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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

MILITARIZAÇÃO DAS CIDADES: O RIO DE JANEIRO COMO


LABORATÓRIO DA AÇÃO MILITAR NO BRASIL (1994-2018)

JOÃO PAULO PEREIRA LEONARDO


201449016-1

Seropédica, RJ
Dezembro / 2018
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

JOÃO PAULO PEREIRA LEONARDO

MILITARIZAÇÃO DAS CIDADES: O RIO DE JANEIRO COMO


LABORATÓRIO DA AÇÃO MILITAR NO BRASIL (1994-2018)

Monografia apresentada no
Curso de Relações
Internacionais da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro
como requisito para obtenção do
título de bacharel em Relações
Internacionais.

Banca Examinadora:

________________________________________
Prof.ª Dr.ª Nalayne Mendonça Pinto (orientadora)
– DCS – UFRRJ

Seropédica, RJ
Dezembro de 2018
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos meus pais, Edna e Paulo, por todo o


suporte e incentivo que me deram durante toda minha vida estudantil. Sem vocês
nada disso seria possível.
Agradeço a todo o apoio proporcionado pela UFRRJ, pelas bolsas de
permanência garantidos pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil
(PNAES), aos professores e as professoras que auxiliaram na minha formação
acadêmica, aos técnicos administrativos e aos profissionais terceirizados que
seguiam trabalhando para garantir a alimentação estudantil, mesmo com seus
salários atrasados por diversas vezes.
Agradeço a todos os colegas de quarto que tive durante minha
vivência no alojamento estudantil 132 luxo, poder e riqueza para todos: Eduardo,
Júlio, Pablo, Greg, Jo Ch, Mahat, Michael Douglas, Thai, Gaby, André. Passei
os melhores 4 anos da minha graduação vivendo com vocês.
Agradeço a um grande amigo, Julius, por ter sido companhia nos
melhores e piores momentos da graduação, me lembrando de datas de provas,
prazos de trabalho, me ajudando a compreender diversos textos e sempre
disposto a debater comigo o quanto é difícil a vida de jovens na periferia de
grandes cidades. Faço votos para o Quarteto a Três, eu, você, Polly e (quem
nunca aparece) Jo Ch, mantenha-se unido, ainda que o tempo seja implacável.
Por fim, gostaria de agradecer a minha orientadora, Nalayne, por em
um momento crucial da graduação me ajudar a construir esse trabalho.
Sou muito grato a cada um de vocês.
Minha terra é a Penha.
O medo mora aqui
Todo dia chega a notícia,
Que morreu mais um ali.

Nossas casas perfuradas


Pelas balas que atingiu,
Corações cheios de medo
Do polícia que surgiu.

Se cismar em sair a noite


Já não posso mais
Pelo risco de morrer
E não voltar para os meus pais

Minha terra tem horrores


Que não encontro em outro lugar
A falta de segurança é tão grande
Que mal posso relaxar.

“Não permita Deus que eu morra”,


Antes de sair deste lugar
Me leve para um lugar tranquilo
“onde canta o sabiá”.

(Poema elaborado por dois estudantes


de um colégio na Penha, Zona Norte)
RESUMO

LEONARDO, João P. P. Militarização das cidades: o Rio de Janeiro como


laboratório da ação militar no Brasil (1994-2018). Monografia de bacharelado
em Relações Internacionais. Instituto de Ciências Humanas e Sociais.
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2018.

O presente trabalho buscou compreender como o emprego das forças armadas,


sobretudo o exército, operou na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1994 e 2018.
Através da noção de urbanismo militar, que versa sobre a militarização dos espaços
urbanos, e estado de exceção, que corresponde a suspenção dos direitos civis em
situação excepcionais de segurança, a pesquisa foi elaborada, no intuito de obter
resultados que corroborem para entender como operou a dinâmica dos mecanismos de
defesa do Estado brasileiro neste período. Notou-se que o emprego das forças armadas
para lidar com os problemas de ordem pública geraram resultados contraditórios quando
observados os relatos de cidadãos e os dados de centros de pesquisas no que tange a
segurança na cidade.

Palavras-Chave:

Urbanismo militar, estado de exceção, intervenção federal, forças armadas.


SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................9

1. Democracia e militarismo no Brasil durante a década de 1990.....................12


1.1. Produzindo subjetividades .........................................................................14
1.2. As “classes perigosas” e os espaços urbanos...........................................16
1.3. A guerra volta a cidade: disputas narrativas sobre criminalidade no Rio de
Janeiro...............................................................................................................18

2. Urbanismo militar e o estado de exceção na contemporaneidade................23


2.1. O BOOM DEMOGRÁFICO DO SÉCULO XX.............................................24
2.2. Criminalização e controle social: a emergência de conflitos......................25
2.3. O estado de exceção..................................................................................29

3. Mecanismos de Defesa do Estado: as participações das Forças Armadas no


Rio de Janeiro (2010-2018) ...............................................................................33

3.1. A Operação Arcanjo....................................................................................34

3.2. A Intervenção Federal no Rio de Janeiro.....................................................36

Conclusão..........................................................................................................41

Referências........................................................................................................44
9

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade estamos observando a expansão de técnicas de


controle militar na gestão da vida, sobretudo nos espaços urbanos de grandes
cidades. Essa é uma tendência que está mudando a forma de organização das
sociedades, influenciando diretamente na arquitetura, mobilidade urbana,
turismo, consumo, etc. O modo de operar do militarismo desde meados da
Guerra Fria está fazendo com que políticas de segurança que anteriormente
estavam no âmbito das relações internacionais, preocupada com conflitos entre
Estados, passassem a ser internalizadas por eles, acirrando conflitos nacionais.

No Brasil há um histórico quase tão longo de iniciativas militares no


controle de territórios que se confunde com sua própria história. O autoritarismo
presente na sociedade brasileira fez com que o Estado se organiza-se em torno
de políticas de defesa que visavam neutralizar “insurgentes”, identificados como
inimigos do estado durante a década de 1960. Com o passar dos anos a lógica
militar metamorfoseou-se, organizando-se atualmente em torno das “classes
perigosas”, segmentos populacionais pobres, negros, mestiços, habitantes de
regiões precárias em infraestrutura.

Nesse sentido, a pesquisa tem como objetivos compreender como


ocorreu a transposição do discurso de combate ao “inimigo”, presente no
militarismo, para os setores de segurança pública do Rio de Janeiro; entender
quais os desdobramentos práticos que tiveram as participações das Forças
Armadas na cidade a partir de 1994 e qual o lugar do que compreendemos como
cidadania e direito civil quando somos regidos por um sistema de leis
diferenciado. O trabalho foi desenvolvido com aporte teórico do geógrafo
Stephen Graham, através de seu livro Cidades Sitiadas (2016): o novo
militarismo urbano e do filósofo Giorgio Agamben, por meio do trabalho que
realizou em Estado de exceção (2004). Também foi feito um levantamento de
dados relacionados a participação das Forças Armadas no ano de 2018, em
comparação com o ano de 2017.
10

O Rio de Janeiro corresponde a localidade que mais tem sofrido


interferência do Governo Federal e das Forças Armadas nos últimos 25 anos no
país. O comprometimento da ordem pública na cidade e região metropolitana é,
dentre todos os outros entes da Federação, o que mais tem gerado reações por
parte do poder público federal, transformando o território em palco de operações
militares pontuais que visam solucionar questões estruturais que favorecem a
violência, como o alto grau de desigualdade socioeconômica. Mesmo com
índices de violência nacionais indicando que outras capitais possuem taxas mais
elevadas de homicídio, por exemplo, foi no Rio em que a Intervenção Federal foi
decretada. Então, a questão que atravessa essa pesquisa é a do por que a
cidade é alvo de sucessivas intervenções militares em diversos de seus
territórios?

Uma vez que a intervenção federal foi um mecanismo de defesa do estado


aplicado na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2018, é de extrema
importância que o assunto seja investigado por conta da gravidade que é o
acirramento de conflitos em uma região que moram mais de 12 milhões de
habitantes. A ação do Estado brasileiro deve ser acompanhado pelo sociedade
civil a fim de garantir-se a transparecia do processo de intervenção enquanto a
letalidade causada pelas forças armadas, quais as estratégias adotadas para
solução dos problemas de segurança pública, como ocorreu a cooperação com
os Organismos de Segurança Pública do estado e qual o legado que se pretende
deixar para a população fluminense.

O primeiro capítulo da pesquisa trata sobre como, mesmo no período de


recém redemocratização do país, foi gerada, de um processo que envolve a
cooperação entre empresários, a mídia nacional e governantes, a Operação Rio,
primeira intervenção militar de longo prazo no estado depois do fim da ditadura.
Nele exploro como a construção das “classes perigosas” e da mentalidade
higienista contribuíram para a criminalização da pobreza na cidade, enquanto a
mídia nacional (concentrada no eixo Rio-São Paulo) produzia matérias
jornalísticas e editorias que retratavam o medo, terror e o clamor de segmentos
das classes médias e alta para que fosse realizada uma intervenção na
segurança pública que pudesse conter a violência na cidade.

Na segunda seção dediquei a tratar sobre dois conceitos que considerei


fundamentais para esse trabalho: urbanismo militar e estado de exceção. O
11

modelo de produção capitalista contemporâneo fez ao longo do XX e intensifica


ao longo do XXI a população urbana do mundo inflar. A população não só inflou,
como cresceu exponencialmente, no mesmo período que houve a substituição
de mão de obra humana por maquinas, gerando desemprego e favorecendo o
trabalho informal, desenvolvendo uma ruptura social sem precedentes, com boa
parte da população não conseguindo integrar o mercado de consumo e privada
do acesso a saúde e educação.

