercadorias às quais tem-se que estar atrelado. Na medida em que é o bem
supremo, o dinheiro transfere suas qualidades ao seu possuidor, que existe não como
individualidade, para si e para outros seres humanos, mas apenas como possuidor de
dinheiro. Desse modo, a forma monetária funciona como óleo que azeita e azeda todas
as relações, desde as dependentes de caraminguás até as lastreadas em títulos do tesouro
nacional. Funcionando como vínculo de todos os vínculos, faz a ligação da vida humana
com a natureza, com a sociedade e com outras vidas humanas. A um só tempo, o
dinheiro é a chave e o cadeado: o verdadeiro sexto sentido para que seja permitido o uso
dos outro cinco. No modo de produção capitalista, ele constitui o genuíno meio de
união, o meio universal de separação. Enfim, “money caused us to be honoured, feared,
respected, courted, and admired, and made us powerful and glorious in the eyes of all
men; and how that it could, very often, even keep off death, for a long time together”.
Mas terá Paul ficado satisfeito com as respostas de seu pai? Por outro lado, ficaram
satisfeitos Mr. Dombey e o narrador?
“Um filho é um credor dado pela natureza”: a frase de Stendhal talvez ajudasse
Mr. Dombey na compreensão das cobranças, indagações e dúvidas de Paul. De todo
modo, a insistência do pequeno tem efeito revigorante para as investigações do
narrador. Sabemos que, numa perspectiva ampla, inúmeras vezes o trabalho intelectual
tem escalpelo excelente e bisturi cego, ou seja, opera às mil maravilhas sobre o que está
morto e martiriza o que está vivo. Mais para o bem que para o mal, o narrador de
Dombey e Filho recusa isso, abomina tanto a postura de autópsia conformista quanto a
de cura alheia ao sofrimento humano. Acredita nas possibilidades de transformação, na
premência das mudanças necessárias, nas correções de rumo, fazendo de seu texto um

100
texto de intervenção. Claro está que, vítima da divisão do próprio trabalho intelectual,
incorre em truísmos e obviedades já em seu tempo superados pela produção crítica
mais consistente; porém não foge da raia, sabe que tem de lutar. Assim, diferentemente
dos eunucos, que sabem como fazer mas não podem, nosso narrador acha que sabe e
acha que pode: sem comiseração ante as próprias impossibilidades e deficiências,
adquire uma energia notável – talvez em afinidades positivas e negativas com o ânimo
empreendedor da época. Nesse ímpeto, antagoniza com as passividades afeitas a
enxergar a palavra como engano, como armadilha para sepultar os edíficios dos sonhos
e razões humanas, e que abdicam da ação nos confortáveis refúgios da
incomunicabilidade. Por um lado, Dickens formula um narrador que acaba se
aproximando da importância que o trabalho alheio não-pago adquire para a valorização
do capital, mas sem chegar às conseqüências últimas de seu mapeamento; por outro,
convida nosso olhar não para os conceitos, mas para as condições materiais de
existência, e, se não consegue ler a lei de movimento capitalista, ao menos indica as
conseqüências de sua jurisdição. Em decorrência disso, a conversa entre Mr. Dombey e
Paul, em que as definições sobre o dinheiro migram da economia vulgar para a
economia política, desta para aquela, passando pelo terreno moral e até mesmo pelo
acidentado percurso das potencialidades que este dinheiro transfere a seu possuidor,
tudo isso aprofunda a insuficiência explicativa do narrador – e não por acaso acirra sua
gana elucidativa. Dito isso, a demonstração prática virá numa passagem posterior ao
diálogo, quando, já há muito encerradas as discussões monetárias entre pai e filho, o
funcionário adolescente Walter Gay, acompanhado pelo Capitão Cuttle, pede a
Mr.Dombey um empréstimo para saldar dívidas de seu tio, Sol Gills:

101
‘What was this debt contracted for?’ asked Mr Dombey, at length.
‘Who is the creditor?’
‘He [Walter] don’t know,’ replied the Captain, putting his hand on
Walter’s shoulder. ‘I do. It came of helping a man that’s dead now,
and that’s cost my friend Gills many a hundred pound already. More
particulars in private, if agreeable.’
‘People who have enough to do to hold their own way, [...] had
better be content with their own obligations and difficulties, and not
increase them by engaging for other men. It is an act of dishonesty and
presumption, too,’ said Mr Dombey, sternly; ‘great presumption; for
the wealthy could do no more. Paul, come here!’
The child obeyed: and Mr Dombey took him on his knee.
‘If you had money now –’ said Mr Dombey. ‘Look at me!’
Paul, whose eyes had wandered to his sister, and to Walter, looked
his father in the face.
‘If you had money now,’ said Mr Dombey; ‘as much money as
young Gay has talked about; what would you do?’
‘Give it to his old Uncle,’ returned Paul.
‘Lend it to his old Uncle, eh?’ retorted Mr Dombey. ‘Well! When
you are old enough, you know, you will share my money, and we shall
use it together.’
‘Dombey and Son,’ interrupted Paul, who had been tutored early in
the phrase.
‘Dombey and Son,’ repeated his father. ‘Would you like to begin
to be Dombey and Son, now, and lend this money to young Gay’s
Uncle?’
‘Oh! If you please, Papa!’ said Paul: ‘and so would Florence.’
‘Girls,’ said Mr Dombey, ‘have nothing to do with Dombey and
Son. Would you like it?’
‘Yes, Papa, yes!’
‘Then you shall do it,’ returned his father. ‘And you see, Paul,’ he
added, dropping his voice, ‘how powerful money is, and how anxious
people are to get it. Young Gay comes all this way to beg for money,

102
and you, who are so grand and great, having got it, are going to let
him have it, as a great favour and obligation.’
Paul turned up the old face for a moment, in which there was a
sharp understanding of the reference conveyed in these words: but it
was a young and childish face immediately afterwards, when he
slipped down from his father’s knee, and ran to tell Florence not to cry
any more, for he was going to let young Gay have the money.
Mr Dombey then turned to a side-table, and wrote a note and
sealed it. During the interval, Paul and Florence whispered to Walter,
and Captain Cuttle beamed on the three. The note being finished, Mr
Dombey turned round to his former place, and held it out to Walter.
‘Give that,’ he said, ‘the first thing tomorrow morning, to Mr
Carker. He will immediately take care that one of my people releases
your Uncle from his present position, by paying the amount at issue;
and that such arrangements are made for its repayment as may be
consistent with your Uncle’s circumstances. You will consider that
this is done for you by Master Paul.’
[...]
‘You will consider that it is done,’ he repeated, ‘by Master Paul. I
have explained that to him, and he understands it. I wish no more to be
said.’109

109
− Qual é a razão dessa dívida? – acabou por perguntar Mr. Dombey. – Quem é o credor?
− Ele [Walter] não sabe nada disso – respondeu o capitão, pousando a mão no ombro de Walter. – Eu
sei. Essa dívida provém de uma ajuda feita a um homem já morto, e que já custou umas centenas de libras
ao meu amigo Gills. Informações complementares em particular, se desejar.
− As pessoas que têm bastante que fazer por sua própria conta [...] melhor fariam se se restringissem às
suas próprias obrigações e dificuldades, e não as aumentassem, tornando-se responsáveis por outras
pessoas. É um ato desonesto e presunçoso – disse severamente Mr.Dombey – de muita presunção; porque
os ricos não fariam mais que isso. Paul, venha aqui!
O menino obedeceu: e Mr. Dombey sentou-o nos seus joelhos.
– Se você tivesse dinheiro agora – disse Mr. Dombey. – Olhe para mim!
Paul, cujos olhos haviam se desviado para sua irmã, e para Walter, olhou para o rosto de seu pai.
– Se você tivesse dinheiro agora – disse Mr. Dombey; – tanto o quanto mencionado pelo jovem Gay, o
que você faria?
– Daria o dinheiro ao seu velho tio – respondeu Paul.
– Emprestava-o ao seu velho tio, hein? – prosseguiu Mr. Dombey. – Bem! Quando você tiver idade,
ouviu, você terá sua parte do meu dinheiro e nós o usaremos juntos.
– Dombey e Filho – interrompeu Paul, a quem muito cedo havia sido inculcada a expressão.
– Dombey e Filho – repetiu seu pai. – Você gostaria de começar a ser Dombey e Filho, agora, e
emprestar esse dinheiro ao tio do jovem Gay?
– Oh! Por favor, papai! – disse Paul. – E Florence também deseja isso.

103
Realmente a petulância dos pobres parece não ter fim. Além de usufruírem a
oportunidade de participar na geração da riqueza, algumas vezes cometem o desplante
de solicitar parte dela. Já não basta que tenham empregos ou que, no pior dos casos, por
meio do desemprego, possam novamente exercer sua liberdade de escolha em busca de
uma recolocação? Tal atrevimento talvez advenha de sua natural incapacidade para
reconhecer o quanto de comedimento, iniciativa e esforço é necessário para se arcar
com as ilimitadas responsabilidades, com as excruciantes obrigações, com as inúmeras
demandas, enfim, com todos os encargos dos que tomam para si o fardo e a missão de
serem proprietários dos meios sociais de produção e de subsistência. Mas, como obra de
arte da história moderna, os trabalhadores assalariados têm ainda cotidianamente a
chance de aprenderem algo. Se a definição do dinheiro é algo esotérica, em que
derrapam até os mais doutos, o saber de experiências vividas talvez venha a calhar: para
entender o valor do dinheiro, basta pedir um empréstimo. Como de costume, os pobres
laboriosos livres desperdiçam também esta porta aberta à reflexão, através da qual
poderiam adentrar os umbrais das elaborações sutis já com as credenciais obtidas no
mundo real... De todo modo, para encurtar nossa digressão e evitar confusões: não é
Walter quem deve aprender o que é o dinheiro, mas sim o herdeiro Paul. Ou não? Seria
Mr. Dombey quem, na verdade, tenta provar para si mesmo a capacidade de demonstrar

– Moças – disse Mr.Dombey – não têm nada a ver com a Dombey e Filho. Você gostaria de emprestar?
– Sim, papai, sim?
– Então você o fará – respondeu seu pai. – E veja você, Paul – acrescentou, baixando a voz – como o
dinheiro é poderoso e como as pessoas o desejam possuir. O jovem Gay veio de longe para pedir
dinheiro, e você, que é uma pessoa tão formidável e importante, porque tem esse dinheiro, vai emprestá-
lo, como um grande favor e uma grande obrigação a ser restituída.
Paul ergueu por um instante para seu pai um rosto envelhecido, no qual se lia uma penetrante
compreensão do conteúdo daquelas palavras: mas, um momento depois, seu rosto tornou-se infantil e
inocente, logo que se deixou escorregar dos joelhos de seu pai, correndo para dizer a Florence que não
chorasse, pois ele ia fornecer o dinheiro ao jovem Gay.
Mr. Dombey dirigiu-se a uma pequena escrivaninha, redigiu um bilhete e fechou-o. Nesse ínterim, Paul
e Florence falavam a Walter em voz baixa, enquanto o capitão Cuttle cobria todos três de olhares
radiantes. Terminado o bilhete, Mr. Dombey voltou ao seu lugar e entregou-o a Walter.
– Dê isto a Mr. Carker – disse, – amanhã de manhã, antes de mais nada. Ele cuidará para que um de
meus funcionários tire seu tio da atual circunstância, pagando a quantia em questão; e tomará
providências para que o reembolso seja condizente com a situação de seu tio. Considere que isso é feito
para você por Mr. Paul.
[...]
Considere que isso é feito para você – repetiu Mr. Dombey – por Mr. Paul. Expliquei-lhe e ele
compreendeu. Não quero que se diga nem mais uma palavra sobre o assunto. [DS, pp.196-198]

104
o que é o dinheiro? Ou ainda, seria um artifício do narrador para ilustrar concretamente
algo que anteriormente foi esboçado? Ou porventura precisariam todos – Walter, Paul,
Mr. Dombey, o narrador, os leitores – aprenderem o que era, afinal, o dinheiro? Para
serem adestrados? Para ficarem inconformados? Seja como for, o trecho em questão faz
que a própria insuficiência explicativa jogue a favor da explicação, com um recurso
simples mas de conseqüência máxima, transformando a ausência conceitual numa
ausência formal. Em outras palavras, durante toda a passagem, Walter é apenas
mencionado e referido, permanecendo calado, mesmo estando presente, do mesmo
modo que, na transformação do dinheiro em capital, a mais-valia, o trabalho alheio não-
pago, é a ausência sempre presente e a presença sempre ausente. Walter e seu mutismo
humilhado é a contraparte de Mr. Dombey e suas deliberações às escâncaras. Este é a
prepotência esculpida em carrara; aquele, a necessidade cuspida e escarrada.
Isso posto, estamos por certo no campo da indissociável rivalidade entre capital
e trabalho. “People who have enough to do to hold their own way, [...] had better be
content with their own obligations and difficulties, and not increase them by engaging
for other men. It is an act of dishonesty and presumption, too, [...] great presumption;
for the wealthy could do no more”. Os pobres são pobres porque, dentre outras coisas,
costumam dar passos maiores do que as pernas, numa imprevidência que eterniza sua
situação. Nas palavras de Mr.Dombey, em gratuita lição de economia política crassa,
vai sintetizada uma defesa do entesouramento e de sua importância para a acumulação,
mostrando como a renúncia e a disciplina são fundamentais: guardar dinheiro em todos
os bolsos e onde mais couber, preocupar-se com o próprio umbigo, saber que o dinheiro
não cresce em árvores, etc. Para além da explícita defesa da vantagem particular, do
interesse privado, do proveito próprio, ocorre a intenção ardilosa de cindir geração de
riqueza e trabalho social. Ou seja, o mérito da criação de valor seria estritamente
individual, estando o enriquecimento disponível a todos, na liberdade dos vários
mercados: de trabalho, de mercadorias, de dinheiro. Assim, de modo sub-reptício,
ocorre a lengalenga de uma argumentação pulha: atribuir, a uma sociedade com
produção desenvolvida de mercadorias, uma situação em que o produtor solitário,

105
espécie de Robinson Crusoe em formol, produzisse ele mesmo seus meios de
subsistência e só jogasse na circulação o que excedesse sua própria necessidade, o
supérfluo. Nessa ladainha pelintra, o intercâmbio de mercadorias, o comércio, surge
como produtor de mais-valia, como se o capital se originasse apenas na circulação.
Desse modo, os menos perdulários e os mais dinâmicos conseguiriam progredir,
vendendo mais caro o que compraram mais barato. Ocorre que, nesse ponto, quase que
por abracadabra, o que era falacioso ilustra uma verdade: realmente para vender mais
caro é necessário comprar mais barato; entretanto, é a força de trabalho a mercadoria a
ser comprada em pechincha. E, convém realçar, num processo que nunca é apenas e tão-
somente individual, mas sobretudo coletivo, em conformidade com a lógica da divisão
social do trabalho. Desse modo, o empréstimo solicitado por Walter mostra o mundo às
avessas: os expropriados, isoladamente, pedem emprestado o que já era seu de direito;
algo que, aliás, produziram conjuntamente e lhes foi usurpado.
Quando Paul afirma que, na hipótese de ter o dinheiro, daria a quantia ao tio de
Walter, imediatamente Mr. Dombey o corrige: “Lend it to his old Uncle, eh? [...] When
you are old enough, you know, you will share my money, and we shall use it together”.
A advertência é fundamental: doar o dinheiro não era jamais a postura correta, pois é
preciso que o mesmo dinheiro, acrescido segundo normais contratuais, retorne ao
possuidor. O mesmo acontece na circulação ampliada de mercadorias, de dinheiro que
se transforma em capital: a forma monetária deve circular constantemente, porquanto só
assim consuma sua valorização, momento em que a mais-valia gerada na esfera da
produção irá frutificar. Paul interrompe seu pai e diz: “Dombey and Son”. Nosso
mercador responde: “Dombey and Son. [...] Would you like to begin to be Dombey and
Son, now, and lend this money to young Gay’s Uncle?”. O narrador nos presta um
grande serviço aqui. Assim como a natureza do capital não pode ser investigada com a
observação do capitalista individual e do trabalhador individual, mas sim atentando para
as classes dos capitalistas e dos trabalhadores, também o movimento de valorização
capitalista não deve ser entendido como jogo de vilões e mocinhos. Ou seja, quando
confirma o que já foi inculcado em seu filho e sublinha que será a outra entidade, a

106
empresa, quem irá emprestar o dinheiro, quando faz isso, Mr. Dombey demonstra
inadvertidamente que também os capitalistas não são sujeitos do processo: o poder não
humano do capital os escolhe, quase são uma única e mesma pessoa, mas o que está em
questão nunca é a satisfação das necessidades dos capitalistas, mas a contínua
valorização do capital. Por outro lado, sempre é bom lembrar que as canalhices
estruturais de classe não devem acobertar o arbítrio calhorda do indivíduo, pois este
chafurda naquelas, e aquelas regurgitam este. Assim, quando Paul diz que emprestar
também é um desejo de Florence, seu pai retruca: “Girls [...] have nothing to do with
Dombey and Son. Would you like it?”. Desde Medéia sabemos que a natureza fez das
mulheres seres de todo incapazes para as boas ações; contudo, não há, para a maldade,
artífices mais competentes. Melhor, então, evitar encrencas e assegurar o bom
andamento dos negócios. Principalmente na era do capital: uma época em que devemos
ser capazes de tudo por dinheiro, até de uma boa ação. Na defesa disso, a sentença de
Mr. Dombey nada mais faz que bradar a tradicional grosseria patriarcal, de glande
eloqüente.
Deslegitimar e escorraçar faz parte das estratégias dos que personificam o
capital. Assim, a desconsideração para com Florence não é apenas uma estocada de
gênero: tem início uma ilustração do escanteio a que são submetidos todos os alijados
da individualidade burguesa, todos os que são dilapidados e permanecem ocultos no
processo de valorização: “And you see, Paul, [...] how powerful money is, and how
anxious people are to get it”. Dinheiro que move montanhas e todas as forças de
trabalho, pois Walter “comes all this way to beg for money, and you, who are so grand
and great,” – porque tem esse dinheiro, senão seria apenas um pirralho – “[you] are
going to let him have it, as a great favour and obligation”. O narrador aprofunda seu
exemplo, mostrando como um dos aspectos fundantes do poderio do dinheiro a contínua
destituição, a crescente privação daqueles que não o possuem. Por serem desterrados
que obrigatoriamente vivem no território monetário, sua permanência é sempre
provisória, renovada mediante débitos repetidos, que por sua vez ancoram mais uma vez
seu exílio. Nos interesses do capital, não têm direito de cidade os trabalhadores,

107
emboram devam ser producentes. Mas isso não seria uma visão maniqueísta, pouco
sensível às múltiplas nuances e complexidades da vida social? Não teria algo de fantasia
conspiratória dos ressentidos de sempre? É bem plausível. Vale lembrar, contudo, que
tais advertências surgem costumeiramente, mas não só, nas ramas da burguesia
assalariada e da pequena burguesia – ressabiadas, mortíferas, confiantemente acuadas, e
perigosamente cegas no tiroteio da consciência de classe. Após decidir pelo
empréstimo, Mr. Dombey entrega um bilhete a Walter e diz: “Give that [...] the first
thing tomorrow morning, to Mr Carker. He will immediately take care that one of my
people releases your Uncle from his present position, by paying the amount at issue”.
Dickens esclarece a banalidade burguesa fazendo uso de detalhes banais. Como o
capital está nos detalhes, nada melhor. O papel reservado a Carker, diretor da Dombey e
Filho, representante da burguesia gerencial, nada mais é do que o de um atravessador,
ou seja, ausente das decisões, ajudante-de-ordens bem remunerado, participante do
banquete, mas quando já em migalhas – e, ainda que saborosas, sempre migalhas. Em
suma, uma situação precária, aparentada ao exílio dos trabalhadores. Assim,
infelizmente, podemos suspeitar que a burguesia assalariada é galho secundário da
grande burguesia, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim do capital.
Compreensíveis, portanto, sua desconfiança e má-vontade em relação a quaisquer
explicações que relembrem o esforço constante para que sejam mantidas as aparências –
e ocultada sua condição de manquitola. Por que burgueses, se assalariados? Por que
assalariados, se burgueses?
Na insistência com que Mr. Dombey repete para Walter, “You will consider that
this is done for you by Master Paul”, não existem somente marca de nova autoridade,
relativa passagem de bastão, e reafirmação de sociedade mercantil entre pai e filho. Há
também a ressalva: não foi Mr. Dombey quem deu o empréstimo, mas Paul, que assim o
desejou. Acresce que, como bem menciona o varão ao seu rebento, tal empréstimo
inaugura a Dombey e Filho, que passa a existir como empresa, como instrumento do
capital. De certo modo, como se este capital dissesse: “meu filho, o dinheiro, foi
condescendente e assim concordou em saldar as dívidas”. Como se deus-pai e deus-

