Sunteți pe pagina 1din 49

JOHN KNOX

A
INTEGRIDADE
DA

AS TE
SÃO PAVLO
I

A
INTEGRIDADE
DA
PREGAÇÃO
LÍBER

Associação de Seminários Teológicos Evangélicos


0611274632
CONSELHO DELIBERATIVO:
Júlio A. Ferreira
Presidente
JOHN KNOX
Joaquim Beato, Thurmon Bryant, Roberto Grant, Professor no Seminário Teológico Unido
Wilson Guedelha, V . James Mannoia, David Mein, de Nova York

Harding Meyer, A . Benjamin Oliver, Paulo Picrson,


Isnard Rocha, Arnaldo Schmidt

Aharon Sapsezian
Secretário geral

Edições da A. S. T. E.

A VENDA
VOCABULÁRIO BÍBLICO, de J.-J. von Allmcn
A
INTEGRIDADE
O P R O T E S T A N T I S M O BRASILEIRO, de É. Leonard
O CATOLICISMO ROMANO — um simpósio protestante
O P E N S A M E N T O DA REFORMA, de H . Strohl
PEDRO — DISCÍPULO, APÓSTOLO E MÁRTIR, de O. Cullmann
DA
NO PRELO
A PESSOA DE CRISTO, dc G. C. Bcrkouwcr
PSICOLOGIA DA RELIGIÃO, de P. Johnson
PREGAÇÃO
DEUS E S T A V A EM CRISTO, de D. M. Baillie
O ENSINO DE JESUS, de T . W . Manson

EM PREPARAÇÃO

r:v\:.
A IGREJA NO NOVO T E S T A M E N T O , de G. Kittel
Traduzido por
JESUS DE NAZARÉ, de G. Bornkamm
TEOLOGIA DO A N T I G O T E S T A M E N T O , de G. von Rad FLÁVIA BRAZIL ESTEVES
TEOLOGIA DO NOVO T E S T A M E N T O , de A. Richardson
E P I S T O L A AOS ROMANOS, de F.-J. Leenhardt
O PREPARO DE SERMÕES, dc A- W. Blackwood
SEMINÁRIO COWCÔ*WA
A FÉ CRISTA, de G. Aulén
A RELEVAXCIA DOS PROFETAS, de R. B. Y . Scott
FÉ BÍBLICA E ÉTICA SOCIAL, de E. C. Gardner
B I B LI0 TE°A
ASTE
DOCUMENTOS DA IGREJA CRISTA, de H . Bcttenson S Ã O PAVLO
Títttlo do original
T H E I N T E G R I T Y OF P R E A C H I N G
Abingdon Press, New York,
l. a
edição, 1957

Í N D I C E
Seminário Concórdia
Biblioteca
Sist. <K Z%&i\A\
Introdução ... 9
Procd I — Quando é Bíblica a Pregação ... 11
Data i?».oS.cn-(
I I — A Relevância da Pregação Bíblica 27

I I I — Teólogos e Pregadores 37

IV — Pregação é Ensino 49

V — Pregação é Pessoal 59

VI — Pregação é Culto 75

VII .... 85

Notas 94

Edição em língua portuguesa, com colabo-


ração do Fundo de Educação Teológica,
pela
Associação de Seminários Teológicos Evangélicos
São Paulo
1964
INTRODUÇÃO

Dentre todos os muitos pregadores do evan-


gelho, fiéis e capazes, e que, despretenciosamente
de modo geral, foram meus professores de ho-
milética, aquele que de modo imensurável signi-
ficou mais para mim do que qualquer um outro
foi o meu próprio pai, Absalom Knox, falecido há
mais de trinta anos. Embora os seus dias tivessem
sido passados em lugares obscuros, era ele um
grande pregador (no único sentido em que esse
termo jamais deveria ser empregado) e ter-se-ia
tornado maior ainda se a morte não o tivesse der-
rubado quando ainda em meia idade. Não teve
ele a vantagem de um curso colegial completo,
muito menos a de um treino em seminário, porém
foi uma das pessoas mais inteligentes, sensíveis e
humanas que jamais conheci e, portanto, uma das
mais cultas. Era muitíssimo bom e reconhecido
como tal por todos quantos o conheciam mas, de
igual modo, era uma pessoa oliva e enérgica,
possuindo talentos de eloquência autêntica — algo
muito raro.
Contudo, ao pensar nele como um pregador,
não são esses os talentos que vêm à mente em pri-
meiro lugar e sim a seriedade com que êle pregava
e a honestidade absoluta com que fazia isso, o tra-
balho cuidadoso e longo que dedicava a fim de
preparar-se para esse mister (todos nós sabíamos
que diariamente, durante as primeiras horas, não
•podíamos "incomodar o papai"), a qualidade bí-
blica da pregação, sua solidez e integridade, a ma-
neira pela qual a mesma respondia à vida da
igreja, o modo pelo qual falava ao coração. Mais
do que qualquer outra coisa, foi a memória de sua
pregação que sugeriu a palavra "integridade"
para o título dessas minhas reflexões com respeito CAPÍTULO I
ao pregador e seu trabalho.

Ao escrever o Capítulo II, extraí-o livremente QUANDO É BÍBLICA A PREGAÇÃO?


de um de meus ensaios — "Autenticidade e Rele-
Em nossos dias estamos testemunhando uma nova
vância" — publicado há vários anos no The Union
insistência sobre o fato de que a pregação deve ser bí-
Seminary Review.
blica. Nada é mais característico das discussões con-
Sou agradecido ao Deão James Cannon da temporâneas quanto à pregação do que essa ênfase. A
Divinity School of Duke University e seus colegas mensagem do pregador precisa provir não de aconteci-
pelo convite que me fizeram para dar preleções lá, mentos correntes, ou literatura em voga, ou de tendên-
em junho de 1956, e pelas muitas gentilezas que cias prevalescentes de um tipo ou de outro, não de filó-
me demonstraram durante esse período de prele- sofos, políticos, poetas e nem mesmo, em último recurso,
ções. Desejo agradecer também a meu prezado da própria experiência ou reflexão do pregador, mas sim
amigo Paul Scherer por ter lido o meu manuscrito das Escrituras. Naturalmente não há nada de realmen-
e ter-me feito muitas críticas construtivas. te novo com relação a isso. O fato de que é mister repe-
tir tal coisa — e com nova ênfase — significa tão somen-
JOHN KNOX te que a pregação tem se desviado nesse ponto de sua
própria tradição. Aquilo que estamos asseverando
energicamente, outras épocas tomaram como certo. A
pregação nos primeiros séculos e a pregação em todos
os períodos mais vitais e fecundos da história da Igreja
tem sido bíblica.

Mas quando é bíblica a pregação? Pregadores usam


a Bíblia — e têm sempre usado — em uma grande va-
riedade de modos. Nem toda a pregação que toma forma
de exposição bíblica pode ser chamada bíblica em qual-
quer sentido apreciativo ou realmente autêntico. Na
verdade, como bem o sabemos, a exposição bíblica em si
mesma pode ser muito infrutífera e enfadonha — e por-
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 13
12 JOHN KNOX

tanto (atrever-nos-íamos a dizer?) muito não-bíblica. ou deturpar um texto bíblico de maneira tão certa e
Em um dos livros de William Law, místico inglês do completa como qualquer comentário. Não é somente dos
século XVIII, há uma história encantadora de um pre- "enormes livros explicativos" dos sábios acerca dos quais
sente delicado — um comentário bíblico — feito por uma por vezes pode ser dito que têm sucesso unicamente em
mulher a um velho pastor chamado John e sua esposa entorpecer "o bom gosto" do original, diluindo o "seu
Betty. O pastor descreve o que sucedeu: espírito cordial"; muitas e muitas vezes os longos dis-
cursos expositivos dos pregadores têm o mesmo efeito.
Senhora, a esposa do Juiz de nossa cidade, ouvindo Em outras palavras, o uso da Bíblia — e até mesmo o
falar de como Betty e eu amamos as Escrituras, trouxe-nos
seu uso em larga escala — não é suficiente para garan-
certo dia um enorme livro explicativo sobre o Novo Tes-
tamento e nos disse que ficaríamos entendendo muito
tir a pregação bíblica eficiente ou mesmo autêntica.
melhor as Escrituras lendo naquele livro do que só no Tudo depende de como nós a usamos.
Novo T e s t a m e n t o . . . N o outro Dia do Senhor, quando, Dedicaremos vários destes capítulos para uma dis-
de acordo com o que era hábito, dois ou três vizinhos cussão desse "como"; primeiramente, porém, talvez algo
vieram para se sentar conosco lá pela noitinha,
mais devesse ser dito a respeito do "porquê", pois que
" B e t t y " , disse eu, "traga o grande livro da Senhora e
leia o quinto capítulo de São M a t e u s . " Quando ela ter-
são os elementos no uso da Bíblia para a pregação que
minou, pedi-lhe que lesse o capítulo quinze da Primeira determinam em grande parte como devem ser julgados
Carta aos Coríntios. Na manhã seguinte disse eu a Betty: os nossos próprios modos de utilizá-la. A meu ver, esses
"Carregue de volta à minha senhora esse enorme livro elementos podem ser indicados sumariamente do seguin-
explicativo e diga-lhe que as palavras de Cristo e seus te modo: Usamos a Bíblia na pregação porque é litera-
Apóstolos são melhores por si mesmas e tal como eles as
tura de alta qualidade, porque é nossa literatura e por-
d e i x a r a m . " E, enquanto eu me dirigia às minhas ovelhas,
pensava comigo mesmo: — Esse grande livro explicativo
que é, em sentido muito verdadeiro e distinto, a litera-
parece ter feito tanto bem a esse livrinho do Novo Tes- tura divina. Essas razões encontram-se em ordem
tamento ao ser acrescentado e misturado ao mesmo, tal ascendente de importância, mas cada uma delas merece
como um galão de água faria para um copinho de vinho alguma atenção.
verdadeiro ao ser acrescentado ou misturado ao primeiro.
Na verdade o vinho todo estaria lá, porém o seu gosto Com toda a certeza, uma das razões pelas quais é
delicado e o espírito cordial que tinha quando bebido por apropriado usar a Bíblia na pregação e porque efetiva-
si estaria todo perdido e submerso na frieza e insipidez mente nós a utilizamos, é em vista da mesma ser literatu-
da água. ( i ) ra religiosa de alta qualidade. Talvez não precisemos usar
o primeiro adjetivo, desde que em determinado sentido
toda a grande literatura pode ser considerada "religiosa".
Provavelmente os pregadores terão um prazer todo
Inúmeras tentativas têm sido feitas — e por pessoas
especial nesta história e é bem natural que o tenham,
muito mais competentes do que eu — para definir
pois que talvez tivessem sofrido mais do que outros por
"grande" literatura e para dizer justamente o que é um
causa dos comentaristas sem inspiração e sem esclare-
grande livro. É oportuno afirmar que nenhuma dessas
cimento. Entretanto, lembremo-nos de que o pregador
tentativas tiveram perfeito sucesso. O critério de grande
é também um expositor e que um sermão pode esconder
14 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO

arte não pode ser formulado de maneira precisa e exaus- ratura. Quero dizer com isso, naturalmente, que é a li
tiva . Distinguimos o grande livro da maneira pela qual teratura da Igreja. Os livros do Antigo Testamento (01
conhecemos a grande música — pelo modo com que rea- pelo menos os da Lei e os Profetas) podiam ser encon
gimos permanentemente ao primeiro, por tudo quanto trados por séculos e séculos e em uso familiar entre oi
faz e continua a fazer em nós — e a única comparação judeus, antes que esses mesmos livros fossem adotados
objetiva sobre a nossa impressão dele é a reação de pela comunidade cristã. Desde tempos primordiais tais
outros. A literatura mundial de grande porte é composta escritos foram associados com a vida da Igreja e essa
de livros sobre os quais muitos homens e mulheres, em associação foi feita do modo mais significante e íntimo.
muitas gerações, têm dito para si mesmos: "Este é um Jesus conhecia tais livros e citou-os, assim como Paulo.
grande livro!" Certamente podemos afirmar com segu- As próprias cartas e outros documentos especificamente
cristãos, de modo especial os Evangelhos que descreve-
rança que esses livros tratarão sempre, não de meras
ram a carreira de Jesus e registraram suas palavras,
concepções abstratas nem tampouco de fantasias, mas
logo conseguiram o mesmo status elevado, desfrutando
da experiência humana em sua verdade concreta e exis-
desse mesmo uso familiar. Por vinte séculos, a Igreja
tencial. Procurarão descobrir tudo quanto há de pro-
— verdadeiramente toda a Cristandade — está sendo
fundo no homem, as fontes de sua grandeza e de sua
nutrida com esses escritos antigos. Imagens e também
derrota trágica. Colocá-lo-ão em um lugar espaçoso,
concepções bíblicas têm penetrado na urdidura e na com-
concedendo algum senso de significado último e do mis- posição da cultura ocidental; a linguagem da Bíblia não
tério de sua vida. E farão tudo isso por meio de lingua- somente foi o ingrediente básico na linguagem da li-
gem simples, clara e comovente. Contudo, por mais que turgia e devoção da Igreja, mas também afetou profun-
tentemos formular nossa definição de grande literatura, damente tanto nossa literatura em geral assim como
não há dúvida que a Bíblia como um todo, bem como nossa linguagem comum. Com toda a probabilidade,
muitas de suas partes tomadas em separado, podem ser os hinos ensinados por nossas mães eram bons, porém
perfeitamente enquadradas como tal. Não é grande li- não é só a sua excelência intrínseca que os torna pre-
teratura apenas, mas em alguns aspectos é incompara- ciosos para nós. Amamo-los muito menos por seu con-
velmente grande". É o relato mais realístico, profundo teúdo e por si mesmos do que por causa de nossas mães
e comovente do homem que o próprio homem jamais pro- e, sem dúvida alguma, nossas avós que também gosta-
duziu. A pregação, no entanto, é também profunda e vam desses hinos. De igual modo, a Bíblia conseguiu
radicalmente relacionada com o homem, sua necessidade obter significado e valor mais elevados pelo uso que a
e sua redenção, sendo que sua eficiência e genuinidade Igreja faz da mesma. Passagens como o salmo vinte
dependem da compreensão profunda, certa e verdadeira e três, os primeiros versículos do capítulo cinco de Ro-
do pregador relativamente à situação humana. A Bíblia manos, ou algumas afirmações de Jesus nos Evangelhos,
provê recursos magníficos para essa compreensão. Por têm hoje um valor que não poderiam ter tido quando
esta razão, se não por outra, o pregador utiliza esse livro. primeiramente expressados ou escritos. Por vezes uma
Entretanto, uma razão ainda mais potente para o frase bíblica familiar pode evocar todo um mundo de
uso da Bíblia na pregação é a de ser a mesma nossa lite-
16 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 17

significados passados e, por vezes, meio esquecidos. Na dadeiro que a pregação devesse ser bíblica; a pregação
verdade, alguns desses significados mais profundos mal autêntica tem de ser assim!
podem ser evocados de qualquer outro modo. Contudo, Perguntamos novamente, porém: que é pregação
justamente esses significados — concretos e existenciais bíblica? Agora já o suficiente foi dito para indicar que
— a pregação procura comunicar. Não é de se espantar, não se pode definir a pregação bíblica em termos de
pois, que a Bíblia seja usada! Como se poderia fazer de qualquer conexão mecânica — externa ou meramente
outra forma? formal — conexão esta feita entre a Bíblia e o sermão.
Não se pode dizer, por exemplo, que a pregação bíblica
Mas a terceira razão é realmente a decisiva: é a
seja a simples pregação de um texto bíblico. Lembro-me
literatura de Deus. É, conforme afirmamos, "a Palavra
de ter ouvido, quando me encontrava no seminário,
de Deus." Se não pudesse ser chamada Palavra de Deus,
acerca da distinção entre sermões tópicos e textuais.
não só seria altamento dubitativo que fosse utilizada
Talvez esta possa ser uma distinção útil para determi-
para a pregação, mas também que fosse empregada com nados propósitos, porém de nada servirá com relação a
tanta familiaridade — ou até mesmo que existisse algo todos os sermões textuais como sendo bíblicos e todos os
como a pregação. Se, na história que teve início com sermões tópicos como não-bíblicos. Todos nós sabemos
Abraão e culminou com Cristo e na vida comunal que ser possível tomar de um texto bíblico e proceder à pre-
pertenceu a essa história ou à qual essa história perten- gação de um sermão bem não-bíblico. Poder-se-á fazer
ceu (pode-se olhar de dois modos para essa inter-rela- isso de várias maneiras. Uma delas é citar algumas
ção), os homens não tivessem encontrado ali a própria poucas palavras da Escritura como uma espécie de fron-
presença e a ação poderosa de Deus, não haveria nem tispício ornamental para um discurso que, na realidade,
Igreja, nem Bíblia, nem tampouco pregação. A Bíblia nada deve a qualquer uma dessas palavras ou qualquer
é denominada a Palavra de Deus não porque ela seja outra parte da Escritura. Recordo-me, por exemplo, de
composta de palavras de Deus, ou contenha essas pa- ter ouvido há vários anos — e confesso, com vergonha,
lavras (como se Deus se expressasse por palavras), mas que eu próprio uma vez preguei — um sermão desse tipo
porque transmite a'nós a presença e a ação poderosa (que foi pregado primeiramente, tanto quanto saibamos,
de Deus. Pois bem, a pregação cristã procura trans- por Charles Reynolds Brown) sobre a pergunta feita
mitir essa mesma presença e essa mesma ação poderosa. certa vez a Jacó por Faraó, "Quantos são os dias dos anos
Tal como a Bíblia em si mesma, a pregação se preocupa de tua vida?" (Gn 47.8) — sermão este em torno das
com o evento de Cristo, procurando comunicar sua rea- "dimensões da vida." Nesse caso e em inúmeros outros
lidade e sua relevância, interpretar o seu significado semelhantes, é puramente acidental qualquer conexão
para os homens de cada geração e para o homem em entre o sermão e qualquer outra coisa sobre a qual a
todas as gerações. A Bíblia, portanto, não é apenas útil Bíblia esteja realmente interessada a dizer. Ou, então,
na pregação; é absolutamente indispensável. É mais do pode-se tomar de um texto e depois interpretá-lo mal,
que um recurso supremamente útil; pertence essencial- como quando alguém emprega "Examinai as Escrituras"
mente à própria fonte da pregação. Não é somente ver- — a tradução de Jo 5.39 — como texto para um sermão
>
18 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 19

