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CAUÊ KRÜGER
narrador. Ao mesmo tempo, não existe nada mais A utilização do termo “técnica” neste contex-
monótono, sem ação ou desenvolvimento que os to por si só remete ao clássico texto de Marcel
compridos diálogos de dezenas de minutos du- Mauss (1974a), “As técnicas corporais”. De fato,
rante os quais os atores falam em sua incompre- este estudo trouxe tamanha influência para Eu-
ensível língua, com uma melodia que se repete gênio Barba e Nicola Savarese, que extratos dele
implacavelmente. Nessas monótonas situações, se encontram publicados em A Arte Secreta do
minha atenção criava uma tática para não aban- Ator. Contudo, a utilização do texto de Mauss
donar o espetáculo. Tentava concentrar-me e se- pelos autores visa legitimar, por oposição, o
guir, sem trégua, somente um detalhe de um ator: principal postulado da “Antropologia Teatral”
os dedos de uma mão, um pé, um ombro, um centrado no conceito de “extracotidiano”:
olho. Por meio dessa tática contra a monotonia
notei uma coincidência singular: os atores e baila- O modo como usamos nossos corpos na vida
rinos asiáticos atuavam com os joelhos dobrados cotidiana é substancialmente diferente de como
exatamente como os meus atores do Odin Theatret os usamos em situações de representação. Na
[...] Assim foi-me revelado um dos princípios da vida cotidiana usamos uma técnica corporal que
Antropologia Teatral: a alteração do equilíbrio. foi condicionada pela nossa cultura, nossa po-
sição social e profissão. Mas numa situação de
Esta citação por um lado nos faz compre- representação o uso do corpo é completamente
ender o interesse de Barba pela antropologia, diferente. Portanto, é possível diferenciar entre
uma vez que destaca a diversidade das expres- a técnica cotidiana e a técnica extracotidiana.
sões culturais com que o autor se deparou no (Barba; Savarese, 1995, p. 227).
contexto asiático (bem como a dificuldade em
compreendê-las em profundidade). Por outro, Para Barba, o trabalho do ator funde três
demonstra com exatidão a distância dos interes- “aspectos diferentes” e “bem distinguíveis”
ses do autor daqueles caros à antropologia, pois (idem). O primeiro aspecto é o individual e
frente à incompreensão do fenômeno, o autor envolveria a “personalidade do ator, sua sen-
passa a observar o detalhe, o particular, a técni- sibilidade, sua inteligência artística, sua indi-
ca teatral empregada. Esta ênfase logo passa a se vidualidade social” (ibidem); o segundo seria
tornar a preocupação central do estudo de Eu- relativo ao gênero espetacular, ou seja, à
gênio Barba e sua “Antropologia Teatral” que
[...] particularidade da tradição cênica e do
[...] foi definindo-se a meus olhos e em minha contexto histórico-cultural através dos quais a
mente observando a capacidade de meus atores irrepetível personalidade do ator se manifesta
de entrar em um determinado esqueleto/pele – (Barba, 1994, p.25).
ou seja, determinado comportamento cênico,
uma particular utilização do corpo, uma técnica Por fim, chegaríamos ao aspecto comum
específica – e logo sair deste. Este “desvestir-se” entre todos os atores de tempos e culturas di-
e “vestir-se” da técnica cotidiana à técnica extra- ferentes, e que seria, na perspectiva do autor,
cotidiana e da técnica pessoal a uma técnica for- universal e recorrente, referente à
malizada asiática, latino-americana ou européia,
obrigou-me a formular a mim mesmo uma série [...] utilização do corpo-mente segundo
de perguntas que me conduziram a um novo técnicas extracotidianas baseadas em prin-
território (Barba, 1994, p. 20-1). cípios-que-retornam transculturais. Estes
o presente acerca de sua técnica, ele encontrou feiticeiros, ou ao menos os mais sinceros dentre
uma ainda mais falsa, mais mistificadora e mais eles, acreditam em sua missão e que essa crença
desonesta do que a sua. não esteja fundada na experiência de estados es-
pecíficos (Lévi-Strauss, 1996, p. 207).
