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Uma vida de exercícios: a bliográfico, melhorar sua performance física, alterar


antropotécnica de Peter Sloterdijk sua alimentação? Seguramente enquadram-se essas
tentativas de superação na direção de um estado
Franz J. Brüseke mental ou corporal tido como superior nesta nova
concepção de Sloterdijk: nossa vida é uma vida de
No seu mais recente livro, Você tem que mudar exercícios. Fazemos esses exercícios porque senti-
sua vida!, Peter Sloterdijk anuncia a virada antropo- mos uma “tensão vertical”, expressão cara ao autor.
técnica (Sloterdijk, 2009). Partindo da percepção Para entender o que são tensões verticais temos
que o próprio homem geraria o homem, ele se vol- que saber que todas as culturas, inclusive suas sub-
ta imediatamente contra posições semelhantes que culturas, são edificadas a partir de diferenças norte-
apontam o trabalho, a comunicação ou a interação adoras. Dessa forma valem, para culturas religiosas,
como veículos desta autoprodução humana. Com a diferença sagrado versus profano, para culturas
isso, deixa claro que não é Marx ou Habermas que aristocratas, nobre versus comum, para culturas
inspiram este livro de mais de setecentas páginas, cognitivas, conhecimento versus ignorância, para
mas que ele, o próprio Sloterdijk, teve uma ideia culturas militares, covarde versus valente, para cul-
original: O homem se produz através de exercícios. turas administrativas, subordinado versus superior,
O que é um exercício? “Como exercício defino para culturas políticas, poderoso versus impotente
qualquer operação que conserva ou melhora a qua- e assim adiante. Conhecemos uma argumentação
lificação do ator para realizar a mesma operação da semelhante de Niklas Luhmann para quem os di-
próxima vez, seja ela declarada como exercício ou versos sistemas sociais seguem um código binário
não” (Idem, p. 14). que constitui sua identidade, possibilita sua comu-
Sloterdijk recomenda nada menos que sus- nicação interna e regulamenta e restringe, ao mes-
pender todas as interpretações do homem como mo tempo, sua comunicação com seu ambiente
“trabalhador” ou “comunicador” para traduzir na (Luhmann, 1984). Sloterdijk, todavia, dá um passo
linguagem do exercício o que conhecemos até en- além; ele atribui a um dos polos um valor mais alto
tão como manifestações do homo faber ou homo do que a outro. O primeiro torna-se um atrativo, o
religiosus. Com referência à religião, já podemos an- segundo ganha a função de grandeza negativa, a ser
tecipar que esta, a partir dessa manobra epistêmica evitada pelos atores. Entendemos que a horizontali-
de Sloterdijk, deixa de existir, ou como ele mesmo dade dos códigos binários de Luhmann se transfor-
diz: “religiões não existem” (Idem, p. 133). Um lei- ma, assim, na verticalidade de grandezas superiores
tor não avisado vai certamente se surpreender com e inferiores, na concepção de Sloterdijk. Entre estes
o estilo argumentativo do autor. Pois, nos tempos polos negativos e positivos surge uma dinâmica que
do politicamente correto, que hoje também dita os exerce sobre o homem uma influência orientado-
hábitos da academia, é difícil encontrar outro que ra que é, ao mesmo tempo, tensa. Orientadora,
domina com tanta maestria a linguagem da polê- porque define claramente a direção a ser tomada,
mica e a astúcia da argumentação sem perder as tensa, porque exige do homem um esforço – e per-
oportunidades em que uma refinada ironia dá um manentes exercícios – para superar um estado dado
tom leve às provocações pesadas. a favor de uma superioridade ainda não alcançada.
Já o título do livro engana, ou melhor, apresen- “Você tem que mudar sua vida!” assim resume Slo-
ta uma pista falsa que, depois de ter concluído a lei- terdijk, apropriando-se de uma expressão de Rilke
tura, vai se revelar (ironicamente) como o caminho no poema “Torso arcaico de Apolo”, o apelo que
certo. A expectativa era de ter adquirido um livro emana da tensão vertical.
de autoajuda. “Você tem que mudar sua vida!” não Exercitar-se exige uma postura ascética, neces-
seria um apelo típico deste gênero de publicação? sária para garantir as energias que os permanentes
Não ouvimos, inclusive dos nossos professores, per- esforços de se aproximar do ideal e de evitar a deca-
sonal trainers e conselheiros de dietas exatamente dência consomem. É compreensível que Sloterdijk
isso: você deve mudar! Ampliar seu domínio bi- tome Friedrich Nietzsche como ponto de referên-

