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II
Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
Ética enquanto Filosofia Moral: Ética, uma disciplina da filosofia; Racionalidade e
interesse; Radicalizar a separação entre moral e ética; O moral e a sua fundamentação
As Éticas Aplicadas: O nascimento das éticas aplicadas; Características e distinção
face à filosofia e à moral; Casuística ou hermenêutica crítica; Éticas aplicadas e
democracia; Ética aplicada enquanto direito social
Adela Cortina e a defesa de uma Ética Empresarial: A ética empresarial no seio de
uma ética cívica; A ética empresarial no seio de uma ética das organizações; Razões
para o surgimento da ética empresarial; Uma nova empresa e uma ética diferente (a
superação do taylorismo e a defesa da responsabilidade); Uma cultura de diálogo
Sumário
No âmbito da presente tese é crucial questionarmo-nos sobre qual o significado de ética, sobre o seu
objecto, sobre o seu método, sobre o seu objectivo. Distintas visões sobre a matéria a tratar, sobre a
abordagem ao tema e sobre o que se pretende alcançar com uma reflexão ética – é bem verdade que as há.
No entanto, a questão impõe-se de forma premente: Que ética se pretende no campo político e no campo
económico?
A questão adensa-se quando tentamos estabelecer fronteiras aceitáveis para a ética. Nomeadamente,
poderemos esquecer que a ética é, ao fim e ao cabo, filosofia moral? E que significa isso de ser filosofia
moral? Será restringir demasiado o seu âmbito, negar a possibilidade de outros saberes tratarem da ética?
Por outro lado, podemos correr o risco de efectuar exactamente o inverso, impondo um imperialismo1 da
ética sobre outros saberes que, podendo com ela relacionar-se, seguem ainda assim lógicas distintas.
Neste capítulo pretende-se responder a estas questões. Consideramo-las vitais, pois só o seu
esclarecimento poderá permitir a justificação da necessidade de uma ética empresarial que
reconhecidamente se situa numa área cinzenta., na intersecção de múltiplas disciplinas. No entanto, muito
do que aqui se enunciar será aprofundado no próximo capítulo: ao passo que aqui colocamos algumas
questões-chave, as respostas serão apresentadas no terceiro capítulo.
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
2
A prescritividade ou não da ética é uma das questões mais relevantes, dado que na linguagem
quotidiana as palavras “ética” e “moral” tendem a ser utilizadas de forma indiscriminada. No entanto,
ao passo que a moral é, essa sim, prescritiva, a ética deve ser normativa.
3
In Ética Mínima, pág. 24.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
Desta forma, a questão ética para o gestor público não é saber se deve estabelecer uma
taxa superior sobre determinado serviço para angariar mais fundos ou se deve tornar o
acesso a esse serviço mais barato. A questão ética para o cidadão ou para o gestor
também não é saber se deve rejeitar práticas como o nepotismo ou a corrupção. O que
de facto existe é uma valoração moral sobre aqueles estejam envolvidos em práticas
como as agora referidas. A questão ética será então explicar por que motivo não
devemos aceitar dinheiro em troca de um favorecimento, por que motivo não devemos
nomear alguém por favor pessoal ou político. O que justifica esta rejeição, este juízo
moral?
Se a moral nos impele a perguntar Como devo agir?, a filosofia moral interroga-nos
Por que devo agir? Ao fazê-lo, mostra quão inseparável é a moralidade da
racionalidade.
1.2 – Racionalidade e Interesse
Podemos dizer que a ética assenta em dois pilares: por um lado, a confiança na missão
da filosofia e por outro o interesse moral, ou seja, o interesse pelos outros. Se o homem
é um ser social, ele é necessariamente ético. Ele questiona-se sobre os seus actos, julga
os actos dos outros homens e procura coerência, unidades lógicas para a conduta própria
e alheia.
Coerência é em boa verdade uma palavra-chave para a ética. Ela recorda-nos o
significado etimológico do termo: ethos, carácter, conjunto de elementos que definem
cada ser humano e o tornam psiquicamente único – como uma espécie de ADN do
espírito. A eticidade dependerá da capacidade de cada um forjar para si um carácter que,
para lá de único, é coerente. E que, para lá de ser coerente, o seja de forma racional.
