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Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientadora: Profª. Bethânia de Albuquerque Assy
Co-orientador: Prof. Francisco de Guimaraens
Rio de Janeiro
Outubro de 2013
Andrea Bandeira de Mello Schettini
Dissertação de Mestrado
125 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito,
2013.
Inclui bibliografia
1. Direito – Teses. 2. Direitos humanos. 3. Discurso.
4. Biopoder. 5. Sociedade disciplinar. 6. Sociedade de
controle. I. Assy, Bethânia de Albuquerque. II.
Guimaraens, Francisco de. III. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. IV.
Título.
CDD: 340
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Agradecimentos
dos últimos cinco anos. À Noelle pela amizade que, mesmo recente, já me atravessa
de bons afetos, pensamentos e reflexões. À Maíra e à Silvia. Ao Alexandre por toda
ajuda e incentivo nos momentos finais deste trabalho. À Carol B., Carla, Bárbara,
Carol C., Ana Carolina, Lícia, Luiza, Rafa e Sah por ter a certeza de que, mesmo
diante das diferenças, posso contar em qualquer momento da minha vida. Ao Gabriel,
César, Fernanda, Dudu, Sávio, Camila, Carol, Johane, Rodrigo, Andrea, Julia e Lívia,
pelas lindas lembranças de Coimbra e pela amizade que se mantém até hoje. Ao Luc,
Maria N., Juliana, Karen, Andrea, Maria Fernanda, Lior, Luti e Paulo, por tornarem o
Núcleo de Direitos Humanos um lugar de afetos e trocas ainda mais alegre.
À minha família, em especial ao meu padrinho, Paulo. Ao meu avô, Paulo,
pelo apoio incondicional. À Gabriela, Dânica, Paulinho, Rafael e Bernardo. Aos meus
irmãos, Thadeu e Leo. Ao meu padrasto, Beto, porque, mesmo sem saber e
provavelmente contra a sua vontade, muito contribuiu para que eu pudesse me tornar
uma pessoa mais crítica. Ao meu pai, Thadeu, porque hoje sei que mesmo a ausência
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Palavras-chave
triumph - from a critical perspective based on Michel Foucault’s work. Inspired by his
genealogical analysis about power, we defend that human rights are a discourse, a
historic phenomena, that emerges in modernity, in the “disciplinary society”, and
becomes hegemonic in the context of a global “society of control”. Thus, this work
seeks to investigate human rights from a perspective that focuses on the social
struggles and power relations that historically constitute them as the "true discourse"
of contemporary biopower.
Keywords
Human Rights; Discourse; Biopower; Disciplinary Society; Society of
Control.
Sumário
Introdução 11
2. A era do biopoder 41
2.1. O nascimento do biopoder 41
2.2 A era da governamentalidade 49
2.3. O biopoder e o discurso dos direitos humanos 67
(Michel Foucault)
Introdução
1
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Nova
York: Routledge, 2010.p. 33.
2
GOMÉZ, José Maria. Sobre Dilemas, Paradoxos e Perspectivas dos Direitos Humanos na Política
Mundial. Disponível na Internet em: http://www.rsi.cgee.org.br/documentos/271/1.PDF. Acesso em:
01.03.2013. p.4.
3
DOUZINAS, Costas. São os Direitos Universais?. Projeto Revoluções. Disponível em:
http://revolucoes.org.br/v1/curso/costas-douzinas. Acesso em 01.03.2013
4
BAXI, Upendra. The Future of human rigts. Nova York: Oxford University Press, 2006. p. 1.
5
SPIVAK, Gayatri. Outside in the teaching Machine. Nova York: Routledge, 1993. p.45-46.
6
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009. p. 20.
7
A partir de 1945, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, houve uma drástica
mudança de suas referências normativas, por meio de uma série de acontecimentos históricos como a
criação da ONU (1945), cuja carta afirmava expressamente os direitos humanos como objetivo central
da instituição; a promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948); a atuação dos
tribunais internacionais de Tóquio e de Nuremberg (1945-46) que introduziram novidades jurídicas
como a figura do crime contra a humanidade; a promulgação da Convenção sobre a Prevenção e
Sanção do Crime de Genocídio (1948); a sistematização do direito humanitário por meio da Convenção
de Genebra (1948), dentre outros. (GOMEZ, José Maria. Globalização dos direitos humanos, legado
das ditaduras militares no Cone Sul latino-americano e justiça transicional. In: Direito, Estado e
Sociedade: Revista do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro, n.33, p. 88.)
8
Compreende-se por globalização um processo de longa duração que, a partir do final do século XX,
sofreu mudanças quantitativas e qualitativas inéditas. É diferente da noção de internacionalização em
razão da maior intensidade, extensão, velocidade e impacto das mudanças produzidas no campo
econômico, da produção, da governança, da tecnologia e, principalmente, no fluxo de capital, ideias,
informação, epidemias, bens e pessoas. (SCHOLTE, J. Defining Globalization. In: The World
Economy, Vol. 31, Issue 11, p. 1471- 1502) Globalização corresponde, assim, a uma multiplicidade de
processos que não se restringem à uma visão unilateral econômica e tecnológica dominante. Esse
12
fenômeno deve ser entendido como o conjunto de processos multidimensionais, contraditórios e
desiguais de reconfiguração do espaço social, a partir do crescimento de interconexões supraterritoriais
(que transcendem a geografia territorial) na esfera da produção capitalista, das formas de governança,
da produção e afirmação de identidades, da circulação de informação, da produção de conhecimento e
da expansão das redes sociais (SCHOLTE, J. GLobalization: a Critical Introduction. Londres:
Macmillan Press, 2000).
9
Sem qualquer pretensão exaustiva, nos limitamos a dar apenas alguns exemplos: Declaração
Universal de Direitos Humanos; Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados; Pacto dos Direitos Civis
e Políticos; Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenções contra a tortura;
Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de descriminação contra as mulheres; Convenção sobre os Direitos da
Criança; Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
Convenção Americana sobre Direitos Humanos; Convenção Europeia sobre Direitos Humanos, dentre
inúmeros outros.
10
Quando são feitas críticas aos direitos humanos, normalmente estas se limitam a afirmar a
incapacidade da sociedade internacional de resolver os problemas associados à sua observância e
implementação. As críticas se restringem a debater o melhor modo de refinar, polir e elaborar normas e
standards na tentativa de tornar o regime internacional mais elegante, sofisticado e imponente.
(EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed. Londres: Pluto Press, 2005, p. 35)
11
A despeito de uma imensa quantidade de livros sobre direitos humanos, a discussão sobre essa
temática é dominada pelos liberais neokantianos que reduzem a problemática dos direitos humanos à
questão de sua eficácia e aplicação, limitando-se a debater a criação de normas, instituições e
mecanismos de funcionamento com vistas à legitimação desses direitos.
13
percurso de constituição dos direitos humanos, mas sim de traçar a história política
desse regime de verdade que hoje se apresenta como o discurso hegemônico na
política global. A proposta é, portanto, realizar uma história do presente – trata-se
antes de uma preocupação crítica em entender o presente do que uma vontade
historiográfica de resgatar o passado.
Não pretendemos, assim, realizar um estudo cronológico, mas investigar a
constituição de um horizonte de verdade, ou melhor, a formação de mecanismos
singulares de poder e sua relação intrínseca com a produção de um saber. Não
desejamos reafirmar a tradicional narrativa histórica dos direitos humanos que,
sustentada em uma visão teleológica do progresso, busca encontrar suas verdadeiras
origens e elementos essenciais. Tampouco, almejamos traçar o já conhecido percurso
de formação do direito internacional dos direitos humanos, como produto dos
horrores do nazismo, da criação da ONU e de todo um corpo normativo institucional
de proteção de valores humanistas. A finalidade deste estudo é compreender os
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1
O discurso dos direitos humanos
político e econômico das práticas concretas que o engendram. Enfim, propor uma
perspectiva que possibilite analisar o discurso a partir da materialidade das relações
de força e das estratégias de governo que o constituem e que são constituídas por ele.
12
Alguns autores, minoritários no debate sobre a temática, também analisam os direitos humanos como
um discurso. Sobre o assunto ver: Tony Evans (EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed.
Londres: Pluto Press, 2005); Alasdair MacIntyre (MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: a study in
moral theory. Indiana: University of Notre Dame Press, 2007), Wendy Brown (BROWN, Wendy. “The
most we can hope for...”: Human Rights and the politics of fatalism. In: The South Atlantic Quaterly,
Vol. 103, N2/3, 2004. P.451-463; Makau Mutua (MUTUA, Makau. Human Rights: A Political &
Cultural Critique. Philadelfia: University of Pennsylvania Press, 2002) e Shannon Speed (SPEED.
Shannon. Rights in Rebelion: indigenous struggle and human rights in chiapas. California: Stanford
University Press, 2008)
13
A abordagem deste trabalho se distancia de correntes que ocupam espaço dominante nos estudos
acadêmicos sobre os direitos humanos. Afasta-se tanto das visões essencialistas, que compreendem os
direitos humanos como um dado da natureza ou da “essência humana”, fundamentado na ideia de
humanidade ou de um “mínimo humano comum”. Dentre os autores que assim se posicionam,
destacamos sem pretensão exaustiva: David Little (LITTLE, David. The Nature and Basis of Human
Rights. In: OUTKA, Gene; REEDER JR., John (org.) Prospect for a Common Morality. New Jersey:
Princeton University Press, 1993, p. 73-92); Jack Donnelly (DONNELLY, Jack. Universal Human
Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell University Press, 1989); Alan Gewirth (GEWIRTH,
Alan. Common morality and the community of rights. In: REEDER JR., John (org.) Prospect for a
Common Morality. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 29-52) e Michael Perry (PERRY,
Michael. The idea of human rights: four inquiries. Nova York: Oxford Universiry Press, 1998).
Distancia-se ainda das escolas deliberativas que defendem um acordo racional de vontade como
fundamento dos direitos humanos e, consequentemente, partem da concepção de um sujeito que é
dotado de uma razão universal e é guiado por uma lei moral a priori. Neste caso, os autores que se
destacam são: Amartya Sen (SEN, Amartya. Elements of a theory of human rights. In: Philosophy and
Public Affairs. Vol.32, N.4, 2004); e Jurgen Habermas (HABERMAS, Jurgen. Sobre a legitimação
baseada nos direitos humanos. Tradução por Gisele Cittadino e Maria Celina Bodin de Moraes, da
versão espanhola “Acerca de La legitimación basada en los derechos humanos”. In: La Constelacion
Posnacional, Barcelona, Eitorial Paidóos, 2000).
15
Desta forma, não se trata de saber o que é verdadeiro ou falso, real ou ilusório,
legítimo ou abusivo, a partir de um critério universal/ideal, mas de investigar quais as
conexões materiais que ligam o conhecimento a técnicas de coerção, permitindo que
elementos de conhecimento tomem efeitos de poder17 em um determinado sistema e
que procedimentos de coerção adquiram forma e justificação próprias a um
instrumento racional, calculado e tecnicamente eficaz18. Em outras palavras, a crítica
deriva de uma desconfiança e de uma certa resistência desenvolvidas em relação a um
modo específico de governar. Seu principal objetivo consiste, não em adotar um
posicionamento de rejeição às coisas, mas em alcançar uma concreta transformação
dos modos de pensar e de agir a fim de se abrir caminho para novas alternativas
possíveis. Como explica Michel Senellart acerca da posição crítica defendida por
Foucault:
14
EVAND, Tony. The Politics of Human Rights. 2ª Ed. Londres: Pluto Press, 2005, p. 36.
15
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. In: Bulletin de la Société française de philosophie, Vol.
82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990 (Conferência proferida em 27 de maio de 1978). Disponível em:
http://portalgens.com.br/portal/images/stories/pdf/critica.pdf. Acesso em: 10.01.13. p.14.
16
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. Op. cit. p.5.
17
Quando nos referimos ao poder não se trata de uma “entidade coerente, unitária e estável”, mas de
relações que pressupõem determinadas condições de possibilidades e que não existem a não ser em ato.
