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OMUNIDADES
EVANGELIZAÇÃO ”: CEB S , C AMPONESES E
Q UILOMBOLAS NA A MAZÔNIA O RIENTAL
BRASILEIRA
movimento”, acrescentando também que era “uma pobre mulher, que tinha um filho
que morreu, mas ela era uma mulher perigosa” [meu grifo, RHM] (Costa 2008:160-
161). Com isso, a interlocutora expressa sua admiração por uma mulher forte que não
se deixava abater e enfrentava a luta de engajamento político-social.
Vale observar que, na área, a atuação política de Margarida era também interpretada
como resultado da sua tragédia pessoal, por ter perdido o filho. Além disso, deve ser
ressaltado que a expressão usada por Dona Izabel, referindo-se a ela como “mulher perigosa”,
é bem característica de certas áreas de ocupação tradicional no interior do Pará —como
é o caso dos municípios de Bujaru e Concórdia —, para designar mulher valente e cheia
de ânimo, que supera suas limitações físicas e de outro tipo, através da coragem, como nos
diz a antropóloga que colheu esses depoimentos.
deveria chegar ali em “prazo próximo”. A mesma era interligada através de estrada
não pavimentada e de alguns caminhos. Localiza-se nas proximidades do rio Bujaru,
sendo também cortada por três riachos (igarapés): Cravo, Taiuára e Busca Fogo, que
desaguam naquele rio. A principal atividade econômica era a agricultura, servindo
não só para prover alimento, mas também, através da comercialização, para a compra
de bens de consumo e de energia elétrica. Além da agricultura, “uma boa parte das
pessoas” completava “o orçamento familiar com renda proveniente de aposentadoria,
pensões e benefícios como o ‘bolsa família’” (Costa 2008:34-61).
Um documento manuscrito, de autoria da professora Sebastiana (conhecida por
Sabá), moradora de Santo Antônio — consultado pela antropóloga Rita da Costa e
parcialmente reproduzido como figura escaneada em sua dissertação — é muito ilustrativo
sobre o processo de criação/invenção de tal comunidade. Tem como título Como tudo
começou a nos despertar a ter uma Comunidade. A despeito de certa oposição do pároco
do lugar, que “colocou diversas preocupações de se criar mais outra comunidade” pelo
motivo de que “podia fracassar a comunidade de Santana”, também do município, “nós
achamos que não, porque somente seis pessoas participavam em Santana e que ficavam
mais de cem pessoas fora” (apud Costa 2008:83). Por outro lado, a comunidade era criada,
como as outras, “num sentido social de evangelização”.
Este é um ponto importante para mostrar a relevância da atuação de agentes
externos, sobretudo ligados à ICAR, como nos diz Rita da Costa, depois de lembrar
que a mesma foi utilizada por um de seus interlocutores de pesquisa: “comunidade
num sentido social tem a ver com a organização social e as mobilizações políticas
com base na identidade étnica de remanescentes de quilombo, que inclui a luta em
torno da associação e a busca de melhorias para o povoado” A expressão, muito
sugestiva, refere-se “à prática religiosa orientada pela Igreja Católica” e também “à
organização em torno da Comunidade Eclesial de Base”, mas não desvinculada de
uma “relação da Igreja” com os “movimentos sociais e da orientação teórico-
metodológica da teologia da libertação, que tem repercussão local” (Costa 2008:74)4.
