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C “NO SENTIDO SOCIAL DA

OMUNIDADES
EVANGELIZAÇÃO ”: CEB S , C AMPONESES E
Q UILOMBOLAS NA A MAZÔNIA O RIENTAL
BRASILEIRA

Raymundo Heraldo Maués

Retomo aqui um tema já bastante estudado, cuja validade pode situar-se no


fato de fazê-lo a partir de um espaço — a Amazônia — onde esse tipo de trabalho
não tem sido tão privilegiado, embora a presença de Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) seja muito conspícua em várias áreas dessa região, desde a segunda metade do
século XX, representando, na época, tal como no Nordeste, um importante elemento
de resistência à ditadura militar brasileira, embora, evidentemente, suas funções não
se esgotassem só nisso1. Ademais, o fato de retomar agora um tema que aparentemente
não mais “está na moda” me permite outro tipo de reflexão, talvez menos apaixonada
e mais crítica, sobre a relevante atuação da Igreja Católica no Brasil, do ponto de
vista não só religioso, mas de uma grande abrangência social e política2.
Gostaria de começar com um rápido esclarecimento sobre o título escolhido,
esclarecimento que considero importante e que será mais adequadamente desenvolvido
na continuação deste texto. A expressão “comunidade no sentido social da evangelização”
é retirada da fala de um camponês e quilombola da comunidade de Santo Antônio, no
município de Concórdia do Pará, que resultou de desmembramento recente do antigo
município de Bujarú, na microrregião de Tomé Açu (mesorregião do Nordeste Paraense).
A meu ver, ela expressa muito bem o resultado da atuação de agentes de pastoral da Igreja
Católica que trabalham na implantação de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). O
artigo trata de duas comunidades distintas da Amazônia Oriental brasileira: a
14 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

comunidade de Santo Antônio, numa área de colonização mais antiga e tradicional,


e a comunidade de Brasil Novo, na Transamazônica — que, como é bem conhecido,
resultou de projeto desenvolvimentista implantado na época da ditadura militar. A
área já estava, em parte, sujeita à colonização mais tradicional, mas o projeto
representou mudança muito grande, a ponto de transformar de forma expressiva o
modo de vida das populações locais, sobretudo pela chegada de um grande número
de novos habitantes, procedentes de várias regiões brasileiras, principalmente do Sul
e do Nordeste. Utilizo a expressão para as duas comunidades e, por isso, coloco este
título: “Comunidades ‘no sentido social da evangelização’”, referindo-me tanto a
Santo Antônio quando a Brasil Novo, o que, a meu ver, se aplica também a muitas
outras “comunidades” amazônicas, “re-inventadas” ou transfiguradas pela ação de
agentes pastorais católicos nos últimos anos, desde a segunda metade do século XX.
Ao lado disso vale lembrar, como está na nota 1, que o título original deste artigo
enfatizava as “novas formas de cidadania” emergentes na Amazônia a partir da atuação
dos agentes de pastoral da Igreja Católica, ao trabalharem, motivados pela Teologia da
Libertação, na implantação de Comunidades de Base. Tal aspecto será enfatizado ao
longo do texto, pois representa um ganho político para as populações locais influenciadas
por essa ação, em reação interativa que, portanto, não se processou num único sentido,
mas constituiu-se numa forma de reciprocidade. Assim, a ação e, sobretudo, as mensagens
desses agentes eram reciprocadas também de forma crítica pelos sujeitos aos quais se
destinava a ação. Isto será retomado na conclusão deste texto. Passo, a seguir, a tratar da
formação dessas comunidades, dando destaque, inicialmente, para duas lideranças
comunitárias femininas cuja atuação tornou-se fundamental.

Duas mulheres em destaque

Em áreas diferentes da Amazônia Oriental, duas mulheres se destacaram, há


alguns anos, na implantação de novas formas associativas e de cidadania. Ambas
católicas, originalmente trabalhadoras do campo, mas provenientes de regiões bem
diferentes uma da outra: Ana Bloem (migrante do Sul do Brasil para Brasil Novo,
Transamazônica, Pará) e Margarida Silva (conhecida por Gaida, nascida no interior
de Igarapé Açu e atuante em Bujaru, cidades paraenses). Os próprios sobrenomes já
indicam as diferenças de origem. Ana Bloem, que foi para a Transamazônica na
época de sua implantação (para onde foram também migrantes de variadas origens,
especialmente nordestinos), relata como começou a atuação política das mulheres
nessa região, através dos “almoços comunitários” incentivados pela Igreja Católica:
“o padre dizia para cada família trazer o seu almoço para compartilhar. Cada um fazia
um tipo de comida conforme o costume do lugar de onde veio. Aí dava aquele
almoço bem farto e diferente”. Esses almoços se realizavam por ocasião dos mutirões
e deram origem, mais tarde, aos movimentos de mulheres de Brasil Novo, com
derivações para os sindicatos de trabalhadores rurais. Ana Bloem foi a principal
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 15

interlocutora/informante da antropóloga que escreveu tese de doutorado, com trabalho


de campo na região, de onde retirei a citação acima (Silva 2008:213).
A mesma antropóloga também nos diz, a respeito dessa mulher: “A trajetória
social de Ana Bloem não se restringiu só ao contexto da Transamazônica e à
organização dos movimentos de mulheres de Brasil Novo”, pois ela integrava “um
campo de discussão” bem mais “amplo, participando de diversos encontros sindicais
e de lideranças em nível estadual e nacional”. Tal participação se deu, em 1987, no
Congresso da Central Única dos Trabalhadores em Belo Horizonte — MG, onde foi
discutida a “formação de delegacias sindicais para que os trabalhadores rurais
assumissem a direção dos STRs que estavam sob domínio patronal”. Ela também
participava de eventos importantes em Belém e em Santarém como representante do
Movimento de Mulheres da Transamazônica, de cuja formação foi uma das principais
precursoras. Nesses congressos, integrava “espaços de discussão” que “diziam respeito
à conjuntura social da região como um todo: políticas públicas” de “saúde, educação,
transportes e agricultura”. E se mostrava sempre “atenta para não deixar minimizar
o seu compromisso com a causa feminina (...), pois é na discussão de gênero (...) que
se destaca a singularidade de Ana Bloem” (Silva 2008:210-211).
Margarida Silva, ou Gaida, já falecida (na época em que foi realizada a pesquisa
da outra antropóloga, na microrregião de Tomé Açu), teve uma trajetória que, no
final dos anos 1960, constituiu grande referência na história da criação do Movimento
de Mulheres Transformadoras do Campo e da Cidade de Bujaru (MMTCCB), um
município paraense nas proximidades de Belém, que deu origem a outro município
mais recente, Concórdia do Pará. Durante o VII Congresso desse movimento, realizado
no ano de 2003, foi feita a ela uma grande homenagem. Foi exibido o retrato dessa
líder, pintado por um artista local, no decorrer de todo o encontro. Realizou-se,
ainda, uma “mística” durante a celebração da missa campal que encerrou o mesmo,
tendo sido o quadro disposto no chão, com destaque, cercado pelas sandálias das
mulheres participantes do evento.
Como nos diz essa antropóloga, que escreveu dissertação de mestrado sobre as
formas associativas nessa área da Amazônia e de quem retiro as informações: “A
origem de Margarida Silva é lembrada como a de uma mulher humilde e vinda da
área rural para a cidade de Bujaru que, participante do Clube de Mães e de outras
atividades pastorais ligadas à Igreja Católica, sentia necessidade de mudanças na
atuação das mulheres para lutar por direitos”. Raimundo Soares, interlocutor da
antropóloga, em entrevista datada de dezembro de 2003, disse a ela que Margarida
“era uma mulher franzina, doente”, que vivia de lavar roupa e de costurar, mas,
posteriormente, “não pôde mais trabalhar porque ficou com fraqueza no pulmão”.
Segundo o mesmo Raimundo, ela “lutava por direito do povo que morava na cidade,
(...) saía na rua em movimento, para lutar por um objetivo maior” (...) (:160). Dona
Izabel, outra interlocutora da antropóloga, complementa que Margarida “era uma
mulher de quem se ouvia falar” e sobre quem se “sabia através de se falar em
16 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

movimento”, acrescentando também que era “uma pobre mulher, que tinha um filho
que morreu, mas ela era uma mulher perigosa” [meu grifo, RHM] (Costa 2008:160-
161). Com isso, a interlocutora expressa sua admiração por uma mulher forte que não
se deixava abater e enfrentava a luta de engajamento político-social.
Vale observar que, na área, a atuação política de Margarida era também interpretada
como resultado da sua tragédia pessoal, por ter perdido o filho. Além disso, deve ser
ressaltado que a expressão usada por Dona Izabel, referindo-se a ela como “mulher perigosa”,
é bem característica de certas áreas de ocupação tradicional no interior do Pará —como
é o caso dos municípios de Bujaru e Concórdia —, para designar mulher valente e cheia
de ânimo, que supera suas limitações físicas e de outro tipo, através da coragem, como nos
diz a antropóloga que colheu esses depoimentos.

