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26/07/2018 Notas teóricas para o estudo do medo pela Geografia

Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

36 | 2018 :
Número 36

Notas teóricas para o estudo do


medo pela Geografia
Notes théoriques pour l'étude de la peur par la géographie
Theoretical notes for the study of fear by geography

H A B E M D

Résumés
Português Français
O medo é um sentimento que está na matriz da condição humana e de sua capacidade de
produzir o espaço. Ele pode ser visto como um dos fios que tramam a vida no cotidiano das
cidades, podendo ser considerado um fenômeno que atravessa as relações materiais e imateriais,
objetivas e subjetivas. O medo é tratado neste artigo incorporado à estrutura citadina na condição
de medo do crime. Objetiva-se, neste artigo, refletir sobre a dimensão espacial do medo,
utilizando como categoria de análise o Território a partir do seu movimento de des-re-
territorialização. Nessa perspectiva, esse sentimento carrega consigo uma dimensão espacial
intrínseca: ser um dos condicionantes responsáveis pelas práticas espaciais na cidade,
interferindo na (des)organização, na (re)produção e na (trans)formação da paisagem. A discussão
se pauta em uma perspectiva teórica que destaca contribuições geográficas para a análise deste
fenômeno.

La peur est un sentiment qui réside dans la matrice de la condition humaine et de sa capacité à
produire l'espace. On peut considérer la peur comme l’un des fils qui tissent la vie quotidienne en
ville. Elle peut être considérée comme un phénomène qui traverse des relations matérielles,
immatérielles, objectives et subjectives. Dans cet article, la peur est mise en rapport avec la
criminalité et dans sa relation à la structure même de la ville. Le but de cet article est de réfléchir
sur la dimension spatiale de la peur, en utilisant comme catégorie d'analyse le territoire et son
mouvement de dé-re-territorialisation. Dans cette perspective, ce sentiment comporte une
dimension spatiale intrinsèque. La peur apparaît comme un déterminant des pratiques spatiales
dans la ville. Elle interfère avec la (dés)organisation, la production et la (trans)formation du
paysage. La discussion est basée sur une perspective théorique qui souligne les contributions de
la géographie à l'analyse de ce phénomène.

Entrées d’index
Index de mots-clés : peur, territoire, dé-re-territorialisation.
Index by keywords : fear, territory, de-re-territorialization

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Index géographique : Natal


Índice de palavras-chaves : medo, território, des-re-territorialização

Texte intégral

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1 Fear is a feeling that lies in the matrix of the human condition and its capacity to
produce space. It can be seen as one of the threads that plot life in the everyday of cities,
being able to be considered a phenomenon that crosses material, immaterial, objective
and subjective relations. Fear is treated in this article as something incorporated into
the city structure in the fear of crime condition. The aim of this article is to reflect on
the spatial dimension of fear, using as a category of analysis the territory from its
movement of de-re-territorialization. In this perspective, this feeling carries with it an
intrinsic spatial dimension: being one of the determinants responsible for the spatial
practices in the city, interfering in the (dis)organization, in the (re)production and in
the (trans)formation of the landscape. The discussion is based on a theoretical
perspective that highlights geographic contributions to the analysis of this
phenomenon.
2 O que nos move no mundo? Associado a essa pergunta, podemos acrescentar: quais
sentimentos nos fazem moventes? Esses questionamentos, que perpassam gerações e
que, certamente, contêm um vasto número de respostas, estão enredados em
inquietações antropogeográficas, das quais destacamos a condição humana de sair e de
permanecer no espaço matizada pelo sentimento do medo. O espaço construído tendo
como fio condutor o medo se revela um emaranhado de possibilidades que
(re)condicionam valores, enraizamentos, desenraizamentos, trajetórias, encontros,
desencontros, pondo em contato humanos, coisas, sentimentos e afetos. Dentro da
miríade de medos que constituem essa trama, destacamos um: o medo do crime. Este,
encontra no meio urbano as condições favoráveis de se propagar e condicionar
múltiplas práticas, considerando a capilaridade das ações que o envolve.
3 O medo do crime é pensado (e sentido) como um afeto capaz de influenciar o ser
humano nas diferentes esferas da sua vida. Nesse sentido, ele se apresenta como um
risco iminente que se metamorfoseia em uma multiplicidade de ações e tem perpassado
variadas camadas discursivas. A Geografia, desde a primeira década do século XXI, tem
ampliado a discussão a respeito da interferência desse sentimento na dinâmica urbana,
ressaltando a capacidade de influenciar os indivíduos em sua condição de ser-estar na
cidade, que diz respeito, entre outras coisas, ao ir e vir, ao lazer, ao trabalho, à
fragmentação dos espaços públicos e privados.
4 Nessa narrativa geográfica do medo, a paisagem vai sendo vista como uma impressão
de múltiplas trajetórias que contém passagens e evitamentos, apropriações e recusas,
permitindo ao geógrafo perceber na (des)organização do espaço citadino a constituição
de territórios formatados em processos de des-re-territorialização. Dentro deste debate
mais recente, quais suportes (teóricos/metodológicos) a geografia tem a nos oferecer
para que possamos compreender a complexidade do fenômeno do medo do crime em
sua dimensão espacial e suas repercussões na vida urbana cotidiana?
5 É na profusão deste debate mais recente que destacamos como objetivo central deste
artigo discutir o fenômeno do medo do crime e seus movimentos de des-re-
territorialização mediante determinadas repercussões na organização do espaço
urbano. Para tanto, consideramos o território enquanto categoria de análise capaz de
descortinar a dimensão espacial intrínseca a este fenômeno e tomamos como campo

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empírico o bairro de Candelária, situado na cidade de Natal, capital do estado do Rio


Grande do Norte, Brasil (conforme representado na imagem 1). Na trama entre empiria
e teoria que fornecemos possibilidades para a reflexão sobre o medo a partir da
perspectiva geográfica.

Figura 1- Mapa de localização do bairro de Candelária, Natal-RN, Brasil.

Fonte: Hiram Bayer, 2017.