O poder é a expressão de um jogo de forças que, em um determinado contexto histórico, dirige a
conduta dos corpos envolvidos. Um agenciamento no qual se cruzam práticas, saberes e instituições.
(REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p.120)
18
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?. Op. cit. p.14.
16
19
SENELLART, Michel. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. In: Tempo Social,
Revista de Sociologia da USP. São Paulo: vol. 7, n. 1-2, 1995. p. 6.
20
O termo “governo” é aqui compreendido, a partir da obra de Foucault, como a relação entre sujeitos
ou como a relação consigo mesmo. No primeiro sentido, ele atua sobre o comportamento dos sujeitos,
ele incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, estende ou limita, obriga ou impede. É uma ação sobre
ações. No segundo sentido, é da ordem das relações consigo mesmo e engloba, por exemplo, o domínio
dos prazeres e dos desejos. (CASTRO, Edgardo. Vocabulario de Foucault. Um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 190.) Importante destacar que
Foucault, mais para o final de sua trajetória, passa a descrever o poder como um modo de relação
próprio da ordem do governo. O poder seria, assim, a ação que dirige a conduta dos corpos, uma
operação positiva que, mais do que reprimir e limitar, é produtora de processos de subjetividade.
17
humanos24); por outro lado, é em nome desse mesmo discurso que se organizam as
principais lutas de resistência que buscam expor, limitar e barrar os esquemas de
hegemônia. Os movimentos em defesa da democracia na América Latina na década
de 70, como as “Mães da Praça de Maio”, os movimentos sociais em defesa da
reforma agrária, como o MST no Brasil, as lutas feministas contra a violência
doméstica e a criminalização do aborto, ou as lutas mais recente pelos direitos LGBT,
21
BAXI, Upendra. The Future of human rigts. Op. cit.p. 1.
22
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit. p.101.
23
O processo de securitização dos direitos humanos intensifica-se com a “luta contra o terrorismo”,
que prega a ideia de que as sociedades devem abrir mão dos antagonismos em favor de um suposto
combate ao “mal”, representado por países como Irã, Iraque, Afeganistão e Coréia do Norte. Alguns
exemplos ilustram esse processo: a prisão Abu Ghraib (Iraque), cenário de uma série de violações dos
direitos humanos; a manutenção da prisão de Guantânamo pelos EUA, local onde a utilização de
técnicas de tortura contra os prisioneiros é publicamente reconhecido pelo próprio Estado; a vasta
utilização da tortura como instrumento institucionalizado de interrogatório de supostos “terroristas”,
com previsão legal nos ordenamentos internos dos Estados (por ex.: Os Patriot Acts nos EUA e a
decisão do Tribunal Superior de Israel que autoriza a prática da tortura em interrogatórios); o recente
anúncio dos EUA acerca da utilização de aviões não tripulados (“drones”) na sua “batalha contra o
terror”
24
São exemplos dessa prática: o caso da empresa têxtil italiana, Benetton, famosa por comerciais em
defesa dos direitos dos homossexuais e da igualdade racial e étnica, que foi recentemente acusada de
utilizar mão-de-obra escrava em suas fábricas (http://www.nytimes.com/2013/05/02/business/some-
retailers-rethink-their-role-in-bangladesh.html?pagewanted=all); ou o caso da empresa mineradora
Vale do Rio Doce que, em suas propagandas, explora a importância da defesa do direito ao meio
ambiente, quando, na realidade é acusada de uma série de desastres ambientais.
(http://port.pravda.ru/news/busines/15-01-2013/34193-mineradora_brasileira-0/)
18
são apenas alguns exemplos que ilustram como o discurso dos direitos humanos é
utilizado e ressignificado a todo tempo na materialidade das lutas políticas.
Desta forma, diante da heterogeneidade, da descontinuidade e da aparente
contradição dos usos desse discurso, é preciso, nesse ponto, concordar com Costas
Douzinas quando este afirma que “os direitos humanos tem apenas paradoxos a
oferecer; a energia deles deriva de sua natureza aporética” 25 . Este trabalho não
pretende, contudo, apontar as ambivalências do discurso para simplesmente se
“livrar” dele em nome de um purismo qualquer, mas aceitar seus paradoxos 26 e
analisá-los criticamente, na medida em que são indícios da polivalência estratégica
que garante sua hegemonia. A proposta não é, portanto, qualificar o discurso dos
direitos humanos a partir de critérios como verdadeiro ou falso, mas sim compreender
como se entrecruzam as lutas que lhe dão sentido. Os usos paradoxais desse discurso,
em vez de servirem de justificativa para análises moralistas, devem ser
compreendidos à luz da multiplicidade das relações de poder que os sustentam.
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25
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. Op. cit. p. 38.
26
É preciso esclarecer que “paradoxo” não é uma condição política impossível, mas sim uma condição
exigida e frequentemente insatisfeita. O paradoxo, no sentido político, não deve ser lido como uma
verdade ou confusão acerca de determinadas condições políticas, mas como constrangimentos e limites
impostos pelas condições em que as verdades podem ser proferidas. O paradoxo foca na multiplicidade
de verdades, na possibilidade da emergência de verdade e de sua negação em uma única proposição ou
em verdades que desfazem até mesmo o modo como dependem uma da outra. Portanto, o paradoxo não
é uma condição a ser resolvida. Não se trata de escolher entre uma coisa ou outra, mas aceitar múltiplas
possibilidades. (Ver BROWN, Wendy. Suffering Rights as Paradoxes. In: Constellations. Vol.7, N. 2,
2000. p. 239.)
27
No sentido foucaultiano do termo, “dispositivo” representa “um conjunto decididamente heterogêneo
que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito
e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos. (...) é um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função
principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.
(FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. 22ª ed. Rio de Janeiro: Gral, 2006,
p.244-246.) Agambem ainda esclarece que o dispositivo é “o conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo
tempo linguístico e não-linguístico, jurídico, técnico e militares) que têm o objetivo de fazer frente a uma
19
1.1
O olhar genealógico
30
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. p. 9-13.
31
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, p.16.
32
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995. p. 120.
21
Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da
origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para
recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade
cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é
externo, acidental, sucessivo. Procurar tal origem é tentar reencontrar “o que era
imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é
tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias,
todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma
identidade primeira. Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez
de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo
inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas
são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras
que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente
“desrazoável” – do acaso. A dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos?
Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre
33
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 22ªEd. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 28.
34
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995. p. 119.
35
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Foucault, Nietzsche e a comunicação. In: QUEIROZ, André;
CRUZ, Nina (org.). Foucault hoje? Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. p. 99.
22
36
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do Poder. 22ªEd. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 17-18.
37
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit.p.17.
38
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.16.
39
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit., p.20.
40
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit., p.10.
23
O conhecimento não tem relações de afinidade com o mundo a conhecer, diz Nietzsche
frequentemente.(...)
O mundo não procura absolutamente imitar o homem, ele ignora toda lei. Abstenhamo-nos de
dizer que existem leis da natureza. É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem
formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar.
É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por
um direito qualquer, a conhecer o mundo. Não é natural à natureza ser conhecida.
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E assim como entre o instinto e o conhecimento encontramos não uma continuidade, mas
uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma,
entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver
nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de violência, de
dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das
coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas.42
41
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.17.
42
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit. p.18.
43
EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: um pensador do presente. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 37.
44
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Op. cit.p.148.
24
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é –
não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a
recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles
que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade
tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de
discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que
45
funciona como verdadeiro.
Segundo Foucault, cinco características historicamente importantes
caracterizam a “economia política da verdade” em nossas sociedades: a verdade se
coloca na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem (a sociedade
moderna ocidental fundou-se na crença de que a ciência seria a única detentora da
verdade, um saber neutro e puro, livre de qualquer interesse); ela está submetida às
necessidades dos poderes econômicos e políticos, às suas demandas por verdades; é
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objeto de imensa difusão e consumo, uma vez que circula por todo o corpo social
através de seus aparelhos e instituições; é produzida e transmitida sob o controle
dominante de grandes aparelhos econômicos e políticos (universidades, meios de
comunicação, aparelhos pedagógicos, empresas transnacionais); e é o objeto do
debate político e das lutas ideológicas46.
A verdade, portanto, deve ser compreendida não como “correspondência ao
47
real” , mas como uma série de práticas que regulamentam a produção, a divisão, a
distribuição e o funcionamento dos discursos48. Não é uma instância suprema dos
valores, mas um conjunto de regras que distinguem o verdadeiro do falso e dão aos
discursos efeitos específicos de poder. Encontra-se intrinsecamente ligada a sistemas
de poder que a sustentam e a reproduzem e a efeitos de poder que a põem em
circulação. O objetivo da crítica não é, portanto, separar a verdade de todo tipo de
poder – o que seria impossível – mas identificar as estruturas hegemônicas de poder
que balizam os regimes de verdade. Nas palavras de Foucault: “a questão política não
é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade” 49. Não
45
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Editora
Graal, 2006. p. 12.
46
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit. p. 13.
47
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
p. 16.
48
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p. 14.
49
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p.14.
25
se trata, então, de produzir uma verdade ainda “mais verdadeira” para mudar a
consciência das pessoas ou a maneira como elas pensam, mas problematizar o regime
político, econômico e institucional de produção da verdade, buscando a insurreição de
saberes sujeitados pela ordem vigente e a abertura de caminhos alternativos para a
criação de novos valores e sentidos. A análise genealógica do discurso pretende,
portanto, evidenciar os efeitos de poder de uma prática considerada verdadeira para
permitir a emergência de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas
táticas atuais50.
Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instancia teórica unitária que pretenderia
filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em
nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns. As genealogias não
são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata.
As genealogias são, muito exatamente, anti-ciências. Não que elas reivindiquem o
direito lírico à ignorância e ao não-saber, não que se tratasse da recusa de saber ou do
por em jogo, do por em destaque os prestígios de uma experiência imediata, ainda
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não captada pelo saber. Não é disso que se trata. Trata-se da insurreição dos saberes.
Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de
uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder
que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico
organizado no interior de uma sociedade como a nossa. (...) É exatamente contra os
efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia
deve travar um combate.51
Em suma, o olhar genealógico se preocupa em analisar a verdade a partir dos
regimes de poder que a constituem. Trata-se de uma tentativa de desassujeitar as
perspectivas marginalizadas, tornando-as capazes de se opor e de lutar contra “a
ordem do discurso”, ou melhor, contra o domínio de uma política discursiva unitária,
formal e homogênea que tenta impedir a emergência de novos valores. Segundo
Foucault, a genealogia é um tipo de história que se volta para a constituição dos
saberes sem ter que se referir a um sujeito, seja como um dado prévio e transcendente,
ou como uma identidade vazia a ser perseguida ao longo da história 52 . Pretende,
assim, explicar a invenção do conhecimento a partir de suas condições imanentes de
possibilidade, situando o discurso no interior das estratégias de um dispositivo, como
peça de um arranjo de relações de força.
50
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 13.
51
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 13-14.
52
FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. Op. cit.p.7.
26
1.2
A analítica do poder
acúmulo e de circulação que já é por si só uma forma de poder e que está ainda ligada
a outros esquemas de poder53. Portanto, é preciso admitir que “poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo
relações de poder”54.
Desta forma, é preciso pensar o discurso como desdobramento da relação
saber-poder. É a economia política do poder que separa o verdadeiro do falso. E são
os discursos verdadeiros, produzidos pelos mecanismos de poder, que legitimam os
dispositivos e os colocam em circulação. As contribuições de Foucault sobre o poder
se tonam, assim, essenciais para a análise dos discursos.
Quero dizer o seguinte: numa sociedade como a nossa - mas, afinal de contas, em
qualquer sociedade - múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam,
constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem
funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento
do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma certa economia dos
discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos
submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante
a produção da verdade.55
53
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar,
1997. p.19.
54
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 40ª
Ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 30.
55
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4ªEd. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 28-29.