Questionemo-nos, pois, sobre qual a racionalidade que aqui está em causa. Bastar-
nos-á para vivermos, enquanto seres humanos, um racionalismo técnico-científico?
Poderemos de forma absoluta estabelecer uma razão neutra? Cortina nega-o: “a razão
não é neutral, […] em cada âmbito do saber [ela é] movida por um interesse objectivo”.4
O interesse moral é um interesse pela humanidade (ou seja, um interesse pela
condição humana). Podemos questionar se realmente todas as morais se baseiam neste
interesse pela condição humana, muito em particular actualmente. Numa época em que
abundam os “realismos” (forma como os pessimistas menos francos costumam
designar-se), poderemos dizer que a técnica não esgota a razão? A resposta só pode ser
uma: os valores, a cultura, escapam necessariamente ao consequencialismo e à
4
Op.cit., pág. 33.
35
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
5
Conforme Adela Cortina, op.cit., pág. 49.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
se presta apenas no caso de existir um Deus [...] De facto, os juramentos prestados com
sinceridade e de modo reflectido não podem ter sido prestados em qualquer outro
sentido.”8 Ou seja, Kant defende que um juramento não necessita da utilização da
divindade pois que ele ou é sincero, ou não é. Mais à frente, esclarece isto mesmo: “Mas
este dever para com Deus (em bom rigor, para com a ideia que nós concebemos de um
tal Ser) é dever do homem para consigo próprio, quer dizer, não é um dever objectivo,
consistente na obrigação de prestar a outro certos serviço, mas tão somente um dever
subjectivo, o dever de fortalecer o móbil moral na nossa própria razão legisladora.”9
Assim, a crença numa (ou em várias) divindade(s) bem como a obediência a uma
religião, não sendo de forma alguma contraditórias, também não são compulsórias para
que uma acção seja conforme a princípios morais nem tampouco pode a ética necessitar
da religião como suporte a um nível teórico. Não se põe assim em causa, por exemplo, o
papel que as associações de base religiosa têm tido no desenvolvimento da ética
empresarial.
O que pode suceder e sucede de facto, é que a religião estará inserida nas ou, talvez
seja mais correcto dizer, ela pode facilitar o desenvolvimento das Noções estéticas
preliminares da receptividade do espírito aos conceitos de dever em geral10 podendo
fornecer uma base (que é sempre subjectiva) para o sentimento moral e para o
desenvolvimento da consciência moral e do respeito. A outra noção estética referida por
Kant (a filantropia) gostaríamos, devido à relevância que a palavra tem para a ética
empresarial, e que resulta da crítica de Hayek em 1970, de a desenvolver em separado
quando realizarmos a clarificação conceptual.
1.4 – O Moral e a sua fundamentação
O problema nuclear da ética será por conseguinte a fundamentação dos juízos morais.
Estes não respeitam à contingência, mas à liberdade de agir de diferentes formas perante
uma mesma situação. E por que motivo é então necessário fundamentar a moral? A
resposta, encontramo-la na imperatividade de o homem continuar sendo um ser racional
(consequentemente, na necessidade de não renunciar à condição humana).
A resposta à questão “por que devo?” não pode ser “porque sim.” O dogmatismo não
satisfaz a ética (conquanto satisfaça e constitua até o elemento principal de certas
doutrinas morais e de todas as doutrinas religiosas). A fundamentação dos juízos morais
8
Immanuel Kant in A Metafísica dos Costumes, “A doutrina da religião, como doutrina dos deveres
para com Deus, encontra-se para além dos limites da filosofia moral pura”, pág.450.
9
Ibid., pág. 451.
10
Ibid., pág. 311.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
não tem de ser a própria razão (que pode ser em si mesma a soma de muitos outros
factores) mas a sua forma deve ser racional.
Desta forma, qualquer percurso da ética tem de partir do seu próprio questionamento.