6 Candelária é um bairro da cidade de Natal localizado na Região Administrativa Sul.
Ele tem uma população estimada de25.034 habitantes, com renda média de 4,35
salários mínimos, maior que a dos bairros de sua respectiva região administrativa
(3,45) e da cidade como um todo (1,78)1. Tomamos esse bairro como campo de estudo,
uma espécie de “holograma” em que pudemos enxergar, na organização interna/local,
aspectos da dimensão geral que afeta a cidade de Natal, quando se trata de entender o
medo a partir dos atos criminosos. Não é mais novidade que essa cidade alçou nos
últimos dez anos patamares elevados nas estatísticas da violência que assola o país
como um todo. Em 2013, adquiriu a alcunha de “novo polo da violência no Brasil” em
razão do aumento de homicídios em mais de 200% no período de dez anos
(WAISELFISZ, 2013).
7 O presente artigo é produto direto de pesquisa realizada sobre o fenômeno do medo
do crime em Candelária durante o período de 2014 a 2016 e que culminou com a
dissertação intitulada Pelos Caminhos de Um Labirinto: reflexões sobre as
territorializações do medo no bairro de Candelária, Natal-RN (BAYER, 2016)2, mas
também da ampliação de algumas reflexões teóricas a respeito da dimensão espacial do
medo relacionada a seus movimentos de territorialização.
8 No que diz respeito à metodologia, estivemos ancorados em estratégias qualitativas e
de inspiração fenomenológica. Nesse sentido, destacamos as idas sistemáticas ao
bairro, no qual pudemos traçar nossas próprias trajetórias e, caminhando, encontrar a
trajetória dos sujeitos que nos interessavam para a pesquisa. Privilegiamos as conversas
abertas, sem roteiro bem definido (mas não sem intencionalidade definida), como
moradores, transeuntes e comerciantes do bairro. Nesse quesito, a fenomenologia se
apresentou como uma orientação importante ao privilegiar descrição/relatos, sem
pretender explicar de modo reduzido a experiência imediata, e buscando acompanhar
as percepções, os atos e as experiências dos outros, e buscando lições subjetivadas que
nos orientaram, de certo modo, em nosso campo. Destas andanças, surgiu a
necessidade de analisar a paisagem com que nos deparávamos, sobretudo, nos
elementos que revelaria o fenômeno do medo do crime. Nesse sentido, a câmera
fotográfica se fez um instrumento indispensável. Do aparente da paisagem e do
descortinado pelos relatos dos sujeitos com quem conversamos, emergem as sínteses

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que aparecem neste artigo. Soma-se a estes procedimentos mais específicos outros que
de forma secundária na presente reflexão (vinculados à pesquisa geral), como a análise
de dados estatísticos de crimes em Natal e Candelária, intervenção em redes sociais
digitais (principalmente, o Facebook) e a produção de representações gráficas e
cartográficas3.
9 Para além desta seção introdutória e conclusiva, dividimos este artigo em outras três.
A primeira, delimita nossa concepção de medo a partir, sobretudo, da obra de Bauman
(2008) e o destaque à dimensão espacial do medo do crime com as contribuições de Yi-
Fu Tuan (2005; 2013), principalmente. Na segunda, abordamos a proposição teórica de
se trabalhar o medo a partir do território enquanto categoria de análise, considerando
as contribuições de Souza (1995; 2013) e Haesbaert (2014). Na terceira, destaca-se os
movimentos de des-re-territorialização do medo, com base nas reflexões de Haesbaert
(2004; 2014) e Deleuze e Guattari (2010).

A dimensão espacial do medo


10 Vimos na parte introdutória que o medo tem sido pensado como um elemento
protagonista das relações sociais. Quando mencionamos a palavra “medo” parece que
estamos a evocar algo dado, que todos conhecem o significado e que não precisamos de
maiores esforços para explicá-lo. Ledo engano. Quando se fala em medo um leque vasto
de definições e tipologias se abre. Medo de viajar de avião, de cachorro, do escuro...
Passam-se os séculos e novos medos surgem ou ganham força - como na Idade Média,
onde o medo das bruxas e do diabo eram aqueles que marcavam a sociedade europeia
(DELUMEAU, 2009). Assim, cada sociedade, a cada tempo, é permeada por tipos de
medo que permanecem, desaparecem ou se ressignificam de acordo com o contexto
espacial e temporal.
11 Entretanto, por mais que o medo se altere, ele sempre carrega consigo um
componente imutável: a incerteza. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “medo é
o nome que damos à nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser
feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la
estiver além do nosso alcance” (BAUMAN, 2008, p. 8). Ele emerge, portanto, da
incapacidade do ser humano de prever, com margem de erro zero, o futuro.
12 Para Bauman (2008), o medo é um sentimento conhecido por toda criatura viva, mas
que no ser humano se desenvolve de forma derivada, capaz de se auto reciclar e se
desenvolver a partir de experiências diretas e indiretas. Conforme apontado por
Guinard (2015), o medo evolui de forma diferente no tempo, espaço e corpos, ou seja,
não há uma generalização absoluta, mas sim múltipla que depende de mudanças
contextuais no lugar (tempo e espaço) e nos indivíduos (classe social, idade, etnia,
gênero). Estas condições alterariam a composição complexa deste sentimento,
composto por sentimento de insegurança e vulnerabilidade (BAUMAN, 2008). Assim, a
depender das condições espaciais, temporais e corporais, haverá uma organização
distinta entre sentir-se inseguro e estar vulnerável a um determinado perigo,
pulverizando o sentir medo e tornando-o uma emoção essencialmente relacional.
13 O medo é um sentimento/fenômeno que media a relação do homem com o mundo a
sua volta. Desta mediação emerge um espaço significado pela experiência, o qual Yi-Fu
Tuan (2012) chamou de topofóbico: basicamente, um lugar que denota aversão,
repulsa. Ele contrapôs este espaço aos topofílicos que seriam, por sua vez, lugares
atrativos, de afetividade, que desenvolvem um sentimento de pertencimento.
14 Dentre as referências topofóbicas e topofílicas que se desenham espacialmente,
podemos destacar a referência espacial urbana. A sua “malha” é a mesma para todos,
mas a atribuição de significados se expande ou se retrai a partir das percepções e das
experiências que cada citadino tem ao percorrer ou deixar de trilhar suas múltiplas
trajetórias. Um dos rebatimentos espaciais mais evidentes dentro desta dinâmica é,
certamente, a mudança de trajetória e a opção de uso de determinados espaços tendo
como critério a segurança/insegurança que apresentam. Trajetos tidos como inseguros