27
uma espécie de “ciclo do sujeito ao sujeito” – estabelece uma relação política que vai
do sujeito, compreendido como um indivíduo dotado, naturalmente (ou por natureza)
de direitos naturais e faculdades primitivas, para o sujeito, entendido, desta vez, como
o elemento sujeitado numa relação de poder. Em segundo lugar, organiza um sistema
que gira em torno de uma unidade fundamental e fundadora, o Estado, que seria a
fonte central de todas as relações de poder – as relações difundidas pelo nexo social
seriam meras capacidades, possibilidades e potências que só adquiririam seu caráter
de poder quando remetidos à soberania. Por fim, a teoria da soberania concede um
privilégio à lei como manifestação fundamental do poder, estabelecendo uma
legitimidade essencial e uma autoridade natural à vontade do soberano – desta forma,
somente a partir da relação com a fonte válida, as leis podem adquirir sua
característica de autoridade57. Foucault resume a crítica:
56
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escrito V – Ética, Sexualidade, Política. Org. Manoel Barros da
Motta. Trad. Elisa Monteiro e Inês Austran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004, p.50.
57
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Op. cit. p. 49-50.
58
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Op. cit. p.50.
28
De certa forma, a crítica de Foucault está no fato de que as duas análises, cada
uma de sua maneira, se remetem à figura do Estado para decifrar o poder. Seja pela
fórmula do contrato social ou pela fórmula infraestrutura-superestrutura, o papel
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59
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 20.
60
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 27.
61
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 23.
29
etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global” 68. O
objetivo é, assim, analisar as lutas micropolíticas para demonstrar como
historicamente os mecanismos locais de controle tornaram-se lucrativos e úteis aos
interesses econômicos e políticos de determinada sociedade, ou melhor, compreender
como esses mecanismos, em uma conjuntura específica, foram imbricados em
estratégias globais e incorporados como parte de um conjunto.
Segunda precaução de método: as relações de poder não são opostas ou
exteriores às relações de produção, às relações sexuais, às relações de parentesco, ou
qualquer outro tipo de relação humana. São, na verdade, imanentes às demais
relações, exercendo um papel condicionante e, ao mesmo tempo, condicionado69. O
poder não é uma superestrutura. Pelo contrário, o poder se constitui exatamente nas
configurações gerais e nos efeitos específicos das lutas que atravessam essas relações.
Neste sentido, as múltiplas correlações de força que se formam no âmbito da família,
da escola, da clínica, dos aparelhos de produção e das instituições perpassam todo o
conjunto do corpo social, definindo as trocas, alinhamentos, divisões e redistribuições
66
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 32 e 40.
67
FOUCAULT, Michel. Pode e Saber. Op. cit. p. 248.
68
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 36.
69
FOUCAULT, Michel. Poderes e Estratégias. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 248.
31
constitutivas de sua organização”72. Não é uma instituição ou uma estrutura, nem uma
potência de que alguns são dotados, mas é “uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada”73.
Quarta precaução de método: o poder transita pelos indivíduos. Não devemos
tomar o indivíduo como o alvo primitivo do poder, um ente apriorístico que seria o
seu objeto e contra o qual o poder avançaria para o submeter às suas vontades. Os
indivíduos não são um ponto inerte e consentido sobre o qual o poder recai. São, na
verdade, o seu produto e o seu intermediário. Como destaca Foucault, “o que faz que
um corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos como
indivíduos, é precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder” 74. Neste sentido,
o indivíduo, ao mesmo tempo em que é um resultado das estratégias de poder, é
também o seu meio de circulação, ou seja, “o poder transita pelo indivíduo que ele
constitui” 75.
Quinta precaução de método: o poder não é somente negativo ou repressivo,
limitado a relações de interdição e exclusão, de ocultação ou mascaramento, mas é,
70
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: vontade de saber. 16ªEd. São Paulo: Edição
Graal, 2005. p. 90.
71
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
72
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 88.
73
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 89.
74
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
75
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 35.
32
acima de tudo, imbuído de produtividade. Não deve, assim, ser identificado como um
instrumento puro de dominação ou como uma lei que apenas diz não. É preciso
compreender que o poder é onipresente, está necessariamente em toda parte e produz,
a cada instante, novos saberes, novas subjetividades, novos valores e novas técnicas76.
O que permite que o poder se sustente e seja aceito é precisamente o fato de que não é
simplesmente uma força negativa, mas uma relação que “permeia, produz coisas,
induz ao prazer, forma saber, produz discurso” 77 . Por isso, o poder não é uma
instância negativa cuja função seria apenas reprimir e limitar, mas uma rede produtiva
que perpassa todo o corpo social.
Sexta precaução de método: as relações de poder são, ao mesmo tempo, não
subjetivas e intencionais. Não devemos buscar a subjetividade do poder, articulando
perguntas como: enfim, quem é o dono do poder? O que ele tem na cabeça e o que
deseja? O que o leva a querer dominar? O que ele procura? Qual é o seu plano geral?
Pelo contrário, devemos analisar o poder, “do lado em que sua intenção está
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É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. E, por essa mesma
razão, deve-se conceber o discurso como uma série de segmentos descontínuos, cuja
função tática não é uniforme nem estável. Mais precisamente, não se deve imaginar
um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou
entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma
multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes.
É essa distribuição que é preciso recompor, com o que admite em coisas ditas e
ocultas, em enunciações exigidas e interditas; com o que supõe de variantes e de
efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional
81
FOUCAULT, Michel. Poder e Saber. Op. cit. p.232.
82
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit. p. 242.
34
1.3
Discurso, verdade e poder
83
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 95-96.
84
Por episteme, Foucault entende: “o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as
práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas
formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se
realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses
limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estar defasados no tempo; as
relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se
prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento,
ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade
soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser
descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das
regularidades discursivas (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007. p.214)
85
Nas palavras de Foucault: “ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história,
palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos
na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos
(tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e
seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas
de outro) que proponho chamar de arquivo.” (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Op. cit.
p. 146)
86
Ao tratar do conceito de enunciado, Foucault esclarece: “Essa materialidade repetível que caracteriza
a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico e paradoxal, mas também
como um objeto entre os que os homens produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam,
combinam, decompõem e recompõem, eventualmente destroem. Ao invés de ser uma coisa dita de
forma definitiva e perdida no passado, como a decisão de uma batalha, uma catástrofe geológica ou a
morte de um rei, o enunciado, ao mesmo tempo que surge em sua materialidade, aparece com um
status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações
possíveis, se integra era operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim,
o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde
a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de
rivalidade.” (FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Op. cit. p. 118-119)
87
Contempla o período que vai desde “História da Loucura” (1961), passando pelo “Nascimento da
Clínica” (1963), “As Palavras e as Coisas” (1966) e culminando com “A arqueologia do saber” (1969).
35
uma sistemática que não é de tipo lógico, nem de tipo linguístico. As práticas
discursivas caracterizam-se pelo recorte de um campo de projetos, pela definição de
uma perspectiva legítima para o sujeito de conhecimento, pela fixação de normas
para a elaboração de conceitos e teorias. Cada uma dela supõe, então, um jogo de
prescrições que determinam exclusões e escolhas. As práticas discursivas não são
pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Ganham corpo em conjunto
técnicos, em instituições, em esquemas de comportamento, em tipos de transmissão e
de difusão, em formas pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem e as mantêm.91
88
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 16.
89
Abrange toda o trabalho realizado ao longo da década de setenta, em especial, as obras “Vigiar e
Punir”(1975) e “História da sexualidade. Vol. I: A vontade de saber”(1976).
90
Abrange os últimos anos da vida de Foucault, especialmente as obras “História da sexualidade. Vol.
II: O uso dos prazeres (1984) e “História da sexualidade. Vol. III: O cuidado de si” (1984).
91
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p. 11-13
36
94
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Op. cit. p. 54.
95
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Op. cit. p. 51.
38
por sua vez, não são nem verdadeiros nem falsos 100 . Ao invés de uma defesa da
verdade, é preciso evidenciar a disputa em torno de seu estatuto e o papel econômico-
político que a mesma desempenha em determinada sociedade. Por isso, não se trata de
denunciar os erros para substituí-los por afirmações “mais científicas”, mas estudar
como, em um determinado contexto histórico, a verdade é produzida e extraída em
meio aos jogos de exclusão, invalidação e desqualificação dos saberes. A intenção é
realizar uma investigação das necessidades e das estratégias que determinam a
fabricação, a repartição e a circulação dos discursos. O problema é menos o da origem
e descoberta do discurso e mais o da sua invenção e modo de funcionamento101.
Cada sociedade possui seu próprio regime de produção de saberes, tipos de
discursos que são aceitos e multiplicados, mecanismos que distinguem um enunciado
válido de outro falso, técnicas que valorizam a obtenção do conhecimento e ritos que
legitimam aqueles que têm a função social de dizer o que é verdadeiro102. O discurso,
encontra-se, assim, em uma relação imanente com os mecanismos de poder que
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atravessam todo o corpo social, sendo, portanto, impossível analisá-lo sem “levar em
conta as relações de poder que existem na sociedade na qual o discurso funciona” 103.
Segundo Foucault,
É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo
tempo, o efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de
partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas
também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. (...) Não existe um discurso do
poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Os discursos são elementos
ou blocos táticos no campo da correlação de força; podem existir discursos diferentes
e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário,
104
circular sem mudar de forma entre estratégias opostas.
105
VEYNE, Paul. Foucault: Seu pensamento, sua pessoa. Op. cit. p. 54.
106
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o Poder. Op. cit. p. 254.
41
2
A era do biopoder
2.1
O nascimento do biopoder
Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de
viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos,
no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e
de intervenção do poder. (...) deveríamos falar de “biopolítica” para designar o que
faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e
faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida
tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhes
escapa continuamente. Fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do
que nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e, em todo
caso, mais graves do que antes do nascimento da microbiologia. Mas, o que se
poderia chamar de “limiar de modernidade biológica” de uma sociedade se situa no
momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias
políticas. O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um
animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um
animal, em cuja política de ser vivo está em questão.108
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107
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 286.
108
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.134.
109
Compreende-se por modernidade, a partir da obra de Foucault, um período da história do Ocidente
que se inicia no século XVIII e se estende até o presente. A partir de um olhar político, começa com a
Revolução Francesa e de um olhar filosófico, se inicia com Kant. A modernidade corresponde, assim,
às formas de saber e às formas de poder que se consolidaram sobretudo nos séculos XVIII, XIX e XX:
a invenção do homem, enquanto objeto e sujeito do conhecimento e o desenvolvimento das técnicas de
normalização dos corpos. Contudo, o conceito de modernidade adquire, em Foucault, um sentido ainda
mais importante que não se refere a uma época ou a uma caracterização, mas sim a uma atitude, uma
maneira de pensar, de sentir e de agir. Nesta perspectiva, a modernidade se iniciaria com o pensamento
cartesiano, e se sustentaria na ideia de que a relação entre o sujeito e a verdade se dá somente através
da razão, ideia esta que passa a reger as condutas humanas desde então. CASTRO, Edgardo.
Vocabulario de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Op. cit. p. 301-302)
43
riquezas, dos bens, dos território e de seus produtos, do que para a vida dos
indivíduos, com a qual mantinha uma relação de ruptura e descontinuidade. A
incidência do poder sobre o corpo dos súditos ocorria sempre de maneira pontual, sem
a imposição de um controle contínuo e permanente. O poder se exercia, por exemplo,
por meio da cobrança de impostos, da apropriação parcial dos produtos da terra ou
dos serviços religiosos, mas não resultava em um domínio geral das formas de
existência. No mesmo sentido, as punições marcavam, esquartejavam, amputavam e
supliciavam o corpo a fim de fragmentá-lo, sem, com isso, promover um processo de
individuação em que o corpo seria, então, convertido em um indivíduo adestrado. A
atenção centrava-se no rito, na cerimônia e no espetáculo dos castigos, a fim de fazer
do soberano o único corpo perfeitamente visível e identificável.
110
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 43.
111
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 41.
112
Foucault sugere que as teorias contratualistas podem ser entendidas como uma tentativa das artes de
governar de se reconciliarem com a teoria da soberania. Haveria, a partir desta concepção, na qual
44
O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de
matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições
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de exigir. O direito que é formulado como “de vida e morte” é, de fato, o direito de
causar a morte ou deixar viver.114
destaca-se Hobbes e Rousseau, uma dissociação entre o poder político e o seu fundamento. O poder é
exercido pelo Estado embora fundamentado nos indivíduos, na soberania popular. (DEAN, Mitchell,
Governmentality. Sage Publication: Londres, 2006. p.87)
112
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins
Fontes, 2008. p. 383.
