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Repertório, Salvador, nº 23, p.29-36, 2014.

O LEÃO E A JOIA
UMA FÁBULA DO CORPO

Cássia Lopes1

Resumo: O trabalho fará uma análise da peça O leão Este ensaio traz uma leitura do corpo no texto
e a joia, do escritor nigeriano Wole Soyinka, tendo dramatúrgico O leão e a joia, do escritor nigeriano
como foco a seguinte indagação: como falar do corpo Wole Soyinka, africano que ganhou o prêmio No-
na dramaturgia deste autor, imerso em códigos sociais bel de Literatura, em 1986. A peça inicia-se com
africanos, e como se dá a emergência do corpo em sua
uma tomada de cena que desenha a praça do mer-
relação com o objeto. Para tanto, foi escolhida a perso-
nagem feminina, Sidi, e o balde que carrega sobre a ca-
cado, lugar de circulação de transeuntes, de passa-
beça. Também será elaborada a leitura intertextual desta gem de corpos e signos, com uma grande árvore ao
peça com a canção A força que nunca seca, de Chico Cesar centro: Odan. Este recorte espacial representa a al-
e Vanessa da Mata. deia Ilujinle, na Nigéria, onde se desenrolará a ação,
envolvendo um triângulo amoroso à africana.
Palavras-chave: Dramaturgia. Canção popular. Corpo. Na abertura da peça, surge a primeira persona-
gem a compor essa tríade amorosa: Sidi. A pintura
Abstract: The essay will analyze the play The Lion and da paisagem desponta com esta personagem femi-
the Jewel by Nigerian writer Wole Soyinka, focusing on nina, que traz um balde na cabeça. Com os ombros
the following question: how to speak about body in the nus, surge a plasticidade do corpo esbelto, iman-
dramaturgy of this author, immersed in African social
tado pelo orgulho de ser considerada a mais bela
codes, and how occurs the emergence of body in its
relationship with the object. To do so, we chose the fe-
da aldeia. Na sua travessia pela rua, Sidi passa em
male character, Sidi, and the bucket that she carries on frente à escola onde trabalha o professor Lakunle,
her head. We also aim to do an intertextual reading of de 23 anos de idade, por quem é assediada. Este é
this play with the song A força que nunca seca by Chico o segundo personagem a compor o elenco-chave
Cesar and Vanessa da Mata. do enredo dramático.
Na apresentação do jovem mestre, expõe-se não
Keywords: Dramaturgy. Song. Body. só um estilo, mas se revela um sujeito pouco inte-
grado aos valores da aldeia africana. O figurino do
personagem é delineado com um terno inglês an-
tigo, puído, embora não estivesse rasgado. Apesar
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Ensaísta, cronista, professora associada I do Instituto de de não estar suja, a roupa não havia sido passada
Letras da Universidade Federal da Bahia. Docente perma- e ainda seria pequena para ele. As calças muito lar-
nente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cul-
gas, com bocas de 60 centímetros, escondem tênis
tura e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFBA. brancos. Toda a descrição detalhada deste corpo
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coberto por suas vestes vai construindo a caracte- a cabeça não representam somente uma força de
rização por contraste entre este jovem e Sidi: ela se atração sobre o professor, mas revelam diferentes
mostra dona de seus passos, em um lugar onde se acordos sociais. Ao que Lakunle tenta reagir, tra-
reconhece senhora de sua beleza e de gestos mais zendo outro suporte discursivo, assente numa vi-
soltos. são falocrática de forte apelo estético: “Mas isso
Ao vê-la passar, o professor deixa a sala de aula, é razão para estragar o seu pescoço? Sidi, isso não
onde leciona, e, em um gesto cortês, pede para le- é coisa de mulher, só as aranhas é que carregam
var o balde que ela sustenta sobre a cabeça. Des- coisas do jeito que você faz” (SOYINKA, 2012, p.
sa maneira inicia-se o diálogo que traz o choque 20). Sidi, no entanto, responde com o corpo: mos-
de signos culturais e uma forma de reflexão so- tra ainda mais o belo dorso: “Mas o pescoço é meu,
bre o corpo em cena. Com laivos de comicidade, não é da sua aranha” (SOYINKA, 2012, p. 20).
