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A INTERPRETAÇÃO

DAS

ESCRITURAS
A. W. PINK

1
CAPÍTULO 01
É fato conhecido que o homem é uma criatura exagerada, e em nenhum outro lugar esse fato é mais
evidente do que na atitude de muitos a respeito do nosso assunto. Apesar de algumas pessoas afirmarem que a
Bíblia foi escrita numa linguagem tão simples que dispensa explicação, muitos têm sido persuadidos pelos
católicos de que o seu conteúdo está muito além do alcance do intelecto humano, que os seus assuntos são tão
profundos e elevados, sua linguagem tão antiquada e ambígua, que o homem comum é inteiramente incapaz de
entendê-la por seus próprios esforços, e por isso é prudente por parte dele submeter o seu julgamento à “santa
mãe igreja”, a qual descaradamente afirma ser a única divinamente autorizada e qualificada a interpretar os
oráculos de Deus.
É dessa forma que o catolicismo sonega a Palavra de Deus dos leigos, e impõe os seus próprios dogmas
e superstições sobre eles. A maior parte dos leigos está inteiramente satisfeita com a situação, porque dessa
forma sentem-se aliviados da obrigação de examinar as Escrituras por si mesmos. Com muitos protestantes a
situação não é muito melhor, porque na maioria dos casos eles são preguiçosos demais para estudar a Bíblia por
si mesmos, e crêem apenas o que ouvem dos púlpitos.
A principal passagem bíblica a que recorrem os católicos na tentativa de apoiar a sua perniciosa
argumentação de que a Bíblia é um livro perigoso (devido a sua suposta obscuridade) para ser colocada nas mãos
do povo comum é 2 Pedro 3.15,16. Nessa passagem o Espírito Santo nos diz que o apóstolo Paulo, de acordo
com a sabedoria que lhe foi dada, tratou de coisas, em suas epístolas, “nas quais há certas coisas difíceis de
entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria
destruição deles”. Mas como Calvino apontou há muito tempo, “Isso não significa que somos proibidos de ler as
epístolas de Paulo pelo fato de conterem algumas coisas difíceis de entender, pelo contrário, isso significa que
elas nos são recomendadas desde que tenhamos uma mente serena e receptiva ao ensino”. Também se deve
notar que esse verso diz “certas coisas” e não “muitas”, e que elas são “difíceis” e não “impossíveis de entender”!
Além disso, a obscuridade não está nelas, mas na depravação da nossa natureza, que resiste às santas
exigências de Deus, e o orgulho do nosso coração que se recusa a buscar iluminação da parte dEle. Os
“ignorantes” aqui não são os analfabetos, mas os que não são ensinados por Deus; e os “instáveis” são os que
não têm convicções firmes, os quais, inconstantes como cataventos, mudam de acordo com qualquer vento de
doutrina que sopra sobre eles.
Por outro lado, algumas almas enganadas seguem o balanço do pêndulo até o outro extremo, negando
que as Escrituras precisam de interpretação. Afirmam que elas foram escritas para pessoas simples, dizendo o
que significam e significando o que dizem. Insistem que a Bíblia tem de ser crida e não explicada. Mas está errado
contrapor essas duas coisas uma contra a outra: ambas são necessárias. Deus não exige uma crença cega de
nossa parte, mas uma fé inteligente, e para isso são necessárias três coisas: ler a Palavra de Deus (ou ouvi-la),
entendê-la, e apropriar-se pessoalmente dela. Não foi ninguém menos do que o próprio Cristo que disse: “quem lê
entenda” (Mateus 24.15) — a mente precisa ser exercitada naquilo que está sendo lido. Além disso, na parábola
do semeador e da semente, nosso SENHOR torna evidente que certa medida de entendimento se faz necessária:
“A todos os que ouvem a palavra do reino e não a compreendem, vem o maligno e arrebata o que lhes foi
semeado no coração. ... Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende” (Mateus
13.19,23). Por isso, não poupemos esforços para alcançar o sentido daquilo que lemos; porque, que uso podemos
fazer daquilo que não compreendemos?
Outros declaram que o único intérprete de que precisam, o único que pode fazer isso é o Espírito Santo.
Eles citam o seguinte texto: “E vós possuís unção que vem do Santo e todos tendes conhecimento. ... a unção que
dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1 Jo. 2.20,27). Dizer
que não preciso de ninguém além do Espírito Santo para me ensinar pode parecer honrá-lO, mas será que é
assim? Assim como toda e qualquer outra declaração humana, também essa tem de ser testada, porque não se
deve tomar nada como líquido e certo quando se trata de coisas espirituais. Nossa resposta é que a afirmação
acima não honra o Espírito Santo, uma vez que forçosamente faz com que Cristo tenha feito provisão
desnecessária ao conceder “pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho
do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo” (Efésios 4.11,12). Temos sempre de manter em mente que é
bem pequena a diferença entre confiar em Deus e tentar a Deus, entre fé e presunção (Mateus 4.6,7). Nem
devemos esquecer qual é o método normal de Deus suprir as necessidades das Suas criaturas — indiretamente e
não diretamente, através de causas secundárias e por meio de agentes humanos. Isso está ligado tanto à esfera
espiritual como à natural. Foi do agrado de Deus suprir o Seu povo com professores talentosos, e, em vez de
orgulhosamente desconsiderá-los, deveríamos (ao mesmo tempo em que examinamos o ensino deles — Atos
17.11) receber com gratidão toda e qualquer ajuda que puderem nos fornecer.
Longe de nós escrever qualquer coisa que acabe desencorajando o jovem crente de confessar e
reconhecer a sua dependência de Deus, e sua necessidade de constantemente voltar-se a Ele em busca de
sabedoria do alto, especialmente quando estiver lendo ou meditando a Sua santa Palavra. Contudo, temos de
lembrar que o Altíssimo não Se prende a nenhuma forma particular de responder nossas orações.
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Algumas vezes é do Seu agrado iluminar nosso entendimento direta e imediatamente, mas com mais
freqüência Ele o faz por meio da instrumentalidade de outros. Dessa forma Ele não só nos guarda do orgulho, mas
dá honra a Sua própria instituição, porque Ele designou e capacitou homens que “pastoreiem o rebanho” (1 Pedro
5.2), “guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus” e cuja fé somos instruídos a imitar (Hebreus 13.7). É
verdade que, por um lado, Deus tenha escrito na Sua Palavra que o viajante, mesmo um louco, não errará o
caminho (Isaías 35.8); contudo, por outro lado, existem “mistérios” e “profundezas” (1 Coríntios 2.10); e ao mesmo
tempo que existe “leite” para os bebês, também existe “alimento sólido”, que é próprio somente aos que já são
maduros (Hebreus 5.13,14).
Passando agora do geral ao particular, vamos provar que existe uma real necessidade de interpretação.
Primeiro, a fim de explicar aparentes contradições. Por exemplo compare Gênesis 22.1,2: “E aconteceu, depois
destas coisas, que tentou Deus a Abraão e disse-lhe: ... Toma agora o teu filho, ... e oferece-o ali em holocausto
...” com Tiago 1.13: “...Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta”. Esses versículos
parecem uma flagrante contradição, contudo o crente sabe que não é esse o caso, ainda que não saiba explicar o
que está acontecendo. É por isso que o significado desses versículos precisa ser esclarecido. E isso não é difícil
de fazer. É evidente que a palavra “tentar” não é usada com o mesmo sentido em ambas as passagens. A palavra
“tentar” tem um significado primário e um secundário. Primariamente, significa fazer uma experiência, provar,
testar. Secundariamente, significa seduzir, incitar para o mal. Sem sombra de dúvida, o termo é usado em Gênesis
22.1 no sentido primário, porque mesmo que Deus não tenha interferido até o último momento, Abraão não
cometeu pecado ao sacrificar Isaque, uma vez que foi Deus que ordenou que o fizesse.
Quando lemos que Deus tentou Abraão nessa ocasião, não devemos entender que Deus o incitou para o
mal, como Satanás o faz, mas devemos entender que Ele testou a lealdade do patriarca, suprindo-lhe uma
oportunidade de comprovar o seu temor de Deus, sua fé nEle, seu amor a Ele. Quando Satanás tenta, ele nos
apresenta uma sedução com o objetivo de provocar nossa queda; mas quando Deus nos tenta ou testa, Ele tem
como objetivo nosso bem-estar. Toda prova é, assim, uma tentação, porque serve para manifestar aquilo que está
no coração — quer seja santo ou impuro. Cristo foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem
pecado” (Hebreus 4.15). A sua tentação foi real, contudo não houve conflito dentro dEle (como acontece conosco)
entre o bem e o mal — a Sua santidade inerente repeliu as ímpias sugestões de Satanás como água repele fogo.
2
Devemos considerar como motivo de grande alegria quando “cairmos em várias tentações ” ou “várias provas”,
uma vez que são meios de mortificar nossos apetites, testam nossa obediência, são oportunidades de provar a
suficiência da graça de Deus. É evidente que não somos exortados a nos regozijar nas instigações para o pecado!
Outro caso: “O SENHOR está longe dos perversos” (Provérbios 15.29), contudo em Atos 17.27 somos
informados que Deus “não está longe de cada um de nós” — palavras essas dirigidas a uma audiência pagã!
Essas duas afirmações parecem contraditórias; sim, a não ser que sejam interpretadas como elas de fato são.
Temos, então, de averiguar em que sentido Deus está “longe” dos perversos — isso é o que queremos dizer com
“interpretação”. Temos de traçar uma distinção entre a presença poderosa e providencial de Deus e a Sua
presença aprovadora. Quanto à Sua essência espiritual ou onipresença, Deus está sempre próximo de todas as
Suas criaturas (porque Ele “enche os céus e a terra” — Jeremias 23.24) sustentando-lhes a existência,
preservando-lhes a alma com vida (Salmo 64.9), concedendo-lhes as misericórdias do Seu cuidado. Mas, visto que
os perversos estão longe de Deus em suas afeições (Salmo 73.27), dizendo no coração: “Retira-te de nós! Não
desejamos conhecer os teus caminhos” (Jó 21.14), a graciosa presença de Deus está longe deles: Ele não Se
manifesta a eles, não tem comunhão com eles, não lhes ouve as orações (“os soberbos, ele os conhece de longe”
— Salmo 138.6), não os socorre quando eles têm necessidade de socorro, e ainda lhes haverá de dizer: “Apartai-
vos de mim, malditos” (Mateus 25.41). Quanto aos justos, Deus está graciosamente perto deles: Salmo 34.18;
145.18.
Outro exemplo: “Se eu testifico a respeito de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro” (Jo. 5.31)
— “Posto que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro” (Jo. 8.14). Este é outro par de textos
contraditórios! Contudo não há conflito entre eles quando corretamente interpretados. Em João. 5.17-31, Cristo
estava declarando a Sua igualdade com o Pai, realçada sete vezes: primeiro, quanto ao trabalho, depois quanto à
vontade. O verso 19 diz que Ele não podia fazer nada que fosse contrário ao Pai, uma vez que eles estavam em
perfeita harmonia (veja o versículo 30). De forma semelhante, Ele não podia dar testemunho de Si mesmo
independentemente do Pai, porque isso seria um ato de insubordinação. Em vez disso, o Seu próprio testemunho
estava em perfeito acordo com isto: o próprio Pai (v. 37) e as Escrituras (v. 39) davam testemunho da Sua plena
divindade. Mas em João. 8.13,14 Cristo estava contestando diretamente os fariseus, que afirmavam que o Seu
testemunho era falso. Isso Ele negou enfaticamente, e apelou novamente ao testemunho do Pai (v. 18). Novo
caso: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10.30) — “o Pai é maior do que eu” (Jo. 14.28). No primeiro, Cristo estava
falando de Si mesmo de acordo com a Sua essência; no último, referia-Se ao Seu caráter de mediador ou posição
oficial.

2 Tiago 1.2, versão RC: “Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes {ou vos forem enviadas várias provas} em várias tentações”. A
versão RA já traz esse mesmo texto de forma bem clara: “Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações”.

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Em segundo lugar, a interpretação se faz necessária para nos guardar de sermos enganados pelo mero
som das palavras. Há muitas pessoas que formaram idéias erradas da linguagem usada em textos bíblicos pelo
simples fato de não terem entendido o seu significado. Muitas pessoas consideram incorreto atribuir a uma palavra
um significado diferente daquele que parece ser o seu sentido óbvio; contudo devemos nos acautelar contra isso
tomando como exemplo o caso daqueles que teimosamente se apegam às palavras de Cristo — “isto (o pão sem
fermento) é o meu corpo” — recusando-se a reconhecer que isso forçosamente tem de significar “isto representa
meu corpo” — da mesma forma que “os sete candeeiros são [isto é, simbolizam] as sete igrejas” (Apocalipse 1.20).
O erro do universalismo, baseado em termos indefinidos a que se dá sentido ilimitado, também deve servir de
alerta. O arminianismo também erra nesse mesmo sentido. A expressão “todo homem” de Hebreus 2.9 não inclui
Caim, faraó e Judas, da mesma forma que “todo homem”, “cada um”, “todos os homens” e “todos” (expressões
encontradas em Lucas 16.16; Romanos 12.3; 1 Coríntios 4.5 e 1 Timóteo 2.4,6) também não devem ser
entendidas com o significado de “todos sem exceção”, como também não devem ser entendidas nesse sentido nas
3
passagens seguintes: Lc. 3.15; Jo. 3.26; At. 22.15.
4
“Noé foi um homem justo e perfeito nas suas gerações” (Gênesis 6.9 ). Também a respeito de Jó foi dito
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que ele era “perfeito e reto ” (1.1). Quantos já não se deixaram enganar pelo som dessas palavras. Quantos falsos
conceitos já não se formaram em conseqüência disso! Aqueles que crêem naquilo que chamam de “segunda
bênção” ou “inteira santificação” consideram que passagens assim confirmam suas afirmações de que a perfeição
sem pecado pode ser alcançada nesta vida. Contudo, um erro desses é inteiramente indesculpável, pois aquilo
que aparece registrado logo depois a respeito desses homens mostra claramente que eles estavam longe de
estarem livres de defeitos morais: um se embebedando, o outro amaldiçoando o dia do próprio nascimento. A
palavra “perfeito” nessas passagens e em outras similares significa “honesto, sincero”, usada em contraste com
hipocrisia. “...falamos sabedoria entre os perfeitos” (1 Coríntios 2.6). Aqui, e também em Filipenses 3.15, a palavra
significa “maduro” — compare com “adultos” em Hebreus 5.14 — para fazer distinção entre imaturo, infantil.
“Embriagarei os seus príncipes, os seus sábios, os seus governadores, os seus vice- reis e os seus
valentes; dormirão sono eterno e não acordarão, diz o Rei, cujo nome é SENHOR dos Exércitos” (Jeremias 51.57).
Esse texto é citado pelos materialistas, que acreditam na aniquilação da alma dos maus. Não precisamos nos
deter por muito tempo aqui, uma vez que a linguagem é claramente figurativa. Deus estava para executar
julgamento sobre o orgulho de Babilônia, e é fato histórico que essa poderosa cidade foi capturada no momento
em que o rei e a corte se encontravam num estupor provocado por bebedeira; foram mortos nesse estado, de
forma que nunca mais despertaram nesta terra. Que não se pode entender o “sono eterno” de forma literal e
absoluto fica evidente de outras passagens que expressamente anunciam a ressurreição dos maus — Daniel 12.2;
Jo. 5.29.
“Não viu iniqüidade em Israel, nem contemplou maldade em Jacó” (Números 23.21). Quantas vezes essas
palavras têm sido consideradas de forma absoluta, sem prestar atenção ao contexto! Elas fazem parte das
palavras que Balaão dirigiu a Balaque, quando explicava por que não podia amaldiçoar a Israel, para que este
fosse exterminado pelos midianitas. Essa linguagem não significa que Israel se encontrava num estado sem
pecado, mas que até aquele ponto eles estavam livres de toda rebelião declarada e apostasia contra Jeová. Eles
não tinham se tornado culpados de nenhuma ofensa terrível como a idolatria. Eles tinham se portado de tal modo
que era-lhes imprópria qualquer maldição ou desqualificação. Mas mais tarde o SENHOR de fato viu “perversidade”
em Israel, e comissionou a Babilônia para executar o Seu julgamento sobre eles (Isaías 10). É impróprio aplicar
essa afirmação relativa de forma absoluta à Igreja, porque Deus “vê iniquidade” nos Seus filhos, como fica
comprovado pela Sua vara corretiva; embora Ele não mais lhes impute condenação.
Em terceiro lugar, a interpretação se faz necessária para inserir alguma palavra explicativa em algumas
passagens bíblicas. Por exemplo, em Habacuque 1.13: “Tu que és de olhos puros demais para contemplares [com
aprovação] o mal, e que não podes olhar [complacentemente] para a perversidade”. Alguns termos esclarecedores
como esses são necessários, de outra forma faríamos esses textos contradizer o seguinte texto: “Os olhos do
SENHOR estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons” (Provérbios 15.3). Deus nunca contempla o mal
complacentemente, mas Ele lhe dá o pago. Outro caso: “Pois quem jamais resistiu à sua vontade [secreta ou
decretiva]?” (Romanos 9.19); “nem fez segundo a sua vontade [revelada ou preceptiva]” (Lucas 12.47) — Se não
forem feitas essas distinções, a Escritura mesma estaria se contradizendo. Repare também: “Bem- aventurados os
que [de acordo com o Evangelho, isto é, com genuíno desejo e esforço] guardam as suas prescrições” (Salmo
119.2) — visto que ninguém o faz segundo o exato rigor da Sua lei.

