Sunteți pe pagina 1din 125

Andrea Bandeira de Mello Schettini

A Era do Biopoder e o discurso dos


direitos humanos: um olhar genealógico
a partir da obra de Michel Foucault
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Dissertação de Mestrado



Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.




Orientadora: Profª. Bethânia de Albuquerque Assy
Co-orientador: Prof. Francisco de Guimaraens

Rio de Janeiro
Outubro de 2013
Andrea Bandeira de Mello Schettini

A Era do Biopoder e o discurso dos


direitos humanos: um olhar genealógico
a partir da obra de Michel Foucault

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Direito da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo


assinada:

Profª. Bethânia de Albuquerque Assy


Orientadora
Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Francisco de Guimaraens


Co-orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles


Departamento de Direito - PUC-Rio

Prof. Ricardo Nery Falbo


UERJ

Profª. Mônica Herz


Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 17 de outubro de 2013.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.

Andrea Bandeira de Mello Schettini

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica


(2010). Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos do
Departamento de Direito da PUC-Rio.

Schettini, Andrea Bandeira de Mello


Ficha Catalográfica
A era do biopoder e o discurso dos direitos humanos:
um olhar genealógico a partir da obra de Michel Foucault
/ Andrea Bandeira de Mello Schettini ; orientadora:
Bethânia de Albuquerque Assy ; co-orientador: Francisco
de Guimaraes. – 2013.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA


125 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito,
2013.
Inclui bibliografia

1. Direito – Teses. 2. Direitos humanos. 3. Discurso.
4. Biopoder. 5. Sociedade disciplinar. 6. Sociedade de
controle. I. Assy, Bethânia de Albuquerque. II.

Guimaraens, Francisco de. III. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. IV.
Título.

CDD: 340

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

À minha avó, Stella (pelo exemplo que espero


carregar comigo para sempre).
Ao Tomás.

Agradecimentos

Agradeço ao professor Francisco de Guimaraens pela atenciosa orientação,


pelas conversas que tornavam tudo sempre mais claro e principalmente pelo seu
incentivo e apoio, essenciais a este trabalho. À professora Bethânia Assy, pela
orientação que, mesmo à distância, contribuiu para a elaboração deste estudo,
principalmente em razão da liberdade e da confiança que depositou em mim. Aos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

professores do programa de Mestrado em Direito da PUC-Rio, em especial ao


Adriano Pilatti, pelo incentivo e pela confiança que me passou ao longo deste
processo; à Carolina Melo, pelo exemplo e pelo carinho de sempre; à Marcia Nina,
por todo o apoio que me foi dado, desde sua orientação na graduação; José Maria
Gomez, João Ricardo Dornelles, Carlos Alberto Plastino, Gisele Citadino e Maurício
Rocha, pelos ensinamentos, trocas e reflexões que abriram as portas e as janelas de
um “novo mundo”. Aos funcionários do Departamento de Direito, em especial ao
Anderson e à Carmem, pela ajuda fundamental ao longo do mestrado; à Marlene, pelo
enorme carinho e pelas prazerosas conversas; e ao Tião, pela doce paciência de
sempre.
A todos os meus amigos, em especial: à Lola, pelo amor, pela compreensão e
pelo incentivo constante. Tê-la ao meu lado, com certeza, foi fundamental para a
conclusão deste trabalho. À Fernanda, pelo companheirismo ao longo do mestrado,
pelos incontáveis almoços e conversas que tivemos nos últimos dois anos. Mas,
principalmente, por despertar em mim um olhar mais crítico da realidade. À Lele, por
ter contribuído, mesmo saber, para a concretização de mudanças essenciais na minha
vida. De forma carinhosa, sempre me incentivou a buscar o “novo”, lembrando que,
no final, tudo dá certo. À Bel, pela infinita doçura e sincera amizade que espero
manter para além da PUC. Ao Rafael, pela paciência única e pelas incontáveis e
essenciais “ajudas teóricas”. Ao Fábio e à Tete, pelos sempre bons encontros ao longo
6

dos últimos cinco anos. À Noelle pela amizade que, mesmo recente, já me atravessa
de bons afetos, pensamentos e reflexões. À Maíra e à Silvia. Ao Alexandre por toda
ajuda e incentivo nos momentos finais deste trabalho. À Carol B., Carla, Bárbara,
Carol C., Ana Carolina, Lícia, Luiza, Rafa e Sah por ter a certeza de que, mesmo
diante das diferenças, posso contar em qualquer momento da minha vida. Ao Gabriel,
César, Fernanda, Dudu, Sávio, Camila, Carol, Johane, Rodrigo, Andrea, Julia e Lívia,
pelas lindas lembranças de Coimbra e pela amizade que se mantém até hoje. Ao Luc,
Maria N., Juliana, Karen, Andrea, Maria Fernanda, Lior, Luti e Paulo, por tornarem o
Núcleo de Direitos Humanos um lugar de afetos e trocas ainda mais alegre.
À minha família, em especial ao meu padrinho, Paulo. Ao meu avô, Paulo,
pelo apoio incondicional. À Gabriela, Dânica, Paulinho, Rafael e Bernardo. Aos meus
irmãos, Thadeu e Leo. Ao meu padrasto, Beto, porque, mesmo sem saber e
provavelmente contra a sua vontade, muito contribuiu para que eu pudesse me tornar
uma pessoa mais crítica. Ao meu pai, Thadeu, porque hoje sei que mesmo a ausência
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

e a falta podem ser produtivas.


À Marília, pelo processo de aprendizado e de crescimento constante nos
últimos sete anos.
Por fim, agradeço àqueles sem os quais absolutamente nada seria possível. Ao
Tomás, pelo amor e pelo companheirismo de todo dia; pelo incentivo e pelo apoio que
foram imprescindíveis para o início, meio e fim deste trabalho; e, principalmente, por
me fazer inteiramente feliz ao seu lado. Ao meu irmão, Beto, por simplesmente ser
meu irmão, me defender e me amar em meio às diferenças. À minha avó, Stella,
porque, mesmo distante, esteve presente em todos os momentos deste trabalho. Sei
que estaria agora extremamente feliz e orgulhosa. E à minha mãe, Vera, por todo
esforço, carinho, companheirismo, amor incondicional e, principalmente, por sempre
acreditar em mim. Não tenho palavras para agradecer tudo que fez e faz por mim até
hoje. Sem ela, seria impossível continuar.
Resumo







Schettini, Andrea Bandeira de Mello; Assy, Bethânia de Albuquerque. A Era
do Biopoder e o discurso dos direitos humanos: um olhar genealógico a
partir da obra de Michel Foucault. Rio de Janeiro, 2013. 125p. Dissertação
de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

A pesquisa pretende analisar os direitos humanos – a sua invenção e o seu


triunfo – a partir de uma perspectiva crítica baseada na obra de Michel Foucault.
Recuperando sua analítica genealógica do poder, defendemos a tese de que os direitos
humanos são um discurso, um fenômeno historicamente datado, transitório e mortal,
que emerge na modernidade, com a formação da sociedade disciplinar, e se torna
hegemônico no contexto globalizado da sociedade de controle. Buscamos, assim,
estudar os direitos humanos a partir das lutas concretas e das relações de poder que os
constituem historicamente como o “discurso verdadeiro” do biopoder contemporâneo.

Palavras-chave

Direitos Humanos; discurso; biopoder; sociedade disciplinar; sociedade de


controle.
Abstract




Schettini, Andrea Bandeira de Mello; Assy, Bethânia de


Albuquerque(Advisor). The Era of biopower and the human rights
discourse: a genealogical analysis based on Michel Foucault’s work. Rio
de Janeiro, 2013. 125p. Dissertation – Departamento de Direito, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro







The purpose of this work is to investigate human rights - its invention and
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

triumph - from a critical perspective based on Michel Foucault’s work. Inspired by his
genealogical analysis about power, we defend that human rights are a discourse, a
historic phenomena, that emerges in modernity, in the “disciplinary society”, and
becomes hegemonic in the context of a global “society of control”. Thus, this work
seeks to investigate human rights from a perspective that focuses on the social
struggles and power relations that historically constitute them as the "true discourse"
of contemporary biopower.









Keywords

Human Rights; Discourse; Biopower; Disciplinary Society; Society of
Control.
Sumário

Introdução 11

1. O discurso dos direitos humanos 14


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

1.1. O olhar genealógico 19


1.2. A analítica do poder 26
1.3. Discurso, verdade e poder 34

2. A era do biopoder 41
2.1. O nascimento do biopoder 41
2.2 A era da governamentalidade 49
2.3. O biopoder e o discurso dos direitos humanos 67

3. O triunfo dos direitos humanos 77


3.1. A sociedade disciplinar 77
3.2. A sociedade de controle 96
3.3. O triunfo 111

4. Considerações Finais 117

5. Referências Bibliográficas 119


10
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Não considero necessário saber exatamente


quem sou. O que constitui o interesse principal
da vida e do trabalho é que eles lhe permitem
tornar-se diferente do que você era no início.
Se, ao começar a escrever um livro, você
soubesse o que irá dizer no final, acredita que
teria coragem de escrevê-lo? O que vale para a
escrita e a relação amorosa vale também para a
vida. Só vale a pena na medida em que se
ignora como terminará.

(Michel Foucault)
Introdução

Com a proclamação do “fim das ideologias” no contexto histórico pós-Guerra


Fria, marcado pelo “colapso do socialismo real” e pela vitória do capitalismo
globalizado, os direitos humanos emergiram na política global contemporânea como
um discurso hegemônico, adotado pela vasta maioria dos países, pela esquerda e pela
direita, pelo norte e pelo sul, pelo Estado e pelos movimentos sociais que se opõem à
ordem estatal1. Analisada a partir de uma perspectiva histórica, essa temática nunca
havia alcançado tanta legitimação discursiva – no que tange aos atores envolvidos,
aos valores abrangidos e à extensão de seus aparelhos técnicos – como na época
atual2. Vivemos na aclamada “Era dos Direitos Humanos”, onde estes se apresentam
como uma “realidade inevitável”3, a “língua comum da humanidade”4, “aquilo que
não podemos não querer”5, a “ideologia restante no fim da história”6.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Desde então, observamos que o processo de internacionalização7 dos direitos


humanos, iniciado após 1945, com a criação da ONU, alcançou níveis de
globalização8 sem precedentes, resultando na intensificação da retórica dos direitos


1
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Nova
York: Routledge, 2010.p. 33.
2
GOMÉZ, José Maria. Sobre Dilemas, Paradoxos e Perspectivas dos Direitos Humanos na Política
Mundial. Disponível na Internet em: http://www.rsi.cgee.org.br/documentos/271/1.PDF. Acesso em:
01.03.2013. p.4.
3
DOUZINAS, Costas. São os Direitos Universais?. Projeto Revoluções. Disponível em:
http://revolucoes.org.br/v1/curso/costas-douzinas. Acesso em 01.03.2013
4
BAXI, Upendra. The Future of human rigts. Nova York: Oxford University Press, 2006. p. 1.
5
SPIVAK, Gayatri. Outside in the teaching Machine. Nova York: Routledge, 1993. p.45-46.
6
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 20.
7
A partir de 1945, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, houve uma drástica
mudança de suas referências normativas, por meio de uma série de acontecimentos históricos como a
criação da ONU (1945), cuja carta afirmava expressamente os direitos humanos como objetivo central
da instituição; a promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948); a atuação dos
tribunais internacionais de Tóquio e de Nuremberg (1945-46) que introduziram novidades jurídicas
como a figura do crime contra a humanidade; a promulgação da Convenção sobre a Prevenção e
Sanção do Crime de Genocídio (1948); a sistematização do direito humanitário por meio da Convenção
de Genebra (1948), dentre outros. (GOMEZ, José Maria. Globalização dos direitos humanos, legado
das ditaduras militares no Cone Sul latino-americano e justiça transicional. In: Direito, Estado e
Sociedade: Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n.33, p. 88.)
8
Compreende-se por globalização um processo de longa duração que, a partir do final do século XX,
sofreu mudanças quantitativas e qualitativas inéditas. É diferente da noção de internacionalização em
razão da maior intensidade, extensão, velocidade e impacto das mudanças produzidas no campo
econômico, da produção, da governança, da tecnologia e, principalmente, no fluxo de capital, ideias,
informação, epidemias, bens e pessoas. (SCHOLTE, J. Defining Globalization. In: The World
Economy, Vol. 31, Issue 11, p. 1471- 1502) Globalização corresponde, assim, a uma multiplicidade de
processos que não se restringem à uma visão unilateral econômica e tecnológica dominante. Esse
12

humanos e na proliferação de instituições e instrumentos normativos que pregam sua


defesa. Hoje contamos com uma infinidade de declarações, tratados e convenções9,
três sistemas regionais de proteção (europeu, interamericano e africano), além de
tribunais internacionais (Tribunal Penal Internacional, Corte Internacional de Justiça,
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Corte Europeia de Direitos Humanos,
dentre outros) criados para a garantia e promoção destes direitos. Contudo, o que nos
chama atenção é que tal expansão institucional, testemunhada nas últimas décadas,
não contribuiu concretamente para o avanço de um debate crítico sobre essa
temática10.
Diante da atual hegemonia do discurso dos direitos humanos, são várias as
questões que precisam ser problematizadas para não reproduzirmos aqui um sem
número de trabalhos que repetidamente abordam essa temática sob uma ótica jurídico-
liberal11. Tais estudos se preocupam mais em aperfeiçoar os mecanismos oficiais dos
organismos internacionais, com vistas à sua legitimação, do que em buscar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

compreender os direitos humanos a partir da racionalidade estratégica segundo a qual


operam as práticas que constituem esse discurso. Ao invés de nos limitarmos ao
debate sobre a efetividade dos sistemas e métodos de governo, a proposta é
investigarmos a formação histórica desse regime de verdade: a sua invenção na
modernidade e o seu triunfo na sociedade contemporânea. Não se trata, contudo, de
negar que tenham havido significativas mudanças e, inclusive, rupturas ao longo do


fenômeno deve ser entendido como o conjunto de processos multidimensionais, contraditórios e
desiguais de reconfiguração do espaço social, a partir do crescimento de interconexões supraterritoriais
(que transcendem a geografia territorial) na esfera da produção capitalista, das formas de governança,
da produção e afirmação de identidades, da circulação de informação, da produção de conhecimento e
da expansão das redes sociais (SCHOLTE, J. GLobalization: a Critical Introduction. Londres:
Macmillan Press, 2000).
9
Sem qualquer pretensão exaustiva, nos limitamos a dar apenas alguns exemplos: Declaração
Universal de Direitos Humanos; Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados; Pacto dos Direitos Civis
e Políticos; Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenções contra a tortura;
Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de descriminação contra as mulheres; Convenção sobre os Direitos da
Criança; Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, dentre
inúmeros outros.
10
Quando são feitas críticas aos direitos humanos, normalmente estas se limitam a afirmar a
incapacidade da sociedade internacional de resolver os problemas associados à sua observância e
implementação. As críticas se restringem a debater o melhor modo de refinar, polir e elaborar normas e
standards na tentativa de tornar o regime internacional mais elegante, sofisticado e imponente.
(EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed. Londres: Pluto Press, 2005, p. 35)
11
A despeito de uma imensa quantidade de livros sobre direitos humanos, a discussão sobre essa
temática é dominada pelos liberais neokantianos que reduzem a problemática dos direitos humanos à
questão de sua eficácia e aplicação, limitando-se a debater a criação de normas, instituições e
mecanismos de funcionamento com vistas à legitimação desses direitos.
13

percurso de constituição dos direitos humanos, mas sim de traçar a história política
desse regime de verdade que hoje se apresenta como o discurso hegemônico na
política global. A proposta é, portanto, realizar uma história do presente – trata-se
antes de uma preocupação crítica em entender o presente do que uma vontade
historiográfica de resgatar o passado.
Não pretendemos, assim, realizar um estudo cronológico, mas investigar a
constituição de um horizonte de verdade, ou melhor, a formação de mecanismos
singulares de poder e sua relação intrínseca com a produção de um saber. Não
desejamos reafirmar a tradicional narrativa histórica dos direitos humanos que,
sustentada em uma visão teleológica do progresso, busca encontrar suas verdadeiras
origens e elementos essenciais. Tampouco, almejamos traçar o já conhecido percurso
de formação do direito internacional dos direitos humanos, como produto dos
horrores do nazismo, da criação da ONU e de todo um corpo normativo institucional
de proteção de valores humanistas. A finalidade deste estudo é compreender os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

arranjos de poder que constituem o discurso dos direitos humanos. Em outras


palavras, buscamos traçar uma história política deste discurso, voltando nossa análise
para o funcionamento material das relações de poder que o engendram.
Esta dissertação pretende, assim, examinar os direitos humanos a partir de
uma perspectiva crítica baseada na obra do filósofo francês Michel Foucault. Embora
não aborde diretamente a temática dos direitos humanos, o conjunto de suas pesquisas
nos fornece os instrumentos teóricos necessários para o desenvolvimento deste
trabalho, na medida em que nos permite, em primeiro lugar, desenvolver uma análise
crítica dos direitos humanos a partir da afirmação de uma relação imanente entre
discurso, verdade e poder; em segundo lugar, mapear as mudanças que ocorreram na
economia do poder que possibilitaram a emergência dos direitos humanos como o
“discurso verdadeiro” da política moderna; finalmente, investigar o triunfo deste
discurso no centro da nova ordem global a partir da transição da sociedade disciplinar
para a sociedade de controle. Neste sentido, as noções de discurso, biopoder
(disciplina e biopolítica) e governamentalidade, desenvolvidas por Foucault, servirão
de base conceitual para a presente pesquisa, sem que isso afaste a incorporação de
análises produzidas por outros autores.


14

1
O discurso dos direitos humanos

Afirmar que os direitos humanos são um discurso 12 implica adotamos, ao


longo de todo este estudo, um posicionamento crítico contrário à tradição majoritária
que defende a existência de uma natureza humana, de uma razão universal ou de uma
moral fundamental para justificá-los 13 . Neste sentido, sustentamos que os direitos
humanos não são dados naturais, revelações cognitivas ou o resultado do progresso da
humanidade, mas uma invenção do homem, um fenômeno historicamente datado,
transitório e mortal. Entendê-los como um discurso envolve, ainda, reconhecermos
que o mesmo pode ser acionado e posto em circulação por estratégias diferentes, por
meio de táticas distintas e até mesmo opostas. Trata-se, portanto, de elaborar uma
hipótese que nos permita problematizar os direitos humanos examinando o cenário
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

político e econômico das práticas concretas que o engendram. Enfim, propor uma
perspectiva que possibilite analisar o discurso a partir da materialidade das relações
de força e das estratégias de governo que o constituem e que são constituídas por ele.


12
Alguns autores, minoritários no debate sobre a temática, também analisam os direitos humanos como
um discurso. Sobre o assunto ver: Tony Evans (EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed.
Londres: Pluto Press, 2005); Alasdair MacIntyre (MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: a study in
moral theory. Indiana: University of Notre Dame Press, 2007), Wendy Brown (BROWN, Wendy. “The
most we can hope for...”: Human Rights and the politics of fatalism. In: The South Atlantic Quaterly,
Vol. 103, N2/3, 2004. P.451-463; Makau Mutua (MUTUA, Makau. Human Rights: A Political &
Cultural Critique. Philadelfia: University of Pennsylvania Press, 2002) e Shannon Speed (SPEED.
Shannon. Rights in Rebelion: indigenous struggle and human rights in chiapas. California: Stanford
University Press, 2008)
13
A abordagem deste trabalho se distancia de correntes que ocupam espaço dominante nos estudos
acadêmicos sobre os direitos humanos. Afasta-se tanto das visões essencialistas, que compreendem os
direitos humanos como um dado da natureza ou da “essência humana”, fundamentado na ideia de
humanidade ou de um “mínimo humano comum”. Dentre os autores que assim se posicionam,
destacamos sem pretensão exaustiva: David Little (LITTLE, David. The Nature and Basis of Human
Rights. In: OUTKA, Gene; REEDER JR., John (org.) Prospect for a Common Morality. New Jersey:
Princeton University Press, 1993, p. 73-92); Jack Donnelly (DONNELLY, Jack. Universal Human
Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell University Press, 1989); Alan Gewirth (GEWIRTH,
Alan. Common morality and the community of rights. In: REEDER JR., John (org.) Prospect for a
Common Morality. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 29-52) e Michael Perry (PERRY,
Michael. The idea of human rights: four inquiries. Nova York: Oxford Universiry Press, 1998).
Distancia-se ainda das escolas deliberativas que defendem um acordo racional de vontade como
fundamento dos direitos humanos e, consequentemente, partem da concepção de um sujeito que é
dotado de uma razão universal e é guiado por uma lei moral a priori. Neste caso, os autores que se
destacam são: Amartya Sen (SEN, Amartya. Elements of a theory of human rights. In: Philosophy and
Public Affairs. Vol.32, N.4, 2004); e Jurgen Habermas (HABERMAS, Jurgen. Sobre a legitimação
baseada nos direitos humanos. Tradução por Gisele Cittadino e Maria Celina Bodin de Moraes, da
versão espanhola “Acerca de La legitimación basada en los derechos humanos”. In: La Constelacion
Posnacional, Barcelona, Eitorial Paidóos, 2000).
15

Cabem aqui dois pontos preliminares. De início, na medida em que propomos


realizar uma análise crítica do discurso dos direitos humanos, é preciso esclarecer o
que se entende, neste estudo, por “crítica”, elemento que tem ocupado espaço
extremamente limitado na literatura tradicional. Compreende-se que a crítica é o
método pelo qual se expõem não apenas os interesses que produzem e mantêm
verdades particulares, mas também os processos que fazem com que algumas formas
de conhecimento sejam aceitas como legítimas enquanto outras são tidas por
suspeitas14. A ideia de crítica aqui empregada busca, assim, investigar como emergem
e funcionam os regimes de verdade. O foco é precisamente o feixe de relações que
amarra o poder, a verdade e o sujeito15. Nas palavras de Michel Foucault,

“a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade


sobre seus efeitos de poder e [interrogar] o poder sobre seus discursos de verdade;
(...) a crítica [é] a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida”16.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Desta forma, não se trata de saber o que é verdadeiro ou falso, real ou ilusório,
legítimo ou abusivo, a partir de um critério universal/ideal, mas de investigar quais as
conexões materiais que ligam o conhecimento a técnicas de coerção, permitindo que
elementos de conhecimento tomem efeitos de poder17 em um determinado sistema e
que procedimentos de coerção adquiram forma e justificação próprias a um
instrumento racional, calculado e tecnicamente eficaz18. Em outras palavras, a crítica
deriva de uma desconfiança e de uma certa resistência desenvolvidas em relação a um
modo específico de governar. Seu principal objetivo consiste, não em adotar um
posicionamento de rejeição às coisas, mas em alcançar uma concreta transformação
dos modos de pensar e de agir a fim de se abrir caminho para novas alternativas
possíveis. Como explica Michel Senellart acerca da posição crítica defendida por
Foucault:


14
EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed. Londres: Pluto Press, 2005, p. 36.
15
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. In: Bulletin de la Société française de philosophie, Vol.
82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Disponível em:
http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/critica.pdf. Acesso em: 10.01.13. p.14.
16
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. Op. cit. p.5.
17
Quando nos referimos ao poder não se trata de uma “entidade coerente, unitária e estável”, mas de
relações que pressupõem determinadas condições de possibilidades e que não existem a não ser em ato.
O poder é a expressão de um jogo de forças que, em um determinado contexto histórico, dirige a
conduta dos corpos envolvidos. Um agenciamento no qual se cruzam práticas, saberes e instituições.
(REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p.120)
18
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. Op. cit. p.14.
16

Não é a partir de um ponto de vista universal, o da natureza, de uma pura consciência,


ou de um fim da história que se opera a crítica de um estado de coisa, mas a partir do
próprio interior da racionalidade que o governa, em seus pontos de tensão ou de
fragilidade. A crítica, em outros termos, não pressupõe a existência de um sujeito
plenamente consciente de si. Ela não é da ordem de um juízo que sobrevoa a
realidade histórica do alto de uma posição ideal de verdade. Procede das crises que
atravessam a espessura de uma racionalidade, em suas múltiplas dobras. É por isso
que ela não pode, do mesmo modo, pretender romper inteiramente com a
racionalidade. A atitude crítica, escreve Foucault, “não é um comportamento de
rejeição. Deve-se escapar à alternativa entre estar dentro ou estar fora; é preciso se
19
situar nas fronteiras”.

Neste sentido, a noção de crítica é indissociável de uma “ontologia do


presente”: longe de transcender ao presente, designa um modo de relação com a
atualidade, na qual o sujeito intervém ativamente no real, questionando-se acerca do
tempo presente como um acontecimento a ser problematizado. Adotar uma visão
crítica dos direitos humanos implica, assim, compreender que as práticas concretas e
atuais que os definem revelam tipos de subjetividade, formas de saber e estilos de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

poder (por exemplo: os debates acadêmicos em torno da falsa dialética entre


universalismo e relativismo; a aplicação pelas Cortes Internacionais das normas de
direito internacional; a utilização estratégica pelos Estados de determinados
instrumentos, como o mecanismo da intervenção humanitária; as lutas identitárias
contemporâneas). A análise crítica desse discurso pretende, portanto, compreender os
modos como este reproduz certos regimes conceituais e a maneira como naturaliza
determinados valores a partir da análise dos quadros institucionais, das tecnologias de
governo e dos agenciamentos políticos que o engendram.
Feito esse primeiro esclarecimento, é preciso ainda explicar que a atitude
crítica proposta neste trabalho não tem por objetivo ignorar ou descartar a importância
do discurso dos direitos humanos, mas apontar que este é tanto um instrumento de
resistência, quanto uma ferramenta a serviço das diferentes estratégias de governo20.
Os direitos humanos possibilitam tanto a praxes de uma política emancipatória quanto


19
SENELLART, Michel. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. In: Tempo Social,
Revista de Sociologia da USP. São Paulo: vol. 7, n. 1-2, 1995. p. 6.
20
O termo “governo” é aqui compreendido, a partir da obra de Foucault, como a relação entre sujeitos
ou como a relação consigo mesmo. No primeiro sentido, ele atua sobre o comportamento dos sujeitos,
ele incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, estende ou limita, obriga ou impede. É uma ação sobre
ações. No segundo sentido, é da ordem das relações consigo mesmo e engloba, por exemplo, o domínio
dos prazeres e dos desejos. (CASTRO, Edgardo. Vocabulario de Foucault. Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 190.) Importante destacar que
Foucault, mais para o final de sua trajetória, passa a descrever o poder como um modo de relação
próprio da ordem do governo. O poder seria, assim, a ação que dirige a conduta dos corpos, uma
operação positiva que, mais do que reprimir e limitar, é produtora de processos de subjetividade.
17

a legitimação da dominação 21 . Ao mesmo tempo que servem para reivindicar


mudanças reais na sociedade, são também utilizados para reforçar formas diversas de
controle. Em resumo, o discurso dos direitos humanos é a linguagem preferida do
poder, por meio da qual seus efeitos são distribuídos pelo corpo social22.
Neste sentido, se, por um lado, o discurso dos direitos humanos pode servir de
instrumento para reproduzir o exercício do controle, atuando como justificativa para
intervenções militares (como recentemente ocorrido nas invasões contra o Iraque e o
Afeganistão); como fundamento de legitimação da prática de tortura por parte dos
Estados (a partir da “luta contra o terrorismo” e da securitização dos direitos
humanos, práticas de tortura e maus-tratos passaram a ser legitimadas em nome de um
direito humano à segurança na ordem internacional, inserindo a ideia de um novo
“tratamento democrático” da tortura23); ou como meio de propaganda de empresas
nacionais e multinacionais (tornou-se comum que empresas, buscando forjar uma boa
imagem perante os consumidores, façam propagandas em defesa dos direitos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

humanos24); por outro lado, é em nome desse mesmo discurso que se organizam as
principais lutas de resistência que buscam expor, limitar e barrar os esquemas de
hegemônia. Os movimentos em defesa da democracia na América Latina na década
de 70, como as “Mães da Praça de Maio”, os movimentos sociais em defesa da
reforma agrária, como o MST no Brasil, as lutas feministas contra a violência
doméstica e a criminalização do aborto, ou as lutas mais recente pelos direitos LGBT,


21
BAXI, Upendra. The Future of human rigts. Op. cit.p. 1.
22
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit. p.101.
23
O processo de securitização dos direitos humanos intensifica-se com a “luta contra o terrorismo”,
que prega a ideia de que as sociedades devem abrir mão dos antagonismos em favor de um suposto
combate ao “mal”, representado por países como Irã, Iraque, Afeganistão e Coréia do Norte. Alguns
exemplos ilustram esse processo: a prisão Abu Ghraib (Iraque), cenário de uma série de violações dos
direitos humanos; a manutenção da prisão de Guantânamo pelos EUA, local onde a utilização de
técnicas de tortura contra os prisioneiros é publicamente reconhecido pelo próprio Estado; a vasta
utilização da tortura como instrumento institucionalizado de interrogatório de supostos “terroristas”,
com previsão legal nos ordenamentos internos dos Estados (por ex.: Os Patriot Acts nos EUA e a
decisão do Tribunal Superior de Israel que autoriza a prática da tortura em interrogatórios); o recente
anúncio dos EUA acerca da utilização de aviões não tripulados (“drones”) na sua “batalha contra o
terror”
24
São exemplos dessa prática: o caso da empresa têxtil italiana, Benetton, famosa por comerciais em
defesa dos direitos dos homossexuais e da igualdade racial e étnica, que foi recentemente acusada de
utilizar mão-de-obra escrava em suas fábricas (http://www.nytimes.com/2013/05/02/business/some-
retailers-rethink-their-role-in-bangladesh.html?pagewanted=all); ou o caso da empresa mineradora
Vale do Rio Doce que, em suas propagandas, explora a importância da defesa do direito ao meio
ambiente, quando, na realidade é acusada de uma série de desastres ambientais.
(http://port.pravda.ru/news/busines/15-01-2013/34193-mineradora_brasileira-0/)
18

são apenas alguns exemplos que ilustram como o discurso dos direitos humanos é
utilizado e ressignificado a todo tempo na materialidade das lutas políticas.
Desta forma, diante da heterogeneidade, da descontinuidade e da aparente
contradição dos usos desse discurso, é preciso, nesse ponto, concordar com Costas
Douzinas quando este afirma que “os direitos humanos tem apenas paradoxos a
oferecer; a energia deles deriva de sua natureza aporética” 25 . Este trabalho não
pretende, contudo, apontar as ambivalências do discurso para simplesmente se
“livrar” dele em nome de um purismo qualquer, mas aceitar seus paradoxos 26 e
analisá-los criticamente, na medida em que são indícios da polivalência estratégica
que garante sua hegemonia. A proposta não é, portanto, qualificar o discurso dos
direitos humanos a partir de critérios como verdadeiro ou falso, mas sim compreender
como se entrecruzam as lutas que lhe dão sentido. Os usos paradoxais desse discurso,
em vez de servirem de justificativa para análises moralistas, devem ser
compreendidos à luz da multiplicidade das relações de poder que os sustentam.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Apresentadas estas colocações iniciais acerca da abordagem crítica que


pretendemos desenvolver sobre o discurso dos direitos humanos, visamos expor, neste
primeiro capítulo, o referencial metodológico que será utilizado para fundamentar o
presente estudo. Em primeiro lugar, a proposta é apresentar o olhar genealógico
desenvolvido por Michel Foucault a partir de suas leituras críticas de Nietzsche. Em
seguida, o objetivo é elencar as precauções de método da analítica do poder que é
possível extrair das pesquisas foucaultianas. Por fim, a intenção é trabalhar a ideia do
discurso como um acontecimento político que integra um dispositivo27 de poder.