É neste sentido que se pode dizer que os agentes externos da ICAR, motivados
pela Teologia da Libertação (TL) e visando constituir as CEBs no lugar, desempenham
papel fundamental no sentido de forjar/inventar as comunidades daquela área, na
feliz expressão de um de seus habitantes, o camponês/quilombola que nos fala em
“comunidade, num sentido social e da evangelização”. Dá-se uma dupla invenção
(Wagner 1981 [1975]): inventa-se a comunidade, inventa-se o quilombo e surge,
daí, a “comunidade quilombola” como sujeito de direitos, na medida em que seus
integrantes assumem essa identidade que lhes é, num certo sentido, oferecida, mas ao
mesmo tempo construída por eles, porque é também política. Isso os estimula, entre
outros fatores, a lutar por seus direitos (não sem conflitos e divergências, como
assinala, em algumas passagens, a antropóloga em cujo trabalho me fundamento
aqui). Cabe ainda uma observação: a pesquisadora, Rita de Cássia Pereira da Costa,
bacharel e licenciada em Ciências Sociais e também mestre em Antropologia é, ao
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 19
mesmo tempo, quilombola. Uma mulher nativa dessa mesma comunidade que estuda,
transitando, com desenvoltura, entre as duas identidades: de intelectual (num sentido
estrito, mas também orgânico, nos termos de Gramsci) e de quilombola, com todos
os direitos, inclusive ao da posse coletiva da terra.
Pode-se também aqui pensar, num contexto mais vasto, não apenas religioso,
que se aplica certamente ao caso, no momento em que, tratando de povos tradicionais,
outro antropólogo, Paul Little, discute os territórios por eles ocupados dentro do que
chama de uma “antropologia da territorialidade”. Neste contexto, Little afirma que
“a historicidade desses territórios é complementada pela historicidade dos conceitos
que são utilizados para entendê-los e enquadrá-los”. E, explicitando melhor seu
pensamento, complementa: “o processo de criação de conceitos territoriais é, por um
lado, uma atividade acadêmica centrada na descrição das territorialidades existentes
e, por outro, uma atividade política utilizada para o reconhecimento legal do que
existe socialmente” (Little 2005:5). Mas não só da parte do antropólogo ou do analista
social. Ainda me referindo a Roy Wagner e a seu conceito de “antropologia reversa”
(Wagner 1981 [1975]:31), por extensão, dá para pensar que os próprios nativos —
quilombolas da comunidade de Santo Antônio —, assumindo a identidade de
quilombolas que lhes é oferecida pelos agentes externos, religiosos ou não, aceitam-
na num sentido político, reinventando-a, mas também mantendo suas identidades
originais e tradicionais e acrescentando a elas as “criações sociais, feitas
simultaneamente de imaginação sociológica, criações jurídicas, vontade política e
desejos” (Arruti apud Little 2005:15; também citado por Costa 2008). O mesmo se
pode dizer dos colonos/camponeses migrantes para a Transamazônica, dos quais passarei
a tratar a seguir.
[Ao] contrário do que foi apregoado e repetido por muitos atores que
compuseram esse cenário (Igreja, Estado, famílias e movimentos sociais),
as pessoas que permaneceram na Transamazônica e que construíram
certo capital social e/ou econômico não foram aquelas que chegaram
desprovidas de qualquer patrimônio, seja cultural, econômico, ou social
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 23
(...). A maioria das famílias que se fixaram (...) trouxe consigo alguns
recursos e bens culturais (...). Relatos mostram que essa prerrogativa do
necessitado ou absolutamente carente, atribuída geralmente aos
nordestinos, considerados desprovidos de qualquer capital social ao
migrarem para a Transamazônica, não é condizente com a realidade da
maioria das famílias (...) integrantes do projeto de colonização
governamental (...). Elas (...) portavam algo mais do que a premente
necessidade de sobrevivência. Além de um capital cultural enriquecido
por outras experiências de migrações, muitas dessas famílias detinham
algum recurso financeiro e, sobretudo, certo conhecimento e bens
simbólicos que as singularizavam mediante o forte estigma pré-concebido
face aos nordestinos (Silva 2008:275-276).
Neste caso, trata-se de uma forma de invenção cultural, não nos termos acima
colocados por mim neste artigo, a partir de Roy Wagner, mas do mais conhecido,
talvez, e agora tão citado trabalho de Hobsbawm e Ranger (1984). Essa forma de
invenção é indissociável do conceito de etnogênese, mas “é preciso estarmos atentos
para o caráter de invenção que constitui qualquer agrupamento social e a própria
definição de sociedade” — aqui o autor cita também o conhecido artigo de Wolf
(1988) sobre “invenção da sociedade” — “para não se atribuir a esse movimento
analítico um sentido negativo, associado às ideias de falsidade, manipulação,
artificialismo etc.” (Arruti 1997:28).