3 ..." todos o seguiam" Todos seguiam a Cristo? "Então, saíam a ter com ele Jerusalém e toda a Judeia". Foi toda a Judeia ou toda a Jerusalém
batizada no Jordão? "Filhinhos, vós sois de Deus". "O mundo inteiro jaz no Maligno". O mundo inteiro aqui significa todos? As palavras
"mundo" e "todo" são usadas em vários sentidos na Escritura, e raramente a palavra "todos" significa todas as pessoas, tomadas
individualmente. As palavras são geralmente usadas para significar que Cristo redimiu alguns de todas as classes—alguns judeus, alguns
gentios, alguns ricos, alguns pobres, e não restringiu sua redenção a judeus ou gentios ...( C.H. Spurgeon de um sermão sobre a Redenção
Particular) — Extraído da Bíblia On-Line 3.0 da Sociedade Bíblica do Brasil, Bíblia eletrônica.
4 Versão da TB.
5
Na versão inglesa King James, usada pelo Autor. Também a versão Reina-Valera (espanhol).

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Em terceiro lugar, a interpretação se faz necessária para inserir alguma palavra explicativa em algumas
passagens bíblicas. Por exemplo, em Habacuque 1.13: “Tu que és de olhos puros demais para contemplares [com
aprovação] o mal, e que não podes olhar [complacentemente] para a perversidade”. Alguns termos esclarecedores
como esses são necessários, de outra forma faríamos esses textos contradizer o seguinte texto: “Os olhos do
SENHOR estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons” (Provérbios 15.3). Deus nunca contempla o mal
complacentemente, mas Ele lhe dá o pago. Outro caso: “Pois quem jamais resistiu à sua vontade [secreta ou
decretiva]?” (Romanos 9.19); “nem fez segundo a sua vontade [revelada ou preceptiva]” (Lucas 12.47) — Se não
forem feitas essas distinções, a Escritura mesma estaria se contradizendo. Repare também: “Bem- aventurados os
que [de acordo com o Evangelho, isto é, com genuíno desejo e esforço] guardam as suas prescrições” (Salmo
119.2) — visto que ninguém o faz segundo o exato rigor da Sua lei.
Como exemplo final da necessidade de interpretação, tomemos um versículo muito simples e conhecido:
“Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre” (Hebreus 13.8). Será que o texto “significa o que
diz”? Com certeza, dirá o leitor, e o escritor concorda de todo o coração. Mas você tem certeza de que entende o
significado do que está sendo dito? Será que Cristo não experimentou nenhuma mudança desde os dias em que
veio em carne? Será que hoje Ele é exatamente igual ao que era ontem? Será que Ele ainda sente fome, sede e
cansaço físicos? Será que Ele ainda permanece em “forma de servo”, num estado de humilhação, como “homem
de dores”? Obviamente se faz necessária a interpretação aqui, porque deve haver um sentido em que Ele é ainda
“o mesmo”. Ele não mudou em Sua essência como Pessoa, no exercício do seu trabalho de mediador, no Seu
relacionamento e na Sua atitude para com a Sua igreja — amando-os com amor eterno. Mas Ele mudou quanto a
Sua humanidade, porque Ele foi glorificado; e quanto à posição que Ele agora ocupa (Mateus 28.18; Atos 2.36).
Dessa forma, os versículos mais conhecidos, e os mais simples deles exigem exame cuidadoso e meditação
reverente, a fim de chegarmos ao significado do que dizem.

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CAPÍTULO 02
No capítulo anterior, tentamos mostrar a necessidade da interpretação, como ela nos possibilita a certeza
do entendimento do que significa cada sentença da Santa Escritura. Aquilo que Deus nos disse é de inestimável
importância e valor, contudo qual é o proveito que podemos usufruir disso a não ser que o seu significado seja claro
para nós? O Espírito Santo nos tem dado mais do que uma pista a esse respeito, ao nos explicar o significado de
certas palavras. Por exemplo, no primeiro capítulo do Novo Testamento, somos informados a respeito de Cristo que
7
“ele será chamado pelo nome de EMANUEL. (EMANUEL traduzido é: Deus conosco)” (Mateus 1.23). Também em
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João. 1.41: “Achamos o Messias (que, traduzido , é o Cristo)”. E em Marcos 15.22: “E levaram-no ao lugar do
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Gólgota, que se traduz por lugar da Caveira”. Também em Hebreus 7.1,2: “este Melquisedeque, ... primeiramente
é, por interpretação, rei de justiça e depois também rei de Salém, que é rei de paz”. Essas expressões tornam claro
que é essencial entendermos o sentido de cada palavra usada nas Escrituras. A Palavra de Deus é formada de
palavras, contudo elas nada nos comunicam enquanto permanecem incompreensíveis. Por essa razão, certificar-
nos do exato entendimento daquilo que lemos deve ser a nossa primeira preocupação.
Antes de apresentar algumas regras para observar, e os princípios que se devem usar na interpretação da
Escritura, queremos apresentar várias coisas que obrigatoriamente precisam estar presentes no próprio intérprete.
Boas ferramentas são de fato indispensáveis para um bom trabalho, mas as melhores delas são de pouco proveito
nas mãos de alguém desqualificado para usá-las. Os métodos de estudo bíblico têm importância meramente
relativa; enquanto o espírito em que se estudam as Escrituras é crucial. Não é nem preciso argumentar para provar
que um livro espiritual exige um leitor de mente espiritual, uma vez que “o homem natural não compreende as
coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1 Coríntios 2.14). A Palavra de Deus é uma revelação de coisas da maior importância e que
dizem respeito ao nosso bem-estar eterno, e ela exige acolhida integral e de coração. Exige-se algo mais do que
um simples treinamento intelectual: o coração tem de estar certo, tanto quanto a cabeça. É somente onde existe
honestidade de alma e espiritualidade de coração que haverá clareza de visão para perceber a Verdade; apenas
então a mente será capaz de discernir o pleno significado do que estiver sendo lido, e entender não apenas o mero
significado das palavras, mas também os sentimentos que elas devem transmitir, e uma adequada reação de nossa
parte.
Queremos repetir aqui aquilo que, vinte anos atrás, escrevemos em nossos Estudos nas Escrituras. “Há
fortes razões para crer que muita leitura bíblica e muito estudo bíblico nos últimos anos não tem gerado proveito
espiritual aos envolvidos nessa leitura e nesse estudo. Sim, e vamos além: tememos muito que em muitos casos
isso tudo tem se mostrado uma maldição em vez de ser uma bênção. Palavras duras essas, bem o reconhecemos,
mas não são mais duras do que o caso exige. Os dons de Deus podem ser usados de forma incorreta e também se
pode abusar das misericórdias dEle. É fácil comprovar que isso está ocorrendo: basta ver a evidência dos frutos
produzidos. Até mesmo o homem natural pode (e frequentemente o faz) encarar o estudo das Escrituras com o
mesmo entusiasmo e satisfação com que encara o estudo de alguma ciência. Onde isso ocorre, há um aumento de
conhecimento, e também de orgulho. À semelhança do químico ocupado em interessantes experiências, aquele
que pesquisa intelectualmente a Palavra muito se alegra quando faz alguma nova descoberta, e contudo a alegria
desse último não é mais espiritual do que a do químico. Assim também, da mesma forma que o sucesso do
químico em geral aumenta o seu senso de importância e o leva a olhar para baixo, para aqueles mais ignorantes do
que ele, assim infelizmente é o caso daqueles que se dedicam à investigação dos números na Bíblia, a tipologia, a
profecia...”
Uma vez que a imaginação do homem, à semelhança de todas as suas outras faculdades morais, está
infiltrada e depravada pelo pecado, as idéias que ela sugere, mesmo quando medita nos oráculos divinos, são
propensas ao erro e são corruptas. Faz parte de nossa fraqueza pecaminosa o sermos incapazes de interpretar
corretamente a Palavra de Deus por nós mesmos; mas é parte do gracioso ofício do Espírito Santo guiar os crentes
à verdade, capacitando-os dessa forma a compreender as Escrituras. Essa é uma operação inconfundível e
especial do Espírito na mente do povo de Deus, por meio da qual Ele lhes comunica sabedoria e luz espirituais, e
que é essencial para discernir de forma correta a mente de Deus na Sua Palavra, e para apreender as coisas
celestiais que ali se encontram. “Uma operação inconfundível” foi o que dissemos, querendo dizer algo ab extra ou
mais alto ou acima da Sua operação inicial de ressuscitar; visto que, embora seja uma verdade bendita que, na
regeneração, Ele “nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro” (1 Jo. 5.20), contudo precisamos
de mais “para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1 Coríntios 2.12). Isso fica evidente no
caso dos apóstolos, porque embora tivessem convivido com Cristo e estivessem em comunhão com Ele ao longo
de três anos, somos informados que, ao final desse tempo todo, Ele “lhes abriu o entendimento para
compreenderem as Escrituras” (Lucas 24.45).

7 Versão RC. Em inglês, na versão King James, lê-se assim: “Emanuel, que, INTERPRETADO, significa Deus conosco”.
8 Idem à nota anterior.
9
Idem à nota anterior.
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Isso que acabamos de mencionar deve gerar no cristão uma profunda consciência da necessidade de um
santo cuidado na leitura da Palavra, sob pena de sofrer sério dano! Isso deve humilhá-lo diante do Autor das
Escrituras, levando-o a perceber sua completa dependência dEle! Se o novo nascimento fosse suficiente para
capacitar o crente a entender as coisas de Deus, jamais o apóstolo teria suplicado a Deus em favor dos santos
colossenses: “que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento
espiritual” (1.9), nem teria ele dito a seu filho na fé: “o SENHOR te dará compreensão em todas as coisas” (2
Timóteo 2.7). Não existe idéia mais tola nem perniciosa do que a suposição de que os mistérios do Evangelhos
estejam ao alcance da razão humana, e que podem ser conhecidos com real proveito e por experiência sem a
eficaz ajuda do bendito Espírito da Verdade. Não é que Ele nos instrua de alguma outra forma que não seja por
meio e através da razão e do entendimento (de outra forma seríamos reduzidos a criaturas irracionais), mas o fato
é que Ele tem de iluminar nossa mente, elevar e dirigir nossos pensamentos, despertar nossa afeição, mover nossa
vontade, e assim capacitar nosso entendimento, a fim de compreendermos as coisas espirituais.
Também é fato que o ensino pessoal do Espírito Santo ao cristão de nenhuma forma o dispensa nem o
torna independente de um zeloso e cuidadoso uso do ministério do púlpito, porque esse é um importante meio
através do qual Deus edifica o Seu povo. Há um apropriado meio termo entre a atitude do etíope que, ao ser
perguntado: “Compreendes o que vens lendo?”, respondeu: “Como poderei entender, se alguém não me explicar?”
(Atos 8.30,31), e o uso indevido de “não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1 Jo. 2.27) — entre uma
servil dependência de instrumentos humanos e uma soberba independência daqueles a quem Cristo chamou e
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capacitou para alimentar as Suas ovelhas. “Não é para descansar na compreensão, no cuidado e na fé que eles
têm da verdade, nem ser resoluto na autoridade que eles têm; os pastores não foram apontados por Deus para
terem ‘domínio sobre a vossa fé’, mas para serem ‘cooperadores de vossa alegria’ (2 Coríntios 1.24). E é disso que
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depende a nossa utilidade diante da grande promessa que ‘seremos todos ensinados por Deus’ — isso não
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acontece, a não ser que nós aprendamos dEle as coisas que Ele revelou na Sua Palavra” (John Owen).
“Todos os teus filhos serão ensinados do SENHOR” (Isaías 54.13, cfe. Jo. 6.45). Essa é uma das grandes
marcas características de um regenerado. Há multidões de religiosos não-regenerados que são bem hábeis na
letra das Escrituras, inteiramente familiarizados com a história e com as doutrinas do Cristianismo, mas o
conhecimento deles veio apenas de agentes humanos — os pais, os professores de Escola Bíblica Dominical, ou
através da própria leitura. Dezenas de milhares de pessoas que se dizem crentes, mas que estão destituídas da
genuína graça de Deus, possuem considerável conhecimento intelectual das coisas espirituais, conhecimento
correto, límpido; contudo não são divinamente ensinados, fato esse que fica evidente pela ausência dos frutos que
sempre acompanham esse ensino. Da mesma forma, há um grande número de pregadores que detestam os erros
do Modernismo e sinceramente lutam em favor da Fé. Foram ensinados em escolas bíblicas ou foram treinados em
seminários teológicos, contudo é de temer que sejam totalmente estranhos à obra sobrenatural da graça em suas
almas, e que o conhecimento da verdade que eles têm é puramente teórico, não é acompanhado de nenhuma
unção celestial, nenhum poder salvador, nem de efeitos transformadores. Por meio de diligente empenho e esforço
pessoal, pode-se conseguir uma grande quantidade de informação bíblica, e tornar-se um hábil expositor da
Palavra; mas não se pode obter dessa forma um conhecimento que influencie o coração e que o purifique.
Ninguém a não ser o Espírito da Verdade pode imprimir a lei de Deus em meu coração, estampando a Sua imagem
na minha alma, e santificar-me por meio da Verdade.
Temos aqui, então, o primeiro e o mais importante requisito para entender e interpretar as Escrituras,
ou seja, UMA MENTE ILUMINADA PELO ESPÍRITO SANTO. Essa necessidade é fundamental e absoluta. Somos
informados a respeito dos judeus: “Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles” (2
Coríntios 3.15). Ainda que o Velho Testamento seja grandemente venerado e diligentemente estudado pelos
“ortodoxos”, eles, contudo, não percebem o seu sentido espiritual. E esse é também o caso dos gentios. Há um véu
de inimizade, de má vontade sobre o coração do homem decaído, uma vez que “o pendor da carne é inimizade
contra Deus” (Romanos 8.7). Há um véu de ignorância cobrindo a mente. Da mesma forma que uma criança pode
soletrar as letras e aprender a pronunciar palavras cujo sentido ela não entende, assim podemos descobrir o
significado literal ou gramatical desta Palavra e contudo não ter conhecimento espiritual dela, e dessa forma
pertencer à geração daqueles de quem se diz “Ouvireis com os ouvidos e de nenhum modo entendereis; vereis
com os olhos e de nenhum modo percebereis” (Mateus 13.14). Há um véu de preconceito sobre as afeições.
“Nosso coração está obscurecido com fortes sentimentos mundanos, e por isso não consegue avaliar claramente a
verdade para aplicá-la” (Manton). Tudo aquilo que entra em conflito com os interesses naturais e exige a negação
de si mesmo é mal recebido. Há um véu de orgulho que, de forma eficaz, impede que nos vejamos a nós mesmos
no espelho da Palavra.