25
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Op. cit. p. 38.
26
É preciso esclarecer que “paradoxo” não é uma condição política impossível, mas sim uma condição
exigida e frequentemente insatisfeita. O paradoxo, no sentido político, não deve ser lido como uma
verdade ou confusão acerca de determinadas condições políticas, mas como constrangimentos e limites
impostos pelas condições em que as verdades podem ser proferidas. O paradoxo foca na multiplicidade
de verdades, na possibilidade da emergência de verdade e de sua negação em uma única proposição ou
em verdades que desfazem até mesmo o modo como dependem uma da outra. Portanto, o paradoxo não
é uma condição a ser resolvida. Não se trata de escolher entre uma coisa ou outra, mas aceitar múltiplas
possibilidades. (Ver BROWN, Wendy. Suffering Rights as Paradoxes. In: Constellations. Vol.7, N. 2,
2000. p. 239.)
27
No sentido foucaultiano do termo, “dispositivo” representa “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito
e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos. (...) é um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função
principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.
(FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. 22ª ed. Rio de Janeiro: Gral, 2006,
p.244-246.) Agambem ainda esclarece que o dispositivo é “o conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo
tempo linguístico e não-linguístico, jurídico, técnico e militares) que têm o objetivo de fazer frente a uma
19

1.1
O olhar genealógico

Este trabalho seguirá as pistas deixadas pelos diversos estudos de influência


nietzschiana realizadas por Michel Foucault em nome de uma “história política da
verdade”. Preocupado em investigar a forma como a verdade é produzida nas
sociedades ocidentais, Foucault recorre ao modelo nietzschiano de pensamento como
guia para suas pesquisas. Em oposição ao método epistemológico tradicional, a
perspectiva genealógica se situa no âmbito do mapeamento da política dos saberes, no
plano do estudo dos regimes de verdade e no campo de análise das ordens dos
discursos.
Ao longo de sua trajetória, Nietzsche realizou um conjunto de reflexões
críticas em torno dos temas do conhecimento, da verdade e do poder. O filósofo parte
da ideia de que o conhecimento é uma “invenção” e não tem origem. Não é uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

faculdade natural ou o efeito harmonioso e equilibrado de relações de continuidade,


mas uma série de acontecimentos, produzidos a partir de lutas, de jogos de desejos, de
impulsos e de embates. O modelo desenvolvido por Nietzsche rompe radicalmente
com a metafísica clássica e desfaz a relação originária entre o conhecimento e a
verdade – a verdade deixa de ser a consequência natural do conhecimento e passa a
ser compreendida como o produto político de uma falsificação primeira que define a
distinção entre o verdadeiro e o falso28. Em um texto intitulado “Sobre Verdade e
Mentira no Sentido Extra-Moral”, datado de 1873, Nietzsche declara:

O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias,


antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa
utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades
são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram
desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e agora são
levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas.29

Essa descrição da verdade como metáforas e ilusões forjadas ao longo da


história não indica, contudo, que o problema seja a verdade em si, mas aponta para a

urgência e de obter um feito mais ou menos imediato” (AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo” In: O
que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 35)
28
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar,
1997. p.15
29
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral. Trad. Fernando
de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008. p.36.
20

problematização dos mecanismos de poder que geram efeitos de verdade. Ou seja,


Nietzsche não procura substituir uma verdade por outra ainda mais verdadeira, mas
realizar uma crítica da própria ideia de verdade enquanto um “valor superior”, um
princípio geral de avaliação de todos os demais valores. O filósofo busca, assim,
denunciar o caráter moral da teoria tradicional do conhecimento que venera a ideia da
verdade absoluta, pretendendo historiar o caráter político de suas bases
epistemológicas. O objetivo é, portanto, avaliar o saber a partir da dimensão das
forças: para além do bem e do mal, da verdade e do erro30.
Encontra-se em sua obra uma importante diferença no uso dos termos
“origem” (Ursprung) e “invenção” (Erfindung) em uma recusa à forma como a
filosofia tradicional tende a naturalizar os fenômenos de nossa existência em torno de
um conjunto de verdades estabelecidas. No lugar de um pensamento que busca a
origem solene das coisas, enfatizando as relações de identidade, Nietzsche explora o
jogo político dos acontecimentos, realçando os conflitos acumulados ao longo da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

história31. Trata-se, assim, de buscar a aleatoriedade dos fatos, os acidentes, os erros,


as arbitrariedades e as mentiras que emergiram em um momento singular da história,
ao invés de tentar alcançar o desenvolvimento contínuo e grandioso da Verdade32. No
artigo “Nietzsche, a genealogia e a história”, Foucault trabalha o conceito de
acontecimento para descrever o método nietzschiano:

Há toda uma tradição da história (teleológica ou racionalista) que tende a dissolver o


acontecimento singular em uma continuidade ideal – movimento teleológico ou
encadeamento natural. A história “efetiva” faz ressurgir o acontecimento do que ele
pode ter de único e agudo. É preciso entender por acontecimento não uma decisão,
um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relação de força que se inverte, um
poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua
entrada, mascarada. As forças que se encontram em jogo na história não obedecem
nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas não se
manifestam como forma sucessiva de uma intenção primordial; como também não
tem o aspecto de um resultado. Elas aparecem sempre na álea singular do
acontecimento. (...) De modo que o mundo tal qual nós o conhecemos não é essa
figura simples onde todos os acontecimentos se apagaram para que se mostrem,
pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último;
é ao contrário, uma miríade de acontecimentos entrelaçados; ele nos parece hoje
“maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido”; é que uma


30
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. p. 9-13.
31
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, p.16.
32
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995. p. 120.
21

“multidão de erros e fantasmas” lhe deu movimentos e ainda o povoa em segredo.


Cremos que nosso presente se apoia em intenções profundas, necessidades estáveis;
exigimos dos historiadores que nos convençam disso. Mas o verdadeiro sentido
histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias
em miríades de acontecimentos perdidos33.

A perspectiva genealógica da invenção se opõe, assim, ao argumento


teleológico da origem, sustentando que todo sentido ou valor provém de um esquema
de relações de poder. Nada se apresenta como uma fatalidade do destino ou como um
objeto apriorístico – algo que teria sempre existido, mas que estava à espera do
homem para ser revelado. Todos os sentidos e valores estão sob suspeição e devem
ser interrogados em sua historicidade. Logo, não há, para a genealogia, “essências
fixas, leis subjacentes, nem finalidades metafísicas”34. As coisas não possuem uma
origem inalcançável, um significado oculto ou uma intencionalidade implícita. São
constituídas a partir do desenho traçado pelas práticas sociais, pelos acontecimentos
aleatórios e pela correlação de forças estabelecida em um período de tempo singular.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

O pensamento nietzschiano tem, portanto, duas características: um olhar crítico que


afirma que todos os valores ou sentidos são “inventados” em contextos históricos
marcados por determinados regimes de poder, e, como consequência, uma atitude
criadora que inspira a formulação emancipatória de novos valores e sentidos35. Nas
palavras de Foucault:

Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da
origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para
recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade
cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é
externo, acidental, sucessivo. Procurar tal origem é tentar reencontrar “o que era
imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é
tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias,
todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma
identidade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez
de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo
inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas
são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras
que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente
“desrazoável” – do acaso. A dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos?
Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre

33
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 22ªEd. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 28.
34
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995. p. 119.
35
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Foucault, Nietzsche e a comunicação. In: QUEIROZ, André;
CRUZ, Nina (org.). Foucault hoje? Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. p. 99.
22

retomadas, da necessidade de suprimir a paixão – armas lentamente forjadas ao longo


das lutas pessoais. E a liberdade, seria ela, na raiz do homem o que o liga ao ser e à
verdade? De fato, ela é apenas uma “invenção das classes dominantes”. O que se
encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate.36

A maneira como Nietzsche rompe com a clássica dissociação entre verdade e


poder, relacionando a questão do saber com o interesse, o jogo e a luta, faz de sua
perspectiva um instrumento mais interessante para realizar uma análise política do
discurso. Sua obra quebra com o pacto tradicional do Ocidente que naturaliza a
relação entre o conhecimento, o sujeito e a verdade. E assim, o problema do
conhecimento passa a se configurar a partir das relações de poder que se desdobram
na história.
Foucault retira dois sentidos dessa ideia nietzschiana que argumenta que “o
conhecimento é uma invenção e não tem origem” 37. Em primeiro lugar, não há um
elo de natureza que vincula o sujeito ao conhecimento. Não existe uma relação íntima
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

entre o conhecimento e a natureza humana. O conhecimento não é um instinto


humano. Pelo contrário, ele é o resultado do afrontamento, da guerra e da luta entre os
instintos. Segundo Foucault, “é porque os instintos se encontram, se batem e chegam,
finalmente, ao término de suas batalhas, a um compromisso, que algo se produz. Este
algo é o conhecimento”38. Essa é a primeira ruptura do pensamento nietzschiano com
a tradição da filosofia ocidental. Quando Nietzsche separa o conhecimento da
natureza humana, o saber do instinto, quebra com a unidade do sujeito e, a partir daí,
“podemos admitir sujeitos, ou podemos admitir que o sujeito não existe” 39. O sujeito
que, pelo menos desde Descartes, foi estabelecido como “ponto de origem a partir do
qual o conhecimento é possível e a verdade aparece” 40, deixa de ser o protagonista do
pensamento, um dado prévio e universal, anterior à história e à experiência. E assim,
se torna possível realizar uma história dos processos de subjetivação, ou melhor, da
produção do sujeito de conhecimento.
O segundo sentido que Foucault extrai do olhar genealógico de Nietzsche se
refere à relação do conhecimento com as coisas a conhecer. Na tradição ocidental, o


36
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 22ªEd. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 17-18.
37
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit.p.17.
38
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.16.
39
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit., p.20.
40
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit., p.10.
23

que permite estabelecer uma relação de continuidade e harmonia entre o mundo e o


saber, a natureza e o conhecimento é a afirmação da existência de Deus, de uma
ordem cosmológica ideal que poderia ser decifrada pela razão humana. O
conhecimento, neste sentido, sempre foi caracterizado pelo logocentrismo, pela
adequação e unidade, como se fosse natural o mundo ser conhecido. Se, contudo, não
há “nenhuma semelhança, nenhuma afinidade prévia entre o conhecimento e essas
coisas que seria necessário conhecer” 41, então a relação do saber com a natureza é
violenta e arbitrária, de dominação e de força. Desta forma, Nietzsche rompe
novamente com a tradição e retira Deus do centro do sistema de pensamento.

O conhecimento não tem relações de afinidade com o mundo a conhecer, diz Nietzsche
frequentemente.(...)
O mundo não procura absolutamente imitar o homem, ele ignora toda lei. Abstenhamo-nos de
dizer que existem leis da natureza. É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem
formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar.
É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por
um direito qualquer, a conhecer o mundo. Não é natural à natureza ser conhecida.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

E assim como entre o instinto e o conhecimento encontramos não uma continuidade, mas
uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma,
entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver
nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de
dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das
coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas.42

O método genealógico que Foucault formula, a partir de um estudo crítico de


Nietzsche, poderia ser descrito como um modelo de pesquisa da política do saber.
Trata-se de uma série de instrumentos conceituais que permitem produzir uma
historiografia dos acontecimentos discursivos e seus efeitos de verdade. Para o
pensador francês, a filosofia é precisamente “a maneira de refletir nossa relação com a
verdade”43. É um exercício que possibilita pensarmos a nossa existência a partir da
história da verdade e de seus efeitos de poder, identificando nela “as múltiplas
coerções e as apostas” 44 . Em outras palavras, o que Foucault desenvolve é um
conjunto de ferramentas que o permite elaborar uma introdução a uma “economia
política” da verdade. De acordo com esta análise,


41
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.17.
42
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.18.
43
EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: um pensador do presente. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 37.
44
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Op. cit.p.148.
24

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é –
não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a
recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles
que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade
tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de
discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que
45
funciona como verdadeiro.

Segundo Foucault, cinco características historicamente importantes
caracterizam a “economia política da verdade” em nossas sociedades: a verdade se
coloca na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem (a sociedade
moderna ocidental fundou-se na crença de que a ciência seria a única detentora da
verdade, um saber neutro e puro, livre de qualquer interesse); ela está submetida às
necessidades dos poderes econômicos e políticos, às suas demandas por verdades; é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

objeto de imensa difusão e consumo, uma vez que circula por todo o corpo social
através de seus aparelhos e instituições; é produzida e transmitida sob o controle
dominante de grandes aparelhos econômicos e políticos (universidades, meios de
comunicação, aparelhos pedagógicos, empresas transnacionais); e é o objeto do
debate político e das lutas ideológicas46.
A verdade, portanto, deve ser compreendida não como “correspondência ao
47
real” , mas como uma série de práticas que regulamentam a produção, a divisão, a
distribuição e o funcionamento dos discursos48. Não é uma instância suprema dos
valores, mas um conjunto de regras que distinguem o verdadeiro do falso e dão aos
discursos efeitos específicos de poder. Encontra-se intrinsecamente ligada a sistemas
de poder que a sustentam e a reproduzem e a efeitos de poder que a põem em
circulação. O objetivo da crítica não é, portanto, separar a verdade de todo tipo de
poder – o que seria impossível – mas identificar as estruturas hegemônicas de poder
que balizam os regimes de verdade. Nas palavras de Foucault: “a questão política não
é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade” 49. Não


45
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Editora
Graal, 2006. p. 12.
46
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit. p. 13.
47
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
p. 16.
48
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p. 14.
49
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p.14.
25

se trata, então, de produzir uma verdade ainda “mais verdadeira” para mudar a
consciência das pessoas ou a maneira como elas pensam, mas problematizar o regime
político, econômico e institucional de produção da verdade, buscando a insurreição de
saberes sujeitados pela ordem vigente e a abertura de caminhos alternativos para a
criação de novos valores e sentidos. A análise genealógica do discurso pretende,
portanto, evidenciar os efeitos de poder de uma prática considerada verdadeira para
permitir a emergência de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas
táticas atuais50.

Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instancia teórica unitária que pretenderia
filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em
nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns. As genealogias não
são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata.
As genealogias são, muito exatamente, anti-ciências. Não que elas reivindiquem o
direito lírico à ignorância e ao não-saber, não que se tratasse da recusa de saber ou do
por em jogo, do por em destaque os prestígios de uma experiência imediata, ainda
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

não captada pelo saber. Não é disso que se trata. Trata-se da insurreição dos saberes.
Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de
uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder
que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico
organizado no interior de uma sociedade como a nossa. (...) É exatamente contra os
efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia
deve travar um combate.51

Em suma, o olhar genealógico se preocupa em analisar a verdade a partir dos
regimes de poder que a constituem. Trata-se de uma tentativa de desassujeitar as
perspectivas marginalizadas, tornando-as capazes de se opor e de lutar contra “a
ordem do discurso”, ou melhor, contra o domínio de uma política discursiva unitária,
formal e homogênea que tenta impedir a emergência de novos valores. Segundo
Foucault, a genealogia é um tipo de história que se volta para a constituição dos
saberes sem ter que se referir a um sujeito, seja como um dado prévio e transcendente,
ou como uma identidade vazia a ser perseguida ao longo da história 52 . Pretende,
assim, explicar a invenção do conhecimento a partir de suas condições imanentes de
possibilidade, situando o discurso no interior das estratégias de um dispositivo, como
peça de um arranjo de relações de força.


50
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 13.
51
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 13-14.
52
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p.7.
26

1.2
A analítica do poder

Ao buscar traçar uma história política da verdade, a partir do estudo crítico de


Nietzsche, Foucault rompe com a clássica separação entre o saber e o poder e
renuncia a toda uma tradição do pensamento filosófico, segundo a qual só há saber
legítimo quando este se forma isolado dos interesses, das ingerências e dos conflitos
do poder. Na visão do filósofo, só é possível compreender a dinâmica do saber em sua
relação intrínseca com o poder, assim como só é possível entender a dinâmica do
poder em sua relação inerente com o saber. Neste sentido, as relações de poder não
exercem, em relação ao saber, apenas uma função de facilitação ou de impedimento.
Não se limitam a beneficiá-lo ou estimulá-lo, manipulá-lo ou limitá-lo. Nenhum poder
pode ser exercido sem a fixação, a apropriação e a repartição de um saber. Da mesma
forma, nenhum saber se constitui sem um sistema de comunicação, de registro, de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

acúmulo e de circulação que já é por si só uma forma de poder e que está ainda ligada
a outros esquemas de poder53. Portanto, é preciso admitir que “poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo
relações de poder”54.
Desta forma, é preciso pensar o discurso como desdobramento da relação
saber-poder. É a economia política do poder que separa o verdadeiro do falso. E são
os discursos verdadeiros, produzidos pelos mecanismos de poder, que legitimam os
dispositivos e os colocam em circulação. As contribuições de Foucault sobre o poder
se tonam, assim, essenciais para a análise dos discursos.

Quero dizer o seguinte: numa sociedade como a nossa - mas, afinal de contas, em
qualquer sociedade - múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam,
constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem
funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento
do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma certa economia dos
discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos
submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante
a produção da verdade.55


53
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar,
1997. p.19.
54
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 40ª
Ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 30.
55
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28-29.
27

Ao longo de sua obra, Foucault efetuou um conjunto de pesquisas sobre as


formas de exercício do poder, tendo como objeto a história política de certas práticas
sociais. Embora, pelo caráter do seu método, tais análises não possam ser reordenadas
sistematicamente em uma teoria geral do poder, elas não deixam, porém, de compor o
arcabouço de um projeto intelectual que ele mesmo denominou de “filosofia analítica
do poder”56. Entender sua abordagem sobre o poder é crucial para definirmos melhor
a noção de discurso e podermos avançar no argumento deste trabalho.
Durante as suas pesquisas, Foucault se deparou com a ausência de
instrumentos conceituais para pensar o problema do poder. As formas tradicionais de
análise não satisfaziam às exigências das suas investigações. Por isso, desde o início,
o filósofo rejeitou os dois grandes modelos de análise de poder que, durante boa parte
do século XX, dominaram o pensamento ocidental: o modelo jurídico da soberania e
o olhar economicista do marxismo vulgar.
O modelo da soberania se divide em três elementos: em primeiro lugar, produz
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

uma espécie de “ciclo do sujeito ao sujeito” – estabelece uma relação política que vai
do sujeito, compreendido como um indivíduo dotado, naturalmente (ou por natureza)
de direitos naturais e faculdades primitivas, para o sujeito, entendido, desta vez, como
o elemento sujeitado numa relação de poder. Em segundo lugar, organiza um sistema
que gira em torno de uma unidade fundamental e fundadora, o Estado, que seria a
fonte central de todas as relações de poder – as relações difundidas pelo nexo social
seriam meras capacidades, possibilidades e potências que só adquiririam seu caráter
de poder quando remetidos à soberania. Por fim, a teoria da soberania concede um
privilégio à lei como manifestação fundamental do poder, estabelecendo uma
legitimidade essencial e uma autoridade natural à vontade do soberano – desta forma,
somente a partir da relação com a fonte válida, as leis podem adquirir sua
característica de autoridade57. Foucault resume a crítica:

Tríplice “primitivismo”, pois: o do sujeito que deve ser sujeitado, o da unidade do


poder que deve ser fundamentada e o da legitimidade que deve ser respeitada.
Sujeito, unidade do poder e lei: aí estão, creio eu, os elementos entre os quais atua a
58
teoria da soberania que, a um só tempo, os confere a si e procura fundamentá-los.


56
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escrito V – Ética, Sexualidade, Política. Org. Manoel Barros da
Motta. Trad. Elisa Monteiro e Inês Austran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004, p.50.
57
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Op. cit. p. 49-50.
58
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Op. cit. p.50.
28

Já o marxismo vulgar sustenta uma espécie de “funcionalidade econômica do


poder”, segunda a qual o poder se encontraria em uma posição secundária em relação
à economia. Seria sempre funcionalizado pela economia, tendo como finalidade servir
às relações de produção. O poder seria, enfim, um meio de reconduzir as relações que
são características da economia e essenciais ao seu desenvolvimento. Nas palavras do
filósofo:

“Funcionalidade econômica”, na medida em que o papel essencial do poder seria


manter relações de produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma dominação de
classe que o desenvolvimento e as modalidades próprias das forças produtivas
tornaram possível. Neste caso, o poder político encontraria na economia sua razão de
ser histórica.59

De certa forma, a crítica de Foucault está no fato de que as duas análises, cada
uma de sua maneira, se remetem à figura do Estado para decifrar o poder. Seja pela
fórmula do contrato social ou pela fórmula infraestrutura-superestrutura, o papel
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

exclusivo assumido pelo Estado limita o escopo da análise e impede a compreensão


da pluralidade de lutas que não passam diretamente pelos aparelhos oficiais, embora
muitas vezes os sustentem e os reproduzam. Por esta razão, Foucault buscou forjar
novas ferramentas conceituais que o permitissem superar a maneira banalizada de se
conceber o Estado como órgão único do poder.
Em um primeiro momento, Foucault propõe descartar as fórmulas tradicionais
e realizar o estudo do poder a partir de um “gabarito de inteligibilidade”60 retirado da
metáfora da guerra, ou seja, compreender o poder a partir do esquema da luta, do
conflito e do enfrentamento. O filósofo sugere a inversão da proposição de Carl von
Clausewitz que afirma que “a guerra não é mais do que a continuação da política por
outros meios, (...) não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento da
política, seu prosseguimento por outros meios”. Contrariamente, partindo da hipótese
nietzschiana de que o poder é o “enfrentamento belicoso das forças”, Foucault
concebe a guerra como uma chave de leitura dos processos históricos e afirma que a
política seria a continuação da guerra por outros meios. Em outras palavras, ela seria a
“recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra” 61. E, neste sentido,
as práticas regulares de comportamento, os procedimentos institucionais e a “paz


59
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 20.
60
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 27.
61
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 23.
29

civil” deveriam ser compreendidos, não como a suspensão ou a neutralização da


guerra, mas como a sua continuação, ou melhor, “como episódios, fragmentações,
deslocamentos da própria guerra”62. Nas suas palavras, por “toda a parte se está em
luta (…), e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à rebelião;
e é toda essa agitação perpétua que gostaria de tentar fazer aparecer”63.
Contudo, com o amadurecimento de seus estudos, Foucault apura sua
abordagem. Sem se afastar da problemática da guerra ou abandonar o modelo da luta,
o filósofo aprimora sua posição e passa a apresentar o poder como uma forma de
relação própria da ordem do governo. Por governo compreende tanto o governo dos
outros, ou seja, as relações entre os sujeitos, uma “ação sobre ações” que pretende
limitar e dificultar, mas também incitar, induzir e facilitar a conduta de um indivíduo
ou de um grupo, quanto o governo de si, isto é, a relação que o sujeito estabelece
consigo mesmo para dominar seus prazeres e desejos64. Neste sentido, o poder seria,
então, “um modo de ação”, o resultado de um jogo de forças que, em uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

configuração histórica específica, conduz o comportamento dos sujeitos envolvidos.


Mais do que constrangimento, colisão e brutalidade, trata-se de uma processo positivo
que, para além da violência e do controle, produz ordens de verdade, formas de
subjetivação e regimes de realidade.

O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários ou do


compromisso de um frente ao outro que da ordem do governo (...) o modo de relação
próprio do poder não há, pois, que buscá-lo, do lado da violência e da luta, nem do
lado do contrato ou do nexo voluntário (que, no máximo, só podem ser instrumentos),
mas do lado desse modo de ação singular, nem guerreiro nem jurídico, que é o
governo.65

Cabe ressaltar alguns eixos fundamentais que sintetizam a mudança de


perspectiva que Foucault efetua sobre os modelos tradicionais de análise do poder.
Tais eixos serão apresentados a partir de um certo número de precauções de método
elencadas pelo filósofo ao longo de sua obra para romper com aquilo que denomina
de “analítica jurídica do poder”. O objetivo é, assim, desvincular a pesquisa do poder
do âmbito da teoria político-jurídica da soberania, dos aparelhos de Estado e das

62
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 23.
63
FOUCAULT, Michel. Poder e Saber. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber; organização e
seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.232.
64
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel
Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera
Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 243.
65
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit. p. 243.
30

ideologias e voltá-la para o escopo da dominação-sujeição, para os meios de produção


de subjetividade e para os regimes de saber 66 . Trata-se, portanto, de interrogar-se
sobre o “como” do poder, buscar compreendê-lo a partir da forma como se exerce
concretamente em um contexto particular.
Primeira precaução de método: o poder é “coextensivo ao corpo social” e sua
multiplicidade só pode ser percebida quando reconhecemos as pequenas relações de
força que penetram em todas as dimensões de luta de uma sociedade67. Não devemos
conceber uma grande fonte oficial de onde o poder emana e se dispersa até os níveis
mais baixos e infinitesimais da sociedade. Não existe uma unidade fundamental do
poder ou um foco único de soberania. É preciso, ao contrário, efetuar uma análise
microfísica do poder: partir dos mecanismos mais atomísticos e periféricos de poder,
os quais têm sua própria trajetória, sua própria tecnologia, seu próprio estilo, para, de
maneira ascendente, estudar a forma como esses dispositivos “foram e ainda são
investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global” 68. O
objetivo é, assim, analisar as lutas micropolíticas para demonstrar como
historicamente os mecanismos locais de controle tornaram-se lucrativos e úteis aos
interesses econômicos e políticos de determinada sociedade, ou melhor, compreender
como esses mecanismos, em uma conjuntura específica, foram imbricados em
estratégias globais e incorporados como parte de um conjunto.
Segunda precaução de método: as relações de poder não são opostas ou
exteriores às relações de produção, às relações sexuais, às relações de parentesco, ou
qualquer outro tipo de relação humana. São, na verdade, imanentes às demais
relações, exercendo um papel condicionante e, ao mesmo tempo, condicionado69. O
poder não é uma superestrutura. Pelo contrário, o poder se constitui exatamente nas
configurações gerais e nos efeitos específicos das lutas que atravessam essas relações.
Neste sentido, as múltiplas correlações de força que se formam no âmbito da família,
da escola, da clínica, dos aparelhos de produção e das instituições perpassam todo o
conjunto do corpo social, definindo as trocas, alinhamentos, divisões e redistribuições


66
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 32 e 40.
67
FOUCAULT, Michel. Pode e Saber. Op. cit. p. 248.
68
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 36.
69
FOUCAULT, Michel. Poderes e Estratégias. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 248.
31

do poder. A compreensão da dinâmica do poder implica, portanto, captar a sua


singularidade em cada tipo específico de agenciamento.
Terceira precaução de método: O poder é sempre relacional, não se transfere
ou se detém. Ele se exerce em ato, a partir de “inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis” 70 . Não devemos decifrar o poder como um fenômeno de
dominação maciça e homogênea de uns sobre outros, ou uma composição binária em
que os dominados ficariam de um lado e os dominantes de outro. O poder não é uma
substância que se divide entre aqueles que o detêm com exclusividade e aqueles que
são submetidos, de maneira passiva, a ele. O poder circula e funciona em rede:
“jamais ele está localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é
apossado como uma riqueza ou um bem” 71. Assim, não deve ser pensado a partir de
unidades globais de dominação, como a soberania do Estado, a forma da lei ou como
um sistema de dominação de um grupo sobre outro. O poder, segundo Foucault, “é
uma multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

constitutivas de sua organização”72. Não é uma instituição ou uma estrutura, nem uma
potência de que alguns são dotados, mas é “uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada”73.
Quarta precaução de método: o poder transita pelos indivíduos. Não devemos
tomar o indivíduo como o alvo primitivo do poder, um ente apriorístico que seria o
seu objeto e contra o qual o poder avançaria para o submeter às suas vontades. Os
indivíduos não são um ponto inerte e consentido sobre o qual o poder recai. São, na
verdade, o seu produto e o seu intermediário. Como destaca Foucault, “o que faz que
um corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos como
indivíduos, é precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder” 74. Neste sentido,
o indivíduo, ao mesmo tempo em que é um resultado das estratégias de poder, é
também o seu meio de circulação, ou seja, “o poder transita pelo indivíduo que ele
constitui” 75.
Quinta precaução de método: o poder não é somente negativo ou repressivo,
limitado a relações de interdição e exclusão, de ocultação ou mascaramento, mas é,


70
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: vontade de saber. 16ªEd. São Paulo: Edição
Graal, 2005. p. 90.
71
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
72
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 88.
73
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 89.
74
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
75
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
32

acima de tudo, imbuído de produtividade. Não deve, assim, ser identificado como um
instrumento puro de dominação ou como uma lei que apenas diz não. É preciso
compreender que o poder é onipresente, está necessariamente em toda parte e produz,
a cada instante, novos saberes, novas subjetividades, novos valores e novas técnicas76.
O que permite que o poder se sustente e seja aceito é precisamente o fato de que não é
simplesmente uma força negativa, mas uma relação que “permeia, produz coisas,
induz ao prazer, forma saber, produz discurso” 77 . Por isso, o poder não é uma
instância negativa cuja função seria apenas reprimir e limitar, mas uma rede produtiva
que perpassa todo o corpo social.
Sexta precaução de método: as relações de poder são, ao mesmo tempo, não
subjetivas e intencionais. Não devemos buscar a subjetividade do poder, articulando
perguntas como: enfim, quem é o dono do poder? O que ele tem na cabeça e o que
deseja? O que o leva a querer dominar? O que ele procura? Qual é o seu plano geral?
Pelo contrário, devemos analisar o poder, “do lado em que sua intenção está
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

inteiramente concentrada no interior de práticas reais e efetivas; estudar o poder, de


certo modo, do lado de sua face externa, no ponto em que ele se implanta e produz
efeitos reais”78. Compreendê-lo, consequentemente, no nível das práticas de sujeição,
no plano das técnicas de controle, no campo desses processos silenciosos que
manipulam os corpos, governam os gestos e controlam os comportamentos. Neste
sentido, embora o poder se exerça em função de uma série de objetivos, ele não é o
resultado da escolha ou do desejo de um indivíduo, nem da vontade dos grupos que
controlam os aparelhos do Estado ou que tomam as decisões econômicas. A
racionalidade do poder, segundo Foucault, é “a das táticas (...) que encadeando-se
entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra apoio e condição,
esboçam finalmente dispositivos de controle” 79.
Sétima e última precaução de método: “onde há poder, há resistência (...) e
esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” 80. Não há
um “fora” do poder e dele nada pode escapar. Contudo, isto não significa que o poder
seja uma forma de dominação perene, incontornável, absoluta e triunfante. O que
existem, na verdade, são relações de poder que necessitam, apelam e abrem espaço, a

76
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 81.
77
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. (Organização e Tradução de Roberto Machado). 22ªEd.
São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2006. p. 8.
78
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 33.
79
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 91.
80
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 91.
33

cada instante, para as diferentes formas de resistência. Segundo Foucault, “é porque


há possibilidade de resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta
se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência”81.
A resistência é, portanto, contínua, perpétua e multiforme. Em toda parte e em todo
momento se está em luta. Desta forma, não existe um lugar específico de onde se deva
resistir, o que existem são resistências múltiplas, possíveis, necessárias, espontâneas e
improváveis, que somente existem no campo estratégico das relações de poder.
Em resumo, trata-se de conceber o poder, não como o privilégio da lei, da
interdição ou da soberania, mas entendê-lo a partir de seus objetivos, das estratégias
que lhe atravessam e de sua eficácia tática. Compreender, assim, que “o poder só
existe em ato” 82. Ele é um modo de ação sobre ações, uma maneira de gerir condutas,
ou melhor, uma operação sobre o campo de possibilidade no qual se insere o
comportamento dos sujeitos. O objetivo da analítica foucaultiana do poder é, enfim,
interrogar-se, sobre o “como” do poder, buscar decifrá-lo a partir da forma como se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

exerce concretamente em um contexto particular.


Deste modo, tão importante quanto a diferença entre o pensamento teleológico
da origem e a perspectiva genealógica da invenção, entender o deslocamento
realizado por Foucault em relação às formas tradicionais de decifrar o poder é
decisivo para plenamente compreender toda a complexidade do conceito de discurso.
A análise proposta por este trabalho poderia, assim, ser definida como uma estratégia
composta de duas faces: por um lado, um olhar genealógico que pretende historiar a
verdade; e, por outro, uma método analítico que busca descrever a dinâmica das
relações de poder. Neste sentido, a conexão entre saber e poder é o que fundamenta a
noção de discurso que será adotada. Nas palavras de Foucault,

É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por essa mesma
razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja
função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar
um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou
entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma
multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.
É essa distribuição que é preciso recompor, com o que admite em coisas ditas e
ocultas, em enunciações exigidas e interditas; com o que supõe de variantes e de
efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional


81
FOUCAULT, Michel. Poder e Saber. Op. cit. p.232.
82
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit. p. 242.
34

em que se encontra; com o que comporta de deslocamentos e de reutilizações de


83
fórmulas idênticas para objetivos opostos.

1.3
Discurso, verdade e poder

Ao longo de sua obra, Foucault analisa a temática do discurso sob três


perspectivas diferentes e complementares: a arqueologia dos saberes, a genealogia do
poder e a ontologia crítica de si. Essa tripartição, contudo, não indica grandes
rupturas, mas deslocamentos de perspectivas de um pensamento em constante
transformação. Tais mudanças de ponto de vista mantêm-se em torno de três temas,
com alternância de foco: saber, poder e sujeito. Em sua fase arqueológica, o discurso
encontra-se relacionado às noções de episteme84, de arquivo85 e de enunciado86. Neste
período 87 , a ênfase está no estudo das condições de possibilidade históricas que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA


83
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 95-96.
84
Por episteme, Foucault entende: “o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as
práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas
formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se
realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses
limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as
relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se
prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento,
ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade
soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser
descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das
regularidades discursivas (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007. p.214)
85
Nas palavras de Foucault: “ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história,
palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos
na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos
(tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e
seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas
de outro) que proponho chamar de arquivo.” (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Op. cit.
p. 146)
86
Ao tratar do conceito de enunciado, Foucault esclarece: “Essa materialidade repetível que caracteriza
a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico e paradoxal, mas também
como um objeto entre os que os homens produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam,
combinam, decompõem e recompõem, eventualmente destroem. Ao invés de ser uma coisa dita de
forma definitiva e perdida no passado, como a decisão de uma batalha, uma catástrofe geológica ou a
morte de um rei, o enunciado, ao mesmo tempo que surge em sua materialidade, aparece com um
status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações
possíveis, se integra era operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim,
o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde
a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de
rivalidade.” (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Op. cit. p. 118-119)
87
Contempla o período que vai desde “História da Loucura” (1961), passando pelo “Nascimento da
Clínica” (1963), “As Palavras e as Coisas” (1966) e culminando com “A arqueologia do saber” (1969).
35

permitem a formação de um saber. O objetivo é decifrar o discurso, não como um


conjunto de signos, mas como práticas que constituem ordenadamente os objetos de
que tratam. Posteriormente, ao reconhecer que o método arqueológico não era
suficiente, uma vez que não alcançava os componentes não-discursivos, o filósofo
adota o método genealógico e passa a conceber o discurso a partir das categorias de
poder, de dispositivo e de prática. Nas palavras de Foucault, “a arqueologia seria o
método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz
intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes
desassujeitados que daí se desprendem” 88 . No período genealógico 89 , o foco está,
portanto, nas relações de poder – os regimes de verdade são vistos como elementos de
um dispositivo de natureza essencialmente política. O objetivo é analisar as
singularidades, as rupturas e as ramificações que constituem o discurso e fazem dele
um acontecimento. Finalmente, ao dedicar-se ao estudo da ética, Foucault afirma o
discurso como elemento integrante de um processo de subjetivação. Nos seus últimos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

anos90, o filósofo se dedica a pesquisar a história das técnicas de governo de si e das


“artes de existência”. Sua morte precoce, contudo, deixaram esses estudos
inconclusos.
Partindo de um olhar genealógico, compreende-se por discurso a formação
histórica de um arranjo de relações de força que gera efeitos de verdade. Não se trata,
portanto, de um debate acerca da língua ou dos signos, nem mesmo do campo
simbólico ou do campo das estruturas significantes – a questão é eminentemente
histórica e política. “Discurso” ou “prática discursiva” devem, assim, ser entendidos
como:

uma sistemática que não é de tipo lógico, nem de tipo linguístico. As práticas
discursivas caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definição de
uma perspectiva legítima para o sujeito de conhecimento, pela fixação de normas
para a elaboração de conceitos e teorias. Cada uma dela supõe, então, um jogo de
prescrições que determinam exclusões e escolhas. As práticas discursivas não são
pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Ganham corpo em conjunto
técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e
de difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm.91


88
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 16.
89
Abrange toda o trabalho realizado ao longo da década de setenta, em especial, as obras “Vigiar e
Punir”(1975) e “História da sexualidade. Vol. I: A vontade de saber”(1976).
90
Abrange os últimos anos da vida de Foucault, especialmente as obras “História da sexualidade. Vol.
II: O uso dos prazeres (1984) e “História da sexualidade. Vol. III: O cuidado de si” (1984).
91
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p. 11-13
36

Foucault concebe o discurso a partir de um olhar político, como um


instrumento de luta (utilizado como tática no campo das relações de força) e como
meio de produção de subjetividade que, ao ligar o sujeito à verdade (dotando os
sujeitos de “discursos verdadeiros”), converte-se em uma matriz para os
comportamentos humanos. Em benefício de uma análise das práticas e das estratégias,
o filósofo procura introduzir o discurso numa “dinástica do saber”, a partir da qual
analisa “a relação que existe entre esses grandes modelos de discurso que podem ser
observados em uma cultura e as condições históricas, as condições econômicas, as
condições políticas de seu aparecimento e formação”92.
Na sua aula inaugural do Collège de France, proferida em 2 de dezembro de
1970, Foucault apresenta a hipótese de que em toda sociedade existe um regime de
produção dos discursos que é, ao mesmo tempo, organizado, dirigido, selecionado e
remanejado por um determinado número de processos que tem por função conjurar
suas potências e riscos, governar seu acontecimento contingente, subtrair sua
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

carregada e ameaçadora positividade. Há cerceamentos no ato de falar que são tanto


internos quanto externos. Aquilo que apresenta perigo, que viola a norma é submetido
a uma política de silenciamento. Nem tudo pode ser dito e o que ameaça o sistema
deve ser reprimido. Partindo desta proposição, Foucault destaca quatro exigências de
método a serem consideradas na análise discursiva para mostrar como o poder se
exerce e como ele se revela na ordem do discurso93.
Em primeiro lugar, o “princípio da inversão”: é preciso inverter o papel
positivo comumente atribuído a três figuras chaves, reconhecidas como as principais
fontes do discurso, razão de sua expansão e continuidade: o autor (não como o
indivíduo que fala, mas o princípio de agrupamento do discurso, a unidade de seu
sentido e coerência), a disciplina (uma forma de controle da produção de novos
discursos que define uma série de métodos, regras, definições e proposições
responsáveis por determinar as condições que um enunciado deve satisfazer para
entrar no campo do verdadeiro) e a vontade de saber (corresponde à vontade de
alcançarmos a verdade e opera a separação entre o verdadeiro e o falso). Ao invés de
reconhecê-las como instâncias fundamentais de um sentido originário, é preciso
destacá-las no jogo negativo do recorte, da rarefação e da coerção dos discursos.

