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Setor de Administração Federal

Sul (SAF/Sul), Quadra 2, Lote 2,


Edifício Via Office, sala 104,
CEP 70.070-600 - Brasília/DF

Versão online no site: www.cfp.org.br

Distribuição gratuita às (aos) Psicólogas (os)


inscritas (os) nos Conselhos Regionais de Psicologia
Expediente....................................................................................................4
Sumário Editorial.........................................................................................................5
Entrevista.................................................................................................... 6
Cristiano Barreira

Curtas......................................................................................................... 14
Artigo........................................................................................................... 16
Fábio Silvestre da Silva

Artigo ......................................................................................................... 21
Victor Cavallari e Ricardo Picoli

Artigo.......................................................................................................... 26
Alexandre Romano

Reportagem............................................................................................. 30
Relações Raciais - O racismo continua em campo

Capa............................................................................................................ 34
Direitos Humanos - Muito além do corpo

Reportagem............................................................................................. 38
Avaliação psicológica - Instrumento a serviço do atleta

Reportagem............................................................................................. 42
Universidade - Tornar-se profissional da Psicologia do Esporte

Depoimento.............................................................................................. 46
No combate, com espaço para o afeto

Reportagem............................................................................................. 48
Futebol, uma paixão avassaladora

Resenha..................................................................................................... 52
“Psicologia do Esporte: teoria e prática”, de Katia Rubio - Por
Maurício Marques

Cinema....................................................................................................... 54
Heleno, o príncipe maldito - Por Rita Almeida

Reportagem............................................................................................. 56
Gênero - A bola fora da discriminação

Artigo.......................................................................................................... 62
Erika Hofling Epiphanio
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Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Artigo.......................................................................................................... 68
Katia Rubio
Expediente

Editora Responsável Eleonora Vaccarezza Santos de Projeto Gráfico


Freitas (CRP-19)
Iolete Ribeiro da Silva Movimento Comunicação
Ivani Francisco de Oliveira
(CRP-06)
Comissão Editorial Felipe de Paula Simões (CRP-05) Diagramação
Nacional José Augusto Santos Ribeiro Movimento Comunicação
Andréa Esmeraldo Câmara (CRP-21)
Elisa Zaneratto Rosa Marina Saraiva (CRP-01)
Impressão
Regina Lúcia Sucupira Pedroza Ricardo de Oliveira Furtado
Quality Gráfica e Editora
(CRP-23)
Sandra Elena Spósito
Roseli Goffman (CRP-05)
Ricardo Moretzon
Rosane Lorena Granzotto
Sandra Cristine Machado Tiragem
Mosello (CRP-08) 255.000
Severino Ramos Lima de Souza
Comissão Editorial (CRP-02)
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Regional Shirley de Sousa Silva Simeão Psicólogas (os) inscritas (os)
Adriana de Andrade Gaião e (CRP-13) nos Conselhos Regionais de
Barbosa (CRP-13) Zaíra Rafaela Lyra Mendonça Psicologia
Alba Cristhiane Santana da Mata (CRP-15)
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Alcindo José Rosa (CRP-18)
Jornalista responsável
Beatriz Xavier Flandoli (CRP-14) www.cfp.org.br
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Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Editorial
O Conselho Federal de Psicologia país até os dias atuais. A existência
escolheu o tema da Psicologia do de uma associação profissional – a
Esporte para este número da Re- Associação Brasileira de Psicologia
vista Diálogos por entender a im- do Esporte (Abrapesp), de linhas de
portância deste campo de atuação pesquisa em Programas de Pós-gra-
para a Psicologia e para a socieda- duação, de grupos de pesquisa ca-
de. O que é a Psicologia do Esporte? dastrados do CNPq, a realização de
Que práticas profissionais são de- congressos da Psicologia do Espor-
senvolvidas nessa área de atuação? te, o crescente número de publi-
Quais são os contextos de atuação cações e o reconhecimento da psi-
de um/a psicólogo/a do esporte? cologia do esporte como uma das
Qual é a função e o papel da Psico- especialidades da Psicologia pelo
logia do Esporte? Que campos teó- Conselho Federal de Psicologia, de-
ricos da psicologia contribuem para monstram a articulação dos profis-
a psicologia do esporte? Quais são sionais que se dedicam a essa área e
os usos da avaliação psicológica no a força desse campo que deve cada
contexto esportivo? Que desafios vez mais ganhar espaço e reconhe-
éticos e técnicos são enfrentados cimento dentro e fora da Psicolo-
neste campo? Estas são algumas das gia. Destaca-se que neste percurso,
questões abordadas ao longo dos as/os psicólogas/os do esporte têm
artigos e reportagens apresentadas ressaltado a importância de refletir
aqui. sobre as questões éticas implicadas
no exercício profissional articuladas
O esporte é um bem cultural, um a uma compreensão crítica da cul-
direito social e fator que contribui tura desportiva, das especificidades
para o processo de desenvolvimen- de cada modalidade e das vivências
to humano. Os estudos nesse cam- próprias do campo esportivo.
po demonstram a importância dos
aspectos culturais locais tanto para Sobre os campos de atuação desta-
a compreensão do sentido que as ca-se a reflexão sobre a importân-
práticas esportivas possuem em um cia da inserção em projetos sociais,
determinado contexto quanto para escolas e outras instituições, para
a construção da prática profissional. além do trabalho juntos aos espor-
É preciso considerar que a constru- tes de rendimento. A participação
ção do imaginário esportivo está li- na construção de políticas públicas
gada à comunicação de massa que do esporte, na gestão de projetos
exalta a importância da vitória e da sociais esportivos, a realização de
competitividade, mas silencia em processos de formação continuada,
relação a outros valores vincula- o acompanhamento de equipes, a
dos à prática do esporte. O esporte participação junto a profissionais
possui uma função pedagógica e se de diferentes áreas representam
constitui em um elemento integra- importantes desafios para as/os psi-
dor da mente e do corpo, que con- cólogas/os.
tribui para a saúde física e mental,
colabora no processo de socializa- A Psicologia do Esporte não pode
ção, no desenvolvimento integral e ser apenas um saber acessório às
na busca por saúde e qualidade de práticas tradicionais do esporte.
vida. A despeito da sua importân- Além do grande interesse das/os
cia, dados oficiais sobre a prática es- psicólogas/os por conhecer a parte
portiva no Brasil demonstram que operacional, as técnicas e o modo
o esporte ainda é privilégio de pou- de atuar dos profissionais da área, é
cos. Para que o esporte se converta imprescindível analisar criticamen-
em um direito social serão necessá- te sobre os contextos e sentidos da
rios muitos investimentos, em es- prática profissional e compreender
pecial para que mulheres, pessoas as dimensões políticas, conceituais,
com deficiência e a população ne- metodológicas e técnicas da Psico-

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gra tenham mais acesso às práticas logia do Esporte.
esportivas.
Convidamos você a desfrutar da
Esta edição da Revista Diálogos leitura de textos publicados por
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

apresenta-se com informações rele- psicólogas e psicólogos de todas as


vantes sobre a trajetória de constru- regiões do país que têm contribu-
ção da Psicologia do Esporte desde ído para a contínua construção da
os primórdios de sua inserção no Psicologia do Esporte.
Entrevista

“Há demanda pelo


conhecimento
psicológico no
campo do esporte”

Psicologia do Esporte no Brasil:


História, Desenvolvimento e Desafios
O presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp), Cristiano
Barreira, enfatiza a interdisciplinaridade e a inserção da(o) psicóloga(o) na área.
O presidente da Associação Brasileira de Psi- diferentes clubes. Apesar das origens da Psi-
cologia do Esporte (Abrapesp) Cristiano Ro- cologia do Esporte coincidirem com o início
que Antunes Barreira, é psicólogo formado na das Olimpíadas da era Moderna, no final do
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ri- século XIX, até hoje a inserção da(o) psicólo-
beirão Preto (USP), com mestrado e doutora- ga(o) neste campo enfrenta resistência, enfati-
do obtidos na mesma Faculdade. Atualmente za Cristiano Barreira. Isto se dá nas categorias
é diretor da Escola de Educação Física e Es- profissionais, no que diz respeito a questões
porte de Ribeirão Preto da Universidade de político-institucionais e até de formação e
São Paulo (USP). Em entrevista à Revista Diá- cultura das(os) dirigentes e técnicas(os) e da
logos, o professor enfatiza o caráter interdisci- compreensão que têm em relação ao que é a
plinar das especialidades que se ocupam com Psicologia do Esporte, à presença e ao traba-

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as práticas corporais, ou seja, o esporte, como lho da(o) psicóloga(o). “Quanto a este aspecto,
a Educação Física, a Fisioterapia e a Medicina. muitas vezes, por ter uma compreensão este-
“Em meio a essa interdisciplinaridade existe reotipada de psicologia como algo referente
uma demanda pelo conhecimento psicoló- ao tratamento de psicopatologias, relaciona-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

gico” enfatiza o professor. Cristiano Barreira da a condições de fragilidade, ocorriam po-


relata que a(o) psicóloga(o) do Esporte atua sicionamentos mais preconceituosos. É uma
principalmente em projetos sociais e, em es- questão cultural e de formação dos diversos
portes de alto rendimento, e é nas categorias profissionais do campo esportivo, o que vem
de base onde acaba sendo mais aceito pelos mudando progressivamente”, conclui.
Diálogos – Como surgiu a Psicologia do continuou regra nos Jogos Olímpicos
Esporte? até os anos 1980, havendo a interdição
Cristiano Barreira - O campo da Psi- de atletas profissionais nas disputas. A
cologia do Esporte se confunde com a partir daí, ocorre a intensificação da pro-
própria institucionalização do esporte fissionalização do esporte que, na práti-
moderno. Essa história não é tão longa ca, trouxe a mudança do esporte como
como se imagina. É preciso pontuar que fenômeno social, que passa a se ampliar
quando se pensa numa continuidade do enquanto fenômeno de mercado até se
esporte desde a Grécia antiga, esse pen- tornar um fenômeno de massa e de es-
samento é definido por uma concepção petacularização, com injeção cada vez
anacrônica de esporte. Primeiro, não há maior de capital e o interesse mercantil
extensão temporal que evidencie uma acaba transformando o próprio fenôme-
continuidade histórica de práticas corpo- no esportivo.
rais que possamos chamar de esportivas.
Na verdade, verifica-se a descontinuidade Diálogos - O senso comum liga a Psi-
destas práticas corporais e uma retomada cologia do Esporte ao desempenho de
deliberada, simbolizada e materializada atletas profissionais. Quais outras apli-
pelo projeto do barão francês Pierre de cações deste campo?
Coubertin (1863-1937), com a inaugura- Cristiano Barreira - A Psicologia do Es-
ção dos Jogos Olímpicos da era Moderna porte se ocupa virtualmente com tudo
na última década do século XIX, em 1896. aquilo que diz respeito à cultura cor-
Trata-se, com efeito, de uma proposta poral de movimento. Ela contempla as
política, de educação e congraçamen- práticas recreativas e de exercício, a ini-
to dos povos a partir de uma linguagem ciação esportiva e socioeducacional, e
abrangente, não essencialmente verbal também a área da saúde, como no caso
e integradora das diferentes dimensões da promoção na saúde coletiva e na re-
humanas em seus esforços por desenvol- abilitação, seja em questões de saúde
ver e comparar habilidades– esta seria a de ordem mais física ou mental. Além
linguagem esportiva. Coubertin tem uma do fato de a Psicologia do Esporte estar
contribuição intensa nisso e, em grande mais ou menos bem inserida em uma
medida, projeta internacionalmente e ou outra dessas áreas, ela tem sido apli-
consolida o que já vinha se estabelecendo cada no ambiente das modalidades es-
como esporte moderno na Inglaterra a portivas virtuais, os e-games, nos quais,
partir destas práticas nos colleges da elite embora o corpo ceda espaço a um tipo
Foto: Mariana Leal

inglesa. A criação e o desenvolvimento do de avatar digital, psicologicamente os jo-


futebol e do rugby eram íntimos do pro- gadores são exigidos de modo bastante
pósito de fortalecer valores de liderança comparável ao dos atletas de modalida-
e de formação da elite inglesa. Isso se po- des convencionais.
pulariza, especialmente com o futebol,
que chega ao Brasil pelos ferroviários. No que diz respeito à formulação de
políticas públicas, a participação de es-
Simbolicamente, essa chegada se dá com pecialistas que enxergam problemas e
Charles Miller, que é um sujeito da eli- propostas sob o prisma da Psicologia do
te que traz bola, uniformes e normas da Esporte tem trazido contribuições rele-
modalidade. Esse é um pouco do contex- vantes. Especialistas têm sido recrutados,
to no qual germina o que veio a ser a Psi- por exemplo, para discutir problemas de
cologia do Esporte, o que se deu a partir mobilidade urbana. Para entender bem
de curiosidades práticas e, como primei- essa aplicação, às vezes muito específica,
ro desdobramento científico, resultou na às vezes muito difusa da Psicologia do
publicação, em 1898, do primeiro artigo Esporte, é importante vê-la como uma
na área. Ele se pautou em constatação das áreas que se ocupam com as práticas
feita pelo norte-americano Norman Tri- corporais e, emblematicamente, com o
plett. A curiosidade dele era com relação esporte, junto com outras áreas profis-
aos ciclistas, que, quando pedalavam sionais, como Educação Física, mas tam-
sozinhos, tinham certo desempenho e, bém a Fisioterapia e a Medicina. Não é
quando pedalavam em grupo, ou em du- por acaso que sou psicólogo, docente e
plas, tinham desempenho superior. Ele atual diretor da Escola de Educação Físi-
fez levantamentos dos tempos e dos re- ca de Ribeirão Preto da Universidade de
cordes. Por meio de experimentos, cons- São Paulo (USP), mas pelo fato de que
tatou que em situação competitiva na esta é uma área notadamente interdis-
qual a disputa se dava com um adversá- ciplinar, mesmo que tenha no professor
rio presente, o desempenho era melhor de educação física sua primeira referên-
do que quando a pessoa atuava sozinha, cia profissional.
ainda que procurando fazer seu melhor.
Este primeiro trabalho simboliza a inau- Em meio a essa interdisciplinaridade,
guração da Psicologia do Esporte e há existe uma demanda pelo conhecimen-

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este paralelo em que a primeira pesqui- to psicológico. E por que é uma área in-
sa científica é feita na mesma década da terdisciplinar? Porque é uma área que
inauguração dos Jogos Olímpicos da Era reúne o conjunto de conhecimentos
Moderna e muito próximo temporal- e ciências que, ao se ocupar da cultura
Dezembro de 2018
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mente do estabelecimento dos primeiros corporal de movimento, procura quali-


laboratórios de Psicologia e do delinea- ficá-la da maneira mais integral possível
mento da Psicologia como ciência. É im- em benefício da pessoa e da sociedade
portante perceber que, neste momento, que a realiza, isto é, que a pratica, mas
o esporte era amador e o amadorismo também que a consome.
Diálogos – Pode-se falar em consumo ção, o que se desdobra justamente num
da cultura corporal de movimento? olhar e numa intervenção fragmenta-
Cristiano Barreira - Falo em consu- dos, que perdem o todo. O equilíbrio
mo como um modo de a pessoa se re- entre especialização e generalidade se
lacionar com um fenômeno que não é torna cada vez mais difícil, sendo inclu-
o modo da apropriação cultural, mas é sive um dos motivos pelos quais novos
bem mais efêmero, a exemplo do gasto cursos superiores, ocupações e profis-
e do consumo energético metabólico. O sões vão sendo criados na esteira do au-
problema da aderência à atividade físi- mento da complexidade especializada
ca tem equivalências diretas com essa dos saberes científicos e das demandas
relação pouco significativa pessoal e da sociedade. Na área da educação física
culturalmente, mesmo se valorizada e e do esporte houve um expressivo au-
envolvendo investimentos financeiros mento do conhecimento no campo das
e de tempo. Note-se que esse consumo, chamadas biológicas, o que muitas vezes
muitas vezes, se dá com seus sujeitos se reflete na formação dos graduandos.
negligenciado o próprio protagonismo Mais do que isso, a Psicologia como um
do movimento e adotando uma posição todo, e também a do esporte, veio se de-
passiva, de espectador que se relaciona senvolvendo, tornando complexos seus
com esta cultura à distância e de modo saberes, o que acentua a diferenciação
sedentário, mesmo se muitas vezes en- do olhar profissional do psicólogo para
volvido emocionalmente. Mas este é fenômenos desse campo multifacetado
um tipo de entretenimento inativo que, que é a cultura corporal de movimento.
quando predominante ou exclusivo, Esse olhar exerce um papel relevante
empobrece o tempo de lazer. Voltando quando se pensa em políticas públicas
um pouco atrás, vale observar que esse ou em projetos sociais. Por exemplo,
empobrecimento corresponde à frag- uma reflexão ampla a ser feita é a de
mentação das diferentes dimensões que, apesar do Ministério do Esporte ter
humanas que, já em seus primórdios, o sido criado em 2003, ou seja há 15 anos,
movimento olímpico almejava ver inte- no primeiro governo Lula, não existe o
grada nessa linguagem universal orien- que se possa chamar de uma política de
tada pelo empenho em testar, aperfei- Estado de esporte. Existem sim políti-
çoar e comparar habilidades. Sob a ótica cas de governo, fragmentadas e que se
de uma antropologia fenomenológica, o transformam. Não há uma consistência
esporte reúne intensa e contemporane- que permita uma consolidação e uma
amente o engajamento do corpo – em prática efetivas para o que almejamos.
sua atividade motora –, da psique – com
seus afetos, emoções e hábitos – e do es-
pírito – com sua volição, discernimento
racional e capacidade de decisão. Outras
práticas corporais, como a ioga, a dança,
É crucial fazer
os exercícios, os jogos e as artes marciais
não esportivizadas, por exemplo, tam- valer o esporte
bém o farão, cada qual ao seu modo e
cada modo solicitando a atuação dessas
dimensões com orientações, intensi-
como direito
dades e dinâmicas próprias. Como es-
sas práticas, por natureza ontológica de E o que almejamos? Para começar, nada
tudo o que é humano, são socialmente mais do que fazer valer aquilo que está
situadas, a sociedade, os relacionamen- na Constituição, art. 217, que designa o
tos e as instituições em que elas podem esporte como direito social. Fazer va-
se realizar estão sempre atravessando ler isso implica a criação de um sistema
todas aquelas dimensões e devem tam- nacional esportivo. Até o momento, as
bém ser levados em consideração. políticas de governo oscilam seus in-
vestimentos entre o enfoque no esporte
Note também que aquela fragmentação, de alto rendimento e o enfoque no es-
ilustrada pelo entretenimento passivo porte de base, ou de formação. Esse in-
do espectador esportivo, encontra pa- vestimento pendular, oriundo de uma
ralelo em outras vias, que são as tecno- concepção política dicotômica, poderia
lógica e a epistemológica. Pela tecnoló- ser modificado. A começar levando em
gica, a fragmentação que ilustra isso de consideração que o imaginário esporti-
modo mais atual é a das modalidades já vo advindo do alto rendimento é a fonte
mencionadas, os e-games ou e-sports. maior pelo desejo da prática esportiva,
Mas isso já era questão anterior por por um lado, e que, por outro, sem a
conta de tecnologias que reduziram a iniciação esportiva das bases não se for-
necessidade de movimento no trabalho mam atletas de alto rendimento. Mo-
e para a mobilidade urbana. Essas con- dificar essa política passa por se pensar
quistas tecnológicas, inadvertidamente, um sistema integrado de política pública

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favoreceram o sedentarismo. Quanto à esportiva, em que base e alto rendimen-
via epistemológica, os recortes entre as to estivessem não só articulados entre
diferentes áreas do conhecimento cien- si, mas também com um olhar atento
tífico atendem às especificidades cada ao inteiro ciclo da vida, contemplando
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vez maiores dos objetos e dos métodos também a velhice, o que vem a ser uma
aplicados para estudá-los. Uma conse- prioridade a mais em um país no qual
quência positiva disso é a especialização a divisão populacional por faixa etária
científica do conhecimento e de sua pro- o revela como estando em franco enve-
dução; um risco é sua hiperespecializa- lhecimento. Tudo isso não é matéria a
ser deixada aos ventos do mercado e do -se de um olhar que só o psicólogo pode
consumo individual. É uma matéria de ter nos trabalhos de gerenciamento de
interesse público e deve haver política carreira que, a bem dizer, deveriam co-
de Estado para atendê-la. meçar com o jovem, já na base, inclusive
de modo profilático face a uma escolha
Diálogos - Em qual segmento as(os) psicó- que pode levá-lo a muito sucesso, mas
logas(os) do esporte estão concentrados? também a muita frustração.
Cristiano Barreira - Ele se distribui bas-
tante na forma de projetos sociais e no

As práticas
alto rendimento e é nas categorias de
base onde acaba sendo mais aceito pe-
los diferentes clubes. Ainda subsiste uma
resistência maior nas categorias pro-
fissionais, o que diz respeito a questões esportivas são
político-institucionais e até de formação
e cultura dos dirigentes e técnicos espor-
tivos e da compreensão que eles têm em
disputas com
regras iguais para
relação ao que é a Psicologia do Esporte,
à presença e ao trabalho do psicólogo.
Quanto a este aspecto, muitas vezes, por
ter uma compreensão estereotipada de
Psicologia, como algo referente ao tra- todos
tamento de psicopatologias, relaciona-
da a condições de fragilidade, ocorriam Diálogos – Como o esporte reflete as
posicionamentos mais preconceituosos. mazelas da sociedade brasileira?
É uma questão cultural e de formação Cristiano Barreira -Não deixa de ser
dos diversos profissionais do campo reflexo, mas não a título de imagem
esportivo, o que vem mudando pro- especular; há também opacidades e re-
gressivamente. Já outra questão, mais frações. Há uma complexidade da so-
política-institucional, é a percepção do ciedade brasileira que tem uma história
psicólogo como alguém que possa ame- de estruturação fundada na violência es-
açar a liderança e a autoridade do técni- cravocrata e perpetuada em derivações
co. Trata-se de uma má compreensão do como as profundas diferenças de classe,
que seja o trabalho do psicólogo na prá- mas não significa que estamos em cons-
tica e na relação com a equipe. Ele não tante estado de violência. Isso diz respei-
toma decisões no lugar do técnico, mas to a um dilema e a um conflito no seio
trabalha com a equipe na mesma dire- de nossa sociedade e com o qual lidamos
ção, com seu enfoque próprio e sempre de diversas maneiras, perpetuando e re-
com a devida atenção ética ao bem-es- petindo essas práticas de violência, mas
tar. E aqui cabe uma advertência: deve- também nos contrapondo e lutando por
-se saber que o bem-estar do atleta não formas sociais mais justas de reconheci-
se dá sem o enfrentamento de sacrifícios mento. No esporte, cenas de racismo e
autocolocados em razão de seus objeti- violência são momentos emblemáticos
vos. Isso é próprio da ética esportiva e de nossas mazelas, mas não acredito que
um psicólogo que desconhecesse esse sejam um espelho fiel do que se passa na
aspecto da natureza do esporte não atu- sociedade brasileira. São sim ilustrações
aria bem na área. No alto rendimento, de um processo sintomático de tensões
não haver uma dedicação sacrificada por com as quais nós lidamos muito mal ao
parte do atleta pode ser motivo de mal- longo da história.
-estar e de frustração por conta de um
resultado aquém daquele que ele crê ou Diálogos - E como essa história se refle-
sabe que seria capaz de atingir. Mas en- te no esporte?
tre o sacrifício e as exigências dos treina- Cristiano Barreira - Ao longo do tempo,
dores, há uma modulação cujo descui- temos o racismo étnico, mas também o
do pode se desdobrar em abuso físico e de classe. Ambos se fundam com a es-
moral. A melhor atenção a isso, visando cravidão e o racismo étnico se legitima
contemplar as ambições de ambos, trei- com a eugenia, que, naquele momento
nadores e atletas, é uma atenção psico- da história, virada até quase meados do
lógica ao relacionamento que se esta- século XX, era considerado ciência e jus-
belece e que é atravessado por nuances tificava práticas sociais francamente dis-
irrefletidas, às vezes conflitivas, devidas criminatórias como políticas de Estado.
ou não a motivos inconscientes. Na ver- E se não é mais oficialmente assim, os
dade, isso se estende como um trabalho resquícios disso ficaram e se transmu-
em favor da equipe para facilitar relacio- taram num racismo de classe, não assu-
namentos e catalisar uma comunicação mido e articulado, como foi a eugenia,
efetiva, sensível às particularidades dos mas irrefletido e mal dissimulado numa
atletas. E tudo isso nesse contexto que noção de prestígio social que se justifi-

