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Ayaan Hirsi Ali, uma jovem política e escritora somaliana, naturalizada holandesa e
residente nos Estados Unidos, disse numa palestra que "as verdadeiras fronteiras
são as do pensamento". Referia-se a toda sorte de discriminação e preconceito que
tanta violência e desgraça geram.Vitimada desde criança por um fanatismo brutal,
destinada a casar com um homem que não conhecia, conseguiu fugir e acabou uma
figura admirada no mundo inteiro. Jurada de morte por certos grupos muçulmanos
em seu país de origem, ela só pode circular com forte segurança.
Olhei aquela quase-menina tranqüila, mas de olhar profundo e muito atento. Pensei
no quanto, por qualquer bobagem, nos fazemos de vítimas, enquanto aquela jovem
não apenas sobrevive, mas age e se afirma: sem desejo de vingança e sem o
detestável espírito de mártir, que produz o ressentimento mais maligno.
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Acabo de emprestar minha voz para o documentário sobre outro fato espantoso, o
das Noivas do Cordeiro. Um vilarejo com esse nome, perto de Belo Horizonte, é
habitado por algumas famílias – mais mulheres, pois os homens têm de buscar fora
o sustento de seus filhos e só vão para casa nos fins de semana. Elas vivem ainda
hoje isoladas e discriminadas de uma forma cruel. Por serem bandidas? Não. Uma
antepassada delas foi excomungada pela Igreja há mais de 100 anos, por haver
tentado ser um pouco feliz com seu novo companheiro. Como era casada, foi
execrada pelos fariseus de plantão. A maldição atingiria quatro gerações de seus
descendentes.
Nos depoimentos, algumas choraram relatando a dureza dessa situação. Que talvez
esteja acabando, pois, com muito trabalho e desejo de progredir, elas conseguiram
instalar televisão e começam a conhecer o mundo. Botaram também a internet,
outra janela para fora de sua condenação. Finalmente, elegeram uma vereadora,
fundaram uma associação e, após quatro gerações, talvez possam ser olhadas com
o respeito que merecem mais do que tantas pessoas daqui de fora. O que vão
ganhar na realidade, para além dos limites de seu delicioso e feliz povoado? Tenho
minhas dúvidas sobre as vantagens todas: vão conhecer corrupção e omissão,
logro e malogro, frivolidade, violência e competição desleal. Imagino que seja
inevitável libertarem-se da difamação e serem integradas ao mundo. Mas quem
sabe seria melhor botar o país inteiro dentro daquele vilarejo, vivendo de maneira
simples, limpa, fraterna e feliz?
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Não posso encerrar sem mencionar Ruth Cardoso. Uma das pessoas mais discretas
e dignas entre nós. Intelectual respeitada e generosa cuidadora dos desvalidos, que
fundou o Comunidade Solidária, verdadeiro berço de iniciativas como o Bolsa
Família, apenas com outros contornos – amparar, mas preparando para que os
favorecidos logo possam ganhar seu sustento. Pois essa verdadeira dama, em seus
últimos meses, com a saúde frágil, foi achacada por quem pretendia (talvez ainda
pretenda) expor suas contas e de seu marido, procurando ali algumas das tão
comuns falcatruas atuais. Neste país, a fronteira entre justo e injusto, verdadeiro e
falso, correto e maldoso precisa ser urgentemente restabelecida.
Diagnóstico: Alzheimer
"Como sempre nas doenças graves, devemos
lembrar que a vítima não somos nós: é o outro.
Nesse processo não há nada de bom, de belo,
a não ser o exercício da ternura, sem esperar
muito retorno"
O que eu disse a meu amigo, disse a mim mesma nos muitos longuíssimos anos
daquela jornada: o doente em geral não sofre. A família, sim. O que se pode fazer?