Teologia da Libertação e CEBs em duas áreas amazônicas

Este artigo se destina, assim, a analisar parcialmente os efeitos da atuação de


agentes de pastoral da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), influenciados
pela chamada Teologia da Libertação (TL), entre populações rurais e de origem rural
em duas áreas da Amazônia Oriental, na implantação das chamadas Comunidades
Eclesiais de Base. A análise enfoca, sobretudo, duas circunscrições eclesiásticas (a
Prelazia do Xingu, dirigida por Dom Erwin Krautler e a Diocese de Abaetetuba, por
Dom Flávio Giovenale). Seus bispos atualmente encontram-se ameaçados de morte,
em razão de atuação comprometida com os interesses sociais de suas populações,
especialmente índios e camponeses, bem como com a denúncia de abusos e atos
ilegais ali cometidos (grilagem de terras, contrabando, tráfico de drogas e de mulheres,
assim como outras ações criminosas) e — no caso mais específico de um deles, Dom
Erwin Krautler —, na luta contra a implantação da hidrelétrica de Belo Monte. Este
fato, bem conhecido e noticiado amplamente pela imprensa nacional e internacional,
ocorre também em relação ao bispo da Prelazia do Marajó, Dom José Luiz Ascona.
Deixando de lado esta última, por não possuir, no momento, dados mais expressivos,
limito-me a descrever e analisar alguns fatos relativos às duas primeiras.
O artigo foi elaborado dentro dos objetivos do projeto de pesquisa que venho
desenvolvendo sobre leigos católicos e novos movimentos eclesiais, com financiamento
do CNPq. Destina-se, mais especificamente, a analisar aspectos da atuação das CEBs
na Amazônia a partir de dados disponíveis em dois trabalhos acadêmicos, já citados
acima, que foram escritos por duas antropólogas, Rita de Cássia Pereira da Costa e
Maria Ivonete Coutinho da Silva. Trata-se de uma dissertação de mestrado e de uma
tese de doutorado, ambas em antropologia, defendidas e aprovadas no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia, da
Universidade Federal do Pará. Devo lembrar que esses não são os únicos trabalhos
paraenses que abordam tais questões. Os mesmos foram escolhidos por serem recentes
(defendidos em 2008) e por conterem informações detalhadas e importantes para
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 17

permitir o entendimento e a análise das questões enfocadas3. Outros trabalhos que


tratam do tema, ou temas correlatos, também importantes para a compreensão das
questões aqui abordadas — sem, é claro, esgotar o assunto —, são os de Acevedo
Marin (1999), Acevedo Marin e Castro (1998), Almeida, A. (1992), Almeida, M.
(2002), Araújo (1974), Cavalcanti (2005), Chaves (2005), Guerra (2001), Fernandes
(1999), Ferrão (2006), Hébette (2002; 2004), Krautler (1984), Marques (2007), Mata
(1992), Smith (1982) e Velho (1972; 1979).
As duas áreas estudadas apresentam algumas diferenças importantes no tocante
à colonização. A primeira, que se situa na Prelazia do Xingu, é uma área de colonização
relativamente recente, no sul do Pará, especialmente na parcela em referência, por
onde passa a Transamazônica, estrada construída, mas nunca concluída, à época da
ditadura militar no Brasil (1964-1985). A segunda, pertencente à Diocese de
Abaetetuba, é uma área de colonização muito antiga, como se pode ver em mapa do
século XVIII, reproduzido na dissertação de Rita da Costa, no qual já se encontra
registrada a vila que deu origem à atual cidade de Bujaru, às margens do rio do
mesmo nome (Costa 2008:36). Em ambas, a atuação da ICAR, através da presença
das chamadas Comunidades Eclesiais de Base, muito ativas (a despeito da menor
atenção que se tem dado ultimamente a esse importante movimento social e religioso
católico), desempenha papel relevante entre os camponeses, alguns deles assumindo
também a identidade quilombola. Este trabalho se propõe a analisar parcialmente,
como foi dito, a condição social dessas populações que, em função de suas práticas,
desenvolvem, em sua vivência associativa e religiosa, novas formas de cidadania, não
existentes nesses espaços há alguns anos atrás, pelo menos antes da segunda metade
do século XX. Para isso torna-se necessário tratar, a seguir, das duas comunidades
citadas, onde se fez sentir fortemente a atuação de agentes de pastoral da ICAR.

Duas comunidades camponesas: “num sentido social de evangelização”


Santo Antônio, Concórdia do Pará

Nessas duas áreas, escolho, especialmente, duas comunidades camponesas, como


foi dito na introdução deste artigo. A primeira, Santo Antônio, no município de
Concórdia do Pará, que resultou de desmembramento recente do antigo município
de Bujaru, na microrregião de Tomé Açu (mesorregião do Nordeste Paraense). Essa
comunidade, com um total de 241 habitantes em 2007, era composta, então, por
cinco povoados distintos: Foz do Cravo, Santo Antônio, São Mateus/Tauiara, São
Raimundo/Curuçá e sítio São Miguel, com, respectivamente, 42, 42, 56, 82 e 19
moradores. Seus habitantes constituíam “unidades familiares que mantêm entre si
laços de parentesco, vizinhança e compadrio”. Em toda a comunidade existiam 42
casas de moradia, uma casa de farinha, duas escolas e quatro campos de futebol. Em
todos os povoados havia, na época da pesquisa, energia elétrica durante 24 horas,
com exceção de Foz do Cravo, embora fosse anunciado por políticos que a energia
18 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

deveria chegar ali em “prazo próximo”. A mesma era interligada através de estrada
não pavimentada e de alguns caminhos. Localiza-se nas proximidades do rio Bujaru,
sendo também cortada por três riachos (igarapés): Cravo, Taiuára e Busca Fogo, que
desaguam naquele rio. A principal atividade econômica era a agricultura, servindo
não só para prover alimento, mas também, através da comercialização, para a compra
de bens de consumo e de energia elétrica. Além da agricultura, “uma boa parte das
pessoas” completava “o orçamento familiar com renda proveniente de aposentadoria,
pensões e benefícios como o ‘bolsa família’” (Costa 2008:34-61).
Um documento manuscrito, de autoria da professora Sebastiana (conhecida por
Sabá), moradora de Santo Antônio — consultado pela antropóloga Rita da Costa e
parcialmente reproduzido como figura escaneada em sua dissertação — é muito ilustrativo
sobre o processo de criação/invenção de tal comunidade. Tem como título Como tudo
começou a nos despertar a ter uma Comunidade. A despeito de certa oposição do pároco
do lugar, que “colocou diversas preocupações de se criar mais outra comunidade” pelo
motivo de que “podia fracassar a comunidade de Santana”, também do município, “nós
achamos que não, porque somente seis pessoas participavam em Santana e que ficavam
mais de cem pessoas fora” (apud Costa 2008:83). Por outro lado, a comunidade era criada,
como as outras, “num sentido social de evangelização”.
Este é um ponto importante para mostrar a relevância da atuação de agentes
externos, sobretudo ligados à ICAR, como nos diz Rita da Costa, depois de lembrar
que a mesma foi utilizada por um de seus interlocutores de pesquisa: “comunidade
num sentido social tem a ver com a organização social e as mobilizações políticas
com base na identidade étnica de remanescentes de quilombo, que inclui a luta em
torno da associação e a busca de melhorias para o povoado” A expressão, muito
sugestiva, refere-se “à prática religiosa orientada pela Igreja Católica” e também “à
organização em torno da Comunidade Eclesial de Base”, mas não desvinculada de
uma “relação da Igreja” com os “movimentos sociais e da orientação teórico-
metodológica da teologia da libertação, que tem repercussão local” (Costa 2008:74)4.
É neste sentido que se pode dizer que os agentes externos da ICAR, motivados
pela Teologia da Libertação (TL) e visando constituir as CEBs no lugar, desempenham
papel fundamental no sentido de forjar/inventar as comunidades daquela área, na
feliz expressão de um de seus habitantes, o camponês/quilombola que nos fala em
“comunidade, num sentido social e da evangelização”. Dá-se uma dupla invenção
(Wagner 1981 [1975]): inventa-se a comunidade, inventa-se o quilombo e surge,
daí, a “comunidade quilombola” como sujeito de direitos, na medida em que seus
integrantes assumem essa identidade que lhes é, num certo sentido, oferecida, mas ao
mesmo tempo construída por eles, porque é também política. Isso os estimula, entre
outros fatores, a lutar por seus direitos (não sem conflitos e divergências, como
assinala, em algumas passagens, a antropóloga em cujo trabalho me fundamento
aqui). Cabe ainda uma observação: a pesquisadora, Rita de Cássia Pereira da Costa,
bacharel e licenciada em Ciências Sociais e também mestre em Antropologia é, ao
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 19