113
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4 Op. cit. p. 287.
114
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.128.
115
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.128.
45
Temos, pois, nas sociedades modernas, a partir do século XIX até os nossos dias, de
um lado uma legislação, um discurso, uma organização do direito público articulados
em torno do princípio da soberania do corpo social e da delegação, por cada qual, de
sua soberania ao Estado; e depois temos, ao mesmo tempo, uma trama cerrada de
coerções disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo social. Ora,
essa trama não pode de modo algum ser transcrita nesse direito, que é, porém, seu
acompanhamento necessário. Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina:
é entre esses dois limites, creio eu, que se pratica o exercício do poder. Mas esses
dois limites são de tal forma, e são tão heterogêneos, que nunca se pode fazer que um
coincida com o outro. O poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir e
no próprio jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma
117
mecânica polimorfa da disciplina.
116
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.131.
117
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 44-45.
46
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada
de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra
numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. (...) A
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência).118
118
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit. p. 133-134.
47
É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo
menos necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica lida com
a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo
científico e político, como problema biológico e como problema de poder (...) A
biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa
população considerada em sua duração. (...) E trata-se sobretudo de estabelecer
mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão
poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de
homeostase, assegurar compensações; em suma de instalar mecanismos de
previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos,
de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida.121
suas correlações históricas e materiais, ou melhor, dos processos que articulam seus
agenciamentos em uma rede de dispositivos de biopoder. A prisão, a polícia, a
medicina e o hospital, por exemplo, além de mecanismos disciplinares que
individualizam os corpos, devem ser entendidos como elementos de uma biopolítica
que se legitima formalmente pelo modelo jurídico da soberania. Eles incidem, ao
mesmo tempo, sobre o corpo e sobre a população, impondo tanto efeitos de
disciplinamento quanto de regulamentação. O fato é que a partir do surgimento do
problema do governo da população, intensifica-se a fundação da autoridade política
na forma da soberania e aprofunda-se a necessidade das disciplinas como meio da
administração dos corpos. Neste sentido, poderíamos dizer que, na modernidade, a
teoria da soberania é o discurso que impera no nível dos regimes de verdade; os
mecanismos disciplinares definem a forma geral dos processos de subjetivação; e a
biopolítica triunfa como modelo hegemônico das técnicas de governo. Encontramos,
portanto, em nossas sociedades, um triângulo “soberania - disciplina - gestão
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122
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.143.
123
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 132.
124
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 135.
49
125
SENELLART, Michel. Situação dos cursos. In: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território,
População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P. 496.
126
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 3.
127
Isso não significa que não se possa pensar o problema do governo antes do século XVI. O que
Foucault busca destacar, contudo, é que foi somente a partir deste momento que as artes de governar se
organizaram, não mais como conselhos ao príncipe (sobre como governar seus súditos e se fazer
aceitar), mas como uma racionalidade política própria do Estado. Foucault compreendeu por governo:
de maneira geral, uma “ação sobre ações”, uma forma de atividade que busca moldar, guiar e afetar a
conduta de um indivíduo ou de um grupo, abrangendo tanto o governo de si quanto o governo dos
outros; de maneira mais específica, as relações produzidas no exercício da soberania política. O
objetivo central de Foucault ao longo de sua obra é precisamente a inter-relação entre essas diferentes
formas e significados de governo. Contudo, ao traçar a genealogia do problema do governo nos cursos
“Segurança, Território e População” e “Nascimento da biopolítica”, o filósofo preocupa-se
principalmente com o governo no seu sentido político. (GORDON, Colin. Governmental rationality:
an introduction. In: BURCHELL, Graham; GORDON, Colin; MILER, Peter (org.) The Foucault
effect. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. P.3.)
50
128
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.119.
129
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit.. p.82
130
No curso “Território, segurança e população”, na aula de 1º de fevereiro de 1978, Foucault busca
analisar o surgimento da “arte de governar” a partir de uma literatura anti-maquiaveliana sobre o
governo, dando destaque à obra de Guillaume de la Perrière, François La Mothe Le Vayne e Quesnay.
Na verdade, como esclarece Senellar, trata-se de uma nova racionalidade governamental que se deu
não contra Maquiavel, mas no sentido de um antimaquiavelismo “menos preocupado em reconciliar a
moral e a política do que em afirmar, face à pura lógica dos apetites de poder, a positividade do
funcionamento do Estado.” (SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Editora34, 2006.
p. 61)
131
Por arte de governar Foucault compreende, não a maneira como efetivamente os governantes
governam, mas sim a maneira pensada de governar o melhor possível, ou ainda, a reflexão sobre a
melhor maneira possível de governar. Trata-se de compreender a “maneira como se estabeleceu o
domínio da prática do governo, seus diferentes objetos, suas regras gerais, seus objetivos de conjunto a
fim de governar da melhor maneira possível” (FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op.
cit. p. 4)
132
Foucault destaca que na obra de Maquiavel, o príncipe encontrava-se numa relação de exterioridade
e transcendência necessária para com seu principado (recebido por herança, conquista ou aquisição). O
vínculo do príncipe com o súdito era, portanto, um vínculo de violência ou de tradição, ou podia ser
ainda definido pelo acordo e tratado entre príncipes. Em todo caso, tratava-se de uma relação frágil e
sob constante ameaça, tanto interna, posto que não há uma razão fundamental a priori que obrigue os
súditos a aceitarem o príncipe, quanto externa, vinda de seus inimigos que pretendem tomar seu
território. É precisamente essa relação, esse vínculo frágil entre o príncipe, o território e seus habitantes
que a arte de governar, apresentada por Maquiavel, tem por objetivo. O píncipe de Maquiavel é, assim,
um tratado de habilidade do príncipe em conservar seu território (FOUCAULT, Michel. Segurança,
Território, População. Op. cit.. p.123).
51
133
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.126.
134
De acordo com Lazaratto, “a entrada da vida na história é analisada por Foucault através do
desenvolvimento da economia política. Foucault demonstra como as técnicas de poder mudaram no
momento preciso em que a economia (como governo da família) e a política (como governo da pólis)
se integraram uma a outra. (LAZZARATO, Mauricio. Del biopoder a la biopolítica. In:
Multitudes,1,mars,2000.Disponível em: http:// multitudes.samizdat.net/article.php3?id_article=298
Acesso em: 10.05.2013. p.2.)
52
Devemos deixar para este termo [governo] a significação bem ampla que tinha no
século XVI. Ele não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados;
mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo
das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria
apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política ou econômica; mas modos
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de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as
possibilidades de ação dos outros indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o
eventual campo de ação dos outros.136
135
SENELLART, Michel. As artes de governar. Op. cit. p. 19.
136
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória Filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Op. cit.. p. 245.
53
das populações e não modelo quimérico para o bom governo. Esse deslocamento da
família do nível de modelo para o nível de instrumentação é absolutamente
fundamental. E é de fato, a partir de meados do século XVIII, que a família aparece
nessa instrumentalidade em relação à população: serão as campanhas sobre a
mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, as vacinações, as inoculações, etc.
Logo, o que faz com que a população possibilite o desbloqueio da arte de governar é
que ela elimina o modelo da família.138
138
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.139.
139
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p.143.
140
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Op. cit. p.75.
55
desta forma de organização política. Esse fenômeno só foi possível, só pôde tomar
forma, a partir de dois elementos fundamentais: a herança do poder pastoral cristão e
a emergência da razão de Estado (das técnicas diplomático-militares e da teoria da
polícia). Como explica Foucault,
seguido por um rebanho de ovelhas. Tratava-se de um poder que recaía mais sobre o
“rebanho” do que sobre a terra, cabendo ao pastor, através de sua presença imediata e
sua ação direta, garantir a sobrevivência diária de todas as suas ovelhas: “tratá-las
quando doente; tocar música para reuni-las e guiá-las; organizar sua reprodução”.
Para isso, era preciso não apenas conhecer das condições objetivas de sobrevivência
(a terra mais produtiva, a estação do ano mais propícia para a colheita, por exemplo),
como também e principalmente das necessidades de cada membro do rebanho em
particular. O papel do pastor, nesse sentido, era assegurar a salvação do rebanho,
coletiva e individualmente, por meio de uma postura sempre benevolente, a ponto de
que, se necessário, devia inclusive se sacrificar em prol da vida das ovelhas (lógica
149
FOUCAULT, Michel. Governamentalidade. In: Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-saber;
organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 293.
150
Segundo Foucault, a temática do poder pastoral não é desenvolvida pela literatura política grega e
romana, sendo encontrada apenas nas sociedades orientais antigas pré-cristãs (como Egito, Assíria e
Judéia). Foi sobretudo com os hebreus que ela se intensificou e assumiu um caráter fundamentalmente
religioso através da relação de Deus/pastor com o seu povo/rebanho. O tema do poder pastoral é,
posteriormente, introduzido no Ocidente com a Igreja cristã, responsável por organizar o poder pastoral
autonomamente e implantar seus mecanismos e instituições no interior do Império Romano.
Preocupado com a vida cotidiana dos indivíduos e com a salvação da humanidade como um todo, o
cristianismo insere, pela primeira vez, nas sociedades ocidentais, a ideia do governo dos homens,
transformando o pastorado em uma técnica precisa e em uma ciência do governo das pessoas. Em suas
palavras, “a verdadeira história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo
dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo”.
(FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 174.)
58
esta contrária ao modelo da soberania no qual era dever dos súditos morrerem em
defesa da existência do soberano).
Esta forma de poder [pastoral] é orientada para a salvação (por oposição ao poder
político). É oblativa (por oposição ao princípio da soberania); é individualizante (por
oposição ao poder jurídico); é co-extensiva à vida e constitui seu prolongamento; está
ligada à produção da verdade – a verdade do próprio indivíduo.151
confiarem uma tarefa importante mas, ao contrário, por ser absurda”152. A obediência
era vista como uma virtude, uma prática de submissão pessoal altamente valorizada,
cuja razão de ser estava em si mesma. Em terceiro lugar, à verdade, pois se o objetivo
é alcançar a salvação por meio da obediência à lei, isso só se torna possível a partir da
crença em uma verdade universal. No cristianismo, esta crença na verdade era
mantida pelo exame e pela direção de consciência dos indivíduos, elementos que
estabeleciam o laço entre a obediência total, o conhecimento de si e a confissão a um
outro – de um lado, uma verdade ensinada e, do outro, uma verdade oculta e extraída.
Cada ovelha tinha que descobrir em si mesma uma verdade da qual o pastor é, “se não
o juiz e o avalista, pelo menos uma testemunha perpétua” 153.
A inovação da pastoral cristã é constatada, não propriamente no plano da
relação entre essas três noções, mas na forma de subjetivação que se produz a partir
delas. Trata-se de uma mecânica de poder essencialmente individualizante, cuja
função principal consiste em “velar permanentemente pela vida de todos e de cada
154
um” (omnes et singulatium) ; dando origem a um sujeito analiticamente
151
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Op. cit. p. 237
152
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 233.
153
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. 364.
154
FOUCAULT, Michel. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da Razão Política. In: Ditos e Escritos
IV: Estratégia, Poder-saber; organização e seleção de texto, Manoel Barros da Motta. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 357-361.
59
A partir do século XVIII, de uma maneira paradoxal e bastante inesperada, tanto nas
sociedades capitalistas e industriais quanto nas formas modernas do estado que as
acompanharam e sustentaram, surge a necessidade de procedimentos, de mecanismos,
essencialmente procedimentos de individualização que o pastorado religioso havia
posto em prática. (...) houve a implantação, a multiplicação mesmo e a difusão de
155
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit.. 242-243.