Com fama cada vez maior, ofuscando com
isso outros xamãs já célebres, ele foi convoca- Um dos principais ensinamentos que pode-
do para um desafio no qual triunfou com uma mos reter da perspectiva de Lévi-Strauss (em
cura em que seu desafiante havia fracassado. A oposição aos postulados de Barba) é a per-
partir deste acontecimento, Quesalid (concebi- cepção de como as representações coletivas (a
do então como um dos mais famosos feiticei- crença no xamanismo), as ações simbólicas e
ros de todos os tempos) prosseguiu sua carreira a construção do sentido cultural interferem
com atitude distinta: diretamente na vida social da comunidade e
também na prática e visão de mundo de cada
defende calorosamente, contra todas as escolas indivíduo inserido neste contexto. Apontando
rivais, a técnica da plumagem ensangüentada, para a complexidade dos fenômenos simbólicos
da qual parece ter perdido de vista, completa- e aludindo ao limite do pensamento lógico, seja
mente, a natureza falaciosa, e da qual zombara no que se refere à eficácia simbólica do com-
tanto no início (Lévi-Strauss, 1996, p. 206). plexo xamanístico ou mesmo da psicanálise2, o
antropólogo dá conta de englobar a ação sim-
O texto de Lévi-Strauss alerta para a impor- bólica, os princípios de orientação no mundo
tância e complexidade do imaginário presente (“cosmologias”) e sua eficácia em uma mesma
nas práticas simbólicas das sociedades. O an- abordagem. Este texto célebre se torna parti-
tropólogo trata analiticamente a questão, da cularmente importante aqui por demonstrar
seguinte forma: como a técnica, a crença individual e a ação so-
cial de um indivíduo se encontram necessaria-
Esta fabulação de uma realidade em si mesma mente inseridas em um contexto sócio-cultural
desconhecida, feita de procedimentos e repre- específico e que, diferentemente do que queria
sentações, é afiançada numa tripla experiência: a Barba, as atividades “extracotidianas” não exis-
do próprio xamã que, se a sua vocação é real (e, tem em “um mundo próprio e isolado”.
mesmo se não o é, somente pelo fato do exercí-
cio), experimenta estados específicos, de nature-
za psicossomática; a do doente, que experimenta Um rio caudaloso
ou não uma melhora; enfim a do público, que
também participa da cura, e cujo arrebatamento Uma das orientações mais fecundas da
sofrido, e a satisfação intelectual e afetiva que análise antropológica dos fenômenos expres-
retira, determinam uma adesão coletiva que sivos deve-se ao antropólogo britânico Vic-
inaugura, ela própria, um novo ciclo. Esses três tor Turner3, que partindo de uma formação
elementos daquilo que se poderia denominar de estrutural-funcionalista, no decorrer de suas
complexo xamanístico são indissociáveis. Mas publicações passou a postular uma análise
vê-se que eles se organizam em torno de dois processual dos fenômenos sociais, dando ori-
pólos, formados, um pela experiência íntima gem ao que chamou de Antropologia da Per-
do xamã, o outro pelo consensus coletivo. Não formance. A obra de Turner (à semelhança
existe razão para duvidar, efetivamente, que os dos objetivos propriamente antropológicos
de Lévi-Strauss) está centrada na forma como rompimento não puder ser solucionado rapi-
os símbolos são concretizados em práticas e damente) em que há a tendência da ampliação
relações sociais. Conferindo importância à do conflito. Alguns mecanismos de “ajuste”
qualidade performativa das ações rituais e e “compensação” (formais ou informais) são
artísticas, o autor enfatiza o caráter dinâmi- aplicados para tentar conter a crise, como con-
co dos símbolos, que, em sua ação no mundo selhos pessoais, ações da máquina jurídica,
social, suscitam freqüentemente novos signi- legal ou mesmo a performance de rituais públi-
ficados e interferem diretamente na estrutura cos. A última fase do “drama social” é a solução
e nas sociedades. do conflito com a reintegração do grupo ou a
Em Schism and Continuity, percebemos o consolidação de uma separação irreconciliável,
primeiro passo para esta orientação, pois nela através de um procedimento compensatório.