108
filho fizessem, por obra e graça do espírito santo, que o produto do trabalho retornasse
ao produtor original – que como sempre deverá reembolsar o que lhe foi concedido,
logicamente que de forma condizente com sua situação, isto é, em módicas parcelas de
vida roubada. Mas, se fizermos tal analogia com a religião e com a moral, será isso
apenas um mero sacrilégio materialista? Talvez. Seja como for, a birra de Dickens
contra a economia política e contra uma religiosidade exagerada faz que seu texto –
num movimento sem paradoxo, pois participante da mesma constelação – comumente
descambe para a moral, dando combustível aos que o vêem sob a pecha de moralista
simplificador. No entanto, sem deixar de reconhecer sua pregação por vezes pastosa, é
necessário constatar quando Dickens faz da sensaboria o acre, e do veneno o antídoto.
Assim, na busca de um vocabulário para criticar o pegajoso da economia política,
incorpora aspectos e concepções do credo econômico, identifica o caráter
religiosamente ecumênico que esta ciência adquire e, finalmente, seu papel como livro
sagrado da prelazia liberal. Seu estilo imita o púlpito que tem a livre iniciativa, o lucro,
a propriedade privada, etc. como peças preferenciais para a montagem do sermão – e na
sua imitação faz a caricatura gritar os detalhes reveladores do mercado, de santo de pau
oco. Não é um estilo convictamente herege – afinal quer ver para crer, resguarda uma
crença íntima no mercado – e talvez por isso mesmo consiga sugerir que a relação da
economia política com a moral nunca é arbitrária, nem acidental. Desse modo,
criticando a economia política em termos morais, deixa mais claro que não existe
oposição real entre estes e aquela, uma vez que essencialmente são a mesma coisa.
Noutros termos, a economia política apenas expressa, a seu modo, leis morais – que, por
sua vez, não podem ser criticadas pela moral, pois quando esta entra por uma porta, a
dialética de produção material e produção imaterial sai pela outra. Este é um dos
impasses do narrador, talvez sua grande pedra no sapato.
Assim como a circulação de mercadorias sugere e ao mesmo tempo encobre o
que é o capital, assim também nosso narrador ora sugere, ora encobre o que é primeira
manifestação do capital, o dinheiro. Dickens escreve em Barnaby Rudge (1841):

109
“Existem cordas no coração humano que é melhor não tocar”110. Mas desde Marx
sabemos que o coração do homem é algo surpreendente, sobretudo quando ele o tem no
bolso. Se quisesse evitar surpresas desagradáveis, o narrador não deveria insistir na sua
investigação sobre “o que é o dinheiro”, uma perigosa pista sobre o que é o capital.
Talvez nos termos da sua advertência moral, o dinheiro possa conseguir tudo, mas
apenas exteriormente, pois interiormente nada pode; aparenta ser tudo para a sociedade,
mas para o coração não é nada. Ocorre que isso resulta insatisfatório também para o
narrador, como se ficasse a meio caminho, e necessitasse da exemplificação do
empréstimo a Walter para prosseguir. Por outro lado, como já vimos, esse mesmo
narrador conta parte da história, fala da exploração mas não consegue inseri-la no
complexo mecanismo da transformação do dinheiro em capital, em que o trabalho
individual e sua exploração assumem nova dimensão, de metabolismo social. Na
clássica passagem de Marx: “O possuidor de mercadorias pode formar valores por meio
de seu trabalho, mas não valores que se valorizem. Ele pode aumentar o valor de uma
mercadoria, acrescentando, mediante novo trabalho, novo valor ao valor preexistente,
por exemplo, ao fazer de couro, botas. O mesmo material tem agora mais valor porque
ele contém um quantum maior de trabalho. A bota tem, por isso, mais valor do que o
couro, mas o valor do couro permanece o que era. Ele não se valorizou, não se
acrescentou uma mais-valia durante a fabricação da bota. É, portanto, impossível que o
produtor de mercadorias, fora da esfera de circulação, sem entrar em contato com outros
possuidores de mercadorias, valorize valor e, daí, transforme dinheiro ou mercadoria em
capital”111. Desse modo, se o capital não se origina da circulação, ao mesmo tempo não
pode se originar sem ela, sem a esfera da circulação de mercadorias, sem o mercado,
sem os compradores. O que é realmente um contratempo, pois parece que os indivíduos
necessitam da sociedade, e mesmo aqueles que acreditam no capital como ente supremo
– e na sua fé apregoam que não existe uma tal coisa chamada sociedade, apenas
indivíduos egoisticamente livres, leves e soltos – estes defensores da supremacia do

110
Dickens, C. Barnaby Rudge. Oxford: Oxford University Press, 1982.
111
Marx, K. op. cit., p.138.

110
capital intimamente sabem disso: afinal alguém precisa produzir desde o papel até as
palavras de seus discursos, para que estes sejam colocados em circulação, sejam
valorizados, e mais uma vez acumulados como nova e mesma hegemonia.
Embora de forma enviesada, o narrador enfrenta a mancha que a mais-valia
representa na idealizada brancura da circulação de mercadorias. O dinheiro que é
emprestado a Walter foi gerado por inúmeros e anônimos Walters, que com seu trabalho
produzem mais do que efetivamente recebem. O ocultamento disso é peça-chave na
manutenção e reprodução do processo produtivo. Não por acaso, durante grande parte
do romance Walter desaparece e, inicialmente, em seus planos de trabalho, Dickens
tencionava transformá-lo num personagem aproveitador e oportunista112, mas foi
dissuadido devido a conselhos de amigos e pedidos dos leitores113. Essa trajetória
duvidosa de Walter, irrealizada e no entanto latente, permanece como incógnita até
quase ao final do romance quando, afinal, ele ressurge como trabalhador que aprendeu,
de forma honesta e confiável, a ser um bom empreendedor, genro bondoso que
juntamente com Florence irá resgatar Mr. Dombey da falência moral e financeira. A
dívida contraída anos antes será de certa forma paga com juros e correções. Foi um
investimento certeiro de Mr. Dombey, marmóreo capital personificado, cujo único
impulso vital é o de valorizar-se, de criar mais-valia e absorvê-la constantemente.
Convém destacar que, quando desapareceu, Walter estava desempenhando suas funções
na Dombey e Filho: ausente nas deliberações sobre o empréstimo e, depois, ausente nos
desenvolvimentos principais do romance, seu sumiço serve para lembrar que o tempo
durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a
força de trabalho; assim, o enredo do romance enquanto isso prossegue, alheio à
ausência de Walter; como prossegue também a circulação das mercadorias, tentando
ficar alheia à existência dos trabalhadores. Mandado ao Caribe a serviço dos interesses
da Dombey e Filho, ocorre um naufrágio, as notícias são contraditórias, e Walter é dado

112
Herst, B. The Dickens Hero: Selfhood and Alienation in the Dickens World. London: Weidenfeld and
Nicolson, 1990, pp. 32-35.
113
Monod, S. “After the Italian Holiday: Dombey and Son”. In: Dickens the Novelist. Norman: University
of Oklahoma Press, 1968, pp. 240-71. Consultar também Butt, J. and Tillotson, K. Dickens at Work.
London: Methuen, 1957, pp.13-34, 90-113.

111
como morto. Ou seja: na verdade, bom seria que realmente os trabalhadores morressem
sem deixar vestígios, desde que as mercadorias e os serviços continuassem
magicamente chegando ao mercado, para refastelar os que podem consumir. Dessa
maneira, o desaparecimento de Walter é útil num ponto talvez não imaginado por
Dickens: de como a valorização se processa na esfera da produção, às escuras – e
evidentemente tendo de participar novamente da esfera da circulação, para assim se
realizar. Trabalhador bom é trabalhador morto. Se for para reaparecer, dar o ar da sua
graça na esfera da circulação, que seja como empreendedor, mas cordato, convertido,
eficaz marido redentor da filha do patrão falido. Na sociedade aparentemente aberta ao
mérito, os trabalhadores mais esforçados, com um pouco de ajuda do acaso e da sorte,
isto é, das regras e do arbítrio do capital, podem chegar lá – mas para isso devem morrer
enquanto trabalhadores crisálidas, para que renasçam e possam borboletear como
burgueses assalariados, sempre na esperança de alçar vôos mais altos.
Para resumir: vimos que, primeiramente, Mr. Dombey tenta responder a
pergunta sobre o dinheiro utilizando mal e parcamente alguma terminologia da
economia política. Depois, a insistência de Paul faz que a explanação se encaminhe para
as conseqüências apreciáveis – sobretudo de conteúdo moral mas agora já também
práticas – do “espírito poderoso” que é o dinheiro. Finalmente, a situação exemplar do
pedido de empréstimo tenta fechar a questão. Nessas várias mudanças de perspectiva, o
narrador não atinge plenamente seu objetivo, porém num progresso considerável
abandona as concepções abstratas em favor das condicionantes materiais. Assim, “o que
é o dinheiro” serve como a ponta de um iceberg, pista enigmática para desvendar um
enigma ainda maior: o funcionamento do modo de produção capitalista. Os processos
submersos pouco a pouco são em parte revelados, e em parte permanecem turvos. De
todo modo, vai ficando mais nítida a necessidade de que, para transformar dinheiro em
capital, alguém como Mr.Dombey precise encontrar alguém como Walter, trabalhador
livre no mercado de mercadorias e livre em duplo sentido: que tenha sua força de
trabalho como sua mercadoria; que não tenha quaisquer outras mercadorias para vender,
sem meios de produção para realização de sua força de trabalho. Desde a definição

112
precária de Mr. Dombey, passando pela definição do poder do dinheiro, até a
demonstração prática desse poderio no trecho do empréstimo, Dickens registra não uma
energia imutável e perene, mas uma nova época da produção humana. Já sabemos que a
mãe natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, de
outro, possuidores das próprias forças de trabalho. Como lembra Marx, essa relação não
faz parte da história natural nem é tampouco social, comum a todos os períodos
históricos: é resultado de desenvolvimentos históricos anteriores, produto de muitas
revoluções econômicas, fruto da superação de uma série de formações mais antigas da
produção social. Nesse sentido, a transformação do dinheiro em capital segue as leis
econômicas do moderno sistema produtor de mercadorias: em primeiro lugar, o produto
pertence ao capitalista e não ao trabalhador; em segundo lugar, o valor desse produto,
além do valor do capital adiantado, inclui uma mais-valia, que custou trabalho não-pago
aos trabalhadores, e que se torna propriedade dos capitalistas; em terceiro lugar, os
trabalhadores continuam possuindo sua força de trabalho e, caso encontrem
compradores, podem vendê-la novamente. Ao fim e ao cabo, este é o iceberg cuja ponta
visível é o dinheiro.
Dissemos mais acima que o narrador não consegue figurar a exploração do
trabalho no mecanismo da transformação do dinheiro em capital, isto é, o caráter
fundamental que o trabalho alheio não-pago desempenha na valorização capitalista.
Isso, contudo, não equivale a dizer que Dickens é culpado por não ter desenvolvido o
conceito de mais-valia até as últimas conseqüências. Denota apenas, antes de mais nada,
que a divisão do trabalho intelectual opera de maneira insidiosa, minando os esforços
até dos mais atilados114. Dickens, como trabalhador intelectual extremamente bem
sucedido, com fama, fortuna e ritmo de trabalho frenético, sabia dos benefícios e das
amarguras numa sociedade baseada no antagonismo social: sob tal estado de coisas,

114
“[...] quanto mais exatamente [o intelecutal] conhecer sua posição no processo produtivo, menos se
sentirá tentado a apresentar-se como intelectual puro. A inteligência que fala em nome do fascismo deve
desaparecer. A inteligência que o enfrenta, confiante em suas próprias forças miraculosas, há de
desaparecer. Porque a luta revolucionária não se trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre o
capitalismo e o proletariado”. Walter Benjamin. “O Autor como Produtor”. In: Magia e Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p.136.

113
existe de fato um mundo melhor, mas é caríssimo. Os custos humanos são enormes, até
mesmo para muitos trabalhadores intelectuais, que fazem gosto da parcela intelectual de
sua atividade, mas torcem o nariz para sua parcela trabalhador. Esse nojo mal disfarçado
acaba por danificar um dos ativos que mais prezam: seu suposto olhar de lince, sua
agudez espiritual. Assim, domesticados pelas palmadinhas bondosas e por um ou outro
torrão de açúcar ofertado pelas classes dominantes, ficam com vista acostumada, cegos
para quaisquer coisas que não sejam as idéias dominantes de sua época. Mas Dickens,
se não via a si mesmo como trabalhador, tampouco exagerava a importância do caráter
imaterial de seu trabalho: talvez se considerasse menos um homem das letras e mais um
profissional do entretenimento; isso lhe deu senso de perspectiva, ainda que pleno de
ambigüidades. Particularmente em Dombey e Filho isso foi útil para que formulasse um
narrador que mimetiza a circulação de mercadorias e que, sem querer querendo, aborda
a exploração do trabalho – cujo mascaramento, aliás, se transforma em dínamo para
produção estética. Como ocorre na passagem imediatamente anterior ao pedido de
empréstimo, quando Walter vai balbuciar as primeiras palavras explicando qual a razão
de estar ali: “But Mr Dombey, without attending to what he said, was looking
impatiently on either side of him (as if he were a pillar in his way) at some object
behind”115. Para Mr. Dombey, Walter estava apenas atrapalhando seu campo de visão e
nosso mercador queria somente identificar quem era o acompanhante, capitão Cuttle.
Para o narrador, entretanto, Walter era o assunto que não podia ser tratado; ao mesmo
tempo, era o primeiro indício da resposta que procurava. Nos detalhes de seu romance,
Dickens pesquisava algo que os críticos da economia política também estavam
pesquisando. Ocorre que, sem poder incorporar a dialética hegeliana, nem a tradição dos
economistas clássicos e a dos socialistas utópicos, Dickens acabou por realizar com
força e fraqueza uma espécie de crítica que sabe julgar e condenar o presente, mas não
entendê-lo. Deu testemunho, assim, não unicamente da elaboração espiritual que
retratava a divisão do trabalho, mas também da divisão do trabalho da qual a própria

115
Mas Mr. Dombey, sem fazer caso do que o jovem dizia, olhava impacientemente à sua direita e à sua
esquerda para algum objeto situado mais atrás (como se Walter fosse uma coluna no seu caminho).
[DS,p.193]

114
elaboração espiritual era vítima. Contudo, se os velhos e novos críticos idealistas se
contentavam, como ainda se contentam, com o borboletear de uma lógica toda
esvoaçante, para Dickens, ainda que sem ser um materialista, os tempos já eram
definitivamente outros: a lógica do espírito passava a ser o dinheiro.

115
5. FEIOS, SUJOS E MALVADOS

Nos escritos de Dickens o trabalho, a atividade laborativa do ser humano, surge


de maneira ambivalente: de um lado, com nota positiva, numa oposição ao ócio dos
vagabundos e malandros; de outro, com nota negativa, quando oposto ao divertimento e
fruição. Evidentemente estão presentes aqui juízos morais, em seu tanto de abstrato e
descolados das condições materiais em que o trabalho se efetiva. A bem da verdade, a
rotina mecanizada, destituída de sentido, que transforma seres humanos em autômatos
cumpridores de tarefas: isso surge na obra dickensiana como clara decorrência da
Revolução Industrial. Entretanto, se reconhece o estatuto escorchante imposto
cotidianamente pelo modo de produção capitalista, Dickens coloca como contraposição
a necessidade da fantasia, de uma certa esfera lúdica que iria mitigar essa situação
calamitosa – neste ponto, basta lembrarmos de Tempos Difíceis (1854) e a maneira
como o utilitarismo e o sistema educacional são criticados por embotarem aquilo que
seria o livre curso da imaginação. Por outro lado, do mesmo modo que a pergunta de
Paul Dombey sobre o dinheiro serve como gatilho para conclusões mais lúcidas,
também essa aparente dicotomia simplificadora em relação ao trabalho acaba por
tangenciar o incandescente da exploração, exploração esta que, como sabemos, tem de
ser continuamente encoberta e disfarçada. Em outros termos, os apelos em prol dos
livres andamentos da fantasia – regressivos se tomados como objetivo final – são
certamente um ponto avançado na denúncia da vida transformada em mercadoria,
quando os saltos do imaginário e do devaneio são permitidos tão-somente nos estritos
limites dos giros e piruetas no trapézio do lucro. Assim, no momento em que Dickens
defende os poderes da imaginação, acaba por denunciar o aprisionamento ao qual a
fantasia humana está submetida. Não identifica todos os elos formadores desse cárcere,
mas mostra que as correntes existem. Nesse sentido, os méritos de sua obra nesse

116
capítulo, ainda que insuficientes, não são poucos – principalmente se lembrarmos o
enorme peso ideológico que o elogio ao trabalho possuía dentro da moralidade
vitoriana, uma pregação profundamente enraizada no puritanismo das classes médias
ascendentes. Em meados do século dezenove, no tempo da escrita de Dombey e Filho, a
glorificação do trabalho havia adquirido ares de tábuas das leis, de mandamento
inquestionável. Matthew Arnold, por exemplo, gostava de citar o seguinte preceito:
“Trabalhar. Não nisto ou naquilo – mas, Trabalhar”. Ou ainda o eminente Cardeal
Newman: “Todos que respiram, ricos e pobres, educados e ignorantes, têm uma missão,
têm um trabalho”116.
O trabalho sem qualificadores, flanando num mundo ideal, no modo referido por
Arnold, ou como missão engrandecedora, de conciliação das diferenças, na asserção de
Newman: este realmente parece ser o paradisíaco universo da labuta purificada – ao
menos na visão de alguém que vivia às custas de um bom cargo na inspetoria
educacional inglesa, no caso de Arnold, ou de alguém que desfrutava as delícias dos
privilégios eclesiais, no caso de Newman. Mas esses são apenas dois exemplos na
matilha de ideólogos vitorianos que preconizavam o trabalho – dos outros – como
solução de todos os males. Para os que sentavam nas almofadas da injustiça e não
tinham de respirar o ar das minas, adoecer nos teares ou esgotar-se como serviçais,
realmente nada era mais fascinante que o trabalho: podiam permanecer horas a fio
contemplando-o. Por seu turno, com a costumeira ambigüidade que o caracteriza,
Dickens reconhece que esse trabalho dignifica o homem – mas enriquece o patrão.
Assim, existe uma certa obsessão, na sua obra como um todo, por apresentar os modos
pelos quais seus personagens ganham suas vidas, de que maneira retiram seu sustento,
num verdadeiro compêndio e catálogo de profissões, ocupações e afazeres. Desse modo,
a criação de valores, a geração da riqueza, bem como o metabolismo entre seres
humanos e natureza, passam todos a ser observados sob um ponto de vista material, em
que a divisão social do trabalho adquire contornos determinantes – num contraste

116
Estas citações aparecem em Houghton, W. E. The Victorian Frame of Mind 1830-1870. New Haven:
Yale University Press, 1957, pp. 243, 244.

117
marcante em relação às sensaborias inefáveis dos apologistas do suor esforçado, desde
que de outrem. Em alguma parte de As Aventuras de Tom Sawyer (1876), o norte-
americano Mark Twain escreve que o trabalho seria tudo aquilo que uma pessoa é
obrigada a fazer e o passatempo seria tudo aquilo que uma pessoa não é obrigada a
fazer. Até certo ponto isto poderia ser aplicado à cisão que Dickens estabelece entre
atividade produtiva e divertimento, entre tarefas e fruições. Ocorre que para o escritor
inglês a dicotomia apresenta impurezas, os limites são quebrados e a dinâmica que surge
é a de uma realidade avassaladora: mais e mais todo o tempo livre, qualquer
passatempo, tudo vai sendo tomado pela esfera do trabalho. A maioria dos personagens
passa a ter uma profissão, ou seja, são vendedores de força de trabalho em tempo
integral, na totalidade de suas vidas117.