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cia, já que este na sua Genealogia da moral apresen- aliás, ele é um mestre: evoca e provoca constante-
tou a ascese como base de todas as culturas religio- mente aquele ambiente que Heidegger, em Ser e
sas e suas condutas morais. Curiosamente, os ideais tempo, tinha identificado como o falatório do man:
ascéticos retornam na virada do século XIX para o um linguajar que reproduz o que todos opinam e
XX. Desta vez não como sine qua non de uma nova que todos falam (Heidegger, 1973 [1927]).
religiosidade, mas, pelo contrário, como expressão São várias as alternativas que temos hoje para
da descoberta e valorização do corpo humano. O nos referir aos “excepcionais”. Sloterdijk, contudo,
atletismo, sob o pretexto da restauração do olim- não quer perder o horizonte maior que a denomi-
pismo da antiguidade, reativa o asceta, que, fora de nação “aleijado” abre quando observamos a existên-
qualquer contexto transcendental, tenta se superar cia humana além da sua normalidade. E era isso
para conseguir competir com outros atletas envol- que Unthan queria: alcançar a normalidade que
vidos no mesmo projeto de autossuperação. seus colegas músicos viviam. Nesse projeto de vida,
Sloterdijk constata que o renascimento atlético ele partiu de um patamar de visível inferioridade.
e somático possibilita e requer “asceses desespiritua­ Tocar violino sem braços, mãos e dedos? Como?
lizadas” e responde à indagação de Nietzsche no Mobilizado por um valor estético-musical, radica-
final da Genealogia sobre valores que seriam ca- lizado por uma musicalidade excepcional, sentiu
pazes de orientar a vida depois do crepúsculo dos uma tensão vertical que o levou aos permanentes
deuses. “A vitalidade, entendida somaticamente e exercícios, na base de uma concentração que somen-
espiritual­mente, é mesmo o meio que contém um te ascetas alcançam.
desnível entre o mais e o menos. Ela tem dentro
de si o movimento vertical que orienta as subidas, Em uma palavra, nós tínhamos que falar sobre
ela não precisa adicionalmente atratores externos e os incapacitados, sobre os com outra constitui-
metafísicos. Que Deus deve estar morto, neste con- ção, para encontrar uma expressão que articula
texto, não importa. Com ou sem Deus cada um a constituição geral de seres sob tensão vertical.
chega somente tão longe quanto a sua forma [físi- “Você tem que mudar sua vida!” isso significa
ca] permite” (Idem, p. 67). [...]. Você deve prestar atenção para a sua ver-
tical interior e examinar como a tração do polo
superior age sobre você! Não é o andar reto
A lição dos aleijados que transforma o homem em homem, mas a
consciência emergente do desnível interior que
Aqueles que não dispõem das habilidades ple- faz com que o homem se levante (Sloterdijk,
nas do seu corpo, porque nasceram, como Carl 2009, p. 99).
Hermann Unthan (1848-1929), sem os dois bra-
ços, sabem melhor do que os outros o que significa
tentar expandir sua capacidade (Unthan, 1925). A desespiritualização da ascese
Unthan descobriu na idade de 7 anos a possibili-
dade de usar seus pés para aprender a tocar violino. Além de exercitar nossas habilidades com o
Ele desenvolveu neste instrumento uma virtuosi- intuito de levantar o seu nível, podemos exercitar
dade que o levou a várias viagens e apresentações não fazer exercícios direcionados. Mestre perfeito
internacionais, conseguindo um reconhecimento nessa recusa de se aperfeiçoar é Emile M. Cioran
artístico até entre músicos de grande prestígio, en- (2008). Sua obra literária fornece rico material
tre eles Johann Strauss e Franz Liszt. Sloterdijk se que podemos chamar de “desespiritualização da
interessa pela biografia deste aleijado, porque vê ascese”; ascese que, todavia, não abdica da tensão
nele o exemplo do atleta ascético, transformado, vertical. Essa desespiritualização é somente o outro
observado mais de perto, num acrobata. Sloterdijk lado da informalização da espiritualidade, presente
usa a palavra “aleijado” com gosto, sabendo que nas religiosidades (pós-modernas) privatizadas ou
seu uso causa hoje imediatamente objeções. Nisso, no misticismo sectário de nossos dias. Os exercí-

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cios negativos, apesar da sua negação em se render a dimensão antropotécnica. Primeiro, do lado
a tração da tensão vertical, não conseguem escapar dogmático: um clube de exercícios ilusionistas,
daquilo que Nietzsche identificou como pano de rigidamente organizado, cujos membros no
fundo da moral: a ascese. Uma leitura do conto de decorrer do tempo estão sendo impregnados
Franz Kafka Der Hungerkünstler [O artista da fome] com as concepções do milieu. Em seguida, do
pode confirmar esta interpretação. lado psicotécnico: um roteiro de treinamento
No exemplo do movimento olímpico e da para a exploração de todas as chances na luta
scientology church, Sloterdijk explana detalhada- de sobrevivência. Observamos, por fim, o topo
mente sua tese, nesta altura ainda estranha, da do movimento; podemos ver tudo, mas ne-
inexistência das religiões. O movimento olímpico, nhum “fundador de religião”: na nossa frente
concebido por Coubertin como um movimento está um inescrupuloso, radicalmente irônico,
atlético de cunho religioso, escapou das mãos do flexível para todos os lados, business-trainer
seu instituidor, na medida em que não se assumiu (Idem, p. 168).
de forma duradoura como religião. Depois dos
primeiros jogos dos tempos modernos, em 1896,
revelou-se o atletismo olímpico, na leitura antro- A conquista do improvável
potécnica de Sloterdijk, como mais um sistema de mediante a disciplina
exercícios e obra de regulamentações para garantir
a autoformação do comportamento interior e exte- Sloterdijk pretende nada menos do que elabo-
rior dos atletas. Expressis verbis diz o autor: rar as bases de uma nova antropologia material na
base de uma antropotecnologia geral. Avançando
Sejam cristãs ou não-cristãs, elas [as religiões] neste empreendimento reconhece que alguns au-
formam materialiter e formaliter nada dife- tores já colocaram o pé no terreno, não obstante,
rente do que complexos de ações interiores e seria necessário reexaminar o campo humano à luz
exteriores, sistemas de exercícios simbólicos e de uma ascetologia geral. Reafirmando com isso
protocolos para a regulamentação da relação Friedrich Nietzsche como ponto de partida, o autor
com fatores superiores estressantes e poderes aponta as primeiras contribuições para a pretendida
“transcendentais” – com uma palavra antropo- antropotécnica em Arnold Gehlen (com sua teoria
técnicas de modo implícito (Sloterdijk, 2009, da importância das instituições para o indivíduo),
p. 139). Jacques Lacan (com sua defesa da ordem simbóli-
ca), Pierre Bourdieu (com seu conceito de habitus),
O movimento atlético, enquanto somatismo, além das pesquisas de alguns etnolinguistas inspi-
era condenado a se integrar na cultura de massas rados em Wittgenstein e historiadores do discurso
e afirmou-se, com cada repetição, como uma pro- na tradição de Michel Foucault. Quem, todavia,
fana máquina de eventos. O movimento olímpico achava que Sloterdijk teria com isso revelado algo
pode ser visto hoje como o exemplo mais nítido da que podemos chamar de um referencial teórico, um
desespiritualização da ascese, exemplo que deve in- tanto heterodoxo, vai assistir a uma leitura bastante
cluir todo esportismo do século XX, sem esquecer crítica dos mencionados autores.
os exercitantes nas “academias” contemporâneas. Sloterdijk (2006) já tinha mostrado no seu livro
A fundação de seitas “esotéricas”, igrejas “pro- Zorn und Zeit [Ira e tempo], no contexto de uma psi-
testantes”, “religiões” da mais bizarra natureza, en- cologia política, como orgulho, ambição e vaidade
tre elas a scientology church, são para Sloterdijk nada contribuem para uma verticalização da vida social.
mais do que procedimentos antropotécnicos: Com isso despede-se de uma teoria da estratificação
social na base de dominação, repressão e privilégio.
Se reduzimos essas “religiões” às suas caracterís- Ele propõe uma teoria que compreende o discipli-
ticas essenciais, surgem três complexos básicos namento individual (ascese, virtuosidade e desem-
dos quais cada um tem uma relação clara com penho) como causa da diferenciação vertical. É um