O termo estado de exceção foi utilizado por Giorgio Agamben (2004) para
tentar descrever o que ocorre quando um chefe de Estado decreta um estado de
sítio/defesa, que na realidade corresponde a suspensão do ordenamento jurídico
comum, viabilizando a atuação militar próximo a um estado de guerra, onde o
direito civil é suspenso. A pertinência do conceito está em tentar explicar o que
o próprio direito não consegue, uma vez que a supressão dos direitos contraria
as garantias proporcionadas para cidadãos de cada Estado, presentes em suas
respectivas constituições. Recorrentemente ao longo da história, os Estados
buscaram aplicar o estado de exceção para eliminar grupos populacionais
indesejados.

No último capítulo tratei de como encontra-se na constituição federal


brasileira as disposições sobre participação das Forças Armadas em âmbito
nacional, falando sobre as prerrogativas necessárias para a implementação de
Garantias de Lei e Ordem (GLO) e de Intervenções Federais. Em seguida,
investiguei os resultados relacionados a participação do Exército na ocupação
do Complexo do Alemão e da Penha no ano de 2010, estabelecida via uma GLO,
e busquei estudar contexto político que foi decretada a Intervenção Federal no
Rio de Janeiro, destacando os dados relacionados a homicídios, mortes
ocasionadas em confrontos, tiroteios, etc.
12

CAPITULO 1. DEMOCRACIA E MILITARISMO NO BRASIL DURANTE A


DÉCADA DE 1990

Neste capitulo pretende-se abordar como a produção de subjetividades


influenciou na tomada de decisão para as intervenções federais, conhecidas
como Operação Rio I e Operação Rio II, que ocorreram no estado do Rio de
Janeiro durante o final do século XX. O estudo parte da reflexão acerca da
produção das chamadas “classes perigosas”1, qualidade atribuída à população
pobre, preta, mestiça e de migrantes que habitavam as áreas urbanas da Capital
ao longo do século (GUIMARÃES, 2008). O conceito deriva das falas autorizadas
produzidas por médicos e urbanistas que compartilhavam do pensamento
higienista, que teve origem ainda no século XIX. O cerne das propostas
compartilhadas pelos idealizadores do higiênismo social no Brasil indicavam a
necessidade de controle ou de eliminação de determinados corpos do ambiente
urbano enquanto forma de limpeza social.

No dinâmica de construção das “classes perigosas” no país, é necessário


destacar a herança de mais de 300 anos de escravidão que manteve legalmente
marginalizada a população negra brasileira. O domínio escravista que antes
encontrava sua principal forma de domínio e controle sobre esses corpos dentro
da dinâmica econômica da época, com o fim da escravidão, passou a se
organizar de maneira mais ampla dentro de teorias racista e eugênicas que
tiveram muitos adeptos no Brasil, retratando-os como “degenerados,
delinquentes, alienados, bêbados, dentre outras “qualidades”” (COIMBRA, 2001,
p. 85).

1
O termo “classes perigosas” na perspectiva adotada pelo trabalho passa a ser empenhado ao início do
período da revolução industrial inglesa, associado a mecanização da agricultura e esvaziamento do
campo, culminando na intensificação do processo de urbanização das cidades por conta das migrações. A
miséria vivida por crianças e jovens na Europa, “caipiras” e negros na América do Sul, era tratada a partir
do viés criminológico, como se o crime fosse gerado em meio a enclaves de pobreza. No decorrer da
modernização do modo de produção capitalista cidadãos integrados ao mercado de consumo passaram
a retratar constantemente os que viviam em meio a pobreza das grandes cidades enquanto criminosos
que precisavam ser contidos ou eliminados do corpo social. Todavia, o “problema” abordado sinaliza estar
associado com questões econômicas, relativas a concentração fundiária e distribuição de renda. Para um
acesso mais denso entorno do conceito C.f. GUIMARÃES, Alberto. As classes perigosas: banditismo
urbano e rural. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2008.
13

Durante o século XIX a maior parte da população do Rio de Janeiro já era


negra, o que fazia com que a polícia permanecesse em constante vigia sobre
essa população. Mesmo após a abolição, eles continuaram sobre constante
vigilância, assim como os mestiços (COIMBRA, 2001). Argumentos higienistas
usados durante o século XX pensavam estratégias de eliminação de favelas,
principais espaços que foram habitados pelos ex-moradores de cortiço após as
reformas do prefeito da cidade, Pereira Passos (1902-1906), com o objetivo de
se promover a ““ordem social”, “segurança” e “higiene da cidade”” (Idem, p. 109).

Já, em meio ao Estado Novo, no período do governo populista de Getúlio


Vargas, nos anos 40, a situação muda, uma vez que é feito o primeiro censo pelo
então prefeito Mendes de Moraes e tem-se em números a proporção de
moradores que habitam esses territórios. Em 1960, no governo de Carlos
Lacerda, 30 mil pessoas chegaram a ser removidas de suas casas. Nos anos
subsequentes, a cifra não parou de crescer, chegando a 100 mil pessoas
desabrigadas, sendo destruídas um total de 60 favelas (Idem, p. 110). Na
chegada dos anos de chumbo, em meio a ditadura civil-militar brasileira, o estado
manteve a mesma política de segregação espacial2, associada a construção de
habitações em áreas suburbanas da cidade (BRUM, 2013, p. 180).

Cabe ressaltar aqui, tendo em vista o exposto acerca das históricas


práticas autoritárias do Estado brasileiro com os segmentos pobres da
população, que o retorno à democracia se efetuou em meio a época de
crescimento da criminalidade. Peralva (2010) destaca que houve uma escalada
da criminalidade durante a década de 1970 por conta da falta de ação dos
governos militares em conter o aumento da taxa de homicídios, mas foi durante
os anos 80 que ela se acelerou, chegando a marca de “55 homicídios por 100
mil habitantes” (p. 73), marca nunca registrada anteriormente.

Uma das primeiras hipóteses que surgiram em relação a escalada da


criminalidade no país foi a ideia da continuidade autoritária da política de
segurança interna, mostrando que, apesar da abertura política, “um legado do
regime anterior se mantinha no seio da democracia nascente” (p. 74). Ele refletia-
se, sobretudo, nas instituições responsáveis pela ordem pública, mas também

2
C.f. BRUM, Mario. Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O
Social em questão. Ano XVI, nº 29, 2013. Pg. 179-208.
14

era presente na sociedade. Foi com resistência que o governo federal passou a
competência da segurança pública para os estados federados, deixando
obstáculos legais herdados do regime militar que minaram a possibilidade de
reforma das polícias de forma ampla e estrutural.

Com o fim do regime militar, um tema passou a ser frequentemente


abordado com alarde pela mídia. A delinquência e a criminalidade tomaram um
espaço no imaginário social que não tinham antes (PERALVA, 2000). Muitos
pensaram nessa época que para a redução do número de crimes dever-se-ia
intensificar os métodos repressivos, considerando inclusive a participação das
Forças Armadas na contenção da violência (DORNELLES, 2003, p. 161). Havia
uma fragilidade das instituições de ordem pública que não conseguiam
responder de forma adequada ao imaginário democrático que estava em
consolidação, sobretudo no que tange o tema de direitos sociais. Segundo
Peralva (2000) autoritarismo “pressupunha, pela sua própria natureza, a
ausência de um conjunto de direito” e cabia a democracia dar resposta a isso.

Uma reação política às práticas tradicionais da polícia no estado do Rio


de Janeiro foi o posicionamento de Leonel Brizola, candidato a governador em
1982, em que assegurava que durante seu governo a Polícia Militar (PMERJ)
respeitaria “normas e preceitos legais de garantia dos direitos civis” (Idem, p. 80).
Foi durante seu primeiro mandato como governador que foi criado o Conselho
de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, em abril de 1983, para
fiscalização dos órgãos de segurança pública. Todavia, ao longo dos anos
seguintes, Brizola teve sua imagem associada ao fortalecimento da
criminalidade no estado, com destaque para o narcotráfico e o jogo do bicho.
Cabe agora compreender melhor “como os brasileiros coproduzem a violência
de que são vítimas”?

1.1. PRODUZINDO SUBJETIVIDADES

Tratando do conceito-ferramenta necessário para a compreensão do que


chamamos aqui de subjetividade, Cecília Coimbra (2001) o aborda como
“bastante amplo, abarcando sistemas perceptivos, de sensibilidade, etc., e
15

conjuntos extrapessoais” destacando que “são produzidas [subjetividades] a


cada momento da história, conforme certas conjugações de forças, e não se
situam apenas no campo individual” (p. 18), sendo parte de um processo amplo
de disputas sociais e materiais. A abordagem escolhida, dessa forma, favorece
uma interpretação da “verdade” não como plena, “mas como uma instituição
produzida de formas diferentes, segundo os diferentes atravessamentos
históricos” (2001, p. 21). Um dos mais importantes meios sociais para se
compreender a produção de subjetividades na sociedade moderna, em que há
uma comunicação de massa, é a mídia.

No mundo contemporâneo somos bombardeados por informações a todo


momento, seja por jornais impressos, redes sociais, televisão, etc. No Brasil,
ainda, há uma concentração dos grupos de comunicação que produzem e
disseminam notícias para todo o país3 restrito a apenas cinco famílias. Em seu
livro, Operação Rio, Coimbra (2001) realiza uma análise sobre cartas de leitores,
reportagens, editoriais e falas de autoridades nos jornais O Globo, Estadão,
Folha e Jornal do Brasil, meios de comunicação direcionados em linhas gerais
para as classes médias urbanas do eixo Rio-São Paulo. A partir desses meios
de propagação de notícias, são disseminados “esquemas dominantes de
significação e interpretação do mundo” (p. 29), não apenas nos sugerindo o que
pensar, como também como agir e o que sentir.