Arruti se apóia fundamentalmente nas formulações teóricas tão conhecidas de
Barth (1969), retrabalhadas, no Brasil, por Cardoso de Oliveira (1976 [1971]; 1978)
e Carneiro da Cunha (1986 [1979]; 1992). A partir de uma perspectiva crítica —
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No campo das ciências sociais, vários autores tratam do surgimento das CEBs
e de seus desenvolvimentos — no Brasil, influenciadas pela TL —, cuja ideia
fundamental foi plantada, de fato, desde os anos 1950, mas que nasceram de modo
mais efetivo como fruto do Concílio Vaticano II, a partir dos anos 1960 (Macedo
1986; Prandi 1997; e Mainwaring 1989, entre outros). Lembrando a frase cunhada
à época, “um novo jeito de ser Igreja”, Reginaldo Prandi nos diz que as CEBs tiveram
seu começo, em vários países da América Latina, nesses mesmos anos 1960, tendo
tido suas “sementes” nos grupos de reflexão bíblica (Prandi 1997:97-98). Há todo um
conjunto de acontecimentos inter-relacionados que surgem mais ou menos
simultaneamente naquele momento, no Brasil: a fundação da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB); o Movimento de Educação de Base (MEB) — criado
e mantido pela própria CNBB, com apoio do governo federal —; as mudanças na
Ação Católica (AC) e nesta, sobretudo, o desenvolvimento da Juventude Universitária
Católica (JUC), que dará origem ao partido (católico?) de esquerda intitulado Ação
Popular (AP); a TL — cuja origem não é só brasileira —; o Movimento das Ligas
Camponesas (do qual participavam pessoas de variadas filiações religiosas, mas,
também, sem confissão religiosa explícita); e, para finalizar, sem no entanto esgotar
a lista, o processo de sindicalização rural, sobretudo no Nordeste, mas também na
Amazônia e em várias outras partes do país.
No posfácio a seu belo livro — “de corpo e alma” —, Regina Novaes (Novaes
1997:213-221) procura ilustrar a história recente “da luta no campo no Brasil,
enfatizando [su]as dimensões simbólicas”, dividindo-a em três períodos, cada um
deles sinalizado pela presença de três mulheres nordestinas, que surgem como uma
espécie de símbolo no processo de luta pela terra. O primeiro momento (anos 1950
e 1960) foi marcado pela “construção da identidade camponês” (grifo da autora),
onde se destaca a figura de Elizabeth Teixeira, que se tornou líder de uma liga após
MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 27
a morte do marido, tendo ao mesmo tempo sido afligida por outras formas de
sofrimento. Esse é o período que corresponde às principais mudanças referidas no
parágrafo anterior e que antecede o golpe militar de 1964 e a implantação do longo
período ditatorial, em sintonia com o que acontecia em outros países da América
Latina. O segundo momento, entre os anos 1960 e 1980, em plena época da ditadura
militar, diz respeito à construção de outra identidade, a de “trabalhador rural”, sendo
marcado pela “trajetória de Margarida Maria Alves, enquanto presidente de uma
organização sindical”, a qual, como é bem conhecido, foi vítima de assassinato brutal,
constituindo-se como uma das mais importantes mártires do movimento popular no
campo. E finalmente o terceiro período, começando nos anos 1990, cuja figura
simbólica é Diolinda Alves da Silva — mulher de José Rainha, um dos mais destacados
líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra —, “uma personagem
pública” que pode, na visão de Regina Novaes, “exprimir aspectos do delineamento
da identidade dos sem terra” (grifo da autora). Tendo eu mesmo, acima, destacado
duas figuras femininas emblemáticas da luta popular em duas áreas da Amazônia, a
partir dos trabalhos de Rita da Costa e Ivonete Coutinho, nesse segundo período a
que se refere Novaes, gostaria, portanto, de dar destaque especial ao que diz esta
última autora a respeito de Margarida Maria Alves:
Vale também aqui lembrar que as CEBs, no Brasil, viveram dois momentos: o
primeiro, nos anos 1970 e 1980, logo após seu aparecimento, que pode ser considerado
o seu boom, e uma fase de aparente enfraquecimento, em que, segundo o autor acima
citado Reginaldo Prandi, encontravam-se (em 1994), “em visível declínio” (Prandi
1997:14). Isso é também acentuado por Ivo Lesbaupin e colaboradores, que nos
dizem: “Nos anos 90, num quadro político e eclesial desfavorável, as CEBs passaram
por mudanças significativas, a ponto de alguns intelectuais anunciarem o seu fim”.