117
Aqui talvez não seja descabida uma pequena digressão. Dentre outros pontos em comum, Dickens e
Kafka compartilham certa preferência pelos ambientes urbanos, em que os personagens interagem
sobretudo como executores de determinadas tarefas, definidos por um ofício, num mundo que exige antes
de mais nada relações profissionais – talvez, em certa medida, também Dostoiévski pudesse ser agrupado
nessa confraria dos escritores que se dedicaram à reificação em meio ao progresso. De todo modo,
especificamente no que concerne a Kafka, um comentador afirma: “[...] as pessoas que Kafka faz
entrarem em cena são arrancadas da plenitude da existência humana. Muitas, de fato, não são outra coisa
senão suas funções: um homem é mensageiro e nada mais que isso; uma mulher é uma “boa relação” e
nada mais que isso. Mas este “nada mais que isso” não é uma invenção kafkiana: tem seu modelo na
realidade moderna, na qual ele “é” sua profissão, na qual a divisão do trabalho o tornou mero papel
especial. Ao passo que os romances realistas médios fizeram pouco uso deste fato e muitas vezes se
deleitaram em apresentar o enredo de tal forma que as funções profissionais das pessoas ficavam
invisíveis – portanto, ao passo que falseavam a realidade através da descrição “dos homens plenos e
completos”, Kafka é, com a sua introdução de marionetes, o realista mais verdadeiro. Hoje em dia, essa
sua funcionalização de figuras romanescas tem um sentido francamente profético, pois agora o
desenvolvimento atingiu aquele clímax horripilante em que quem não tem função definida não é mais
digno de ter realidade – sendo, portanto, considerado nulo e aniquilável”. Anders, G. Kafka: pró e contra.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, pp.50-51. Essa funcionalização levada a extremos por Kafka, já
aparece como semente em Dickens, pois para este as funções profissionais, além de não ficarem
invisíveis, desempenham papel essencial no método de composição da própria obra. Algo, aliás,
percebido pelo próprio Kafka, que registra em seu diário: “8 de outubro de 1917. [...] David Copperfield,
de Dickens. O Foguista é uma simples imitação de Dickens, e mais ainda o romance projetado [O
Foguista é o primeiro capítulo do romance conhecido por América, deixado inacabado por Kafka e
publicado postumamente em 1927]. História do baú, o rapaz que alegra e encanta, suas tarefas servis, a
amada na casa de campo, as casas sujas etc., mas sobretudo o método. Minha intenção era, como agora
vejo, escrever um romance no estilo de Dickens, mas realçado pelas luzes mais fortes que a época me
proporciona, e as mais opacas que emanariam de mim mesmo. A opulência de Dickens e sua poderosa e
negligente prodigalidade; mas em decorrência disso, algumas passagens terrivelmente insípidas, em que
ele monotamente retrabalha sobre efeitos já conseguidos. Transmite uma impressão de balbúrdia, porque
o todo não faz sentido, uma barbárie que eu, contudo, graças às minhas fraquezas, e à prudência de minha
condição de epígono, creio ter sido capaz de evitar. Existe uma crueldade subjacente ao sentimentalismo
transbordante de seu estilo. Essas caracterizações grosseiras, que pendem artificialmente de cada
personagem e sem as quais Dickens não seria capaz de continuar com seu relato nem mais um momento”.
Kafka, F. Diários. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, sd, p.429. Cabe observar o quanto Kafka é

118
Particularmente em Casa Soturna (1853) é interessante notar que um vasto
universo de profissões aparece retratado, quase que numa crônica das várias subdivisões
na usurpação levada a efeito pelo capital: surgem políticos, advogados, comerciantes e
militares, mas também oleiros e varredores de rua – pintando em cores cruas os
contornos da divisão social do trabalho. Talvez não seja coincidência que ocupações as
mais penosas possíveis mereçam especial atenção nesse romance, considerando que o
clássico de Henry Mayhew, London Labour and the London Poor, foi publicado em
1851, quando Dickens começou a escrever Casa Soturna118. Ambas obras fornecem

sensível à importância dada à precária caracterização dos personagens para a continuidade e


prosseguimento da obra dickensiana. Também vale notar o destaque sobre aquelas passagens em que
Dickens parece cansar a paciência do leitor, repisando o que já foi revelado. Mas não seria a
caracterização dos personagens precária porque a realidade estaria tornando as pessoas, de certo modo,
precárias? E não seria a visita constante aos mesmos pontos um recurso para deslindar uma realidade
social dominada pela compartimentação e divisão do trabalho? Provavelmente o encanto e a crítica de
Kafka em relação a Dickens deixem transparecer algo que o próprio Kafka assinala, nomeando a si
mesmo como epígono: ambos estão registrando os novos ritmos do modo de produção capitalista, em que
distorções são intensificadas e contradições, exacerbadas – pois o capitalismo pode ser monotonamente
cruel, principalmente sob suas consecutivas camadas de ideologia sentimentalizadora, geração após
geração. Por fim, e para não tornar essa digressão ela mesma monótona, vale a pena citar uma passagem
em que Adorno ilumina certos aspectos da obra de Kafka. Utiliza, para isso, argumentos numa chave
semelhante àquela do comentário de Kafka sobre Dickens: “[...] Não que não haja o que criticar na obra
de Kafka. Entre as falhas evidentes de seus grandes romances, a mais sensível é a da monotonia. A
apresentação do ambíguo, do incerto e do inacessível é repetida infinitamente, muitas vezes à custa da
vivacidade que se busca a cada página. A má infinitude do representado transmite-se à própria obra. É
possível que nessa deficiência se manifeste uma falha de conteúdo, uma preponderância da idéia abstrata,
que constitui o próprio mito que Kafka combate”. Adorno, T. Prismas. São Paulo: Editora Ática, 1998,
p.250. Os eufóricos saltitantes de sempre gostam de apontar, sem ler, uma suposta monótona sisudez de
Adorno. Talvez estejam certos. Talvez, quem sabe, as tentativas de Dickens, de Kafka e de Adorno sejam
todas elas projetos gorados, incapazes de lidar com o lado alegre da vida. Kafka assinala certa monotonia
em Dickens, Adorno aponta a monotonia dos romances de Kafka: os otimistas serelepes poderiam, então,
muito bem denunciar a monotonia de Adorno. E nesse caso, já estaríamos no melhor de todos os mundos
possíveis, necessitando o capitalismo apenas de alguns ajustes aqui e ali – sem que sejam dados ouvidos
aos seus críticos mais contundentes, que dizem sempre as mesmas coisas e não atuam de maneira
construtiva para o bom andamento da ordem e do progresso... De todo modo, e para encerrar essa
digressão: vale lembrar, mais uma vez e com monotonia, que alguns comentadores apontam o caráter
eminentemente profissional de muitos personagens de Dickens. Assim, o que parecia ser uma caraterística
incipiente na primeira metade do século dezenove, ou seja, a vida definida de acordo com a profissão,
num contexto das carreiras aparentemente abertas ao mérito, isso será, mais tarde, quase que regra de
composição dos personagens de Kafka: nos princípios do século vinte ficava nítida a percepção de que a
divisão social do trabalho transforma praticamente a todos os indivíduos em vendedores da única
mercadoria que de fato possuem, sua força de trabalho. Dickens, por seu turno, descrevera a sedimentação
de algumas etapas, bem como o nascedouro de outras, nesse processo de mercantilização da vida humana.
118
Henry Mayhew trabalhava como jornalista e em 1849 começou a publicar seus ensaios sobre a vida
dos pobres, primeiro sob o título geral de “Labour and the Poor” no jornal The Morning Chronicle, e
depois semanalmente em partes autônomas. Uma coletânea foi organizada em forma de livro em 1851 e a
obra completa lançada em quatro volumes entre 1861 e 1862. O quarto volume, dedicado inteiramente
aos que viviam fora-da-lei, foi ampliado e republicado em 1864.

119
relatos sobre as terríveis condições em que, nos meados do século dezenove, a
população pobre lutava para sobreviver e, não raro, perdia a batalha Nesse contexto de
extrema desigualdade, os personagens dickensianos que recebem as mais severas
críticas são aqueles que não trabalham, os diletantes como Henry Gowan, de Pequena
Dorrit (1857), os aristocratas egoístas como Sir Mulberry Hawk, de Nicholas Nickleby
(1839), ou os parasitas como Harold Skimpole, esse no próprio Casa Soturna. Por outro
lado, vale lembrar parte de um discurso feito por Dickens em Birmingham em 1853:
para nosso autor, seria importante incentivar “a fusão de diferentes classes, sem
confusão”, e apoiar “um melhor entendimento mútuo entre aqueles cujos interesses são
idênticos, que tanto dependem entre si. [...]. No mundo, grande parte da amargura entre
nós surge da falta de compreensão recíproca de uns para com outros”119. Difícil
imaginar como seria essa fusão sem confusão, ou ainda engolir a igualdade de interesses
entre capitalistas e trabalhadores. De todo modo, rompendo intenções autorais, a
temperatura da luta de classes abre caminho, calcinando a forma literária. No seu rastro
de fogo ficam impressas as marcas de uma realidade que não cala. Nesse sentido,
podemos tomar como exemplo a profusão de empregados e serviçais domésticos120 que
desempenham papéis relevantes nos entrechos dickensianos. É certo que confusões são
evitadas, fusões promovidas, mas deixando atrás de si um inventário de iniqüidades e
desaforos. Em suma, a lepra dos subjugados estraga a paisagem no éden dos
mandachuvas.
Existe no narrador de Dombey e Filho uma tensão para conciliar as contradições
entre o que deve ser relatado – do ponto de vista do apaziguamento dos conflitos que
surgem – e o que tem de ser relatado – do ponto de vista da matéria social que se impõe.
Assim, são abertas como que clareiras, enormes espaços em que são criadas
simultaneamente duas frentes: no seu máximo, reformistas, com energia que até certo
ponto clama por subversões e desobediências em relação à ordem vigente; no seu

119
Fielding, K. J. (ed). The Speeches of Charles Dickens. Oxford: The Clarendon Press, 1960, p.167.
120
Para uma ampla abordagem sobre a assim chamada classe serviçal, consultar Horn, P. The Rise and
Fall of the Victorian Servant. Gloucestershire: Sutton Publishing, 1997. Ver também Engels, F. Condition
of the Working Class in England. In: Marx, K. and Engels, F. Collected Works. v. 4. New York:
International Publishers, 1975.

120
mínimo, conservadoras, com o uso da família como elemento para aplacar perigosas
questões de classe. Cabe lembrar que, no período vitoriano, os trabalhadores
assalariados eram vistos, grosso modo, como uma massa faminta, incontrolável, e a
repugnância que causavam era apenas tolerada em virtude do reconhecimento de que,
afinal de contas, alguém precisava fazer o trabalho sujo. Essa forma de encarar a
existência das classes pobres era uma herança de um discurso ideológico que tinha suas
origens ainda no século dezoito, como bem demonstra a seguinte passagem do
reverendo Townsend, citada por Marx: “Parece ser uma lei da Natureza que os pobres
sejam até certo ponto imprevidentes” (isto é, tão imprevidentes quanto vir ao mundo
sem uma colher de ouro na boca), “que sempre há alguns para a realização das tarefas
mais servis, mais sórdidas e mais ignóbeis da comunidade. O fundo de felicidade
humana é muito incrementado com isso, enquanto os mais delicados estão livres do
trabalho penoso e podem seguir, sem serem perturbados, uma vocação mais alta etc. [...]
a Lei dos Pobres tem a tendência de destruir a harmonia e a beleza, a simetria e a ordem
desse sistema, que Deus e a Natureza estabeleceram no mundo”121. Tal sistema
harmonioso podia ser seriamente posto sob ameaça caso seu segredo de produção fosse
revelado, por exemplo, quando qualquer avanço nas leis, por mísero que fosse,
arriscasse salientar a natural selvageria do mercado de trabalho – além de, obviamente,
prejudicar os lucros. Os famintos e excluídos tinham de vender sua força de trabalho
sem quaisquer constrangimentos reguladores para que, assim, a felicidade humana fosse
aprimorada. Pois bem, o narrador de Dombey e Filho, sempre às voltas com suas
denúncias dissimuladoras, reverte o retrato dos trabalhadores assalariados: não
aparecem como pobres esfomeados, mas sim como gorduchinhos, calorosos, amorosos,
disponíveis para o bom desempenho de suas tarefas. Desse modo, quando a família
Toodle aparece em cena, pois Polly Toodle será a ama-de-leite de Paul, a meiguice do
lar pobre mas decentíssimo – e obediente – surge com a fornida humildade dos que são
a iguaria do mercado:

121
Townsend, J. A Dissertation on the Poor Laws. By a Wellwisher of Mankind (The Rev. Mr. J.
Townsend), 1786. London: Lawrence & Wishart, 1977, p.605. Citado em Marx, K. op. cit., v. I, t. II, p.
211. O comentário entre parênteses é do próprio Marx.

121
Miss Tox escorted a plump rosy-cheeked wholesome apple-faced
young woman [Polly Toodle], with an infant in her arms; a younger
woman not so plump, but apple-faced also, who led a plump and
apple-faced child in each hand; another plump and also apple-faced
boy who walked by himself; and finally, a plump and apple-faced man
[Toodle], who carried in his arms another plump and apple-faced boy,
whom he stood down on the floor, and admonished, in a husky
whisper, to ‘kitch hold of his brother Johnny’122.

Nada ameaçadora, a comovente família surge apetitosamente como lauta


refeição, pronta para ser digerida, em repasto saudável, uma vez que
preponderantemente constituído de maçãs. Tanto no mercado de frutas quanto no
mercado de trabalho, os capitalistas gostam de bem alimentar-se. De mais a mais, o
trabalhador das ferrovias Toodle e a candidata a ama-de-leite Polly Toodle são vistos
como parte extremamente utilizável da sociedade: estão juntos num casamento não
somente feliz – como ficamos sabendo conforme a trama se desenvolve – mas também
extraordinariamente prolífero. Se bem observada, a prole dos Toodle contrasta em
número e vigor com os magros resultados reprodutivos de Mr. Dombey. Forças de
trabalho potencialmente comestíveis, os Toodle estão apenas esperando seu momento
para fornecer energia ao capital. Não por acaso, Miss Tox parece fazer desfilar a família

122
Miss Tox acompanhava uma jovem mulher rechonchuda de faces rosadas, com rosto saudável
semelhante a uma maçã [Polly Toodle], que trazia um bebê de colo nos seus braços; uma mulher mais
jovem, menos gorda, mas de rosto igualmente redondo como uma maçã, que trazia em cada mão uma
criança rechonchuda, de rosto como uma maçã; um outro rapazinho rechonchudo, também de face de
maçã, que se juntava ao grupo; e, por fim, um homem rechonchudo, de rosto redondo como uma maçã
[Toodle], que trazia nos braços outro rapazinho, robusto e de face de maçã, a quem pôs de pé no chão,
exortando-o, num murmúrio rouco, a segurar-se ao seu irmão Johnny. [DS, pp. 63-64]

122
não como se Polly Toodle fosse a candidata à função de ama-de-leite, mas sim como se
todos estivessem ali para serem servidos a Mr. Dombey. O quadro geral da família
parece exalar saúde, contrariamente ao modo como comumente eram registradas na
ficção as classes trabalhadoras – e também contrariamente às condições reais de
existência. Como Polly Toodle irá amamentar Paul, parece ser necessário que riscos de
contaminação fiquem afastados, pois já basta o inevitável contato entre as classes. A
medida profilática do narrador dickensiano não é exagerada: Polly Toodle parece ser a
mãe perfeita, com saúde perfeita, que rapidamente irá se afeiçoar tanto a Paul quanto a
Florence e servir de veículo para a mensagem dickensiana de convívio mutuamente
satisfatório entre as classes. Toodle será retratado como o bom pai, honesto, trabalhador
e sempre disposto a acatar toda e qualquer decisão tomada por sua esposa, em flagrante
contraposição ao patriarcalismo de Mr. Dombey. Além disso, a ilibada moral da família
Toodle é um componente a mais na construção operada pelo narrador: são como que o
grupo com reserva moral – juntamente com o outro núcleo pobre, representado por Sol
Gills, Walter e o Capitão Cuttle – que saberá acolher e dar apoio a Florence, para que
esta efetivamente promova o resgate redentor de Mr. Dombey. Desse modo, a utilização
da ama-de-leite e do trabalhador das ferrovias faz menção aos antagonismos de classes,
querendo neutralizá-los, criando uma possível comunidade para além das barreiras
econômicas e regida por valores mais puros – mas, enquanto tenta essa neutralização,
revela os sórdidos descompassos presentes em tais antagonismos.
Sabemos que o dinheiro desempenha papel central na circulação das
mercadorias, que os capitalistas também são escangalhados enquanto seu capital se
valoriza e que a burguesia assalariada faz todos os esforços para não ser arrebentada
durante esse processo de valorização. Para continuar demonstrando tal chacina, mas sob
uma outra faceta, o narrador de Dombey e Filho não deixa de fora os pobres, a parte
mais escorraçada em todo esse mecanismo de circulação frenética de mercadorias.
Realiza outra volta no parafuso e combate a invisibilidade da exploração demonstrando
a interdependência entre as classes na geração do valor, na produção da riqueza social.
Assim, a circulação de mercadorias e pessoas – pessoas já transformadas em

123
mercadorias? – acontece entre as várias classes e nas várias categorias sociais. Esse
contato é inevitável e, pior que isso, mostra os desarranjos e as desarmonias de um
sistema que parece não dar muita importância para a assim chamada felicidade humana.
Por outro lado, uma vez reconhecida a impossibilidade de que tanto a circulação social
quanto a econômica sejam evitadas, o romance faz um levantamento da periculosidade
desses contatos. Uma das situações em que essa proximidade perniciosa acontece é a
cena em que Florence, ainda uma criança, perde-se de Polly na multidão e é brevemente
raptada por Good Mrs. Brown: tem suas roupas trocadas e perambula durante certo
tempo pelas ruas e vielas de Londres como uma pequena maltrapilha. Isso acaba por dar
materialidade aos temores anteriormente aventados por Mr. Dombey, no momento em
que contrata Polly: a interação entre as classes não era boa coisa, era realmente um
contratempo. Evidentemente que Mr. Dombey não temia por Florence, mas sim por
Paul. A desconfiança no que se refere à contaminação proveniente das classes
trabalhadoras, principalmente na inoportuna proximidade entre Paul e sua ama-de-leite,
vai assim expressa: “a great temptation was being placed in this woman’s way. Her
infant was a boy too. Now, would it be possible for her to change them?”123. Polly
poderia ficar tentada a oferecer uma vida melhor a pelo menos um de seus filhos com
carinha de maçã, ao passo que o herdeiro Paul receberia uma existência miserável,
destino e paga dos pobres. Assim, quando posteriormente Florence vagueia pela ruas de
Londres, o medo hipotético ganha contornos palpáveis, trazendo a advertência: a nova
ordem social colocava num mesmo caldeirão ingredientes potencialmente explosivos, e
a receita de harmonia e bem viver das classes dominantes podia facilmente desandar124.
Além de ser algo de extremo mau gosto, a existência da ralé pode ser um tanto
quanto ameaçadora. Mesmo assim, em Dombey e Filho, o narrador procura salientar

123
uma grande tentação era colocada no caminho dessa mulher. Seu bebê era um menino também. Agora,
seria possível para ela trocá-los ? [DS, p.71]
124
Contrariamente ao discurso ideológico que pregava os vínculos mútuos e os padrões de coexistência
pacífica entre as classes e que determinaria uma sociedade inglesa organicamente hierarquizada, a nova
dinâmica urbana de Londres colocava cada vez mais em cheque essa possibilidade de convívio sereno e
reconciliado. Se o turbilhão da cidade ameaçava devorar as pessoas, assim também o contato entre as
classes, nas ruas e principalmente nos lares, dava visibilidade ao canibalismo das relações econômicas.
Ver, por exemplo, Roberts, D. Paternalism in Early Victorian England. Croom Helm Social History
Series. London: Croom Helm, 1979.

124
que essa convivência forçada com a escória faz parte, infelizmente, das regras do jogo.
Todo e qualquer isolamento das camadas abastadas mostra-se fadado ao fracasso. Nem
mesmo o santificado lar pode escapar a essa lógica de circulação entre as classes125. O
narrador assinala tal lógica e avança além: mostra os endinheirados como dependentes
dos molambentos. Assim, aqueles que têm mais jantares que apetite dependem daqueles
que têm mais apetite que jantares126. Mesmo com todo seu poder e riqueza, Mr.
Dombey estará sempre necessitando da intervenção e da ajuda dos esfarrapados. Mas,
enquanto o romance define uma variada gama de relacionamentos pessoais e
profissionais como primordiais e inescapáveis, também não deixa de sugerir como
arriscadas essas formas de circulação: principalmente se tomadas as famílias Dombey e
Toodle como foco de atenção. Contudo, novamente advém disso um aspecto ainda mais
revelador – em consonância, aliás, com a demonstração do quanto a real natureza do
dinheiro depende da exploração do trabalho alheio: se a classe trabalhadora é
comumente vista como sujeita à classe capitalista, esta também tem de reconhecer o
quanto precisa daquela. Evidentemente que este reconhecimento passa pelo chocante,
uma certa contravenção das idéias confortavelmente aceitas. Para deixar mais claro: até
mesmo do leite das classes trabalhadoras o capital necessita para dar continuidade a seu
processo de valorização. Bom seria se o néctar dos céus alimentasse o herdeiro órfão,
mas para humilhação e desgosto de Mr. Dombey, a vida social baseada no roubo da
vida alheia tem outros desígnios: “That the life and progress on which he built such
hopes, should be endangered in the outset by so mean a want; that Dombey and Son
should be tottering for a nurse, was a sore humiliation. And yet in his pride and
jealousy, he viewed with so much bitterness the thought of being dependent for the very

125
Considerando Dombey e Filho e Pequena Dorrit (1857) junto de dois romances de George Eliot como
Silas Marner (1861) e Daniel Deronda (1876), poderíamos ver como essas narrativas escritas ao longo da
era do capital expressam ansiedades em relação à perda de dinheiro e de propriedade, num contexto de
marcado conflito social. Não por acaso, a esfera doméstica e privada surgirá como tentativa de santuário
protegido do comércio – mas que, em vez disso, será um dos santuários de culto a esse comércio. Para
essa discussão, ver Nunokawa, J. The Afterlife of Property: Domestic Security and the Victorian Novel.
Princeton: Princeton University Press, 1994, pp. 40-76.
126
“Chamfort, no século XVIII, deu-nos a célebre definição da sociedade, que se compõe de duas classes,
dizia ele: uma que tem mais apetite que jantares, outra que tem mais jantares que apetite”. Machado de
Assis. A Semana. In: Obra Completa. v. III. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997, p. 645.

