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A religião tem uma relação tensa com o universo da linguagem. Não é incomum os
sujeitos religiosos afirmarem que suas experiências religiosas são incomunicáveis. E de
fato, fenômenos como o êxtase religioso são acompanhados de afirmações sobre os
limites da linguagem na sua apreensão. Se por um lado, a experiência religiosa tal como
vivenciada pelo homem religioso não se vê devidamente traduzida pela linguagem, por
outro lado, ela é representada pelo mesmo sujeito por meio de imagens, diálogos e
sussurros internos, gestos e palavras, mesmo que em línguas indecifráveis. Mesmo se
tratando de uma experiência vivida na mais absoluta solidão, uma experiência
representada interiormente, religião é representada em algum tipo de linguagem.
Podemos desta forma repropor o problema ao afirmar que religião e linguagem são
temas que se pertencem de forma intrínseca, ainda que nem sempre a linguagem
quotidiana tenha as categorias mais adequadas para sua expressão. O fato é que religião
é praticada na sociedade de forma expressiva. Os deuses falam, falam os fiéis, debatem
as comunidades, seus líderes pregam, profetizam, todos cantam, louvam, pronunciam
juramentos e confissões. E quando estão em conflito uns com os outros por causa dos
bens simbólicos os membros de uma comunidade pronunciam argumentos e
condenações. E como observamos acima, quando o homem religioso está só, ele
conversa com sua divindade, a ouve e interpreta sua mensagem. Podemos dizer sem
exageros que o homem religioso é um tagarela. É quase impossível fazê-lo calar. E nos
momentos em que não faz uso da palavra ele pratica gestos simbolicamente
organizados, move seu corpo de forma a dizer algo. Desta forma, os deuses dançam, os
sacerdotes levantam as mãos para abençoar, para manipular altares e instrumentos
sacrificadores. A sofisticação da linguagem no mundo religioso é tão grande que na
história se constituíram escrituras das religiões. Grupos de escribas e sacerdotes,
1
“O mito está no topo da pirâmide cognitiva em uma sociedade deste tipo. Ele não
apenas regula o comportamento e emoldura o conhecimento, mas também delimita a
percepção da realidade e canaliza as formas de pensamento dos seus aderentes. [...] O
mito é o produto inevitável da habilidade narrativa e a suprema força organizadora da
sociedade do paleolítico superior”.13
A cultura mítica favoreceu a integração do conhecimento. Ela deu a unidade que faltava
ao pensamento episódico e à cultura mimética. O mito fornece um modelo no qual todo
o conhecimento de uma sociedade pode ser narrado. Seu passado é reconstruído de
forma coerente e eventos isolados podem ser colocados em relação uns com os outros.
Por fim temos a terceira transição, do armazenamento simbólico externo até a cultura
teórica, que marca a transição na qual nossa sociedade ainda se encontra. Se as
transições anteriores aconteceram na constituição biológica da espécie humana, a
terceira é motivada por fatores tecnológicos, no caso, o armazenamento externo de
memória. Na opinião de Donald esta terceira transição pode ser testemunhada por meio
da invenção de símbolos visuais, que se iniciaram com arte e sinais gráficos até os
sistemas gráficos da escrita, pelo surgimento de uma cultura literata, e por fim por meio
de pensamento abstrato. Este estágio deve ter promovido sofisticação na forma de
armazenamento coletivo de informação na sociedade e um uso mais efetivo de recursos
cerebrais, como no caso do uso de memória externa que requer “módulos” literários.
Este acesso à memória externa faz com que a cultura se expanda por um espaço
virtualmente ilimitado, que seus produtos simbólicos sejam cada vez mais refinados e
sofisticados, promovendo a interação entre processos semânticos e visuais. Este
processo de incremento de memória virtual permite que se desenvolva uma ainda maior
plasticidade cerebral e uma utilização mais eficiente da memória humana por meio desta
memória externa. Ocorre, portanto um processo duplo e interativo: aumento ilimitado
de memória externa e refinamento dos produtos simbólicos. O número de
representações disponíveis para a cultura humana neste processo torna-se infinita.
13
Origins of the Modern Mind, p.258.