Aqui parte-se da premissa que os objetivos que existem no mundo, os


indivíduos que nele residem e, assim, a realidade são produções da história e do
convívio social, não tendo uma natureza em si ou essência. O que entendemos
como realidade é produto de práticas que são datadas e estão em constante
construção, fazendo parte de “um trabalho jamais acabado” (COIMBRA, 2001,
p. 38). A mídia, ao noticiar repetidamente um evento, mesmo que não tenha
acontecido, faz com que passe a ter um peso não discutível de evidências
históricas. Com isso, pode-se produzir realidades amenas e prazerosas ou
percepções de realidades agressivas e mais violentas a depender dos meios de
comunicação.

3
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cinco-familias-controlam-50-dos-principais-veiculos-de-
midia-do-pais-indica-relatorio <Acesso em: 14/09/18>
16

Um fator que deve ser levado em consideração enquanto a produção


midiática são as “falas competentes” intensamente utilizadas pelos “meios de
comunicação de massa que elegem interlocutores privilegiados, com os quais
mantêm relações de afinidade e interesse” (idem, p. 47). A isso que pode ser
chamado de “história oficial”, deixa de lado outras histórias e memórias
“vencidas”, por não conseguirem estabelecer-se enquanto hegemônicas. Por
vezes, estas são francamente desqualificadas ou ignoradas pelas visões
dominantes. Nessa disputa de narrativas para se estabelecer a memória “oficial”,
apagam-se os vestígios que os opositores e as classes populares deixam ao
longo de suas vivências de resistência e luta, em um esforço contínuo de
segregação dessas forças sociais, que jamais tem suas histórias narradas
oficialmente.

Ao longo desse processo, com o advento da modernidade, exige-se


enquanto narrativa e prática, “cidades limpas, assépticas, onde a misérias – já
que não pode ser mais escondida e/ou administrada – deve ser eliminada”. A
eliminação, contudo, não será através da superação, “mas pelo extermínio
daqueles que a expõem incomodando os “olhos, ouvidos e narizes” das classes
mais abastadas” (idem, p. 58). Atrelado a esse movimento de eliminação, justo
pelo serviço prestado pelos meios de comunicação, a criminalidade ocupa um
espaço desproporcionalmente alto no entendimento do público, que escolhe
desviar a atenção dos diversos problemas que geram essa criminalidade, como
a “distribuição de riquezas e a marginalidade social” (idem, p. 59).

Os “cidadãos” do nosso país hoje são muito poucos, uma vez que na
sociedade de mercado os não consumidores, os miseráveis, nada valem; são
simples estatísticas. O movimento é de duas vias, pois poucos se reconhecem
enquanto cidadãos, como são poucos os que são tratados como tal. No sistema
de produção capitalista, a produção atrela-se à individualização das
responsabilidades. Assim, “o indivíduo passa a ser a medida de todas as coisas
e o único responsável por suas vitórias ou fracassos” (idem, p. 64).

1.2. AS “CLASSES PERIGOSAS” E OS ESPAÇOS URBANOS


17

No que compreende o esforço interpretativo que cabe a esse trabalho, um


importante conceito necessário para compreender a dinâmica das cidades
brasileiras é o das “classes perigosas”. Segundo Coimbra (2001), essas
correspondem ao “conjunto social formado à margem da sociedade civil” (pg.
79). Sua constituição se dá a partir da consolidação da miséria entendida, em
última instância, não como vinculada às características dos indivíduos, mas
resultado da concentração de capital cada vez mais intensa, sejam consideradas
os aspectos internacionais4 ou regionais5.

Ao longo do século passado, mas sobretudo em períodos mais recentes,


o processo de urbanização nas cidades brasileiras demonstrou uma crescente
ligação com a pobreza, que passa a ser percebida, cada vez mais, nas grandes
cidades. Dessa forma, constituem-se os chamados “territórios da pobreza”
(COIMBRA, 2001, p. 81), que, de maneira geral, correspondem a espaços que
ainda não foram valorizados pelo mercado imobiliário, sendo interpretados como
guetos que causam temor as classes mais abastadas da sociedade. Em meio a
isso, cabe destacar a importância da distribuição de capital na consolidação
desses territórios, uma vez que ele se torna motor gerador de violência e garante
privilégios para as camadas mais favorecidas.

No decorrer do século XIX, segundo Coimbra (2001), assiste-se à


proliferação de instituições normalizadoras e reguladoras pelas quais o corpo
humano e a sociedade são analisados, medidos e disciplinados com a expansão
das ciências humanas e sociais. A medicina, que criou teorias sobre a natureza
perigosas dos mestiços, negros e pobres em geral, também foi responsável por
introduzir a ideia de a cidade ser um espaço a ser ordenado, reformado, cuidado
e disciplinado. Ainda nesse século, reporta-se que foi nele que houve o
esvaziamento dos espaços públicos pelos perigos que eles poderiam
representar, dando-se ênfase aos espaços privados cada vez mais.

As reformas pelas quais as cidades passaram desde o final do século XIX,


inspiradas no modelo haussmanniano-parisiense, moldou os espaços urbanos
para a velocidade, e sendo

4
<https://g1.globo.com/economia/noticia/super-ricos-ficam-com-82-da-riqueza-gerada-no-mundo-em-
2017-diz-estudo.ghtml> Acessado em 17/09/2018.
5
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/13/internacional/1513193348_895757.html> Acessado em
17/09/2018.
18

pouco adequadas às pessoas as ruas e as cidades reformadas (...)


tornam-se espaços de circulação das classes laboriosos, daqueles que
passam para trabalhar, consumir, não mais os miseráveis (Idem, p. 98).

A modernização proposta pelos arquitetos da época estruturou os


espaços urbanos de maneira a caracteriza-los pela exclusão e isolamento das
classes populares, o que corroborou para a crença de que são elas as
responsáveis por doenças, perigos, violências e ameaças.

1.3. A GUERRA VOLTA A CIDADE: DISPUTAS NARRATIVAS SOBRE


CRIMINALIDADE NO RIO DE JANEIRO

Durante a década de 1980, começam a ser veiculadas na mídia notícias


sobre o aumento da violência no Rio de Janeiro, processo que corrobora para
produzir medo e pânicos nas classes médias e altas da cidade. Diferente de
pensar que havia um surto de criminalidade na cidade, sugere-se, na realidade,
que o que há é uma propaganda intensa do crescimento da criminalidade
(COIMBRA, 2001).

No contexto vivido nesse período, de abertura política pós-ditadura militar,


ocorreram participações do Exército nacional em alguns eventos no território
fluminense, sendo considerados para análise aqui os que culminaram nas
chamadas “Operação Rio I e II”, iniciadas a partir da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (ECO-92). Ao se observar o período da chamada
Nova República, quando a presidência do país volta a ser de governantes civis,
percebe-se o continuísmo da política brasileira no que se refere a política de
segurança, em que “quem observa a cena política (...) tem a impressão que a
tutela militar é algo normal e deve continuar a exercer-se” (COIMBRA, 2001, p.
142).

As intervenções federais que ocorreram na cidade entre os anos de 1994


e 1995, através de um convênio firmado entre os governos do Rio de Janeiro e
a União, trouxe para a cidade novamente a presença ostensiva das Forças
Armadas, que passaram a atuar na repressão e controle nas favelas e bairros
pobres da região metropolitana. A iniciativa foi o desdobramento da participação
de agentes da sociedade civil, empresariado e veículos midiáticos, como
19

demonstrou a VI Plenária do Empresariado do Rio de Janeiro, que aprovou a


participação de militares no “combate à criminalidade em nosso estado” (idem,
p. 144), ofício encaminhado à União e aos governos estadual e municipal.
Coimbra (2001), relata que no decorrer dos anos de 1993 e 1994, os veículos de
comunicação impressa noticiavam quase que diariamente os “níveis
insuportáveis” de violência que viva a população fluminense.

Segundo notícias veiculadas nesse período, os traficantes estavam a


dominar o estado, sendo difundidas notícias como

“traficantes expulsam o enviado de Brizola” (JB – 14/01/94), “favelados


da Cidade de Deus voltam a enfrentar a polícia” (OESP – 30/01/94),
“Exército, PM e federais invadem a Mangueira” (JB – 22/02/94),
“Brizola impediu ação dos federais no morro” (JB – 10/03/94), “briga de
traficantes provoca noite de pânico em favela” (OESP – 25/04/94),
afirmam que há uma situação caótica no Rio de Janeiro que não é mais
controlada por seus governantes e por suas polícias” (COIMBRA,
2001, p. 145).

Através desse processo, cresce, gradativamente, em consonância à


opinião pública o pânico e o medo, e com eles o argumento de que seria
necessário a intervenção do Exército para se controlar a situação. O que
decorreu desses acontecimentos, junto aos posicionamentos de que o exército
estaria “pronto para agir”, foi a gradativa guinada da opinião pública em direção
ao apoio da intervenção federal.

Em outubro de 1994, seguiam as notícias sobre a escalada da violência


na cidade, chegando ao ponto que alguns jornais, como O Estado de São Paulo,
criarem o slogan destinado a matérias sobre a situação da violência: “guerra no
Rio” (COIMBRA, 2001, p. 150). Assegurados pela situação da violência urbana,
desde 1963, os chamados “perigosos” são legalmente mortos com respaldo nos
“autos de resistência”. No período da ditadura militar essa estratégia era utilizada
contra opositores políticos, tornando-se corriqueiro versões relacionadas a
mortes em trocas de tiro ou atropelamentos. Desse período até hoje, nenhum
policial civil e/ou militar foi condenado por essas situações controversas. Em
poucos casos foram abertos processos, sendo levados a julgamento
pouquíssimos que, das vezes que ocorreram, contaram com a absolvição dos
réus. A respeito desse assunto, a diretoria do Hospital Estadual Souza Aguiar
veio a público demonstrar insatisfação com tal prática. Isso se deu após os
meses de junho e julho do ano de 1996, quando, apenas em 20 dias, “10 corpos
foram deixados na emergência do hospital” (COIMBRA, 2011, p. 153).
20

Inicia-se, a partir das graves violações que começaram a ser divulgadas,


o debate sobre a constitucionalidade ou não do “estado de defesa”, uma vez que
ele implicava na “restrição e supressão das garantias individuais, quebra de sigilo
telefônico e correspondência” (Idem, p. 157). Mesmo sobre essas circunstâncias
e ressalvas da população em relação à empreitada militar, em 1º de novembro
estava oficializada a permissão das Forças Armadas atuarem nas ruas a partir
de um regime de leis diferenciado, com aval do presidente da República, Itamar
Francos e do governados do Rio, Nilo Batista ao custo inicial de 50 milhões de
reais.