125
first step towards the accomplishment of his soul’s desire, on a hired serving-woman
[...]”127.
Esse contato pestilencial com os trabalhadores arrisca destruir as façanhas de
pureza que o capital arquiteta para si. Ocorre que as pegadas do lodo dos subalternos
deixam caminhos por toda parte e não há como ser de outra maneira: sua força de
trabalho é sua única mercadoria. Dizendo a mesma coisa noutros termos, é necessário
que os produtos sejam trazidos ao mercado, é condição basilar que sejam postos em
circulação, para que assim se realizem como mercadoria. Com efeito, tanto Toodle
quanto Polly são mercadorias cuja produção acontece simultaneamente a sua circulação,
pois o trabalhador das ferrovias e a ama-de-leite se transformam em mercadorias no
mesmo instante em que circulam, pois seu ambiente de trabalho já é seu próprio
mercado. Para ressaltar: quando Toodle e Polly exercem suas tarefas, não o fazem em
fábricas ou bairros miseráveis que atuem como bolsões de segurança e isolamento, onde
as mercadorias percorrem seu tradicional trajeto na produção e em toda uma série de
serviços auxiliares, para finalmente chegarem ao mercado depuradas, escondendo todo
o trabalho social efetivado até aquele momento. Ou seja, a serviçal e o trabalhador das
ferrovias representam todo um imenso contingente de assalariados cujo ponto de
produção é também seu mercado. Desse modo, o narrador torna visível a esfera da
produção: uma dimensão normalmente vista como zona proibida, tabu dos tabus, área a
ser mantida longe das preocupações da elaboração espiritual – elaboração esta, como
sabemos, normalmente submissa, obseqüente ao caráter totêmico do capitalismo. Dito
isso, vale sublinhar: o que a duras penas tem de ser reprimido aflora, pois a formulação
do disfarce traz em si pistas daquilo que quer ocultar. Assim, quando Mr. Dombey
utiliza os serviços de Polly, fica claro que o corpo dela nada mais é que a fábrica em
escala reduzida, a serviçal produtora de leite para o herdeiro, ao mesmo tempo

127
Que a existência e o desenvolvimento daquele ser, em que fundara grandes esperanças, fossem desde
logo postos em perigo por uma tão vulgar necessidade; que a Dombey e Filho saísse à procura de uma
ama, constituia um humilhação cruel. E, no seu orgulho e no seu ciúme, encarava com amargura a idéia
de depender – desde o primeiro passo que conduzia à realização do desejo de toda sua alma – de uma
serviçal contratada. [DS, p.67]

126
vendedora e mercadoria – na prostituição imposta pelo mercado. Por todos os modos
Mr. Dombey tenta neutralizar quaisquer influências perturbadoras dessa mercadoria
torpe, todas advindas da origem proletária: rebatiza Polly, fazendo que em sua casa
receba o nome de “Richards”; deixa claro que não deseja laços de afeto entre ela e Paul;
enfatiza que tudo deve ser reduzido a uma questão de salários e remuneração. Insiste,
dessa maneira, numa linguagem do mercado, idealmente querendo isolar qualquer traço
humano na transação. Assim, com esse gesto, mostra a substância putrefata não do
contato entre as classes, mas da própria natureza do mercado. Que alguém precise
vender seu leite, tendo de mudar para a casa do patrão, e tendo de cortar vínculos com
os próprios filhos: esta pode ser uma outra resposta à pergunta de Paul sobre o que seria,
afinal, o dinheiro.
Do lar ao país, deste para aquele, o narrador de Dombey e Filho migra
constantemente seu foco. Assim, a atmosfera infecciosa gerada pela presença dos pé-
rapados adquire especial configuração nas ferrovias, local de trabalho de Toodle. Sobre
os trilhos, a pústula social se esparrama desavergonhadamente à medida que as
distâncias e os limites entre as classes se estreitam. Por meio das ferrovias, o mundo das
máquinas fica mais próximo, acelerando a perda das ilusões burguesas em seu atrito
com as novas forças produtivas. Acirrando esse processo, são jogados no mesmo
turbilhão tanto os passageiros da alta burguesia e das camadas médias quanto os das
classes trabalhadoras, num convívio de comboio, compartilhando não apenas uma
viagem mecânica mas sobretudo histórica, de sinal dos tempos. Vale lembrar que, para a
burguesia inglesa do século dezenove, uma autêntica experiência acerca do que
acontecia nas grandes indústrias de Manchester e Sheffield era algo pouco comum e até
mesmo inusitado. O conhecimento dessa realidade se dava de forma indireta, seja por
exibições e feiras industriais, que procuravam mostrar os avanços e as curiosidades
tecnológicas, seja pela ficção de caráter humanitário e que abordava as questões
suscitadas pelos novos tempos da economia. Nesse sentido, as ferrovias surgem como
experiência transformadora, elas mesmas como resultado do processo industrial nos
meios de transporte, e dando ao espírito burguês os solavancos e chacoalhões que

127
transformavam seu próprio corpo em objeto de produção128. Forçosamente os coches e
carruagens aristocráticos cediam espaço a um meio de transporte mais igualitário em
sua disposição geral. Por mais diversos que fossem os badulaques e penduricalhos que
dessem conforto e feição aprazível aos vagões de primeira classe, a horda dos
passageiros desclassificados seguia grudada nos demais vagões, como uma sarna
indesejável e que, no entanto, era arrastada pela mesma força motriz. Desse modo,
existia um certo choque dos descompassos, ilustrativo de quão artificial é a manutenção
de certas relações sociais de produção quando já se modificaram as forças produtivas.
Mas por que o privilégio não pode ser eternizado, se o progresso pode trazer ainda
melhores acepipes para incrementar tal privilégio? Por outro lado, por que um regime
concorrencial, de salve-se quem puder, tem de ser delicioso, quando garante viagens
mais rápidas e confortáveis, mas ao mesmo tempo indigesto, quando mal cheirosos
concorrentes estão logo ali, no próximo vagão?
“Todos os bons burgueses nos dizem que a concorrência, o monopólio etc., em
princípio, isto é, tomados como pensamentos abstratos, são os únicos fundamentos da
vida, mas que deixam muito a desejar na prática. Todos eles querem a concorrência sem
as conseqüências funestas da concorrência. Todos eles querem o impossível, isto é, as
condições da vida burguesa sem as conseqüências necessárias dessas condições. Todos
eles são incapazes de compreender que a forma burguesa da produção é uma forma
histórica e transitória, exatamente como o era a forma feudal. Este erro vem de que, para
eles, o homem-burguês é a única base possível de toda a sociedade, de que não
imaginam um estado de sociedade em que o homem tivesse deixado de ser burguês”129.
Para toda necessidade de um Mr. Dombey sempre teimam em aparecer milhares de
Toodles – que cumprem suas tarefas, mas não somem, continuam a existir, atrapalhando
o tráfego da livre iniciativa. Tanto melhor se toda desagradável transação puder ser

128
Ver Schivelbusch, W. The Railway Journey: Trains and Travel in the Nineteenth Century. New York:
Urizen, 1979. Também Robbins, M. The Railway Age. Manchester: Manchester University Press, 1998.
Este processo, de transformação dos passageiros em material de produção necessário para que o consumo
das ferrovias se efetive, também pode ser visto na viagem de Mr. Dombey.
129
Marx, K. Carta a Pavel Annenkov, 28 de dezembro de 1846. In: Obras Escolhidas de Marx e Engels.
t.I. Lisboa: Edições Avante, 1982, p.552.

128
resolvida em termos financeiros, simples compra e venda de equivalentes no mercado.
Entretanto, quanto mais vigorosos são os esforços para que a base monetária inicie e
encerre a conversa, mais o caldo entorna, mais os trabalhadores assalariados escapam ao
figurino de simples mercadoria. Para especificar: pelo viés do sentimentalismo, o
narrador de Dombey e Filho executa uma inversão, colocando em relevo a existência
dos subalternos – já domesticados – como contaminação benéfica a um sistema
corrompido. Se tal sistema nega uma vida legítima aos explorados, estes fazem a
negação desta negação: mostram o sistema como destituído de vida, reanimando-o,
tentando remover a carcaça imposta pelo regime concorrencial. Não por acaso, no
encontro na estação de trem, Mr. Dombey fica enfurecido quando percebe que Toodle
tinha a ousadia de usar um sinal de luto pela morte do pequeno Paul, num gesto de
solidariedade ultrajante, desafiadora da hieraquia social: “He had seen upon the man’s
rough cap a piece of new crape, and he had assured himself, from his manner and his
answers, that he wore it for his son”130. No mundo de Mr. Dombey, paradigma da
realidade da alta burguesia, até mesmo o pesar dos pobres não tem direito à existência,
ainda mais quando infringe a estrita divisão social dos que, como Mr. Dombey, podem
ter uma subjetividade toda sofredora e dos que, como Toodle, devem ser apenas força
de trabalho.
Continuamente os miseráveis humanizam as finanças, quebram as rígidas divisas
dos relacionamentos em moldes financeiros. Isso faz parte da dupla estratégia do
narrador: de um lado, desce o sarrafo no modo de produção sem questionar suas bases
fundamentais; de outro, amordaça os impulsos mais perigosos dos trabalhadores
assalariados, ressaltando acima de tudo o nobre coração que possuem. Desse modo,
assim como cuidou de Paul, ao final do romance Polly irá cuidar de Mr. Dombey, numa
exemplar e fiel submissão sem fins lucrativos, que não leva em contabilidade quaisquer
benefícios e recompensas pecuniárias. Um dos bastiões morais do romance, Polly
demonstra uma capacidade de compaixão que não está presente no círculo dos Dombey,

130
Ele tinha visto, no rústico gorro do homem, um pedaço de crepe novo, e compreendera – pelas suas
maneiras e por suas respostas – que o usava por seu filho. [DS, p. 353]

129
logicamente com a notória exceção de Florence. Quando leva a esposa para tomar conta
do combalido Mr. Dombey, Toodle diz: “To them which is in adversity [...] your face is
a cord’l. So let’s have another kiss on it, my dear. You wish no better than to do a right
act, I know; and my views [sic] is, that it’s right and dutiful to do this”131. Pelo veio
melodramático, o narrador de Dombey e Filho explora as complexidades do
relacionamento entre patrões e empregados na Inglaterra vitoriana, considerando as
tensões causadas pelas influências conflitantes do paternalismo e do mercado de
trabalho assalariado. Por um lado, o vínculo da serviçal parece remeter a algo mais
próximo de certa fidelidade canina, como se Polly pertencesse de fato à família Dombey
e lhes devesse vassalagem; por outro lado, os novos tempos têm como premissa o
contrato de trabalho, teoricamente trato equânime, iguais negociando com iguais132.
Mas desde o momento de sua contratação, fica demonstrado que as obrigações de Polly
excedem as simples cláusulas do contrato financeiro. O direito – pela norma burguesa –
de que a serviçal tenha um emprego é transformado quase que em um privilégio, a
saber, o de conviver com as classes superiores. Nada mais natural que ela esteja sempre
disponível, na saúde e na doença, para a consolação de seu amo e senhor. A
magnanimidade de Polly surge como ato de grandeza, porém já implícito nas letrinhas
miúdas do ajuste entre as partes: trabalho livre, mas sempre a serviço do capital133.
A docilidade e a candura dos momentos em que Polly corre em socorro dos
necessitados Dombey não devem obscurecer o conteúdo da sempre presente exploração
– que o narrador aborda por meio de constantes metamorfoses. Como se dissesse: “Os
pobres não são famintos, são maçãs robustas. Mas se ficarem muito próximos, causam
estragos. Todavia, se perigosos, são contudo úteis. E, quem sabe, se além de úteis, não

131
Para as pessoas que estão em desgraça, o teu rosto é um remédio cordial. Deixe-me dar outro beijo
nele, minha querida. Você quer somente fazer uma boa ação, eu sei; e na minha opinião está certo e é
justo fazer isso. [DS, p.932]
132
Para uma discussão a esse respeito, consultar Feltes, N.N. “The Greatest Plague of Life: Dickens,
Masters and Servants.” Literature and History, 8 (1978), 197-213.
133
Alguns comentadores adotam essa situação paradoxal dos serviçais, de liberdade escravizada, para
refletir sobre o poder imperial inglês, enfocando principalmente os lacaios e pajens que vinham das
colônias. Ver, por exemplo, Rajan, R. S. “ ‘The Shadow of That Expatriated Prince’: The Exorbitant
Native of Dombey and Son.” Victorian Literature and Culture, 19 (1991), 85-106 e Simpson, D. H.
“Charles Dickens and the Empire”. Library Notes (Royal Commonwealth Society, London), ns 162-163
(1970), 1-27.

130
são também nobres de coração e alma? Para que, com toda sua bondade possam, enfim,
ser lucrativamente utilizados”. Com esse mecanismo, o narrador continua investindo
numa mobilidade de perspectivas que atua em sintonia com o véu ideológico da
economia política, sem deixar entretanto de revelar as bases espúrias desse
encobrimento134. Assim, no plano manifesto, faz uma defesa – ainda que crítica – da
hegemonia; ao passo que, no plano latente, elabora uma crítica da defesa dessa
hegemonia. Claro está que esse embate traz à tona uma questão fundamental para o
debate sócio-econômico vitoriano: como seria possível manter a necessária circulação
de mercadorias, com a parte de exploração das classes laboriosas nela implícita, sem
que isso implicasse uma degradação das classes ociosas?135 Desnecessário dizer que tal
degradação já se encontrava em pleno desenvolvimento, pois o trauma da exploração
alheia é uma cicatriz dolorida que rasga de ponta a ponta os mais róseos sonhos
burgueses. De sua parte, o narrador de Dombey e Filho resolve trazer para a cena, na
contracorrente do recalque, as arestas pontiagudas de um pesadelo: a onipresença dos
pobres, pululando de toda parte. Dessa forma, a família Toodle retorna continuamente
para a arena do romance, ao menos como praga sob controle. Quando a sobrevivência
do recém-nascido Paul deve ser assegurada, Polly e sua família com rostos de maçã são
convocados. No momento em que se aproxima da morte, o agora garotinho Paul pede
por sua ex-babá Polly, que a essa altura já havia ganho os olhos da rua. Na estação de

134
Ver Robbins, B. “Dickens and Literary Servant: A Comment on N. N. Feltes’ ‘The Greatest Plague of
Life.’” Literature and History, 5.2 (1979), 216-19. Como curiosidade, vale mencionar Meinke, A. “The
Work of Dickens and the Importance of our Cultural Heritage”. Wissenschaftliche Zeitschrift der
Universität Rostock, 20.7 (1971), 493-498. Escrito no contexto da antiga república socialista da
Alemanha Oriental, esse artigo lida menos diretamente com a obra de Dickens e mais especificamente
com um levantamento das vantagens do sistema socialista em relação às crueldades dos princípios
capitalistas. Sua tese é a de que Dickens vislumbrava as distinções entre os dois sistemas e,
particularmente em Dombey e Filho, isso apareceria na exemplar, e até mesmo ideal, família Toodle, que
conseguiria resistir às influências malévolas do capitalismo. Em nossa opinião, entretanto, após um
exame mais atento do próprio texto do romance, essa tese não se sustenta: pois a idealização da família
Toodle já é uma tentativa de minar quaisquer resistências à economia política – mas, numa viravolta
típica desse narrador dickensiano, essa sabotagem acaba também por demonstrar quão apodrecidas estão
as bases desse sistema. Noutros termos, a forma imposta ao narrador é bastante sutil: a idealização das
agruras revela também as agruras da idealização; o encobrimento dos disparates escancara os disparates
do encobrimento.
135
Para uma breve discussão da forçada simbiose entre ricos e pobres, especialmente no caso dos
Dombeys e dos Toodles, ver Stone, H. “The Novel as Fairy Tale: Dickens’ Dombey and Son.” In:
Charles Dickens: New Perspectives. Ed. Wendell Stacy Johnson. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall,
1982, pp.51-82.

131
trem, já vimos que Toodle tem a audácia de se intrometer no luto de Mr. Dombey. Por
fim, quase ao término do romance, Polly reaparece para mimar a contrição do patrão
arruinado e arrependido, pois sabemos que muitos têm de carregar o piano para que
poucos possam dedilhar lamúrias136.
Isso posto, é perceptível a relevância que o narrador atribui tanto a Toodle
quanto a Polly. O modo como são idealizados cumpre a função de higienizar
componentes ameaçadores mas que, no entanto, podem ser usados proveitosamente.
Edulcorar os endemoniados trabalhadores é a manobra para tornar palatável sua simples
presença. A reversão realizada pelo narrador é notável, ainda mais se considerarmos que
as turbulências do progresso e as radicais transformações sociais criavam a atmosfera
propícia para os mais variados temores e incertezas. Dentre outras ocupações
profissionais, os trabalhadores das ferrovias e também as amas-de-leite eram vistos
como uma corja deplorável. Os primeiros, ligados aos novos monstros mecânicos que
rasgavam a Grã-Bretanha, surgiam quase que como uma epidemia social,
potencialmente venenosos para a paz e a tranqüilidade das pessoas respeitáveis.
Maquinistas, foguistas, etc. eram feras devoradoras que desmanchavam tudo o que até
então era sólido: “impetuosos, impulsivos, uns brutamontes; vistos como párias da vida
privada, pastando juntos como animais no campo, não possuindo lei moral ou senso de
vínculo social – foi assim que o número de trabalhadores das ferrovias aumentou de
acordo com o aumento da demanda, e de milhares passaram a centenas de milhares. [...]
Em seu meio havia muitas mulheres, mas poucas esposas; doenças as mais repugnantes
ocorriam amplamente. [...] Para suprir a quantidade de energia despendida no
desempenho de suas atividades, absorviam de maneira espantosa alimentos e bebidas
também em grande quantidade. Pão, carne, bacon e cerveja eram a base de sua dieta. Se

136
Para uma observação acerca dos sofrimentos de Paul, das crises de Mr. Dombey e, de modo geral, das
profundíssimas angústias impingidas à família Dombey, ver Manheim, L. F. “The Dickens Hero as
Child.” Studies in the Novel, 1.2 (1969), 189-95. Do mesmo autor, estabelecendo correlações com David
Copperfield (1850) e Casa Soturna (1853), ver “Floras and Doras: The Women in Dickens’s Novels.”
Texas Studies in Literature and Language, 7 (1965), 181-200. Nesses estudos de linhagem psicanalítica, a
família Toodle aparece apenas de maneira periférica, quando muito, pois todos sabemos que os
trabalhadores não têm vida subjetiva e, de mais a mais, para o bom prosseguimento da ordem vigente, é
fundamental que o poderoso aparato teórico da psicanálise seja reduzido ao pó da irrelevância: basta
retirar dela todo o conteúdo político e histórico, algo que seus admiradores adoram fazer.