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são evitados, bem como aqueles espaços (geralmente públicos, mas não apenas) que
oferecem algum tipo de perigo ou são vistos como ameaçadores.
15 A cidade enquanto cenário experiencial do e para o medo tende cada vez mais a se
tornar hegemônica (BECK, 2011; REBOTIER, 2010) e, nesse contexto, mostrar-se
bastante rica para criação de espacialidades variadas. A forma da cidade também se
molda a partir do medo. Se na Antiguidade os muros a rodeavam, oferecendo segurança
a todos, hoje cada um possui seu muro particular. Estes muros tornam-se cada vez
maiores e mais aparelhados com equipamentos de segurança de todo tipo: câmeras de
vigilância, cercas elétricas, arames. Vê-se também a proliferação dos “condomínios
fechados”, verticais ou horizontais, que, em boa parte, se valem do discurso da
insegurança e do medo que advém dele. Este “emuralhamento da vida social” (GOMES,
2010) reflete tanto na forma como no conteúdo das cidades e dos processos que nelas
ocorrem.
16 Dentre toda a miríade de medos que podemos ressaltar, o medo do crime tem se
constituído um dos mais proeminentes na contemporaneidade. Ele está associado aos
perigos que são projetados sobre a vida e a propriedade e aparece de forma latente em
contextos urbanos atuais, em que a insegurança emerge como marca indelével a
estruturar os cenários citadinos. O discurso da insegurança, por exemplo, é produzido
por incorporadoras que encontram nele uma das oportunidades de alavancar as vendas
de terrenos e outros tipos de imóveis; pelo governo, que o coloca como ponto
indispensável na formulação de sua agenda de políticas públicas; por empresas de
segurança privada que, tal como as incorporadoras, encontram nele um ramo bastante
rentável. Esse mesmo conteúdo discursivo é apropriado por “citadinos” ávidos por
serviços que incitem a sensação de bem-estar na cidade, longe dos seus desafios e
problemas.
17 Isso porque, quando tratamos do medo do crime, estamos nos referindo também às
possibilidades gestadas para o seu controle. Contrapõe-se ao conteúdo urbano deste
medo do crime a necessidade da produção de segurança. A segurança plena é uma
utopia, na medida em que o medo advém da impossibilidade de antever um
acontecimento futuro. Se (ainda) somos incapazes de tal previsão de forma plena,
então, jamais nos sentiremos plenamente seguros. É no seio desta incapacidade que
crescem ações cada vez mais contundentes de alteração na forma de organização e
vivência espacial.
18 É diante desta dimensão espacial do medo, enquanto condicionante da forma de ser-
estar dos indivíduos no mundo, em seu contato com outros indivíduos e com os espaços
imediatos da vida cotidiana, que é possível realizar uma análise geográfica deste
fenômeno, levando em consideração o aporte teórico-metodológico desta ciência. Nesse
sentido, propomos uma abordagem que possui o território como uma categoria de
análise, capaz de matizar algumas reflexões sobre o medo e sua dinâmica espacial.

O território como categoria para a


análise do medo
19 Para alguns a consideração do território como categoria de análise pode soar
estranha. Isto porque a compreensão e delimitação do que vem a ser (e não ser) uma
categoria ou um conceito no âmbito da ciência geográfica ainda é bastante difusa.
Sendo assim, corroboramos com Rogério Haesbaert (HAESBAERT, 2014) para quem
um conceito pode ser considerado como uma “categoria de análise”. As categorias
seriam, portanto, conceitos mais gerais e amplos (dentro de uma perspectiva kantiana).
Nesse contexto, o autor irá fazer uma diferenciação do conceito de território enquanto
categoria da prática, categoria normativa e categoria de análise. Considerá-lo enquanto
esta última o associa ao trato acadêmico/intelectual para compreender uma fração da
realidade tendo o território como mediador. Assumimos aqui, como foco principal do
nosso trabalho, o território como categoria de análise, sem que desprezemos, com isso,
a importância destas outras abordagens.

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20 Para situar a compreensão acerca do território, assumimos um questionamento