No decorrer dos meses que seguiram a “Operação”, centenas de


cidadãos fluminenses foram presos arbitrariamente, diversos casos de tortura e
até sequestros foram realizados, casas foram invadidas, roubos e instituições
como igrejas, escolas e centros comunitários utilizados como centros de torturas
e triagem de “suspeitos”. Acompanhado disso, pesquisas apontaram que o
“perfil” mais vitimado durante as ações das forças de defesa nacional se
enquadrava sobre: “homem pobre, preto ou pardo, entre 18 e 24 anos, morador
de periferia, que não chegou a terminar o primário e é morto em logradouro
público” (COIMBRA, 2001, p. 163). Esse quadro representa, portanto, a “classe
perigosa”, historicamente deixada a margem da consolidação da sociedade civil,
estigmatizada e marcada para morrer, desde o início do século XX.

Com o desdobramento dos fatos de agressões, violência e desrespeito a


cidadãos, manchetes de jornal já indicam os custos sociais referentes ao “estado
de defesa” imposto ao estado. Foi veiculada pela primeira vez, desde a entrada
em vigor do convênio firmado entre as Forças Armadas e os poderes Executivos
Federal e Estadual que denúncias de práticas de tortura estavam sendo
perpetradas. No momento, editorias passaram a solicitar atenção de militares
para que agissem “com rigor, mas sem excessos, para deixar claro que os anos
de chumbo então definitivamente superados” (Idem, p. 166). Percebe-se, então,
o desgaste que a imagem do Exército passa a sofrer por conta das constantes
denúncias de violação de direitos humanos, reforçadas pelas “falas autorizadas”
que as noticiavam.

Chegado ao final do convênio que tinha data para expirar em 31 de


dezembro de 1994, parte da mídia, do empresariado e do comércio faziam
pressão para que a “Operação” fosse estendida, dando origem a “Operação Rio
21

II (que) é a repetição do equívoco que foi a Operação Rio I (...) A solução para a
violência não é o estado policial (...)”6. Nessa segunda fase instaurada no estado,
por conta das críticas que sofreram e preocupados em não desgastarem mais
sua imagem, as Forças Armadas aterram-se a realizar patrulhamento nas ruas
e a dar apoio logístico às polícias estaduais e à polícia federal.

Nesta produção de que vivemos em um contexto próximo de uma “guerra


civil”, vem sendo reforçada a concepção de segurança pública que nos leva a
sua militarização por meio do apelo à ordem e à lei. Essa mentalidade do pensar
a segurança dessa forma foi cristalizada nos anos de ditadura militar, quando a
Doutrina de Segurança Nacional7, formulada por Golbery Silva (1967),
comparava segurança e bem-estar social. Em sua lógica, caso a “segurança
nacional” estivesse sobre ameaça, caberia sacrificar o bem-estar social,
suprimindo direitos de liberdade individual, em detrimento da ordem. Essa teoria
causou a virada linguística do que antes era conhecido como “defesa nacional”
– voltada para questões externas à nação, para o combate às “forças internas
de agitação” (COIMBRA, 2001, p. 205).

Mesmo durante o período da nova República, em plena era democrática,


muitos agentes do estado seguem apoiando/respaldando iniciativas de violação
de direitos, de forma a valer suprimir os direitos de “pessoas suspeitas” em
detrimento da sensação de “segurança” de outro seguimento de cidadãos –
integrados a lógica de mercado formal, moradores de bairros médios/nobres,
brancos, com formação em ensino superior. Em outubro de 1993, por exemplo,
foram retirados de um presídio do Rio de Janeiro 6 presos por tráfico de armas
e levados durante dez dias para a base da Polícia do Exército, sendo torturados
sob o atento “acompanhamento” de um médico (COIMBRA, 2001).

A discussão sobre militarização dos espaços urbanos da cidade do Rio de


Janeiro a partir da década de 1990 passa pela escolha de dois projetos políticos
diferentes da área de segurança. Um que buscou superar as contradições
presentes dentro do modelo autoritário de não respeito aos direitos humanos e
outro que é o modelo plural em que houve a busca por estratégias de segurança
pública preventivas. (CERQUEIRA in org. BATISTA, 1996). A operacionalidade

6
< https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/3/28/brasil/44.html > Acessado em 20/09/2018.
7
C.f. SILVA, Golbery do C. Geopolítica do Brasil. Editora José Olympio, São Paulo, 1967.
22

da “quase intervenção federal” ocorrida no ano de 1993 foi possível através dos
aspectos jurídicos presentes na Constituição brasileira que garantem ao
presidente da república instaurar o estado de defesa (ou exceção) a partir de
uma visão equivocada de ordem pública, em que se suspendem os direitos
individuais da população, em detrimento da “segurança”.
23

CAPÍTULO 2. URBANISMO MILITAR E O ESTADO DE EXCEÇÃO NA


CONTEMPORANEIDADE

No tocante a esse capítulo, pretendemos realizar a discussão de dois


conceitos que corroboram para a compressão da atual situação do assunto da
segurança interna nos países ocidentais. Caso observemos o processo de
urbanização mundial, a partir do século XIX, podemos notar o crescimento
exponencial da população do globo, com destaque para os países em
desenvolvimento. A pari passu da expansão populacional, os Estados-Nação
tornam-se mais sofisticados e robustos, tendo em seus pilares de sustentação
os exércitos e polícias nacionais que garantiriam a ordem pública, favorecendo
a expansão do modelo de produção capitalista.

Com as mudanças políticas que ocorreram ao longo dos últimos dois


séculos, a forma de governo que passou a predominar a partir de conquistas de
direitos sociais foi a democracia, rompendo parcialmente com a centralidade do
poder em torno da figura do rei. Ainda que as sociedades democráticas tenham
desenvolvido constituições que assegurassem o direito a liberdades individuais,
livre manifestação política, igualdade jurídica entre cidadãos, etc., métodos de
controle estatal por meio da violência foram incorporados às constituições sobre
o pretexto da segurança do Estado (AGAMBEN, 2004).

O desejo por segurança, todavia, apresenta-se como uma via de mão


dupla. Por um lado, parcelas da sociedade civil reivindicam o recrudescimento
da ação policial ou militar para conter a criminalidade, enquanto os Estados
organizam-se a partir do medo e da sensação de insegurança para responder,
recorrentemente, de forma autoritária e belicista a esse desejo. Como aborda
Castel, “as sociedades modernas são construídas sobre o alicerce da
insegurança, pois não encontram em si a capacidade de assegurar proteção”
(ROSÁRIO, 2005, p. 185). Isso por conta de se tratar de uma sociedade
individualista. Não mais são os grupos aos quais se pertence que garantiram a
segurança, mas o Estado.
24

Dessa maneira, reivindicar a proteção do Estado passou a ser


naturalizado, uma vez que o próprio indivíduo contemporâneo foi “moldado pelas
regulamentações estatais” (Idem, p. 187). Contudo, há de se atentar para o que
afirmar Castel (2005) sobre o assunto “a demanda por segurança se traduz
imediatamente por uma demanda de autoridade, que se for entregue a seus
próprios arroubos, pode ameaçar a democracia” (p. 26). Para tratar a
insegurança social no capitalismo, considera-se que deva haver uma
reconfiguração das redes de proteções sociais (pleno emprego, sistema de
saúde, propriedade, etc) de modo a atender a todos, afim de se construir uma
sociedade democrática (ROSÁRIO, 2005).

2.1 O BOOM DEMOGRÁFICO DO SÉCULO XX

No início do século XX, um décimo da população – das 1,8 bilhão que


habitavam o globo – viviam em cidades, proporção modesta se comparada com
a realidade do século seguinte, mas de dimensão sem precedentes para o
momento. A época, o modelo de desenvolvimento político-econômico
predominante no mundo era o colonial, sendo as cidades expoentes dos
assuntos governamentais, comerciais e industriais. As capitais metropolitanas e
países da Europa, enquanto isso não eram responsáveis por mais que 5% da
população mundial (GRAHAM, 2016).

Durante o decorrer do século, a população da Terra cresceu de maneira


constante, chegando a 2,3 bilhões de indivíduos no ano de 1950. Nas cidades,
a proporção de citadinos quase que triplicou, atingindo por volta de 500 milhões

Fonte: Banco Mundial (2017)


25

de moradores, correspondendo a menos de 30% do total de habitantes do globo.


Todavia, houve um boom demográfico a partir da segunda metade do século.

Já no hiato entre os anos de 1957 e 2017, “a população urbana do mundo


quadriplicou (GRAHAM, 2016, p. 49), atingindo a marca de 6,7 bilhões de
pessoas das quais metade estava residindo no meio urbano8. Além disso, pode-
se observar a evolução da participação da população urbana mundial através do
gráfico acima (Figura 1.1).

A maior parte da população urbana mundial se encontra em nichos


urbanos de países em desenvolvimento, os quais tem demonstrado ritmo mais
acelerado de crescimento populacional em relação aos países desenvolvidos do
Norte. A tendência é que a população residente das cidades da Ásia, África e
América Latina continue inflando, acompanhando o ritmo de crescimento
apresentada nos últimos 30 anos. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro,
Pequim, Cidade do México, Lagos encontram-se entre as 30 maiores cidades do
mundo, o que faz delas “centros de gravidade demográficos, políticos,
econômicos” (GRAHAM, 2016, p. 51) e tecnológicos.