Ou seja, se a fundamentação da moral é o que a ética (enquanto filosofia moral) deve
fazer, então deve emergir a questão de saber o que é e como deve ser sustentada a ética.
É nesta medida que Cortina define três etapas: a primeira, será determinar se a
dimensão moral é irredutível a outras áreas ou saberes; a segunda, elaborar as categorias
necessárias para conceber as características que criam a sua especificidade; a terceira,
tornar estas características inteligíveis, dando uma razão para a sua existência11.
No que concerne à primeira etapa, vimos já que, exceptuando a filosofia moral, os
restantes saberes se podem ocupar da descrição dos comportamentos e dos costumes, da
comparação entre comportamentos e costumes, da análise da linguagem usada no
discurso moral – mas nenhum se ocupa da sua realidade intrínseca. Quanto à segunda
etapa, a autora define as condições de uso do termo “moral”: os juízos morais são
prescrições; referem-se a entes livres, ou seja, conscientes dos seus actos e por eles
responsabilizáveis; o moral constitui uma instância última de conduta (tal como a
religião); ao contrário dos imperativos dogmáticos, tem razões. No entanto, a
racionalidade está longe de ser exclusivo da moral; próprios das prescrições morais
serão antes a sua não dedutibilidade a partir de observações empíricas (não é a
frequência com que determinado acto ocorre na sociedade que lhe dá validade do ponto
de vista ético), a sua capacidade para a universalização (possibilidade de se tornar
norma para todos os seres igualmente racionais), a sua incondicionalidade e por fim a
auto-obrigação.
Ultrapassadas as duas primeiras etapas, resta a questão da fundamentação, à qual
poderá ser dada à partida uma de três respostas: não é possível fundamentar
racionalmente juízos morais, eles são definitivamente irracionais (resposta inserida no
seio de um certo positivismo ou cientificismo12); não é possível efectuar uma
fundamentação última acerca de nada, posição sustentada pelo racionalismo crítico; se
aceitarmos que a justificação da moral é necessária, teremos de fazer uma opção, decidir
11
“Instigar o fundamento da moral é, como dissemos, tarefa da ética, que deve portanto cobrir as
seguintes etapas: 1. Determinar se 'o moral' é uma dimensão humana irredutível às restantes por
possuir características específicas. 2. Elaborar as categorias necessárias para conceber semelhantes
características. 3. Tornar Inteligíveis estas características propondo a razão para que as haja. O
cumprimento desta tarefa tem por resultado a resposta à pergunta 'é razoável que haja moral?'.”Ética
Mínima, págs. 81 e 82.
12
“Se se pode unicamente considerar “saber objectivo” ao que tem diante de si o objecto, não há outra
objectividade a não ser a do saber científico, pelo que cientificismo significará, – nas palavras de
Habermas – “a fé da ciência em si mesma […]”. Ética Mínima, pág. 90.
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
que tipo de fundamentação lhe queremos dar, dado que o termo não é unívoco.
Aqui, chama a autora atenção para dois factos inegáveis. Por um lado, temos a
persistência do moral (ou seja, esta é uma dimensão que acompanha a humanidade). Por
outro lado, temos a heterogeneidade de propostas morais. Assim sendo, conclui, deve a
ética procurar saber em que consiste cada proposta moral e até que ponto será realmente
universalizável. Esta conclusão e este propósito encaminhar-nos-ão para o ponto
seguinte, respeitante à opção de Adela Cortina no que concerne às grandes correntes no
seio da filosofia moral.
O facto de perante cada questão que nos coloquemos nos surgir uma multiplicidade de
possíveis respostas constitui um drama para o homem… e a razão de ser da ética. É a
tragédia quotidiana da decisão, do estabelecimento de prioridades, da realização de
escolhas que dá à ética a sua relevância. É a heterogeneidade de temas, perguntas e
respostas que conduz ao questionamento filosófico-moral. Ora a existência, por um
lado, de juízos morais; e a existência por outro lado de uma pluralidade de discursos
morais, conduz a nossa autora a realizar uma opção quanto ao tema ético, ou seja,
quanto àquilo que está em causa quando analisamos a validade de diferentes enunciados
morais e quando confrontamos imperativos universais com questões concretas. É neste
choque entre a fundamentação pura e premência de respostas que a ética dialógica (não
apenas uma ética do diálogo, ainda que o inclua) pode tornar-se não apenas
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
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Adela Cortina, Razón pública y éticas aplicadas, Editorial Tecnos, Madrid, 2003, pág. 13.