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é atravessado por muita cobrança por caria por supostos méritos individuais,
resultado. Além do mais, os psicólogos quando, na verdade, são muito deriva-
têm estado atentos à necessidade de cui- dos de nossa violência escravocrata fun-
dar educativamente dos valores dos atle- dadora. Veja bem, isso não significa que
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tas, haja vista não só as questões éticas não existam e que não devam ser reco-
na prática esportiva, mas a um tipo de nhecidos os méritos individuais, mas
desorientação pessoal que temos teste- que nenhuma justiça social e nenhuma
munhado ocorrer com atletas cuja as- luta contra as discriminações típicas de
censão social é mais vertiginosa. Trata- nosso país possam ocorrer sem o reco-
nhecimento de que existe uma condição direitos equivalentes entre eu e o outro,
social de partida acentuadamente desi- de modo progressivamente mais uni-
gual. Não se fez justiça em relação a estas versal. Isso ocorre melhor quando ele
minorias, que não são quantitativas, mas se dá sob condições controladas e orien-
são minorias de direito e de reconhe- tação educacional. A disputa esportiva
cimento amplo, afetivo e social, o que tensiona o sujeito de tal modo que ele
deteriora sua dignidade a ponto de não não tem como deixar de se posicionar
chegarem a fazer valer os direitos a to- moralmente. Por isso, certos eventos no
dos atribuídos pela letra da lei. E como esporte de massa geram tantas contro-
a história de classe e etnia no Brasil se vérsias e polêmicas, servindo como te-
confundem, a maioria dos pertencentes mas emblemáticos para conversações de
às classes pobres é formada por negros e caráter ético no cotidiano. No contexto
mestiços. Estatisticamente, brancos das esportivo, quando se deprecia alguém
classes menos favorecidas estão menos com base em algo próprio do seu fenóti-
sujeitos à violência, até porque encon- po ou de outro aspecto de sua identida-
tram mais facilidade de se inserirem no de, algo que seria signo de uma posição
mercado. Trazendo isso para o contex- de suposta inferioridade, este apelo à
to esportivo, vale a pena destacar o fato imoralidade – sintomático de imorali-
de que, no esporte, a expressão, ou a dades das hierarquias morais predomi-
passagem ao ato, para usar uma noção nantes na sociedade - ocorre como meio
de sabor psicanalítico, está muito mais de se impor, de se autoafirmar, de dimi-
rente à superfície das ações nas práticas nuir o outro e também de compensar o
motoras, fomentando um tipo de expe- desempenho pior em relação ao outro.
riência emocional que está muito mais à Aqui, mimetizando as discriminações
flor da pele. Se pensarmos nas várias ins- sociais, o sujeito interfere moralmen-
tituições importantes na sociedade, em te na disputa esportiva usando de algo
quais outras se encontra essa relação tão estranho à disputa propriamente dita,
direta e tão rápida das expressões psí- modulando para cima a própria estima
quicas nas ações? Aqui há muito menos pela depreciação da estima alheia. No
mediação reflexiva, portanto tudo aqui- contexto da realidade social brasileira,
lo que compõe diretamente nossos sen- sabemos bem que esta inferioridade não
timentos sob controle, é apenas suposta, mas
mediados sob alguma tem eficácia prática. O
censura moral, aparece apelo imoral nas aulas
de maneira muito me-
nos velada no esporte,
Conhecer a de Educação Física e
no esporte é um sinto-

modalidade
em especial os de con- ma mimético de como
tato e os que implicam nossa meritocracia é
uma interação direta falaciosa. Ela não está
com o adversário. É
no contexto das aulas esportiva é fundada num senso de
justiça autêntico, mas
de Educação Física, no em profundos senti-
caso de crianças e jo-
vens, que as maiores
decisivo para mentos que atribuem
de antemão os lugares

a prática do
expressões de discri- e as escalas sociais dos
minação e de bulliyng dignos e dos indignos,
vão ocorrer. Afinal, há dos que merecem e
muito mais margem
para a ação e expressão psicólogo dos que não merecem
sequer participar da
direta entre as pesso- disputa, dos que não
as do que em espa- sabem “ficar em seus
ços mais controlados e mais mediados lugares”. Esse apelo é bem expresso
por tarefas prioritariamente cognitivas, nos xingamentos que depreciam, não o
como são os das salas de aula. É na edu- que o outro fez, mas uma condição de
cação física que elas se expõem mais, é identidade socialmente deteriorada do
onde esses sentimentos depreciativos e outro – vide o preto, a puta e o pobre.
as expressões discriminatórias ocorrem Então, bem entendido, pela natureza
de maneira menos articuladas do ponto de suas regras, o esporte pode inverter
de vista intelectual e moral, ocorrendo, de forma potente o reflexo das maze-
ao contrário, de modo mais mimético. las, sejam elas brasileiras ou não. Uma
Aquilo que é mais rápido de se identi- reflexão ampla – na mídia esportiva,
ficar – as diferenças corporais várias de por exemplo - e uma intervenção pon-
forma e gestual como as deficiências, tual – em contextos socioeducativos e
o tamanho, o gênero e a sexualidade, mesmo de alto rendimento – acolheria
as habilidades – vai ser o gancho para cada ocasião dessas para explorar o tema
expressões típicas de uma disputa que do desenvolvimento moral, das normas
apela para a imoralidade. As práticas es- elementares de convívio social. Trata-se

10
portivas são disputas que ocorrem num de fazer valer esse momento para deba-
enquadre cooperativo de concordância ter e instruir regra social, não pelo viés
de que as regras valem igualmente para de sua heteronomia, mas de como elas
todos. Sendo disputas, elas exercitam e nos dizem respeito a todos, a fim de que
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

ensinam o senso de justiça. No decorrer a elaboração do sentido dessas normas


de um desenvolvimento moral satisfa- se torne incorporação desse sentido. É
tório há uma progressiva passagem de o sentido dessas regras que permite a
uma concepção egocêntrica a uma con- participação com o direito equivalente
cepção de maior atenção à alteridade e a ao do outro, próprio de um processo de
Foto: Mariana Leal
socialização e civilizatório efetivamente tematizo como profissionais de MMA
orientado por sensos autênticos de justi- atuam e pensam, entrevistando lutado-
ça. Nisso o esporte encontra, com o au- res em Brasília, Curitiba, São Paulo, Belo
xílio de uma psicologia crítica, seu papel Horizonte, Salvador, Belém, Manaus e
civilizatório. Rio de Janeiro para entender melhor a
experiência e a percepção deles em re-
Diálogos - As (os) psicólogas (os) da área lação à violência. É curioso. Alguns di-
tem que entender de esporte? zem que é violento, outros dizem que
Cristiano Barreira - Sim, tem que en- não. Quando são solicitados a articular
tender de esporte. Na medida em que isso, percebe-se que o grande proble-
vai se especializando e dedicando à sua ma mora na concepção de violência. O
prática profissional, tem que entender que pude verificar em minha pesquisa é
muito da modalidade ou das poucas que é certo afirmar que o MMA é uma
modalidades com as quais ele trabalha. modalidade fisicamente degradante.
É muito diferente, por exemplo, traba- Sem querer insinuar que não haja lu-
lhar com golfe ou com futebol. Existem tadores que tenham tido experiências
psicólogos que trabalham bem nessas violentas na carreira, seja no MMA ou
áreas e que dificilmente, vai trabalhar em outras modalidades, a pesquisa me
também boxe, basquete e boliche. O permite afirmar com segurança que,
conhecimento da modalidade é decisi- para eles, em sua experiência vivida,
vo para sua prática. Ele tem que saber normalmente, a prática do MMA não é
das diferentes posições em um esporte violenta. Só que, de todas as modalida-
coletivo, as características, as exigências des de combate, o MMA é a que mais se
psicológicas e físicas que vão afetar o assemelha a uma briga. Por isso, numa
seu desempenho. Portanto, além de um primeira impressão, é muito difícil se-
conhecimento teórico do esporte como pará-la da violência. Para tratar disso de
fenômeno complexo, de que diferen- maneira consistente e ampla, foi neces-
tes áreas do conhecimento se acercam, sário dar um passo atrás e realizar uma
o psicólogo deve ter um conhecimento fenomenologia do combate e das artes
prático ganho no convívio de um setting marciais, trabalho que foi publicado em
psicológico que é o do próprio campo 2017 na revista científica “Archives of
esportivo. Budo”, uma das principais referências
no campo. Só se separa briga e luta, ou
Diálogos - O boom do MMA já chegou violência e ética esportiva, por meio de

11
à Psicologia do Esporte? um mergulho na intencionalidade do
Cristiano Barreira - Chegou sim e o lutador, daí ser necessário ir ao encon-
caso do MMA traz à tona um dilema, tro da experiência vivida pelo atleta. Mas
de delicado enfrentamento, acerca das há ainda a questão da degradação física,
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

fronteiras entre violência e ética. O as- um ingrediente a mais no problema


sunto tem chamado a atenção não só ético da modalidade. Estatisticamente,
de psicólogos, mas de pesquisadores no as lesões agudas raramente passam de
campo da antropologia, filosofia e medi- escoriações, ainda que possam sangrar
cina. Em pesquisa apoiada pela Fapesp, abundantemente, o que dá um aspecto
sensacional a certos combates. Só que de opressiva intensamente vivida pelos
se deve ter clareza de que os golpes re- lutadores. A organização dos combates e
cebidos na cabeça, além do risco agudo, uma possível classificação dos lutadores
até de morte, fazem mal crônico à saúde não são regidas por federações esporti-
cerebral. Como a modalidade é recente, vas da modalidade, mas por empresas
ainda não se conhece bem a extensão que promovem os eventos. Os lutado-
desses males. O que as evidências mos- res não têm qualquer segurança traba-
tram é que os lutadores do MMA estão lhista, recebem quando lutam e, à parte
um pouco mais protegidos em relação aqueles bem consagrados que atuem em
à intensidade e à quantidade de golpes eventos muito grandes, recebem mal, o
levados na cabeça do que os lutadores de que chega a ser menos do que custaria
boxe, cuja regra exige que ele permaneça um tratamento dentário caso tenham
em pé para não ser derrotado, enquan- uma lesão um pouco mais séria. A vida
to no MMA o lutador tem a opção de se profissional da maioria deles é bastante
proteger indo ao chão e se agarrando ao incerta e insegura. Ouvi relatos de quem
oponente para não continuar a ser atin- chegou a lutar e não recebeu o que tinha
gido na cabeça. Mas essa diferença não sido previsto. Como sua atuação depen-
isenta em nada o MMA quanto ao peri- de desse mercado, é difícil para o lutador
go de uma degradação cerebral crônica. que está à espera de suas oportunidades
Todo lutador deve saber que está sujeito fazer resistência, e fácil ser explorado.
a consequências crônicas muito ruins e Ainda assim, entre os profissionais, mui-
sofridas, eu diria até bem piores do que tos não querem fazer outra coisa porque
a maioria quantitativa das lesões agudas, se sentem apaixonados pela luta. Eles di-
o que foi bem e corajosamente descrito zem amar o que fazem e ter esperança
pelo neurologista de origem nigeriana de se consagrarem e melhorarem a sua
Bennet Omalu, enfrentando a indústria própria vida e a da família. Some-se a
do futebol americano ao revelar os ado- isso o fato de que a preparação adequada
ecimentos que acometiam os jogadores para uma luta se prolonga por meses e a
em função das concussões cerebrais que perda de peso para um ajuste à categoria
ocorrem na modalidade. pode levar semanas e pronto: sob tanta
pressão, fica fácil imaginar a importân-
Há ainda dois tópicos cia de um bom trabalho
relativos ao MMA e à
Psicologia do Espor-
te que eu gostaria de
A Psicologia do psicológico.

Diálogos - Como você


pontuar. Um se refe-
re à dúvida quanto ao Esporte não qualifica a produção
científica na Psicologia

é domínio de
MMA incitar à violência do Esporte?
ou não, principalmente Cristiano Barreira - Já
entre jovens. Sabe-se em 1965, desde o pri-
muito pouco a respei-
to disso, mas o que há
de pesquisa científica
determinada meiro congresso inter-
nacional de Psicologia
do Esporte há a par-
já feita tende a mostrar
que não há relação. Mas abordagem ticipação do Brasil no
cenário internacional.
não se pode dizer que Mas o aprofundamento
haja uma palavra definitiva sobre o as- e a consistência da área é mais recente
sunto. Como crianças e jovens não vão no Brasil, remontando ao fim da década
deixar de estar expostas às imagens das de 1990, início dos anos 2000. E vem se
lutas, a recomendação que pode ser feita fortalecendo, com inserções no âmbito
é para que pais e educadores conversem internacional e pesquisadores vincula-
sobre as diferenças entre a modalida- dos em instituições de vários países, am-
de e a violência, acentuando a ética de pliando-se o interesse de fora por aquilo
trabalho dos lutadores, sem deixar de que fazemos aqui. Em 2016, foi criado
alertá-los para o perigo físico que cor- o primeiro GT de Psicologia do Espor-
rem, mas frisando que se sujeitar a isso te na Associação Nacional de Pesquisa e
é uma escolha deliberada deles. Contra Pós-graduação em Psicologia (Anppep).
essa recomendação, porém, concorre Esse grupo reúne profissionais colabo-
o interesse de mercado. Grandes even- radores e professores credenciados em
tos estimulam exposições de rivalidade programas de pós-graduação, buscando
com base em ofensas pessoais entre os uma unidade maior, uma interlocução
lutadores. Como o pico da narrativa des- maior para que a produção de conheci-
sas desavenças se concluiria no cage, isso mento e o campo se fortaleçam atentos à
tornaria os combates mais atrativos. A realidade esportiva brasileira e ao prota-
mensagem que é passada com isso não gonismo científico de seus pesquisado-
poderia ser pior. Ela salienta a agressão res. Isso favorece uma visão mais com-
física como meio para solucionar con- plexa e menos técnica ou instrumental

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flitos, dando ao MMA uma conotação da área, assim como promove o aperfei-
violenta que se opõe à ética esportiva e çoamento das técnicas e instrumentos,
também à das tradições marciais. Como fornecendo mais garantias para o seu
vimos, há uma distância entre a expe- bom uso. Definitivamente, a Psicologia
Dezembro de 2018
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riência normalmente não violenta dos do Esporte não pode ser vista nem pra-
lutadores e essa conotação, que inte- ticada apenas como técnica, ainda que
ressa a um mercado de entretenimento se valha de técnicas e instrumentos cuja
esportivo. O psicólogo do esporte, toda- aplicação tem sua eficácia. O grupo da
via, lida diretamente com outra realida- Anpepp materializa um investimento
intelectual coletivo que aposta no en- Para começar, há uma relação temporal
riquecimento da Psicologia do Esporte de causa e efeito ao se ocupar o tempo de
pelo reconhecimento de sua especifi- jovens tirando-os das ruas. Não se trata de
cidade e pela valorização de suas várias deixá-los sem tempo livre, mas de quali-
interfaces. ficar seu tempo com práticas organizadas,
em convívio comunitário no qual há re-
Na Psicologia do Esporte, as discussões ferências dadas pela presença de adultos
internas hoje se dão a partir de uma formados para atuarem com eles. Uma
maior problematização epistemológica. coisa é jogar futebol como prática orga-
Junto a isso há o enriquecimento de abor- nizada e outra é só jogar futebol de rua,
dagens em interface com perspectivas sem figuras de autoridade e referência dos
em psicologia diversas, como a Gestalt, a valores que se organizam esportivamen-
análise do comportamento, a psicanálise, te. Aí, como comentava antes, esses valo-
a comportamental, a psicologia positiva, res estão mais sujeitos a se distorcerem
a psicologia analítica, a fenomenológi- mimeticamente, que é quando todas as
co-existencial. Isso compõe o enriqueci- práticas discriminatórias e de propensão à
mento epistemológico e fomenta novas violência podem ocorrer mais facilmente.
discussões. A Psicologia do Esporte não O excesso de tempo livre, somado à falta
é domínio de determinada abordagem e de expectativa, isto é, ficar sem fazer nada
também não é uma área isolada que não e sem perspectiva de ter o que fazer, se
conversa com as demais áreas. Ela se en- contrapõem ao tempo ocupado com uma
riquece e depende destas interfaces para prática organizada como as artísticas e es-
continuar se qualificando e, consequen- portivas, em que modelos de vidas éticas
temente, agregar conhecimento mais são colocados em movimento. Trata-se
consistente e abordagens mais apropria- de ter uma compreensão da alteridade e
das às realidades que encontra. de como eu me posiciono no empenho
nas atividades que realizo, conseguindo
Diálogos – Quais são as consequências enxergar, pela valorização do outro, a me-
da falta de investimento no esporte? lhora naquilo que faço e que sou capaz
Cristiano Barreira - Mais do que corte de de fazer, o que se converte num tipo de
direitos, a consequência desse corte seria cuidado psíquico, numa ética voltada ao
o de aumento da própria insegurança. reconhecimento de mim mesmo. Perce-
Quando ocorrem cortes na cultura e no ber que o engajamento em determinada
esporte, com redução ao fomento des- atividade, que é repetida e tem continui-
sas práticas e diminuição das condições dade, faz o efeito de melhora, diz respeito
materiais para haver envolvimento e va- a como posso me aperfeiçoar. Em situa-
lorização da dignidade do jovem como ções sociais em que jovens estão despro-
protagonista de sua vida e de sua própria vidos de figuras de cuidado, a promoção
formação, abre-se mais margem à sua material e humana de ambientes de arte e
vulnerabilidade. Arte e esporte colocam esporte as coloca em contato com figuras
os jovens em contato com modelos e va- efetivas de cuidado ético.
lores éticos que só podem se
materializar com força exis-
Foto: Mariana Leal

tencial para eles na produção


criativa e na ação. Ambos, de
certa forma imunizam, ou
tem algum poder de imuni-
zação contra a criminalidade
e o esvaziamento de valores
que dão sentido à vida e ao
desejo por relacionamen-
tos éticos. Este investimento
tem essa consequência cla-
ra. Na Islândia, pesquisa re-
cente mostrou como o uso
de tabaco, álcool e maconha
entre os jovens caíram con-
sideravelmente com investi-
mentos simples em esporte e
arte. Por um exemplo como
esse, vemos como é muito
sério que ocorra tamanho
desinvestimento no Brasil.
É cristalino como esse é um
tipo de ação que vai se vol-
tar contra ela mesma. Ivan
Illich (1936-2002) chamava

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isso de contraprodutividade
paradoxal, citando exemplos
de como certos modos de
se buscar mais saúde, pro-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

duziam mais doenças. In-


dependentemente do corte,
essa é a consequência que
teremos: busca-se segurança
e se gera mais insegurança.
A Revista Brasileira de Psicologia do Esporte existe há mais de oito anos.
Lotada no portal de revistas da Universidade Católica de Brasília (UCB), é uma
publicação da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp) criada
para ser espaço de reflexão, de crítica, de debate e de divulgação sobre o que se
Curtas
faz na área. É a única revista especifica de Psicologia do Esporte do Brasil.

A Abrapesp foi criada em 2003, logo após formação da primeira turma de


especialistas em Psicologia do Esporte, do Instituto Sedes Sapientiae de São
Paulo. A proposta era congregar profissionais da área de Psicologia e de áreas
afins ao esporte. Além de editar a revista, a Abrapesp promove um congresso
nacional a cada dois anos.

Saiba mais: www.abrapesp.org.br/

Foto:Satiro Sodré/SSPress
Contra o abuso sexual
Detentora de recordes nacionais e
internacionais, Joanna Maranhão é nadadora
conhecida do público. Há dez anos
denunciou o abuso sexual que sofreu de seu
treinador quando tinha 9 anos. A denúncia
foi o primeiro passo. O caso de Joanna
deixou um marco na legislação brasileira
que trata de crimes de abuso sexual, estupro
e atentado violento ao pudor. Em 2012,
foi aprovada a lei “Joanna Maranhão”, que
muda as regras para casos dessa natureza. A
prescrição do crime passou a valer a partir
do momento em que a vítima completa 18
anos e não quando o crime foi cometido.
Em 2014, a atleta deu um passo adiante
e criou a ONG Infância Livre, dirigida as
crianças da rede pública que sofreram
abuso sexual. A sede é na sua Recife natal.
Por meio de encaminhamentos, práticas
esportivas, palestras, conscientização
e educação sexual, a ONG combate ao
abuso e exploração sexual nas escolas e
espaços frequentados por crianças. Em
quatro anos, 200 atendimentos e mais
de 50 palestras foram realizados em todo
o país. Além dessas atividades, o projeto
Infância Livre estabeleceu parcerias com

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o projeto Emancipa Esporte, e promove
aulas de natação para 50 jovens da região
da Pampulha, e junto à Associação Esporte
Dezembro de 2018
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sem Fronteiras, que atende mais de 150


jovens com aulas de judô na região da
Cachoeirinha, ambas em Belo Horizonte.
Diminuir o abismo social

Foto: Divulgação
A história começou há mais de 15 anos. Dois
jovens de classe média treinavam rugby, esporte
de origem inglesa, elitizado e praticamente
desconhecido no Brasil, nos espaços públicos do
Morumbi, bairro de classe média alta em São Paulo.
Logo, as crianças da comunidade pobre e carente
da vizinha Paraisópolis se interessaram pelo
jogo. De plateia animada e curiosa, começaram a
aprender as regras do jogo e a treinar junto. Dessa
interação nasceu o Projeto Rugby para Todos, que
desde então apoiou a formação pessoal de 5 mil
crianças e jovens. E também criou uma geração de
atletas de alto nível, que representam faculdades,
clubes da primeira divisão paulista e as seleções
nacionais juvenis e adultas, masculinas e femininas.

Natália Sousa, psicóloga especializada de Esporte,


que coordena o projeto atualmente, conta que,
além dos treinos, oficinas sobre direitos, orientação
vocacional e construção de valores são promovidas
por uma equipe multidisciplinar, formada por
psicólogos(as), fisioterapeutas, nutricionistas,
pedagogas(os) e assistentes sociais. Juntos, apoiam
as crianças e jovens da comunidade, buscando
a participação da família. Além do esporte, os
jovens passaram a se interessar pela Psicologia,
a Fisioterapia e a Educação Física. Hoje, vários
são profissionais formados em carreiras ligadas
ao esporte. O projeto, entretanto, enfrenta
dificuldades financeiras, agravadas nos últimos
meses, com a suspensão do repasse de recursos
pelo Ministério do Esporte. Natália Sousa pensa no
plano B de captação de recursos, mas o quadro de
funcionários já diminuiu e as dúvidas são enormes
sobre o futuro do projeto.

Saiba mais: www.rugbyparatodos.org.br

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Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Artigo

Projetos
Sociais na
Psicologia
do Esporte:
possibilidades
e desafios
na atuação
16 profissional
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Fábio Silvestre da Silva


Escrever sobre a atuação profissional do psicólogo do
Esporte é um grande desafio. Basta verificar a produção
acadêmica da área para constatar a carência de estu-
dos e publicações. A Psicologia, acompanhando o de-
senvolvimento da humanidade, promove constantes
revisões em suas teorias e amplia suas práticas, tentan-
do encontrar respostas aos desafios que surgem com o
progresso da sociedade, que, à medida que traz novas
perspectivas de vida, também traz novos problemas a
serem enfrentados pela ciência.

A articulação entre o exercício da subjetividade envol-


vida no esporte e a intervenção propriamente dita é o
desafio central da Psicologia do Esporte nos projetos
sociais. Intervir na construção de políticas públicas
do esporte, participar da gestão de projetos sociais es-
portivos, realizar processos de formação continuada,
acompanhar equipes e participar de um time de pro-
fissionais com diferentes saberes exige dos psicólogos
a compreensão das dimensões políticas, conceituais,
metodológicas e técnicas. Além disso, requer uma pos-
tura interdisciplinar que considere um projeto de so-
ciedade, as dinâmicas sociopolíticas, o papel do Estado
e o potencial da narrativa esportiva, que compõem o
contexto específico de intervenção realizada.