O rápido processo de urbanização, dessa forma, importa muito. Como


declarou as Nações Unidas9, “a maneira como as cidades se expandem e
organizam, tanto no mundo desenvolvido quanto no em desenvolvimento, vai ser
decisiva para a humanidade” (Idem, p. 50).

2.2 A MÃO “INVISÍVEL” E CONTROLE SOCIAL: A EMERGÊNCIA DE


CONFLITOS

A partir do norte global, onde situam-se geopoliticamente as nações mais


ricas do mundo, está se tomando dimensão do que países de todo o mundo em
desenvolvimento viveram ao longo de três décadas: economias neoliberais
levam a níveis inaceitáveis de privações e ruptura social, que comumente tem
sido “contidas” com políticas de repressão brutais (GRAHAM, 2016). As

8
UNFPA, A ONU e a população mundial, 2007, disponível em:
<https://nacoesunidas.org/acao/populacao-mundia/>. Acesso em: 10 de maio de 2018.
9
Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), The State of World Population 2007: Unleashing the
Potential of Urban Growth (Nova York, UNFPA, Rensslaer Polytechnic, 2007)
26

estratégias de mercado adotadas durante o final do século buscaram privatizar


a prestação de serviços públicos, prejudicando e minando programas sociais, de
atenção à saúde e ao bem-estar social.

Esse fenômeno acompanhou a expansão abrupta de instrumentos


financeiros e mecanismos de especulação, fundamentais para o neoliberalismo.
Todas as áreas da sociedade tornaram-se passiveis de serem mercantilizadas e
financeirizadas. No ano de 2006, os mercados financeiros “negociavam mais em
um mês mais do que o produto interno bruto de todo mundo” (Idem, p. 53). Nesse
cenário, a expansão do mercado especulativo chama a atenção para as
mudanças estruturais na economia provocadas pelas “privatizações”, “ajustes
estruturais” e o “Consenso de Washington”, pois colocam um véu nas
transformações provocadas por essas políticas.

O resultado dessas políticas de austeridade fiscal e privatização gerou


grandes rupturas sociais, gerando uma insegurança generalizada e um processo
de urbanização a passos largos e informal. A associação do desmantelamento
de sistemas de bem-estar social juntamente com restrições impostas por
políticas de ajuste macroeconômico forçou muitas pessoas a migrar do campo
para a cidade (GRAHAM, 2016). No primeiro censo realizado na cidade do Rio
de Janeiro, em 1947, indicava-se a existência, naquele momento, de 119 favelas,
70.605 casebres e uma população de 283.390 moradores, correspondendo a
14% da população. Passados 60 anos de migração do campo para a cidade, o
senso de 2010 revelou que habitam 1,4 milhão de pessoas, ou seja, 22% da
população do município (OLIVEIRA in org. SOUZA et al, 2017, p. 49).

Atuando dentro desse cenário de grandes desigualdades sociais, as elites


políticas, empresariais e militares possuem bastante facilidade em retratar
moradores de comunidades periféricas, favelas e assentamentos informais como
ameaças existenciais à economia neoliberal “formal” e seus arquipélagos
urbanos privilegiados de residência, produção, especulação, transporte e
turismo (WACQUANT, 1999). Essas doutrinas militares mancham, a partir dos
desdobramentos sociais que causam, a distinção usual das esferas militar e civil,
das escalas global e regional, e do ambiente doméstico e internacional do
Estado.
27

Um fenômeno do modus operandi dessa lógica é a “metaforização quase


infinita de “guerra” – contra o crime, as drogas, o terror, a doença” [que] solidifica
mudanças mais amplas de paradigmas urbanos sociais, de bem-estar social”
(GRAHAM, 2016, p. 76). Não é com grande dificuldade que esse discurso leva
a uma percepção que a vida é uma guerra por si só, como reforçado pelo Jornal
Extra – mídia impressa de grande alcance na região metropolitana do Rio de
Janeiro – que adotou o vocabulário de “Guerra no Rio”10 em um de seus
cadernos. Isso leva a uma profunda falta de habilidade para “lidar com qualquer
noção de “outro” para além de colocar esse outro na mira de mecanismos de
combate” (idem). Sendo assim, o conceito chave que rege o pensamento e as
práticas militares atuais é o “campo de batalha”. Ele torna-se necessário para
essas cruzadas porque sustenta uma percepção de que questões militares
suportam absolutamente tudo.

Nesse sentido, os Estados ocidentais estão debruçados sobre doutrinas


de segurança que buscam “identificar insurgentes, terroristas e uma vasta gama
de ameaças ambientais no caos da vida urbana” (GRAHAM, 2016, p. 24). Essas
iniciativas ocorrem paralelamente a crescente importância das cidades no
desenvolvimento do capitalismo internacional em um mundo em que as relações
socioespaciais são pautadas pelo fluxo de bens, serviços, finanças e turismo
internacional.

A emergência de novas doutrinas militares de guerra, como as chamadas


guerras assimétricas11 – também rotuladas de “conflito de baixa intensidade”,
“netwar”, “guerra longa” ou “guerra de quarta geração” (GRAHAM, 2016, p. 28)
–, estão transformando espaços urbanos cotidianos: bairros, comunidades, ruas
e vielas nos principais “campos de batalha” do século XXI. É sob esse manto
que o geógrafo Stephen Graham (2017) destaca que:

A guerra, como todo o resto, está sendo urbanizada. As


grandes disputas geopolíticas – de mudança cultural,
conflito étnico e mistura social diaspórica; de
regulamentação e liberalização econômica; de
militarização, informação e exploração de recursos; de

10
Essa estratégia midiática também foi utilizada em 1994 pelo jornal O Estado de São Paulo para retratar
a violência na cidade do Rio de Janeiro, meses antes de ser decretada a “Operação Rio I” (COIMBRA, 2001).
11
Essa nova caracterização dos conflitos militares do século XXI, em contraste com as guerras tradicionais
que colocavam forças armadas de lados opostos em um campo de batalha, está voltada para a contenção
de grupos considerados insurgentes e identificados como ameaças estatais. Os atores presentes dentro
do conflito, dessa forma, estão de maneira assimétrica, por conta das disparidades que constituem a ação
Estatal e a do grupo desordeiro a ser enfrentado.
28

mudanças ecológicas – estão, e em um grau cada vez


maior, se reduzindo a conflitos violentos nos espaços
estratégicos da nossa era: as cidades contemporâneas (p.
66).

Nessa situação, com o recrudescimento de práticas militares sendo


empenhadas em grandes centros urbanos contra cidadãos, o ethos de doutrinas
militares mancha a dissociação “tradicional das esferas militar e civil, das escalas
global e local, e do interior e do exterior das nações” (GRAHAM, 2016, p. 73).
Assim, a mobilização de exércitos nacionais na atuação para conter crimes
relacionados a furtos e tráfico de drogas torna-se ferramenta recorrente na
dinâmica urbana de cidades com cenários de grande ruptura social. Um evento
nacional recente reforça essa tendência global de buscar dentro de território
nacional indivíduos que possam ser “neutralizados” através de incursões
militares de combate, ocupações periódicas e cumprimento de mandatos de
busca e apreensão.

Após o carnaval do ano de 2018, a população do estado do Rio de Janeiro


foi surpreendida com o Decreto presidencial que estabeleceu intervenção federal
no território. O documento expõe em seu parágrafo único que o “cargo do
interventor é de natureza militar”, representado pela persona do General de
Exército Walter Souza Braga Netto12. Dessa maneira, por conta da distinção
entre militar e civil estar se tornando cada vez mais porosa, abre-se precedente
para que todos sejam vistos como alvos a serem combatidos e, todos os
espaços, serem concebidos como potenciais áreas de combate.

O paradigma militar13 contemporâneo rompeu com a doutrina de


“combate” ao comunismo, vigente durante a Guerra Fria, passando a se
reorganizar em torno de outros grupos populacionais (negros, asiáticos, latinos,
etc.) historicamente identificados como “ameaças”, desde épocas coloniais
(RODRIGUES, 2015). Essas estratégias do campo militar empenhadas na
gestão de territórios urbanos corroboram para mirar sobre “inimigos” nacionais e
transnacionais identificados pelos Estados como ameaças eminentes a sua

12 BRASIL. Decreto n. 9.288, de 16 de fev. de 2018. Intervenção Federal no Rio de Janeiro,


Brasília, DF. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/decreto/D9288.html> Acessado em 25/05/2018.
13 Chamo de paradigma militar contemporâneo o uso armas, ações militarizadas na tentativa de

controle territorial das cidades, com o emprego de tecnologias de repressão contra nacionais,
visando o combate e eliminação de indivíduos indesejados pelo Estado.
29

existência (RODRIGUES, 2015), o que condiciona e ordena as relações


socioeconômicas do país.

Durante os anos da década de 1990 a economia global passou a se


reorganizar, novamente, em torno de políticas econômicas neoliberalizantes,
privatizando (e privando) o acesso a serviços estatais amparados em políticas
de bem-estar social. O grau de desenvolvimento econômico em países
capitalistas periféricos aumentou as desigualdades e desassistiu as populações
mais pobres de serviços básicos de saúde, educação, lazer e empregabilidade.
Não à toa, durante esse período houve o fortalecimento do Comando Vermelho
(CV), principal facção de varejo do tráfico de drogas do Rio de Janeiro – sendo
assim principal empregador do mercado paralelo da cidade – presente nos
territórios mais pobres da cidade, e o crescimento do excedente do
subproletariado urbano carioca (WACQUANT, 1999).