relacionado com o dever da leitura da Bíblia. Outra A história de Patton acerca de como êle foi iniciado
alternativa é alguém extrair da Bíblia um texto rela- na pregação "bíblica" é tão viva e divertida como devem
tivamente não-bíblico — isto é, um ou dois versículos ter sido os seus sermões:
que não sejam típicos ou representativos — tratando
Em certa ocasião, entretanto, talvez há quinze ou
depois dos mesmos, talvez de modo íntimo e fiel, mas vinte anos, experimentei fazer um sermão bíblico. Su-
sem referência alguma ao que a Bíblia, como um todo, ponho que assim fiz porque ninguém havia sido morto
está afirmando. Em uma só palavra, a pregação de um durante aquela semana, a respeito do qual coubesse uma
texto — ou até mesmo o que denominamos pregação pregação, e nada sucedera no Japão ou na Itália, ou tam-
expositiva — como tal não é pregação bíblica. pouco na Liga das Nações que requeresse uma elucida-
ção de minha parte — e eu precisava urgentemente de
A pregação bíblica tampouco pode ser definida como u m tópico. Estivera lendo a velha história da Torre de
pregação quando tem a Bíblia como seu assunto ou Babel. Foi assim que num rasgo de coragem — ou, quem
quando se baseia na Bíblia em grande parte de sua ma- sabe, de desespero — disse comigo mesmo: "Vou fazer
um sermão extraído disso." Senti-me um tanto apologé-
téria. Carl S. Patton em seu livro The Use of the Bible
tico a esse respeito. Por que arrastar a minha gente mo-
in Preaching, parece admitir o fato de que a pregação derna e atualizada para aquele passado tão longínquo e
bíblica significa pregar acerca da Bíblia. Êle descreve, para aquela torre inacabada? Entretanto, não consegui
por exemplo: pensar em outra coisa naquela semana e assim teve que
ser aquilo mesmo. Para meu espanto, os comentários
Não sustenho que toda a pregação devesse ser bíblica. em torno daquele sermão quase me levaram a supor que
Longe disso. A religião está em formação durante todo o pessoal da minha congregação havia passado noites in-
tempo. Acontecimentos correntes na vida política, eco- teiras em claro pensando naquela velha história.
nómica e internacional apelam fortemente por um comen-
tário e por uma intepretação Cristã pelo profeta Cristão.
Tanto o pensamento científico contemporâneo como o
Patton mal faz alusão ao conteúdo desse primeiro
filosófico movimentam-se frequentemente, apresentando sermão "bíblico." Êle é mais explícito em sua descrição
novos significados sobre as crenças e práticas religiosas. da segunda tentativa que êle fêz.
É inútil pretendei- que as únicas coisas sobre as quais
precisamos falar do púlpito devam ser encontradas na Fiz outra tentativa. Tomei o trecho menos indicado
Bíblia. (*) de material homilético que pode ser encontrado em
todo o Antigo Testamento — o quinto capítulo de Génesis.
A ideia parece ser a de que a pregação pode ser bí- Tentei fazer isso de modo um tanto realista. Inda-
blica e ocupar-se da Bíblia, ou então ser relevante e tra- guei por que aqueles anciãos puderam viver tanto tempo
e o que estava errado com a m e d i c n a e a higiene atuais
tar do que na realidade está acontecendo no mundo —
em vista de não podermos competir com os primeiros.
porém não ambas as coisas. (Com relação a essa ideia Perguntei como é que se divertiam depois de atingirem
errónea algo mais será dito no próximo capítulo). a idade de quinhentos ou seiscentos anos. Levantei a
questão sobre se eles chegavam a ficar doentes e,
(*) Esta citação e as s e g u i n t e s s ã o d e The Use of the Bible in Preaching, se ficassem, será que teriam artrite (suponho que teria
Copyright 1936 p o r H a r p e r & B r o t h e r s e u s a d a s com a p e r m i s s ã o dos m e s m o s .
sido reumatismo ao tempo deles) por uns dez ou quinze
Reconhecemos que as citações não representam devidamente todo o livro, o
qual tem muitos méritos.
anos como todo o mundo tem hoje em dia, ou então no
20 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 2 1

decurso de uns duzentos anos. Inquiri se as mulheres blica tem muito pouco a ver com a estrutura do sermão
chegavam a viver tanto como os homens, e qual a idade
e se sua forma é tópica ou expositiva. A diferença é mais
em que qualquer u m deles seria considerado realmente
adulto e pronto para ser independente de seus pais ou
profunda do que isso. Se fôr possível — como já temos
mães. Expliquei, então — e com toda a franqueza — que afirmado — pregar um sermão bem não-bíblico sobre
espécie de história era aquela, de acordo com o meu pen- um texto bíblico, de igual modo será possível pregar um
samento: não uma história verídica, mas um lindo trecho sermão bem bíblico sem base em texto algum.
folclórico n o qual os hebreus de um período posterior
haviam descrito uma idade de ouro, tempos atrás, quando
Como, pois, podemos definir pregação bíblica? Muito
o homem era ainda um menino aos cinquenta anos, tor- do restante deste livro procurará responder a esta ques-
nava-se jovem aproximadamente aos seiscentos ou sete- tão, de modo que não se fará tentativa aqui a este res-
centos anos e começava a sentir que a velhice se aproxi- peito. Estabeleçamos de modo resumido quatro pontos
mava por volta da casa dos novecentos anos. Isso parecia que não podem ser claramente separados um do outro.
ser uma novidade para aquela gente. E mostraram-se Podemos afirmar primeiramente que pregação bíblica é
mesmo muito interessados naquilo tudo. De fato, esse
a que permanece próxima às ideias bíblicas caracterís-
mesmo sermão chegou a ser requisitado e impresso no
periódico de uma de nossas escolas teológicas. ( )
2
ticas e essenciais: a transcendência, a santidade, o poder
e soberania, o amor de Deus; sua exigência de justiça
ética; seu julgamento do pecado; a criação do homem,
É oportuno dizer que Patton acrescenta: "Se tais sua condição de pecador; sua necessidade de perdão e
pregações só fossem interessantes, não nos levariam liberdade; o significado de Cristo como a vinda real de
muito longe. Contudo, esse tipo de pregação é informa- Deus para nossa história com o auxílio de que precisa-
tivo — educativo — de duas maneiras." Ao lê-lo, porém, mos; a eficácia da reconciliação e da redenção, da vida,
constata-se que tanto uma como outra dessas "manei- do gozo e da paz na nova comunidade do Espírito que
ras" tem muito a ver com o fato de que as pessoas co- Deus criou através de Cristo e para a qual podemos
meçavam a ter ideias mais inteligentes a respeito da entrar mediante a condição única de penitência e fé.
própria Bíblia. E, na pregação bíblica, essas ideias não aparecerão sim-
Não culparemos Patton pelos defeitos de compreen- plesmente como tais — não só como largas concepções
são que talvez se encontrem nesse seu livro cheio gerais — mas sim como parte integrante no contexto
de vida. Reconheceremos as passagens citadas como concreto da tradição e da vida eclesiástica. A pregação
representações satisfatórias do clima teológico de certas bíblica não se preocupa com abstrações. Já era "existen-
secções do Protestantismo na geração passada. No en- cialista" muito antes que os filósofos começassem a em-
tanto, tais trechos também servem para nos fazer lem- pregar este termo. Na verdade, não foi mero acidente
brar que a pregação bíblica não pode ser definida como que Kierkegaard, o pai do existencialismo moderno, ti-
simples pregação que tem a preocupação explícita e vesse sido um pregador bíblico.
grande dos componentes bíblicos — pouco importando
Em segundo lugar, pregação bíblica é a que se preo-
quais esses componentes e como são tratados. Na rea-
cupa essencialmente com o acontecimento bíblico prin-
lidade, a diferença entre a pregação bíblica e a não-bí-
cipal — o evento de Cristo. O simples tratamento de
22 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO

incidentes na narrativa bíblica ou fragmentos de ensino, tido mais simples e geral. O kêryx era um arauto e
até mesmo quando feitos de maneira fiel e edificante, kerygma as notícias que proclamava. Desde que as no-
não qualificam a pregação como sendo bíblica, a não tícias são boas, o Novo Testamento prefere evangelion
ser que esses incidentes e ensinos sejam vistos e apre- a kerygma. O pregador é o arauto das boas novas. Pro-
sentados em sua relação com o ato completo da reden- clama o ano aceitável do Senhor. Da maneira pela qual
ção divina que culminou com a vida e morte de Jesus, essa função está desenvolvida na Igreja, pregar é estar
a Ressurreição, a vinda do Espírito e a criação da Igreja. convicto, mais do que uma simples proclamação, por-
Sinclair Lewis, em Babitt, apresenta alguns comentários tanto . Embora o latim praedico restitua apenas o termo
satíricos com relação às várias preleçÕes sobre "filosofia grego único kêrysso, o próprio ato de pregar chegou a
e etnologia oriental", as quais estavam sendo dadas por incluir funções originalmente designadas por outros
"solteironas sinceras", nas diversas classes de uma es- termos, notadamente "profecia" e "ensino." Mas o
cola dominical. As discussões de componentes bíblicos significado fundamental de "pregação" ainda anuncia
serão precisamente essas preleções (quer sejam ou não algo além daquilo que sucedeu; e o sentido mais compli-
informativas, quer maçantes como as que Lewis tem em cado e inclusivo do termo pode ser verdadeiramente com-
mente, ou interessantes e até divertidas como as que
preendido tão somente se aquele significado fundamental
Patton por vezes nos dá) ou então serão meras exorta-
fôr conservado na mente. Antes de qualquer outra coisa,
ções moralistas e provavelmente sentimentais, a não ser
o pregador ainda é o anunciador do Evangelho. Sua
que sua preocupação primária seja o estabelecimento do
mensagem é, pois, determinada primariamente por um
significado da nova relação de Deus com os homens tal
acontecimento antigo — aquele que está centralizado
como foi cumprido através do evento e incorporado à
na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Somente uma
Igreja.
pregação desse tipo é bíblica.
A própria palavra "pregar" deveria lembrar-nos esse Em terceiro lugar, pregação bíblica é a que dá res-
propósito primário e o caráter da pregação. A forma postas e nutre a vida essencial da Igreja. Isso porque o
original inglesa dessa palavra era prechen, uma deri- acontecimento que proclama é mais do que uma ocorrên-
vação imediata do francês antigo prechier (o prêcher cia antiga por nós conhecida só por meio de relatos do-
moderno) e finalmente de praedico, forma latina que cumentados da mesma, que por um acaso foram escritos
significa declarar em público, proclamar, publicar. Ge- e que sobreviveram também por acaso. Esse aconteci-
ralmente se supõe que esse termo latino corresponde ao mento e seu verdadeiro sentido estão perpetuados na
grego prophêteuo, profetizar. Entretanto, prophêteuo e nova comunidade do Espírito. Aqui está a realidade da
prophêteia, tal como aparecem no Novo Testamento, são Ressurreição. O pregador não repete incessantemente
transliterados regularmente nas versões latinas, apare- uma crónica antiga; dá o testemunho da qualidade e
cendo como propheto e prophetia. Praedico traduz significado da nova vida comunitária em que Deus torna
kêrysso e praedi tio, kerygma; e essas palavras, tanto
ca
accessível a nós uma nova saúde e salvação. Sua pre-
gregas como latinas, denotam uma declaração pública, gação é como se fora uma elipse que se movimenta em
uma proclamação e, na realidade, um anúncio no sen- torno de dois focos, um da antiga ocorrência e outro da
24 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 25
j

contínua vida nova do Espírito. Desde que só se pode e a pregação não existem de maneira alguma em nenhum
falar verdadeiramente do evento na luz da experiência sentido autêntico.
contínua da Igreja e que só se pode, na realidade, inter- As Escrituras Cristãs chegaram a nós diretamente da
pretar a vida da Igreja à luz do acontecimento relem- vida da Igreja primitiva e nos foram transmitidas por
brado, os dois focos tendem a se tornar um único centro. meio da vida da Igreja desde então, através de todos os
A verdadeira forma da pregação, porém, é uma elipse e séculos. Seu valor principal está no fato de que trazem
não um círculo e a tensão entre o acontecimento e o até nós, em seu caráter concreto, o acontecimento em
Espírito é tão importante como a reciprocidade dos mes- que a Igreja começou e que determinou a natureza ini-
mos. Muitas vezes a pregação fracassa em vista de cial e essencial da Igreja. Desta maneira, as Escrituras
ambos serem identificados de modo por demais fácil, ou correspondem à vida da comunidade primitiva em res-
então porque um ou outro é simplesmente ignorado. O posta a esse acontecimento como se, ao lê-las, sejamos
problema básico da pregação é conservar juntos os dois postos em contacto com o evento e capacitados a parti-
elementos em sua completa integridade e força distinta, cipar na vida. A verdadeira pregação bíblica é aquela
mas conservá-los juntos. que tem esse mesmo efeito em toda e qualquer época.
Finalmente, pregação bíblica será aquela em que o
acontecimento seja recorrente no sentido real da pala-
vra . O Deus que atuou nos acontecimentos através dos
quais surgiu a Igreja, age novamente na palavra do pre-
gador. A pregação do evangelho é, em si mesma, uma
parte do Evangelho. O verdadeiro pregador bíblico não
discute simplesmente acontecimentos do passado (tal
como um professor de história), nem tampouco esboça
meras lições edificantes de sua vida (como um guia mo-
ral ou filósofo). O acontecimento passado chega a su-
ceder novamente em suas palavras inspiradas. A ver-
dadeira pregação é em si mesma um evento — e um
evento de um tipo especial. Nesse evento a revelação de
Deus em Cristo é, na realidade, recorrente. O aconteci-
mento escatológico, que teve início com a vinda de Cristo
e terminará com o julgamento final e com o cumpri-
mento da história, está sendo realizado recorrentemente
ou, se o preferir, de modo contínuo, nos sacramentos e
na pregação da igreja. Se isso não fôr verdade, pouca
importância têm os sacramentos ou mesmo a pregação.
Na verdade, se tudo isso não fôr verídico, os sacramentos
CAPÍTULO II

A RELEVÂNCIA DA PREGAÇÃO BÍBLICA

Mais para o fim do capítulo anterior apresentei a


pregação como tendo, por assim dizer, a forma de uma
elipse com dois focos — o evento antigo e a vida sempre
nova do Espírito. É necessário dizer mais a respeito da
integridade e distinção de cada uma dessas questões,
assim como acerca da reciprocidade essencial das
mesmas.

Há poucos anos, ao principiar um relato sobre sua


experiência religiosa e escrevendo em uma de nossas re-
vistas, uma mulher observou que no começo de sua car-
reira voltara-se contra a Igreja porque lhe parecera que
a mesma tinha muito pouca relação, quer fosse com o
século primeiro ou com o século vinte para ter signifi-
cação. Não me recordo do título de seu artigo ou até
mesmo de seu próprio nome e não posso lembrar-me de
nada com respeito ao contexto de sua afirmativa ou
mesmo o curso geral de seu argumento ou confissão;
não me esqueci, porém, da agulhada daquela observação
aberta, a decisão clara de sua saída da Igreja. Será que
alguém pode negar que haja verdade em sua acusação 9

E quem discutirá que, tanto quanto seja verdade, é uma


acusação absolutamente rejeitável? Com toda a certeza
os críticos podem argumentar que temos o direito de
esperar que a Igreja esteja em contacto com a realidade
em qualquer ponto: se não com o nosso próprio século,
28 JOHN KNOX A INTEGRIDADE D A PREGAÇÃO 29

pelo menos então com o primeiro século; se não com o que se pode ter qualquer contacto vital com o passado,
primeiro século, de qualquer modo então com o século ou que o passado em si pode ser considerado como exis-
vinte. Ou, para estabelecer o problema do ponto de vista tente. Estar em contacto com um passado vivo é mais
Cristão, que poderíamos nós dizer com respeito à justi- do que meramente ter tido um tal passado; é mais do
ficação de um Cristianismo — ou de uma pregação que saber que alguém o teve, ou continuar frequente-
Cristã — que fosse tanto não-bíblica como inaplicável? mente lembrando a si mesmo e a outros que tem esse
Demos ênfase às comparações na observação que passado; na realidade, é ser uma continuação viva dele.
citei, porém não estou certo se a escritora gostaria que Entretanto, a mesma coisa pode ser dita da Igreja
tivéssemos feito tal coisa. Entretanto, tenho certeza de que não tem conexão real com o primeiro século, mas
que o fato de assim fazermos esconde uma parte impor- pensa que está em relação das mais frutíferas com o
tante de seu significado. Essa leitura sugere que talvez século vinte. Essa Igreja se engana ao supor que uma
fosse possível à Igreja entrar em contacto com o primeiro sociedade pode ser uma Igreja de qualquer modo, sem
ou com o século vinte sem ter relação com ambos, que manter um contacto vivo com o primeiro século e todos
talvez fosse possível à pregação ser bíblica sem ser rele- os outros desde então. De outra maneira poderá ser
vante, ou ser relevante sem ser bíblica. Isso, porém, não contemporânea, porém não é uma Igreja contemporâ-
é verdade. Nesse caso, pelo menos a relevância e a auten- nea. Isso devido à razão pela qual a Igreja tem o seu
ticidade histórica são dois lados de uma só moeda. caráter distinto em todo e qualquer século em virtude
de sua relação com os acontecimentos que ocorreram no
Por exemplo, considere-se o pregador que crê que
primeiro; e somente nesse caráter tem ela qualquer pa-
sua pregação esteja no mais íntimo contacto com o pri-
lavra importante para dizer ou qualquer serviço real-
meiro século — êle está convicto de pregar o "verdadeiro
mente adequado para executar.
Evangelho" — quando, na realidade, falta à pregação um
toque qualquer com o século vinte. Não está obviamente Resumindo, se nós, como pregadores, não estamos
enganado com respeito à sua conexão com o primeiro falando às necessidades do mundo contemporâneo, po-
século? Estar em contacto com o primeiro século não de-se claramente supor que não ouvimos realmente o
significa a pura e simples repetição das palavras do pri- Evangelho da Igreja primitiva. Por outro lado, por mais
meiro século ou frequentes referências lisonjeiras ao que tenhamos muita preocupação relativamente ao
primeiro século; significa, na verdade, algo mais, tal mundo contemporâneo, essa ansiedade não é Cristã a
como compartilhar da experiência do primeiro século, não ser que seja originada da convicção de que um acon-
conhecendo as fontes de poder que o mesmo conheceu, tecimento ocorreu no primeiro século à luz do qual
possuindo uma vida comum com essa época. Mas uma somente pode ser compreendido o significado da cena
Igreja não pode estar em contacto com o primeiro século contemporânea e no poder do qual somente pode ser
nesse sentido sem que seja uma comunidade viva; e uma concretizada a comunidade que procuramos. Só a au-
comunidade viva, além de estar em relação orgânica com têntica pregação bíblica pode ser realmente relevante;
a vida do passado, pertence organicamente à vida de só a pregação essencialmente relevante pode ser real-
seu próprio período. Realmente é só num presente vivo mente bíblica.
1