Muito pouco, além de cuidar para que ele esteja bem alimentado, bem abrigado,
medicado e tratado com carinho. Nada de criticar quando não sabe mais quem
somos, porque no fim não sabe mais quem ele próprio é. Quando já não se porta à
mesa como antes, quando faz "artes" às vezes perigosas, ele precisa ser protegido,
não mais ensinado. Não vai mesmo aprender. Como sempre nas doenças graves,
devemos lembrar que a vítima não somos nós: é o outro. Nesse processo, que em
geral dura muitos anos, não há nada de bom, de belo, de encantador, a não ser o
exercício da ternura, da paciência e dos cuidados, sem esperar muito retorno, pois
em breve seremos chamados de senhor, senhora, moça, não mais de filha, filho,
meu querido. O ser amado se distancia, sem volta, sem saber, sem querer e sem
que nada possa evitar: agora havia ali uma velhinha da qual eu cuidava como
podia. Por fim, para a proteger de si própria, por insistência dos médicos ela foi
posta na melhor clínica que pude assumir. Jamais esquecerei a dor e a culpa que
me assaltaram, contrariando qualquer raciocínio. Milhares de vezes tentei me
convencer de que minha mãe nem existia mais, era apenas uma velhinha de quem
eu tinha de cuidar. Como ficção, funcionava; como realidade, a cada uma das
centenas de visitas meu coração se partia outra vez.
Cuide de sua doente, eu disse a meu amigo, da melhor forma. Não alimente
nenhuma esperança vã, pois tudo é triste, infinitamente desalentador. Uma coisa
que ajuda, um pouco, é tentar entrar no universo do doente, em lugar de querer
que ele retorne ao nosso. Mas cuide também de si mesmo. Tente pegar-se no colo,
proteja-se da culpa insensata que nos espreita, siga sua vida. Na natureza morrem
árvores jovens, e velhas árvores tortas vivem muito além da última floração.
Estamos mergulhados no mistério: isso torna a vida possível mesmo quando não a
entendemos.
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Ponto de vista: Lya Luft
Dedo no gatilho
"Entre nós, cidadãos que usamos a canga,
puxamos a carroça e pagamos as contas,
o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo
movimento de um dedo no gatilho"
Alguma coisa mudou nessa família, e mais uma vez se acendeu em mim o doloroso
alerta: não podemos colocar filhos e netos debaixo de nossa asa protetora. Não há
como erguer uma cerca, nem metafórica, de amor e cuidados. Não podemos – nem
devemos – tentar impedir que vivam, cresçam, saiam pelo mundo, batalhem suas
batalhas, construam sua família. É bom que façam isso. Mas, ao mesmo tempo,
ficamos mais vulneráveis diante deste mundo nosso.
Mundo besta: por um lado produz esses jovens que fazem a vida valer mais a pena,
por outro lado cria uma sociedade na qual não valemos nada. Quer dizer: às vezes
temos um preço. No cenário (e no Senado) brasileiro, neste momento em que
escrevo, um homem pode valer 40 bilhões, pode valer a CPMF (que só para os
muito bobos é imposto de rico). Entre nós, cidadãos que usamos a canga, puxamos
a carroça e pagamos as contas, o valor da vida pode ser uma bala, o mínimo
movimento de um dedo no gatilho. É a total banalização da morte, que se tornou
um mero incidente cotidiano.
Problemas são privilégio dos humanos. Quem mandou andar ereto, quem mandou
pensar? Quem mandou inventar sociedade, trabalho, salário, teorias das mais
abstrusas e, ainda por cima, política? Altos e baixos, magros e gordos, belos e
feios, pobres e ricos, inteligentes e menos iluminados, problemas sempre teremos:
com filho, com cônjuge, com patrão, com funcionários, com o Fisco ou o governo,
com amigos ou com a burrice alheia. Nosso envolvimento vai armando uma trama
que nos atrapalha e não nos deixa enxergar a claridade ou curtir os não-problemas.
Outro dia, depois de uma palestra, um casal me abordou, simpático. Ele pediu: "Eu
queria que a senhora escrevesse sobre a necessidade de reavaliar nossos
problemas e aliviar a vida. Pois minha mulher", ele a olhou com carinho, não com
censura, "vive tão enrolada que pouco tempo resta
para a alegria e para nós dois".