realizado por Marcelo Lopes de Souza (1995): “quem domina, governa ou influencia e
como domina, governa ou influencia esse espaço?”. A pergunta apresenta os elementos
que estão inseridos no território e que o definem. Dominar e influenciar revelam uma
dimensão espacial que é recortada por relações de poder. O território, portanto, é um
espaço delimitado por e a partir destas relações de poder. Há de se destacar que estas
relações de poder, ao nosso ver e corroborando com Haesbaert (2004; 2014), não
devem ser concebidas, quando falamos de uma dinâmica territorial, em sentido estrito
ou limitante. Antes, estas relações de poder emergem de um contexto ampliado em que
se associam dimensões materiais e imateriais, ou seja, tanto no âmbito de uma
dominância funcional (processo de dominação) como de dominância simbólica
(processos de apropriação).
21 Como apontam os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, um conceito não é
solitário, antes liga-se a outros conceitos em um plano de imanência que se altera
permanentemente (DELEUZE; GUATARI, 2010). A concepção de território, tendo o
poder como elemento central, foi profundamente ressignificado na medida em que a
própria concepção de poder foi ampliada, sobretudo a partir dos trabalhos de Michel
Foucault (1979)4. Superou-se sua noção como monopólio do Estado para um
entendimento de sua microfísica, em que ele é exercido de forma horizontal, não
hierarquizante, a partir de diferentes pontos de uma rede. Ao ampliar a noção de poder,
ampliou-se, também, a noção de território. É no seio dessa ampliação e nos valendo
dela que propomos uma alteração naquele questionamento inicial realizado por
Marcelo Lopes de Souza, de forma que nossa pergunta central dentro desse debate
seria: quem domina, se apropria ou influencia quem ou o quê no espaço, e como?
22 Diante das inúmeras respostas que poderíamos dar a esse questionamento,
destacamos o medo como um elemento capaz de dominar, se apropriar e influenciar
indivíduos dentro de um contexto social e cultural no qual a insegurança – e, mais
profundamente, sua sensação – se faz presente de forma latente. Esse “jogo” de
dominação, influência e apropriação cria um campo de força espacializado
(RAFFESTIN, 1993) entre medo e indivíduo, matizados em relações de poder materiais
e imateriais, simbólicas e concretas. Este campo de força emerge da busca do homem
em eliminar ou mitigar o medo sentido. De forma didática, é como se houvesse um
embate ininterrupto entre medo e indivíduo cujo objetivo é a dominação de um sobre o
outro. Este campo de força é bastante complexo e acaba por engendrar uma gama de
relações socioespaciais – entre indivíduos e entre eles e o espaço. É dentro deste campo
de força que identificamos a emergência de duas territorializações específicas, que
designamos como “territorializações do medo”.
23 O primeiro movimento de territorialização do medo ocorre no momento de seu trinfo
sobre o sujeito projetando-se sobre o espaço do corpo. Como destaca Guinard (2015, p.
14), “(...) la peur a en effet des traductions corporelles; elle modifie les pratiques, les
déplacements ou bien encore les interactions des citadins comme des chercheurs”. O
medo emerge como uma emoção (assim como as demais) que mediatizam as relações
dos sujeitos com seus espaços imediatos de vivência cotidiana e entre eles e outros
sujeitos, condicionando as maneiras de se portar e se relacionar com/no espaço. É
importante ressaltar que não estamos falando de uma dimensão patológica do medo
que, no caso, expressaria enfermidades que afligiriam o corpo (como a paralisia,
tremores, desmaios), mas sim de uma performatividade que se realiza espacialmente,
modificando trajetos na cidade, influenciado no uso de espaços públicos e privados,
alterando paisagens, dentre outros.
24 Neste sentido, o corpo emerge como uma primeira escala para a análise geográfica
(SOUZA, 2013), sobretudo, porque não há como desvinculá-lo da própria dimensão do
vivido, sendo ele mesmo um corpo vivido que se encontra em permanente contato com
o mundo e com outros corpos, constituindo-se em síntese da própria existência. Como
afirma Guattari (1992, p. 153), “a abordagem fenomenológica do espaço e do corpo
vivido mostra-nos seu caráter de inseparabilidade”. Este mundo (ou espaço, para
ficarmos com uma noção mais próximas a nós, geógrafos), visto por muitos como
repleto de perigos, é fonte inesgotável de acontecimentos capazes de acionar o medo.
Os sujeitos afetados pelo medo, em contrapartida, buscarão formas de arrefecer este
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sentir, atuando sobre o que julgam ser as causas para a insegurança, buscando diminuir
sua vulnerabilidade frente aos possíveis perigos. Uma parte destas ações são,
iminentemente, espaciais, e corroboram para significativas alterações de suas formas e
conteúdos. Este “embate” entre medo e sujeito, não raro com a sobreposição do
primeiro sobre o segundo, ainda que parcialmente, denota o movimento de
territorialização (ou seja, de dominação, apropriação ou influência) do medo sobre o
espaço do corpo.
25 O segundo movimento de territorialização do medo advém, justamente, de sua
mediação sobre as ações dos sujeitos que buscam a mitigação deste sentir. Chamamos
estas ações de “práticas espaciais de evitamento”: práticas sociais que possuem uma
dinâmica espacial central (SOUZA, 2013), em que o foco é evitar o contato com um
possível perigo, mitigando (e não resolvendo) o medo sentido. Aparentes, pois se
materializam sobre o espaço de forma mais visível, estas práticas se subdividem em
duas dinâmicas5.
26 A primeira dinâmica vincula-se ao aumento do controle e vigilância sobre
determinados territórios através da incorporação de uma vasta gama de parafernálias
tecnológicas securitárias que, de certa forma, auxiliam em tarefas que os corpos
territorializados pelo medo são incapazes de realizar. A câmera de vigilância funciona
multiplicando seus olhos e ampliando sua memória ao gravar imagens do movimento
dentro e fora de seu espaço; o vigilante noturno se torna a atenção que se perde durante
a noite de sono; o alarme, de forma indireta, torna audível o inaudível e, ainda por
cima, avisa seguranças particulares que estão distantes. Este processo amplo de
securização urbana é resultado de ações vinculadas a uma dimensão de dominância
funcional do espaço, onde se objetiva o controle físico do acesso, da entrada e saída,
criando verdadeiros territórios fortificados (SOUZA, 2008).
27 Resultado do aumento de uma chamada “arquitetura defensiva”, que passa a compor
cada vez mais a paisagem de inúmeras cidades, estas formas espaciais denotam um
processo interessante. Em Candelária, assim como em outras localidades, a securização
urbana leva a uma ressignificação do antigo (porém, ainda presente) modelo panóptico,
idealizado por Jeremy Bentham e largamente trabalhado por Foucault. Podemos falar,
atualmente, em um panóptico espraiado, que se atomiza em cada residência e em cada
estabelecimento comercial. Ambos partem da premissa do “ver sem ser visto”, mas o
antigo é um dispositivo para se exercer poder e manter o controle “de dentro”,
enquanto que o mais contemporâneo objetiva manter o controle “de fora”. Assim,
câmeras de vigilância, cercas elétricas, seguranças privados, tentam manter o perigo ao
máximo de distância possível, evitando que se aproxime de corpos e propriedades a
serem preservados. Representamos esta ressignificação na figura 2.

