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FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO
Pelo Pe. Dr. Elismar Alves dos Santos*
Goiânia, GO
* Pe. Elismar Alves dos Santos, C.Ss.R., é graduado em Filosofia, Teologia e Psicologia. Mestre em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Doutor em Psicologia Social e Institucional
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em Teologia, na área de Teologia Moral, pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, com estágio na Pontifícia Universidade
Comillas, Madri, Espanha. É professor de Teologia e Psicologia no Instituto de Filosofia e Teologia de
Goiás (IFITEG) e na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Membro do Grupo de
Pesquisa Ideologia, Comunicação e Representações Sociais (UFRGS).
838 E.A. dos Santos. A dimensão psíquica do fundamentalismo religioso
Introdução
Para discutir o tema proposto, gostaríamos de seguir um caminho
didático. Primeiramente, vamos refletir, no primeiro tópico, atos obsessi-
vos e práticas religiosas, o que enfatiza Sigmund Freud sobre “neurose” e
“práticas religiosas”. Para Freud, algumas experiências religiosas podem
criar compulsões neuróticas. Já no segundo tópico, personalidade e re-
pressão do espiritual, realizamos um breve estudo do conceito de perso-
nalidade e o relacionamos com o fundamentalismo. Defendemos que
indivíduos com tendência ao fundamentalismo religioso apresentam
traços de personalidade fragmentados. Significa que, no processo rela-
cional Eu–Outro–Objeto, faltou “algo”. No terceiro tópico, descrição da
estrutura de personalidade psicopatológica, definimos, primeiramente, o
que é Psicopatologia. Concebemos o fundamentalismo religioso a par-
tir da perspectiva do desajuste psíquico. Pessoas fundamentalistas não
conseguem “suspender” seus pressupostos já interiorizados para ouvir o
outro. Por fim, no quarto tópico, diálogo inter-religioso e magistério ecle-
siástico, apresentamos algumas considerações da proposta do Magistério
Eclesiástico relacionada ao diálogo inter-religioso.
1. FREUD, S. Atos obsessivos e práticas religiosas. In: SALOMÃO, J. (Dir.). Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 107-117.
v. 9. Freud escreveu esse pequeno artigo, em 1907. Nele, estabelece a relação entre práticas religiosas e
atos obsessivos, detendo-se mais sobre o significado da experiência religiosa do que sobre o conceito e o
significado de religião. Além desse artigo, há vários outros escritos de Freud, voltados para a discussão da
religião e da experiência religiosa, o que evidencia que a discussão sobre a temática da religião foi, para
Freud, um tema sempre recorrente. Os escritos voltados ao estudo da religião podem ser agrupados na
seguinte sequência cronológica: Atos obsessivos e práticas religiosas (1907); Totem e tabu (1913); Além do
princípio de prazer psicologia de grupo e outros trabalhos (1920); O mal-estar na civilização (1927); Uma
experiência religiosa (1927); O futuro de uma ilusão (1931) e Moisés e o monoteísmo (1939).
2. FREUD, S. Atos obsessivos e práticas religiosas, loc. cit., p. 109.
3. Idem, p. 114.
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4. Idem, p. 116.
5. MORANO, C.D. Crer depois de Freud. São Paulo: Loyola, 2003. p. 43-44.
6. Cf. FRANCO, S.G. Os escritos religiosos de Freud: uma introdução. In: WONDRACEK,
K.H.K. (Org.). O futuro e a ilusão – um embate com Freud sobre psicanálise e religião. Petrópolis:
Vozes, 2003. p. 59-72.
7. MOSCOVICI, S. A invenção da sociedade: sociologia e psicologia. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 553.
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8. HYCNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995. p. 83.
9. Cf. FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Op. cit., 1996. p. 128-229. v. 8.
10. A compreensão do significado de “Awareness”, aqui, está baseada no que ensina Richard Hyc-
ner em seu livro De pessoa a pessoa, acima citado. Awareness significa, pois, a qualidade do que está
ciente, atento, advertido. É uma expressão inglesa, derivada de aware, que significa: ter conhecimento
ou percepção de algo. Portanto, Awareness é a qualidade de estar vigilante, percebendo tudo que está
acontecendo em volta. Awareness pode ser utilizada tanto para adjetivar uma pessoa, como para se referir
a uma determinada sociedade ou cultura, indicando o quanto essas pessoas, ou esse grupo, têm conhe-
cimento sobre determinados assuntos, fenômenos ou objetos.
11. Não temos intenção de indagar sobre “repressão do sexual”. Apenas fazemos menção à possibi-
lidade da repressão da sexualidade em pessoas com tendências ao fundamentalismo religioso. Às vezes, a
sexualidade reprimida se manifesta de diversos modos no comportamento humano. Um desses modos
destrutivos da sexualidade recalcada se dá através do fundamentalismo religioso.
12. HYCNER, R. De pessoa a pessoa, op. cit., p. 83.
13. Idem, p. 84.
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19. O fato de ter ocorrido episódios traumáticos ao longo do processo de desenvolvimento de uma
pessoa não significa que estamos defendendo uma espécie de personalidade determinista. Porém, pessoas
neuróticas, na maioria das vezes, costumam comportar-se a partir do que se entende por personalidade
determinista, isto é, sempre se comportam como vítimas.
20. MAY, R. A arte do aconselhamento psicológico, op. cit., p. 19.
21. AARDWEG, G.J.M. A batalha pela normalidade sexual e homossexualismo. Aparecida: Santuá-
rio, 2015. p. 104.