30 JOHN KN0X A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 31

O reconhecimento dessa inter-relação entre auten- poder-se-ia acrescentar que, quanto mais profunda-
ticidade histórica e relevância faz com que o teólogo e o mente determinado historiador sentir o impacto e o
pregador bíblicos se aproximem muito mais intimamente significado do cataclisma presente, tanto mais profun-
do que parecia, geralmente falando, e seja revelado o damente autêntica pode ser a sua compreensão do que
campo comum em que ambos permanecem se cada um os profetas procuram afirmar. Estamos testemunhando
deles estiver desempenhando a sua própria função. A agora um notável despertamento de interesse com rela-
diferença entre ambos não é a que um esteja preo- ção ao Antigo Testamento. Cometeríamos um erro se
cupado com a verdade histórica e o outro com o valor atribuíssemos isso simplesmente aos Pergaminhos do
contemporâneo. Ambos estarão interessados nessas Mar Morto ou ao fato de que justamente agora existem
duas coisas, embora uma diferença de ênfase dê a cada tantos sábios e professores brilhantes nesse campo. O
um deles um papel distinto. fator primeiro e realmente decisivo é a história trágica de
nossos próprios dias, a qual tem feito com que o Antigo
Considere-se primeiramente a introdução estrita-
Testamento se torne de novo relevante e tem, portanto,
mente histórica — isto é, a introdução dominada pelo
possibilitado primeiramente a nossos professores e depois
interesse na história por seu próprio fim. Agora, os fatos
a nós mesmos a que ouçamos com nova compreensão a
externos da história podem ser estabelecidos ou não, con-
sua voz autêntica.
forme fôr o caso, sem referência nenhuma à relevância.
Mas o significado interior da história (e isso nada mais De igual modo o nosso entendimento do Novo Tes-
é do que a realidade concreta) só pode ser apreendido tamento e dos acontecimentos que o criaram depende,
por alguém que seja sensível ao significado de sua pró- para sua profundeza e verdade, muito mais de nossa ca-
pria época. Há aqui uma relação mútua, uma espécie pacidade de discernimento do significado de nossa exis-
de alternação ou ritmo, o passado lançando luz ao pre- tência presente do que de qualquer equipamento técnico
sente e o presente ao passado; no entanto, desde o início que porventura tenhamos para o estudo de documentos
e em certa medida, devem estar presentes a preocupa- antigos ou qualquer grau de aprendizagem e erudição
ção pela relevância*e o interesse pela autenticidade. — valiosos e indispensáveis para determinados propósi-
O estudante de história precisa levar consigo, pelo menos, tos importantes, como, sem dúvida alguma, são tais qua-
a capacidade para uma compreensão profunda do pre- lificações. Cristo precisa viver por nós, precisa entrar
sente se jamais tiver que alcançar qualquer compreen- em nossa própria existência, precisa encontrar-nos onde
são profunda do passado. O livro de Herbert Butterfield, estamos, se é que vamos chegar a conhecer a maravilha
Christianity and History, ( ) é um brilhante exemplo
3
da Encarnação ou o poder — e, portanto, a verdade —
dessa verdade. "É quase impossível", escreve êle a da ressurreição. Milner-White começa uma de suas ora-
certa altura, "apreciar de modo apropriado os desenvol- ções da seguinte maneira: "Ó Cristo, cujo nascimento
vimentos mais elevados na reflexão histórica do Antigo maravilhoso nada significa, a não ser que nasçamos de
Testamento, a não ser que seja em outra época que tenha novo, cuja morte e sacrifício são nada, a não ser que
experimentado (ou que tenha enfrentado) um cataclis- morramos para o pecado, cuja ressurreição é nula se tu
ma colossal, um período como este em que vivemos." E ressurgires sozinho..." ( ) Seja o que fôr dito da his-
4
H
32 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 33

tória em geral, não pode haver conhecimento autêntico ser verdade. Tanto um como outro tinham falta de re-
da história para a qual o Cristão se volte — aquilo levância — o modernismo porque tornou o Cristianismo
que os alemães chamam de Heilsgeschichte — sem que fácil demais; e o fundamentalismo, não porque fizesse
haja esse tipo de participação; e uma participação que, o Cristianismo difícil demais, mas porque tornava-o
preocupada com a autenticidade, deixe de lado todas as difícil em lugares errados. O modernista teria reduzido
considerações de relevância, terminando por perder, não toda a oposição essencial da Igreja e do mundo ao status
somente a relevância, mas também a autenticidade. de diferenças de cultura meramente acidentais entre o
O anverso, contudo, é também verdadeiro. Consi- primeiro século e o século vinte; o fundamentalista teria
dere-se o caso do pregador que se aproxima da história elevado todas as diferenças acidentais de cultura entre
bíblica com um interesse primário na relevância. Esse o primeiro século e o século vinte ao status de diferenças
alguém está em perigo todo especial de se tornar desco- essenciais e permanentes entre a Igreja e o mundo.
nexo. Isso é verdade porque, em grande parte, a rele- A Igreja do primeiro século levanta-se contra o
vância da história bíblica jaz no desafio que apresenta mundo moderno; os acontecimentos do primeiro século
com relação a hipóteses convencionais e modos costu- confrontam e desafiam o século vinte — o termo bíblico
meiros de se pensar, enquanto que a atenção para a rele- severo é "escandalizam". Qualquer modernista se acha
vância tende unicamente para a modernização e a em perigo de esquecer esse fato. No entanto, os pontos
assimilação. A Bíblia foi feita para responder somente em que eles desafiam assim o século vinte são precisa
nossas perguntas — isto é, aquelas que fazemos cons- e unicamente aqueles em que também desafiaram ao
cientemente — e evita responder as que são suas em primeiro século; é esse fato que qualquer fundamenta-
primeiro lugar, mas que, propriamente falando, tendo lismo ou dogmatismo tende a ignorar. Somente através
sido apresentadas, provam também ser nossas mais pro- de um esforço fiel e desinteressado para ver o Cristia-
fundas questões. Os pontos em que a Bíblia é mais re- nismo em seu cenário original e de ouvir a sua mensagem
levante com relação ao século vinte são precisamente como os seus primeiros ouvintes a escutaram — só atra-
aqueles em que a mensagem Cristã original era a mais vés de um esforço pela verdade histórica — é que podem
relevante para o primeiro século — em sua maior parte, ser discernidos esses pontos de confronto e, portanto, de
no entanto, estes não são pontos de acordo e conformi- maior relevância. A verdadeira pregação bíblica é a que
dade, mas sim pontos de diferença e confronto. discerne tais pontos de relevância e, fazendo isso, re-
cupera o significado autêntico do texto bíblico.
Há uma geração, o modernismo bíblico estava
ocupado em reduzir esses pontos de confronto, tanto Tanto o teólogo como o pregador bíblicos estão sujei-
como o fundamentalismo estava ocupado em multipli- tos a perigos característicos. O perigo do sábio é o de
cá-los — o modernismo negando que a Bíblia e a Igreja uma especialização estreita demais — isto é, uma espe-
tivessem qualquer coisa a dizer que ainda não conhecês- cialização tão limitada que malogre em seu próprio fim.
semos como sendo verdade, e o fundamentalismo afir- Já ouvimos, provavelmente aã nauseam, que um espe-
mando que tudo quanto a Bíblia e a Igreja tinham a cialista é alguém que "conhece cada vez mais sobre cada
dizer era, em sua maior parte, o que bem sabíamos não vez mais" sobre "cada vez mais coisas." Isso porque,
34 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 35

de verdade nesse epigrama como na grande maioria de determinados alvos últimos e importantes, pode ser
de epigramas; porém, se por "especialista" quisermos que não sejam só relevantes, mas indispensáveis. Ou
significar um sábio competente em qualquer campo, pode ser que a nossa concepção de relevância seja pre-
precisamos reconhecer que deve saber "cada vez mais" matura em si e, consequentemente, superficial ou gros-
sobre "cada vez mais", se na realidade êle tiver que saber seiramente utilitária em demasia. Rejeitamos as desco-
"cada vez mais" sobre "cada vez menos"; ou, para dizer bertas do especialista antes que tenhamos tido tempo
a mesma coisa de outro modo igualmente verdadeiro, se de descobrir o quanto tem a contribuir para a nossa com-
realmente êle está aprendendo "cada vez mais" sobre preensão de questões muito além dos limites de seu
"cada vez menos coisas", também está aprendendo "cada campo aparentemente estreito; ou, então, rejeitamos
vez menos coisas". Naturalmente, há certa parcela porque de nosso ponto de vista atual é irrelevante tudo
qualquer que seja o problema especial em que se tenha quanto poderia nos ter dado um novo ponto de vista do
empenhado, se tiver algum significado, suas ramifica- qual novas cadeias inteiras de relevância teriam sido
reveladas. Ficamos impacientes com nossos dirigentes
ções são literalmente intermináveis e o contexto em que
especializados porque nem sempre estão nos apresen-
pode ser examinado de modo frutífero é literalmente sem
tando uma visão esplêndida das coisas. Ou talvez de-
limite. Desse modo, o sábio bíblico, preocupado com
cidâmo-nos a dispensar completamente os dirigentes,
problemas técnicos especiais na pesquisa em que supõe
preferindo a vista que já temos ou a que podemos facil-
nada ter a aprender do estudo da pregação ou teologia
mente achar por nós mesmos, ao invés de seguir a trilha
contemporânea, para não mencionar a filosofia moderna,
sinuosa através das longas passagens sombrias até atin-
a literatura ou a política, não só está enganado, mas girmos o pico. Rejeitamos completamente tudo isso
também está a si mesmo pondo um fim à possibilidade porque não nos provê um sermão que, no entanto, se
da mais elevada aquisição em seu próprio campo. fora dado tempo, poderia nos ter fornecido um evangelho!
Em conexão a isso, o perigo característico para o pre-
gador é o de impaciência prematura com o especialista. O processo educacional, o crescimento em direção à
Por vezes esquece-sê de que é preciso ter ferramentas maturidade intelectual, poderia ser descrito — e real-
para certo trabalho e que, muitas vezes, leva-se mais mente quase ser definido — como o processo de desco-
tempo a fazer ou conseguir as ferramentas necessárias brir constantemente regiões cada vez mais extensas de
do que realmente fazer o serviço final e mais obviamen- relevância. Entretanto esse processo não é indolor, nem
te importante. Reli, e não há muito, Robinson tampouco o seu alvo está à plena vista a qualquer mo-
Crusoe, e fiquei impressionado com o quanto de seu mento . Certamente que uma das marcas do sábio é sua
tempo foi gasto em confeccionar ferramentas que não habilidade de estar interessado por um número surpreen-
tinham utilidade alguma como finalidades em si mes- dente de coisas, e, como poderá parecer a outros, em
mas. Passou êle meses inteiros fazendo uma pá, tanto coisas surpreendentemente desinteressantes — e tudo
como podemos passar meses inteiro aprendendo grego. porque êle aprendeu que muitas vezes existem possibi-
Talvez a pá e o grego sejam mais do que um degrau re- lidades de relevância em lugares bem insuspeitos e muito
movido de aplicabilidade final; porém, para, a realização pouco prometedores. Aprendeu êle que se lhe fôr dado

aio COMCOi—
36 JOHN KNOX

tempo, a verdade — qualquer que seja a sua espécie —


tem um modo de se tornar não só interessante, mas im-
portante; que todo o descobridor da verdade, seja qual
fôr o campo, tem algo de significativo a dizer, embora se
deva por vezes estar pronto a esperar que o significado
se revele a si mesmo; que a verdade é finalmente uma CAPÍTULO III
só e que, portanto, nenhum pedacinho dela, seja qual
fôr o campo, em último recurso pode ser discrepante ou TEÓLOGOS E PREGADORES
irrelevante.
Contudo, se é possível dizer de todos os pesquisa- Tendo lançado as bases de alguns princípios gerais
dores da verdade que eles se acham empenhados numa sobre a relação da Bíblia com a pregação, poderemos
tarefa comum e, portanto, estão sob a obrigação de con- discutir agora como esses princípios podem ser postos
fiança mútua e ajuda, será que, relativamente ao sábio em prática. De modo geral, até aqui estivemos preo-
e pregador bíblicos, tal referência não pode ser feita com cupados com o uso da Escritura pelo pregador; consi-
ênfase toda especial? Eles pertencem e servem a deraremos agora a utilização de determinados textos da
uma comunidade especial — e essa comunidade é a de Bíblia em sermões especiais. Será o uso do pregador
Cristo. Ambos estão procurando conhecer o significado limitado à intenção consciente do texto? Se não, até que
de sua comunidade — suas origens, sua natureza e sua ponto ou sob quais condições pode êle partir daquele
tarefa. O teólogo ou pregador que diz ao outro, "Não pre- sentido original? Pode ser encarado como legítimo o de-
ciso de você", falhou em ver não só a natureza da Igreja senvolvimento de significados meramente implícitos?
e o significado da qualidade de ser membro da mesma, Na Igreja, até que ponto o emprego extensivo de um ver-
mas também a natureza de seu próprio trabalho. - Em sículo bíblico, com certo significado, pode justificar o
vista dele não estar desejoso de receber, verdadeiramente seu uso continuado com esse mesmo sentido, conquanto
não pode dar. E, malogrando em contribuir para um o estudo histórico tenha deixado bem claro que esse ver-
empreendimento comum, está destituído de qualquer sículo possuía significado bem diferente no original?
realização significativa de si próprio. A disposição para Será legítimo focalizar a atenção em determinado ser-
aprender de outros — tanto ávida como pacientemente mão acerca de um aspecto especial e comparativamente
— não é só uma das graças do amor; é o próprio coração sem importância do significado de um versículo, mesmo
da sabedoria. que seja apresentado um tratamento altamente despro-
porcional no qual o ponto principal do texto receba aten-
ção deficiente ou na verdade nem mesmo apareça?
Embora eu não me aventure a oferecer respostas deta-
lhadas e definitivas a essas diversas questões, elas indi-
cam o problema geral deste capítulo. De modo nenhum
é um problema simples ou fácil de ser resolvido.
38 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 39

O primeiro passo para a solução, porém, está bas- tido básico, tanto para o pregador e não menos para o
tante claro: o uso do texto pelo pregador precisa começar sábio bíblico, é o significado histórico.
por um conhecimento do significado original do mesmo.
Pois bem, todos nós reconhecemos que o pregador
Seja o que fôr que êle fizer com o texto, precisa saber o
está sob a tentação extraordinária de negligenciar nesse
que está fazendo; e isso significa conhecer o que o texto,
primeiro passo. Não é êle um historiador preocupado
na realidade, significou para o seu escritor e o que este
pretendia que o mesmo significasse para seus primeiros pela história como um fim em si. Está, sim, preocupado
leitores. Por certo é impossível saber o que alguns textos com o significado do Evangelho para a sua própria época
bíblicos pretendiam transmitir originalmente, quer seja e sente grandes responsabilidades para com os homens
porque o fraseado original é incerto ou ambíguo ou por e mulheres modernos, tanto em sua congregação como
alguma outra razão. Não há, entretanto, desculpa algu- na sociedade em geral, cujos problemas e necessidades
ma para nossa falha em conhecer tanto quanto possí- requerem a sua atenção de todos os ângulos. Está sob
vel, e, na maioria dos casos, o sentido original é a mais urgente pressão de "servir a geração atual." Não
bastante claro se o mesmo fôr pesquisado. Ernest C. é estranho que grande parte das vezes sua primeira in-
Celwel escreve: dagação acerca de um texto bíblico seja: "Como posso
empregar esse texto para ajudar minha gente?" ao invés
De modo geral, há somente dois métodos de interpre-
de: "Qual o sentido original desse texto?"
tação da Bíblia. São os métodos de "modernização" e "his-
tórico". Cada um desses métodos tem inúmeras modifi- A tendência para descuidar do sentido original é en-
cações e formas, porém os dois estão separados um do carecida pelo ponto de vista um tanto comum da natu-
outro por um golfo que é tão vasto a ponto de restringir reza da Bíblia como a Palavra de Deus. Como tal, de
todas as divisões menores. O método chamado de moder-
acordo com essa ideia, ela não é só infalível, mas também
nizador tem os seus pés plantados solidamente no período
incalculàvelmente convincente e misteriosamente grávi-
em que o intérprete vive; encontra o significado básico da
da. Literalmente falando, não há limite ao que o texto
Bíblia com referêacia ao período "moderno" em que, natu-
ralmente, o intérprete está mais interessado. O método
possa significar. Tudo quanto as palavras sugiram ao
histórico, por outro lado, descobre o significado básico da intérprete — ou, como êle diria grande parte das vezes,
Bíblia com referência à situação em que ela foi escrita. (5) tudo quanto o Espírito Santo comunique — deve ser tudo
ou, pelo menos, uma parte daquilo que o texto pretenda
A ênfase nas duas últimas sentenças deveria recair transmitir. Em vista do significado que as palavras ini-
sobre a palavra "básico". Temos já visto que, na reali- cialmente tiveram para seus leitores não determinar ou
dade, nenhum de nós poderá compreender o que a Bíblia limitar em grau algum o significado real das mesmas,
disse à sua própria época, se não ouvirmos também o que para que se dar ao incómodo de inquirir a esse respeito?
está falando à nossa. Entretanto, tal como o capítulo Desse modo, acontece que as próprias concepções do pre-
precedente deixou claro, não há dúvida com respeito a gador tomam precedência às palavras da Escritura em
onde começa o processo de compreensão. Principia com si e a própria afirmação do significado ilimitado da Bíblia
o significado do texto em seu cenário original. O sen- passa a ser uma negação da mesma. Talvez nenhum
40 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 41

de nós chegaria a se expressar como aquele pregador que ser aumentadas). Caso o pregador não conheça as lín-
disse: "Não sou matemático, nem biologista, nem tam- guas originais, é mister que dependa inteiramente de
pouco gramático, mas quando se trata de manejar a outros, tanto para a determinação do texto correto como
Bíblia eu derrubo verbos, quebro preposições e pulo por para a sua tradução. Contudo, para esse pregador, ricos
sobre adjetivos." Não é sem frequência, porém, que agi- recursos também estão disponíveis, com o grande nú-
mos com igual arrogância, passando, sem consideração mero de excelentes traduções modernas, sendo que ao
nenhuma por sobre o significado claramente planejado fazer um acomparação das mesmas, êle estabeleceria,
do texto, a fim de estabelecer o nosso próprio ponto. com vantagem, tanto um texto de maior autoridade como
Quando se pensa a este respeito, é de se espantar que uma versão mais acurada para sua língua.
alguém possa fazer isso sob a impressão de que, despre- Quando alguém traduz um texto ou se decide com
zando o significado original das palavras da Escritura, respeito à tradução feita por outra pessoa, começou já
de certo modo está exaltando a Palavra de Deus. Se a interpretar. Na verdade a tradução dificilmente po-
esta fosse falada por meio de um evento ou desenvolvi- derá vir a ser certa e definitiva até que seja completado
mento histórico, torna-se então vital reaver aquele de-
— ou pelo menos bem adiantado — o processo de inter-
senvolvimento ou evento tão completa e verdadeiramen-
pretação . Muitas e muitas vezes não é simples nem tam-
te como pudermos. Daí a importância do trabalho do
pouco fácil esse processo de descobrir o que o texto signi-
sábio bíblico. Daí também a importância do pregador
ficava em sua origem. É mister que se conheça tão bem
começar a empregar determinado texto com uma com-
quanto possível o livro bíblico do qual é extraído o texto
preensão tão clara quanto possível do seu significado
original. — a situação histórica e cultural que é refletida no mes-
mo e para a qual é dirigida; seu propósito geral e o curso
Não é necessário que se diga aqui muita coisa a res- geral de seu argumento; e a relação do texto com esse
peito do método para conseguirmos essa compreensão. argumento e propósito. É preciso que, tanto quanto
O terreno já foi palmilhado muitas vezes e é conhecido. possível, o texto seja visto em sua composição imediata
Está claro que é mister que se conheça, se possível, o que e total. É necessário colocar-se de modo inteligente no
o texto realmente afirma — querendo isto dizer que lugar do escritor e compreendê-lo à luz daquilo que se
dever-se-ia conhecer o texto grego ou hebraico. Se o conhece acerca dele — suas circunstâncias, suas expe-
manuscrito ou outra antiga evidência torna incerto o riências, suas ideias e suas responsabilidades. É preciso
fraseado exato, o pregador deveria estar preparado para que se entre, de modo imaginário, na situação dos pri-
considerar as várias possibilidades e chegar a uma con- meiros leitores, sentindo tão concretamente como possí-
clusão inteligente quanto à forma apropriada do texto. vel os interesses e necessidades dos mesmos. Uma vez
É preciso, então, que êle traduza o texto utilizando-se mais podemos lembrar-nos que o moderno conhecimen-
dos muitos recursos que o conhecimento moderno põe to bíblico tem ricas capacidades para nos ajudar a con-
à disposição — dicionários, gramáticas, concordâncias, seguir esse tipo de compreensão histórica.
comentários — de acordo com o limite de suas capacida- Assim, o conhecimento adquirido pelo pregador nem
des (e com prática e disciplina essas capacidades podem sempre precisa ser narrado minuciosamente à con-
42 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 43