Figura 2 - Ressignificação do modelo Panóptico

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Fonte: Hiram Bayer, 2017.


28 A imagem contém dois elementos comuns a uma parte específica do bairro de
Candelária (área de expansão mais recente), onde reside uma população de maior
poder aquisitivo. É importante destacar que as estratégias de segurança e vigilância ou,
de forma mais geral, de combate à insegurança, variam de acordo com diversos fatores,
dentre eles aspectos econômicos, já que demandam custos elevados para manutenção.
Em uma das imagens, apresenta-se uma residência com muros altos, cerca elétrica,
câmera de vigilância e uma guarita para agentes privados de segurança; na outra,
cabines que estão espalhadas pelas ruas e que servem de abrigo para, também,
vigilantes privados, remunerados mensalmente pelos moradores da região.
29 Outra dinâmica que ocorre no âmbito deste processo de securização recai sobre os
pequenos estabelecimentos comerciais comuns na área mais central do bairro, de
formação mais antiga. Boa parte deles são gradeados, impedindo que os clientes
adentrem em seu espaço, deixando-os do lado de fora para que peçam os produtos que
desejam, conforme representado na figura 2. O relato de uma comerciante que mantem
seu estabelecimento sobre estes moldes, reflete as motivações e as insuficiências que
envolvem esta forma de fortificação do espaço, dizendo: “Meu filho, eu trabalho aqui
com essas grades porque a insegurança tá muito grande aqui nesse bairro. Quando
não tinha essa grade a gente não podia nem sair daqui da frente, tinha que ficar o
tempo todo aqui. Já aconteceu de eu ter que ir ali dentro olhar o almoço e quando
voltar tá faltando coisa aqui (...) Uns moleques entram e levam (...) Mas você pensa
que resolve de muita coisa essa grade? Nadinha...Já entraram de noite aqui por essa
brecha [aponta para uma pequena ‘janela’ na grade] e levaram um monte de coisas”.

Figura 3- Estabelecimento comercial no bairro de Candelária, Natal-RN

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Fonte: Hiram Bayer, 2016.


30 Ainda no âmbito das práticas espaciais de evitamento, ocorrem uma outra dinâmica
que expressa os movimentos de territorialização do medo. Ela consiste, propriamente,
em um distanciamento dos sujeitos, evitando o trânsito ou a permanência, a
determinados espaços. Para tanto, realiza-se, pelos sujeitos afetados pelo medo, uma
categorização de lugares da cidade como inseguros, a partir de critérios variados. Em
Candelária, foram recorrentes a indicação de três fatores principais para se
categorização: condições infraestruturais, como deficiência na iluminação pública e
existência de vazios urbanos (geralmente, terrenos desocupados para especulação
imobiliária); áreas em que há uma elevada incidência de crimes, sobretudo, furtos e
roubos; e, locais onde há a presença de indivíduos ou grupos que são, a partir da
produção de estereótipos, percebidos como perigosos, geralmente moradores em
situação de rua, carroceiros6 e usuários de drogas ilícitas7.
31 O espaço sempre é territorializado por algo, ou seja, sempre haverá relações de poder
projetadas espacialmente onde quer que seja. Quando um destes critérios (ou algum
outro não citado pelos moradores entrevistados) impede que sujeitos frequentem
determinados lugares ou os evite, mudando seu trajeto diário, por exemplo, há a
territorialização do medo sobre estes espaços, exercendo um certo domínio simbólico
que impede, subjetivamente, a livre circulação e uso dos espaços públicos,
principalmente. Para compreender melhor este processo, imaginemos a malha urbana
das cidades como um imenso labirinto, cheio de entradas, saídas, possibilidade e, claro,
muros. Esta territorialização do medo tornaria ainda mais complexo este labirinto,
adicionando aos seus caminhos novos muros, alterando simbolicamente sua
configuração, passando a condicionar de forma efetiva as trajetórias espaciais daqueles
que, porventura, são afetados pelo medo a partir dos critérios citados. Para representar
esta dinâmica na figura 4, onde realizamos um recorte no bairro de Candelária,
localizamos espacialmente estes critérios e nos perguntamos “se um sujeito que
considere evitável lugares com estas características partir do ponto A ao ponto B, qual
trajetória possível faria?”

Figura 4 - Muros simbólicos em parte do bairro de Candelária, Natal-RN

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Fonte: Hiram Bayer, 2016


32 Os dois movimentos de territorialização expostos anteriormente, engendrados por
relações de poder em sentido amplo, são responsáveis pela construção de territórios
onde o medo é um elemento central a sua constituição. Estes territórios são
multiescalares e acompanham o contexto socioespacial em que estão inseridos, ou seja,
obedecem a uma lógica relacional que lhes é intrínseca. Ademais, estes territórios são,
cada um ao seu modo e a depender das relações que lhes produzem, mais ou menos
duradouros ou efêmeros. A dinâmica territorial que envolve o fenômeno do medo,
portanto, não pode ser vista como uma construção dada, permanente, mas, sim, que
incorre em oscilações constantes, em um devir que o torna ainda mais complexa. Como
expressão deste movimento constante de destruição e reconstrução territorial, podemos
falar em movimentos de des-re-territorialização do medo.