156
Essa nova forma de organização política (o Estado), além de se constituir como uma instituição
totalizante, preocupada com os interesses de um grupo de cidadãos, é também, e esse é o motivo de sua
força, uma tática de poder individualizante. Nunca antes na história do Ocidente “houve, no interior das
mesmas estruturas políticas, uma combinação tão astuciosa das técnicas de individuação e dos
procedimentos de totalização” como se deu no Estado moderno. Ver: FOUCAULT, Michel. O Sujeito
e o Poder. Op. cit. p. 236.
60
157
FOUCAULT, Michel. A filosofia analítica da política. In: Ditos e Escritos V. Ética, sexualidade e
política. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2004. p. 54.
158
A esse acontecimento político, Foucault chama de “golpe de Estado”: “o golpe de Estado não é
ruptura em relação à razão de Estado. Ao contrário, é um elemento, um acontecimento, uma maneira de
agir que se inscreve perfeitamente no horizonte geral, na forma geral da razão de Estado, ou seja, é
algo que excede as leis ou, em todo caso, que não se submete às leis.” Assim, o golpe de Estado é uma
suspensão e interrupção da lei, é o que excede o direito comum. (FOUCAULT, Michel. FOUCAULT,
Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 349)
159
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 350.
160
“O Estado só existe para si mesmo e em relação a si mesmo, qualquer que seja o sistema de
obediência que ele deve a outros sistemas como a natureza ou como Deus. O Estado só existe por si
mesmo e para si mesmo, só existe no plural, isto é, ele não tem, num horizonte histórico mais ou menos
próximo ou distante, de se fundir ou de se submeter a algo como uma estrutura imperial que seria de
certo modo uma teofonia de Deus no mundo, uma teofonia que conduziria os homens numa
humanidade enfim reunida até o limiar do fim do mundo”. (FOUCAULT, Michel. Nascimento da
Biopolítica. Op. cit. p. 7)
61
Não quero dizer com isso que essa arte de governar os homens, de que procurei
indicar a vocês alguns traços ao falar da prática pastoral, tornou-se, por um processo
de simples transporte, transferência, translado, um dos atributos do poder soberano.
Não é que o rei se tornou pastor, se tornou pastor dos corpos e das vidas, mais ou
menos como o outro pastor, o pastor espiritual, era o pastor das almas e das
sobrevidas. O que veio à luz – é o que procurei lhes mostrar – foi uma arte
absolutamente específica de governar, uma arte que tinha sua própria razão, sua
163
própria racionalidade, sua própria ratio.
Foucault entendeu que a razão de Estado constituía o surgimento de uma nova matriz
de racionalidade no exercício do poder, segundo a qual o soberano devia exercer seu
poder sobre os súditos governando-os de maneira meticulosa, combinando as técnicas
de vigilância policial das condutas humanas ao controle da atividade econômica dos
produtores e comerciantes, visando tornar o Estado forte e competitivo em meio aos
conflitos políticos europeus da época.168
todos esses fenômenos, que são o que são e que têm sua necessidade e sua inteligibilidade próprias, nos
levam ao aparecimento, no pensamento político, da categoria fundamental da força” (FOUCAULT,
Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 396-397)
165
FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonard, 2002. p.223.
166
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit. p. 387.
167
FOUCAULT, Michel. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da Razão Política. Op. cit. p.376.
168
DUARTE, André. Foucault e a governamentalidade: genealogia do liberalismo e do Estado
moderno. In: CASTELO BRANCO, Guilherme; VEIGA-NEGO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia &
política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 58.
63
169
O Tratado de Westfália corresponde a um conjunto de acordos que buscaram acabar com as
hostilidades remanescentes da Guerra dos Trinta Anos e pôr fim ao sonho de reconstituição do Império
Romano pela igreja. Ao reconhecer a existência de uma multiplicidade de Estados soberanos na ordem
internacional, buscou impedir a intervenção de um Estado nos assuntos internos dos demais. De acordo
com Mitchell Dean, este instrumento marca uma importante transformação na ordem internacional, na
medida em que as guerras entre Estado passam a ser declaradas não mais por questões religiosas, mas
políticas. (DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit.. P.110)
170
Foucault esclarece que do fim do século XVII ao fim do século XVIII, a palavra polícia tinha um
sentido absolutamente diferente do que hoje entendemos (FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel.
Segurança, Território, População. Op. cit. p. 420).
64
Este conceito se remete, assim, do século XVII até o fim do século XVIII, à
administração da vida, no nível do indispensável, do útil e do supérfluo; a tudo o que
os homens fazem ou empreendem; e ao domínio de todas as instâncias estatais, desde
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171
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População Op. cit. p.476.
65
sólido e permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo
que pode destruí-lo”172.
A partir de meados do século XVIII, vemos emergir a primeira forma de
governamentalidade moderna: o liberalismo. Essa nova racionalidade política
produziu importantes transformações no seio da razão de Estado típica do século
XVII. Foi no interior deste quadro geral mais amplo que os problemas biopolíticos da
população se desenvolveram e ganharam importância173 . Por liberalismo, Foucault
não compreende uma teoria econômica, uma ideologia política ou um modelo de
sociedade a se representar, mas uma forma de reflexão crítica do governo, “um
princípio e método de racionalização do exercício do governo submetido à regra
interna da economia máxima” 174 ou, ainda, “uma arte de governar que assume o
mercado como teste, como instrumento de inteligibilidade, como verdade e medida da
sociedade”175. Como sintetiza Senellart,
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quer limitar os abusos” 177 . Desta forma, se de um lado podemos afirmar que o
liberalismo é uma versão do biopoder, de outro, ele existe somente na medida em que
se mantém em uma posição de tensão permanente com os imperativos biopolíticos: o
governo da população é tanto a sua condição de possibilidade quanto o objeto central
da crítica que faz à irracionalidade própria do excesso de governo178.
Por isso, se antes o papel fundamental da polícia, enquanto instrumento da
razão de Estado, era fazer crescer a força do Estado e manter, ao mesmo tempo, a
ordem geral, no fim do século XVIII, esse projeto se desmantela face aos problemas
econômicos da população (relativos ao preço, à produção e à circulação das
mercadorias no interior das cidades)179. Com a crítica da economia política ao Estado
de polícia do século XVII e a emergência da arte liberal de governar (como limite
intrínseco à razão de Estado e ao objetivo biopolítico de maximizar a vida da
população), surge uma nova concepção de polícia180: de um lado, desenvolvem-se os
grandes mecanismos de incentivo-regulação que englobam a economia e a gestão da
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tempo de que se governa sempre demais. Neste sentido, a economia política, como
teoria, e o mercado, enquanto realidade e critério de “teste” do governo, constituem
“o lugar de experiência privilegiada onde se pode situar os efeitos do excesso de
governamentalidade e, até mesmo, medi-los”182.
Poderíamos, enfim, reconstituir, de maneira grosseira, as grandes economias
do poder no Ocidente que abalizaram a genealogia desse longo processo de
“governamentalização” do Estado, até o surgimento do liberalismo. Na Baixa Idade
Média, prevaleceu o modelo do Estado de justiça, organizado na lógica territorial
típica da sociedade feudal. Entre os séculos XV e XVI, nasce o Estado administrativo,
derivado da concepção de territorialidade fronteiriça e correspondente a uma
sociedade de disciplinas e regulamentos. Durante os séculos XVI e XVII, emerge o
Estado de governo cuja racionalidade não se define mais pelo critério da
territorialidade, mas pela massa da população controlada pelos dispositivos de
segurança183. E assim, com o desenvolvimento da noção política de população pela
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literatura da razão de Estado, o século XVIII foi marcado pela vitória de saberes e
tecnologias biopolíticas que permitiram a instalação da governamentalidade no seio
do Estado moderno.
2.3.
O Biopoder e o discurso dos direitos humanos
normas voltadas para saúde e higiene, por exemplo. Foi a partir da politização da
vida, da emergência de um modo de sujeição próprio do biopoder (disciplina dos
corpos e biopolítica da população), que o homem se tornou, assim, o principal objeto
e o sujeito universal do conhecimento, transformando a luta política em reivindicação
e afirmação dos direitos do homem, agora não mais limitados à forma clássica da
soberania, mas calculados no âmbito do governo da vida. Em outras palavras, é
possível dizer que as grandes lutas por direitos na modernidade tinham por objetivo
central a vida, ou ainda, que a luta pela vida, no seu sentido natural, biológico e
social, se fez a partir da linguagem dos direitos humanos. De acordo com Foucault,
Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas,
ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito. O “direito” à
vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidade, o “direito”, acima
de todas as opressões ou “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode
ser, esse “direito” não incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica
política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não
184
fazem parte do direito tradicional da soberania.
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184
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: vontade de saber. Op. cit. p. 136.
185
De acordo com Foucault: “(...) mesmo que seja verdade que a razão de Estado formulada,
manifestada como Estado de polícia, encarnada no Estado de polícia, mesmo que essa razão de Estado
tenha objetivos ilimitados, houve uma perpétua tentativa nos séculos XVI e XVII de limitá-la, e essa
limitação, esse princípio, essa razão de limitação da razão de Estado é encontrada na razão jurídica.
Mas, como vocês vêem, trata-se de uma limitação externa. Aliás, os juristas sabem muito bem que a
69
vocês já veem, nos juristas do século XVII e sobretudo do século XVIII, formulada
essa questão a propósito do direito de vida e de morte. Quando os juristas dizem:
quando se contrata, no plano do contrato social, ou seja, quando os indivíduos se
reúnem para constituir um soberano, para delegar a um soberano um poder absoluto
sobre eles, por que o fazem? Eles o fazem porque estão premidos pelo perigo ou pela
necessidade. Eles o fazem, por conseguinte, para proteger a vida. E para poder viver
que constituem um soberano. 188
É portanto toda uma porção da atividade governamental que vai passar assim para um
novo regime de verdade, e esse regime de verdade tem por efeito fundamental
deslocar todas as questões que, precedentemente, a arte de governar podia suscitar.
Essas questões outrora, eram: será que governo efetivamente de acordo com as leis
morais, naturais, divinas, etc.? Era portanto a questão da conformidade
governamental. Depois, passou a ser, nos séculos XVI e XVII, com a razão de
Estado: será que governo bastante bem, com bastante intensidade, com bastante
profundidade, com bastante detalhes para levar o Estado até o ponto estabelecido por
seu dever-ser, para levar o Estado ao seu máximo de força? E agora o problema vai
188
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 287.
71
ser: será que governo bem no limite desse demais e desse pouco demais, entre esse
máximo e esse mínimo que a natureza das coisas fixa para mim, quero dizer, as
189
necessidades intrínsecas às operações de governo?
direito, mas que funcione com base em uma verdade desvendada no interior mesmo
do mercado (o preço).
Neste sentido, a partir de meados do século XVIII e início do século XIX, é a
lógica da utilidade (que procura identificar dentro de quais limites e interesses é útil
governar) e não mais a lógica do direito (que busca definir quais são os direitos
originários que podem ser acionados frente ao poder soberano) que passa a orientar
majoritariamente a ação governamental do Estado moderno. Isto não quer dizer que
essas duas lógicas (a lógica do mercado e a lógica jurídica) sejam incompatíveis,
contraditórias ou excludentes; na prática, encontram-se unidas e conjugadas em
estratégias heterogêneas – os direitos do homem são a todo momento atravessados e
marcados pelo problema da utilidade do governo. Podemos dizer, neste sentido, que o
Estado biopolítico encontra nos direitos do homem, a um só tempo, o seu limite e a
sua razão de existência, reivindicando para si a proteção destes direitos, a tutela da
vida, o cuidado do corpo e a defesa da sociedade. Assim, o que Foucault procura
demonstrar é que, mesmo diante da prevalência da regulação do poder em termos de
utilidade, ao longo da história do liberalismo europeu e da história do poder público
no Ocidente, os direitos do homem e o mercado liberal se encontravam sempre em
uma posição de conexão estratégica.
189
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p.26.