92
FOUCAULT, Michel. Da arqueologia à Dinástica. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 48.
93
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 51-53.
37

Percebê-las como elementos de classificação, ordenação e distribuição do discurso,


que limitam seus poderes e dominam suas aparições aleatórias. O discurso não como
a expressão de fontes criadoras, mas como um acontecimento político.
Em segundo lugar, o “princípio da descontinuidade”: não devemos buscar algo
reprimido e recalcado subjacente aos discursos, mas aceitar que estes são práticas
descontínuas que se cruzam, mas também se ignoram e se excluem. Não há, portanto,
um grande discurso unitário, ilimitado, contínuo, silencioso e reprimido que devemos
descobrir a fim de lhe “outorgar” a palavra. Há apenas séries discursivas.
Em terceiro lugar, o “princípio da especificidade”: não permitir que o discurso
seja capturado por um jogo de significações prévias. O discurso não é
reconhecimento, descoberta ou revelação da realidade das coisas, mas o resultado de
uma violência que fazemos às coisas. Trata-se, acima de tudo, de uma prática que
define, que limita e que fornece regularidade aos eventos. Em vez de revelar a origem
do sentido, é preciso mapear a regularidade dos acontecimentos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Em quarto lugar, o “princípio da exterioridade”: não devemos buscar um


“núcleo” interior escondido no discurso, algo não revelado. A análise deve partir do
discurso tal como ele aparece, levando em consideração as condições externas de
possibilidade que limitam a aleatoriedade dos acontecimentos e fixam suas fronteiras.
No lugar de buscar o “tesouro indefinido das significações ocultas” 94, historiar as
condições de possibilidade do discurso.
A partir desta abordagem, é possível afastar alguns equívocos comumente
cometidos em relação à noção de discurso. O discurso não é uma infraestrutura ou
ideologia. Ele não é uma instância autônoma que determinaria as superestruturas
políticas e culturais. Não são mentiras forjadas por um indivíduo ou por um grupo
para dominar os demais e legitimar sua dominação. Ao contrário, o discurso se impõe
sobre todos: “são as lentes através das quais, a cada época, os homens perceberam
todas as coisas, pensaram e agiram” 95. Ele cartografa aquilo que as pessoas pensam e
fazem, mesmo sem saber. Por isso, não há uma relação de causalidade entre o
discurso e a realidade; ele é imanente aos fatos históricos, um meio de delimitar a
singularidade dos acontecimentos.


94
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Op. cit. p. 54.
95
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Op. cit. p. 51.
38

O discurso é, portanto, “a descrição mais precisa, mais concisa de uma


formação histórica em sua nudez, a atualização de sua última diferença”96. É uma
forma de descrever o mundo tal como ele está, sem apelar a valores e ideais
transcendentais. Assim sendo, devemos rejeitar o tema da “eternidade” e da
“universalidade” e analisá-lo como uma singularidade datada, como um
acontecimento. Essa perspectiva se opõe às análises que descrevem o discurso a partir
do ponto de vista da língua, do sentido, da estrutura ou do sujeito. O objetivo é
enfatizar a sua dimensão histórica, preocupando-se mais com a irrupção de
singularidades do que com a linearidade de uma origem universal da humanidade. No
lugar da identidade, a diferença. Ao invés da continuidade, a ruptura.
É preciso, então, pensar o discurso a partir da ideia de
“acontecimentalização”97: concebê-lo inserido na relação entre o novo e o regular,
entre a transformação e a permanência, sem que, com isso, se converta as práticas em
um “a priori” da história, ou se volte para instâncias transcendentais do pensamento98.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

A partir da compreensão de acontecimento como relação de força, superam-se as


noções de acontecimento como novidade e de acontecimento como regularidade para
estudar o discurso tal como ele é. Analisá-lo a partir das práticas concretas que o
produzem. Em vez de tentar descobrir o que lhe é oculto, examinando o problema do
sujeito falante e suas intencionalidades não reveladas, a proposta é observar a
dinâmica das relações de poder, investigando “as diferentes maneiras pelas quais o
discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder
está implicado e para o qual o poder funciona”99. Enfim, conceber o discurso como
um conjunto de jogos estratégicos, de ação e de reação, de dominação e de esquiva,
bem como de luta.
O objetivo da análise genealógica do discurso não é, portanto, separar o que
um discurso revela de verdade e o que revelaria de outra coisa, mas analisar
historicamente como os efeitos de poder são produzidos no interior de discursos que,

96
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Op. cit. p. 17.
97
Com esse neologismo, Foucault se refere a uma forma de se fazer história preocupada em: (i) fazer
surgir a ruptura e a singularidade; (ii) encontrar as conexões, jogos de força e as estratégias que
permitem formar aquilo que se concebe, posteriormente, como evidente. (CASTRO, Edgardo.
Vocabulário Foucault: Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica,
2009. p. 26)
98
CASTRO, Edgardo. Vocabulário Foucault: Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Op.
cit. p. 25
99
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o Poder. In: : Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 253.
39

por sua vez, não são nem verdadeiros nem falsos 100 . Ao invés de uma defesa da
verdade, é preciso evidenciar a disputa em torno de seu estatuto e o papel econômico-
político que a mesma desempenha em determinada sociedade. Por isso, não se trata de
denunciar os erros para substituí-los por afirmações “mais científicas”, mas estudar
como, em um determinado contexto histórico, a verdade é produzida e extraída em
meio aos jogos de exclusão, invalidação e desqualificação dos saberes. A intenção é
realizar uma investigação das necessidades e das estratégias que determinam a
fabricação, a repartição e a circulação dos discursos. O problema é menos o da origem
e descoberta do discurso e mais o da sua invenção e modo de funcionamento101.
Cada sociedade possui seu próprio regime de produção de saberes, tipos de
discursos que são aceitos e multiplicados, mecanismos que distinguem um enunciado
válido de outro falso, técnicas que valorizam a obtenção do conhecimento e ritos que
legitimam aqueles que têm a função social de dizer o que é verdadeiro102. O discurso,
encontra-se, assim, em uma relação imanente com os mecanismos de poder que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

atravessam todo o corpo social, sendo, portanto, impossível analisá-lo sem “levar em
conta as relações de poder que existem na sociedade na qual o discurso funciona” 103.
Segundo Foucault,

É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo
tempo, o efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de
partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas
também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. (...) Não existe um discurso do
poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Os discursos são elementos
ou blocos táticos no campo da correlação de força; podem existir discursos diferentes
e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário,
104
circular sem mudar de forma entre estratégias opostas.

Como esclarece Foucault, o poder não é nem a fonte, nem a origem do


discurso. Ele opera através do discurso, na medida em que o próprio discurso é um
elemento que se encontra inserido em um dispositivo mais amplo. Neste sentido, é
preciso compreender o discurso como um componente tático no âmbito das

100
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. (Organização e Tradução de
Roberto Machado). 22ªEd. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2006. p. 7.
101
EWALD, François. Foucault: a Norma e o Direito. Lisboa: Vega, 1993. p. 15.
102
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. (Organização e Tradução de Roberto Machado).
22ªEd. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2006. p. 12.
103
FOUCAULT, Michel. Da arqueologia à Dinástica. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 53.
104
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 95-96.
40

estratégias de poder. Em outras palavras, “o discurso é imanente ao dispositivo que se


modela a partir dele (...) e que o encara na sociedade”105.
Desta forma, não se trata de perguntar ao discurso dos direitos humanos qual a
teoria implícita e subjacente que lhe fundamenta, quais as divisões morais que
introduz na sociedade ou que tipo de ideologia representa, a do dominado ou a do
dominante. Ao contrário, é preciso interrogá-lo a partir do nível de sua produtividade
tática (analisá-lo através dos efeitos concretos de poder e de saber que produz em um
determinado contexto histórico) e do nível de sua integração estratégica (estudá-lo
levando-se em consideração a conjuntura e a correlação de forças que tornaram
necessária a sua emergência e a sua utilização). Trata-se, assim, de considerar o
discurso como uma série de acontecimentos que operam no interior do mecanismo
geral do poder 106 . Desnaturalizar os enunciados e problematizar seus efeitos de
verdade nos permite, enfim, revelar a política discursiva que põe os direitos humanos
em prática no contexto atual.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA


105
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Op. cit. p. 54.
106
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o Poder. Op. cit. p. 254.
41

2
A era do biopoder

No primeiro capítulo buscamos demonstrar a relação imanente entre discurso,


verdade e poder, ou melhor, procuramos evidenciar que o poder não funciona sem um
“discurso verdadeiro” que lhe reproduza e lhe dê sustentação. Nesta segunda parte do
trabalho, nosso objetivo é traçar a genealogia da mecânica do poder moderno para,
enfim, analisarmos o discurso dos direitos humanos como a “linguagem política”
legitimadora do biopoder e elemento central do processo de governamentalização da
vida humana. Assim, sustentamos a hipótese de que o discurso dos direitos humanos e
as tecnologias modernas de poder encontram-se em uma relação de imanência
absoluta: essas são a sua condição de existência e aqueles a justificação dessas. Em
outras palavras, os direitos humanos emergem como a “verdade política” da era
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

moderna, como o discurso legitimador das “sociedades do biopoder”.


Para tanto, este capítulo se dividirá em três parte: em primeiro lugar,
introduziremos o conceito de biopoder, enquanto acontecimento que inaugura a
modernidade e marca a entrada da vida nos cálculos do poder. Em segundo lugar,
examinaremos o processo de “governamentalização” da vida moderna. E, por fim,
analisaremos a relação entre o biopoder e o discurso dos direitos humanos. Trata-se,
assim, de mapearmos as mudanças que ocorreram na economia do poder para
entendermos como este discurso surge no limiar da modernidade, se internacionaliza
no século XX e, finalmente, triunfa na virada do milênio.

2.1
O nascimento do biopoder

Um dos acontecimentos centrais que marcaram a genealogia das sociedades


modernas foi a instalação, na passagem do século XVII para o XVIII, de uma nova
estratégia de poder que tem na vida humana o seu objeto central: o biopoder. Esta
nova mecânica do poder, que surge com o desenvolvimento do modo de produção
capitalista, passa a conceder existência política ao homem enquanto ser vivente e
42

membro de uma espécie. A “vida biologicamente considerada” se transforma, assim,


no elemento político por excelência, no ponto de fixação do poder e do saber e no
alvo principal do governo, configurando aquilo que Foucault denomina de
“estatização do biológico” 107.

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de
viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos,
no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e
de intervenção do poder. (...) deveríamos falar de “biopolítica” para designar o que
faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e
faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida
tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhes
escapa continuamente. Fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do
que nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e, em todo
caso, mais graves do que antes do nascimento da microbiologia. Mas, o que se
poderia chamar de “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade se situa no
momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias
políticas. O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um
animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um
animal, em cuja política de ser vivo está em questão.108
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Neste sentido, o biopoder consiste no processo que, no começo da


modernidade 109 , transforma a vida humana na principal aposta das estratégias
políticas, introduzindo novas tecnologias de poder, formas de subjetivação e regimes
de verdade. Isso não significa que a preocupação com a vida não existisse antes,
mesmo que de forma difusa e rudimentar. Porém, é preciso reconhecer que no século
XVIII os dispositivos de governo da vida atingiram níveis de sofisticação e de
eficiência jamais observados anteriormente.
Desde a Baixa Idade Média até o século XVIII, a mecânica geral do poder era
amparada, predominantemente, na relação senhor/súdito e fundamentada no modelo
jurídico da soberania. O poder soberano voltava-se muito mais para o controle das


107
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 286.
108
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.134.
109
Compreende-se por modernidade, a partir da obra de Foucault, um período da história do Ocidente
que se inicia no século XVIII e se estende até o presente. A partir de um olhar político, começa com a
Revolução Francesa e de um olhar filosófico, se inicia com Kant. A modernidade corresponde, assim,
às formas de saber e às formas de poder que se consolidaram sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX:
a invenção do homem, enquanto objeto e sujeito do conhecimento e o desenvolvimento das técnicas de
normalização dos corpos. Contudo, o conceito de modernidade adquire, em Foucault, um sentido ainda
mais importante que não se refere a uma época ou a uma caracterização, mas sim a uma atitude, uma
maneira de pensar, de sentir e de agir. Nesta perspectiva, a modernidade se iniciaria com o pensamento
cartesiano, e se sustentaria na ideia de que a relação entre o sujeito e a verdade se dá somente através
da razão, ideia esta que passa a reger as condutas humanas desde então. CASTRO, Edgardo.
Vocabulario de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Op. cit. p. 301-302)
43

riquezas, dos bens, dos território e de seus produtos, do que para a vida dos
indivíduos, com a qual mantinha uma relação de ruptura e descontinuidade. A
incidência do poder sobre o corpo dos súditos ocorria sempre de maneira pontual, sem
a imposição de um controle contínuo e permanente. O poder se exercia, por exemplo,
por meio da cobrança de impostos, da apropriação parcial dos produtos da terra ou
dos serviços religiosos, mas não resultava em um domínio geral das formas de
existência. No mesmo sentido, as punições marcavam, esquartejavam, amputavam e
supliciavam o corpo a fim de fragmentá-lo, sem, com isso, promover um processo de
individuação em que o corpo seria, então, convertido em um indivíduo adestrado. A
atenção centrava-se no rito, na cerimônia e no espetáculo dos castigos, a fim de fazer
do soberano o único corpo perfeitamente visível e identificável.

É [a teoria da soberania] que permite transcrever em termos jurídicos obrigações


descontínuas e crônicas de tributos, e não codificar uma vigilância contínua; é uma
teoria que permite fundamentar o poder em torno e a partir da existência física do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

soberano, e não dos sistemas contínuos e permanentes de vigilância. A teoria da


soberania é, se vocês quiserem, o que permite fundamentar o poder absoluto no
dispêndio absoluto do poder, e não calcular o poder com o mínimo de dispêndio e o
110
máximo de eficácia.

Segundo Foucault, a fórmula da soberania cumpriu diferentes papéis ao longo


da história. Reativada do direito romano no final da Idade Media, serviu de
instrumento e de justificação para as monarquias nascentes, fornecendo o arcabouço
teórico para a manutenção do poder do rei. Posteriormente, nos séculos XVI e XVII,
período das guerras religiosas, transformou-se na principal ferramenta política em
torno das disputas de poder na Europa: era invocada pelos diversos lados do conflito,
desde aqueles que buscavam preservar e fortalecer o poder régio (como os católicos e
protestantes monarquistas), até aqueles que pretendiam limitá-lo ou destituí-lo (como
os católicos defensores do regicídio, os protestantes anti-monarquistas e os senhores
feudais contrários à centralização do poder na figura do rei). No século XVIII,
contudo, essa mesma teoria passa a servir de fundamento crítico contrário às
111
monarquias administrativas do absolutismo . Reformulada pelas teses
contratualistas 112 , o modelo jurídico da soberania aparece como o alicerce da


110
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 43.
111
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 41.
112
Foucault sugere que as teorias contratualistas podem ser entendidas como uma tentativa das artes de
governar de se reconciliarem com a teoria da soberania. Haveria, a partir desta concepção, na qual
44

construção das democracias parlamentares. Emerge como um discurso de rebeldia e


de divergência, ligado aos interesses da classe burguesa ascendente, contra o poder
despótico do monarca e os abusos estatais. Finalmente, ao longo dos séculos XIX e
XX, a teoria da soberania se adapta integralmente às necessidades governamentais das
sociedades capitalistas e se perpetua como o saber oficial do Estado moderno.
Em todo caso, a problemática central do poder, até o século XVIII, constituiu-
se, principalmente, em torno da manutenção da ordem soberana (internamente por
meio do respeito às leis e externamente através das guerras), em nome da qual o
monarca tinha o direito de vida e morte sobre os súditos. Influenciados pela velha
pátria potestas do direito romano – que concedia ao pai o direito de “dispor” da vida
de seus filhos e de seus escravos – o modelo da soberania concedia ao soberano “um
direito de espada” 113.

O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de
matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

de exigir. O direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de
causar a morte ou deixar viver.114

Na passagem do século XVIII para o XIX, Foucault identifica profundas


transformações nas estratégias de poder: ao antigo projeto da soberania de “fazer
morrer e deixar viver” sobrepôs-se o poder de “fazer viver e deixar morrer”. No lugar
de um direito de matar o súdito, insurge um biopoder “destinado a produzir forças, a
fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” 115 –
trata-se de um poder de gerir a vida humana para torná-la útil e produtiva. A vida
passou a ser concebida não mais como responsabilidade individual de cada sujeito ou
família, mas como espaço fundamental de intervenção estatal. O que antes se
encontrava restrito à esfera privada passa a ocupar a arena pública, transformando-se
gradativamente em condição de possibilidade para o exercício do poder e para a


destaca-se Hobbes e Rousseau, uma dissociação entre o poder político e o seu fundamento. O poder é
exercido pelo Estado embora fundamentado nos indivíduos, na soberania popular. (DEAN, Mitchell,
Governmentality. Sage Publication: Londres, 2006. p.87)
112
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins
Fontes, 2008. p. 383.
113
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4 Op. cit. p. 287.
114
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.128.
115
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.128.
45

legitimação da existência do Estado. O velho poder soberano sobre a morte é agora


acobertado pelo governo calculista da vida116.
Contudo, a passagem do antigo modelo da soberania ao regime do biopoder
não ocorreu em um movimento de ruptura ou de oposição, mas a partir de um
“acompanhamento necessário”. Neste sentido, a teoria da soberania não deixou de
prevalecer na política, embora tenha passado a cumprir papeis diferentes. De um lado,
serviu de instrumento de crítica contra o absolutismo e contra qualquer obstáculo à
implementação da sociedade industrial. Por outro lado, possibilitou a formação de um
sistema jurídico que buscou mascarar os procedimentos de poder sobre a vida através
de um processo de “democratização” da soberania: tratava-se de permitir a
dominação, ao mesmo tempo em que as estratégias de poder e seu efetivo exercício
eram dissimulados, apresentados na forma de um direito público, como produto
imediato da soberania popular. E assim, segundo Foucault, a teoria da soberania
persistiu em nossas sociedades como ideologia e princípio organizador do direito.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Temos, pois, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até os nossos dias, de
um lado uma legislação, um discurso, uma organização do direito público articulados
em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de
sua soberania ao Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, uma trama cerrada de
coerções disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo social. Ora,
essa trama não pode de modo algum ser transcrita nesse direito, que é, porém, seu
acompanhamento necessário. Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina:
é entre esses dois limites, creio eu, que se pratica o exercício do poder. Mas esses
dois limites são de tal forma, e são tão heterogêneos, que nunca se pode fazer que um
coincida com o outro. O poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir e
no próprio jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma
117
mecânica polimorfa da disciplina.

Importante ressaltar que as transformações históricas que marcaram a entrada


da vida no quadro central da política e a desqualificação da morte (caracterizada pelo
desuso dos rituais que a consagravam, como os antigos suplícios públicos) não estão
relacionadas com sentimentos humanitários ou com um possível progresso moral da
sociedade, mas são, ao contrário, fruto das mudanças ocorridas na economia do poder
capitalista a partir principalmente do século XVIII. Tratava-se, na verdade, de se
buscar novas estratégias de dominação que se adequassem ao modelo de exploração e
ao modo de produção em desenvolvimento. Do ponto de vista das práticas (dos


116
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.131.
117
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 44-45.
46

mecanismos, das estratégias e das tecnologias), tais mudanças percebidas ao longo da


modernidade desenvolveram-se por meio de duas formas complementares e
interligadas que se sobrepõem historicamente: a anátomo-política do corpo e a
biopolítica da população. Trata-se de dois pólos em função dos quais constitui-se a
organização do poder sobre a vida: a série corpo-disciplina-instituições e a série
população-processos biológicos-mecanismos reguladores-Estado.
Entre os séculos XVII e XVIII, surge, no seio das sociedades industriais, um
conjunto de técnicas de poder centradas no corpo humano individualizado, concebido
como máquina. Consistia em uma série de mecanismos de aperfeiçoamento e
ampliação da capacidade do corpo que visavam incidir sobre os seus mínimos
detalhes, movimentos e comportamentos. Tratava-se, assim, de uma economia do
poder definida por disciplinas que, através da vigilância, do treinamento, da
hierarquia e do exame, dirigiam-se aos indivíduos a fim de lhe extraírem tempo,
produção e trabalho. Essa anátomo-política buscava distribuir os corpos no espaço
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

(através de procedimentos como a clausura), controlar o tempo e a regularidade das


atividades e definir, enfim, a composição das forças que influenciavam o
agenciamento dos corpos. Dentre os dispositivos disciplinares figuram, por exemplo,
a escola, os conventos, a prisão, a fábrica, o exército, o hospital e o hospício: espaços
voltados para a normalização dos gestos, dos hábitos e das palavras dos indivíduos.
Em suma, o poder disciplinar objetivava produzir corpos economicamente úteis e
politicamente dóceis - aumentar a força econômica e, ao mesmo tempo, reduzir a
potência política dos indivíduos.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. (...) A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência).118

Na segunda metade do século XVIII, contudo, surge uma nova dimensão


tecnológica do poder, com instrumentos e estratégias próprias, que acaba por


118
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit. p. 133-134.
47

englobar, integrar e alterar parcialmente a mecânica disciplinar. Trata-se de um poder


que não pretende simplesmente governar indivíduos, mas sim tratar dos problemas
biológicos (ou bio-sociológicos) específicos a um conjunto de seres vivos
compreendidos enquanto população, assegurando sobre eles não apenas uma
119
disciplina, mas principalmente uma regulamentação . Questões relativas à
natalidade, à mortalidade, à longevidade, à taxa de reprodução, às epidemias e
diversos outros processos econômicos e políticos típicos das cidades (especialmente
aqueles derivados da relação entre a população e a riqueza) passaram a constituir o
campo de intervenção da biopolítica, cujo objetivo consiste, neste sentido, em
“implantar um gerenciamento planificado da vida das populações” 120 . Enquanto a
soberania capitaliza um território e a disciplina arquiteta o corpo, a biopolítica busca
racionalizar os fenômenos próprios do homem-espécie. Essa nova forma de assunção
da vida orgânica pelo poder ocorre a partir de uma concepção global e massificante
dos indivíduos enquanto seres viventes, membros de uma espécie biológica, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

reorganiza toda a economia política do governo em torno de um novo elemento, de


uma nova personagem: a população.

É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo
menos necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica lida com
a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo
científico e político, como problema biológico e como problema de poder (...) A
biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa
população considerada em sua duração. (...) E trata-se sobretudo de estabelecer
mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão
poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de
homeostase, assegurar compensações; em suma de instalar mecanismos de
previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos,
de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida.121

Foucault esclarece, contudo, que não se deve pensar a história do poder


moderno como a substituição progressiva do modelo da soberania pelo regime
disciplinar e, posteriormente, pela biopolítica. Esses três fenômenos precisam ser
pensados no contexto de uma sociedade que caminhava, a um só tempo, em direção à
explosão demográfica, ao crescimento das aglomerações urbanas e ao
desenvolvimento industrial. Devem, assim, ser estudados necessariamente a partir de

119
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 294.
120
DUARTE, André. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Disponível em:
www.revistacinetica.com.br/cep/andreduarte.htm. Acessado em:20.04.2013.
121
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 292-294.
48

suas correlações históricas e materiais, ou melhor, dos processos que articulam seus
agenciamentos em uma rede de dispositivos de biopoder. A prisão, a polícia, a
medicina e o hospital, por exemplo, além de mecanismos disciplinares que
individualizam os corpos, devem ser entendidos como elementos de uma biopolítica
que se legitima formalmente pelo modelo jurídico da soberania. Eles incidem, ao
mesmo tempo, sobre o corpo e sobre a população, impondo tanto efeitos de
disciplinamento quanto de regulamentação. O fato é que a partir do surgimento do
problema do governo da população, intensifica-se a fundação da autoridade política
na forma da soberania e aprofunda-se a necessidade das disciplinas como meio da
administração dos corpos. Neste sentido, poderíamos dizer que, na modernidade, a
teoria da soberania é o discurso que impera no nível dos regimes de verdade; os
mecanismos disciplinares definem a forma geral dos processos de subjetivação; e a
biopolítica triunfa como modelo hegemônico das técnicas de governo. Encontramos,
portanto, em nossas sociedades, um triângulo “soberania - disciplina - gestão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

governamental” 122, cujo alvo central é a vida e cujo fundamento é o biopoder.


Em suma, estamos diante de um conjunto de estratégias, técnicas e
procedimentos que intervieram diretamente no nível dos processos econômicos, de
suas forças e de sua expansão; de uma série de práticas que revelaram ser
indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo, garantindo, a um só tempo, a
“inserção controlada dos corpos nos aparelhos de produção” e o “ajustamento dos
123
fenômenos de população aos processos econômicos” . Poderíamos, desde já
concluir (mesmo antes de adentrarmos profundamente na genealogia do poder
moderno, desenvolvida nas próximas páginas deste estudo) que a adequação da
organização social dos homens à acumulação do capital, o ajustamento do
crescimento populacional à expansão da produção capitalista, a gestão distributiva das
forças individuais e coletivas e a repartição desigual do lucro pelo corpo social
somente foram possíveis com o desenvolvimento do biopoder em suas múltiplas
formas: “já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania, mas de
distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade” 124.


122
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.143.
123
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 132.
124
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 135.
49

2.2. A era da governamentalidade

Se o biopoder nasce no centro da expansão do capitalismo a partir do


cruzamento político das esferas da lei (soberania), do corpo (disciplina) e da
população (biopolítica), foi o desenvolvimento do governo, concebido como técnica
geral de governo dos homens, o fator decisivo para a concretização das
transformações na mecânica do poder que marcaram o advento da modernidade.
Como explica Michel Senellar, para entender o biopoder é preciso, antes, esclarecer a
noção de governamentalidade:

De fato, tudo acontece como se a hipótese do biopoder, para se tornar operacional,


exigisse ser situada num marco mais amplo. O anunciado estudo dos mecanismos
pelos quais a espécie humana entrou, no século XVIII, numa estratégia geral de
poder, apresentado como o esboço de uma “história das tecnologias de segurança”,
cede a vez, já na quarta aula do curso de 1978 [Segurança, Território, População], ao
projeto de uma história da “governamentalidade”, desde os primeiros séculos da era
cristã. Do mesmo modo, a análise das condições de formação da biopolítica, no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

segundo curso [Nascimento da Biopolítica], logo se apaga em benefício da análise da


governamentalidade liberal. Em ambos os casos, trata-se de lançar luz sobre as
formas de experiência e de racionalidade a partir das quais se organizou, no Ocidente,
o poder sobre a vida.125

O problema do governo, “na medida em que se apresenta como exercício da


soberania política”126, é deflagrado, segundo Foucault, no século XVI127, a partir da
crise do feudalismo e do surgimento das grandes monarquias administrativas,
absolutas e coloniais. Era um período caracterizado, por um lado, pela formação dos
Estados territoriais e consequente concentração administrativa do poder e, por outro,
pelo questionamento da direção espiritual introduzida pela Reforma e Contra-


125
SENELLART, Michel. Situação dos cursos. In: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território,
População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P. 496.
126
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 3.
127
Isso não significa que não se possa pensar o problema do governo antes do século XVI. O que
Foucault busca destacar, contudo, é que foi somente a partir deste momento que as artes de governar se
organizaram, não mais como conselhos ao príncipe (sobre como governar seus súditos e se fazer
aceitar), mas como uma racionalidade política própria do Estado. Foucault compreendeu por governo:
de maneira geral, uma “ação sobre ações”, uma forma de atividade que busca moldar, guiar e afetar a
conduta de um indivíduo ou de um grupo, abrangendo tanto o governo de si quanto o governo dos
outros; de maneira mais específica, as relações produzidas no exercício da soberania política. O
objetivo central de Foucault ao longo de sua obra é precisamente a inter-relação entre essas diferentes
formas e significados de governo. Contudo, ao traçar a genealogia do problema do governo nos cursos
“Segurança, Território e População” e “Nascimento da biopolítica”, o filósofo preocupa-se
principalmente com o governo no seu sentido político. (GORDON, Colin. Governmental rationality:
an introduction. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILER, Peter (org.) The Foucault
effect. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. P.3.)
50

Reforma em um movimento de dispersão e desconcentração religiosa. É nesse


contexto que se coloca com maior intensidade a problemática geral do governo:
“como ser governado, por quem, até que ponto, com que fim, por que métodos”128.
Para além dos problemas do príncipe no governo do Estado, a questão voltava-se, por
exemplo, para o governo de si, trazido pelo retorno do estoicismo; para o governo dos
filhos, colocado como a grande discussão da pedagogia naquele momento; e para o
governo das almas e das condutas, tema central das disputas religiosas. O
questionamento geral sobre o governo coincide, assim, no fim do feudalismo, com o
nascimento de novas formas de relações socioeconômicas (mercantilismo) e novas
estruturas políticas (Estado)129.
Foucault procura compreender a emergência da problemática do governo a
partir do estudo de uma literatura “anti-maquiaveliana”130 , que surge no século XVI e
se expande até o século XVIII. São textos que apontam para o desenvolvimento de
uma nova “arte de governar”131 que tem pouco ou nada a ver com as habilidades do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

príncipe em manter seu principado132.