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
dos cidadãos sobre os quais recai o impacto de dada actividade (enquanto consumidores
ou enquanto habitantes de determinada região afectada por uma actividade económica,
por exemplo) está a evoluir de meros espectadores para partes activas. Por fim, os
filósofos morais contribuem dando o enquadramento teórico, trazendo o saber
acumulado em torno das diversas tradições filosóficas. Daremos maior atenção a esta
questão no ponto seguinte.
2.2 – Características e distinção face à filosofia e à moral
Para que se compreenda qual o sentido e qual o objectivo da expressão ética aplicada
é preciso compreender qual a diferença entre ela e a ética ou a moral tradicionais. Quais
serão então as suas peculiaridades? Adela Cortina refere quatro. As duas primeiras estão
relacionadas com a distinção entre as éticas aplicadas e as éticas de máximos (ou as
morais), ao passo que as duas últimas as apartam da filosofia moral.
Ao contrário do que sucede com as distintas morais, a ética aplicada em qualquer das
suas ramificações não se confunde com a assunção de uma qualquer “verdade” moral.
Para além disso, nem mesmo a filosofia moral lhe pode dar tais certezas. Na verdade, o
que esta lhe dá não são absolutos e respostas, mas antes método e perguntas. É esse de
resto um dos papéis que mais frequentemente os filósofos têm nestes processos: a
colocação do problema. A procura da solução é uma busca conjunta.
Concomitantemente e em consequência do que agora se afirmou, a ética aplicada não
se centra nos ideais de felicidade de cada indivíduo mas na definição de critérios que
permitam a vivência comum de múltiplos projectos de felicidade distintos e por vezes
conflituosos. O seu objectivo é então o forjar de uma ética cívica, de uma ética de
mínimos. Não é a felicidade, é a justiça.
Entre a ética enquanto filosofia moral e a ética aplicada há também distinções a fazer.
Desde logo, esta última não emerge da obra isolada de filósofos, sendo antes elaborada
em redes que normalmente implicam equipas multidisciplinares. Paralelamente, e
desenvolveremos esta ideia mais à frente, existe uma questão problemática para o
estatuto da ética aplicada. Nomeadamente, nem sempre é clara a distinção entre uma
norma jurídica e o resultado do trabalho destas equipas, dado que por vezes ele tem
implicações que vão muito além do mundo académico ou da mera sugestão. O
acompanhamento de recomendações e pareceres éticos de força coactiva denuncia uma
aproximação ao campo jurídico que não gostaríamos de deixar de desenvolver.
Por fim, as éticas aplicadas não se baseiam exclusivamente numa ou noutra teoria
ética. Bem pelo contrário, à problemática do pluralismo moral soma-se então o dilema
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
do pluralismo ético, das diversas correntes que no seio da filosofia moral existem. No
entanto, a perspectiva que tem sido adoptada tem sido não só a de não ver isto como
necessariamente improdutivo, como normalmente enriquecedor. Diferentes áreas,
diferentes situações ou diferentes momentos podem exigir abordagens que partam de
diversas doutrinas. O resultado habitualmente é a simbiose entre várias correntes que se
fundem para responder a apelos concretos nascidos no seio das equipas
multidisciplinares.
2.3 – Casuística ou hermenêutica crítica
No âmbito da distinção entre ética aplicada e filosofia moral surge a questão: será a
ética aplicada uma casuística? Adela Cortina nega-o, contrapondo o conceito de ética
aplicada enquanto hermenêutica crítica. Iremos então explicitar esta questão
apresentando os dois caminhos possíveis no seio da casuística, o dedutivo (também
designado casuística 1) e o indutivo (casuística 2).