gregação durante o seu sermão. Um sermão bíblico não texto, esse tipo de problema não surgirá. Se o texto fôr
é preleção sobre a Bíblia — mesmo que seja preleção uma parte vital da Escritura e, portanto, realmente valha
cheia de humor, como alguns dos sermões de Patton que a pena ser pregado, sendo constatado o que, na reali-
dariam essa impressão, ou mesmo uma preleção mais dade, significa em seu contexto bíblico e histórico, de
séria. É verdade que os sermões deveriam ser mais re- modo geral o pregador sentir-se-á movido a pregar esse
veladores quanto à Bíblia em si e os problemas literários significado. O sermão será um esforço de transmitir e
e históricos que a mesma apresenta, do que grande parte aplicar o sentido original do texto e não haverá dúvida
das vezes dão mostras de ser. Um pregador interessado quanto à "partida" do mesmo. O próprio entendimento
em levantar o nível geral do conhecimento da Bíblia que que alguém tenha do significado do texto original, tal
sua congregação tem, sempre encontrará meios de com- como vimos no capítulo anterior, envolve um sentido
partilhar diretamente com ela os resultados mais im- vivo de sua importância presente e o impulso completo
portantes de seus próprios estudos. E Patton tem toda para usar o texto na pregação provém dessa compreen-
a razão ao afirmar que as pessoas estão mais preparadas são . Em tais casos, o conhecimento do que o texto disse
para receber informações do que muitas vezes damos cré- à sua geração é o conhecimento do que tem a dizer à
dito a elas com relação a isso. Ainda assim, pelo menos no nossa — e o pregador estará interessado em apresentar
que diz respeito ao sermão, a indicação de uma simples e aplicar de novo e de modo preciso aquele significado,
informação será um interesse subordinado e incidental. e nenhum outro. Se a grande maioria de nossos sermões
Porém, isso não quer dizer que a própria posse do conhe- não estão relacionados aos textos dos mesmos, desse modo
cimento disponível e relevante tanto literário como his- direto e imediato, temos boa razão para suspeitar da so-
tórico seja subordinado e incidental enquanto êle se pre- lidez de nossos métodos de pregação.
para para pregar sobre certo trecho em qualquer sentido Quando falamos do "sentido original" de uma pas-
ou grau. Esse conhecimento é indispensável. Por mais sagem ou de seu significado em seu "contexto original",
que existam modos legítimos ou ilegítimos de se empre- deveríamos ter em mente não apenas as suas re-
gar um texto na pregação, não pode haver a utilização lações lógicas dentro da sentença, parágrafo, capítulo ou
apropriada de um texto que não comece por uma com- livro em que seja encontrado, mas também algo muito
preensão verdadeira, tanto quanto possível, de seu sen- mais rico e muito mais significativo. O "contexto ori-
tido original ou histórico. ginal" não é mera forma de palavras, mas sim a vida
Mas, legitimamente falando, que tem a ver o sermão real da antiga comunidade religiosa em que primeira-
com o texto? Quais os usos apropriados que podem ser mente o texto foi ouvido e conservado. Posso imaginar,
feitos dele? Que "partidas" podem ser permitidas do por exemplo, três tipos de sermões acerca da conhecida
mesmo? Numa só palavra, que resposta ou respostas história de Bartimeu no Evangelho, o mendigo cego que
podem ser dadas às questões que foram apresentadas no exclamou, quando Jesus passava, "Jesus, Filho de Davi,
início deste capítulo? tem compaixão de mim!" (Mc 10.46) e a quem Jesus
Geralmente constatamos que, se alguém principiar curou com uma só palavra. Um sermão encontrará
com um reconhecimento claro do sentido original do nesse incidente a prova de que Jesus era o Messias — êle

mio nnur.ftnni&
44 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 45

foi chamado "Filho de Davi" e demonstrou que merecia camente autêntica. Esse é o tipo de significado que o
esse título através de seu ato miraculoso. O propósito texto possuía desde o princípio. Em vista de responder
do sermão será o despertamento ou a confirmação da desse modo às realidades da vida da Igreja primitiva é
crença de que verdadeiramente Jesus era o Cristo. O que se tornou uma parte de sua pregação e mais tarde
segundo sermão porá ênfase na compaixão humana de foi incorporado no Evangelho. Esse uso do texto não é
Jesus. Jesus está passando, preocupado com outras uma alegorização imaginativa. Descansa sobre o único
questões, quando ouve o clamor do mendigo. Êle pára, tipo adequado de exegese. Isso porque se não escutarmos
pergunta o que o homem deseja e bondosamente vai de esses textos como se fossem falados a nós, não os ouvi-
encontro à necessidade dele . O propósito do sermão mos como o foram na Igreja primitiva e, portanto, não
os ouvimos em seu contexto verdadeiro e original.
será o de animar semelhante sensibilidade, cortezia e
generosidade. O primeiro desses dois sermões pode con- Incidentalmente, pode-se assinalar que o reconheci-
siderar-se mais fiel ao texto, sendo, mesmo assim, inapli- mento do fato do terceiro sermão ser o único verdadeiro
cável e, portanto, por mais verdadeiro que seja, não é sobre o texto, ajuda a resolver o problema com que a crí-
um sermão verdadeiro. Ninguém pode ser convencido tica histórica e literária da Bíblia parece, por vezes, con-
de que Jesus era o Cristo, por um simples incidente do frontar o pregador. Uma vez constatado que o signifi-
passado. Uma convicção intelectual baseada em fato cado autêntico do texto é o sentido que possuía — e ainda
passado dessa espécie não teria significação alguma. O possui — no contexto da vida da Igreja, tornaram-se
segundo sermão talvez poderia fazer melhor reinvidica- grandemente irrelevantes as indagações relativas a
ção quanto à relevância; mas certamente que o uso tão quem primeiro o pronunciou ou escreveu, ou acerca de
superficial de um texto não pode ser autêntico. Não sua proximidade com algum incidente ou fato real. A
foi por causa dessa espécie de significado encontrado verdade do texto depende inteiramente da autenticidade
nela que a história chegou a ser relembrada e finalmente com que é estabelecido o significado do evento histórico,
tal como este era conhecido dentro da Igreja primitiva e
registrada no Evangelho.
como agora é conhecido ou pode ser conhecido dentro da
No entanto, o terceiro sermão não tratará o inci-
vida da comunidade histórica ininterrupta. ( ) 6

dente como um evento passado do qual podemos extrair


lições verdadeiras ou úteis — quer sejam doutrinárias Algumas vezes, porém, verificaremos e também se-
ou éticas — mas como um acontecimento em nossa pró- remos movidos a pregar sobre significados de textos, dos
pria história. Somos como o cego Bartimeu. Cristo T I O S quais há boa razão para duvidarmos, sobre o que os es-
pergunta: "Que queres que eu te faça?" Somos nós quem critores originais pretendiam ou o que os primeiros leito-
respondemos, ou deveríamos responder: "Mestre, que res reconheciam. Nesse caso, a questão de fidelidade está
eu torne a ver." E, na medida de nossa fé, somos tira- em sabermos se os significados estão realmente implíci-
dos das trevas para a sua maravilhosa luz. É óbvio que tos no texto, se são vistos erroneamente ou se são fran-
somente quando o texto é compreendido desse modo camente introduzidos nele. Se o significado do sermão
chega a ser profundamente aplicável. Mas é bem ver- não fôr encontrado — quer seja consciente ou implicita-
dade também que só uma compreensão dessas é històri- mente — o uso do texto é ilegítimo, não importando
40 jOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 47

quãolnteligentemente o ministro faça com que as meras ma capacidade ou aplicação do texto e que o escritor ori-
palavras do mesmo sirvam para seu propósito. Muitas ginal dificilmente teria estado a par.
vezes são flagrantes e inequívocas nossas violações desse Semelhantemente, um incidente na narrativa bíbli-
princípio de justeza. Ninguém duvidará, por exem- ca pode ilustrar alguma verdade universal ou eterna
plo, que esteja implícito na pergunta de Faraó a Jacó: acerca de Deus, do homem, do dever ou da salvação, sen-
"Quantos são os dias dos anos da tua vida?" um sermão do que todos quanto a registraram — sem falar daque-
sobre as dimensões da vida, qualquer que seja o seu sen- les que originalmente testemunharam dele — nunca
tido ou grau. Mas não raras vezes a questão de fidelidade chegaram a pensar. Quando, na crucificação de Jesus
é muito mais difícil de responder e grandes exigências entre dois ladrões. Reinhold Niebuhr vê uma exemplifi-
são feitas com respeito a nossos poderes de honesta dis- cação da verdade de que a sociedade convencional tende
criminação. Ainda assim, o princípio permanece, por a tratar seus criminosos e santos de modo idêntico, não
mais difícil que seja a aplicação em determinados casos. está empregando mal o seu texto, embora seja quase
Não se pode honestamente dar a aparência de que se certo que êle esteja estabelecendo um ponto que os obser-
vadores da crucificação, nem tampouco os escritores do
extrai de um texto o que não há nele. Tampouco não é
Evangelho jamais tivessem pensado. Ainda assim o
direito ou prudente basear um sermão sobre algum texto
ponto é verdadeiro, repetidamente ilustrado, tanto na
que não possa suportá-lo com firmeza.
história como na vida comum e estabelecido de modo
Entretanto, é preciso que se reconheça a realidade
supremo nas circunstâncias da morte de Jesus para que
— e muitas vezes a rica variedade — de significados me- o vejam todos quantos têm olhos. Não é introduzida:
ramente implícitos. O significado completo de uma afir- encontra-se lá. Do mesmo modo, poder-se-á ver na res-
mação qualquer é conscientemente apreendida por aque- posta de Jesus a Marta, quando ela solicitou que êle cha-
les que primeiro a ouvem ou até mesmo por aqueles que masse a atenção de sua irmã, ou na resposta do Mestre
a pronunciam pela primeira vez. O grande pensador ou ao homem anónimo que se queixava contra seu irmão
poeta está sempre expressando mais do que tem cons- com respeito a uma herança — isto é, em ambos os casos
ciência de ter dito, e o grande arquiteto está sempre poder-se-á ver na resposta de Jesus um lembrete de que,
edificando mais sabiamente do que imagina. As pala- quando permanecemos diante de Deus estamos sempre
vras do profeta hebraico, do salmista, de Paulo, de João na posição de acusados e nunca de acusadores. Deus
ou até mesmo do próprio Jesus (na realidade, principal- não ouve nossas queixas contra outros; antes, êle per-
mente dele) são mais fecundas além do próprio conhe- gunta — "E tu? Olha para ti mesmo!" Tal significado
cimento deles e são verídicas em sentidos que seus ouvin- pode ou não ter sido visto nesses incidentes pelo escritor
tes jamais poderiam ter sonhado. Por vezes, qualquer do Evangelho que os registrou, mas lá está.
acontecimento ou desenvolvimento nos tempos modernos
não só ilustrará de novo ou confirmará um antigo texto, Em outras palavras, um sermão não "parte" de seu
mas também revelará plenamente novas dimensões de texto quando encontra um novo significado nele. O uso
significado dentro do mesmo. Ocasionalmente, até mes- autêntico dum texto não precisa ser "insípido"; a utili-
mo alguma experiência pessoal de alguém revelará algu- zação imaginativa não é necessariamente extravagante
48 JOHN KNOX

e falsa. Na verdade, se nosso uso de certo texto fôr real-


mente sem imaginação e enfadonho, não pode ser autên-
tico . Não se pode estabelecer regras rígidas de fidelidade
nesse domínio. Só se pode confiar na inteligência, inte-
gridade, bom gosto e só isso é que satisfaz — contanto
que o pregador sempre comece por uma compreensão tão CAPÍTULO IV

clara quanto possível do significado original. Sem essa


compreensão êle se encontra sem leme ou compasso para PREGAÇÃO É ENSINO
empregar a Escritura, por mais inteligente, honesto ou
sensível que seja. Com isso êle achará difícil extra- Já vimos que a palavra "pregação" é derivada do
viar-se demasiadamente. latim praedicatio, que por seu turno traduz o grego
kerygma, palavra esta que, em seu sentido mais geral,
significa a proclamação de um fato ou de um aconte-
cimento. É usada regularmente no Novo Testamento
para descrever a mensagem e (em sua forma verbal) a
atividade dos evangelistas Cristãos, os quais tinham
"boas novas" supremas para contar, boas novas de que,
em Cristo, Deus visitou e redimiu o seu povo e que a sal-
vação estava sendo oferecida gratuitamente a todos
quantos se arrependessem e pusessem sua confiança nele.
Os pregadores eram os arautos do reino de Deus. Anun-
ciavam o fato da obra bondosa de Deus em Cristo e cha-
mavam seus ouvintes para reagirem de modo apropriado
em penitência e fé. Eram, como temos visto, os prega-
dores do Evangelho.

Em nossas mentes, a palavra "evangelho" primeira-


mente está associada aos livros no começo do Novo
Testamento; esse, porém, é um uso derivado e não pri-
mário do termo. Nenhum dos Evangelhos foi original-
mente chamado por esse nome, nem tampouco, na reali-
dade, essa palavra foi muitas vezes empregada nesses
livros. Lucas emprega frequentemente a forma verbal
correlata que significa "proclamar boas notícias", porém
o substantivo "evangelho" não é encontrado em Lucas
ou João e aparece onze vezes apenas conjuntamente em
50 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO
51

Marcos e Mateus. Aparece duas vezes em Atos, uma vez tinção entre pregação e ensino feita na Igreja primitiva.
em I Pedro, uma vez no Apocalipse e em nenhum outro Ensino (didachê), justamente com exortação (paraklê-
lugar do Novo Testamento, exceto nas epístolas Pauli- sis), em sua maior parte era uma instrução ética e apelo
nas — onde é encontrado umas sessenta vezes! Paulo, endereçado a pessoas já estabelecidas na fé. Pregação
que pode ser suspeito de ter realmente cunhado essa (kerygma) era primariamente dirigida a não-Cristãos.
palavra em seu sentido Cristão, certamente não estava Era proclamação e não instrução ou exortação. Não
pensando num livro quando a empregou. Pensava, sim, pode haver dúvida quanto à solidez dessa distinção —
no conteúdo da pregação Cristã. Não sabemos ao certo tudo quanto tem sido dito relativamente ao significado
como o termo chegou a designar um livro ou um cânon da palavra "pregação" indicará outro tanto. Contudo,
de livros. Talvez isso tenha acontecido sob a influência indago se a distinção entre "pregação" e "ensino" era
do primeiro versículo de Marcos, "O princípio do evan- tão pronunciada como Dodd dá a entender e, mais par-
gelho de Jesus Cristo", uma frase encontrada na sen- ticularmente, se as funções do pregador e do professor
tença introdutória, tornando-se assim o título do livro eram, na realidade, tão separadas na vida da comuni-
e daí o título de outros livros do mesmo tipo. Pode ser dade primitiva.
que isso tenha ocorrido sob a influência de Márcion, o
primeiro a canonizar qualquer um de nossos livros do Estudantes da Igreja primitiva estão acostumados
Novo Testamento e cujas escrituras continham, entre a falar (como, por exemplo, em discussões das origens
outros, um documento bem parecido com o nosso Lucas, e desenvolvimento da tradição do Evangelho) dos "pri-
mas chamado por Márcion simplesmente de "o evange- meiros pregadores e professores Cristãos." Será que
lho" (sem dúvida nenhuma corresponde à "lei" no cânon eles querem com isso dizer duas classes de pessoas, ou
judaico, que êle rejeitara). Como apoio a essa explica- estão eles se referindo a dois tipos de atividades que as
ção, pode ser citado o fato de que, quando os outros Evan- mesmas pessoas poderiam exercer? Seja o que fôr que
gelhos chegaram a ser estabelecidos como canónicos, não signifiquem, é muitíssimo difícil que duas classes sepa-
eram denominados. "Evangelhos" de Marcos, Mateus, radas de funcionários existissem, de fato, e uma per-
Lucas e João. A forma no singular sugere o significado gunta pode ser feita de modo apropriado com respeito
original da palavra "evangelho" — não um livro, mas a quão pronunciadamente as duas funções seriam dis-
uma mensagem, que poderia ser apresentada de for- tintas uma da outra. Não se poderia proclamar as boas
ma diversa por diferentes autores, mas que em si era novas de Cristo sem procurar, ao mesmo tempo, explicar
necessariamente singular e única. No princípio de tudo o seu significado e fundamentar o mesmo com argumen-
não havia tais documentos como os nossos evangelhos. tos e exemplos, sem esquematizar algumas de suas im-
O "Evangelho" da ação salvífica de Deus em Cristo pri- plicações éticas. E não se poderia, à maneira do profes-
meiramente não foi uma história escrita num livro, mas sor, interpretar o significado da vida Cristã em si, sem
uma proclamação nos lábios dos pregadores primitivos. trazer constantemente à lembrança de seus próprios
ouvintes, o acontecimento de Cristo. Embora o verbo
C. H. Dodd principia seu pequeno opúsculo The "pregar" na mais das vezes tenha como seu objeto
um termo como "o evangelho" ou "o reino de Deus",
Apostolic Preaching ( ) chamando a atenção para a dis-
7
52 JOHN KNOX
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 53
Paulo pode (em Rm 2.21) falar em "pregar que não se
autorizado visitante estivesse presente? Fazer uma per-
deve furtar." E, embora aparentemente verdadeiro que
gunta dessas é quase respondê-la. Cada congregação
"ensino" fosse geralmente endereçado âos crentes, lemos
Cristã, estabelecida num vasto ambiente pagão, era cons-
(em At 13.12) que o procônsul pagão Sérgio Paulo
ciente de uma constante oportunidade e tarefa evange-
(."creu maravilhado com a doutrina (ou ensino) do Se-
lística. Mas ainda mais importante que isso é o fato
nhor." Na realidade, há muitas indicações que "ensino"
de que as "boas novas" precisam ser, e podem ser, re-
era um termo vasto que podia incluir a proclamação vistas continuamente. O evento de Cristo precisa ser
dos fatos do Evangelho bem como instrução ética e continuamente declarado — tanto na assembleia dos
advertência. santos como na dos descrentes. Aquilo que Dodd deno-
De fato, a distinção entre os ministros Cristãos mina pregação apostólica teria lugar em toda e qualquer
primitivos que é mais frequente no Novo Testamento, igreja local, dia após dia, semana após semana. Entre-
não é entre "professores" e "pregadores", mas sim entre tanto, não ouvimos falar de "pregadores" em conexão
"professores" e "profetas". Paulo, na lista, primitiva que a isso. A pregação era feita pelos "profetas" e "profes-
possuimos das funções da Igreja e dos funcionários sores". Que podemos saber acerca desses ministros da
(1 Co 12.28), fala inicialmente de "apóstolos", "profe- Igreja primitiva?
tas", "professores", nessa ordem. É quase certo que os
"apóstolos" são o grupo limitado dos líderes de autori- Os "profetas" certamente devem ser vistos contra
dade em toda a Igreja — aqueles a quem, assim se cria o cenário de fundo da profecia hebraica. Os profetas
— o próprio Jesus, imediatamente depois de sua ressur- aparecem claramente em Israel nos primórdios, tão cedo
reição, havia comissionado como seus representantes e como do início da monarquia, porém suas origens são
os enviara para proclamar o Evangelho e estabelecer muito mais antigas. Eram "homens de Deus", identi-
Igrejas. Com eles outros evangelistas foram associados, ficados como tais por um dom pessoal notável. Essas
os quais serviam sob as ordens dos primeiros ou que os pessoas são encontradas em toda a comunidade primi-
acompanhavam em suas viagens — homens como Tito, tiva. Estão de modo especial sujeitos a transe e êxtase
Timóteo, Barnabé, Marcos — e estes também, em certas e sentem serem possuídos pelo mana divino, o Deus mis-
ocasiões, podiam, talvez, ser chamados "apóstolos". En- terioso. São "inspirados". Alguns dos mais antigos pro-
tretanto, de qualquer modo que sejam definidos, os fetas foram homens de inteligência fora do comum e de
"apóstolos" pertenciam à Igreja como um todo, e não poder moral, tais como Samuel e Elias. Alguns deles
às congregações locais. Os ministros locais principais
eram dervixes errantes. Amós, Oséias, Isaías, Miquéias
são os "profetas" e os "professores". É claro que a pre-
e outros como eles também foram profetas. Esses ho-
gação será uma das funções mais importantes do após-
mens de dons pessoais e intelectuais bem extraordinários
tolo — êle é o evangelista por excelência — mas será que
tiveram cuidado para se distinguirem do tipo comum:
devemos supor que também não houvesse evangelistas
"Eu não sou profeta, nem filho de profeta" (7.14), afir-
nas Igrejas locais? Será que o Evangelho seria procla-
ma Amós. Eles, porém, tinham isto em comum com
mado naquele lugar tão somente quando um apóstolo
outros profetas — e é a coisa essencial — a de que se
JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO
54
ss
julgavam (ou eram julgados) como que em contínua nome de profecia. Essa designação foi reservada para
e íntima relação com Deus, recebendo a palavra direta- o discurso inteligente que provasse seu valor pela edifi-
rnente dele e também a capacidade extraordinária de cação da congregação. "Quem fala em outra língua, não
comunicar em um sentido da realidade e do poder teme- fala a homens, senão a Deus, visto que ninguém o en-
roso do divino. tende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profe-
Tudo nos faz crer que homens e mulheres dessa es- tiza, fala aos homens, edificando, exortando e consolan-
pécie foram os profetas da Igreja primitiva. Sem dúvi- do" (1 Co 14.2-3).
da nenhuma alguns deles eram o tipo do dervixe pri- Como, então, os profetas diferiam dos profes-
mitivo, e alguns desses eram imitações conscientes ou sores? Eu não creio que as duas classes fossem comple-
inconscientes. Luciano, um escritor pagão do segundo tamente distintas uma da outra na Igreja primitiva, ou
século, escreveu uma sátira divertida a respeito de um que qualquer separação clara, até de função, existisse
deles, um homem chamado Peregrinus que alcançou su- entre elas. ( ) O termo "professor" designava a catego-
8