2.3. O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO

Embora recorrente no imaginário popular de um país de histórico


totalitário como o Brasil, o estado de exceção, em que o regime de leis é
suspenso em detrimento da “segurança” do Estado-Nação, apresenta-se de
maneira sutil. O regime diferenciado instaurado pelo chefe do executivo da
Nação durante determinados períodos faz com que Carl Schmitt compreenda
como soberano “aquele que decide sobre o estado de exceção” (AGAMBEN,
2004, p. 11). Todavia, segundo opinião generalizada a respeito do dispositivo, “o
estado de exceção constitui um ponto de desequilíbrio entre o direito público e o
fato político” (Idem). Dessa maneira, o que se estabelece é o estado de exceção
como forma legal de algo que não pode ter forma legal.

Os regimes totalitários modernos, assim, podem ser compreendidos como


o estabelecimento, através do estado de exceção de uma guerra civil legal que
permite a “eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político” (Idem, p. 13). A interpretação imediata da
biopolítica do estado de exceção como estrutura de funcionamento original em
30

que o direito considera em si o vivente por meio de sua própria suspensão


aparece nitidamente nas Leis de Garantia e Ordem (GLO) promulgadas pela
presidência da República. A estrutura em que funciona, dessa maneira,
permitiria a compreensão de uma ditadura constitucional.

Entretanto, as características que possibilitaram a consolidação de


dispositivos tais como o estado de exceção para o estabelecimento de
suspensões extraordinárias do regime de leis são produtos diretos das
“transformações dos regimes democráticos e da progressiva expansão dos
poderes do executivo durante duas Guerras Mundiais” (Idem, p. 18). Regimes
políticos como esse deveriam ser promulgados para fazer face a circunstâncias
excepcionais de necessidade e de emergência, ao em vez disso, “contradizem
a hierarquia entre lei e regulamento” (Idem, p. 19) – que é a base de constituições
democráticas – e permitem o governo um poder legislativo que deveria ser
competência exclusiva do Parlamento.

Além do mais, o problema do estado de exceção representa analogias


visíveis com a do direito de resistência e da desobediência civil enquanto
possibilidade dos cidadãos de não se submeterem a leis que violassem seus
direitos (THOREAU, 2012). De encontro a essa percepção, na Itália, durante a
década de 1960, tentou-se votar um projeto de emenda a Constituição que
assegurasse “a resistência à opressão [como] um direito e um dever do cidadão”
(AGAMBEN, 2004, p. 23).

Cabe destacar que o estado de exceção surge a partir da experiência


francesa em sua primeira implementação de um estado de sítio, momento
instituído através de um decreto da Assembleia Constituinte no dia 8 de julho de
1791 (Idem, p. 24). Todavia, o texto da época não tratava das ocasiões, das
formas ou dos efeitos do estado de sítio, assunto que seguia em aberto até
mesmo na nova Constituição de 4 de novembro de 1948, quando definiu-se que
uma lei regulamentaria a matéria em questão.

Durante a Primeira Guerra Mundial, na maior parte dos países envolvidos


no conflito, consolidou-se um estado de exceção permanente. Em agosto de
1914, o presidente francês Poincaré publicou um decreto que colocava todo o
país em estado de sítio, tendo o Parlamento transformado em lei dois dias após
o ato do chefe de Estado. O país apenas saiu da condição de estado de sítio em
31

12 de outubro de 1919. É nessa situação que Giorgio Agamben (2004) destaca


que “foi nesse período que a legislação excepcional por meio de decreto
governamental (que nos é hoje perfeitamente familiar) tornou-se uma prática
corrente nas democracias europeias” (p. 26), sendo importante ter em mente que
esse processo contemporâneo de metamorfose das constituições democráticas
ocorreu no período entre guerras quando, quando ascendem ao poder regimes
totalitários na Itália e na Alemanha.

Na Constituição de Weimar, que vigorou entre 1919-1933 – tendo


permanecido em vigor tecnicamente até o fim do Terceiro Reich (1933-1945) –
havia um dispositivo que permitia o presidente da República tomar as medidas
necessárias

quando as instituições da República, a independência da


nação, a integridade de seu território ou a execução de
seus compromissos internacionais estiverem ameaçadas
de modo grave e imediato e o funcionamento regular dos
poderes públicos constitucionais estiver interrompido.
(Idem, p. 27)

A respeito disso Carl Schmitt (1995) reportou que, dessa forma, “nenhuma
constituição do mundo havia, como a Weimar, legalizado tão facilmente um golpe
de Estado” (p. 25).

Com a implementação de uma democracia “protegida”, sendo o chefe do


executivo seu guardião, o que se observa com o fim da República de Weimar é
que essa “proteção” não é democrática e que “o paradigma da ditadura
constitucional funciona sobretudo como uma fase de transição que leva
fatalmente à instauração de um regime totalitário” (AGAMBEN, 2004, p. 29).
Caso trazida a reflexão para a atualidade, observa-se que o princípio
democrático da divisão dos três poderes não é respeitado, uma vez que o
executivo absorveu, em parte, o poder legislativo. Assim, o Parlamento não é
mais instituição soberana que impele os cidadãos perante a lei, se limitando
muitas vezes a ratificar decretos do poder executivo. Considerando uma
perspectiva técnica, “a República não é mais parlamente e, sim, governamental”
(Idem, p. 32).

A partir do momento em que o poder do presidente se consolida sobre um


“estado de guerra”, a metaforização bélica torna-se, ao longo do século XX, parte
chave do vocabulário político de chefes do executivo em momentos que
32

tratassem sobre impor decisões consideradas de importância fundamental. O


direito de se estabelecer um estado de exceção, na realidade, não se configura
dessa forma como um direito, mas, sim, uma ferramenta política empenhada em
momentos de necessidade governamental na busca de se atingir um objetivo
específico. Sendo assim, uma vez que o estado de exceção é a “suspensão (total
ou parcial) do ordenamento jurídico” (Idem, p. 39), como poderia a suspensão
ser compreendida dentro do ordenamento legal do Estado de direito?

A problemática posta a partir dessa questão indica para Agamben (2004)


que “a necessidade não tem lei e a necessidade cria sua própria lei” (p. 40). Dito
isso, seja “por necessidade ou por qualquer outro motivo” (idem), muitas coisas
são realizadas contra a lei. O conceito de necessidade, dessa forma, apresenta-
se de forma inteiramente subjetiva. Concatenando os aspectos do estado de
exceção moderno, pode-se entende-lo como um esforço de “incluir na ordem
jurídica a própria exceção” (Idem, p. 42). Assim sendo, como aborda Carl Schmitt
(1992), no estado de exceção “o Estado continua a existir, enquanto o direito
desaparece” (p. 39).
33

CAPITULO 3 - MECANISMOS DE DEFESA DO ESTADO: AS


PARTICIPAÇÕES DAS FORÇAS ARMADAS NO RIO DE JANEIRO (2010-
2018)

Nesta sessão pretende-se tratar de como encontra-se na Constituição


Federal (CF) brasileira de 1988 os dispositivos de lei que dispõe sobre a atuação
das Forças Armadas. Em seguida, analisar-se-á dois momentos distintos de
suspenção do ordenamento jurídico no Rio de Janeiro: no território do Complexo
do Alemão e da Penha, zona norte da capital, entre o ano de 2010 e 2012, e em
toda Unidade Federativa durante o ano de 2018. Para tanto, é preciso que se
tome conhecimento dos diferentes mecanismos jurídicos acionados para o
funcionamento dessas iniciativas.

Os aspectos jurídicos presentes na CF de 88, como apresenta Carlos


Cerqueira14 (1996), carregam uma “visão equivocada de ordem pública” (pg.
156), com reflexos na tutela teórica da doutrina de segurança nacional, gestada
durante o regime ditatorial. As constituições de períodos democráticos, como as
de 1934 e 1946, não englobavam problemas de “ordem pública” para a aplicação
de mecanismos de defesa do Estado. Todavia, as cartas magnas de períodos
ditatoriais (1937, 1967 e 1969) consideram questões de “ordem pública” para o
emprego das Forças Armadas (FA) em situações excepcionais de defesa. Na
constituição vigente, inclusive, é permitida a utilização das FA sem qualquer
mecanismo de controle por parte do Poder Legislativo.

Através do Artigo 142 da CF/88 e da Lei Complementar nº 97/99, regula-


se no país o instrumento jurídico-militar das operações de Garantia da Lei e da
Ordem (GLO). Os requisitos para a implementação dessas medidas são:
instabilidade institucional do Ente solicitante e insuficiência dos órgãos de
segurança próprios. A forma pela qual entra em vigor é por determinação do
presidente da república via mensagem, após uma solicitação do Chefe do
Executivo Estadual. Nesse modelo, os governos estaduais continuam

14Cerqueira, C. M. N. In Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Org. Nilo Batista.


Relume Dumara, Rio de Janeiro, 1996.
34

responsáveis pela gestão da segurança pública e há uma cooperação com as


Forças Armadas.

A diferença entre as GLO e as Intervenções Federais (Art. 34 e 36/CF)


residem em sua amplitude e gravidade da situação pela qual é acionada. As
premissas consideradas para o a confluência da intervenção são: manter a
integridade nacional, repelir invasão estrangeira, comprometimento da ordem
pública, garantir o exercício dos Poderes e a execução das leis, assegurar
princípios constitucionais e reorganizar as finanças. Para o cumprimento da
medida é necessário que a presidência declare, após ouvidor o Conselho de
Defesa Nacional, a medida que, ainda, deve ser submetida à apreciação do
Congresso Nacional em um prazo de 24h. Os efeitos práticos dessa ação levam
a União a assumir a gestão e administração de toda a segurança pública do
estado e, no período que durar a Intervenção Federal, a Constituição não poderá
sofrer emendas.

