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cia, já que este na sua Genealogia da moral apresen- aliás, ele é um mestre: evoca e provoca constante-
tou a ascese como base de todas as culturas religio- mente aquele ambiente que Heidegger, em Ser e
sas e suas condutas morais. Curiosamente, os ideais tempo, tinha identificado como o falatório do man:
ascéticos retornam na virada do século XIX para o um linguajar que reproduz o que todos opinam e
XX. Desta vez não como sine qua non de uma nova que todos falam (Heidegger, 1973 [1927]).
religiosidade, mas, pelo contrário, como expressão São várias as alternativas que temos hoje para
da descoberta e valorização do corpo humano. O nos referir aos “excepcionais”. Sloterdijk, contudo,
atletismo, sob o pretexto da restauração do olim- não quer perder o horizonte maior que a denomi-
pismo da antiguidade, reativa o asceta, que, fora de nação “aleijado” abre quando observamos a existên-
qualquer contexto transcendental, tenta se superar cia humana além da sua normalidade. E era isso
para conseguir competir com outros atletas envol- que Unthan queria: alcançar a normalidade que
vidos no mesmo projeto de autossuperação. seus colegas músicos viviam. Nesse projeto de vida,
Sloterdijk constata que o renascimento atlético ele partiu de um patamar de visível inferioridade.
e somático possibilita e requer “asceses desespiritua Tocar violino sem braços, mãos e dedos? Como?
lizadas” e responde à indagação de Nietzsche no Mobilizado por um valor estético-musical, radica-
final da Genealogia sobre valores que seriam ca- lizado por uma musicalidade excepcional, sentiu
pazes de orientar a vida depois do crepúsculo dos uma tensão vertical que o levou aos permanentes
deuses. “A vitalidade, entendida somaticamente e exercícios, na base de uma concentração que somen-
espiritualmente, é mesmo o meio que contém um te ascetas alcançam.
desnível entre o mais e o menos. Ela tem dentro
de si o movimento vertical que orienta as subidas, Em uma palavra, nós tínhamos que falar sobre
ela não precisa adicionalmente atratores externos e os incapacitados, sobre os com outra constitui-
metafísicos. Que Deus deve estar morto, neste con- ção, para encontrar uma expressão que articula
texto, não importa. Com ou sem Deus cada um a constituição geral de seres sob tensão vertical.
chega somente tão longe quanto a sua forma [físi- “Você tem que mudar sua vida!” isso significa
ca] permite” (Idem, p. 67). [...]. Você deve prestar atenção para a sua ver-
tical interior e examinar como a tração do polo
superior age sobre você! Não é o andar reto
A lição dos aleijados que transforma o homem em homem, mas a
consciência emergente do desnível interior que
Aqueles que não dispõem das habilidades ple- faz com que o homem se levante (Sloterdijk,
nas do seu corpo, porque nasceram, como Carl 2009, p. 99).
Hermann Unthan (1848-1929), sem os dois bra-
ços, sabem melhor do que os outros o que significa
tentar expandir sua capacidade (Unthan, 1925). A desespiritualização da ascese
Unthan descobriu na idade de 7 anos a possibili-
dade de usar seus pés para aprender a tocar violino. Além de exercitar nossas habilidades com o
Ele desenvolveu neste instrumento uma virtuosi- intuito de levantar o seu nível, podemos exercitar
dade que o levou a várias viagens e apresentações não fazer exercícios direcionados. Mestre perfeito
internacionais, conseguindo um reconhecimento nessa recusa de se aperfeiçoar é Emile M. Cioran
artístico até entre músicos de grande prestígio, en- (2008). Sua obra literária fornece rico material
tre eles Johann Strauss e Franz Liszt. Sloterdijk se que podemos chamar de “desespiritualização da
interessa pela biografia deste aleijado, porque vê ascese”; ascese que, todavia, não abdica da tensão
nele o exemplo do atleta ascético, transformado, vertical. Essa desespiritualização é somente o outro
observado mais de perto, num acrobata. Sloterdijk lado da informalização da espiritualidade, presente