10 Os responsáveis por pastorear o rebanho.


11 A dos responsáveis por pastorear o rebanho.
12 Os responsáveis por pastorear o rebanho.

7
Contudo esse véu não é removido completamente do coração quando somos regenerados, por isso a
nossa visão ainda é muito imperfeita e é pequena a nossa capacidade de receber a Verdade com benefício
espiritual. Na sua primeira epístola à igreja de Corinto, o apóstolo disse: “Se alguém julga saber alguma coisa, com
efeito, não aprendeu ainda como convém saber” (8.2). É sinal de grande graça quando o cristão chega a perceber
esse fato. Por todo o tempo em que ele permanece neste mundo mau, e continua nele o princípio corrupto da
carne, o crente precisa ser dirigido e ensinado pelo Espírito. Vemos isso evidenciado no caso de Davi, pois ao
mesmo tempo que o vemos declarar “Compreendo mais do que todos os meus mestres” (Salmo 119.99), nós o
encontramos orando a Deus: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei. ... Ensina-
me, SENHOR, o caminho dos teus decretos... Dá-me entendimento...” (Salmo 119.18,33,34). Repare que o salmista
não se queixa da obscuridade da lei de Deus, mas entende que a falha está em si mesmo. Ele nem mesmo pede
novas revelações (por meio de sonhos ou visões); em vez disso pede uma visão mais clara daquilo que já havia
sido revelado. É típico daqueles que foram mais bem ensinados e há mais tempo, que estejam sempre mais
prontos a sentar-se aos pés de Cristo e aprender dEle (Lucas 10.39).
É importante notar que o verbo, no Salmo 119.18, literalmente significa “destapar, desvendar meus olhos”,
o que confirma a nossa frase inicial do parágrafo anterior. A Palavra de Deus é uma luz espiritual de forma objetiva,
imparcial, mas para discerni-la corretamente é necessário haver visão ou luz de forma subjetiva, uma vez que é
somente por Sua luz e na Sua luz que “vemos a luz” (Salmo 36.9). A Bíblia é, aqui, chamada de “lei de Deus”
porque está revestida com a autoridade divina, revelando as ordens da Sua vontade. Ela não contém uma série de
bons conselhos, que estamos livres para aceitar ou não a nosso bel-prazer, mas sim imperiosos decretos que só
podemos rejeitar por nossa conta e risco. Nessa Palavra encontramos “maravilhas” que não conseguimos alcançar
pelo mero uso da razão. São as riquezas da sabedoria divina, que estão muito além do alcance do intelecto
humano. O crente anela perceber ou discernir claramente essas “maravilhas”, embora seja totalmente incapaz de
fazê-lo sem a assistência de Deus. Por isso, ele ora que Deus lhe desvende os olhos para que as perceba com
bom proveito, ou as apreenda com fé e obediência — isto é, para que as entenda de forma prática e experimental
no caminho da obediência.
“Eis que Deus exalta [eleva a alma acima do meramente natural] com a sua força;quem ensina como
13
ele?” (Jó 36.22). Ninguém; quando Ele instrui, Ele o faz eficazmente. “Assim diz o SENHOR, o teu Redentor, o
Santo de Israel: Eu sou o SENHOR, o teu Deus, que te ensina o que é útil e te guia pelo caminho em que deves
andar” (Isaías 48.17): é nisso que consiste o “ensino” de Deus — ele produz uma conduta piedosa. Não é um mero
incremento de nosso estoque mental, mas é levar a alma a uma atividade santa. A luz que Ele comunica aquece o
coração, incendeia as afeições. Assim, longe de inchar o seu recipiente, como faz o conhecimento natural, ela
humilha. Ela nos revela a nossa ignorância e estupidez, mostra-nos nossa pecaminosidade e indignidade, e faz o
crente ver a sua própria pequenez. O ensino do Espírito também nos concede clareza para ver a completa
inutilidade das coisas que são altamente valorizadas pelos não-regenerados, mostrando-nos a transitoriedade e a
comparativa falta de valor das honras terrenas, das riquezas e da fama, levando-nos a segurar com mão leve todas
as coisas temporais. O conhecimento concedido por Deus é transformador, fazendo-nos abandonar pesos que
14
atrapalham, renunciando desejos ímpios e mundanos, e viver sensata, justa e piedosamente no presente mundo .
Ao contemplarmos a glória do SENHOR, “somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como
pelo SENHOR, o Espírito” (2 Coríntios 3.18).
A própria característica do ensino de Deus revela a tremenda necessidade que temos dele. Em grande
parte, esse ensino é a superação da nossa antipatia natural contra as coisas de Deus e a nossa hostilidade contra
elas. Por natureza, amamos o pecado e odiamos a santidade (Jo. 3.19), e isso precisa ser vencido de forma eficaz
pelo poder do Espírito, antes que desejemos o genuíno leite da Palavra — repare o que tem de ser abandonado
antes que possamos receber com mansidão a Palavra em nós implantada (Tiago 1.21; 1 Pedro 2.1); embora isso
seja nossa responsabilidade, é somente Ele que pode nos capacitar a fazê-lo. Por natureza, somos orgulhosos e
independentes, auto-suficientes e confiantes em nossa própria capacidade. Esse espírito maligno se agarra ao
cristão até o final da sua peregrinação, e somente o Espírito de Deus pode operar nele a humildade e a mansidão
necessárias para que ele se coloque como criança diante da Palavra. O amor à honra e ao louvor dos homens é
outra afeição corrupta da alma, um obstáculo instransponível para a admissão da verdade (Jo. 5.44, 12.43), que
precisa ser removido de nós. A feroz e persistente oposição feita por Satanás para impedir nossa apreensão da
Palavra (Mateus 13.19; 2 Coríntios 4.4) é poderosa demais para resistirmos com nossa própria força; ninguém
menos do que o SENHOR pode nos libertar das suas sugestões malignas e trazer à luz as suas mentiras e os seus
raciocínios enganosos.
Em segundo lugar, é preciso UM ESPÍRITO IMPARCIAL, se queremos discernir e apreender o verdadeiro
ensino da Escritura Sagrada. Não há nada que anuvie tanto a nossa capacidade de julgar do que opinião pré-
concebida — não há pior cego do que aquele que não quer ver. Em particular, esse é o caso de todo aquele que se
achega à Bíblia com o propósito de encontrar passagens que comprovem “nossas doutrinas”.

13 Versão RC.
14
Tito 2.12.

8
Um coração honesto é a primeira qualidade que o SENHOR atribuiu aos ouvintes da boa terra (Lucas 8.15),
e onde isso é encontrado, estamos não apenas dispostos, mas desejosos de ter corrigidas as nossas próprias
opiniões. Não é possível fazer nenhum avanço em nossa apreensão espiritual da verdade enquanto não
estivermos prontos a submeter nossas idéias e sentimentos ao ensino da Palavra de Deus. Nem oração nem
estudo são proveitosos para a alma, enquanto nos aferramos a nossas opiniões pré-concebidas e perspectivas
prediletas, em vez de estarmos prontos a abandonar todas as crenças que não são claramente ensinadas nas
Escrituras. Não há nada que Deus odeie mais do que a insinceridade, e nos tornamos culpados disso se, ao
mesmo tempo que pedimos que Ele nos instrua, recusamos abandonar aquilo que está errado. Uma sede pela
própria verdade, com uma sincera determinação de moldar todo nosso pensamento e direcionar a nossa prática
conforme a verdade — é indispensável se quisermos ser espiritualmente instruídos.
Em terceiro lugar, UMA MENTE HUMILDE. “Esta é uma eterna e inalterável lei instituída por Deus —
aquele que deseja conhecer a Sua mente e vontade, conforme revelada nas Escrituras, precisa ser humilde e
modesto, deve renunciar toda confiança e certeza em si mesmo. O conhecimento de um homem orgulhoso é o
trono de Satanás na sua mente. Supor que pessoas dominadas pelo orgulho, presunção e auto-confiançapodem
entender a mente de Deus de forma apropriada é rejeitar as Escrituras, e inumeráveis testemunhos que apontam
exatamente o contrário” (Owen). O SENHOR Jesus declarou que os mistérios celestiais são ocultos dos sábios e
prudentes, mas revelados aos pequeninos (Mateus 11.25). Aqueles que se julgam competentes, e são sábios aos
próprios olhos, permanecem espiritualmente ignorantes e sem iluminação. Não importa a quantidade de
conhecimento que os homens acumulem por seu esforço e por suas habilidades naturais, isso não representa
nada diante da glória de Deus, nem produz ganho de valor eterno nenhum para as suas almas, pois o Espírito Se
recusa a instruir os altivos. “Deus resiste aos soberbos” (Tiago 4.6) — “Ele Se opõe ao soberbo, Ele Se equipa, por
assim dizer, com toda a Sua força para opor-se ao seu progresso. Que expressão terrível! Se Deus simplesmente
nos desamparar, deixando-nos por conta própria, já nos tornamos inteiramente ignorantes e pura escuridão; assim,
o que não será o terrível caso daqueles contra quem Ele Se mostra em pé de guerra?” (John Newton). Mas,
bendito seja o Seu nome, Ele “dá graça aos humildes” — aqueles que têm uma atitude como a de uma criança.
Em quarto lugar, UM CORAÇÃO QUE ORA. Uma vez que a Bíblia é diferente de todos os outros livros,
ela exige dos seus leitores algo que nenhum outro livro exige. Aquilo que um homem escreve, outro homem pode
dominar por completo; mas somente Aquele que inspirou a Palavra é competente para interpretá-la para nós. É
exatamente nesse ponto que muitos tropeçam. Eles se aproximam da Bíblia da mesma forma que o fariam com
outro livro qualquer, dependendo de atenção concentrada e confiando numa diligente leitura para compreender o
seu conteúdo. Antes de mais nada, temos de dobrar nossos joelhos e suplicar a Deus que nos conceda luz:
“Inclina-me o coração aos teus testemunhos ... ensina-me para que aprenda os teus mandamentos ...
Firma os meus passos na tua palavra” (Salmo 119.36,73,133). Não é possível fazernenhum progresso em
nossa apreensão da verdade enquanto não percebemos nossa profunda e constante necessidade de ter os olhos
ungidos por Deus. “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente”
(Tiago 1.5). É porque fazem uso dessa promessa que muito cristão agricultor e simples donas de casa são
ensinados pelo Espírito, ao passo que eruditos que não recorrem à oração desconhecem os segredos do SENHOR.
Não apenas temos de orar “o que não vejo, ensina- mo tu”15, mas precisamos rogar que Deus escreva a Sua
Palavra em nosso coração.
Em quinto lugar, UMA INTENÇÃO SANTA. Muitos se enganam nesse assunto, confundindo uma ânsia
por adquirir conhecimento bíblico com o amor à própria verdade. Curiosidade para descobrir o que a Bíblia diz é
tudo o que move algumas pessoas a lê-la. Outros são movidos por um senso de vergonha por não serem capazes
de descobrir o que ela ensina. Já outros são movidos pelo desejo de familiarizar-se com o seu conteúdo, de forma
que possam ter argumentos nalguma discussão sobre a Bíblia. Se nada melhor do que um mero desejo de
conhecer bem os seus detalhes nos move a ler a Bíblia, é mais do que provável que o jardim da nossa alma se
manterá estéril. Devemos examinar com honestidade o nosso motivo inspirador. Estou examinando as Escrituras
com o objetivo de conhecer melhor o seu Autor e a Sua vontade para mim? O propósito dominante que me move é
crescer na graça e no conhecimento do SENHOR? É que eu descubra mais clara e plenamente como devo ordenar
os detalhes da minha vida, de forma que agrade e honre mais a Ele? É que eu possa ser conduzido a um andar
mais chegado a Deus e ao gozo de comunhão mais contínua com Ele? Nada menos que isso é alvo digno: que eu
possa ser conformado e transformado pelo seu santo ensino.
Neste capítulo, lidamos apenas com o lado elementar do nosso assunto, contudo ele é de importância
fundamental, e são poucos que a ele prestam atenção. Mesmo nos prósperos anos dos Puritanos, Owen se
queixava: “são muito poucos aqueles que diligentemente, humildemente, e cuidadosamente se empenham em
aprender a verdade da voz de Deus nas Escrituras, ou procuram crescer em instrução nos mistérios do Evangelho
pelos únicos meios pelos quais essa sabedoria pode ser adquirida. É de admirar, portanto, se a maioria dos
homens vagueia após as suas próprias vãs imaginações ou dos outros?” Que não aconteça isso com quem estiver
lendo este capítulo.