Em continuação, Lesbaupin completa o quadro:
A vitalidade das CEBs é atestada por vários trabalhos recentes, além dos de
Rita da Costa e Ivonete Coutinho, na Amazônia, e do artigo de Lesbaupin e
colaboradores (cf., entre outros, Boff et al 1997a; Burdick 1998 [1993]; Domezi 2006;
Mariz e Machado 2008; Marques 2007). Um desses trabalhos — dos mais recentes
— é o do sociólogo católico Pedro Ribeiro de Oliveira (que, aliás, tem vários trabalhos
publicados sobre o tema). Oliveira realizou estudo comparativo sobre as lideranças
de CEBs no Brasil, investigando seus Encontros Intereclesiais de 1981, 2000 e 2005,
através de questionários preenchidos pelos participantes. Apesar das limitações da
pesquisa, de caráter quantitativo — discutidas e reconhecidos pelo próprio autor ,
suas conclusões confirmam também essa vitalidade. A conclusão final é a seguinte:
Para Eunice Durham a noção de comunidade “se apresenta como uma imagem
que revela a sociedade em seu negativo”, permitindo uma crítica da própria sociedade,
pois, “pelo contraste, torna visíveis e faz com que assomem à consciência a
desigualdade, a opressão, a impessoalidade, a fragmentação própria do individualismo
possessivo da sociedade de massa”. Permite ainda tornar compreensíveis a seus
membros as experiências que estão fora dela, na sociedade envolvente, e, com isso,
opor-se ao sistema mais vasto, “localizando-se como cidadãos e como pessoas,
explorando suas contradições e tentando construir práticas alternativas” (Durham
1986:9-10).
Carmem Cinira Macedo nos fala, em seu livro, de “ambiguidades” nas CEBs.
Nem sempre se trata propriamente de ambiguidades, mas às vezes de contradições ou
paradoxos. A principal ambiguidade apontada pela autora diz respeito à relação entre
a estrutura hierárquica e autoritária da ICAR (de modelo episcopal e sacramental,
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embora ela não diga isso com todas as letras) e ao fato de ao padre caber sempre a
última palavra, como acontecia também, no passado, com movimentos tradicionais,
mesmo que avançados do ponto de vista ideológico, como a Ação Católica (AC) e
especialmente alguns de seus setores, tendo como movimento paradigmático a
Juventude Universitária Católica (JUC), na passagem dos anos 1950 para 1960. Essa
contradição faz com que, nas decisões, sobretudo as mais polêmicas, acabe
predominando a posição do padre, ou mesmo do bispo, em detrimento da decisão
majoritária ou mesmo de consenso da CEB como “comunidade”. A autora aponta,
em seu livro, mais três “ambiguidades”. A primeira tem a ver com a desigualdade das
classes sociais na sociedade em geral: “o problema dos ricos e pobres, ou seja, a
divisão dentro da riqueza” que constitui uma “questão séria para a Igreja”. A segunda
diz respeito à “articulação de uma verdade universal com a verdade que surge da
base”. E a terceira se refere à possibilidade de “articular uma comunidade cristã em
que os membros apresentam diferenças significativas quanto à posse da riqueza”. Em
épocas anteriores, a noção de caridade permitiu encaminhar o problema, mas, diante
das tensões do mundo moderno, isto se torna impossível de sustentar e, por isso,
“opera-se na Igreja uma transformação que consiste na passagem da denúncia do
pecado (a favor da “caridade cristã”) para a denúncia das estruturas sociais apontadas
como responsáveis pelas desigualdades e pela injustiça”. Completando seu pensamento
a respeito de tais ambiguidades, a antropóloga acrescenta mais uma:
Isso significa uma óbvia politização ou, melhor dizendo, uma nova forma
de politização da atuação da Igreja, em que a noção de libertação vai se
instalando cada vez mais no seio da própria história e se configurando
como uma proposta de criação de uma vida nova, para todos, ainda
neste mundo. Mais uma vez, a noção permanece carregada de uma certa
ambiguidade [e] essas ambiguidades todas criam um espaço de
indeterminação que é exatamente o que permite à Igreja operar no
sentido de integrar contradições e procurar preservar seu espaço de poder
no mundo como instituição “católica”, ou seja, universal (Macedo
1986:56-57).