A des-re-territorialização do medo

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33 Vimos que o medo, mesmo sendo imanente à própria condição humana, não obedece
a uma linearidade absoluta. Antes, o medo é sentido em intensidades variadas que
dependem do grau de interação entre o sentimento de insegurança e a vulnerabilidade.
No campo de forças medo-sujeito, que foi descrito anteriormente, não ocorre o triunfo
total de um sobre o outro. O que há, na verdade, são níveis distintos de apropriação e
controle. Nem o sujeito é totalmente tomado pelo medo (exceto, talvez, em casos
patológicos que não vêm ao caso), nem o medo é totalmente aniquilado por ele. Esta
oscilação é resultado e resultante do permanente movimento de des-re-territorialização
do medo.
34 Partimos de uma compreensão da territorialização e re-territorialização como
processo que se dá de forma concomitante: não há desterritorialização que não
engendre uma nova territorialização, ou seja, uma reterritorialização (HAESBAERT;
BRUCE, 2002). Como aponta Rogério Haesbaert (2004), existe um “mito da
desterritorialização”, que decorre da má compreensão sobre o chamado “fim dos
territórios”, a partir do entendimento da rarefação da dimensão espacial na
contemporaneidade (supressão do espaço pelo tempo). Esta desterritorialização, na
verdade, não leva ao propalado “fim do território”, mas sim à construção de outros
territórios.
35 A noção de desterritorialização tem como principais pensadores os filósofos franceses
Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010; 2011). Esse conceito, acompanhado também da
noção de território e territorialização, aparecem em diversas obras dos autores. Rogério
Haesbaert e Glauco Bruce (2002), em artigo supracitado, realizaram um estudo que
visou o enriquecimento do debate geográfico a partir da conceituação de
territorialização e desterritorialização dos filósofos franceses, alertando para a
abrangência que essas noções ganham no pensamento de ambos. Para eles, “o território
é um agenciamento. Os agenciamentos extrapolam o espaço geográfico, por esse motivo
o conceito de território dos autores é extremamente amplo, pois, como tudo pode ser
agenciado, tudo pode ser também desterritorializado e reterritorializado”
(HAESBAERT; BRUCE, 2002). Essa concepção vai desde o território concebido a partir
da concepção naturalista (o território dos animais) até uma dimensão psicológica, do
próprio pensamento. O fragmento do texto a seguir expressa a dimensão dessa ideia.
Nele podemos ler que,

com mais forte razão, o hominídeo, desde seu registro de nascimento, ele
desterritorializa sua pata anterior, ele a arranca da terra para fazer dela uma mão,
e a reterritorializa sobre galhos e utensílios. Um bastão, por sua vez, é um galho
desterritorializado. É necessário ver como cada um, em toda idade, nas menores
provações, procura um território para si, suporta ou carrega desterritorializações
(DELEUZE; GUATTARI, 2010)

36 Ao falarmos da desterritorialização do medo, nos referimos ao seu movimento


contínuo de destruição e reconstrução de territórios, tanto de ordem psicológica (o
medo como sentimento que passa a “habitar” o indivíduo), como em sua posterior
exterioridade (que são geradas a partir das sensações de vulnerabilidade e insegurança)
que alicerça práticas espaciais múltiplas. Buscaremos, a seguir, demonstrar algumas
dinâmicas em que se pode constatar este movimento de des-re-territorialização do
medo, acionando escalas e processos distintos do fenômeno.
37 Em primeiro lugar, é importante ser destacado que o sentir medo não se vincula
estritamente ao estar situado em um contexto de insegurança real, ou seja, em áreas em
que a violência é constante, onde a ocorrência de crimes é elevada. Isso quer dizer que o
medo sentido não depende de um cenário permanente de perigos latentes. Em
determinadas cidades, por exemplo, há áreas mais perigosas que outras, bairros onde
ocorrem crimes com mais frequência que em outros. Entretanto, mesmo residindo em
um destes lugares “mais tranquilos”, é comum que se sinta medo. Esse fato tem relação
com uma característica do medo que já destacamos anteriormente que é o de ser auto
reciclado, ou seja, ele advém de situações vivenciadas de forma direta ou indireta. Nesse
sentido, a informação cada vez mais rápida e abrangente de crimes ocorridos em
diferentes localidades acaba por criar uma perspectiva de generalização de uma
situação que pode ser particular e localizada. Mesmo assim, há de se considerar que a

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26/07/2018 Notas teóricas para o estudo do medo pela Geografia

inserção do indivíduo em um contexto de ocorrência recorrente de crimes violentos


torna a possibilidade de sentir medo maior na medida em que cresce o seu sentimento
de insegurança e de sua vulnerabilidade.
38 “Não existe mais lugar seguro”. Esta frase, repetida diversas vezes por aqueles com
quem conversamos durante a pesquisa, expressa a capacidade do medo torna-se
generalizado. No caso de Candelária, esta expressão denota a conexão direta entre a
realidade local, do bairro, com a condição mais ampla da própria cidade. Neste sentido,
são muitas as lembranças que vem à tona nos relatos que se referem a um período em
que a cidade não era tão violenta e, ao mesmo tempo, em que o bairro era percebido
como um espaço seguro. Assim, alterações contextuais que podem ocorrer tanto em um
longo período – como foi o caso de Natal –, quanto em um instante específico – algum
episódio pontual de violência, algum crime de maior envergadura ou apelo popular,
como nos eventos decorrentes da crise penitenciária no Rio Grande do Norte que
acabou por repercutir no cotidiano dos natalenses – faz com que o medo se
territorialize nos sujeitos. Consequentemente, mudanças significativas nestes
contextos, gerais ou específicos, corroboram para a amenização do medo sentido.
39 Também podemos citar as melhorias infraestruturais que atuam diretamente sobre
as características que categorizam determinados espaços como perigosos. Iluminação
pública precária e vazios urbanos (“terrenos baldios”) mal cuidados, como vimos, são
percebidos como atributos capazes de “camuflar” determinados perigos. Um assaltante,
por exemplo, poderá muito bem se esconder na escuridão ou por trás da vegetação do
“terreno baldio”, posicionando-se de modo que vê o alvo sem ser visto. Essa
“possibilidade da invisibilidade” que o espaço favorece emerge mesmo como um
“trunfo” (RAFFESTIN, 1993) para os criminosos, tornando a apropriação/dominação
de áreas com estas características um elemento quase que indispensável à sua prática.
Em contrapartida, a melhoria das condições infraestruturais deste espaço pode ser um
fator de amenização do medo sentido, fornecendo um aumento no sentimento de
segurança, e mesmo da segurança real. O relato de um morador de Candelária com
quem conversamos representa bem este fato. Ao falar sobre a mobilização das pessoas
de sua rua para melhorar a iluminação da área, assim pontuou: “os vizinhos se
juntaram (...)para comprar essas luzes, porque antes era tipo aquelas luzes amarelas,
que eu não visualizava nada. Foi uma coisa privada, particular, se juntou e rateou o
dinheiro e pronto, basicamente foi isso. Antes, aqui, era uma luz zero (...) você
chegava com medo”.
40 Também, as condições dos espaços públicos emergem, cada vez mais, como
preocupação de suma importância dentro das políticas públicas de segurança. Alguns
gestores públicos, por exemplo, tendem a minimizar a militarização da questão urbana
como saída ao problema da insegurança e focam em ações de prevenção ao crime.
Experiências de “animação” dos espaços públicos se mostram bem-sucedidas. Praças
tidas como inseguras mudam de status quando recebem algum evento que as tornam,
pelo menos momentaneamente, mais movimentadas. Em Candelária, destacamos
eventos como o EcoPraça e a Feira Grátis da Gratidão que ocorreram algumas vezes
na chamada Praça dos Eucaliptos, um dos espaços públicos do bairro mais citados
como “evitável” ao sintetizar algumas condições que destacamos anteriormente, como a
escuridão, a má preservação, frequência de usuários de drogas, dentre outros. Durante
estes eventos, o que se viu foi uma completa mudança de status onde a praça, antes
perigosa, tornou-se atrativa, amplamente frequentada e, consequentemente, menos
insegura que habitualmente. Neste sentido, havia uma desterritorialização parcial do
medo sobre aquele espaço, territorializado pelos sujeitos a partir de outras práticas
(lazer, atividades lúdicas, grupos de discussão). Contudo, com o término destas
atividades, o medo se reterritorializa sobre este espaço, até que outras práticas
semelhantes voltem a acontecer. Na figura 5, podemos visualizar como fica a praça em
dias de eventos como estes.