Procurei declarar logo o entendimento macro do papel


do psicólogo do esporte com o propósito de ampliar a
reflexão do nível pessoal para um contexto de direitos
e de limite da atividade social em face da necessidade
da intervenção, para os profissionais que pretendem
atuar ou já atuam em projetos sociais que utilizam o
esporte como principal narrativa no processo de edu-
cação para a cidadania.

DESAFIOS
Esse alerta faz-se necessário, pois corremos o risco que
a Psicologia do Esporte seja percebida, apenas, como
saber acessório às práticas vigentes e tradicionais do
esporte e da atividade física, especialmente na lógica
da normatização da vida privada e pública. A maior
parte dos colegas quando vão a congressos ou a cursos
procuram saber apenas da parte operacional, como as
técnicas e o modo como cada profissional faz. É salutar
a busca, no entanto, as práticas, quando não refletidas,
podem recair na reprodução ideológica, transforman-
do a Psicologia em instrumento de dominação e ajuste
de pessoas que estão em desacordo com o sistema so-
cial.
A Psicologia do Esporte tem desafios próprios, sendo os
mais importantes deles: viabilizar novas formas de atu-
ação adequadas às demandas atuais de nossa sociedade
e teorizar sobre a importância do desenvolvimento hu-
mano pelo esporte e proteger a diversidade no exercí-
cio da subjetividade.

Dito isto, a Psicologia do Esporte é mais uma das cha-


madas Ciências do Esporte, que estuda os comporta-
mentos de pessoas envolvidas no contexto esportivo e
de exercício físico. No Brasil, sua história é recente. Em

17
2001, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
(CRP/SP) debateu as diferentes possibilidades da práti-
ca, diferenciando a Psicologia no e do esporte. Foi um
marco fundamental, pois a Kátia Rubio, coordenadora
Dezembro de 2018
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da Comissão do Esporte do CRP/SP (2000) criou o pri-


meiro curso reconhecido pelo Ministério da Educação
no Instituto Sedes Sapientiae, em 2002.
RESPONSABILIDADE SOCIAL damental a convivência da “forte
Rubio foi a primeira a usar a expres- economia”, marcada pela extrema
são “Psicologia Social do Esporte” e concentração de renda, com o pés-
consolidou na grade curricular da simo índice de desenvolvimento
pós-graduação a disciplina projetos humano, o que produz e reproduz
sociais, que produz artigos e discute profundas desigualdades sociais. Es-
o papel do psicólogo atuando neste sas levam à formação de um triân-
campo. A produção acadêmica e as gulo entre Estado, iniciativa privada
aulas sugerem o papel e a respon- e iniciativas comunitárias, que cor-
sabilidade social do profissional e responde ao objetivo neoliberal de
das novas possibilidades de atuação aprisionar a sociedade civil em seu
em projetos sociais associado com esquema simplista, assegurando a
a educação pelo esporte. Basica- liberdade empresarial, reduzindo o
mente, o objetivo do psicólogo do papel de gestor público e segurando
esporte é entender como os fatores a pobreza nos limites toleráveis.
psicológicos influenciam o desem-
penho físico e compreender como As instituições, com o fim de repa-
a participação nessas atividades afe- rar a dívida social, vêm buscando
ta o desenvolvimento emocional, a qualificar as ações com investimen-
saúde e o bem-estar da pessoa nesse to no esporte para crianças e ado-
ambiente. lescentes. A visão de um esporte
como direito numa linguagem que
O ambiente mais conhecido da atu- visa facilitar o processo educativo e
ação é o esporte de rendimento, ampliar as possibilidades de atua-
entretanto, não é seu único foco. ção profissional, uma vez que é con-
Outras áreas também são objeto de textualizado sócio politicamente,
estudo e intervenção como: as prá- transformam-se em instrumento
ticas de tempo livre, voltadas para de interpretação da realidade, por
a saúde e o bem-estar; o esporte meio da discussão e da reflexão de
escolar; a iniciação esportiva, onde sua prática concretizada na atuação
crianças e jovens estão envolvidas direta das ações educativas.
em atividades esportivas, pedagó-
gicas e competitivas; a reabilitação, PROMOÇÃO DE DIREITOS
que visa a recuperação psicológica Neste cenário, a parte social da Psi-
de lesão de atletas e praticantes de cologia do Esporte nasce com essa
esporte ou inserção social (os obe- perspectiva e necessita cada vez
sos, os doentes cardíacos, as pesso- mais ser reconhecida pelas institui-
as com necessidades especiais entre ções responsáveis pela promoção
outros); e o objeto deste artigo, os desses direitos. É preciso ressaltar
projetos sociais, que tem o esporte que as políticas públicas e os pro-
como meio de educação e sociali- gramas sociais direcionados à ca-
zação, já conceituado inicialmente. mada populacional em situação
vulnerável economicamente não
INJUSTIÇAS E DESIGUALDADES são suficientemente abrangentes
Os projetos envolvendo esporte nem atraentes no sentido da classe
têm apresentado um crescimento. trabalhadora visualizar perspectivas
Segundo Rubio (2000), o esporte de melhorias de sua sobrevivência.
hoje é considerado um dos maiores Estas ausências do Estado acabam
fenômenos sociais da modernida- por levar, muitas vezes, os jovens a
de e por mais que seja um direito trilhar caminhos tortuosos, como o
fundamental constituído por meio conflito com a lei e o encontro com
do artigo 217 da Constituição Fede- as drogas, tanto no consumo como
ral de 1988, seu acesso ainda é res- no tráfico, que seduz cada vez mais
trito, elitizado e pouco educativo jovens. Para evitar esses efeitos do
para a formação da construção de capitalismo, que tornam as relações
indivíduos capazes de se relacio- humanas competitivas, o psicólogo
nar de forma cidadã com o mun- do esporte, recorrendo ao próprio
do que os cerca. Pois o esporte, no esporte como linguagem, precisa
Brasil, reflete a situação do país de resgatar a dignidade humana, ter
uma forma geral: que é marcada o compromisso ético-político de

18
por injustiças, desigualdades, baixo transformar, criar situações que re-
investimento e agora um temeroso flitam as ações, e buscar as poten-
retrocesso geral aos direitos garan- cialidades humanas e das comu-
tidos em 1988. nidades encontradas nos contatos
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

individuais e coletivos.
Temos um país cuja característi-
ca marca a péssima distribuição de O número de organizações sociais
renda e guarda como paradoxo fun- não governamentais de interesse
público cresceu muito nos últimos senvolvê-lo como uma prática de
anos e grande parte delas já utili- cooperação e participação, permi-
zam nos seus programas o esporte tindo, dessa maneira, o acesso aos
como linguagem para os processos poucos habilidosos, ao que “poucos”
educativos desejados. Nesses pro- muito habilidosos têm tido condi-
gramas, o esporte é articulador de ção de usufruir. É fundamental um
ações educativas, com atividades trabalho interdisciplinar para que
que enfatizam a saúde, a arte e o se alcancem os resultados deseja-
apoio à escolarização. Vários pro- dos, contudo, o mais importante é
jetos educativos interdisciplinares que a equipe recorra ao esporte e
são apresentados às crianças visan- não as outras questões tradicionais
do à construção participativa orien- de ensino para atacar a problemá-
tada nos princípios da educação tica a ser solucionada. É importan-
pelo esporte. Assim, o profissional te marcar isso, pois muitos colegas
precisa trabalhar, por meio do es- querem recorrer à Psicologia do
porte, da atividade física e lúdica, Esporte, mas atuam na prática com
com a subjetividade de cada crian- outras técnicas e ferramentas que
ça, buscando desenvolver noções de representam, por exemplo, o mo-
cooperação, mesmo em situações delo clínico tradicional. Os profis-
competitivas, disciplina, compro- sionais que atuam no esporte e em
misso, trabalho em equipe, lidar projetos sociais, sobretudo, preci-
com sensações de vitória e derrota, sam compreender que, caso pre-
desenvolvimento psicomotor, além cisem falar de “setting”, que este
de um trabalho de orientação às fa- seja entendido como as quadras e
mílias. os campos. Ou seja, onde a prática
ocorre e não numa salinha no mo-
LEITURA CRÍTICA delo clínico médico. Para este mo-
Cabe ao psicólogo mostrar que o delo já temos muitos profissionais.
esporte não tem apenas o caráter O desafio é ser psicólogo do esporte
competitivo e especializado. O pro- e encontrar nas características das
fissional tem a possibilidade de de- atividades desenvolvidas as solu-
ções procuradas.

19
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Cabe aqui fazer uma leitura crítica da subjetividade, das práticas polí-
com a perspectiva de superar a vi- ticas.
são simplista do esporte como via
de ascensão social e formação de Volto a reafirmar, por fim, o que ve-
futuros atletas, pois o esporte surge nho produzindo e escrevendo des-
como sendo a salvação para a po- de 2003, que o paradigma proposto
breza e para marginalidade, e isso é para atuação dos profissionais da
um reflexo da propaganda ideológi- Psicologia do Esporte é que onde
ca veiculada pela mídia, associando houver ser humano desenvolven-
o esporte com habilidade, dinheiro, do-se no e pelo esporte sua pre-
fama e poder. Além disso, o que se sença será fundamental para pro-
tem notado em muitos projetos que porcionar à população atendida a
envolvem esporte é que o foco é a descoberta de outras possibilidades
especialização precoce, preparan- na construção de uma identidade
do crianças e adolescentes para a tendente à emancipação, atualmen-
competição e visando a criação de te vetada não só pela desigualdade
talentos, sem grandes preocupa- social, mas principalmente pela
ções com aspectos afetivo-cogniti- desigualdade de direitos e deveres.
vos que serão despertados por esta Nestes aspectos, o papel do psicó-
prática. Excluindo dessa forma os logo do esporte em projetos sociais
menos hábeis. Pelo contrário, vale é único e indispensável quando da
dizer que o esporte pode ser educa- integração em equipes multidis-
tivo se conservar sua qualidade lú- ciplinares. É nesta instância, a da
dica e a espontaneidade, sendo este profunda análise dos processos que
um ponto para a vivência prazerosa envolvem o esporte, que o trabalho
da criança com o esporte. do psicólogo se diferencia de outros
profissionais também envolvidos
EMANCIPAÇÃO com as questões esportivas.
As vivências nos projetos esportivos
pelos quais tive o prazer de atuar
demonstraram que esta interven- REFERÊNCIAS
ção educativa pode servir para as
crianças como um ambiente pro- Comissão de Esporte do Conse-
motor de saúde e das mais diver- lho Regional de Psicologia de São
sas habilidades, além de seguir a Paulo. A Avaliação Psicológica no
disputa de mantê-las conscientes Esporte ou os Perigos da Norma-
sobre os riscos das drogas e da vio- tização e da Normalização. In: Ru-
lência. O esporte, principalmente bio, K. (org.). Psicologia do Esporte:
a educação pelo esporte, pode agir Interfaces, Pesquisa e Intervenção.
transformando potenciais em com- São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
petências para a vida daqueles que
têm oportunidade de passarem por RUBIO, Katia. O trajeto da Psicolo-
essa experiência. gia do Esporte e a formação de um
campo profissional. In: K. Rubio
Poucos psicólogos estão atuando (org.) Psicologia do Esporte: inter-
nesses projetos, pois a maioria dos faces, pesquisa e intervenção. São
profissionais opta por trabalhar Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
juntos aos esportes de rendimento
e a Psicologia, enquanto profissão, SILVA, Fábio Silvestre. Projetos so-
ainda não possui esta como uma de ciais em discussão na psicologia do
suas bandeiras políticas. Então, é esporte. Revista Brasileira de Psico-
nossa responsabilidade, e também logia do Esporte, São Paulo, v. 1, n.
dos futuros psicólogos, entrar nes- 1, p. 1-12, dez. 2007.
se meio tão rico em possibilidades,
mas carente de estudos aprofunda- SILVA, Fábio Silvestre da; RUBIO,
dos. O desenvolvimento da Psicolo- Katia. Um jeito novo de jogar na
gia do Esporte atuante em projetos medida: o futebol libertário. Rev.
sociais depende, portanto, de refle- bras. psicol. esporte, São Paulo, v. 2,
xões consistentes sobre o exercício n. 2, p. 1-18, dez. 2008.

20 Fábio Silvestre da Silva é psicólogo, mestre em Educação pela Fa-


culdade de Educação da USP e gerente de Projetos da Fundação (CSN).
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Artigo

O esporte pede
socorro: O que a
Psicologia tem
a ver com isso? 21
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Victor Cavallari Souza e


Ricardo Marinho de Mello de Picoli
2018. Copa do Mundo. O megaevento solo; Arthur Zanetti, ginasta, campeão
esportivo acompanhado por cerca de 3 mundial e olímpico das argolas; e, por
bilhões de pessoas ao redor do mundo fim (se fôssemos colocar tudo aqui,
mostra sua importância no imaginá- certamente iríamos ser injustos com
rio e na cultura popular brasileira, mas alguém e tomaríamos todo o espaço
também esconde que se trata de uma só com esses títulos), Isaquias Quei-
modalidade única e jogada somente roz dos Santos, canoísta, três meda-
por homens. Esporte no Brasil é quase lhas olímpicas (duas de prata e uma
sinônimo de futebol. Basta olharmos de bronze) e tricampeão mundial de
os noticiários esportivos em rádios, te- canoagem de velocidade. Com tantos
vês e jornais para perceber que, apesar títulos e personagens, podemos consi-
das inúmeras modalidades existentes, derar que somos um sucesso esportivo
esses programas abordam quase sem- mundial? Todos esses resultados signi-
pre o futebol masculino. Quase nunca ficam que o esporte brasileiro é bem
há espaço para outros esportes, muito gerido, democrático e acessível? Esta-
menos para o paradesporto. mos “colhendo frutos” de um sistema
esportivo nacional?
Esses fatos são naturalizados e não
haveria de ser diferente, visto que so- O ESPORTE NO BRASIL
mos a pátria de chuteiras. Esse modo O “Diagnóstico Nacional do Esporte”,
de conceber o esporte, entretanto, re- divulgado pelo Ministério do Esporte
flete a maneira como as decisões são em 2013, constatou-se que 45,9% da
tomadas na gestão esportiva brasileira população brasileira é composta por
e esconde problemas que temos em sedentários, isto é, pessoas que não
relação ao acesso e à prática do esporte praticam atividade física ou esporte. Se
e do exercício físico pelos brasileiros. dividirmos por gênero, mais da meta-
de das mulheres brasileiras (50,4%) são
A título de comparação com outras consideradas sedentárias. Ao longo
modalidades coletivas, o vôlei mascu- da vida, o sedentarismo aumenta na
lino brasileiro é bicampeão olímpico e população, praticamente dobrando o
possui nove títulos da Liga Mundial. A número de pessoas que não praticam
seleção de vôlei feminina é ainda mais atividade física ou esportiva, partin-
bem-sucedida: bicampeã olímpica, do de 32,7% (faixa etária dos 15 aos 19
mas com 12 títulos do Gran Prix. Isso anos) e chegando a 64,4% (dos 65 aos 74
sem contar o basquete masculino e fe- anos). A maior concentração de aban-
minino, que, somados, possuem três dono do esporte (45%) encontra-se
títulos mundiais, e o handebol femi- ainda no período escolar (até 24 anos),
nino, que é campeão mundial (deixa- sendo também maior para as mulhe-
mos as famosas “quatro modalidades res (46,8%) se comparadas aos homens
da aula de educação física na escola” (43,3%). Dos motivos citados sobre o
nessa comparação somente por pro- abandono da prática esportiva, quase
vocação). Mas será o futebol o esporte sete em cada dez brasileiros (69,8%)
de maior sucesso do país, consideran- citam a falta de tempo para se enga-
do as proporções de investimento e jar em atividades físicas ou esportivas
número de praticantes? ou então que possuem outras priori-
dades, como cuidar da família, estudar
Os personagens “fora de série” que ou trabalhar. Também foram citados
aparecem de vez em quando no fu- problemas de saúde como causa do
tebol, como Pelé, Garrincha, Riveli- abandono (12,5%), preguiça ou cansaço
no, Zico, Sócrates, Romário, Ronaldo, (7%), problemas na prática esportiva,
Formiga, Rivaldo, Ronaldinho, Marta, como falta de resultados e socialização
Kaká e Neymar, aparecem em outras (6,1%), falta de espaço (infraestrutura)
modalidades também: Maria Esther para praticar (3,2%) e motivos econô-
Bueno, uma das maiores tenistas de micos (1,4%).
todos os tempos; Gustavo Kuerten,
ídolo internacional do tênis; Ayrton Os dados do “Diagnóstico Nacional do
Senna, Nelson Piquet e Emerson Fit- Esporte” mostram que o esporte no
tipaldi no automobilismo, com oito Brasil é um privilégio de parte da po-
títulos mundiais de Fórmula 1; César pulação, fazendo-o perder seu caráter
Cielo, nadador, campeão olímpico e de direito social. A ausência de políti-
tricampeão mundial da prova de 50m;

22
cas públicas voltadas à democratização
Daniel Dias e Clodoaldo Silva, nadado- de acesso e da prática esportiva reforça
res paralímpicos, somados, possuem a exclusividade do esporte, o qual po-
38 medalhas paralímpicas, das quais derá ter incidência na saúde pública,
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

20 de ouro; Terezinha Guilhermina, visto que é sabido o auxílio que a ati-


hepta campeã mundial e tri-campeã vidade física porta na busca de melhor
paralímpica de atletismo; Daiane dos qualidade de vida e bem-estar de seus
Santos, ginasta, campeã mundial no praticantes, bem como é instrumento
de promoção de saúde e prevenção de ro, como pode ser percebido no con-
doenças. Evidencia também que essas teúdo (e até no título informal) das leis
políticas têm influência na alteração Zico (8.672/1993) e Pelé (9.615/1998).
ou manutenção desses privilégios, so-
bretudo para as mulheres - proibidas AS LEIS DO ESPORTE
da “prática de desportos incompatí- A Lei nº 9.615 de 1998, também co-
veis com as condições de sua natureza” nhecida como Lei Pelé, é a que institui
de acordo com o decreto-lei 3.199 de normas gerais sobre o desporto, for-
14 de abril de 1941 -, para a população mal e não-formal, brasileiro. Dispõe
negra - impedida, num primeiro mo- sobre as manifestações e finalidades
mento, de praticar atividades físicas e esportivas, rege o Sistema Brasileiro
esportivas devido à seletividade de in- do Desporto e também fundamenta a
gresso em instituições de elite que de- justiça desportiva. O esporte brasilei-
tinham a infraestrutura necessária ao ro é organizado da seguinte forma: o
desenvolvimento de práticas esporti- Sistema Brasileiro do Desporto (SBD)
vas - e para a população com deficiên- é composto pelo Ministério do Espor-
cia. O reflexo desses acontecimentos te, pelo Conselho Nacional do Esporte,
é mostrado no “Relatório Nacional de pelos sistemas de desporto estaduais
Desenvolvimento Humano no Brasil”, e municipais (estes podem ser regi-
desenvolvido pelo Programa das Na- dos de forma independente - desde
ções Unidas para o Desenvolvimento que não firam a constituição federal
(Pnud) em 2017, em que mulheres, - com legislações e fomentos próprios
população negra e população com de- como, por exemplo, a Lei Paulista de
ficiência têm menos chances (12%, 6% Incentivo ao Esporte, Lei Estadual de
e 51%, respectivamente) de se engajar Incentivo ao Esporte – (MG) e pelo
em atividades físicas e esportivas do Sistema Nacional do Desporto (SND).
que a média da população. Além disso, Por sua vez, o SND é composto pelo
destaca-se a importância do esporte Comitê Olímpico do Brasil (COB),
em uma política que integre os siste- Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB),
mas educacional e esportivo, visto o Confederação Brasileira de Clubes
abandono da prática ocorrer ainda (CBC), confederações, federações, li-
na idade escolar. Esses apontamentos gas nacionais e regionais e entidades
enfatizam que a intervenção do Es- de prática desportiva. De acordo com
tado sobre o esporte, dentro de uma o art. 4º, § 1o, O Sistema Brasileiro do
perspectiva histórica e social no país, Desporto tem por objetivo garantir a
também se fundamenta no esporte de prática desportiva regular e melhorar
alto rendimento, o qual se define pela seu padrão de qualidade. Já o Sistema
finalidade da obtenção de resultados Nacional do Desporto busca promo-
esportivos e, sobretudo, pela impor- ver e aprimorar as práticas desportivas
tância dada ao futebol na organização de rendimento. Dessa forma, há uma
política e sistêmica do esporte brasilei- primazia do esporte de rendimento

23
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
na forma como a organização do es- serem ofertados e os responsáveis pela
porte está concebida, pois pouco há sua execução”. Ainda de acordo com o
sobre o regimento de atividades físicas Ministério do Esporte, essa lei discipli-
e esportivas, além de linhas e normas nará também as questões do “finan-
gerais, carecendo de políticas públicas ciamento do esporte, dos mecanismos
e formas de organização voltadas à te- de controle e participação social, bem
mática. Também é predatória a favor como a política de recursos humanos
do esporte de rendimento a forma de e formação continuada dos integran-
distribuição de recursos: em relação ao tes do SNE”. O objetivo é “cumprir o
SND, o Tribunal de Contas da União preceito constitucional do direito de
constatou, em 2014, alto percentual cada cidadão brasileiro durante toda
de recursos públicos federais aplicado a vida ao esporte, tornando o setor
no esporte de rendimento, com baixo uma política de Estado, consolidando
percentual de incentivos privados ou o esporte como uma política pública
de estatais, e alto grau de dependência estruturante pela democratização do
dos recursos da Lei Agnelo/Piva para acesso, em especial das crianças e dos
gastos de custeio. jovens, e a potencialização do esporte
de rendimento”.
A Lei Agnelo/Piva é um aditivo ao ar-
tigo 56º da Lei Pelé e dispõe sobre a Na contramão dessa tendência mun-
destinação, distribuição e aplicação de dial na democratização do acesso ao
recursos financeiros resultantes da ar- esporte, o governo federal sancionou a
recadação das loterias federais para o Medida Provisória nº 841 (MP 841), que
COB e o CPB. Para minimizar o des- dispõe sobre a transferência de recur-
compasso no vetor de investimento sos da Loteria Federal para o Fundo de
entre o esporte de rendimento e outros Segurança Pública. Como mostrado
esportes, essa lei determina também a acima, boa parte dos investimentos
obrigatoriedade de investimento no esportivos no Brasil (cerca de 97%, de
esporte escolar (10%) e universitário acordo com um relatório do TCU) são
(5%) por ambas as entidades. Outra lei resultantes de verbas públicas. A MP
que versa sobre incentivos financeiros 841 retira cerca de R$ 514 milhões por
para o esporte é a Lei de Incentivo ao ano do esporte. Os efeitos desse rema-
Esporte (Lei nº 11.438/2006), que fo- nejamento de recursos ainda atingem
menta projetos desportivos e parades- as áreas da saúde, cultura, educação
portivos previamente aprovados pelo e assistência social. Tendo em vista o
Ministério do Esporte por meio da de- poder de transformação social do es-
dução de impostos de pessoas físicas e porte, os prejuízos são incalculáveis e
jurídicas. sem precedentes, colocando em risco
programas como o Bolsa-Atleta e o
Dessa maneira, nota-se que a organi- Bolsa Pódio, que já enfrentaram re-
zação sistêmica do esporte brasileiro dução após as Olimpíadas do Rio de
regido pela Lei Pelé foi sendo ajustada Janeiro de 2016, e outros tantos proje-
com outras legislações para minimizar tos que tem a finalidade do desenvol-
os efeitos da primazia do esporte de vimento social tendo o esporte como
rendimento e do futebol. No entan- instrumento. Por pressão e coalizão de
to, mesmo com esses ajustes, é pos- várias entidades esportivas, inclusive
sível perceber que os recursos ainda do próprio Ministério do Esporte, o
são majoritariamente aplicados no governo federal alterou o texto da MP
esporte de rendimento e que isso di- 841 e ele perdeu os efeitos aqui descri-
ficulta o processo de democratização tos. No entanto, essa medida mostra o
do esporte. Isto é, mais do que o fluxo grau de relevância que o atual governo
de recursos e investimentos, o proble- dá ao esporte.
ma maior é o próprio sistema. Com
isso, em 2015, um grupo de trabalho De acordo com manifesto redigido
foi designado pelo Ministério do Es- em conjunto pelo Comitê Olímpico
porte para discutir nova proposta de Brasileiro (COB), Comitê Paralímpi-
Lei de Diretrizes e Bases do Sistema co Brasileiro (CPB), Comitê Brasileiro
Nacional do Esporte (SNE). Segundo de Clubes (CBC), Confederação Bra-
o Ministério do Esporte, “o SNE está sileira do Desporto Escolar (CBDE),
sendo construído para organizar os Confederação Brasileira do Desporto
entes públicos, privados e do terceiro Universitário (CBDU), Organização