72
Foi na Europa dos séculos XVIII que o cruzamento entre o direito natural
moderno e a governamentalidade liberal, entre o “sistema dos direitos do homem” e o
“sistema da independência dos governados”, no mesmo momento em que se dava a
estatização da vida biológica e emergia o problema político da população, introduziu
as condições de possibilidade para o nascimento de um humanismo político
institucionalizado que deu a primeira forma para o discurso dos direitos humanos tal
como o entendemos hoje e alavancou a produção de estratégias de individualização e
de totalização do poder sobre a vida. E foi, principalmente, no interior dos aparelhos
do Estado liberal que tal política discursiva se desenvolveu. O resgate e a adaptação
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de medidas maciças que visam a “humanidade” como um todo. De outro, faz parte
das disciplinas e de uma rede de micropoderes que agenciam as forças do corpo
individual. Enfim, poderíamos afirmar que devido à própria natureza dos problemas
políticos que o norteiam, desde a sua invenção, o discurso dos direitos humanos
cumpre um certo número de funções no arranjo do poder moderno. E foram essas
funções que o converteram, ao longo da história, em uma espécie de léxico político
indispensável e incontornável ao biopoder, seja em relação às estratégias de
dominação, seja no que se refere às lutas de resistência.
Há, neste sentido, um paradoxo central que perpassa, a todo tempo, a relação
entre o biopoder e os direitos humanos: este discurso serve tanto de instrumento de
resistência e de restrição ao poder estatal quanto de ferramenta para a legitimação do
Estado através de técnicas de individualização/totalização. Ele é tanto um obstáculo
para o governo, quanto um instrumento estratégico e bastante útil à lógica do mercado
(como fica evidente, por exemplo, quando analisamos a história do direito à
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propriedade privada). Não por acaso, os direitos do homem e o discurso libertário das
declarações do século XVIII integram o mesmo processo histórico que marca o
advento e o desenvolvimento do biopoder: a governamentalização do Estado moderno
e desenvolvimento do capitalismo191. De acordo com Foucault,
Artigo 3º: O governo é, ou deverá ser, instituído para o benefício comum, a proteção
do povo, da nação, ou da comunidade; de todas as várias formas e modos de governo
191
JUNIOR, Giacóia. Foucault. In: Em tempo, Marília, vol. 6. Ago. 2004. p. 14.
192
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit.. p.
74
material de forças que jamais cessa. É porque há possibilidade real de resistência que
o poder se exerce. Como explica Adrian Marzi, em artigo intitulado “Una reflexión
sobre los derechos humanos a luz del pensamento de Michel Foucault”194, os direitos
humanos são a condição de possibilidade para o poder moderno, na medida em que
proporcionam o oxigênio necessário para a sua sobrevivência sempre que a relação de
poder está próxima de saturar-se: eles não apenas produzem subjetividade e atividade
política, como possibilitam a dinamização das relações de poder, oferecendo uma
abertura de tempo e de espaço, necessária para o próprio exercício do poder. Assim,
os direitos humanos, enquanto princípio legitimador do biopoder, não deixam de
constituir, ao mesmo tempo, um importante mecanismo de resistência às estratégias
biopolíticas. De acordo com Foucault, a partir da emergência do biopoder, a
resistência se apoia exatamente naquilo sobre o que este tipo de poder investe suas
forças: na vida.
E contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser
vivo. Desde o século passado, as grandes lutas que põem em questão o sistema geral
193
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit.p. 113-122.
194
MARZI, Adrian. Una reflexón dobre los derechos humanos a la luz del pensamento de Michel
Foucault. In: Revista Debats. Institució Alfons el Magnànim. Realidad, espacios, lenguajes. Nº 95,
2006, 4.
76
195
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p. 136.
196
É predominante dentre os autores que estudam essa temática a defesa de que os direitos humanos
são uma invenção da modernidade. Nesse sentido se posicionam a título de exemplo: Costas Douzinas,
no livro “O Fim dos Direitos Humanos”; Lynn Hunt, na obra “A invenção dos Direitos Humanos: uma
história”; Etienne Balibar (BALIBAR, Etienne. On the Politics of human righst. In: Constellations,
V.20, N.1, 2013) Boaventura de Souza Santos, no artigo intitulado “Os direitos humanos na pós-
modernidade”; Noberto Bobbio no livro “A era dos Direitos”.
77
3
O triunfo dos direitos humanos
3.1.
A sociedade disciplinar
197
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p. 44-43.
78
201
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p. 166-167.
202
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p.167.
203
BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. p.15.
204
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Op. cit. p.172.
205
MILLER, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: O panóptico. . Organização
e tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p.82.
80
que, em nome dos ideais iluministas, pregava a “humanização” dos castigos e das
penas ao mesmo tempo em que ampliava o escopo, o grau e a intensidade do aparelho
punitivo. Os direitos humanos foram, a um só tempo, a arma utilizada contra o antigo
regime dos castigos corporais e das máquinas de tortura das velhas sociedades
monárquicas e o argumento de justificação para a proliferação das prisões e demais
instituições disciplinares que buscavam adequar os indivíduos aos novos esquemas de
vida promovidos pelo capitalismo. Neste contexto, as formas pré-modernas de
dominação, fundadas na hierarquia social e na ordem divina, tornaram-se por demais
evidentes, repelentes e antieconômicas para os olhos da razão moderna 211 . Como
explica Foucault, a “humanização” das penas, tradicionalmente atribuída à razão e ao
progresso civilizatório, foram, na realidade, uma consequência das transformações
ocorridas na economia do poder durante a modernidade. Em suas palavras:
209
Um exemplo concreto foi a Lei Chapelier de 14 de junho de 1791, aprovada na França que “proibiu,
sob pena de multa e prisão, todos os operários autônomos ou assalariados se dissessem presidentes ou
síndicos, tomassem decisões na qualidade de autoridades, mantivessem registros, se associassem com
vistas a recusar trabalho ou a só desempenhá-los por determinadas tarifas. Qualquer ajuntamento de
artesões, operários assalariados, autônomos ou jornaleiros seria dispersado pela força”. Esta lei só foi
revogada em 1887, após longa e forte resistência dos trabalhadores franceses. (TRINDADE, José
Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 59)
210
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do College de France (1970-1982). Op. cit. p.40-41.
211
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit. p.111.
82
212
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit.. p. 77.
213
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Op. cit. p. 183.
83
214
Em um sentido foucaultiano, norma e lei não se confundem. Como esclarece Márcio Alves da
Fonseca, “a norma, tal como aparece em Foucault, não deve ser buscada prioritariamente do lado do
direito, da lei, mas do lado da medicina, da psiquiatria. Ao invés de se reportar essencialmente às
categorias do direito, a norma, em Foucault, se reporta ao funcionamento dos organismos. Desse modo,
o campo compreendido pelas ciências da vida é seu local de inserção privilegiado”. (FONSECA,
Márcio A. Entre monstros, onanistas e incorrigíveis. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B;
VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de
Janeiro:DP&A Editora, 2005. P. 243-244.)
215
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.302.
84
216
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Op. cit.. p.82.
217
LAZZARATO, Mauricio. Biopolítica/Bioeconomia. In: PASSOS, Izabel C. Friche (org.). Poder,
normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
p. 47.
218
EWALD, François. Foucault: a Norma e o Direito. Op. cit. p. 86.
85
219
FONSECA, Marcio Alves. Michel Foucault e o Direito. Op. cit. p.185.
220
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. Op. cit. p.135.
86
Como destaca José Damião Trindade, não houve opressor que, nos últimos duzentos
anos, ao menos no Ocidente, não tenha se utilizado da linguagem dos direitos
humanos222.
Neste quadro, o racismo foi, mais do que uma condição de aceitabilidade, o
dispositivo político da morte que prevaleceu com o desenvolvimento do poder
normalizador, estabelecendo o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Sua
função consiste, de um lado, em traçar rupturas no interior da continuidade
homogênea da população através da distinção e da qualificação de certas raças como
superiores ou inferiores. E, de outro, em estabelecer uma relação positiva em que o
extermínio do outro se dá em nome do bem-comum e do interesse geral da população.
Predomina a ideia de que quanto mais as espécies inferiores desaparecerem, quanto
mais os indivíduos anormais forem suprimidos, mais a vida dos indivíduos da espécie
será fortalecida: “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia
e pura”223.
221
Importante destacar que os lucros do comércio de escravos negros compuseram, ao lado da
apropriação violenta das terras comunais, do saque colonial e da pirataria, os principais fatores da
acumulação “primitiva” de capital que posteriormente financiou a eclosão da Revolução Industrial. Em
suma, a escravidão foi o impulso decisivo para o florescimento do capitalismo industrial moderno.
(TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 140)
222
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit.. p. 15
223
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.305.
87
224
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Op. cit. p.308.
225
Útil destacar que, desde o século XIX, a ideia de raça já havia se tornado um conceito corrente,
absorvendo a fundamentação cientificista do positivismo em ascensão. Os estudos de antropologia,
biologia e história, que operavam com tal conceito enquanto ferramenta teórica, ganhavam cada vez
mais respeitabilidade. As teorias racistas eram, assim, teorias científicas justificadoras tanto do
colonialismo quanto da supremacia da burguesia no planeta. O teórico francês Gobineau, considerado o
“pai” do racismo com pretensões científicas, defendia, em seu livro “Ensaio sobre a desigualdade das
raças humanas” (1855), que a raça ariana teria a vocação de dirigir o mundo em função da sua
superioridade biológica. Por sua vez, foi em 1876 que o psiquiatra Cesare Lombroso publicou o livro
“O homem criminoso” no qual dava explicações médicas para a conduta criminosa. A experiência
nazista levou o racismo aos seus extremos. Segundo Hitler, o Estado devia ser concebido como “um
organismo racial e não uma organização econômica (...), resultado da atuação daquelas virtudes que
residem no instinto de conservação da raça e da espécie. Estas são, porém, virtudes heroicas, e nunca
egoísmo mercantil, pois que a conservação da existência de uma espécie pressupõe o sacrifício
voluntário de cada um” (TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op.
cit. p. 174)
88
229
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 87.
230
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit. p. 91.
90
sob o perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se,
paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de
disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz mediação entre
cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do
século XVIII codividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares
à fábrica.231
231
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.44.
232
DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.123.
233
Se o liberalismo assume que o Estado é uma esfera artificial e limitada, o governo liberal constrói a
divisão entre o Estado e o seu exterior como algo necessário para os seus fins. Neste sentido, o social é
um modo de ver, pensar e agir que não é nem interno nem externo ao liberalismo; mas, ao contrário,
que surge com base na crítica da economia liberal. (DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.53,
55)
91
O período que culminou por volta da metade do século foi, portanto, uma época de
insensibilidade sem igual, não só porque a pobreza que rodeava a respeitabilidade da
classe média era tão chocante que o homem rico preferia não vê-la, deixando que
seus horrores provocassem impacto apenas sobre os visitantes estrangeiros (como é o
caso hoje em dia das favelas da índia), mas também porque os pobres, como os
bárbaros do exterior, eram tratados como se não fossem seres humanos. Se seu
destino era o de se tornarem trabalhadores industriais, eles eram simplesmente massa
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que deveria ser modelada pela disciplina através da pura coerção, sendo a draconiana
disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado. (É bastante característico que a
opinião da classe média contemporânea não percebesse qualquer incompatibilidade
entre o princípio de igualdade perante a lei e os códigos trabalhistas deliberadamente
discriminatórios que, como no caso do Código Britânico de Patrões e Empregados, de
1823, puniam os trabalhadores com a prisão por quebra de contrato e os
empregadores com modestas multas, se tanto. Eles deveriam estar constantemente à
beira da indigência, porque, caso contrário, não trabalhariam, sendo inacessíveis às
motivações "humanas". "É no próprio interesse do trabalhador", disseram os
empregadores a Villermé no final da década de 1830, "que ele deve estar sempre
fustigado pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau exemplo, e
sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta".236
234
De acordo com a teoria liberal de Thomas Malthus, por exemplo, a causa da miséria seria resultado
do crescimento não controlado da população, em uma progressão geométrica ao mesmo tempo em que
os meios de subsistência cresciam apenas numa progressão aritmética. A miséria seria causada pela
conduta dos próprios trabalhadores que insistiam em casar cedo e ter muitos filhos, sendo preciso,
então, freios “preventivos” à explosão demográfica. De acordo com José Damião Trindade, apesar da
falta de fundamento desta teoria, ela foi bastante influente na medida em que “se encaixava como mão
e luva nos preconceitos antioperários das classes dominantes” (TRINDADE, José Damião de Lima.