Em primeiro lugar, opondo-se à teoria jurídica da soberania, o conceito de
governo passa a ser compreendido como uma prática essencialmente múltipla e
desvinculada da singularidade transcendente do soberano, na medida em que engloba


128
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.119.
129
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit.. p.82
130
No curso “Território, segurança e população”, na aula de 1º de fevereiro de 1978, Foucault busca
analisar o surgimento da “arte de governar” a partir de uma literatura anti-maquiaveliana sobre o
governo, dando destaque à obra de Guillaume de la Perrière, François La Mothe Le Vayne e Quesnay.
Na verdade, como esclarece Senellar, trata-se de uma nova racionalidade governamental que se deu
não contra Maquiavel, mas no sentido de um antimaquiavelismo “menos preocupado em reconciliar a
moral e a política do que em afirmar, face à pura lógica dos apetites de poder, a positividade do
funcionamento do Estado.” (SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora34, 2006.
p. 61)
131
Por arte de governar Foucault compreende, não a maneira como efetivamente os governantes
governam, mas sim a maneira pensada de governar o melhor possível, ou ainda, a reflexão sobre a
melhor maneira possível de governar. Trata-se de compreender a “maneira como se estabeleceu o
domínio da prática do governo, seus diferentes objetos, suas regras gerais, seus objetivos de conjunto a
fim de governar da melhor maneira possível” (FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op.
cit. p. 4)
132
Foucault destaca que na obra de Maquiavel, o príncipe encontrava-se numa relação de exterioridade
e transcendência necessária para com seu principado (recebido por herança, conquista ou aquisição). O
vínculo do príncipe com o súdito era, portanto, um vínculo de violência ou de tradição, ou podia ser
ainda definido pelo acordo e tratado entre príncipes. Em todo caso, tratava-se de uma relação frágil e
sob constante ameaça, tanto interna, posto que não há uma razão fundamental a priori que obrigue os
súditos a aceitarem o príncipe, quanto externa, vinda de seus inimigos que pretendem tomar seu
território. É precisamente essa relação, esse vínculo frágil entre o príncipe, o território e seus habitantes
que a arte de governar, apresentada por Maquiavel, tem por objetivo. O píncipe de Maquiavel é, assim,
um tratado de habilidade do príncipe em conservar seu território (FOUCAULT, Michel. Segurança,
Território, População. Op. cit.. p.123).
51

diferentes modos de se governar: o governo do pai sobre os filhos, o governo do


professor sobre os alunos, governo da igreja sobre as almas dos fiéis, etc. Não se trata
mais de assinalar e fundamentar a descontinuidade do poder do príncipe em relação a
qualquer outra forma de poder, mas sim de identificar a continuidade ascendente
(assegurada pela pedagogia do príncipe: quem quiser governar um Estado precisa
governar a si mesmo, sua família, seus bens, etc.) e descendente (assegurada pela
polícia: o bom governo do Estado serve de exemplo para o bom governo dos
indivíduos sobre suas famílias, suas riquezas e propriedades) entre as diversas formas
de governo 133 . A peça central que garante essa continuidade do poder é, segundo
Foucault, a economia. A arte de governar que surge neste momento deve, assim,
introduzir a economia – até então restrita ao modelo do “bom pai de família”
responsável por administrar seus filhos, sua mulher e sua criadagem – no centro do
poder político do Estado134.
Em segundo lugar, a noção de governo, nesta nova literatura, passa a ser
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

entendida como “a correta disposição das coisas”: governa-se não apenas um


território, mas tudo que se encontra em seu interior. Não se trata de um “problema de
propriedade” ou de “soberania”, mas de como governar um conjunto complexo
constituído pelos homens e pelas relações e vínculos que estes mantêm com as coisas
(compreendida de maneira ampla como as riquezas, os bens, o território, os meios de
subsistência, os costumes, os hábitos e as calamidades, por exemplo).
Em terceiro lugar, o governo é concebido a partir de uma pluralidade de
finalidades definidas: aumentar a riqueza, permitir o desenvolvimento da população,
garantir os meios de subsistência, dentre outras. Seu objetivo não é alcançar o “bem
comum” ou impor a obediência à lei, mas governar todas as coisas de acordo com o
fim adequado para cada uma delas. Enquanto a soberania tem por finalidade
“perpetuar-se a si mesma” indefinidamente, ou seja, manter a dominação do soberano
sobre um território por meio da imposição da lei que fundamenta em si própria; o
governo volta-se para uma pluralidade de fins exteriores, para as coisas que pretende
gerir e para a intensificação e maximização dos processos que dirige, através, não


133
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.126.
134
De acordo com Lazaratto, “a entrada da vida na história é analisada por Foucault através do
desenvolvimento da economia política. Foucault demonstra como as técnicas de poder mudaram no
momento preciso em que a economia (como governo da família) e a política (como governo da pólis)
se integraram uma a outra. (LAZZARATO, Mauricio. Del biopoder a la biopolítica. In:
Multitudes,1,mars,2000.Disponível em: http:// multitudes.samizdat.net/article.php3?id_article=298
Acesso em: 10.05.2013. p.2.)
52

mais da lei, mas de táticas normalizadoras. De um lado, “uma prática tautológica do


poder”, de outro a “necessária teleologia governamental”135.
Neste sentido, a questão do governo não é mais a de como proibir ou
legitimamente dizer não ao desejo dos súditos visando a auto conservação do poder;
mas, ao contrário, o de como dizer sim e conseguir eficazmente conduzir os desejos
dos indivíduos. Governar não significa ser soberano, proprietário, senhor, juiz, ou
mestre; não é a mesma coisa que reinar, comandar ou fazer a lei; mas uma forma de
racionalidade que pretende administrar e conduzir as condutas dos homens,
considerados individualmente ou organizados de forma coletiva. De acordo com
Foucault,

Devemos deixar para este termo [governo] a significação bem ampla que tinha no
século XVI. Ele não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados;
mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo
das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria
apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política ou econômica; mas modos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as
possibilidades de ação dos outros indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o
eventual campo de ação dos outros.136

Contudo, a “arte de governar” foi, por muito tempo, bloqueada e impedida de


se desenvolver por razões históricas, políticas e institucionais. De um lado, o século
XVII foi inteiramente marcado por uma série de crises financeiras e conflitos de
subsistência – causados, por exemplo, pela Guerra dos Trinta Anos e pelas grandes
rebeliões rurais e urbanas – que limitaram o seu desdobramento e expansão. De outro,
até o século XVIII, a questão do governo manteve-se restrita ao problema do
exercício da soberania como questão teórica fundamental e princípio geral de
organização da política: resumia-se ao debate acerca dos meios de conservação do
poder do soberano e aos instrumentos típicos da soberania (a lei, os regulamentos e as
ordens). O melhor exemplo disto foi, segundo Foucault, o mercantilismo que, embora
represente a primeira forma de racionalização do exercício do poder do Estado como
tática do governo, encontrava-se, naquele momento, impedido de avançar pois
limitava-se à estrutura institucional e mental da soberania: buscava manter a riqueza,
constituir exércitos, fazer a lei, tudo em nome do poder soberano.


135
SENELLART, Michel. As artes de governar. Op. cit. p. 19.
136
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Op. cit.. p. 245.
53

Foi somente com o surgimento do problema da população no século XVIII


que a arte de governar foi finalmente desbloqueada das amarras da tradição feudal. O
conceito de população é entendido, por Foucault, não como a soma dos indivíduos de
um território, nem o resultado de cada uma de suas vontades, mas como um conjunto
de processos que redefine as formas de coletividade até então existentes e que impõe
novas estratégias de gestão e de assujeitamento. Não se trata mais de conceber os
governados como sujeitos jurídicos ligados a um território e submetidos às ordens e às
leis do soberano; mas sim de compreendê-los como um conjunto de sujeitos
constituídos a partir da vida, do trabalho e das relações sociais; um conjunto de
viventes que possui costumes, hábitos e histórias particulares. A população constitui,
assim, um novo campo de intervenção das técnicas de governo: ela é o objeto, o
instrumento e a finalidade do poder moderno. Deve ser concebida sob dois aspectos:
de um lado, corresponde à espécie humana em seu aspecto biológico, econômico e
social (regulação dos nascimentos e da mortalidade; gestão demográfica; controle de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

doenças e de riscos de contágio; distribuição das riquezas no corpo social); de outro,


corresponde ao público, ou melhor, à opinião pública e ao “interesse geral da
população”, produzidos pelo jogo coletivo dos desejos, hábitos, comportamentos,
temores e crenças.

A população é portanto, de um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de


público. O público, noção capital no século XVIII, é a população considerada do
ponto de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus
comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas
exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos
convencimentos. A população é portanto tudo que vai se estender do arraigamento
biológico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo público. Da espécie ao
público: temos aí todo um campo de novas realidades, novas realidades no sentido de
que são, para os mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o espaço pertinente
no interior do qual e a proposito do qual se deve agir.137

A partir da expansão demográfica, da crescente industrialização e do


desenvolvimento urbano das cidades na Europa, a economia do século XVIII supera
finalmente o regime familiar e passa a tratar dos fenômenos próprios da população,
constituindo, assim, uma ciência do governo: a “economia política”. Essa nova
“perspectiva econômica”, preocupada com a complexa rede de relações entre a
população, o território e a produção de riquezas, só se tornou possível com o
desenvolvimento dos saberes estatísticos na transição do feudalismo para o

137
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 98-99.
54

capitalismo. De um instrumento da administração estatal, organizado dentro da


economia do suplício e a partir do modelo político da família, a estatística se expande
para o domínio da vida, se articula no marco da disciplina e passa a se orientar em
torno da perspectiva da população. Segundo Foucault,

A estatística, ao possibilitar a quantificação dos fenômenos próprios da população,


faz aparecer sua especificidade irredutível [ao] pequeno âmbito da família. Salvo
certo número de temas residuais, que podem ser perfeitamente temas morais e
religiosas, a família como modelo do governo vai desaparecer. Em compensação, o
que vai aparecer nesse momento é a família como elemento no interior da população
e como apoio fundamental para governar esta. Em outras palavras, até o surgimento
da problemática da população, a arte de governar não podia ser pensada senão a partir
do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A
partir do momento em que, ao contrário, a população vai aparecer como
absolutamente irredutível à família, a família passa para o nível inferior em relação à
população; aparece como elemento no interior da população. Portanto, ela não é mais
o modelo; é um segmento simplesmente privilegiado porque, quando se quer obter
alguma coisa da população, quanto ao comportamento sexual, quanto à demografia,
ao número de filhos, ao consumo, é pela família que se terá efetiva de passar. Mas, de
modelo, a família vai se tornar instrumento, instrumento privilegiado para o governo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

das populações e não modelo quimérico para o bom governo. Esse deslocamento da
família do nível de modelo para o nível de instrumentação é absolutamente
fundamental. E é de fato, a partir de meados do século XVIII, que a família aparece
nessa instrumentalidade em relação à população: serão as campanhas sobre a
mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, as vacinações, as inoculações, etc.
Logo, o que faz com que a população possibilite o desbloqueio da arte de governar é
que ela elimina o modelo da família.138

A passagem do modelo da família para o problema da população; do modelo


da soberania para uma racionalidade própria do governo dos viventes, culmina, no
século XVIII, com o surgimento daquilo que Foucault chama de governamentalidade:
um conjunto de análises, cálculos, estratégias, procedimentos e instituições que
condicionam e possibilitam o exercício desse novo tipo de poder que tem como objeto
e finalidade a gestão da população, como forma de saber privilegiado a economia
política e como aparato técnico fundamental os dispositivos de segurança139. Trata-se
de um processo que busca, pela primeira vez, lidar com o problema da gestão social,
política e econômica da vida dos indivíduo pelo Estado140. Vivemos, desde então, na
era da “governamentalização estatal”:


138
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.139.
139
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.143.
140
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Op. cit. p.75.
55

Vivemos na era da “governamentalidade”, aquela que foi descoberta no século XVIII.


Governamentalização do Estado que é um fenômeno particularmente tortuoso, pois,
embora efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo
tenham se tornado de fato o único intuito político e o único espaço real da luta e dos
embates políticos, essa governamentalização do Estado foi, sobretudo, o fenômeno
que permitiu o Estado sobreviver. E é possível que, se o Estado existe tal como ele
existe agora, seja precisamente graças a essa governamentalidade que é ao mesmo
tempo exterior e interior ao Estado, já que são as táticas de governo que, a cada
instante, permitem definir o que deve ser do âmbito do Estado e o que não deve, o
que é público e o que é privado, o que é estatal e o que é não-estatal. Portanto, se
quiserem, o Estado e sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser
compreendidos a partir das táticas gerais da governamentalidade.141

Segundo Foucault, “o Estado moderno nasce quando a governamentalidade se


torna efetivamente uma prática política calculada e refletiva” 142 . Por meio deste
recurso conceitual, Foucault conseguiu se afastar das tradicionais visões reducionistas
do Estado (como um verdadeiro “monstro frio” ou como uma unidade com funções
rigorosamente definidas) para compreendê-lo a partir de sua governamentalização.
Para o filósofo, o aspecto importante da modernidade não foi a estatização da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

sociedade, temor tipicamente liberal; ou a oposição entre Estado e sociedade civil,


através da qual o primeiro é detentor do “mau poder” e a segunda da “boa liberdade
humana” 143; mas precisamente o fenômeno de governamentalização do Estado – a
emergência de uma tecnologia particular de poder que incide sobre uma rede mais
ampla de técnicas difusas de governo das coisas e das pessoas144.
A compreensão do Estado a partir do conceito de governamentalidade permite
ao autor efetuar um tríplice deslocamento: retirar as relações de poder do interior das
instituições, para analisá-las sob o prisma das tecnologias em sua materialidade e
concretude; destacar as relações de poder da ideia de uma “função interna” para
entendê-las do ponto de vista do jogo, das táticas e estratégias; liberar as relações de
poder do privilégio do objeto pré-concebido (como a loucura, a doença, a
sexualidade) para compreendê-las a partir da constituição dos campos e dos domínios

141
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.145.
142
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.219
143
DUARTE, André. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e do Estado
moderno. In: CASTELO BRANCO, Guilherme; VEIGA-NEGO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia &
política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 62.
144
Neste sentido, de acordo com Foucault, “é perfeitamente possível fazer a genealogia do Estado
moderno e de seus aparelhos, não precisamente a partir de uma, como eles dizem, ontologia circular do
Estado que se afirma e cresce como um grande monstro ou máquina automática. Podemos fazer a
genealogia do Estado moderno e dos seus diferentes aparelhos a partir de uma história da razão
governamental. Sociedade, economia, população, segurança, liberdade: são os elementos da nova
governamentalidade, cujas formas, parece-me, ainda conhecemos em suas modificações
contemporâneas (FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População Op. cit. p.476.)
56

de saber. Trata-se, assim, de afastar visões políticas altamente institucionalizadas, pré-


concebidas e hierarquicamente dispostas para “repor o Estado moderno numa
tecnologia geral de poder que teria possibilitado suas mutações, seu desenvolvimento
e funcionamento” 145.
O tríplice deslocamento operado por Foucault evidencia claramente uma
opção de método que consiste em deixar de lado os universais (o Estado, o soberano,
o povo, a sociedade civil), para analisar a prática governamental tal como ela se
apresenta, é refletida e racionalizada na materialidade do real. Em vez de partir de
universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou ainda, ao invés de tomá-los
como campo de inteligibilidade obrigatório para a compreensão das práticas reais,
Foucault opta, teórica e metodologicamente, por sustentar a inexistência dos
universais para, a partir disto, indagar que história se pode fazer dos mecanismos
singulares de poder146. Neste sentido, o Estado representaria, não a fonte fundamental
do poder ou o grande adversário a ser derrotado, como tradicionalmente concebido,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

mas um instrumento político dentre outros existentes, uma modalidade específica de


governo 147 - enfim, um certo tipo de racionalidade política própria da prática
governamental. Colin Gordon, em texto cujo tema central é a governamentalidade,
explica:

A teoria do Estado tenta deduzir as atividades modernas do governo de propriedades


e propensões naturais do Estado, em particular da sua suposta propensão de
crescimento e de captura ou colonização sobre tudo ao seu redor. Foucault defende
que o Estado não tem tal propensão; e mais genericamente, que o Estado não tem
qualquer essência. A natureza da instituição do Estado é, de acordo com Foucault,
resultado de mudanças nas práticas do governo, e não o contrário (tradução livre).148

A governamentalidade é, portanto, a condição de possibilidade para a


existência do Estado moderno. Da antiga arte de governar do príncipe passa-se, enfim,
a uma ciência geral do Estado, organizada, não mais em função dos interesses do
soberano, do aperfeiçoamento moral-religioso dos homens ou da luta permanente pela
dominação; mas em função do máximo desenvolvimento das necessidades próprias

145
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.519.
146
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Op. cit. p.6.
147
PASQUINO, Pasquale. Thetrum politicum: The genealogy of capital – police and the state of
prosperity. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER, Peter. The Foucault Effect: studies
in governamentality. University of Chicago Press:1991, p. 117.
148
GORDON, Colin. Governmental rationality: an introduction. In: BURCHELL, Graham;
GORDON, Colin; MILER, Peter (org.) The Foucault effect. Chicago: The University of Chicago Press,
1991. P.4.
57

desta forma de organização política. Esse fenômeno só foi possível, só pôde tomar
forma, a partir de dois elementos fundamentais: a herança do poder pastoral cristão e
a emergência da razão de Estado (das técnicas diplomático-militares e da teoria da
polícia). Como explica Foucault,

pretendo mostrar como a governamentalidade nasceu a partir de um modelo arcaico,


o da pastoral cristã, apoiou-se em seguida em uma técnica diplomático-militar e
finalmente como esta governamentalidade só pôde adquirir suas dimensões atuais
graças a uma série de instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da
arte de governo e que se chama, no velho sentido da palavras, o dos séculos XVII e
XVIII, a polícia. Pastoral, novas técnicas diplomático-militares e finalmente a polícia:
eis os três pontos de apoio a partir de que se pôde produzir este fenômeno
fundamental na história do ocidente: a governamentalização do Estado.149

Próprio das comunidades monásticas dos primeiros séculos, o poder pastoral,
originário da tradição judaico-cristã150, sustentava-se numa metáfora política, segunda
a qual o rei, o chefe ou o soberano cumpriam papel semelhante a de um pastor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

seguido por um rebanho de ovelhas. Tratava-se de um poder que recaía mais sobre o
“rebanho” do que sobre a terra, cabendo ao pastor, através de sua presença imediata e
sua ação direta, garantir a sobrevivência diária de todas as suas ovelhas: “tratá-las
quando doente; tocar música para reuni-las e guiá-las; organizar sua reprodução”.
Para isso, era preciso não apenas conhecer das condições objetivas de sobrevivência
(a terra mais produtiva, a estação do ano mais propícia para a colheita, por exemplo),
como também e principalmente das necessidades de cada membro do rebanho em
particular. O papel do pastor, nesse sentido, era assegurar a salvação do rebanho,
coletiva e individualmente, por meio de uma postura sempre benevolente, a ponto de
que, se necessário, devia inclusive se sacrificar em prol da vida das ovelhas (lógica


149
FOUCAULT, Michel. Governamentalidade. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 293.
150
Segundo Foucault, a temática do poder pastoral não é desenvolvida pela literatura política grega e
romana, sendo encontrada apenas nas sociedades orientais antigas pré-cristãs (como Egito, Assíria e
Judéia). Foi sobretudo com os hebreus que ela se intensificou e assumiu um caráter fundamentalmente
religioso através da relação de Deus/pastor com o seu povo/rebanho. O tema do poder pastoral é,
posteriormente, introduzido no Ocidente com a Igreja cristã, responsável por organizar o poder pastoral
autonomamente e implantar seus mecanismos e instituições no interior do Império Romano.
Preocupado com a vida cotidiana dos indivíduos e com a salvação da humanidade como um todo, o
cristianismo insere, pela primeira vez, nas sociedades ocidentais, a ideia do governo dos homens,
transformando o pastorado em uma técnica precisa e em uma ciência do governo das pessoas. Em suas
palavras, “a verdadeira história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo
dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo”.
(FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 174.)
58

esta contrária ao modelo da soberania no qual era dever dos súditos morrerem em
defesa da existência do soberano).

Esta forma de poder [pastoral] é orientada para a salvação (por oposição ao poder
político). É oblativa (por oposição ao princípio da soberania); é individualizante (por
oposição ao poder jurídico); é co-extensiva à vida e constitui seu prolongamento; está
ligada à produção da verdade – a verdade do próprio indivíduo.151

Com o cristianismo, o pastorado passa a associar-se a três noções


fundamentais. Em primeiro lugar, à salvação, na medida em que busca conduzir os
indivíduos e suas almas a um caminho “superior”. Havia, neste sentido, um forte laço
moral entre o pastor e as ovelhas, visto que este era responsável pelos pecados e pelos
méritos de cada membro de seu rebanho, individual e coletivamente considerados. Em
segundo lugar, à lei, posto que a pastoral cristã introduz a noção de uma “obediência
perfeita” das ovelhas em relação ao pastor: elas devem permanentemente submeter-se
às ordens de seu líder; “obedecer a uma ordem, não por ela ser razoável ou por lhe
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

confiarem uma tarefa importante mas, ao contrário, por ser absurda”152. A obediência
era vista como uma virtude, uma prática de submissão pessoal altamente valorizada,
cuja razão de ser estava em si mesma. Em terceiro lugar, à verdade, pois se o objetivo
é alcançar a salvação por meio da obediência à lei, isso só se torna possível a partir da
crença em uma verdade universal. No cristianismo, esta crença na verdade era
mantida pelo exame e pela direção de consciência dos indivíduos, elementos que
estabeleciam o laço entre a obediência total, o conhecimento de si e a confissão a um
outro – de um lado, uma verdade ensinada e, do outro, uma verdade oculta e extraída.
Cada ovelha tinha que descobrir em si mesma uma verdade da qual o pastor é, “se não
o juiz e o avalista, pelo menos uma testemunha perpétua” 153.
A inovação da pastoral cristã é constatada, não propriamente no plano da
relação entre essas três noções, mas na forma de subjetivação que se produz a partir
delas. Trata-se de uma mecânica de poder essencialmente individualizante, cuja
função principal consiste em “velar permanentemente pela vida de todos e de cada
154
um” (omnes et singulatium) ; dando origem a um sujeito analiticamente


151
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit. p. 237
152
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 233.
153
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 364.
154
FOUCAULT, Michel. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da Razão Política. In: Ditos e Escritos
IV: Estratégia, Poder-saber; organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 357-361.
59

identificado, sujeitado a tramas contínuas de obediência e subjetivado pela extração


da verdade que lhe é fixada. A individualização própria do poder pastoral se dá,
assim, de três formas:

Primeiro, por um jogo de decomposição que define a cada instante o equilíbrio, o
jogo e a circulação dos méritos e dos deméritos. Digamos que é uma individualização
não de estatuto, mas de identificação analítica. Em segundo lugar, é uma
individualização que não vai se dar pela designação, pela demarcação de um lugar
hierárquico do indivíduo. Ela não vai se dar, tampouco, pela afirmação de um
domínio de si sobre si, mas por toda uma rede de servidões, que implica a servidão
geral de todo mundo em relação a todo mundo e, ao mesmo tempo, a exclusão do
egoísmo, a exclusão do ego, a exclusão do egoísmo como forma central, nuclear do
indivíduo. É, portanto, uma individualização por sujeição. Enfim, em terceiro lugar, é
uma individualização que não vai ser adquirida pela relação com uma verdade
reconhecida, mas que, ao contrário, vai ser adquirida pela produção de uma verdade
interior, secreta e oculta. Identificação analítica, sujeição, subjetivação, é isso que
caracteriza os procedimentos de individualização efetivamente utilizados pelo
pastorado cristão e pelas instituições do pastorado cristão. É, portanto, toda uma
história dos procedimentos de individualização humana no Ocidente que se acha
engajada pela história do pastorado. Digamos, ainda, que é a história do sujeito.155

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Contudo, Foucault destaca que, durante a Idade Média, a tecnologia pastoral


não foi o modelo político triunfante, tendo permanecido restrita às ordens religiosas,
diante da enorme hegemonia da estrutura império. Entre os diversos motivos,
podemos destacar que se trata de uma tecnologia política tipicamente comunitária,
incompatível com a pobreza e a economia rural extensiva, e que exige um certo nível
de formação cultural tanto por parte do pastor, como de seu rebanho. Com o término
do feudalismo e a renúncia definitiva do ideal de um sacro império, a pastoral começa
a ser progressivamente resgatada, ampliada e, finalmente, disseminada por todo o
corpo social através de um poder individualizante próprio do Estado moderno156.

A partir do século XVIII, de uma maneira paradoxal e bastante inesperada, tanto nas
sociedades capitalistas e industriais quanto nas formas modernas do estado que as
acompanharam e sustentaram, surge a necessidade de procedimentos, de mecanismos,
essencialmente procedimentos de individualização que o pastorado religioso havia
posto em prática. (...) houve a implantação, a multiplicação mesmo e a difusão de


155
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit.. 242-243.
156
Essa nova forma de organização política (o Estado), além de se constituir como uma instituição
totalizante, preocupada com os interesses de um grupo de cidadãos, é também, e esse é o motivo de sua
força, uma tática de poder individualizante. Nunca antes na história do Ocidente “houve, no interior das
mesmas estruturas políticas, uma combinação tão astuciosa das técnicas de individuação e dos
procedimentos de totalização” como se deu no Estado moderno. Ver: FOUCAULT, Michel. O Sujeito
e o Poder. Op. cit. p. 236.
60

técnicas pastorais no quadro laico do aparelho do Estado.157

Foi por meio de uma apropriação-transformação das práticas pastorais em


tecnologias disciplinares que o Estado se desenvolveu. Podemos destacar duas
mudanças principais da pastoral cristã no seio do Estado moderno. Em primeiro lugar,
o problema da “salvação da alma” desvia-se radicalmente para a salvação do Estado
contra todo tipo de sedição ou ameaça e para a sua auto-conservação como o único
objetivo da política – a palavra “salvação” passa a abranger, assim, uma série de
significados desde bem-estar e riqueza até a saúde, a segurança e a ordem, por
exemplo. Neste sentido, o Estado age sempre em relação a si mesmo e às suas
próprias necessidades, de modo que, se preciso, deve interromper a legalidade e
exceder o direito comum158: “a razão de Estado deve comandar, não segundo as leis,
mas se necessário, as próprias leis, as quais devem se acomodar ao presente estado da
república”159. Enquanto na pastoral cristã, a “salvação de cada um é a salvação de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

todos, e a salvação de todos é a salvação de cada um”; na modernidade, a pastoral se


impõe como uma prática potencialmente excludente, por meio da qual é possível
suspender violentamente a lei em detrimento de alguns para a preservação do todo160.
Em segundo lugar, desenvolve-se uma nova estratégia para unir o singular e o
todo (omnes et singulatium) a partir da inserção do conceito de “pessoa humana” no
campo jurídico (com o surgimento dos direitos do homem) e no campo das ciência
humanas (com a emergência da psiquiatria, antropologia, criminologia, dentre outras
ciências). Há um redirecionamento da política para o conhecimento do homem,
enquanto objeto a ser conformado pelas técnicas de poder, em torno de dois pólos: um


157
FOUCAULT, Michel. A filosofia analítica da política. In: Ditos e Escritos V. Ética, sexualidade e
política. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2004. p. 54.
158
A esse acontecimento político, Foucault chama de “golpe de Estado”: “o golpe de Estado não é
ruptura em relação à razão de Estado. Ao contrário, é um elemento, um acontecimento, uma maneira de
agir que se inscreve perfeitamente no horizonte geral, na forma geral da razão de Estado, ou seja, é
algo que excede as leis ou, em todo caso, que não se submete às leis.” Assim, o golpe de Estado é uma
suspensão e interrupção da lei, é o que excede o direito comum. (FOUCAULT, Michel. FOUCAULT,
Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 349)
159
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 350.
160
“O Estado só existe para si mesmo e em relação a si mesmo, qualquer que seja o sistema de
obediência que ele deve a outros sistemas como a natureza ou como Deus. O Estado só existe por si
mesmo e para si mesmo, só existe no plural, isto é, ele não tem, num horizonte histórico mais ou menos
próximo ou distante, de se fundir ou de se submeter a algo como uma estrutura imperial que seria de
certo modo uma teofonia de Deus no mundo, uma teofonia que conduziria os homens numa
humanidade enfim reunida até o limiar do fim do mundo”. (FOUCAULT, Michel. Nascimento da
Biopolítica. Op. cit. p. 7)
61

globalizador e quantitativo (a população) e outro analítico (o indivíduo)161. Trata-se,


mais precisamente, de um poder que busca conduzir os homens, ou melhor, que visa
governar as suas condutas através da intervenção permanente sobre as práticas
cotidianas e da gestão calculista da vida.
O resgate da pastoral cristã anuncia, assim, o prelúdio da governamentalidade:
das antigas “artes de governar” do século XVI, centradas no problema da legitimidade
do príncipe sobre o seu território, o século XVIII viu emergir definitivamente uma
racionalidade própria do “governo dos homens”. Mas se a tecnologia política
moderna surge, em um primeiro momento, com o desenvolvimento do poder pastoral
pelo Estado e a elaboração de métodos renovados de individualização dos corpos, ela
apenas se consolida com a emergência da razão de Estado162 e uma perspectiva de
integração dos indivíduos a uma totalidade vivente. Foucault esclarece, contudo, que
não se trata de uma simples transferência dos atributos do pastor para o soberano, mas
sim do surgimento de uma nova racionalidade política própria do Estado moderno.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Não quero dizer com isso que essa arte de governar os homens, de que procurei
indicar a vocês alguns traços ao falar da prática pastoral, tornou-se, por um processo
de simples transporte, transferência, translado, um dos atributos do poder soberano.
Não é que o rei se tornou pastor, se tornou pastor dos corpos e das vidas, mais ou
menos como o outro pastor, o pastor espiritual, era o pastor das almas e das
sobrevidas. O que veio à luz – é o que procurei lhes mostrar – foi uma arte
absolutamente específica de governar, uma arte que tinha sua própria razão, sua
163
própria racionalidade, sua própria ratio.

Assim, por razão de Estado, devemos compreender uma forma de governo


voltada para a conservação e a ampliação da força dos Estados 164 ou ainda, uma

161
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit.. p. 7 (Ver também: MENDES, Alexandre
Fabiano. Jogos de vida e de morte: Humanismo e violência no contexto biopolítico. Dissertação de
Mestrado em Direito. Universidade Cândido Mendes. Rio de Janeiro, 2007.)
162
Importante destacar que o conceito de “razão de Estado”, desenvolvido por Foucault, não deve ser
compreendido de acordo com o sentido pejorativo que hoje destinamos a esse termo. Neste sentido,
Mitchell Dean esclarece que atualmente quando afirmamos, por exemplo, que foi motivado por “razões
de estado” que o presidente francês, Jacques Chirac, renovou os testes nucleares no Sul do Pacífico em
1995, entendemos que este conceito remetem-se necessariamente à violações de direitos humanos ou
de valores universalmente válidos. Não era disso que Foucault tratava. (DEAN, Mitchell,
Governmentality. Op. cit.. p.87)
163
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 383.
164
A partir do século XVI, quando as relações entre os Estados deixam de ser percebidas sob a forma
de rivalidade dinástica e passam a ser compreendidas sob a forma de concorrência entre Estados, um
novo elemento surge: a noção de força do Estado. Não se trata mais de aumentar as posses, os
territórios ou a riqueza do rei, mas ampliar a força interna e externa do Estado. Segundo Foucault,
“essa evolução que se produziu a partir de uma realidade histórica e de processos históricos
identificáveis – trata-se da descoberta da América, da constituição dos impérios coloniais, do
desaparecimento do Império, do recuo, do esmaecimento das funções universalistas da Igreja -, enfim,
62

racionalidade da prática governamental que encara o Estado como um dado e como


um objeto a ser construído165. Segundo Botero, trata-se do “conhecimento perfeito dos
meios pelos quais os Estados se formam, se mantêm, se fortalecem e se ampliam”. De
acordo com Cheminitz, refere-se àquilo “que permite estabelecer, conservar ou
ampliar uma república”166. A partir da literatura sobre razão de Estado do século XVI
e XVII, Foucault extrai deste conceito uma série de conclusões. Em primeiro lugar, a
razão de Estado não evoca a violência ou o arbítrio, mas deve, ao contrário, ser
concebida como uma “arte”, uma técnica que se conforma a regras específicas. Em
segundo lugar, ela rompe com a tradição clássica cristã segundo a qual o governo
devia respeitar todo um sistema de lei divinas, naturais ou humanas, sustentando uma
racionalidade derivada da natureza mesma do Estado a ser governado. Em terceiro
lugar, inversamente à tradição da soberania, baseada na relação súdito/soberano, essa
nova arte de governar tem por objetivo reforçar o próprio Estado, possibilitar seu
crescimento e aumentar sua potência em um quadro extensivo e competitivo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Finalmente, essa nova racionalidade política impõe o desenvolvimento de um saber


concreto e preciso, voltado para o conhecimento da força do Estado: a estatística ou a
aritmética política167, cujo objeto central é a população (na medida da sua quantidade
e dos seus fenômenos específicos: natalidade, mortalidade, estimativas de riquezas).
Como resume André Duarte,

Foucault entendeu que a razão de Estado constituía o surgimento de uma nova matriz
de racionalidade no exercício do poder, segundo a qual o soberano devia exercer seu
poder sobre os súditos governando-os de maneira meticulosa, combinando as técnicas
de vigilância policial das condutas humanas ao controle da atividade econômica dos
produtores e comerciantes, visando tornar o Estado forte e competitivo em meio aos
conflitos políticos europeus da época.168

Desta forma, Foucault destaca duas dimensões estruturais da razão de Estado:


as técnicas diplomático-militares e a doutrina da polícia. A tecnologia diplomático-
militar consiste em garantir, promover e ordenar as forças do Estado por meio de um


todos esses fenômenos, que são o que são e que têm sua necessidade e sua inteligibilidade próprias, nos
levam ao aparecimento, no pensamento político, da categoria fundamental da força” (FOUCAULT,
Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 396-397)
165
FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonard, 2002. p.223.
166
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 387.
167
FOUCAULT, Michel. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da Razão Política. Op. cit. p.376.
168
DUARTE, André. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e do Estado
moderno. In: CASTELO BRANCO, Guilherme; VEIGA-NEGO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia &
política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 58.
63

regime de alianças e pelo fortalecimento do exército. A partir do momento em que as


relações entre os Estados deixaram de ser concebidas sob a forma da rivalidade
dinástica entre príncipes e passaram a ser compreendidas na forma da concorrência
entre Estados, surge a necessidade de se desenvolver um sistema de segurança que
permitisse a maximização do Estado ao mesmo tempo em que impedisse que esta
fosse a causa da ruína para os outros e para ele próprio. Em outras palavras, era
preciso manter a pluralidade dos Estados fora de qualquer possível absorção imperial.
Neste sentido, uma das consequências dessa tecnologia política foi a busca por
um equilíbrio entre as potências europeias e por uma relativa paz universal, que
resultou no famoso tratado de Westfália datado de 1648 (apontado hoje como uma das
169
fontes originárias do Direito Internacional Público ). Com este objetivo,
desenvolvem-se três instrumento: primeiro, uma nova concepção de guerra, entendida
não como um procedimento jurídico, mas como um procedimento próprio da razão de
Estado. Tratava-se de justificar a guerra, não mais pela violação à lei, mas pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

necessidade de se reestabelecer o equilíbrio entre os Estados. Segundo, a atividade


diplomática como expressão da negociação permanente entre os Estados e da criação
de uma “sociedade das nações”, orientada pelo imperativo do equilíbrio. Por fim, um
dispositivo militar permanente no interior dos Estados, como instrumento central no
contexto de uma política comandada pelos cálculos do equilíbrio e pela ameaça
constante da guerra.
Dentro deste quadro político mais amplo que busca manter, distribuir e
restabelecer as relações de força ente os estados europeus, a polícia, por sua vez, deve
ser entendida pelo sentido que então se dava a esse termo: o conjunto dos
instrumentos necessários para potencializar as forças do Estado e manter, ao mesmo
tempo, a boa ordem em seu interior170. Não se trata de uma instituição ou mecanismo
que opera no seio na estrutura estatal, da forma como hoje a concebemos; mas de uma
série de cálculos e técnicas que permitem estabelecer uma relação estável entre a