defrontamo-nos com o professor desajeitado, que Na peça O leão e a joia, a cena do balde na cabeça
deixa a água cair do balde e fica todo molhado. Ao poderia traduzir apenas mais um retrato estereo-
repreendê-lo pelo acontecido, Sidi ouve a fábula típico das mulheres africanas, no entanto, ganha
que marca a comicidade da cena: “Foi isso que a destaque exatamente por toda a ambiguidade que
sopeira disse para o fogo: Não tem vergonha? Na carrega. Presume, a priori, a racionalidade de que
sua idade, lambendo o meu fundinho? Mas sentiu as culturas podem ser apreendidas e comparadas
cócegas. Mesmo reclamando” (SOYINKA, 2012, em face do peso relativo dos sentidos por meio dos
p. 19). Através do chiste, o professor sugere que ela quais se percebe o mundo. É como se Sidi realçasse
reclama, mas gosta de ser assediada e cortejada. a função escópica que faria da sua bela imagem a
Desde o seu início, esta cena já possibilita uma força de atração sobre o jovem professor. Desse
reflexão sobre o corpo engajado a seu meio social. modo, tanto Lakunle quanto Sidi reconhecem a
Para o professor, carregar o balde traria consequ- mesma forma do vaso sobre a cabeça, mas com dis-
ências negativas para o pescoço da bela Sidi, pois tinções: a princípio, é na maneira como percebem
poderia produzir o achatamento do seu tronco, os objetos e os seres que as culturas se diferencia-
pelo encurtamento da espinha. Segundo ele, “nesse riam. As variações de interpretação decorreriam de
andar vai acabar sem pescoço. Você vai ficar chata relações culturais como se todos estivessem inte-
que nem as figuras que meus alunos desenham?” grados ao mundo, com uma paisagem que se con-
(SOYINKA, 2012, p. 19) Já identificamos, nesse di- solidaria da mesma maneira, ou seja, por meio do
álogo, um choque de paradigmas culturais. Para Sidi, campo visual, expresso na forma “balde sobre a ca-
toda a fala do professor causa estranheza: “Por que beça”, mas é como se vissem coisas diversas, pelo
deveria me preocupar com isso, você não jurou que modo diferente como se organizam informações
minha aparência não afeta seu amor por mim? On- perceptivas diante de circunstâncias históricas di-
tem mesmo, arrastando os joelhos na poeira, você ferenciadas, mas “a própria idéia de que o mundo é
disse: Sidi, se você fosse gorda ou corcunda e sua conhecido pela sua representação mental está atada
pele cheia de escamas como uma...” (SOYINKA, a pressupostos sobre a preeminência da visão que
2012, p. 19). Considerando essas discrepâncias cul- não são aplicáveis interculturalmente” (INGOLD,
turais, o dramaturgo cria, ao final da peça, um glos- 2008, p. 9).
sário e notas de esclarecimento que contextualizam A questão posta naquela aldeia remete a uma
os diferentes valores africanos. Segundo Soyinka, problemática-chave neste ensaio: como falar de
“em toda a África, as mulheres costumam carregar um corpo com o balde na cabeça, ou seja, como
pesos sobre as cabeças como a coisa mais natural entender o sujeito na sua relação com o objeto?