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tanto óbvio que Michel Foucault seja o patrocina- dar com um aspecto importante na obra de um au-
dor deste viés interpretativo, pois foi ele quem de- tor para criticar, a partir daí, o conjunto da mesma,
nunciou nos anos de 1970 a íntima relação entre Sloterdijk deve também aplicar no caso de Bour-
discurso e disciplina. Também Wittgenstein, com dieu e, de certa maneira, em Foucault.
sua análise dos jogos de linguagem, vinculou esta
última com figuras comportamentais e abriu para
a sociologia a possibilidade de compreender estru- Adestramento e liberdade
turas ritualísticas latentes, contidas dentro dos pró-
prios jogos comunicativos. Foucault continua onde Wittgenstein termi-
A colocação en passant de Wittgenstein de que nou: mostra que disciplinas científicas são nada
a cultura seja uma regra para uma ordem monás- menos do que práticas discursivas, isto é, jogos
tica é explorada por Sloterdijk na direção de uma linguísticos compostos (Foucault, 1966) e assim
teoria de secessão, pois a dinâmica separatista da exercícios e performance. Sloterdijk se interessa pelo
vida monástica – separando severamente compor- Foucault maduro que, nos últimos anos da vida,
tamentos, posturas e pensamentos permitidos dos tinha se libertado dos “restos paranoides das suas
proibidos – seria também a matriz daquilo que análises do poder [...]. Somente com uma postura
chamamos cultura. Sob cultura entendem, tanto metódica serena, tardiamente adquirida, conseguiu
Wittgenstein como Sloterdijk, não o conjunto de formular um conceito de regimes, disciplinas e jo-
todas as formas comportamentais possíveis dentro gos de poder, no qual não se expressavam mais re-
de uma determinada sociedade, mas esse restante flexos antiautoritários obsessivos”. E o autor atesta
de formas de vida que passam pelo crivo da regra; que Foucault conseguiu agora ver “que os homens
regra esta colocada num nível tão alto que somente não são, nas suas demandas de liberdade e autode-
poucos seriam capazes de cumpri-la. Wittgenstein, terminação, reprimidos pelas disciplinas, regimes e
Nietzsche, Heidegger e até mesmo Foucault são, jogos de poder, mas, possibilitados. O poder não
nessa mesma perspectiva, representantes de uma é um adendo restritivo a uma capacidade original-
filosofia enquanto disciplina, isto é, ela, a filosofia, mente livre, ele é, para a capacidade em todas as va-
é mais que uma matéria escolar: está engajada e ca- riações, constitutivo” (Sloterdijk, 2009, p. 241). O
racterizada pela tensão vertical. próprio Foucault parece corroborar com seu leitor
Com essa leitura de Wittgenstein, Sloterdijk dizendo: “Naturalmente era impossível libertar os
opõe-se às diversas vertentes da filosofia analítica homens, sem adestrá-los” (Foucault, 1996, p. 37).
anglo-americana, que querem ver no filósofo dos Curioso que Foucault consiga até hoje atrair
jogos de linguagem um igualitarista e relativista. leitores que veem nas análises de asilos, clínicas
Muito pelo contrário, Sloterdijk apresenta Witt- psiquiátricas, prisões etc. somente uma forma deta-
genstein como a “expressão mais dura do elitismo lhada de crítica à sociedade. Sloterdijk disputa com
ético do século XX” (Sloterdijk, 2009, p. 222). Na esses “conformistas críticos”, como ele mesmo os
verdade, os jogos de linguagem seriam modelos mi- denomina, a herança de um autor que fez com seus
croascéticos, isto é, exercícios linguísticos práticos, estudos extensos exercícios de formação do próprio
na base da imitação. A teoria de Wittgenstein silen- self, depois de ter tentado, ainda jovem, duas vezes
ciaria que os jogos linguísticos comuns treinam o o suicídio.
que no fundo não deveria ser treinado, afirmando A tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem
a mediocridade do seu conteúdo. Oscilando entre grande relevância para a ética e a pedagogia. Para
um Wittgenstein defensor da cultura como regra a primeira, porque estabelece uma hierarquia entre
de uma ordem monástica e um Wittgenstein fa- valores, sem as quais qualquer ética esvanece. Para a
zendo concessões à dimensão ordinária dos jogos segunda, porque convoca tanto o educador como o
linguísticos, Sloterdijk toma partido do primeiro, educando para perseguir algo mais alto que está, de
superando dessa maneira Wittgenstein com o pró- forma embrionária, contido na alma e no corpo do
prio Wittgenstein. Este procedimento, de concor- discípulo. Já as palavras educador, educando e dis-

