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Nelson Rodrigues

Cadáver de
preto
Certa vez, entrei na redação e vi o secretário es-
bravejante. Sou um fascinado pelas grandes indignações;
e o homem atirava patadas como um centauro. (Isso foi
há, talvez, dez, doze anos.) Há um momento em que pára,
exausto da própria ira; passa as costas da mão na boca
encharcada. Diante dele, esmagado, estava o fotógrafo. A
redação, parada, espiava só.
Eis o fato: — desabara um prédio em Petrópolis,
matando quinze operários. Um dos nossos fotógrafos vo-
ara para a montanha. Lá, batera chapas de tudo. Em se-
guida, descera a serra, numa fulminante velocidade. Mas,
quando apareceu com o serviço, o secretário sapateou
como em transe mediúnico. Esfregava as fotografias na
cara do outro: — “Este jornal não publica cadáver de
preto”. Virava para os redatores e uivava: — “Cadáver
de preto”.
Assim humilhado e assim ofendido, o fotógrafo per-
cebia a enormidade da própria gafe. Note-se que era
preto como o morto. Mas no fundo, no fundo, ele pró-
prio dava razão ao chefe. E, por fim, o secretário foi, de
mesa em mesa, exibindo as fotografias. Uma delas, justa-
mente a que mais o horrorizava, era de um preto gordo,
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de papada e olhos abertos. Uma viga desabara sobre o
desgraçado, abrindo-lhe o crânio. Cada redator olhou
aquilo e houve um escândalo racial como se defunto ne-
gro, pelo fato de ser negro, fosse obsceno. A indignidade
final foi a suspensão do fotógrafo.
Pode parecer um episódio solitário, irrelevante. Em
absoluto. Foi assim em todas as épocas da nossa im-
prensa. As velhas gerações não comprometiam as suas
primeiras páginas com um cadáver de “cor parda”. O
morto branco saía. Eu me lembro de um avião que caiu
na baía em 1929. Foi na chegada de Santos Dumont. O
aparelho enfiou-se no mar. Uma semana depois, os esca-
fandristas começaram a retirar os corpos.
No dia seguinte, cada primeira página era um ne-
crotério fotográfico. Nunca me esqueci da cara do piloto
em cinco colunas. Tinha os olhos brancos e a boca exa-
gerada, violentada. Era a época das primeiras páginas he-
róicas. Eis o que eu queria dizer: — os brancos podiam
aparecer de olho vazado, de boca obscena. Ninguém dizia
nada, mas nenhum jornal publicaria o afogado preto.
Mais tarde, começaria uma nova época jornalística.

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A imprensa passou a ter um novo texto e uma nova gra-
vura. E o cadáver, mesmo de branco, foi barrado da pri-
meira página. Ou melhor: — o defunto, para ser estam-
pado, teria de ser um Pio XII, um João XXIII ou um rei,
ou um presidente da República. Getúlio saiu no seu cai-
xão de vidro. Mas havia o vidro entre o leitor e a morte,
entre o leitor e o martírio. O fuzilamento de Kennedy
apareceu em seqüência. Mas estava, a seu lado, a bela vi-
úva, a Jacqueline.
Sim, há, nas redações, um copydesk visual, que veta
o cadáver. E, no entanto, vejam vocês: — todos os jor-
nais fizeram uma exceção para um morto recente. E não
era papa, nem rei, nem presidente. Falo do estudante fu-
zilado do Calabouço. Morreu mais uma vez, continuou
morrendo, nas primeiras páginas. Eis o que me pergunto:
— e por que, de repente, sumiu toda a aversão, todo o
nojo gráfico pela morte?
Não foi uma promoção política, ideológica, ou a
vontade mercenária de vender mais jornal. Não. A meu
ver, o que fascinou foi a imagem linda. Tenho toda a fo-
tografia, de cor, na cabeça. Dizia o secretário que barrou

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o cadáver preto: — “O morto é feio. A morte é um bu-
cho”. E afirmava isso, com uma certeza fanática, sem ima-
ginar que um dia seria também defunto, com a hediondez
que atribuía aos defuntos. Mas o estudante assassinado
era espantosamente belo.
E menino, infinitamente menino. Na fotografia apa-
rece seminu, como um santo. Lá está o peito varado. E
eu começo a pensar. Seria parecido com quem? Uma se-
nhora veio me mostrar o retrato, trêmula de beleza: —
“É Ofélia, não é Ofélia?”. Fez uma pausa e completou: —
“Lindo como Ofélia!”. E começou a chorar.
Vejam vocês. Fora a fotografia, toda a cobertura foi,
para o leitor, uma amarga frustração. Falo, sobretudo,
das primeiras páginas. Ah, eu ainda apanhei a última gera-
ção romântica da imprensa. Uma manchete era, por ve-
zes, uma solução em oito colunas, em tipos garrafais.
Quando mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal,
o nosso Correio da Manhã lançou várias manchetes e mais
esta: — HORRÍVEL EMOÇÃO! Hoje, a primeira página
não faz nenhuma concessão ao espanto, nenhuma con-
cessão ao horror, nenhuma concessão à misericórdia. Ao

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passo que a antiga primeira página pingava sangue e pin-
gava lágrima. Em nossos dias, ela é a pura e radical obje-
tividade.
Vejamos, ao acaso, o Jornal do Brasil. O fuzilamento
do menino era uma catástrofe. Mas a catástrofe não foi
tratada como tal. De modo algum. Fui ler a primeira pá-
gina do velho órgão. Eis os termos em que se apresenta
a tragédia: “A morte do estudante Edson Luís de Lima
Souto — baleado no peito, às 18h30m de ontem, durante
um conflito da PM com estudantes no restaurante do Ca-
labouço”. E só. Tenham paciência. Mas esse tom impes-
soal, sumário, desumano, seria apropriado para noticiar
um atropelamento de cachorro. O leitor tem vontade de
bater para o Departamento de Pesquisas do Jornal do Bra-
sil e lembrar-lhe: — “Vocês estão falando de um estu-
dante, um menino, um ser humano”.
E assim o patético da fotografia não existe no texto.
Uma objetividade idiota arranca do fato as suas entranhas
ou, se preferirem outra imagem, castra todas as potenci-
alidades do fato. Republiquei, acima, textualmente, o que
disse a primeira página do Jornal do Brasil sobre uma ca-
tástrofe. Eu escrevi “objetividade idiota” e é realmente
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idiota. E assim, estritamente objetivo, o Jornal do Brasil
põe uma distância imensa entre o leitor e o aconteci-
mento, entre o leitor e o espanto, entre o leitor e a mi-
sericórdia, entre o leitor e o ódio. Sim, essa meia dúzia
de linhas humilha, desfeiteia, degrada o martírio.

[O GLOBO, 2/4/1968]

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