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26 José L. BACKES; Adir C. NASCIMENTO. Aprender a ouvir as vozes dos que vivem nas fronteiras ...
Especificamente, esta apresentação trazem as tensões de viver e construir um
não-convencional fará referência a sabe- conhecimento fronteiriço, sabendo que
res/poderes produzidos por seis alunos se trata de uma in/traduzibilidade. Como
que concluíram suas dissertações, que escreve Rezende (2007), da etnia tuyuka: “é
viveram com intensidade a experiência de um exercício de construção de um discurso
enunciação cultural, não abrindo mão de indígena sobre as realidades indígenas
afirmarem suas identidades/comunidades com categorias ocidentais e de construir
em um contexto, ainda que haja hoje pre- um discurso ocidental tuyukanizado” (p.
ocupações, por uma parte da academia, 264). Não se trata de um saber puro, mas
de querer ser múltipla e multicultural. No de um saber híbrido, um saber fruto de
caso da Linha do PPGE na qual se inscre- uma complexa articulação, permeada por
veram esses alunos indígenas, esse tem disputas de poder. As diferenças entre a
sido um desejo constante, num espaço/ teoria ocidental e o saber
tempo hegemonicamente ocidental. Esses [...] teórico-tuyuka sobre educação
alunos indígenas, de certa forma, viveram e e escolas provocam discussões,
vivem a angústia permanente de pensar na dúvidas, disputas, etc. Os conceitos
fronteira do saber/poder ocidental, sobre de cultura tuyuka, educação tuyuka,
o saber/poder ocidental, contra o saber/ educação de modelo ocidental, es-
poder ocidental, produzindo um terceiro cola tuyuka, identidade, negociação,
interculturalidade estão entrelaçados.
tempo/espaço (BHABHA, 2007), que per-
(REZENDE, 2007, p. 265).
mita subvertê-lo ao mesmo tempo em que
signifique a legitimação do saber/poder de Tampouco se trata de reivindicar a
seu povo. Trata-se de uma atividade que cristalização da cultura, a fixação identitá-
requer o reconhecimento de que todas as ria, como recorrentemente o saber/poder
epistemologias são políticas; portanto, o colonizador procurou e procura impor,
saber, mais do que uma adequação entre como se os indígenas, ao modificarem
intelecto e realidade, é uma operação de sua cultura, estivessem negando sua
poder (SILVA, 2002). identidade: “as culturas são produções e
Os seis alunos2 pertencem a dois reproduções de diversos modos de vida
grupos culturais diferentes: um tuyuka humanos. [...] Entre os povos indígenas da
(Amazonas) e cinco terena (Mato Grosso bacia do rio Uaupés, os valores e práticas
do Sul). Ao frequentarem o PPGE - UCDB, culturais se assemelham e diferenciam
constantemente” (REZENDE, 2007, p. 265).
Nesse processo dinâmico e con-
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Atualmente, estão no PPGE/UCDB um aluno flitante, a escola indígena assume um
xavante (Mato Grosso), três kaiowá/guarani (Mato lugar central. Ela também passa a ser um
Grosso do Sul) e um terena (Mato Grosso do Sul)
espaço/tempo significativo de negociação
que, assim como os que já defenderam, também
estão desenvolvendo pesquisas articuladas com as e enunciação da cultura que gera “uma
suas comunidades. educação indígena que prepara seus
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lissêmicos que a atuação da escola geira, criticar e elaborar propostas para os
produziria no campo social e político. problemas vivenciados dentro da Aldeia,
Ninguém aqui pretende uma escola desconstruindo o olhar estereotipado”.
ligada à concepção mítica Terena, que Nesse processo de afirmação cultu-
evidencia os valores do passado. E
ral e questionamento dos estereótipos, a
também não querem a escola do não-
índio, pura e simplesmente, com suas valorização da língua nativa é fundamen-
tecnologias e aparatos pedagógicos. tal, e esta deve estar articulada com o cur-
Mas, dizem aqui, de uma retomada rículo. Sobrinho (2010), na sua dissertação,
da vivência, onde todos esses valores, ao mesmo tempo em que mostra como
com seus significados, seriam coloca- as lutas passam por processos de ressig-
dos à apreciação da população num nificação, aponta a importância da língua
todo. E só aí construir efetivamente indígena para a comunidade e como ela
e por que não, gradativamente a
deve estar articulada com o currículo das
educação que garante acesso, mas
que não deixa de ser a do momento
escolas indígenas:
que o povo Terena esteja vivendo na Por muito tempo foi defendida a idéia
perspectiva da interculturalidade. de que era necessário ter contato com
a sociedade não índia, e, para isso, era
Assim como Lima (2008) e Silva
necessário ter o domínio da língua
(2009), Belizário (2010), também terena, ao
majoritária, o português. Muitos pais
analisar a experiência da escola indígena acreditam que seus filhos precisam
localizada na sua comunidade, descreve aprender português para se defender
as ambivalências da escola, que, situada na sociedade. Acredito que essa idéia
num entre-lugar (BHABHA, 2007), se torna deve ser revista. Não quero dizer
um lugar fronteiriço (lugar de encontro, com isso que devemos desvalorizar
de negociação) entre a cultura indígena e o português. Ao contrário, os Terena
não-indígena. A escola indígena, concebi- já estão em pleno contato com a
da inicialmente pela ótica do colonizador língua portuguesa. Eles aprendem as
para impor a cultura branca, ao ser assu- regras gramaticais, durante o decorrer
mida e protagonizada pelos próprios indí- dos anos escolares. Quero dizer que
genas, questiona a lógica colonizadora e a língua terena deve ocupar papel
principal na comunidade, ou seja,
cotidianamente afirma a interculturalidade
não se deve discutir qual língua é
como condição sem a qual não é possível
melhor. A língua materna deve ser
viver/ser terena no contexto atual. Dessa valorizada e ter um espaço dentro do
forma, segundo a pesquisa de Belizário currículo escolar, desde a educação
(2010, p. 55), seu povo relaciona-se com infantil. Assim os professores indíge-
a escola sem desconsiderar a cultura te- nas, independente de serem ou não
rena e suas tradições “[...] na maneira de professores de língua terena, podem
aprender, compreender, opinar, conhecer fazer o uso dela dentro da sala de
novas culturas, aprender língua estran- aula. (SOBRINHO, 2010, p. 50).