Figura 5 - Praça dos Eucaliptos, no bairro de Candelária, Natal-RN, durante o evento


"Feira Grátis da Gratidão"

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Fonte: Hiram Bayer, 2016.


41 Há um outro movimento de des-re-territorialização do medo que se mostra mais
complexo que os demais. Esse movimento se dá a partir de uma projeção do medo
sobre outros corpos que são vistos como perigosos iminentes. Temos, por exemplo,
aqueles indivíduos que carregam em sua corporeidade marcas que atribuímos à
pobreza. Em nossa sociedade extremamente desigual, a pobreza é vista muitas vezes
como um indício de perigo. Essa leitura corporal que muitos realizam e que tem como
interpretação a insegurança está matizada, na maioria das vezes, a preconceitos sociais
que se perpetuam no tempo e que resultam na estigmatização de indivíduos ou grupos
inteiros. Em Candelária, como vimos, muitos moradores atribuíam a condição de
insegurança à presença de moradores em situação de rua, a pedintes e a carroceiros,
que transitavam por determinados espaços do bairro.
42 Para aqueles que os julgam como perigosos iminentes, o deslocamento destes sujeitos
pelo espaço coloca em movimento a própria insegurança. O medo, corporificado via
estereótipo, territorializa o espaço com a simples presença destes sujeitos em uma
determinada localidade, para logo se desterritorializar com sua partida e se
reterritorializar na chegada a outra localidade. Neste movimento permanente,
encontra-se a maior volatilidade na construção dos territórios do medo, pois são
construídos e destruídos no ato da locomoção, ou seja, incorre em um devir
ininterrupto.
43 Destacamos somente os indivíduos que de certa forma carregam consigo as marcas
da pobreza, mas poderíamos identificar, dentro da mesma lógica, outras “figuras”.
Talvez a mais curiosa delas seja a do motociclista. Em várias cidades, muitos assaltos
são realizados por indivíduos que utilizam como meio de transporte a motocicleta, em
razão da velocidade, agilidade, entre outros motivos. Sua mobilidade pela cidade,
associada a características do ambiente por onde passam, também provoca esta fluidez
de construção e destruição de territórios do medo. Seu tráfego por uma rua “deserta” e
mal iluminada pode gerar apreensão em alguém que esteja nela, por exemplo. Em
ambos os casos, o medo pode ser acionado com a passagem destes “personagens”.
44 Estas dinâmicas que trouxemos para exemplificar a des-re-territorialização do medo
foram identificadas durante o período de pesquisa no bairro de Candelária. Em um
movimento de comparação com outras realidades socioespaciais, em outros bairros de
Natal e mesmo em outras cidades, é possível encontrarmos similitudes. Assim, estes
movimentos de des-re-territorialização do medo criam um espaço fluído que é
apropriado e dominado de formas variadas, diante de processos materiais e imateriais.
Os usos e não-usos dependem, em parte, deste movimento, tornando o medo um
sentimento/fenômeno dos mais relevantes na composição das dinâmicas urbanas.