o autor cunha seu famoso conceito de “dra- Nas palavras do autor6:
ma social”. Apesar de manter-se fiel a alguns
postulados de seu orientador, Max Gluck- Em resumo, a forma processual do drama social
man4, Turner buscava não apenas aprimorar pode ser formulada como (1) quebra; (2) crise;
seus conhecimentos sobre os Ndembu, mas (3) ação compensatória; (4) re-integração ou re-
também questionar as análises antropológi- conhecimento do cisma (Turner, 1957, p. 92)7.
cas “estáticas” de seu período, que acabavam
por colocar as mudanças e as inovações como Nesta obra, Victor Turner incorpora os
externas ao sistema social, que seria, suposta- princípios estruturais da sociedade Ndembu,
mente, estável. Assim, o drama social de Tur- as genealogias, as fissões das aldeias, as relações
ner relaciona um processo social com uma de poder e prestígio destacando também as es-
forma estética, à luz da sociedade Ndembu: tratégias individuais dos homens em busca de
tornarem-se chefes de aldeias. Segundo o autor,
(…) não era apenas com a coleta de um tipo os princípios fundantes da organização social da
diferente de dados que eu estava preocupado vila eram a descendência matrilinear e a virilo-
[...] mas com uma forma diferente de análi- calidade. Tal fato obrigava os homens a “impor-
se. Ao formular a noção de “drama social” eu tar” mulheres e “exportar” irmãs (que passavam
tinha em mente a comparação explícita da es- a morar na vila do marido), provocando a con-
trutura temporal de certos tipos de processos tradição masculina entre o papel de pais que
sociais com aqueles dos dramas do palco, com querem manter sua mulher e filhas junto de si
seus atos e cenas, cada um com suas qualidades e tios, que buscam resgatar a fidelidade de suas
peculiares e todos cumulando em um clímax irmãs e sobrinhos. Este paradoxo, segundo o
(Turner, 1957, p. XXXIV)5. autor, é a razão fundamental do alto grau de
fissão e de mobilidade individual na sociedade
O drama social refere-se a um distúrbio Ndembu, algo visto como extremamente ma-
na vida social de um grupo particular em que léfico e indesejado pelos próprios nativos que
duas facções se formam e a erupção do con- valorizam a manutenção dos grupos sociais.
flito, em geral, segue um determinado padrão, A boa administração de tal fenômeno,
obedecendo a uma forma processual. Segundo inevitável na sociedade Ndembu, é essencial
o autor, há o rompimento público das relações para que o homem consiga chegar ao posto de
sociais regulares, orientadas pelas normas so- chefe de sua vila e, para Turner, a profusão e
ciais. A isto sucede um período de crise (se o a freqüência da execução de diversos tipos de
rituais é o que confere unidade aos aglome- mentalmente teóricas, pois o autor afasta-se do
rados locais, pois a “comunidade moral” dos trabalho de campo), Victor Turner amplia seus
Ndembu tem, nestes fenômenos simbólicos, a instrumentos de análise, distanciando-se desta
mais sólida forma de salientar valores e proce- abordagem extremamente fecunda de mesclar
dimentos que todos os integrantes desta socie- trajetórias individuais, valores, estrutura social
dade têm em comum: e expressão simbólica.
Em sua caminhada em direção a uma
Ao estabelecer laços de co-participação nos análise processual, a proveitosa colaboração
cultos que operam independentemente do pa- que Victor Turner desenvolveu com Richard
rentesco e das linhagens locais, o sistema ritual Schechner11 incentivou e respondeu a uma
é uma compensação, em alguma medida, pela série de posicionamentos teóricos de diversos
amplitude limitada do controle político efeti- estudiosos, que passaram a convergir para os
vo e pela instabilidade dos laços de parentesco estudos da performance12.
e afinidade, através dos quais o valor político é Partindo da perspectiva clássica de Arnold van
anexado (Turner, 1957, p. 291). Gennep, em Os Ritos de Passagem, Turner concebe
a existência de uma “estrutura social” (uma lógica
Assim, o autor consegue integrar, de forma organizada, racionalizada, um sistema de desem-
exemplar, em uma mesma análise, os valores penho de papéis sociais), e de uma “anti-estrutu-
comunitários, a estrutura social dos Ndembu, ra” (momentos separados da vida social cotidiana,
as trajetórias individuais (destacando as estra- que permitem a manifestação de outras práticas,
tégias dos homens que, na luta pela chefia da lógicas e simbologias), salientando a qualidade li-
vila valem-se das normas sociais buscando para bertária destes momentos chamados “liminares”.