deste mundo, e é proverbial a beleza de seus pesco- Viemos de uma tradição mecanicista, cuja crença
ços” (SOYINKA, 2012, p. 137). determinava que a percepção visual, assim como a
A personagem feminina deixa claro que a re- tátil e a auditiva, só se poderiam dar no corpo em
tórica do professor não se sustenta na ordem dos movimento. Dessa forma, se não houvesse o des-
fatos daquela aldeia, ou melhor, os ombros nus que locamento corporal e dos objetos no campo social
se deixam ver na atitude de carregar o balde sobre e humano não haveria a percepção, que acontece
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em dois momentos: primeiro, quando os sentidos, ção dualista corpo e alma, que considera a maté-
numa relação física, captam o objeto no seu conta- ria como uma mera aparência a ser negligenciada,
to com o mundo, conforme estímulos nervosos e, crença que nem mesmo o professor sustenta. Ain-
a posteriori, enviam esta mensagem à esfera men- da que esteja atrelada ao mito da beleza na peça,
tal, que a transforma em consciência do objeto, a personagem feminina já valoriza a aparência, no
em imagem ou representação psíquica. Esta mo- que ela tem de potência para afetar outros corpos,
delagem perceptiva passa a ser uma conquista in- no que esta tem de inseparável da suposta entidade
telectual, numa distância entre o sujeito e o objeto. culturalmente encarnada, enquanto sujeito, sem a
Nesse contorno interpretativo, emerge uma alma qual ela não existiria. Assim, o professor é mestre
que vê, e não os olhos e o corpo que veem. Nesse na reprodução de códigos eurocêntricos e de leitu-
caso, os sentidos são apenas instrumentos de cap- ras sobre o corpo, descontextualizadas do campo
tação para que a anima seja interiorizada com base de atuação de Sidi, contra as quais ela mesma se in-
nas informações capturadas pelo sistema nervoso. surge de modo agressivo: “Quem é você, Lakunle,
Assim, inventamos um “eu penso”, um “eu sinto”, para me dizer que estou na boca do povo? Quando
a gramaticalização do corpo transformado em um o mundo inteiro faz troça do “Louco de Ilujinle”
pronome “eu” que ganha um nome como unidade que se apresenta como professor” (SOYINKA,
de síntese. Este modelo perceptivo consagraria a 2012, p. 21).
ótica cartesiana na mecânica dos corpos. Se, com a exposição dos ombros, revela-se a si-
Esta é uma questão problematizada por Wole lhueta dos seios de Sidi, também nasce uma leitura
Soyinka em sua peça. A subjetividade desta per- da nudez na peça. Em seu glossário, ao final do li-
sonagem, Sidi, não se encontra no interior e nem vro, Soyinka faz questão de enfatizar que “na maior
provém desse campo de interioridade. O sujeito parte da África negra, as mulheres não cobriam os
faz-se nessa relação com o balde, é um agregado seios até que esse costume lhes fosse imposto pelos
de vários objetos, de signos, numa rede de comu- missionários e autoridades européias” (SOYINKA,
nicação e interação que o fortalece ou o fragiliza. 2012, p. 138). Nos ecos da voz dos missionários eu-
Vemos que Soyinka não teoriza sobre o corpo di- ropeus, nota-se a postura do professor, segundo a
retamente, mas antes como esse corpo é envolvido qual, Sidi deveria guardar seu corpo: “Quantas ve-
na narrativa daquilo que faz e executa no seu cam- zes eu preciso lhe dizer, Sidi, que uma jovem adulta
po sociocultural. deve cobrir os seus... os seus ombros? E posso ver
Nota-se que há um modelo que se pretende re- uma boa parte deles!...” (SOYINKA, 2012, p. 20).
futar na peça: a ideia de que o sujeito está dentro A hesitação em torno do termo “ombros” deixa
do corpo como uma essência para seu modo de sugerir não somente que os seios também estariam
existir. Na dramaturgia de Wole Soyinka, percebe- visíveis, mas denota pudor moralista. Através da
mos uma literatura na qual o corpo aparece como suposta gentileza, ao carregar o balde, há toda a re-
feixe de relações culturais, filosóficas e de alicerce produção do discurso cerceador, um cuidado com
para o edifício de relações de poder. Em primei- o outro, que acaba por construir uma moldura re-
ro lugar, o autor já recorta e estranha, na voz do pressora dos movimentos de Sidi. Para o professor,
professor, a definição de corpo como aparência e, os belos ombros e seios femininos devem ser des-
como tal, a rejeição a esta entidade enganosa, por- nudados apenas pelo olhar de quem a ama, guar-
tanto desprezível, numa alusão clara à gasta dicoto- dando o erotismo na alcova da família, ou ficará
mia essência e aparência que alimentou o baluarte exposta à difamação e ataques dos homens: “Esses
da metafísica platônica ocidental e dos edifícios do vagabundos todos, que não prestam para nada, um
universo cristão. monte de desavergonhados, todos eles lançam suas
Através da veia cômica, o dramaturgo arrasta, vistas lascivas para esse lugar, que nenhum deles
nas águas derramadas do balde, a presença de con- tem o direito de olhar” (SOYINKA, 2012, p. 20).
