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portanto, foi o Herói que, com o seu tédio sardônico, ficou
com o poder não possuído por ninguém.
Mas não era isso que eu queria dizer. O que eu
queria dizer é que os nossos jovens se embebiam das
notícias de Paris. Vejam vocês: – é possível, pelo
telégrafo, mudar as nossas idéias, sentimentos, valores. E,
então, começou aqui uma efervescência feroz. Também
carros virados. Ninguém arrancou os paralelepípedos,
porque somos uma cidade asfaltada. Fez-se uma “jovem
revolução” liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo
era apócrifo. Aqui, ninguém teve um gesto próprio, uma
fúria autêntica, um palavrão original e profundo.
Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de
sua paisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagirá
ele, em Paris, Londres, Berlim ou Nova York? Está lá
submetido a pressões insuportáveis. Bem me lembro do
meu amigo Otto Lara Resende. Passou dois anos na
Europa. E, quando voltou, era outro Otto. Fomos passear
em Ipanema. Diante do poente do Leblon, inaugurou ele
uma de suas frases máximas: – “Paisagem é verba!”.
Insinuei que o nosso poente não faz vergonha. Mas ele
insistiu: – “Poente é verba!”.
E, mais uma vez, verifiquei que raríssimos
brasileiros podem viajar além de Bangu. O outro caso. Há
três ou quatro meses, o meu amigo Carlos Heitor Cony
bateu-me o telefone: – “Nelson, vim me despedir”. Como
seu tom era meio lúgubre, ainda brinquei: – “Vais te
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matar?”. Respondeu: – “Ainda não. Vou viajar”. Protestei:
– “Não faça isso”. Conversamos uma meia hora. Insistia
eu: – “O brasileiro que viaja volta mais burro”. Jurei: –
“Não conheço um brasileiro que não voltasse mais burro”.
Ele resistiu até o fim: – “Você exagera. Não é nada disso”.
Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei a dizer-lhe que
ele precisava ser o cafajeste total. Não exagerava. De fato,
um maravilhoso cafajeste está inserido nele, está
enterrado nele como um sapo de macumba. E o cafajeste
não viaja.
O pior é que a viagem ia ser imensa. Passaria por
Berlim, Paris, Moscou, Londres e, até, o Pólo Norte.
Imaginei que voltaria um ex-Cony, um anti-Cony. E me
preocupava também o destino do seu riso. O meu amigo
tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como os antigos
sátiros vadios. Imaginei que a viagem pudesse emudecer-
lhe o riso.
E o Cony partiu. Três meses de ausência densa,
cruel, desesperadora como a morte. Outro dia, paro num
sinal fechado. Estou em cima do meio-fio, esperando,
quando um automóvel encosta e alguém anuncia: – “O
Cony chegou! O Cony chegou!”.
Pouco depois, entro na redação e ligo para o amigo.
Ia perguntar-lhe: – “Como é? Ficaste mais burro?”. Mas
não estava. Deixei o meu nome. E esperei em vão que me
telefonasse. Nada. No dia seguinte, ligo outra vez. Também
não estava. Liguei outras vezes. Nunca estava. Ele, aqui, a
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dois passos, parecia longínquo como se ainda existisse
entre nós dois a distância que vai de Ipanema ao Pólo, do
Castelinho a Cingapura.
Sou um pessimista e logo imaginei: – “É outro Hélio
Pellegrino”. Já falei do abismo ideológico que se cavou
entre mim e o Hélio. Tenho escrito sobre passeatas, d.
Hélder e dr. Alceu. Em confissões sucessivas, acusei as
esquerdas de uma alienação monstruosa etc. etc. O Hélio
não gostou. Dizia-me com a sua bela voz de Paul Robeson
branco: – “Não é o momento! Não é o momento!”.
Enquanto o Hélio falava assim, em arroubos, eu pensava
nos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e
por outros. Ferido como estou, não ouso trapacear comigo
mesmo e com os demais. Digo o que sinto e o que penso.
Apenas.
Todavia, na véspera dos meus anos, o Hélio ligou
para mim. Ninguém mais doce: – “Pode dizer nos seus
artigos que você é dos meus amigos fundamentais”. Dias
antes, de público, eu o desafiara a jantar comigo no meu
aniversário. E o Hélio explicava: – “Mas não posso jantar
contigo amanhã, porque vou sair do Rio”. Era o décimo
encontro que ele adiava. Jurou, porém: – “Janto contigo
na semana que vem”.
Isso foi no dia seguinte. Não me concedeu um mísero
telefonema. Se eu fosse esperar por ele, e seu prodigioso
jantar, estaria morto de fome.
E já me parecia que, como o bom Hélio Pellegrino, o
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Cony fugisse de mim. Não queria, decerto, conspurcar-se
com o meu “oba” ou com o meu aperto de mão. Pois bem.
Até que há o temido encontro. A coisa ocorreu no Museu
da Imagem e do Som. Ele ia depor sobre a figura e a obra
de Mário Filho.
Assim que o vi, e ele me viu, houve o suspense de
um ou dois segundos. Em seguida, veio o abraço
desesperado, o riso violento e recíproco e a certeza de que
éramos amigos para sempre. Disse-me Cony: – “Recebi o
teu recado. Mas não telefonei, de propósito. Não queria ver
ninguém. Por enquanto, não”. Foi aí que eu reparei: – era
um outro Cony que estava na minha frente, talvez mais
atormentado e talvez mais puro. Sim, um Cony trabalhado
pela solidão, um Cony de uma outra densidade. Perguntei,
aflito: – “E a viagem? E a viagem?”. Varara o mundo e
fora até ao Pólo Norte. E eu: – “Que tal? Que tal?”.
Respondeu sério, cruel: – “Tudo a mesma coisa! Tudo a
mesma coisa!”. Vira a Vênus de Milo: – “Tem erisipela”. E
da Gioconda: – “Tem mau hálito”. “O Louvre, uma
impostura.” Estava triste e exausto de tudo o que vira.
Passara na Rússia, na França, na Inglaterra, na
Tchecoslováquia. E, por fim, fez um resumo desesperado
de tudo: – “O homem fracassou”.
[O GLOBO, 18.9.1968]