usa a palavra “aleijado” com gosto, sabendo que nas religiosidades (pós-modernas) privatizadas ou
seu uso causa hoje imediatamente objeções. Nisso, no misticismo sectário de nossos dias. Os exercí-
cios negativos, apesar da sua negação em se render a dimensão antropotécnica. Primeiro, do lado
a tração da tensão vertical, não conseguem escapar dogmático: um clube de exercícios ilusionistas,
daquilo que Nietzsche identificou como pano de rigidamente organizado, cujos membros no
fundo da moral: a ascese. Uma leitura do conto de decorrer do tempo estão sendo impregnados
Franz Kafka Der Hungerkünstler [O artista da fome] com as concepções do milieu. Em seguida, do
pode confirmar esta interpretação. lado psicotécnico: um roteiro de treinamento
No exemplo do movimento olímpico e da para a exploração de todas as chances na luta
scientology church, Sloterdijk explana detalhada- de sobrevivência. Observamos, por fim, o topo
mente sua tese, nesta altura ainda estranha, da do movimento; podemos ver tudo, mas ne-
inexistência das religiões. O movimento olímpico, nhum “fundador de religião”: na nossa frente
concebido por Coubertin como um movimento está um inescrupuloso, radicalmente irônico,
atlético de cunho religioso, escapou das mãos do flexível para todos os lados, business-trainer
seu instituidor, na medida em que não se assumiu (Idem, p. 168).
de forma duradoura como religião. Depois dos
primeiros jogos dos tempos modernos, em 1896,
revelou-se o atletismo olímpico, na leitura antro- A conquista do improvável
potécnica de Sloterdijk, como mais um sistema de mediante a disciplina
exercícios e obra de regulamentações para garantir
a autoformação do comportamento interior e exte- Sloterdijk pretende nada menos do que elabo-
rior dos atletas. Expressis verbis diz o autor: rar as bases de uma nova antropologia material na
base de uma antropotecnologia geral. Avançando
Sejam cristãs ou não-cristãs, elas [as religiões] neste empreendimento reconhece que alguns au-
formam materialiter e formaliter nada dife- tores já colocaram o pé no terreno, não obstante,
rente do que complexos de ações interiores e seria necessário reexaminar o campo humano à luz
exteriores, sistemas de exercícios simbólicos e de uma ascetologia geral. Reafirmando com isso
protocolos para a regulamentação da relação Friedrich Nietzsche como ponto de partida, o autor
com fatores superiores estressantes e poderes aponta as primeiras contribuições para a pretendida
“transcendentais” – com uma palavra antropo- antropotécnica em Arnold Gehlen (com sua teoria
técnicas de modo implícito (Sloterdijk, 2009, da importância das instituições para o indivíduo),
p. 139). Jacques Lacan (com sua defesa da ordem simbóli-
ca), Pierre Bourdieu (com seu conceito de habitus),
O movimento atlético, enquanto somatismo, além das pesquisas de alguns etnolinguistas inspi-
era condenado a se integrar na cultura de massas rados em Wittgenstein e historiadores do discurso
e afirmou-se, com cada repetição, como uma pro- na tradição de Michel Foucault. Quem, todavia,
fana máquina de eventos. O movimento olímpico achava que Sloterdijk teria com isso revelado algo
pode ser visto hoje como o exemplo mais nítido da que podemos chamar de um referencial teórico, um
desespiritualização da ascese, exemplo que deve in- tanto heterodoxo, vai assistir a uma leitura bastante
cluir todo esportismo do século XX, sem esquecer crítica dos mencionados autores.
os exercitantes nas “academias” contemporâneas. Sloterdijk (2006) já tinha mostrado no seu livro
A fundação de seitas “esotéricas”, igrejas “pro- Zorn und Zeit [Ira e tempo], no contexto de uma psi-
testantes”, “religiões” da mais bizarra natureza, en- cologia política, como orgulho, ambição e vaidade
tre elas a scientology church, são para Sloterdijk nada contribuem para uma verticalização da vida social.
mais do que procedimentos antropotécnicos: Com isso despede-se de uma teoria da estratificação
social na base de dominação, repressão e privilégio.