A casuística dedutiva consiste em aplicar aos casos concretos os pressupostos morais
(quaisquer pressupostos morais) que tenhamos em nossa posse. Constituída por dois
níveis, a casuística 1 parte de um primeiro momento universal, axiomático, para um
segundo momento particular em que a prudência tem em vista a resolução silogística de
questões concretas.
Adela Cortina discorda desta metodologia como sendo a mais correcta na ética
aplicada por três motivos primordiais. O primeiro tem que ver com a inadequação do
método dedutivo, que pode ser o apropriado para o saber científico, no qual premissas
dadas se desenvolvem em conclusões inevitáveis. Pelo contrário, a ética enquanto saber
prático, não teórico, deve ter um procedimento de certa forma inverso, ou seja,
indutivamente ir da pluralidade dos casos concretos com que nos deparamos para,
fazendo uso da comparação e da prudência, produzir regras genéricas.
Uma outra questão, já anteriormente referida, é o pluralismo de correntes éticas. De
facto, para a casuística dedutiva ser plenamente e coerentemente aplicada, necessitaria
ter à sua disposição uma doutrina com validade universal no que concerne às suas
directivas. Nenhuma doutrina ética pode garantir validade material universal, pelo que a
alternativa deverá ser a busca de princípios que, sendo formais, são despidos de
conteúdos. Por fim, as éticas aplicadas, pelo seu processo de formação, não se prestam à
obediência de princípios doutrinários rígidos: elas partem do concreto e buscam
fundamentação teórica, não o contrário.
A casuística indutiva poderia desta forma apresentar-se como uma melhor alternativa
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
(a autora sustenta esta ideia com a popularidade que a casuística 2 terá atingido em
alguns campos da ética aplicada, como a bioética). Dada a impossibilidade de coordenar
princípios éticos dissonantes, os especialistas optam por procurar o acordo sobre
máximas de acção que tenham sido produto das experiências de vida e que são assim
reformuladas para permitir a elaboração de metodologias de acção e decisão. Aqui já
não há certezas, trabalhando-se apenas no campo das probabilidades. Adela Cortina
reconhece as vantagens deste método, até pela prova da sua validade que constitui o seu
sucesso. Não obstante, põe em causa a sua alegada ausência de princípios éticos a
priori; simplesmente, ao invés de princípios materiais, utiliza-se um formalismo que
parte do vivido. Trataremos esta ideia no ponto dedicado à relação entre democracia
(que formata em parte a casuística 2) e as éticas aplicadas.
Estas aparecem para a autora com “a estrutura circular própria de uma hermenêutica
crítica”14 em que, partindo-se de uma ética cívica que se inspira em dois princípios, um
directamente kantiano (cada pessoa como fim em si mesmo) e outro extraído das éticas
dialógicas (cada pessoa como interlocutor válido), e tendo-se em conta as características
específicas de cada área, permitir que a partir das tradicionais correntes filosóficas se
extraiam os princípios que melhor se apliquem.
A ética do discurso acaba por ser o elemento mediador entre indivíduos, entre áreas e
também entre as correntes de filosofia moral, dado que “As dicotomias éticas clássicas
– éticas teleológicas/deontológicas, da convicção/ da responsabilidade,
procedimentalistas/ substancialistas – deverão ser superadas num terceiro que constitua
a verdade de ambas.”15 Esta afirmação tem como consequência a definição de cinco
pontos de referência ou momentos da ética aplicada: a análise dos objectivos
perseguidos por cada actividade e que lhe dão sentido; a busca dos melhores
mecanismos para a sua prossecução; o marco jurídico-político; as condições de uma
ética cívica e as exigências de uma ética crítica.
As éticas aplicadas têm pois um primeiro momento a que Adela Cortina chama
aristotélico na medida em que os seus fins últimos não são definidos no âmbito do
desenvolvimento das éticas aplicadas, pré-existindo-lhes. O seu objectivo deve ser por
conseguinte buscar os valores e princípios que permitem alcançar os fins. O momento
seguinte, o estratégico, resulta disto mesmo: é necessário encontrar os meios próprios
de cada actividade para atingir os seus fins. Tal implica estabelecer metas intermédias
14
Ibid., págs. 30 e 31.