mesmo tempo, quilombola. Uma mulher nativa dessa mesma comunidade que estuda,
transitando, com desenvoltura, entre as duas identidades: de intelectual (num sentido
estrito, mas também orgânico, nos termos de Gramsci) e de quilombola, com todos
os direitos, inclusive ao da posse coletiva da terra.
Pode-se também aqui pensar, num contexto mais vasto, não apenas religioso,
que se aplica certamente ao caso, no momento em que, tratando de povos tradicionais,
outro antropólogo, Paul Little, discute os territórios por eles ocupados dentro do que
chama de uma “antropologia da territorialidade”. Neste contexto, Little afirma que
“a historicidade desses territórios é complementada pela historicidade dos conceitos
que são utilizados para entendê-los e enquadrá-los”. E, explicitando melhor seu
pensamento, complementa: “o processo de criação de conceitos territoriais é, por um
lado, uma atividade acadêmica centrada na descrição das territorialidades existentes
e, por outro, uma atividade política utilizada para o reconhecimento legal do que
existe socialmente” (Little 2005:5). Mas não só da parte do antropólogo ou do analista
social. Ainda me referindo a Roy Wagner e a seu conceito de “antropologia reversa”
(Wagner 1981 [1975]:31), por extensão, dá para pensar que os próprios nativos —
quilombolas da comunidade de Santo Antônio —, assumindo a identidade de
quilombolas que lhes é oferecida pelos agentes externos, religiosos ou não, aceitam-
na num sentido político, reinventando-a, mas também mantendo suas identidades
originais e tradicionais e acrescentando a elas as “criações sociais, feitas
simultaneamente de imaginação sociológica, criações jurídicas, vontade política e
desejos” (Arruti apud Little 2005:15; também citado por Costa 2008). O mesmo se
pode dizer dos colonos/camponeses migrantes para a Transamazônica, dos quais passarei
a tratar a seguir.

A “invenção” da Transamazônica e a agrovila de Brasil Novo

Ivonete Coutinho da Silva, em sua tese de doutorado, nos fala da “invenção


da Transamazônica”, cuja ideia surgiu no final dos anos 1960 e que foi criada em uma
área já habitada por índios, seringueiros, pequenos e grandes comerciantes, marreteiros
e fazendeiros. Foi, no entanto, tratada pelo governo militar como uma estrada que
estava sendo aberta num “vazio de homens e mulheres, terra a ser conquistada e
colonizada”. Entre outras histórias de violência praticadas na sua implantação, ainda
se ouvem, nos dias atuais, “fragmentos de relatos sussurrados, a respeito do genocídio
cometido contra os índios que povoavam o antigo município de Altamira”, os quais
eram “amarrados a tratores que avançavam sobre a selva” (Silva 2008:32). Ela nos
fala também de outras histórias, de mulheres vindas de várias regiões do Brasil, muitas
delas do Nordeste e do Sul e das etapas da chegada: a cidade de Altamira, os
acampamentos e o assentamento no lote.
Relata que as famílias que chegavam vinham fatigadas e barulhentas, entre
crianças e bagagens. Desconheciam o lugar que lhes era destinado, mas aparentavam
20 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

confiança e calma, escondendo com esforço sua ansiedade. No tocante aos


acampamentos, etapa transitória pela qual tinham de passar, as mulheres recordam
lugares sem privacidade, onde não se sentiam à vontade para desempenhar suas
importantes tarefas de donas de casa, mães e esposas. Não sendo aqui possível colocar
todas as experiências que são relatadas sobre essas mulheres, escolho o depoimento
da “informante base” da autora, dona Francisca Coutinho, sua própria mãe, que
descreve o que a antropóloga considera uma típica trajetória da migração nordestina,
no tocante ao acesso ao lote:

Nós passamos uns quinze dias no acampamento, depois fomos levados


para o km 40, agrovila Pena Filho. Acho que passamos dois meses lá.
Depois nós mudamos para o km 70 que já ficava na área do nosso lote.
Meu marido pegou lote no km 75, no travessão. Sete quilômetros para
dentro. A terra não era muito boa, se comparada à terra roxa que as
pessoas do Sul pegaram, mas deu para a gente viver e criar nossos filhos.
Eu tive mais uma filha na Transamazônica e um aborto natural. Passei
muito sufoco com os piuns e as estradas enlameadas e cheias de buraco.
Não dava para passar nada no inverno. Era tudo difícil, principalmente
no começo, quando a gente deixou de receber ajuda do Governo, mas
nunca passamos fome, toda a família trabalhava na roça e dois anos
depois a gente tinha era muita fartura (Silva 2008:133).

A influência da ICAR nas duas áreas da Amazônia

Comunidade de Santo Antônio (em Concórdia do Pará, descrita por Rita de


Cássia Pereira da Costa) e Agrovila de Brasil Novo (a primeira agrovila criada na
Transamazônica, pelo que nos diz Maria Ivonete Coutinho da Silva) são as “comunidades”
em que foram criadas as duas antropólogas. Ambas camponesas amazônidas, puderam ir
além de sua condição inicial — mantendo embora suas raízes no campo — e se tornar
intelectuais que estudaram e refletiram sobre sua própria condição e sobre a condição dos
camponeses dessas duas áreas da Amazônia. Tudo isso está, certamente, entre outros
fatores, ligado à atuação da Igreja Católica nessas áreas.
As mudanças importantes introduzidas na paróquia de Bujaru, onde se situa a
comunidade de Santo Antônio, de que nos fala Rita Pereira da Costa, vão além,
segundo a antropóloga, das mudanças e permanências nas estruturas da Igreja Católica
em diferentes contextos e derivam parcialmente das orientações seguidas por alguns
padres e religiosas que assumiram a paróquia local a partir do final dos anos 1960,
estimulando a formação das Comunidades Eclesiais de Base. Marcaram, dessa forma,
a abertura para a relação entre a Igreja Católica e os diversos movimentos sociais e
associações que surgiram desde então, dos anos seguintes, até os dias atuais. Alguns
desses movimentos surgiram, segundo Rita Costa, em momentos marcantes da história
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 21

política mais recente do Brasil. Um dos mais antigos e importantes, o Movimento de


Mulheres Transformadoras do Campo e da Cidade de Bujaru (MMTCCB), surgiu no
ano de 1968, durante o período ditatorial e no ano da decretação do AI-5. E a este
se seguiram vários outros, como a Associação Bujaruense de Agricultores e Agricultoras
(ABAA), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a Associação de
Remanescentes de Quilombo Oxalá Bujaru (ARQUIOB) e a Associação de
Remanescentes de Quilombo Nova Esperança de Concórdia (ARQUINEC),
influenciados pelas CEBs e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Na mesma área,
passou a atuar o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e ocorreram
articulações no sentido de operar mudanças políticas consideradas de interesse dos
trabalhadores e pequenos proprietários de terra nos sindicatos de trabalhadores rurais
(Costa 2008:131-132).
Sobre a ARQUINEC, a que dá grande importância, diz a autora, num
depoimento pessoal:

Era o ano de 1999, eu acabava de passar no vestibular [para cursar a


graduação em Ciências Sociais na UFPA] e viajei para casa dos meus
pais no povoado de Santo Antônio. Em meio àquela curta estadia de
aproximadamente cinco dias, minha mãe me falou que ali estava
surgindo um movimento, um tipo de associação que considerava muito
importante para nós, e já frisava em sua fala que, no entanto, os filhos
de sócios eram sócios (e não dependentes como no sindicato), mesmo
que estivessem fora para estudar. O que significava que até eu era, assim,
“sócia”. Tratava-se de um “coletivo”, a terra ia ser coletiva e, para que
entrássemos, necessitava que meu pai, o Seu Tibúrcio Valino, abrisse
mão do título definitivo do terreno que possuía para titular coletivamente
(Costa 2008:197).