Se reduzimos essas “religiões” às suas caracterís- Ele propõe uma teoria que compreende o discipli-
ticas essenciais, surgem três complexos básicos namento individual (ascese, virtuosidade e desem-
dos quais cada um tem uma relação clara com penho) como causa da diferenciação vertical. É um
tanto óbvio que Michel Foucault seja o patrocina- dar com um aspecto importante na obra de um au-
dor deste viés interpretativo, pois foi ele quem de- tor para criticar, a partir daí, o conjunto da mesma,
nunciou nos anos de 1970 a íntima relação entre Sloterdijk deve também aplicar no caso de Bour-
discurso e disciplina. Também Wittgenstein, com dieu e, de certa maneira, em Foucault.
sua análise dos jogos de linguagem, vinculou esta
última com figuras comportamentais e abriu para
a sociologia a possibilidade de compreender estru- Adestramento e liberdade
turas ritualísticas latentes, contidas dentro dos pró-
prios jogos comunicativos. Foucault continua onde Wittgenstein termi-
A colocação en passant de Wittgenstein de que nou: mostra que disciplinas científicas são nada
a cultura seja uma regra para uma ordem monás- menos do que práticas discursivas, isto é, jogos
tica é explorada por Sloterdijk na direção de uma linguísticos compostos (Foucault, 1966) e assim
teoria de secessão, pois a dinâmica separatista da exercícios e performance. Sloterdijk se interessa pelo
vida monástica – separando severamente compor- Foucault maduro que, nos últimos anos da vida,
tamentos, posturas e pensamentos permitidos dos tinha se libertado dos “restos paranoides das suas
proibidos – seria também a matriz daquilo que análises do poder [...]. Somente com uma postura
chamamos cultura. Sob cultura entendem, tanto metódica serena, tardiamente adquirida, conseguiu
Wittgenstein como Sloterdijk, não o conjunto de formular um conceito de regimes, disciplinas e jo-
todas as formas comportamentais possíveis dentro gos de poder, no qual não se expressavam mais re-
de uma determinada sociedade, mas esse restante flexos antiautoritários obsessivos”. E o autor atesta
de formas de vida que passam pelo crivo da regra; que Foucault conseguiu agora ver “que os homens
regra esta colocada num nível tão alto que somente não são, nas suas demandas de liberdade e autode-
poucos seriam capazes de cumpri-la. Wittgenstein, terminação, reprimidos pelas disciplinas, regimes e
Nietzsche, Heidegger e até mesmo Foucault são, jogos de poder, mas, possibilitados. O poder não
nessa mesma perspectiva, representantes de uma é um adendo restritivo a uma capacidade original-
filosofia enquanto disciplina, isto é, ela, a filosofia, mente livre, ele é, para a capacidade em todas as va-
é mais que uma matéria escolar: está engajada e ca- riações, constitutivo” (Sloterdijk, 2009, p. 241). O
racterizada pela tensão vertical. próprio Foucault parece corroborar com seu leitor
Com essa leitura de Wittgenstein, Sloterdijk dizendo: “Naturalmente era impossível libertar os
opõe-se às diversas vertentes da filosofia analítica homens, sem adestrá-los” (Foucault, 1996, p. 37).
anglo-americana, que querem ver no filósofo dos Curioso que Foucault consiga até hoje atrair
jogos de linguagem um igualitarista e relativista. leitores que veem nas análises de asilos, clínicas
Muito pelo contrário, Sloterdijk apresenta Witt- psiquiátricas, prisões etc. somente uma forma deta-
genstein como a expressão mais dura do elitismo lhada de crítica à sociedade. Sloterdijk disputa com
ético do século XX (Sloterdijk, 2009, p. 222). Na esses “conformistas críticos”, como ele mesmo os
verdade, os jogos de linguagem seriam modelos mi- denomina, a herança de um autor que fez com seus
croascéticos, isto é, exercícios linguísticos práticos, estudos extensos exercícios de formação do próprio
na base da imitação. A teoria de Wittgenstein silen- self, depois de ter tentado, ainda jovem, duas vezes
ciaria que os jogos linguísticos comuns treinam o o suicídio.