cesso explorando caridade e credulidade dos Cristãos. O ria mais extensa, mais geral. Os profetas eram todos
escritor do Didaquê, um manual primitivo da ordem da professores, porém nem todos os professores eram pro-
Igreja, chama a atenção das congregações para essas fetas — tal como os apóstolos todos podem ter sido pro-
pessoas. As indicações dadas para experimentar os fetas, porém todos os profetas não foram apóstolos. Os
"profetas" são simples, mas perspicazes. Se um profeta profetas eram professores com um tipo especial de ins-
piração, homens e mulheres dotados de maneira caracte-
visitante pedir hospitalidade, deve ter permissão de ficar,
rística com um poder misterioso de comunicar a presença
"não mais do que um dia ou, sendo necessário, dois; se,
de Deus. O profeta ficava, de modo todo especial, pos-
ção pessoalmente participará da mesma; se o fizer, é um
suído pelo Espírito e era capaz de "ensinar" com um
falso profeta... Nenhum profeta que pedir uma refei-
poder também especial, despertando emoções e movendo
ção pessoalmente participará da mesma; se o fizer, é um
a consciência tão bem quanto iluminando a mente. Não
falso profeta... Se pessoalmente pedir dinheiro ou qual-
se deve supor que o "professor" não tivesse esses dons
quer outra coisa, não se deve ouvi-lo." O escritor resu- "pneumáticos"; êle também era inspirado "pelo mesmo
me: "Nem todo aquele que fala pessoalmente é profeta; é Espírito" (1 Co 12.4-11). Entretanto, era menos rica-
profeta só se tiver o comportamento do Senhor." Mas mente dotado com respeito a isso, embora em outros
não pode haver dúvida de que a maioria dos profetas aspectos (tal como, por exemplo, na capacidade de expli-
provaram ser verdadeiros. car de maneira coerente e com persuasão racional) pu-
O comportamento não era a única prova; o verda- desse — em determinado caso — ter sido mais dotado
deiro profeta deveria "ensinar a verdade." Suas palavras do que muitos dos profetas. Ainda assim, tal como os
edificarão a Igreja. Paulo também estabelece esse ponto profetas, com uma autoridade mais vasta e mais elevada
ao falar da mais extrema das formas de êxtase em Co- na Igreja, eram "apóstolos", também os professores
rinto, aqueles que falam em línguas estranhas. Embora mais inspirados eram "profetas". Nada há para
não coubesse a êle inquirir acerca da genuinidade e indicar que os vários grupos tivessem coisas dife-
valor desse tipo de falar extásico, não deu ao mesmo o
56 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 57

rentes a dizer — todos estavam preocupados com o a criatura humana. E o critério de seu sucesso é a edi-
"evangelho", a "pregação", e todos sentiam a responsa- ficação da Igreja, tanto em número como na compreen-
bilidade de iluminar as mentes e consciências de seus são e devoção.
ouvintes. Todos tinham responsabilidades, tanto evan- Não raras vezes os termos "ministério de ensino" ou
gelísticas como pastorais. Os apóstolos eram professo- "sermão de ensino" têm sido usados entre nós num sen-
res bem como pregadores, e os profetas e professores tido restrito, se não um tanto depreciativo. Pregação é
locais todos eram pregadores assim como professores. algo mais do que isso — ou mesmo outra coisa — que
Pelo menos os apóstolos e profetas tiveram outras ta- ensino, segundo se supõe. Precisamos compreender que,
refas. Assim é que os apóstolos tinham responsabilida- a não ser que pregação seja ensino, não é pregação.
des administrativas importantes e os profetas aparente- Para estar certo, pregação é o ensino altamente distinto
mente eram responsáveis, de modo geral, pela conduta por causa do caráter e significado de seu conteúdo, por
do culto normal da congregação. Esse o significado de causa de sua determinação no culto, por causa da inter-
tais termos na Igreja primitiva. -relação pessoal que o pregador mantém com sua men-
sagem, e porque êle está se dirigindo, não somente as
O ministro moderno, tal como o antigo bispo, com- mentes de seus ouvintes, mas também à sua vontade —
bina as funções de todos os três tipos primitivos, tanto a eles verdadeiramente como pessoas completas em si
quanto um homem pode fazê-lo. Êle é o pastor e o ca- mesmas. Procura não só convencê-las, mas também le-
beça administrativo da Igreja, o líder do culto, e o pre- vá-las a uma decisão. Consideraremos essas notas de
gador. Nossa preocupação com respeito a êle está na distinção nos capítulos subsequentes. O pregador, con-
última dessas três funções, e nessa capacidade êle tudo, é ainda basicamente o professor. Sua responsabi-
corresponde de modo mais íntimo com o professor. lidade primária é para com a compreensão da verdade
Sendo dotado de determinado tipo de sensibilidade
1
e o significado do Evangelho e para a comunicação dessa
e eloquência, capacitado, acima de outros professores, de verdade e significado (inclusive todas as implicações lhe
sentir e comunicar a" realidade concreta do Espírito, fi- é dado constatar) tão clara e persuasivamente quanto
cará bem próximo ao profeta primitivo quanto ao tipo possível. A não ser que o ensino seja este, é meramente
(e, na situação moderna, tanto quanto na antiga, haverá som — ou, talvez, som e fúria — por mais fervoroso ou
muitos falsos profetas, pois que há muitos tipos de espí- atraente que seja. Quando a pregação deixa de ser
ritos, tanto na atualidade como antigamente). O pre- iluminadora, não se torna "profecia", como, por vezes,
gador, no entanto, quer seja ou não profeta, será podemos supor em vão, mas "línguas" — e "línguas"
professor. A palavra "ensinar", porém, implica em uma de um tipo todo característico, irresponsável e sem
cadeia sem limites de conteúdo. No sentido antigo está sentido algum. De acordo com Paulo, os que falam
preocupada com nada menos do que a proclamação e línguas estão falando para Deus. A pregação que não
fôr iluminadora — quer seja porque é ininteligível, irre-
interpretação do Evangelho — o anúncio da ação de
levante ou trivial — não fala a Deus nem tampouco ao
Deus em Cristo e a introdução de toda a vasta riqueza
homem.
de seu significado para a história humana e para toda
58 JOHN KNOX

Já definimos o "ensino" nessa conexão de maneira


muito extensa, como estou certo de que deveríamos fa-
zê-lo; poderemos, porém, terminar esta discussão de ma-
neira apropriada, lembrando que até mesmo no sentido
mais estreito em que comumente é empregado o termo
quando falamos de "sermões de ensino" — mesmo nesse CAPÍTULO V
sentido, o ensino tem a maior importância. Ouvimos
frequentemente falar do "analfabetismo" das congrega- PREGAÇÃO É PESSOAL
ções de modo geral — homens e mulheres que são inte-
ligentes com relação a outros assuntos e que, porém, são Chegamos a constatar que toda a pregação, além de
completamente simples ou desesperançadamente confu- qualquer outra coisa, é ensino. Obviamente, porém, nem
sos em seu pensamento com respeito à Igreja e sua fé. todo o ensino — até mesmo o ensino com respeito a um
Por que é isto verdade? Sem dúvida nenhuma podem assunto religioso — é pregação. Num de nossos semi-
ser encontradas muitas causas; entretanto, não será que nários há um "sermão" especial feito anualmente por
uma das mais significativas seja a falha da pregação um sábio visitante. Há alguns anos o assunto desse
da Igreja no sentido de ser realmente educativa? Muitas sermão foi "O Texto Ocidental de Atos." Bem, nenhu-
e muitas vezes essa falha aparecerá no caráter acidental ma falta foi encontrada no pregador nessa ocasião es-
dos assuntos de pregação — o pregador sem fazer es- pecial, tendo suas próprias características tradicionais;
forço aparente para tratar de modo compreensivo du- os que dentre nós temos trabalhado com problemas de
rante um período extensivo com os temas importantes crítica textual sabemos o quão fascinante esse asunto
da fé e vida Cristãs, quer seja pela sequência ao ano pode ser. Entretanto, poder-se-ia imaginar o pastor de
litúrgico da Igreja ou de qualquer outro modo. Contudo, uma congregação anunciando esse tema para o seu ser-
a falha poderá também se manifestar no nível constan- mão de domingo de manhã? E, contudo, por vezes nós
temente elementar da pregação — os mesmos temas agimos tão erroneamente "pregando" sobre a autoria dos
sendo manipulados de modo idêntico ano após ano, o Hebreus, ou o número de Isaías, ou mesmo sobre a orga-
pregador aparentemente não tendo nenhuma expecta- nização do trabalho missionário de nossa denominação,
tiva de que sua congregação possa crescer em compreen- ou até a constituição das Nações Unidas. Sermão não é
são . Há grande sabedoria em não se dar carne a pessoas preleção, isso é bem certo. Mas em que é êle diferente? O
que, além de seu conteúdo geralmente religioso ou até
que só estão prontas para o leite; mas algo está errado
mesmo Cristão, distingue a pregação de outros tipos de
quando uma congregação fica permanentemente numa
ensino? Os capítulos restantes deste livro preocupar-
dieta de leite.
-se-ão com esta matéria. A resposta, assim o creio, está
na natureza pessoal da pregação e na relação que a mes-
Será que não precisamos confessar que o que mui- ma tem com o culto normal, de um lado, e com o Espírito
tas vezes está errado em tais casos é que o pregador mes-
e o evento de Cristo, de outro.
mo só toma leite?
A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 61
60 JOHN KNOX

graça, quão insubmissos em nossa disciplina, quão incon-


Podemos começar, então, por dar ênfase ao caráter
tidos em nossa devoção. Quero dizer ò quão genuinamen-
pessoal da pregação. O pregador é uma pessoa dirigin-
te preocupados estamos com outros, quão prontos a com-
do-se a outras pessoas. Seu discurso vai direta e imedia-
preendê-los e ajudá-los, quão pacientes com eles e quão
tamente a um grupo de ouvintes, sendo tirado da expe-
amorosos e sensíveis aos anseios mais profundos dos mes-
riência e compreensão pessoal. Qualquer professor se
mos, porque nós próprios estamos vivendo verdadeira e
dirige a um grupo de ouvintes, naturalmente, mas po-
profundamente. Ninguém dentre nós estará pronto a rei-
derá estar falando menos como uma pessoa a outras
vindicar que, nesse sentido, somos boas criaturas; entre-
pessoas do que como um especialista sobre o assunto de
tanto, travamos conhecimento com homens como esses
sua preleção a uma audiência presumivelmente interes-
e todos nós sabemos que essa bondade é a qualificação
sada em aprender mais acerca daquele assunto. O pre-
mais importante que o pregador tem mais do que qual-
gador não é um especialista em religião dando informa-
quer montante de conhecimento e eloquência que por-
ções a aprendizes interessados, mas sim alguém que
ventura possua.
está repartindo algumas de suas experiências mais ínti-
mas e profundas com outras pessoas. Pregação não é Na realidade, o conhecimento ou eloquência podem
ser, tal como a riqueza, uma armadilha para pegar e des-
discurso sobre religião; é uma pessoa religiosa falando.
truir nossas almas. É tão difícil para o assim chamado
Esse caráter pessoal da pregação é que torna tão
grande pregador entrar no reino do céu como para qual-
importante a integridade moral do pregador. Argumen-
quer outro homem ou mulher de sucesso — talvez até
ta-se muitas vezes que a validez e eficácia dos sa-
mais difícil. As tentações para o orgulho são quase que
cramentos da Igreja não são elevadas nem tampouco de-
irresistíveis, e desde que o pregador esteja numa situa-
terioradas pelo caráter moral do sacerdote que está ofi-
ção em que precise parecer humilde a fim de ter uma
ciando. Seria muito mais árduo estabelecer este ponto base socialmente aceitável para o seu orgulho, o pecado
i com respeito à pregação. O grau de nossa boa qualidade, mais grosseiro da hipocrisia é tudo, menos inescapável.
como pregadores, depende — não completamente, mas Ao homem de muitos talentos, assim como para o homem
(não cometa erro!) primariamente — no grau de nossa de grande riqueza, Jesus diz: "Se quiseres ter vida, deixa
bondade como homens. E que não haja má compreen- todo o apoio que tens em tua riqueza, renuncia a todo o
são sobre o que desejo dizer com "o grau de nossa bon- teu orgulho nela e no poder que isso te concede; vem,
dade . " Quero significar com isso o quão honestos somos, toma a tua cruz e segue-me" e, tal como o outro fêz, este
o quão íntegros e sinceros, o quão livres de orgulho, fal- muitas vezes "vai-se com tristeza", pois que a riqueza
sidade, pretensão, complacência própria ou preocupação não é apenas o nosso único bem ou aquilo que há de
com os nossos próprios problemas. Quero também dizer mais íntimo, ou mesmo aquilo em que possamos ter
com isso o quão penitentes somos, com que paixão ou de- maior orgulho. Além disso, pode-se solucionar o proble-
sejo procuramos a Deus, quão prontos estamos a nos sub- ma da riqueza — ou pelo menos escapulir dele — desem-
meter à sua vontade, quão preocupados estamos em agra- baraçando-se do mesmo; não se pode, contudo, desper-
dar-lhe, quão constantemente compreendemos nossa ne- diçar os próprios talentos. É pecado exibi-los ou expio-
cessidade de perdão, quão fielmente dependentes de sua
JOHN KNOX A INTEGRIDADE D A PREGAÇÃO 63
62