132
ficavam febris, normalmente morriam; mas também podiam ser portadores de alguma
infecção e, como vagavam ao ar livre, espalhavam a enfermidade para aonde quer que
fossem. Sua presença se espalhava de forma pestilencial”137. Pelo tom e pela maneira
como são tratados os trabalhadores das ferrovias, fica patente a ameaça que pareciam
representar. Acresce que, na indignidade de suas vidas, parecia ser espantoso que
necessitassem de alimentação para a continuidade de suas tarefas. Tudo deveria
acontecer como se o processo social independesse da energia humana, como se os
trabalhadores não merecessem nem mesmo as ninharias para repor minimamente sua
força de trabalho.
No que se refere às amas-de-leite, sua presença também deveria gerar constante
estado de alerta para que não fizessem das classes proprietárias gato-sapato, afinal de
contas estas já eram bondosas o suficiente para ofertar trabalho para aquelas mulheres –
pois, como sabemos, dada uma única oportunidade, a gentalha costuma se lambuzar no
mel do bem viver. Assim como os trabalhadores das ferrovias, as amas-de-leite talvez
fossem umas aproveitadoras, tentando tirar vantagens de uma nova dinâmica social:
“Certos problemas de lactação ocorrem entre as mulheres escolhidas para amamentar,
mulheres vindas das classes pobres e admitidas nas famílias mais ricas. É uma peculiar
característica de muitos dos pobres de Londres – particularmente entre os serviçais
domésticos, quando obrigados a sustentar a si mesmos, ou sob remunerações
controladas – que sejam capazes de viver com as menores quantidades possíveis de
comida. Mas quando passam a se alimentar às custas de seu patrão ou de sua patroa,
começam a devorar quantidades que ultrapassam qualquer imaginação razoável. De
fato, fazem a festa. Se para uma ama-de-leite for fornecido tudo o que ela pede, será
capaz de comer tanto quanto dois homens com grande apetite; e como resultado ela se
torna corpulenta, inchada, cheia de manchas, espinhas e brotoejas, e geralmente
demasiado obesa para o cumprimento de suas tarefas”138. Desse modo, as amas-de-leite

137
Francis, J. A History of the English Railway, Its Social Relations and Revelations 1820-1845. London:
Longman, Brown, Green & Longmans, 1851, pp. 66-67. Vale sublinhar que essa obra foi escrita apenas
três anos após a publicação do último fascículo de Dombey e Filho.
138
Routh, C.H. Infant Feeding and Its Influence on Life. New York: William Wood and Co., 1879. A
edição inglesa foi publicada em 1860 e é uma compilação de vários artigos que o autor escreveu para The

133
parecem formar com os trabalhadores das ferrovias um verdadeiro exército de comilões
selvagens e desregrados, capazes de colocar em perigo toda a cadeia de abastecimento,
toda a rede de suprimentos que algumas classes comedidamente acumularam.
Ameaçando abocanhar os recursos e a quietude dos cidadãos ponderados,
representavam talvez algo mais ameaçador: a encruzilhada de um sistema baseado na
circulação de mercadorias, baseado na exploração, e que de alguma forma tinha de
controlar tal circulação, embora defendesse, em teoria, a liberdade para mercadorias e
pessoas. As amas-de-leite, por dever de ofício, permaneciam no próprio lar burguês,
representando materialmente toda uma camada da população alijada e que teimava em
surgir aos borbotões. Os trabalhadores das ferrovias, por seu turno, representavam as
tendências ao nivelamento social sugerido pela expansão do sistema ferroviário. Em
suma, a interdependência e o antagonismo entre as classes não era uma elaboração
teórica, fruto da mente doentia de alguns agitadores que não tinham mais o que fazer.
Dito isso, nas discussões sobre a utilização das serviçais domésticas, e mais
especificamente das amas-de-leite, existiam aqueles que, como vimos, insistiam em
pintá-las como trabalhadoras corruptas que dilapidavam a rica mesa do patrões, como
conseqüência rotineira de sua índole imoral. Mas existiam também aqueles que
chamavam a atenção para o quanto essas mocinhas podiam até ser vítimas das classes
mais ricas, que algumas vezes compravam seu leite depois de se deliciar com sua carne.
“Estamos falando da jovem serviçal ou da camareira bonitinha que trabalha na mesma
rua em que uma mulher adoentada deu à luz uma criança adoentada, para quem leite
saudável significa vida, e qualquer outra coisa, morte. Com horror e vergonha essa
moça está grávida do açougueiro, ou do policial, ou do filho de seu patrão. Será
demitida; o responsável não irá ajudá-la; quando suas economias acabarem, com
vergonha e repugnância, rumará para uma vida de prostituição. Mas ela é saudável e
forte, e apenas algumas portas adiante, na mesma rua, há uma pequena vida, chorando

Lancet e para o British Medical Journal durante a década de 1850, todos como parte dos debates acerca
das vantagens e desvantagens de se contratar mulheres pobres como amas-de-leite. Para uma discussão
detalhada, ver Fildes, V. Breasts, Bottles and Babies: A History of Infant Feeding. Edinburgh: Edinburgh
UP, 1986 e, da mesma autora, Wet Nursing: A History from Antiquity to the Present. New York:
Blackwell, 1988.

134
por aquilo que ela pode dar, e enfraquecendo sem esse alimento, e na amamentação
desta criança existe uma chance, humanamente falando, de que aquela moça possa ser
salva do fosso do meretrício”139. Feitas as devidas ressalvas, incluindo o açougueiro e o
policial no rol de suspeitos, fica sugerida, entretanto, a possibilidade de que também os
filhos dos patrões pudessem ter alguma participação na desdita das serviçais. Embora
nada seja dito sobre os respeitáveis chefes das famílias, abre-se o precedente para que o
leitor tire suas conclusões. A acusação não é direta, mas o dedo em riste paira como
uma maldição sobre os tiranetes vitorianos. Porém, o juízo moral do autor não deve nos
enganar: a última coisa que está em jogo aqui é a defesa das amas-de-leite. Astutamente,
o tom piegas visa atribuir responsabilidades, fazendo um apelo para reformas que
legalizem a situação dessas trabalhadoras – novamente, tudo se resume a uma questão
de mercado. E tudo com requintes: a proximidade das mocinhas não pode ser mais
considerada com a tradicional repugnância devotada aos humildes; ao contrário, ela
recebe uma subjetividade cheia de remorsos e arrependimentos, uma criatura que deu
um passo em falso, mas que pode ser reabilitada140.
Assim, para escapar da cova séptica do meretrício, as serviçais em desgraça
deveriam contar com certa benevolência dos abastados. No entanto, como sói acontecer,
a consciência social vai subordinada aos ditames da eficiência nos negócios, ao respeito
às exigências das leis da oferta e da procura. Sem surpresa, a linguagem do mercado
oferece o ar de sua graça: ninguém que se dedicasse aos partos como ramo de atividades

139
Acton, W. “Unmarried Wet-Nurses.” The Lancet. vol. 1, 1859, p. 175. O autor era um urologista
interessado também em outras especialidades médicas e em questões relativas à prostituição. Em 1857
publicou The Functions and Disorders of the Reproductive Organs. Sua intervenção nos debates acerca
da contratação das amas-de-leite tem por objetivo defender maior regulamentação desse mercado, isto é,
legitimar o escorraçamento oferecendo algumas garantias, os famosos quindins antes da degola. Não é um
conservador, e por isso carrega as malignas boas intenções do receituário liberal. Ou seja, na sua
argumentação usa e abusa de vaselinas formais, que muitos veneram como pseudo-mediações necessárias
para a rica compreensão da realidade. Em outros termos, o direito de ser crápula, mas com elegância e
refinamento, típico dos que são ótimas pessoas, mas não valhem nada. Dez anos antes, o narrador de
Dombey e Filho tem algumas afinidades com a voz desses pró-homens; contudo, em seu caso, a matéria
social fala mais alto, desafinando o pacote retórico dos próceres.
140
Melhor teria sido, é óbvio, que as trabalhadoras saíssem de sua lasciva ignorância e fossem
previdentes, recorrendo ao conhecido repertório da safadice beata: “Virgem Santíssima, que gerou sem
pecar, permita que eu peque sem gerar”. Depois, feito o estrago, restava apenas a redenção pela economia
de mercado.

135
lucrativas, “poderia fechar os olhos para a demanda por amas-de-leite. As solicitações
ocorrem diariamente; e eu pergunto: quem já foi capaz de suprir tais pedidos contando
com as mulheres que estão na categoria de casadas? Existe uma demanda, já
abundantemente suprida por aquela categoria [das mães solteiras pobres] que tanto
precisa de ajuda. Nós somente pedimos que tal suprimento seja incrementado e
regulamentado”141. A visão benemerente em relação à pobre jovem perdida cede espaço
para as verdadeiras motivações presentes: obedecer às regras do mercado, oferecer leite
para quem precisa e pode pagar, fazendo evidentemente uma ordenha legitimada pelas
normas, regulações e procedimentos do contrato de trabalho burguês. Acresce que o
rebanho é normalmente constituído pela categoria das chamadas fallen women, as
mulheres decaídas, verdadeira obsessão vitoriana. Tanto conservadores quanto liberais
trabalham seus discursos tendo em mente essas mulheres, uns condenando-as
antecipadamente, outros defendendo sua recuperação – uma recuperação que fosse
lucrativa em termos mercadológicos. O narrador de Dombey e Filho se aproxima mais
do figurino desse patriarca liberal, que habilmente defende reformas atenuantes, cheias
de bons corações, mas sempre para o aprimoramento de um sistema perverso. Ocorre
que, no caso de nosso narrador, as contradições acabam por revelar mais do que o bom
decoro exigiria. Ou seja, se as prostituições sugeridas de Edith, que casa com a fortuna
de Mr. Dombey, e de Alice, que teve sua vida arruinada por Carker, seguem até certo
ponto o roteiro convencional e de cunho moralista, já a situação de Polly é bem
diferente: casada com o excelente Toodle, boa mãe, sensata, ponderada, carinhosa, tem
toda uma lista interminável de boas qualidades que o narrador lhe atribui em flagrante
contraste com os discursos correntes acerca das amas-de-leite. Entretanto, com toda essa
atmosfera purificada, seu tom idealizado ainda assim mostra toda a violência da
exploração. Noutros termos, mesmo retirada qualquer nuvem de perdição, retratada
quase como uma santa na terra, Polly padece na verdade como trabalhadora assalariada
– numa demonstração de quanto os véus moralizantes recobrem questões de classe.

141
Acton, W., op. cit., p. 175.

136
Talvez a profissão de ama-de-leite possa ser considerada a segunda mais antiga
do mundo142 e a aproximação dessa atividade com a prostituição quiçá não seja de todo
descabida. Podemos lembrar, no caso de Dombey e Filho, o rigoroso escrutínio a que
Polly é submetida, nomeadamente a importância dada a suas sólidas circunstâncias
familiares. O narrador, por meio de Miss Tox, enfatiza tais qualidades presentes no
grupinho com carinha de maçã, traço abonador da lisura e probidade maternais de Polly.
Essa insistência na comprovação de idoneidade reproduzia um padrão adotado pelos
respeitáveis lares vitorianos: era importante reduzir o risco de que as crianças bem-
nascidas fossem contaminadas pelas mulheres pobres, pois se acreditava que nesse
subgrupo dos famélicos a presença da sífilis era endêmica, uma vez que potencialmente
todas seriam mulheres decaídas143. Assim, prostitutas ou não, bastava serem mulheres

142
Tomamos emprestado essa afirmação de Margaret Wiley, em “Mother’s Milk and Dombey’s Son”.
Dickens Quarterly, 13 (1996), 217-28.
143
Cabe aqui um pequeno comentário. Em sua ficção Dickens apresenta as ameaçadoras fallen women –
as que infringem códigos de conduta moral normalmente ligados à sexualidade – seguindo os mais aceitos
estereótipos vitorianos. Vale lembrar que na arte e literatura vitorianas as prostitutas eram retratadas, de
modo geral, como meretrizes com impulsos sexuais e quantidades de pecados inimagináveis, como o
oposto sombrio das domesticadas mulheres respeitáveis, os anjos do lar. Uma vez despencando na
ribanceira da luxúria, vítimas de seu próprio furor uterino ou seduzidas por um pretendente, seu caminho
natural era o despenhadeiro do rebaixamento na escala social, parando somente no pedregulho da vida
criminosa e da prostituição. Seja movidas pela culpa, seja desprovidas de qualquer remorso, essas
moçoilas imaginárias eram pintadas em cores fortes, como monstros sensuais prestes a devorar homens
respeitáveis. Abjetas e párias entre as mulheres, não raro seu fim deveria ser o afogamento nas águas do
Tâmisa. Ver, por exemplo, Nead, L., Myths of Sexuality: Representation of Women in Victorian Britain.
Oxford: Blackwell Publishers, 1988. Contudo, a nua e crua vida real das prostitutas, longe das
representações da arte e da literatura, tinha outra configuração, distante do estereótipo moral e ligada ao
mercado de mercadorias e ao mercado de trabalho: tipicamente muitas mulheres começavam a se
prostituir no final da adolescência, primordialmente por motivos de sobrevivência, numa escolha
financeira face a outras opções de trabalho desumano, cansativo e com salários literalmente de fome.
Nesse sentido, é esclarecedor o estudo de Walkowitz, J.R., Prostitution and Victorian Society: Women,
Class, and the State. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Acresce que a maioria delas
trabalhavam em pensões e alojamentos, tendo ao menos uma nesga de sociabilidade, de convívio mútuo,
com companhias femininas como outras pensionistas e outras prostitutas – o que, aliás, deveria causar
temores e tremeliques pavorosos no mito da individualidade viril burguesa, no falocêntrico impulso
solitário do capital diante dessa corja que, em ousadia imperdoável, partilhava uma vida com traços
comunais, de solidariedade potencialmente transformadora, revolucionária. Esse não era o
comportamento esperado das habitantes dos lupanares: mais do que os praticantes de quaisquer outras
profissões, as mulheres da vida eram vistas como a ajuda necessária para segurar os casamentos mortos.
Se eram profissionais toleráveis, jamais deveria ser esquecido que, do ponto de vista burguês, eram
inimigas de classe, e era desejável que fossem inimigas entre si. Por outro lado, longe de estarem para
sempre condenadas às ruas, muitas mulheres após alguns anos casavam e constituíam suas próprias
famílias. Consultar, a esse respeito, Mason, M. The Making of Victorian Sexual Attitudes. Oxford:
Oxford University Press, 1994. Decerto isso representava um tipo de reabsorção no que seria a assim
chamada sociedade respeitável, porém servia como lembrete de que o que sempre estava em jogo era o
mercado de trabalho: assim como a acumulação primitiva foi baseada no roubo dos meios de produção e

137
para que fossem suspeitas – porém, vale ressaltar, acima de tudo se fossem pobres: não
nasciam como mulheres num sentido amplo, genérico, descarnado historicamente; eram
transformadas rapidamente num tipo muito específico de mulher de acordo com sua
classe social. Mas Polly não era, de fato, um amor de pessoa? E não será exagero querer
enxergar os desmandos de classe em toda e qualquer passagem do romance? Ocorre que
sob o manto aparente da idealização de Polly, é necessário que sejam vistas algumas
articulações impostas ao narrador. Assim, para apascentar os trabalhadores das ferrovias
e as amas-de-leite, pastoreando a temível energia dos vendedores de força de trabalho, o
narrador de Dombey e Filho sacraliza Polly para evitar contaminações, para afastar
distúrbios indevidos – mas, sobretudo, para impedir uma conexão totalizadora que
viesse a estabelecer as ligações entre a esfera da produção e a da circulação de
mercadorias. Para deixar mais claro: todo foco de atenção recai em Polly, absorvendo e
neutralizando o trabalho nas ferrovias de Toodle, que aparece, mas de passagem e
sempre de modo derivativo. Dessa maneira, o trabalhador Toodle é tolerado como

na colocação de milhões de pessoas na situação de mão-de-obra a ser reabsorvida, também a prostituição


tinha sua parte de alijamento inicial para posterior aliciamento, reabsorção ou tentativa de ingresso na
ordem da família burguesa e seus simulacros. Evidentemente que a reciclagem posterior de todo esse
material humano dependia de que tanto os trabalhadores quanto as prostitutas sobrevivessem ao descarte
inicial e aos inúmeros descartes ao longo de suas vidas. Como de costume, o apetite do capital, da grande
indústria e de toda a cadeia produtiva parecia ser um pouco mais voraz do que o apetite das mulheres
pelos prazeres mundanos e carnais. A hipocrisia burguesa podia sustentar seus trejeitos de nojo e censura
enquanto se esbaldava com os lucros que os baixos salários, o desemprego e a exploração desmesurada
lhe proporcionavam. Assim como o filisteu da cultura apontava para a ignorância das massas, produzida
por um sistema que financiava a erudição com o suor desses milhões de ignorantes, assim também, num
fenômeno correlato, a desfaçatez moral fazia as vezes do cafetão que acusava suas prostitutas de serem,
afinal, prostitutas. Em contexto histórico, as disparidades entre ricos e pobres cresciam de maneira
vertiginosa, e o aviltamento de muitos fazia parte da opulência de alguns poucos. Desse modo, para os
que não tinham nada senão sua força de trabalho para vender, “[...] qualquer significativa melhora geral
[talvez] possa ser excluída antes de 1848, (ou talvez antes de 1844, na Grã-Bretanha). [...] A época em
que a Baronesa de Rothschild usou um milhão e meio de francos em jóias no baile de máscaras do Duque
de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright assim descreveu as mulheres de Rochdale: ‘Duas
mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo surpreendente e singular –
chegando às raias do sublime. Assustadoramente famintas, devoravam uma bisnaga de pão com
indescritível sofreguidão, e se o pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente
devorado com avidez’”. McCord, N. The Anti-Corn Law League, 1958, p. 127. Citado em Hobsbawm, E.
J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 227. Nesse universo de
contrastes, a prostituição punha sob lente de aumento a transformação de todos os seres humanos em
mercadorias, uns mais, outros menos, mas todos descartáveis, num incômodo registro que perpassava o
espectro de classes em sua totalidade. A prostituta, ao mesmo tempo vendedora e mercadoria, como nos
ensina Walter Benjamin, tornava material as inúmeras prostituições exigidas pelo sistema, em que o
comprador último era o capital.

138
suporte de Polly e esta é tolerada como símbolo da boa feminilidade adestrada. O
estratagema do narrador não é ingênuo: se tanto os trabalhadores das ferrovias quanto as
amas-de-leite representavam certa circulação de mercadorias, em Dombey e Filho eles
estão casados, numa união que pende para a dominação de Polly em relação a Toodle.
Para os debates da época, como vimos, as amas-de-leite tinham seu espaço na discussão
vitoriana, entretanto tal espaço era marcadamente menor do que o representado pelo
impacto dos trabalhadores das ferrovias. De modo inverso, em Dombey e Filho estes
trabalhadores, na figura de Toodle, ocupam um papel bem menos importante.
Dito isso, qual será a estratégia marota do narrador? Se estivermos certos, a
mesma de sempre: ocultar com revelações, revelar com ocultamentos. Ou seja, Toodle e
Polly são necessários e estão presentes, mas seu papel como trabalhadores vai sendo
esvaziado à medida que se fortalece a importância da boa feminilidade de Polly, isto é, a
mãe zelosa, caridosa, cuja influência traz o bem a todos. Entretanto, as trabalhadoras
mulheres não eram vistas como ameaça? Sim, mas Polly será antes de mais nada um
espírito maternal, com apego extremado ao âmbito doméstico. Mas, por outro lado, a
supremacia de Polly em relação a Toodle não significa certo fortalecimento do papel
feminino, num passo avançado do narrador? Em termos, pois a fortaleza de Polly será
enquadrada numa estrutura da serviçal obediente e a submissão de seu marido irá
assinalar a verdadeira submissão desejada pelo narrador: a dos trabalhadores que devem
se submeter a uma criação idealizada do que seja o idílio doméstico – sempre em
moldes burgueses. Mas como acontece esse processo? Por meio de uma higienização,
de uma transformação, de uma passagem por um filtro esterilizador: do perigo
representado pelos trabalhadores assalariados para a boa influência dos ternos valores
domiciliares. Para chegar ao ponto: o alvo final é Florence, a boa influência feminina
que será a redentora de Mr. Dombey; Polly, nesse sentido, é apenas um estágio
necessário na demonstração de que alguns valores transcenderiam as diferenças entre as
classes, como, por exemplo, a boa mãe proletária Polly que já antecipa muitos dos
traços da boa mãe proprietária, que será o destino de Florence. Os perigos representados
pelas classes trabalhadoras serão transmutados em bons serviços, cordatos,

139
subservientes. Os préstimos maternais de Polly oferecerão a base para a compaixão
maternal de Florence, que acaba se transformando numa das forças governantes do
romance. Como alvo de congraçamento e reconciliação, a energia dos trabalhadores
será diluída e decantada na passagem de bastão para Florence, momento em que as
classes dominantes são reformadas internamente, a partir da figura da filha rica
rejeitada, mas que supera todas as adversidades e, por meio do amor, melhora aquilo
que talvez devesse ser destruído por algo mais efetivo – a revolução.
Desde seu primeiro encontro, Polly e Florence estabelecem uma conexão
imediata, demonstração do caminho a seguir para que o sistema seja aprimorado sem
que haja o transtorno de rupturas bruscas. A boa serviçal Polly, padrão de docilidade
feminina, prontamente reconhece os laços da solidariedade construtiva: “In the simple
passage that had taken place between herself and the motherless little girl, her own
motherly heart had been touched no less than the child’s; and she felt, as the child did,
that there was something of confidence and interest between them from that
moment”144. As melhores qualidades de Polly serão repassadas para Florence que, por
sua vez, irá distribuir compaixão e caridade em generosas doses ao longo do
romance145. Essa tarefa de distribuição nada mais será que seu sólido papel de mulher
numa sociedade em que impera a rígida divisão entre as esferas masculina e feminina.
Noutros termos, o encanto de Florence fará parte da tão propalada influência que as
mulheres podem exercer num mundo de padrões masculinos. Claro está que a questão
de fundo aqui novamente é a divisão social do trabalho, com o estabelecimento de
funções pré-determinadas que apenas instrumentalizam a cisão entre os gêneros: a
sociedade hierarquizada impõe graus de dominação, desterrando mulheres e
trabalhadores assalariados para territórios denominados periféricos, num deliberado
esforço de apequenamento e redução de sua importância na geração da riqueza social.

