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Deborah Cowley
FOI NUM DIA LUMINOSO de Outubro de 1944 que Hana Brady, de 13 anos, desceu
da tarimba na caserna Kinderheim, em Theresienstadt, o campo de concentração nazi na
Checoslováquia onde vivia há mais de dois anos. Havia rumores de que os nazis
estavam a acelerar a deportação de crianças deste campo. Por essa razão, todas as
manhãs ela percorria o átrio a correr para verificar nas listas quais aqueles que recebiam
ordens para partir no próximo comboio para leste. Com o coração aos pulos, percorreu
com o dedo todos os nomes das colunas. De repente, descobriu o dela.
Ninguém lhe dizia para onde é que os comboios iam, mas como a sua cabeça era uma
grande confusão, só um pensamento a confortava: podia ser que encontrasse George, o
seu querido irmão de 16 anos, que tinha partido naquele mesmo comboio quatro
semanas antes.
Nessa noite, abriu a mala castanha de pele e nela arrumou as roupas e alguns dos seus
desenhos favoritos. Lavou a cara e o cabelo e fez um rabo-de-cavalo. Na manhã
seguinte, foi levada juntamente com um grupo de outras meninas judias para dentro de
um vagão de mercadorias. Durante um dia e quase uma noite, o comboio deslizou
vagarosamente na direcção de leste, atravessando uma região rural árida. Não havia
comida, nem água, nem casa de banho dentro do vagão. A meio da noite de 23 de
Outubro de 1944, e depois de ter atravessado a fronteira com a Polónia, o comboio
parou bruscamente com grande barulho.
Havia, no entanto, uma coisa que punha a família Brady à parte: eram judeus. Uma de
apenas três famílias judias na aldeia. Mas, com excepção de George, que tinha tido
umas breves aulas semanais acerca da sua religião, as crianças Brady não se sentiam
diferentes dos seus amigos, e também ninguém parecia tratá-las de maneira diferente.
A 15 de Março de 1939, a sua existência idílica foi abalada As tropas de Hitler entraram
na Checoslováquia e estabeleceram regras estritas para os Judeus. Só podiam sair de
casa a determinadas horas e fazer as compras apenas a horas específicas. Tinham de
usar uma estrela de tecido amarelo cosida aos casacos onde estava escrita a palavra
Jude (judeu). O rádio dos Brady – o único elo de ligação ao que se passava no Mundo –
foi confiscado.
Hana e George, na altura com 8 e 11 anos, não podiam brincar na rua, ir ao cinema ou a
qualquer acontecimento desportivo. Também foram proibidos de ir à escola, por isso a
mãe contratou professores particulares para os ensinar em casa. Face a tal hostilização,
os dois irmãos desenvolveram uma ligação especial. Mas o pior ainda estava para vir.
Em Março de 1941, a Gestapo prendeu a mãe. A família soube que fora enviada para
Ravensbruck, um campo de concentração para mulheres na Alemanha. Pouco depois,
prenderam o pai Um conhecido dele, judeu, teve a ousadia de desafiar as restrições.
Recusou-se a recortar a estrela e, em vez disso, usava o tecido todo cosido ao casaco.
Este acto isolado levou a que o oficial nazi prendesse todos os homens judeus da aldeia.
Karel Brady abraçou os filhos, despedindo-se deles, disse-lhes para serem corajosos e
desapareceu.
Devastados, Rana e George foram viver com o tio Ludwig, um cristão que tinha casado
com a irmã do pai. Cada um levou uma mala com roupa. Rana escolheu a sua favorita –
uma mala grande e castanha com um forro às pintinhas. Antes de os nazis confiscarem o
apartamento dos pais, George retirou todas as fotografias da família e escondeu-as em
casa do tio.
George foi enviado para a caserna dos rapazes e trabalhou com um canalizador que lhe
ensinou o ofício. Rana foi para outro edifício, chamado Kinderheirn L410, a 0,5 km de
distância. A comida era escassa e dormiam em tarimbas divididas em três camadas
numa caserna gelada cheia de insectos e ratazanas. Rana ansiava por ver o irmão, mas
só ao fim de várias semanas lhe foi permitido vê-lo … duas preciosas horas por semana.
Levava sempre consigo parte da sua ração de comida para partilhar com George, porque
ela achava que ele precisava de mais.