rá-los egoisticamente, porém de igual modo é pecado mos não sabem quão distantes estão de Cristo e quão
enterrá-los. frias e mortas tornaram-se as brasas que uma vez ardiam
E, naturalmente, o homem de um único talento pode sobre o altar de seus corações.
ser tão orgulhoso deste seu talento e tão egocêntrico no Como qualquer um que esteja em conexão com a
uso que fizer dele como o homem de dez talentos seja educação teológica, muitas e muitas vezes tenho tido que
dos seus. O homem rico pode estar em perigo todo tratar com um estudante que luta contra o que parece
especial de cobiça, porém os pobres não estão isentos ser um chamado para o ministério. Uma de suas queixas
disso. Ocasionalmente o homem rico não só é mero par- mais frequentes é: "Não sou suficientemente bom para
ticipante de sua abundância, mas, na realidade, consagra ser um ministro." A resposta invariável a essa queixa
a abundância em si e, por vezes, antes de dar todo o seu é: "Mas ninguém é ou pode ser. Na verdade, a pessoa
sustento, a viúva pobre junta as suas duas moedas. Pode que mais clara e certamente seja imprópria para o mi-
ser certo que "todo o poder corrompe", porém não é ne- nistério seria aquela que pensasse ser suficientemente
boa para isso." Sem dúvida nenhuma, isso é a verdade
cessário que se possua riqueza para ser corrompido pela
em toda sua clareza e, no entanto, é algo de sólido o senti-
mesma; basta ser somente ambicioso, invejar de outros
mento instintivo do estudante quanto a uma conexão es-
a posse de bens. Cobiça significa ambição, inveja, e o
pecial entre a bondade espiritual e o trabalho do ministé-
orgulho tanto pode torcer como destruir a alma humana
rio. Com toda a certeza, o estudante de medicina é menos
com poucos dons, tanto como a do homem com muitos
propenso a dizer: "Não sou bastante bom para ser mé-
talentos. Não há pregador tão verdadeiro e tão honesto
dico"; ou o estudante de direito: "Sou moralmente inca-
que não sinta frequentemente como Paulo, o temor de- paz de ser advogado." Na realidade, seria difícil — e uma
sesperado: "ai de mim se não pregar o Evangelho." presunção intolerável — estabelecer como que uma
Esse é um temor saudável e muito realístico, de modo prova moral adequada para o candidato ao ministério,
especial, quando nos tornamos mais velhos e os músculos pois que o tipo de bondade que estamos abordando não
de nossa disciplina tenderem a se enrijar e os pulsos pode ser medido em termos legais. Entretanto, há pro-
de nossa devoção baterem mais vagarosamente. Quando vas de caráter que o ministro precisa enfrentar — nos
se olha para isso, de certa maneira, não será de se es- lugares secretos de seu coração, se não fôr em outra
tranhar que por menor prospecto que tenhamos de des- parte qualquer — e o verdadeiro sucesso de seu minis-
frutar deste mundo, de algum modo, mais precioso se tério está, em primeiro lugar, nesse encontro que tiver
torna para nós? Parece mais fácil ao jovem entregar com eles.
tudo do que ao ancião entregar o pouco que lhe resta.
Isto é tão verdadeiro com ministros como para outros. Quando me recordo dos homens que mais me têm
Demas não foi o último ministro a abandonar o seu ajudado no ministério, não penso naqueles que são bem
chamado, "tendo amado este mundo presente." A dotados, mas sim nos que são bons. Alguns dentre os
"deserção" não precisa ser aberta e, geralmente falando, bons também eram dotados, mas o pensar em seus ta-
não o é. A grande maioria dos Demas prosseguem com lentos é um fato quase que incidental. Quer tenha co-
nhecido os mesmos, recentemente ou há anos, lembro-me
as atividades de sua profissão e provavelmente eles mes-
64 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 65

de modo particular o que eles foram e não o que disse- portante e, muitas vezes, negligenciada), mas também
ram. Tanto no púlpito, como fora dele, o que, na rea- a composição mais ou menos detalhada do que se deseja
lidade deram a mim, foi o que tinham de si mesmos. dizer em cada ocasião particular. Na verdade, não tería-
Esse caráter essencialmente pessoal da pregação mos a confessar que uma das razões pelas quais nossa
pesa com a mesma importância no que diz respeito à pregação não seja mais eficaz é porque não damos aten-
preparação do pregador para pregar. A resposta à pro- ção suficiente e séria para a preparação de nossas mensa-
vocante decisão de, se é melhor alguém escrever os seus gens. Todos nós reconhecemos que esta não é a causa
próprios sermões ou dizê-los sem anotações, ao acaso, mais profunda da derrota e que essa não seria, de forma
está nesse ponto. O método que determinado pregador alguma, uma causa, se não houvesse outras mais profun-
adota não tem, realmente, importância, enquanto não das. Quero dizer que, se estivéssemos certos com res-
fôr violada a natureza da pregação como comunicação peito à substância de nossa pregação, não precisaríamos
pessoal, querendo isso dizer, enquanto o sentido de con- ficar tremendamente perturbados com sua forma e seu
tato pessoal entre pregador e ouvintes fôr mantido entre estilo. Poderia bem ser que não falássemos de acordo
ambas as partes. O pregador bem sucedido que escreva com os modelos mais aprovados da arte de homilética,
seus sermões é capaz, enquanto escreve, de se colocar porém falaríamos de modo suficientemente eficiente.
a si mesmo através da imaginação, na presença de sua Paulo nos diz que não sabia muito acerca das regras de
congregação e na situação do culto, pondo deste modo oratória, e que muitos o encaravam como um pregador
no manuscrito, o que, na realidade, êle se sentir movido pretencioso; no entanto, quem pode duvidar da efi-
a dizer quando fôr o momento dele falar. No entanto, ciência de Paulo como pregador do Evangelho? Ainda
o sermão formal — quer seja ou não escrito — poderá, assim, mesmo que Paulo não tenha sido um mestre de
na verdade, separar o pregador de sua congregação, tor- estilo, não há dúvida alguma que dispendeu muito tempo
nando-se mais uma barreira do que um meio de comu- pensando arduamente no que diria em sua pregação e
nicação. Ao ouvir determinado pregador, muitas vezes, que muitas e muitas vezes, deu séria atenção ao modo
certamente, você pensou: "Se tão somente êle jogasse pelo qual pregaria. Certamente tudo isso é verdade se êle
fora esse sermão e falasse realmente para nós, certas teve tanto cuidado com seus sermões como com suas
coisas começariam a acontecer!" epístolas.

A esta altura tratamos daquilo que talvez seja o pro- A verdade da questão é que podemos facilmente dis-
blema supremamente difícil e importante na arte ou tinguir de maneira bem clara entre substância e estilo,
técnica da pregação — isto é, o problema de como fazer quer seja na pregação ou em outro domínio análogo.
o preparo necessário, sem perder a realidade da comuni- A capacidade de pensar e sentir, bem como a habilidade
cação pessoal. Agora não haverá disputa com relação de expressão andam muito mais juntas do que muitas
à necessidade de preparação — ainda mais que a pre- vezes podemos supor. Não há dúvida alguma que isso é
paração precisa incluir não só mera leitura e reflexão certo com relação a nosso pensamento. Pensamos com
de um tipo que, geralmente falando, seja de auxílio (em- palavras. Aquele que não pode escrever ou expressar-se
bora essa espécie de preparo para a pregação seja im- claramente não tem, tampouco, o pensamento claro. O
66 ' JOHN KNOX A INTEGRIDADE D A PREGAÇÃO 67

curso de composição em inglês de que melhor me recor- menos rara — que se apoia somente em certa loquaci-
do tinha como texto um livro denominado Sentences and dade natural ou adquirida. Mas, quer seja de um tipo ou
Thinking. ( ) O livro era bom. O título era perfeito!
9 de outro, sabemos bem como não é edificante o discurso
Nossos sentimentos poderão ser tão profundos a ponto de um pregador sem preparo prévio, especialmente se
de causarem lágrimas, porém o mesmo não se pode dizer êle tiver que falar, domingo após domingo, para as mes-
das palavras. Mas quando somos assim tão inarticula- mas pessoas. Lembro-me do que meu pai contava
dos, certifiquêmo-nos que seja devido à profundidade de acerca de um pregador de seu conhecimento, que se ga-
nossos sentimentos e não devido à pobreza, inatividade bava de nunca ter preparado um sermão, mas que, quan-
e falta de cultura de nosso discurso. Afinal de contas, do chegava o momento dele falar, dizia êle que era como
os grandes poetas conseguem expressar alguns de seus se um grande funil tivesse sido colocado no alto de sua
pensamentos mais profundos. E embora se creia que até cabeça e o Senhor derramasse as palavras que devesse
mesmo eles podem dizer somente uma parcela do que falar. Meu pai prosseguiu, dizendo que tendo mais tarde
sentem, suspeita-se que podem sentir mais profunda- ouvido esse mesmo pregador, decidira que o funil deve-
mente, em parte devido a poderem dizer tanto. A ria ter sido colocado de cabeça para baixo com o peque-
maestria da técnica de expressão e capacidade para dis- no orifício para cima. Muitos pregadores são sofistica-
cernimento e verdadeira emoção vão juntas, qualquer dos demais para crerem no funil, mas na realidade
que seja a arte; e tão relacionadas estão como causa e seguem a mesma linha, sendo igualmente irresponsáveis
efeito que, muitas vezes, é impossível dizer com qual delas e ineficazes.
começa o círculo. O pregador, então, que luta para E, no entanto, quase tão ruim como a falta de pre-
adquirir um estilo adequado, quer seja escrevendo ou paro é o preparo que unicamente chama atenção para
re-escrevendo o sermão no seu escritório, ou dizendo re- esse ponto. O sermão não deve ser parecido com algo
petidamente suas sentenças e parágrafos para a floresta tremendamente elaborado para que a atenção do ouvin-
ou para o mar (tal como, assim nos é dito, fazia Demós- te seja sempre distraída daquilo que está sendo dito para
tenes) , está fazendo* algo mais do que polir a superfície o modo inteligente — ou até mesmo bonito — com que
de sua pregação; toda a sua substância, em maior ou o pregador o está dizendo. De fato, um sermão desses
menor grau, está envolvida. não aparecerá de maneira alguma, idealmente falando.
O propósito e a natureza real da pregação são malogra-
Todos nós, alguma vez, já aguentamos o pregador
dos e violados pelo sermão que atrai atenção para si mes-
que não se prepara para pregar. Pode ser que se o prega-
mo por sua habilidade, tanto como pelo sermão que cha-
dor de alguma seita "primitiva" que segue de modo muito
me atenção para si mesmo por sua má qualidade.
literal a injunção do Evangelho de que não se pode
Naturalmente é um sermão; mas, quanto menos cons-
pensar de antemão o que se deva dizer e que se deve
pícuo fôr, melhor é. Sob o aspecto humano, os elemen-
depender completamente na promessa de que o Espírito
tos essenciais na situação da pregação são o pregador
dará, tanto a mensagem como as palavras apropriadas,
e a congregação; o sermão não é um terceiro elemento,
quando a hora chegar. Ou, então, êle poderá ser uma
mas sim a ação de um dos elementos sobre o outro, ou,
espécie de pregador mais admirável — e, infelizmente,
JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 69

melhor talvez, o movimento de um dos elementos em pregar. Quanto mais êle puder antecipar aquele mo-
direção ao outro. Se o sermão aparecer em cena como mento de modo verdadeiro, fecundo e vivo, mais inten-
um elemento, de maneira tal que o pregador não esteja samente êle pode experimentá-lo de antemão e tanto
pensando na congregação e o que deseja dizer a seus mais apropriado e eficaz pode ser o seu preparo. Êle
ouvintes, mas sim no sermão que êle preparou na se- estará preparando não um sermão, mas a si próprio; ou,
mana anterior, cujas palavras estão diante dele num para talvez expressar melhor o que desejamos dizer, o
manuscrito ou mesmo foram memorizadas e, se a con- preparo de um sermão seu, na verdade, será um preparo
gregação tiver a impressão de estar ouvindo, não ao pre- de si próprio, e seu preparo próximo será, em parte,
gador, mas esse mesmo sermão — desta forma a pre- o preparo de um sermão.
gação não está sendo realizada. Sermão não é ensaio Portanto, o sermão é uma expressão humana. Não
literário; é ato oral de comunicação. E mesmo assim é o arejamento da opinião do pregador — até mesmo
precisa ser preparado cuidadosamente, não só planeja- opiniões acerca de assuntos importantes — mas a par-
do em seu esboço de linhas gerais, mas preparado até em ticipação de suas convicções mais sérias e íntimas. É
sua linguagem. Portanto, será que não se pode concor- mais do que isso; êle se atreve a crer — e, na verdade, não
dar em que o problema central na técnica de pregação pode deixar de crer — que tudo quanto declara tem
está no modo de fazer esse preparo sem prejudicar o ca- vindo a êle, para êle mesmo, como sendo a Palavra de
ráter pessoal e direto da pregação em si mesma? Deus. Desse modo, tem êle o fardo de um senso único de
Não tenho solução a propor. Na realidade, é plau- responsabilidade, elevado por um único senso de privi-
sível que o problema seja solucionado individualmente légio. "Falou o Senhor Deus, quem não profetizará?"
pelo pregador e que duas soluções dificilmente sejam (Am 3 . 8 ) . "Ai de mim se não pregar o Evangelho"
idênticas. Entretanto, o alvo preparado é bem claro; é (1 Co 9.16). De certa maneira o artista se encontra na
um homem preparado e não um sermão. O sermão pre- mesma relação com seu trabalho. Pense em Ghiberti e
cisa ser um elemento na disposição pessoal do homem as portas do batistério florentino nas quais êle trabalhou
para o momento da"pregação. Não se deve pensar que por cinquenta anos consecutivos. Aquelas portas gran-
o sermão realize o trabalho do pastor, ou que mesmo diosas não foram tanto sua obra como o foi sua vida.
seja um mero instrumento com que êle o faz. O melhor O trabalho do pregador é pessoal dessa mesma maneira
sermão é o próprio homem realizando o seu trabalho. íntima e necessária. Deu-se-lhe algo — a êle, única
O sermão é o pregador pregando — uma ação, não uma e pessoalmente — que precisa procurar declarar.
coisa. É um ato de expressão e de comunicação pessoal, Êle foi admitido "ao lugar mais secreto do tabernáculo
não um depósito de experiência e reflexão prévias. É do Altíssimo" e sabe que ouviu lá uma palavra que nin-
esse fato que torna tão difícil a pregação de um sermão guém mais ouviu em sua particularidade e concretiza-
antigo. O sermão é uma criação pessoal, íntima, perten- ção. Com respeito a esse senso especial de vocação êle
cendo essencialmente ao próprio momento da pregação. não falará muitas vezes, ou mesmo talvez nunca chegue
A antecipação do momento precisa dominar completa- a se referir. (Note a aversão com que Paulo toca nesse
mente a disposição com que o pregador se prepara para ponto em 2 Co 12). É significativo demais, sagrado de-
70 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 71

mais e íntimo demais para si mesmo. Entretanto, êle municação pessoal. Aqui o que alcança o próprio cora-
leva esse gozo e peso em seu coração e isso dá signifi- ção de um grupo pode ser simplesmente inteligível para
cado, não somente a seu ministério de pregação como um outro. O que fala decisivamente às necessidades sen-
todo, mas para toda e qualquer ocasião em que êle pregar. tidas por alguns, só servirá para confundir a outros. De
No entanto, a pregação é pessoal, não só porque modo inverso, o que é muito relevante e útil para uma
provém desse senso de vocação profundamente pessoal congregação, pode ser óbvio demais para ser interessante
e porque quando está sendo realizada o pregador é uma ou realmente de auxílio para outra. Entretanto, com
pessoa real procurando expressar o que para êle, como respeito a isso, devemos dizer que tudo quanto é falado
uma pessoa, é o mais importante e o mais profundamen- de coração — simples, direta e honestamente — com
te verdadeiro, mas também em vista de ser endereçada toda a probabilidade alcançará outros corações. Pessoas
a pessoas. De certo modo, isso não precisa ser mencio- humildes e simples podem aprender verdades tão pro-
nado, pois que a própria palavra "pessoa" implica rela- fundas quanto qualquer sábio, contanto que sejam ver-
ções com outras pessoas. Falar a outros como uma dades conhecidas concretamente através da experiên-
pessoa é, por definição, falar-lhes como pessoas. Por cia, mais do que meras abstrações — e, de qualquer modo,
algum tempo fui capelão de uma instituição educacional são estas as únicas verdades que pertencem devidamente
onde recebíamos a visita de muitos pregadores; era digno à pregação. Por outro lado, a integridade, simplicidade
de nota o número de vezes em que o pregador parecia e sinceridade não ofenderão de modo algum aos mais
estar sob a impressão de que, numa universidade, a con- iluminados, pois que, ser simples, não significa necessa-
gregação era composta de estudantes e não pessoas, riamente ser superficial ou óbvio. E uma congregação,
sendo que o sermão se tornava preleção sobre religião, ou por mais bem educada ou sofisticada que seja, será
qualquer outra coisa, menos uma proclamação do julga- melhor servida, quer ela saiba ou não (e provavelmente
mento e do amor de Deus e um convite ao arrependi- ela o saberá) com o pastor honesto, mas relativamente
mento e obediência. Em outras palavras, o pregador sem talentos, que conhece e fala às profundas necessida-
tinha a prevenção de falar como uma pessoa, de ma-
des pessoais de seus ouvintes, do que com o especialista
neira proveitosa e produtiva, devido à sua falsa suposi-
brilhante de uma simples arte, por mais inteligente que
ção de que não estávamos preparados para ouvir como
seja ou por mais engenhosamente construído e impecá-
pessoas.
vel que seja o ensaio que êle entrega como sermão, no
Isso não significa que tudo quanto foi dito provei- domingo de manhã.
tosamente para alguns, possa ser dito com igual eficácia O que estamos fazendo aqui é repetir simplesmente
a todos. É bem possível que o bom sermão que o prega- o fato de que a pregação precisa ser relevante, com a
dor visitante tivesse dado à sua própria congregação na qualificação de que por "relevância", nesse sentido, que-
semana anterior, não fosse apropriado para a capela do remos significar relevância à vida pessoal dos ouvintes
colégio, embora seja bem possível que o fosse. Mesmo de alguém. A pregação é dirigida a indivíduos e precisa
assim, divergem em diferentes ocasiões a linguagem e a ter como alvo o encontro de suas necesidades pessoais.
forma e, até certo ponto, a substância da genuína co- Esses indivíduos são, naturalmente, membros de comu-
72 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 7.;

nidades — da Igreja, da nação, da família, e assim por também à sua congregação — como se tais homens e
diante. Não se pode falar a eles sem tomar em consi- mulheres fossem mais responsáveis por aqueles males
deração a composição do grupo ou existência corporada do que êle próprio! Geralmente falando, também, êle
em que estão envolvidos. Mas é mister que se fale a eles. nada tinha a propor, quer fosse como solução para
O contexto mais vasto só preocupa se afetar a eles. Cada aquele mal em larga escala, ou como forma de vida para
ouvinte, em sua própria situação pessoal, é o foco de o indivíduo em presença do mesmo mal. E quando, de-
atenção necessário do pregador. pois de toda a sua paciência, o povo começava a ficar
Para se certificar, precisa êle estar ciente da litera- cansado de ir à Igreja para ser alimentado e, ao invés
tura contemporânea, dos desenvolvimentos científicos de pão, receber pedras (e pedras atiradas neles), deci-
contemporâneos e do pensamento contemporâneo, tanto dindo-se a querer outro pregador, o "profeta" estava
teológico como filosófico. Êle precisa compreender ao convicto de ser um mártir pela verdade, uma vítima da
reação económica e política. Na realidade, na grande
máximo o espírito de seus dias. Isso é certo, porém, só
maioria das vezes o seu sofrimento sobreveio porque ma-
porque o seu povo é afetado pessoal e individualmente
lograra em falar como pessoa para outras pessoas, fa-
por esses fatôres. São irrelevantes as citações de lite-
lhara no modo de lidar com as pessoas onde elas se en-
ratura, as alusões à tecnologia, até mesmo as discussões
contravam (para usar uma frase corrente) em termos
teológicas e, portanto, pior do que inúteis, a não ser que
de sua própria situação existencial, isto é, falhara real-
iluminem a situação pessoal do ouvinte, ajudando-o a
mente em pregar.
melhor compreender a si mesmo, a ver o seu dever mais
claramente, a conhecer de modo mais real o significado Não precisamos dizer que não se pode pregar dessa
do Evangelho e a aprender verdadeiramente o auxílio maneira sem levar em consideração os fatos económicos
que Deus lhe oferece em Cristo. Sermões "aprendidos" e políticos que condicionam a vida dos homens e também
podem ser tão ruins como os inteligentes. os fatos económicos e políticos com que eles se defron-
De igual modo, determina-se a relevância das dis- tam. Há um julgamento de Deus contra as ordens
cussões de acontecimentos atuais e fatos políticos e eco- injustas deste mundo, tão certo como contra os pecados
nómicos correntes por sua referência à vida pessoal dos individuais, sendo que, portanto, precisamos almejar por
membros da congregação. Há cerca de trinta anos, uma sociedade nova e melhor, e não pura e simplesmen-
quando eu me encontrava no seminário, constantemente te pessoas regeneradas. Entretanto, a discussão de fatos
ouvíamos que o pregador deveria ser um profeta — não sociais (ou quaisquer outros) é algo apropriado e que
no sentido daquele termo que consideramos no capítulo auxilia na pregação, somente quando serve para ilumi-
anterior, mas sim em sentido bem diverso. O "profeta" nar o estado assim como o dever de cada ouvinte. Para
era um pregador cujos sermões eram quase que inteira- cada pregador do evangelho social que é rejeitado por
sua congregação, outro pode ser encontrado e que esteja
mente descrições e denúncias dos males sociais — guerra,
tão preocupado pela justiça social e tão sincero ao
injustiça na indústria, descriminação racial e coisa se-
expressar esta sua participação em atos e palavras que
melhante. De modo geral, essas fulminações "proféti-
a congregação continua a ser leal a êle. A diferença
cas" do pregador eram dirigidas não só aos males, mas
74 JOHN KNOX