24 setor - de forma articulada e integra-


da - para promover e fomentar polí-
ticas esportivas para toda a população
Nacional das Entidades do Desporto
(Oned), Associação Brasileira de Secre-
tários Municipais de. Esportes e Lazer
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

brasileira”, por meio da definição da (Absmel), Rede Esporte pela Mudança


estrutura e do funcionamento do es- Social e Atletas pelo Brasil, “O espor-
porte no Brasil, “caracterizando-se os te é hoje a política pública que mais
níveis de atendimento, os serviços a contribui para retirar da rua crianças e
jovens em situação de vulnerabilidade quem diga que a Psicologia do Esporte
social, impactando significativamente é recente no Brasil. Talvez, o que seja
na redução das desigualdades sociais. recente é a atenção da própria Psicolo-
Estudos da ONU comprovam a im- gia e de outras áreas do conhecimento
portância do esporte como fator de para com a Psicologia do Esporte.
desenvolvimento humano e da busca
pela paz, reduzindo diretamente os Uma definição de esporte trazida no
gastos das áreas de saúde e segurança documento da primeira versão do
pública, além de muitos outros de for- ainda projeto do Sistema Nacional
ma indireta. O Brasil já convive hoje do Esporte é “um bem cultural, direi-
com a falta de uma política esportiva. to social e fator de desenvolvimento
A redução prevista na medida provisó- humano, definido pelo conjunto de
ria do pouco que hoje é investido nos práticas corporais, atividades físicas
esportes educacional, de rendimento e e esportivas que, pelo envolvimento
de participação, em alguns anos oca- ocasional ou organizado, exprime um
sionará um aumento ainda maior nos grau de desenvolvimento cultural es-
já alarmantes índices de violência do portivo, com possibilidades de incidir
país”. Não deixa de ser irônico, não é? em aspectos educacionais, da saúde,
do bem-estar, pela ampliação de co-
E A PSICOLOGIA? nhecimentos, relações sociais e resul-
Atualmente, há uma grande presen- tados esportivos”.
ça de psicólogas atuando em equipes
interdisciplinares em confederações, Não podemos conceber que esse fenô-
clubes, associações esportivas que são meno possa ser excluído do interesse
mantidos através de verbas oriundas e cuidado da Psicologia como ciência
de políticas como a Lei de Incentivo e profissão. Ademais, não podemos
ao Esporte (que beneficia associações conceber que a Psicologia esteja de
esportivas com projetos de esporte de fora de discussões e articulações po-
alto rendimento, educacional e de par- líticas em prol do desenvolvimento
ticipação) e Lei Agnelo Piva já citadas esportivo brasileiro, já que este é um
acima. Assim, a categoria se beneficia direito social e, pelo apresentado aqui,
diretamente dessas políticas atuando é um direito garantido a poucos. Ou-
junto às equipes técnicas e participan- vimos falar durante a Copa do Mundo
tes desses projetos sejam atletas de alto que “não é só futebol”, numa clara ex-
rendimento, sejam crianças em vulne- plicitação que outros fatores estão en-
rabilidade social. A atuação “na ponta” volvidos nesse fenômeno. Precisamos
é possível graças a esses investimentos perceber, porém, que a frase deveria
o que aumenta a responsabilidade da ser “não é só esporte”. Nossos valores,
categoria em pautar o esporte como nossa visão político-econômica, nos-
tema transversal para políticas públi- sos direitos e deveres, nossos precon-
cas voltadas à garantia de direitos, saú- ceitos e violências são manifestados
de, educação e assistência social. quando nos movimentamos, quando
competimos, quando não temos lugar
A Psicologia do Esporte teve seu reco- para praticar esporte, quando somos
nhecimento como área de especiali- sedentários por não ter aptidão para
dade da psicóloga no início dos anos uma modalidade esportiva, quando
2000 (Resoluções CFP nº14/2000 reduzimos esporte a uma prática ex-
e nº13/2007), fruto de um intenso e clusiva, quando achamos que ativida-
cuidadoso trabalho de um grupo de de física só se faz na academia, quando
psicólogas que se configuram como a mídia nos fala o que consumir no es-
grandes referências científicas e po- porte, quando achamos que esporte é
líticas da área. Esse movimento, que coisa para meninos ou não é lugar de
expressa um posicionamento políti- pessoas trans.
co-ideológico da categoria, buscou a
consolidação da Psicologia do Esporte Como dizia o sociólogo francês Pierre
como área da ciência psicológica, sen- Parlebas, o esporte é o que se fizer dele.
do prática de pesquisa e intervenção Que tal a Psicologia ajudar a construir
para a psicóloga, visto seu histórico de um esporte democrático, saudável,
atuação ao longo de todo o desenvol- acessível e formador (de cidadãos e de
vimento da Psicologia no Brasil. Há atletas)?

Victor Cavallari é especialista em Psicologia do Esporte pelo CFP,


25
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

doutorando em Psicobiologia na USP e membro da Abrapesp.

Ricardo Picoli é doutorando em Psicobiologia na USP, supervisor


do Serviço Escola de Psicologia da UFSCar e membro da Abrapesp.
Artigo

A importância das lutas na


promoção do desenvolvimento
psicomotor e integral do ser
humano
O jiu-jitsu como estratégia para fortalecer as dimensões afetivas, sociais,
motoras e cognitivas de crianças com deficiência
Alexandre Romano

Desde 2013, a Secretaria Municipal de No início, das atividades, seus idealizadores


Educação (Semed) de Manaus (AM) vem pensavam que a ação teria como público
utilizando as lutas marciais como estra- os estudantes do ensino fundamental, mas

26
tégia de promoção do desenvolvimen- logo o projeto tomou outros rumos e, no
to humano. Dessa forma, os servidores mesmo ano, foi estendido às unidades de
da rede municipal de educação Ronnie educação infantil. O atendimento a todas
Melo, João Carlos Silveira e Alexandre as crianças, a atenção às crianças com defi-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Romano, também atletas de jiu-jitsu, ciência, sua inclusão e a inserção da família


criaram o projeto “Aprender, Conviver e nesse fazer cotidiano eram um desejo dos
Lutar”. criadores do “Aprender, Conviver e Lutar”.
Revista Diálogos

27
Dezembro de 2018
Na educação infantil, o jiu-jitsu Essas ações não geraram
foi apresentado inicialmente custos aos pais, que pude-
como estratégia de promoção ram acompanhar seus
do desenvolvimento humano filhos em todas as
e de formação de atletas e aos atividades, cum-
poucos foi ampliando seu es- prindo uma das
copo para o desenvolvimento finalidades do
do potencial de cada criança projeto, afilia-
e para a promoção do desen- ção dos pais.
volvimento integral conside-
rando as diversas dimensões INSPIRAÇÃO
- afetivas, sociais, motoras, A metodolo-
cognitivas, destacando-se o gia teve grande
potencial pedagógico das lutas. aceitação por parte de
toda a comunidade e os
NOVOS PARADIGMAS alunos puderam partici-
Com o decorrer das ativida- par de eventos importantes
des, seus idealizadores pas- da cidade, como o Campeo-
saram a alimentar a ideia de nato Amazonense de Jiu-Jit-
utilização do jiu-itsu no con- su, que criou uma categoria
texto da educação inclusiva, especial para os/as atletas do
assim o projeto chegou à Es- projeto chamada “Inspira-
cola Municipal André Vidal ção”. Ao premiá-los, o sensei
de Araújo, destinada ao aten- e grão-mestre Osvaldo Alves
dimento de estudantes com relatou que o esporte liberta
deficiência. A direção da uni- os estudantes, “no tatame
dade aprovou o projeto afir- eles estão livres”.
mando que a criança é o ator O faixa pre-
principal da escola e que seu ta Ronnie
papel era o de apoiar propos- Melo
tas de desenvolvimento inte-
gral dos estudantes.

O projeto atende crianças


com transtorno do espec-
tro autista e com paralisia
cerebral. A metodologia,
conhecida como avatar,
se propõe a utilizar o cor-
po dos professores como
vetor de locomoção das
crianças e, esta ancorada
em teorias interacionistas. acredita que o jiu jit-
O foco passa a ser a sociali- su cumpre, sua finali-
zação e a afiliação dos pais. dade de ser um esporte para
todos.
As aulas de jiu-jitsu foram
ofertadas em um espaço no Os familiares foram os me-
qual se recriava uma área lhores parceiros no proces-
igual à de lutas com tatame. so. Helena Araújo, mãe de
Diferentes atividades tam- Marcos Vinicius, que tem
bém foram promovidas, transtorno do espectro au-
como visitas de ícones do jiu- tista, relata que o jiu-jit-
-jitsu, como a Família Gracie su ajudou muito a criança,
e o campeão mundial Alexan- principalmente nas relações
dre Ribeiro. Atletas do Ama- interpessoais e na coor-
zonas também participaram denação motora.
dos encontros. Ações externas
ao espaço escolar também fo-
ram feitas, como a participa-

28
ção no “Voo dos sonhos”, um
voo panorâmico pela cidade
de Manaus, e aulas de stand
up paddle (SUP), no Rio Ne-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

gro. A mãe de uma das crian-


ças, Jussara Marques, contou
que o voo foi a realização de
um sonho para seu filho.
“As ações sempre envolvem O projeto “Aprender Con-
a participação dos familia- viver e Lutar” está em toda
res, pois são eles que passam a rede de educação, nos ní-
a maior parte do tempo com veis da educação infantil,
as crianças”. Ela explica, ain- ensino fundamental e edu-
da, que os professores aju- cação especial. Muitas crian-
dam com orientações sobre ças tiveram a oportunidade
como lidar com as crianças de vivenciar a metodologia
no dia a dia. e aproveitaram a oportu-
nidade para se desenvol-
HERANÇA ver, como conta a diretora
A metodologia ganhou Cíntia Câmara, do Centro
novos adeptos e vários Municipal de Educação In-
estagiários que pas- fantil (Cmei) Padre Gabriel.
saram pelo proje- “Nossas crianças melhoram
to hoje a utilizam muito, principalmente no
em suas vidas desenvolvimento de sua au-
profissionais. Um tonomia.”
exemplo é o pro-
O projeto só conseguiu atin-
gir seus objetivos educacio-
nais, pedagógicos e psicoló-
gicos, porque os professores
acreditam que não estão à
frente de um atleta em mi-
niatura, como explica o pro-
fessor Alexandre Romano:
“São crianças em pleno de-
senvolvimento e temos que
oferecer a elas as melhores
experiências de forma que
fes- consigam desenvolver suas
sor Cristiano habilidades motoras, afeti-
Andrade da vas, sociais e cognitivas.”
Silva, que atua
no Instituto Romano explica que o pro-
Semear, e jeto só trabalha com profes-
conta que sores qualificados, formado
se não fos- em lutas, mas com formação
se a ação em Educação Física, Peda-
da Semed gogia e Psicologia. “Somen-
não sabe- te professores habilitados
ria como têm condições de entender
fazer. o desenvolvimento infantil e
oferecer atividades adequa-
das para o desenvolvimen-
to”.

Os idealizadores do projeto
acreditam que se você aju-
da o jiu-jitsu, o jiu-jitsu vai
auxiliar no seu desenvolvi-
mento. Eles são sonhadores
que acreditam nas intera-
ções e nas brincadeiras e,
para tanto, não medem es-
forços para oferecer o me-
lhor para as crianças, pois
consideram que as crian-
ças não são atletas em mi-
niatura, mas indivíduos que
necessitam de cuidado para
que cresçam felizes.
29
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Alexandre Romano é psicólogo e doutorando em Psicologia. Che-


fia a Divisão de Educação Infantil da Semed/Manaus e é conselheiro
regional de Educação Física do Amazonas (CREF 8).
Dezembro de 2018

30
Revista Diálogos
Foto: Mariana Leal Relações Raciais
O racismo continua
em campo
Presente em várias modalidades
esportivas no Brasil, o
preconceito contra negras(os)
e indígenas fez surgir iniciativas
de enfrentamento ao ódio racial

“O esporte como fenômeno social engloba


e carrega consigo os diversos elementos so-
ciais e subjetivos daqueles que dele fazem
parte. Mesmo em países como o Brasil, onde
a miscigenação entre povos é diversa e fla-
grante, identificam-se racismo, preconceito
e discriminação na sociedade e no esporte
não poderia ser diferente”. Essa avaliação é
da psicóloga Cristianne Almeida Carvalho,
professora da Universidade Federal do Ma-
ranhão (UFMA).

Em sua opinião, exclusões no âmbito do gê-


nero e da etnia ainda estão presentes, apesar
de campanhas de grandes corporações es-
portivas, a exemplo da Federação Interna-
cional de Futebol (Fifa), que faz anúncios e
exibe faixas em partidas, além de imprimir
frases nos uniformes e dar voz aos atletas.
“Sabemos o modo de pensar e agir das pes-
soas, que requerem mais que campanhas in-
formativas para gerar transformações.”

O Observatório Racial do Futebol foi lança-


do em 2014 para monitorar casos de racis-
mo e injúria racial no futebol brasileiro - ou
com brasileiros no exterior - nos estádios ou
na internet. De acordo com Marcelo Carva-
lho, administrador de empresas e criador
do Observatório, no futebol brasileiro a de-
mocracia racial é um mito. Em quatro anos
de existência, a organização não governa-
mental mantida na casa do próprio Marcelo
demonstra que o racismo no futebol vem
aumentando. “No último ano, monitoramos
mais de 49 denúncias de racismo no futebol
brasileiro, mas como a maioria não envolve

31
atletas famosos, não temos tanta repercus-
Cristianne são dos casos e ficamos com a falsa impres-
são que diminuíram.”
Carvalho: a
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

discriminação
resiste
AMBIGUIDADE DEBATE
Anualmente, o Observatório divul- São poucas as(os) negras(os), as(os)
ga um relatório com registros de pardas(os) e indígenas ocupando
casos de racismo. Em 2014, foram cargos decisórios no esporte. E tam-
20. O número aumentou em 2015: bém são poucas(os) as(os) atletas
35 registros. Houve uma queda em negras(os) em certas modalidades
2016, com 25 casos. O que parecia esportivas. No artigo “Preconcei-
um avanço, entretanto, não se repe- to racial no esporte nacional”, de
tiu, apesar de diversas campanhas 2015, Fabrício Gregório, especia-
de conscientização. lista em Educação para as Relações
Étnico-Raciais, e Beatriz Medeiros
Marcelo Carvalho nota um posicio- de Melo, doutora em Sociologia,
namento ambíguo das torcidas. Se- ambos formados pela Universida-
gundo ele, de modo geral, falam de de Federal de São Carlos (UFsCAR),
racismo e exigem punição, quan- destacam que “os padrões de acesso
do o caso é com o time adversário. e participação da população negra,
“Se envolver seu clube, no entanto, em certas modalidades, são desi-
muitos tendem a diminuir o caso guais se comparados à população
ou defender o acusado e culpar a branca. Em algumas modalidades
vítima. Podemos dizer que muitos esportivas praticamente não há pes-
torcedores não estão de fato preo- soas negras”. Eles citam como exem-
cupados em combater o racismo e plos o hipismo, o golfe, a natação, o
o clubismo fica acima da luta contra automobilismo, o polo aquático, o
a discriminação racial.” tênis e outros esportes considerados
“finos”, ou seja, da classe dominante.
O racismo é realidade em várias Já esportes considerados populares,
modalidades esportivas. No fute- como o atletismo, as lutas e uma
bol, o número de casos é maior, boa parte das modalidades coletivas,
mas já monitoramos histórias no como futebol, basquetebol e hande-
vôlei, futebol americano, basquete, bol, são praticados mais comumen-
atletismo e ginástica artística, revela te pelas(os) afrodescendentes.
o diretor. “Sem falar que uma das
formas que podemos perceber é a A professora Cristianne Carvalho
inexistência de atletas negros em lembra que a Psicologia do Espor-
esportes não populares e nos quais te dedica-se a cuidar da pessoa que
é necessário um alto investimento.” pratica atividade física, indepen-
dentemente da faixa etária, da mo-
Quando o futebol chegou ao Bra- dalidade esportiva ou dos objetivos
sil era considerado um esporte de no esporte, que podem estar volta-
elite. Logo, as grandes competições dos à iniciação esportiva, reabilita-
não permitiam negras(os). De acor- ção, lazer e recreação, ao esporte
do com o Observatório Racial do de alto rendimento ou, ainda, a re-
Futebol, o registro de “pessoas de abilitação. “Como especialidade do
cor” foi proibido no futebol cario- fazer psicológico, a Psicologia do
ca em 1907, depois que um jogador Esporte está atenta e atuante dian-
negro jogou pelo Bangu, em 1905. te dos diversos fenômenos biopsi-
A situação ocasionou tentativas de cossociais presentes naqueles que
disfarçar a cor. Arthur Friedenrei- praticam esportes e atividade física
ch, primeiro “craque” do futebol ou que estejam relacionados a esse
brasileiro e filho de um alemão com contexto.”
uma negra, esticava o cabelo para
“parecer mais branco”. Em sua tese de doutorado sobre a
História da Psicologia do Esporte
A primeira punição contra racismo no Brasil (UERJ, 2012), a professo-
a um clube no Brasil, de acordo com ra resgatou algumas das primeiras
o observatório, ocorreu apenas em referências à Psicologia na literatu-

32
2005. À época, o Juventude, time ra cientifica da época da Educação
do Rio Grande do Sul, perdeu dois Física no país. Em artigos de peri-
mandos de campo e foi multado em ódicos da área do início do século
R$ 200 mil por atos racistas contra o XX, “alguns autores estabeleciam
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

jogador Tinga, do Internacional. relações entre os aspectos físicos,


morais e étnicos, em busca de um Carvalho. “Mas tais mudanças não
homem forte e ideal para a nação. eliminaram alguns dos fenômenos
O higienismo e a eugenia se mescla- humanos e sociais, como o racismo,
vam com temas técnicos relativos à que não é exclusividade do Brasil,
medicina e fisiologia, à prática de nem do meio esportivo”.
atividade física. Nesse contexto, fe-
nômenos psicológicos, como, moti-
vação, percepção, vontade, controle
dos impulsos e personalidade tam-
bém estavam presentes.”

Os reflexos ou as consequências da
Modernidade ou da Pós Moderni-
dade, como preferem alguns au-
tores, redefiniram e criaram novos
padrões de comportamento, modos
de pensar e agir no mundo. Estabe-
leceram, então, novas fronteiras nas
relações entre o público e o privado.
Os valores morais e o uso de tecno-
logias impulsionaram mudanças e
avanços no universo técnico e cien-
tífico das diversas áreas de conhe-
cimento, como explica Cristianne

GAVIÕES NO FUTEBOL
O Gavião Kyikatejê foi o primeiro time masculino de futebol indíge-
na a disputar a elite de um estadual de futebol brasileiro, estreando
no campeonato paraense em janeiro de 2014. Atualmente, está na
série B, mas na próxima temporada pretende subir outra vez para
a A. A equipe é formada por indígenas e não-indígenas e tem um
propósito: lutar pela inclusão e dar visibilidade ao povo indígena.

A tarefa é árdua. O time ainda sofre preconceito, tanto da torcida


como de times adversários, relata Magno Barros, da assessoria do
time. O Gavião dá nome ao clube e ao povo que vive no município de
Bom Jesus do Tocantins, distante cerca de 450 quilômetros da capital
Belém. Devido aos royalties pagos pela Eletronorte e pela Vale por
utilizarem faixas da terra indígena, o time pode contar com infra-
estrutura para treinos e alojamentos confortáveis para os jogadores.
Os atletas treinam duro, às vezes com atividades físicas típicas, como
a corrida de troncos. E crianças e jovens Gavião já se preparam para
suceder os atuais jogadores.

Em março deste ano, o povo Gavião sofreu um duro golpe. A morte,


em acidente de carro, de Paulo Aritana Sompre, conhecido como
Aru, então com 31 anos. Ele era um dos líderes e ídolos do time. Na
temporada de 2013, foi o artilheiro com mais de dez gols marcados.
Na época, Aru jogou com o corpo pintado – o preto de guerra e o
vermelho de força e vontade, como ele mesmo explicou - seguindo
as tradições do seu povo.
33
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Muito
Relações Raciais

Infância, adolescência e
Ana Flávia Flôres

Praticar atividade física faz bem


e é fundamental em todas as eta-
pas da vida. Embora essas pala-

34 vras soem como um mantra de


tanto que estamos acostumados
a ouvi-las, a realidade mostra
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

que o Brasil ainda tem um lon-


além do corpo
direitos humanos no esporte

go caminho a percorrer para superar o quadro volvimento das relações sociais. Isso porque
de sedentarismo da sua população. De acordo mesmo as modalidades individuais são, ge-
com o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta- ralmente, praticadas dentro de um grupo. “As
tística (IBGE), seis em cada dez brasileiras(os) próprias situações de dividir espaços, de or-
com 15 anos ou mais não praticam esporte ou ganizar as regras, de distribuir oportunidades,
atividade física regularmente. de lidar com as frustrações são aprendizados
importantes para crianças e adolescentes e que
O dado alerta para a quantidade de pessoas sub- são promovidos de forma efetiva pelo espor-
metidas aos riscos de uma vida sedentária – que te”, avalia Marisa.
incidem sobre aspectos como saúde, produtivida-
de e qualidade de vida – e também revela o quanto Ainda no universo da infância e da adolescên-
uma ferramenta promotora de desenvolvimento cia, a prática regular de atividade física resulta
e direitos humanos tem sido negligenciada. no desenvolvimento de capacidades motoras,
como saber correr, rolar e saber sentar. Tra-
Embora essa seja uma faceta pouco reconhe- ta-se do primeiro passo para a percepção do
cida, as atividades físicas e esportivas consis- próprio corpo e do uso deste corpo em situa-
tem em elementos de grande relevância na ções que vão além da prática esportiva.
promoção do desenvolvimento nacional e do
desenvolvimento humano, como ressalta o TRANSFORMAÇÕES PARA A VIDA
Relatório Nacional de Desenvolvimento Hu- A prática esportiva contribui para o desen-
mano do Brasil - Movimento é vida: ativida- volvimento de uma consciência social e tam-
des físicas e esportivas para todas as pessoas, bém amplia a percepção sobre aspectos que
do Programa de Desenvolvimento das Nações incidem diretamente na qualidade de vida e
Unidas (Pnud). Entre os fatores que justificam que acompanharão a pessoa ao longo de toda
esse entendimento estão o papel das práticas a sua trajetória. Trata-se de comportamentos
esportivas como aliadas importantes na pro- e atitudes focadas em cuidados com a saúde
moção de relações que fomentam a amizade e em uma perspectiva ampla, como alimenta-
a paz entre grupos, povos e nações, a relevante ção, respiração, consciência corporal e men-
participação delas no lazer e seu potencial im- tal e, até mesmo, escolhas com relação ao tipo
pacto na saúde, educação e economia. de transporte utilizado para os deslocamentos
cotidianos.
VALORES, IGUALDADE E AUTOCONHECIMENTO
De acordo com Marisa Markunas, professo- “Quando a pessoa está habituada a praticar ati-
ra do curso de especialização em Psicologia vidade física desde a infância e a adolescência,
do Esporte do Instituto Sedes Sapientiae, por passando pelas fases da vida adulta e chegando
meio da atividade física e esportiva é possível à fase do envelhecimento, a gente verifica que
compreender questões como a promoção de os benefícios são inúmeros. Há uma diminui-
valores e de dignidade humana de uma ma- ção do risco de doenças, principalmente das
neira muito ampla. Além disso, trata-se de um crônicas, e a pessoa tem mais disposição, mais
entendimento que começa a ser construído energia para lidar com as adversidades da ro-
cedo, ainda na infância. “A estrutura das ati- tina diária”, afirma Luciana Ângelo, coordena-
vidades precisa promover oportunidades mais dora do curso de aperfeiçoamento e especiali-
próximas do que chamamos de igualdade. Em zação em Psicologia do Esporte e do Exercício
termos práticos, não posso colocar uma crian- do Instituto Sedes Sapientiae.
ça ou adolescente que não conhece uma mo-
dalidade para competir com um adulto que Embora os benefícios sejam diversos, é funda-
é especialista nela. Nesse contexto, trabalhar mental o entendimento de que a prática espor-

35
direitos humanos significa ofertar oportuni- tiva consiste em um direito das pessoas, e não
dades em que as condições sejam mais iguais.” em um dever. “As atividades físicas e esporti-
vas realmente auxiliam no desenvolvimento
Outra consequência da prática esportiva por humano quando a gente tem na realização
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

crianças e adolescentes consiste no desen- dessa atividade uma decisão da pessoa, quan-
do damos a ela o poder de escolher
Confira o levantamento do Pnad* sobre
livremente e conscientemente aquilo
que gostaria de fazer”, complementa.