História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 107)
235
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. Op. cit. p. 88.
236
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções 1789-1848. 3ªEd. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p.
220.
92
237
Dentre alguns dos principais acontecimentos destacamos: o aumento do número de sindicatos; as
constantes greves operárias; os impulsos revolucionários que culminaram em 1848 na “Privamera dos
povos”; a Primeira Internacional dos Trabalhadores (1864); e a Comuna de Paris (1871).
238
Já no início do século XX, destacam-se uma série de acontecimentos: a primeira revolução russa de
1905; a Revolução Mexicana (1910) que introduziu expressamente, na constituição de 1917, direitos
civis e políticos a toda a população e incorporou, pela primeira vez, direitos econômicos e sociais além
da limitação da propriedade privada, embora tenha sido posteriormente derrotada pelas forças
conservadoras; a Revolução Russa de 1917 que proclamou em 1918 a “Declaração dos Direitos do
Povo Trabalhador e Explorado” que, como contraponto a Declaração de 1789, introduzia uma visão
bastante diferente sobre os direitos humanos e foi posteriormente incorporada na primeira Constituição
da República Socialista Federativa Soviética da Rússia de 1918; a promulgação da Constituição de
Weimer na Alemanha pós I-GM que buscava afastar qualquer tipo de revolução social mediante
concessões aos trabalhadores (era responsabilidade do Estado o amparo à maternidade, à saúde e
desenvolvimento das famílias e a assistência à juventude, dentre outros); a progressiva incorporação
dos direitos eleitorais femininos nos ordenamentos jurídicos ao menos nos países do Ocidente.
93
239
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Op. cit.. p. 95.
240
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
23ªEd. São Paulo: Edições Loyola, 2012. P. 118.
241
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. 2ªEd. São
Paulo: Cortez, 2001. p. 61.
242
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. P. 119.
94
243
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
64.
244
De acordo com De Giorgi, “nas economias pré-capitalistas, a condição das classes marginais era
definida por fatores antes de tudo políticos, que estabeleciam as margens de exploração da força de
trabalho conforme uma estratificação social baseada em laços de servidão e dependência pessoal das
classes subalternas para com as classes dominantes. Porém, com a afirmação do modo de produção
capitalista, a condição do proletariado se torna uma função principalmente econômica: a condição
material do proletariado é determinada diretamente no interior dos processos de organização e de
divisão do trabalho.” (DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op.
cit. p.40) Neste sentido, no fordismo, “o acesso à cidadania real foi fortemente subordinado à
integração na relação social” (COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da
globalização. Op. cit. p. 74)
95
fundamentais desse modo de produção se resumiam, por um lado, “no alto nível de
autonomia da classe operária [organizada em sindicatos] e, por outro lado, no
simultâneo incremento da composição orgânica do capital e dos ganhos de
produtividade”245.
Esse conjunto de circunstâncias deu ensejo a uma correlação de forças
favorável para a expansão do discurso dos direitos humanos, mais precisamente sob a
forma de demandas por direitos econômico-sociais, até então ignoradas pelos Estados
ocidentais. A crescente organização das reivindicações sociais em conjunto com o
temor do comunismo, fez com que governos social-democratas, nacionalistas,
populistas e mesmo conservadores, promovessem fortes intervenções estatais na
economia a fim de ampliar a presença do Estado em áreas como a saúde, educação,
trabalho, previdência, assistência social, moradia e subsídio alimentar da população.
A lógica da governamentalidade fordista-keynesiana consistia em administrar as
contradições sociais mediante concessões parciais que garantissem a ordem necessária
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245
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
73.
246
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.47.
96
socialmente excluídos (da esfera do trabalho), mas que não ofereciam perigo à ordem,
o aparelho repressivo do Estado voltava-se para as classes perigosas (minorias
étnicas, imigrantes, jovens marginais), que representavam uma ameaça à boa moral
do trabalhador247. Havia, portanto, tanto uma gestão penal quanto social da miséria,
que se complementavam na forma da lei. Enfim, mais uma vez estamos diante de usos
paradoxais do discurso dos direitos humanos: de um lado, este discurso servia de
fundamento para a gestão disciplinar da vida dos indivíduos e da população pelo
Estado providência e, de outro, era utilizado pelos movimentos sociais como forma de
contestação e recusa ao modelo fordista, como foi o caso dos movimentos por direitos
civis em oposição à segregação racial nos EUA, os movimentos pelo fim da guerra no
Vietnã, os movimentos feministas e gays e a primavera de Praga no Leste Europeu. A
este ciclo de lutas contra o fordismo, o capital respondeu, intensa e velozmente, com a
sua reorganização espacial e temporal que buscou englobar novas dimensões do
trabalho para além do chão da fábrica248.
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3.2.
A sociedade de controle
247
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Op. cit. p.51.
248
MENDES, Alexandre. A revolução inconclusa dos direitos humanos: pressupostos para uma nova
concepção de cidadania. In: Lugar Comum, n. 28, p.49-69.
249
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit.. p. 136-137.
97
fordismo foi marcada sobretudo pela queda dos ganhos de produtividade, ou seja, pela
incapacidade da regulação fordista de integrar o conflito trabalhador/capitalista sem
repassar suas tensões para as dinâmicas do preço, o que resultou na desvalorização do
salario real e na queda da demanda efetiva250. Acresce-se a isso, ainda, a crise fiscal e
de legitimação do Estado providência (nem todos os cidadãos eram atingidos
igualmente pelos benefícios do fordismo, o que gerava forte insatisfação em setores
da população que, descriminados em razão de raça, gênero e origem étnica, recebiam
salários menores e não podiam usufruir das “louvadas alegrias do consumo em
massa”); as mudanças tecnológicas e a automação; a internacionalização e a busca por
novos produtos e nichos de mercado; a dispersão geográfica da produção; e as
insatisfações do países periféricos com o processo de modernização exportado pelos
países centrais que prometia desenvolvimento, mas na prática promovia a destruição
das culturas locais e diversas formas de dominação capitalista251. Ao abordar a crise
de 73, Harvey conclui que:
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O mundo capitalista estava sendo afogado pelo excesso de fundos e, com as poucas
áreas produtivas reduzidas para investimento, esse excesso significava uma forte
inflação. A tentativa de frear a inflação ascendente em 1973 expôs muita capacidade
excedente nas economias ocidentais, disparando antes de tudo uma crise mundial nos
mercados imobiliários e severas dificuldades nas instituições financeiras. Somaram-
se a isso os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo para o
Ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973. Isso (1) mudou o custo relativo
dos insumos de energia de maneira dramática, levando todos os segmentos da
economia a buscarem modos de economizar energia através da mudança tecnológica
e organizacional, e (2) levou ao problema da reciclagem dos petrodólares excedentes,
problema que exacerbou a já forte instabilidade dos mercados financeiros
252
mundiais.
250
COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização. Op. cit. p.
79.
251
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 136-137.
252
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 136-137.
253
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 117.
98
acumulação flexível. Há que se destacar, contudo, que esta transição histórica, ainda
em andamento, não indica claramente o surgimento de uma forma inteiramente nova
de acumulação capitalista: trata-se mais de perceber tendências do que de identificar
um modelo de produção definido. Neste sentido, a tese central de Harvey é a de que
“essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação
capitalista, mostram-se mais como transformações da aparência superficial do que
como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-
industrial inteiramente nova”254.
Não temos a pretensão de esgotar essa complexa discussão. O que se revela
importante para os limites deste estudo é observar que, embora a acumulação flexível
mantenha proposições básicas do capitalismo – como a necessidade de uma taxa de
crescimento equilibrada (na medida em que só através do crescimento os lucros
podem ser auferidos e a acumulação sustentada); o imperativo de exploração e
controle do trabalho vivo na produção, essencial para o desenvolvimento capitalista; a
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Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inocação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas
mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre
regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego do
chamado “setor de serviços”, bem como conjunto industriais completamente novos
em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”, Flandres, os
vários vales e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades dos
países recém-industrializados). Ela também envolve um movimento que chamarei de
“compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da
254
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit. p. 7.
255
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Op. cit.. p. 166-170.
99
trabalho, através da qual a antiga classe operária fordista –sujeita, em grande parte, a
um trabalho regulado, constante e estável e organizada na forma de sindicatos – dá
origem a uma nova classe de trabalhadores destituídos dos mais elementares direitos e
submetidos, diante do desespero do “desemprego estrutural”, a qualquer condição
laboral oferecida, seja esta precária, fragmentada ou servil 257 . Diante da grande
quantidade de mão de obra excedente (desempregados ou subempregados) e da
volatilidade do mercado, que exige cada vez mais competição e menores taxas de
lucro, vemos surgir, principalmente nos anos 70 e 80, regimes e contratos de trabalho
258
mais flexíveis (trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado) .
Consequentemente, notou-se um rápido crescimento das economias informais e a
crescente desorganização e instabilidade da classe trabalhadora. Como explica De
Giorgi,
267
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Op. cit. p. 160.
268
DEAN, Mitchell, Governmentality. Op. cit. p.171-174.
104
269
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação. In: CASTELO
BRANCO, Guilherme; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Foucault: filosofia e política. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2011. p. 39.
270
Essa visão dos direitos humanos vem ganhando, cada vez mais adeptos na contemporaneidade. Ela
afirma que os direitos humanos devem servir e ser justificados no limite da sua capacidade prática de
prevenir o sofrimento alheio e a crueldade. De acordo com seus defensores, dentre os quais destacamos
Michael Ignatieff, essa visão minimalista é o máximo que podemos esperar de tais direitos. Cabe
destacarmos a crítica que Wendy Brown desenvolve acerca do pragmatismo minimalista. De acordo
com a autora, o minimalismo prega uma visão apolítica dos direitos humanos, como uma mera defesa
dos mais fracos, dos oprimidos e daqueles “sem poder”, na medida em que tais direitos ganham sua
forma como um discurso moral centrado na dor e no sofrimento, em vez de assumir-se como um
discurso político em busca de uma justiça. (BROWN, Wendy. “The most we can hope for...”: Human
Rights and the Politics of Fatalism. In: The South Atlantic Quaterly, Vol. 103, N.. 2/3, 2004)
271
A passagem escrita por Michael Ignatieff ilustra bem esta nova visão: “Nós precisamos parar de
pensar nos direitos humanos como um trunfo e passar a compreendê-los como a linguagem que cria a
base para a deliberação. Neste argumento, os elementos comumente compartilhados por todos são bem
limitados: não ultrapassam as intuições básicas do que entendemos por dor e humilhação. Mas isso já é
algo. (...) os direitos não são o credo de uma sociedade global, uma religião secular, mas algo muito
mais limitado e ainda assim muito valioso: é o vocabulário compartilhado que constitui o fundamento
inicial para a nossa argumentação e o limite de um mínimo universal do qual diferentes ideias de
humanidade podem se enraizar.” (IGNATIEFF. Michael. Human Right as politics and idolatry. New
Jersey: Princeton University Press, 2001).
105
nas últimas décadas do século XX, extrapolaram (sem, contudo, abandonar) as feições
disciplinares tradicionais do capitalismo industrial e deram luz à era da financerização
do modo de produção social da vida.
A passagem do fordismo para a acumulação flexível não apenas marcou o
triunfo da governamentalidade neoliberal, como também sinalizou a transição de uma
economia disciplinar dos corpos para uma sociedade de controle dos riscos. Como
afirma Deleuze, encontramo-nos em uma crise generalizada de todos os meios de
confinamento, desde a prisão e a fábrica, até a escola e a família: “as sociedades
disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser”272. E, em seu
lugar, vemos emergir “formas ultrarrápidas de controle ao ar livre” 273. Assistimos,
assim, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Hardt,
por sua vez, esclarece que “os muros das instituições estão desmoronando de tal
maneira que suas lógicas disciplinares não se tornam ineficazes mas se encontram,
antes, generalizadas como formas fluidas através de todo o campo social” 274. Assim,
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não queremos dizer que nesta transição as disciplinas tenham chegado ao fim, mas
que, ao contrário, elas se expandiram ainda mais pelo corpo social. O espaço
“estriado” da sociedade moderna, na qual o indivíduo não cessa de passar de um
confinamento disciplinar a outro (da família à escola, da escola à fábrica; da fábrica
ao hospital ou eventualmente à prisão) em um esquema de moldes fixos, dá lugar ao
espaço “liso” da sociedade contemporânea, na qual o controle funciona a todo tempo
e de maneira ininterrupta em um esquema de modulações flexíveis e ondas infinitas.