3.1. A OPERAÇÃO ARCANJO

Alguns trabalhos já foram realizados sobre a participação das Forças


Armadas na ocupação do território do Complexo do Alemão15 e da Penha no ano
de 2010 (RODRIGUES, 2013; ESPERANÇA, 2014; FRIEDE, 2018). Contudo, o
debate em torno dos desdobramentos acerca da excepcionalidade das práticas
desempenhadas pelas forças de Defesa Nacional deve ser aprofundado.

A midiatização dada ao processo de ocupação do território do Complexo


do Alemão, como trata Thiago Rodrigues (2013), transforma a política de
segurança pública em um espetáculo a ser acompanhado pela televisão. A cena
da fuga de traficantes pela da Serra da Misericórdia16, no dia 22 de dezembro de
2010, evidencia o paradigma de combate ao inimigo interno e da “guerra às
drogas”, questão que acirra as contradições sociais dentro da sociedade
fluminense. Durante a fuga dos traficantes, grupos do Batalhão de Operações

15 O território do assim chamado Complexo do Alemão corresponde - pelo menos - ao conjunto


de bairros: Itararé, Joaquim de Queiróz, Mourão Filho, Nova Brasília, Morro das Palmeiras,
Parque Alvorada, Relicário, Rua 1, Vila Matinha, Vila Cruzeiro, Morro do Piancó, Morro do Adeus,
Morro da Baiana, Estrada do Itararé, Morro do Alemão e Armando Sodré.
16 A Serra da Misericórdia é o maciço rochoso onde encontra-se o Complexo do Alemão.
35

Especiais (BOPE) estavam de tocaia para neutralizar quem passasse fugindo


em uma região chamada “Matinha” – recorrentemente utilizada em outras
operações para fuga.

Segundo moradores da região, a invasão feita pela Vila Cruzeiro já havia


sido negociada. O combinado seria que houvesse alguma resistência por parte
do Comando Vermelho (CV) até certo ponto e posteriormente haveria a fuga de
uns e outros se entregariam. Os que fossem presos contariam com toda
assistência na prisão (ESPERANÇA, 2014). Entretanto,

“Quando o primeiro grupo se entregou, o BOPE


executou. Aí os outros que viram, fugiram” (Homem, 25 nos,
morador)

“Tinha pra mais de cem corpos. Tudo empilhado. Eles


saíram com tudo no caveirão17” (mulher, 25 anos, do lar,
moradora)

“Quando o caveirão passou deixou um rastro de sangue


pelo chão... pingava sangue dele” (mulher, 40 anos, assistente
social, moradora) (Idem, p. 72)

A intenção manifestada por agentes públicos da segurança em relação a


ocupação da região era a de combater “o coração do mal”18, como abordou o
Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro da época, José Mariano

17Veículo blindado de combate do BOPE.


18http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-contra-o-crime/noticia/2010/11/o-alemao-era-o-coracao-
do-mal-afirma-beltrame.html <acessado em 19/11/18>
36

Beltrame. Ainda, segundo o mesmo, “marginal sem casa, sem arma, sem
território é muito menos marginal”. O sucesso da operação que estava em
andamento também agradou o Governador Sérgio Cabral que afirmara que “a
conquista19 do território do Complexo do Alemão pelo Estado é um passo
fundamental e decisivo na política de segurança pública que traçamos para o
Rio de Janeiro”.

A avaliação feita pelo Ministro da Defesa Celso Amorim ao encerramento


da Operação Arcanjo, em 2012, sinalizou a satisfação do Governo Federal com
a “competência” e o “grande profissionalismo”20 do Exército. O ministro
considerou importante citar a excepcionalidade da operação, abordando que ela
“foge ao padrão” das Forças Armadas, já que a princípio sua designação é para
“a defesa da pátria em face de ameaças externas”. Ele citou ainda que já
conhecia a capacidade do Exército por conta de abordou que já havia
testemunhado a capacidade em ações de defesa da ordem, citando a liderança
assumida pelo país na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
(MINUSTAH)21. Para Miguel de Sá (2017), uma das facetas da política de
militarização é o discurso que serve para o exterior, serve igualmente para o
consumo doméstico, criando uma lógica circular de emprego de armas e
soldados no cotidiano.

3.2. A INTERVENÇÃO FEDERAL NO RIO DE JANEIRO

No dia 16 de fevereiro de 2018 a população fluminense foi surpreendida


com o Decreto nº 9.288, promulgado pelo então Presidente da República Michel
Temer (MDB-SP), que teve como objetivo geral agir de maneira resoluta ao
grave comprometimento da ordem pública. A medida foi levada a frente em um

19 Grifo do autor.
20https://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/Pronunciamentos/Ministro_defesa/julho/discurso_pa

ssagem_comando_morro_alemao_9_julho_2012.pdf < Acesso em: 19/11/18>


21 A participação brasileira na operação de Peacekeeping das Nações Unidas no Haiti, entre

2004 e 2017, foi fundamental para a consolidação do plano de Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP), como abordam Thiago Rodrigues (2014), Miguel de Sá (2017) e Eduardo Rodrigues
(2013). A missão havia sido implementada para durar apenas seis meses. Contudo, se estendeu
durante 13 anos, a um custo anual de U$ 400 milhões. Ao longo dos anos, houve verba para
armas e soldados estrangeiros ocuparem militarmente o país – sendo enviados 37 mil militares
brasileiros –, mas situações como a epidemia de cólera que atingiu mais de 850 mil haitianos e
vitimou ao menos 8500. Antes da ida de tropas estrangeiras ao país o Haiti não sofria com casos
da doença.
37

momento que o estado do Rio de Janeiro estava sobre estado de calamidade


pública22 na área financeira, desde novembro de 2016, o que sinalizava a
incapacidade do estado de cumprir com todos seus compromissos, priorizando
os pagamentos em áreas considerados fundamentais, como as da Saúde,
Educação, Assistência Social e Segurança.

Durante o carnaval na cidade do Rio de Janeiro, a mídia nacional23


dedicou-se a noticiar os casos de violência envolvendo agressões, roubou e
“arrastões” nas áreas nobres da cidade, em especial a Zona Sul. A intenção,
aparentemente, era destacar a escalada da desordem urbana na cidade, através
de um discurso que favorece o medo da população, com intuito de que comprem
segurança. Nesse sentido, o preço da segurança custou caro, com a intervenção
federal sendo uma empreitada do governo que custaria R$ 1 (um) bilhão aos
cofres públicos24.

Como retratado em uma matéria do jornal Estadão, 16 dos 27 indicadores


de violência caíram no Rio de Janeiro durante o carnaval25. Os dados são do
Instituto de Segurança Pública (ISP) e a queda nos índices pode ser verificado
no que diz respeito a homicídios (14,81%), roubos a transeuntes (9,85), roubo
de celulares (29,7%). Houve um aumento no número de ocorrências, no geral,
de 5.773 para 5.865, correspondente a um avanço de 1,59%. Nos três anos
anteriores o número foi muito maior, com o número de ocorrências próximo a
9.000. A queda, nesses anos, comparando 2018 com 2015, foi de 35,27%26.

22 Pode ser decretado quando o desastre é grande o suficiente para comprometer totalmente a
capacidade de resposta do poder público local, com respaldo no Decreto nº 7.257 de 4 de agosto
de 2010.
23 Arrastões, roubos e tiroteios: Rio vive carnaval de violência, O GLOBO, 13/02/2018; Violência

e desordem marcam Carnaval do Rio: três PMs são mortos, Folha de São Paulo, 14/02/2018;
Ministro diz que a violência no carnaval do Rio foi inaceitável e promete ajuda, Empresa Brasil
de Comunicação, 14/02/2018.
24 Gabinete da Intervenção Federal.
25 https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,16-dos-27-indicadores-de-violencia-

cairam-no-rio-no-carnaval,70002192304 < Acesso em: 28/11/2018 >


26 http://www.ispvisualizacao.rj.gov.br/ < Acesso em: 28/11/2018 >
38

No cenário político nacional, questões como a popularidade de Michel


Temer (MDB–SP) pode ter sido uma motivação para a implementação da
intervenção federal, uma vez que seu governo passava por um amplo processo
de rejeição nacional27. Outros dois fatores que poderiam ter corroborado para a
empreitada do governo federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro
eram a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista, medidas impopulares
que o governo pretendia aprovar ainda no ano de 2018. Considerando o histórico
recente de revoltas populares no Rio de Janeiro, como as Jornadas de Junho
(ou Revolta do Vinagre) de 2013, é viável imaginar que a cidade é importante
centro de movimentação política que influencia na percepção do cenário político
nacional.

Figura 2. Fonte: Gabinete de Intervenção Federal

No que tange as ações que foram anunciadas para o período de


Intervenção Federal na segurança pública do estado, podem ser citadas cinco
que são os objetivos específicos (OE) presentes no plano estratégico do
Gabinete de Intervenção Federal (GIF)28, como sugere a imagem (Figura 2)

27 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/reprovacao-aumenta-e-torna-temer-o-
presidente-mais-impopular-da-historia.shtml < Acesso em: 27/11/2018 >
28 O plano estratégico do GIF foi publicado no Diário Oficinal da União no dia 29 de maio de 2018,

três meses e trezes dias após o início da intervenção. O texto completo pode ser acessado em:
http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2018/06/plano-estrategico-gif.pdf
< acessado em: 22/11/18 >.
39

acima. O detalhamento das estratégias, metas, indicadores de desempenho e


plano de ação para a atuação dos Órgãos de Segurança Pública (OSP) e das
Forças Armadas (FA) – presentes no plano estratégico – demonstram a tentativa
de esboçar as intenções do Interventor, General de Brigada Walter Souza Braga
Neto, para sanar os problemas de ordem pública no estado.