169
O Tratado de Westfália corresponde a um conjunto de acordos que buscaram acabar com as
hostilidades remanescentes da Guerra dos Trinta Anos e pôr fim ao sonho de reconstituição do Império
Romano pela igreja. Ao reconhecer a existência de uma multiplicidade de Estados soberanos na ordem
internacional, buscou impedir a intervenção de um Estado nos assuntos internos dos demais. De acordo
com Mitchell Dean, este instrumento marca uma importante transformação na ordem internacional, na
medida em que as guerras entre Estado passam a ser declaradas não mais por questões religiosas, mas
políticas. (DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit.. P.110)
170
Foucault esclarece que do fim do século XVII ao fim do século XVIII, a palavra polícia tinha um
sentido absolutamente diferente do que hoje entendemos (FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel.
Segurança, Território, População. Op. cit. p. 420).
64

ordem interna de um Estado e o desenvolvimento de suas forças. Neste sentido, torna-


se necessário conhecer, por meio das estatísticas, o número de pessoas que habitam o
Estado, as suas necessidades vitais, os problemas de saúde, os recursos naturais do
território, a sua capacidade de produção e de comércio, dentre diversos outros fatores
próprios da vida nas cidades. Citando Delamare, Foucault ilustra os domínios da
polícia no século XVII:

São a religião, os costumes, a saúde e os meios de subsistência, a tranquilidade


pública, o cuidado com os edifícios, as praças e os caminhos, a ciências e as artes
liberais, o comércio, as manufaturas e as artes mecânicas, os empregados domésticos
e os operários, o teatro e os jogos, enfim o cuidado e a disciplina dos pobres, como
“parte considerável do bem público”.171

Este conceito se remete, assim, do século XVII até o fim do século XVIII, à
administração da vida, no nível do indispensável, do útil e do supérfluo; a tudo o que
os homens fazem ou empreendem; e ao domínio de todas as instâncias estatais, desde
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

a justiça e as finanças, até o exército. Na verdade, é o homem, as sua atividades e a


vida em sociedade, ou seja, as relações que este mantem com as coisas, com o
território, a propriedade e a produção, que constitui o verdadeiro objeto da polícia.
Sua finalidade consiste, enfim, em ampliar a potência e o vigor do Estado
(desenvolvendo as relações de trabalho, de produção, de troca e de comércio entre os
homens) e em assegurar a melhor forma de vida para uma população (somente no
limite em que o bem-estar dos homens fortalecesse o Estado). O Estado de polícia do
século XVII caracteriza-se, portanto, por uma série de objetivos ilimitados,
praticamente infinitos.
Desta forma, a doutrina da razão de Estado se desenvolve em dois sentidos:
permite ao Estado definir e aprimorar sua posição no jogo das rivalidades entre
Estados vizinhos (função econômico-militar) e garante a ordem interna pelo “bem-
estar” dos indivíduos (função riqueza-tranquilidade-felicidade). Trata-se, assim, de
um processo no qual a auto-salvação do próprio Estado contra sedições, revoltas ou
qualquer tipo de ameaça, se transforma no objetivo central da política. Governar,
segundo a razão de Estado, passa a significar “fazer que o Estado possa se tornar


171
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População Op. cit. p.476.
65

sólido e permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo
que pode destruí-lo”172.
A partir de meados do século XVIII, vemos emergir a primeira forma de
governamentalidade moderna: o liberalismo. Essa nova racionalidade política
produziu importantes transformações no seio da razão de Estado típica do século
XVII. Foi no interior deste quadro geral mais amplo que os problemas biopolíticos da
população se desenvolveram e ganharam importância173 . Por liberalismo, Foucault
não compreende uma teoria econômica, uma ideologia política ou um modelo de
sociedade a se representar, mas uma forma de reflexão crítica do governo, “um
princípio e método de racionalização do exercício do governo submetido à regra
interna da economia máxima” 174 ou, ainda, “uma arte de governar que assume o
mercado como teste, como instrumento de inteligibilidade, como verdade e medida da
sociedade”175. Como sintetiza Senellart,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

O princípio de limitação externa da razão de Estado, que o direito representava, é


substituído no século XVIII, por um princípio de limitação interna, sob a forma da
economia. De fato, a economia política traz em si a exigência de uma autolimitação
da razão governamental, baseada no conhecimento do curso natural das coisas. Ela
assinala portanto a irrupção de uma nova racionalidade na arte de governar: governar
menos, para ter eficiência máxima, em função da naturalidade dos fenômenos com
que se tem de lidar. É essa governamentalidade, ligada em seu esforço de
autolimitação permanente à questão da verdade, que Foucault chama de
“liberalismo”. 176

Neste sentido, perpassada pelo princípio “sempre se governa demais” e pela


questão central “porque é necessário governar?”, a arte liberal de governo constitui
um instrumento crítico da realidade: “de uma governamentalidade anterior, da qual se
se procura distinguir; de uma governamentalidade atual que se tenta reformar e
racionalizar, desvalorizando-a; de uma governamentalidade à qual se opõe e de que se

172
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 6.
173
Em seu manuscrito, Foucault esclarece: “Com a emergência da economia política, com a introdução
do princípio limitativo na própria prática governamental, realiza-se uma substituição importante, ou
melhor, uma duplicação, pois os sujeitos de direito sobre os quais se exerce a soberania política
aparecem como uma população que um governo deve administrar. É aí que a linha de organização de
uma biopolítica encontra seu ponto de partida. Mas quem não vê que isso é apenas a parte de algo bem
mais amplo, que [é] essa nova razão governamental? Estudar o liberalismo como quadro geral da
biopolítica” FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 28)
174
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.90.
175
LAZZARATO, Mauricio. Biopolítica/Bioeconomia. In: PASSOS, Izabel C. Friche (org.). Poder,
normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
p. 44.
176
Senellart, Michel. Situação do Curso. In: FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São
Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 442.
66

quer limitar os abusos” 177 . Desta forma, se de um lado podemos afirmar que o
liberalismo é uma versão do biopoder, de outro, ele existe somente na medida em que
se mantém em uma posição de tensão permanente com os imperativos biopolíticos: o
governo da população é tanto a sua condição de possibilidade quanto o objeto central
da crítica que faz à irracionalidade própria do excesso de governo178.
Por isso, se antes o papel fundamental da polícia, enquanto instrumento da
razão de Estado, era fazer crescer a força do Estado e manter, ao mesmo tempo, a
ordem geral, no fim do século XVIII, esse projeto se desmantela face aos problemas
econômicos da população (relativos ao preço, à produção e à circulação das
mercadorias no interior das cidades)179. Com a crítica da economia política ao Estado
de polícia do século XVII e a emergência da arte liberal de governar (como limite
intrínseco à razão de Estado e ao objetivo biopolítico de maximizar a vida da
população), surge uma nova concepção de polícia180: de um lado, desenvolvem-se os
grandes mecanismos de incentivo-regulação que englobam a economia e a gestão da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

população; de outro, a polícia assume funções negativas destinadas a impedir as


desordens no interior do Estado. E, assim, a partir do antigo conceito de polícia se
depreende, na modernidade, quatro elementos: a economia, a gestão da população, o
direito e respeito às liberdades e a polícia como função negativa181.
O liberalismo, enquanto auto-limitação da razão de Estado com base no
mercado, inverte, assim, a lógica política do século XVII: não se trata mais de
promover o crescimento das forças do Estado, mas limitar o exercício do poder de
governar desde o seu interior. A racionalidade do liberalismo parte da ideia de que o
governo e a sua maximização não podem ser o seu próprio fim, desconfiando a todo

177
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.92.
178
DEAN, Mitchell, Governmentality. Sage Publication: Londres, 2006. p.112.
179
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 464-475
180
Segundo Foucault, as transformações no conceito de polícia foram resultado direto da crítica dos
economistas ao Estado de polícia do século XVII e da emergência de uma arte liberal de governar. A
razão de estado continua tendo por objetivo aumentar as forças do Estado mantendo o equilíbrio da
ordem. Contudo, essa nova governamentalidade introduzida pelos economistas, apresenta modificações
essenciais: (1) reaparece uma espécie de naturalidade dos fenômenos sociais, da qual deriva a ideia de
sociedade civil como o encargo e o objetivo do Estado; (2) reivindica-se um conhecimento externo e
científico como elemento indispensável para o bom governo; ou melhor, uma cientificidade pautada na
pureza teórica própria da economia; (3) surgem novos problemas da população, concebidas como um
conjunto de fenômenos naturais; (4) desenvolve-se a ideia de que a atuação do Estado deve ser limitada
a fim de que os processos naturais da sociedade possam ser respeitados; devendo-se conceber a
liberdade não somente na forma dos direitos individuais, mas também como o elemento indispensável
à própria governamentalidade. (FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território,
População. Op. cit. p. 464-475) Em suma, é a partir do liberalismo que a polícia adquire o conceito que
hoje utilizamos.
181
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População Op. cit. p.476
67

tempo de que se governa sempre demais. Neste sentido, a economia política, como
teoria, e o mercado, enquanto realidade e critério de “teste” do governo, constituem
“o lugar de experiência privilegiada onde se pode situar os efeitos do excesso de
governamentalidade e, até mesmo, medi-los”182.
Poderíamos, enfim, reconstituir, de maneira grosseira, as grandes economias
do poder no Ocidente que abalizaram a genealogia desse longo processo de
“governamentalização” do Estado, até o surgimento do liberalismo. Na Baixa Idade
Média, prevaleceu o modelo do Estado de justiça, organizado na lógica territorial
típica da sociedade feudal. Entre os séculos XV e XVI, nasce o Estado administrativo,
derivado da concepção de territorialidade fronteiriça e correspondente a uma
sociedade de disciplinas e regulamentos. Durante os séculos XVI e XVII, emerge o
Estado de governo cuja racionalidade não se define mais pelo critério da
territorialidade, mas pela massa da população controlada pelos dispositivos de
segurança183. E assim, com o desenvolvimento da noção política de população pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

literatura da razão de Estado, o século XVIII foi marcado pela vitória de saberes e
tecnologias biopolíticas que permitiram a instalação da governamentalidade no seio
do Estado moderno.

2.3.
O Biopoder e o discurso dos direitos humanos

A emergência do biopoder e a consequente estatização da vida marcam a


inserção da figura do “homem”, enquanto ser vivo, indivíduo trabalhador e sujeito
falante, no centro da política moderna e no horizonte dos saberes e técnicas de
governo. Se de acordo com a analítica foucaultiana do poder, desenvolvida no
capítulo anterior, o poder corresponde a uma esfera positiva que produz novas
realidades e novos objetos de cognição, de intervenção e de investimento, na
modernidade é o homem o principal produto e a finalidade central da mecânica do
poder e do saber. No interior de um novo campo de relação da política com a vida, o
homem ocidental aprendeu, aos poucos, o significado político de ser membro de uma
espécie, de ter um corpo individual, de estar sujeito a estatísticas de sobrevivência e a

182
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.93.
183
FOUCAULT, Michel. Governamentalidade. Op. cit. p. 293.
68

normas voltadas para saúde e higiene, por exemplo. Foi a partir da politização da
vida, da emergência de um modo de sujeição próprio do biopoder (disciplina dos
corpos e biopolítica da população), que o homem se tornou, assim, o principal objeto
e o sujeito universal do conhecimento, transformando a luta política em reivindicação
e afirmação dos direitos do homem, agora não mais limitados à forma clássica da
soberania, mas calculados no âmbito do governo da vida. Em outras palavras, é
possível dizer que as grandes lutas por direitos na modernidade tinham por objetivo
central a vida, ou ainda, que a luta pela vida, no seu sentido natural, biológico e
social, se fez a partir da linguagem dos direitos humanos. De acordo com Foucault,

Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas,
ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito. O “direito” à
vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidade, o “direito”, acima
de todas as opressões ou “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode
ser, esse “direito” não incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica
política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não
184
fazem parte do direito tradicional da soberania.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Neste sentido, se na sociedade feudal, a teoria jurídica serviu de fundamento


de multiplicação do poder soberano, funcionando como um atributo da soberania
(uma concessão revogável que o soberano fazia aos súditos) voltada principalmente
para o domínio do território e para os bens no seu interior, na modernidade, mais
precisamente a partir do século XVII, observamos a emergência de um discurso
jurídico de rebeldia e divergência contra o poder do monarca e os abusos estatais: as
temáticas do direito público, do direito natural, do direito originário, do contrato, etc.
que, embora já existissem desde a Idade Média, foram atravessadas e transformadas
por essa nova arte de governar que surge com a razão de Estado. As questões jurídicas
e as instituições judiciárias que antes serviam para ampliar o poder real, passam a ser
formuladas e utilizadas, pelo menos em um primeiro momento, como ferramentas
contrárias à ordem estatal. Recorria-se à análise jurídica, às regras do direito e às
instâncias judiciárias sempre em oposição ao poder soberano, como objeção à razão
de Estado185.


184
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: vontade de saber. Op. cit. p. 136.
185
De acordo com Foucault: “(...) mesmo que seja verdade que a razão de Estado formulada,
manifestada como Estado de polícia, encarnada no Estado de polícia, mesmo que essa razão de Estado
tenha objetivos ilimitados, houve uma perpétua tentativa nos séculos XVI e XVII de limitá-la, e essa
limitação, esse princípio, essa razão de limitação da razão de Estado é encontrada na razão jurídica.
Mas, como vocês vêem, trata-se de uma limitação externa. Aliás, os juristas sabem muito bem que a
69

É útil ressaltar que, neste momento da história europeia, um dos principais


anseios da burguesia moderna consistia na completa derrocada do antigo sistema
feudal, incompatível não somente com a expansão do mercado, com a propagação do
trabalho assalariado e com o desenvolvimento da fabricação de mercadorias, mas
também com as necessidades políticas do já vitorioso modo de produção capitalista,
que conflitava diretamente com a rígida estratificação social do feudalismo (marcada
pela estratificação social, pelo privilégio de nascimento e pelos laços senhoriais). Era
preciso reconstruir a antiga teoria da soberania – já não mais pautada no direito de
vida e morte do rei sobre seus súditos, mas no ideal da soberania popular e na ideia do
homem enquanto sujeito portador de direitos naturais (derivados da natureza humana,
mais precisamente da razão) – para inverter completamente as relações verticais
feudais, inserindo em seu lugar relações sociais supostamente “horizontais” nascidas
do contrato social186.
O princípio do direito moderno definia, assim, a partir do exterior, os limites
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

da razão de Estado manifestada no “quase ilimitado” Estado de polícia do século


XVII. Fundamentado na ideia de uma natureza humana universal, o direito natural
moderno servia como critério para definir a legitimidade ou ilegitimidade de um
governo e o consequente dever de obediência dos súditos. A limitação da ação
governamental situava-se precisamente nos governados, ou melhor, na ideia de
liberdade individual. O sujeito político era dividido em uma parcela de liberdade
absolutamente reservada e uma parcela de submissão consentida e concedida ao
soberano. Para os modernos, a existência do Estado era limitada e justificada pela
necessidade de preservação dos direito do homem. Em outras palavras, tratava-se de
delimitar, a partir dos direitos do homem, o exercício do governo, passando pela
constituição do soberano 187 . Resguardadas as profundas diferenças entre Hobbes,
Locke e Rousseau, os três autores (que, reconhecidos como teóricos do jusnaturalismo
moderno, marcam o período do desenvolvimento da razão de Estado) tomam a vida
humana como um elemento central de justificação e legitimação da criação do Estado
moderno, de modo que se este descumprisse com tal objetivo que lhe deu origem, a
destituição do soberano seria legítima. Seja na forma da alegação de direitos

questão de direito deles é extrínseca à razão de Estado, já que definem a razão de Estado como,
precisamente, o que está fora da órbita do direito FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica.
São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.13-14)
186
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 3ªEd. São Paulo:
Peirópolis, 2011. p. 25, 38.
187
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p.54.
70

fundamentais pré-existentes à constituição política do Estado, da teoria dos direitos


naturais imprescritíveis ou das doutrinas contratualistas, o direito moderno se desloca
precisamente em direção à vida dos súditos, aos seus corpos e comportamentos: por
mais absoluto que fosse o poder do soberano, ele não poderia violar os direitos
inerentes aos homens, principalmente o direito à vida. Segundo Foucault,

vocês já veem, nos juristas do século XVII e sobretudo do século XVIII, formulada
essa questão a propósito do direito de vida e de morte. Quando os juristas dizem:
quando se contrata, no plano do contrato social, ou seja, quando os indivíduos se
reúnem para constituir um soberano, para delegar a um soberano um poder absoluto
sobre eles, por que o fazem? Eles o fazem porque estão premidos pelo perigo ou pela
necessidade. Eles o fazem, por conseguinte, para proteger a vida. E para poder viver
que constituem um soberano. 188

Contudo, a partir de meados do século XVIII, com o desenvolvimento da


economia política e a consolidação da burguesia como a classe politica dominante, o
problema da razão governamental sai da esfera da lei e entra no campo do excesso do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

governo. Em outras palavras, o Estado sai de um regime definido meramente pela


dicotomia justo/injusto ou legítimo/ilegítimo e entra em um sistema caracterizado
pelo bom ou mau governo, pela boa ou má administração. A economia política do
século XVIII, ao contrário do pensamento jurídico do século XVII, não surge fora da
razão de Estado, mas precisamente no âmbito de seus objetivos; não implica em uma
objeção externa ao governo, mas em uma ideia de governo cuja única limitação se
encontra em seu próprio interior; não se preocupa com a legitimidade das práticas
governamentais, mas com os seus efeitos; não busca a origem dos direitos
fundamentais, mas uma natureza própria dos objetos da ação governamental que deve
ser sempre respeitada. Assim, a partir da economia política vemos surgir um novo
regime de verdade que se conecta diretamente com as práticas de governo, ou melhor,
que se orienta pelo princípio de autolimitação do governo: o liberalismo.

É portanto toda uma porção da atividade governamental que vai passar assim para um
novo regime de verdade, e esse regime de verdade tem por efeito fundamental
deslocar todas as questões que, precedentemente, a arte de governar podia suscitar.
Essas questões outrora, eram: será que governo efetivamente de acordo com as leis
morais, naturais, divinas, etc.? Era portanto a questão da conformidade
governamental. Depois, passou a ser, nos séculos XVI e XVII, com a razão de
Estado: será que governo bastante bem, com bastante intensidade, com bastante
profundidade, com bastante detalhes para levar o Estado até o ponto estabelecido por
seu dever-ser, para levar o Estado ao seu máximo de força? E agora o problema vai

188
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 287.
71

ser: será que governo bem no limite desse demais e desse pouco demais, entre esse
máximo e esse mínimo que a natureza das coisas fixa para mim, quero dizer, as
189
necessidades intrínsecas às operações de governo?

A governamentalidade liberal – que corresponde à razão de governo mínimo


como princípio de organização da razão de Estado ou melhor, à ideia de um governo
frugal resultado da desconfiança de que se governa sempre demais – introduz um
novo regime de verdade que se forma, não mais no campo jurídico da lei, mas na
esfera dos interesses econômicos definidos no interior do mercado. É o mercado,
enquanto o lugar privilegiado de produção e de revelação da verdade, ou ainda, como
o lugar de verificabilidade/falsificabilidade da prática governamental (a partir da
introdução da noção do “preço natural” e não mais do “preço justo”), que define os
padrões das boas e das más práticas governamentais. Em outras palavras, o mercado
introduz um regime de veridição, composto por uma série de normas de verificação e
de falsificação, que faz com que o governo não se paute mais exclusivamente no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

direito, mas que funcione com base em uma verdade desvendada no interior mesmo
do mercado (o preço).
Neste sentido, a partir de meados do século XVIII e início do século XIX, é a
lógica da utilidade (que procura identificar dentro de quais limites e interesses é útil
governar) e não mais a lógica do direito (que busca definir quais são os direitos
originários que podem ser acionados frente ao poder soberano) que passa a orientar
majoritariamente a ação governamental do Estado moderno. Isto não quer dizer que
essas duas lógicas (a lógica do mercado e a lógica jurídica) sejam incompatíveis,
contraditórias ou excludentes; na prática, encontram-se unidas e conjugadas em
estratégias heterogêneas – os direitos do homem são a todo momento atravessados e
marcados pelo problema da utilidade do governo. Podemos dizer, neste sentido, que o
Estado biopolítico encontra nos direitos do homem, a um só tempo, o seu limite e a
sua razão de existência, reivindicando para si a proteção destes direitos, a tutela da
vida, o cuidado do corpo e a defesa da sociedade. Assim, o que Foucault procura
demonstrar é que, mesmo diante da prevalência da regulação do poder em termos de
utilidade, ao longo da história do liberalismo europeu e da história do poder público
no Ocidente, os direitos do homem e o mercado liberal se encontravam sempre em
uma posição de conexão estratégica.


189
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p.26.
72

E, por conseguinte, é esse problema da utilidade, da utilidade individual e coletiva, da


utilidade de cada um e de todos, da utilidade dos indivíduos e da utilidade geral, é
esse problema que vai ser finalmente o grande critério de elaboração dos limites do
poder público e de formação de um direito público e de um direito administrativo.
Entramos, a partir do início do século XIX, numa era em que o problema da utilidade
abrange cada vez mais todos os problemas tradicionais do direito.190

Foi na Europa dos séculos XVIII que o cruzamento entre o direito natural
moderno e a governamentalidade liberal, entre o “sistema dos direitos do homem” e o
“sistema da independência dos governados”, no mesmo momento em que se dava a
estatização da vida biológica e emergia o problema político da população, introduziu
as condições de possibilidade para o nascimento de um humanismo político
institucionalizado que deu a primeira forma para o discurso dos direitos humanos tal
como o entendemos hoje e alavancou a produção de estratégias de individualização e
de totalização do poder sobre a vida. E foi, principalmente, no interior dos aparelhos
do Estado liberal que tal política discursiva se desenvolveu. O resgate e a adaptação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

da pastoral cristã no centro do Estado moderno e o desenvolvimento do liberalismo


como limite à doutrina da razão de Estado (que introduz a ideia de um Estado mínimo
guiado pelo mercado e voltado para a “salvação” do próprio Estado), redirecionaram a
política em direção ao homem, estrategicamente concebido de forma individual e
coletiva. No plano coletivo da população, a assunção da vida pelo poder se deu
principalmente de duas maneiras: através da emergência dos direitos universais do
homem nas declarações liberais do século XVIII que eram pretensamente
direcionadas, ao menos em teoria, a todos os viventes; e por meio do poder de polícia,
que, embora limitado pelo liberalismo, procurava controlar e gerir os aspectos da vida
social coletiva, principalmente através de sua função negativa de impedir desordens
no interior do Estado. No plano individual, por sua vez, a vida entra nos cálculos do
poder e do saber através de um edifício normativo que distinguia o indivíduo normal
do anormal e que consequentemente incluía ou excluía os indivíduos dos processos
econômicos; e por meio da emergência das ciências do homem (psicologia,
criminologia, antropologia, psiquiatria), cujo objetivo central era estabelecer
tecnologias disciplinares de governo do biológico. Neste sentido, o discurso dos
direitos humanos encontra-se articulado em dois eixos. De um lado, pertence ao
campo de regulação das populações em função dos efeitos globais que induz através

190
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p.60.
73

de medidas maciças que visam a “humanidade” como um todo. De outro, faz parte
das disciplinas e de uma rede de micropoderes que agenciam as forças do corpo
individual. Enfim, poderíamos afirmar que devido à própria natureza dos problemas
políticos que o norteiam, desde a sua invenção, o discurso dos direitos humanos
cumpre um certo número de funções no arranjo do poder moderno. E foram essas
funções que o converteram, ao longo da história, em uma espécie de léxico político
indispensável e incontornável ao biopoder, seja em relação às estratégias de
dominação, seja no que se refere às lutas de resistência.
Há, neste sentido, um paradoxo central que perpassa, a todo tempo, a relação
entre o biopoder e os direitos humanos: este discurso serve tanto de instrumento de
resistência e de restrição ao poder estatal quanto de ferramenta para a legitimação do
Estado através de técnicas de individualização/totalização. Ele é tanto um obstáculo
para o governo, quanto um instrumento estratégico e bastante útil à lógica do mercado
(como fica evidente, por exemplo, quando analisamos a história do direito à
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

propriedade privada). Não por acaso, os direitos do homem e o discurso libertário das
declarações do século XVIII integram o mesmo processo histórico que marca o
advento e o desenvolvimento do biopoder: a governamentalização do Estado moderno
e desenvolvimento do capitalismo191. De acordo com Foucault,

(...) as constituições escritas no mundo inteiro, depois da Revolução Francesa, os


códigos redigidos e reformulados, toda uma atividade legislativa permanente e
ruidosa não deve iludir: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente
normalizador.192

As declarações de direito dos séculos XVIII são, neste sentido, um exemplo


concreto da inscrição da vida no quadro jurídico-político do Estado. A Declaração de
Direitos da Virgínia, proclamada pelos revolucionários americanos em 1776,
estabelece, por exemplo, em seu artigo terceiro que o governo deve garantir a
felicidade e a segurança de todos os indivíduos, sob pena de sua abolição. Os direitos
inalienáveis do homem são tanto a finalidade principal da ação do Estado, quanto
meio de resistência do povo contra o arbítrio estatal:

Artigo 3º: O governo é, ou deverá ser, instituído para o benefício comum, a proteção
do povo, da nação, ou da comunidade; de todas as várias formas e modos de governo

191
JUNIOR, Giacóia. Foucault. In: Em tempo, Marília, vol. 6. Ago. 2004. p. 14.
192
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit.. p.
74

a melhor é aquela que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança, e


que se encontra mais efetivamente garantida contra o perigo da má-administração; e
que onde quer que qualquer governo seja considerado inadequado ou contrário a
esses propósitos, a maioria da comunidade tem um indubitável, inalienável ou
irrevogável direito de o reformar, alterar, ou abolir, do modo que seja considerado
melhor conducente ao bem-estar público.

A Declaração Francesa dos direitos do homem e do cidadão de 26 de agosto


de 1789, por sua vez, determina a responsabilidade do Estado em efetivar os direitos
naturais do homem estabelecendo ainda que a liberdade individual só poderia ser
limitada por lei, que expressasse a vontade da soberania popular. Neste sentido, se a
vida, a propriedade, a saúde e a liberdade, por exemplo, são aclamados como direitos
fundamentais, cabe ao Estado a função primeira de concretizá-los. Mais uma vez,
estamos diante de direitos que eram, a um só tempo, a justificativa e a limitação da
ação estatal:

Artigo 2º: A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a


segurança e a resistência à opressão;
Artigo 3º: O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma
operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane
expressamente;
Artigo 4º: A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo.
Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão
aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos
direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Assim, observamos que, desde o seu surgimento, os direitos humanos


prometiam proteger o sujeito da dominação e da sujeição ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, eram materializados e suportados pelas tecnologias próprias do
poder do Estado. E, neste caso, eram as disciplinas que agiam como o “lado obscuro”
dos “iluminados” pronunciamentos de igualdade e de liberdade das cartas de direitos.
As técnicas de coerção e de sujeição dos corpos e das almas foram precisamente o
outro lado do Estado de direito, do constitucionalismo e das liberdades civis. Direitos
humanos, disciplina e biopolítica encontram-se, assim, em uma relação genealógica,
situando-se no interior do mesmo campo político e histórico.
Este paradoxo pode ser traduzido em termos mais simples da seguinte
maneira: os direitos humanos ajudaram a emancipar e proteger o sujeito dos abusos
do Estado, mas eles também constituíram importante instrumento de poder utilizado
para disciplinar, excluir e dominar (como, por exemplo, o discurso de humanização
75

das penas que ajudou a fundamentar a expansão da prisão ou o discurso das


liberdades individuais que ajudou a fundamentar a venda da força de trabalho do
operário); eles foram uma conquista da luta de grupos e indivíduos contra o poder
estatal, mas simultaneamente promoveram uma crescente inscrição da vida dos
indivíduos na ordem do Estado, oferecendo uma nova e perigosa fundamentação para
o poder soberano, do qual pretendiam se libertar193. Em suma, o discurso dos direitos
humanos serviu de fundamentação central para a crescente ação biopolítica do Estado
moderno.
Contudo, é preciso ter sempre em mente que a natureza paradoxal dos direitos
humanos não invalida ou retira a importância deste discurso; ao contrário, constitui
um indício da polivalência estratégica que garante sua hegemonia e reforça a tese de
Foucault de que não há um “fora” do poder e de que onde “há poder, há resistência”.
As relações de poder necessitam, apelam e abrem espaço para as múltiplas formas de
resistência que são, a todo tempo, inventadas e capturadas no interior de um jogo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

material de forças que jamais cessa. É porque há possibilidade real de resistência que
o poder se exerce. Como explica Adrian Marzi, em artigo intitulado “Una reflexión
sobre los derechos humanos a luz del pensamento de Michel Foucault”194, os direitos
humanos são a condição de possibilidade para o poder moderno, na medida em que
proporcionam o oxigênio necessário para a sua sobrevivência sempre que a relação de
poder está próxima de saturar-se: eles não apenas produzem subjetividade e atividade
política, como possibilitam a dinamização das relações de poder, oferecendo uma
abertura de tempo e de espaço, necessária para o próprio exercício do poder. Assim,
os direitos humanos, enquanto princípio legitimador do biopoder, não deixam de
constituir, ao mesmo tempo, um importante mecanismo de resistência às estratégias
biopolíticas. De acordo com Foucault, a partir da emergência do biopoder, a
resistência se apoia exatamente naquilo sobre o que este tipo de poder investe suas
forças: na vida.

E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser
vivo. Desde o século passado, as grandes lutas que põem em questão o sistema geral


193
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit.p. 113-122.
194
MARZI, Adrian. Una reflexón dobre los derechos humanos a la luz del pensamento de Michel
Foucault. In: Revista Debats. Institució Alfons el Magnànim. Realidad, espacios, lenguajes. Nº 95,
2006, 4.
76

de poder já não se fazem em nome de um retorno aos antigos direitos, ou em função


do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma Idade do ouro. Já não se espera
mais o imperador dos pobres, nem o reino dos últimos dias, nem mesmo o
restabelecimento apenas das justiças que se creem ancestrais; o que é reivindicado e
serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência
concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível. Pouco
importa que se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a vida
como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o
sistema que tentava controlá-la.195

Portanto, podemos concluir que os direitos humanos emergiram na


modernidade196 como o “discurso verdadeiro” do biopoder (surgindo do cruzamento
do direito natural com a governamentalidade liberal, como expressão do processo de
estatização da vida biologicamente considerada) e que sua constituição política tem
no paradoxo o princípio para a polivalência estratégica que possibilita a sua utilização
tanto como escudo de legitimação de um aparelho de dominação, quanto como
bandeira de emancipação de um movimento de resistência. Pretendemos no próximo
capítulo, enfim, mapear como sua hegemonia se consolida com a expansão do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

biopoder, mais precisamente na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade


de controle.


195
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 136.
196
É predominante dentre os autores que estudam essa temática a defesa de que os direitos humanos
são uma invenção da modernidade. Nesse sentido se posicionam a título de exemplo: Costas Douzinas,
no livro “O Fim dos Direitos Humanos”; Lynn Hunt, na obra “A invenção dos Direitos Humanos: uma
história”; Etienne Balibar (BALIBAR, Etienne. On the Politics of human righst. In: Constellations,
V.20, N.1, 2013) Boaventura de Souza Santos, no artigo intitulado “Os direitos humanos na pós-
modernidade”; Noberto Bobbio no livro “A era dos Direitos”.
77

3
O triunfo dos direitos humanos

O biopoder foi uma das “grandes invenções da sociedade burguesa”, um


elemento indispensável para o desenvolvimento do capitalismo 197 . Serviu para
garantir a fixação disciplinar dos corpos ao aparato produtivo e para regular as
dinâmicas biopolíticas da população aos processos econômicos. Enquanto a sociedade
industrial surge na passagem do poder pastoral ao poder disciplinar e na
transformação da razão de Estado em governamentalidade, a atual ordem financeira
do capitalismo emerge com tecnologias de controle “a céu aberto” e com uma
racionalidade política voltada para a gestão dos “riscos” de contingentes
populacionais considerados supérfluos para os parâmetros políticos e as necessidades
econômicas dos novos esquemas de vida.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle deve ser


compreendida, portanto, a partir do modo como o biopoder foi colocado a serviço da
acumulação capitalista. Somente assim será possível mapear a forma como o discurso
dos direitos humanos materializa a verdade política do biopoder. Este será
precisamente o objeto central deste capítulo, que pretende, em um primeiro momento,
investigar a história política do biopoder na passagem da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle e, por fim, analisar o triunfo do discurso dos direitos humanos
na política contemporânea.