EDUCAÇÃO PARA AUTONOMIA


ESPORTIVA
Longe do cenário ideal, contudo, a
realidade mostra que apesar da cons-
tante preocupação em promover
oportunidades para a prática de ativi-
dades físicas e esportivas na infância e
na adolescência, a oferta dessas mes-
mas oportunidades é negligenciada

76%
na vida adulta. “Crianças e adolescen-
tes têm ao menos algum contato com
práticas esportivas dentro da escola
ou em projetos sociais. Mas quando
você sai do ambiente formal da esco-
la e passa a viver as atividades da vida das(os) brasileiras(os)
adulta, onde ocorre a prática de ativi- não praticam esporte
dade física? Não existem ofertas com
facilidade, quase não há possibilida-
des estruturadas que oportunizem às
Motivos:
pessoas uma vida distante do seden-
tarismo”, avalia Marisa Markunas. Falta de tempo Não gostar ou
não querer
Para além do pouco estímulo, outro 38,2%
fator que contribui para o sedenta- 35%
rismo na fase adulta é a ausência de
formação educacional voltada para
a autonomia do indivíduo com rela-
ção à prática esportiva. Por exemplo,
quantas pessoas estão aptas a pratica-
rem corrida de rua ou ciclismo com a
segurança e a consciência necessárias
para que a atividade física não deixe
de ser um benefício para se tornar
um problema? Para a especialista,
esses fatores, associados à rotina e às
demandas da vida adulta, fazem com
que aquela criança ou adolescente Outros Problema de
que foi estimulado e usufruiu dos be-
nefícios da prática esportiva na fase 1,5% saúde ou idade
inicial da sua vida perca o costume de
se exercitar com frequência.
Não ter 19%
companhia
Falta de instalações
PARCEIRA NO ENVELHECIMENTO 1,7%
O esporte permite que diversas ca- esportivas acessíveis
pacidades e habilidades sejam desen-
volvidas ou estimuladas. Para além Problema ou nas proximidades
dos benefícios do ponto de vista financeiro 2,7%
biológico, também há consequên-
cias como desenvolvimento da parte 1,9%
cognitiva, ampliação da percepção,
da concentração e da capacidade de
tomada de decisões. Do ponto de vis- O estresse e sedentarismo causam uma reação em
ta social, ainda permite a interação
entre as pessoas. “Com todos esses
principais causas do aumento da in
componentes, o impacto que o pro-

36
cesso de envelhecimento provoca é
minimizado com a prática frequen-
te de atividade física”, explica Franco
Noce, doutor em Psicobiologia e co-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

ordenador do setor de Psicologia do


Obesidade Diabetes Infarto do
miocárdio
a prática de atividades físicas no Brasil Esporte do Centro de Treinamento
Esportivo da Universidade Federal de

24%
Minas Gerais (UFMG).
das(os) brasileiras(os)
praticam Entretanto, se a taxa geral de brasi-
leiras(os) que pratica atividade física
esporte é baixa, ela cai drasticamente quan-
do o recorte etário é de pessoas com
60 anos ou mais. Nesse grupo, apenas
13,4% praticam algum esporte, segun-
do a Pesquisa Nacional por Amostra
42,7% de Domicílios (Pnad) de 2015, sendo
que 70,7% das(os) brasileiras(os) ido-
sas(os) nunca praticaram esporte.

De acordo com Noce, a prática do


33,4% exercício físico e do esporte na ter-
ceira idade deve ser amplamente
difundida e estimulada. “A gente ob-
serva que a prática do exercício sis-
tematizado tem resultados muito
positivos tanto do ponto de vista bio-
Motivos: lógico quanto psicológico e social, in-
clusive recuperando indivíduos que
Relaxar ou estão num quadro de ‘pré-frágil’ e
Outros retornando eles para um quadro de
Gostar de se divertir ‘robusto’. O especialista explica que
4,6% 28,9% o idoso frágil ou pré-frágil, além de
competir consumir muito mais medicamentos
9,8% do que uma (um) idosa (o) robusta
(o), demanda muito mais da máquina
pública de suporte e atenção à saúde.

Segundo o doutor em Psicobiologia,


o aumento da expectativa de vida da
Indicação população brasileira tem resultado
no agravamento do quadro de ado-
médica ecimento mental relacionado a en-
10% fermidades do envelhecimento. “Em
especial para casos de demência,
exercícios ou esportes que ajudem a
estimular o componente cognitivo
funcionam muitas vezes como me-
canismo de proteção contra o agra-
Melhorar ou vamento e até mesmo o desenvolvi-
manter Melhorar a mento dessas doenças.”

desempenho qualidade
de vida ou o RISCO
físico Todas(os) as(os) especialistas concor-
bem estar
19,9% dam com a relevância da prática es-
26,8% portiva para a qualidade de vida de
cada indivíduo, mas também para a
construção de uma sociedade mais
justa, igualitária e tolerante. Seja no
início da vida, quando corpo, men-
te, personalidade e percepções de
m cadeia no nosso organismo e mente e é uma das mundo estão em intenso processo de
ncidência de várias doenças, como: construção, seja nas etapas que a su-
cedem e consolidam a fase adulta, a
prática esportiva não pode ser aban-
donada sob risco de termos uma so-
ciedade cada vez mais doente não só
do ponto de vista biológico, mas tam-
37
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

bém social e humano.

Ansiedade Colesterol alto Hipertensão

*PNAD 2015
Andréa Pesca:
avaliação

38 psicológica é
mais ampla do
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

que um teste
psicológico
Foto: Mariana Leal

Avaliação Psicológica
Instrumento a serviço da(o) atleta
“A avaliação psicológica no contex- Gerais (CRP 4ª Região), a avaliação é
to esportivo permite traçar habili- um estado permanente de atenção
dades e competências da (o) atleta da (o) psicóloga (o) frente seu objeto
para ajudá-lo a lidar com suas fra- de estudo ou trabalho. “Estamos o
quezas, manter e equilibrar suas tempo todo observando, avaliando,
forças e conhecê-lo como um todo.” levantando hipóteses e reavaliando
É o que afirma Andréa Duarte Pes- ações e resultados, sempre conside-
ca, psicóloga do Esporte, professora rando as particularidades de cada
do Complexo de Ensino Superior modalidade e sua periodização.”
de Santa Catarina (Cesusc) e pesqui-
sadora da Universidade Federal de A avaliação psicológica é utilizada
Santa Catarina (UFSC). em diversos contextos esportivos.
“Nos clubes de alto rendimento e
Ela ressalta que devemos olhar para de iniciação esportiva, por exem-
uma (um) atleta como um ser huma- plo, ela serve para traçar perfis psi-
no que está em desenvolvimento de cológicos, avaliar as relações sociais
suas crenças e valores, muitas des- da equipe e também identificar li-
sas estabelecidas em seu contexto deranças. Também é usada na área
familiar, portanto, antes mesmo de de desenvolvimento pessoal”, expli-
estar no contexto esportivo. Todos ca Gomes. A avaliação psicológica
estes aspectos devem ser levados é uma ferramenta poderosa para
em consideração na hora da avalia- a tomada de decisão e pode trazer
ção e somente após a aprovação do benefícios para os indivíduos no
atleta é que os resultados desse pro- desenvolvimento de habilidades
cesso serão repassados à comissão especificas.
técnica para ajudar os demais pro-
fissionais a conhecerem essas habi- EXPERIÊNCIA
lidades e competências psicológicas A pesquisadora e psicóloga An-
do desportista e saber lidar com ele dréa Pesca faz avaliação psicológica
de maneira mais eficaz, produtiva e desde o início da sua trajetória em
saudável. Psicologia do Esporte, o que inclui
um clube de futebol profissional no
O psicólogo do Esporte Yghor qual trabalhou por quase nove anos
Queiroz Gomes revela que a ava- – experiência que abrange desde os
liação deve ocorrer sempre que se atletas em formação até a equipe
inicia ou implanta um programa de profissional. “Todas estas experi-
treinamento ou de intervenção. “É ências foram positivas”, afirma. As
importante levar em consideração dificuldades encontradas por ela fo-
que o processo de avaliação psico- ram a diferença de filosofia de tra-
lógica deve iniciar logo no primeiro balho com as comissões técnicas e

39
contato com a (o) atleta ou a equi- a incompreensão sobre o real valor
pe, lembrando que este processo de da avaliação. As dificuldades foram
avaliação é muito mais do que apli- poucas, e a maioria das (os) técnicas
car testes ou questionários.” Na opi- (os) utiliza os resultados da avaliação
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

nião de Gomes, que também é con- de forma ética e eficaz, garante. O


selheiro e coordenador da comissão resultado do trabalho, como expli-
de Psicologia do Esporte do Conse- ca, é o aprimoramento técnico e psi-
lho Regional de Psicologia de Minas cológico de cada atleta e da equipe.
“A avaliação psicológica é um pri-
meiro passo para estabelecer os
próximos procedimentos de in-
tervenção de uma forma estrutu-
rada e eficaz”, conclui a psicóloga.

A prática do psicólogo Yghor Go-


mes está mais vinculada ao tra-
balho com árbitros de algumas
modalidades, entre elas do fute-
bol. “Desde meu primeiro conta-
to com este meio tenho buscado
conhecer melhor a arbitragem,
e cada vez mais me deparo com
um atleta de altíssimo rendi-
mento - seja técnico, físico ou
mental”. Segundo o psicólogo, ao
árbitro não é permitido o erro.
Ao mesmo tempo que novas tec-
nologias são criadas para auxiliá-
-los, dentro e fora de quadra ou
do campo, algumas característi-
cas e habilidades sempre serão
demandadas, como a atenção, o
foco, a resiliência e o tempo de
reação. “Para desenvolver estas
habilidades, precisamos primei-
ro avaliá-las para, em seguida,
traçar as metas a serem alcança-
das”.

COTIDIANO
Em se tratando da avaliação psi-
cológica existem alguns desafios.
Apesar da lei que instituiu a Psi-
cologia como profissão regula-
mentada estabelecer que a (o)
psicologa (o) é a única (o) profis-
sional habilitada para exercer a
atividade de diagnóstico psico-
lógico, na avaliação psicológica
isso não ocorre no nosso dia a
dia, denuncia Yghor Gomes. Se-
gundo ele, “temos profissionais
com outras formações oferecen-
do ou até mesmo fazendo este
trabalho, pessoas que desconhe-
cem as consequências prejudi-
ciais de uma avaliação psicoló-
gica de baixa qualidade técnica e
científica”.

A avaliação psicológica tem sido


considerada um desafio até mes-
mo para a Psicologia em seus di-
versos campos de atuação, às ve-
zes confundida apenas com um
processo simplista ou com o uso
de um único instrumento, devi-
do à falta de clareza de seu sig-

40
nificado. De forma geral, explica
que a avaliação psicológica pode
ser definida como um conjunto
de técnicas e procedimentos que
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

tem como objetivo verificar de-


terminadas características psico-
lógicas de uma pessoa, nos mais
diversos contextos, almejando
diferentes objetivos. “Logo, nos-
sas decisões trazem em si possi-
bilidades diversas, assim como
limitações e impedimentos para
o atleta avaliado. Podemos maxi-
mizar resultados, ajudar a formar
grandes atletas e ainda interrom-
per uma carreira ou apenas atra-
sar seu desenvolvimento”, acre-
dita o psicólogo.

Andréa Pesca apresenta como


um dos desafios nesta atividade
o fato de muitas (os) psicólogas
(os), por não compreenderem o
principal objetivo da avaliação
e por isso não utilizarem seus
procedimentos de forma ética e
eficiente. “Vale ressaltar que ava-
liação psicológica é mais ampla
e consistente do que um teste
psicológico, que é apenas uma
ferramenta. A avaliação psicoló-
gica inclui procedimentos como
a entrevista, a observação, as téc-
nicas e os questionários”.

Do ponto de vista ético, Andréa


Pesca reforça que a (o) psicóloga
(o) que avalia deve entender to-
dos os procedimentos, deve ser
criterioso e conhecer as limita-
ções da própria avaliação psico-
lógica. Enfim, “não deve se sub-
meter à pressão para utilização
de determinado procedimento
se este não for o melhor para o
momento; ter familiaridade com
todo o processo, ou seja, conhe-
cer as questões científicas e em-
píricas da avaliação psicológica
no contexto esportivo”, enumera.

Já Yghor Gomes relata que, em


contato com diversos grupos e
equipes de diferentes modalida-
des, é frequente ouvir relatos de
que foram “usados” em pesqui-
sas das quais nem sempre rece-
bem uma devolutiva ou tomam
conhecimento dos resultados.
“Isto por si só já seria uma falta
ética, mas o pior é a exposição
indiscriminada dos indivíduos
em situação de avaliação psico-
lógica ou no uso das informações
sem o atleta ter pleno entendi-
mento do processo ao qual foi
submetido” alerta o psicólogo.
Ele conclui: “Temos como obri-
gação resguardar o direito do
avaliado e respeitar nosso código
de ética, mesmo entendendo as
particularidades da nossa atua-
41
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

ção no meio esportivo. Cabe ao


psicólogo pensar sobre o fazer da
psicologia e suas possibilidades”.
Dezembro de 2018

42
Revista Diálogos
Foto: Beatriz Ferraz/Secom UnB
Universidade
Tornar-se profissional da
Psicologia do Esporte
Novas vocações surgem e caminhos
são traçados na universidade

A Universidade de Brasília (UnB) foi ação de Psicologia aponta às (aos)


inaugurada em 21 de abril de 1962 sob alunas (os)mais uma possibilidade
inspiração do antropólogo Darcy Ri- na carreira. “A graduação é genera-
beiro e do educador Anísio Teixeira. lista. Ninguém sai especialista, mas
Nasceu com a promessa de reinventar é importante conhecer os vários
a educação superior e formar profis- campos da Psicologia.” Em sua opi-
sionais engajadas (os) na transforma- nião, a formação da (o) psicóloga (o)
ção do país. Do período pós-golpe do esporte se dá como em qualquer
até a redemocratização do país, a outro campo da Psicologia. Segundo
universidade vivenciou tempos difí- a professora, há várias experiências
ceis, com várias invasões e repressão positivas e é preciso construir o fa-
policial. Hoje, a UnB reúne, apenas no zer na Psicologia do Esporte para
campus Darcy Ribeiro, projetado por que seja mais conhecida.
Oscar Niemeyer, mais de 9 mil alunas
(os) na graduação. É justamente neste Em suas aulas, ela questiona a busca
espaço que novas vocações surgem e pela criação de um comportamento
caminhos são traçados. para a vitória, adotada por várias te-
orias e dá ênfase a uma perspectiva
A professora Regina Sucupira Pedro- mais humanista. Ela aponta, além
za, do Instituto de Psicologia da UnB, dos esportes de alto rendimento, nos
criou em 2008 a disciplina optativa quais a inserção da (o) psicóloga (o)
Psicologia do Esporte e do Exercício. do esporte e do exercício é mais vi-
Graduada, com licenciatura, mestra- sível, outras áreas de atuação, como
do e doutorado em Psicologia pela no tratamento de doenças crônicas
UnB, Regina fez seu pós doutora- e a reabilitação. A professora vê com
do em Sciences de l’Education pela bons olhos também a atuação da (o)
Universidade Paris V. Sempre tendo psicóloga (o) na educação esportiva
a Psicologia Escolar e a formação de dentro das escolas e envolvido nas
professores como norte de sua car- questões da comunidade. E dentre
reira acadêmica e profissional, a mo- os temas de interesse da área estão
tivação pessoal e o amor ao esporte a questões de gênero e a transição da
levaram a criar a disciplina no âmbi- carreira esportiva, prevendo a apo-
to da Psicologia. Ofertada pela última sentadoria da (o) atleta.
vez no segundo semestre de 2016 e
novamente no segundo semestre de “O ESPORTE NÃO
2018, a disciplina tem turmas lotadas.
Tanto que recentemente conquistou EDUCA POR SI SÓ”
o status de “altamente recomendá- Embora haja interesse e curiosidade
vel” às (aos) alunas (os). das (os) alunas (os) quanto à Psico-
logia do Esporte, há também o de-
Regina Pedroza, que também é con-
selheira do Conselho Federal de
Psicologia, enfatiza que o ensino
sinteresse gerado por falta de opção
de trabalho. A grande maioria acaba
optando pela clínica ao final da gra-
43
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

da Psicologia do Esporte na gradu- duação, mais por uma questão mer-


cadológica e de autonomia.
“O esporte não educa por si só. Tem fissional. Ele se graduou em 2012 na
que haver uma ética profissional e UnB, na licenciatura e em Psicologia
pessoal”, reafirma a professora. Re- Clínica. Naquela época, com desejo
gina Pedroza cita o exemplo das de se especializar em Psicologia do
escolas de futebol mantidas pelos Esporte e com muitas dúvidas sobre
grandes clubes nacionais em Brasí- como fazê-lo, procurou por palestras
lia. Crianças e jovens selecionadas e estágios. Também fez visitas técni-
(os) pelas (os) ‘olheiras (os)’ mergu- cas. Finalmente, em 2014, ingressou
lham desde bem cedo neste univer- no mestrado em Desenvolvimento
so do futebol com treinos exaustivos Humano e Saúde, do Instituto de
durante todo o dia. “É necessário Psicologia da UnB, sob orientação da
fazer uma crítica maior a esta reali- professora Regina Pedroza.
dade”, diz a professora, lembrando
que se cria algo ilusório nas (os) jo- O objeto de sua pesquisa acadêmica
vens e elas (es) acabam acreditando foi exatamente este: A Psicologia do
que irão se tornar craques e ganha- Esporte e o Psicólogo – uma forma-
rão muito dinheiro no esporte. Uma ção necessária. E a metodologia uti-
percentagem mínima destas (es) jo- lizada incluiu entrevistas qualitati-
vens vai ser aproveitada no futebol vas dirigidas às (aos) profissionais da
profissional. Sob seu ponto de vista, Psicologia do Esporte com carreira
esta é uma prática que se torna per- e formação consolidadas. Hugo Pi-
versa. Regina Pedroza cita o exem- nho adotou a perspectiva do autor e
plo de crianças que são retiradas da psicólogo Carl Rogers para pensar o
família com promessas de que vão “tornar-se uma pessoa” e compreen-
se dar bem na vida, saem da escola der o processo de “tornar-se psicó-
regular para treinar durante o dia e logo do esporte”. Com este enfoque
estudar à noite. Um desses jovens, mais humanista na Psicologia, o mes-
de Brasília, se dedicou a uma inten- trando traçou o caminho indicado
sa rotina de treinos, esperando ser por Rogers, “o de enfrentar novas si-
chamado por algum time de fute- tuações, desafios, mudanças, que está
bol. Então, foi dispensado. “Ele não ganhando confiança e descobrindo
sabia fazer mais nada.” No fim das novos aspectos sobre si mesmo”.
contas, ele mergulhou em uma gra-
ve depressão, o que levou a sua mãe Atualmente ele atua como psicólo-
a buscar ajuda junto às (aos) psicólo- go do Esporte no Capital, time de
gas (os) da clínica da UnB. futebol profissional de Brasília, e
também no Bravus, equipe de fu-
Outro caso, relatado em um estágio, tebol amador. Avaliando os tempos
foi um atendimento feito às meninas de universidade, Hugo Soares Pi-
– de 10 e 12 anos – atletas da ginástica nho considera que a base acadêmi-
rítmica. Grande parte do grupo esta- ca não foi suficiente para dar-lhe
va praticando o esporte pelo desejo as ferramentas necessárias para ele
das mães e a psicóloga foi chamada a se tornar um psicólogo do Esporte,
intervir e encontrou algumas crian- mas foi a soma de uma boa base em
ças totalmente travadas e outras ne- Psicologia com a prática que conso-
gando querer estar ali. lidou sua formação. Na conclusão
de sua dissertação, ele pondera que
IDENTIDADE a Psicologia no Brasil é abrangente,
Para trabalhar com Psicologia do Es- ampla e generalista. Em sua opinião,
porte, a (o) aluna (o) tem que saber as (os) futuras (os) psicólogas (os) não
que não será uma (um) psicoterapeu- se sentem confiantes para exerce-
ta e que tem, necessariamente, que rem a profissão, por isso ele defende
gostar da área, ter uma identidade, a oferta de estágios, ou seja, poder
a motivação intrínseca pelo esporte, ver na prática as reais demandas da
explica Regina Pedroza. A professo- área. Atualmente, sua equipe conta
ra inclui debates sobre a questão éti- com quatro estagiárias (os), fato raro
ca e “a serviço de quem a Psicologia para uma cidade como Brasília, com
vai estar”. “A minha Psicologia é mais pouca tradição e oferta em esportes.
humana, com espaço para pensar
questões como os direitos humanos, TRAMA DA MODALIDADE

44
o desejo de quem pratica o esporte e Se inserir na modalidade esportiva,
o exercício”. acompanhar treinos e jogos e con-
versar com a (o) técnica (o) do time
A BUSCA DE HUGO PINHO para desvendar “a trama da modali-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

