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da diversificada, porosa e transmigrante matéria dos ra e a veemência do segundo. No índio guarani, José
mitos indígenas. Foi quando, ainda nos anos de agi- Alencar fizera a tipificação étnica do brasileiro; no
tação cultural desse movimento, Mário de Andrade, gaúcho, o escritor procede a uma tipificação regio-
pondo a mão na massa de relatos etnográficos co- nal da nação. Ambas moldam as duas faces de um
lhidos por Koch Grunberg, escreveu a suíte ou rap- mesmo mito do homem de natureza franca e apai-
sódia mítica denominada Macunaíma. Era o “passo xonada, que se agita impetuoso. “A esse turbilhão de
para trás” na direção do primitivo, completada pelo sentimento era indispensável uma amplitude de co-
antropófago do outro Andrade, Oswald, como par- ração, imensa como a savana” (ALENCAR, 1958b).
te da busca, empreendida em 22, da identidade do O mesmo se passa com o sertanejo, “destemido va-
povo brasileiro. queiro”, identificado ao seu meio. O personagem do
Essa preocupação de identidade nacional já romance respectivo é, como típico, tão mítico quan-
tinha, porém, despontado no romântico anseio de to o gaúcho. Tem, no entanto, a obstinação da ter-
descoberta do homem, de seu passado histórico e de ra castigada pela seca. O sertanejo Arnaldo é ágil e
seu meio regional, que ativou a imaginação do nosso delgado em seu talhe; os olhos, “rasgados e vividos”
romancista José de Alencar, nordestino do Ceará, se- externam um coração indomável. Antes de Euclides
nador à época do Segundo Império (Dom Pedro II, da Cunha (1963), em Os sertões, Alencar proclamava,
da família dos Bragança, neto de Dom João VI), ao com outras palavras, que o sertanejo era um forte. E
mesmo tempo indianista e regionalista. Entre nós, essa mítica fortaleza se denunciava no plano físico e
ele confirma a tese de Joseph Campbell ([19--]), se- no plano moral. Estamos, pois, diante de um acon-
gundo a qual, “a ficção do séc. XIX já se transforma- tecimento de duplo sentido. Se a literatura e a poe-
ra no romance mitológico”. José de Alencar (1958b) sia em particular nasceram do mito, o mito também
recriaria no índio de O Guarani o mito rousseauista pode nascer da literatura. E é o que vemos ocorrer
do bom selvagem, convertido, em matéria de sen- agora, na estreita dimensão de uma troca incorpo-
timento e fidelidade, conforme atinou Cavalcanti radora entre homem e meio, no romantismo de José
Proença, num nobre português de boa cepa, capaz Alencar.
de amar sua loura Ceci na copa de uma palmeira A singular contribuição de Machado de Assis
em movimento na correnteza do Paraíba do Sul e de (1992) a essa relação tensa, fora do indianismo e do
salvá-la dos perigos da cheia desse rio. Mas o nosso regionalismo, foi manter a oposição dos contrários
romancista ainda mitificou o homem regional: antes em Esaú e Jacó, destacando, com esse romance, para
de Euclides da Cunha conferiu existência romanesca a literatura brasileira, a força poética de um mito
ao sertanejo e antes de José Simões Lopes Neto ao bíblico. Nesse de Esaú e Jacó, a história dos irmãos
gaúcho em dois livros de títulos homônimos da dé- gêmeos, filhos de Isaac, que se anunciaram à mãe,
cada de 70, O sertanejo e O gaúcho. Rebeca, porque lutavam dentro de seu ventre, Jacó
O Gaúcho descreve, sob esse nome, aquele ca- segurando o calcanhar de Esaú, o primogênito, no
valeiro ou peão que vive no pampa, imensa planí- momento do parto, renasce, dentro da situação li-
cie das margens do Uruguai, focalizado como meio terária que provoca, com a veemência de uma pará-
natural, região única, onde impera o tufão, rei dos bola do destino humano. O destino humano é luta
ventos, sopro de sua alma e do homem que ali habi- contra o tempo, por sua vez já mitificado desde o
ta e lhe dá expressão. “Cada região da terra tem uma Renascimento como um velho de longas barbas.