144
Naquele contato tão simples que ocorrera entre ela e a garotinha órfã, seu coração maternal não se
comovera menos que o da menina; e ela sentiu, assim como a criança, que havia entre elas algo de
confiança e interesse mútuos a partir daquele momento. [DS, p.81]
145
Para a descrição de Polly como um modelo de feminilidade, ver Cheek, E. R. “Dickens and Woman’s
Lib: Pro and Con.” Victorians Institute Journal, 1 (1972), 39-48. Para a transmissão da docilidade de
Polly para Florence, ver Marks, P. “Paul Dombey and the Milk of Human Kindness.” Dickens Quarterly,
11 (1994), 14-25.

140
Assim, Florence será relegada ao honroso posto de força revigorante, de influenciar um
mundo corroído para que este se transforme num reino do entendimento e da
compreensão. Nos momentos redentores de Mr. Dombey, será Florence quem estará
presente para coroar o perdão a seu pai, assim como para anunciar a continuação da
renovada saga familiar: “Upon the breast that he had bruised, against the heart that he
had almost broken, she laid his face, now covered with his hands, and said, sobbing:
‘Papa, love, I am a mother. I have a child who will soon call Walter by the name by
which I call you.’”146. Para que não restem quaisquer dúvidas, Florence fica cristalizada
como boa filha, boa esposa e boa mãe: a heroína dickensiana mais choramingas cumpre
assim, sob medida, o roteiro prescrito para a influência feminina: sempre tendo o
reizinho do lar como centro desse sistema que é, no particular, doméstico – e, no geral,
econômico147.
Desse modo, Florence acaba por ser santificada como mãe protetora: sua
influência nos eventos aparecendo como efeito determinante para que quaisquer
conflitos sejam dirimidos. Ao mesmo tempo, a ênfase do romance sai da esfera dos
ambientes de trabalho – com sua substância de antagonismo explícito, inerente à esfera
da produção – e migra para a família, para a esfera doméstica – onde, em teoria, estaria
o refúgio burguês. Ocorre que, mais uma vez, o narrador prepara uma armadilha para si
mesmo: basta lembrarmos dos momentos finais da mãe de Florence, de todo o jogo de
violências ali presentes, para que o idílio consagrado à paz maternal mostre seu
conteúdo de verdade, ou seja, o verdadeiro calabouço que a norma burguesa estabelece
como habitat natural das mulheres. Longe da função reprodutiva, dos cuidados

146
Sobre o peito que ele havia ferido, contra o coração que ele quase havia partido, ela deitou a face dele,
dele que cobria o rosto com as próprias mãos, e disse soluçando: “Papai, meu amor, eu sou mãe. Tive
uma criança que logo chamará Walter da mesma forma que chamo você”. [DS, pp. 939-940]
147
Alguns leitores tiveram a pachorra de contar quantas vezes Florence aparece chorando no romance.
Chegaram ao número de oitenta e oito vezes, mas felizmente somos informados de que o correto talvez
seja oitenta e nove. Ver Spielmann, M.H. “Florence Dombey’s Tears.” Dickensian, 21 (1925), 157.
Contudo, esse mar salgado de feminino pranto é necessário para que o mundo econômico seja purificado
– evidentemente que deixando de lado o quanto desse sal são lágrimas causadas pelo capital. Como nosso
trocadillho é canhestro, convém arrematar com a voz progressista de Alfred Tennyson, poeta dos poetas
vitorianos: “Deus fez a mulher para o homem, / E para o bem e o incremento do mundo”. O bardo podia
escrever tais sutilezas enquanto sua mulher, Emily Tennyson, respondia a todas as cartas, providenciava
todas as refeições, recebia as visitas e criava os filhos. Ver, a esse respeito, o trabalho de Ann Thwaite,
Emily Tennyson: The Poet’s Wife. London: Faber & Faber, 1997.

141
domésticos, da especial sensibilidade ao amor, correm o risco de serem vistas como um
corpo estranho, intrusas, indesejáveis – do mesmo modo como também são indesejáveis
os trabalhadores assalariados. Acresce que, ora criticando a oposição predadora entre
ricos e pobres, ora demonstrando a necessidade dessa simbiose148, o narrador deseja
construir um reduto doméstico em que sentimentos e sensações perenes estariam a salvo
das injunções históricas – algo como se os espíritos puros do lar burguês idealizado, os
mansos de coração, os inocentes e bem intencionados pudessem ser os verdadeiros
herdeiros do progresso; como se os meigos e humildemente submissos pudessem sanar
os despautérios da Revolução Industrial149. Assim, carregando as tintas na redenção
privada e doméstica, em que os dramas são solucionados sempre sob a perspectiva do
indivíduo, a tirania do capitalista poderia ser reformada pela boa submissão de
mulherzinhas servis. Desnecessário dizer que a conta não fecha, e as oposições entre o
mundo do dinheiro e a bela fecundidade natural, entre as ferrovias e as amas-de-leite,
entre os impulsos de valorização do capital e o festival de bons afetos150 – tudo isso
surge, a despeito do narrador, de forma interligada, não como simples pares de opostos,
mas como contradições internas de uma totalidade: de um poliedro que precisa do
comodismo, do preconceito e do pragmatismo reformistas para que apenas algumas de
suas facetas sejam reveladas, sempre de forma isolada e estanque.
Mas qual seria o resumo da ópera dos feios, sujos e malvados? De que forma a
divisão social do trabalho, os avanços tecnológicos, algumas ocupações ditas
subalternas nas ferrovias e nos lares, bem como suas implicações na construção da
redenção na esfera doméstica – de que forma tais perspectivas podem ligar os pontos e
as linhas da figura que o narrador de Dombey e Filho ora decalca, ora apaga? Sabemos

148
Levine, R. A. “Dickens, the Two Nations, and Individual Possibility.” Novel, 1.2 (1969), 157-80.
149
Grylls, D. “Jane Austen and Dickens.” In: Guardians and Angels: Parents and Children in Nineteenth-
Century Literature. London: Faber and Faber, 1978, pp.111-52. Ver também Millet, K. Sexual Politics.
London: Rupert Hart-Davis, 1970, pp. 89-90. Essa autora chama a atenção para o quanto Dombey e Filho
ilustra “a subordinação das mulheres dentro do sistema de propriedade”, formulação de Engels em
Condition of the Working Class in England.
150
Ver, por exemplo, Musselwhite, D. “The Novel as Narcotic.” In: 1848: The Sociology of Literature.
Proceedings of the Essex Conference on the Sociology of Literature, July 1977. Ed. Francis Barker, et al.
Colchester: University of Essex, 1978, pp. 207-24. Também do mesmo autor, Partings Together: Politics
and Desire in the Nineteenth-Century English Novel. London: Methuen, 1987, pp. 143-50.

142
que um dos resultados imediatos do uso capitalista das máquinas e equipamentos é o
aumento da mais-valia, bem como do correlato aumento da massa de mercadorias
despejadas na vida social. Esse incremento na quantidade de mercadorias faz crescer,
em maior escala, as camadas sociais mais pobres e, em menor escala, as mais ricas –
vale lembrar, mais uma vez, que a geração de riqueza também significa a geração de
pobreza, num processo oriundo da desigualdade de distribuição, ou seja, da apropriação
da mais-valia por parte da classe dominante. Riqueza crescente das elites e, em virtude
das máquinas e equipamentos, constante diminuição dos trabalhadores exigidos para
que se produzam gêneros de primeira necessidade: isso gera simultaneamente novas
demandas de luxo e novos meios para sua satisfação. Assim, uma parte cada vez maior
do produto social é transformada em produto excedente e uma parte maior desse
produto excedente passa a ser consumida, isto é, cresce a produção do luxo. Por um
lado, há diversificação e sofisticação, sempre em escala ampliada: a grande indústria
cria novas relações no mercado mundial, não só artigos de consumo nacionais são
trocados por artigos estrangeiros, mas também matérias-primas, ingredientes e semi-
manufaturados importados são utilizados como meios de produção na indústria
doméstica. Por outro lado, a força produtiva nas esferas da grande indústria,
acompanhada por exploração da força de trabalho em todas as demais esferas da
produção, permite que uma parte cada vez maior das classes trabalhadoras seja utilizada
em atividades não diretamente ligadas à produção: ressurgem no palco os antigos
escravos domésticos, que agora recebem a alcunha de classe serviçal, na figura de
criados, empregadas, lacaios, etc. – não por acaso, as moças que trabalhavam como
empregadas nas casas dos pequenos burgueses londrinos eram chamadas, na linguagem
popular, de little slaveys, pequenas escravas. Noutras palavras, a verdade realmente
parece estar no todo: o uso capitalista da tecnologia faz proliferar milhares de Toodles e
Pollys, que não são apenas efeito colateral, são peças fundamentais na produção e
reprodução de um sistema que atua cada vez mais como mercado mundial; além disso, a
pletora de mercadorias tem de ser fetichizada para que os privilégios os mais estúpidos
sejam defendidos com unhas e dentes, como se, de fato, fizessem parte inconteste de

143
uma suposta natureza humana cujo fim último seria o consumo supérfluo; e, por fim e
recomeço, o templo doméstico e toda sua esfera de influência surge como se a defesa da
futilidade burguesa realmente fosse o pináculo da civilização. Desse modo, a apologia
do dulcíssimo lar esconde todas essas etapas produtivas. A pasmaceira angelical de
Florence tenta recobrir a lógica de circulação de mercadorias, mas, por outra, tal lógica
endiabrada vai se revelando nos passos para a construção daquela pasmaceira. E isso faz
pensar: sabemos que muitas lágrimas já rolaram, muitas novidades já desfilaram sob o
sol capitalista, mas ele está mais escaldante do que nunca. Ao fim e ao cabo, para as
repercussões do mundo registrado pelo narrador de Dombey e Filho, talvez valham os
versos do também vitoriano Robert Browning: “O passado está em seu túmulo,/ Embora
seu fantasma nos assombre”151.

151
Robert Browning, assim como Dickens, nasceu em 1812. Estes versos foram publicados em Pauline:
A Fragment of a Confession (1833).

144
6. O INDISCRETO CHARME DA BURGUESIA

Após a morte de Paul, Mr. Dombey viaja de Londres a Birmingham e compara a


ferrovia à própria força triunfante da morte. Está de luto, vivendo uma introspecção que
é apresentada aos leitores numa surpreendente novidade, consideradas suas parcas
demonstrações de vida interior até então. Mas o narrador avança e ilustra um certo mal-
estar que sugere conexões vastas, para além do drama pessoal de nosso herói:

He [Mr Dombey] found no pleasure or relief in the journey.


Tortured by [his] thoughts he carried monotony with him, through the
rushing landscape, and hurried headlong, not through a rich and varied
country, but a wilderness of blighted plans and gnawing jealousies.
The very speed at which the train was whirled along, mocked the swift
course of the young life that had been borne away so steadily and so
inexorably to its foredoomed end. The power that forced itself upon its
iron way – its own – defiant of all paths and roads, piercing through
the heart of every obstacle, and dragging living creatures of all
classes, ages, and degrees behind it, was a type of the triumphant
monster, Death.
Away, with a shriek, and a roar, and a rattle, from the town,
burrowing among the dwellings of men and making the streets hum,
flashing out into the meadows for a moment, mining in through the
damp earth, booming on in darkness and heavy air, bursting out again
into the sunny day so bright and wide; away, with a shriek, and a roar,
and a rattle, through the fields, through the woods, through the corn,
through the hay, through the chalk, through the mould, through the

145
clay, through the rock, among objects close at hand and almost in the
grasp, ever flying from the traveller, and a deceitful distance ever
moving slowly within him: like as in the track of the remorseless
monster, Death!152

Nessa passagem vemos a dinâmica da modernidade pelos olhos de Mr. Dombey.


Os ritmos do trem são registrados como sinais, quase que a pulsação da morte – um
fenômeno avassalador e que escapa à compreensão: “objects close at hand and almost in
the grasp, ever flying from the traveller, and a deceitful distance ever moving slowly
with him: like as in the track of the remorseless monster, Death!”. No entanto, todos os
elementos descritos formam um elenco de coisas sob a influência de mãos demasiado
humanas: a máquina do progresso serve para que Mr. Dombey viva seu luto, mas num
mundo forjado pelo trabalho social153. Ou seja, a rara revelação dos dramas e conflitos
internos de nosso protagonista acontece num movimento de contradição interna da
própria modernidade, em que os traumas subjetivos estão sendo remodelados como
nova subjetivação dos traumas, isto é, o choque de um novo contexto determina a
necessidade de uma nova experiência psíquica. Até certo ponto, o encadeamento das
palavras e seu fluxo sugere a entrada do narrador em uma nova seara: a de uma

152
Ele [Mr. Dombey] não encontrou nem prazer nem alívio na viagem. Torturado por [seus]
pensamentos, carregava a monotonia consigo através da paisagem; não era transportado em meio a um
território rico e variado, mas através de um deserto de projetos aniquilados e de invejas devoradoras. A
própria velocidade do trem escarnecia e imitava a efêmera duração da jovem existência que havia tão
firme e inexoravelmente sido levada a seu predestinado fim. A poderosa força que arrastava todo o
comboio sobre a via férrea, desafiadora de todos os caminhos e estradas, mergulhando no coração de cada
obstáculo, e arrastando atrás de si criaturas de todas as classes, idades, e condições, era uma manifestação
do monstro triunfante, a Morte.
Avante, bradando, rugindo, chocalhando, partindo da cidade, escavando seu caminho por entre as
moradias dos homens e fazendo vibrar as ruas, desfila por um instante através dos prados, esmagando a
terra úmida, ruidosamente na obscuridade e na atmosfera pesada dos túneis, arremessando-se novamente
ao ar livre do vasto e ensolarado dia; avante, bradando, rugindo, chocalhando, através dos campos, pelos
bosques, pelas searas, pelos prados, pela greda, pela terra, pela argila e pela rocha, por entre objetos tão
próximos que quase podem ser tocados, e que sem cessar escapam ao viajante, enquanto um enganoso
horizonte se move lentamente nele: como numa pista desse monstro impiedoso, a Morte!
[ DS, pp. 353-354]
153
Milner, I. “The Dickens Drama: Mr. Dombey.” Nineteenth-Century Fiction, 24 (1970), 477-87.

146
psicologia preocupada em demonstrar a reificação e os sacrifícios aos quais Mr.
Dombey está submetido154. A linguagem mimetiza os inexoráveis ritmos do trem155 –
“Away, with a shriek, and a roar, and a rattle, from the town, burrowing among the
dwellings of men and making the streets hum” – e a máquina é comparada quase que a
um animal que serpenteia, rugindo e chocalhando, numa poderosa síntese que toma de
empréstimo imagens arcaicas para figurar uma novíssima realidade. Assim, temos o
narrador se esforçando para formalizar a subjetivação do mundo industrial e a
industrialização de uma certa subjetividade156. Os sofrimentos de Mr. Dombey são
descritos por um método que, como um todo, tenta combinar os efeitos imediatos da
velocidade sobre a visão e a audição com um ágil caleidoscópio de cenas e quadros
vertiginosamente expostos – tudo isso sob o sugestivo influxo da argamassa dos
contrastes sociais: “The power that forced itself upon its iron way – its own – defiant of
all paths and roads, piercing through the heart of every obstacle, and dragging living
creatures of all classes, ages, and degrees behind it, was a type of the triumphant
monster, Death”.
Para Mr. Dombey a experiência surge como um desfile das potências de um anjo
vingador, indiferente ao seu poder de grande proprietário, passando por cima de seus
desejos e projetos157. Para os leitores, entretanto, o que seria o mergulho na densidade
de uma subjetividade enlutada acaba por insinuar algo mais: a gana implacável de uma
força impessoal, força esta que parece não respeitar nem mesmo os mais lindos sonhos
burgueses. Nesse sentido, estaria a própria burguesia diante de um processo que parece
estar sob seu controle, mas que na verdade começa a lhe escapar entre os dedos? Talvez.
De todo modo, o narrador deixa transparecer todos os pavores e todos os encantos que a

154
Rainsford, D. Authorship, Ethics and the Reader: Blake, Dickens, Joyce. Houndmills: Macmillan,
1997, pp. 127-37.
155
Quirk, R. “Charles Dickens, Linguist.” In: The Linguist and the English Language. London: Edward
Arnold, 1974, pp. 1-36.
156
Vale destacar que essa descrição da viagem de Mr. Dombey estabeleceu um padrão para esse tipo de
escrita, mais tarde utilizada, por exemplo, em Nosso Amigo Comum (1865). Ver House, H. The Dickens
World. London: Oxford University Press, 1941, pp. 140-142.
157
Talvez Mr. Dombey possa ser considerado como um dos primeiros exemplos vitorianos do tipo de
futuro homem arruinado cuja falência emocional surge como antecipação da falência financeira, em que a
insolvência serve como um castigo pessoal e um corretivo moral. Ver, nesse sentido, Reed. J. R.
Victorian Conventions. Athens: Ohio University Press, 1975.

147
modernidade corporificada nas ferrovias causava numa época atordoada pelo poderio
das novas forças produtivas. O desenvolvimento de tais forças, entretanto, deixa
entrever o caráter caótico da economia de mercado em regime capitalista e a burguesia,
que capitaneara revoluções, tem agora no obsessivo Mr. Dombey um bom representante
– e para anteciparmos uma terminologia neste momento já latente: um bom
representante de uma classe histérica frente à própria ascensão e neurótica ante
quaisquer ameaças que signifiquem queda ou ruína. Contudo, fazer a conexão da morte
com uma máquina que simbolizava a nova ordem também desloca o medo
indeterminado do futuro e focaliza as possibilidades palpáveis de mudança, ou seja, não
um pavor metafísico diante do desconhecido, mas uma inquietação fundada em
condições materiais. Já sabemos que isso não significa uma predisposição burguesa para
continuar com os estopins da criação de outro mundo mais justo, bem ao contrário, mas
o narrador sinaliza ao menos os resquícios de atitude de uma classe que havia sido em
sua gênese revolucionária – e que, agora, como classe dominante, deseja conservar suas
posições e não quer largar o osso. Assim, uma das maldições do modo de produção
capitalista parece ser a constante capacidade de engendrar condições para que os atuais
vencedores sejam superados, criando um perturbador ritmo em que a viagem dos
usurpadores aconteça “among objects close at hand and almost in the grasp, ever flying
from the traveller, and a deceitful distance ever moving slowly within him: like as in the
track of the remorseless monster, Death!”.
Vale lembrar que o que virá a seguir no romance será um terreno constantemente
movediço, de mutação de atoleiro, com Florence sendo forçada a abandonar a casa
paterna, com o casamento fracassado de Mr. Dombey e Edith e, não menos importante,
com o gerente-geral Carker dilapidando a Dombey e Filho em proveito próprio: tudo
isso numa sôfrega sucessão de infortúnios que realça e desenvolve o aturdimento
causado pela viagem de trem. Para Mr. Dombey a ferrovia talvez apareça quase como a
tecnologia mitificada, carregando-o para um universo de visões reprimidas, em que a
morte e a finitude respondem como anteparo às ilusões perdidas: suas, de sua classe, de
sua época. No entanto, o narrador utiliza tal aturdimento também para trazer à tona

148
novos aspectos de uma realidade complexa: “The very speed at which the train was
whirled along, mocked the swift course of the young life that had been borne away so
steadily and so inexorably to its foredoomed end. The power that forced itself upon its
iron way – its own – defiant of all paths and roads, piercing through the heart of every
obstacle, and dragging living creatures of all classes, ages, and degrees behind it, was a
type of the triumphant monster, Death”. Entre, de um lado, o lamento diante da rapidez
com que vida e morte do pequeno Paul haviam transcorrido e, de outro, o coletivo de
todas as classes, idades e condições que é arrastado pela nova dinâmica histórica, vai
como termo médio a força propulsora do maquinário, da tecnologia, do progresso.
Assim, o narrador pesquisa uma lei de movimento que leva de roldão as rígidas
separações entre o individual e o social, o particular e o geral. Esse diagnóstico – como
vimos nos capítulos anteriores, já esboçado no coro dos empregados e serviçais que
comentam os acontecimentos na empresa e na casa dos Dombeys, na morte de Fanny
Dombey e suas correlações com o império mercantil, nas indagações de Paul acerca do
dinheiro, na resposta que necessariamente descamba para o caráter de exploração
intrínseco à circulação de dinheiro como capital e, por fim, no aprofundamento dessa
revelação quando surgem em cena os trabalhadores Toodle e Polly – enfim, esse
diagnóstico é o inventário de violências amealhado pelo narrador, numa rede de
conexões em que o peso estrutural do sistema rompe as fronteiras entre dilemas
individuais e impasses coletivos, também aniquilando o envoltório das soluções isoladas
em meio ao caos universal. Desse modo, a morte de Paul é a morte do herdeiro e
também a alegoria das várias mortes exigidas no altar da acumulação – que arrasta
“living creatures of all classes, ages, and degrees behind it”.
Normalmente a quantidade de força de trabalho surrupiada, na apropriação da
mais-valia que é cumulativamente agregada ao montante do capital, não é uma
carnificina plenamente visível a olhos nus, embora desfile sua dança dos mortos para
quem se dispuser a ver. Noutras palavras, a mortandade atua como o estripador, agindo
por partes, e para que sua lógica de açougueiro seja desvendada é necessário que os
golpes, os nacos e a sangria sejam recompostos em sua totalidade, num olhar que