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cípulo remetem etimologicamente à liderança e à vantagem do conceito de habitus seria ter resolvi-
disciplina, fornecendo pistas para um mais adequa- do o que dentro do marxismo não seria possível
do entendimento do processo pedagógico. “Você responder: como a base ou a “infraestrutura” se re-
deve mudar sua vida!” é sim uma máxima pedagó- fletiria na “superestrutura” ou, formulando o pro-
gica. Acontece que nos seus mais de dois mil anos a blema de modo diferente, como a sociedade con-
pedagogia europeia oscila entre dois extremos. Ou seguiria penetrar o indivíduo de forma duradoura.
sufocava os educandos abaixo de uma disciplina de- O conceito de habitus mostraria como, mediante
masiadamente autoritária ou queria ver nas crianças um adestramento psicossomático e dependente da
e adolescentes, adultos sem necessidade de regula- origem social, o momento social torna-se uma dis-
mentação e exercício permanente. Paixões destruti- posição individual. O habitus pode ser chamado de
vas ou obsessões precisam de moderação através de uma consciência de classe somatizada, que molda
exercícios repetitivos para abrir a passagem, num em analogia à língua materna toda a capacidade de
determinado momento do desenvolvimento, para expressividade do indivíduo. Na medida em que
um crescimento guiado pela vontade e esforços Bourdieu injeta a base social na estrutura psicosso-
próprios. Apesar dessa clara rejeição a qualquer an- mática do sujeito, ele perderia a capacidade de des-
tiautoritarismo e liberalismo pedagógico, Sloterdijk crever de forma adequada as tensões verticais nos
rejeita um conceito repressivo de ascese enquanto campos variados do espaço social (Sloterdijk, 2009,
ditadura sobre a natureza interna (Sloterdijk, 2009, p. 285). As grandes contribuições de Bourdieu so-
p. 268). bre as distinções e o homo academicus resultariam,
por isso, não da aplicação do conceito de habitus,
mas da capacidade de Bourdieu em observar deta-
Além do habitus lhadamente mecanismos de ranking social. A fra-
queza decisiva do conceito de habitus consistiria
Sloterdijk cumprimenta, com certo tom de me- todavia
nosprezo, Pierre Bourdieu entre seus autores de re-
ferência. Não quer abrir mão dele porque precisa [...] que de nenhuma maneira consegue com-
do seu conceito de habitus. Não obstante, critica preender adequadamente aquilo que preten-
em Bourdieu uma mentalidade de querer ficar na de explicar, isto é, a região dos “costumes”. A
“planície” da vida e do pensamento. Vê na obra grande tradição da reflexão filosófica e psico-
dele uma sociologia do “acampamento básico”, fisiológica sobre o papel dos costumes no pro-
nesta planície que negaria qualquer tensão vertical; cesso da formação da existência humana enco-
objeção, aliás, que Sloterdijk também direciona a lhe, neste autor, até um resíduo útil para o fim
Jürgen Habermas, cujas publicações sobre a ação da crítica da dominação. Em vez de entrar no
comunicativa se leem, “como folhetos sobre a am- panorama da formação efetiva do sujeito por
pliação definitiva de acampamentos básicos em re- meio do exercício, do treinamento e da adapta-
giões planas” (Idem, p. 281). ção, a teoria de habitus à la Bourdieu contenta-
Deixando de lado os pormenores do sempre -se com o segmento estreito dos costumes, que
irreverente Sloterdijk, que desde a Kritik der zynis- são os sedimentos da “classe dentro de nós” –
chen Vernunft [Razão cínica] (1983) cultiva um es- ela engana o usuário e reduz a plenitude daqui-
tilo inédito e, para muitos, refrescante, no cenário lo que o seu nome indica (Idem, pp. 287-289).
acadêmico alemão, algumas considerações sobre o
conceito de habitus na perspectiva antropotécnica O conceito de habitus de Bordieu fica, na pers-
do autor. Na obra de Bourdieu, o conceito de ha- pectiva crítica de Sloterdijk, incapaz de entender
bitus seria a inovação conceitual mais importante e as formas individualizadas de projetos existenciais
um dos instrumentos mais frutíferos da sociologia do self. O habitus representaria somente o típico e
contemporânea. Todavia, Bourdieu mesmo usaria médio, identificando como base somente “a classe
esse conceito de forma bastante reduzida. A maior dentro de nós”. Para atualizar todas as potenciali-

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dades do conceito Sloterdijk retorna a Tomás de Sloterdijk sente menosprezo por uma sociologia da
Aquino e Aristóteles. Estes com seus conceitos me- identidade que somente pode expressar para ele a
dieval de habitus (Aquino) e antigo de hexis (Aris- mentalidade típica dos moradores do acampamen-
tóteles) teriam desenvolvido conceitos antropoló- to básico instalado na planície da preguiça.
gicos que A própria humanidade, apesar do fato de en-
contrarmos costumes e tradições diferentes em cada
[...] descrevem um processo aparentemente momento da sua história, não seguiu o roteiro con-
mecânico sob os aspectos da inércia e da supe- servador da identidade. Para evidenciar isso, Sloter-
ração para explicar a encarnação do espiritual. dijk apresenta uma teoria do desenvolvimento cul-
Eles identificam o homem como aquele animal tural. Com Karl Jaspers constata que, entre 800aC
que pode o que deve, se alguém se importou e 200aC na China, na Índia, na Pérsia, na Palesti-
em tempo com suas habilidades. No mesmo na e na Grécia, aconteceu uma mudança de nível.
momento percebem como as disposições al- Nesse período, com um passo na direção do uni-
cançadas continuam crescendo na direção de versal (Jaspers, 1949), as culturas humanas nestas
novas superações (Idem, p. 289). regiões superaram o seu estado atual de desenvol-
vimento para colocar no seu lugar uma civilização
Assim, a teoria do habitus aponta referente a mais intelectualizada e espiritualizada. Surgiram as
qualquer costume e habilidade na direção da supe- chamadas culturas altas (Hochkulturen, grandes ci-
ração do seu estado atual. Sob a perspectiva da ten- vilizações) que deveriam, nos próximos 2 mil anos,
são vertical é possível formular uma tensão artística moldar tudo o que nós entendemos até hoje como
do Bem, pois até aquilo que já está bom ainda pode civilizado. O que aconteceu neste tempo foi, na in-
ser melhorado. Depois de ter o conceito de habi- terpretação de Sloterdijk, um movimento cultural
tus desta maneira ampliado e liberado de sua carga que interpretava as paixões, os costumes e as ideias
classista, Sloterdijk entende sua crítica a Bourdieu a partir de outro ângulo.
não como destrutiva, mas destaca que este con- O homem, descobrindo que está possuído
tribuiu decisivamente, como aliás, Wittgenstein e por paixões, tenta chegar ao outro lado delas, isto
Foucault, para a compreensão do comportamento é, emancipa-se da sua mera passividade passional,
como exercício. para desenvolver uma arte do sofrimento. Tam-
bém, os costumes que mantêm o homem numa
situação de prisioneiro de rotinas vão ser reinter-
Identidade e preguiça pretados para que possam ser dominados e substi-
tuídos. E, por fim, as culturas humanas da referida
Existe uma situação de pseudoverticalidade, na época tentam e conseguem pôr ordem na desor-
qual as pessoas ou coletivos se distinguem sem ter a dem das representações e pensamentos confusos.
possibilidade e o direito de se diferenciar hierarqui- Entendemos que nenhuma das civilizações huma-
camente. De certa maneira, o conceito sociológico nas se tornou idêntica à outra, o que elas têm em
de identidade opõe-se ao conceito de habitus, com comum é este movimento de superação, elevação
suas distinções delicadas. Mais ainda: a identidade, e desenvolvimento.
transformada em valor, é um conjunto de qualida- Nesses seiscentos anos, denominados por Karl
des pessoais ou culturais tidas como imutáveis. É a Jaspers tempo axial (Achsenzeit), nos quais as gran-
inércia que toma conta do sistema cultural levado a des civilizações mundiais nascem, surge a diferença
uma veneração de si mesmo. O idêntico descobre- antropotécnica. Ela emerge como cultivo do exer-
-se como idêntico e faz tudo para continuar sendo cício que tenta romper o poder do costume e da
idêntico. É lógico que a tensão vertical passa longe possessão pelas paixões, rotinas e representações
da identidade. A chamada “Você deve mudar sua desordenadas mediante a mobilização contrária dos
vida!” transforma-se para os ouvidos do idêntico em mesmos mecanismos que dão, até então, força às
“Continue sendo como você é!”. Subentende-se que repetições paralisantes. Curiosamente, é a própria