si benefícios políticos), bem como a freqüência Em tais manifestações, segundo o autor, ocorre
e necessidade8 das performances rituais. Neste a suspensão dos constrangimentos (coerções, pa-
quadro, pode-se compreender mais claramente péis e deveres) da vida social habitual, para uma
a conhecida relação que o autor faz quando re- liberação cognitiva, afetiva, volitiva e criativa dos
laciona o “destino” Ndembu com o teatro, ou indivíduos, podendo concretizar uma forma de
com os “dramas sociais”9: socialização livre entre os participantes, um efeito
espontâneo de grande reciprocidade que Turner
[...] está claro que as diferentes personalidades en- chama de “communitas”. O que o autor perce-
volvidas ocupam posições sociais que inevitavel- be nestes momentos especiais é a possibilidade
mente deverão entrar em conflito, e cada ocupante de diacronia, da mudança social em que: “(…)
de uma posição deve apresentar seu caso em ter- novos modelos, símbolos, paradigmas, etc. emer-
mos de normas geralmente aceitas [...] A situação gem – de fato, como as sementeiras da criativida-
na vila Ndembu aproxima-se bastante daquela en- de cultural” (Turner, 1982, p. 28).
contrada no drama grego, em que se testemunha Assim, unindo tais postulados a idéia dos ri-
o desamparo do homem individual ante o destino: tuais de rebelião de Gluckman e sua concepção
mas nesse caso, o destino é a necessidade do pro- de drama social, Turner notabilizou-se por en-
cesso social (Turner, 1957, p. 94). fatizar as possibilidades criativas da anti-estru-
tura, vista pelo autor como algo além da mera
Mas se o “erro trágico” grego encontra aqui liberação momentânea assinalada pelas análises
a devida expressão antropológica10, no progres- dos estrutural-funcionalistas que o precederam.
so de suas contribuições acadêmicas (funda- Para Turner o comportamento desordeiro não
seria apenas a compensação pela overdose de re- p.74). Nesta obra, podemos ver a tentativa
gras sociais, mas uma forma de aprendizado, de Turner de postular uma análise intercul-
experimentação, mudança social13. tural dos fenômenos expressivos, ou nos ter-
Se com esta perspectiva o autor estimulou mos do autor, sua “simbologia comparada”
uma gama de estudos sobre os aspectos rituais centrada
e performáticos em diversas sociedades, per-
mitindo que o arcabouço analítico do estudo [...] nas relações entre símbolos e conceitos,
antropológico dos rituais fosse mobilizado para sentimentos, valores, noções, etc. associados
compreender e explicar fenômenos de socieda- com eles pelos usuários, intérpretes ou exege-
des contemporâneas, por outro lado, não raro tas: em resumo, ela tem dimensões semânticas,
as contribuições para a Antropologia da Per- ela pertence ao significado na linguagem e con-
formance acabam enfatizando a mera aplicação texto (Turner, 1982, p. 20).
do modelo de inversão ritual, postulando uma
relação entre “mundo estético” e “mundo so- No texto em que buscam a definição da
cial” fundamentada em um frágil modelo “vi- atuação da Antropologia da Performance, Tur-
sual”, conforme o esquema abaixo: ner e Burner escrevem:
A citação acima aponta para a impossibi- gia da Performance no país) é extremamente co-
lidade da descontextualização dos fenômenos mum em obras de diversos filósofos, lingüistas,
simbólicos, por tratar a Antropologia da Per- semiólogos e historiadores, como diagnostica
formance como submetida a uma área maior, Pierre Bourdieu em As Regras da Arte (1996).