149
reconstitua o ecumênico ritual econômico como um todo – em visão panorâmica. Tendo
isso em mente, vale observar que, nessa passagem da viagem de Mr. Dombey, o
narrador nos oferece um exemplo de sua busca dessa visão panorâmica, de um novo
modo de percepção inspirado pela civilização industrial. Ou seja, o novo modo de
produção é por excelência fragmentário, mas ao mesmo tempo fornece –
potencialmente – condições para a apreensão dos fenômenos por inteiro. Na forma
como o narrador constrói a jornada, Mr. Dombey observa objetos em movimento que
dele estão separados, tudo isso sob o impulso da ferrovia que coreografa a paisagem. O
próprio deslocamento do trem promove o encolhimento espacial, colocando em
mostruário objetos em imediata sucessão, peças de um cenário que originalmente
pertencem a domínios e campos distintos: “[...] from the town, burrowing among the
dwellings of men and making the streets hum, flashing out into the meadows for a
moment, mining in through the damp earth, booming on in darkness and heavy air,
bursting out again into the sunny day so bright and wide; [...] through the fields, through
the woods, through the corn, through the hay, through the chalk, through the mould,
through the clay, through the rock, among objects close at hand and almost in the grasp,
ever flying from the traveller, and a deceitful distance ever moving slowly within him”.
Num primeiro momento, o viajante que observa pela janela as inúmeras cenas adquire
uma nova capacidade, talvez a habilidade de discernir a pletora das partes do todo.
Ocorre que, devido à instrospeção fúnebre e ao choque atônito, Mr. Dombey vivencia os
eventos de modo cíclico mas letárgico, que surgem diferentes sendo quase os mesmos,
outra vez, novamente, de novo. Teria isso parentesco com o interminável eterno retorno
dos ciclos de vida e morte? Ou seria também uma homologia fraternal com algo um
tanto quanto mais prosaico? Por exemplo, algo como o frenético movimento da
circulação das mercadorias: que devem aparecer e desaparecer sucessivamente,
metamorfoseadas, transformadas em dinheiro – e novamente em mercadorias que
deverão gerar mais dinheiro.
A ciranda e o redemoinho dessas transformações, mesmo sendo familiares, são
ao mesmo tempo incomodamente insólitas – talvez porque difíceis de serem

150
apreendidas como força conjunta dotada de sentido, em etapas de um movimento total e
na totalidade da movimentação por etapas. É possível que a mesma opacidade atinja Mr.
Dombey: na forma como retrata a observação da paisagem, o narrador esculpe seu
protagonista como estático cismador capaz de discernir punhados de realidade, mas
impossibilitado para dar um salto qualitativo, necessário para a percepção do todo. Em
poucos instantes a viagem mostra um país – um império, um sistema em funcionamento
– e diante dos olhos de nosso personagem se desenrola um extenso panorama. Mas as
surpresas desfilam segundo a segundo, entrelaçadas de forma que as sutilezas dos
detalhes têm de dar lugar ao impacto da composição geral, o que exigiria um olhar
atento à mudança e aos novos ritmos contemporâneos. O devaneio da experiência nessa
viagem de trem convida à percepção panorâmica158 – mas no caso de Mr. Dombey
ocorre apenas o pasmo diante da marcha e da desfilada de objetos, vistos graças a um
maquinário, literal e também social, que o impulsiona através da paisagem e do
horizonte. Essa máquina do mundo integra nosso capitalista numa interessante trilha:
seria ele apenas mais uma peça na valorização e na acumulação, autômato cumprindo
seu papel de personificação do capital? Muito provavelmente. Entretanto, existe algo
mais também: embora seu dilema máximo talvez possa ser resumido como “o capitalista
vende mais porque é mais dinâmico ou é mais dinâmico porque vende mais?”, sua
verdadeira inquietação acontece diante da noção de movimento, pois modificação é tudo
o que ele não quer. Já sabemos que esta é uma das sacrossantas verdades dos amantes
da assim chamada liberdade individual e do suposto processo democrático, desde que
fajutos e de araque, no seu conhecido colóquio flácido para acalentar bovinos: “até a
nossa revolução burguesa, foi a História agindo em direção ao progresso, culminando na
belezoca que somos nós mesmos; daqui em diante, quaisquer outras revoluções são
inimigas do que é mais natural e universal no ser humano; o movimento até aqui onde
estamos foi perfeito; se as demandas transformadoras continuarem, daqui para frente vai

158
Consultar, por exemplo, Mengel, E. (ed). The Railway Through Dickens’s World: Texts from
Household Words and All the Year Round. Britannia Texts in English, 1. Frankfurt am Main: Peter Lang,
1989.

151
ser tudo diferente: toda e qualquer revolução será coisa sórdida de borra-botas e
mequetrefes”.
Ocorre que, desde o advento da máquina a vapor e com seu uso potencializado
nas ferrovias, pode-se vislumbrar a representação de gigantescas forças produtivas dos
novos tempos: com tais forças, torna-se factível instaurar um regime social livre de
todas as diferenças de classe, no qual desapareçam as preocupações com relação aos
meios de subsistência individual e em que se possa falar, pela primeira vez, de uma
liberdade verdadeiramente humana, de uma vida um pouco mais harmônica e justa. De
certa maneira, o período de Mr. Dombey, quando se acirram as conseqüências conjuntas
da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, foi um divisor de águas: grosso
modo, de um lado, o passado iniciado com a longínqua descoberta prática do uso do
fogo, em que houve, pela fricção, a conversão do movimento mecânico em calor; de
outro, o futuro, com a descoberta que transformou o calor em movimento mecânico,
com as máquinas que possibilitaram uma nova fase da história humana. Para lembrar
uma passagem que já analisamos noutra parte: “Common abbreviations took new
meanings in his eyes, and had sole reference to them. A. D. had no concern with Anno
Domini, but stood for anno Dombei – and Son”159: as ilusões desse excerto são um
pouco verdadeiras, e as iniciais eram realmente as de um novo tempo. Porém, sob os
auspícios do novo deus da modernidade, o dinheiro, criou-se a possibilidade de fabricar
e consumir uma enorme quantidade de novos produtos, tudo isso catalisado por
inovadores meios de produção – mas com divisão cada vez mais iníqua da riqueza
social. Desde a dieta até o vestuário, passando pelos utensílios domésticos e
instrumentos de uso cotidiano, a mudança aconteceu até na conformação e
materialidade dos itens e produtos ávidos por serem transformados – transformados em
mercadorias. Assim, o uso capitalista das forças produtivas oferecia novos produtos mas
já imediatamente os transformava em mercadorias, exacerbando o poder do dinheiro
como mediador universal. Contudo, se esse “espírito muito poderoso” tinha algo de

159
Abreviações usuais tomavam um novo sentido aos seus olhos, e se referiam unicamente a eles. A. D. já
não era Anno Domini, mas sim anno Dombei – e Filho. [DS, p.50]

152
abstrato e inefável, muito concretas eram as ações de sua vontade, que com certeza
deixavam seus fiéis bastante extasiados – para não irmos muito longe, basta lembrar: no
plano do espaço, as enormes obras urbanísticas, com grandes rearranjos arquitetônicos e
populacionais160; no plano do tempo, os novos méritos atribuídos à pontualidade como
qualidade fundamental, na síndrome de rigor organizacional que acometeu o emergente
mundo da classe média na Inglaterra vitoriana161.
Isso posto, vemos que o ar cogitabundo, de um Mr. Dombey que regurgita a
morte de seu herdeiro, vai finamente mesclado aos ritmos do trem em sua rouquenha
melodia da morte – principalmente desvelando a perturbadora música das novas
perspectivas lançadas sobre cenários familiares, na dança e contradança que é a da
modernidade, que é a do narrador. A prosa captura as síncopes na cadência do trem,
suas bruscas guinadas e feroz velocidade, num registro implacável dos aterradores
poderes que equalizam, que nivelam sob um mesmo impulso e impacto as
transformações, tanto físicas quanto sociais, na vida do país162. Assim, o tremor causado
pelos trilhos da modernidade é sentido nas próprias raízes da cultura nacional inglesa –
que é um país de lojistas, um império, um sistema em funcionamento. Pois bem, se na
Inglaterra dos anos de 1840 os odores do poderio imperial eram quase palpáveis,
principalmente nas ruas das cidades, Mr. Dombey ao mesmo tempo representa e não
representa essa nova atmosfera. Como príncipe mercantil, estava na crista de uma certa

160
Quando a rainha Vitória chegou ao trono em 1837, havia apenas cinco cidades na Inglaterra e no País
de Gales, excetuando-se Londres, com um número igual ou acima de cem mil habitantes. Já em 1891,
eram vinte e três cidades que se encaixavam nessa categoria. Ver Briggs, A. Victorian Cities. New York:
Harper, 1970, p. 59.
161
Essa obsessão pela pontualidade, bisonhamente acatada pela pequena burguesia e pela burguesia
assalariada, além de causar furor deslumbrado com sua conseqüência imediata no respeito ao horário dos
trens, das tarefas e compromissos, tinha evidentemente a motivação implícita de controlar a organização
do trabalho, no impulso daquilo que viria a ser conhecido como as disciplinas de tempos e métodos na
gestão da vida econômica, ou seja, como alcançar ganhos de produtividade e controlar a extração de
mais-valia. Mas como nem tudo são flores, jornais da época trazem relatos sobre o aparecimento de
psicopatologias e distúrbios que assaltaram inúmeros profissionais, e alguns dos casos que mereciam mais
destaque eram justamente os que envolviam funcionários de escritórios e homens de negócios:
submetidos à crescente pressão mental e ao excesso de trabalho, passaram a colorir com a tinta do
estresse a paisagem vitoriana. Não por acaso, o grande capitalista Mr. Dombey e, em menor escala, seu
gerente-geral Carker em alguns momentos parecem estar à beira de um ataque de nervos. Consultar , por
exemplo, Greenman, D. J. “The Alienation of Dickens’s Haunted Businessmen.” Dickens Quarterly, 7
(1990), 384-92.
162
Ver, por exemplo, Andrews, M. Dickens on England and the English. Brighton: Harvester, 1979.

153
onda histórica e, de modo concomitante, como figuração de uma classe, era peça
marmórea num museu de novidades163: naquela coleção de estátuas que se torna a
burguesia quando materializa os aspectos residuais de uma conformação hegemônica
que quer calar os aspectos emergentes. Noutras palavras, a viagem de Mr. Dombey
também sugere os indícios de uma dinâmica que foge ao controle, quando a antiga
classe revolucionária desejar frear o movimento histórico, quando se recusa a aceitar a
convivência, por exemplo, com o trabalhador das ferrovias Toodle, que surge como
lembrete indigesto de que certas relações de produção já podem ser superadas, com a
destruição de ultrapassadas divisões e compartimentações hierárquicas; quando, enfim,
vão ficando cada vez mais evidentes as pistas do segredo da valorização e acumulação
capitalista, com seus pressupostos baseados na apropriação do trabalho alheio, ou seja,
realçando a insustentável defesa da liberdade, igualdade e fraternidade quando posta sob
o exame da esfera da produção e da circulação das mercadorias.
Decerto existe algo de sublime nessa viagem de Mr. Dombey. Mas como quase
todas as coisas sublimes escamoteiam alguma indignidade impronunciável, a
investigação deve nos aproximar desse mal-estar na valorização do capital. Um vestígio
sempre significativo é a feição diáfana, com seu tanto de contrita e absorta, que
inúmeras vezes uma subjetividade em estado avançado de angústia adquire: sua
profundidade costuma revelar a história oculta de outras subjetividades que estão
geralmente ocupadas demais, sujas demais, cansadas demais para serem sensíveis.
Sabemos que o direito de vivenciar a boa tristeza ao modo burguês costuma exigir
alguma propriedade, alguns recursos que propiciem momentos de reflexão compungida.
O semblante macambúzio pode ser o encobrimento revelador de uma individualidade –
aqui novamente como sacrossanta formulação burguesa – que é um mistério sem
solução, posto que sem substância real e efetiva, ou seja, fútil até o tutano164. Melhor

163
Schwarzbach, F. S. “Dombey and Son: The World Metropolis.” In: Dickens and the City. London:
Athlone, 1979, pp. 101-13. Para a inadequação da escolha de Mr. Dombey como legítimo representante
da burguesia, principalmente em comparação às escolhas feitas por Thackeray em Vanity Fair (1848), ver
Smith, G. The Novel and Society: Defoe to George Eliot. London: Batsford Academic, 1984, p.158.
164
Mas, para não melindrar os iracundos defensores da individualidade em molde burguês, citemos como
consolação um gracejo de Oscar Wilde: somente as pessoas superficiais chegam a um conhecimento
profundo acerca de si mesmas.

154
dizendo: um espelho tem de refletir algo e tal individualidade é o espelho que deveria
refletir a si mesma, como ápice da realização e do progresso, resultado enfim último da
razão. Mas tal face especular revela não o mito da própria existência e sim um sombrio
salão de festas em que se debatem forças históricas, coletivas. Assim, o cenho de nosso
Mr. Dombey, preocupado com aquele “remorseless monster, Death!”, é o espelho
postado nesse salão de danças e a imagem do indivíduo, ao modo dos vampiros, não
tem reflexo, desaparece para revelar um certo bailado em que se movem inúmeras
daquelas subjetividades embrutecidas, mormente conhecidas como a massa, a súcia
ignara. Desse modo, menos de praxe do que seria desejável, a corja aparece na festa sem
ser convidada. No entanto, vale lembrar que foi ela quem produziu desde a maquinaria
até as condições para que alguns dos convivas pudessem sentir tédio, fastio, elocubrar
sobre a vida e a morte. Lembremos que pouco antes de iniciar sua viagem, Mr. Dombey
encontra o trabalhador Toodle na estação, e a solidariedade do pobre lhe é um ultraje,
num trecho que já citamos: “He [Mr. Dombey] had seen upon the man’s rough cap a
piece of new crape, and he had assured himself, from his manner and his answers, that
he wore it for his son”165. Veremos mais adiante que os efetivos detentores do poder –
como de rigor partidários do “tudo deve mudar para que as coisas permaneçam
exatamente como estão” – não costumam deixar barato as intromissões da ralé, ainda
que a paulada do recado seja desferida nos ajudantes-de-ordens, na burguesia
assalariada.
Mas, afinal de contas, o que estamos sugerindo? Simplesmente que a intempérie
social se aproximava de perigosos pontos de ebulição, em que estancar as modificações
era impossível. Acresce que o ringue estava armado, e a contenda tinha de acontecer
numa realidade de variáveis cada vez mais complexas. O novo ordenamento impessoal
e cada vez mais mecanicista do barril de pólvora no composto fabril, do qual as
ferrovias eram apenas uma das arestas visíveis, afetava vertiginosamente vários
aspectos da vida166 – mesmo a daqueles que tinham, como proprietários, a faca e o

165
Ele [ Mr. Dombey] tinha visto, no rústico gorro do homem, um pedaço de crepe novo, e compreendera
– pelas suas maneiras e por suas respostas – que o usava por seu filho. [DS, p. 353]
166
Hobsbawm, E. J. “O Debate do Padrão de Vida: um Pós-escrito”; “Flutuações Econômicas e Alguns
Movimentos Socias desde 1800” e “Costumes, Salários e Carga de Trabalho na Indústria do Século
Dezenove”. In: Os Trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000,
pp. 149-154, 155-188, 399-427.

155
queijo do novo festim financeiro. Numa era de incertezas, nada melhor do que procurar
culpados e os donos do banquete rapidamente escolheriam seus alvos. Vale lembrar que
devido ao surto especulativo da chamada febre das ferrovias nos anos de 1840, o
mercado acionário inglês entrou em convulsão, além das conseqüências na infra-
estrutura e na logística de produção e distribuição de um país que era o centro
manufatureiro mundial167. Tais problemas forçaram o Parlamento a aprovar uma
legislação para o regimento das companhias com capital aberto, criando desse modo a
figura das modernas corporações, entidades cada vez mais onipresentes na vida dos
comuns mortais – assim como era a Dombey e Filho na vida de nossos personagens.
Desse modo, a sedimentação das unidades de negócios, das empresas, vinha se associar
à padronização do horário comercial e à padronização do dia de trabalho: tudo isso
sendo perpassado pela força pantagruélica da moeda corrente, regulamentada por um
ato do Banco da Inglaterra em 1844, e que deveria permanecer associada a uma certa
garantia de estabilidade e referência de valor. Mas seria isso garantia de estabilidade? E
mais: o que era, afinal, essa tal moeda, esse tal dinheiro? Lembremos uma tentativa de
resposta, nossa velha conhecida: “Mr Dombey was in a difficulty. He would have liked
to give him some explanation involving the terms circulating-medium, currency,
depreciation of currency, paper, bullion, rates of exchange, value of precious metals in
the market, and so forth; but looking down at the little chair, and seeing what a long
way down it was, he answered: ‘Gold, and silver, and copper. Guineas, shillings, half-
pence. You know what they are?’”168.

167
Essa bolha de negociatas, com sua promessa de ganhos rápidos com apostas nas ações envolvendo os
negócios ferroviários, foi mais uma das demonstrações de como o mercado é um excelente gestor do
progresso: “A expansão descontrolada do sistema ferroviário, nas mãos de empreendedores
semicriminosos, produziu uma malha ferroviária desconexa: na década de 1850 havia três rotas
independentes de Liverpool a Leeds, e três rotas alternativas de Londres a Peterborough. Em muitos
casos, as linhas ótimas não haviam sido escolhidas. ‘Agora temos de pagar pelo desperdício de capital em
infrutíferas disputas parlamentares, ramais improdutivos e competição ineficaz’, escreveu o historiador
das ferrovias T. H. Lewin na década de 1930”. Chancellor, E. Salve-se quem puder: uma história da
especulação financeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.179.
168
Mr. Dombey estava em apuros. Gostaria de responder dando uma explanação servindo-se de termos
tais como meio circulante, instrumento monetário, depreciação da moeda, circulação fiduciária, papel
moeda, espécies metálicas, taxas de câmbio, cotação dos metais preciosos no mercado e assim por diante;
mas, lançando um olhar à pequena cadeira e vendo a que distância ela se encontrava abaixo dele,
respondeu: – É o ouro, a prata e o cobre; as libras, os xelins e os pence. Você sabe o que é isso?
[DS, p. 152]

156
A resposta de Mr. Dombey antecipara o mesmo aturdimento, a mesma
incompreensão ante as rápidas transformações: a retórica da economia política nada
mais era do que a manipulação interessada e também o engano ardiloso, ambos
fundados na aparência dos ritmos e trilhos do moderno sistema produtor de
mercadorias. Tanto o elenco dos termos ensaiado por Mr. Dombey, matraqueando o
tatibitate do receituário econômico, quanto a fileira das imagens, vistas em alvoroço
pela janela do trem, são ambos indícios do esforço de apreender um mundo em
movimento, com um número cada vez maior de novas clivagens – e cada vez mais
afiadas e cortantes. Pois bem, nesse cadinho prestes à convulsão, Mr. Dombey aparece
como o sinalizador de certos perigos iminentes, de uma realidade que exigia, portanto,
medidas severas e providenciais. Todavia, o ataque direto aos pobres não acontece,
talvez porque muito agressivo para um homem de negócios que precisa apenas despertar
o bom coração nele adormecido, o que fará ao final do romance. Mas nosso narrador –
embora apregoando uma saudável moralidade de classe média e, quem sabe, por isso
mesmo, afinal sabemos que tal moralidade deve sempre nos causar um frio na espinha –
enfim, nosso narrador tem e não tem compromissos com o bom mocismo, nos impulsos
que governam seus procedimentos: o desejo de revelar e o desejo de reprimir169.
Noutras palavras, tais procedimentos vão exibir conteúdos originalmente recalcados e,
por outra, ao trazê-los ao plano manifesto, tentarão diluir suas conseqüências últimas, na
sua conhecida ginga do morde e assopra. Ocorre que as revelações afloram, ainda que
disfarçadas, numa força que se impõe como forma objetiva, indômita e bastante
irascível, pois o narrador tem como matéria de análise um verdadeiro rascunho do mapa
do inferno: o mercado, que funciona em proveito da burguesia como classe, constitui
uma realidade incerta e comumente ameaçadora, inclusive para os burgueses
individualmente considerados; e mesmo quando desenvolve técnicas, leis e
regulamentos cada vez mais aperfeiçoados para controlar o funcionamento de suas
empresas, dos seus negócios, da moeda etc., a burguesia carece da capacidade de

169
Tambling, J. “‘An Impersonation of the Wintry Eighteen-Hundred and Forty-Six’: Dombey and Son”.
In: Dickens, Violence and the Modern State: Dreams of the Scaffold. Houndmills: Macmillan, 1995,
pp.48-70.