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repetição o ponto de partida para o rompimento profetas e samnyasins. Monastérios, localizados em


com a dominação pelas repetições. lugares especiais e afastados, tornam-se escolas de
Com a descoberta disso, abre-se o caminho uma vida surreal aparentemente disfuncional para
ainda incipiente da antropotécnica e nasce uma a sociedade que foi deixada para trás. O que, neste
primitiva pedagogia como tentativa de influenciar, processo, acontece com o espaço, podemos, com
in statu nascendi, a acostumação das crianças e jo- Michel Foucault, denominar heterotopia, que é a
vens por meio de exercícios repetitivos. A pedago- validez de regras dentro de enclaves, estranhas ao
gia antiga baseia-se, como a mecânica clássica, na espaço circundante. O espaço excêntrico, no entan-
ideia de que as forças da inércia podem ser coloca- to, nem precisa se fixar definitivamente em algum
das a serviço da superação das forças da inércia. A lugar. Os peregrinos o carregam, de certa forma, no
alavanca e as roldanas com as quais forças menores interior da sua alma, que é um refúgio protegido
superaram forças maiores são produtos da astúcia por um sistema imunológico formado por regras e
humana, que conseguiu superar a natureza com exercícios.
as próprias armas. “A partir de agora vale: Repeti- Apesar de ser minoria, os excêntricos ganham,
tio est mater studiorum. As forças humanas minús- na posse do saber da salvação, uma importância
culas podem causar o impossível se forem multi- para toda a sociedade. “‘O homem’ surge de uma
plicadas com o caminho mais longo do exercício” pequena minoria de extremistas ascéticos que se
(Sloterdijk, 2009, p. 312). O ascetismo de diversas destacam da multidão para afirmar que eles mesmo
escolas espirituais alimenta-se dessa esperança, es- são, na verdade, todos” (Idem, p. 349). Neste mes-
tendendo a elevação pelo exercício até a tentativa mo processo surge uma subjetividade de enclave
de alcançar, seguindo a atração sentida pela tensão que leva a um primeiro ápice a ocupação do ho-
vertical, o divino. mem consigo mesmo e seus estados interiores; esta-
mos diante de uma forma originária do cuidado de
si, para usar outro termo de Foucault. A subjetivi-
Procedimentos de exagero e subjetividade dade de enclave somente pode ser mantida quando
de enclave consegue evitar as infiltrações do seu arredor para
dentro da sua interioridade. Para a vida contem-
Existe uma ruptura, que Sloterdijk denomina plativa o problema principal é, nessa perspectiva, o
secessão, entre aqueles que partiram para escolher controle das aberturas sensoriais e dos nexos comu-
uma vida em exercícios e o mundo cotidiano, que nicativos. A constatação de Norbert Elias, de que
se assemelha a um rio das acomodações inquestio- o processo civilizatório, observado por ele desde a
nadas. A condução disciplinada da vida de poucos, alta Idade Média, dependeria de um controle cres-
sobre o signo da verticalidade, abre o caminho na cente dos afetos (Elias, 1939/1990), encontra sua
direção do desenvolvimento de civilizações comple- radicalização na tese de Sloterdijk de que a vida
xas (Hochkulturen). A verdadeira conversão acon- contemplativa em si depende de uma desaffektion,
tece com essa secessão; ela se baseia na diferença da aniquilação dos afetos.
ética e é mais do que uma mera troca de confissão
religiosa. A secessão como saída do mundo ordiná-
rio introduz uma novidade: ela separa os que sabem Técnicas de solidão
daqueles que não sabem. Essa assimetria entre os
homens é um desafio permanente de tudo aqui- O controle da comunicação, conditio sine qua
lo que é, pois introduz medidas que não são deste non da subjetivação de enclave ou de secessão, leva
mundo. Até o espaço geográfico não é mais o que só aparentemente a uma total ausência de verba-
era antes da secessão. Surgem refúgios e lugares lização. Acontece que uma regulamentada práti-
onde os excêntricos, isto é, não ordinários, se dedi- ca de solilóquios transporta a retórica externa em
cam aos seus exercícios. Cavernas, lugares desérti- grande parte para dentro do indivíduo. Por meio
cos, topos de morros ou bosques abrigam eremitas, de uma autoduplicação assimétrica, o “eremita” dri-

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bla uma situação difícil de suportar. Este procedi- é o preço a ser pago, individualmente e socialmen-
mento põe à disposição dele um observador interno te, pela mais alta excepcionalidade. Quem além do
que, como um vigia ou anjo pessoal, fornece e es- excepcional, aliás, seria capaz de reconhecer plena-
tabiliza o saber de cura e salvação. Esse saber movi- mente o excepcional?
menta-se em círculos num jogo linguístico sem fim,
com o objetivo da elevação do sujeito contemplativo
(Macho, 2000, p. 362). As práticas endoretóricas Os treinadores e mestres
consistem em rezas, recitações rituais, monólogos
e outras falas silenciosas, normalmente praticadas A cultura é, para Sloterdijk, um sistema de
repetidamente, chegando a verdadeiros diálogos in- adestramento para transpor de uma geração para as
ternos. O sujeito vai ouvir do seu outro interno o outras conteúdos cognitivos e morais, importantes
que deve ser e vai saber com base em um autoexame para a sobrevivência delas. Nesta linha, denomina
regular se está na altura das exigências internalizadas. Hochkultur (cultura alta; civilização complexa) um
sistema de reprodução de funções hiperbólicas, isto
Todos os exercícios, sejam eles de natureza é, funções improváveis e sob tensão permanente, sus-
yoga, atlética, filosófica ou musical, somente tentadas por elites. A estabilização das funções hiper-
podem acontecer se suportados por processos bólicas exige paradigmas e exemplos (Leitbilder) en-
endoretóricos, nos quais atos da autoexortação, cravados no imaginário coletivo, mediante sistemas
do autoexame e da autoavaliação, sob os crité- de exercícios e hierarquização. A instância de trans-
rios da tradição escolar específica e sob aponta- formação do improvável em provável, por meio da
mento contínuo na direção dos mestres que já repetição e do exercício, vai ser denominada escola.
alcançaram o objetivo, têm um papel decisivo O ponto de partida da repetição é, curiosamente, o
(Sloterdijk, 2009, p. 369). miraculoso e o extraordinário. Sloterdijk:

São inúmeras as chances de fracasso neste Falamos abertamente sobre o paradoxo bá-
empreendimento. Qualquer atração pela vida or- sico de qualquer Hochkultur: Ela resulta da
dinária, ainda sentida, significa o fim da ascensão sua orientação por excessos hiperbólicos e
vertical. Também a transfiguração de exercícios de acrobáticos, observados sempre a partir do
secessão em medidas de formação da identidade co- pressuposto de que eles sejam aptos para sua
letiva significa o desvio do caminho. Formas exi- imitação e normalização. Na medida em que
gentes de recessão espiritual podem degenerar em Hochkulturen fazem de um desempenho ex-
uma simples possessão. Até a simples confissão da cepcional uma convenção, elas geram uma
fé enquadra-se aqui. “Essa fé é hooliganismo em tensão patogênica [...] a qual respondem os
nome de deus” (Idem, p. 372). participantes do jogo paradoxal, suficiente-
O egocentrismo espiritual, com sua tendência mente inteligentes, [...] com a formação de
para escapismo e evasão, precisa de fortes contra- um mundo interior, cronicamente reflexivo e
pesos para compensar seu viés radical. No contexto transtornado (Idem, p. 428).
do cristianismo desenvolveram-se, consequente-
mente, exercícios de humildade e humilhação vol- O curriculum vitae de uma elite, elevado a pa-
tados para os indivíduos avançados no caminho da radigma, é praticamente inalcançável, não obstan-
santificação. O santo não pode saber que é santo. O te serve de matriz para as próximas gerações, que
fato de até mesmo o papa ser apenas um humilde não podem ignorá-lo, obrigando-as a exercícios
servidor da igreja mostra-se de forma ritualizada na miméticos.
lavação dos pés dos subalternos na véspera da pai- Nesses exercícios a figura do treinador é in-
xão de Cristo. Rito, aliás, repetido pelos padres ca- dispensável. Sloterdijk identifica cinco tipos de
tólicos na mais remota paróquia. Todavia, é impos- treinadores espirituais que tentam, a princípio,
sível negar que o egocentrismo dos mais avançados mostrar que caminhos surreais e aparentemen-

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te impossíveis são realizáveis. Eles são: o guru da degger e Sartre, passa a discutir a “projetualidade”
tradição bramânica-hinduísta, o mestre da dou- do indivíduo moderno (Galimberti, 2006) e Sloter-
trina budista de iluminação, o apóstolo ou abade dijk, em conhecimento de causa, amplia:
como imitadores de Cristo, o filósofo na condi-
ção de testemunha da busca da verdade e o sofis- No decorrer do esclarecimento antropológico
ta como mestre da arte de viver (Idem, p. 433). torna-se nítido o grau elevado do envolvimen-
Além disso, surgiram treinadores e instrutores de to de cada um nas tensões verticais e efeitos
cunho mais pragmático ou artístico, que perde- hierárquicos do tipo não político. Se ser-aí sig-
ram sua santidade porque já passaram pela estan- nifica a atualização pessoal de chances de habi-
dardização e popularização. Eles são mestres de lidades, cada um se movimenta desde sempre
uma profissão artesanal, professores acadêmicos, numa escala do mais ou menos, na qual ele
professores comuns e escritores, dedicados à causa mesmo se posiciona com base nos resultados
do esclarecimento, ou, como no caso do atletismo de seus esforços, sem que ele pudesse desqua-
futebolístico, “técnicos” mesmo. Sloterdijk atribui lificar os primeiros colocados como repressores
aos exercícios monásticos, sob orientação de um (Sloterdijk, 2009, p. 515).
“apóstolo”, e à orientação dos aprendizes pelos
mestres de diversas profissões artesanais o papel As práticas ascéticas, indispensáveis também
que Max Weber atribuiu à ética protestante: de entre os modernos, ocultam-se sob os nomes da
ser o fator principal e responsável pelo deslancha- arte, da formação e do trabalho. Somente no atle-
mento da economia capitalista (Weber, 1985). tismo contemporâneo assumem-se as práticas ascé-
ticas como tais.
Nós já sabemos: ascese desespiritualizada sig-
Exercícios modernos nifica treinamento. E esse metodismo fora do con-
texto religioso fez com que os europeus ganhassem
Voltando-se explicitamente contra uma po- uma vantagem, na condição de executores de exer-
sição, frequentemente defendida por leitores de cícios, sobre as outras regiões mundiais. A política
Foucault, Sloterdijk afirma que as prisões e outras expansionista europeia não teria tido sucesso sem
instituições de vigilância repressiva não são o lugar essa diferença, que obrigou todas as populações
central da produção do homem moderno, mas sim mundiais a entrar num novo ciclo de treinamentos.
as escolas, as universidades, as oficinas e os ateliês Culturas que já tinham preparadas suas populações
artísticos. Aqui acontece uma verdadeira ortope- para as disciplinas modernas através de sistemas
dia humana formando com todos os meios da an- de adestramento feudal, como Japão e China, ti-
tropotécnica uma nova juventude. Os homens da nham visivelmente menos dificuldades para entrar
modernidade adicionavam ao experimentalismo no novo ritmo do que outras culturas, mais con-
ascético da antiguidade o experimentalismo técni- templativas ou mais hedonistas. Sloterdijk propõe
co e artístico e, mais tarde, a partir da Revolução interpretar aquilo que chamamos globalização, na
Francesa, o experimentalismo político, que deveria base de uma integração das suas dimensões men-
encontrar no comunismo soviético e chinês seu tais, morais e técnicas. Com isso, na sua análise das
apogeu. A vita activa, na modernidade emergente, causas do triunfo da modernidade, ele vai além de
deveria substituir gradativamente a vita contem- uma mera análise do papel dos sistemas discipli-
plativa, inserindo como consequência do trabalho nares e do ordenamento (Foucault) ou do contro-
industrial o trabalhador no mundo. Este é resul- le dos afetos (Elias), e vai além da famosa tese do
tado, como os outros que se exercitam, dos efeitos racionalismo ocidental e sua vocação para a domi-
retroativos do seu próprio trabalho. Pois, o projeto nação do mundo de Max Weber. A modernidade,
da modernidade vai além. Surge com ele a “perso- entendida como modernidade técnica, exige afini-
nalidade”, interessada na melhoria permanente da dades culturais, morais e mentais, a serem treinadas
sua performance. Galimberti, fazendo alusões a Hei- constantemente pelos homens para garantir sua se-