As alterações que caracterizam a passagem da disciplina para o controle giram em
torno, portanto, da crise das instituições de sequestro. Neste sentido, podemos
destacar pelo menos três mudanças fundamentais que decorreram desta crise.
Em primeiro lugar, no que se refere ao modo de produção econômico, em uma
sociedade de controle, a empresa substitui a fábrica e impõe uma nova forma de se
lidar com o salário, com o trabalhador e com os produtos por meio de um sistema
competitivo, motivacional, guiado pela lógica dos prêmios. Embora a fábrica não
desapareça, é a empresa que adquire centralidade atuando como catalisadora de
inovações voltadas para o mercado, destacando-se, neste sentido, o marketing, a
concepção e o design como elementos diferenciais que não apenas desenvolvem
272
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 220.
273
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit. p. 220.
274
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. In: ALLIEZ, Éric. Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 357.
106
produtos, como criam novos mundos de consumo: “o ciclo inicia-se com a venda de
um mundo pela empresa e pela sua posterior materialização em produtos e em
serviços [pelas fábricas]” 275. Enquanto a fábrica mantinha vínculo territorial com a
localidade em que se situava e se constituía como local de trabalho homogêneo, em
que todos eram contratados por regimes salariais e jornada de trabalho
correspondentes a um determinado nível hierárquico, a empresa rompe com essa
lógica territorializada criando lugares “voláteis” de trabalho, marcado pela
heterogeneidade de funções e regimes trabalhistas (prestadores de serviço,
terceirizados, sócios minoritários) em que a presença física e corporal do indivíduo
torna-se dispensável. Trata-se de uma forma de trabalho que prioriza a alma e o poder
criativo do trabalhador; ou melhor, trata-se daquilo que Negri e Hardt denominam de
trabalho imaterial – indicando, não a substituição do trabalho material, mas uma
transformação da cena contemporânea do trabalho e da produção. Em suas palavras:
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Assim, o que deve reter nossa atenção nesta nova modalidade de trabalho
imaterial não é a possível superação do trabalho material (que já mostrou ser
imprescindível mesmo diante de todo aparato tecnológico), mas precisamente as
formas de controle que introduz no seio das sociedades do biopoder contemporâneo.
Não se trata mais apenas de confinar o trabalhador no interior da fábrica por uma
jornada de tempo definida submetendo seu corpo à vigilância e exercício constante,
mas sobretudo de controlá-lo por meio da precarização e flexibilização do trabalho e
pela total indistinção entre hora de trabalho e de não trabalho, estendendo sua jornada
indefinidamente por todas as dimensões de sua vida. Neste sentido, “o cronômetro é
275
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação. Op. cit. p. 40.
276
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. 2ªEd. Rio
de Janeiro: Record, 2012. p. 100.
107
É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do
século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte,
erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos
meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços
concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é
conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos
de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção,
relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas
complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-
produção. Não compra mais matéria prima e já não vende produtos acabados: compra
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produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e
o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas
para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso, ele é essencialmente
278
dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa.
277
VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidade, neoliberalismo e educação Op. cit. p. 43.
278
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit. p. 223-224.
279
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle Op. cit. p.360.
108
poder contemporâneo. Nas palavras de Hardt, “em sua forma ideal, não há um fora do
mercado mundial: o planeta inteiro é o seu domínio” 280.
Este processo de eliminação do “fora” fica claro através da análise do papel
assumido pela guerra e pelo racismo. De acordo com Negri e Hardt, na sociedade de
controle, a tradicional distinção entre guerra e política fica cada vez mais obscura. A
guerra se converte em uma relação social permanente, em um princípio básico de
organização da sociedade, transformando-se “na matriz geral de todas as relações de
poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de
sangue”281. Trata-se, assim, de uma forma de governo que se destina não somente a
controlar a população, como também a produzir os aspectos da vida social. Em vez de
inimigos específicos e localizáveis (como um determinado Estado-nação ou povo), a
guerra volta-se para inimigos indefinidos e imateriais (guerra contra o terror, guerra
contra as drogas, guerra contra as armas químicas) procurando, em um espaço e
tempo indeterminados, criar e manter uma ordem social propícia à segurança e ao
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280
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle Op. cit. p.362.
281
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Op. cit. p.
34.
282
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império Op. cit. p.
43.
109
de elementos raciais; mas sim que, no mundo contemporâneo, ele aumentou tanto em
extensão quanto em intensidade, através de novas estratégias de controle283. De um
paradigma da exclusão, típico das leis do apartheid sul-africanos ou dos códigos
segregacionistas do sul dos Estados Unidos, passa-se a um paradigma da inclusão
diferencial e da gestão estratégica da alteridade. As diferenciações ontológicas,
pautadas em critérios biológicos imutáveis do ser humano foram substituídas por
critérios culturais, historicamente contingentes: segundo a teoria racista
contemporânea seria inútil, e até mesmo perigoso, permitir ou impor uma mistura de
culturas (servos e croatas, hutus e tutsis, afro-americanos e coreano-americanos).
Nota-se que, na prática, o pluralismo contemporâneo que proclama aceitar todas as
identidades a partir de uma lógica da separação social, não é menos essencialista do
que uma posição racista biológica, chegando, inclusive, a utilizar-se do critério racial
como modo de diferenciação a posteriori enquanto efeito de uma cultura284. Assim,
não se trata mais de afirmar, nas sociedades de controle, a exclusão absoluta do Outro,
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283
HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. Op. cit. p.362.
284
Hardt dá o exemplo de testes de aptidão escolar que detectam que os alunos afro-americanos têm
resultados mais fracos que os asiáticos. A teoria racista contemporânea não afirma, a partir destes
dados, uma inferioridade da raça negra, mas uma diferença cultural, segundo a qual os asiáticos
privilegiariam os estudos em sua cultura. A hierarquia entre as raças, neste sentido, é estabelecida a
posteriori. (HARDT, Michael. A sociedade Mundial de Controle. Op. cit. p.365)
285
De acordo com Deleuze e Guattari, “o racismo europeu como pretensão do homem branco nunca
procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades
primitivas que se apreenderia o estrangeiro como um "outro". O racismo procede por determinação das
variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez
mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado
lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a
alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do ponto de vista do racismo, não
existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo
crime é não o serem. A cisão não passa mais entre um dentro e um fora, mas no interior das cadeias
significantes simultâneas e das escolhas subjetivas sucessivas. O racismo jamais detecta as partículas
do outro, ele propaga as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar (ou que só
se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio). Sua crueldade só se iguala a sua incompetência ou a
sua ingenuidade.” (DELEUZE, Gilles; Guattari Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.Vol.3.
São Paulo: Editora 34, 1999. p.45)
110
demais para a dívida e supérfluos para os parâmetros políticos dos novos arranjos de
vida.
Poderíamos sintetizar, assim, a transição da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle da seguinte maneira: no que se refere ao modo de produção, a
passagem do fordismo para a acumulação flexível; no que se refere a
governamentalidade, a passagem do liberalismo keynesiano para o neoliberalismo; e
no que se refere ao biopoder, a passagem de uma sociedade de confinamento para
uma sociedade de governo a céu aberto. Tal transformação reflete, acima de tudo,
uma nova configuração do capital, que migra de um regime territorializado, orientado
em torno da produção e predominantemente industrial, para um regime
desterritorializado, orientado pelo consumo e cada vez mais dependente do mercado
financeiro. Como resume Deleuze,
É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto
que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida
padrão –, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem
intervir como cifra uma porcentagem de diferentes amostras de moeda. A velha
toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é da
sociedade de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira a serpente, no
regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas relações com
111
outrem. (...) Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de
uma toupeira.286
3.3.
O triunfo
286
DELEUZE, Gilles. Conversações. Op. cit.. p. 222-226.
287
KEELEY, James F. Toward a Foucauldian analysis of International Regimes. In: International
Organization. Vol.44, N. 1 (Winter, 1990), p.83-105.
112
desenvolvimento do capitalismo, mas sim ressaltar que nesta nova ordem global o
capital flui muito além das margens da soberania. A nível de exemplo, no início do
século XXI, das 100 maiores economias do mundo, 51 eram empresas transnacionais
e apenas 49 eram Estados 288 . Assim, não afirmarmos a independência do capital
frente à esfera estatal, mas acreditamos ser preciso reconhecer as mudanças ocorridas
na produção capitalista nas últimas décadas levando em consideração a conjuntura das
relações globais de poder, na medida em foi precisamente neste contexto que os
direitos humanos se transformaram na linguagem política comum. A polivalência
estratégica deste discurso, na esfera local, nacional e globalizada, nunca foi tão
evidente como no momento atual da hegemonia do projeto neoliberal: seja nos
programas políticos dos Estados, nas exigências técnicas das agências internacionais,
nas desculpas públicas das corporações transnacionais ou no funcionamento interno
do mercado das organizações não-governamentais, a linguagem dos direitos humanos
prevalece na política contemporânea.
288
JOSEPH, Sarah. Corporations and Transnational Human Rights Litigation. Hart Publishing, 2004.
Apud: BARRETO, José-Manuel. Decolonial Strategies and Dialogue in the Human Rights Field: A
manifesto. In: Transnational Legal Theory, V.3, 2012. p.1-29
114
289
GOMÉZ, José Maria. Sobre Dilemas, Paradoxos e Perspectivas dos Direitos Humanos na Política
Mundial. Disponível na Internet em: http://www.rsi.cgee.org.br/documentos/271/1.PDF. Acesso em:
01.03.2013.
290
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 59
291
DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire: The political philosophy of cosmopolitanism. Op.
cit..p. 186.
115
os grupos dissidentes que buscavam uma linguagem política própria para denunciar a
violência institucional nos últimos anos da já combalida União Soviética e para os
movimentos populares que lutavam por democracia na ainda militarizada América
Latina. O amadurecimento de organismos internacionais na articulação de redes de
governança (como a ONU, a OEA, por mais que frágeis e pouco eficientes que
possam ser), o surgimento incipiente de um mercado global de organizações não-
governamentais (financiado por corporações transnacionais e pelas embaixadas dos
países centrais) e a articulação transversal de lutas locais em grandes redes políticas
contra o autoritarismo individualizante do estatuto das identidades sociais (como a
antipsiquiatria, o feminismo, o movimento negro e as lutas LGBT), criaram as
condições iniciais para a estabilização dos direitos humanos como a linguagem
comum da resistência: seja para realizar denúncias a órgãos oficiais, seja para
financiar projetos sociais, seja para compor com outros setores políticos. A
politização da vida biologicamente considerada alcançou uma dimensão global e se
tornou o caminho oficial do poder. Tanto nas estratégias de resistência quanto nas
práticas de dominação, a estética e a gramática das lutas assumiram, finalmente, a
forma política do biopoder trajando as vestes dos direitos humanos.
A hegemonia dos direitos humanos consolidou-se, portanto, no processo de
expansão global do biopoder durante a transição da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle. A emergência de um mercado global, a afirmação de uma
116
Por fim, sustentamos que a engenharia discursiva dos direitos humanos tem no
paradoxo o princípio para a polivalência estratégica que viabiliza o seu emprego tanto
como fonte de justificação de um esquema de dominação, quanto como uma bandeira
libertária de insurgência. Os direitos humanos servem como princípio legitimador do
biopoder ao mesmo tempo em que constituem um importante mecanismo de
resistência à violência do biopoder, pois se amparam precisamente naquilo sobre o
que este tipo de poder investe suas energias: no estatuto político da vida
biologicamente considerada em termos normalizadores. A ironia é evidente:
precisamos acreditar no discurso que nos governa para que a nossa “liberação” seja
possível.
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119
5
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