a Antropologia da Experiência, apta a com- Para o autor, apesar de divergências evidentes
preender tanto a dimensão da expressão como sobre a especificidade da obra de arte, a maioria
a da experiência em relação ao seu contexto dos analistas concorda em atribuir à definição
cultural. Porém, diversas aplicações recentes de arte propriedades tais como a gratuidade,
da Antropologia da Performance não enfati- a ausência de função (ou o primado da forma
zam o contexto, o sentido local e tampouco sobre esta), o desinteresse etc. Como exemplo
vão além de um espelhamento simplista entre deste tipo de definição, Bourdieu remete a Ha-
a expressão artística e mundo social. rold Osbourne, para quem:
Em seu trabalho apresentado na 25ª
Reunião Brasileira de Antropologia15, poste- [...] a atitude estética caracteriza-se pela con-
riormente transformado em artigo, Mariza centração da atenção (separa – frames apart
Peirano, após destacar o grande número de – o objeto percebido de seu entorno), pela
pesquisas recentes nesta área da antropologia suspensão das atividades discursivas e analíti-
no país, critica a ênfase da teoria antropoló- cas (ignora o contexto sociológico e histórico),
gica do ritual em detrimento das perspectivas pelo desinteresse e o desprendimento (afasta as
empíricas nestas contribuições. Argumentan- preocupações passadas e futuras) e, enfim, pela
do que “(...) a concepção de que um evento indiferença à existência do objeto (Bourdieu,
‘é diferente’, ‘especial’, ‘peculiar’, tem que ser 2005, p. 319).
nativa” (Peirano, 2006, p.10), a autora se con-
trapõe exatamente àquela aplicação simplista Bourdieu discorda amplamente das pers-
e descontextualizada da Antropologia da Per- pectivas fundamentadas nesse pressuposto,
formance que se privaria de realizar o “recorte pois tais análises centram-se na experiência
antropológico” na análise do fenômeno esté- subjetiva da obra como aquela de seu autor,
tico, pois as performances seriam já “destaca- sem perceber a historicidade dessa experiência
das” por definição. Portanto, seriam tratadas e do objeto em questão:
apenas como: as “nossas histórias [dos antro-
pólogos] sobre as histórias deles [nativos]” [...] operam, sem o saber, uma universalização do
(Turner; Bruner, 1986, p. 10), ou, de forma caso particular [...] em norma transhistórica de
análoga: a interpretação das pessoas quando toda percepção artística (Bourdieu, 2005, p. 320).
elas estão se auto-interpretando.
Segundo o teórico, tais perspectivas não
tratam das condições históricas e sociais da
Sobre canoas, barqueiros e viajantes: possibilidade da experiência artística, nem
a contribuição de Bourdieu das condições de produção, reprodução e fa-
bricação da disposição estética que exigem,
Este nocivo procedimento de descontex- objetivo último de uma sociologia ou antro-
tualização do fenômeno artístico (que vemos pologia da arte.
deliberado em Eugênio Barba e freqüente em Para contemplar tais perspectivas de forma
algumas aplicações equivocadas da Antropolo- adequada, Bourdieu ressalta uma importante
postura metodológica necessária ao analista, é o da teoria e do conceito sem ser por isso,
que deve evitar tratar a percepção de uma como querem com freqüência aqueles que
obra cultural como um ato intelectual de de- lhe sentem a especificidade, uma espécie de
cifração, uma “leitura” realizada por um leitor participação inefável no objeto conhecido
“escolástico”. Para o autor: (Bourdieu, 2005, p. 349-350).
no de recepção), sem deixar de relacioná-los O autor busca uma ciência “capaz de deter-
ao seu contexto, à história de sua consoli- minar o sentido que as coisas têm para a vida
dação e ao processo de criação das compe- ao seu redor” (idem). Por isto,
tências para sua fruição, o analista poderá
por fim, compreender e explicar esta cons- A capacidade de uma pintura de fazer senti-
trução simbólica de forma competente, do (ou de poemas, melodias, edifícios, vasos,
sem descontextualizá-la ou intelectualizá- peças teatrais ou estátuas), que varia de um
la. Esta perspectiva permite ao teórico es- povo para o outro, bem assim como de um
quivar-se do mero “espelhamento” entre a indivíduo para outro, é, como todas as capa-
arte e o mundo, ou mesmo da concepção cidades plenamente humanas, um produto da
desta como algo “externo ao mundo social” experiência coletiva que vai bem mais além
(evidente na versão de Barba acerca do “ex- dessa própria experiência [...] A participação
tracotidiano”) e também de análises a-his- no sistema particular que chamamos de arte
tóricas e descontextualizadas inspiradas na só se torna possível através da participação no
Antropologia da Performance. sistema geral de formas simbólicas que cha-
A devida abordagem antropológica do mamos cultura, pois o primeiro sistema nada
teatro deve compreender e explicar os sen- mais é do que um setor do segundo. Uma teo-
tidos, valores e significados atribuídos à ex- ria da arte, portanto, é ao mesmo tempo, uma
pressão cênica por seus participantes, como teoria da cultura e não um empreendimento
ressalta Clifford Geertz (1997, p 146): autônomo (Geertz, 1997, p. 165).