15
Jó 34.32.

9
CAPÍTULO 03
O capítulo anterior tratou de algumas das qualificações mais elementares (embora essenciais) que
obrigatoriamente têm de caracterizar qualquer pessoa que deseje penetrar o significado espiritual das Sagradas
Escrituras. Expusemos o assunto de forma que servisse a todo o povo de Deus em geral. Neste capítulo, no
entanto, nos propusemos a tratar das coisas que dizem mais respeito àqueles que Deus chamou para pregar e
ensinar a Sua Palavra: aqueles cujo tempo todo e todas as energias estão devotados à procura do bem-estar das
almas, e para equipar-se melhor para essa tão grande, solene e importante obra. A sua principal incumbência é
proclamar a verdade de Deus, exemplificando e recomendando a sua mensagem por meio de diligente esforço
para praticar o que pregam, apresentando aos seus ouvintes um modelo pessoal de piedade prática. Uma vez que
é a Verdade que eles pregam, não devem medir esforços para que nenhum erro se misture na pregação, de forma
que seja o genuíno leite da Palavra que eles distribuam. Pregar o erro em lugar da verdade não somente é grave
desonra para Deus e Sua Palavra, mas desencaminha e envenena a mente dos ouvintes ou leitores.
A tarefa do pregador é a mais honrosa e a mais solene de todas, a mais privilegiada e ao mesmo tempo a
que envolve maior responsabilidade. Ele declara ser um servo do SENHOR Jesus Cristo, um mensageiro enviado
pelo Altíssimo. Representar mal o seu Mestre, pregar qualquer outro Evangelho diferente do dEle, falsificar a
mensagem que Deus confiou sob sua responsabilidade, é o maior dos pecados, o qual faz descer sobre ele o
anátema do céu (Gálatas 1.8), e será visitado pelo mais severo castigo que alguém possa imaginar. As Escrituras
declaram abertamente que a medida mais pesada da ira de Deus se destina aos pregadores infiéis (Mateus 23.14;
Judas 13). Por isso, a seguinte advertência: “não vos torneis, muitos de vós, mestres, sabendo que havemos de
receber maior juízo” (Tiago 3.1) se não agirmos com fidelidade. Todo ministro do Evangelho, que se diz chamado
por Deus, terá de prestar contas da sua administração perante Aquele que o chamou para alimentar as Suas
ovelhas (Hebreus 13.17), e responderá pelas almas que lhe foram confiadas para cuidar. Se ele falhar em avisar o
ímpio com toda a diligência, e o ímpio morrer em sua iniquidade, Deus declara: “o seu sangue da tua mão o
requererei” (Ezequiel 3.18).
Dessa forma, a principal e a mais constante obrigação do pregador é ajustar-se à seguinte ordem:
“Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a
palavra da verdade” (2 Timóteo 2.15). Em toda a Escritura Sagrada, não há exortação endereçada aos pregadores
que seja de importância maior do que essa, e poucas se igualam a ela. Sem dúvida essa é a razão por que
Satanás se empenha tanto na tentativa de obscurecer as suas duas primeiras cláusulas pela artimanha de colocar
uma nuvem de poeira sobre a última. A palavra grega traduzida aqui como “procura” significa “aplica-te”: não
poupe esforços, mas faça disso — agradar o seu Mestre — a sua suprema preocupação e o seu constante
esforço. Não procure os sorrisos e as bajulações dos vermes da terra, mas trabalhe pela aprovação do SENHOR.
Isso tem de vir antes de tudo: senão será vã qualquer atenção que se dê à segunda coisa mencionada. Subordine
todos os outros alvos ao esforço de você ser aprovado diante de Deus — seu próprio coração e caráter, sua
maneira de agir e seu andar diante dEle, ordenando todos os seus caminhos de acordo com a Sua vontade
revelada. De que valem o seu “serviço”, o seu ministério — se Ele estiver descontente com você?
“Um obreiro que não tem de que se envergonhar”. Seja consciencioso, diligente,fiel no uso que faz do seu
tempo e dos talentos que Deus lhe confiou. Lembre-se constantemente do seguinte preceito: “Tudo quanto te vier
à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças” (Eclesiastes 9.10) — ponha nisso o seu melhor. Seja diligente e
persistente, não negligente e relaxado. Cada coisa que fizer, tente ver sempre a melhor forma de fazê-lo, não
simplesmente a mais rápida.
A palavra grega traduzida como “obreiro” também pode ser traduzida como “trabalhador”. O ministério não
é lugar para pessoas levianas e preguiçosas, mas para aqueles que estão preparados a se gastar, a ser gastos na
causa de Cristo. O pregador deveria trabalhar mais que o mineiro, e gastar mais horas semanais no estudo do que
um homem de negócios gasta em seu escritório. Um obreiro é o exato oposto do mandrião. Se o pregador quiser
apresentar-se aprovado diante de Deus e ser um obreiro que não tem de que se envergonhar, então terá de
trabalhar enquanto os outros dormem, e deve suar mentalmente.
“Medita estas coisas e nelas sê diligente, para que o teu progresso a todos seja manifesto. Tem cuidado
de ti mesmo e da doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos
teus ouvintes” (1 Timóteo 4.15,16). Essa é outra parte da ordem de Cristo para com aqueles que O servem
publicamente, uma ordem clara e exigente. Ele requer que eles coloquem o coração no trabalho, que dediquem
inteiramente os pensamentos a ele, que se disponham completamente para esse trabalho, que lhe devotem todo o
tempo e toda a força para executá-lo. Eles têm de se abster de toda atividade secular e de todo emprego
mundano, e mostrar toda a diligência na tarefa que lhes foi confiada. As diferentes formas de designar esses
trabalhadores mostram que é uma tarefa árdua.

10
Eles são chamados de “soldados” para denotar o esforço e a fadiga que decorrem de uma correta
execução do seu chamado; “supervisores e sentinelas” para declarar o cuidado e a preocupação que fazem parte
do seu ofício; “pastores e mestres” para indicar os variadas responsabilidades de liderar e nutrir aqueles que estão
debaixo do seu cuidado. Mas em primeiro lugar e acima de tudo eles têm de prestar atenção ao seu próprio
crescimento em graça e piedade, se quiserem ministrar com eficiência aos outros.
Em particular, o ministro tem de preocupar-se com o mandamento “Tem cuidado de ti mesmo” com
respeito ao estudo das Escrituras, lendo-as com devoção para proveito próprio, antes de fazê-lo profissionalmente,
ou seja, procurando sua aplicação e bênção para a sua própria alma antes de procurar material para algum
sermão. Hervey, o santo homem de Deus, o expressou desta forma: “Que sempre nos deixemos influenciar,
quando estudarmos os oráculos da verdade. Estude-os, não como os críticos insensíveis, que se preocupam só
em julgar-lhes o sentido, mas façamo-lo como pessoas profundamente interessadas em tudo que eles contêm.
Façamo-lo como aqueles a quem se dirige em particular cada exortação, e a quem se dirige cada mandamento.
Estudemos como aqueles para quem são as promessas, e a quem pertencem os preciosos privilégios. Quando
formos capacitados dessa forma a entender e a nos apropriar do conteúdo desse inestimável Livro, então
haveremos de provar a doçura e sentiremos o poder das
Escrituras. Então haveremos de provar alegremente na prática que as palavras do nosso divino Mestre
não são apenas sons e sílabas, mas que são espírito e são verdade”. Ninguém pode distribuir continuamente
alimento fresco e saboroso, a não ser que ele mesmo também o esteja constantemente recebendo. Aquilo que ele
vai anunciar aos outros é o que os seus próprios ouvidos ouviram primeiro, seus próprios olhos viram, suas
próprias mãos tocaram (1 Jo. 1.1,2).
Meramente recitar as Escrituras no púlpito não é suficiente — as pessoas podem familiarizar-se com a
letra da Palavra por meio da leitura em casa; a grande necessidade é a exposição e aplicação das Escrituras:
“Paulo, segundo o seu costume, ... , arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo e demonstrando ter sido
necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos” (Atos 17.2,3). “Expor” as Escrituras de maneira
que beneficie os santos é algo que requer mais dos que alguns meses de treinamento nalguma Escola Bíblica, ou
um ano ou dois nalgum Seminário. Ninguém a não ser aqueles que foram pessoalmente ensinados por Deus na
difícil escola da experiência estão qualificados a “expor” a Palavra de forma que a luz de Deus se projete sobre os
problemas espirituais do crente, pois ao mesmo tempo que as Escrituras interpretam a experiência, a experiência
muitas vezes é a melhor intérprete das Escrituras. “O coração do sábio instrui a sua boca, E põe o saber nos seus
16
lábios” (Provérbios 16.23), e esse “saber” não se adquire em nenhuma escola humana. Ninguém aprende o que
é humildade por meio de uma concordância, nem obtém mais fé estudando certas passagens das Escrituras.
Humildade se aprende por meio da dolorosa descoberta da praga que existe em nosso coração, e a fé aumenta à
medida que estreitamos nosso relacionamento com Deus. Nós mesmos temos de receber conforto da parte de
Deus antes que possamos confortar os outros (2 Coríntios 1.4).
“Meramente procurar novas percepções da Verdade, sem esforçar-se por experimentar o seu poder em
nosso coração — essa não é a maneira de aumentar nosso entendimento espiritual das coisas. Somente aquele
que sinceramente submete a mente, a consciência e as afeições ao poder e à direção daquilo que lhe é revelado é
que está em condições de ser ensinado por Deus. É possível que os homens tenham outros objetivos quando
estudam as Escrituras, como por exemplo conseguir algo proveitoso e edificante para os outros. Mas se antes de
tudo eles não tiverem bem assentado em sua mente a resolução de submeterem a própria alma ao poder da
Palavra, eles não estarão se esforçando de forma adequada, nem serão recompensados. E, se em qualquer
ocasião, quando estivermos estudando a Palavra, não tivermos esse alvo expresso em mente, quando, ao
descobrirmos alguma verdade, não nos esforçarmos por adequar o coração a essa verdade, perdemos dessa
forma o principal benefício do nosso estudo” (John Owen). É de temer que muitos pregadores tenham de lamentar
no futuro: “...me puseram por guarda de vinhas; a vinha, porém, que me pertence, não a guardei” (Cantares 1.6) —
como um cozinheiro que prepara refeições para os outros mas ele mesmo morre de fome.
Enquanto medita na Palavra durante as suas devoções, ele também deve estudá-la cuidadosamente
enquanto a lê. Se ele quiser tornar-se hábil em alimentar seu rebanho “com o trigo mais fino” (Salmo 81.16), então
obrigatoriamente tem de estudar diligentemente e a cada dia, e isso por toda a vida. Infelizmente, há muitos
pregadores que abandonam o hábito de estudar tão logo são ordenados! A Bíblia é uma fonte inexaurível de
tesouro espiritual, e quanto mais se abrem as suas riquezas (por meio de diligente escavação),tanto mais
percebemos o quanto permanece por descobrir, e quão pouco nós realmente entendemos daquilo que já
recebemos. “Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como convém saber” (1
Coríntios 8.2).
Não se consegue compreender a Palavra de Deus sem um constante e diligente estudo, sem um
cuidadoso e reverente exame do seu conteúdo. Isso não quer dizer que ela seja misteriosa e obscura. Não, ela é
tão clara e inteligível como alguma coisa pode ser, adequada da melhor maneira possível para dar instrução nas
coisas santas e profundas de que ela trata. Mas ninguém consegue ser instruído mesmo usando os melhores
meios de instrução que existem, se não se esforçar para aprender. O entendimento não é prometido ao negligente
e preguiçoso, mas ao diligente e esforçado, àquele que procura o tesouro espiritual (Provérbios 2.3,5).

16 Versão da Tradução Brasileira.


11
As Escrituras têm de ser examinadas, examinadas diariamente, persistentemente e perseverantemente, se
o ministro deseja tornar-se inteiramente familiar com o todo da revelação de Deus, e se ele quiser apresentar aos
seus ouvintes “um lauto banquete”. Diz-se o seguinte, a respeito do pregador sábio: “ensinou ao povo o
conhecimento; e, atentando e esquadrinhando” até “Procurou o Pregador achar palavras agradáveis” (Eclesiastes
12.9,10); a sua alma estava inteiramente dedicada em descobrir tanto as melhores coisas para ensinar, como a
melhor maneira de fazê-lo.
Nenhum pregador deveria contentar-se em ser menos do que um homem “poderoso nas Escrituras” (Atos
18.24). Mas para alcançar isso, ele tem de subordinar todos os outros interesses. Um antigo escritor o colocou de
forma singular: “O pregador deveria agir com seu tempo como o avarento com seu ouro — deveria poupá-lo
cuidadosamente, e gastá-lo com cautela”. Ele também precisa lembrar-se constantemente de quem é o Livro que
vai estudar, de forma que sempre o maneje com a maior reverência, e possa declarar: “o meu coração teme é a
tua palavra” (Salmo 119.161). Ele precisa aproximar-se dele com mentalidade humilde, porque é somente aos
humildes que Deus “dá maior graça”. Ele precisa sempre aproximar-se do Livro em espírito de oração, suplicando
“o que não vejo, ensina-me tu” (Jó 34.32): a iluminadora graça do Espírito haverá muitas vezes de revelar mistérios
aos mansos e dependentes, mistérios que se mantêm ocultos dos mais estudados e instruídos. Um coração santo
é igualmente indispensável para receber a verdade sobrenatural, porque o entendimento é esclarecido quando o
coração é purificado. Que haja também uma humilde expectativa do auxílio divino, porque também aqui se aplicam
as palavras de Jesus: “seja feito conforme a vossa fé”.
É somente quando presta atenção ao que foi dito no parágrafo anterior que se lançam os fundamentos
para qualquer homem tornar-se um competente expositor. A tarefa que lhe é apresentada é expôr, com clareza e
exatidão, a Palavra de Deus. O seu negócio é inteiramente exegético — descobrir o verdadeiro sentido de cada
passagem com que lidar, quer estejam de acordo com suas próprias opiniões quer não. Da mesma forma que o
tradutor transmite o verdadeiro sentido do hebraico e do grego para o português, assim o intérprete tem de
compreender e comunicar as idéias precisas que a linguagem bíblica pretendia transmitir. Nas palavras do
renomado Bengel, “Um expositor deveria ser como alguém que abre uma vertente: ele não coloca água ali; o seu
objetivo é fazer com que a água flua, sem desvios, sem obstruções, sem poluição”. Em outras palavras, ele não
deve tomar a menor liberdade com o texto sagrado, nem deve lhe dar um sentido que não lhe seja legítimo; nem
deve modificar a sua autoridade, nem sobrepor a ela qualquer coisa que seja dele mesmo, mas procurar emitir o
seu verdadeiro significado.
Concordar com o que acabamos de dizer exige da parte do intérprete uma aproximação imparcial, um
coração honesto, e um espírito fiel. “Nada deveria ser extraído do texto senão aquilo que é permitido pela
exposição clara e gramatical da linguagem” (P. Fairbaim). É fácil concordar com isso, mas muitas vezes é difícil
colocá-lo em prática. Evitar aquilo que condena o pregador, uma predisposição mental a determinada doutrina, o
desejo de agradar os ouvintes — não são poucos os que têm sido influenciados por isso para esquivar-se do claro
sentido de certas passagens, impingindo-lhes significados completamente diferentes do que realmente significam.
Lutero disse: “Não devemos fazer a Palavra de Deus significar o que nós queremos. Não devemos subjugar a ela,
mas permitir que ela nos subjugue a nós, e conceder-lhe o respeito de ser melhor do que nós poderíamos torná-
la”. Qualquer coisa diferente é altamente condenável. É sempre necessário tomar muito cuidado para não
expormos a nossa própria mente em vez da mente de Deus. Não há nada mais censurável do que alguém dizer
“Assim diz o SENHOR” quando está meramente expressando os seus próprios pensamentos. Contudo, quem
nunca fez isso, mesmo que inconscientemente?
Se a lei exige que o farmacêutico siga exatamente a prescrição médica, se os oficiais militares têm de
transmitir ao pé da letra as ordens dos seus comandantes ou então sofrer severas penalidades, quanto mais é
responsável por ater-se estritamente ao livro texto aquele que lida com as coisas eternas e divinas! A
responsabilidade do intérprete é imitar aqueles que são descritos em Neemias 8.8, de quem se diz o seguinte:
“Leram no livro, na Lei de Deus, claramente, dando explicações, de maneira que entendessem o que se lia”. A
referência é aos que tinham retornado à Palestina, vindos da Babilônia. Enquanto estavam no cativeiro, aos
poucos pararam de usar o hebraico como a língua falada. O aramaico tomou-lhe o lugar. Portanto, havia uma real
necessidade de explicar as palavras hebraicas, língua em que a Lei estava escrita (cf. Neemias 13.23,24).
Contudo o registro desse incidente sugere que isso é de importância permanente, e contém uma mensagem para
nós. Pela boa providência de Deus, há pouca necessidade hoje de que o pregador explique o hebraico e o grego,
uma vez que possuímos uma tradução fiel dessas línguas para nossa própria língua materna — embora
ocasionalmente, raramente, ele tenha de fazer essas explicações. Mas a sua tarefa principal é “dar explicações” da
Bíblia em português e levar os seus ouvintes a “entender” o seu conteúdo. A sua responsabilidade é ater-se
estritamente à seguinte ordem: “fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? — diz o
SENHOR” (Jeremias 23.28).