t á — nem sempre, naturalmente, mas muitas vezes —


e s

no fato que num caso os males sociais e objetivos são


tratados no verdadeiro contexto pessoal da pregação,
enquanto que no outro isso não acontece.
Não podemos nos esquecer — com o perigo de per-
dermos nossas almas — que é fácil racionalizar aqui e CAPÍTULO VI
supor que estamos sendo verdadeiros a nosso chamado
quando, na realidade, nossa atuação é tão desonesta PREGAÇÃO É CULTO
como covarde. O martírio — algo para se deplorar sem-
pre (mesmo quando é o seu próprio!) — por vezes não Não nos voltamos contra o caráter pessoal da pre-
pode ser evitado. A vida Cristã não é uma escapatória gação, mas damos a este caráter uma nova ênfase e um
da responsabilidade social; o Evangelho não é narcótico. significado ainda mais distinto quando reconhecemos a
O pregador que não é sensível à injustiça social, ao com- conexão íntima e necessária entre pregação e culto.
promisso dos não privilegiados, a cada exemplo de desu- Esta é uma segunda distinção entre pregação e outros
tipos de ensino religioso. Na Igreja primitiva os profetas
manidade do homem para com o homem, e que não tra-
e professores eram os líderes de seu culto, e isso de igual
ta realisticamente com tais condições em sua pregação,
modo é bem verdadeiro relativamente à Igreja moderna.
não é um pregador no real sentido da palavra. Sua pre-
Além do mais, comumente, desde o princípio também o
gação não é realmente importante, por mais popular
culto providenciou a situação para o pregador falar. Por
que possa ser no decorrer de determinado tempo. En-
vezes, para se certificar, o culto tem sido subordinado ao
tretanto, "realismo" nesse sentido designa um tipo de
sermão — o todo à parte — pensando-se dele como sim-
compreensão não só das condições que alguém está des- ples moldura para o discurso do pregador. Hinos, con-
crevendo, mas também das pessoas a quem se está diri- fissões, até mesmo orações foram concebidas como sim-
gindo, e, para que a discussão de alguém seja relevante, ples preparação do caminho para o sermão; dessa ma-
é mister que seja relevante a eles. neira é que se foi perdendo o senso de realidade e
Nesse sentido, como em qualquer outro, a pregação importância do culto comum. Tudo isso é de se deplorar,
é pessoal. tanto no interesse da verdadeira pregação como por
quaisquer outras razões. Mesmo assim, ainda é verdade
que o culto — nem sempre, mas muitas vezes — precisa
de um sermão tanto quanto o sermão precisa do culto.
Eles se interpretam reciprocamente. Um é mais signifi-
cativo porque o outro está presente.

Mas este não é o caminho mais certo para se des-


crever a conexão entre pregação e culto. A inter-relação
é mais íntima e profunda. A não ser que concebamos
76 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 77

a pregação como sendo em si um ato de culto, perde- ouvintes; sente-se culpado da mais grosseira irreverência
mos o que há de mais essencial nela e o que a distingue com relação ao próprio Deus. Lemos no Antigo Testa-
mais radicalmente de outras espécies de ensino, quer mento acerca da maneira meticulosa com que tanto os
religioso ou secular. A realidade do assunto não é que a sacrifícios como os sacerdotes precisavam ficar prontos
pregação seja simplesmente encaixada no contexto de para os serviços do templo. Com que cuidado ambos de-
um culto ou que seja mais eficaz quando tiver esse tipo veriam ser escolhidos e preparados! Ficamos cientes de
de moldura. Não pode ser pregação, na realidade, a não nossa liberdade diante desses regulamentos; todo o siste-
ser que seja naquele contexto. Se o contexto de culto ma de sacrifícios animais ficou abolido em Cristo, o qual,
não fôr encontrado, o verdadeiro sermão cria-o. A pre- como o grande Sumo-sacerdote, ofereceu o seu próprio
gação contribui ou providencia um meio de culto — ou sangue. Mas será que Deus é menos santo do que no pas-
de maneira nenhuma é pregação. sado, ou será que temos mais merecimento para nos apro-
Esse caráter da pregação se manifesta no período ximar-nos dele? Será que o culto público da congregação
preparatório. O sermão é uma oferta a Deus — ou antes, é ainda tão sacro, um evento tão momentoso como sem-
é o pregador oferecendo-se a si mesmo a Deus — e o pre- pre o foi? O pregador é sacerdote, assim como profeta e
paro é um ato disciplinado de devoção. Pregar é, na professor. Possui uma oferta para levar. Essa oferta não
realidade, orar com outros, levar a outros em oração; é um animal; é, em primeiro lugar, êle próprio. Êle se
preparar-se para pregar é, sem dúvida nenhuma, sob um apresenta como "sacrifício vivo." Sua oferta, tal como
aspecto importante, orar por outros e por si mesmo para o cordeiro no altar, precisa ser "santa e aceitável." Será
o bem de outros. Pergunto-me se a vida devocional par- que, então, poderá ser algo improvisado e casual? O
ticular da maioria dos pregadores não está grandemente "culto", afirmamos, tornou-se mais "espiritual". Mas
associada com a pregação deles e sua respectiva prepa- será que, por causa disso, deverá ser tomado menos a
ração. Certamente esperar-se-ia que assim não fosse. sério? E, no entanto, alguns dentre nós, habitualmente
Quando o pregador se confronta com a oportunidade de não nos achamos preparados para pregar. Tenho ouvi-
pregação é que sentirá mais agudamente a sua fraqueza, do pregadores gracejarem até com respeito à sua falta
o seu vazio, o seu pecado. É então que ver-se-á orando de preparo, tendo feito já referência ao pregador que se
com o mais profundo anseio: "Envia a tua luz e a tua gaba de sua capacidade de sair-se bem sem nenhum pre-
verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo paro. Como é que podemos ser tão grosseiramente pre-
monte" (SI 43.3). E será no decorrer de seu trabalho sunçosos Como é que nos atrevemos a tanto? Pregador
9

preparatório que êle será mais movido à adoração, à sem preparo é sacerdote infiel. E, a não ser que o pre-
gratidão e ao louvor.
paro do pregador tenha principiado, continuado e ter-
O reconhecimento que o preparo para pregar equi- minado em oração e louvor, êle não está preparado, por
vale ao preparativo de uma oferta a Deus, colocará em mais sábio, "belo" ou inteligente que seja o seu sermão
sua verdadeira perspectiva a importância desse preparo. e por mais tempo e fidelidade com que tenha labutado
Alguém que suba ao púlpito sem estar preparado não só no mesmo.
desperta um certo descontentamento por parte de seus
78 JOHN KNOX A INTEGRIDADE D A PREGAÇÃO 79

Pensemos em culto como algo que inclui várias dis- cada um desses pontos, pois que frequentemente são
posições ou movimentos — adoração e ação de graças, negligenciados.
confronto com a vontade de Deus, confissão de pecado, Notamos então, em primeiro lugar, que a fé acerca
procura de perdão e outra ajuda que precisarmos, afir- da qual o pregador fala e que êle declara, é uma fé co-
mação da fé, consagração e vida. A pregação participa mum. O pregador Cristão não é "franco atirador." É
em cada uma dessas ações. Naturalmente não quero um porta-voz para a comunidade Cristã e se encontra
dizer que cada sermão envolva todos esses movimentos em posição de grande responsabilidade com respeito à
em igual medida ou com igual clareza, ou que estejam sua tradição. Sua autoridade é a da verdade tal como
envolvidos na pregação em qualquer ordem regular, é conhecida, não simplesmente em sua própria experiên-
como pode acontecer numa liturgia. No entanto, prega- cia, mas na experiência da Igreja. Quando muito, será
ção sempre incluirá, pelo menos, todas essas disposições mero ator e de maneira nenhuma pregador, a não ser
e de tempos em tempos uma ou mais constituirão a in- que declare as suas próprias convicções pessoais; porém
tenção total e o efeito do sermão. Certamente é difícil não é um pregador Cristão a não ser que suas convicções
imaginarmos um verdadeiro sermão que não transmita pessoais sejam as de um Cristão. Além do mais, as con-
um senso da realidade, de modo bem concreto, a majes- vicções de um Cristão não são simplesmente quaisquer
tade, o mistério de Deus e o reconhecimento de nossa convicções particulares que pessoas sinceras de boa von-
dependência dele, e que não leve os ouvintes a adorá-lo tade — também membros da Igreja — tenham por acaso,
e glorificá-lo por sua bondade soberana. De semelhan- mas são as de uma comunidade histórica. A mensagem
Cristã não é apenas qualquer espécie de mensagem que
te modo, dificilmente pode ser verdadeira a pregação
o pregador individual, por mais sincero e devoto que seja,
que não confrontar os homens com a lei de Deus em
tenha vindo a aceitar. É uma mensagem confiada ao
Cristo, dirigindo-os ao arrependimento, confissão do
pregador e que êle precisa transmitir fielmente, sem ter
pecado e obediência renovada. E a natureza básica da
diminuído a outros. É uma confissão de fé da Igreja.
pregação como a proclamação do Evangelho faz com que
seja uma afirmação de fé — sendo esta a razão pela qual Essa fé não pode ser formulada rigidamente. O que
sempre andam juntos os estudos da pregação apostólica foi dito num capítulo anterior com respeito à relevância
e dos credos mais primitivos. da pregação bíblica precisa ser lembrado aqui. Pode-se
Pois bem, é muitíssimo importante reconhecer que destruir uma fé antiga pela insistência em preservá-la
a fé e a necessidade pela qual a pregação é uma confis- imutável numa nova época, tanto como procurando uma
são, são uma fé e necessidade comuns. Na confissão de completa reconstrução da mesma. A fé da Igreja, como
pecado o pregador está confessando o seu próprio pe- a própria Igreja, é algo de vivo. Não podemos recons-
cado assim como o da congregação, e na confissão de trui-la sem destrui-la; mas, por outro lado, não é possí-
fé o pregador está confessando a fé, tanto sua como da vel malograrmos em deixá-la crescer. Não podemos pôr
congregação. Nesses dois pontos êle se encontra não urna cerca a seu redor. O pregador que repete meras
acima, mas dentro da comunidade e compartilha ple- afirmações antigas, sem estar de modo algum novamete
namente com a mesma. Certa ênfase é apropriada para cônscio de sua verdade para com êle e sua geração é tão
80 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 8 1

infrutífero e tão infiel ao Evangelho como o é o pregador de perdão como qualquer um dos ouvintes. Natural-
que pensa que os termos antigos são (se porventura em- mente que esse é um terreno comum, e nas orações em
pregá-los) um meio meramente conveniente de explorar que êle dirige a congregação esse fato é geralmente re-
suas próprias noções particulares ou de ir ao encontro conhecido de maneira plena. O sermão por vezes, porém,
das expectativas da gente que acorre para ouvi-lo. Con- malogra em revelar essa consciência. O pregador fala
tudo, é óbvio que ambos estão errados. A pregação é não como se êle estivesse escutando a Palavra de Deus,
uma confissão pessoal e viva da fé antiga da Igreja. mas como se êle, na realidade, fosse o próprio Deus fa-
Ora, para dizer a mesma coisa de modo um tanto lando. Seus modos sugerem que êle está contando às
pessoas de alguma eminência ética o que elas devam
diferente, pregação é uma interpretação que vem de
fazer. Há alguns anos Reinhold Niebuhr publicou um
dentro da vida da Igreja — a espécie de coisa que dirige
artigo com respeito a "Pregação Moralística", definida
o crente ouvinte, o qual embora compartilhe no Espírito,
como "sustentando elevados ideais de fraternidade e
não possui os dons de discernimento e expressão do pre-
amor para com os homens e as nações na suposição de
gador para dizer "Amém". Esse "Amém" significa: "O
que nada mais do que sua reiteração continuada afetará
Senhor disse o que sei ser verdadeiro, ainda que talvez
finalmente a realização dos mesmos." ( ) Essa prega-
10

não pudesse tê-lo dito. O senhor apontou para realida- ção consiste principalmente em exortações para que pra-
des em minha própria experiência como um participan- tiquemos as virtudes Cristãs e em figuras vagas de quão
te da vida da Igreja. O senhor está falando a mim, porém perfeito tudo seria se as praticássemos. O pregador
mais profundamente ainda para mim. O senhor está "moralista" crê aparentemente que os requisitos éticos
confessando a minha f é . " O pregador — e isso não é de Deus são padrões perfeitamente praticáveis — um
menos verdadeiro do que para o Evangelho — não pode tanto difíceis, mas certamente não impossíveis. Pode-
fazer uma cerca à sua volta; é mister que fique livre riam ser cumpridos se tão somente colocássemos um
para apresentar o significado do Evangelho como o signi- pouco mais de esforço neles. Sua pregação consiste em
ficado que veio diretamente para êle. A não ser que sua falar acerca do amor sem qualquer sinal de que se está
pregação faça vir à tona uma tal reação na Igreja, em ciente, quer seja da impossibilidade de fazermos aquilo
vista de ser uma resposta às realidades na vida da Igreja que o amor pura e simplesmente requer em algumas
e uma proclamação do evento que deu margem ao mes- situações ou da impossibilidade de sabermos o que requer
mo e determinou o seu caráter — repito: a não ser que em outras. A conclusão de cada sermão é: "Já lhes
isso seja verdade, sua pregação cessou de ser uma pre- tenho dito o que fazer. Fazei-o agora!"
gação autenticamente Cristã. E não deveríamos ficar
surpresos se essa congregação se rebelar ou, então, Quase não é necessário apontarmos a falsidade, o
morrer. enfado e a futilidade dessa espécie de pregação; e o pre-
Mas se o pregador precisa confessar a fé da Igreja domínio da mesma pareceria ser indicado pela própria
e não apenas a sua, precisa então confessar os seus pró- conotação que a palavra "pregar" adquiriu em nossa
prios pecados e não, simplesmente, os da congregação. linguagem comum. Os pais são aconselhados a não
O pregador se apresenta, então, com tanta necessidade "pregarem" a seus filhos. A crítica que possivelmente
82 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 83

causa mais devastação com respeito a uma novela ou sendo assim, necessitados de perdão, direção e ajuda aci-
peça é a de que a mesma "prega um sermão." Essa má ma do poder de qualquer um deles para suprir. A pre-
reputação de uma importante palavra Cristã, a qual gação ética eficiente, tal como a pregação doutrinária
basicamente significa o anúncio das supremas boas no- eficaz, é a pregação confessionária.
vas, poderá ser atribuída em parte ao espírito de nossa Alguns anos atrás ouvi, em apenas uma hora, dois
época que — se me fôr dada a permissão de "pregar" um sermões por dois estudantes de teologia sobre a ética Cris-
pouquinho — é mais rebelde contra a autoridade moral tã do amor. O primeiro deles era um apelo convencional
do que deveria ser. Entretanto, será que podemos negar para que a congregação e os homens geralmente falando,
que refle te também falhas na própria pregação? Vale tanto individual como coletivamente, seguissem o ca-
notar que embora as palavras "pregar", "pregador" e minho do amor. Assinalou que se tão somente fizéssemos
"sermão" continuem a ter sua dignidade própria, em isso, a humanidade ficaria desembaraçada de todas as
certos meios populares são usados, por vezes, com sen- suas dificuldades. O outro pregador, tomando essencial-
tido de humor, e até pejorativo. É certo que não nos mente o mesmo tema, apresentou em termos muito rea-
cabe corrigir a semântica dessas palavras, mas convém listas e pessoais o que envolveria seguir o caminho do
indagar das razões dessa depreciação. Nós que prega- amor num mundo como o nosso. Poder-se-ia sentir du-
mos, poderemos de maneira apropriada perguntar até rante todo o seu sermão os seus esforços sinceros, mas
onde a culpa está em outros — em sua falta de serie- finalmente insucedidos para escapar dos requisitos deste
dade ou sensibilidade, ou talvez mesmo em sua perver- amor ou para cumpri-los; assim, ao falar de sua própria
sidade — e até onde está em nós mesmos. E, quando ti- experiência, êle esquadrinhou profundamente nossos
vermos feito isso, somos obrigados a reconhecer que uma corações.
parte da resposta indubitavelmente está no "moralismo" Essa atitude confessionária também determinará o
fácil e superficial de muitas de nossas pregações. caminho para alguém proclamar o "evangelho social."
Entretanto, a pregação pode ser desse tipo somente Já fiz referência às, assim chamadas, denúncias proféti-
enquanto não fôr confessional. O pregador que, de cas de males sociais expressas pelo pastor de tal modo
fato, tem procurado cumprir com a lei de Cristo e que como alguém que pensa que sua congregação seja a prin-
fala de sua experiência, saberá muito bem a realidade cipal responsável pelos mesmos. Essas fulminações
e poder do pecado na vida humana, bem como as limita- fúteis seriam evitadas se o pregador reconhecesse não
ções implícitas em nossa finitude. Verdadeiramente, se somente a sua própria implicância nesses males sociais,
êle tiver algo de verdadeiro ou que sirva de ajuda para mas também a inevitabilidade dessa implicância, tanto
dizer acerca do dever de outros, é porque êle próprio tem para si mesmo como para os outros. Todos nós estamos
sido confrontado e confundido pelas tremendas dimen- envolvidos nas iniquidades maciças e nas desumanida-
sões de seu próprio dever. Esse alguém vê a si mesmo e des da vida social, política e económica — não sem culpa
a seus ouvintes como se estivessem num terreno comum e, no entanto, não inteiramente culpados e de qualquer
absoluto — sob um requisito moral completamente aci- modo completamente incapacitados para nos libertar-
ma do poder de qualquer um deles para cumprirem e, mos. É importante que tanto nós como nossas congre-
84 JOHN KNOX

gações estejam cientes da larga escala de tais injustiças


e desajustamentos sociais, estando sensíveis ao enorme
sofrimento humano e perda que os mesmos acarretam.
É importante reconhecermos não só nossa própria im-
plicância neles, mas, de igual modo, nossa responsabili-
dade pelo alívio dos mesmos tanto quanto fôr possível. CAPÍTULO V I I
Mesmo quando admitimos completamente a solidez e
recalcitrância dos males sociais e nossas próprias limi- PREGAÇÃO É SACRAMENTO
tações tanto em bondade como em sabedoria, ainda
assim é mister reconhecermos que poderíamos fazer No capítulo anterior consideramos a pregação como
muito mais do que fazemos. Ê absolutamente essencial oferta a Deus. O pregador é um sacerdote representando
que vejamos e confessemos nosso dever e nosso pecado e falando por seu povo, confessando tanto a sua fé como
nessa dimensão — que nos arrependamos não só de o seu pecado. Mas a verdadeira pregação é também o
nossos pecados individuais, mas dos maiores e que não dom de Deus para nós. É até mais do que isso; é Deus
são menos nossos porque compartilhamos deles com na realidade se entregando a nós. Paulo reconhece tanto
outros. O pregador, porém, só nos pode levar a fazer a profecia como o ensino como sendo dons do Espírito
isso se êle também se arrepender — e não ficar simples- e o autor aos Efésios pode falar de apóstolos, profetas,
mente indignado! Em outras palavras, o problema social evangelistas, pastores e professores como sendo "dons"
pode ser discutido de modo apropriado e frutífero na de Deus à Igreja. Assim é que as palavras do pregador
pregação só na disposição de um culto comum. Nossa são mediadoras no sentido completo da palavra, não
sociedade está enferma e culpada; todos nós comparti- somente reunindo e levando a Deus as necessidades da
lhamos nessa enfermidade e culpa; não podemos nos congregação, mas também chegando a ser um meio de
curar; somente Deus pode nos perdoar e renovar comunicação de Deus conosco e, na verdade, de sua ação
nossa vida. salvíf ica.