“velho modo de ser igreja”, mesmo que esteja pessoalmente envolvido com a nova
“caminhada”. Embora possa ter mudado de orientação, seu compromisso institucional
permanece o mesmo, pois “está submetido à instituição, como todo bom funcionário”,
só lhe restando “as poucas margens de tolerância que a elasticidade da instituição lhe
permite” (Boff 1997c:254-258)7.
Na verdade, o teólogo nativo (católico) constrói um modelo (como diz Eunice
Durham, na citação acima) em que as CEBs são inventadas conceitualmente por
aquilo que se apresenta a seus olhos e ouvidos como fenômeno, mas também como
projeção imaginária do que deve ser, como utopia. É ainda o próprio Boff quem nos
auxilia nessa compreensão: “As CEBs são também a representação [negrito no original]
que se faz delas no imaginário eclesial e social. E na constituição dessa representação
os teólogos tiveram um papel determinante”. A imagem dos teólogos sobre as CEBs,
mais ampla e genérica — e que eles costumam transmitir — não corresponde de
modo fiel àquela que possuem as bases, que, sendo mais concreta, é também mais
limitada. Há ainda variações entre os agentes intermediários. Isso acontece porque
os teólogos (e também os cientistas sociais, estudiosos do fenômeno) costumam
observar as CEBs em momentos especiais (encontros, Intereclesiais). Já as bases as
compreendem “a partir do seu cotidiano, tantas vezes penoso”. O que conduz à
construção de “duas imagens das CEBs: a festiva e a ferial” (Boff 1997c: 260)8.
Tudo isso pode relacionar-se com formulação que apresentei há vários anos, ao
publicar artigo em Ciência e Cultura (Maués 1988), tratando daquilo que chamei de
“impasses da romanização e da Teologia da Libertação”, analisando as contradições
e ambiguidades dos dois movimentos (sobretudo da romanização) nas suas relações
com o catolicismo popular brasileiro. A conclusão a que chegava, que hoje reconheço
ser incompleta, dizia respeito a uma dificuldade dos dois movimentos de entender a
lógica do catolicismo popular, um catolicismo social, não do mesmo gênero daquele
proposto pelos agentes da TL, mas social no sentido das festas e devoções, do
comunitário, da generosidade, da dádiva e da ostentação de bens e de prestígio. Na
época, Carmem Cinira, de saudosa memória, chegou a comentar comigo tal artigo,
que havia lido, mas não percebi naquele momento a relação que o mesmo poderia
ter com essa ambiguidade fundamental a que ela se refere em seu livro, já então
publicado. De fato, esse é um aspecto de grande importância, que faz relação com a
última ambiguidade a que me refiro — as duas formas de conceber o social, a da TL
e das CEBs, em contraste com o social do catolicismo tradicional e popular —, que
pode ser relacionada não só à TL e às CEBs, mas também ao movimento da
romanização que, no final do século XIX e início do XX, promoveu uma ampla
reforma conservadora e europeizante no catolicismo brasileiro, em sintonia com o
que estava acontecendo na ICAR, em plano mundial.
