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Janete El Haouli*
Michel Foucault
Cantar a Voz
* Demetrio Stratos escreveu este texto para a revista "Il piccolo Hans", como esboço de uma pesquisa que pretendia desenvolver.
1 Stratos, Demetrio. Diplofonie ed Altro, in "Il Piccolo Hans", No. 24, ottobre/dicembre. 1979, Bari, Dedalo Libri.
No mesmo ensaio “Diplofonie ed Altro” Stratos citará Lyotard,
reafirmando o teor anárquico dos sons da voz enquanto voz: "de agora em
diante os sons feios têm direito à escuta". O cantor -investigador Stratos
assinalaria que entre as pregas -pragas da linguagem existe um microcosmo
sonoro inexplorado, e que uma possível desconstrução vocal deveria
considerar a voz em sua plena materialidade.
Voz X Verbo
Voz Nômade
O Corpo da Voz
Mas a voz fala do corpo. Ela tem a ver com o fluxo e com o desejo, e
não apenas com os significados. Ela é "índice de excitação corporal" 3 , como
diz Guy Rosolato. A voz é exibição e dom, agressão, conquista e esperança
de consumação do outro. Veículo de si própria, migra de um corpo ao outro
em doce penetração e cópula, reitera sua característica biológica: voz filha da
boca, boca órgão sexual. Ass im, Demetrio Stratos assinala: "notar o laço
estreito: voz/sexo; voz e sexo, ainda: relação com os ciclos menstruais e com
a castração" 4 .
Nada mais fantasmagórico do que a corporalidade controlada de nossos
dias, dos imperativos morais que nos reduzem a a utômatos, seres sem vida,
sem prazer, educados para a produção e consumo da sociedade capitalista. A
voz e o corpo não podem ser separados, antes, devem questionar as
repressões impostas, cabendo essencialmente aos performers a aplicação de
seus impulsos e desejos, de seus prazeres e agressões não só à construção
de papéis sobre o palco, mas também a atuações na própria vida,
desobstruindo os sentidos das pessoas no cotidiano. Sem dúvida, o que
Stratos indica é um jogo em que se arrisca a vida, em que o per former passa
3 "La voix: entre corps et langage" - Guy Rosolato, Revue Française de Psycanalise, Paris, No. 1, p. 75-94, 1974
4 "Diplofonie ed Altro, op. cit.
a ser - como num ritual - um doador, uma verdadeira vítima que expia as
dores da comunidade numa época em que a apatia toma conta de nossas
ações.
Por outro lado, tanto no aspecto vocal quanto corporal, Stratos critica as
formas realísticas de performance, pois que esta "realidade" cênica ou
musical passa a ser um código caro aos meios de produção. O artista sério
não deve ser um produto a mais na indústria do entretenimento e sim, uma
espécie de "sonda" que investiga o próprio corpo a fim de “purificar” as
percepções e os desejos humanos. Portanto, não podem existir idéias na
mente do artista tais como "desafinação", "expressão corporal", já que não há
elemento algum a ser exorcizado do campo expressivo do artista. Todo
material lhe é bem vin do se este serve ao aumento da compreensão e emoção
entre as pessoas, ao re -ligar com algo que nos torna mais vivos.
Eco e Yoni
Como diz Gigliola Nocera, Stratos consegue livrar a Ninfa Eco de sua
clausura 5 . O "cantar a voz" de Stratos nada mais deseja do que retirar nossa
vocalidade/corporalidade da repetição dominadora e esterilizante. Uma voz
que se supera não pode ser escrava das codificações neuróticas: suas
diplofonias, triplofonias e quadrifonias, seus silvos glóticos, são só algumas
das tentativas da ninfa de recuperar seu corpo perdido, seu desejo reprimido,
libertando-a de uma sucessão de espelhos vocais que devolvem sempre a
mesma voz (eco) sem alterá -la. Uma voz/corpo carregados de sentido
cuidadosamente distribuído e racionado, centralizados no "eu" e na
subjetividade que pensa ser causa de tudo, narcisicamente, não poderão parir
algo além de suas expectativas binárias: voz -grito voz-fala. Exemplo dessa
superação são os belíssimos "Mirologhi I e II" 6 e "Criptomelodie Infantile" 7 -
performances de Demetrio Stratos, nas quais percebemos a voz -pharmakos, a
voz veneno-remédio, uma voz de fábula, a voz de cordeiro e do lobo se
fundindo e, ao mesmo tempo, se individuando, devindo e excitando, o valor
bruto do som produzido pelo corpo, prestes a se transformar em música.
"Cantar a voz" não possui uma outra função senão ser um fluxo que se
combina com outros fluxos. Um fluxo intenso, instantâneo e mutante entre a
criação e a destruição, fazendo com que nos despersonalizemos e possamos
atingir o coração e o corpo do outro. A voz que se torna uma ponte para a
superação dos valores que herdamos, mesmo no campo artístico.
Segundo Daniel Charles, este mesmo "cantar a voz" de Stratos reenvia -
nos ao Tantrismo 8 , uma liturgia cósmica. É conceber o mundo exist ente "como
um parto contínuo a partir do Yoni do princípio feminino, perpetuamente
fecundado no êxtase sexual pelo sêmem masculino". Uniões em diversos
êxtases temporais que conduzem a uma iluminação. Demetrio Stratos e sua
5 "Demetrio Stratos e l'avanguardia dell' inquietante", Gigliola Nocera, Milano, 1989. Intervento al Convegno "Cantare la Voce", Milano,
29/30 Maggio, 1989
6
"Metrodora", 1976. Cramps Records, Italia
7
"Cantare la Voce", 1978. Cramps Records, Italia.
8
"Omaggio a Demetrio Stratos", Daniel Charles. Milano, 1989. Intervento all Convegno Cantare la Voce, Milano, 29/30
Maggio, 1989.
voz/corpo participam dos eventos simultâneos da criação, da formação dos
magmas ainda incompletos, a voz da criança, selvagem, doce, virgem,
natural.
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