que no fundo não deveria ser treinado, afirmando A tensão vertical, na obra de Sloterdijk, tem
a mediocridade do seu conteúdo. Oscilando entre grande relevância para a ética e a pedagogia. Para
um Wittgenstein defensor da cultura como regra a primeira, porque estabelece uma hierarquia entre
de uma ordem monástica e um Wittgenstein fa- valores, sem as quais qualquer ética esvanece. Para a
zendo concessões à dimensão ordinária dos jogos segunda, porque convoca tanto o educador como o
linguísticos, Sloterdijk toma partido do primeiro, educando para perseguir algo mais alto que está, de
superando dessa maneira Wittgenstein com o pró- forma embrionária, contido na alma e no corpo do
prio Wittgenstein. Este procedimento, de concor- discípulo. Já as palavras educador, educando e dis-
cípulo remetem etimologicamente à liderança e à vantagem do conceito de habitus seria ter resolvi-
disciplina, fornecendo pistas para um mais adequa- do o que dentro do marxismo não seria possível
do entendimento do processo pedagógico. “Você responder: como a base ou a “infraestrutura” se re-
deve mudar sua vida!” é sim uma máxima pedagó- fletiria na “superestrutura” ou, formulando o pro-
gica. Acontece que nos seus mais de dois mil anos a blema de modo diferente, como a sociedade con-
pedagogia europeia oscila entre dois extremos. Ou seguiria penetrar o indivíduo de forma duradoura.
sufocava os educandos abaixo de uma disciplina de- O conceito de habitus mostraria como, mediante
masiadamente autoritária ou queria ver nas crianças um adestramento psicossomático e dependente da
e adolescentes, adultos sem necessidade de regula- origem social, o momento social torna-se uma dis-
mentação e exercício permanente. Paixões destruti- posição individual. O habitus pode ser chamado de
vas ou obsessões precisam de moderação através de uma consciência de classe somatizada, que molda
exercícios repetitivos para abrir a passagem, num em analogia à língua materna toda a capacidade de
determinado momento do desenvolvimento, para expressividade do indivíduo. Na medida em que
um crescimento guiado pela vontade e esforços Bourdieu injeta a base social na estrutura psicosso-
próprios. Apesar dessa clara rejeição a qualquer an- mática do sujeito, ele perderia a capacidade de des-
tiautoritarismo e liberalismo pedagógico, Sloterdijk crever de forma adequada as tensões verticais nos
rejeita um conceito repressivo de ascese enquanto campos variados do espaço social (Sloterdijk, 2009,
ditadura sobre a natureza interna (Sloterdijk, 2009, p. 285). As grandes contribuições de Bourdieu so-
p. 268). bre as distinções e o homo academicus resultariam,
por isso, não da aplicação do conceito de habitus,
mas da capacidade de Bourdieu em observar deta-
Além do habitus lhadamente mecanismos de ranking social. A fra-
queza decisiva do conceito de habitus consistiria
Sloterdijk cumprimenta, com certo tom de me- todavia
nosprezo, Pierre Bourdieu entre seus autores de re-
ferência. Não quer abrir mão dele porque precisa [...] que de nenhuma maneira consegue com-
do seu conceito de habitus. Não obstante, critica preender adequadamente aquilo que preten-
em Bourdieu uma mentalidade de querer ficar na de explicar, isto é, a região dos “costumes”. A
“planície” da vida e do pensamento. Vê na obra grande tradição da reflexão filosófica e psico-
dele uma sociologia do “acampamento básico”, fisiológica sobre o papel dos costumes no pro-
nesta planície que negaria qualquer tensão vertical; cesso da formação da existência humana enco-
objeção, aliás, que Sloterdijk também direciona a lhe, neste autor, até um resíduo útil para o fim
Jürgen Habermas, cujas publicações sobre a ação da crítica da dominação. Em vez de entrar no
comunicativa se leem, “como folhetos sobre a am- panorama da formação efetiva do sujeito por
pliação definitiva de acampamentos básicos em re- meio do exercício, do treinamento e da adapta-
giões planas” (Idem, p. 281). ção, a teoria de habitus à la Bourdieu contenta-
Deixando de lado os pormenores do sempre -se com o segmento estreito dos costumes, que
irreverente Sloterdijk, que desde a Kritik der zynis- são os sedimentos da “classe dentro de nós” –
chen Vernunft [Razão cínica] (1983) cultiva um es- ela engana o usuário e reduz a plenitude daqui-
tilo inédito e, para muitos, refrescante, no cenário lo que o seu nome indica (Idem, pp. 287-289).