À medida que os meses passavam, havia cada vez mais judeus no campo. As rações de
comida iam diminuindo. As doenças alastravam. Em Setembro de 1944, os nazis viram
que estavam a perder a guerra e, por essa razão, aceleraram as deportações em vagões
de mercadorias para Auschwitz.
Um dia, Rana recebeu a notícia que mais receava: o nome de George apareceu na lista
de deportações. Antes de partir, tentou consolá-la. Disse-lhe que tinha prometido a si
próprio que a levaria de novo para casa sã e salva.
Quando Auschwitz foi libertado em Janeiro de 1945 e ele saiu em liberdade, era um
jovem de 17 anos escanzelado e sem forças.
Durante meses, George procurou a irmã. Fez investigações em Praga, mas ninguém o
pôde ajudar. Perguntou a todos os sobreviventes de Auschwitz que encontrou se a
tinham visto. Sabia que ela tinha ido para Auschwitz e, lá no fundo, suspeitava que não
tinha sobrevivido.
Um dia, enquanto percorria uma rua de Praga, uma adolescente abordou-o. Tinha sido
amiga de Hana em Theresienstadt e reconheceu George. Foi ela que lhe deu a terrível
notícia: Hana fora morta nas câmaras de gás em Auschwitz no dia a seguir a ter chegado
…
Em 1951, George emigrou para Toronto à procura de uma nova vida. Um ano mais
tarde, juntou-se a um outro sobrevivente do Holocausto e montaram um bem-sucedido
negócio de canalizadores.
Casou e foi pai de três rapazes e uma rapariga, mas nunca esqueceu a irmã. Tinha
pesadelos recorrentes com ela e viveu sempre atormentado pelo facto de não ter sido
capaz de manter a promessa que lhe fez.
MEIO SÉCULO mais tarde, em Agosto de 2000, George Brady, agora com 72 anos, foi
buscar o correio matinal à porta da sua casa, no Norte de Toronto. Escondido no meio
de uma série de contas para pagar, estava um grande envelope castanho coberto com
selos japoneses.
Fumiko sabia muito pouco do Holocausto antes de aprofundar este projecto. Tendo
crescido no Japão, nunca conhecera nenhum judeu, e os pais nunca falavam da guerra.
O seu livro de história da escola secundária dedicava três linhas ao assunto. «Até há
pouco tempo, as pessoas no Japão nem sequer conheciam a palavra “Holocausto”»,
dizia ela. «Lemos o Diário de Anne Frank na escola, mas não pensávamos na razão pela
qual ela foi morta.»
Foi uma visita que fez ao Museu em Memória do Holocausto, em Washington DC, e o
seu primeiro contacto com os sobreviventes do Holocausto que a chocaram
profundamente.
Mas Fumiko não estava satisfeita com as exposições sem vida. Ela queria trazer o
Holocausto ao vivo, com artefactos reais relacionados com o seu horror. Depois de uma
viagem a Israel, a trabalhar como intérprete numa conferência, Fumiko decidiu
regressar a casa através da Europa e visitar o Museu do Holocausto, em Auschwitz.
«Pedi ao conservador do museu um sapato e uma mala que tivessem pertencido a uma
criança morta na câmara de gás. Pensei que tais pertences haveriam de mostrar como
era permitido a estas crianças judias levarem apenas uma mala quando eram deportadas.
Estaríamos assim a ajudar os nossos filhos a perceberem algo sobre o sofrimento das
vidas daquelas crianças.»
Algumas semanas mais tarde, chegou uma grande caixa ao centro. No seu interior,
Fumiko encontrou uma meia, um sapato e uma camisola de criança, uma lata de gás
venenoso Zyklon B e uma mala velha castanha forrada com um tecido às pintinhas.
«Quando a abri, tinha o cheiro próprio do couro velho. Na parte de cima, escrito a tinta
branca, estava o nome “Hana Brady”; por baixo, a data de nascimento, 16 de Maio de
1931, e a palavra Waisenkind (órfã em alemão).
Voltou a escrever para Auschwitz e, ao fim de muito tempo, disseram-lhe que tinham
encontrado uma lista que indicava que Hana havia sido transportada de Theresienstadt
para Auschwitz. «Eu sabia que as meninas de Theresienstadt tinham feito muitos
desenhos», comentou Fumiko. «Por isso, pensei que a Hana, que na altura teria 11 ou 12
anos, pudesse ser uma delas.»