O psicólogo Hugo Soares Pinho sem- dade” são regras de ouro no ofício,
pre vivenciou o esporte. Como atleta assim como ler textos da área e tra-
– de basquete e futebol – e depois balhar com esportes de alto rendi-
na sua formação acadêmica e pro- mento.
Em esportes coletivos que deman- gidos.” O primeiro passo foi estabe-
dam relações interpessoais, o psi- lecer uma espécie de parceria com
cólogo criou momentos conjuntos as (os) técnicas (os). “Senão não fun-
com a equipe de futebol. Assim que ciona”. Depois, anamnese com cada
cada partida termina, ele faz atendi- uma (um) das (os) alunas (os) e mãos
mento em grupo e pauta a reflexão à obra com dinâmicas dirigidas às
sobre o jogo. “Dou a palavra para (aos) jovens e conversas com a fa-
que cada um fale de si mesmo e do mília. “Os pais criam muita expec-
outro, faço a dinâmica e discutimos tativa. Não tratam o esporte como
os erros e os acertos”, revela Hugo lazer, mas sim como mera compe-
Pinho. O objetivo não é eliminar os tição que pode gerar uma bolsa de
erros, mas sim elaborar os erros. estudos nos Estados Unidos”. Assim,
Esther aprendeu que seu papel era
Em termos de abordagem, embo- ajudar crianças e adolescentes a li-
ra a literatura indique a cognitiva dar com o estresse, com a tensão e
comportamental, todas as demais se divertir. O resultado na perfor-
conseguem lidar com a Psicologia mance é uma consequência, acre-
do Esporte. A Psicologia do Espor- dita.
te existe há mais de cem anos no
mundo e no Brasil apenas engati- ESPORTE, MENTE E EVOLUÇÃO
nha, lamenta o psicólogo, ao lem- Um dia o estágio acabou e a forma-
brar o Barcelona que contava com tura veio acompanhada de uma dú-
três psicólogos por atleta. Ou a se- vida. Era realmente este o caminho?
leção alemã, que na Copa de 2014, Seguiram-se meses de estudos,
no Brasil, trouxe apenas um depar- cursos on-line, leituras e reflexões.
tamento completo: o de Psicologia. E ela optou pela Psicologia do Es-
porte. A recém-formada abriu um
A APOSTA DE ESTER LIMA DUARTE consultório dedicado totalmente ao
Entre 2010 e 2016, Ester Lima Du- campo e instituiu a marca “Esporte,
arte viveu intensamente como atle- mente e evolução” para lidar apenas
ta de alto rendimento, viajou o Bra- com a Psicologia do Esporte. Hoje,
sil inteiro e participou de torneios ela tem clientes esportistas, a maio-
na sua especialidade – o tênis de ria crianças e adolescentes e, como
quadra na cadeira de rodas. Com a metodologia, envolve a (o) treina-
rotina pautada por treinos, viagens dora (or) e a família.
e mais treinos, ela se questionou
bastante, principalmente o pouco Em Sobradinho, cidade do Distrito
interesse que tinha na competição Federal, dá assistência a um gru-
por si só. “É preciso ter sangue no po de caratecas, alunas (os) de uma
olho”, reflete Ester, lembrando que academia. Atende ainda marato-
colegas atletas que amavam com- nistas, praticantes de judô, tenistas
petir conquistaram medalhas em e atletas paralímpicos. “Existe uma
competições paraolímpicas inter- demanda no Distrito Federal, mas
nacionais. Mas não era o seu caso. tudo é muito novo ainda”, afirma a
psicóloga. Ester continua treinando Regina
Simultaneamente, Ester Duarte
cursava Psicologia na UnB onde
e vivendo como uma atleta de alto
rendimento do tênis de campo em Pedroza:
conheceu e decidiu seu futuro na
Psicologia do Esporte. Á época, fez
cadeira de rodas. Simultaneamen-
te, estuda e se aperfeiçoa. “Estudo Amor ao
estágios e, no primeiro deles, ob-
tido por meio de um programa de
o tempo todo”, admite, inclusive re-
gras e dinâmicas de vários esportes. esporte
extensão da Faculdade de Educa-
ção Física, pôde acompanhar as (os)
atletas que treinavam saltos orna-
mentais no Centro de Excelência
da UnB na época das Olimpíadas de
2016. A estudante teve então a opor-
tunidade de conviver com equipes
do mundo inteiro, vivenciando o
cotidiano do esporte, das (os) atletas

45
e das (os) técnicas (os).
Foto: Rodrigo Farhart

O próximo estágio foi em uma es-


cola de tênis, no universo de alunas
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

(os), crianças e adolescentes. “Como


em qualquer esporte de alto rendi-
mento, os treinos eram intensos”,
recorda. “E os treinadores muito rí-
Foto: Mariana Leal
Depoimento
Revista Diálogos

46
Dezembro de 2018
No combate, com espaço para o afeto
Thabata Castelo Branco Telles

Thabata Castelo Branco Telles é psicóloga se sentido, apesar de ainda não ser muito
e atualmente faz um doutorado sanduíche comum, podemos aos poucos encontrar a
na França. A busca do saber no campo da Psicologia do Esporte no contexto da for-
Psicologia do Esporte lhe indicou um ca- mação acadêmica em Psicologia no Brasil.
minho – ela pesquisa o corpo a corpo no
combate na comparação entre três mo- Finalmente, no doutorado, consegui unir
dalidades de luta, o caratê, o MMA e a ca- vários interesses pessoais e acadêmicos, por
poeira. Praticante de artes marciais desde meio de uma pesquisa que busca compre-
a infância, a doutoranda relata à Revista ender o corpo a corpo no combate através
Diálogos sua trajetória e a importância do de uma comparação entre o caratê, a capo-
gostar e do afeto, resultando em um forte eira e o MMA, com base na fenomenolo-
entrelaçamento pessoal e profissional nos gia de Merleau-Ponty, especialmente nas
seus estudos e práticas em Psicologia. temáticas relativas ao corpo, movimento,
percepção e aprendizagem. O caminho
“Nascida em Fortaleza, foi lá também que para encontrar orientação foi árduo, mas
conheci o esporte e a Psicologia do Espor- felizmente encontrei um laboratório que
te. Comecei a praticar caratê com 9 anos e, trata de estudos fenomenológicos em Psi-
de lá pra cá, conheci e pratiquei também cologia do Esporte, especialmente em ar-
outras artes marciais e esportes de com- tes marciais e esportes de combate, sob
bate, hábito que mantenho até hoje. No orientação do professor Cristiano Barrei-
meu primeiro ano de faculdade em Psico- ra, na Universidade de São Paulo (USP).
logia, ouvi falar da Psicologia do Esporte, Contudo, uma vez que o laboratório conta
mas havia pouco o que encontrar, além com uma perspectiva mais clássica da fe-
de livros e artigos. Consegui fazer alguns nomenologia (a partir de Husserl e Stein),
estágios, mas me dediquei mais à forma- optamos pela realização de estágios dou-
ção em Psicologia Clínica, por achar que torais nos Arquivos Husserl de Paris (ENS/
não conseguiria trabalhar com Psicologia CNRS), sob orientação do professor Étien-
do Esporte. Para minha surpresa, pouco ne Bimbenet, tendo em vista o aprofun-
tempo após me formar, recebi um atleta damento na fenomenologia de Merleau-
na clínica, indicado por colegas. Assim, vi -Ponty, para discutir os achados através de
a necessidade de me especializar na área: entrevistas, que foram realizadas com 29
fiz curso em São Paulo (região que até hoje lutadores, dentre eles só uma mulher, o
concentra boa parte dos estudos e atuações que me fez atentar mais às questões de gê-
neste campo), obtive o título de especia- nero nesta área (o que também me afeta na
lista pelo Conselho Federal de Psicologia, prática com as lutas). Este olhar crítico tem
por meio de prova, e consegui continuar ainda permitido discussões importantes
trabalhando na área, paralelamente com a sobre os processos históricos, culturais e,
clínica. Foi também nesse período que co- principalmente, de “esportivização” nessas
nheci e me vinculei à Associação Brasileira modalidades combativas.
de Psicologia do Esporte (Abrapesp).
CAMINHO INVERSO
Em seguida, atuei como professora em Esta narrativa aponta forte entrelaçamento
algumas instituições de ensino superior e pessoal e profissional em meus estudos e
destaco a Universidade de Fortaleza (Uni- práticas em Psicologia do Esporte. Se mui-
for), a primeira com a disciplina de Psi- tas vezes tamanho envolvimento parece
cologia do Esporte no Ceará, da qual fui ser evitado em nossa área, o caminho final
professora. Esta universidade ofereceu da minha pesquisa de doutorado, junta-
suporte para que contássemos também mente com minha prática pessoal, parece
com estágios supervisionados na área. Na ressaltar um caminho inverso: proponho
Universidade Federal do Triângulo Minei- justamente a elucidação de nossos envolvi-
ro (UFTM), durante um semestre, me ocu- mentos com o mundo, tendo como conse-

47
pei de uma disciplina de tópicos especiais quência novas propostas teórico-metodo-
sobre corpo e movimento. Nesta mesma lógicas para que possamos permitir certos
universidade, também foi possível con- afetos e afetações, sem que percamos o
tar com estágios e trabalhos de conclusão olhar ético e em constante compromisso
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

de curso em Psicologia do Esporte. Nes- com o campo científico da Psicologia”.


Reportagem

Futebol, uma paixão avassaladora


Na convivência com árbitros, jogadores e técnicos uma coisa em comum: resistência,
desconhecimento e preconceito em relação ao trabalho do profissional da Psicologia

Preferência nacional, espaço mítico futebol deve ter preparação física igual
de disputa, o futebol reina absoluto ou superior às (aos) das (os) jogadoras
no coração das (os) brasileiras (os). em campo. Afinal, ela (e) corre atrás da
Cantado em verso e prosa, a pouca bola os 90 minutos da partida.
fé das (os) brasileiras (os) na equipe
que ia disputar a Copa do Mundo Camilla Baptista Mot-
de 1958 levou Nelson Rodrigues a ta Fernandes, psi-
cunhar a expressão “complexo de cóloga formada
vira-latas”. O cronista entendeu que pela Universidade
o povo brasileiro não apoiava sua se- Federal de Goiás
leção de futebol da época – recheada (UFG), atuou primei-
de craques como Mané Garrincha e ro como estagiária e
o novato Pelé – devido à inferiori- depois como profis-
dade em que se colocava, volunta- sional contratada pelo
riamente, em face do resto do mun- Sindicato de Árbitros de
do. Rodrigues escrevia na época que Futebol do Estado de Goi-
“qualquer jogador brasileiro, quan- ás em parceria com a Con-
do se desamarra de suas inibições federação Brasileira de Fu-
e se põe em estado de graça, é algo tebol (CBF). Ela é responsável
de único em matéria de fantasia, de por acompanhar cerca de cem
improvisação, de invenção”. É no árbitros de diferentes categorias,
futebol, espaço das subjetividades, como as séries A, B e C dos tor-
de vastas emoções, que várias (os) neios, 24 árbitros de campeona-
psicólogas (os) do Esporte atuam, al- tos nacionais e três de campeo-
guns experientes outros recém-for- natos internacionais.
madas (os). Na experiência de todas
(os), em comum o dia a dia em lidar A psicóloga afirma que,
com a diversidade de atores envol- de acordo com estudos
vidos – árbitras (os) , jogadoras (os) , já publicados, o estres-
técnicas (os), e uma certa resistência, se das (os) árbitras (os) é
desconhecimento e até mesmo pre- comparado às (ao) das
conceito em relação ao trabalho. (os) policiais e bom-
beiras (os), com
O primeiro artigo sobre Psicologia do índice bem sig-
Esporte no Brasil, do pioneiro João nificativo de
Carvalhaes, foi publicado ainda na burnout.
década de 40 do século passado. Não Durante
por acaso, o trabalho tratava do estres- uma par-
se vivenciado pelas (os) árbitras (os) tida de
de futebol. Hoje em dia, sujeitas (os) à futebol,
violência física, agressões da torcida, correm

48
pressão da mídia e das redes sociais, a em média
(o) árbitra (o) tem que lidar com todos 16 quilômetros enquanto
estes fatores, manter o controle emo- as (os) jogadoras (es) perfa-
cional durante a partida e adotar certa zem cerca de 11 quilôme-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

postura de lorde, como era identifica- tros. O esforço físico faz


do nos primórdios do esporte criado com que as (os) árbitras (os)
na Inglaterra no final do século XIX. s percam em torno de seis
Como se não bastasse, a (o) juíza (o) de quilos por partida.
COMPORTAMENTO DISCIPLINA
“Não há trabalho individualizado, A arbitragem brasileira é a primeira
mas em grupo”, explica Camilla da América do Sul a ter à disposição
Fernandes que acompanha os trei- uma profissional para preparar o
nos físicos, torneios e concentra- fator psicológico de seus árbitros e
ções. Bailarina desde os 3 anos, ela assistentes. A psicóloga Marta Maga-
utiliza a disciplina e a consciência lhães, com vasta experiência em Psi-
corporal no trabalho que desenvol- cologia Clínica e Escolar é pioneira
ve como psicóloga do Esporte. E é neste campo. Em 2004, iniciou em
no momento anterior aos treinos São Paulo um trabalho voltado às
físicos dos árbitros, com aborda- (aos) árbitras (os), com palestras e
gem na análise do comportamento, atendimentos. Em 2007, começou
principalmente, que ela coordena a atuar mais diretamente junto aos
práticas de alongamento e trabalho árbitros da CBF, esforço reconheci-
respiratório. A atenção e a preven- do e que ajudou, ao longo dos anos,
ção à fadiga e a possíveis lesões, a a convencer federações estaduais de
recuperação da respiração em meio futebol a formarem suas próprias
à partida, a visualização de joga- equipes. Hoje são cerca de 20 psicó-
das futuras, a tomada de decisão e logas (os) do Esporte que atendem
o controle das emoções são alguns árbitras (os) em quase todo o país.
dos pontos trabalhados pela psicó-
loga junto das (os) árbitras (os). Desde o início, Marta Magalhães
buscou o aperfeiçoamento na Psi-
Em uma profissão na qual o erro cologia do Esporte – ela foi aluna
pode influenciar o resultado final da segunda turma de especializa-
de uma partida, Camilla ção no Instituto Sedes Sapientiae
dá destaque ao treina- em São Paulo e estagiou em várias
mento para a tomada modalidades esportivas. Com mais
de decisão, justamente de dez anos na CBF, cerca de 5 mil
para que a falha não árbitras (os) estão sob sua a respon-
ocorra. Caso contrário, sabilidade direta ou indireta. Elas
ela trabalha também a (es) atuam nas partidas do campe-
aceitação do proble- onato brasileiro (Séries A, B, C, e
ma. D), na Copa do Brasil (masculino e
feminino), nas categorias Sub-20 e
Sub-17 e também atuam em jogos
internacionais.

Ela explica que a Comissão Nacional


de Arbitragem organiza a prepara-
ção dos árbitros brasileiros a partir
de quatro pilares: o técnico – pau-
tado pelo conhecimento de 17 re-
gras (Livro de Regras do Jogo), pela
atuação em campo, pelas avaliações
teóricas e pelos gestuais; o pilar físi-
co, relacionado às necessidades do
treinamento e da avaliação física; e
o pilar social, que procura entender
as diversidades de cada estado, com
seus hábitos, costumes e questões
climáticas, e que busca aproximar
a linguagem comum do meio, pro-
movendo uma comunicação mais
clara, coesa e nítida no campo de
jogo; e o pilar mental, nome dado
à atuação da (o) psicóloga (o) do Es-
porte no trabalho com as habilida-
des e competências pautadas pela
concentração, foco, poder de deci-

49
são e controle das pressões.

AWARENESS
Marta Magalhães reconhece que o
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

início da sua atuação envolveu tam-


bém um trabalho de convencimen-
to que, de certa forma, contribuiu
para derrubar resistências em torno
da Psicologia. Por outro lado, a dis- tras (os) Fifa, homens e mulheres.
ciplina e o zelo por parte da CBF, “Somos muito cobrados”, admite
que no início causaram certo estra- Vilarinho. Para além de todo estres-
nhamento, ajudaram a organizar o se vivenciado por uma (um) profis-
trabalho de forma positiva. sional da arbitragem, aqueles que
atuam em disputas internacionais
A psicóloga explica que a prática da representam a arbitragem brasilei-
Psicologia do Esporte, no tocante às ra. Então, é mais cobrança. É aí que
(aos) árbitras (os), é pautada na abor- o trabalho das (os) psicólogas (os) do
dagem da Gestalt-terapia, com ênfa- Esporte faz toda a diferença. “Real-
se na tomada de consciência (aware- mente dá resultado”, garante Vila-
ness), no aqui agora, no como decidir rinho se referindo ao acompanha-
e também nas atuações presentes. mento feito pelas psicólogas Marta
De acordo com a psicóloga, a prepa- Magalhães e Camila Fernandes.
ração mental das (os) árbitras (os) os
leva, por exemplo, a se desligarem de As (os) árbitras (os) são cada vez mais
insultos e provocações, mesmo com exigidos, tanto do ponto de vista fí-
um Maracanã lotado e uma torcida sico, como do técnico e psicológico.
de 70 mil expectadoras (es). “Temos que lidar com o estresse. O
árbitro tem que decidir, em média,
Os conteúdos psicológicos que são 170 vezes por partida: faltas, gols,
trabalhados junto às (aos) profissio- pênaltis e cartões.” A Psicologia do
nais da arbitragem são vários. São Esporte fornece às (aos) árbitras (os)
habilidades como concentração, os instrumentos para lidar com cada
atenção, tomada de decisão; são fa- desafio. Vilarinho revela que, por
tores que estimulam o desenvolvi- exemplo, o trabalho de atenção à
mento da concentração e a tomada respiração rendeu maior concentra-
de decisão; e também a criação de ção durante os jogos e que o contato
quadro de controles, como o pensa- com as (os) profissionais da Psicolo-
mento, a atenção, a ativação e a atu- gia é constante e realizado de várias
ação. Outro tema é o autocontrole formas – pessoalmente, via Skype,
e isso está relacionado ao controle telefone e por WhatsApp. Periodi-
respiratório, estresse e ansiedade, camente as (os) árbitras (os) respon-
comunicação, confiança, coesão, dem a um questionário, uma “esca-
atenção e prática mental, motiva- la de sensações”, que busca avaliar
ção, ativação, relaxamento e pre- questões como o sono, hidratação,
venção do esgotamento físico. respiração, concentração e atenção.

VAR Vilarinho usa um medidor de fre-


Atualmente a psicóloga tem a aten- quência cardíaca durante os jogos.
ção voltada ao treinamento no siste- Após a partida, assiste ao vídeo e
ma de vídeo-arbitragem VAR (sigla confere o aparelho para saber se
em inglês para video assistant refe- alguma decisão causou o aumento
ree, ou árbitro assistente de vídeo). das batidas do coração. Com isto,
Em destaque durante os jogos da monitora se o estresse influenciou
Copa do Mundo de Futebol de 2018, alguma decisão tomada em cam-
a utilização do vídeo em partidas po. Outro aspecto trabalhado com
de futebol é uma tecnologia 100% as (os) psicólogas (os) do Esporte é a
nacional, idealizada por Manoel transição de carreira. Normalmen-
Serapião, diretor-técnico da Escola te, as (os) árbitras (os) se aposentam
Nacional de Arbitragem de Futebol até os 50 anos, dependendo de suas
(Enaf) e adotado pela International condições físicas. Com a orientação
Football Association Board (Ifab). das psicólogas, avalia a possibilida-
Nas quartas de final da Copa Brasil de de se tornar instrutor de novos
de 2018, As (as) torcedoras (as) bra- árbitros após pendurar as chuteiras.
sileiras (os) vão poder assistir à par-
ticipação das “árbitras (os)de vídeos” VITÓRIA
nos campos do território nacional. O Fortaleza Esporte Clube completa
cem anos de existência e tem moti-
FIFA vos de sobra para comemorar. De-

50
Aos 38 anos, o goiano Fabrício Vi- pois de sete anos penando na Série
larinho é árbitro da Federação In- C do Campeonato Brasileiro, o time
ternacional de Futebol (Fifa), por- voltou à Série B. A criação do setor
tanto credenciado a apitar jogos de Psicologia do Esporte e o tra-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

em torneios internacionais como a balho de profissionais da área com


Copa do Mundo ou a Libertadores certeza contribuíram para melhorar
da América. No Brasil são 28 árbi- a performance do tricolor cearense.
Liana Benício é psicóloga formada respaldo para exercer seu trabalho.
pela Universidade Federal do Cea- E conseguiu.
rá (UFC), especialista em Psicologia
do Esporte e atualmente mestran- A partir de então, ela instituiu no
da em Ciências do Desporto na clube uma rotina de trabalho basea-
Universidade de Trás-os-Montes do em um tripé – o social, a relação
e Alto Douro (Utad), em Portugal. das (os) jogadoras (es) com a cidade,
Em 2016, aceitou o convite para a escola e a família; a relação com
implantar o setor de Psicologia no o clube – com o objetivo de criar
Fortaleza, que vivia então uma crise identidade; e o emocional, lidan-
com derrotas em série atribuídas, do com a escuta, dinâmicas, torci-
pela diretoria do clube, a fatores da, a vitória e a derrota. O treina-
emocionais das (os) jogadoras (es). mento era o momento de trabalhar
Já especialista em Psicologia do Es- questões cognitivas, a ansiedade e
porte – uma das poucas atuantes no a atenção. Liana Benício utilizou
Ceará – Liana teve que lidar com o também técnicas e equipamentos
desconhecimento do papel de um próprios da Psicologia do Esporte
profissional e certo preconceito – o biofeedback e o neurofeedback.
relacionado à atividade do psicó-
logo. “O primeiro ano foi terrível”, O trabalho no dia a dia junto às
desabafa. Sem desistir, a psicóloga (aos) jogadoras (es) cumpriu a meta
iniciou um trabalho de convenci- – hoje, todas (os) trabalham a pres-
mento. Preparou uma apresentação são com maior tranquilidade. Em
e organizou rodas de conversa para campo, o resultado foi a vitória e
funcionárias (os) em todos os seto- a liderança da Série B do Brasilei-
res – da direção aos serventes. rão. A atuação da psicóloga no time
ganhou destaque na mídia local. O
No jogo de acesso do Fortaleza con- fato positivo foi o reconhecimento
tra o Juventude, em 2016, com o da Psicologia do Esporte que, na sua
estádio do Castelão lotado e mais opinião, não é tratada como deve-
de 60 mil torcedoras (es), o time ria. De acordo com ela, o mercado
amargou outra derrota. Jogou mal. de trabalho para os profissionais as
A derrota marcou o início da vira- (os) especializadas (os) está coloca-
da. Naquele momento, Liana Bení- do, mas não é apropriado pelas (os)
cio reivindicou mais espaço e mais psicólogas (os).

NO FLUMINENSE, ESPAÇO PARA


ATLETAS DE ALTO RENDIMENTO
Com 115 anos, o Fluminense Football Club, agremiação esportiva de tradição
no futebol, é reconhecido como o maior rival do Flamengo há dezenas de
anos. Mas nem só de futebol vive o clube das Laranjeiras. A psicóloga do Es-
porte Anna Paula Rocha Maia é, desde 2004, responsável pelas categorias de
base da agremiação. Ela atende cerca de 50 atletas, todas (os) de alto rendimen-
to, crianças e jovens divididas (os) em várias modalidades esportivas, da nata-
ção ao basquete. Formada em Psicologia em 1989 pela Universidade Gama Fi-
lho e especialista em Psicologia do Esporte, Anna Paula lida com tranquilidade
e enfrenta os percalços comuns da área – resistência inicial de atletas, dúvidas
de técnicas (os), pressão maior afetando atletas de alto rendimento, treinos
e competições faça chuva ou faça sol. Sem contar as questões familiares que
repercutem nas (os) atletas. Em sua opinião, “a Psicologia não faz ninguém
ganhar, mas ajuda”.

A psicóloga, que atuou inicialmente na área de Recursos Humanos, garante


que se encontrou na Psicologia do Esporte. Nesse campo, trabalhou em várias

51
modalidades esportivas, como tiro esportivo, tênis, pentatlo militar e saltos
ornamentais. No final de 2012, fundou o Mundos Esportivus empresa dedi-
cada a cursos e atendimentos em Psicologia do Esporte. Anna Paula acredita
no futuro da Psicologia do Esporte, embora veja o mercado de trabalho em
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

dificuldades em grandes centros como o Rio de Janeiro. “É um longo caminho


a ser percorrido.”
Resenha
Psicologia do Organização Katia Rubio.
Esporte: teoria Coleção Psicologia do Esporte,
Casa do Psicólogo
e prática Maurício Marques

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Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Publicado pela Casa do Psicólogo em 2003, bre práticas orientadas a uma melhor quali-
Psicologia do Esporte: Teoria e Prática forma dade de vida. Gisela Sartori Franco nos fala da
a coleção “Psicologia do Esporte” juntamente interação que ocorre esportivamente entre
com Psicologia do Esporte Aplicada. Como competição e cooperação. Carla de Pierro e
outros, também organizados pela professo- Fábio Silvestre da Silva apresentam a de atu-
ra Katia Rubio, ele faz parte de uma série de ação de profissionais da Psicologia do esporte
livros lançados na virada do milênio que re- em projetos sociais, uma possibilidade ainda
presentam o amadurecimento e consolida- menos explorada. Questões sobre o vínculo e
ção de uma Psicologia do Esporte plural bra- a relação treinador-atleta são abordadas sob a
sileira. Historicamente, estas obras surgem luz da psicanálise por Hélio Ribeiro da Silva.
após os primeiros manuais generalistas im-
portados ou publicados por autores únicos Conceituar fenômenos existentes nas dinâ-
brasileiros que apresentavam visões pessoais micas grupais em equipes esportivas na bus-
da área de atuação. ca de coesão é o objetivo da organizadora
Katia Rubio em seu escrito. As transições de
Após um prólogo e uma apresentação, se- carreira, em especial a aposentadoria espor-
guem-se 12 capítulos escritos por 14 especia- tiva, são tratadas no capítulo de Luis de An-
listas, mestres e doutores em Psicologia e áre- drade Martini. Márcia Pilla do Valle e Neusa
as afins. A apresentação dos autores evidencia Guareschi problematizam a identidade do
alguns dos primeiros profissionais consoli- atleta e seu lugar dentro do cenário do espe-
dados em universidades, clubes esportivos e táculo esportivo. Finalmente, Nara Schmidt
projetos sociais. Estes, como supervisores de de Lima completa o livro, questionando a
estágios e professores de pós-graduação, aca- dificuldade da consolidação da Psicologia do
baram por auxiliar na formação de algumas Esporte sem projetos de formação para estu-
gerações de profissionais espalhados pelo dantes, algo que segue impedindo um maior
Brasil nos últimos anos. crescimento da área nos dias atuais.