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Conclusão
45 Neste artigo abordamos o território enquanto importante e proeminente categoria
para a análise da dimensão espacial do medo do crime. Voltando-nos a realidade
empírica do bairro de Candelária, foi possível identificar e analisar alguns movimentos
de des-re-territorialização do medo, no qual vislumbramos sua condição de agente ativo
no processo permanente de destruição e reconstrução de territórios, responsáveis por
tornar ainda mais complexo seu espaço, tanto em uma dimensão material, alterando
sua paisagem, como imaterial, influenciado na própria dimensão do vivido. Neste
sentido, a geografia, através de seu escopo teórico e metodológico próprio e das
possibilidades de diálogo com outros campos do conhecimento, nos oferece caminhos
valiosos para a compreensão do fenômeno do medo do crime e suas repercussões no
espaço urbano, fazendo com que nos aproximemos mais de sua complexidade.
46 O foco sobre as dinâmicas territoriais que envolvem o medo do crime nos possibilitou
transitar por diferentes escalas, demostrando sê-lo um fenômeno, iminentemente,
multiescalar. Consequentemente, compreendemos que o próprio discurso geográfico
nos possibilita que transitemos pelas mais distintas escalas espaciais. E, assim, foi
possível refletir acerca do corpo como espaço passível de uma análise geográfica,
considerando-o enquanto primeira escala, pois é na inseparabilidade de corpo e mundo
que o espaço é construído socialmente. Defendemos, portanto, “(...) uma centralidade
maior do corpo nas geografias que fazemos, apreciando o poder, as representações e as
práticas do corpo no emaranhado das modernas espacialidades” (AZEVEDO;
PIMENTA; SARMENTO, 2009, p. 12). Neste sentido, vimos que a primeira
territorialização do medo dá-se sobre o espaço do corpo, que passa a ser influenciado
por este sentimento.
47 O medo, então, passa a mediar as ações dos sujeitos no espaço. Isso porque, estes
sujeitos passam a atuar sobre aquilo que julgam ser a causa da insegurança, dos perigos
iminentes, sejam eles reais ou imaginários. Parte destas ações repercutem diretamente
no espaço, alterando significamente sua configuração, organização e vivência.
Chamamos estas ações de práticas espaciais de evitamento. Em Candelária, elas são
responsáveis pela construção de territórios de dominância funcional, que objetivam
maior controle da entrada e saída, representados por residências e estabelecimentos
comerciais fortificados através da incorporação de equipamentos de segurança e
vigilância. Também atuam na construção de territórios de dominância simbólica, ao
erguer novos muros (subjetivos) a partir da categorização de espaços e sujeitos que
passam a ser percebidos como inseguros e, portanto, evitáveis. A dinamicidade deste
processo advém da volatilidade com que estes territórios são constantemente
destruídos e reconstruídos, apontando para os movimentos de des-re-territorialização
do medo.
48 É importante destacarmos que, mesmo focando no bairro de Candelária, não
podemos dizer que o que tratamos aqui seja algo particular a esta localidade. Isso
porque, cada qual a seu modo, outras reflexões apontam para processos semelhantes. O
que pretendemos, aqui, é apontar um caminho válido para se analisar o fenômeno do
medo do crime a partir de uma perspectiva geográfica, como foco em sua dimensão
territorial. Este caminho, naturalmente, poderá servir de guia para outras reflexões, em
outras localidades, sobre outros contextos espaciais e temporais. Para isso, faz-se
necessário mediações e adaptações e, sobretudo, a compreensão de que esta análise da
conta de uma pequena parcela da complexidade que envolve o fenômeno.
49 Por fim, fecharemos este artigo, paradoxalmente, com uma abertura nos é dada por
Yi-Fu Tuan ao dizer que “o estudo do medo, por conseguinte, não está limitado ao
estudo do retraimento e entrincheiramento; pelo menos implicitamente, ele também
procura compreender o crescimento, a coragem e a aventura” (TUAN, 2005).
Busquemos então, em oportunidade futura, destacar outras territorializações do medo,
capazes de ressignificar o uso de espaços públicos, recompor laços de solidariedade,
criar novas formas de sociabilidade, enfim...produzir outras lógicas.

https://journals.openedition.org/confins/13588 14/16
26/07/2018 Notas teóricas para o estudo do medo pela Geografia

Bibliographie
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Notes
1 De acordo com o Anuário Estatístico de Natal-RN, 2016.
2 Orientada pela prof. Dra. Eugênia Maria Dantas (UFRN).
3 Cf. Bayer (2014) para descrição detalhada dos procedimentos metodológicos da pesquisa.
4 A obra completa de Michel Foucault contribui para a construção desta noção mais ampla do
poder, lançando-o a escalas macro e micro sociais. Destacamos Microfísica do Poder (1979) por
compilar esta contribuição.
5 Em trabalho anterior (BAYER, 2016), pensamos estas duas subdivisões como territorializações
autônomas. Decidimos, aqui, englobá-las dentro das “práticas espaciais de evitamento”.
6 Pessoas que utilizam a carroça – carro puxado por um cavalo, normalmente – como meio de
transporte e/ou trabalho.

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26/07/2018 Notas teóricas para o estudo do medo pela Geografia
7 Chamamos este grupo de “indesejáveis”, no sentido de que, para muitos moradores
entrevistados, sujeitos com estas características não deveriam estar no bairro. Reforçamos o
caráter, muitas vezes, preconceituoso, motivado pela produção de estereótipos que leva,
consequentemente, à estigmatização destes grupos.

Table des illustrations


Titre Figura 1- Mapa de localização do bairro de Candelária, Natal-RN, Brasil.
Crédits Fonte: Hiram Bayer, 2017.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/13588/img-1.jpg
Fichier image/jpeg, 548k
Titre Figura 2 - Ressignificação do modelo Panóptico
Crédits Fonte: Hiram Bayer, 2017.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/13588/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 88k
Titre Figura 3- Estabelecimento comercial no bairro de Candelária, Natal-RN
Crédits Fonte: Hiram Bayer, 2016.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/13588/img-3.jpg
Fichier image/jpeg, 688k
Titre Figura 4 - Muros simbólicos em parte do bairro de Candelária, Natal-RN
Crédits Fonte: Hiram Bayer, 2016
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/13588/img-4.jpg
Fichier image/jpeg, 152k
Titre Figura 5 - Praça dos Eucaliptos, no bairro de Candelária, Natal-RN,
durante o evento "Feira Grátis da Gratidão"
Crédits Fonte: Hiram Bayer, 2016.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/13588/img-5.jpg
Fichier image/jpeg, 387k

Pour citer cet article


Référence électronique
Hiram de Aquino Bayer et Eugênia Maria Dantas, « Notas teóricas para o estudo do medo pela
Geografia », Confins [En ligne], 36 | 2018, mis en ligne le 30 juin 2018, consulté le 25 juillet
2018. URL : http://journals.openedition.org/confins/13588 ; DOI : 10.4000/confins.13588

Auteurs
Hiram de Aquino Bayer
Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, hirambayer@gmail.com.

Eugênia Maria Dantas


Professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
eugeniadantas@yahoo.com.br.

Droits d’auteur

Confins – Revue franco-brésilienne de géographie est mis à disposition selon les termes de la
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