cepções de uma teologia eurocêntrica, na forma de A cena que merece destaque se refere exatamen-
entender o corpo de Sidi, delineadas na fala e nos te a este contraponto entre o corpo do professor,
gestos do jovem professor, porta-voz da concep- inteiramente vestido por terno, calças compridas
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e sapatos, confrontando-se ao corpo de Sidi, que Giorgio Agamben faz um desdobramento da


mostra seus seios ao atravessar a praça com o bal- leitura de Gilles Deleuze, ao alargar o debate sobre
de na cabeça. Um corpo vestido que reconhece a o limite da impotência também como um elemento
nudez do corpo do outro, mas com uma diferen- a ser pensado e valorizado. Para ele, “nada rende
ça: Sidi não expunha os seus seios nus para serem tantos pobres e tão pouco livres como esse estra-
admirados ou reconhecidos pelo professor: há um nhamento da impotência” (AGAMBEN, 2009, p.
modo de existir naquela aldeia que, segundo o au- 59). Através do professor, vemos o quanto o ho-
tor, permite que se ande dessa maneira, mas o pro- mem se torna cego para sua capacidade, mas tam-
fessor não entende. bém para suas incapacidades, uma espécie de ator
A propósito desse enfoque, segundo Giorgio social arrogante, como se pudesse ser indistinta-
Agamben, a cultura ocidental define a nudez a par- mente qualquer um, assumir qualquer personagem,
tir de uma insígnia teológica; os olhares são atra- um teatro dentro de um teatro: “um poder fazer-se,
vessados pela rapsódia do Genesis através da qual precisamente quando deveria dar-se conta de ser
o pecado constrói a nudez de Adão e Eva, como entregue numa medida inaudita das forças e pro-
se estes não estivessem nus antes da queda, ainda cessos sobre os quais perdeu qualquer controle”
que seus membros não se mostrassem cobertos (AGAMBEN, 2009, p. 58).
por absolutamente nada, apenas por uma inocên- Vê-se que o professor começa a delinear um
cia plasmadora de uma graça divina que vestiria dispositivo teológico, com traços falocráticos, pon-
seus corpos de liberdade de movimentos e gestos. do numa rede de relações culturais a chave nudez/
O jovem-professor deixa ler claramente que não veste. A dramaturgia de Soyinka, por sua vez, deixa
há, no teologismo ocidental, uma filosofia do cor- ver que esta noção do pecado não introduziu o mal
po nu, mas do corpo vestido. A personagem Sidi no mundo, mas o revelou no tirar das vestes. Ana-
traz justamente a perspectiva de que para o pro- logamente para o professor, os seios nus de Sidi
fessor a nudez é a privação da veste; uma espécie não são um mal, mas revelam a concupiscência dos
de nudez negativa, como privação da graça. Assim, homens da aldeia que irão desejá-la e macular a sua
Wole Soyinka permite colocar em questão a nudez imagem, a ponto de que seria impossível ficar nu
do corpo humano, a partir de situações culturais fora de um campo privativo. A nudez, portanto,
distintas. é um constructo aliado a outro constructo: mun-
Na dramaturgia deste autor nigeriano, não há a do privado, que se define em oposição a público,
convicção de que o pecado produziu a descoberta conceitos naturalizados, mas postos em hesitação
do corpo, na percepção de sua nudez, mas se tem na dramaturgia de Soyinka. Se o público seria defi-
a certeza das relações de poder em torno disso. O nido, costumeiramente, como o mercado das más-
personagem Lakunle traz justamente a rede de co- caras, a praça da persona por onde o corpo de Sidi
nexões que cria o discurso da nudez que separa Sidi atravessa, o privado seria definido como o cair das
do que ela pode, da cultura em que está engajada, máscaras para o desnudamento do corpo. Entre-
privando-a da própria experiência diante do que tanto, esta esfera não se ajusta ao domínio da aldeia
pode e do que não pode fazer com seu corpo. Em- Ilujinle, na Nigéria.