12
CAPÍTULO 04
O pregador deve ser, acima de tudo mais, um homem do Livro, inteiramente versado no conteúdo da
Palavra de Deus, alguém que seja hábil para tirar do seu tesouro “coisas novas e velhas” (Mt 13.52). A Bíblia tem
de ser o seu único livro texto, e das suas águas vivas ele haverá de beber profundamente todos os dias.
Pessoalmente, nada usamos além da Versão Autorizada inglesa (King James) e da Concordância de Young, com
alguma ocasional referência à Bíblia Grega Interlinear e à Versão Revisada Americana. Os comentários nós só
consultamos depois de havermos feito nós mesmos um exaustivo estudo de uma passagem. Encorajamos com
veemência os jovens pregadores a tomarem muito cuidado para não permitir que os comentários se tornem um
substituto, em lugar de um suplemento, para a sua própria minuciosa e exaustiva pesquisa e meditação das
Sagradas Escrituras. Da mesma forma que existe um saudável meio-termo entre pensar que a Bíblia é tão clara e
simples que qualquer um pode entendê-la ou tão difícil e profunda que seria perda de tempo alguém de
capacidade média lê-la, assim também existe um equilíbrio entre tornar-se essencialmente dependete do trabalho
alheio e um simples eco das suas idéias, e depreciar por completo a luz e o auxílio que se podem obter dos
servos de Deus do passado.
É aos pés de Deus que o pregador tem de se colocar, aprender dEle o significado da Sua Palavra,
aguardando que Ele lhe abra os seus mistérios, confiando nEle para a mensagem que deve transmitir. Em
nenhum outro lugar, a não ser nas Escrituras ele pode certificar-se do que agrada e do que desagrada ao
SENHOR. É somente ali que se abrem os segredos da sabedoria divina, a respeito da qual nem filósofo nem
cientista sabem nada. Como apontou corretamente o grande puritano holandês: “Qualquer coisa que não provém
das Sagradas Escrituras, qualquer coisa que não for construída tendo-as como fundamento, qualquer coisa que
não estiver em perfeito acordo com elas, embora possa recomendar-se pela aparência da mais sublime
sabedoria, ou repousar sobre a tradição antiga e ser aprovada por homens estudados, ou tenha o peso de
argumentos plausíveis — é vão, fútil — em suma, uma mentira. ‘À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta
maneira, jamais verão a alva’. Que o teólogo tenha sua satisfação nestes oráculos sagrados: que se exercite
neles dia e noite, medite neles, extraia deles toda a sua sabedoria. Que limite todos os seus pensamentos a eles,
que não adote nada na religião que não encontre expresso ali” (Herman Witsius).
1. Ao chegar agora aos princípios que haverão de guiar o estudante nos seus esforços para interpretar a
Palavra de Deus, apresentamos em primeiro lugar e acima de tudo a necessidade de reconhecer a inter-relação e
a mútua dependência do Antigo e do Novo Testamento. Fazemos isso porque errar neste ponto tem como
resultado futuro inevitável uma séria distorção de entendimento e perversão das Escrituras. Em vez de nos
propomos a refutar a moderna heresia do “dispensacionalismo”, o que faremos aqui é tratar nosso assunto
positivamente. Depois de termos por longo tempo e cuidadosamente comparado os escritos da escola
dispensacionalista com os escritos das Institutas de Calvino, e depois de reparar no tipo de fruto gerado por
aquela e por estes, chegamos à convicção de que aquele eminente reformador foi de longe mais profundamente
ensinado pelo Espírito Santo do que esses que alegam ter recebido “nova luz sobre a Palavra de Deus” um século
17
atrás . Por essa razão, encorajamos a todo pregador que possui As Institutas de Calvino que examine com a
máxima atenção os dois capítulos seguintes: “A Semelhança do Velho e do Novo Testamento” e “A Diferença
entre os Dois Testamentos”.
A semelhança dos dois Testamentos é muito maior e mais vital do que a diferença que existe entre eles.
O mesmo Deus triúno Se revela em ambos, o mesmo caminho de salvação é apresentado, o mesmo padrão de
santidade é exibido, os mesmos destinos eternos dos justos e dos ímpios são apresentados. O Novo tem todas as
suas raízes no Velho, de forma que muito do que se encontra num seria ininteligível à parte do outro.Não somente
é indispensável o conhecimento da história dos patriarcas e das instituições do judaísmo para entender muitos
dos detalhes nos Evangelhos e nas Epístolas, mas os termos usados e as idéias são idênticas. Supor que a
mensagem proclamada pelo SENHOR Jesus era algo novo ou radicalmente diferente daquilo que Deus havia
comunicado anteriormente é totalmente sem fundamento, como se vê nesta Sua enfática advertência: “Não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.17) — para justificar
e confirmar, para livrá-los de perversões humanas e deturpações, e executar aquilo que eles demandavam e
anunciavam. Quando expôs a “lei áurea”, Cristo disse: “porque esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7.12), mostrando
que de forma alguma havia qualquer antagonismo entre o ensino dEle e o dos mensageiros divinos que O
precederam.
Com toda certeza não havia conflito entre o testemunho dos apóstolos e o do seu Mestre, porque Ele
abertamente os convocou para que ensinassem os seus convertidos “a guardar todas as coisas que vos tenho
ordenado [não o que haverei de ordenar!]” (Mt 28.20). Nem o sistema doutrinário de Paulo difere de forma alguma
daquele enunciado no Velho Testamento.

17
O Autor escreveu este livro na primeira metade do século XX.

13
Bem no início da primeira epístola que leva o seu nome, ele é minucioso ao nos informar que o Evangelho
para o qual Deus o havia separado não era outro senão “o evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora,
prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras” (Rm 1.1,2); e quando ele afirma que a
justiça de Deus agora se manifestou sem lei, ele tomou o cuidado de acrescentar: “testemunhada pela lei e pelos
profetas” (3.21).
Quando ele defende o seu ensino sobre a justificação pela fé sem as obras da lei, ele o faz apelando ao
caso de Abraão e ao testemunho de Davi (Rm 4). Quando ele admoesta os coríntios contra a acomodação num
falso senso de segurança por causa dos dons espirituais que lhes haviam sido concedidos, ele os lembra dos
israelitas que tinham sido altamente favorecidos por Deus, contudo que isso não os preservou do Seu desagrado
quando pecaram, mesmo que “Todos eles comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte
espiritual” (1 Co 10.1-5). E quando ilustra uma importante verdade prática, ele cita a história dos dois filhos de
Abraão (Gl 4.22-31).
Em muitos aspectos, o Novo Testamento é uma continuação e um complemento do Velho. A diferença
entre a antiga e a nova aliança a que se refere a Carta aos Hebreus é uma diferença relativa e não absoluta. O
contraste na verdade não é entre dois opostos, mas entre uma gradação do nível inferior para o superior — um é
a preparação para o outro. Enquanto uns erram em judaizar o cristianismo, outros nutrem uma concepção por
demais carnal do judaísmo, deixando de perceber os elementos espirituais que existem nele, e que, por meio do
judaísmo, Deus estava colocando em andamento as bênçãos da aliança eterna para com aqueles que Ele havia
escolhido em Cristo de forma tão verdadeira como Ele o faz agora; sim, que Ele faz isso desde Abel em diante. É
com justiça, então, que Calvino cesura a loucura dos nossos dispensacionalistas modernos quando reprova os
seu precursores, que apareceram nos seus dias (de Calvino), dizendo: “Ora, pode haver maior absurdo do que
Abraão ser o pai de todos os fiéis, e não ocupar nem mesmo o lugar inferior entre eles? Mas ele não pode ser
excluído dentre os fiéis, e mesmo da mais honrosa posição sem que se destrua a Igreja”.
Quer seja Cristo que esteja falando, quer seja um dos Seus apóstolos, em quase cada ponto vital eles
apoiam a sua argumentação ao apelar às Escrituras do Velho Testamento. Em quase cada página do Novo
Testamento encontramos textos do Velho, usados como prova das argumentações ali feitas. Poderíamos fornecer
inúmeros exemplos como prova para demonstrar que tanto as idéias como a linguagem do Antigo produziram
forte impressão no Novo Testamento — mais de seiscentas declarações de um ocorrem no outro. Cada cláusula
do “Magnificat” (Lc 1.46-55) e mesmo na oração da família (Mt 6.9-13) foi extraída do Antigo Testamento. Por
essa razão, cabe ao estudante dar igual atenção a ambas as principais divisões da Bíblia, não somente
familiarizar-se completamente com a segunda, mas esforçar-se para beber profundamente do espírito da primeira,
de forma que esteja preparado para entender a segunda. A não ser que proceda dessa forma, ele se verá
impossibilitado de compreender muito do que se encontra nos Evangelhos e nas Epístolas. Para compreender os
antítipos, não basta apenas conhecer os tipos — se alguém desconhece Êxodo 12, que significado terá para ele a
afirmação de que “Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado” (1 Co 5.7); e, à parte de Levítico 16, quanto poderá
alguém entender aquilo de que se trata em Hebreus 9 e 10? Muitas palavras importantes do Novo Testamento só
se podem definir corretamente se nos reportarmos ao seu uso no Antigo Testamento, como “primogênito”, “remir”,
“propiciação” etc.
A verdade que deve haver uma harmonia fundamental entre o judaísmo e o cristianismo se evidencia no
fato de que o mesmo Deus é o Autor de ambos, e que Ele é imutável em Seus atributos e nos princípios do Seu
governo. O primeiro na verdade se dirigia mais ao homem exterior, atuou sob formas e relações visíveis, e se
referia primariamente a um santuário temporal e a uma herança terrena; apesar disso, eram todos “figura e
sombra das coisas celestes” (Hb 8.5, 10.1). “No Novo Testamento, encontramos uma exibição mais alta da
verdade e das obrigações do que no Velho (embora estreitamente afins), o que envolve tanto as harmonias como
as diferenças das duas alianças. As harmonias estão mais ocultas e dizem respeito aos elementos mais
fundamentais das duas economias; as diferenças são de natureza mais circunstancial e formal” (Firbairn).
Pessoalmente, diríamos que as principais diferenças aparecem no fato de que num temos promessa e predição; e
no outro, apresentação e cumprimento: primeiro os tipos e as sombras (a “erva”), depois a realidade e a
18
substância ou “o grão cheio na espiga” . A dispensação cristã sobrepuja a mosaica numa mais completa e clara
manifestação dos atributos de Deus (1 Jo 2.8), numa mais abundante efusão do Espírito (Jo 7.39; At 2.3), na sua
extensão mais ampla (Mt 28.19,20), e numa mais ampla medida de liberdade (Rm 8.15; Gl 4.2-7).
2. O segundo princípio que o expositor tem de estudar com o maior cuidado é o da citação das Escrituras.
Quando estamos determinando as corretas leis de interpretação, não é pouca a ajuda que se consegue com a
diligente observação da maneira em que é citado o Antigo Testamento no Novo, e o propósito com que isso é
feito. É quase fora de dúvida que o registro que o Espírito Santo fornece da maneira que nosso SENHOR e os
Seus apóstolos compreenderam e aplicaram o Antigo Testamento tinha em mira lançar luz de uma forma geral na
maneira como nós devemos usar o Antigo Testamento, da mesma forma que tinha como propósito fornecer
instrução nos pontos específicos pelos quais se apelou para a citação da Lei e dos Profetas.

14
Quando se examinam com atenção as palavras citadas e o sentido dado a elas no Novo Testamento, não
devemos nos ver apenas livres de um literalismo servil, mas devemos estar mais bem capacitados para perceber
a plenitude das palavras de Deus e a variada aplicação que se pode legitimamente fazer delas. Um campo amplo,
mas geralmente negligenciado, abre-se para a exploração, mas em vez de nos esforçarmos por fazer uma
cuidadosa exposição do que isso significa, simplesmente daremos alguns poucos exemplos.
Em Mateus 8.16, somos informados que em certa ocasião Cristo “curou todos os que estavam doentes” e
depois, sob a orientação do Espírito Santo, o evangelista acrescentou: “para que se cumprisse o que fora dito por
intermédio do profeta Isaías (isto é, em 53.4): Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as
nossas doenças”. Essa forma de usar a profecia messiânica é extremamente esclarecedora, sugerindo que ela
tinha uma significação mais ampla do que fazer expiação pelos pecados do Seu povo, ou seja, durante os dias do
Seu ministério público, Cristo associou-Se com simpatia com a condição dos sofredores, e tomou sobre o Seu
espírito os sofrimentos e as dores daqueles a quem Ele ministrou, que os Seus milagres de cura Lhe custaram
muito no que diz respeito a compaixão e tolerância. Ele Se afligiu pessoalmente com as aflições deles. Cristo
iniciou a Sua obra de mediador (remover o mal que o pecado havia trazido ao mundo) curando as dores físicas
que eram frutos do pecado, e assim fazendo prenunciava a obra maior que estava para realizar na cruz. A
conexão entre uma e outra ficou mais claramente demonstrada quando Ele disse primeiro ao paralítico: “estão
perdoados os teus pecados” e depois: “Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa” (Mt 9.2,6).
Depois, considere como Cristo usou o Antigo Testamento para refutar os materialistas do Seu tempo. Os
saduceus mantinham a crença de que alma e corpo estão ligados de tal forma que, se uma perece, forçosamente
perece também o outro (At 23.8). Eles viam o corpo morrer, e disso concluíam que a alma havia morrido também.
É impressionante contemplar a Sabedoria Encarnada argumentando com eles no próprio território deles. Ele o fez
citando Êxodo 3, onde Jeová disse a Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”.
Mas de que forma essas palavras foram direto ao ponto? O que havia nelas que expusesse o erro dos saduceus?
Nada explícito, pelo contrário muito implícito. Dessas palavras Cristo extraiu a conclusão de que “Deus não é
19
Deus dos mortos, mas dos vivos” (Mt 22.32). Não é que Ele tivesse sido o “Deus” deles, mas Ele ainda o era —
“Eu sou o Deus deles”, então eles ainda estavam vivos. Uma vez que o espírito e a alma deles continuavam vivos,
forçosamente o corpo deles seria ressuscitado no tempo apropriado, porque ser o “Deus” deles lhes garantia que
Ele seria e faria por eles tudo o que um relacionamento desse tipo requer, e não deixaria uma parte da
constituição deles sofrer deterioração. Dessa forma Cristo estabeleceu o importante princípio de interpretação de
20
que podemos extrair qualquer inferência clara e necessária, desde que não vá de encontro a nenhuma outra
declaração específica das Sagradas Escrituras.
Em Romanos 4.11-18, encontramos um singular exemplo de raciocínio apostólico baseado em duas
curtas passagens de Gênesis, onde Deus promete a Abraão que ele será pai de muitas nações (17.5) e que na
sua descendência serão benditas todas as nações da terra (22.18). Uma vez que essas promessas foram dadas
ao patriarca como um simples crente, antes da divina ordem da circuncisão, Paulo extraiu a conclusão lógica que
essas promessas pertencem tanto aos judeus como aos gentios, desde que tenham crido como Abraão creu e
dessa forma lhes seja imputada a justiça de Cristo, para que o benefício dessas promessas diga respeito a todos
que “andam nas pisadas da fé que teve Abraão”. Dessa forma somos claramente instruídos que a “descendência”
da bênção mencionada nessas antigas profecias era essencialmente de natureza espiritual (cfe. Gl 3.7-9; 4.29),
incluindo-se aí todos os membros da família da fé, onde quer que se encontrem. Conforme a pertinente
observação de Stifler, “Não é num senso físico nem num senso espiritual que Abraão é chamado pai: ele é pai
porque é o cabeça do clã da fé, e dessa forma é o seu exemplo típico”. Em Romanos 9.6-13, o apóstolo foi
igualmente claro ao excluir da abrangência daquelas promessas os que são descendentes meramente naturais de
Abraão.
Romanos 10.5-9 nos fornece uma notável ilustração desse princípio, na maneira que o apóstolo “expôs”
Deuteronômio 30.11-14. O seu propósito era demover os judeus da necessidade de prestar obediência à Lei como
algo essencial para a justificação (Rm 10.2,3). Ele fez isso extraindo um argumento dos escritos de Moisés, onde
havia sido feita uma distinção entre a justiça da Lei e a justiça da fé. Os judeus haviam rejeitado Cristo porque Ele
veio até eles não pela via das suas expectativas carnais, e isso os levou a recusar a graça que Ele lhes ofereceu.
Eles pensavam que o Messias estivesse bem longe, quando na verdade Ele estava “perto” deles. Não havia
porque, então, subirem até ao céu, porque Cristo havia descido de lá; nem havia necessidade de descerem aos
abismos, porque Ele de lá havia ressuscitado dos mortos. O apóstolo não estava meramente adaptando a
linguagem de Deuteronômio 30 para os seus propósitos, mas estava mostrando o seu sentido evangélico. Como
disse Manton, “O capítulo inteiro é um sermão sobre o arrependimento evangélico” (Veja os versos 1 e 2). É
evidente que as palavras se referiam ao tempo após a ascensão de Cristo, quando Israel fosse disperso entre as
nações, de forma que as palavras de Moisés então fossem plenamente aplicáveis a essa dispensação do
Evangelho. O sentido dos versos 11-14 é que o conhecimento davontade de Deus será de livre acesso, de forma
que não se pede que ninguém faça algo impossível.

