Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Sim, cinema é negócio. Um estudo publicado em 2017 pela Creative Artists Agency
(CAA) apontou que há o crescimento de uma plateia mais diversa que se interessa por filmes que
apresentam diversidade de raça, gênero e orientação sexual, incidindo diretamente na arrecadação.
Dentre os incontestes sucessos de bilheteria que ressaltam a diversidade racial dentro e fora das
telas, figuram Moonlight de Barry Jenkins, Corra!, de Jordan Peelan, Estrelas Além do Tempo, de
Theodore Melfi, O despertar da força, protagonizado por John Boyega, ator negro, bateu o record
de bilheteria absoluta que pertencia a Avatar e o Pantera Negra, de Ryan Cooler, que foi o filme de
melhor desempenho produzido pela Marvel em 18 anos de existência.
Em Vaga Carne Grace Passô traz o teatro para o cinema para justamente sair do teatro.
Nesta metalinguagem, a câmara está apontada para o racismo próprio dos palcos e dos bastidores da
indústria do entretenimento. E assim conhecemos a alma da resistência de dentro e a partir de seus
próprios arsenais. Desse modo a atriz, dramaturga, escritora e agora diretora de cinema Grace Passô
torna-se uma testemunha vocal que transita entre mundos de diferentes telas. Lembrando que
James Baldwin aponta que as fronteiras entre testemunhar e atuar são finas, porém reais; e que parte
da responsabilidade das testemunhas é movimentar com a maior liberdade possível para escrever a
história. E assim, uma câmara em mãos negras pode se mostrar um armamento poderoso no
enfrentamento às violências e alienações raciais com o simples disparar de um flash.
Mas ao mesmo tempo em que Grace Passô mira, é também mirada. A platéia entra em cena
para atuar. No elenco estão nomes fundamentais da cena cultural e negra de Belo Horizonte, pois
além de Grace Passô, Vaga Carne atravessa os corpos de Zora Santos, Dona Jandira, André Novais,
Sabrina Hauta, Hélio Ricardo, Aline Vila Real, Tásia d’Paula, Valéria Aissatu Sane, Ronaldo Coisa
Nossa. E considerando a assunção do olhar na hierarquia dos sentidos, tem-se a miragem como
posição de poder.
Assim busca se aniquilar uma história da colonização evidencia que a branquitude sempre
teve o poder da mira, de apontar pra matar, caçar ou expoliar. Na frente ou atrás das câmeras o
corpo negro assume importante posição de conhecimento, de saberes localizados, a partir dos quais
novos projetos de representações simbólicas se tornam possíveis. Em Vaga Carne nossas vozes e
corpos estão dentro do olho do furacão, resistindo para não se deixar engolir. Vaga Carne é um
filme sobre a negritude real, que nos faz sair da sala de cinema com orgulho e não com temor.
Diante disso, a emergência de diretores/as negros/as é fundamental para a existência de um
“cinema do real” onde não há manipulação das aparências para colocar o espectador em um estado
passivo de identificação acrítica.”, como indica o negro cineasta, escritor, teórico cultural e
historiador do Mali Manthia Diawara. Manthia Diawara. Assim, Grace Passô nos traz uma saborosa
vertigem de cinéfila, aquele torpor que experimentamos ao ler Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Alice Walker, Maya Angelou, Toni Morrison, bell hooks e tantas
outras. Como é bom citar nossa intelectualidade! E por falar nisso, necropoética foi um termo
cunhado pelo crítico negro Juliano Gomes na mesa de debate sobre o filme Vaga Carne que
aconteceu no dia 19 de janeiro na programação da 22a. Mostra de Cinema de Tiradentes, que está
reluzindo negritude e afrontamento. Por estas e outras, o festival, que é a primeira grande janela
anual do nosso cinema está imperdível. Edição histórica!
Viviane Pistache é psicóloga, roteirista e crítica de cinema. Preta das Gerais com
mania de ter fé na vida.