3.1.
A sociedade disciplinar

A sociedade disciplinar marcou toda a fase de expansão do capitalismo


industrial até o seu apogeu durante o período fordista. Articulando técnicas de
adestramento do corpo e mecânicas de regulação da população em uma gestão
política da vida, materializou-se no regime econômico da fábrica e no paradigma


197
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 44-43.
78

penal do cárcere “correcional”198. Se antes, nas sociedades feudais, o poder buscava


destruir e eliminar fisicamente o corpo, as mudanças sociais ocorridas no século
XVIII e XIX imprimiram uma nova dinâmica ao poder que se voltou, então, para a
recuperação e para o disciplinamento dos “excedentes”. O discurso dos direitos
humanos foi precisamente o resultado da luta contra o crescente disciplinamento e, ao
mesmo tempo (em conjunto com outras formas de discurso e de saberes como a
medicina, a psiquiatria e a criminologia), o fundamento “racional” e “humanista” por
trás destas transformações que introduziram um tipo de “sociedade do confinamento”,
onde as táticas de governo que definiam o funcionamento das “instituições de
sequestro” e a aplicação dos mecanismos de punição se orientavam pelo critério da
produção capitalista. No nível do indivíduo, tratava-se de transformar os corpos em
força de trabalho, tornando-os tanto mais úteis quanto mais dóceis. No nível da
população, tratava-se de equilibrar as tendências demográficas, gerir os fluxos
geográficos e homogeneizar os desvios biológicos. Uma nova ótica: o panoptismo;
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

uma nova mecânica: a disciplina; e uma nova fisiologia: a normalização, caracterizam


esse modelo de sociedade que se consolida na passagem do século XVIII para o
XIX199.
Mais do que uma estrutura arquitetônica200, o panoptismo consiste sobretudo
na perspectiva universal de aplicação de uma forma de governo “intra-muros”,
voltada para a vigilância contínua e constante dos corpos, própria de estabelecimentos
construídos para “manter as pessoas sob constante inspeção”, como as penitenciárias,
prisões, indústrias, hospitais e escolas. Essa nova ótica busca assegurar o
funcionamento automático do poder ao produzir no indivíduo “um estado consciente e
permanente de visibilidade” – ele é visto, mas não vê; é o objeto de uma informação,
mas nunca o sujeito em uma comunicação. Trata-se, assim, de um tática de poder

198
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan
(ICC), 2006. p.27.
199
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.42.
200
Foucault descreve o panóptico de Bentham da seguinte maneira: “na periferia uma construção em
anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas
têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior,
permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em
cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da
contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas
cativas nas celas da periferia. (...) O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem
ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de
suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as
outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra que finalmente protegia.”
(FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p. 165-166.)
79

visível porém inverificável: os indivíduos se sabem vigiados (basta que olhem os


muros, as estruturas hierárquicas ou a torre central da prisão), sem que haja
necessidade de efetivamente serem; eles nunca devem saber se estão sendo
observados, mas devem ter a certeza de que sempre podem sê-lo201. Nasce, então, um
modo próprio de sujeição, por meio do qual não é mais necessário recorrer à força
para garantir do condenado um comportamento adequado, do louco a aparente
normalidade, do operário o trabalho ou do aluno o cumprimento de suas tarefas202. No
prefácio da obra de seu idealizador, Jeremy Bentham, datada de 1791, ficam evidentes
os objetivos do panóptico:

A moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução difundida;


os encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve ser, sobre uma
rocha; o nó górdio da Lei sobre os Pobres não cortado, mas desfeito – tudo por uma
simples ideia de arquitetura! Tudo isso arrisquei-me a dizer ao repousar a pena: tudo
isso deveria eu, talvez, ter dito ao tomar a pena, se desde o início eu tivesse visto a
totalidade do caminho que se estendia diante de mim. Tratava-se de um novo modo
de garantir o poder na mente sobre a mente, em um grau nunca antes demonstrado; e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

em um grau igualmente incomparável, para quem assim o desejar, de garantia contra


o exagero. Esse é o mecanismo, esse é o trabalho que pode ser feito com ele [o
panóptico].203

O panóptico é, acima de tudo, uma tecnologia política que, através da inserção


dos corpos no espaço, da distribuição regrada dos indivíduos e da vigilância
hierárquica, intensifica e aperfeiçoa o controle sobre a vida fazendo com que o
exercício de poder não seja percebido como algo que vem “de fora” (uma limitação
ou imposição rígida), mas que esteja sutilmente presente nas funções que ele próprio
instala. Desvinculando-se das formas tradicionais da soberania, cujo exercício do
poder se dava de forma súbita, descontinuada e violenta, o panoptismo é uma forma
de poder que objetiva disciplinar todo o corpo social a fim de “aumentar a produção,
desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer
crescer e multiplicar” 204. A máquina panóptica cria “um universo em que a utilidade
funda a existência”205.


201
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p. 166-167.
202
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p.167.
203
BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. p.15.
204
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p.172.
205
MILLER, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: O panóptico. . Organização
e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.82.
80

O panóptismo é, portanto, um modelo de funcionamento do poder que se


expande sobre o cotidiano, materializando-se, sobretudo, em uma anátomo-política
dos corpos que objetiva regular os gestos, os hábitos e as práticas: a disciplina. A
mecânica disciplinar busca controlar todas as dimensões do espaço, do tempo e do
movimento. Opera através da repartição dos indivíduos no espaço, por meio de uma
série de técnicas como o cercamento (evidenciado pelos muros dos internatos, das
prisões, dos quarteis e da fábrica); a clausura (crescem, nesse momento, por exemplo,
as penas de reclusão e de prisão em substituição ao suplício dos corpos); as
localizações funcionais (os lugares passam a ser definidos com o objetivo de se
criarem “espaços úteis”, como no caso dos hospitais que se transformam, pouco a
pouco, em um espaço não somente de “cura”, mas de administração); e a classificação
(individualizam-se os corpos através de uma localização que não os introduz, mas os
distribui e faz com que circulem em uma rede de relações). Estabelece, assim, uma
espécie de “quadriculamento” através do qual se repartem e se dividem os corpos em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

conformidade com o espaço: “cada individuo no seu lugar; e em cada lugar, um


indivíduo” 206 . Trata-se, portanto, de distribuir os corpos pelas escolas, hospitais,
hospícios e quarteis militares, para reduzir as “multidões perigosas ou de vagabundos,
que vagam por toda parte, a indivíduos dóceis e fixados”207.
A disciplina funciona, ainda, através de um “esquema anátomo-cronológico do
comportamento” no qual o tempo penetra o corpo e todas as suas atividades a fim de
torná-lo mais útil, eficaz e rápido. Trata-se de capitalizar o tempo e a força dos
indivíduos em todas as esferas de sua existência. E, para isso, é preciso definir os
horários, estabelecer as cesuras, impor o cumprimento de ocupações determinadas e
regulamentar os ciclos de repetição. O objetivo central desse tipo de controle social é,
assim, gerar um “bom emprego” do corpo e do tempo: “importa extrair do tempo
sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”208.
Em plena revolução burguesa, expansão da industrialização, crescimento
massivo das cidades, desaparecimento progressivo das pequenas unidades artesanais e
consolidação dos aparelhos estatais, o poder se volta precisamente para o corpo do
operário, a fim de ajustá-lo ao tempo da fábrica e fixá-lo como força de trabalho na
unidade produtiva. Não por acaso, vemos surgir, nesse momento, novas formas de

206
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit.. p.123
207
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Op. cit. p. 171
208
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit.. p.131.
81

“ilegalismos” que buscavam evitar a revolta dos trabalhadores contra os baixos


salários e as elevadas jornadas, as péssimas condições de trabalho e as constantes
crises econômicas que os atingiam diretamente. Para impedir o absenteísmo, a
possível quebra do contrato de trabalho, as migrações ou qualquer tipo de vida
“irregular” e improdutiva que os indivíduos pudessem levar, a legislação passou a
definir novos tipos de delito como, por exemplo, a obrigação da carteira de trabalho, a
definição dos lugares em que a venda e o consumo de bebidas alcoólicas eram
autorizados e a proibição do jogo e da loteria209. O objetivo era, portanto, “moralizar”
o operário (estabelecendo a partilha entre bom e mau trabalhador) e adestrar seus
comportamentos para impor, enfim, a constância e a regularidade exigida pela
fábrica210.
A passagem da sociedade feudal para a sociedade industrial, do patíbulo do
suplício para a torre de vigilância da prisão, dos espetáculos punitivos para a
economia das disciplinas, marca o surgimento de uma nova racionalidade política
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

que, em nome dos ideais iluministas, pregava a “humanização” dos castigos e das
penas ao mesmo tempo em que ampliava o escopo, o grau e a intensidade do aparelho
punitivo. Os direitos humanos foram, a um só tempo, a arma utilizada contra o antigo
regime dos castigos corporais e das máquinas de tortura das velhas sociedades
monárquicas e o argumento de justificação para a proliferação das prisões e demais
instituições disciplinares que buscavam adequar os indivíduos aos novos esquemas de
vida promovidos pelo capitalismo. Neste contexto, as formas pré-modernas de
dominação, fundadas na hierarquia social e na ordem divina, tornaram-se por demais
evidentes, repelentes e antieconômicas para os olhos da razão moderna 211 . Como
explica Foucault, a “humanização” das penas, tradicionalmente atribuída à razão e ao
progresso civilizatório, foram, na realidade, uma consequência das transformações
ocorridas na economia do poder durante a modernidade. Em suas palavras:


209
Um exemplo concreto foi a Lei Chapelier de 14 de junho de 1791, aprovada na França que “proibiu,
sob pena de multa e prisão, todos os operários autônomos ou assalariados se dissessem presidentes ou
síndicos, tomassem decisões na qualidade de autoridades, mantivessem registros, se associassem com
vistas a recusar trabalho ou a só desempenhá-los por determinadas tarifas. Qualquer ajuntamento de
artesões, operários assalariados, autônomos ou jornaleiros seria dispersado pela força”. Esta lei só foi
revogada em 1887, após longa e forte resistência dos trabalhadores franceses. (TRINDADE, José
Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 59)
210
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.40-41.
211
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit. p.111.
82

Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições “humanas”, sempre a


um criminoso que pode muito bem ser um traidor e um monstro, entretanto. Se a lei
agora deve tratar “humanamente” aquele que está “fora da natureza” (enquanto que a
justiça de antigamente tratava de maneira desumana o “fora-da-lei”), a razão não se
encontra numa humanidade profunda que o criminoso esconda em si, mas no controle
necessário dos efeitos do poder. Essa racionalidade “econômica” é que deve medir a
pena e prescrever as técnicas ajustadas. “Humanidade” é o nome respeitoso dada a
essa economia e a seus cálculos minuciosos. Em matéria de pena o mínimo é
ordenado pela humanidade e aconselhado pela política.212

Os direitos humanos se inserem, neste sentido, em um projeto político que, de


um lado, liberta os indivíduos das velhas estruturas de servidão feudal e, de outro, fixa
os sujeitos a um regime de poder orientado em torno da estatização da vida. Trata-se
de um discurso estruturado por uma nova dinâmica de sujeição que se consolida na
passagem da figura do súdito à figura do cidadão, ou melhor, à figura de um sujeito
abstrato portador de direitos, autônomo e livre. E, assim, no lugar da monarquia
absolutista, vemos surgir regimes parlamentares representativos que, por um lado,
consagraram um sistema formal de liberdades individuais e, por outro, possibilitaram
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

a generalização das disciplinas e seus efeitos: a produção de corpos individualizados,


tanto mais funcionais quanto adestrados, e uma população de trabalhadores que,
iguais e livres na lei, vendem sua força de trabalho e se sujeitam à exploração do
capital. Segundo Foucault, “as luzes que descobriram as liberdades inventaram
também as disciplinas”.

Historicamente, o processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do século


XVIII a classe politicamente dominante, abrigou-se atrás da instalação de um quadro
jurídico explícito, codificado, formalmente igualitário, e através da organização de
um regime de tipo parlamentar e representativo. Mas o desenvolvimento e a
generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente, obscura,
desse processo. A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em
princípio igualitário era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e
físicos, por todos esses sistemas de micropoderes essencialmente inigualitários e
assimétricos que constituem as disciplinas. E, se de uma maneira geral, o regime
representativo permite que direta ou indiretamente, com ou sem revezamento, a
vontade de todos forme a instancia fundamental da soberania, as disciplinas dão, na
base, garantia da submissão das forças e dos corpos. 213

O programa político da modernidade não se esgota, contudo, nas disciplinas.


Se a sociedade industrial se traduz materialmente nas técnicas de disciplinamento, ela
também marca o desenvolvimento do controle biopolítico da população, através dos


212
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit.. p. 77.
213
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit. p. 183.
83

dispositivos de segurança. Na verdade, é possível dizer, inclusive, que o poder


disciplinar (enquanto tecnologia política que singulariza o corpo humano) nunca foi
tão importante e tão valorizado como a partir do momento em que se viu emergir as
estratégias de governo da população. Enquanto a disciplina fixa limites e fronteiras,
aprisionado e restringindo a liberdade dos indivíduos, os mecanismos de segurança se
preocupam primordialmente em garantir a liberdade de circulação, as trocas, a
produção e os deslocamentos no interior das cidades. A primeira incide no corpo, de
modo, por exemplo, a classificar e separar os doentes e os não-doentes, através de um
rígido regime de isolamento e medicalização. A segunda, ao contrário, leva em
consideração o conjunto da população sem descontinuidades ou divisões (doente e
não-doente), buscando calcular, dentro de uma certa cartografia da normalidade, os
casos, os riscos e os perigos de contágio de determinada doença por faixa etária, por
profissão, por gênero ou por bairro, por exemplo. O elemento que vai abranger tanto a
disciplina quanto a segurança, que vai incidir, a um só tempo, no corpo e nos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

fenômenos próprios de uma multiplicidade biológica, é a norma 214 . A sociedade


disciplinar (ou de normalização) é, portanto, “uma sociedade em que se cruzam,
conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação215.
No nível das disciplinas, trata-se de normalizar os indivíduos, seus corpos,
gestos e comportamentos, no interior das instituições de sequestro, demarcando a
identificação do normal e do anormal. Há, neste sentido, um caráter
fundamentalmente prescritivo da norma que busca inserir aqueles que a ela se
adaptam e excluir aqueles que a ela não são capazes de se conformar. Surgem, assim,
as figuras do “monstro humano” (no campo jurídico-biológico); do “indivíduo
incorrigível” (no campo da família e das instituições a ela relacionadas como a escola,
a paróquia e o bairro) e do “onanista” (no campo ainda mais restrito do quarto),
cabendo às instituições disciplinares e à justiça, através das técnicas modernas de


214
Em um sentido foucaultiano, norma e lei não se confundem. Como esclarece Márcio Alves da
Fonseca, “a norma, tal como aparece em Foucault, não deve ser buscada prioritariamente do lado do
direito, da lei, mas do lado da medicina, da psiquiatria. Ao invés de se reportar essencialmente às
categorias do direito, a norma, em Foucault, se reporta ao funcionamento dos organismos. Desse modo,
o campo compreendido pelas ciências da vida é seu local de inserção privilegiado”. (FONSECA,
Márcio A. Entre monstros, onanistas e incorrigíveis. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B;
VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de
Janeiro:DP&A Editora, 2005. P. 243-244.)
215
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.302.
84

adestramento, como a medicalização, a internação, e o enclausuramento, desempenhar


a função de “recepção” dos “anormais” na sociedade.
No nível da biopolítica, a normalização se dá através dos dispositivos de
segurança e se volta para a aleatoriedade dos acontecimentos no interior de um quadro
populacional multivalente e transformável. Trata-se de criar mecanismos de
intervenção na população (por meio da noção de caso, de risco, de perigo e de crise)
que levem em conta os fenômenos próprios desse modo de coletividade. Enquanto na
disciplina parte-se da norma para definir, por meio do adestramento, o normal e o
anormal, a regulamentação biopolítica parte de uma identificação do normal, ou
melhor, de um mapeamento estatístico de curvas de normalidade, para cruzar essas
diferentes distribuições de normalidade de forma que possam funcionar umas em
relação às outras 216 . A segurança constitui, portanto, uma “gestão diferencial das
normalidades e dos riscos, que não são considerados nem como bons, nem como
maus, mas como um fenômeno natural [e] espontâneo”217, próprio de uma população.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

A sociedade de normalização é, portanto, o resultado histórico do surgimento


do biopoder, de uma tecnologia centrada no adestramento da vida dos indivíduos e na
regulamentação da vida da população. É a norma e não mais a lei que assume o papel
de protagonista. Já não se trata mais de matar o corpo do súdito, mas sim de distribuir
a vida em um domínio de valor e de utilidade. Neste sentido, enquanto a lei define
uma clara distinção entre o dentro e o fora, o interior e a margem, o permitido e o
proibido, do ponto de vista de um poder soberano de vida e de morte impresso nos
códigos jurídicos; a norma estabelece um único campo em que não há bordas ou
limites e o fora e o dentro se conjugam, de modo que um sujeito nunca se situa
inteiramente no seu interior ou exterior, mas em uma posição sempre relacional que
pretende indicar, em termos quantitativos, o valor e a capacidade produtiva dos
indivíduos. De acordo com Ewald, a norma atua como um “princípio de comparação
(...) que institui na pura referência de um grupo a si próprio, a partir do momento em
que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade, sem verticalidade” 218 . Em
suma: enquanto a lei condena e mata, a norma homogeneíza e captura formas de vida.


216
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit.. p.82.
217
LAZZARATO, Mauricio. Biopolítica/Bioeconomia. In: PASSOS, Izabel C. Friche (org.). Poder,
normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
p. 47.
218
EWALD, François. Foucault: a Norma e o Direito. Op. cit. p. 86.
85

Contudo, diante da distinção conceitual e aparente oposição entre norma e


direito é preciso destacar, que, na prática, o que vemos são relações de “implicações
recíprocas, de complementaridades, de colonizações mútuas entre ambos” que
acabam por trazer à tona um “direito normalizado-normalizador”: normalizado porque
é penetrado pelas práticas da norma e normalizador porque é o vetor da
normalização219. Foucault esclarece tal relação:

outra consequência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente


assumida pela atuação da norma, à expensas do sistema jurídico da lei. (...) Não quero
dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas
que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra
cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas
funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico
de uma tecnologia de poder centrada na vida. Por referencia às sociedades que
conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as
Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução francesa, os Códigos
redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não
devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente
normalizador.220
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Se a sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder


centrada na vida, o discurso dos direitos humanos é a linguagem política que melhor
expressa a colonização da lei pela norma. Os conceitos fundamentais que balizam o
discurso não foram articulados por acaso: enquanto o termo “direito” faz referência à
lei, o termo “humano” garante a prevalência da norma. Entre a disciplina dos corpos e
a segurança das populações, toda uma série de estratégias de normalização do direito,
toda uma gama de disputas pela “humanização” da lei. E, neste sentido, o discurso
dos direitos humanos aparece nas medidas (judiciais e policiais) de apropriação dos
corpos a serem inseridos nas instituições de sequestro, aparece nos regulamentos
técnicos de tais instituições, aparece nos efeitos de verdade do poder médico sobre os
indivíduos, aparece, enfim, no processo de normalização que sujeita a vida a um
controle político para produzir o capital humano necessário à reprodução do mercado.
Mas também aparece nas denúncias populares da violência estatal, aparece na
resistência social à burocracia do Estado, aparece na demanda de serviços públicos e
aparece, finalmente, nos protestos contra a exploração do capital. E assim, o paradoxo
se expõe novamente: enquanto parte significativa da população mundial é


219
FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. Op. cit. p.185.
220
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.135.
86

normalizada em nome dos direitos humanos, é na luta pela garantia, promoção e


defesa destes direitos que muitos movimentos sociais se insurgem contra políticas de
normalização.
Esta contradição é ainda mais evidente quando observamos que, embora a
normalização vise a gestão da vida biologicamente considerada, ela não deixa de
exercer uma produção contínua da morte. O discurso fundamentalmente pacifista dos
direitos humanos não deixa de coexistir, lado a lado, com violações massivas da vida.
O mesmo Estado que busca gerir produtivamente a vida humana, é também o maior
responsável pela morte dos indivíduos (comprovam esta tese as guerras, os genocídios
e as chacinas produzidas pelos Estados modernos ao longo dos últimos dois séculos).
É útil lembrar que as declarações de direito do século XVIII jamais pretenderam
abranger os indígenas e os negros escravos das colônias americanas, sequer
considerados sujeitos jurídicos, de modo que os direitos humanos conviveram
“harmonicamente” com a desumanização e o extermínio de povos não-europeus221.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Como destaca José Damião Trindade, não houve opressor que, nos últimos duzentos
anos, ao menos no Ocidente, não tenha se utilizado da linguagem dos direitos
humanos222.
Neste quadro, o racismo foi, mais do que uma condição de aceitabilidade, o
dispositivo político da morte que prevaleceu com o desenvolvimento do poder
normalizador, estabelecendo o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Sua
função consiste, de um lado, em traçar rupturas no interior da continuidade
homogênea da população através da distinção e da qualificação de certas raças como
superiores ou inferiores. E, de outro, em estabelecer uma relação positiva em que o
extermínio do outro se dá em nome do bem-comum e do interesse geral da população.
Predomina a ideia de que quanto mais as espécies inferiores desaparecerem, quanto
mais os indivíduos anormais forem suprimidos, mais a vida dos indivíduos da espécie
será fortalecida: “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia
e pura”223.


221
Importante destacar que os lucros do comércio de escravos negros compuseram, ao lado da
apropriação violenta das terras comunais, do saque colonial e da pirataria, os principais fatores da
acumulação “primitiva” de capital que posteriormente financiou a eclosão da Revolução Industrial. Em
suma, a escravidão foi o impulso decisivo para o florescimento do capitalismo industrial moderno.
(TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 140)
222
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit.. p. 15
223
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.305.
87

Em linhas gerais, o racismo assegura a função de morte na economia do biopoder,


segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria
pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população, na medida
em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva.224

Desta forma, o racismo, longe de ser algo novo na história humana, se


relaciona, no contexto da modernidade, não com o ódio tradicional entre raças ou com
uma operação ideológica voltada para um inimigo mítico, mas com a formação
política do Estado moderno e com o funcionamento do poder em seu interior. Não por
acaso, o apogeu do modelo disciplinar de sociedade se consagrou, segundo Foucault,
na primeira metade do século XX, mais especificamente no momento em que o
nazismo se alastra por toda a Europa 225 . Mas, se não há sociedade que, a um só
tempo, seja mais disciplinar e regulamentadora dos aspectos biológicos da vida
humana do que o regime nazista, é preciso enfatizar que, em um contexto biopolítico,
não há Estado moderno que não se utilize do racismo como justificativa para exercer
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

o seu direito de matar em nome da preservação e do fortalecimento da vida da


população, mesmo que em graus diferenciados.
Esse modelo disciplinar de sociedade – materializado nas grandes instituições
de confinamento; nas técnicas de adestramento do corpo; nas mecânicas de governo
da população; no racismo de Estado como estratégia de gestão da vida; e numa lógica
de controle social predominantemente “intra-muros” – nasce na Europa a partir da
metade do século XVIII, se internacionaliza no século XIX, e atinge o seu apogeu na
primeira metade do século XX. Nas palavras de Negri e Hardt:


224
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.308.
225
Útil destacar que, desde o século XIX, a ideia de raça já havia se tornado um conceito corrente,
absorvendo a fundamentação cientificista do positivismo em ascensão. Os estudos de antropologia,
biologia e história, que operavam com tal conceito enquanto ferramenta teórica, ganhavam cada vez
mais respeitabilidade. As teorias racistas eram, assim, teorias científicas justificadoras tanto do
colonialismo quanto da supremacia da burguesia no planeta. O teórico francês Gobineau, considerado o
“pai” do racismo com pretensões científicas, defendia, em seu livro “Ensaio sobre a desigualdade das
raças humanas” (1855), que a raça ariana teria a vocação de dirigir o mundo em função da sua
superioridade biológica. Por sua vez, foi em 1876 que o psiquiatra Cesare Lombroso publicou o livro
“O homem criminoso” no qual dava explicações médicas para a conduta criminosa. A experiência
nazista levou o racismo aos seus extremos. Segundo Hitler, o Estado devia ser concebido como “um
organismo racial e não uma organização econômica (...), resultado da atuação daquelas virtudes que
residem no instinto de conservação da raça e da espécie. Estas são, porém, virtudes heroicas, e nunca
egoísmo mercantil, pois que a conservação da existência de uma espécie pressupõe o sacrifício
voluntário de cada um” (TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op.
cit. p. 174)
88

Sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social construído mediante uma


rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os
hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade, e
assegurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão, por meio
de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a
escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e fornecem explicações
lógicas adequadas para a “razão” da disciplina. O poder disciplinar se manifesta, com
efeito, na estruturação de parâmetros e limites do pensamento e da prática,
sancionando e prescrevendo comportamentos normais e/ou desviados (....) de forma
mais geral podemos dizer que toda a primeira fase de acumulação capitalista (na
Europa e em outras partes) foi conduzida sob esse paradigma de poder.226

Dentro deste amplo contexto histórico, podemos identificar dois grandes


períodos de transformações econômicas que marcam o desenvolvimento e a posterior
crise da sociedade disciplinar: a governamentalidade liberal (predominante da
segunda metade do século XVIII até o início do século XX); e a governamentalidade
fordista-keynesiana (predominante no pós II Guerra Mundial até a década de 70)227.
Certamente não há a pretensão de abrangermos todos os aspectos destas formas de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

governo, mas sobretudo de demonstrarmos algumas transformações no seio do


capitalismo que nos ajudam a compreender a posterior passagem da sociedade
disciplinar para a sociedade de controle.
Na segunda metade do século XVIII, observamos o desenvolvimento da
governamentalidade liberal 228 , que perpassa todo o século XIX na forma de um
sistema de governo mínimo. Contudo, ao mesmo tempo em que se apresenta como
crítica ao “excessivo disciplinamento” em defesa das liberalidades individuais, o
liberalismo tem na generalização da disciplina a sua condição de possibilidade. Isto
porque ao estabelecer a separação entre o político e o não-político, entre o Estado e a
sociedade enquanto realidade natural pré-existente (que deve ser governada a partir
das regras ditadas pelo mercado), esta racionalidade política introduz uma noção de
liberdade baseada na dicotomia perigo/segurança: é preciso produzir a todo tempo, na

226
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.p. 42.
227
Não queremos dizer, com isso, que sejam períodos opostos. De acordo com Mitchell Dean, em
razão da complexa relação entre liberalismo e biopolítica (o liberalismo é tanto um tipo de biopolítica
quanto uma crítica aos imperativos biopolíticos), seria um erro opor o liberalismo clássico às formas
sociais de governo. No entendimento do autor, o que separa a forma de governo liberal clássica da
social-democracia não é que um reconheça que o governo deve ancorar-se na sociedade e em seus
processos e que o outro não, mas sim a concepção que cada forma de governo tem de sociedade e o
modo como lidam com ela. (DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.113)
228
Importante ressaltar que o liberalismo, enquanto uma reflexão crítica do governo, pode assumir
diferentes formas, de modo que há não um, mas uma série de liberalismos: liberalismo clássico,
liberalismo econômico, social-liberalismo, liberalismo na forma do Estado de bem-estar social e o
neoliberalismo (que, por si só, já assume uma pluralidade de versões). (DEAN, Mitchell,
Governmentality. Op. cit. p.52)
89

sociedade, liberdades (que possibilitem a produção, o comércio, a venda da força de


trabalho dos indivíduos), mas apenas no limite da segurança do Estado e dos perigos
deflagrados em seu interior (a liberdade do trabalhador não pode implicar de forma
alguma em uma ameaça para a produção; a liberdade de comércio não pode resultar
em práticas de monopólio). Consequentemente, o liberalismo acaba por alargar e
intensificar a extensão dos procedimentos de disciplina, como uma espécie de
contrapeso às liberdades individuais que representam, não o seu objetivo, mas a sua
própria condição de possibilidade229.
A arte liberal de governar, enquanto crítica ao excesso de governo, toma o
mercado (lugar privilegiado da verdade) como o elemento que limita a intervenção do
Estado, não para impossibilitar suas ações, mas para requalificá-las: o Estado deve
intervir somente para garantir a segurança do indivíduo e a liberdade econômica (o
preço natural, a concorrência, o equilíbrio entre a oferta e a procura). Não se trata de
rejeitar toda intervenção, mas de realizar intervenções que introduzam modos de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

regulação necessários e naturais. E, neste sentido, “a liberdade econômica e as


técnicas disciplinares estão perfeitamente ligadas” 230 . De acordo com Foucault, o
panóptico, por exemplo, representa a própria forma do governo liberal, na medida em
que procura respeitar a “perfeita ordem natural” dos comportamentos dos sujeitos e
dos processos econômicos sem qualquer interferência, a não ser a vigilância contínua.
Não por acaso, observamos no século XVIII, que a supressão dos suplícios sobre o
corpo e a “humanização do castigo” foram acompanhadas pelo crescimento
exponencial das prisões e práticas de enclausuramento orientadas à reprodução de
uma subjetividade operária. Tratava-se, não de consagrar a liberdade e os princípios
humanistas ou concretizar um suposto progresso moral da sociedade, mas
fundamentalmente de corrigir todos aqueles (vagabundos, pobres, criminosos, loucos,
ou melhor, as classes perigosas) que se encontravam fora do padrão de normalidade
ou que representavam uma ameaça à segurança e ao modelo industrial de produção
que caracterizava a ordem econômica vigente. Como afirma Alessandro De Giorgi,

Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das instituições e das


tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a penitenciária nasce e se
consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender
as exigências do nascente sistema de produção industrial. A estrutura penitenciária,


229
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 87.
230
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 91.
90

sob o perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se,
paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de
disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz mediação entre
cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do
século XVIII codividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares
à fábrica.231

Diante da constante problemática liberal da segurança e da manutenção da


ordem, seria um erro reduzir o liberalismo à fórmula do laisser-fair típica do governo
mínimo232. Na medida em que enquadra os processos da economia e da sociedade
civil em “mecanismos de segurança” – como seguridade social, forças policiais
internas, exército permanente e gestão nacional da economia – o liberalismo se abre
para a formação de um conhecimento próprio da sociedade (estatística, economia,
medicina social, psiquiatria, criminologia). A partir do início do século XIX, a
questão social – não propriamente o social, mas as consequências dele derivadas: a
miséria, as condições precárias de vida dos trabalhadores, o desemprego, a
criminalidade – emerge como um campo central de problematização frente ao Estado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

liberal. O social deve ser visto como um espaço privilegiado em que se dá a


autocrítica e auto-renovação do liberalismo ao longo do século XIX, não como uma
esfera interior ou exterior a essa forma de governo, mas como um elemento
constituído pelo conjunto de problematizações da economia liberal (resultado do
desemprego e da pobreza); pelas instituições e práticas que intervêm diretamente na
sociedade (como aquelas relativas à seguridade social e às questões trabalhistas
emergentes); e por uma variedade de atores e agências preocupados com os efeitos do
liberalismo (entidades filantrópicas, sindicatos de trabalhadores, escolas públicas,
polícia)233.
Neste quadro histórico, observamos a primeira grande crise dos valores e
sentidos atribuídos ao discurso dos direitos humanos na Europa ocidental, configurada
pelo agravamento da situação da vida da grande maioria das pessoas, resultado da
revolução industrial em curso. O liberalismo ainda tentava, de forma ineficaz,
solucionar os problemas sociais através de sua tradicional fórmula do Estado mínimo,


231
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.44.
232
DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.123.
233
Se o liberalismo assume que o Estado é uma esfera artificial e limitada, o governo liberal constrói a
divisão entre o Estado e o seu exterior como algo necessário para os seus fins. Neste sentido, o social é
um modo de ver, pensar e agir que não é nem interno nem externo ao liberalismo; mas, ao contrário,
que surge com base na crítica da economia liberal. (DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.53,
55)
91

atribuindo a miséria ao próprio trabalhador 234 . Quando o Estado assumia a


responsabilidade de “cuidar” dos miseráveis exigia, em troca, que estes abrissem mão
dos seus direitos civis e políticos submetendo-se a um regime de internamento e a
práticas de coação física e moral. Um bom exemplo disto foi a Nova Lei dos Pobres
de 1814 (que vigorou até o ano de 1918), promulgada na Inglaterra, que previa a
concessão aos trabalhadores do auxílio-pobreza com a condição de que estes
permanecessem dentro das novas workhouses separados de suas famílias e sujeitos a
um controle constante 235 . O historiador marxista, Eric Hobsbawn, define bem o
período da primeira metade do século XIX:

O período que culminou por volta da metade do século foi, portanto, uma época de
insensibilidade sem igual, não só porque a pobreza que rodeava a respeitabilidade da
classe média era tão chocante que o homem rico preferia não vê-la, deixando que
seus horrores provocassem impacto apenas sobre os visitantes estrangeiros (como é o
caso hoje em dia das favelas da índia), mas também porque os pobres, como os
bárbaros do exterior, eram tratados como se não fossem seres humanos. Se seu
destino era o de se tornarem trabalhadores industriais, eles eram simplesmente massa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

que deveria ser modelada pela disciplina através da pura coerção, sendo a draconiana
disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado. (É bastante característico que a
opinião da classe média contemporânea não percebesse qualquer incompatibilidade
entre o princípio de igualdade perante a lei e os códigos trabalhistas deliberadamente
discriminatórios que, como no caso do Código Britânico de Patrões e Empregados, de
1823, puniam os trabalhadores com a prisão por quebra de contrato e os
empregadores com modestas multas, se tanto. Eles deveriam estar constantemente à
beira da indigência, porque, caso contrário, não trabalhariam, sendo inacessíveis às
motivações "humanas". "É no próprio interesse do trabalhador", disseram os
empregadores a Villermé no final da década de 1830, "que ele deve estar sempre
fustigado pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau exemplo, e
sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta".236

Assim, ao dar causa a uma série de novos problemas – decorrentes


principalmente da contradição entre uma igualdade meramente formal e uma
desigualdade real fundamental, e materializados na pobreza e na miséria urbana, nas
precárias condições de trabalho, na enorme desigualdade social e no desemprego


234
De acordo com a teoria liberal de Thomas Malthus, por exemplo, a causa da miséria seria resultado
do crescimento não controlado da população, em uma progressão geométrica ao mesmo tempo em que
os meios de subsistência cresciam apenas numa progressão aritmética. A miséria seria causada pela
conduta dos próprios trabalhadores que insistiam em casar cedo e ter muitos filhos, sendo preciso,
então, freios “preventivos” à explosão demográfica. De acordo com José Damião Trindade, apesar da
falta de fundamento desta teoria, ela foi bastante influente na medida em que “se encaixava como mão
e luva nos preconceitos antioperários das classes dominantes” (TRINDADE, José Damião de Lima.
História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 107)
235
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 88.
236
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções 1789-1848. 3ªEd. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p.
220.
92

cíclico – o liberalismo, não apenas prepara o terreno para um “governo da sociedade”


e para a produção de conhecimento a seu respeito (criminologia, saúde pública,
higiene social) como toma a sociedade enquanto sua própria necessidade. Frente à
crescente resistência dos trabalhadores no século XIX237 e início do século XX238, e
diante da ameaça às liberdades do mercado, consideradas a condição de possibilidade
para a produção e para os processos econômicos liberais, esta arte de governar não
teve outra opção, a partir do século XX, que não fosse a promoção de uma série de
intervenções artificiais no mercado, como observado na Inglaterra e nos Estados
Unidos no curso dos anos 1930. Seria possível dizer que a arte liberal de governar
acaba por introduzir, por si mesma, uma crise de governamentalidade. Como
esclarece Foucault, desde os anos 1925-1930, os liberais alemãs e americanos, a fim
de evitarem uma possível diminuição da liberdade com a passagem para o socialismo,
o fascismo ou o nacional-socialismo, instalaram mecanismos de intervenção
econômica que levaram à configuração daquilo que Foucault denominou de crise do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

liberalismo. Em suas palavras:

Para resumir, ou para concluir, gostaria de dizer o seguinte: se é verdade que o


mundo contemporâneo, enfim, o mundo moderno desde o século XVIII, tem sido
incessantemente percorrido por certo número de fenômenos que podemos chamar de
crises do capitalismo, será que não se poderia dizer também que houve crises do
liberalismo, que, bem entendido, não são independentes dessas crises do capitalismo?
O problema dos anos 1930 que eu evocava há pouco está aí para prová-lo. Mas a
crise do liberalismo não é a projeção pura e simples, a projeção direta dessas crises do
capitalismo na esfera da política. As crises do liberalismo, vocês vão encontrá-las
ligadas às crises da economia do capitalismo. Vocês vão encontrá-las também em
defasagem cronológica relativamente a essas crises, e, como quer que seja, a maneira
como essas crises se manifestaram, como essas crises são geradas, como essas crises
trazem reações, como essas crises provocam rearranjos, tudo isso não é diretamente
dedutível das crises do capitalismo. É a crise do dispositivo geral de


237
Dentre alguns dos principais acontecimentos destacamos: o aumento do número de sindicatos; as
constantes greves operárias; os impulsos revolucionários que culminaram em 1848 na “Privamera dos
povos”; a Primeira Internacional dos Trabalhadores (1864); e a Comuna de Paris (1871).
238
Já no início do século XX, destacam-se uma série de acontecimentos: a primeira revolução russa de
1905; a Revolução Mexicana (1910) que introduziu expressamente, na constituição de 1917, direitos
civis e políticos a toda a população e incorporou, pela primeira vez, direitos econômicos e sociais além
da limitação da propriedade privada, embora tenha sido posteriormente derrotada pelas forças
conservadoras; a Revolução Russa de 1917 que proclamou em 1918 a “Declaração dos Direitos do
Povo Trabalhador e Explorado” que, como contraponto a Declaração de 1789, introduzia uma visão
bastante diferente sobre os direitos humanos e foi posteriormente incorporada na primeira Constituição
da República Socialista Federativa Soviética da Rússia de 1918; a promulgação da Constituição de
Weimer na Alemanha pós I-GM que buscava afastar qualquer tipo de revolução social mediante
concessões aos trabalhadores (era responsabilidade do Estado o amparo à maternidade, à saúde e
desenvolvimento das famílias e a assistência à juventude, dentre outros); a progressiva incorporação
dos direitos eleitorais femininos nos ordenamentos jurídicos ao menos nos países do Ocidente.
93

governamentalidade, e parece-me que seria possível fazer a história dessas crises do


dispositivo geral de governamentalidade tal como foi instaurado no século XVIII.239

Desta forma, como explica o geógrafo David Harvey, a “mão invisível” do


mercado, tão aclamada pelo liberalismo clássico, nunca foi suficiente por si mesma
para garantir o desenvolvimento estável do capitalismo, mesmo diante do
funcionamento adequado de suas instituições de apoio (como a propriedade privada,
os contratos válidos e a administração econômica). Houve sempre a necessidade de
algum grau de intervenção e regulamentação estatal visando compensar as falhas do
mercado (que produzem problemas sociais e ambientais), evitar a excessiva
concentração de poder no mercado e impedir o monopólio (em áreas como transporte
e comunicação), providenciar bens coletivos para a população (educação,
infraestrutura, segurança pública) e impedir surtos especulativos 240 . A crise do
capitalismo de 1929 foi o maior exemplo disto, culminando em uma nova
reconfiguração do desenvolvimento do capital, marcada pela ativa intervenção do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Estado na regulamentação econômica.