A partir desse depoimento da quilombola/antropóloga, penso ser válido lembrar


experiência pessoal que tive, há vários anos (entre 1975-1977 e 1984-1985), ao
realizar trabalho de campo em outra comunidade amazônica, a “povoação” de Itapuá,
no litoral paraense, pertencente ao município de Vigia. O lugar é uma ilha onde, à
semelhança de Santo Antônio, no município de Concórdia do Pará, existiam várias
subdivisões, das quais as mais importantes eram Itapuá “de Fora” e Itapuá “de dentro”.
Mas existia também um local chamado “dos pretinhos”, muito provavelmente uma
comunidade remanescente de quilombo (embora não assim reconhecida). Dizia-se
ter sido, ali, local de morada de escravos de plantações de café e cacau de antiga
fazenda, em uma grande ilha das proximidades (a ilha de Colares, um município
distinto do de Vigia), num lugar chamado Tauapará ou Tabapará (Maués 1990; 1995).
Assim se denominavam ou eram denominadas localmente as comunidades existentes
na ilha de Itapuá, onde não havia, na época, a presença de agentes externos que, com
22 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

intenções religiosas e/ou políticas, exercessem influência no sentido de mudar o ethos,


a visão de mundo e o comportamento daquela população, da mesma forma como
agiram os agentes de pastoral católicos em relação a Santo Antônio. Observo que,
no caso desta última comunidade, tal como relatado pela antropóloga e nativa Rita
da Costa, a expressão usada para designar seu lugar de nascimento é “povoado” (em
Itapuá, o termo nativo era “povoação”), a qual, no entanto, por influência de agentes
externos, acabou se tornando uma “comunidade” e, mais ainda, um “coletivo”, uma
“comunidade quilombola”.
No caso da Transamazônica, entre os camponeses assentados nos lotes das
agrovilas, influenciados também pela atuação da ICAR — que estava se transformando
no Brasil da época, entre outras coisas pela adoção da TL —, desde muito cedo
surgiram organizações e movimentos semelhantes, que aproveitavam os tradicionais
“adjuntos” ou “mutirões”, os clubes de mães, as associações nas escolas (pais e mestres),
almoços comunitários, atuação nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Movimento
de Mulheres de Altamira, Movimento de Mulheres em Uruará e outros.
Quanto ao Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Campo e da Cidade (MMTC/
C) de Altamira, diz-nos Ivonete da Silva que ele “tem uma trajetória de participação
efetiva nas lutas por cidadania e justiça, que transcendem a esfera das questões de gênero”.
Muitas são as histórias contadas pelas participantes, as quais na maioria possuem “um
componente de violação dos direitos de sua cidadania”. Suas trajetórias partem “de
realidades de exploração e privação de direitos e de espaço de atuação”. Tendo sido
reconstruídas e repensadas “as trajetórias dessas mulheres”, como diz a autora, “a partir do
diálogo, nem sempre possível, entre participação social (espaço público) e o cumprimento
dos afazeres domésticos, historicamente impostos como papel da mulher (espaço privado)”.
Para Ivonete da Silva, “a maior contribuição do Movimento de Mulheres do Município
de Altamira está ligada ao combate à violência e à injustiça contra mulheres, crianças e
adolescentes”. Ações que foram realizadas “através de passeatas, denúncias,
acompanhamento dos processos no fórum e delegacia, atos públicos exigindo punição dos
criminosos, como também assembleias discutindo políticas públicas e palestras,
incentivando a conscientização das mulheres para denunciar a violência e reivindicar os
seus direitos por dignidade e cidadania” (Silva 2008:238).
Não obstante, a mesma autora, já na conclusão de sua tese, acrescenta um
dado importante, como pesquisadora e nativa, de alguém que viveu sua infância na
Agrovila de Brasil Novo e que hoje é professora da Universidade Federal do Pará no
campus de Altamira. Neste caso, prefiro citar mais longamente suas próprias palavras:

[Ao] contrário do que foi apregoado e repetido por muitos atores que
compuseram esse cenário (Igreja, Estado, famílias e movimentos sociais),
as pessoas que permaneceram na Transamazônica e que construíram
certo capital social e/ou econômico não foram aquelas que chegaram
desprovidas de qualquer patrimônio, seja cultural, econômico, ou social
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 23

(...). A maioria das famílias que se fixaram (...) trouxe consigo alguns
recursos e bens culturais (...). Relatos mostram que essa prerrogativa do
necessitado ou absolutamente carente, atribuída geralmente aos
nordestinos, considerados desprovidos de qualquer capital social ao
migrarem para a Transamazônica, não é condizente com a realidade da
maioria das famílias (...) integrantes do projeto de colonização
governamental (...). Elas (...) portavam algo mais do que a premente
necessidade de sobrevivência. Além de um capital cultural enriquecido
por outras experiências de migrações, muitas dessas famílias detinham
algum recurso financeiro e, sobretudo, certo conhecimento e bens
simbólicos que as singularizavam mediante o forte estigma pré-concebido
face aos nordestinos (Silva 2008:275-276).

Após tratar desses elementos empíricos, já trabalhados pelas duas antropólogas,


em suas dissertação e tese, passo a reflexão mais histórica e teórica, fazendo algumas
considerações sobre esse importante movimento da ICAR, representado pela TL e
pelas CEBs, num contexto mais vasto, considerando, sobretudo, seu momento de
apogeu, bem como a situação atual5. Antes, porém, levando em conta que estou
tratando aqui não somente de Comunidades Eclesiais de Base, agentes de pastoral,
movimentos eclesiais e outros temas concernentes a uma antropologia ou sociologia
da religião, mas também de novas identidades e territorialidades, bem como de
processos de etnogênese — incluindo o surgimento de comunidade quilombola (a de
Santo Antônio) —, torna-se necessário estabelecer um breve diálogo com parte da
produção de campos de pesquisa mais amplos.

Breve diálogo com outros campos de estudo: territorialidade, novas


identidades e etnogênese

Essa questão já foi aflorada acima, quando comentei brevemente o tema da


territorialidade, valendo-me das reflexões de Paul Little sobre povos tradicionais
(Little 2005). Ao enfocar os “povos tradicionais do Brasil” a partir de uma
“antropologia da territorialidade”, Little discute a maneira peculiar segundo a qual
essas populações concebem o território onde habitam, diferentemente das formas
através das quais o Estado regula a propriedade pública e a privada. Desse modo,
existe no Brasil (e não somente no Brasil) não apenas uma “imensa diversidade
sociocultural”, mas também uma “extraordinária diversidade fundiária”. O fato tem-
se tornado cada dia mais importante, obrigando o mesmo Estado a levar em
consideração essa dupla diversidade, o que passou a se expressar mais claramente a
partir da Constituição de 1988. Para esse antropólogo, a teoria da territorialidade, na
antropologia, “tem como ponto de partida uma abordagem que considera a conduta
territorial como parte integral de todos os grupos humanos”. Sua definição de
24 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

territorialidade se aplica ao “esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar,


controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,
convertendo-a assim em seu ‘território’ ou homeland” (Little 2005:3).
Este conceito de homeland é fundamental e se relaciona a três elementos que
dele são indissociáveis: regime de propriedade comum (o que não significa ressuscitar
a surrada noção de “comunismo primitivo”), sentido de pertencimento a um lugar
específico e profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva. Isto
se aplica a populações indígenas, quilombolas, “terras de preto”, populações
extrativistas, caiçaras do litoral brasileiro, pantaneiras e — acrescento, sem mesmo
esgotar a lista — pescadores artesanais do litoral e dos rios e lagos amazônicos. Tudo
isso, porém, não pode ser concebido se não se levar em conta os processos de
construção da memória coletiva, tais como já nos ensinou Halbwachs (1990 [1950])
e tem sido tratado por tantos outros autores depois dele. É, a meu ver, a construção
social da memória coletiva que permite a própria construção do sentido de
pertencimento a um lugar específico.
Vários outros autores têm buscado refletir, nos últimos anos, sobre essas questões,
enfocando aspectos ligados a “novas identidades”, “etnogênese”, “emergência étnica”
e outras expressões e categorias. Um desses autores é Edwin Reesink, que, em artigo
recente, discute a questão das identidades em “comunidades negras rurais” no Brasil,
salientando a tendência dos textos acadêmicos, após a Segunda Guerra Mundial, de
abandonar a palavra “raça”, substituindo-a pelo termo “étnico”, com a intenção de
negar o que o autor chama de reality of race. Segundo ele, essa tendência fortaleceu-
se no Brasil e se tornou comum entre os cientistas sociais na Bahia, onde Reesink
exerce suas atividades como antropólogo. A isto se deve acrescentar a mudança
constitucional de 1988, especialmente no seu artigo 68, que, na versão originalmente
promulgada pelo Congresso, regulava o reconhecimento de direitos à terra aos
“remanescentes de quilombos”6. Esse artigo introduziu a expressão “remanescentes das
comunidades de quilombos”, o que teve efeitos importantes sobre as discussões teóricas
e as implicações políticas da questão (Reesink 2008:133-138).
Daí resulta, também, toda uma discussão no campo da antropologia das
territorialidades, das sociedades tradicionais, da etnologia indígena e vários outros
enfoques. Pretendo aqui destacar somente mais dois autores que me parecem
relevantes, entre outros, para a discussão que apresento neste artigo, além dos que já
comentei acima: José Maurício Arruti (1997) e João Pacheco de Oliveira (1998).
Ao fazer a etnografia dos “índios misturados” do Nordeste, Oliveira discute,
como está indicado no título de seu artigo, as questões teóricas relativas à situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. É relevante aqui reter, sobretudo, a
importância da emergência de novas identidades, processo de retomada da identidade
étnica e/ou de etnogênese dessas populações, a que o pesquisador acrescenta a imagem
da “viagem de volta”, na qual distingue “dois aspectos que explicitam, respectivamente,
a relação entre etnicidade e território e entre etnicidade e características físicas dos
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 25

indivíduos” (1998:64). A outra imagem, associada a essa, de uma espécie de


“peregrinação”, semelhante à dos romeiros descritos nos estudos de antropologia ou
sociologia da religião (lembrar, por exemplo, Victor Turner), é muito pertinente ao
Nordeste, que se traduz pela expressão popular “enterrada no umbigo”. Ter o umbigo
enterrado na terra natal (uma prática mágica ou forma de simpatia praticada pelas
mães) aumenta as chances de retorno:

O que a figura poética sugere é uma poderosa conexão entre o


sentimento de pertencimento étnico a um lugar de origem específico,
onde o indivíduo e seus componentes mágicos se unem e se identificam
com a própria terra, passando a integrar um destino comum. A relação
entre a pessoa e o grupo étnico seria mediada pelo território e a sua
representação poderia remeter não só a uma recuperação mais primária
da memória, mas também às imagens mais expressivas da autoctonia
(Oliveira 1998:64-65).

O artigo de José Maurício Arruti, anterior ao de Oliveira (seu antigo orientador


de tese no Museu Nacional), discute também tais questões e sua retomada aqui
permite reforçá-las e acrescentar aspectos essenciais. Para não me alongar
demasiadamente, escolho apenas uma face a que desejo dar mais ênfase: a relação
entre raça e etnia, já comentada acima, ao tentar dialogar com as formulações de
Edwin Reesink. Para Arruti:

A relevância do movimento analítico que aproxima as “comunidades


remanescentes de quilombos” da noção de “etnicidade” está (...) na
problematização do seu processo de autoconstituição como grupos sociais
e culturais diferenciados, ou, em outros termos, no que a literatura
antropológica convencionou chamar de etnogênese (Arruti 1997:24).

Neste caso, trata-se de uma forma de invenção cultural, não nos termos acima
colocados por mim neste artigo, a partir de Roy Wagner, mas do mais conhecido,
talvez, e agora tão citado trabalho de Hobsbawm e Ranger (1984). Essa forma de
invenção é indissociável do conceito de etnogênese, mas “é preciso estarmos atentos
para o caráter de invenção que constitui qualquer agrupamento social e a própria
definição de sociedade” — aqui o autor cita também o conhecido artigo de Wolf
(1988) sobre “invenção da sociedade” — “para não se atribuir a esse movimento
analítico um sentido negativo, associado às ideias de falsidade, manipulação,
artificialismo etc.” (Arruti 1997:28).
Arruti se apóia fundamentalmente nas formulações teóricas tão conhecidas de
Barth (1969), retrabalhadas, no Brasil, por Cardoso de Oliveira (1976 [1971]; 1978)
e Carneiro da Cunha (1986 [1979]; 1992). A partir de uma perspectiva crítica —
26 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

incorporando parcialmente as críticas de Keyes (1976) a Barth, afirma que se deve


reconhecer o fato de que mesmo se “os movimentos de ressignificação” e de “adoção
e empréstimo de atributos identitários” apresentem-se como “situacionais, os próprios
elementos e a possibilidade de operar essas ressignificações, adoções ou empréstimos
não o são”. E conclui: “Como aponta Keyes, na prática, mesmo os autores interessados
primariamente na diferenciação estrutural de grupo étnico, empregam algum ‘dado’
cultural para definir sua natureza, como aliás é sempre reivindicado pelos próprios
observados”. Utilizando então a expressão “plasticidade identitária formadora desses
grupos”, afirma que ela “permite, efetivamente, que eles ‘resgatem’, ‘recuperem’,
elementos substantivos de identidade que passam a integrar seus processos de
emergência, mas como ‘matérias-primas’ que precisam ser manufaturadas pelas forças
mobilizadas no seu interior, na forma de desejos coletivos” (Arruti 1997:28).

Considerações sobre as CEBs e a TL no Brasil

No campo das ciências sociais, vários autores tratam do surgimento das CEBs
e de seus desenvolvimentos — no Brasil, influenciadas pela TL —, cuja ideia
fundamental foi plantada, de fato, desde os anos 1950, mas que nasceram de modo
mais efetivo como fruto do Concílio Vaticano II, a partir dos anos 1960 (Macedo
1986; Prandi 1997; e Mainwaring 1989, entre outros). Lembrando a frase cunhada
à época, “um novo jeito de ser Igreja”, Reginaldo Prandi nos diz que as CEBs tiveram
seu começo, em vários países da América Latina, nesses mesmos anos 1960, tendo
tido suas “sementes” nos grupos de reflexão bíblica (Prandi 1997:97-98). Há todo um
conjunto de acontecimentos inter-relacionados que surgem mais ou menos
simultaneamente naquele momento, no Brasil: a fundação da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB); o Movimento de Educação de Base (MEB) — criado
e mantido pela própria CNBB, com apoio do governo federal —; as mudanças na
Ação Católica (AC) e nesta, sobretudo, o desenvolvimento da Juventude Universitária
Católica (JUC), que dará origem ao partido (católico?) de esquerda intitulado Ação
Popular (AP); a TL — cuja origem não é só brasileira —; o Movimento das Ligas
Camponesas (do qual participavam pessoas de variadas filiações religiosas, mas,
também, sem confissão religiosa explícita); e, para finalizar, sem no entanto esgotar
a lista, o processo de sindicalização rural, sobretudo no Nordeste, mas também na
Amazônia e em várias outras partes do país.
No posfácio a seu belo livro — “de corpo e alma” —, Regina Novaes (Novaes
1997:213-221) procura ilustrar a história recente “da luta no campo no Brasil,
enfatizando [su]as dimensões simbólicas”, dividindo-a em três períodos, cada um
deles sinalizado pela presença de três mulheres nordestinas, que surgem como uma
espécie de símbolo no processo de luta pela terra. O primeiro momento (anos 1950
e 1960) foi marcado pela “construção da identidade camponês” (grifo da autora),
onde se destaca a figura de Elizabeth Teixeira, que se tornou líder de uma liga após
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 27