157
continuar a controlar a sociedade como um todo, porquanto não consegue ter uma
perspectiva totalizante.
Para especificar: uma vez montado o diagnóstico do pandemônio, o narrador toma
algumas medidas cabíveis, isto é, identificar e punir os culpados pelo mau andamento
da situação. Como escreveu Dickens em Loja de Antiguidades (1841): “Se não
houvesse gente ruim, não haveria bons advogados”170. Nosso narrador, tentando ser um
excelente advogado, coloca sob mira o vilão-mor de Dombey e Filho, o gerente-geral
Carker. Como mencionamos anteriormente, a paulada do recado – melhor dizendo, a
verdadeira locomotiva do recado – passa por cima da burguesia assalariada, mas a
mensagem deve ser entendida ao longo da pirâmide social. Assim, o “remorseless
monster, Death!” surgirá ao fim de uma outra viagem de trem, muitas páginas à frente
daquela de Mr. Dombey. Sabemos que o pai de Paul sobreviverá aos percalços e irá
desfrutar da compreensão acolhedora de Florence. Será Carker, entretanto, o malévolo
funcionário ambicioso e traiçoeiro, quem encontrará uma morte nos trilhos, quem será
literalmente esmagado por uma locomotiva. Convém citar a singela passagem referente
ao atropelamento de Carker, já nos estertores do romance :

Death was on him [Carker]. He was marked off from the living
world, and going down into his grave. [...]
He [Carker] heard a shout – another – saw the face [of Mr.
Dombey] change from its vindictive passion to a faint sickness and
terror – felt the earth tremble – knew in a moment that the rush was
come – uttered a shriek – looked round – saw the red eyes, bleared
and dim, in the daylight, close upon him – was beaten down, caught
up, and whirled away upon a jagged mill, that spun him round and
round, and struck him limb from limb, and licked his stream of life up
with its fiery heat, and cast his mutilated fragments in the air.

170
Dickens, D. The Old Curiosity Shop. Oxford: Oxford University Press, 1982.

158
When the traveller [Mr. Dombey], who had been recognised,
recovered from a swoon, he saw them bringing from a distance
something covered, that lay heavy and still, upon a board, between
four men, and saw that others drove some dogs away that sniffed upon
the road, and soaked his blood up, with a train of ashes.171

O estraçalhamento de Carker acontece como clímax de alerta, punição dos


malfeitores, antes do final feliz reservado à burguesia purificada pelos sentimentos do
coração. Após sua desesperada fuga, com Mr. Dombey em seu encalço, Carker é feito
em pedaços pela locomotiva, com a ferrovia aqui ocupando o papel de juiz decretando
sua pena capital.Vale observar: nem Mr. Dombey nem Carker haviam viajado nesse
trem, mas estão agora perto de uma estação, e a máquina surge como nova maneira de
se livrar de um problema172 – quase como a figuração de uma certa independência das
forças produtivas, da modernidade, algo como se o narrador declamasse aos sussurros,
com jeito e manha: “não somos nós que matamos, nós apenas fazemos a mira; é a
própria modernidade quem mata” . Também como é de bom-tom, mesmo sob o impulso
da ira, Mr. Dombey tem forças para transformar sua expressão vingativa, adquirindo um
certo semblante de indisposição aterrorizada. Carker, objeto de sua perseguição, traíra

171
A morte estava sobre ele [Carker]. Estava banido do mundo dos vivos, e descendo em direção ao
túmulo. [...]
Ele [Carker] ouviu um grito – depois outro – viu o rosto [de Mr. Dombey] passar do furor vingativo a
uma vaga náusea e ao terror – sentiu a terra tremer – soube instantaneamente que a fatalidade se
aproximava – soltou um grito – voltou-se e viu os olhos vermelhos e sombrios na luz do dia, muito perto
dele – foi derrubado, agarrado, e levado como num moinho de asas pontiagudas que lhe arrancava os
membros, lhe secava a corrente da vida com um calor flamejante, e arremessava ao ar seus fragmentos
mutilados.
Quando o viajante [Mr. Dombey], que havia sido reconhecido, recuperou os sentidos, viu quatro
homens transportarem numa maca qualquer coisa de pesado e imóvel, dissimulado numa coberta,
enquanto outros homens enxotavam alguns cães que farejavam a via, e apagavam o sangue com cinzas.
[DS, pp.874-875]
172
Uma resenha da época elogiou prontamente o novo recurso para dar cabo de situações de impasse. Ver
“Dombey and Son”. Sharpe’s London Magazine, May 1848, pp.200-03. Reproduzido em Shelston, A.
(ed.). Dickens: Dombey and Son and Little Dorrit. Casebook Series. Houndmills: Macmillan, 1985,
pp.25-28. Para uma opinião divergente, ver Oliphant, M. “Charles Dickens”. Blackwood’s Edinburgh
Magazine, 77 (1855), 451-66. Reproduzido em Collins, P. (ed.). Dickens: The Critical Heritage. Critical
Heritage Series. London: Routledge & Kegan Paul, 1971, pp. 327-336.

159
sua confiança, trapaceara no cargo que lhe havia sido confiado e aparentemente fugira
com sua esposa, Edith – mas Mr. Dombey mesmo assim desmaia diante da terrível
visão, do terrível espetáculo de ver Carker sendo retalhado e destroçado. Entretanto,
como a vingança é a última que morre, nosso herói consegue se recuperar de seu
desfalecimento a tempo de ver os restos mortais de Carker serem levados. Se a
burguesia assalariada, da qual o gerente-geral é digno representante, fosse boa
entendedora, talvez meia locomotiva bastasse. Porém, ser trucidado por uma locomotiva
inteira pode ser necessário para que sejam aclaradas algumas posições nos
antagonismos da hierarquia social. Em termos práticos, no andamento geral do romance,
Mr. Dombey pode ficar triste, se recuperar e sair de sua fossa, ao passo que Carker tem
de morrer. Enfim, para dar um salto quase sem mediações: o mal-estar na valorização
do capital faz parte do indiscreto charme da burguesia – enquanto espera o momento
para dar seu bote, se assim for preciso. Para purgar aflitivas crises, nauseabundas
inseguranças e arrasadoras vertigens, todas elas corolário das batalhas pela manutenção
do domínio material e espiritual na sociedade, não há dúvida de que a burguesia fará uso
do acirramento da violência, legitimando-a como remédio fundamental: serão atacados
os inimigos de classe, desde o zé-povinho sem eira nem beira até os medalhões da
burguesia assalariada – que nessa hora correm o risco de serem apenas o que nunca
deixaram de ser, burgueses assalariados, pois, quando a temperatura da luta de classes
se eleva, comumente são chutados de seu pedestal ou, simplesmente, atropelados.
A eliminação de Carker serve como sintomática advertência. Esse vilão
dickensiano foi possivelmente o primeiro grande representante da casta gerencial na
ficção britânica173. Convém lembrar que, nas classes dominantes da era vitoriana,
começava a surgir uma certa inquietação no que se referia à camada gerencial, no leque
que ia desde os diretores da mais alta patente até os supervisores mais rasos, todos
representantes de um mal necessário para o estabelecimento da efetiva supremacia dos

173
Ver Henkle, R.B. Comedy and Culture: England 1820-1900. Princeton: Princeton University Press,
1980, pp.111-84. Consultar também Duff, I.C. “Appalling Rush and Tremble: On the Metaphorical Use
of the Railway”. In: Critical Dimensions: English, German and Comparative Essays in Honour of
Aurelio Zanco. Critical Dimensions, 3. Cuneo, Italy: SASTE, 1978, pp.447-63.

160
empregadores. A consolidação de uma faixa de funcionários posicionada entre
capitalistas e proletários parecia trazer embutido mais um ingrediente de desafio ao
predomínio dos donos dos meios de produção. E de certo modo isso era baseado numa
verdade empírica: os gerentes possuíam um conhecimento mais completo e preciso
acerca do que acontecia nos locais de trabalho. Tal diferença em relação à quantidade de
informação e experiência, resultado prático da divisão das tarefas, fornecia as bases para
os conflitos de poder, ou seja, a cisão entre empregadores e gerentes deixava espaço
para que fossem questionados deveres, responsabilidades e autoridades – numa
reverberação que deixava mais explícita a contradição interna do sistema: a separação
entre os que apenas possuíam sua força de trabalho e os que possuíam os meios para que
tal força fosse efetivada. Contrariamente aos proletários, os níveis gerenciais recebiam
dados mais abrangentes sobre o processo de trabalho, o que lhes dava mais elementos
para juntar os pontos e delinear as imagens da exploração. Além disso, ao mesmo tempo
em que eram polias e roldanas na extração da mais-valia dos demais subordinados,
também viam sua própria mais-valia ser extraída. Assim, o narrador de Dombey e Filho
aborda tais contradições ao escolher um gerente-geral de uma empresa mercantil, ainda
mais se considerarmos que no ambiente dos escritórios as discrepâncias ficam bastante
evidentes e pronunciadas: em última instância, os empregados administrativos nada
mais são que trabalhadores assalariados, embora a distância do chão das fábricas crie o
ilusionismo de que suas funções são, por assim dizer, mais glamourosas – ainda que de
brilho reles. Em suma, estamos no típico alçapão em que caem as classes médias
quando chafurdam nos simulacros do que julgam ser o mundo da riqueza estabelecida.
Por outro lado, a escolha de Carker e também seu sacríficio em rito sumário dão pistas
de algo mais: os gerentes e o universo administrativo entraram conjuntamente nas
representações do século dezenove – e esse emparelhamento não foi casual, uma vez
que as ambiguïdades dos escritórios vitorianos espelhavam e eram produzidas pelas
ambigüidades institucionais do próprio papel dos gerentes174.

174
Ver Lockwood, D. The Blackcoated Worker: A Study in Class Consciousness. Oxford: Clarendon,
1989 e também Anderson, G. Victorian Clerks. Manchester: Manchester University Press, 1976.

161
Nesse particular quesito – mais um no conjunto das demais inconstâncias
sistêmicas – o dilema que passava a afligir os detentores das rédeas econômicas era: até
que ponto seria prudente delegar poder e autoridade para esse novo rebanho gerencial,
um rebanho dado a estripulias e com perigosas tendências a ter vontade própria? A
resposta do narrador de Dombey e Filho a tal dilema não poderia ser mais categórica:
Carker não havia sido nada confiável e Mr. Dombey, ao confiar-lhe o poder, viu-se
praticamente destituído de quaisquer funções – como se o capital prescindisse até
mesmo da figura dos capitalistas para continuar seu processo de valorização? ou, por
outra, como se um novo arranjo das forças produtivas, já disponíveis, pudesse
estabelecer novas relações de produção, pudesse quebrar as enrijecidas linhas
hierárquicas burguesas? De qualquer modo, as conclusões, se levadas às últimas
conseqüências, eram perturbadoras. Assim, o narrador evita questionar a autoridade dos
capitalistas, a organização dos escritórios, as instituições: tenta localizar a nota
desafinada num indivíduo, em Carker, mantendo as portas abertas para que jovens bem
intencionados e honestos, como Walter, fizessem bom uso das estruturas existentes. No
conhecido comportamento do narrador, vão sendo registradas as instabilidades e
inseguranças do progresso vitoriano, mas ao mesmo tempo tentando manter a validade
de suas instituições sócio-econômicas. Em decorrência disso, Carker vira bode
expiatório porque com suas articulações e maracutaias acabara mostrando a nudez do
sistema: o dinamismo do mercado, o poder prevalente do dinheiro, a modernidade
avassaladora – tudo isso aparecia como novo reino da liberdade, mas todos os caminhos
estavam bastante predeterminados de acordo com os interesses de uma classe. Carker
não podia vencer no mundo das carreiras aparentemente abertas ao mérito: seus limites
na hierarquia eram os da burguesia assalariada, num jogo com regras já anteriormente
definidas. Porém, também tais predeterminações começavam a escapar ao controle dos
homens da grande burguesia, como vimos em Mr. Dombey no seu pasmo sobre os
trilhos da modernidade. Desse modo, era mister retomar o controle, mostrar afinal que o
mundo da livre iniciativa não era o mundo em que todas as iniciativas eram livres. Em
decorrência disso, o narrador tenta preservar a moldura do sistema e centraliza os

162
problemas em Carker. Novamente as distorções ocorreriam no nível individual, nas
sutilezas das falhas morais e dos tropeços de caráter. Com a punição exemplar de
Carker, o narrador principia a curva ascendente para o término do romance em chave de
júbilo, no estabelecimento esfuziante de uma paz reencontrada.
Dito isso, nos aproximamos de um último desencaixe, significativo para a
compreensão de Dombey e Filho e para a obra de Dickens como um todo. Mais
claramente: ao longo de todo o romance, o narrador vai realizando uma tentativa de
apreender e ao mesmo tempo ocultar a verdade do modo de produção capitalista. Um de
seus grandes méritos é demonstrar as múltiplas conexões e determinações de uma
imbricada rede. Visto em totalidade, retomado a partir de suas partes já não mais
isoladas, Dombey e Filho não culpabiliza Carker, ou Mr. Dombey, ou qualquer outro
personagem – pois a investigação tenta olhar os crimes em vasto alcance. Desse modo, a
crucificação final de Carker surge como um último suspiro, quase espasmo desesperado,
para figurar a resolução de um conflito latente – e isso não contradiz o que dissemos
anteriormente, uma vez que evidentemente existe a mensagem da burguesia em relação
à defesa, custe o que custar, dos privilégios adquiridos, ou seja, a locomotiva
compressora será acionada assim que necessária, como aliás o foi nas repressões das
revoluções de 1848. Ocorre que, sendo ponto de inflexão, o narrador de Dombey e Filho
mantém estratégias anteriores enquanto formula novos caminhos. Em defesa de Dickens
contra seus admiradores, podemos dizer que o que está em processo aqui não é apenas o
encontro de um escritor com sua maturidade criadora, mas sobretudo o mapeamento de
um sistema em que tudo passava a ser mercável, em que uma empresa familiar já podia
ser utilizada para vislumbrar um princípio de organização: de um país, de um império,
de um modo de produção. Nessa dinâmica, um segredo começava a ser intuído: o de
que na base da geração da riqueza social se encontra a exploração, sempre coletiva e
individual, do trabalho alheio. Portanto, encobrir e desvelar tal exploração acaba sendo
a dança e contradança desse narrador, que na sua coreografia acaba necessariamente
esbarrando na aprendizagem de seu passo fundamental: entender o que seria o dinheiro
ou a circulação de mercadorias, a pista enigmática, a ponta do iceberg de uma maneira

163
hegemônica de organizar a vida social. Isso necessariamente traz à tona, não sem
resistências, o grande coletivo silenciado dos feios, sujos e malvados, espécie de outro
lado da moeda, do lado escuso do dinheiro, desse dinheiro que deve circular como
capital. Ao fim e ao cabo, esse arranjo especial tem de fazer uso de um certo indiscreto
charme da burguesia que sirva de ocultamento – mas que por sua indiscrição deixa
entrever sua lógica facínora, ainda que caminhe sob um disfarce: o estigma da
conciliação.
Dessa forma, a interdependência entre a fetichização do dinheiro e os
antagonismos de classe alcança em Dombey e Filho um momento central na obra de
Dickens – e que nos ajuda a entender alguns caminhos históricos. Se em seus romances
iniciais a importância dada ao dinheiro já aparecia de modo marcante, a abordagem do
universo das finanças ainda era feita, entretanto, por meio de um enfoque
individualizado, ou seja, o rico de má índole, normalmente um usurário cheio de,
digamos assim, energias negativas. Nesse sentido, em Nicholas Nickleby (1839) e Loja
de Antiguidades (1841) surgem os sentimentos de veio moralizante, com a usura sendo
condenada por permitir que pessoas ganhem dinheiro sem ter que trabalhar, o que acaba
maculando o poder da riqueza amealhada, nesta acepção, de modo ilegítimo.
Contrariamente a isso, os ricos benévolos são retratados como uma classe que tinha, em
algum momento no passado, trabalhado duro para conquistar a doce vida. Ou seja, são
normalmente elementos que participam de empresas onde o capitalista tem função
fundamental, e sua renda é direta decorrência de seu trabalho, como um bom
profissional das classes médias. Noutras palavras, a empresa capitalista é confundida
com a empresa individual, tão ao gosto da respeitabilidade que a pequena burguesia e a
burguesia assalariada gosta de atribuir ao regime de mercado. Esse estado de coisas,
agora no que tange ao aspecto das diferenças entre as classes, é retratado
fundamentalmente em nuance de leveza cômica, ainda que os contrastes estejam
presentes – e isso talvez possa ser dito até ao menos Martin Chuzzlewit (1844). Nas
Aventuras de Mr. Pickwick (1837), por exemplo, existe como que um equilíbrio
idealizado entre as classes ao final do romance. Em Oliver Twist (1839) uma crítica

164
mais severa começa a ser feita, principalmente quando a gangue dos ladrões mirins
serve como imitação, em tom de chacota, das maquinações e das idéias firmemente
aceitas pelas elites: pelo humor, a canalhice da grande burguesia é caricaturizada pelo
modus operandi da quadrilha dos garotos – mas as conexões não são imediatas,
prevalecendo uma ordem confiante no pacífico convívio entre as classes. Já em
Nicholas Nickleby (1839), existe uma primeira tentativa de dar forma ao heroísmo de
um jovem gentleman, que quer construir sua trajetória como realização do mito burguês,
da classe que merece estar no comando porque mais capacitada. Mas o que já se
anunciaria, parcialmente, em Martin Chuzzlewit (1844), seria adensado, formalizado no
romance seguinte, Dombey e Filho, ou seja, o ordenamendo baseado no vínculo
monetário e no antagonismo social chegava a um ponto de exaustão, e de crise de
comando: estamos às vesperas de 1848.
A partir do que emergira em Dombey e Filho, iniciando a nova fase das
promessas de felicidade e enxugando o sangue que ficara sobre os trilhos da
modernidade, a era do capital determina novo enfoque aos romances dickensianos. O
poder do dinheiro deixa de ser visto apenas sob a lupa individual para ser analisado
como fenômeno sistêmico. Assim, em Pequena Dorrit (1857), Grandes Esperanças
(1861) ou Nosso Amigo Comum (1865), os destinos dos personagens, os
desdobramentos dos enredos e a perspectiva narrativa mantêm todos uma estreita
simbiose com os ritmos e compassos dados pelo grande capital – que nunca tem seus
mistérios de origem ou funcionamento completamente esclarecidos. A vilania como que
passa a ser despersonalizada, às vezes encarnando nas bolsas de valores, outras vezes
em intrincados conglomerados de investimento e financiamento. Noutras palavras, tem
início o registro das relações cada vez mais siamesas entre o capitalismo industrial e a
gestação do capitalismo financeiro, num sugestivo levantamento das
complementaridades dos mecanismos de produção, de crédito – e de especulação. A
proliferação dos gigantescos tentáculos da esbórnia financeira torna cada vez mais
difíceis os finais felizes oriundos da simples mudança no coração de indivíduos
arrependidos. Desse modo, num romance como David Copperfield (1850), ainda

165
aparece como tentativa, ao menos na superfície, a criação de um universo das classes
médias que podem vencer pelo esforço: uma vez que as lutas coletivas eram
forçosamente abafadas, surgia a quimera do triunfo individual em meio à
incompreensibilidade do campo de batalha econômico-social. Ocorre que, já em torno
da própria saga de David, ficará como arqueologia do futuro a conexão entre a
concorrência ilimitada e o imenso rol de mortos e feridos, entre a falácia da
possibilidade dos progressos material e espiritual e a realidade da penúria perenemente
renovada. Tudo isso ficará ainda mais acentuado em Casa Soturna (1853) e em Grandes
Esperanças (1861). Nesse último, talvez com um dos títulos mais irônicos da história do
romance, Dickens deixa mais ácida sua observação de um mundo – de um mundo que
ainda é o nosso: em que as relações venais e incestuosas do poder financeiro e da esfera
do conhecimento e da cultura tentam a todo momento apagar o sangue da exploração
que teima em brotar nos trilhos da modernidade. Se, porém, essas proposições, que
dominaram a última década de vida de nosso autor, soarem demasiado agressivas e
sobremodo azedas nos dias de hoje, como uma fenomenologia do espírito de porco ao
molho inglês, vale lembrar: todos sabemos que a tradicional grosseria da gente fina
comumente tem a seu serviço a tradicional conivência da gente ilustrada. E tudo isso
pode ser excessivamente desprovido de charme para ambas as partes, pois como nos
ensina Flaubert numa passagem de sua correspondência do ano de 1872: “J’ai toujours
tâché de vivre dans une tour d’ivoire; mais une marée de merde en bat les murs, à la
faire crouler...”175

175
Tenho sempre tentado viver numa torre de marfim; mas uma maré de merda bate nas paredes dela,
fazendo-a desabar...

166
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