15
Ibid., pág. 31. Sobre estas dicotomias nos debruçaremos em “Encruzilhadas de uma Ética
Empresarial”.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
que, não sendo fins em si próprios, são ainda assim objectivos que permitem ir
construindo o caminho rumo aos fins.
Ter em conta o enquadramento jurídico, político e social é outra das necessidades a
satisfazer. É certo, contudo, que a legalidade (jurídica) não é nem pode abarcar a
moralidade inteira. Não só o campo jurídico não tem capacidade para absorver todo o
campo das morais, como a própria moralidade implica superar mera coerção jurídico-
política. A solução é assumir a imperatividade de uma normatividade ética, o que abre
caminho para um momento deontológico ou kantiano, em que o sujeito moral e o sujeito
jurídico-político podem encontrar um terreno de mediação (aquilo a que, como veremos
depois, Gurvitch designa por “direito social”) Aqui temos, por um lado, as orientações
ditadas pela ética cívica (os valores compartilhados pelos cidadãos em sociedades
pluralistas) e por outro, nas sociedades pluralistas (isto é, aquelas em que há não apenas
diversidade de éticas máximas, mas em que sobretudo cada indivíduo tem valor em si
mesmo e não existe necessariamente como parte de um qualquer grupo, facção ou
crença, ou seja, em que cada indivíduo é um fim em si mesmo e por si mesmo) a própria
ética cívica é submetida a um crivo crítico. É preciso pois que a todo o afectado por
uma decisão ou uma actividade seja reconhecido o estatuto de participante num
processo deliberativo baseado num diálogo racional.
Em suma, podemos afirmar que à luz do conceito de hermenêutica crítica podemos
afirmar que as éticas aplicadas não são nem se baseiam nem em puras abstracções
racionais nem em actividades guiadas apenas por interesses particulares e
momentâneos. Trata-se este de um espaço de hibridação. Entretanto, levantámos duas
questões que terão de ser respondidas de imediato, nomeadamente, a relação que a
democracia tem com as éticas aplicadas, enquanto conceito pleno de sentido(s) e que
portanto exerce sobre elas uma influência não desprezível. Outra questão é a relação
entre direito e ética, questão clássica mas sobre a qual pretendemos lançar uma
discussão parcialmente diferente da normalmente seguida e na qual, ao contrário da
relação entre ética e democracia (fundamental para a autora), Cortina é normalmente
omissa.
2.4 – Éticas aplicadas e democracia
Adela Cortina defende que para as éticas aplicadas é fundamental o conceito de
opinião pública, conceito que sendo polissémico, é fundamental para as sociedades
liberais. A sua visão a este respeito assenta na “tradição republicana liberal”16, e é
16
Ibid., pág. 37.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
19
Georges Gurvitch citado por Robert Cramer, revista Droit et Societé 4-1986, pág. 458.
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
aumentar a liberdade humana, não podemos perder de vista o papel regulador do Estado
na garantia do individualismo20. Assim, o pluralismo jurídico deverá ser visto como
força potencialmente libertadora por via da autolegislação, da capacidade de cada sector
da sociedade ser capaz de livremente se submeter a regras que respeitem pressupostos
suportados por uma ética cívica. O objectivo não pode ser um refortalecimento do
corporativismo nem a (re-)invenção de mais uma forma de exercer controlo sobre o
indivíduo.