bora o pensamento de Gilles Deleuze traga uma O jovem mestre tenta sugerir a Sidi que seu
abertura de crítica ao eurocentrismo, ainda dentro corpo deveria se cobrir com uma túnica “como é
de uma perspectiva eurocentrada, vale lembrar que, usada pela maioria das mulheres modestas”, mas
na leitura que faz de Nietzsche, afirma que a es- é completamente desqualificado pela bela africana:
tratégia do poder se ergue, ao separar o homem “Por acaso é Sidi que faz os homens se engasgarem
daquilo que pode, isto é, da sua própria potência, com seus copos de cerveja de tanto rirem de você,
que é impedida de exercitar seus movimentos por gritando bem alto esse monte de palavras compri-
condições físicas e materiais de trabalho, e pelas das que ninguém consegue entender! Você e seus
contingências de um cotidiano imposto em redes livros esfarrapados” (SOYINKA, 2012, p. 20).
familiares e sociais, ou pela proibição em nome de O personagem-professor revela uma indiferen-
valores teológicos. ça em direção ao mundo de Sidi, por desqualificá-
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lo por meio de uma veia teológica na configuração dores” (AGAMBEN, 2009, p. 90).2
da túnica inconsútil. Segundo Giorgio Agamben, Uma questão a ser levantada na peça é justa-
até mesmo Sartre, com seu forte apelo à liberdade, mente outra posição tomada por Wole Soyinka,
não se desprendeu das vestes teológicas quando, em sua dramaturgia, com outro modo de existir do
no capítulo de O ser e o nada, ocupa-se da nudez corpo em movimento, fora desse eixo que reveste
ainda sob forte lembrança da filosofia agostiania- o corpo de um estado de graça, no enfoque de uma
na: nessa perspectiva sartriana, o desejo define-se abordagem teológica. Se interpretar é uma maneira
como elemento estratégico que permite aparecer a de estabelecer um domínio, um sentido, há a pos-
carne no corpo do outro. Nesse caso, o obstáculo sibilidade de ver outro caleidoscópio de valores na
à encarnação não são as vestes e a cosmética, mas maneira como o corpo de Sidi coloca-se em movi-
o “fato de o corpo do outro estar sempre em situ- mento, com seus seios à mostra, numa fluidez que
ação, ou seja, estar já sempre no ato de consumar não se contrapõe ao peso gravitacional do balde de
este ou aquele gesto, ou este ou aquele movimento água sobre a cabeça. A questão é como os objetos
endereçado a um objetivo” (AGAMBEN, 2009, p. participam do curso de ação humana no mundo,
90). Nesse contexto interpretativo, a carne é co- de sustentação do corpo na sua rede de relações
berta não apenas pela cosmética, pelos perfumes sociais e existenciais. O que cada corpo pode e o
dispostos nas prateleiras do mercado, mas é mas- que ele não pode só se mede a partir de suas rela-
carada pelo próprio movimento: “nada é menos ções, que inclui os objetos; no caso da peça, o pote
‘em carne’ do que uma bailarina, ainda que nua” sobre a cabeça.
(AGAMBEN, 2009, p. 90). Com base nesse viés No cenário de O leão e a joia, o balde sobre a
analítico sartriano, poder-se-ia dizer que os seios cabeça não vem dar a centralidade gravitacional do
nus de Sidi se mostram em liberdade por estarem humano, mas despojá-lo do campo egocentrado de
em movimento, num corpo que carrega um balde si para colocá-lo numa rede de relações sociais e
na cabeça como via de acesso ao mundo. com outros objetos, no jogo de máscaras do teatro
Sendo assim, analogamente ao corpo de Adão em que o tempo e o corpo se encenam numa com-
e Eva, que só tomou consciência da sua nudez na preensão cinemática do mundo. A matéria cor-
queda, com a inserção das vestes e das máscaras, poral, nesse enfoque, deixa de se desenhar como
também o corpo, segundo Sartre, seria sempre substância em si e passa a ser definida como um
imantado pela situação, por um gesto iminente, por agregado que define sua potência em um campo de
um movimento que impediria que o corpo ganhas- relações, num ato que pode surpreender, pois não
se carne: o desejo definir-se-ia como a estratégia de conhece a face prévia de uma situação dada a prio-
despojar o corpo dos seus movimentos habituais, ri: esta situação já se manifesta quando o corpo se
assim como de suas vestes, como se pudesse, com movimenta, mas, diferentemente de Sartre, não há
sua mágica, trazer o corpo em carne, sem nenhu- a graça do movimento que sustenta o nu, mas um
ma teleologia que justificasse o desnudamento do movimento que constrói o nu e o põe em constan-
corpo do outro. Assim, a base é a mesma: é a teo- te incerteza diante do outro, menos exótico e mais
logia da graça, que, na perspectiva sartriana, seria factível de surpresas e diferentes interpretações.