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gurança psicológica e econômica, com antropotéc- Revolução


nicas a altura dos novos ciclos de exercícios.
Contra a passividade e a serenidade, que deixa
“ser o que é” e coloca, no caso extremo, seu cor-
Mudança na horizontal po anestesiado à disposição de operações estranhas,
levantam-se, no século XIX, os extremistas inquie-
A exigência de autotransformação perde, sob tos e ativistas apressados. As revoluções do século
condições modernas, muito da sua verticalidade. XX são consequências deste espírito da revolta e da
Principalmente as filosofias do progresso e da evolu- pressa, que exige agora da “sociedade” o que ou-
ção em nome da secularização atacam a verticalidade trora o indivíduo, sob tensão vertical, exigia de si:
de demandas espirituais e, também, aristocráticas. uma transformação radical. Dessa maneira agem as
Para Sloterdijk, todavia, o evento principal dos tem- energias, que antes levantaram o homem na direção
pos modernos não é a secularização, mas a desradi- do surreal, agora na direção do futuro na planície.
calização da diferença ética com sua desverticalização Aqui encontramos comissários, secretários e cama-
da existência. O levantamento da alma e da vida na radas com um ar de possuído estampado em seus
direção do surreal ou sobrenatural está sendo gradual­ rostos, o que leva Sloterdijk à constatação: “A revo-
mente substituído por uma movimentação para fren- lução exige uma disciplina integral que, em termos
te, na direção do novo que promete aliviar as tensões de energia absorvida, nada deixa a desejar em com-
e dificuldades. O aperfeiçoamento do self está sendo paração com as grandes asceses da antiguidade e da
visto agora dentro de uma tentativa de melhorar o Idade Média” (Sloterdijk, 2009, p. 610). No livro
mundo. O imperativo metanoético,“Você tem que Gottes Eifer o autor chega à conclusão de que o co-
mudar sua vida!”, ganha dessa maneira um crescente munismo era um universalismo militante como o
significado político. Referente ao indivíduo, todavia, são o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. No
o imperativo está sendo enfraquecido, porque a pró- entanto, no caso do comunismo estaríamos frente à
pria ideia de um progresso histórico, assegurado por “religião do homem”, fundada por Rousseau. “Nós
leis econômicas, pelo espírito absoluto ou pelo sim- tínhamos que esperar até o mono-humanismo,
ples avanço da ciência e da técnica, dispensa, de certa para vivenciar, como as sementes híbridas do mo-
forma, os esforços sobre-humanos no plano indivi- noteísmo vingavam” (Sloterdijk, 2007, p. 199). A
dual. Sloterdijk distingue consequentemente entre a Revolução Russa, nesta perspectiva, não pode mais
modalidade forte e a modalidade fraca do imperativo ser compreendida como um evento político, pois se
metanoético. A modalidade fraca coloca o indivíduo trata de um movimento antropotécnico numa rou-
numa posição de semipassividade, na qual sofre as pagem sociopolítica. Com isso muda-se o caráter
consequências de manipulações e operações de fora da Revolução Russa e revela-se o partido dos bol-
para dentro; o indivíduo deixa-se operar. Enquanto cheviques como mais um clube para treinar ilusões,
na modalidade forte o próprio indivíduo se opera. colocando-o entre outras associações “religiosas”,
Assim estamos diante de antropotécnicas conflitan- como a já mencionada scientology church.
tes entre si.
Longa é a sequência de uma autotransforma-
ção passiva na modalidade deixar-se operar: deixar- Retrovisão e perspectivas
-se-informar, deixar-se-divertir, deixar-se-servir,
deixar-se-curar, deixar-se-transportar e assim por A modernidade cumpriu uma das suas pro-
diante. Até a afirmação: eu vou deixar-me-operar, messas; ela abriu novas possibilidades de estar-no-
no seu sentido cirúrgico, expressa este processo -mundo, destruindo, ao mesmo tempo, aquilo que
paradoxo de autotransformação pelas mãos de ou- foi considerado durante milhares de anos o mais
trem. Curioso é que a anestesia geral, conhecida so- importante: distinguir-se radicalmente deste mun-
mente desde 1846, é a conditio sine qua non deste do. Essa situação se expressa filosoficamente mais
procedimento. adequada na obra do jovem Heidegger, que des-

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creveu o homem não como um sujeito autônomo Perspectivas imperativas