a morte do marido, tendo ao mesmo tempo sido afligida por outras formas de
sofrimento. Esse é o período que corresponde às principais mudanças referidas no
parágrafo anterior e que antecede o golpe militar de 1964 e a implantação do longo
período ditatorial, em sintonia com o que acontecia em outros países da América
Latina. O segundo momento, entre os anos 1960 e 1980, em plena época da ditadura
militar, diz respeito à construção de outra identidade, a de “trabalhador rural”, sendo
marcado pela “trajetória de Margarida Maria Alves, enquanto presidente de uma
organização sindical”, a qual, como é bem conhecido, foi vítima de assassinato brutal,
constituindo-se como uma das mais importantes mártires do movimento popular no
campo. E finalmente o terceiro período, começando nos anos 1990, cuja figura
simbólica é Diolinda Alves da Silva — mulher de José Rainha, um dos mais destacados
líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra —, “uma personagem
pública” que pode, na visão de Regina Novaes, “exprimir aspectos do delineamento
da identidade dos sem terra” (grifo da autora). Tendo eu mesmo, acima, destacado
duas figuras femininas emblemáticas da luta popular em duas áreas da Amazônia, a
partir dos trabalhos de Rita da Costa e Ivonete Coutinho, nesse segundo período a
que se refere Novaes, gostaria, portanto, de dar destaque especial ao que diz esta
última autora a respeito de Margarida Maria Alves:

Em sua trajetória, Margarida se inseriu no Movimento Sindical dos


Trabalhadores Rurais (...). Mesmo não sendo membro de uma
Comunidade Eclesial de Base, passa a usufruir das informações e espaços
oferecidos pelas pastorais rurais [da ICAR] da Paraíba (...). A seu modo,
sem se filiar, Margarida recebeu Lula e subiu no palanque de comícios do
PT em Alagoa Grande, mas e ao mesmo tempo, em nível local, negociou
apoio a certo candidato do Partido da Frente Liberal, como forma de
responder ao ataque de fazendeiros e usineiros, filiados ao PMDB, que
perseguiam seu trabalho no sindicato (...). Foi esta Margarida — conectada
com as Federações de Trabalhadores Rurais dos estados do Nordeste e com
a CONTAG [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura],
com pastorais e com o CENTRU [Centro do Trabalhador Rural] — que
encaminhou ao Ministério do Trabalho pedidos de fiscalização no município.
Constatadas muitas irregularidades, as multas deveriam começar a ser
cobradas, as ameaças dos usineiros do município não tardaram. Mesmo
assim não se acovardou (...). Margarida Maria Alves morreu assassinada,
em 12 de agosto de 1983, quando pistoleiros contratados por usineiros
seus adversários dispararam vários tiros de espingarda. O assassinato de
Margarida Maria Alves é emblemático [mostrando que não] só na
Paraíba, mas por todo o Brasil, os grandes proprietários de terra, embora
guardem entre si diferenças econômicas, se articulavam e se articulam
politicamente (Novaes 1997:216).
28 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

Vale também aqui lembrar que as CEBs, no Brasil, viveram dois momentos: o
primeiro, nos anos 1970 e 1980, logo após seu aparecimento, que pode ser considerado
o seu boom, e uma fase de aparente enfraquecimento, em que, segundo o autor acima
citado Reginaldo Prandi, encontravam-se (em 1994), “em visível declínio” (Prandi
1997:14). Isso é também acentuado por Ivo Lesbaupin e colaboradores, que nos
dizem: “Nos anos 90, num quadro político e eclesial desfavorável, as CEBs passaram
por mudanças significativas, a ponto de alguns intelectuais anunciarem o seu fim”.
Em continuação, Lesbaupin completa o quadro:

De fato, a crise do socialismo real e, sobretudo, a implementação das


políticas de cunho neoliberal e a recessão econômica tiveram
importantes reflexos nas classes populares e na capacidade de mobilização
de alguns movimentos sociais (...) com os quais as CEBs eram muito
articuladas. No campo eclesial, o avanço do projeto centralizador, levado
em frente pelo Vaticano, provocou uma desaceleração do compromisso
libertador da Igreja católica latino-americana (...). Por outro lado,
mudanças no campo religioso, especialmente o crescimento do
Pentecostalismo e, no interior da Igreja católica, do Movimento
Carismático, também alteraram a dinâmica das CEBs. Esse novo quadro
contextual deslocou o foco de atenção da mídia e de muitos intelectuais
dando a impressão que as CEBs passavam por uma crise profunda ou
que tinham desaparecido. A continuidade e vitalidade dos Encontros
Diocesanos, Regionais e Intereclesiais parece indicar, pelo contrário,
que as CEBs permanecem atuantes, embora venham passando por
transformações no jeito de ser e de atuar (Lesbaupin et al 2004).

A vitalidade das CEBs é atestada por vários trabalhos recentes, além dos de
Rita da Costa e Ivonete Coutinho, na Amazônia, e do artigo de Lesbaupin e
colaboradores (cf., entre outros, Boff et al 1997a; Burdick 1998 [1993]; Domezi 2006;
Mariz e Machado 2008; Marques 2007). Um desses trabalhos — dos mais recentes
— é o do sociólogo católico Pedro Ribeiro de Oliveira (que, aliás, tem vários trabalhos
publicados sobre o tema). Oliveira realizou estudo comparativo sobre as lideranças
de CEBs no Brasil, investigando seus Encontros Intereclesiais de 1981, 2000 e 2005,
através de questionários preenchidos pelos participantes. Apesar das limitações da
pesquisa, de caráter quantitativo — discutidas e reconhecidos pelo próprio autor ,
suas conclusões confirmam também essa vitalidade. A conclusão final é a seguinte:

Enfim, a pesquisa comprova a continuidade da caminhada das CEBs


nesses vinte e cinco anos, apesar de seus percalços. Sua prática política
[isto é, das lideranças investigadas] é de esquerda, e sua prática religiosa
pauta-se pela institucionalidade católica, inclusive no que tange sua
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 29

situação matrimonial conforme as normas eclesiásticas. A ligação entre


a fé cristã e a prática política libertária, que desde seu início marca as
CEBs, continua firme (Ribeiro de Oliveira 2008).

Em conclusão: algumas ambiguidades, contradições ou paradoxos (que não


invalidam as afirmações de cidadania)

Isso não significa a ausência de ambiguidades, impasses e limitações. O discurso


religioso costuma ser ambíguo, como também o discurso político. Há nele muitas
contradições e paradoxos. Para abordar essas questões é preciso, nesta conclusão,
tratar, em primeiro lugar, do conceito de comunidade.
A própria noção de comunidade não pode ser unívoca. Por outro lado, naquilo
que se chama comunidade não estão ausentes as tensões e as formas de
comportamento que resultam em reciprocidade negativa. A questão já foi aflorada
acima, quando acentuei, a partir das formulações nativas/populares, na “comunidade”
de Santo Antônio, a feliz expressão de um interlocutor que falava a Rita da Costa de
comunidade “num sentido social de evangelização”.
Eunice Durham, orientadora de tese e apresentadora do belo livro de Carmem
Cinira Macedo, Tempo de Gênesis (Macedo 1986), já detectava muito bem essa questão,
quando dizia, referindo-se à comunidade analisada por esta antropóloga, que estudou
as CEBs num bairro da cidade de São Paulo:

O termo comunidade, tal como usado pela Igreja e pelos habitantes do


bairro, não traduz a realização concreta da prática implícita no conceito,
mas constitui um modelo (grifo meu) que permite ordenar um conjunto de
práticas outras, através do estabelecimento de critérios que permitam avaliar
positiva ou negativamente a ordem social existente (Durham 1986:9).