19
Versão Revista e Corrigida.
20
“De encontro a” = contra, no sentido oposto a; “Ao encontro de” = a favor de, em procura de.
15
Em Romanos 10.18, temos mais do que uma simples pista dos caminhos profundos da Palavra de Deus,
e da larga amplitude da sua aplicação. “Mas pergunto: Porventura, não ouviram [o evangelho, embora não lhe
tenham obedecido — v.16]? Sim, por certo: Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos
confins do mundo” — citação feita do Salmo 19.4. A proclamação do Evangelho não ficou restrita (Cl 1.5,6), mas
foi tão geral e livre como os céus proclamam a glória de Deus (Sl 19.1). “A revelação universal de Deus por meio
da natureza foi uma predição providencial da proclamação universal do Evangelho. Se a primeira não fosse
gratuita, mas fundada na natureza de Deus, assim teria de ser a última. A manifestação de Deus por meio da
natureza destina-se a todas as Suas criaturas para as quais ela se destina, como garantia de que haverão de
participar de revelações mais claras e elevadas” (Hengstenberg). A profecia do Antigo Testamento não apenas
anuncia que o Evangelho deve destinar-se ao mundo todo, mas os céus declaram a mesma coisa de forma
mística. Os céus falam não apenas com uma nação, mas a toda a raça humana! Se os homens não crêem, isso
não se deve ao fato de não terem ouvido. Outro exemplo do significado místico de algumas Escrituras nós
encontramos em 1 Coríntios 9.9,10.
Em Gálatas 4.24, a pena inspirada de Paulo nos informa que alguns dos incidentes que ocorreram na
casa de Abraão “são alegorias”, que Hagar e Sara representam “duas alianças”, e que os filhos delas prefiguram a
espécie de adoradores que essas alianças haverão de produzir. Se não fosse essa revelação divina recebida pelo
apóstolo e por ele a nós transmitida, jamais teríamos chegado a conhecer que nesses fatos históricos Deus havia
ocultado um mistério profético, que essas ocorrências familiares prefiguravam profeticamente importantes
negócios vitais futuros, que elas ilustram grandes verdades doutrinárias e exemplificam a diferença de conduta
dos escravos espirituais e dos homens espiritualmente livres. Contudo esse era o caso, como o apóstolo expôs ao
nos revelar o significado oculto desses eventos. Eles eram uma parábola viva: Deus modelou de tal forma os
assuntos da família de Abraão, que eles tipificam coisas de imensa magnitude. Os dois filhos foram ordenados
para prefigurar aqueles que haveriam de nascer do alto e aqueles nascidos segundo a carne — mesmo os
descendentes naturais de Abraão, em espírito, nada mais eram que ismaelitas, estranhos à promessa. Embora o
exemplo de Paulo aqui não seja um precedente para que o expositor da Palavra dê largas à imaginação e faça os
epísódios do Velho Testamento ensinarem qualquer coisa que ele queira, ele (o exemplo) declara sim que Deus
ordenou a vida dos patriarcas de tal forma que fornecessem lições de grande valor espiritual.
Escolhemos, acima, de propósito, uma variedade de exemplos, e por meio deles o estudante diligente (o
leitor apressado não achará proveito nisso) descobrirá algumas proveitosas dicas divinas e auxílios de como as
Escrituras devem ser compreendidas, e os princípios pelos quais elas devem ser interpretadas. Leia e releia os
exemplos e medite-os com cuidado.
3. É necessário tomar constante e diligente cuidado para conformar toda nossa interpretação à Analogia
21
da Fé, ou, como Romanos 12.6 o diz: “profetizemos segundo a proporção da nossa fé” . Charles Hodge, que é
sem igual em matéria de firmeza doutrinária, sabedoria espiritual, e agudeza crítica, declara que o significado
original e correto da palavra “profeta” é intérprete — alguém que declara a vontade de Deus, que expõe a Sua
mente aos outros. Ele também diz que a palavra traduzida como “proporção” pode tanto significar proporção,
como medida, regra, padrão. Uma vez que a palavra “fé” neste versículo tem de ser tomada no sentido objetivo
(porque houve “profetas” como Balaão e Caifás, que estavam destituídos de toda e qualquer fé interior, fé
salvífica), então essa importante expressão significa que o intérprete da mente de Deus tem de ser muito
detalhista e escrupuloso de forma que se esmere para que tudo o que fizer como intérprete seja feito de acordo
com o padrão revelado que Ele nos deu. Dessa forma, a palavra “fé” aqui é usada com o mesmo sentido em que
aparece “a fé” em passagens como Gálatas 1.23, 1 Timóteo 4.1 etc. Ou seja, é a “uma só fé” de Efésios 4.5, “a fé
uma vez por todas entregue aos santos” (Jd 3) — a Palavra de Deus em forma escrita.
A exposição que se faz de qualquer versículo da Sagrada Escritura tem de estar em completo acordo com
a Analogia da Fé, ou seja, ao sistema de verdade que Deus tornou conhecido ao Seu povo. Isso, é evidente,
exige um amplo conhecimento do conteúdo da Bíblia — prova evidente de que nenhum principiante está
qualificado a pregar ou a tentar ensinar aos outros. Esse tipo de amplo conhecimento só se obtém por meio de
uma leitura sistemática e constante da própria Palavra — e somente então alguém se torna capaz de avaliar os
escritos de outras pessoas! Uma vez que toda Escritura foi dada pela inspiração de Deus, não há contradições
nela; segue-se então obviamente que é claramente errônea qualquer explanação que se faça de uma passagem,
que vá de encontro ao claro ensino de outros textos. Para que qualquer interpretação seja válida, ela tem de estar
em perfeita harmonia com o esquema da verdade de Deus. Uma parte da Verdade está mutuamente relacionada
e depende de outras partes, e por isso há pleno acordo entre elas. Ao referir-se aos livros das Escrituras, disse
Bengel: “Todos eles juntos ressaltam um belo e harmonioso sistema de Verdade, gloriosamente conectado”.

21
Tradução Brasileira.

16
CAPÍTULO 05
Dizer que nossa interpretação precisa obedecer rigorosamente à Analogia da Fé pode soar como algo
simples e óbvio, contudo é surpreendente a quantidade de pessoas — não apenas aquelas sem instrução
profissional, mas também os mais experimentados — que se afastam dessa regra. Sem dúvida, aqueles que
desejam “originalidade”, e têm gosto por achar algo novo ou impressionante (especialmente baseando-se em
passagens obscuras) sem prestar atenção a esse princípio básico, com toda certeza vão errar. Mas como J. Owen
observou: “Enquanto com sinceridade observarmos essa regra, não estaremos em perigo de corromper
pecaminosamente a Palavra de Deus, ainda que não cheguemos ao seu significado exato em todos os casos”. Por
exemplo, quando aprendemos que “Deus é espírito” (Jo 4.23), incorpóreo e invisível, isso nos guarda
decompreender erradamente as passagens onde olhos e ouvidos, mãos e pés Lhe são atribuídos; e quando
somos informados que nEle não há “mudança, nem sombra de variação” (Tg 1.17), sabemos que quando se diz
que Ele Se “arrependeu”, Ele está falando à maneira dos homens. Da mesma forma, quando o Salmo 19.11 e
outros versículos prometem grande recompensa aos santos que obedecem aos mandamentos, outras passagens
bíblicas mostram que essa recompensa não se deve aos méritos nem às boas obras de quem obedece, mas é
concedida pela graça de Deus.
Nenhum versículo será explicado de forma conflitante com aquilo que está ensinado, de forma simples e
uniforme, no todo das Escrituras, todo esse que nos é apresentado como a única regra de fé e obediência. Isso
requer do expositor não apenas um amplo conhecimento do significado geral da Bíblia, mas também exige que ele
se dê ao trabalho de juntar e comparar todas as passagens que tratam ou que têm clara relação com o assunto de
que está tratando, de forma que ele consiga obter o pleno pensamento do Espírito sobre esse assunto. Havendo
feito isso, qualquer passagem que lhe permaneça obscura ou duvidosa, precisa ser interpretada por aquelas que
são claras. Nenhuma doutrina deve fundamentar-se numa só passagem, como os mórmons se baseiam em 1
Coríntios 15.29, onde baseiam o seu erro de batizar os membros do seu culto em favor dos seus ancestrais. Ou
como os católicos apelam a Tiago 5.14.15 para basear o seu dogma da “extrema unção”. É somente por boca de
duas ou três testemunhas que se estabelece qualquer verdade, como nosso SENHOR insistiu em Seu ministério:
Jo. 5.31-39; 8.16-18. É preciso tomar cuidado para que nenhum ensino importante se baseie apenas nalgum tipo,
expressão figurativa, ou mesmo parábola; em vez disso, essas referências devem ser usadas apenas para ilustrar
passagens claras e de sentido literal.
Que fique estabelecido, então, na mente do expositor, que nenhuma Escritura deve ser interpretada sem
considerar a relação que possui com as outras partes. A fidelidade a essa regra fundamental preservará o
intérprete de perverter muitos versículos. Dessa forma, quando ouvimos Cristo dizer: “O Pai é maior do que eu” (Jo
14.28), seremos guardados de qualquer idéia de que Ele era, em Sua pessoa essencial, inferior de alguma forma,
se prestarmos atenção à Sua declaração anterior: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.31). Por isso, a referência de Jo.
14.28 necessariamente se refere ao Seu ofício mediatório, no qual Ele era subserviente à vontade do Pai. Dizemos
“necessariamente” porque o Filho não é outro senão o “Deus Forte” (Is 9.6), “o verdadeiro Deus” (1 Jo 5.20). Além
disso, palavras como “recebe o batismo e lava os teus pecados” (At 22.16) têm de ser entendidas de forma que
não entrem em conflito com “o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1 Jo 1.7), mas
22
consideradas apenas como um “lavar” simbólico. “...reconciliar todas as coisas a si mesmo” (Cl 1.20) não pode
estar ensinando o universalismo, caso contrário todas as passagens que declara o castigo eterno dos perdidos
seriam desmentidas. O ensino de 1 Jo. 3.9 tem de ser entendido de forma consistente com o de 1 Jo. 1.8.
4. A necessidade de prestar bastante atenção ao contexto é, também, assunto da maior importância. É
necessário não apenas que cada afirmação das Escrituras sejam explicadas em total harmonia com a genérica
Analogia da Fé, mas, mais especificamente, em completa concordância com o sentido comum e com o mesmo
teor da passagem de que faz parte. Esse “sentido comum” precisa ser procurado com diligência. Há poucas coisas
que têm contribuído mais para interpretações errôneas do que a desconsideração desse princípio óbvio. Por
divorciar um versículo do seu ambiente ou por escolher uma simples afirmação, pode-se “provar” não apenas
absurdos mas verdadeiras falsidades por meio das próprias palavras das Escrituras. Por exemplo, “ouvir a igreja”
não é uma exortação aos leigos a que submetam seu julgamento ao dos clérigos, mas, como deixa claro Mateus
18.17, a assembléia local deve decidir o assunto quando um irmão faltoso não se deixa disciplinar por meio de
conselho em particular. Como alguém já disse, “Uma mente engenhosa e insincera consegue selecionar certos
versículos isolados das Escrituras, e então os combina da forma mais arbitrária possível, de maneira que, ao
mesmo tempo em que são todos verdadeiras palavras das Escrituras, contudo ao mesmo tempo expressam os
pensamentos daquele que os compilou, e não os do Espírito Santo”.
Consegue-se obter muita ajuda por meio da apuração do significado preciso de certas expressões por
observar as circunstâncias e a ocasião em que foram empregadas. Por falhar nesse ponto, muito pregador falhou
em perceber a real força das seguintes palavras muito conhecidas: “Abre, SENHOR, os meus lábios, e a minha
boca manifestará os teus louvores” (Sl 51.15).
22 Tradução Brasileira.