Ilustração Atômica Studio
Não acho que problemas devam ser ignorados. Frivolidade também mata. Mas há
sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever
nossas estruturas, internas e externas: O que posso resolver? O que devo esquecer
ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para
enxergar outras coisas, coisas melhores?
A vida é dura lida. Por vezes altamente dramática. Aqui e ali, tragédia. Nem sempre
podemos desviar os olhos e a alma, nem sempre podemos ignorar e superar, nem
sempre podemos resolver. Vitórias são raras. "Do caos nasce a luz" e da derrota
pode nascer uma nova pessoa, melhor que a de antes. Mas do caos também pode
surgir mais confusão, e da derrota pode resultar um pobre ser esmagado. Assim,
dos problemas pode-se fazer uma seleção, em que alguns serão jogados fora.
Deletou, acabou-se. Outros ficarão à margem do caminho, dando passagem ao
otimismo e à vontade de vida, mas estarão ali, à espreita de um momento de
fraqueza para nos assaltar feito bandoleiros. Outros, ainda, necessitam de um
longo tempo para que se desmanchem suas raízes no coração que se atormenta.
Só que esse tempo não pode ser tão longo quanto a vida nem ocupar demasiado
espaço dentro dela, ou desperdiçaremos o que há de melhor na paisagem.
Eu mesma, do alto dos meus tantos anos e duras lidas, não consigo resolver ou
superar alguns de meus problemas nem ajudar pessoas que amo a se livrar de
todos os seus. Às vezes o jeito é dar-se as mãos numa ciranda solidária, esperando
que o bom senso vença a perplexidade e reduza nosso sofrimento inútil. Seja como
for, por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios
dos psicanalistas, escrevem os escritores, lutam os soldados, roubam os ladrões,
enganam os crápulas e brincam, antes de se convencer da dureza dos combates,
quase todas as crianças na paisagem em torno.
Não brincam as que morrem nos hospitais, fenecem nas ruas, sofrem nos lares
violentos ou tristes: são responsabilidade nossa, grandes trapalhões que
inventamos esta cultura, esta sociedade, esta injustiça, esta omissão, estas
relações e esta vida. Porque a morte, essa não inventamos nós. Diante dela, quase
todos os problemas se resolvem, e empalidecem quase todos os dramas.
Herodes faria uma festa. Eu, que às vezes penso que nada mais vai me chocar, mal
acredito no que se anuncia: morreram trinta e tantos bebês em certo hospital do
norte do país. Já é horrível. Logo depois, haviam morrido quase 100 e, finalmente,
as autoridades admitiram bem mais de 200 mortos em alguns meses. Bebês
morriam como moscas no hospital que lhes devia propiciar a vida. Era caso de
fechamento em todos os hospitais do mundo, mas uma autoridade local apenas
disse, piscando os olhos como quem está um pouquinho insegura: "Esse número de
bebês mortos em hospital nessas condições é aceitável". Como tais condições
perduraram mais de um dia? Eu estava ouvindo e lendo bem? Estava em meu juízo
normal? Estava. Pois então, viva Herodes. Porém, os caixõezinhos amontoados em
uma pequena carreta e um pai muito jovem carregando mais um corpo, como se
fosse o seu filhinho morto, não permitiam gracejo.
"Ninguém controla a vida", me dizem, quando reclamo. Digo que, apesar das
maravilhas da medicina, quando o hospital é limpo, o médico não está totalmente
exausto, a enfermeira é bem treinada e os doentes em casa não vivem no esgoto
ou no lixão, ninguém controla a morte. A vida, ah, essa a gente devia controlar ao
menos um pouco melhor. Para que os sinos das cidades onde morrem centenas de
bebês por inoperância e desinteresse não derretam de tanto bater o toque dos
mortos inocentes, nossas vozes não se afoguem de dor no escuro dos quartos, e
nunca mais um adolescente derrotado tenha de levar no colo, à frente de uma
carreta cheia de minúsculos caixões empilhados, o corpo de seu filhinho, que nós,
todos nós, como sociedade, matamos.