e distante das suas circunstâncias mundanas, mas
como ser que está junto com outros seres, sejam Hans Jonas formula na sua ética da responsabi-
eles animados ou simplesmente coisas (Heidegger, lidade o imperativo: “age de maneira que os efeitos
1927/1993). Também, Heidegger descreve o ho- do seu agir não coloquem em perigo a permanência
mem como alguém que não dispõe mais de uma da vida humana autêntica na terra!” (Jonas, 2006).
interioridade que pode servir como abrigo, para Sloterdijk traz este imperativo para o contexto do
o fugitivo do mundo que ele, eventualmente, es- campo de tensões verticais que exigem do indiví-
colheria ser. Além disso, o ser humano não possui duo fazer mais do este avalia que seja possível. A
mais, sob condições modernas, a certeza de que a metanoia integrada na expectativa de sete bilhões
vida verdadeira o espera além do horizonte da reali- de indivíduos, habitantes dessa terra, de sobreviver
dade ou num suposto fim deste mundo. O homem, à crise global que se anuncia exige demais de cada
estando no mundo, encontra-se nessa situação jun- um. Dessa maneira se iguala ao ideal da imitatio
to com os demais, fato que dificilmente tira o peso cristi ou do moksha-ideal da Índia antiga.
da carga de preocupações (Sorgen) que ele sente. Mas Sloterdijk não quer requentar mais um
Pelo contrário, os outros contribuem para um des- universalismo abstrato. Por isso recorre a uma
vio do ser humano daquilo que poderia ou deve- “imunologia geral” que parte do seguinte raciocí-
ria importar. A vida societária, a vida junto com a nio. Primeiro define o que seja um sistema imu-
gente (man) gera uma comunicação que estabiliza nológico: “Sistemas imunológicos são expectativas
a alienação do homem de uma vida autêntica e, de de danificação e violação, somatizados ou institu-
fato, própria. Como o céu e a interioridade, tam- cionalizados, que se baseiam na distinção entre o
bém a sociedade não pode mais ser vista como o próprio e o estranho” (Sloterdijk, 2009, p. 709).
lugar da salvação (Sloterdijk, 2001). Conhecemos e reconhecemos o sistema imunoló-
Reagem os metafísicos à perda do absoluto gico no nível do organismo biológico individual.
com relativismo e cinismo, os religiosos à fuga dos Sloterdijk, aí a novidade, dá um passo além. Ele
deuses com um sentimento de desamparo e abando- identifica, abrangendo o indivíduo em círculos
no, sentem os utopistas comunistas uma profunda concêntricos cada vez maiores, mais dois sistemas
decepção, que pode também levar os mais sensíveis imunológicos. O segundo, além do organismo in-
entre os ex-camaradas ao sentimento de ser “uma dividual, refere-se à dimensão cooperativa e con-
lágrima no oceano” (Sperber, 1980). Sloterdijk, vivencional da existência humana e é um sistema
contudo, não se deixa desanimar. Preocupado, mas imunológico social. Ele garante, quando funciona,
otimista, ele declara: segurança jurídica, prevenção social e sentimentos
de pertencimento além do pequeno círculo da pró-
Agora está na hora de lembrar novamente de pria família. O terceiro, situado num plano simbó-
todas as formas da vida de exercícios que não lico, garante a validez das normas intergeracionais,
param de libertar energias salutogênicas mesmo compensa a certeza da morte individual e estabiliza
quando as exaltações na direção de revoluções a imagem do mundo. Tanto o sistema imunológico
metafísicas, nas quais elas estavam integradas biológico, como o solidário e o simbólico podem
inicialmente, se dissiparam. Formas velhas de- passar por crises e superá-las, assim como podem
vem ser examinadas, referente à sua reutiliza- fracassar plenamente, o que significa morte indi-
ção, novas formas devem ser inventadas. Um vidual e, no caso dos dois sistemas imunológicos
novo ciclo de secessões deve começar, para tirar sociais, a morte coletiva.
os homens novamente – senão do mundo – da Exatamente com essa última opção, Sloterdijk
estupidez, da depressão, do fanatismo, mas aci- espanta seus leitores, quando desenha o cenário
ma de tudo da banalidade, da qual Isaac Babel de alta improbabilidade da sobrevivência da “so-
dizia que ela seria a contrarrevolução (Sloterdi- ciedade” humana, que estaria fragmentada e seus
jk, 2009, p. 698). fragmentos em rota de colisão. A velocidade de

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transação das partes aumentou desde a descoberta JONAS, Hans. (2006), Das Prinzip Verantwor-
das Américas em 1492 e levou, graças às inovações tung: Versuch einer Ethik für die technologis-
tecnológicas no século XIX e XX, ao estado atual che Zivilisation. Frankfurt, Suhrkamp.
da globalização. Uma catástrofe de desintegração Luhmann, Niklas. (1984), Soziale Systeme.
seria o outro lado da globalização que culminaria Frankfurt, Suhrkamp.
num ponto temporal não definível, num crash de Macho, Thomas. (2000), Mit sich allein. Ein-
dimensões planetárias. samkeit als Kulturtechnik, in Aleida e Jan As-
A conclusão dessa situação só pode ser uma. smann (orgs.), Einsamkeit. Archäologie der lite-
Os homens têm que partir para um novo ciclo de rarischen Kommunikation. München, Wilhelm
lutas do sistema imunológico, dessa vez não sim- Fink .
plesmente para defender o próprio organismo ou Nietzsche, Friedrich. (1887). Zur Genealogie
para proteger outros fragmentos compostos por fa- der Moral. Frankfurt, Insel.
mílias, amigos, tribos ou nações. A imunologia ge- Sloterdijk, Peter. (1983), Kritik der zynischen
ral exige transcender qualquer diferenciação usual do Vernunft. Frankfurt, Suhrkamp, 2 vols.
próprio e do estranho, no horizonte de asceses que . (2001) Nicht gerettet. Versuche nach
cooperam universalmente. Os interesses comuns Heidegger. Frankfurt, Suhrkamp.
voltados para a sobrevivência apontam na direção . ( 2006 ) Sphären. Frankfurt,
de uma macroestrutura da imunização global. E Suhrkamp, 3 vols.
Sloterdijk finaliza: . (2006) Zorn und Zeit. Frankfurt,
Suhrkamp.
Uma estrutura dessa chama-se civilização. Suas . (2007) Gottes Eifer. Vom Kampf der
regras de ordem têm que ser constituídas agora drei Monotheismen. Frankfurt/Leipzig, Verlag
ou nunca. Eles vão codificar as antropotécnicas der Weltreligionen/Insel (ed. port.: A loucura
que são adequadas à existência no contexto de de Deus. Relógio d’água).
todos os contextos. Querer viver sob vigência . (2009) Du musst Dein Leben ändern.
delas significaria decidir: assumir em exercícios Über Antropotechnik. Frankfurt, Suhrkamp.
diários os bons costumes da sobrevivência co- Sperber, Manès. (1980), Wie eine Träne im Oce-
mum (Idem, p. 714). an. München, Deutscher Taschenbuch.
Unthan, Carl Hermann. (1925), Das Pediscript.
Aufzeichnungen aus dem Leben eines Armlosen,
Bibliografia mit 30 Bildern. Stuttgart, Lutz Memoirenbi-
bliothek.
Cioran, Emile M. (2008). Werke. Frankfurt, Weber, Max. (1985), A ética protestante e o espíri-
Suhrkamp. to do capitalismo. São Paulo, Livraria Pioneira.
Elias, Norbert. ([1939]1994), O processo civiliza-
dor. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. F. J. Brüseke
Foucault, Michel. (1966). Les mots e les choses. fez mestrado e doutorado em sociologia,
Paris:Gallimard. WWU, Alemanha. Foi professor da UFPa,
UFSC e, atualmente é professor, da UFS.
. (1996), Der Mensch ist ein Erfahrun-
E-mail: <bruseke@gmail.com>.
gstier [Conversa com Ducio Trombadori].
Frankfurt, Suhrkamp.
Galimberti, Umberto. (2006), Psiche e techne:
ohomem na idade da técnica. São Paulo, Paulus.
Heidegger, Martin. ([1927] 1993), Sein und
Zeit. Tübingen, Max Niemeyer Verlag.
Jaspers, Karl. (1949), Vom Ursprung und Ziel der
Geschichte. München, Tausend.

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