acadêmico alemão, algumas considerações sobre o
conceito de habitus na perspectiva antropotécnica O conceito de habitus de Bordieu fica, na pers-
do autor. Na obra de Bourdieu, o conceito de ha- pectiva crítica de Sloterdijk, incapaz de entender
bitus seria a inovação conceitual mais importante e as formas individualizadas de projetos existenciais
um dos instrumentos mais frutíferos da sociologia do self. O habitus representaria somente o típico e
contemporânea. Todavia, Bourdieu mesmo usaria médio, identificando como base somente “a classe
esse conceito de forma bastante reduzida. A maior dentro de nós”. Para atualizar todas as potenciali-
dades do conceito Sloterdijk retorna a Tomás de Sloterdijk sente menosprezo por uma sociologia da
Aquino e Aristóteles. Estes com seus conceitos me- identidade que somente pode expressar para ele a
dieval de habitus (Aquino) e antigo de hexis (Aris- mentalidade típica dos moradores do acampamen-
tóteles) teriam desenvolvido conceitos antropoló- to básico instalado na planície da preguiça.
gicos que A própria humanidade, apesar do fato de en-
contrarmos costumes e tradições diferentes em cada
[...] descrevem um processo aparentemente momento da sua história, não seguiu o roteiro con-
mecânico sob os aspectos da inércia e da supe- servador da identidade. Para evidenciar isso, Sloter-
ração para explicar a encarnação do espiritual. dijk apresenta uma teoria do desenvolvimento cul-
Eles identificam o homem como aquele animal tural. Com Karl Jaspers constata que, entre 800aC
que pode o que deve, se alguém se importou e 200aC na China, na Índia, na Pérsia, na Palesti-
em tempo com suas habilidades. No mesmo na e na Grécia, aconteceu uma mudança de nível.
momento percebem como as disposições al- Nesse período, com um passo na direção do uni-
cançadas continuam crescendo na direção de versal (Jaspers, 1949), as culturas humanas nestas
novas superações (Idem, p. 289). regiões superaram o seu estado atual de desenvol-
vimento para colocar no seu lugar uma civilização
Assim, a teoria do habitus aponta referente a mais intelectualizada e espiritualizada. Surgiram as
qualquer costume e habilidade na direção da supe- chamadas culturas altas (Hochkulturen, grandes ci-
ração do seu estado atual. Sob a perspectiva da ten- vilizações) que deveriam, nos próximos 2 mil anos,
são vertical é possível formular uma tensão artística moldar tudo o que nós entendemos até hoje como
do Bem, pois até aquilo que já está bom ainda pode civilizado. O que aconteceu neste tempo foi, na in-
ser melhorado. Depois de ter o conceito de habi- terpretação de Sloterdijk, um movimento cultural
tus desta maneira ampliado e liberado de sua carga que interpretava as paixões, os costumes e as ideias
classista, Sloterdijk entende sua crítica a Bourdieu a partir de outro ângulo.
não como destrutiva, mas destaca que este con- O homem, descobrindo que está possuído
tribuiu decisivamente, como aliás, Wittgenstein e por paixões, tenta chegar ao outro lado delas, isto
Foucault, para a compreensão do comportamento é, emancipa-se da sua mera passividade passional,
como exercício. para desenvolver uma arte do sofrimento. Tam-
bém, os costumes que mantêm o homem numa
situação de prisioneiro de rotinas vão ser reinter-
Identidade e preguiça pretados para que possam ser dominados e substi-
tuídos. E, por fim, as culturas humanas da referida
Existe uma situação de pseudoverticalidade, na época tentam e conseguem pôr ordem na desor-
qual as pessoas ou coletivos se distinguem sem ter a dem das representações e pensamentos confusos.
possibilidade e o direito de se diferenciar hierarqui- Entendemos que nenhuma das civilizações huma-
camente. De certa maneira, o conceito sociológico nas se tornou idêntica à outra, o que elas têm em
de identidade opõe-se ao conceito de habitus, com comum é este movimento de superação, elevação
suas distinções delicadas. Mais ainda: a identidade, e desenvolvimento.