A obra começa com a proposta de Adriana As experiências desses profissionais, prove-


Bernardes Pereira de um programa infor- nientes de diversas linhas teóricas e atuantes
mático de análise da performance individu- em distintos locais, confirmam o logro do
al e coletiva, um desafio ainda atual. Marisa objetivo do livro de Rubio. Como na apre-
Markunas oferece um modelo de periodiza- sentação do livro, a construção de uma Psico-
ção do treinamento psicológico de alto ren- logia do e não no esporte pode ser constatada
dimento, tema que segue instigando pesqui- nesta e outras obras que a seguiram. Os li-
sadores e profissionais. Fabíola Matarazzo vros concebidos por Katia Rubio ajudaram e
inova ao utilizar a arteterapia para diagnósti- seguem contribuindo com o crescimento de
co e intervenção com atletas, demonstrando diversos alunos e profissionais que se apaixo-
um desafio de unir práticas de psicólogos de nam pela Psicologia do Esporte.
distintas áreas de atuação. Por sua vez, Pa-
ola Espósito de Morais Almeida nos fala de Por isso, esta obra está no topo da minha lista
transtornos alimentares, problematizando o de sugestões para quem me pede conselhos.
paradoxo saúde-doença presente no esporte. Foi também por ela que brilharam os olhos
de um jovem estudante em seu primeiro ano
TREINADOR-ATLETA de graduação. Ele se chamava Maurício e
Pensar para além da competição foi assunto ainda é grato pelos ensinamentos proporcio-
de Luciana Ferreira Ângelo, que escreve so- nados pela professora Rubio.

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Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Maurício Pinto Marques, doutor em Psicologia do Esporte pela


Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha), faz parte da direto-
ria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp).
mauriciopmarques@gmail.com
Cinema
Revista Diálogos

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Dezembro de 2018
Heleno, o príncipe maldito
Filme narra trajetória meteórica e trágica do herói alvinegro
Rita Almeida

Heleno é um filme brasileiro de 2012 dirigido a aparência, Heleno gostava de frequentar as


por José Henrique Fonseca, produzido e es- manchetes dos jornais e de ser uma estrela. Era
trelado por Rodrigo Santoro. Trata-se da bio- famoso pela qualidade do seu futebol, pela in-
grafia do jogador de futebol Heleno de Freitas, tensidade com a qual se dedicava ao Botafogo
ídolo do Botafogo, do Rio de Janeiro, na déca- e por sua febre por gols, mas também pelo seu
da de 1940, adaptada para o cinema. O filme temperamento explosivo, por sua indisciplina
tece a trajetória meteórica e trágica do herói e pela dificuldade de se relacionar e interagir.
alvinegro, que vai de uma carreira de sucesso, Faltavam-lhe modéstia e empatia e sobravam
fama e fortuna, ao declínio e a derrocada pre- prepotência e arrogância. Seus companheiros
maturos. Vítima dos sintomas degenerativos de time eram apenas uns “cabeças-de-bagre”
da neurosífilis, adquirida, provavelmente, por ou “pernas-de-pau”. Heleno os acusava de en-
causa de sua vida sexual intensa e promíscua, vergonhá-lo, parecia suportá-los apenas por
Heleno morre ainda bem jovem, aos 39 anos, não ser capaz de formar um time sozinho.
internado em um manicômio em Barbacena, Heleno, dentro e fora dos campos, se compor-
Minas Gerais. tava como se habitasse o centro o universo.
Dizendo assim, Heleno nos parece um sujeito
O filme é preciso em retratar um Heleno tão intratável e psiquicamente perturbado – e era
amado quanto odiado. Amado por fazer do fu- – mas o filme prima pela delicadeza de não
tebol uma arte e uma paixão, e odiado por seu explorar o perfil psicológico do jogador para
temperamento e sua incapacidade para o trato atribuir-lhe um diagnóstico ou para julgá-lo
social. A imprensa o chamava de gênio e lou- sob bases morais ou éticas. Pelos olhos do fil-
co. Se vivesse hoje em dia, Heleno, certamen- me, Heleno apenas nos parece humano, de-
te, não seria capturado pelo manicômio, já que masiadamente humano.
eles estão em extinção. Entretanto, muito pos-
sivelmente, seria capturado por algum diag- Assistindo o filme e se embriagando desse per-
nóstico psiquiátrico, ou pela horda moralista sonagem incrivelmente forte e apaixonado,
e linchadora das redes sociais. E isso ocorreria mas, ao mesmo tempo, insuportavelmente ar-
antes mesmo de manifestarem os sintomas da rogante e louco, é possível compreender que,
neurosífilis, que compareceram apenas tardia- talvez, Heleno só possa ter sido um jogador de
mente e o levaram à internação psiquiátrica, já futebol tão incrível por ser capaz de utilizar
no fim da sua carreira. dentro do campo, e em favor do futebol, aqui-
lo que tinha de pior. Ou seja, seu amor pelo
Heleno foi uma das primeiras estrelas do nos- esporte e pelo time o fez ser capaz de traduzir
so futebol a ganhar fama e fortuna, das quais seu pior no seu melhor. Heleno nos faz com-
se apropriou sem melindres, como se tivesse preender que aquilo que é nossa pior maldi-
nascido com sangue azul. O filme reproduz ção, também pode ser nossa maior potência,
uma entrevista na qual Heleno afirma ser um e vice-versa. Além disso, o filme conduz o
homem que sabe o que gosta e o que quer: personagem de forma a nos fazer entender o
“gols, cinturinhas e cadilacs”. De fato, além pecado e a ignorância que seria rotular Hele-
de sua paixão contagiante pelo futebol e pelo no sob algum sintoma, diagnóstico ou perfil
Botafogo, Heleno também soube gozar vivida- de personalidade. Heleno nos parece muito
mente de seu sucesso com as mulheres e da maior do que isso, e é. Ao contrário de con-
fortuna que alcançou. Essa intensidade que lhe vocar nossa moral para julgá-lo e diagnosticá-
acompanhava dentro e fora dos campos tam- -lo, Heleno nos faz querer amar uma coisa de
bém foi regada pelo uso de álcool e drogas (ta- forma tão intensa e voraz como ele conseguiu
baco, éter e comprimidos). No filme, Heleno amar, a ponto de ser tão único e se transcen-
nos parece uma chama viva, bela e sedutora, der, à revelia de qualquer outro que pudesse
mas que, exatamente pelo tamanho da força e determiná-lo. Ele diria: “Alguém pode achar
intensidade, se queimou rápido demais. que o que eu fiz foi impossível, mas não existe
impossível para mim. Eu não sou um jogador
O filme se ocupa bastante em mostrar a per- de futebol, eu sou a própria vontade de jogar,
sonalidade do jogador. Bonito e vaidoso com eu sou a garra em forma de gente. Eu sou”.
55
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Rita Almeida é psicóloga e psicanalista


Reportagem

A bola fora da discriminação


Ao longo de décadas, atletas transgêneros enfrentam obstáculos para se
manterem em um universo que ainda não aprendeu a lidar com as diferenças
Ana Flávia Flôres

Quais elementos determinam o sexo atleta? E na construção social do que


de uma pessoa? A existência ou não seria relativo ao masculino e ao femi-
do cromossomo Y? O percentual de nino? São muitas as perguntas rela-
testosterona ou progesterona no cor- cionadas a universos aparentemente

56
po? Ou seria a forma como a pessoa se distintos, mas que, em geral, são con-
percebe? Em que medida aspectos re- sequência da falta de informação e da
lacionados a gênero e transgenerida- manutenção de uma sociedade fun-
de impactam no desempenho de um damentada no patriarcado.
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
Foto: Neide Carlos/Vôlei Bauru

“Achava que para


continuar jogando
não poderia fazer
a transição”
Tifanny Abreu

De acordo com a doutora em psicolo-


gia social pela PUC/SP e coordenado-
ra do Núcleo de Estudos Psicossocio-
lógicos do Curso de Psicologia da PUC
Goiás, Adriana Bernardes Pereira, a
origem do problema está no históri-
co de dominação masculina, promo-
vida pela igreja, pela ciência médica
e pelo Estado. “Essa tríplice aliança
criou a unidade básica da sociedade
(família) e fortaleceu seus poderes em
cima do controle dos corpos e do am-
biente familiar, determinando o que
é ser homem e o que é ser mulher do
ponto de vista biológico e cultural. A

57
partir daí, foi um passo para a cons-
trução do modelo heteronormativo e
a noção de que o que está fora desse
modelo é anormal e patológico”.
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
No contexto esportivo, os impac- com a prática esportiva ou então,
tos e desdobramentos desse mode- que existiram esportes adequados e
lo são inúmeros, de acordo com a inadequados para serem desempe-
especialista, e sustentam um cená- nhados por elas”.
rio de preconceito e discriminação,
além de reforçarem estereótipos e a DESIGUALDADE ECONÔMICA E LEGAL
manutenção da desigualdade entre Essa compreensão equivocada ou
homens e mulheres. “A questão é o desinformação com relação à ca-
quanto estamos abertos para lidar pacidade feminina no universo es-
com o diferente do convencional portivo resulta em mais do que pre-
quando nem mesmo aceitamos que conceito. Mulheres que conseguem
a mulher, apesar de biologicamente superar as barreiras da desconfian-
diferente do homem, merece igual- ça e seguem carreira no esporte
dade de direitos e equidade de pos- se deparam com um cenário nada
sibilidades?”. igualitário também no contexto
profissional.
Para a doutoranda do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Desde 1933, por exemplo, o fute-
Unesp-Assis e membro da Associa- bol é reconhecido como atividade
ção Brasileira de Psicologia do Es- profissional para homens. Entre as
porte (Abrapesp), Talita Machado mulheres até hoje não existe esse
Vieira, desde o começo do século reconhecimento, o que implica em
XX há a reprodução de concepções consequências como a ausência de
que pressupõem as mulheres como registro em carteira profissional.
seres frágeis, naturalmente indis- “Alguns clubes fazem o registro, to-
postos ao exercício e trabalho com tal ou parcial, do elenco, mas outros
o corpo. “Esse tipo de formulação não fazem. Desse modo, trata-se de
colabora para a construção da ideia um trabalho precarizado, com con-
de que as mulheres não combinam dições contratuais flexíveis e sem

58
Dezembro de 2018
Revista Diálogos
cobertura da seguridade social. Se agência que organiza o mundial
essa atleta engravidar, por exemplo, de surfe é outra conquista recente
como ficará sua situação? Em caso que traz alento e esperança para as
de ocorrência de lesões que deman- atletas profissionais de outras mo-
dam tratamento cirúrgico, acom- dalidades esportivas. “Essas pautas
panhamento com profissionais da estão ganhando visibilidade e as en-
psicologia, da fisioterapia e tantas tidades que gerenciam os esportes
outras áreas que auxiliarão no re- em âmbito mundial têm reconheci-
torno ao esporte, quem se respon- do sua legitimidade e a importância
sabilizará pelo custeio desses cuida- de tais equiparações, especialmente
dos?”, questiona Talita. para desautorizar os discursos que
visam estruturar as diferenças como
Não surpreende que em um cenário desigualdade, criando e mantendo
de tamanha precarização os desdo- situações de opressão e exploração”,
bramentos cheguem ao retorno fi- avalia a especialista.
nanceiro das atletas. A despeito do
tempo de treinamento, de duração TRANSGENERIDADE NO
da competição ou da capacidade
técnica, a equiparação salarial ou de CONTEXTO ESPORTIVO
premiações em relação aos homens Uma das maiores expressões do
ainda é uma realidade distante. aprisionamento ao modelo hete-
ronormativo no ambiente espor-
“Em alguns clubes de futebol do tivo talvez se dê por meio da re-
interior de São Paulo, atletas que lação de atletas e dirigentes com
conseguiram negociar contrato ofi- pessoas cuja identidade de gênero
cial, com registro em carteira, che- não condiz com o sexo que lhe foi
gam a ganhar de R$ 4.000,00 a R$ atribuído no nascimento. Há pouco
5.000,00. Aqui, estamos falando de tempo o nome da atleta de vôlei Ti-
atletas com trajetória consolidada, fanny Abreu ganhou destaque nos
que servem ou já serviram a seleção noticiários nacionais. O motivo? O
brasileira. Valores bem abaixo das desempenho da primeira mulher
cifras negociadas no futebol de ho- transgênero a disputar a Superliga
mens. Às vezes, até mesmo abaixo Feminina.
do que é acordado com os jovens
das categorias de base que come- “Ela não foi a primeira mulher trans
çam a se destacar nas competições do vôlei brasileiro, mas a primeira
pelos seus clubes”, afirma Talita. a se destacar como atleta, o que trás
à tona o modelo preconceituoso de
No que tange às premiações as dife- sempre: se uma mulher se destaca,
renças também são abissais. Segun- a primeira coisa a se questionar é se
do a especialista, na última edição ela é mesmo mulher. Se tem vagi-
do Mundial de Futebol Feminino na, a dúvida fica obscurecida, mas se
da FIFA, ocorrida no Canadá em um dia teve pênis, está explicado seu
2015, as 15 seleções participantes do potencial de força e destreza. Mais
torneio dividiram US$ 15 milhões, do mesmo preconceito sofrido pelas
enquanto o valor para o mundial mulheres há séculos. Infelizmente,
masculino na Copa da Rússia em entre as atletas existem aquelas que
2018 foi de US$ 400 milhões. se negam a buscar algum conheci-
mento que as ilumine e não permita
Embora a superação dessa desigual- que fiquem no círculo de reafirma-
dade ainda esteja longe de se tornar ção do sofrimento que as oprimiu
realidade, algumas conquistas re- durante séculos. Então, oprimem
centes indicam boas perspectivas. a mulher trans da mesma forma
Em 2016, a Revista Radis, da Fio- como foram e ainda são oprimidas
Cruz, denunciou a disparidade nos pelos homens”, avalia Adriana.
valores da premiação da competi-
ção mundial de vôlei masculino e Enquanto atletas, especialistas e até
feminino. Enquanto eles receberam a imprensa debatem as possíveis
US$ 1 milhão pelo título, as mulhe- vantagens competitivas de Tifan-
res da equipe campeã ficaram com ny, outras mulheres trans seguem
uma fatia bem menor, US$ 200 mil. na luta para garantir o direito de

59
“A boa notícia é que a luta das atletas disputar competições esportivas
do vôlei teve resultado e, em 2018 a na categoria feminina. É o caso da
premiação foi, finalmente, equipa- também jogadora de vôlei Carol
Lissarassa. Vice-campeã na etapa
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

rada”, comemora Talita.


de Ijuí/RS do Circuito Verão Sesc
A equiparação das premiações pa- de Esportes em 2017, este ano a jo-
gas para a temporada de 2019 pela gadora foi impedida de disputar a
etapa de Cruz Alta/RS atuando no
feminino. “Ano passado joguei e fui tampouco dos colegas de profissão.
para o pódio. Esse ano, após todas De acordo com Adriana, o precon-
as matérias que saíram, acho que ceito e o conservadorismo no am-
estou sendo perseguida”, declarou a biente esportivo são comportamen-
atleta em entrevista. Liberada para tos frequentes e intensos. “Acredito
jogar apenas no masculino, Carol que isso ocorra por falta de conhe-
aceitou a decisão para combater a cimento dos envolvidos com o meio
discriminação e mostrar o seu ta- esportivo sobre a complexidade de
lento e declarou que teve dificulda- se entender e definir gênero e, prin-
des de atuar no masculino, já que cipalmente, diferenciar de sexua-
sua força, seu impulso e sua agilida- lidade. A confusão entre gênero e
de não são as mesmas dos homens. sexualidade nos mostra que não há
diferenciação conceitual e prática
EXAME DE FEMINILIDADE entre sexo, identidade de gênero,
Outros atletas que enfrentam difi- expressão de gênero e orientação
culdades para se estabelecerem no sexual por partes das pessoas que
cenário esportivo são os intersexu- vivenciam o contexto esportivo.
ais, ou seja, pessoas com variação Tudo é colocado no mesmo balaio.
de caracteres sexuais, incluindo Portanto, as questões se dão basea-
cromossomos, gônadas e/ou órgãos das em senso comum, carregadas de
genitais, que dificultam a sua iden- estereótipos e preconceitos”.
tificação como totalmente femini-
no ou masculino. Ao ser questionada sobre a possi-
bilidade de os esportes romperem
Em 1988, a principal atleta de cor- a barreira dos gêneros e homens,
rida com barreiras da seleção espa- mulheres, cis e trans competirem
nhola, Maria Patiño, foi impedida entre si, a doutoranda da Unesp,
de disputar os Jogos Olímpicos de Talita Vieira foi incisiva e provo-
Seul (Coreia do Sul). Ela foi repro- cativa: “é uma ideia que me agra-
vada no exame de feminilidade da muito. No entanto, sei que a
aplicado pelo Comitê Olímpico instituição esportiva é bastante
Internacional (COI) nas atletas que conservadora no que diz respeito
eventualmente esquecessem seus à manutenção dessas separações.
certificados de feminilidade. O exa- Tem um artigo bem interessante
me revelou que as células da corre- sobre esse tema de dois antropó-
dora continham um cromossomo logos brasileiros Wagner Camargo
Y, seus lábios ocultavam testículos e e Claudia Samuel Kessler que se
faltavam a ela ovários e útero. Após chama ‘Além do masculino/femi-
o episódio, Patiño investigou sua nino: gênero, sexualidade, tecno-
condição clínica e descobriu que logia e performance no esporte
sofria da Síndrome da Insensibi- sob perspectiva crítica´. Uma ideia
lidade ao Andrógeno, situação na que eles apresentam é a criação
qual os corpos apresentam partes de categorias de competição com
masculinas e femininas. No entan- base nos níveis hormonais. Seria
to, a atleta, que nunca havia duvida- uma maneira de desregulamentar
do da sua identidade feminina, não o sistema binário de organização
se deu por vencida e entrou para a do esporte e colocar corpos diver-
história como a primeira mulher a sos competindo entre si, mas será
ter contestado o teste de sexo para que as instituições esportivas e os
atletas. fãs dos esportes estão prontos para
isso?”.
No Brasil, o primeiro caso a ganhar
grande repercussão foi o da judo-
ca Edinanci Silva. Classificada para
as Olimpíadas de Atlanta (1996), a
atleta foi submetida a uma série de
Foto: Agência Look / Marcos Takeshi

testes e intervenções em seu corpo


para se adequar aos padrões do COI
após exames indicarem que ela não
seria aprovada no teste de feminili-

60
dade. Edinanci conseguiu se enqua-
drar nos padrões de exigidos e se
manteve atuante no cenário olím-
pico até os jogos de 2008 (Pequim).
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Esses e outros casos semelhantes


não passaram despercebidos dos
julgamentos da opinião pública,
Em entrevista exclusiva à revista do apenas com minha saúde. Passa-
Diálogos, a atleta Tifanny Abreu faz do meu processo de transição, meu
um breve relato da sua trajetória, do agente deu entrada na FIVB (Fe-
papel do esporte para o seu proces- deração Internacional de Voleibol)
so de transição e dos desafios en- para minha liberação e atuação.
frentados, além de contar como lida
com críticas e preconceito. Como você avalia as críticas em
relação à sua atuação em times/
Quando você se descobriu trans- campeonatos femininos? Ainda há
gênero? Já tinha algum envolvi- muito preconceito? Se sim, a que
mento com o esporte na época? você atribui e como superá-lo?
Ainda quando era criança, eu já sa- Eu não dei muita importância para
bia que estava em um corpo errado. as críticas, pois elas não iam mudar
Na época ainda não tinha envolvi- nada em minha vida, nem como
mento com o esporte. mulher e nem como esportista. Es-
tou seguindo as leis e dentro dos
Em que medida o esporte ajudou meus direitos esportivos e traba-
e/ou dificultou o seu processo de lhistas. Muitas dessas críticas são
transição? apenas para me fazer sentir mal.
O esporte me ajudou financeira-
mente, mas dificultou na tomada Fazendo uma avaliação de tudo o
de decisões. Eu não conhecia as leis que você já viveu, quais foram as
e achava que para continuar jogan- maiores conquistas alcançadas? Em
do não poderia fazer a transição, que medida o esporte contribuiu
por isso demorei para ter coragem para que elas se concretizassem?
de realizá-la. A maior conquista foi realizar a
transição e ser quem eu sou, uma
Como foi o caminho até chegar à mulher, esse era meu maior sonho.
liga feminina de vôlei? Sou grata ao esporte por ter me tor-
Quando eu decidi fazer minha nado uma mulher digna, respeitosa
transição, eu não sabia que existiam e de bom coração. O esporte me
leis sobre transgêneros no esporte. ensinou muito e fez uma imensa
Quando eu estava no meu terceiro diferença na minha vida como ser
ano de transição, um treinador do humano. Todos esses valores con-
feminino me convidou para jogar tribuíram para que minha transi-
e me explicou sobre as leis, que na ção fosse correta e decidida.
época ainda eram as antigas, segun-
do as quais apenas quem tinha re- Quais os seus planos e perspecti-
alizado a cirurgia de redesignação vas para o futuro?
sexual podia jogar. A cirurgia era Meu plano é continuar jogando e
meu objetivo, então segui em fren- ajudando as pessoas a ter coragem
te com a transição, me preocupan- de seguir seus sonhos.

DIVULGANDO CONCEITOS
ORIENTAÇÃO SEXUAL: consiste no direcionamento do desejo afeti-
vo-sexual que pode ser por pessoas do mesmo sexo ou não, ou
ainda por ambos. É ela que define se a pessoa é heterossexual,
lésbica, gay ou bissexual.

IDENTIDADE DE GÊNERO: identidade de gênero refere-se à experi-

61
ência interna e individual do gênero de cada pessoa (masculino
e feminino), que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no
nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo e outras expres-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

sões de gênero.
Artigo
Revista Diálogos

62
Dezembro de 2018
Esporte
paraolímpico: uma
transformação de
sentido
Erika Hofling Epiphanio

Este trabalho está baseado em experiên-


cias vividas em um programa de estágio
em Psicologia da Universidade Federal do
Vale do São Francisco (Univasf), de ações
de um projeto de extensão e de pesquisa
vinculados com o Núcleo de Estudos e Pes-
quisa em Fenomenologia e Esporte (Nepfe)
em parceria com uma associação de atletis-
mo. Esta parceria se deu logo que a autora
deste trabalho ingressou na Univasf, quan-
do foi procurada pelo diretor da associação
que buscava qualquer forma de apoio psi-
cológico para sua equipe. Logo no primei-
ro contato, a explanação sobre o trabalho
realizado por eles despertou um encanta-
mento nesta professora, devido a ser um
grupo extremamente comprometido que
buscava maneiras de criar melhores possi-
bilidades para seus atletas. O grupo conta
com atletas e paratletas de diversas cate-
gorias, alguns com resultados expressivos
no cenário nacional e internacional. Uma
equipe com poucos recursos, na região do
semiárido nordestino, repleta de carências
estruturais, mas com pessoas que lutam e
acreditam no potencial humano.

Cabe ressaltar que, ao se pensar em pessoas


com deficiência ou limitações, sejam elas
físicas, psicológicas ou socioeconômicas,
o esporte tem surgido como ampliação de
possibilidades, muitas vezes sendo inclu-
sive uma oportunidade profissional para
muitos de seus praticantes que passam a
se destacar em competições em âmbito re-
gional, nacional e internacional e com isto
conseguem ter uma condição financeira
que dificilmente teriam se não se tornas-
sem atletas, principalmente, ao se conside-
rar a região em que as ações foram desen-
volvidas.