A estratégia adotada para o comprimento do primeiro OE pelo interventor


priorizava a “efetividade” dos OSP, “buscar a eficácia das Forças de Segurança”
e “fortalecer” os espaços de formação e capacitação de agentes. O segundo
objetivo traçado tinha como estratégia principal recuperar a capacidade
operativa dos órgãos estaduais de segurança pública, com iniciativas de
capacitação de profissionais da Polícias Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ), do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ) e da
Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), além da aquisição de
equipamento como viaturas e armamento, entre outras providências. O terceiro
objetivo visava a articulação, de forma coordenada, as instituições dos entes
federativos favorecendo um banco de dados compartilhado entre municípios,
estado e Polícias Federais. O penúltimo objetivo visava “reorganizar a estrutura
da Segurança Pública”, melhorar o relacionamento e imagem dos OSP junto à
população e “revitalizar” os princípios, crenças e valores (éticos e morais), mas
sem fazer qualquer alteração estatutária na rotina dos organismos. O quinto
objetivo sugere a melhoria da qualidade e da gestão do sistema prisional,
assunto que depende diretamente de disponibilidade de recursos financeiros
para ser executado.

Quando analisadas as pretensões do GIF em contraste com dados que


são produto das ações conjuntas das Forças Armadas com os OSP, observamos
que a pretensão de diminuir os índices de criminalidade não ocorreu,
necessariamente, de maneira ampla. Com o trabalho realizado pelo
Observatório da Intervenção, que publicou dados mensalmente sobre os
resultados da intervenção, podemos observar uma deficiência nos repasses
financeiros para os OPS do estado. Dos R$ 1,2 bilhão solicitados pelo Interventor
para a União, foram empenhados até o mês de novembro de 2018 pelo GIF R$
31 milhões. Desse total, as Forças Armadas receberam a maior parcela29 R$

29 Sistema Integrado de Administração Financeira. Acesso em: 10/11/2018.


40

22,3 milhões, ou seja, 72% da verba, enquanto os OSP do estado receberam R$


8,4 milhões. Dos cinco contratos firmados até o momento, a prioridade dada foi
para a aquisição de munições e coletes, ficando poucos recursos para ações de
inteligência.

De acordo com o estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública


(FBSP) e do Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA) relativos ao ano
de 201730, o estado do Rio de Janeiro não está entre os mais violentos do país.
No ranking de homicídios nacional ele encontra-se na 13ª posição, com uma taxa
de 36,4 homicídios a cada 100 mil habitantes, atrás de Unidades Federativas
(UFs) como Sergipe (64,7), Alagoas (54,2) e Rio grande do Norte (53,4). Em
relação a variação da taxa de homicídio entre os anos de 2011 e 2016 o estado
do RJ também não se destaca, com um crescimento de 22,6% relativo ao
período, taxa que contrasta com os aumentos 102,3% no Acre, 92,2% em
Roraima, 84,8% em Sergipe, 61,9% no Rio Grande do Norte.

Durante os nove meses que foram possíveis de ser analisados pelo


trabalho, em comparação com o mesmo período (fevereiro/novembro) do ano de
2017, pode-se notar o aumento de 59% no número de tiroteios na região
metropolitana, tendo ocorrido 4.695 e 7.457, no ano anterior e no ano de 2018,
respectivamente31. “Muito tiro, pouca aula, pouca aula, + bandido” é uma frase
que apareceu em diversos muros de bairros afetados por tiroteios. Isso se deve
pelo aumento de 156% no número de tiroteios (de 69 para 177) dentro de um
raio de 100 metros de estabelecimentos educacionais, causando queda no
rendimento dos alunos e no desempenho de professores. Ao serem verificados,
os números do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) das
escolas com casos de disparo de armas de fogo é de 3,6 e o das escolas sem
disparos é de 4,8. Houve um aumento também no dado de pessoas mortas pela
polícia, tendo sido registado 1.151 mortes, que corresponde a um aumento de
40,5% em relação ao mesmo período do ano anterior (fevereiro/outubro).

30 Atlas da Violência, IPEA e FBSP, 2018.


31 Fogo Cruzado. https://fogocruzado.org.br/ Acesso: 01/12/18.
41

Conclusão

Conforme busquei ressaltar ao longo do texto, a militarização da


segurança pública no Rio de Janeiro corresponde a um marco no
desenvolvimento de técnicas de controle em ambientes urbanos no Brasil. A
persistência no modelo de combate bélico ao crime organizado, privilegiado o
conflito físico em detrimento de estratégias de inteligência, marcam a história da
cidade desde a década de 1990 com a participação das Forças Armadas mesmo
pós-redemocratização do país. Os mecanismos de defesa do estado presentes
na chamada Constituição Cidadã garantem a intervenção das forças do Governo
Federal em estados a partir da “necessidade” de segurança para que seja
realizada a manutenção da “ordem pública”.

A demanda por segurança reivindicada por alguns setores na sociedade


fluminense e nacional durante os anos de 1992 e 1994, identificada através de
matérias jornalísticas e editoriais, evidenciaram o desejo de participação do
Exército nos espaços urbanos do Rio de Janeiro, sobretudo nas favelas cariocas.
Através da produção de um imaginário de extrema violência na cidade, em que
espaços favelados são retratados como os locais de geração do perigo e do mal,
no contraste com a normalidade e segurança vivida em bairros nobres e de
classe média fizeram com que em 1994 se desencadeasse a intervenção federal
na cidade. Sobre o argumento de que o Governo Estadual e suas instituições
não possuíam mais capacidade de administrar a segurança pública da cidade,
tropas do exército foram enviadas para a cidade, ocupando pontos de acesso a
comunidades e realizando operações em que foram registradas uma série de
violações de direitos, como invasão de residências, torturas, extorsões, roubos
e assassinatos.

De um modo geral, no século XX, a metamorfose na concepção de


segurança nacional, acompanhada pelo crescimento quase que exponencial da
população mundial – dos quais mais de 50% reside em cidades – nos trouxe
para o novo urbanismo militar. São técnicas de controle populacional, uso de
armamento letal ou não no combate a insurgentes, tecnologias de
reconhecimento facial, expansão do uso de armas por agentes de segurança, o
42

emprego de drones no monitoramento de cidade, entre uma série de tecnologias


militares que estão sendo “popularizadas” entre os Estados ocidentais.

A participação de militares em conflitos urbanos contrasta com o


imaginário que pressupõe o emprego de forças nacional de segurança em
conflitos internacionais e passa a emprega-las em âmbito doméstico, em
questões de segurança pública. Os dispositivos legais que permitiram a atuação
de exércitos na “necessidade” de segurança de Estados foi gerado ainda no
período entre guerras, de 1914 a 1945, quando diversos foram os Estados a
incorporarem em suas constituições a possibilidade de intervenções militares em
seus territórios nacionais. Os chamados estados de sítio, de defesa ou de
exceção, contrastam com a jurisprudência que assegura diversos direitos para
cidadãos, abrindo precedentes para que o Estado, em nome de sua defesa,
possa eliminar “inimigos” indesejados durante o período de suspensão do
ordenamento jurídico comum.

Quando observados os mecanismos de defesa do Estado brasileiro,


especificamente as Garantia da Lei e Ordem (GLO) e Intervenção Federal (IF),
podemos observar que elas seguem a perspectiva teórica, indo de acordo ao
que se afirma em relação a “necessidade” de suspensão do ordenamento
jurídico durante um determinando local e período por motivos de segurança. No
Rio de Janeiro, a Operação Arcanjo correspondeu a ocupação militar do
Complexo do Alemão e da Penha para a implementação de algumas Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) na região, para a “erradicação do mal” em um
território de domínio da maior facção do estado, o Comando Vermelho (CV).
Nesse momento vale lembrar o trabalho de Marielle Franco (2014) intitulado UPP
– A redução de favela a três letras.

Durante a análise de dados referentes a Intervenção Federal na região


metropolitana do Rio de Janeiro, pude observar que diversos índices
relacionados a crimes e violência aumentaram durante o ano de 2018, em
relação aos mesmos períodos verificados durante o ano de 2017. A iniciativa do
Governo Federal para a segurança no estado, estabelecida via decreto
presidência em fevereiro, fez com que o número de escolas atingidas pela
violência gerada pelas forças armadas aumentou mais de 150% em um único
ano, acompanhado também pelo aumento do número de tiroteios, morte de
policiais e vítimas de balas perdidas.
43

Diante do exposto, é fundamental destacar que: o Rio de Janeiro não é


para amadores. A política de segurança da cidade, centrada no confronto, na
morte, na tortura, não gera resultados positivos na percepção de segurança dos
cidadãos há pelo menos 25 anos. Os altos índices de insegurança social:
desemprego, déficit habitacional, especulação imobiliária, desigualdade social
de renda, gentrificação, ausência de saneamento básico, levaram a cidade a
atingir um grau de ruptura social tão grande que é possível identificar diferentes
“ilhas”, de pobreza e riqueza, em todo seu território.

Do Caju a Santa Cruz, do Leme a Sepetiba, são diversas as formas de


organização e distribuição do crime e da violência na cidade. São territórios
loteados por facções de narcóticos ou milícias urbanas que privatizam a
segurança por meio da imposição do medo. O assunto é complexo e não pode
ser resolvido a base de troca de tiros nas ruas, avenidas, vielas e becos que
circulam a população. Sem um trabalho coordenado de inteligência, desmonte
das atividades que financiam grupos de milícia, descriminalização da venda e
consumo de entorpecentes, a “guerra” seguirá vitimando inocentes e criminosos,
sem que haja qualquer perspectiva de melhoria nas condições de vida e
segurança. Caso a morte e a “guerra as drogas” fosse solução, seriamos
exemplo de segurança por conta do alto índice de mortes ocasionadas por
policiais e agentes do Exército, o que não reflete a realidade. Assim, seguimos
apoiando a distopia que atinge a nós mesmos.
44

Referências

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