transformada em valor, é um conjunto de qualida- Nesses seiscentos anos, denominados por Karl
des pessoais ou culturais tidas como imutáveis. É a Jaspers tempo axial (Achsenzeit), nos quais as gran-
inércia que toma conta do sistema cultural levado a des civilizações mundiais nascem, surge a diferença
uma veneração de si mesmo. O idêntico descobre- antropotécnica. Ela emerge como cultivo do exer-
-se como idêntico e faz tudo para continuar sendo cício que tenta romper o poder do costume e da
idêntico. É lógico que a tensão vertical passa longe possessão pelas paixões, rotinas e representações
da identidade. A chamada Você deve mudar sua desordenadas mediante a mobilização contrária dos
vida! transforma-se para os ouvidos do idêntico em mesmos mecanismos que dão, até então, força às
Continue sendo como você é!. Subentende-se que repetições paralisantes. Curiosamente, é a própria
bla uma situação difícil de suportar. Este procedi- é o preço a ser pago, individualmente e socialmen-
mento põe à disposição dele um observador interno te, pela mais alta excepcionalidade. Quem além do
que, como um vigia ou anjo pessoal, fornece e es- excepcional, aliás, seria capaz de reconhecer plena-
tabiliza o saber de cura e salvação. Esse saber movi- mente o excepcional?
menta-se em círculos num jogo linguístico sem fim,
com o objetivo da elevação do sujeito contemplativo
(Macho, 2000, p. 362). As práticas endoretóricas Os treinadores e mestres
consistem em rezas, recitações rituais, monólogos
e outras falas silenciosas, normalmente praticadas A cultura é, para Sloterdijk, um sistema de
repetidamente, chegando a verdadeiros diálogos in- adestramento para transpor de uma geração para as
ternos. O sujeito vai ouvir do seu outro interno o outras conteúdos cognitivos e morais, importantes
que deve ser e vai saber com base em um autoexame para a sobrevivência delas. Nesta linha, denomina
regular se está na altura das exigências internalizadas. Hochkultur (cultura alta; civilização complexa) um
sistema de reprodução de funções hiperbólicas, isto
Todos os exercícios, sejam eles de natureza é, funções improváveis e sob tensão permanente, sus-
yoga, atlética, filosófica ou musical, somente tentadas por elites. A estabilização das funções hiper-
podem acontecer se suportados por processos bólicas exige paradigmas e exemplos (Leitbilder) en-
endoretóricos, nos quais atos da autoexortação, cravados no imaginário coletivo, mediante sistemas
do autoexame e da autoavaliação, sob os crité- de exercícios e hierarquização. A instância de trans-
rios da tradição escolar específica e sob aponta- formação do improvável em provável, por meio da
mento contínuo na direção dos mestres que já repetição e do exercício, vai ser denominada escola.
alcançaram o objetivo, têm um papel decisivo O ponto de partida da repetição é, curiosamente, o
(Sloterdijk, 2009, p. 369). miraculoso e o extraordinário. Sloterdijk:
São inúmeras as chances de fracasso neste Falamos abertamente sobre o paradoxo bá-
empreendimento. Qualquer atração pela vida or- sico de qualquer Hochkultur: Ela resulta da
dinária, ainda sentida, significa o fim da ascensão sua orientação por excessos hiperbólicos e
vertical. Também a transfiguração de exercícios de acrobáticos, observados sempre a partir do
secessão em medidas de formação da identidade co- pressuposto de que eles sejam aptos para sua
letiva significa o desvio do caminho. Formas exi- imitação e normalização. Na medida em que
gentes de recessão espiritual podem degenerar em Hochkulturen fazem de um desempenho ex-
uma simples possessão. Até a simples confissão da cepcional uma convenção, elas geram uma
fé enquadra-se aqui. “Essa fé é hooliganismo em tensão patogênica [...] a qual respondem os
nome de deus” (Idem, p. 372). participantes do jogo paradoxal, suficiente-
O egocentrismo espiritual, com sua tendência mente inteligentes, [...] com a formação de
para escapismo e evasão, precisa de fortes contra- um mundo interior, cronicamente reflexivo e
pesos para compensar seu viés radical. No contexto transtornado (Idem, p. 428).