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a noção de um pensamento e conheci- analisa a importância dos Seminários In-
mento totalitários, únicos e universais” ternacionais Fronteiras Étnico/Culturais e
(WALSH, 2009, p. 25). Fronteiras da Exclusão. Para Siss, “eles vêm
Nesse esforço de pluralização e ganhando crescente destaque e relevante
problematização das pedagogias e das importância acadêmica ao divulgar conhe-
epistemologias, os Seminários Internacio- cimentos localizados na confluência das
nais Fronteiras Étnico-culturais e Fronteiras áreas das desigualdades e diversidades
da Exclusão, coordenados pela Linha de etnicorraciais e da educação brasileira”.
Pesquisa Diversidade Cultural e Educação O primeiro artigo do dossiê refere-
Indígena, têm sido espaços/tempos muito se à conferência de abertura do evento,
produtivos. Eles têm sido também um mo- A Escola como Espaço/Tempo de nego-
mento privilegiado para exercitar/aprender ciação de identidades e diferenças, de
a escutar as vozes dos que cotidianamente Ricardo Vieira, professor e pesquisador
vivem nas fronteiras étnico-culturais e da do Centro de Investigação Identidade(s) e
exclusão. Em 2010, na sua quarta edição, Diversidade(s), do Instituto Politécnico de
contemplou a temática A escola como Leiria, Portugal. Em seu artigo, Vieira situa
espaço/tempo de negociação das identi- a escola como “um espaço e um tempo
dades/diferenças, trazendo como centro a de encontros, desencontros, de intercul-
reflexão e as produções de conhecimentos turalidade, de tensões sociais e culturais,
por meio de pesquisas e/ou experiências também, mas, sempre, de oportunidade
vividas dos/com os indígenas, afro-brasilei- de completude do eu pessoal”. Aborda,
ros, movimentos populares e gênero. ainda, “as metamorfoses culturais que
Os sete artigos que compõem este ocorrem na identidade dos sujeitos, seja
dossiê, mais o artigo do Ponto de Vista e nos professores, seja nos alunos, ao nível
a Resenha foram produzidos por autores da gestão das diversidades na própria
que questionam a epistemologia e a escola identidade pessoal”.
moderna, reconhecem diferentes modos de O segundo artigo do dossiê, Frontei-
produzir conhecimento e vivem a tensão ras Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclu-
cotidiana de produzir um conhecimento são no Contexto de Escolas Interculturais,
decolonial num contexto ainda marcado de Héctor Muñoz Cruz, da Universidad
pela colonialidade. São autores que par- Autónoma Metropolitana, da cidade do
ticiparam ativamente do IV Seminário na México, discute questões como os desafios
condição de conferencistas e palestrantes, do multiculturalismo e do multilinguismo,
sendo que muitos deles revisaram e am- as políticas linguísticas e multiculturalismo
pliaram seus artigos após a interlocução na educação superior. Para Muñoz Cruz, “el
com os participantes do seminário, com multiculturalismo es un hecho que debe
destaque para indígenas e afro-brasileiros. ser admitido y ser asumido en la educación
Na sessão Ponto de Vista, Ahyas Siss superior. La decisión de combinar acciones
(UFRRJ), parceiro histórico do Fronteiras, de igual dignidad con acciones de inte-
32 José L. BACKES; Adir C. NASCIMENTO. Aprender a ouvir as vozes dos que vivem nas fronteiras ...
compõem a obra resenhada “consistem a epistemologia moderna/cartesiana/po-
em um material tanto para uso pedagógico sitivista/etnocêntrica, bem como manter a
quanto para deleite pessoal, pois capturam disposição para continuar nosso exercício
proposições teóricas de rara complexidade cotidiano de aprender a ouvir as vozes dos
de forma leve, tornando a leitura prazerosa que vivem nas fronteiras étnico-culturais
sem perder a profundidade teórica”. e da exclusão, irritando-nos (HALL, 2003)
Com a organização deste dossiê, constantemente com as nossas insufi-
esperamos contribuir para a desconstrução ciências teóricas para desenvolver uma
dos saberes/poderes coloniais, questionar epistemologia decolonial.
Referências
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