O maior problema que surge com a presença Uma vez que novos progressos das análises
do fenômeno estético, seja qual for a forma antropológicas dos fenômenos estéticos ve-
em que se apresente ou a habilidade que o nham a ser difundidos, ampliando e desenvol-
produziu, é como anexá-lo às outras formas vendo tal orientação, sem dúvida haverá menor
de atividade social, como incorporá-lo na tex- espaço e legitimidade para perspectivas teóricas
tura de um padrão de vida específico. E essa “apressadas” como a de Eugênio Barba, basea-
incorporação, esse processo de atribuir aos das antes em interesses pragmáticos do mundo
objetos de arte um significado cutural, é sem- teatral que buscam legitimidade teórica ao ma-
pre um processo local [...] nipular termos e conceitos das ciências huma-
nas. “Passar-se por outro” no campo acadêmico
Tal como Bourdieu, Clifford Geertz foi é certamente muito diferente do que sobre o
também inspirado pela importante obra de palco italiano, pois se ali nos maravilhamos
Michael Baxandall (1991), O Olhar Renascente, com a ilusão dramática, a “ilusão teórica” é, no
e de forma semelhante, o antropólogo indica mínimo, desoladora.
que para ser eficaz
[...] a semiótica terá que ir além do estudo de Beyond The Paper Canoe
sinais como meios de comunicação, como um
código a ser decifrado, e considerá-los formas abstract The present article intends to
de pensamento, um idioma a ser interpretado contribute to the debate about anthropological
(Geertz, 1997, p. 181). analysis of theatre in contemporary societies. It
analyzes the impact of the Theatre Anthropo-
logy of Eugenio Barba, which despite its global ampla (macro) uma força de coesão social ampla.
diffusion and acceptance in the theatre research Assim o autor articula os conflitos com as normas
sociais, de forma evidentemente estrutural-funcio-
area, does not have any anthropological validi-
nalista, com ênfase em “rebeliões esperadas”, ritua-
ty. In opposition to this view, the work of Vic-
lizadas e geradas pela “tradição”.
tor Turner, giving origin to the Anthropology 5
Tradução livre feita pelo autor.
of Performance, has been used as an important 6
Todos os trechos de Victor Turner foram traduzi-
support, despite many a-historical, mechanical dos livremente pelo autor.
and de-contextualized applications. This article 7
Turner salienta que o processo não precisa neces-
intends to recall the importance of the dimen- sariamente correr harmoniosamente, sendo que,
sion of “experience” in Turner’s work, and also por exemplo, a falha do mecanismo compensatório
the already classical analysis of Pierre Bourdieu’s (ação compensatória) pode levar novamente à crise.
work The Rules of Art. 8
De fato o termo revela aqui o vínculo do autor à
keywords Theatre Anthropology. Anthropolo- perspectiva estrutural-funcionalista que posterior-
gy of Performance. Anthropology of Experience. mente iria ser criticada em suas obras.
9
Tanto no que se refere à análise do parentesco feita
por Turner, à síntese das estratégias individuais dos
atores sociais bem como a noção de drama social,
Notas ver o artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Ca-
valcanti (2007).