do cristianismo desenvolveram-se, consequente-
mente, exercícios de humildade e humilhação vol- O curriculum vitae de uma elite, elevado a pa-
tados para os indivíduos avançados no caminho da radigma, é praticamente inalcançável, não obstan-
santificação. O santo não pode saber que é santo. O te serve de matriz para as próximas gerações, que
fato de até mesmo o papa ser apenas um humilde não podem ignorá-lo, obrigando-as a exercícios
servidor da igreja mostra-se de forma ritualizada na miméticos.
lavação dos pés dos subalternos na véspera da pai- Nesses exercícios a figura do treinador é in-
xão de Cristo. Rito, aliás, repetido pelos padres ca- dispensável. Sloterdijk identifica cinco tipos de
tólicos na mais remota paróquia. Todavia, é impos- treinadores espirituais que tentam, a princípio,
sível negar que o egocentrismo dos mais avançados mostrar que caminhos surreais e aparentemen-
te impossíveis são realizáveis. Eles são: o guru da degger e Sartre, passa a discutir a “projetualidade”
tradição bramânica-hinduísta, o mestre da dou- do indivíduo moderno (Galimberti, 2006) e Sloter-
trina budista de iluminação, o apóstolo ou abade dijk, em conhecimento de causa, amplia:
como imitadores de Cristo, o filósofo na condi-
ção de testemunha da busca da verdade e o sofis- No decorrer do esclarecimento antropológico
ta como mestre da arte de viver (Idem, p. 433). torna-se nítido o grau elevado do envolvimen-
Além disso, surgiram treinadores e instrutores de to de cada um nas tensões verticais e efeitos
cunho mais pragmático ou artístico, que perde- hierárquicos do tipo não político. Se ser-aí sig-
ram sua santidade porque já passaram pela estan- nifica a atualização pessoal de chances de habi-
dardização e popularização. Eles são mestres de lidades, cada um se movimenta desde sempre
uma profissão artesanal, professores acadêmicos, numa escala do mais ou menos, na qual ele
professores comuns e escritores, dedicados à causa mesmo se posiciona com base nos resultados
do esclarecimento, ou, como no caso do atletismo de seus esforços, sem que ele pudesse desqua-
futebolístico, “técnicos” mesmo. Sloterdijk atribui lificar os primeiros colocados como repressores
aos exercícios monásticos, sob orientação de um (Sloterdijk, 2009, p. 515).
“apóstolo”, e à orientação dos aprendizes pelos
mestres de diversas profissões artesanais o papel As práticas ascéticas, indispensáveis também
que Max Weber atribuiu à ética protestante: de entre os modernos, ocultam-se sob os nomes da
ser o fator principal e responsável pelo deslancha- arte, da formação e do trabalho. Somente no atle-
mento da economia capitalista (Weber, 1985). tismo contemporâneo assumem-se as práticas ascé-
ticas como tais.
Nós já sabemos: ascese desespiritualizada sig-
Exercícios modernos nifica treinamento. E esse metodismo fora do con-
texto religioso fez com que os europeus ganhassem
Voltando-se explicitamente contra uma po- uma vantagem, na condição de executores de exer-
sição, frequentemente defendida por leitores de cícios, sobre as outras regiões mundiais. A política
Foucault, Sloterdijk afirma que as prisões e outras expansionista europeia não teria tido sucesso sem
instituições de vigilância repressiva não são o lugar essa diferença, que obrigou todas as populações
central da produção do homem moderno, mas sim mundiais a entrar num novo ciclo de treinamentos.