Para Eunice Durham a noção de comunidade “se apresenta como uma imagem
que revela a sociedade em seu negativo”, permitindo uma crítica da própria sociedade,
pois, “pelo contraste, torna visíveis e faz com que assomem à consciência a
desigualdade, a opressão, a impessoalidade, a fragmentação própria do individualismo
possessivo da sociedade de massa”. Permite ainda tornar compreensíveis a seus
membros as experiências que estão fora dela, na sociedade envolvente, e, com isso,
opor-se ao sistema mais vasto, “localizando-se como cidadãos e como pessoas,
explorando suas contradições e tentando construir práticas alternativas” (Durham
1986:9-10).
Carmem Cinira Macedo nos fala, em seu livro, de “ambiguidades” nas CEBs.
Nem sempre se trata propriamente de ambiguidades, mas às vezes de contradições ou
paradoxos. A principal ambiguidade apontada pela autora diz respeito à relação entre
a estrutura hierárquica e autoritária da ICAR (de modelo episcopal e sacramental,
30 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

embora ela não diga isso com todas as letras) e ao fato de ao padre caber sempre a
última palavra, como acontecia também, no passado, com movimentos tradicionais,
mesmo que avançados do ponto de vista ideológico, como a Ação Católica (AC) e
especialmente alguns de seus setores, tendo como movimento paradigmático a
Juventude Universitária Católica (JUC), na passagem dos anos 1950 para 1960. Essa
contradição faz com que, nas decisões, sobretudo as mais polêmicas, acabe
predominando a posição do padre, ou mesmo do bispo, em detrimento da decisão
majoritária ou mesmo de consenso da CEB como “comunidade”. A autora aponta,
em seu livro, mais três “ambiguidades”. A primeira tem a ver com a desigualdade das
classes sociais na sociedade em geral: “o problema dos ricos e pobres, ou seja, a
divisão dentro da riqueza” que constitui uma “questão séria para a Igreja”. A segunda
diz respeito à “articulação de uma verdade universal com a verdade que surge da
base”. E a terceira se refere à possibilidade de “articular uma comunidade cristã em
que os membros apresentam diferenças significativas quanto à posse da riqueza”. Em
épocas anteriores, a noção de caridade permitiu encaminhar o problema, mas, diante
das tensões do mundo moderno, isto se torna impossível de sustentar e, por isso,
“opera-se na Igreja uma transformação que consiste na passagem da denúncia do
pecado (a favor da “caridade cristã”) para a denúncia das estruturas sociais apontadas
como responsáveis pelas desigualdades e pela injustiça”. Completando seu pensamento
a respeito de tais ambiguidades, a antropóloga acrescenta mais uma:

Isso significa uma óbvia politização ou, melhor dizendo, uma nova forma
de politização da atuação da Igreja, em que a noção de libertação vai se
instalando cada vez mais no seio da própria história e se configurando
como uma proposta de criação de uma vida nova, para todos, ainda
neste mundo. Mais uma vez, a noção permanece carregada de uma certa
ambiguidade [e] essas ambiguidades todas criam um espaço de
indeterminação que é exatamente o que permite à Igreja operar no
sentido de integrar contradições e procurar preservar seu espaço de poder
no mundo como instituição “católica”, ou seja, universal (Macedo
1986:56-57).

Pelo menos algumas dessas características são reconhecidas por membros da


ICAR (“nativos” do catolicismo, portanto), como é o caso, certamente, de Clodovis
Boff, que, ao se referir às CEBs, afirma que “fazem parte constitutiva da grande Igreja”
e que (como é óbvio, acrescento) “em termos institucionais dependem dela”.
Consequentemente, essa dependência cria para elas “uma situação de ambiguidade”,
residindo aí “sua força e também sua fraqueza”. E, mais ainda, pelo que nos diz Boff,
tal “dependência fragilizante das CEBs em relação à Igreja institucional se mostra em
dois pontos: dependência do arbítrio dos pastores para sua aprovação; e dependência
do ministro ‘de fora’ para a Eucaristia”. Isso obriga o sacerdote a seguir na prática o
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 31

“velho modo de ser igreja”, mesmo que esteja pessoalmente envolvido com a nova
“caminhada”. Embora possa ter mudado de orientação, seu compromisso institucional
permanece o mesmo, pois “está submetido à instituição, como todo bom funcionário”,
só lhe restando “as poucas margens de tolerância que a elasticidade da instituição lhe
permite” (Boff 1997c:254-258)7.
Na verdade, o teólogo nativo (católico) constrói um modelo (como diz Eunice
Durham, na citação acima) em que as CEBs são inventadas conceitualmente por
aquilo que se apresenta a seus olhos e ouvidos como fenômeno, mas também como
projeção imaginária do que deve ser, como utopia. É ainda o próprio Boff quem nos
auxilia nessa compreensão: “As CEBs são também a representação [negrito no original]
que se faz delas no imaginário eclesial e social. E na constituição dessa representação
os teólogos tiveram um papel determinante”. A imagem dos teólogos sobre as CEBs,
mais ampla e genérica — e que eles costumam transmitir — não corresponde de
modo fiel àquela que possuem as bases, que, sendo mais concreta, é também mais
limitada. Há ainda variações entre os agentes intermediários. Isso acontece porque
os teólogos (e também os cientistas sociais, estudiosos do fenômeno) costumam
observar as CEBs em momentos especiais (encontros, Intereclesiais). Já as bases as
compreendem “a partir do seu cotidiano, tantas vezes penoso”. O que conduz à
construção de “duas imagens das CEBs: a festiva e a ferial” (Boff 1997c: 260)8.
Tudo isso pode relacionar-se com formulação que apresentei há vários anos, ao
publicar artigo em Ciência e Cultura (Maués 1988), tratando daquilo que chamei de
“impasses da romanização e da Teologia da Libertação”, analisando as contradições
e ambiguidades dos dois movimentos (sobretudo da romanização) nas suas relações
com o catolicismo popular brasileiro. A conclusão a que chegava, que hoje reconheço
ser incompleta, dizia respeito a uma dificuldade dos dois movimentos de entender a
lógica do catolicismo popular, um catolicismo social, não do mesmo gênero daquele
proposto pelos agentes da TL, mas social no sentido das festas e devoções, do
comunitário, da generosidade, da dádiva e da ostentação de bens e de prestígio. Na
época, Carmem Cinira, de saudosa memória, chegou a comentar comigo tal artigo,
que havia lido, mas não percebi naquele momento a relação que o mesmo poderia
ter com essa ambiguidade fundamental a que ela se refere em seu livro, já então
publicado. De fato, esse é um aspecto de grande importância, que faz relação com a
última ambiguidade a que me refiro — as duas formas de conceber o social, a da TL
e das CEBs, em contraste com o social do catolicismo tradicional e popular —, que
pode ser relacionada não só à TL e às CEBs, mas também ao movimento da
romanização que, no final do século XIX e início do XX, promoveu uma ampla
reforma conservadora e europeizante no catolicismo brasileiro, em sintonia com o
que estava acontecendo na ICAR, em plano mundial.
Não obstante, nada disso obscurece o fato de que a atuação dos agentes da
ICAR — informados pela TL — tanto no campo como na cidade, na implantação
e animação das CEBs, tem contribuído desde os anos 1960 (e continua contribuindo)
32 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

para a implantação de novas formas de cidadania — inclusive no que diz respeito às