possível pela dinâmica do corpo em movimento, Nesse ângulo de abordagem, a leitura da peça,
que se coloca num presente em direção a um futu- aqui desenvolvida, projeta-se na análise cuja per-
ro. Na graça, o corpo é tido como instrumento de cepção corporal se mostra longe da modelagem
liberdade manifesta; uma cinética justificadora da que presume o corpo como fruto de experiências
existência humana. Nesse caso, a nudez só pode culturais recebidas. Entende-se essa percepção
ser vista enquanto envolta na graça do corpo em como processo de engajamento, distante do re-
movimento: “o corpo mais gracioso é o corpo nu lativismo cultural puro e simples. Não se trata de
que seus atos circundam de uma veste invisível,
escondendo-lhe completamente a carne, embora
esta seja totalmente exposta aos olhos dos especta- 2
Segundo Agamben, é justamente contra esta veste da graça
que se coloca o sádico e o obsceno. (2009, p. 91)
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através dos sentidos, do ver, ouvir e tocar, captu- ra do jovem professor Lakunle, engajado nos sa-
rar os momentos de experiência e retransmiti-los a beres considerados civilizados, numa retórica que
uma consciência reflexiva para uma posterior inter- desqualifica a tradição africana, em face de uma
pretação. Há uma proposta de conhecimento, em europeização dos costumes. Neste ensaio, o corpo
Wole Soyinka, que não se distancia da ação, que se de Sidi pode ser lido tendo em vista a perspectiva
faz pela articulação entre os corpos e os objetos. O fenomenológica: o corpo está situado no mundo,
corpo deixa de ser visto como uma entidade isola- enraizado; é colocado em situação. E aqui aparece
da, ele é afetado e se deixa afetar pelos corpos em uma questão que não se restringe à ordem da com-
um campo e paisagem relacional. A praça da aldeia posição dramatúrgica.
Ilujinle, na Nigéria, não é apenas uma experiência Se considerarmos o sentido etimológico do ter-
subjetiva, pois, ao se relacionar com o balde, Sidi mo drama, oriundo do grego dráo, que representa
se reconhece e é reconhecida no seu campo de re- a ação e como se faz a ação em um texto, pode-se,
lações culturais, mas também deixa ler a imagem brevemente, traçar um modo dramático de cons-
da água que derrama em seu balde, produzindo trução de ação através de: situações (conflito/ in-
outros fluxos, um mundo liberto de uma unifica- triga e ação), personagens, combinação de persona-
ção de signos, de uma rede de aranha que devora o gens, seus traços com as relações sociais, históricas
outro através de uma hierarquia de valores como é e míticas, e um modo particular de usar a lingua-
expressa na fala do professor: “você é uma mulher, gem. Mas, ao destacar o drama de “situação”, ou do
portanto, tem um cérebro menor do que o meu...”. corpo situado, é importante lembrar que o termo
Ao que Sidi ainda mais furiosa questiona: “Mas de “situação” pode ser lido a partir de várias chaves
novo?! Eu só queria saber de onde você tirou es- de interpretação: primeiro, próximo ao conceito de
sas idéias, seu homem presunçoso!...” (SOYINKA, cena, marcado pela entrada e saída de personagens,
2012, p. 22). ou pela mudança de cenário; segundo, na dimensão
Na dramaturgia de O leão e a joia, há o nítido psicológica, a que se deixa ver nos atos dos per-
interesse de deixar, às claras, o abismo de valores sonagens; terceiro, na perspectiva histórica, lida
entre o professor, a jovem africana e as questões no contexto histórico trazido pelos personagens; a
do falocratismo que envolvem a personagem fe- quarta, no plano de fundo em que se destacam os
minina. As falas desenham-se em uma obviedade personagens em relação a seus conflitos.