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que integra mente e corpo (como operador mimético na comunicação), além de integrar
o sistema fonético, lexical e sintático. E, por fim, integra os aspectos internos com os
externos da cognição e da comunicação. É importante ressaltar que o desenvolvimento
em três etapas, conforme proposto por Donald, não implica em substituição das aptidões
e formas de expressão de uma etapa por outra, mas propõe uma superposição
hierárquica dos três níveis. Todos nós somos articuladores de expressão mimética,
mítica e abstrata.
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ainda tem vigência na comunidade acadêmica a hipótese de que as pinturas nas cavernas
(pensemos nas pinturas de Chauvet, de 34.000 anos, no sul da França, por exemplo),
devido à dificuldade de acesso e à escuridão, fossem locais de iniciação religiosa e de
rituais xamânicos. As pinturas rupestres nos oferecem um caso paradigmático de
encontro do mimético (ritual), da técnica (pintura), da linguagem, da imagem (memória
externa) articulados em torno do fenômeno religioso xamânico.14
*.*.*
É tendo em mente este quadro conjectural que queremos apresentar um último conceito
para a discussão da relação entre religião e linguagem. Conforme nos mostram as
evidências arqueológicas, as representações religiosas surgem nas sociedades pré-
históricas como produtos complexos, sincréticos e estruturados. Para entendê-los
melhor nós usaremos do conceito de texto do semioticista russo Iuri Lotman. Segundo
Lotman “texto” é toda unidade estruturada de informação. Os textos podem ser de
caráter simples e técnico, privilegiando a transmissão correta de informação. Já os
textos mais complexos, os textos da cultura, privilegiam a criação de novas mensagens
ao invés da simples transmissão de informação.15 Isso se deve ao fato de que não há
uma codificação unificada entre as diferentes pessoas e entre os diferentes textos. Além
do mais, os textos da cultura são, no mínimo, duplamente codificados: eles possuem a
codificação de sua linguagem natural (sejam as regras da linguagem falada ou da
linguagem icônica, por exemplo) e a codificação própria do seu âmbito específico, no
caso, da linguagem religiosa ou artística, que também funciona como uma espécie de
linguagem. Os textos da cultura também são híbridos e hierarquicamente organizados.
Tomemos o exemplo de um poema: um poema tem diferentes sistemas articulados, pois
ele é composto de fonemas, de sinais gráficos, de rima, de ritmo, de semântica, etc.
Estes sistemas estão em tensão uns com os outros e podem se desestabilizar
mutuamente criando possibilidades de “deformação”, de criação de novas mensagens.
Pensemos num ritual religioso como um texto complexo composto de diferentes
14
Em nossa interpretação da arte pré-histórica, e principalmente da arte das cavernas do paleolítico
dependemos da obra de Lewis-Williams, The Mind in the Cave.
15
Para o conceito de texto de Lotman, ver, entre outros, Universe of the Mind, p. 11-18.
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subtextos: palavra oral, palavra escrita, palavra cantada, gestos litúrgicos, danças,
decoração do espaço, símbolos, vestimentas, disposição das pessoas, interação entre as
pessoas e o espaço, a leitura e entonação dos textos e cantos, etc. Toda esta ampla e
complexa gama de textos com seus sistemas particulares (pois há prescrições para a
leitura, para o canto, para o gesto, para a organização do espaço, etc.) podem e são
efetivamente percebidos pelas pessoas que participam do ritual, cada qual com seus
códigos, em infinitas formas. É esta complexidade de sistemas textuais que tornam a
cultura tão dinâmica e sempre pronta para a produção de novos textos.16 Este conceito
de texto pode ser aplicado aos primeiros vestígios de cultura artística e religiosa do
Homo Sapiens. Se os textos culturais das pinturas rupestres das cavernas e dos crânios
de ursos, por exemplo, em Chauvet, eram acompanhados de rituais de iniciação
xamânicos, temos aí um texto artístico-religioso da mais alta complexidade e
hibridismo, pois estes rituais devem ter sido conduzidos com fala, gestos, mais as
representações externas das pinturas e os objetos portáteis. Todos teriam sua
estruturação simbólica própria e estariam também organizados hierárquica e
estruturalmente uns em relação aos outros.