1
Tomamos a liberdade de utilizar esta expressão 10
Ver o artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Ca-
de forma comparativa, para aludir ao conceito
valcanti (2007), que não apenas trata da questão
de estrutura de Claude Lévi-Strauss e evidenciar
do conceito de drama social e da análise do paren-
a diferença entre as teorias. Ao invés de preocu-
tesco feita por Turner em Schism and Continuity
par-se com uma forma operatória do inconsciente
in an African society, como destaca os procedi-
humano, que organiza os fatos do mundo a par-
mentos “dramatúrgicos” utilizados na etnografia,
tir de oposições mentais, Barba parte da suposta
de modo a destacar as estratégias individuais dos
“universalidade fisiológica” do homem para frisar
atores sociais.
sua capacidade de aprender e executar quaisquer
“técnicas corporais”.
11
Schechner era diretor de um famoso grupo norte-
americano chamado The Performance Group e
2
No referido ensaio, Lévi-Strauss, em um procedi-
vinha dedicando-se cada vez mais aos estudos an-
mento relativista e crítico da razão ocidental, com-
tropológicos e à teoria social. Em 1967, publicou
para o processo cognitivo do complexo xamanístico
um livro que tornou-se clássico para os estudos da
com as terapias psicanalíticas, demonstrando suas
performance, intitulado Performance Theory. O
semelhanças.
autor também é editor de The Drama Review, uma
3
Victor Witter Turner (1920-1983) foi um dos das revistas mais influentes no debate acadêmico
mais conhecidos expoentes do que se convencio- das artes cênicas.
nou chamar de Escola de Manchester. Participou 12
Em 1986 a coletânea de Turner e Bruner, Anthro-
do instituto Rhodes-Livingstone, dirigido por Max
pology of Experience, apresenta um capítulo intro-
Gluckmann e publicou diversas obras de grande in-
dutório chamado Anthropology of Performance.
fluência no meio antropológico, entre elas Schism
and Continuity in an African Society (1957), Fo-
13
Tal como Milton Singer (de quem o autor retirou
rest of Symbols (1967) e From Ritual to Theatre o termo “performances culturais”) que percebia em
(1982). tais fenômenos a forma paradigmática de propa-
gação das “tradições” (ver Singer, Milton When a
4
Em sua obra, Max Gluckman trabalha com a ques-
Great Tradition Modernizes, 1972), Victor Turner
tão das “liberdades” e da “rebelião” na África, che-
não concebe as manifestações rituais como dotadas
gando, em Custom and Conflict in Africa, à tese
da mesma subversão que identificava em outros
de que as divisões sociais (antagonismos) em áreas
gêneros das sociedades modernas, industrializadas
restritas (micro) acarretariam, em uma dimensão
(leia-se ocidentais). Nestas sociedades, os fenô- GEERTZ, Clifford. O Saber Local. Petrópolis: Vozes,
menos anti-estruturais se apresentariam de forma 1997. 366 p.
particular, batizadas por Turner de “liminóides”, GLUCKMAN, Max. Custom and Conflict in Africa.
e seriam caracterizados por sua individualidade, Oxford: Blackwell, 1966. 173 p.
voluntariedade, pluralidade, reflexividade e maior GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de Um Teatro Pobre.
propensão à subversão do status quo, tendendo a Rio de Janeiro: Ed. Civ. Brasileira, 1992. 220 p.
satirizar, burlar ou colocar abaixo valores centrais LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio
desta mesma sociedade. de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. 456 p.
14
Ver Turner (1982, p. 73). MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociolo-
gia e Antropologia. Vol. II, São Paulo: E.P.U/Edusp,
15
A 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida
1974a. p. 209-233
em Goiânia, em junho de 2006 contou com a pre-
_____. Ensaio sobre a Magia. In: Sociologia e Antro-
sença, na mesa-redonda de tema “Do Ritual à Perfor-
pologia. Vol. I, São Paulo. Editoras: E.P.U/ Edusp,
mance: abordagens teóricas num campo emergente
1974b. p. 37-176
no Brasil” dos antropólogos Mariza Peirano, Maria
PEIRANO, Mariza. O Dito e o Feito. Rio de Janeiro:
Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e John Dawsey
Relume-Dumará, 2002. 228 p.
sob a coordenação de Esther Jean Langdon.
_____. Temas ou Teorias? O estatuto das noções de
ritual e performance. Campos, Curitiba, n.7, v.2, p.
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Recebido em 28/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008