Gurvitch afirma o Estado como apenas um grupo particular, uma forma entre outras
de expressão de solidariedade social, fundada neste caso no factor geográfico. Outras
formas no entanto existem, como sejam a solidariedade económica, religiosa, cultural
ou internacional. Pode desta forma emergir um sistema jurídico com pluralidade de
direitos e sem que necessariamente haja um elemento centralizador e soberano. Há sem
dúvida muitos elementos neste autor que podem dar um contributo valioso à reflexão e
à prática das éticas aplicadas. De facto, este conceito de direito social consegue ser
menos estatizante que algumas das abordagens que tem havido no âmbito das éticas
aplicadas e simultaneamente menos opressor para os indivíduos21. O recurso à
formalização da ética (com recurso a códigos éticos e deontológicos) e à sua
juridificação constituem não só uma submissão da ética e da capacidade auto-reguladora
a um caucionamento estatal como também são vistas positivamente por muitas
empresas como mais uma forma de exercer controlo sobre os seus empregados.22
Importa por isso fazer um enquadramento das éticas aplicadas num âmbito mais
alargado, que lhes dê um sentido e um objectivo e que por isso limite tentações que
desvirtuem o seu potencial libertador. A ética cívica de Adela Cortina é justamente uma
das formas de o conseguir.
20
Relembre-se Rosanvallon e a análise que coloca estatismo e individualismo como faces diferentes de
uma mesma realidade e o Estado moderno como uma garantia da liberdade do Indivíduo.
21
Afirma Paul Mercier em A Ética nas Empresas, pág. 36, que “A ética formalizada constitui um meio
jurídico de desresponsabilizar a empresa em caso de actuações ilegais de um seu empregado. Os
Estados Unidos procuram suprimir os comportamentos não éticos declarando-os fora de lei”.
22
Ibid., pág. 37: “No contexto americano […] O não respeito das regras é considerado como uma falta
grave susceptível de arrastar”.
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Adela Cortina, Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 109.
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há negócio que se mantenha. Esta percepção vai a par com um terceiro motivo para o
surgimento da ética empresarial, nomeadamente, a necessidade de tomar decisões de
longo alcance, a longo prazo. Tempo é aquilo que não só um bom negócio como um
bom ethos necessitam para surgirem.
Retomando em parte o início deste ponto, a empresa é uma das organizações mais
relevantes das nossas sociedades. Cada empresa é, ao fim e ao cabo, uma comunidade.
Ora, se assumirmos que existe de facto um excesso de individualismo entre nós e se
pretendermos minimizar o efeito atomizante desse individualismo, utilizar uma ética de
empresa como meio de recuperação de um certo sentido comunitário será inevitável.
Simultaneamente à necessidade de instituir culturas corporativas inclusivas dos seus
membros, as próprias empresas detêm responsabilidades sociais; da mesma maneira que
cada indivíduo tem um dever pessoal, terão as empresas responsabilidades colectivas –
para com os seus accionistas, para com os empregados, os fornecedores, os clientes ou
as comunidades nas quais se inserem.
Na senda de MacIntyre, Cortina afirma ainda que nas sociedades actuais uma das
figuras fundamentais é a do gestor (manager) como em outras épocas terão sido os
aristocratas ou os clérigos, enquanto indivíduo “dotado de iniciativa, imaginação e
capacidade inovadora” que tem objectivos claros que persegue criando os meios
adequados26. O fundamental da sua actividade é a capacidade de negociação, dado que a
negociação, por complexa que seja, será mais rentável que o conflito. Se a isto
somarmos importância das direcções na definição da natureza das empresas, surge a
questão de como produzir organizações preocupadas não com a luta pelo poder, mas
pela produção dos bens dos quais deriva a sua legitimidade. A tónica é posta então numa
cultura cooperativa e numa moral de excelência.
A cultura empresarial será também relevante na medida em que quanto menos
eticamente fundada maior será a tendência para algo que, à partida, ninguém quer
seriamente ser: herói. De facto, em empresas em que práticas como a corrupção, o
favorecimento ilícito ou o dumping ecológico sejam a regra é bem provável que alguns
dos trabalhadores se revoltem, mesmo que a custo do seu emprego. A alternativa é a
acomodação e a “desmoralização” (expressão que Cortina utiliza frequentemente para
realçar a sua potencial polissemia). Enfim, o facto de tanto interna como externamente
haver uma apreciação crítica do comportamento das empresas será a prova de que a
ética empresarial não será apenas uma moda, mas corresponderá pelo contrário a uma
26
Cf. Adela Cortina, Ética de la empresa, pág. 82.