17
A boca de Davi havia sido fechada pelo pecado e pela não- confissão, e dessa forma o Espírito foi
sufocado! Agora que ele tinha acertado o assunto com o SENHOR, ele clama com fervor que Deus lhe abra os
lábios cobertos de vergonha.
Muitas vezes se percebe o significado espiritual de um evento observando-se as suas ligações (o
contexto). Um notável exemplo disso se encontra em Mateus 8.23-26, onde, lembremo-nos, temos uma aplicação
ao nosso caso. A chave do texto se encontra na última cláusula do verso 23 e na leitura dos versos 19-22. A
ordem do pensamento ali é muito sugestivo: a passagem toda trata de “seguir” a Cristo, e os versículos 23-26
fornecem uma descrição típica da natureza do caminho do discípulo através de um mundo atribulado: ele encontra
provas, dificuldades e perigos; e muitas vezes parece que o SENHOR está “dormindo” — negligente ou indiferente
com nossos perigos! Na realidade, é um teste da fé, uma demonstração de que Ele requer que O aguardemos,
que Ele é nosso único recurso, suficiente para toda e qualquer tormenta!
A parábola registrada em Lucas 15.3-32, talvez não possa ser interpretada corretamente se
desconsiderarmos o seu contexto. Quanta perplexidade desnecessária já não provocou, e quanta divergência
entre os comentaristas a respeito da identidade das noventa e nove ovelhas deixadas no deserto (definidas como
“justos que não necessitam de arrependimento”) e do “filho mais velho” (que reclamou do tratamento generoso
concedido ao seu irmão), tudo isso pela falha em não usar a chave que é observar que essa parábola (dividida em
três partes) não foi proferida por Cristo aos discípulos, mas foi endereçada aos Seus inimigos. Ela foi proferida em
resposta aos fariseus e escribas que murmuravam porque o SENHOR recebera pecadores para comer com eles. O
Seu propósito era expor a condição do coração deles, e vindicar as Suas próprias ações cheias de graça. Ele o fez
ao retratar a condição perdida dos Seus censuradores, e ao tornar conhecida a base em que Ele recebia os
pecadores à comunhão consigo mesmo, e ao revelar a ação de Deus que conduz a esses benditos resultados.
Uma vez que se apreendem esses fatos óbvios, não existe mais dificuldade para compreender os detalhes da
parábola.
Em Lucas 15.1,2, são-nos apresentadas duas classes distintas e nitidamente contrastadas: os
desprezados publicanos e pecadores que, devido ao profundo senso de necessidade que possuíam, sentiam-se
atraídos a Cristo; e os orgulhosos fariseus e escribas, satisfeitos consigo mesmos. Em cada uma das três partes
da parábola, estão em vista essas mesmas duas classes, e isso na seguinte ordem: primeiro, o bom pastor
procura e dá segurança às Suas ovelhas perdidas, porque é o Seu trabalho que é a base da salvação; as noventa
e nova, que na própria estimativa deles não precisavam de arrependimento, ilustravam os fariseus justos aos seus
próprios olhos — deixados “no deserto”, em contraste com a ovelha trazida “para casa”. Na segunda parte,
descrevem-se as operações secretas do Espírito no coração (ilustradas pela figura de uma mulher dentro de casa)
e, por meio da “luz”, a moeda perdida é recuperada — as outras dez são deixadas por sua própria conta. Na
terceira parte, a ovelha procurada e encontrada pelo Pastor, e iluminada pelo Espírito, é vista com o Pai; enquanto
o filho mais velho (que arrogantemente afirma ter servido “sem jamais transgredir uma ordem tua”) ilustra os
fariseus — estranhos à festa e ao regozijo! Aprendemos, assim, a importância de observar a quem se destina a
passagem, as circunstâncias e a ocasião quando foi proferida ou escrita, o propósito central de quem fala ou
escreve, antes de procurar interpretar os detalhes.
Todo versículo começado pela palavra “Pois” requer que investiguemos a conexão com o contexto
anterior: essa palavra antecede a comprovação de alguma afirmação feita anteriormente. Da mesma forma as
expressões “por esta causa”, “por conseguinte”, “por essa razão”, “por isso”, e palavras como “portanto”, “então”,
“consequentemente” e “então”. Todas elas requerem cuidadosa atenção, visto que podemos ter à nossa frente a
afirmação da qual se originou a conclusão. A frequente compreensão errônea de 2 Coríntios 5.17 nos fornece
exemplo do que acontece quando se negligencia esse ponto. Em nove de dez citações do versículo, omite-se a
expressão inicial “E, assim” e, ao deixar de compreender o significado dessa expressão, dá-se uma compreensão
completamente errada do que segue: “se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram;
eis que se fizeram novas”. A expressão inicial “E, assim” indica que o versículo não deve ser considerado como
algo à parte, completo em si mesmo, mas antes como estreitamente relacionado com algo que o antecede.
Considerando o versículo anterior, descobrimos que ele também começa com a expressão “Assim que”, o que de
imediato mostra que essa passagem é didática ou doutrinal, não sendo nem biográfica (que retrata a experiência
da alma) nem exortativo (que exorta ou incita à ação de algum dever).
Deve-se notar com cuidado que o “alguém” de 2 Coríntios 5.17 mostra que o termo não descreve nenhum
resultado excepcional ou alguns poucos favorecidos, nem representa somente cristãos maduros; em vez disso
está expondo algo que é comum a todos os regenerados. Na verdade, o versículo não se refere de forma
nenhuma à experiência cristã, e sim ao novo relacionamento a que somos trazidos por meio da regeneração.
Acabaríamos nos desviando do nosso propósito, agora, se fôssemos responder a questões como: Qual era o
assunto específico do apóstolo? O que o levou a tratar disso? Qual era o seu objetivo específico nessa ocasião? É
suficiente dizer, por ora, que ele estava refutando os judaizantes que o caluniavam, e dessa forma removia o
fundamento em que eles se baseavam. Nos versículos 14-16, ele insiste que a união com Cristo resulta numa
morte judicial aos relacionamentos naturais, na qual cessam todas as distinções entre judeus e gentios; sim,
somos trazidos a novo território, o da ressurreição, o que cria para nós uma nova posição diante de Deus.

18
Como membros de uma nova criação, estamos debaixo de um pacto inteiramente novo e, para nós, as
limitações e restrições do velho pacto “já passaram”. Tornar esse fato completamente manifesto é o principal
propósito da Epístola aos Hebreus.
5. Para o intérprete, é igualmente necessário determinar o objetivo de cada passagem, isto é, a sua
coerência com o que a precede e o que a segue. Às vezes, isso pode ser mais bem feito quando se repara com
cuidado o livro específico em que se encontra o texto. De forma especial, esse é o caso com alguns textos na
Epístola aos Hebreus. Quantos cristãos que sofreram uma queda feia ou que apostataram por algum tempo,
depois de se arrependerem, torturam-se sem necessidade quando lêem versículos como os de Hebreus 6.4-6 ou
10.26-31! Dizemos ‘sem necessidade’, pois esses versículos se dirigem a uma classe muito diferente, a pessoas
cujo caso era completamente outro. Aqueles hebreus ocupavam uma posição única, singular. Educados no
judaísmo, eles haviam desposado o Evangelho; mas mais tarde foram afligidos e abalados porque não se
realizaram as suas esperanças carnais que nutriam a respeito do Messias, e a severa perseguição que estavam
então sofrendo os tentava terrivelmente a abandonar a profissão do Cristianismo e voltar ao Judaísmo. Nas
passagens mencionadas acima, eles foram claramente advertidos de que uma decisão dessas seria fatal. Assim,
aplicar essas passagens a cristãos apóstatas é inteiramente injustificado, fazendo-se uso delas de forma
inteiramente estranha ao seu objetivo e propósito.
Às vezes, encontra-se a chave de uma passagem ao se observar em que parte do livro ela aparece.
Encontramos um exemplo apropriado disso em Romanos 2.6-10, passagem que não poucos têm distorcido
gravemente. O grande tema dessa epístola é “a justiça de Deus” — declarado em 1.16,17. A sua primeira divisão
vai de 1.18 a 3.21, onde se demonstra a necessidade universal da justiça de Deus. A segunda divisão vai de 3.21
a 5.1, na qual se apresenta a manifestação da justiça de Deus. A terceira divisão, a imputação da justiça de Deus,
de 5.1 a 8.39. Em 1.18-32, o apóstolo estabelece a culpa do mundo gentio, e no capítulo 2, a dos judeus. Nos
primeiros dezesseis versículos, ele estabelece os princípios que vão reger o juízo final, e nos versos 17-24, faz
aplicação direta desses princípios à nação favorecida. Esses princípios são os seguintes: (1) o juízo de Deus agirá
sobre o fundamento da auto-condenação do homem (v.1); (2) ele será de acordo com a realidade de cada caso
(v.2); (3) o abuso da misericórdia aumenta a culpa (vv.3-5); (4) as obras, e não a mera profissão dos lábios é que
decidirão o assunto (vv.6-10); (5) Deus será imparcial, não mostrará nenhum favoritismo (v.11); (6) haverá plena
prestação de contas segundo os vários graus de luz recebida pelos diferentes indivíduos (vv.11-15); (7) o
julgamento será executado por Jesus Cristo (v.16).
Dessa breve análise (que exibe o propósito, o alvo da passagem bíblica), fica muito evidente que o
apóstolo não estava revelando o caminho da salvação quando declarou: “que retribuirá a cada um segundo o seu
procedimento: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade”
(vv. 6,7). Longe de afirmar que os homens decaídos podem assegurar a felicidade eterna por meio de suas
próprias boas obras ou pela obediência a Deus, o seu propósito era exatamente o oposto. O seu objetivo era
mostrar o que a santa lei de Deus exigia, e que essa exigência também se mostraria no dia do juízo. Uma vez que
a natureza depravada torna a perfeita e contínua obediência à lei de Deus impossível a todos os homens, quer
judeus ou gentios, torna-se assim evidente a total desesperança da situação, e torna-se claramente evidenciada a
sua terrível necessidade de buscar fora de si mesmo a justiça de Deus em Cristo.
Uma outra passagem em que a falta de atenção para o propósito com que foi escrita resultou em falsa
doutrina é 1 Coríntios 3.11-15. Com frequência se tem apelado a esse texto para fundamentar o perigoso engano
de que existe uma classe de crentes verdadeiros que perderam toda “recompensa” futura, não tendo esses
crentes nenhuma boa obra que pese em seu favor, contudo entrarão no céu. Tal conceito é um grosseiro insulto
ao Espírito Santo, visto que implica em que Ele opera um milagre da graça na alma, passa a morar naquela
pessoa, contudo não gera nenhum fruto espiritual. Uma idéia grotesca dessas é completamente contrária à
Analogia da Fé, pois Efésios 2.10 nos diz que aqueles Deus salva pela graça por meio da fé são “feitura sua,
criados em Cristo Jesus para boas obras”. Aqueles que não andam em boas obras não são salvos, pois “a fé sem
obras é morta” (Tg 2.20). A Escritura declara: “Na verdade, há recompensa para o justo” (Sl 58.11), e que “cada
um receberá o seu louvor da parte de Deus” (1 Co 4.5), o que certamente não poderia ser o caso se alguns desses
são meros estorvos nesta terra.
Essa interpretação errônea não somente é altamente desonrosa para com Deus e diretamente contrária ao
claro ensino de outros textos bíblicos, mas ela também é refutada pelo próprio contexto. Para entender 1 Coríntios
3.11-15, é necessário prestar atenção aos versículos 1-10 — para conseguir determinar o assunto que o apóstolo
está tratando. No início do capítulo 3, Paulo retorna ao desafio que ele havia feito aos coríntios em 1.11, onde ele
os reprovou por estarem contrapondo um servo de Deus contra o outro, resultando em divisões — a principal
razão por que estava lhes escrevendo. Em 3.3, ele destaca que essa conduta evidenciava a carnalidade deles. Ele
os lembra que tanto ele mesmo como Apolo eram apenas “Servos por meio de quem crestes” (v. 5). Ele apenas
tinha plantado e Apolo tinha regado — mas o crescimento tinha vindo de Deus. Uma vez que nenhum deles era
“alguma coisa” a menos que Deus Se dignasse a abençoar os seus esforços (v. 7), que loucura não era fazer um
ídolo de um mero instrumento!

19
Dessa forma, é claro, além de qualquer dúvida, que os versículos iniciais de 1 Coríntios 3 tratam do
ministério oficial dos servos de Deus. Isso é até mais claro no grego, pois a palavra “homem” não ocorre em
23
nenhum lugar dessa passagem; “cada homem ” é, literalmente “cada um”, isto é, da classe específica a que se
está fazendo referência.
Esse mesmo assunto continua no versículo 8, embora haja diversidade na obra dos servos de Deus (uma
evangelística, outra de doutrinamento), contudo foram ordenadas pelo mesmo Mestre e tem como finalidade o
bem-estar das almas; essa é a razão por que é estupidez pecaminosa pôr um contra o outro ou então exaltar um
em detrimento de outro. Embora Cristo tenha distribuído diferentes dons a Seus servos e os tenha designado a
uma variedade de ministérios, “cada um receberá o seu louvor da parte de Deus”.
A construção é do próprio Deus, e os ministros são os edificadores (v. 9). No versículo 10, Paulo se refere
ao “fundamento” ministerial que ele havia posto (veja Ef 2.20), e aquilo que vem em seguida diz respeito ao
material usado pelos edificadores que vieram depois dele. Se esse material (as pregações deles) honrou a Cristo e
edificou os santos, eles haverão de permanecer e serão recompensados. Mas se em lugar disso o pregador usou
como tema o aumento do crime, as ameaças das bombas, as últimas decisões dos judeus etc., esse tipo de
futilidade sem valor será queimado no Dia vindouro e não receberá recompensa nenhuma. Assim, é o material
usado pelos pregadores em suas ministrações públicas, e não o andar pessoal do cristão, que está sendo
considerado neste texto.

23 Essa observação não tem muito sentido para nós, de língua portuguesa, pois em nossas traduções já aparece a expressão
“cada um”. Contudo, para os de fala inglesa, é extremamente apropriada.