relações de gênero. Foi o que busquei mostrar acima, ao me deter no que vem
acontecendo em duas áreas da Amazônia, mais particularmente em duas comunidades.
Repito: duas “comunidades no sentido social da evangelização”.
E aqui vale lembrar o conceito de popularização, utilizado pelo antropólogo Carlos
Rodrigues Brandão, ao tratar da relação entre o saber popular e o erudito, em sua tese de
doutorado, depois transformada em livro: Os Deuses do Povo. Para esse antropólogo, a
popularização resulta da “transformação de um sistema religioso erudito, doutrinário e
sacramental, em outro, comunitário e devocional”, sendo “o resultado de um exercício
coletivo da população, dentro de um setor de cultura e entre um domínio político e o
outro”. Não é resultante de “má aprendizagem”, nem de “uma espécie de ‘caipirização’
ingênua ou depravada. Por outro lado, o repertório de crenças e práticas populares não
constitui um sistema ‘tradicional’ e estático, ‘coisa dos antigos’, como alguns agentes”
externos costumam dizer. O povo recebe a mensagem erudita desses agentes (políticos,
militantes, sindicalistas, agentes de pastoral, sacerdotes etc.) e, “embora perca frações da
ciência de trabalho religioso” (ou de outro tipo), reinterpreta tal mensagem, retraduzindo-
a dialeticamente, nos seus próprios termos e adaptando-a aos seus próprios interesses e
modos de vida (Brandão 1980:204)9.
É o que certamente acontece no caso das duas comunidades amazônicas
examinadas acima e em muitas outras situações, no campo ou na cidade, que recebem
o influxo dos agentes da ICAR na implantação das Comunidades Eclesiais de Base,
“um novo modo de ser igreja” que se transforma, ao mesmo tempo, em um novo
modo de atuar política e religiosamente (sem, no entanto, abandonar por completo
suas tradições, nem sua atitude crítica em relação ao que vem de fora).
Talvez um dos exemplos mais úteis para o entendimento desse processo seja o
da constituição de uma “comunidade quilombola”, como foi examinado acima, a
partir da dissertação de mestrado da antropóloga e quilombola Rita da Costa. Ela
afirma: “Era o ano de 1999, eu acabava de passar no vestibular [para cursar a graduação
em Ciências Sociais na UFPA] e viajei para casa dos meus pais no povoado de Santo
Antônio” (Costa 2008:194). Era o momento da transformação de seu povoado natal em
comunidade quilombola. Pelo que ela informa em sua dissertação, isso ocorreu pela ação
e influência de agentes de pastoral da ICAR e de outros agentes políticos que tiveram
impacto no processo que levou os membros do povoado a se assumir como quilombolas,
renunciando a seus títulos de terra individuais para que todas as terras se transformassem
em um coletivo, constituindo assim o que aquele camponês, acima referido, pôde designar
de “comunidade no sentido social da evangelização”. Mas certamente tiveram sua
mensagem retraduzida por esses sujeitos. Deu-se então a invenção de uma nova
comunidade, mas, ao mesmo tempo, esse fato fortaleceu politicamente os membros do
povoado, que, ao assumirem a nova identidade, passaram a ter elementos para obter
maior eficiência na reivindicação de seus direitos, como camponeses e quilombolas.
Isso, porém, não se faz sem tensões, levando-se em conta a existência de ambiguidades,
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 33

contradições e paradoxos nas próprias comunidades, sejam elas as CEBs, as


comunidades camponesas ou as comunidades quilombolas (muitas vezes, como no
caso, também camponesas). Sobre isso, muito ainda se precisa refletir e estudar.

Referências Bibliográficas

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(Endnotes)

Notas
1
Este trabalho foi apresentado originalmente com o título de Novas Formas de Afirmação de
Cidadania na Amazônia Oriental Brasileira: CEBs, Camponeses e Quilombolas no GT Igrejas,
Religiões e Novas Formas de Cidadania, durante as 15as Jornadas sobre Alternativas Religiosas
na América Latina, em Santiago do Chile, ocorridas no período de 11 a 14 de novembro de 2009.
Agradeço às coordenadoras Eugenia Fediakova e Maria das Dores Campos Machado e aos
demais participantes desse GT pela aceitação do trabalho e pelos valiosos comentários feitos na
ocasião, que foram muito úteis para sua reformulação.
2
Agradeço aos pareceristas anônimos de Religião e Sociedade que me sugeriram reformular o texto,
tanto no que diz respeito a aspectos formais como de conteúdo, propondo-me especialmente o
diálogo com outros autores e teorias. Permaneço evidentemente como o único responsável pelos
possíveis erros e omissões existentes no artigo.
36 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010

3
Agradeço também a essas duas antropólogas, minhas ex-alunas, que me autorizaram a trabalhar
algumas informações empíricas constantes em seus trabalhos e que também leram o presente
trabalho, contribuindo para ele com sugestões valiosas.
4
Neste parágrafo a autora se apoia parcialmente nos trabalhos de Iokoi (1996), Macedo (1986)
e de Marques (2007).
5
Utilizo o termo “movimento” para me referir às CEBs num sentido mais amplo, de movimento
social, mas devo também levar em conta a visão nativa (católica), tal como é expressa, por
exemplo, por Clodovis M. Boff em dois de seus trabalhos, onde faz uma clara distinção entre
CEBs como um tipo de comunidade católica (comunidade de base), mostrando a diferença não
só entre comunidades distintas na ICAR, mas também entre comunidades e movimentos, nessa
mesma Igreja (cf. Boff 1997b; 1997c).
6
O artigo 68 da Constituição de 1988 tem a seguinte redação original: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
7
A argumentação é mais longa e, para melhor explicitá-la, transcrevo a continuação do texto de
Clodovis Boff: “É evidente que o ‘novo modo de ser igreja’ supõe também um novo modo
funcional (e não só pessoal) de ser padre. Seria um ministro da celebração eucarística que venha
de baixo, que surja da própria comunidade. Mas aqui tocamos um punctum dolens ou crucial da
instituição eclesiástica, um ponto vital. É um nó que junta pelo menos duas questões estruturais
heterogêneas e que não vai ser fácil de desatar: a questão da estrutura sacramental da Igreja,
pela qual a Ordem aparece como uma peça estruturante de sua constituição teológica (jus
divinum: direito divino); e a questão da estrutura sociológico-histórica, pela qual o clero perpetua
o monopólio do poder religioso dentro da Igreja (jus humanum: direito humano)” (Boff: 1997 c:
258-259; grifos no original).
8
O autor cita em apoio a sua afirmação artigo de Luiz Alberto Gómez de Souza, conhecido
sociólogo católico, publicado na REB, em que o mesmo comenta o VI Encontro Intereclesial das
CEBs de Trindade, ocorrido em 1986 (cf. Souza 1986).
9
Este conceito de popularização, a partir das formulações de Brandão, é empregado em meu livro
sobre as relações entre catolicismo popular e controle eclesiástico na Amazônia (cf. Maués 1995:
183;262).

Recebido em fevereiro de 2010


Aprovado em julho de 2010

Raymundo Heraldo Maués (hnaues@uol.com.br)


Antropólogo e Professor Emérito da Universidade Federal do Pará. Trabalha como
professor voluntário na mesma Universidade e faz parte do corpo de professores
permanentes do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Bolsista de
Produtividade do CNPq. Publicou os livros Padres, Pajés, Santos e Festas e Uma outra
invenção da Amazônia, ambos pela Editora Cejup (Belém), assim como vários artigos
sobre catolicismo e antropologia da saúde.
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 37

Resumo:

O estudo sobre novos movimentos eclesiais na Igreja Católica, desenvolvido na


Amazônia Oriental brasileira, permite uma reflexão sobre a influência dessa Igreja
em duas áreas rurais do estado do Pará: a Transamazônica e a microrregião de
Tomé Açu. Em ambas, sua atuação, através das chamadas Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs), muito ativas, desempenha papel relevante entre as populações
dessas áreas. O artigo se propõe a analisar a condição social dessas populações
que, em função de suas vivências e práticas, incorporando criticamente a
influência de agentes de pastoral, assumem novas identidades e novas práticas de
natureza política e religiosa, antes não existentes em seu meio.

Palavras-chave: Igreja Católica, Novos Movimentos Eclesiais, Amazônia,


Comunidades Eclesiais de Base

Abstract:

The study about new ecclesial movements in the Roman Catholic Church, in
Oriental Brazilian Amazon, has allowed a reflection on the influence of that
Church in two rural areas of the State of Pará: the Transamazônica Highway and
the Tomé Açu micro-region. In both, the so-called Ecclesial Base Communities,
very active, play important role between the populations of these areas. The
article proposes to examine the social condition of those people who, according to
their experiences and practices, incorporating critically the influence of pastoral
agents, take on new identities, and new political and religious practices, not present
before in their territory.

Keywords: Roman Catholic Church, New Ecclesial Movements, Brazilian Amazon,


Ecclesial Base Communities.

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