alma sua, raio criador que lhe imprime cunho de ori- Mas esse segundo nascimento literário daquele mito
ginalidade” (ALENCAR, 1958a). Essa alma está na bíblico lhe dá nova relevância – social, moral e polí-
árvore, na ema, no touro e no corcel, mas reside, so- tica – a partir de sua aliança com a predição da sorte
bretudo no gaúcho, que tem a velocidade da primei- dos gêmeos de Machado de Assis, Pedro e Paulo,
remoldados nas figuras de Esaú e Jacob, por um orá- Zorrilha, Fausto, de Goethe, para citarmos alguns,
culo local, a pitonisa cabocla do morro do Castelo, que alcançam altitudes míticas. E com isso desco-
que antevê, a despeito da luta pré-natal entre eles, briu as suas próprias raízes no mito, tratado com
a grandiosa vida de ambos. “Todos os oráculos têm muita liberalidade, com fez Goethe, misturando, no
o falar dobrado, mas entendem-se” (ASSIS, 1992). primeiro e sobretudo no segundo Fausto, entidades
A briga com o tempo, nesse romance também mi- pagãs e cristãs. Essa mistura já se nota no segundo
tificado, sempre tem um desfecho trágico, mas a de prólogo – o prólogo no Céu – do primeiro Fausto,
nossos Pedro e Paulo é infletida pela ironia macha- no qual o Diabo (Mefistófeles) recebe de Deus, de-
diana para o ritmo de comédia: a luta entre eles é pois de provocá-lo a incumbência de tentar o perso-
ideológica, política e amorosa. Um é liberal, outro, nagem, que está debaixo da proteção divina. Ora,
monarquista, um opta pelo Império, outro pela Re- essa cena, tem um precedente bíblico inequívoco: a
pública; mas ambos amam a mesma mulher, Flora, história sapiencial de Jó.
que a prática do virtuosismo musical, como pianista,
– ‘Iahveh então perguntou a Satanás: Donde vens’?
colocava acima de tais conflitos nessa história reme-
– ‘Venho de dar uma volta pela terra, andando
morativa contada por Conselheiro Ayres, futuro au-
a esmo, respondeu Satanás’. – - ‘Iahveh disse a
tor do Memorial machadiano. Satanás’:
Mas, afinal, que é o mito senão uma história
– ‘Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há ou-
contada ou um conto narrado? E o que é esse conto tro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a
independentemente da literatura? Não se tem como Deus e se afasta do mal...’ ‘Pois bem tudo o que ele
óbvia ou fácil a definição de conto em literatura. Daí possui está em teu poder, mas não estendas a mão
dizerem muitos que conto é o que seu autor diz que contra ele’ (GOETHE, 1981, p. 457).
é conto. O mito seria um conto ao qual não se pode Lê-se em Goethe (1981, p. 457): – ‘Senhor: Tu
atribuir um autor determinado ou que teria inúme- conheces Fausto? Mefistófeles: Doutor? O Senhor:
ros autores sem identidade pessoal; mesmo quando Meu servidor... Mefistófeles: Vós o perdereis – o que
registrado num determinado momento, ele vem de apostais? Se me derdes a permissão de conduzi-lo
muito longe, não procede de alguém e parece por- mansamente ao meu caminho’.
vir, conforme já se admitiu, de um difuso colegia- Entre nós, a descoberta das raízes míticas da li-
do ou da própria coletividade. Quando Homero, teratura operou-se mais adiante do Romantismo, no
em seus dois poemas, Ilíada e Odisséia, se refere aos momento modernista já referido, sobretudo depois
deuses helênicos, que chamamos de mitológicos, ele da primeira grande recolha de mitos etnográficos de
estaria sendo porta-voz dessa comunidade. Contava que resultou, conforme anteriormente ressaltamos,
umas tantas histórias que lhe tinham sido oralmente a elaboração de Macunaíma por Mário de Andrade,
transmitidas – em geral sobre as origens, fosse a dos um livro inclassificável como suíte mítica no rastro
deuses, a do mundo e a do homem. Daí ser o mito desse “herói sem nenhum caráter” – paradoxalmen-
considerado ao mesmo tempo a história das origens te representativo do caráter brasileiro, e que se tor-
e a história original ou a mãe dos contos, situada nou, como nos informa Câmara Cascudo (1984, p.
extraliterariamente e de maneira tardia como texto 812), “um misto de astúcia, maldade instintiva e na-
escrito numa tradição religiosa determinada (Bíblia, tural, de alegria zombeteira e feliz”. Mas em Macu-
Alcorão, Veda); houve as tradições grega, latina, naíma, tantos são os mitos como os falares; trata-se
germânica e também medieval e moderna. também de uma rapsódia lingüística.