A experiência que ofereceu dados para a

63
construção deste artigo se deu com a con-
cretização do tripé da educação que propõe
a universidade pública, em que pensa que
a construção do conhecimento se dá por
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

meio do ensino, da pesquisa e da extensão.


Nesta experiência, a investigação científi-
ca devolve a seus colaboradores ação, com
extensão, com intervenção em uma atitude
ética-científica, em que a comunidade
se vê diretamente cuidada pela univer-
sidade em um fazer científico que faz
sentido ao mundo em que habitamos.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A Psicologia Humanista é considera-
da por alguns autores como a tercei-
ra força da Psicologia, ao lado da Psi-
canálise e do Behaviorismo e grande
parte dos seus princípios encontram-
-se alinhados à Fenomenologia (Ama-
tuzzi,2010). Carl Rogers é considerado
um dos principais autores desta cor-
rente teórica e ele discute em diversos
trabalhos sobre o potencial de reali-
zação como sendo inerente a todo ser
humano. O autor acredita que todo ser
humano é naturalmente bom e tem
condições existenciais de se desen-
volver rumo ao crescimento pessoal e
a realização, no entanto, o autor dis-
cute a importância de que as pessoas
encontrem relações que facilitem este
processo, que primam por um encon-
tro autêntico entre pessoas que respei-
tam o processo do outro, sem julgar,
mas acolhem as diferenças, compre-
endendo o outro de maneira empática
e positiva (Rogers, 1961).

Outro aspecto relevante de se destacar


teoricamente será a noção de cuidado
trazida pela Fenomenologia. Quando
o cuidado é discutido nos textos de
Heidegger, é notável a ampla dimen-
são desta perspectiva. O cuidar está
relacionado aos outros, mas é funda-
mental compreender que o mesmo se
revela também e, primordialmente,
na relação consigo mesmo. Fernandes
(2011) ao discutir este tema afirma que
“a essência da relação, que se instaura
no cuidado do ser-com-outros, é apro-
ximar-se-do-outro, deixar-se interes-
sar por ele, ser interpelado por ele e
interpelá-lo, ser solicitado e solicitar,
responder e corresponder” (p. 15).

Ao se pensar no cuidado ao outro,


Heidegger trabalha com a ideia de so-
licitude como uma perspectiva deste
cuidado, indicando a possibilidade de
ver o outro como ele é, por meio de
sua própria visão sobre si mesmo, se
comprometendo pelo outro, sendo
questionado por ele e respondendo
e correspondendo à relação estabele-
cida com ele (Heidegger, 1981). O es-
tar junto, permitindo ao outro ser ele

64
mesmo, sem crivos e julgamentos, é a
primeira e mais importante manifes-
tação de cuidado que pode ser indica-
da como um facilitador no processo
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

de desenvolvimento humano como


também apontado por Rogers (1961).
A Psicologia do Esporte é uma área da
Psicologia que tem se mostrado bas-
tante coerente com esta proposta da
Fenomenologia e da Psicologia Huma-
nista, pois ao pensar o homem como
um todo, ao crer na capacidade de re-
alização pessoal e buscar nas relações
atitudes facilitadoras para o processo
de crescimento do indivíduo, passa a
ser uma importante ferramenta para
que pessoas busquem a superação a
partir do esporte.

Ao se pensar no esporte para pessoas


com deficiência podemos indicar tam-
bém grandes contribuições neste sen-
tido considerando que “os objetivos da
reabilitação (pelo esporte) é assegurar
à pessoa com deficiência, independen-
temente da natureza ou da origem da
deficiência, a mais ampla participação
na vida social e ainda proporcionar a
maior independência possível em ati-
vidades da vida diária”, além de preve-
nir diversas enfermidades secundárias
(Cardoso, 2011, p. 530).

Garcia (2002) ainda aponta para a ne-


cessidade em considerar o esporte em
toda a diversidade humana, pois suas
manifestações são diversas e indicam
várias possibilidades de situações e
atitudes, como no estudo de Ranieri
e Barreira (2010), que investigaram a
superação em atletas cegos e identi-
ficaram a importância desta prática
no processo de autoconhecimento e
identificação de potencialidades por
parte dos atletas estudados.

Enfim, a explanação teórica deste tra-


balho tem a intenção apenas de situ-
ar o leitor de que lugar partimos para
pensar, refletir e compreender as ex-
periências vivenciadas com este grupo
de paratletas.

CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA


O primeiro trabalho realizado com a
equipe foi uma atividade em grupo
para apresentar o trabalho da Psicolo-
gia e conhecer os atletas. Neste cenário
algo já se revelou como uma grande
possibilidade de se trabalhar em uma
perspectiva mais humana, em que a
diversidade é tratada de maneira natu-
ral e respeitosa, pois todos os trabalhos
realizados pelo grupo não distinguem
os atletas com deficiência e sem defici-
ência. Após este contato, estabeleceu-

65
-se um contrato de intervenções em
grupo para se trabalhar temas levanta-
dos como necessários, como estabele-
cimento de metas, comprometimento
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

e motivação.
Outra estratégia utilizada foi o deficiência foram vistas por suas
acompanhamento individual de capacidades e não pelo que lhes fal-
alguns paratletas (escolhidos pela tavam, seu universo existencial se
comissão técnica) por duas estagiá- expande de maneira a conhecerem
rias do curso de Psicologia. Poste- potencialidades que nunca tiveram
riormente foi criado um projeto de acesso antes de serem praticantes
extensão universitária envolvendo de esporte. Com isto, o esporte pas-
mais três alunas do curso de Psico- sa a ser um caminho ao reconhe-
logia que teve como propósito atuar cimento pessoal que permite ao
diretamente nos treinamentos dos indivíduo conhecer suas próprias
atletas oferecendo um espaço de capacidades, assim como uma via
escuta a eles e seus familiares, além de acesso ao reconhecimento so-
da organização de um debate que cial, uma vez que os atletas, quan-
trabalhou a importância do espor- do atingem resultados expressivos
te como abertura de possibilidades na carreira esportiva, passam a ser
para pessoas com deficiência, a fim reconhecidos profissionalmente e
de divulgar para a sociedade as di- se transformam em exemplos para
mensões do esporte para o desen- uma sociedade que, em geral, os
volvimento da pessoa, bem como a viam como pessoas incapazes. Es-
prática da Psicologia do Esporte. tes efeitos são de suma importância
ao processo de realização dos indi-
Ao final deste projeto, devido a víduos que conseguem fazer parte
grande adesão do grupo nas ações deste tipo de projeto construindo
realizadas e, também, pela iden- um mundo de maior abertura as
tificação de outras demandas, foi oportunidades de vida.
construído um segundo projeto de
extensão que propôs ações de cui- Podemos destacar como conquistas
dado com o grupo estudado, sendo importantes percebidas pelos tra-
implantadas oficinas de ioga, aulas balhos realizados que, ao criar um
de inglês e oficina de sexualidade espaço de escuta verdadeira e sig-
aos jovens atletas. nificativa para as pessoas, estas pas-
sam a se ver como agentes partici-
POSSIBILIDADES pativos de sua existência. No início
É notável em nossa sociedade o do trabalho, alguns paratletas que
grande preconceito quanto às pes- tinham dificuldade de comunica-
soas com deficiência, sendo sempre ção em função da deficiência, em
associadas a pessoas sem utilidade, geral, tinham suas comunicações
em um mundo capitalista que prio- realizadas por terceiros que tenta-
riza a produtividade e o consumo. vam dizer aquilo que acreditavam
Esta associação perpassa a socie- ser o que o atleta queria expressar,

66
dade e leva, muitas vezes, os fami- mas com o tempo no espaço de es-
liares e as pessoas com deficiência cuta individual estes atletas pude-
a não se perceberem como úteis e ram desenvolver sua habilidade de
pertencentes ao mundo social. comunicação se tornando mais au-
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

tônomos e independentes, fazendo


A experiência que tivemos com este com que os mesmos passassem a
grupo esportivo revelou que a par- dizer o que pensavam e o que que-
tir do momento que pessoas com riam dizer.
Ações como estas indicam o po- te recurso ao desenvolvimento de
tencial de transformação e cuidado pessoas que possuem algum tipo de
evidenciado por atitudes facilitado- limitação, pois pode explorar suas
ras, em sintonia com o que Rogers potencialidades, por meio de ati-
preconiza ao colocar que quando tudes facilitadoras que envolvem
temos uma atitude autêntica, con- a noção de cuidado ao outro e a si.
gruente e aceitamos o outro afetu- Com isto, concluímos com a indica-
osamente como ele é criamos uma ção que investimentos em projetos
atmosfera propícia ao desenvolvi- sociais que ofereça a prática espor-
mento das capacidades humanas, tiva aliada à Psicologia do Esporte
que oferecem melhores condições para pessoas que possuem deficiên-
de abertura à autonomia (Rogers, cias físicas, intelectuais e econômi-
1961) cas pode ser considerado um facili-
tador no processo de transformação
Com isto, podemos afirmar que a de realidades vulneráveis.
escuta psicológica no esporte pode
ser considerada uma ação de cui-
dado ao outro de grande valia ao REFERÊNCIAS
processo de desenvolvimento das
pessoas, do qual o paratleta não é AMATUZZI, M. M. Por uma Psico-
visto apenas como atleta pelos seus logia Humana. Campinas, S.P.: Edi-
resultados competitivos, mas, prin- tora Alinea. 2010.
cipalmente, por este ser um espaço
em que são pessoas reconhecidas e CARDOSO, V. D. A reabilitação de
respeitadas enquanto indivíduo e pessoas com deficiência através do
enquanto agente social. desporto adaptado. Revista Brasi-
leira de Ciência do Esporte, 33(2),
Desde o início deste trabalho, por 529-539. 2011.
meio de todas as ações desenvol-
vidas podemos discutir como o Epiphnaio, E.H.et al. O sentido do
esporte é vivenciado como grande esporte para atletas com e sem de-
oportunidade e abertura de pos- ficiência: uma compreensão feno-
sibilidades para seus praticantes, menológica. Revista Brasileira de
principalmente ao se focar os atle- Psicologia do Esporte, 7(1), 76-91.
tas que possuem alguma deficiên- 2017.
cia e encontram nesta prática e nas
relações interpessoais estabelecidas FERNANDES, M.A. In: Peixoto, A.J.;
pela equipe grande potencial de Holanda, A.F. Fenomenologia do
superação das adversidades físi- cuidado e do cuidar: perspectivas
cas, econômicas e sociais. Podemos multidisciplinares. Juruá. 2011.
destacar, ainda, que o esporte pas-
sa a transformar o sentido da vida GARCIA, R. P. Contributo para a
de muitos de seus praticantes. Esta compreensão do desporto: uma
afirmação se fortalece nos dados da perspectiva cultural. In V. J. Bar-
pesquisa que desenvolvemos sobre banti, A. C. Amadio, J. O. Bento, &
o sentido do esporte para atletas A. T. Marques. Esporte e Atividade
com e sem deficiência que também Física: interação entre rendimen-
concluem que “o esporte permitiu a to e saúde (pp. 321-327). São Paulo:
essas pessoas sentirem-se mais au- Editora Manole. 2002.
tônomas, independentes e poten-
tes, cujas características são muito HEIDEGGER, M. Todos nós nin-
importantes para a realização pes- guém. Ed. Moraes. 1981.
soal e superação das adversidades
da vida. Principalmente, de indi- RANIERI, L. P., BARREIRA, C. R.
víduos com deficiência, que ainda A. A superação esportiva vivencia-
hoje sofrem discriminação por cau- da por atletas com deficiência visu-
sa de suas limitações” (Epiphanio et al: análise fenomenológica. Revista
al, p.89 2017). Brasileira de Psicologia do Esporte,
São Paulo, 3(2), 46-60. 2010.
Podemos indicar, assim, que a prá-
tica esportiva, sendo ela competiti- ROGERS, C. Tornar-se pessoa. 2ªed.
va ou não, pode ser um importan- Lisboa, Ed. Martins Fontes. 1961.
67
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

Erika Hofling Epiphanio é professora da Universidade do Vale do


São Francisco - Univasf. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Fe-
nomenologia e Esporte (Nepfe) e da diretoria da Abrapesp (2018-2019)
Artigo
Revista Diálogos

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Dezembro de 2018
A cultura na
Psicologia do Esporte
Por uma Psicologia Social do Esporte
Katia Rubio

Das muitas manifestações culturais Social se aproximou da Psicologia


produzidas no século XX, o esporte do Esporte trazendo a dimensão
é aquela que se consolidou como um cultural para o campo de pesquisa e
fenômeno de escala global. A uni- de intervenção (Rubio, 2000).
versalização das regras das diferen-
tes modalidades esportivas faz supor O pragmatismo que caracterizou o
uma universalização das práticas, surgimento e o progresso dessa es-
o que leva a crer que o mesmo es- pecialidade enfocava, no passado, o
porte pode ser praticado de maneira desenvolvimento de conhecimento
semelhante em diferentes países ou na busca e determinação de perfis
grupos sociais. Essa falsa premissa psicológicos ou ainda tipos de inter-
levou à importação de modelos de venção cujo objetivo é maximizar e
treinamento e preparação para a potencializar a performance, tendo
competição esportiva que culmina- a finalidade clara da busca da vitória.
ram em frustração por parte daque- Nos últimos anos esse quadro sofreu
les que os receberam pela compro- grandes transformações, indicando
vada ineficácia. O mesmo pode ser a construção de uma Psicologia So-
observado na Psicologia do Esporte, cial do Esporte em que rendimento
que tem como uma de suas possíveis esportivo e integridade de atleta não
metas a busca do rendimento de se confrontam, mas se completam.
atletas e equipes esportivas.
O esporte chamado de alto ren-
Desenvolvida a princípio nos Esta- dimento é um tipo de prática que
dos Unidos da América e em alguns pode se relacionar ao esporte es-
países europeus, ela foi trazida para petáculo, protagonizado pelo atle-
o Brasil nos anos 1970, como um ta profissional, ou ainda, a um tipo
conjunto de técnicas de estratégias de atividade esportiva que não é
de intervenção que visavam o trei- necessariamente remunerada, mas
namento de habilidades mentais de que exige do praticante dedicação e
atletas. Nos anos que se seguiram, rendimento que superam uma ati-
pouco avanço foi observado, tanto vidade de tempo livre ou amadora.
no desenvolvimento da Psicologia Na busca da vitória estão implicados
do Esporte como especialidade da valores próprios da sociedade atual
Psicologia, como o respeito social como o trabalho alienante onde o
por esse fazer profissional, quan- corpo é usado e manipulado pelo
to por parte de técnicos, como de próprio atleta e pela comissão téc-
atletas e mesmo da categoria. Par- nica para alcançar o rendimento
te do insucesso experimentado no máximo. Na concretização desse
passado pode ser creditada ao des- intuito está implicada a realização
conhecimento do sujeito dessa in- integral do potencial físico e emo-
tervenção e também à desconside- cional, tendo aqui o psicólogo um
ração pelos aspectos culturais locais papel determinante, uma vez que
envolvendo o atleta e a comissão o rendimento máximo pode estar
técnica como um todo, situação essa associado às habilidades e caracte-
que se relaciona basicamente com rísticas inerentes do atleta ou, em
as estratégias de comunicação, rela-
ções interpessoais, história de vida
dos envolvidos e a cultura da moda-
outra direção, na busca desse ma-
ximizador em componentes exter-
nos, como o apoio social ou o uso
69
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

lidade no país. Desprezado em um de substâncias proibidas. Ainda que


primeiro momento, essas questões utilizada indiscriminadamente para
ganharam força no Brasil a partir caracterizar diferentes atitudes, a
dos anos 1990, quando a Psicologia ética é um preceito que fundamen-
ta vários conceitos. Não seria viável, PSICOLOGIA SOCIAL DO ESPORTE
portanto, afirmar uma ética do es- Recentemente, alguns estudiosos co-
porte, uma ética da Psicologia ou meçaram a repensar a Psicologia do
quaisquer subéticas para contextos Esporte deslocando-a de um mode-
criados conforme a necessidade so- lo de habilidades individuais e pas-
cial ou momento histórico, isso por- saram a observar a necessidade de
que a ética busca refletir a respeito uma aproximação com a Psicologia
das noções e princípios que funda- Social para a compreensão e expli-
mentam a vida moral. O esporte, cação desse fenômeno complexo e
enquanto valor cultural, passível abrangente que é a atividade física
da intervenção da Psicologia, tam- e esportiva (Brawley & Martin, 1995;
bém uma criação humana, reflete e Brustad & Ritter-Taylor, 1997). Isso
recria essa condição. É necessário, só veio a reforçar o pressuposto de
por isso, refletir sobre a prática do Lane (1984) de que toda Psicologia é
psicólogo no esporte e sua relação social sem que isso signifique redu-
com valores básicos fundamentais zir as áreas da Psicologia à Psicolo-
da Psicologia (Luccas, 2000). gia Social. Nesse sentido, é possível
afirmar que a Psicologia do Esporte,
SER HUMANO que trata do fenômeno esportivo em
Essa discussão se torna fundamental toda a sua complexidade, visando à
diante da dimensão que o esporte compreensão da dinâmica das rela-
adquiriu como fenômeno sociocul- ções envolvidas entre atletas, técni-
tural contemporâneo. A necessidade cos, dirigentes, mídia e patrocinado-
da vitória a qualquer custo, da ade- res, não é apenas uma Psicologia de
quação às mudanças de regras e ca- rendimento de atletas e equipes, mas
lendários e os interesses comerciais uma Psicologia Social do Esporte.
de clubes e patrocinadores chega ao
psicólogo do esporte como um im- O debate sobre a função e o papel da
perativo de sua função no clube ou Psicologia do Esporte passa neces-
time, levando-o a uma necessária e sariamente pela discussão do que é
constante reflexão sobre seu papel o fenômeno esportivo e como tem
social e profissional. Daí a importân- sido construído e explorado o ima-
cia da clareza sobre a concepção de ginário esportivo na atualidade. Isso
ser humano e de Psicologia com que porque o esporte contemporâneo,
se atua. Nem todo atleta contempo- em seu processo de construção, so-
râneo, porém, busca apenas a vitória freu influência das transformações
a qualquer custo. Há praticantes da socioculturais dos diversos mo-
atividade esportiva que fazem outra mentos históricos pelo qual passou,
opção, originalmente associada ao absorvendo ao longo do século XX
esporte, que é a superação do pró- uma série de características da so-
prio limite. Ao conceito que pauta- ciedade contemporânea. O que tem
va essa prática era dado o nome de sido observado nesse período é que
areté, equivalente ao latino virtus, dentre os vários fenômenos que a
que representava hombridade, valor sociedade atual vem produzindo, o
(Rubio & Carvalho, 2005). No sen- esporte tem ocupado um dos luga-
tido cavalheiresco da palavra, estava res mais destacados, valorizando a
expresso o conjunto de qualidades emergência de atitudes heroicas.
que fazem do homem um herói, e
a vitória seria a confirmação desse BATALHA JUSTA
valor. A areté seria, portanto, a afir- Em função disso, características
mação da condição pessoal daquele como secularização, igualdade de
que pratica e vence um desafio, sua chances, especialização, racionali-
realização é a luta contra tudo que zação, burocratização, quantificação
tente impedi-la. Essa busca não re- e busca de recorde, princípios que
presenta um individualismo egoísta, regem a sociedade capitalista pós-
que cifra ideais de amor a si mes- -industrial, marcam indelevelmente
mo, senão na busca incessante pelo a prática esportiva, tendo o rendi-
absoluto da beleza e do valor. Daí a mento como o princípio norteador
atitude de agradecimento do atleta (BROHM, 1993). Mas apontar apenas
vencedor de provas atléticas a seus o rendimento enquanto elemento

70
oponentes. Mais do que tê-los como marcante do esporte contemporâ-
inimigos, o atleta que praticava a neo, apresentado como um dos es-
areté via no adversário o parâmetro petáculos da pós-modernidade, se-
para a realização do seu próprio li- ria desconsiderar outros valores que
Dezembro de 2018
Revista Diálogos

mite e não alguém a ser superado, foram sendo transformados, princi-


vencido e humilhado. O outro era palmente a partir da década de 1970,
o referencial para a superação de si ou mais precisamente com a queda
mesmo. do conceito de amadorismo.
Essa condição foi alcançada graças e procedimentos levam à criação e
à construção espetacular da nar- multiplicação daquilo que denomi-
rativa esportiva em que a compe- namos como imaginário esportivo.
tição é uma metáfora das batalhas
de então, em que adversários reais
ou simbólicos serão sempre alvo de REFERÊNCIAS
superação. Isso quer dizer que a es-
petacularização do esporte foi cons- BRAWLEY, L. R. & MARTIN, K. A.
truída relacionada ao desenvolvi- The interface between Social and
mento da própria prática esportiva Sport Psychology. The Sport Psy-
e com as intervenções e alterações chologist. 9, 469-497, 1995.
propostas pelos distintos atores en-
volvidos. Essa narrativa, preocupa- BROHM, J. M. 20 tesis sobre el de-
da em reforçar os aspectos compe- porte. In.: ( J. I. B. Gonzalez) Mate-
titivos como igualdade e equilíbrio riales de Sociologia del Deporte.
entre os oponentes, tem reforçado Madrid: Las Ediciones de La Pique-
o imaginário da batalha justa, emo- ta, 1993.
cionante, de resultado imprevisível,
facilitando a emergência de consci- BRUSTAD, R. J. & RITTER-
ências coletivas, identidades nacio- -TAYLOR, M. Applying social psy-
nais e protagonistas carismáticos, chological perspectives to the Sport
transformando o campo da compe- Psychology consulting process. The
tição em cenário de representação Sport Psychologist. 11, 107-119, 1997.
de atitudes heroicas de atletas que LANE, S. A Psicologia Social e uma
defendem uma equipe, cidade ou nova concepção de homem para a
país (Rubio, 2001; 2004, 2017). Psicologia. In: S. Lane & W. Codo
(orgs) Psicologia Social: o homem
IMAGINÁRIO ESPORTIVO em movimento. São Paulo: Brasi-
Uma das justificativas para o es- liense, 1984.
porte usufruir a condição de um
dos principais fenômenos culturais LUCCAS, A. N. A Psicologia, o es-
da atualidade reside no fato de ele porte e a ética. In.: (K. Rubio, org.)
congregar valores de sua gênese e Encontros e desencontros: desco-
da modernidade. Se por um lado, brindo a Psicologia do Esporte. São
enquanto atividade física não com- Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
petitiva ele é capaz de resgatar sua
função pedagógica praticada na RUBIO, K. O trajeto da Psicologia
Paidéia, na Grécia Helênica, como do Esporte e a formação de um
elemento integrador da mente e do campo profissional. In. K. Rubio
corpo, por outro lado a sua porção (org.) Psicologia do Esporte: inter-
competitiva se integra aos valores faces, pesquisa e intervenção. São
da contemporaneidade. Essa condi- Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
ção pós-moderna conferida ao es-
porte atual pode ser justificada pela ______. O atleta e o mito do herói.
relação de dependência estabeleci- São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
da com os meios de comunicação
de massa e o consequente ajusta- ______. Heróis Olímpicos brasi-
mento de sua prática em função das leiros. São Paulo: Zouk, 2004.
exigências e necessidades desses
meios. ______. O imaginário heroico do
atleta contemporâneo. In.: K. Rubio
As expectativas geradas em torno da (org.) Esporte e mito. São Paulo: La-
prática esportiva levam a determi- ços, 2017
nados padrões de comportamento
que influenciarão ou determinarão ______. Medalhistas olímpicos
a conduta daqueles que escolhe- brasileiros: memórias, histórias e
ram o esporte como profissão. Essa imaginário. São Paulo: Casa do Psi-
é a razão porque em torno de uma cólogo, 2006.
modalidade específica e, do espor-
te como um todo, desenvolve-se RUBIO, K.; CARVALHO, A. L. Areté,
fair play e o movimento olímpico

71
um conjunto de práticas coletivas
e comportamentos individuais de- contemporâneo. Revista Portugue-
nominados cultura esportiva (Ru- sa de Ciências do Desporto. V. 03, p.
bio, 2006). Esses comportamentos 350-357, 2005.
Dezembro de 2018
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Katia Rubio é professora da USP.


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