as escolas, as universidades, as oficinas e os ateliês Culturas que já tinham preparadas suas populações
artísticos. Aqui acontece uma verdadeira ortope- para as disciplinas modernas através de sistemas
dia humana formando com todos os meios da an- de adestramento feudal, como Japão e China, ti-
tropotécnica uma nova juventude. Os homens da nham visivelmente menos dificuldades para entrar
modernidade adicionavam ao experimentalismo no novo ritmo do que outras culturas, mais con-
ascético da antiguidade o experimentalismo técni- templativas ou mais hedonistas. Sloterdijk propõe
co e artístico e, mais tarde, a partir da Revolução interpretar aquilo que chamamos globalização, na
Francesa, o experimentalismo político, que deveria base de uma integração das suas dimensões men-
encontrar no comunismo soviético e chinês seu tais, morais e técnicas. Com isso, na sua análise das
apogeu. A vita activa, na modernidade emergente, causas do triunfo da modernidade, ele vai além de
deveria substituir gradativamente a vita contem- uma mera análise do papel dos sistemas discipli-
plativa, inserindo como consequência do trabalho nares e do ordenamento (Foucault) ou do contro-
industrial o trabalhador no mundo. Este é resul- le dos afetos (Elias), e vai além da famosa tese do
tado, como os outros que se exercitam, dos efeitos racionalismo ocidental e sua vocação para a domi-
retroativos do seu próprio trabalho. Pois, o projeto nação do mundo de Max Weber. A modernidade,
da modernidade vai além. Surge com ele a “perso- entendida como modernidade técnica, exige afini-
nalidade”, interessada na melhoria permanente da dades culturais, morais e mentais, a serem treinadas
sua performance. Galimberti, fazendo alusões a Hei- constantemente pelos homens para garantir sua se-
transação das partes aumentou desde a descoberta JONAS, Hans. (2006), Das Prinzip Verantwor-
das Américas em 1492 e levou, graças às inovações tung: Versuch einer Ethik für die technologis-
tecnológicas no século XIX e XX, ao estado atual che Zivilisation. Frankfurt, Suhrkamp.
da globalização. Uma catástrofe de desintegração Luhmann, Niklas. (1984), Soziale Systeme.
seria o outro lado da globalização que culminaria Frankfurt, Suhrkamp.
num ponto temporal não definível, num crash de Macho, Thomas. (2000), Mit sich allein. Ein-
dimensões planetárias. samkeit als Kulturtechnik, in Aleida e Jan As-
A conclusão dessa situação só pode ser uma. smann (orgs.), Einsamkeit. Archäologie der lite-
Os homens têm que partir para um novo ciclo de rarischen Kommunikation. München, Wilhelm
lutas do sistema imunológico, dessa vez não sim- Fink .
plesmente para defender o próprio organismo ou Nietzsche, Friedrich. (1887). Zur Genealogie
para proteger outros fragmentos compostos por fa- der Moral. Frankfurt, Insel.
mílias, amigos, tribos ou nações. A imunologia ge- Sloterdijk, Peter. (1983), Kritik der zynischen
ral exige transcender qualquer diferenciação usual do Vernunft. Frankfurt, Suhrkamp, 2 vols.
próprio e do estranho, no horizonte de asceses que . (2001) Nicht gerettet. Versuche nach
cooperam universalmente. Os interesses comuns Heidegger. Frankfurt, Suhrkamp.
voltados para a sobrevivência apontam na direção . ( 2006 ) Sphären. Frankfurt,
de uma macroestrutura da imunização global. E Suhrkamp, 3 vols.
Sloterdijk finaliza: . (2006) Zorn und Zeit. Frankfurt,
Suhrkamp.
Uma estrutura dessa chama-se civilização. Suas . (2007) Gottes Eifer. Vom Kampf der
regras de ordem têm que ser constituídas agora drei Monotheismen. Frankfurt/Leipzig, Verlag
ou nunca. Eles vão codificar as antropotécnicas der Weltreligionen/Insel (ed. port.: A loucura
que são adequadas à existência no contexto de de Deus. Relógio d’água).
todos os contextos. Querer viver sob vigência . (2009) Du musst Dein Leben ändern.
delas significaria decidir: assumir em exercícios Über Antropotechnik. Frankfurt, Suhrkamp.
diários os bons costumes da sobrevivência co- Sperber, Manès. (1980), Wie eine Träne im Oce-
mum (Idem, p. 714). an. München, Deutscher Taschenbuch.
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dor. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. F. J. Brüseke
Foucault, Michel. (1966). Les mots e les choses. fez mestrado e doutorado em sociologia,
Paris:Gallimard. WWU, Alemanha. Foi professor da UFPa,
UFSC e, atualmente é professor, da UFS.
. (1996), Der Mensch ist ein Erfahrun-
E-mail: <bruseke@gmail.com>.
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