Não é fora do comum que o sermão seja precedido e É frequentemente expressa no Novo Testamento a
seguido por orações. Isso, porém, não é suficiente: o compreensão de pregação como sendo uma ação do Espí-
sermão precisa ser uma oração em si mesmo. A verda- rito. Marcos registra que os discípulos de Jesus foram
deira pregação é muito próxima à oração, a obra do pro- ensinados, em conexão com sua própria defesa do Evan-
feta à obra do sacerdote. gelho diante de "governadores e reis": "Não vos preo-
cupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos fôr con-
cedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os
que falais, mas o Espírito Santo" (13.11). Essa pres-
crição pode ser encontrada em Mateus (10.19) virtual-
mente nas mesmas palavras. Lucas escreve de modo um
tanto diferente, porém para o mesmo efeito: "Assentai,
86 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 87

pois, em vossos corações de não vos preocupardes com o mente em situações quando a mensagem que êle próprio
que haveis de responder; porque eu vos darei boca e sa- preparara para dar estava completamente fora de lugar
bedoria a que não poderão resistir nem contradizer todos e quando êle teve que simplesmente se esquecer da-
quantos se vos opuserem" (21.14-15). E, mais tarde, quilo que tão cuidadosamente havia planejado e fala-
em Atos (2.4), o mesmo escritor descreve os discípulos do — como costumamos dizer, vindo do fundo do cora-
falando "segundo o Espírito lhes concedia que falassem." ção — seguindo então livremente conforme a direção do
Seguramente êle está se referindo ao milagre das lín- Espírito? No entanto, se há situações ocasionais de pre-
guas, porém teria dito a mesma coisa da profecia em gação desse tipo, sabemos que há um número conside-
geral e, de fato, muitas vezes o faz em relação a isso. ravelmente maior quando, se não tivermos "meditado de
Além de representar de modo consistente toda a prega- antemão", vêmo-nos sem absolutamente nada que seja
ção Cristã como sendo um dom espiritual, Paulo pode útil ou apropriado para dizermos.
falar de sua própria pregação como sendo "não em pala- Isso não significa que o pregador devesse depender
vras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas do Espírito ocasionalmente e mais frequentemente em si
pelo Espírito" (1 Co 2.13). mesmo. Longe disso; o Espírito precisa dizer-nos sempre
Já fizemos referência ao pregador moderno que, to- "o que falar" se nossa pregação fôr genuína. A pregação
mando literalmente a injunção do Evangelho, recusa-se precisa vir sempre do "fundo do coração" — querendo
a fazer qualquer preparo especial para a pregação, mas isso dizer (bastante paradoxalmente), que não pode ser
se apoia no Espírito a fim de que lhe sejam providencia- sempre nossa própria expressão deliberada, mas uma
das as palavras apropriadas. E vimos que seus ouvintes reação à inspiração do Espírito. É possível que, por vezes,
tendem muito mais a ficarem chocados com o que falta a inspiração e a reação sejam súbitas e momentâneas.
ao primeiro do que por aquilo que o Espírito providencia. De repente alguém ouve e precisa falar. Tais momentos
de êxtase vêm para a maioria de nós — embora seja pre-
Seja qual fôr a verdade e importância que a inspiração do
ciso reconhecer que os mesmos raramente coincidem com
Evangelho tivesse em seu contexto original, é óbvio que
as ocasiões formais de pregação. Contudo, de modo
não é regra praticável a ser seguida por um professor de
geral, a inspiração é menos dramática e irresistível,
responsabilidade da congregação. De acordo com todos
porém compassivamente periódica ou persistente; e a
os três Evangelhos, o contexto original estava relaciona-
reação de alguém, embora ainda uma verdadeira reação
do com um interrogatório diante do magistrado, quando
(e não algo que se inicia) é feita de modo mais gradual.
o Cristão é mandado a fim de fazer a sua defesa. Numa O Espírito permanece à porta e bate — bate silenciosa
situação como essa, foi talvez a experiência da Igreja pri- mas constantemente ou regularmente. Não chega a ser
mitiva, que uma explicação bem pessoal e espontânea ouvido completamente a não ser que se ponha à escuta
— sem dúvida nenhuma sem ser preparada e sem ter de modo deliberado. O preparo para pregar é essa ação
sido ensaiada — seria mais eficiente em vista de ser in^ de ouvir ou de tentar ouvir. A maioria dos bons sermões
confundivelmente mais sincera do que qualquer argu- ficam por meses a fio em processo de criação, até anos
mento cuidadosamente elaborado. Isso é compreensível; talvez. De início não se está certo de ter ouvido alguma
na verdade, qual o pregador que não se viu ocasional-
88 JOHN' KXOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO 89

coisa. Gradualmente a pessoa chega a certificar-se. Primeiramente, então, deveríamos reconhecer que
Finalmente, a batida requer nossa atenção plena e então quando dizemos que a pregação é movida pelo Espírito,
sabemos que chegou o momento de responder à mesma. queremos significar com isso que essa inspiração provém
A porta precisa ser aberta. O sermão sobre o texto ou da vida da comunidade. Não há dúvida nenhuma que
tema indicado precisa ser pregado. Talvez o pregador vem de Deus — mas vem de Deus tal como êle é concre-
dedique uma semana inteira para escutar aquilo que o tamente conhecido na Igreja. Dizer que a mensagem
Espírito está procurando transmitir. O sermão é sua do pregador é dada a êle pelo Espírito equivale afirmar
resposta — sem dúvida nenhuma uma resposta autên- que lhe é dada como participante na vida divina comum
tica pelo tempo requerido para fazê-lo. Na realidade a que constitui a natureza essencial da Igreja Cristã. É
criação, seja qual fôr o campo, nunca é algo de súbito, um fato surpreendente que o primeiro sermão Cristão
ainda que por vezes pareça ser assim. Poderá parecer que registrado — o de Pedro em Pentecostes — foi ocasionado
ouvimos de súbito, mas ouvimos somente se tivermos pela necessidade de explicar, de responder com relação
estado à escuta, e não teríamos começado a escutar se aos fenómenos da nova vida da comunidade. Coisas es-
tranhas estavam sucedendo e os de fora começavam a se
já não tivéssemos começado a ouvir. De começo a fim
perguntar o que significariam. Devido ao fato de que
a verdadeira pregação é obra do Espírito. É Deus à nossa
o Espírito viera — isto é, a Igreja começava a existir ple-
procura e nos encontrando.
namente — é que Pedro foi movido a falar; foi somente
Entretanto, a pregação é esta ação de Deus não só por esta razão que êle teve algo para falar. É verdade
do modo geral que tenho procurado descrever — o modo que seu sermão, em grande parte, constituiu uma re-
em que toda a obra fecunda é ação divina — mas tam- cordação da vida, morte e ressurreição de Jesus, porém
bém num sentido Cristão mais específico. É vital e esse acontecimento foi lembrado a fim de que respon-
essencialmente relacionada com a comunidade Cristã e desse pela existência dessa nova comunidade com sua
com o acontecimento no qual a comunidade teve o seu vida distinta e intrinsecamente significativa. Sem
soerguimento. Afirmar como o fizemos, que é uma res- aquela "nova criação" — a criação da Igreja — Pedro
posta do Espírito e, portanto, num sentido muito real nunca teria tido oportunidade para pregar nem tam-
a criação deste último, é afirmar virtualmente essa co- pouco um texto sobre o qual falar.
nexão, pois que "o Espírito", no sentido Cristão, é aquele
em cuja vinda o antigo evento consistia essencialmente Essa mesma identidade do Espírito que inspira o
e em cuja presença contínua a vida da Igreja também pregador com o Espírito que constitui a Igreja, é reconhe-
consiste essencialmente. Embora essa inter-relação cida tacitamente quando o autor de I João, ao falar dos
tanto da comunidade como do evento, tenha sido fre- "muitos falsos profetas", insta para que a Igreja "prove
quentemente aludida no decorrer destes capítulos, é os espíritos se procedem de Deus" ( 4 . 1 ) . Com que cri-
apropriado que concluamos nossa discussão consideran- tério podem ser provados os espíritos de seus profetas e
do-a novamente e de modo resumido — fazendo especial professores a não ser por seu próprio Espírito, o Espírito
referência à natureza da pregação como a obra do Espí- da própria Igreja? Com toda a certeza podem existir
rito, como o ato revelador de Deus. provas éticas mais objetivas a fim de que sejam elimina-
90 JOHN KNOX A INTEGRIDADE DA PREGAÇÃO

dos os charlatães ou os mais óbvios logradores de si mes- vãmente e explicar o antigo evento. O Espírito faz com
mos. Porém, em último recurso, a prova precisa ser es- que o antigo evento, num sentido muito real, seja um
piritual. A não ser que a congregação constate que as acontecimento que ainda está sendo realizado, e a pre-
asseverações do profeta chamam e apelam para as pro- gação é um meio da ação do Espírito para realizar isso.
fundezas de sua própria experiência compartilhada, não Na pregação, quando realmente é pregação, o aconte-
se pode estar seguro que êle seja movido pelo Espírito. cimento é continuado e recorrente. A ação reveladora
Caso contrário, é mister que se chegue à conclusão que em Cristo está sendo realizada ainda ou chega a ser no-
êle possui um espírito estranho ou maligno, ou nenhum vamente realizada.
espírito. Suas palavras precisam ir ao encontro de seus
É frequentemente trazido à tona no Novo Testamen-
membros em seu nível mais profundo e mais autêntico,
to esse caráter da pregação como sendo, não um simples
em sua consciência de seu pecado, de sua separação e de
relatório do evento, mas êle próprio uma parte dele. Em
sua finitude, de sua necessidade de perdão e cura, e da
Rm 1.16 Paulo escreve: "Não me envergonho do Evan-
realidade de salvação que Deus providenciou em Cristo
gelho porque é o poder de Deus 'para a salvação'." Por
— a realidade do amor perdoador e sanador de Deus que "Evangelho" Paulo significa, naturalmente, a pregação;
é posto constantemente à disposição através da própria e seu ponto não é simplesmente que o evento proclama-
vida da comunidade divinamente concedida. O escritor do na pregação é o "poder de Deus" salvífico, mas que
aos Efésios pode falar do profeta como o dom de Deus a pregação em si mesma participa desse "poder". A pre-
para a Igreja, porém é de igual modo tão certo que os gação é uma extensão do evento em si e não meramente
próprios dons do profeta foram conferidos a êle através de seu conhecimento. Assim também em 1 Co 1.21,
da Igreja e somente em consideração a isso é que podem Paulo fala de "pregação" como sendo o meio através do
ser reconhecidos como dons do Espírito. qual Deus "salvará aos que crêem." Cristo crucificado
e pregado é "o poder de Deus e sabedoria de Deus. Se-
Entretanto, se a pregação deve tudo à comunidade,
melhantemente, em Lc 4.18, a citação de Cristo do pro-
deve também tudo ao evento. A mensagem do pregador,
feta Isaías, "O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo
embora lhe tenha sido comunicada através da vida da
que me ungiu para evangelizar os pobres", parece fazer
Igreja, foi concedida primeiramente em alguns aconte-
com que a pregação do Evangelho seja um elemento do
cimentos antigos. Como tantas vezes temos lembrado
próprio Evangelho em si. Isso é ainda mais claro nas
a nós mesmos, o pregador é o mensageiro do Evangelho
palavras de Jesus aos discípulos de João, em Lc 7.22:
— as boas novas desses acontecimentos. O kerygma era "Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos
no princípio — como ainda o é — a proclamação da vida, vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
morte e ressurreição de Jesus, do significado salvador surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres
que aquele evento provou ter e tudo quanto ainda se anuncia-se-lhes o Evangelho."
espera dele. É mais do que isso, porém. Tal como a pre-
gação não discute tanto ou descreve a vida da comuni- O acontecimento com o qual o pregador está preo-
dade Cristã como expressa e transmite o seu significado cupado é bem antigo, sucedido na Palestina no primeiro
concreto, assim a pregação faz mais do que contar no- século, sendo muito importante que seja lembrado como
92 JOHN KNOX A INTEGRIDADE D A PREGAÇÃO 93

tal. Entretanto, não é só isso — o mesmo ainda está su- ver na Ceia do Senhor um memorial de Cristo; tudo
cedendo, ou se repete constantemente, e uma das manei- quanto está sendo feito é "em lembrança" dele, e falhar
ras de sua contínua recorrência é a pregação em si. Aqui em lembrar dele, seria perder o significado total do sacra-
está a prova final da pregação Cristã, se fôr pura prega- mento. Contudo, isso não é dizer que o ato de lembrar
ção, genuinamente Cristã: Será que, na verdade, trans- seja no sentido total. Seja qual fôr a sua profissão,
mite a ação salvífica de Cristo? Tal como Deus usou a nenhum corpo de Cristãos em grande número encara a
vida, morte e ressurreição de Jesus, assim também, quer Ceia do Senhor como sendo apenas um memorial, um
seja de modo subordinado, está êle usando a pregação do lembrete de algo que aconteceu há muito tempo. Algo
ministro acerca daquela vida, morte e ressurreição como está sucedendo agora; o antigo evento está sendo reali-
o meio de seu poder e amor? Está Cristo dizendo nova- zado nesse instante. O que Deus fêz em Cristo está
mente: "Vinde a mim?" e, tendo mesmo ascendido, está sendo realizado agora. Assim acontece com o sacramen-
êle atirando-nos para si? Será que, de fato, vêmo-lo to. Assim também sucede com a pregação. Este é o
morrer por nossa causa, e verdadeiramente em nossas significado do Espírito que toma as palavras de Cristo
mãos? Estará êle se mostrando, até mesmo a nós, vivo e a ação de Deus — e é assim que as palavras são nova-
após a sua paixão, ressurreto para a nossa redenção? mente faladas, a ação está sendo feita novamente.
Visto que a pregação está malogrando, aqui está o ponto
inicial de sua falha — não que falhe em ser suficiente- Se alguém perguntar "como podem ser essas
mente aprendida, ou suficientemente divertida, ou su- coisas", é mister que se responda que este é o único mi-
ficientemente resumida, ou suficientemente "moderna" lagre final e inescapável no Cristianismo — essa con-
— e esta falha está em que o poder e ação de Deus não temporaneidade do que aconteceu há muito tempo, essa
estão sendo comunicados com eficiência nela. Esse é o atualidade, no presente, do que é também lembrado no
ponto inicial da derrota, pois que, falhando aqui, a pre- passado. Este é o milagre da Ressurreição. Mas ainda
gação está malogrando como pregação. Um homem que não possa ser explicado e sendo, portanto, um mi-
expressa suas opiniçes — verdadeiras ou falsas, interes- lagre, constitui a própria existência da Igreja e é, pois,
santes ou não — relativamente a assuntos de importân- indubitável. É o milagre da própria vida distinta da
cia ou sem importância nenhuma. Deus, entretanto, não Igreja. Os sacramentos só são sacramentos reais e a pre-
está agindo. Algo está sendo dito, mas nada está acon- gação só é real se tão somente este milagre fôr reali-
tecendo. O acontecimento decisivo e salvador de Cristo zado neles.
não está sendo recorrente. O Espírito — o "poder glo-
rioso" de Deus — não está presente.

Nossa afirmação aqui focaliza a natureza sacramen-


tal da pregação. Isso porque a inter-relação dupla com
o evento para o qual estamos agora apontando como
essencialmente pertencente à pregação constitui, de
igual modo, a natureza essencial da Eucaristia. É certo
NOTAS

1. Devo a meu amigo, o Rev. George F. Woods, do Downing College,


Cambridge, o ter chamado minha atenção para essa passagem. P. encontrada
em Works (Londres, Impresso por J. Richardson, 1762, e provavelmente re-edi-
tado por G. Morcton, 1893), V I I , 186.

2. Chicago, Willet Clark and Company, 1936. Os vários trechos citados


foram usados com a permissão de Harper & Brothers, atuais editores.

3. Nova Iorque, Charles Scribner's Sons, 1950.

4. A Cambridge Bcde Book (Nova Iorque, Longmans Grecn & Company, Este livro foi composto e
1936), pág. 15. impresso nas oficinas da
I M P R E N S A METODISTA,
5. The Study of lhe Bible (Chicago, University of Chicago Press, 1937), Estrada do Vergueiro, 1301
págs. 103 em diante. Copyright 1937 pela Universidade de Chicago. A citação São Bernardo do Campo,
foi permitida pela University of Chicago Press. Est. de S. Paulo

6. Uma discussão mais completa deste princípio de interpretação é encon-


trada em meu livrinho Criticism and Faith (Nova Iorque e Nashville, Abingdon,
1952), especialmente o capítulo final "Crítica Histórica e Pregação."

7. Chicago, Willet Clark & Company, 1937.

8. Vide o artigo muito útil The Christian Teacher in the First Cenlury,
por Floyd V. Filson, Journal of Biblical Literature, LX, 317, 28.

9. Norman Foerstef e John M. Steadman (Boston, Houghton Mifflin


Co., 1923).

10. The Christian Cenlury, L X I I I , 985 e seguintes.

S-ar putea să vă placă și