Não obstante, nada disso obscurece o fato de que a atuação dos agentes da
ICAR — informados pela TL — tanto no campo como na cidade, na implantação
e animação das CEBs, tem contribuído desde os anos 1960 (e continua contribuindo)
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MAUÉS: Comunidades “no sentido social da evangelização” 35
Notas
1
Este trabalho foi apresentado originalmente com o título de Novas Formas de Afirmação de
Cidadania na Amazônia Oriental Brasileira: CEBs, Camponeses e Quilombolas no GT Igrejas,
Religiões e Novas Formas de Cidadania, durante as 15as Jornadas sobre Alternativas Religiosas
na América Latina, em Santiago do Chile, ocorridas no período de 11 a 14 de novembro de 2009.
Agradeço às coordenadoras Eugenia Fediakova e Maria das Dores Campos Machado e aos
demais participantes desse GT pela aceitação do trabalho e pelos valiosos comentários feitos na
ocasião, que foram muito úteis para sua reformulação.
2
Agradeço aos pareceristas anônimos de Religião e Sociedade que me sugeriram reformular o texto,
tanto no que diz respeito a aspectos formais como de conteúdo, propondo-me especialmente o
diálogo com outros autores e teorias. Permaneço evidentemente como o único responsável pelos
possíveis erros e omissões existentes no artigo.
36 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 13-37, 2010
3
Agradeço também a essas duas antropólogas, minhas ex-alunas, que me autorizaram a trabalhar
algumas informações empíricas constantes em seus trabalhos e que também leram o presente
trabalho, contribuindo para ele com sugestões valiosas.
4
Neste parágrafo a autora se apoia parcialmente nos trabalhos de Iokoi (1996), Macedo (1986)
e de Marques (2007).
5
Utilizo o termo “movimento” para me referir às CEBs num sentido mais amplo, de movimento
social, mas devo também levar em conta a visão nativa (católica), tal como é expressa, por
exemplo, por Clodovis M. Boff em dois de seus trabalhos, onde faz uma clara distinção entre
CEBs como um tipo de comunidade católica (comunidade de base), mostrando a diferença não
só entre comunidades distintas na ICAR, mas também entre comunidades e movimentos, nessa
mesma Igreja (cf. Boff 1997b; 1997c).
6
O artigo 68 da Constituição de 1988 tem a seguinte redação original: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
7
A argumentação é mais longa e, para melhor explicitá-la, transcrevo a continuação do texto de
Clodovis Boff: “É evidente que o ‘novo modo de ser igreja’ supõe também um novo modo
funcional (e não só pessoal) de ser padre. Seria um ministro da celebração eucarística que venha
de baixo, que surja da própria comunidade. Mas aqui tocamos um punctum dolens ou crucial da
instituição eclesiástica, um ponto vital. É um nó que junta pelo menos duas questões estruturais
heterogêneas e que não vai ser fácil de desatar: a questão da estrutura sacramental da Igreja,
pela qual a Ordem aparece como uma peça estruturante de sua constituição teológica (jus
divinum: direito divino); e a questão da estrutura sociológico-histórica, pela qual o clero perpetua
o monopólio do poder religioso dentro da Igreja (jus humanum: direito humano)” (Boff: 1997 c:
258-259; grifos no original).
8
O autor cita em apoio a sua afirmação artigo de Luiz Alberto Gómez de Souza, conhecido
sociólogo católico, publicado na REB, em que o mesmo comenta o VI Encontro Intereclesial das
CEBs de Trindade, ocorrido em 1986 (cf. Souza 1986).
9
Este conceito de popularização, a partir das formulações de Brandão, é empregado em meu livro
sobre as relações entre catolicismo popular e controle eclesiástico na Amazônia (cf. Maués 1995:
183;262).
Resumo:
Abstract:
The study about new ecclesial movements in the Roman Catholic Church, in
Oriental Brazilian Amazon, has allowed a reflection on the influence of that
Church in two rural areas of the State of Pará: the Transamazônica Highway and
the Tomé Açu micro-region. In both, the so-called Ecclesial Base Communities,
very active, play important role between the populations of these areas. The
article proposes to examine the social condition of those people who, according to
their experiences and practices, incorporating critically the influence of pastoral
agents, take on new identities, and new political and religious practices, not present
before in their territory.