22. Cf. BUBER, M. Between man and man. New York: Routledge, 2004. O dialógico é a explo-
ração do “entre”.
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28. Cf. BERLINCK, M.T. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
29. FARR, R. Representações sociais: a teoria e sua história. In: GUARESCHI, P.; JOVCHELO-
VITCH, S. (Org.). Psicologia social – textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 30.
30. DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Art-
med, 2000. p. 22.
31. NUNES, P.; BUENO, R. Psiquiatria e saúde mental: conceitos clínicos e terapêuticos funda-
mentais. São Paulo: Atheneu, 2001. p. 13.
32. JASPERS, K. Psicopatologia geral. São Paulo: Atheneu, 2003. p. 71. v. 1.
33. Cf. GARRIDO, V. O psicopata: um camaleão na sociedade atual. São Paulo: Paulinas, 2011.
“Fanáticos são aqueles que estão sob a influência de um sistema de crenças ao qual subordinam qualquer
outra coisa. Interpretam e avaliam a realidade sob a perspectiva desse sistema e qualquer meio que lhes
sirva para alcançar suas metas é completamente aceitável” (p. 187).
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43. MOSCOVICI, S. A Invenção da sociedade, op. cit., p. 185. “Pois este é certamente o caráter
dessa energia que os induz [o que pode ser aplicado a indivíduos fundamentalistas], como um artista
inspirado, ou um erudito obcecado por uma hipótese, a criar a realidade a partir de visões, de objetivos
próprios, em vez de se submeter a ela. É exatamente isso que nos indica de onde provém o chamado dos
valores e por que eles atraem as massas, como se estas tivessem percebido um eco” (ibidem).
44. Cf. DOS SANTOS, E.A. A doutrina da encarnação na teologia cristã das religiões e o diálogo
inter-religioso. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 17, n. 44, p. 325-327, 2013.
45. Cf. PAULO VI, Papa. Encíclica Evangelii Nuntiandi, n. 49 e 75. In: DENZINGER, H.;
HÜNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas;
Loyola, 2007. p. 1079-1082.
46. CONCÍLIO DO VATICANO II. Declaração Nostra Aetate. In: VIER, R. (Org.). Compêndio
do Vaticano II. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 617-625, aqui, n. 1 [p. 619-620, & 1578-1580].
47. Idem, n. 3 [p. 621-622, & 1584-1585].
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48. JOÃO PAULO II, Papa. Redemptoris Missio. In: COTA, L. (Org.). Documentos da Igreja. v. 4:
Encíclicas de João Paulo II. São Paulo: Paulus, 1997. n. 55 [p. 609-611].
49. ID. Eclesia in Asia. São Paulo: Paulus, 2005. n. 31.
50. ID. Encíclicas de João Paulo II: Sollicitudo Rei Socialis. In: Documentos da Igreja. v. 4: Encícli-
cas de João Paulo II. São Paulo: Paulus, 1997. n. 47 [537-541].
51. BENEDETTO XVI, Papa. Messaggio per la celebrazione della giornata mondiale della pace
2011. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2011. p. 4.
52. Idem, p. 5.
53. Idem, p. 6.
54. BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Caritas in Veritate. São Paulo: Paulinas, 2009. n. 29.
“Na realidade, com frequência hoje se faz apelo ao santo nome de Deus para matar [...]. Isto se aplica
de modo especial ao terrorismo de índole fundamentalista, que gera sofrimento, devastação e morte,
bloqueia o diálogo entre as nações e desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil” (ibidem).
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Conclusão
Para Freud, a prática religiosa seria uma repetição do que o indiví-
duo em seu estado neurótico compulsivo geralmente realiza. É preciso
acolher essas observações do pai da psicanálise não totalmente pelo viés
negativo. Algumas práticas religiosas nem sempre favorecem o cresci-
mento do ser humano. O que dizer, por exemplo, de práticas que, na
verdade, reforçam a ideia de escrúpulo na vida das pessoas? Ou ainda,
daqueles que procuram a vivência religiosa com o intuito de esquivar-
-se dos reais problemas da existência? Sobre essas e outras interrogações
que poderíamos formular, acreditamos que a reflexão de Freud, em Atos
obsessivos e práticas religiosas, apresenta uma contribuição valiosa no que
corresponde ao fundamentalismo religioso: se uma experiência religiosa
escraviza o indivíduo, precisa ser revista, por equiparar-se a uma vivên-
cia e prática neurótica.
A temática da personalidade humana sempre nos escapa de um total
conhecimento. Geralmente, a repressão do espiritual e a do sexual cami-
nham juntas. Pessoas frágeis em sua espiritualidade e sexualidade tendem
a sentir-se seguras a partir de suas ideias fundamentalistas. É como se a
fragilidade espiritual e sexual pudesse ser “superada” de outra maneira,
55. CONCÍLIO DO VATICANO II. Declaração Dignitatis Humanae. In: VIER, R. (Org.).
Compêndio do Vaticano II. 29. ed., Petrópolis: Vozes, 2000. n. 2 [p. 600-601].
56. SCHILLEBEECKX, E. The church as a sacrament of dialogue. In: EDWARD SCHILLE-
BEECKX FOUNDATION. The collected works of Edward Schillebeeckx. v. 3: God the future of man.
New York: Sheed & Ward, 1968. p. 117.
REB, Petrópolis, volume 77, número 308, p. 837-851, Out./Dez. 2017 851
57. AZPITARTE, E.L. La crisis de la moral. Santander: Sal Terrae, 2014. p. 35.