A progressiva expansão do intervencionismo estatal afirmou-se historicamente
nos Estados Unidos, no período entre guerras e na Europa ocidental, no segundo pós-
guerra 241 . Assim, a partir de 1945, instala-se uma governamentalidade fordista-
keynesiana que se espalha pelo ocidente como uma espécie de modelo ideal de
governo, até a crise de 1973. De acordo com Harvey, trata-se de “um conjunto de
práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de
poder político-econômico” 242 que caracterizaram um longo período de expansão do
capitalismo, especialmente por meio da combinação entre um Estado de bem-estar
social, uma administração econômica keynesiana e o controle das relações de
trabalho. Giuseppe Cocco apresenta a questão da seguinte maneira:

Assim como aconteceu nos primeiros anos do New Deal rooseveltiano, a


rearticulação keynesiana do papel do Estado e a organização sindical dos
trabalhadores constituíram os eixos fundamentais de legitimação da nova forma-
Estado. Isto é, a expansão do papel do Estado, e em particular de sua intervenção


239
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit.. p. 95.
240
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
23ªEd. São Paulo: Edições Loyola, 2012. P. 118.
241
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. 2ªEd. São
Paulo: Cortez, 2001. p. 61.
242
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. P. 119.
94

direta na regulação do mercado e no controle de porções importantes do aparelho


produtivo, tece como condição necessária a recomposição política, em sujeitos
coletivos, das elites empresariais e dos trabalhadores ao mesmo tempo. Em outras
palavras, podemos dizer que o Estado-planejador (fordista-keynesiano) afirmou-se
como dispositivo de integração do conflito social. Este último transformou-se assim
de trabalho “negativo” (de ruptura) em principal fator de desenvolvimento. O
Collective Bargainning rooseveltiano determinou um duplo movimento de
subjetivação: o dos trabalhadores que se recompuseram no sindicato de tipo novo e o
das elites empresariais (públicas e privadas) que reconheciam-se na nova figura do
Estado intervencionista e na hegemonia madura da heterodoxia keyneasiana que o
perpassava.243

De forma resumida, podemos dizer que o modo de produção fordista-


keynesiano correspondia a um conjunto de técnicas de racionalização da
administração econômica, voltadas para a maior lucratividade através da produção e
do consumo em massa, da institucionalização do salário e da promoção de políticas de
pleno emprego. Dentre as principais práticas, destacamos a verticalização da
produção; a redução dos custos através da produção em massa; o implemento da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

jornada fixa de trabalho; e o crescimento, simultâneo e interdependente, entre


acumulação e salários reais, que objetivava garantir boas remunerações e tempo livre
para o lazer e o consumo. Neste sentido, era preciso que o Estado investisse em
capital fixo e garantisse condições de demanda estáveis por meio do controle dos
ciclos econômicos e de políticas fiscais e monetárias. Trata-se de uma economia do
poder “territorializada”, na medida em que a cadeia produtiva se estabelecia de
maneira permanente em regiões onde o capital explorava os recursos naturais e a
força de trabalho local, de forma que o conflito social era ancorado a uma lógica
espaço-temporal muito bem definida. O lugar das dinâmicas constituintes era
precisamente a fábrica (e as demais instituições de sequestro que dela derivam: a
prisão, a escola, o hospital, etc) e o estatuto social dos seres humanos era definido
sobretudo pela produção e pelo trabalho244. Em última instância, as características


243
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
64.
244
De acordo com De Giorgi, “nas economias pré-capitalistas, a condição das classes marginais era
definida por fatores antes de tudo políticos, que estabeleciam as margens de exploração da força de
trabalho conforme uma estratificação social baseada em laços de servidão e dependência pessoal das
classes subalternas para com as classes dominantes. Porém, com a afirmação do modo de produção
capitalista, a condição do proletariado se torna uma função principalmente econômica: a condição
material do proletariado é determinada diretamente no interior dos processos de organização e de
divisão do trabalho.” (DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op.
cit. p.40) Neste sentido, no fordismo, “o acesso à cidadania real foi fortemente subordinado à
integração na relação social” (COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da
globalização. Op. cit. p. 74)
95

fundamentais desse modo de produção se resumiam, por um lado, “no alto nível de
autonomia da classe operária [organizada em sindicatos] e, por outro lado, no
simultâneo incremento da composição orgânica do capital e dos ganhos de
produtividade”245.
Esse conjunto de circunstâncias deu ensejo a uma correlação de forças
favorável para a expansão do discurso dos direitos humanos, mais precisamente sob a
forma de demandas por direitos econômico-sociais, até então ignoradas pelos Estados
ocidentais. A crescente organização das reivindicações sociais em conjunto com o
temor do comunismo, fez com que governos social-democratas, nacionalistas,
populistas e mesmo conservadores, promovessem fortes intervenções estatais na
economia a fim de ampliar a presença do Estado em áreas como a saúde, educação,
trabalho, previdência, assistência social, moradia e subsídio alimentar da população.
A lógica da governamentalidade fordista-keynesiana consistia em administrar as
contradições sociais mediante concessões parciais que garantissem a ordem necessária
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

para o desenvolvimento do capital. Neste contexto de consolidação do Estado de bem-


estar social, o discurso dos direitos humanos serviu, a um só tempo, de instrumento
central para as lutas operárias (dirigidas contra os regimes disciplinares do trabalho
capitalista – principalmente o modelo da fábrica – e contra o paradigma de cidadania
limitado à relação salarial) e de limite político que amarrou o sindicalismo e os
movimentos sociais aos esquemas da produção, no interior de uma lógica
“reformista”, em uma espécie de acordo com o Estado.
Foi neste contexto de expansão capitalista do segundo pós-guerra que a
sociedade disciplinar alcançou o seu mais elevado desenvolvimento, ao mesmo tempo
em que, paradoxalmente, encontrou as razões de sua crise. A constituição do
proletariado fordista demandava, por um lado, a máxima produtividade do corpo, em
um espaço (a fábrica) e tempo (jornada de trabalho) delimitados e, por outro lado,
exigia a naturalização da exploração econômica. O objetivo era garantir que o
trabalhador aceitasse “o salário como justa retribuição do próprio trabalho e a pena
como justa medida dos seus próprios crimes”246. As políticas de bem-estar social e as
tecnologias de racismo penal concorrem, neste momento, para a gestão do excesso da
força de trabalho: enquanto as políticas de providência se dirigiam àqueles cidadãos


245
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
73.
246
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.47.
96

socialmente excluídos (da esfera do trabalho), mas que não ofereciam perigo à ordem,
o aparelho repressivo do Estado voltava-se para as classes perigosas (minorias
étnicas, imigrantes, jovens marginais), que representavam uma ameaça à boa moral
do trabalhador247. Havia, portanto, tanto uma gestão penal quanto social da miséria,
que se complementavam na forma da lei. Enfim, mais uma vez estamos diante de usos
paradoxais do discurso dos direitos humanos: de um lado, este discurso servia de
fundamento para a gestão disciplinar da vida dos indivíduos e da população pelo
Estado providência e, de outro, era utilizado pelos movimentos sociais como forma de
contestação e recusa ao modelo fordista, como foi o caso dos movimentos por direitos
civis em oposição à segregação racial nos EUA, os movimentos pelo fim da guerra no
Vietnã, os movimentos feministas e gays e a primavera de Praga no Leste Europeu. A
este ciclo de lutas contra o fordismo, o capital respondeu, intensa e velozmente, com a
sua reorganização espacial e temporal que buscou englobar novas dimensões do
trabalho para além do chão da fábrica248.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

3.2.
A sociedade de controle

Em meados dos anos 60, mais precisamente no período de 65 a 73, o modelo


fordista-keynesiano evidenciou sua incapacidade de conter as contradições do
capitalismo. De acordo Harvey, um dos principais problemas enfrentados pela
expansão capitalista consistia na rigidez fordista imposta aos mercados, aos
investimentos estatais, à produção industrial e aos contratos de trabalho,
potencializados pelo obstáculo encontrado na força da organização sindical dos
trabalhadores (que demandavam a ampliação da cidadania para além da relação
salarial). Ao mesmo tempo, em um contexto de crise econômica e de inflação
crescente, as corporações apresentavam uma enorme capacidade excedente
inutilizável (como fábricas e equipamentos ociosos), que as obrigava a racionalizar,
reestruturar e intensificar o controle do trabalho249. Como destaca Cocco, a crise do


247
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.51.
248
MENDES, Alexandre. A revolução inconclusa dos direitos humanos: pressupostos para uma nova
concepção de cidadania. In: Lugar Comum, n. 28, p.49-69.
249
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit.. p. 136-137.
97

fordismo foi marcada sobretudo pela queda dos ganhos de produtividade, ou seja, pela
incapacidade da regulação fordista de integrar o conflito trabalhador/capitalista sem
repassar suas tensões para as dinâmicas do preço, o que resultou na desvalorização do
salario real e na queda da demanda efetiva250. Acresce-se a isso, ainda, a crise fiscal e
de legitimação do Estado providência (nem todos os cidadãos eram atingidos
igualmente pelos benefícios do fordismo, o que gerava forte insatisfação em setores
da população que, descriminados em razão de raça, gênero e origem étnica, recebiam
salários menores e não podiam usufruir das “louvadas alegrias do consumo em
massa”); as mudanças tecnológicas e a automação; a internacionalização e a busca por
novos produtos e nichos de mercado; a dispersão geográfica da produção; e as
insatisfações do países periféricos com o processo de modernização exportado pelos
países centrais que prometia desenvolvimento, mas na prática promovia a destruição
das culturas locais e diversas formas de dominação capitalista251. Ao abordar a crise
de 73, Harvey conclui que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

O mundo capitalista estava sendo afogado pelo excesso de fundos e, com as poucas
áreas produtivas reduzidas para investimento, esse excesso significava uma forte
inflação. A tentativa de frear a inflação ascendente em 1973 expôs muita capacidade
excedente nas economias ocidentais, disparando antes de tudo uma crise mundial nos
mercados imobiliários e severas dificuldades nas instituições financeiras. Somaram-
se a isso os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo para o
Ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973. Isso (1) mudou o custo relativo
dos insumos de energia de maneira dramática, levando todos os segmentos da
economia a buscarem modos de economizar energia através da mudança tecnológica
e organizacional, e (2) levou ao problema da reciclagem dos petrodólares excedentes,
problema que exacerbou a já forte instabilidade dos mercados financeiros
252
mundiais.

O contexto descrito marca, portanto, o esgotamento do modelo industrial


fordista e a “transição no regime de acumulação e no modo de regulamentação social
e política a ele associado” 253. A partir das décadas de 70 e 80, vemos surgir uma série
de novas experiências no campo da produção, da vida social e política que buscaram
reestruturar o sistema capitalista através de um novo regime de acumulação: a


250
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
79.
251
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 136-137.
252
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 136-137.
253
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 117.
98

acumulação flexível. Há que se destacar, contudo, que esta transição histórica, ainda
em andamento, não indica claramente o surgimento de uma forma inteiramente nova
de acumulação capitalista: trata-se mais de perceber tendências do que de identificar
um modelo de produção definido. Neste sentido, a tese central de Harvey é a de que
“essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação
capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que
como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-
industrial inteiramente nova”254.
Não temos a pretensão de esgotar essa complexa discussão. O que se revela
importante para os limites deste estudo é observar que, embora a acumulação flexível
mantenha proposições básicas do capitalismo – como a necessidade de uma taxa de
crescimento equilibrada (na medida em que só através do crescimento os lucros
podem ser auferidos e a acumulação sustentada); o imperativo de exploração e
controle do trabalho vivo na produção, essencial para o desenvolvimento capitalista; a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

necessidade de buscar inovações tecnológicas e organizacionais dinâmicas, crucial


para a perpetuação do capitalismo a partir da lógica do “progresso”; e a tendência
cíclica de superacumulação jamais eliminada pelo capitalismo 255 – é certo que
existem significativos contrastes entre as práticas atuais e aquelas do pós-guerra, que
marcam não apenas o desgaste do modelo fordista de produção como a crise da
sociedade disciplinar. Neste sentido, de acordo com Harvey, a acumulação flexível,
enquanto uma nova configuração do capital, se diferencia pelo confronto direto com a
rigidez do fordismo:

Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inocação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas
mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre
regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego do
chamado “setor de serviços”, bem como conjunto industriais completamente novos
em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”, Flandres, os
vários vales e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades dos
países recém-industrializados). Ela também envolve um movimento que chamarei de
“compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da


254
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 7.
255
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit.. p. 166-170.
99

tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via


satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
256
imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.

Dentre as principais transformações percebidas a partir da década de 1970,


optamos por destacar aquelas que determinam os efeitos de maior alcance sobre o
plano da relação entre dinâmicas da produção e formas de controle. Neste sentido,
houve, em primeiro lugar, a formação de uma força de trabalho global e flexível. Com
a redução do nível de emprego e uma drástica diminuição da demanda de trabalho
vivo, diretamente empregado na linha produtiva (materialmente, isso foi possível com
a introdução de novas tecnologias e da robótica; e com a descentralização da
produção que migra para os países periféricos), os empregadores passaram a exercer
pressões mais fortes sobres os trabalhadores, que se encontravam muito enfraquecidos
frente aos altos níveis de “desemprego estrutural”.
Configura-se, neste sentido, uma completa desestruturação da força de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

trabalho, através da qual a antiga classe operária fordista –sujeita, em grande parte, a
um trabalho regulado, constante e estável e organizada na forma de sindicatos – dá
origem a uma nova classe de trabalhadores destituídos dos mais elementares direitos e
submetidos, diante do desespero do “desemprego estrutural”, a qualquer condição
laboral oferecida, seja esta precária, fragmentada ou servil 257 . Diante da grande
quantidade de mão de obra excedente (desempregados ou subempregados) e da
volatilidade do mercado, que exige cada vez mais competição e menores taxas de
lucro, vemos surgir, principalmente nos anos 70 e 80, regimes e contratos de trabalho
258
mais flexíveis (trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado) .
Consequentemente, notou-se um rápido crescimento das economias informais e a
crescente desorganização e instabilidade da classe trabalhadora. Como explica De
Giorgi,

Já na metade dos anos 1980, a fábrica fordista se apresentava como um deserto no


qual o ecoar barulhento e obsessivo das máquinas ao longo da linha de montagem foi
sendo substituído por máquinas silenciosamente “inteligentes” que requeriam a
supervisão de poucos técnicos. Parcelas crescentes da força de trabalho, expulsas dos

256
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 140.
257
SOBRINHO, Sergio F.C. Graziano. Globalização e sociedade de controle: cultura do medo e o
mercado da violência. Tese (Doutorado em Direito) – Departamento de Direito PUC-Rio, 2007. p.189.
258
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 143.
100

contextos produtivos em reestruturação, foram, assim, alimentar o exército da


população desempregada, não empregada ou subempregada, ou preencher os vários
nichos do setor terciário, aqueles âmbitos complementares ao compartimento
industrial, cada vez mais caracterizados pela precariedade dos direitos e pela
insegurança dos rendimentos, quando não até mesmo por relações neo-servis.259

Em segundo lugar, deu-se a reorganização do sistema financeiro global na


forma de mercado de ações, de mercados futuros de mercadoria e de acordos de
compensação recíprocos de taxa de juros e moedas, resultando “na criação de um
único mercado mundial de dinheiro e de crédito” 260. De acordo com Harvey, os novos
sistemas financeiros, postos em práticas a partir de 1972, mudaram o equilíbrio das
forças no interior do capitalismo, outorgando maior autonomia ao sistema bancário e
financeiro em comparação ao financiamento corporativo estatal261. Em um contexto
de maior competição no nível global (possibilitada pela reorganização radical dos
sistemas de transporte que, com a conteinerização, reduziu drasticamente os custos de
circulação; pelos novos sistemas de comunicação instantânea via satélite; e pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

arquitetura de um sistema financeiro global que facilita o fluxo do capital), os Estado


passaram a assumir a função de “empreendedores”, responsáveis por criar e manter as
condições necessárias para o desenvolvimento dos negócios. E, para isso, era preciso
controlar o trabalho e conter os movimentos sociais. Não por acaso, a década de 80,
de Thatcher e Reagan, foi marcada por políticas estatais de austeridade fiscal e de
erosão do compromisso social e pela consagração do FMI e do Banco Mundial como
autoridades centrais nas negociações financeiras internacionais (voltadas para a
redução dos gastos públicos, os cortes salariais e as políticas de austeridade ditadas
pelos países centrais aos países periféricos).
Se quisermos encontrar as peculiaridades da acumulação flexível, devemos
concentrar nossa atenção no processo de compressão do espaço-tempo no interior
desta nova ordem capitalista. De um lado, observamos uma aceleração generalizada
do tempo de giro de capital, caracterizada pela volatilidade e efemeridade dos
produtos, da moda, das técnicas de produção, dos valores e das ideias predominantes;
e pela descartabilidade dos bens de consumo diante da desenfreada produção de

259
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.67.
260
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 152.
261
“É verdade que o equilíbrio entre poder financeiro e poder do Estado sob o capitalismo sempre fora
delicado, mas o colapso do fordismo-keynesianismo sem dúvida significou fazer o prato da balança
pender para o fortalecimento do capital financeiro.” (HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma
pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Op. cit. p. 156)
101

novidade e da obsolescência instantânea. De outro lado, notamos a queda das


barreiras espaciais que culmina na maior mobilidade geográfica (resultado da redução
dos custos de transporte) e na descentralização da produção. De acordo com Harvey,
“a fuga de capitais, a desindustrialização de algumas regiões e a industrialização de
outras e a destruição de comunidades operárias tradicionais como base de poder da
luta de classes se tornara o pivô na transformação espacial sob condições de
acumulação mais flexíveis” 262.
Neste sentido, a economia do poder da acumulação flexível se move em uma
velocidade extremamente rápida e, devido à globalização da cadeia produtiva, se
apresenta em uma efetiva rejeição a qualquer confinamento territorial, em um mundo
de “senhores ausentes” que estão em todo lugar e em lugar nenhum. O capital está
cada vez mais “desterritorializado”. Nesse mundo que prescinde da interação face a
face, marcado por laços frágeis onde a natureza dos vínculos sociais pode não estar
presente na cena política, é possível um empresário, morando na Arábia Saudita,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

vender uma quantidade de ações de uma companhia japonesa na Bolsa de Valores de


Nova Iorque e desempregar uma massa de trabalhadores na Índia, sofrendo
pouquíssimo, ou quase nenhum, controle político. Albert J. Dunlap, celebrado
“intelectual dos negócios”, no seu artigo intitulado “How I saved Bad Companies and
Made Good Companies Great” dispara: “A companhia pertence às pessoas que
investem nela – não aos seus trabalhadores, fornecedores, nem a localidade na qual
ela está situada”263.
A transição do fordismo para a acumulação flexível é marcada pelo triunfo de
uma racionalidade política própria a um projeto de classe transnacional: o
neoliberalismo. Trata-se de uma nova governamentalidade que tem por objetivo
reestruturar o papel dos aparelhos de Estado na gestão da vida a partir do mercado
global. Essa nova forma de governo se consolida no segundo quarto do século XX,
primeiramente no Chile de Augusto Pinochet (1973-1990), sob orientação dos
“Chicago Boys”, e depois, de forma mais aperfeiçoada, na Inglaterra de Margareth
Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Ronald Reagan (1981-1989).
Promovido por executivos de multinacionais, políticos de alto cargo, agências
internacionais (dentre as quais se destacam: a Organização para Cooperação

262
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 265.
263
BAUMAN, Zigmunt. Globalization: The Human Consequences. Nova York: Columbia University
Press, 1998. p. 6-9.
102

Econômica e Desenvolvimento, a Organização Mundial do Comércio, o Fundo


Monetário Internacional, e o Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento), e um conjunto de especialistas e técnicos em especial advogados,
economistas e comunicadores 264 , o neoliberalismo corresponde, em teoria, a um
conjunto de práticas político-econômicas que pregam o livre desenvolvimento das
capacidades e das liberdades empresariais do indivíduo dentro de um marco
institucional garantido pelo Estado e caracterizado, sobretudo, pela força do direito de
propriedade privada e de liberdade comercial, pela desregulamentação da economia,
pela privatização e abandono dos gastos sociais265 e pela hipertrofia do setor penal.
Em meio a contradições técnicas, disputas teóricas e tensões moralistas, o
neoliberalismo se constitui, segundo Louis Wacquant266, a partir da articulação entre
quatro elementos. Em primeiro lugar, uma desregulamentação econômica conduzida
por uma série de alterações na legislação estatal, em especial o afrouxamento das
garantias trabalhistas e ambientais, visando a promoção do “livre mercado”, não
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

somente no sentido de viabilizar transações econômicas e estratégias corporativas,


mas sobretudo no sentido de organizar todas as esferas da atividade humana,
incluindo a provisão privada de bens públicos fundamentais com base no argumento
da eficiência. Em segundo lugar, uma oposição técnico-ideológica ao modelo
keynesiano do Estado de bem-estar social que busca, não apenas desmantelar o
sistema de prestação de serviços públicos por meio da privatização, mas sobretudo
intensificar a “comodificação” geral da vida, em particular, através de relações de
sujeição quase “contratuais” entre o Estado e a população mais pobre, gerida, não a
partir do paradigma da cidadania, mas da clientela e do consumo. Em terceiro lugar,
uma hipertrofia do aparato penal, especialmente o sistema penitenciário e policial, que
pretende penetrar nos espaços públicos para conter os conflitos sociais, gerir as
inseguranças e neutralizar os riscos da pobreza, reafirmando estrategicamente a
autoridade do Estado em um momento em que sua legitimidade é questionada em
todos as demais esferas. Finalmente, uma apologia da responsabilidade individual em
todas as dimensões da vida que pretende simplificar a análise da conflitividade social,
através da emergência da figura do “homem empreendedor” e da legitimidade de um

264
WACQUANT, Loic. Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare and Social Insecurity. In:
Sociological Forum, Vol. 25, N.2, Junho 2010. p. 213.
265
HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Nova York: Oxford University Press, 2005. p.
2.
266
WACQUANT, Loic. Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare and Social Insecurity. Op.
cit. p. 213.
103

ambiente de hiper-competitividade que guia o desenvolvimento dos mercados e


permite o mascaramento da responsabilidade corporativa e a escusa das obrigações
estatais. É preciso, contudo, destacar que a história do avanço do neoliberalismo sobre
o planeta desde 1970 é extremamente complexa, em especial pelo fato de que, na
maior parte das vezes, os Estados absorveram apenas parte da mecânica geral desta
forma de governo, e isto se deu em temporalidades e de maneiras diferentes,
dependendo de cada caso. Por sua vez, o impacto foi dramático nos territórios
incipientemente industrializados do capitalismo periférico que se entregaram ao
neoliberalismo sem terem usufruído das benesses do capitalismo fordista-keynesiano.
De acordo com Foucault, não podemos compreender o neoliberalismo como a
ressurgência do modelo liberal tradicional do século XVIII e XIX. Se antes, tratava-se
de garantir, através de um governo mínimo, a naturalidade dos processos econômicos
assegurando-se a liberdade dos mercados, agora trata-se de saber “até onde vão poder
se estender os poderes de informação políticos e sociais da economia de mercado”267.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

Enquanto no liberalismo a liberdade de mercado é concebida como algo natural e


espontâneo, no neoliberalismo a liberdade deve ser a todo tempo produzida e posta
em funcionamento sob a lógica da competição, de modo que os processos econômicos
são continuamente governados e controlados. Neste sentido, o neoliberalismo não se
organiza nos termos clássicos da divisão entre Estado e sociedade ou público e
privado. Sua governamentalidade atravessa essas tradicionais divisões
ressignificando, a partir das estruturas e valores do mercado, as antigas áreas de
provisão pública como séries de quase-mercados de serviços e conhecimento técnico.
O objetivo é a reforma governamental da conduta individual e do arranjo institucional
de forma que ambos possam incorporar os valores e as orientações do mercado,
expressos nas figuras do empreendedor e do consumidor268. Nas palavras de Alfredo
Veiga-Neto:

O princípio de inteligibilidade do liberalismo enfatizava a troca de mercadorias num


ambiente socioeconômico o mais livre e espontâneo possível. Ao contrário, o
princípio de inteligibilidade do neoliberalismo passa a ser a competição: a
governamentalidade neoliberal intervirá para maximizar a competição, para produzir
liberdade para que todos possam estar no jogo econômico. Desta maneira, o


267
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Op. cit. p. 160.
268
DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.171-174.
104

neoliberalismo constantemente produz e consome liberdade. Isso equivale a dizer que


269
a própria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo.

No final do século XX, com a consolidação da hegemonia neoliberal e a


derrocada dos antigos regimes socialistas, observamos, por um lado, a flexibilização
de estruturas legais que buscavam preservar direitos coletivos (em especial
trabalhistas) e, por outro, a disseminação sem precedentes do discurso dos direitos
humanos como espécie de pragmatismo minimalista270 e linguagem política comum
dos diferentes movimentos socais 271 . Em outras palavras, o discurso dos direitos
humanos se consolida mundialmente precisamente no momento em que percebemos o
enfraquecimento das garantias sociais e econômicas do Estado de bem-estar social. O
desmantelamento da rede de amparo assistencial do fordismo-keynesiano e a vitória
do fundamentalismo neoliberal foram acompanhados por uma descrença nas grandes
utopias revolucionárias (e até mesmo nas reformas programáticas) e por uma busca
pragmática por plataformas políticas mínimas de sociabilidade que garantissem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

segurança (jurídica, política e militar) e servissem como critério moral universal. Se o


discurso dos direitos humanos apenas inicia sua trajetória internacional nos anos que
seguiram a Segunda Guerra Mundial, foi no processo de superação capitalista da crise
de 1973 que ele se incorpora de vez no léxico político global e parece sair vitorioso
em meio às grandes batalhas ideológicas que caracterizam a contemporaneidade. Para
entender como isso se deu, é preciso mapear as mudanças ocorridas no biopoder que,


269
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação. In: CASTELO
BRANCO, Guilherme; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia e política. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2011. p. 39.
270
Essa visão dos direitos humanos vem ganhando, cada vez mais adeptos na contemporaneidade. Ela
afirma que os direitos humanos devem servir e ser justificados no limite da sua capacidade prática de
prevenir o sofrimento alheio e a crueldade. De acordo com seus defensores, dentre os quais destacamos
Michael Ignatieff, essa visão minimalista é o máximo que podemos esperar de tais direitos. Cabe
destacarmos a crítica que Wendy Brown desenvolve acerca do pragmatismo minimalista. De acordo
com a autora, o minimalismo prega uma visão apolítica dos direitos humanos, como uma mera defesa
dos mais fracos, dos oprimidos e daqueles “sem poder”, na medida em que tais direitos ganham sua
forma como um discurso moral centrado na dor e no sofrimento, em vez de assumir-se como um
discurso político em busca de uma justiça. (BROWN, Wendy. “The most we can hope for...”: Human
Rights and the Politics of Fatalism. In: The South Atlantic Quaterly, Vol. 103, N.. 2/3, 2004)
271
A passagem escrita por Michael Ignatieff ilustra bem esta nova visão: “Nós precisamos parar de
pensar nos direitos humanos como um trunfo e passar a compreendê-los como a linguagem que cria a
base para a deliberação. Neste argumento, os elementos comumente compartilhados por todos são bem
limitados: não ultrapassam as intuições básicas do que entendemos por dor e humilhação. Mas isso já é
algo. (...) os direitos não são o credo de uma sociedade global, uma religião secular, mas algo muito
mais limitado e ainda assim muito valioso: é o vocabulário compartilhado que constitui o fundamento
inicial para a nossa argumentação e o limite de um mínimo universal do qual diferentes ideias de
humanidade podem se enraizar.” (IGNATIEFF. Michael. Human Right as politics and idolatry. New
Jersey: Princeton University Press, 2001).
105

nas últimas décadas do século XX, extrapolaram (sem, contudo, abandonar) as feições
disciplinares tradicionais do capitalismo industrial e deram luz à era da financerização
do modo de produção social da vida.
A passagem do fordismo para a acumulação flexível não apenas marcou o
triunfo da governamentalidade neoliberal, como também sinalizou a transição de uma
economia disciplinar dos corpos para uma sociedade de controle dos riscos. Como
afirma Deleuze, encontramo-nos em uma crise generalizada de todos os meios de
confinamento, desde a prisão e a fábrica, até a escola e a família: “as sociedades
disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”272. E, em seu
lugar, vemos emergir “formas ultrarrápidas de controle ao ar livre” 273. Assistimos,
assim, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Hardt,
por sua vez, esclarece que “os muros das instituições estão desmoronando de tal
maneira que suas lógicas disciplinares não se tornam ineficazes mas se encontram,
antes, generalizadas como formas fluidas através de todo o campo social” 274. Assim,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

não queremos dizer que nesta transição as disciplinas tenham chegado ao fim, mas
que, ao contrário, elas se expandiram ainda mais pelo corpo social. O espaço
“estriado” da sociedade moderna, na qual o indivíduo não cessa de passar de um
confinamento disciplinar a outro (da família à escola, da escola à fábrica; da fábrica
ao hospital ou eventualmente à prisão) em um esquema de moldes fixos, dá lugar ao
espaço “liso” da sociedade contemporânea, na qual o controle funciona a todo tempo
e de maneira ininterrupta em um esquema de modulações flexíveis e ondas infinitas.
As alterações que caracterizam a passagem da disciplina para o controle giram em
torno, portanto, da crise das instituições de sequestro. Neste sentido, podemos
destacar pelo menos três mudanças fundamentais que decorreram desta crise.
Em primeiro lugar, no que se refere ao modo de produção econômico, em uma
sociedade de controle, a empresa substitui a fábrica e impõe uma nova forma de se
lidar com o salário, com o trabalhador e com os produtos por meio de um sistema
competitivo, motivacional, guiado pela lógica dos prêmios. Embora a fábrica não
desapareça, é a empresa que adquire centralidade atuando como catalisadora de
inovações voltadas para o mercado, destacando-se, neste sentido, o marketing, a
concepção e o design como elementos diferenciais que não apenas desenvolvem

272
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 220.
273
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit. p. 220.
274
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. In: ALLIEZ, Éric. Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 357.
106

produtos, como criam novos mundos de consumo: “o ciclo inicia-se com a venda de
um mundo pela empresa e pela sua posterior materialização em produtos e em
serviços [pelas fábricas]” 275. Enquanto a fábrica mantinha vínculo territorial com a
localidade em que se situava e se constituía como local de trabalho homogêneo, em
que todos eram contratados por regimes salariais e jornada de trabalho
correspondentes a um determinado nível hierárquico, a empresa rompe com essa
lógica territorializada criando lugares “voláteis” de trabalho, marcado pela
heterogeneidade de funções e regimes trabalhistas (prestadores de serviço,
terceirizados, sócios minoritários) em que a presença física e corporal do indivíduo
torna-se dispensável. Trata-se de uma forma de trabalho que prioriza a alma e o poder
criativo do trabalhador; ou melhor, trata-se daquilo que Negri e Hardt denominam de
trabalho imaterial – indicando, não a substituição do trabalho material, mas uma
transformação da cena contemporânea do trabalho e da produção. Em suas palavras:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

A cena contemporânea do trabalho e da produção está sendo transformada sob a


hegemonia do trabalho imaterial, ou seja, trabalho que produz produtos imateriais,
como a informação, o conhecimento, ideias, imagens, relacionamentos e afetos. Isto
não significa que não exista mais uma classe operária industrial trabalhando em
máquinas com suas mãos calejadas ou que não existam mais trabalhadores agrícolas
cultivando o solo. Não quer dizer nem mesmo que tenha diminuído em caráter global
a quantidade desses trabalhadores. Na realidade, os trabalhadores envolvidos
basicamente na produção imaterial constituem uma pequena minoria do conjunto
global. O que isto significa, na verdade, é que as qualidades e as características da
produção imaterial tendem hoje a transformar as outras formas de trabalho e mesmo a
sociedade como um todo.276

Assim, o que deve reter nossa atenção nesta nova modalidade de trabalho
imaterial não é a possível superação do trabalho material (que já mostrou ser
imprescindível mesmo diante de todo aparato tecnológico), mas precisamente as
formas de controle que introduz no seio das sociedades do biopoder contemporâneo.
Não se trata mais apenas de confinar o trabalhador no interior da fábrica por uma
jornada de tempo definida submetendo seu corpo à vigilância e exercício constante,
mas sobretudo de controlá-lo por meio da precarização e flexibilização do trabalho e
pela total indistinção entre hora de trabalho e de não trabalho, estendendo sua jornada
indefinidamente por todas as dimensões de sua vida. Neste sentido, “o cronômetro é


275
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação. Op. cit. p. 40.
276
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. 2ªEd. Rio
de Janeiro: Record, 2012. p. 100.
107

substituído pelos indicadores e a visibilidade se desloca do corpo para o cumprimento


das metas” 277 . O trabalho imaterial pressupõe, assim, um processo constante de
invenção e criatividade, constituída em rede por meio de todo tipo de tecnologia
digital (celulares que permitem o recebimento de mensagens instantâneas, reuniões
realizadas por pessoas ao redor do mundo através de dispositivos eletrônicos online,
por exemplo). Contudo, trata-se antes de uma mutação do capitalismo do que de uma
mutação meramente tecnológica. Como sintetiza Deleuze:

É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do
século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte,
erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos
meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços
concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é
conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos
de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção,
relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas
complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-
produção. Não compra mais matéria prima e já não vende produtos acabados: compra
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e
o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas
para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso, ele é essencialmente
278
dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa.