20
CAPÍTULO 06
Dessa forma, a palavra “interpretação” tem significado tanto estrito, limitado, como mais livre, amplo. No
primeiro caso, a palavra significa ‘apresentar o sentido gramatical rigoroso da passagem’; no segundo caso,
‘explicar o seu significado espiritual’. Se o expositor se restringe rigidamente às normas técnicas de exegese,
embora possa ser de alguma utilidade aos formalistas, ele proporcionará pouca ajuda prática à gente comum do
povo de Deus. Discorrer sobre as propriedades químicas da comida não vai alimentar a pessoa faminta; assim
também escrever a respeito da origem grega e hebraica das palavras (embora seja algo necessário quando feito
no lugar apropriado) também não ajudará em nada para equipar os discípulos de Cristo a combater o bom
combate da fé. Essa observação não significa nem que não fazemos caso da erudição, por um lado, nem que, por
outro lado, estejamos advogando em favor daqueles que pretendem soltar as rédeas da imaginação quando lidam
com a Palavra de Deus. Em vez disso, queremos dizer que o alvo principal do expositor das Escrituras deveria ser
unir a Verdade e o coração dos seus ouvintes ou leitores, de forma que essa Verdade tenha sobre eles um efeito
vitalizante, edificante, transformador.
Nos capítulos precedentes, demonstramos que a tarefa do intérprete é imitar as pessoas descritas em
Neemias 8.8, a respeito de quem se diz: “Leram no livro, na Lei de Deus, claramente, dando explicações, de
maneira que entendessem o que se lia”; e, para fazer isso o pregador obrigatoriamente tem de gastar muitas
horas em estudo cada semana. É necessário dar a cada palavra, no texto que está sendo estudado, o significado
preciso e definido de acordo com o uso geral das Escrituras (a não ser que haja clara sugestão contrária na
passagem em estudo), do contrário será liberdade arbitrária, e ele interpretará os oráculos de Deus não pelos
Seus próprios termos, mas conforme as suas próprias imaginações e idéias preconcebidas. Não se devem nunca
violar as leis da linguagem, ou mudar o significado das palavras para que se adaptem a nós. Não devemos
esvaziar a verdadeira força e importância de nenhuma delas, mas devemos explicá-las baseados em princípios
sadios, e não usar nem significados forçados nem subterfúgios jesuítas.
A tarefa do intérprete é determinar, por meio de investigação exegética, a exata importância das palavras
usadas pelo Espírito Santo, e, tanto quanto lhe seja possível, divulgar os pensamentos de Deus na sua própria
linguagem. É averiguar e determinar o significado exato dos termos usados nas Sagradas Escrituras e evitar
escrupulosamente a interferência das suas próprias opiniões. Ele não deve inserir nada que seja seu próprio, mas
deve simplesmente esforçar-se para dar o sentido verdadeiro de cada passagem que esteja diante dele. Por um
lado, ele não pode desconsiderar, nem ocultar, ou reter nada que manifestamente esteja naquela passagem; por
outro lado, ele não pode adicionar nem deformar nada que esteja nela, com o fim de satisfazer seus próprios
caprichos. Deve-se permitir à Escritura que fale por Si mesma, e isso só acontece se o pregador apresenta o seu
significado genuíno. Ele precisa expor não somente os seus termos, mas também a natureza das idéias que
esses termos expressam, do contrário ele acabará usando palavras bíblicas e contudo lhes dará sentido não-
bíblico. É possível descobrir com exatidão o sentido de cada palavra de uma passagem bíblica, e mesmo assim,
devido a alguma concepção errônea do seu objetivo ou por algum preconceito ou propensão em sua própria
mente, entender mal aquilo que a passagem de fato está ensinando.
Descuidos que não seriam tolerados em nenhum outro lugar são, lamentavelmente, largamente tolerados
quando se trata da Bíblia. Artistas que são extremamente específicos quando selecionam as cores com que vão
pintar objetos naturais são, muitas vezes, negligentes quando tentam retratar objetos sagrados. Assim, a arca de
Noé acaba representada como se tivesse várias janelas em ambos os lados, quando possuía apenas uma, e essa
se encontrava na parte superior da arca! A pomba que retornou a ele depois que as águas do dilúvio baixaram é
representada com um ramo de oliveira na boca, em vez de uma “folha” (Gn 8.11)! O menino Moisés no cesto de
junco é retratado com um simpático sorriso no rosto, em lugar das lágrimas (Êx 2.6)! Que essa indiferença
criminosa aos detalhes das Escrituras Sagradas não caracterize o expositor. Em lugar disso, que se tome o maior
cuidado e se dispense o maior esforço para garantir precisão, por meio do exame de cada detalhe, ponderando
cada jota e til. A expressão usada para “Examinai as Escrituras” (Jo 5.39) significa procurar com diligência, assim
como o caçador faz com os rastros dos animais. A tarefa do intérprete é expor o sentido e não meramente o som
da Palavra.
Ao especificar, descrever e ilustrar algumas das leis ou regras que devem dirigir o intérprete, já
consideramos as seguintes: Primeiro, a necessidade de admitir e deixar-se dirigir pela inter-relação e mútua
dependência do Antigo e do Novo Testamentos. Segundo, a importância e a utilidade de reparar como as citações
do Antigo Testamento são feitas no Novo: a maneira como e os propósitos para os quais são feitas as citações.
Terceiro, a absoluta necessidade de conformar rigorosamente todas as nossas interpretações à universal Analogia
da Fé: cada versículo será explicado em total harmonia com o sistema da Verdade que Deus nos tornou
conhecido; toda e qualquer exposição se torna inválida se vai de encontro com o que é ensinado nalgum outro
lugar da Bíblia. Quarto, a necessidade de prestar muita atenção a todo o contexto de qualquer passagem em
consideração. Quinto, o valor de determinar o objetivo de cada passagem, e a faceta específica da Verdade
apresentada ali. No Sermão do Monte, encontramos inúmeras partes que ilustram de modo vivo essa regra, pois
muitas têm sido lamentavelmente mal entendidas porque houve falha em perceber qual é o seu alvo ou propósito.

21
Assim, quando o SENHOR declara: “Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer
que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela” (Mt 5.27,28), tem-se pensado
que Ele estava estabelecendo um padrão mais elevado de pureza moral do que aquele que foi enunciado no
Sinai. Mas esse conceito contradiz frontalmente o Seu propósito. Depois de haver afirmado solenemente (no verso
17) que, longe de ser a Sua missão revogar a Lei ou os Profetas, Ele tinha vindo para cumprir (isso é, reforçar e
obedecer a tudo o que eles requeriam), Ele com certeza não iria logo depois contrapor-Se aos ensinamentos
deles. Não, a partir do versículo 21, Ele estava empenhado em revelar a justiça que Ele requeria dos cidadãos do
Seu reino, a qual excedia a justiça “dos escribas e fariseus”, os quais repassavam ao povo os dogmas dos rabis,
que invalidavam a palavra de Deus, por causa das suas tradições (Mt 15.6).
Cristo não disse: “Vós conheceis o que Deus disse no Sinai”, mas “ouvistes o que foi dito aos antigos”, o
que torna claro de maneira inequívoca que Ele Se opunha ao ensino dos anciãos que restringiam o sétimo
mandamento do Decálogo ao mero ato de relacionar-se fisicamente com uma mulher casada. O SENHOR Jesus
insistiu no fato que o mandamento requeria obediência dos sentimentos internos, proibindo todos os pensamentos
e desejos impuros do coração. Há muito mais coisas em Mateus 5 a 7 que não se pode apreender de forma
correta a não ser que se perceba claramente o principal alvo e propósito do nosso SENHOR nesse sermão. Até
que isso seja feito, até mesmo as suas mais claras afirmações serão mais ou menos obscuras e as suas mais
pertinentes ilustrações nos parecerão irrelevantes. Cristo não estava aqui refutando o verdadeiro ensino da Lei e
dos Profetas, mas as conclusões errôneas que os mestres da religião haviam deduzido das Escrituras, e as falsas
noções baseadas nelas, e que eram promulgadas de forma tão dogmática naquele tempo. Os rabinos haviam
embotado o cortante fio dos mandamentos da espada do Espírito, com isso dando-lhes um significado que os
tornou completamente desagradáveis aos que não eram regenerados.
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas,
a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra” (Mt 5.38,39). Esses versículos são outro exemplo
da necessidade de identificar o objetivo de uma passagem antes de tentar explicá-la. Por não fazer isso é que
tantos deixam completamente de perceber a força do seu contraste. O que muitos supõem é que o SENHOR
estava aqui impondo um código mais misericordioso do que aquele que foi exigido sob a economia de Moisés;
contudo se o leitor voltar a Deuteronômio 19.17-21, encontrará que esses versículos davam instrução aos “juízes”
de Israel: eles não seriam dirigidos pelo sentimento, mas teriam de ministrar estrita justiça ao malfeitor — “olho por
olho”, etc. Mas esse mandamento, que dizia respeito somente ao magistrado quando executava retribuição judicial
, tinha sido pervertido pelos fariseus, dando-lhe uma aplicação genérica , com isso ensinando que se assegurava
a todo homem o fazer justiça com as próprias mãos. Nosso SENHOR, aqui, proibiu a imposição de vingança
pessoal e, ao fazê-lo, manteve o claro ensino do Antigo Testamento (veja Êx 23.4,5; Lv 19.18; Pv 24.29, 25.21,22
— que proíbem expressamente a intenção de prejudicar a outrem, e a retaliação).
“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente
que edificou a sua casa sobre a rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com
ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha” (Mt 7.24,25). Quantos sermões,
baseados nesse texto, já não foram pregados sobre assuntos que não estão ali, e deixaram de mencionar aquilo
que está no texto, por não ter sido entendido o seu objetivo. Cristo não estava ali empenhado em proclamar o
Evangelho da graça de Deus e revelando o único fundamento da aceitação do pecador diante dEle, mas Ele fazia
uma aplicação prática e penetrante do sermão que acabara de proferir.
A palavra “pois”, logo no início, declara de imediato que Ele fazia um encerramento (uma conclusão) de
tudo o que acabara de dizer. Nos versículos anteriores, Cristo não estava descrevendo vendedores de
indulgências nem fazendo um sermão formal contra aqueles que confiavam nas boas obras e no desempenho
religioso para sua própria salvação, mas exortava os Seus ouvintes a entrar pela porta estreita (vv. 13,14),
alertava contra os falsos profetas (vv. 15.-20), censurava a profissão de fé vazia. No versículo imediatamente
anterior (v. 23), longe de apresentar-Se como o Redentor, ternamente lisonjeando os pecadores, Ele é visto como
o Juiz, dizendo aos hipócritas: “Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade”.
À vista do que acabamos de ressaltar, seria no mínimo um lugar esquisito para Cristo introduzir o
Evangelho e anunciar que a Sua própria obra era o único fundamento para os pecadores firmarem a alma para
serem salvos. Isso não só deixaria sem sentido a palavra “pois” que aparece no início, como não seria coerente
com aquilo que vem imediatamente depois, pois Cristo, em lugar de ressaltar nossa necessidade de confiar no
Seu sangue reconciliador, mostrou quão indispensável é que prestemos obediência aos Seus preceitos. É
verdade, de fato, que não há redenção para ninguém a não ser por meio “da fé em Seu sangue” (Rm 3.25), mas
não é isso que Ele está tratando aqui. Em vez disso, Ele insistia no fato que nem todo o que Lhe diz “SENHOR,
SENHOR” entrará no Seu reino, “mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (v. 21). Em outras
palavras, Ele estava testando as profissões de fé, demandando que fossem reais: a fé genuína produz boas
obras.
Aqueles que pensam estar confiando de forma salvífica no sangue do Cordeiro enquanto negligenciam os
Seus mandamentos estão enganando a si mesmos de maneira fatal. Cristo não estava aqui comparando a um
homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha aquele que ouve e crê na Sua palavra; em vez disso, ele
comparou ao homem prudente aquele “que ouve estas minhas palavras e as pratica”

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— assim como no verso 26 Ele compara o homem insensato que constrói a casa sobre a areia com aquele que
ouve as Suas palavras “e não as pratica”.
“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rm 3.28).
“Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente” Tg 2.24). A não ser que se compreenda
claramente o objetivo de cada autor, essas duas declarações se contradizem frontalmente. Romanos 3.28 é a
conclusão do que se estava desenvolvendo nos versículos 21-27 — tornando impossível toda vanglória diante de
Deus por meio do método que Ele providenciou para a salvação. Pela própria natureza do caso, se a justificação
diante de Deus ocorre pela fé, então precisa ser pela fé somente — sem misturar mérito nenhum de nossa parte.
Em Tiago 2.24, como fica evidente pelos versículos 17, 18 e 26, não está em consideração a forma como o
pecador obtém aceitação diante de Deus, mas como a pessoa prova que foi aceita. Paulo está refutando a
tendência legalista que faz o homem chegar ao ponto de “produzir a sua própria justiça” por meio das obras; Tiago
está combatendo o espírito libertino do antinomianismo, que leva o homem a perverter o Evangelho e insiste que
boas obras não são essenciais de forma alguma. O que Paulo refuta são os “comerciantes de boas obras”, que
desprezam a salvação somente pela graça; o que Tiago sustenta é que a graça opera por meio da justiça e
transforma aqueles que a possuem, expondo assim a inutilidade de uma fé morta que nada mais produz do que
uma profissão vazia. O fiel servo de Deus haverá sempre de alternar entre alertar os seus ouvintes contra o
legalismo por um lado, e a libertinagem de outro lado.
6. A necessidade de interpretar as Escrituras por meio das Escrituras. O princípio geral é expresso nas
bem conhecidas palavras “comparando as coisas espirituais com as espirituais” (1 Co 2.13 - RC), porque embora
a cláusula anterior se refira mais especificamente à inspiração divina ensinada pelo apóstolo, como o porta-voz
competente do SENHOR, contudo ambos os versículos 12 e 14 tratam da compreensão das coisas espirituais, e
por isso consideramos que essa última cláusula do versículo 13 possui uma ênfase redobrada. A palavra grega
traduzida como “comparar” é usada na tradução da Septuaginta do Antigo Testamento repetidas vezes, para
representar a interpretação de sonhos e enigmas. C. Hodge parafraseia a tradução “comparando as coisas
espirituais com as espirituais” da seguinte forma: “explicando as coisas do Espírito com as palavras do Espírito”,
mostrando que a palavra “espirituais” não tem ligada a ela nenhum substantivo, e dessa forma com mais
naturalidade concorda com “palavras” no original. Por essas razões, consideramos que 1 Coríntios 2.13 enuncia
uma das mais valiosas e importantes regras para a compreensão e interpretação da Palavra de Deus, ou seja,
que uma parte das Escrituras precisa ser explicada por outra parte dessas mesmas Escrituras, visto que colocar
coisas espirituais lado a lado serve para iluminar e exemplificar umas às outras, e que dessa forma se demonstra
a perfeita harmonia que existe nas Escrituras. Não basta um confuso ou vago conhecimento das Escrituras; é
preciso avançar muito além, até que nos certifiquemos que uma parte da Verdade está em pleno acordo com a
outra e que fique manifesta a sua unidade — assim como as cortinas do Tabernáculo estavam amarradas entre si.
Em grande medida, e muito mais do que qualquer outro livro não-inspirado, a Bíblia se auto-explica. Não
apenas porque ela registra o cumprimento das suas promessas e o cumprimento das suas profecias, não apenas
porque os seus tipos e antítipos se explicam mutuamente, mas porque todas as verdades fundamentais da Bíblia
podem ser descobertas por meio do seu conteúdo, sem nenhuma referência a nada ab extra ou fora dela. Quando
surge alguma dificuldade nalguma passagem, pode ser resolvida pela comparação e pelo exame de outras
passagens, onde ocorrem as mesmas palavras ou termos similares, ou onde o mesmo assunto ou algum similar é
tratado mais amplamente ou explicado com mais clareza. Por exemplo, a expressão vitalmente importante “a
justiça de Deus” em Romanos 1.17. Deve-se analisar todos os outros lugares onde ela ocorre nas epístolas de
Paulo, antes de podermos compreender o seu sentido exato. E, uma vez isso feito, não há por que consultar
autores pagãos. Isso tem de ser feito não só com cada palavra importante, mas também com os termos que as
compõem e com os seus derivados, adjuntos e cognatos. Devem ser analisados em todas as ocorrências, pois
muitas vezes é dessa forma que será lançada alguma luz sobre elas. Sabemos que é o propósito de Deus que
estudemos a Sua Palavra dessa forma devido à ausência de qualquer sistema de classificação ou organização de
informações que nos tenham sido fornecidas a respeito de qualquer assunto.
Os principais assuntos nas Escrituras nos são apresentados pouco a pouco, gradativamente, espalhados
por entre suas páginas e tornados conhecidos de várias formas, alguns claramente e por completo, outros mais
veladamente e de forma resumida; em diferentes contextos e com diferentes acompanhamentos nas inúmeras
passagens onde ocorrem. Isso foi determinado por Deus em Sua multiforme sabedoria para fazer com que
examinemos a Sua Palavra. É evidente que, se quisermos compreender totalmente a Sua mente revelada a
respeito de qualquer assunto específico, temos de juntar e conferir todas as passagens onde o assunto é
mencionado, ou nas quais se expressa um pensamento ou sentimento similar. E por esse método podemos
garantir que, se conduzirmos a nossa investigação num espírito correto, e com diligência e perseverança,
chegaremos a um claro conhecimento da Sua vontade revelada. A Bíblia é parecida com um mosaico, cujos
fragmentos se espalham aqui e ali pela Palavra, e esses fragmentos precisam ser juntados por nós e
cuidadosamente colocados juntos se quisermos obter a figura perfeita de qualquer dos seus inumeráveis
assuntos. Há muitos lugares nas Escrituras que só podem ser compreendidos pela explicação e declarações mais
detalhadas fornecidas por outras passagens.

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