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mas sim que sejam tomadas boas decisões. Por conseguinte, a sua tónica deve estar na
proposta e não na proibição. Esta ética positiva deve permitir reflectir melhor sobre
cada situação, tomar decisões racionalmente justificáveis e alcançar acordos. Sendo este
o ponto de partida, não significa que os códigos de conduta sejam irrelevantes. Pelo
contrário, são um elemento fundamental dado que permitem que as relações entre a
empresa e os stakeholders (partes interessadas) sejam jogos de soma superior a zero, ou
seja, a ética empresarial tem de ser capaz de gerar um modelo de relações cooperativas
que substitua o conflito.
Adela Cortina extrai de Max Weber e da sua reflexão sobre a política os conceitos de
ética de convicção e ética de responsabilidade27, aplicando-as no campo económico-
empresarial para gerar uma síntese que denomina “responsabilidade convencida”.
Concorda com Weber que uma ética exclusivamente baseada na convicção pode gerar a
intolerância; no entanto, afirma que o pragmatismo também ele radicalizado é
igualmente nefasto. A ética da responsabilidade convencida será uma ponderação entre
os fins próprios da actividade, aquilo que lhe dá sentido e entre as consequências que
resultarão de cada decisão, tido em conta o contexto. Trata-se, pois, de permitir que a
racionalidade estratégica (que permite alcançar os benefícios) seja harmonizada com a
racionalidade comunicativa (que garante que cada interveniente na actividade
empresarial seja considerado um interlocutor válido cujos direitos e deveres deve, ser
salvaguardados).
3.5 – Uma cultura de diálogo
Defendendo Adela Cortina uma ética dialógica, com inspirações em Kant, em Apel e
em Habermas e aceitando que esta opção é especialmente válida para o campo das
éticas aplicadas ao campo económico-empresarial, interessar-nos-á uma descrição breve
mas objectiva do que é a ética dialógica para a autora. A ética dialógica baseia-se na
ideia de que só estão justificadas as normas que satisfaçam o princípio de
universalização (“U”): as normas de acção são válidas quando possam ter o
reconhecimento de todos os afectados, ou seja, quando (porque satisfazem princípios
universalizáveis) as suas consequências possam realmente ser queridas por todos os
afectados por elas.
Se pretendermos resumir as grandes correntes éticas em duas perguntas, podemos
colocar as duas questões, A e B, do quadro abaixo.
27
Em particular, da obra Politik als Beruf. Versão portuguesa, A Política como Vocação, publicada em
Política e Ciência, Editorial Presença, Lisboa 1979.
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Capítulo II – Da Filosofia Moral à Ética Empresarial
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Adela Cortina, Ética Mínima, pág. 124.
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Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
um fim em si mesmo e não um mero meio. Nelas sendo notório o eco kantiano, as éticas
do diálogo argumentativo, influenciadas pela ideia marxista do conflito social
permanente introduzem uma alteração de perspectiva em relação às teorias do contrato
social. Ao passo que estas colocavam a tónica numa harmonização de interesses através
de um pacto, pretende-se agora que o âmbito moral seja a solução de conflitos através
da argumentação.
É desta forma que podemos afirmar o procedimentalismo da corrente defendida por
Cortina. A questão está em grande medida em saber quais as estruturas que permitem o
consenso racional e por que se considera este consenso como o único modo racional de
legitimar normas para a convivência, independentemente das cosmovisões de cada
grupo ou indivíduo. Não se trata de uma legitimação de uma opção pela realização de
um pacto ou pela vontade individual, mas antes pela sua racionalidade.
A legitimação das normas cívicas passa aqui por um modelo procedimental de
fundamentação em que se distingue o que é universal (ou seja, o que já é objecto de
consenso legitimado, embora podendo vir a ser alterado) e o que é universalizável (o
conteúdo do diálogo). Os consensos fácticos das éticas do diálogo mesclam moral e
política: como já vimos, convergem aqui o dever-ser e a possibilidade, configurando um
dever ser possível sempre alterável com vista à aproximação ao dever-ser.
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