Em segundo lugar, no que se refere à política, com o desmoronamento dos


muros que delimitavam as instituições disciplinares, a sociedade de controle rompe
com a distinção entre o fora e o dentro, introduzindo uma nova forma de relação do
poder com o espaço. Isso pode ser percebido com o progressivo fim da dicotomia
entre o público e o privado, típica da teoria política liberal. Os espaços “exteriores”,
que caracterizavam o lugar da vida política moderna, tendem a desaparecer face ao
crescente processo de privatização da esfera pública, culminando naquilo que Hardt
denomina de “déficit do político”; ou, dito de outra forma, “o lugar da política foi
desrealizado”279. Não há mais um “fora” como local da política e um “dentro” como
espaço individual; tudo passa a ser indistintamente regulado pela lógica de um
mercado global que funciona como órgão de decisão política e centro de produção
normativa. Se na sociedade disciplinar, o panóptico representava o diagrama do poder
moderno; na sociedade de controle, é o mercado mundial que fornece a arquitetura do


277
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação Op. cit. p. 43.
278
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit. p. 223-224.
279
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle Op. cit. p.360.
108

poder contemporâneo. Nas palavras de Hardt, “em sua forma ideal, não há um fora do
mercado mundial: o planeta inteiro é o seu domínio” 280.
Este processo de eliminação do “fora” fica claro através da análise do papel
assumido pela guerra e pelo racismo. De acordo com Negri e Hardt, na sociedade de
controle, a tradicional distinção entre guerra e política fica cada vez mais obscura. A
guerra se converte em uma relação social permanente, em um princípio básico de
organização da sociedade, transformando-se “na matriz geral de todas as relações de
poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de
sangue”281. Trata-se, assim, de uma forma de governo que se destina não somente a
controlar a população, como também a produzir os aspectos da vida social. Em vez de
inimigos específicos e localizáveis (como um determinado Estado-nação ou povo), a
guerra volta-se para inimigos indefinidos e imateriais (guerra contra o terror, guerra
contra as drogas, guerra contra as armas químicas) procurando, em um espaço e
tempo indeterminados, criar e manter uma ordem social propícia à segurança e ao
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

funcionamento do mercado. Guerra e atividade policial tornaram-se cada vez mais


indissociáveis diante do problema da segurança: não apenas as polícias incorporaram
o modus operandi dos exércitos, como principalmente os exércitos passaram a atuar
como polícias globais. O dentro e o fora; o inimigo interno (classes perigosas) e o
externo; as relações internacionais e a política interna; o militar e o policial tornam-se,
na grande maioria dos casos, elementos indistinguíveis de uma progressiva
militarização da vida. Neste sentido, o papel da guerra na sociedade de controle é
definido na passagem do paradigma da defesa, que pressupõe uma atitude reativa
enquanto barreira às ameaças externas, para o paradigma da segurança, que justifica
uma atitude ativa e construtiva (que age antes do que seja tarde) tanto no interior
quanto no exterior do país282.
O fim do dualismo dentro/fora revela ainda as faces de uma nova configuração
do racismo no contexto contemporâneo. Se na sociedade disciplinar, o racismo de
Estado era fundado na raça e em aspectos biológicos, na sociedade de controle
observamos a emergência de uma teoria racista baseada na cultura. Isto não significa,
de modo algum, que o racismo tenha recuado ou que não se expresse mais em função


280
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle Op. cit. p.362.
281
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Op. cit. p.
34.
282
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império Op. cit. p.
43.
109

de elementos raciais; mas sim que, no mundo contemporâneo, ele aumentou tanto em
extensão quanto em intensidade, através de novas estratégias de controle283. De um
paradigma da exclusão, típico das leis do apartheid sul-africanos ou dos códigos
segregacionistas do sul dos Estados Unidos, passa-se a um paradigma da inclusão
diferencial e da gestão estratégica da alteridade. As diferenciações ontológicas,
pautadas em critérios biológicos imutáveis do ser humano foram substituídas por
critérios culturais, historicamente contingentes: segundo a teoria racista
contemporânea seria inútil, e até mesmo perigoso, permitir ou impor uma mistura de
culturas (servos e croatas, hutus e tutsis, afro-americanos e coreano-americanos).
Nota-se que, na prática, o pluralismo contemporâneo que proclama aceitar todas as
identidades a partir de uma lógica da separação social, não é menos essencialista do
que uma posição racista biológica, chegando, inclusive, a utilizar-se do critério racial
como modo de diferenciação a posteriori enquanto efeito de uma cultura284. Assim,
não se trata mais de afirmar, nas sociedades de controle, a exclusão absoluta do Outro,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

mas sobretudo de sustentar uma inclusão estratégica diferencial das múltiplas


identidades285.
Em terceiro lugar, no que se refere aos processos de subjetivação, nota-se uma
intensificação e disseminação das técnicas de normalização por todo o corpo social –
a produção de subjetividade sai do limite espacial “intra-muro” da prisão, da escola,
do hospital e da fábrica. O colapso generalizado das instituições disciplinares acaba,
assim, por produzir uma constelação de estratégias e dispositivos de “controle a céu


283
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. Op. cit. p.362.
284
Hardt dá o exemplo de testes de aptidão escolar que detectam que os alunos afro-americanos têm
resultados mais fracos que os asiáticos. A teoria racista contemporânea não afirma, a partir destes
dados, uma inferioridade da raça negra, mas uma diferença cultural, segundo a qual os asiáticos
privilegiariam os estudos em sua cultura. A hierarquia entre as raças, neste sentido, é estabelecida a
posteriori. (HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. Op. cit. p.365)
285
De acordo com Deleuze e Guattari, “o racismo europeu como pretensão do homem branco nunca
procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades
primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um "outro". O racismo procede por determinação das
variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez
mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado
lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a
alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não
existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo
crime é não o serem. A cisão não passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das cadeias
significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O racismo jamais detecta as partículas
do outro, ele propaga as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só
se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio). Sua crueldade só se iguala a sua incompetência ou a
sua ingenuidade.” (DELEUZE, Gilles; Guattari Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.Vol.3.
São Paulo: Editora 34, 1999. p.45)
110

aberto”. Nas palavras de Deleuze, “o controle é de curto prazo e de rotação rápida,


mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração,
infinita e descontínua”. Se na sociedade disciplinar, o estilo de vida era orientado pela
ética de trabalho, guiado pela noção de necessidade e tinha por objetivo se conformar
à norma (pois as condições de existência eram definidas de acordo com os hábitos e
as rotinas socialmente consolidadas), na sociedade de controle o estilo de vida é
orientado pela ética do consumo, guiado pela noção de desejo e tem por objetivo se
adequar ao fluxo (pois as condições de existência mudam mais rápido do que o tempo
necessário para as formas de agir se consolidarem em atos e rotinas). Como resume
Deleuze, “o homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o
homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, um feixe contínuo”.
Do sujeito confinado passou-se ao sujeito endividado ao mesmo tempo em que
ergueram-se corredores carcerários de um “continuum favela-prisão” para neutralizar
os riscos gerados pelos contingentes populacionais de “consumidores falhos”, pobres
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

demais para a dívida e supérfluos para os parâmetros políticos dos novos arranjos de
vida.
Poderíamos sintetizar, assim, a transição da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle da seguinte maneira: no que se refere ao modo de produção, a
passagem do fordismo para a acumulação flexível; no que se refere a
governamentalidade, a passagem do liberalismo keynesiano para o neoliberalismo; e
no que se refere ao biopoder, a passagem de uma sociedade de confinamento para
uma sociedade de governo a céu aberto. Tal transformação reflete, acima de tudo,
uma nova configuração do capital, que migra de um regime territorializado, orientado
em torno da produção e predominantemente industrial, para um regime
desterritorializado, orientado pelo consumo e cada vez mais dependente do mercado
financeiro. Como resume Deleuze,

É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto
que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida
padrão –, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem
intervir como cifra uma porcentagem de diferentes amostras de moeda. A velha
toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é da
sociedade de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira a serpente, no
regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas relações com
111

outrem. (...) Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de
uma toupeira.286

3.3.
O triunfo

A emergência, a aceitação e a difusão de um discurso estão relacionadas a um


conjunto bastante complexo de configurações de poder. Neste sentido, um discurso
dominante é aquele que, diante de circunstancias específicas, produz e mantém
vigente um “regime de verdade”, ou seja, um agenciamento de técnicas, valores e
saberes que não apenas determinam se um enunciado é verdadeiro ou falso, como
também se ele é capaz de adquirir qualquer sentido em uma política discursiva já pré-
estabelecida287. Portanto, compreende-se por hegemônico aquele discurso que além de
qualificar, autenticar e censurar, define um modo de produção de valores a partir de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

sua posição dominante na política da verdade de uma sociedade. Saberes alternativos


e dissonantes são, consequentemente, subjugados, considerados hierarquicamente
inferiores ou desprovidos de legitimidade.
O fato de haver um discurso dominante não significa que ele impeça a
emergência e a existência de novos discursos. A resistência é contínua, perpétua e
multiforme. Novos saberes, formulações e práticas não param de ser produzidos com
o objetivo de expor, limitar e barrar as estratégias de governo que pretendem capturá-
los ou excluí-los. Um discurso, mesmo quando hegemônico, é constantemente
disputado e ressignificado na materialidade das lutas de resistência contra a sua
influência. Desta forma, não se trata de destacar um discurso imutável, pré-concebido
fora da história ou exterior às relações sociais. Trata-se de decifrar um discurso que,
em determinas condições econômicas, sociais, culturais e políticas, prepondera sobre
os demais – é o efeito e a própria condição das partilhas, das desigualdades e dos
desequilíbrios, produzidos no interior das relações de poder.
Neste sentido, apesar da pluralidade de usos, de sentidos e de valores que são
atribuídos aos direitos humanos ao longo da história, sustentamos que esse discurso
ocupa uma posição hegemônica na política contemporânea, colocando em jogo todo


286
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit.. p. 222-226.
287
KEELEY, James F. Toward a Foucauldian analysis of International Regimes. In: International
Organization. Vol.44, N. 1 (Winter, 1990), p.83-105.
112

um dispositivo heterogêneo formado por instituições, leis, medidas administrativas e


enunciados filosóficos. Tal discurso, que hoje determina grande parte do
funcionamento dos organismos internacionais, dos rumos dos debates acadêmicos, da
atuação das instituições estatais e das estratégias de luta dos movimentos sociais,
ganha corpo através de um regime de poder internacional, formado por quatro
elementos básicos que se inter-relacionam: um conjunto de valores comuns,
supostamente neutros e universais, que fundamentam uma ordem discursiva global
(dignidade, liberdade, igualdade, dentre outros); um denso corpo de dispositivos
legais, em constante expansão, que servem de vetor a um poder normalizador
transnacional; um grupo de instituições supra-estatais responsáveis pela
implementação e pelo monitoramento de estratégias biopolíticas, em nível regional e
planetário; e uma série de movimentos sociais e ONGs transnacionais envolvidas nas
lutas políticas do biopoder.
Se afirmamos que os direitos humanos emergiram como a principal promessa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

da modernidade, a partir do entrecruzamento do direito natural com a


governamentalidade liberal, como expressão do processo de estatização da vida
biologicamente considerada, sustentamos ainda que o seu triunfo consolidou-se
apenas na história mais recente. Foi no contexto de construção de uma nova ordem
mundial – marcada pela expansão do biopoder, pelo fim da Guerra Fria e consequente
decretação da “falência das ideologias”, pela vitória da democracia liberal e pela
aclamação do capitalismo de mercado – que os direitos humanos se consolidaram
como um discurso de caráter global, transformando-se no principal paradigma e
referencial ético da política – ou melhor, na última utopia de nossos tempos. É neste
quadro histórico que se situa o objetivo final deste estudo: instigar uma reflexão sobre
como os direitos humanos se tornaram o discurso hegemônico desta nova
configuração do poder que caracteriza a contemporaneidade. Destacamos três razões
principais: (i) o discurso dos direitos humanos encontra-se inserido na lógica de um
mercado mundial que funciona como ágora política e campo de normalização do
biopoder; (ii) o discurso dos direitos humanos emerge como a nova moral universal e
o paradigma ético do biopoder; (iii) o discurso dos direitos humanos se transforma no
principal instrumento de crítica e resistência aos esquemas de dominação do biopoder,
em nome da promoção, garantia e defesa da vida politicamente considerada em
termos biológicos.
113

Em primeiro lugar, a consolidação de um mercado global promoveu um novo


arranjo do biopoder que assegurou as condições de possibilidade para a construção da
hegemonia dos direitos humanos. Com a superação do fordismo pelo modo de
acumulação flexível, a vitória da governamentalidade neoliberal sobre o liberalismo
keynesiano e a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, o
biopoder se desterritorializou junto com o mercado. Os enormes fluxos transnacionais
de capital transformaram a dinâmica do jogo político local. Novos atores (dentre os
quais se destacam a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento, a
Organização Mundial de Comércio, o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento), estratégias de dominação
(em especial, o avanço de uma racionalidade política voltada para a gestão militar da
vida) e práticas de resistência (como hackers que derrubam sistemas bancários)
surgem em contextos não mais traduzíveis pela linguagem tradicional da
modernidade. Não se trata, obviamente, de negar a importância do Estado para o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

desenvolvimento do capitalismo, mas sim ressaltar que nesta nova ordem global o
capital flui muito além das margens da soberania. A nível de exemplo, no início do
século XXI, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram empresas transnacionais
e apenas 49 eram Estados 288 . Assim, não afirmarmos a independência do capital
frente à esfera estatal, mas acreditamos ser preciso reconhecer as mudanças ocorridas
na produção capitalista nas últimas décadas levando em consideração a conjuntura das
relações globais de poder, na medida em foi precisamente neste contexto que os
direitos humanos se transformaram na linguagem política comum. A polivalência
estratégica deste discurso, na esfera local, nacional e globalizada, nunca foi tão
evidente como no momento atual da hegemonia do projeto neoliberal: seja nos
programas políticos dos Estados, nas exigências técnicas das agências internacionais,
nas desculpas públicas das corporações transnacionais ou no funcionamento interno
do mercado das organizações não-governamentais, a linguagem dos direitos humanos
prevalece na política contemporânea.


288
JOSEPH, Sarah. Corporations and Transnational Human Rights Litigation. Hart Publishing, 2004.
Apud: BARRETO, José-Manuel. Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A
manifesto. In: Transnational Legal Theory, V.3, 2012. p.1-29
114

Em segundo lugar, o discurso dos direitos humanos se firmou como um


“genuíno tema global”289 no momento em que deixou de se apresentar como uma
utopia civilizatória relacionada ao Estado-nação para se destacar, principalmente,
como uma nova forma moralista de conduzir a política acima da lei estatal. Com a
consolidação da sociedade de controle e a emergência de novas formas de governo
transnacionais, os direitos humanos, apresentados como um discurso neutro situado
“acima da política”, se consolidaram como uma moral global que permite normalizar
a vida para além das fronteiras do Estado. O seu triunfo garantiu a vitória de uma
ética governamental que legitima as práticas políticas e classifica as lutas sociais nos
termos do biopoder. Se antes a ordem internacional se baseava no princípio da não
intervenção em nome da soberania local, agora é em nome dos direitos humanos que
se proclamam os valores de uma suposta “comunidade global” para legitimar
“intervenções humanitárias” e autorizar “guerras justas”. Cabe lembrar que o
intervencionismo, o colonialismo e o imperialismo sempre estiveram aliados a uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

justificativa moral: a lei natural e o cristianismo no século XVI, a missão civilizadora


no século XIX, a democracia e os direitos humanos na virada do milênio290. Kosovo
(1996-1999), Afeganistão (desde 2001 até a presente data) e Iraque (2003-2011), por
exemplo, foram as primeiras guerras da nova ordem mundial formalmente conduzidas
em nome dos direitos humanos291. Se o objetivo oficial era promover a liberdade e a
democracia destes povos em nome da segurança internacional, o que se observou na
prática foi a privatização dos serviços públicos locais, o controle estrangeiro dos
bancos nacionais, a eliminação das barreiras de comércio, a restrição dos direitos
trabalhistas e sindicais e a hegemonia das multinacionais sobre o mercado interno.
Nas últimas décadas, a força militar tem sido cada vez mais utilizada em nome de
“missões humanitárias” marcadas pelos capacetes azuis da ONU. Sanções
econômicas têm sido repetidamente impostas a países seletivamente escolhidos pelo
mercado como obstáculos ao desenvolvimento, sob a justificativa da proteção das
populações frente à violência de seus governantes. Normas de governança, armadas
de referencias humanistas, são rotineiramente fixadas por organismos internacionais


289
GOMÉZ, José Maria. Sobre Dilemas, Paradoxos e Perspectivas dos Direitos Humanos na Política
Mundial. Disponível na Internet em: http://www.rsi.cgee.org.br/documentos/271/1.PDF. Acesso em:
01.03.2013.
290
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 59
291
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit..p. 186.
115

aos países periféricos como pré-condição para acordos de comércio e financiamento.


Na era do mercado global, para garantir a expansão do biopoder, o modelo jurídico da
soberania teve que se curvar à economia política do discurso dos direitos humanos. Se
no século XVIII o cruzamento do direito natural com a governamentalidade liberal
garantiu a emergência dos direitos humanos, no final do século XX a consolidação de
um mercado global, sob a égide da governamentalidade neoliberal, permitiu o triunfo
deste discurso como uma moral política universal.
Por fim, o acolhimento dos direitos humanos pelos movimentos de resistência
possibilitou a hegemonia da linguagem do biopoder para além dos aparelhos de
dominação, em nome de uma tutela política da vida biologicamente considerada. Na
década de 1980, marcada pela derrocada do fordismo-keynesiano e a vitória do
capitalismo de mercado, o discurso dos direitos humanos surge como uma espécie de
alternativa pragmática para os movimentos sociais que se encontravam desiludidos
diante dos escombros das utopias que caracterizaram o final da década de 1960, para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

os grupos dissidentes que buscavam uma linguagem política própria para denunciar a
violência institucional nos últimos anos da já combalida União Soviética e para os
movimentos populares que lutavam por democracia na ainda militarizada América
Latina. O amadurecimento de organismos internacionais na articulação de redes de
governança (como a ONU, a OEA, por mais que frágeis e pouco eficientes que
possam ser), o surgimento incipiente de um mercado global de organizações não-
governamentais (financiado por corporações transnacionais e pelas embaixadas dos
países centrais) e a articulação transversal de lutas locais em grandes redes políticas
contra o autoritarismo individualizante do estatuto das identidades sociais (como a
antipsiquiatria, o feminismo, o movimento negro e as lutas LGBT), criaram as
condições iniciais para a estabilização dos direitos humanos como a linguagem
comum da resistência: seja para realizar denúncias a órgãos oficiais, seja para
financiar projetos sociais, seja para compor com outros setores políticos. A
politização da vida biologicamente considerada alcançou uma dimensão global e se
tornou o caminho oficial do poder. Tanto nas estratégias de resistência quanto nas
práticas de dominação, a estética e a gramática das lutas assumiram, finalmente, a
forma política do biopoder trajando as vestes dos direitos humanos.
A hegemonia dos direitos humanos consolidou-se, portanto, no processo de
expansão global do biopoder durante a transição da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle. A emergência de um mercado global, a afirmação de uma
116

moral universal supra-estatal e a adoção pragmática de uma linguagem comum pelos


movimentos sociais são faces do mesmo processo que garantiu a vitória política do
discurso dos direitos humanos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA
117


4
Considerações Finais

O presente trabalho se resume em três grandes argumentos.


Em primeiro lugar, os direitos humanos não devem ser entendidos como um
objeto natural, ou um universal a-histórico, mas como uma prática discursiva. Não
pretendemos, portanto, reafirmar a tradicional visão teleológica dos direitos humanos,
que se sustenta em uma filosofia do progresso e crê ter como destino a descoberta das
origens essenciais do humano. Também não seguimos a famosa narrativa do direito
internacional que contrapõe os horrores do nazismo à criação da ONU para contar a
história dos direitos humanos como uma espécie de resposta civilizatória às barbáries
do século XX. Da mesma forma, não procuramos delimitar um preceito último que
fundamentaria os direitos humanos, tampouco descrever que tipo de ideologia estes
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

representam. O caminho escolhido foi o de analisar a genealogia do discurso dos


direitos humanos a partir dos arranjos de poder que constituem os seus efeitos de
verdade. Buscamos examinar a sua produtividade estratégia, considerando a economia
do poder que produziu as condições de possibilidade para o seu surgimento e
posterior triunfo.
Em segundo lugar, a genealogia dos direitos humanos está intrinsicamente
conectada à história do biopoder como expressão política do processo de
governamentalização da vida biologicamente considerada. A invenção deste discurso
remonta ao século XVIII, quando ocorre o cruzamento do legado filosófico do direito
natural moderno com a racionalidade política da governamentalidade liberal. Seu
triunfo como uma moral política universal se consolida durante as décadas que
marcaram a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, a
transição do fordismo-keyneasiano para a acumulação flexível, e a reestruturação de
um regime industrial em um regime financeiro. Foi no período de instalação de uma
nova ordem mundial – caracterizada pela propagação do biopoder, pelo “falência das
ideologias” e pela vitória do neoliberalismo – que os direitos humanos se firmaram
como um discurso de caráter global, transformando-se na linguagem política de
nossos tempos.
118

Por fim, sustentamos que a engenharia discursiva dos direitos humanos tem no
paradoxo o princípio para a polivalência estratégica que viabiliza o seu emprego tanto
como fonte de justificação de um esquema de dominação, quanto como uma bandeira
libertária de insurgência. Os direitos humanos servem como princípio legitimador do
biopoder ao mesmo tempo em que constituem um importante mecanismo de
resistência à violência do biopoder, pois se amparam precisamente naquilo sobre o
que este tipo de poder investe suas energias: no estatuto político da vida
biologicamente considerada em termos normalizadores. A ironia é evidente:
precisamos acreditar no discurso que nos governa para que a nossa “liberação” seja
possível.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA
119

5
Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo” In: O que é o contemporâneo e outros


ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BAUMAN, Zigmunt. Globalization: The Human Consequences. Nova York:


Columbia University Press, 1998.

BAXI, Upendra. The Future of human rigts. Nova York: Oxford University Press,
2006.

BENTHAM, Jeremy. O panoptico. Organização e tradução de Tomaz Tadeu da


Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

BROWN, Wendy. “The most we can hope for...”: Human Rights and the politics
of fatalism. In: The South Atlantic Quaterly, Vol. 103, N2/3, 2004.

__________. Suffering Rights as Paradoxes. In: Constellations. Vol.7, N. 2, 2000.

CASTRO, Edgardo. Vocabulario de Foucault. Um percurso pelos seus temas,


conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da


globalização. 2ªEd. São Paulo: Cortez, 2001.

DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de


Janeiro: Revan (ICC), 2006.

DEAN, Mitchell, Governmentality. Sage Publication: Londres, 2006.

DELEUZE, Gilles; Guattari Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.Vol.3.


São Paulo: Editora 34, 1999.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2006.

DONNELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell
University Press, 1989.

DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of


cosmopolitanism. Nova York: Routledge, 2010.
120

__________. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. Pag. 20.

__________. São os Direitos Universais?. Projeto Revoluções. Disponível em:


http://revolucoes.org.br/v1/curso/costas-douzinas.

DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória


Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto
Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

DUARTE, André. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e


do Estado moderno. In: CASTELO BRANCO, Guilherme; VEIGA-NEGO, Alfredo
(org.). Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

__________. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. Disponível em:


www.revistacinetica.com.br/cep/andreduarte.htm.

EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: um pensador do presente. Ijuí: Unijuí,


2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed. Londres: Pluto Press, 2005.

EWALD, François. Foucault: A Norma e o Direito. Lisboa: Vega, 1993.

FERRAZ, Maria Cristina Franco. Foucault, Nietzsche e a comunicação. In:


QUEIROZ, André; CRUZ, Nina (org.). Foucault hoje? Rio de Janeiro: 7Letras,
2007.

FONSECA, Márcio A. Entre monstros, onanistas e incorrigíveis. In: RAGO,


Margareth; ORLANDI, Luiz B; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Imagens de Foucault
e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro:DP&A Editora, 2005.

FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonard,
2002.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins


Fontes, 2008.

__________. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

__________. A Arqueologia do Saber. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2007.
121

__________. Microfísica do Poder. (Organização e Tradução de Roberto Machado).


22ªEd. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2006.

__________. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 22ªEd.


Rio de Janeiro: Graal, 2006.

__________. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. (Organização e Tradução


de Roberto Machado). 22ªEd. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2006.

__________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.

__________. Em defesa da sociedade. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

__________. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. 16ªEd. Rio de


Janeiro, Graal: 2005.

__________. A filosofia analítica da política. In: Ditos e Escritos V. Ética,


sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

__________. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

__________. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da Razão Política. In: Ditos e


Escritos IV: Estratégia, Poder-saber; organização e seleção de texto, Manoel Barros
da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

FOUCAULT, Michel. Da arqueologia à Dinástica. In: Ditos e Escritos IV:


Estratégia, Poder-saber; organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª
Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

__________. Pode e Saber.. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;


organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.

__________. Poderes e Estratégias. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;


organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.

__________. Diálogo sobre o Poder. In: : Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-
saber; organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.
122

__________. Governamentalidade. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;


organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.

__________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


40ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

__________. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul.


Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.

__________. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Rio de


Janeiro: Zahar, 1997.

__________. O que é a crítica?. In: Bulletin de la Société française de philosophie,


Vol. 82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

1978). Disponível em: http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/critica.pdf.

FOUCAULT, Michel.

GEWIRTH, Alan. Common morality and the community of rights. In: REEDER
JR., John (org.) Prospect for a Common Morality. New Jersey: Princeton University
Press, 1993.

GOMEZ, José Maria. Globalização dos direitos humanos, legado das ditaduras
militares no Cone Sul latino-americano e justiça transicional. In: Direito, Estado e
Sociedade: Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n.33.

__________. Sobre Dilemas, Paradoxos e Perspectivas dos Direitos Humanos na


Política Mundial. Disponível na Internet em:
http://www.rsi.cgee.org.br/documentos/271/1.PDF.

GORDON, Colin. Governmental rationality: an introduction. In: BURCHELL,


Graham; GORDON, Colin; MILER, Peter (org.) The Foucault effect. Chicago: The
University of Chicago Press, 1991.

HABERMAS, Jurgen. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos.


Tradução por Gisele Cittadino e Maria Celina Bodin de Moraes, da versão espanhola
“Acerca de La legitimación basada en los derechos humanos”. In: La Constelacion
Posnacional, Barcelona, Eitorial Paidóos, 2000.
123

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do


Império. 2ªEd. Rio de Janeiro: Record, 2012.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Record,
2010.

HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. In: ALLIEZ, Éric. Deleuze:


uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000

HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Nova York: Oxford University


Press, 2005.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da


mudança cultural. 23ªEd. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções 1789-1848. 3ªEd. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

IGNATIEFF. Michael. Human Right as politics and idolatry. New Jersey:


Princeton University Press, 2001.

JOSEPH, Sarah. Corporations and Transnational Human Rights Litigation. Hart


Publishing, 2004. Apud: BARRETO, José-Manuel. Decolonial Strategies and
Dialogue in the Human Rights Field: A manifesto. In: Transnational Legal Theory,
V.3, 2012.

KEELEY, James F. Toward a Foucauldian analysis of International Regimes. In:


International Organization. Vol.44, N. 1 (Winter, 1990).

LAZZARATO, Mauricio. Biopolítica/Bioeconomia. In: PASSOS, Izabel C. Friche


(org.). Poder, normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

__________. Del biopoder a la biopolítica. In: Multitudes,1,mars,2000.

LITTLE, David. The Nature and Basis of Human Rights. In: OUTKA, Gene;
REEDER JR., John (org.) Prospect for a Common Morality. New Jersey: Princeton
University Press, 1993.

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002.

MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: a study in moral theory. Indiana: University


of Notre Dame Press, 2007.
124

MARZI, Adrian. Una reflexón dobre los derechos humanos a la luz del
pensamento de Michel Foucault. In: Revista Debats. Institució Alfons el Magnànim.
Realidad, espacios, lenguajes. Nº 95, 2006.

MENDES, Alexandre Fabiano. A revolução inconclusa dos direitos humanos:


pressupostos para uma nova concepção de cidadania. In: Lugar Comum, n. 28.

__________. Jogos de vida e de morte: Humanismo e violência no contexto


biopolítico. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Cândido Mendes. Rio
de Janeiro, 2007.

MILLER, Jacques-Alain. A máquina panoptica de Jeremy Bentham. In: O


panóptico. Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.

MUTUA, Makau. Human Rights: A Political & Cultural Critique. Philadelfia:


University of Pennsylvania Press, 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdade e mentira em sentido extra-


moral. Trad. Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.

PASQUINO, Pasquale. Thetrum politicum: The genealogy of capital – police and


the state of prosperity. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILLER,
Peter. The Foucault Effect: studies in governamentality. University of Chicago
Press:1991.

PERRY, Michael. The idea of human rights: four inquiries. Nova York: Oxford
Universiry Press, 1998.

REVEL, Judith. Dicionário Foucault. 1ª Ed. Tradução: Anderson Alexandre da Silva.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

SCHOLTE, J. GLobalization: a Critical Introduction. Londres: Macmillan Press,


2000.

__________. Defining Globalization. In: The World Economy, Vol. 31, Issue 11.

SEN, Amartya. Elements of a theory of human rights. In: Philosophy and Public
Affairs. Vol.32, N.4, 2004.

SENELLART, Michel. Situação dos cursos. In: FOUCAULT, Michel. Segurança,


Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
125

__________. As artes de governar. São Paulo: Editora34, 2006.

__________. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. In: Tempo


Social, Revista de Sociologia da USP. São Paulo: vol. 7, n. 1-2, 1995.

SOBRINHO, Sergio F.C. Graziano. Globalização e sociedade de controle: cultura


do medo e o mercado da violência. Tese (Doutorado em Direito) – Departamento de
Direito PUC-Rio, 2007.

SPEED. Shannon. Rights in Rebelion: indigenous struggle and human rights in


chiapas. California: Stanford University Press, 2008.

SPIVAK, Gayatri. Outside in the teaching Machine. Nova York: Routledge, 1993.

TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 3ªEd.
São Paulo: Peirópolis, 2011.

VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação. In:


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1112591/CA

CASTELO BRANCO, Guilherme; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia


e política. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.

VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

WACQUANT, Loic. Crafting the Neoliberal State: Workfare, Prisonfare and


Social Insecurity. In: Sociological Forum, Vol. 25, N.2, Junho 2010.

S-ar putea să vă placă și