discursiva em torno de diferenças de gênero, numa Enfim, quando se opta por ler o corpo de Sidi,
referência preconceituosa tão gritante entre os su- menos pelo seu caráter representacional, metafóri-
jeitos, que retratam não só a ingenuidade do jovem co, e mais pela situação em que seu corpo e mundo
professor, insensível às diferenças culturais, mas se deixam ver e perceber, estamos a afirmar não
também denotam a vontade política como forte o que Sidi ou o autor simplesmente pensam – o
presença nas palavras do autor. eu penso –, mas se assinala um modo de existir,
Nessa abordagem, não nos interessa identificar um modo de exercer o poder em meio às malhas
o corpo de Sidi apenas como a representação de sociais: destaca-se um personagem que possui um
uma situação histórica, política e sociológica, em corpo e faz disso uma maneira de viver, de cons-
que a personagem seria desenhada como a própria truir suas experiências; assim, as percepções ver-
África. Não se trata de ler o corpo de Sidi como sam sobre as relações que o corpo mantém com
uma metáfora elaborada por Soyinka, para repen- outros corpos e com os objetos. Essas relações não
sar o continente ou seu país, tendo como cena se definem sobre termos absolutos, portanto não
dramática uma conflituosa história de amor. Não existe uma percepção pura do corpo de Sidi, mas
há como negar que o autor coloca suas preocupa- dependente dos encontros estabelecidos com os
ções diante do processo africano de reconstrução objetos, no caso específico: o balde na cabeça.
cultural e política. Nesse aspecto, Sidi poderia ser Esse texto de Wole Soyinka é também um con-
considerada a própria representação da cultura an- vite para que se percorram outras paisagens na
cestral iorubá, assediada pelo alvoroço da suposta travessia pelo Atlântico negro, permitindo uma
cultura avançada do Ocidente, difundida na figu- reflexão intertextual no encontro entre diferentes
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geografias culturais. No laboratório do escritor e te da promessa desenvolvimentista do progresso e


da experiência humana, vale fazer um contraponto globalização da economia, traz a dimensão crítica
entre a dramaturgia de Soyinka e uma canção bra- e que possibilita vislumbrar múltiplas tradições,
sileira atual, exatamente no aspecto em que emerge considerando o âmbito do mercado e o debate de
o desenho do corpo da mulher com uma lata na ordem culturalista. Poder-se-ia dizer, numa inter-
cabeça. Na canção composta por Chico César e pretação mais simplista, que o corpo feminino, em
Vanessa da Mata, A força que nunca seca, vemos que foco, traz a dimensão da resistência local, numa ní-
desponta ao longe “Uma senhora com a lata na ca- tida dicotomia ao global; interpretação já descarta-
beça/ equilibrando a lata vesga/ mais do que o cor- da pelo próprio dualismo reducionista que encerra.
po dita”. Os versos trazem uma nítida alusão entre Outra possibilidade seria o despontar desse allos
a palavra “força” e o corpo feminino. Na relação – o outro – que emerge no palco da praça pública,
construída entre o corpo e o objeto lata, configura- o que também produziria um eco essencialista, da
se a potência exigida não apenas para carregar a entronização da diferença no corpo feminino, uma
lata na cabeça, mas o combustível de uma força alteridade previsível e almejada.
que rompe com o dualismo corpo/alma. Não se está tratando mais do corpo exótico
Também no contexto brasileiro, a canção não do artista, mas se apela para “uma força que não
reivindica um corpo pessoal, completo, subjetivo, seca”, a canção popular realizada no Brasil, capaz
mas solicita a dimensão do corpo da mulher na sua de produzir um corpo equilibrista, o fio melódi-
relação com o mundo, com os objetos circundan- co que embaraça o olhar diante de uma paisagem
tes, especificamente a lata. Não se trata, porém, unicamente brasileira e resgata um diálogo com a
de reduzir o corpo feminino a uma mera forma África. Opta-se por uma prática de saberes e de
estética, mas de afirmá-lo nas relações com os ob- leituras mais flexíveis, carregada por uma dinâmica
jetos, quando sua força pode ser acionada, consi- relacional entre culturas e entre os corpos, atenta
derando a premissa de que um corpo aprende a aos saberes que se desenham no movimento cor-
carregar uma lata d’água na cabeça num equilíbrio poral, que ultrapassa a moldura de uma identidade
que, supostamente, nem todos possuem: “Que faz radicalmente pura e fixa.