Alguém pode cobrar: "Aquela vez, naquele lugar, você me disse isso, e até hoje me
dói". A gente pensa, repensa, mas não se lembra: "O que foi, quando foi? Eu
jamais teria dito isso, sobretudo se ia te ferir". Mas o outro insiste na sua dor. A
incomunicabilidade é quase um estado habitual de muitas pessoas: como nascer
com algum defeito físico do qual não se tem culpa, mas que chateia ou atormenta.
Saber se comunicar, no trabalho, no cotidiano e na vida pessoal, é uma dádiva.
Abre portas e janelas, promove generosidade e acolhimento. Mas é raro. Em geral
somos enrolados, somos tímidos, guardamos velhas mágoas ou somos arrogantes,
outra face da insegurança e do medo.
Mas existe também o silêncio bom, que, em lugar de erguer muros, abre espaços. É
a não-necessidade de falar, entre pessoas seguras do seu carinho mútuo. Elas
ficam perfeitamente felizes sentadas juntas, cada uma lendo seu livro, seu jornal,
fazendo seu trabalho. De vez em quando uma palavra, um gesto de afeto, e ao
redor delas abre-se um círculo de harmonia. Na vida nem tudo é sofrimento,
esterilidade e solidão. A dor faz parte, mas há momentos de magia para todos. Da
pessoa mais simples ao mais refinado intelectual, qualquer um pode descobri-los,
ou persegui-los, quando a correria, os compromissos, as pressões lhe derem um
pouco de paz. Ou ela terá de ser conquistada usando-se garras, dentes, cotovelos.
Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no
vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a
disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem
se saiu menos bem mas é de origem africana ou vem de escola pública. E os
outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana,
polonesa, alemã, ou o que for, cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa,
saúde, educação?
A idéia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos
capazes, e por isso precisam desse empurrão, e o de que a escola pública é
péssima e não tem salvação. É uma idéia esquisita, mal pensada e mal executada.
Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para
que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade,
porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a
qualquer coisa de menor importância.
Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que
quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam
através de cotas, pela chamada "lei do boi". Constatou-se, porém, que verdadeiros
filhos de agricultores eram em número reduzido. Os beneficiados eram em geral
filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram
ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota,
aquela oportunidade. Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando
na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes
era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo.
Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis
por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma
possibilidade que se lhes oferece. Mas o triste é serem massa de manobra para um
populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de uma visão estreita, que os
deixa em má posição. Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio
da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a
raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecida pelo próprio governo.
Há poucos dias vi por acaso uma conhecida que não encontrava fazia anos.
Reconheci-a de longe, de costas para mim, e quando ela se virou na cadeira senti
um choque. O corpo elegante de uma mulher madura era o mesmo. O rosto era
uma coisa redonda e intumescida, lisa, com pouco das verdadeiras e simpáticas
feições de que eu me lembrava tão bem. Os lábios estavam enormes, com algo de
genital, os olhos pareciam pequenos demais, e seu nariz adunco, em lugar de ter
sido corrigido para um pouco menos adunco – embora nunca tivesse sido feio –,
era uma pobre batatinha perdida numa paisagem
hirta e inexpressiva.
Ilustração Atômica Studio
Nem todo mundo vai gostar do que escrevo aqui e digo em muitas palestras: dirão
que madureza e velhice implicam doença e deterioração. Uma maturidade tranqüila
e uma velhice elegante são mil vezes preferíveis à caricatura em que nos tornamos
na busca do paraíso perdido, que é também uma ilusão. Pois a juventude nunca foi
a melhor época da vida nem a única época interessante, embora possa cintilar e
ferver mais. A cada fase da vida seu próprio encanto e, claro, suas próprias dores.
Então, quem sabe a gente – homens e mulheres – procure gostar de si um pouco
mais, trocando a fatal tentativa de negar o tempo por saúde, equilíbrio, beleza real
e alegria, que fazem um bocado de falta neste mundo nosso.