Devemos observar, porém, que constatar este tipo de complexidade estrutural ainda não
basta para justificar a importância e a centralidade destes textos da cultura. O que torna
esta complexidade sistêmica dos textos da cultura tão importante é o fato de que ela
exerce o papel de modelizadora do mundo. Ou, segundo as palavras de Lotman, se
constituem em um “sistema modelizador de segundo grau”. Os textos culturais
modelizam nossa compreensão de mundo segundo suas regras, como se elas fossem
linguagens e de fato elas se portam como linguagens. A criação de um texto artístico-
religioso tem como consequência a criação de um universo da cultura moldado por este
texto: ele transfigura a realidade a tal ponto que só podemos considerar como existente
o que pode ser descrito na cultura. Aqui podemos nos perguntar pelas semelhanças e
diferenças entre este conceito da semiótica da cultura e o conceito de segunda realidade
de Deacon. Afinal este autor já destacava a importância das representações simbólicas
na criação de uma segunda realidade ou na busca de princípios subjacentes à mesma. O
conceito de Lotman nos parece ir além porque destaca não só o poder de representação
do símbolo, mas o poder de modelização por meio de sistemas híbridos e complexos de
16
Para a complexidade da configuração interna das linguagens da arte ver Lotman, Estructura del texto
artistico, p. 17-46.
14
textos culturais em interação. Isso a tal ponto que a linguagem da cultura se torna mais
apta para criar novos textos culturais do que para a expressão do real. Este passo à
frente que dá o conceito de texto de Lotman nos permite considerar de forma nova o
papel da religião, desta vez não em relação apenas com a linguagem, mas ela mesma
como um sistema de linguagem próprio que emula a linguagem na sua tentativa de
representar o mundo. No caso das linguagens da religião teríamos, portanto, uma dupla
codificação: religião se relaciona com a linguagem natural (que pode ser a língua falada,
o iconismo, etc), mas também se constitui num sistema complexamente estruturado de
linguagem. Isso gera na religião um poder equivalente ao da arte para criação de novos
textos, nos lançando numa rede de intensas e inesgotáveis criações simbólicas.
*.*.*.*
15
c) A representação do mundo na linguagem e na narrativa está ligada a outras formas de
cognição e de representação: a uma que lhe é anterior e que é determinante para o seu
desenvolvimento, a expressão e representação mimética; e a outra que potencializa a
ambas, os repositórios externos de memória, por meio de imagens e da escrita. Portanto
pertencem ao conceito de linguagem proposto por nós o corpo e a técnica, da mesma
forma que o gesto, a voz e a representação material, quando articulados em sistemas de
representação. Linguagem em Ciências da Religião necessita de um conceito amplo e
híbrido, e aqui o conceito de Lotman de texto nos parece adequado.
16
em grupos religiosos e na sociedade, mas em analisar complexos simbólicos
estruturados de modelização religiosa do mundo, dotados de potencial ilimitado de
recepção e recriação nas sociedades humanas.
REFERÊNCIAS:
BELLAH, Robert N. Religion in Human Evolution. From the Paleolithic to the Axial
Age. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011.
BOYD, Brian. On the Origin of Stories: Evolution, Cognition and Fiction. Cambridge:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
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University Press. 2007.
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1989.
DEACON, Terrence W. The Symbolic Species. The Co-evolution of Language and the
Brain. New York: Norton, 1997.
DEACON, Terrence W & CASHMAN, Tyrone. The Role of Symbolic Capacity in the
Origins of Religion, in Journal for the Study of Religion, Nature and Culture 3.4 (2009)
pp.490-517.
DONALD, Merlin. Origins of the Modern Mind. Three Stages in the Evolution of
Culture and Cognition. Cambridge: Harvard University Press, 1991.
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LEWIS-WILLIAMS, David. The Mind in the Cave. Consciousness and the Origins of
Art. London: Thames & Hudson, 2002.
MORGAN, David. The Sacred Gaze. Religious Visual Culture in Theory and Practice.
Berkeley: University of California Press, 2005.
TURNER, Mark. The Literary Mind. The Origins of Thought and Language. Oxford:
Oxford University Press, 1996.
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