Modernamente, a literatura também se des- Macunaíma se aproxima, mediante contraste,
cobriu mitogênica: formou personagens – Hamlet, de Grande sertão: veredas. Esse romance tem a apa-
Rei Lear e Macbeth, de Shakespeare, Don Juan de rência de uma rapsódia lingüística, mas é na verdade
uma só linguagem, a de Riobaldo, personagem nar- ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é
rador, que redimensiona o Sertão, e o personagem viver mesmo” (ROSA, 1986).
não é um sertanejo misturando falares nordestinos Outra peregrinatio da alma é o que vamos en-
ou falares da região dos Gerais. É o “homem hu- contrar no fascinante romance de Clarice Lispector,
mano”, com uma fala sua, poética, em luta com o A paixão segundo G.H. como uma via mística que se
mundo e seus poderes a que vai dando existência, estende de coisa a coisa, dos objetos com seus nomes
pois que o Sertão é antes uma súmula do mundo e ao ser inominado, Deus, por vezes chamado de for-
não uma circunscrição regional. Os poderes contra ma neutra – o it – e que, portanto, vai da alma com
os quais luta o homem, que se debate entre Deus e o suas paixões ao nada afetivo que a dissolve. Aqui a
Diabo, querendo atender o primeiro e desconfiando narradora absorve a personagem impulsionada pelo
que pactuou com o segundo (já se comparou Riobal- desejo de narrar o inenarrável, de dizer o indizível.
do com o Fausto), são os poderes do mito.
A linguagem é o meu esforço humano. Por destino
Vários autores, e entre eles Consuelo Alberga- tenho que ir buscar e por destino volto de mãos
ria e Francis Uteza já os descreverem recorrendo aos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só
diversos e homólogos flancos do ocultismo, da alqui- me poderá ser dado através do fracasso de minha
mia à maçonaria, as situações romanescas enquadra- linguagem. Só quando falha a construção, é que
obtenho o que ela não conseguiu (LISPECTOR,
das em figuras simbólicas de uma sabedoria secreta, 1998b).
esotérica: reencarnações, ciclos cármicos, repetição
da antiga aliança bíblica, advento do grande tempo, Nesse transbordante relato de A Paixão segundo
hirogamias do céu e da terra. Embora o mundo de G. H., o ser é a coisa sem nome; em Os desastres de
G. S. V., onde transitam jagunços, tropeiros, boia- Sofia, de A legião estrangeira, o inominado é a morte
deiros, andarilhos, animais de toda sorte, pássaros, sob a imagem do lobo do homem.
bois e cavalos, seja o mundo pleno das coisas, da na- Nesse conto, Os desastres de Sofia, Clarice Lispec-
tureza, é verdade que ele não está num espaço car- tor faz uma estupenda sobreposição do disfarce do
tesiano nem acontece num tempo estipulado como lobo em vovó na história do chapeuzinho vermelho
medida do movimento físico. Seria melhor descrito com a experiência infantil da menina descobrindo-
se o entrevíssemos como uma conjunção simultânea se escritora:
do Céu e da Terra, dos Mortais e dos Imortais, por De chofre explicava-se porque eu nascera com mão
efeito da palavra poética reveladora – o Quadripar- dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para
tite ou a Quadrindade de Heidegger, associando que te servem essas unhas longas? Para te arranhar
mito e poesia. de morte e para arrancar os teus espinhos mortais,
Tudo se passa a céu aberto em Grande sertão: ve- responde o lobo do homem. Para que te serve essa
cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a
redas para personagens andejos, sempre em viagem, fim de que eu não te doa mais, meu amor, já que
galgando escalas do sertão, que está em toda parte. tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a
Também em Corpo de baile, grupo de seis novelas sa- vida me foi dada (LISPECTOR, 1998a).
ído no mesmo ano de Grande sertão: veredas e ainda
no precursor Sagarana, editado na década de 40, to-
REFERÊNCIAS
dos viajam e tudo é viagem. “Viver é viajável” e, por
isso, viver é perigoso. Grande sertão: veredas é relação ALENCAR, José de. O gaúcho. In: ______. Obra completa.
de viagem como travessia do sertão. Só que a tra- Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1958. v. 3.
vessia é uma peregrinatio da alma no claro-escuro das
veredas. “Viver – não é – é muito perigoso. Porque ______. O guarani. In: ______. Obra completa. Rio de
Janeiro: J. Aguilar, 1958. v. 2.