o equilíbrio cego/ A lata não mostra/ O corpo que E tanto na lata descrita pela canção brasileira,
entorta/ Pra lata ficar reta”. quanto no balde de Sidi, esculpido por Soyinka em
A equilibrista de latas produz, nas ruas por onde sua dramaturgia, há uma água que exige a presen-
anda, a coreografia que não traduz a dissolução do ça do vaso e a força do corpo: “Pra cada braço
sujeito, mas faz reviver a ginástica da experiência uma força/ De força não geme uma nota / A lata
capaz de produzir um corpo no encontro com a só cerca não leva / A água na estrada morta/ E
lata, sem a qual este sujeito não teria existência: a força nunca seca / Pra água que é tão pouca”.
“Que faz o equilibrio cego/ A lata não mostra / Esta força revela-se em Sidi, que não se limita a
O corpo que entorta / Pra lata ficar reta”. Na tra- ser porta-voz de uma consagrada tradição falocrá-
vessia da mulher com a lata na cabeça, o corpo as- tica. Na peça, ela é desejada pelo velho Baroka, o
sume seu caráter mutável, flexível, no movimento chefe tradicional e poderoso, que almeja se casar
que acompanha a cadência da música nos passos com Sidi, imaginando ser ela a saída para provar
realçados no cruzamento entre a África, descrita a sua virilidade e eternizar a sua linhagem de leão,
por Soyinka, e o Brasil, recortado pelo diapasão do em meio ao âmbito africano. A jovem Sidi, porém,
cancioneiro popular. se engaja na tradição do leão, no entanto, rejeita o
Em meio a esse encontro de geografias e ex- papel passivo a ela reservado no harém de Baroka.
pressões artísticas, vemos a politização do corpo, a Para compreender a dimensão normativa do
atualização de um gesto e de um movimento que se harém, Sidi recorre à ajuda da primeira mulher de
torna público e demanda vários sentidos diante das Baroka, a experiente Sadiku, que conhece a potên-
mudanças anunciadas no final do século XX e es- cia e a impotência daquele leão e as revela para a
peradas para o novo milênio. Nesse caso específico, futura esposa do seu marido. Diante disso, Sidi to-
o gesto de carregar latas ou baldes na cabeça, dian- mará posse de uma tradição para ressignificá-la. A
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Repertório, Salvador, nº 23, p.29-36, 2014.2

água que carrega em seu balde se transmuta numa Referências


música que aparece tanto na peça, marcada por
seus próprios timbres, como se comunica com a AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Lisboa: Relógio
canção produzida no Brasil, exposta neste ensaio, D’Água, 2009.
traduzindo uma trama social e política em que o INGOLD, Tim. Pare, olhe, escute – um prefácio. Tradu-
corpo emerge como potência de desarticulação de ção de Ponto Urbe Ano 2, versão 3.0, NAU-USP,
valores, carregando a água viva, mesmo que em es- jul./ 2008. (Prefácio – The perception of the envi-
tradas consideradas mortas: “Pra cada braço uma ronment. London: Routledge, 2000).
força/ De força não geme uma nota / A lata só ________. Pare, olhe, escute! Visão, audição e movimento
cerca, não leva /A água na estrada morta / E a for- humano. Ponto Urbe Ano 2, versão 3.0, NAU-USP,
ça nunca seca / Pra vida que é tão pouca”. Trans- jul./ 2008 (cap. 14 do livro The perception of the
bordante tanto na música feita no Brasil quanto na environment. London: Routledge, 2000).
dramaturgia escrita em África, a força do corpo re- SOYINKA, Wole. O leão e a joia. Tradução de
age, pelo menos em meio a tantas Áfricas. William Lagos. São Paulo: Geração Editorial,
2012.

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