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Nelson Rodrigues

A D M IR Á V E L
D E F UN T O
Uma coluna diária precisa ter um elenco
variadíssimo.
Sim, um elenco colorido de mágicos, trapezistas,
clowns, arquitetos, cineastas, heróis, estudantes,
intelectuais e pulhas. Quando o colunista precisa de um
mímico, tem o mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se
é o intelectual, há o intelectual.
Fiz esta breve introdução para concluir: – as minhas
confissões vivem de um elenco assim. Meus protagonistas
e meus comparsas dariam para lotar uma platéia de Fla-
Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é
exatamente o “defunto vocacional”.
Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o leitor
há de perguntar: – “Por que defunto e por que
vocacional?”.
Tentarei explicar.
Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou
por mim e acenou-me com os dedos: – “Salve!”. Balbuciei,
lívido: – “Salve”. E fiquei olhando o outro afastar-se e
sumir na multidão. Mas por que o meu espanto e por que o
meu horror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e
florira umas cinco vezes.
Dirá alguém: – “Ilusão”. Seja ilusão. Mas o “defunto
vocacional” cumprimenta como os outros, e calça como os
outros, e tem gravata como os outros. E dá sempre a
sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nas
narinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim

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uma máscara da cor de certas pinceladas amarelas de Van
Gogh.
Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei.
Imaginem vocês que recebi um telefonema fantástico.
Era alguém que desejava de mim uma entrevista
imaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era
uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita.
Fiz-lhe a pergunta assustada: – “O senhor tem mesmo
essa voz?”. Jurou que tinha. E eu: – “Mas quem é o
senhor?”. Veio a resposta terrível: – “Sou o homem de
bem”.
Ora, eu estava certo de que o homem de bem era,
precisamente, “O Grande Defunto”. Ninguém tão morto e
ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missa mandada
rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que
alguém saísse da tumba e pedisse uma entrevista
imaginária.
Seriam ambos imaginários: – a entrevista e o
homem de bem.
Tive de usar de franqueza: – “Meu amigo, vai me
desculpar, mas o senhor já morreu”. Há uma pausa
lúgubre.
E, depois do suspense, diz o homem de bem: –
“Obrigado pela informação”. E desligou. Viro-me para os
colegas e, puxando um cigarro, digo-lhes: – “O homem de
bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu”.
Volto para a minha mesa. Bate novamente o

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telefone.
Aviso: – “Se for o homem de bem, não estou”.
Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta: –
“Quem quer falar com ele?”. Pausa. O contínuo repete: –
“Quem? O canalha?”.
Alguém que se dizia “o canalha” queria falar comigo.
Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo
dia, na mesma hora, fosse eu solicitado pelo falecido
homem de bem e por um salubérrimo canalha. Do outro
lado da linha, diz alguém: – “Seu Nelson Rodrigues? Eu
queria dar uma entrevista imaginária. Pode ser?”. Fiz-lhe
a primeira pergunta: – “Quem é o senhor?”. E o outro,
com a voz de quem está mascando chicletes: – “Já disse.
Sou o canalha”.
Tive de explicar-lhe: – “Meu amigo, já temos um
canalha oficial. Nunca ouviu falar no Palhares, o que não
respeita nem as cunhadas?”. Respondeu, com radiante
vaidade: – “Sou muito pior do que o Palhares”. Era uma
bravata óbvia. Digo: – “Escuta. O Palhares beijou a
cunhada no corredor. E o senhor? Vamos lá. Qual foi a sua
ignomínia?”. O outro dá uma risadinha de Chaliapine em
Mefistófeles: – “Só responderei no terreno baldio”. Faço
uma pausa. Estou achando a voz muito moça. Pergunto: –
“Afinal, que idade tem o senhor?”. Eis a resposta: –
“Dezessete anos”.
Ao ouvir falar em “dezessete” tremo em cima dos
sapatos. Faço-lhe reverências de Michel Zevaco: – “Peço-

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lhe mil desculpas. Eu não sabia que o senhor era o jovem.
Pode vir. O terreno baldio jamais fechará suas portas para
o jovem”. Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias
devem começar à meia-noite, hora que, segundo Machado
de Assis, apavora. O jovem foi sarcástico: – “A meia-noite
é uma ilusão”. Seja como for, foi magnânimo; e aceitou o
tenebroso horário. Assim me despedi: – “Salve, jovem
canalha!”.
Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno
baldio: – “Sou eu. Manda providenciar papel picado e
listas telefônicas. Vamos receber a mais ilustre visita de
toda a história do terreno baldio”.
Pergunta, pálido, o contra-regra: – “Quem?”.
Imaginou, por certo, que seria um rajá montado num
elefante. Disse-lhe: – “O jovem canalha!”. Era honra
demais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia
emocional, quase desfaleceu no telefone: – “Não
merecemos tanto”. Trato de instigá-lo: – “Capricha,
capricha!”. Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo
apanho o primeiro táxi. Arquejo: – “Me leva no terreno
baldio. Chispa”.
Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas,
os caramujos estão assanhadíssimos: – “Cadê o jovem
canalha?”. Tenho que pedir calma. Chamo as pulgas: –
“Modos, hem, modos”.
Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias,
um burro, pensativo, pastava. E, súbito, a cabra põe a

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boca no mundo: – “Evém o jovem canalha!”.
Era a pura verdade. Vinha ele e com as costeletas ao
vento. Mas não vinha só. Uma massa o seguia, berrando
como nos comícios do Brigadeiro: – “Já ganhou! Já
ganhou!”. De um lado do jovem canalha marchava o dr.
Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos abanavam o
pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o
patife entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o
dr. Alceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem
pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.
Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-de-
cerimônias anunciou os títulos do entrevistado: – “É
estudante, mas não sabe nada, porque onde se viu
estudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete”.
Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceu começa a gritar: –
“Tem a razão da idade!”. A massa coral de gafanhotos,
sapos, pulgas, camaleões, pôs-se a repetir: – “Tem a razão
da idade! Tem a razão da idade!”. E, súbito, fez-se o maior
silêncio da terra. O “jovem canalha”, de viva voz, ia contar
o feito que estava justificando aquela apoteose. Com
radiante modéstia, disse tudo: – “Não fiz nada demais.
Estão exagerando. Simplesmente, havia uma menina
reacionária. Tão reacionária e obscurantista que namorava
de mãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina.
Batemos no namorado”.
Pausa, suspense. E, então, limpando as unhas com
um pau de fósforo, concluiu: – “Eu sou um co-autor do

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jovem estupro”.
Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi
carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão
assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfal volta
olímpica.
[O GLOBO, 21.9.1968]

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