A seguir, contactou o Museu do Gueto Terezin, na República Checa, para ver se tinham
alguns dos trabalhos de Hana. «Disseram que sim. Fiquei muito entusiasmada quando
recebi cópias de quatro dos seus bonitos desenhos, cada um deles assinado por ela no
canto superior.»
No seguimento de outro trabalho de tradução, desta vez na Europa, Fumiko foi visitar
pessoalmente o Museu Therezin. Chegou a Praga, onde fez uma paragem de um dia, e
foi de autocarro para Therezin. Por sorte, quando lá chegou encontrou Ludmila
Chladkova, a directora do Departamento de Educação do museu.
Com a ajuda de Ludmila, Fumiko passou a pente fino as longas listas de «registos de
transporte», papéis amarelados e a desfazerem-se que mostravam pormenores de mais
de 90 000 prisioneiros enviados para Auschwitz e outros sítios.
«De repente, lá estava o nome dela: Hana Brady», disse Fumiko, sorrindo com a
recordação. «Um pequeno visto de verificação ao lado do nome dela mostrava que tinha
morrido.
Mas ao lado reparei noutro Brady, um tal George Brady que era três anos mais velho ….
e que não tinha um visto no nome!»
«Podiam ser irmãos. Brady não é um nome muito vulgar. Tinham idades próximas e
vieram da mesma localidade», disse.
Ludmila examinou outras listas e, de repente, viu o nome de Kurt Kotouc, um homem
que ela achava que tinha partilhado uma tarimba com ele.
Apenas com algumas horas disponíveis antes do voo, Fumiko saltou para o autocarro de
volta a Praga e foi a correr ao Museu Judeu daquela cidade. Ali, o conservador do
museu fez alguns telefonemas. Sim, Kotouc estava vivo e morava em Praga. O
conservador conseguiu finalmente falar com ele, que concordou em encontrar-se com
Fumiko. «Ele disse-me que, efectivamente, conhecia George. Estava vivo e a morar em
Toronto. Deu-me a morada dele e saiu.»
Mas não precisava de preocupar-se. George Brady ficou tão emocionado com a carta
que não só lhe enviou pormenores da irmã e da vida idílica que levaram em Nove
Mesto, mas também fotografias da sua bonita mana loura retiradas da caixa que salvara.
Fumiko ficou louca de alegria quando recebeu aquela carta. «As minhas mãos tremiam
à medida que lia coisas sobre Hana e a família. Finalmente, sabia que tipo de rapariga é
que tinha sido nos seus dias felizes.»
Num trabalho que lhe levou várias horas a fazer, fez uma montagem de fotografias e
desenhos e compilou todas as histórias sobre Hana num pequeno opúsculo que as
crianças ilustraram. Também construíram um pavilhão para expor o seu mais importante
objecto: a mala de Hana. Após várias semanas de preparação, a exposição abriu: «A
Mala de Hana».
EM FEVEREIRO DE 2001, George Brady, então com 74 anos, juntamente com a sua
filha de 17, Lara Hana, aceitaram o convite para visitar Fumiko no Japão. Quando
chegaram ao museu, as crianças correram a recebê-los com um banho de flores de papel
e um milhar de grous, também eles feitos de papel, que são um símbolo de paz no
Japão. Depois, Fumiko pegou no braço de George e levou-o até à exposição. Ali, e pela
primeira vez em mais de 50 anos, viu a mala da irmã com o seu nome, Hana Brady,
escrito na parte de cima em grossas letras brancas. Emocionou-se até às lágrimas.
Antes de partir, George disse às crianças que a sua irmã sempre quisera ser professora.
«E agora, graças a Fumiko e a vocês … a Hana está a viver o seu sonho.»
Este episódio inspirou um livro para crianças com o título Hana’s Suitcase, da autoria
da escritora canadiana Karen Levine, publicado em Maio de 2002 e desde então
traduzido em15 línguas, entre elas português. A tradução japonesa é de Fumiko
Ishioka.
Karen Levine
A mala de Hana – uma história verdadeira
Lisboa, Terramar, 2005
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SERENIDADE
A coragem moderna não passa por actos guerreiros ou atitudes de
herói. A nova forma de bravura passa por conseguir dizer, sem violência
nem agressividade, quem somos, aquilo em que acreditamos e o que
queremos.
LAURINDA ALVES, in XIS/Público, Lisboa