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II ENCONTRO DE
HISTÓRIA MILITAR
ANTIGA E MEDIEVAL
ESPAÇO CULTURAL LAGUNA
RIO DE JANEIRO, EM 19 DE SETEMBRO DE 2012.
Comissão Organizadora:
Prof. Doutorando Ricardo Pereira Cabral, CEPHiMEx
Profa. Doutoranda Vanessa Ferreira Sá Codeço, UFRJ/IH/PPGHC/LHIA
Prof. Mestrando Marcio Felipe Almeida da Silva, PPGH/UFF/TRANSLATIO STUDII
EXÉRCITO BRASILEIRO
Imagem da Capa:
Armadura Medieval
Revisão dos Textos: Marcio Felipe Almeida da Silva e Vanessa Ferreira de Sá Codeço.
Sumário
Apresentação................................................................................................................................06
Marcio Felipe Almeida da Silva e Vanessa Ferreira de Sá Codeço
Comunicações
PAPADO E QUESTÕES MILITARES NO SÉCULO XII....................................................38
Marcelo Fernandes de Paula
Conferência de Encerramento
Apresentação
A partir do ano de 711, com a chegada de invasores de origem árabe, persa, síria, e berbere
à Península Ibérica visigoda, a região passa a ser considerada, por muitos historiadores, como um
Isso significa afirmar que hoje, dados os avanços nas pesquisas históricas referentes aos
sociedade que teria servido apenas como receptáculo de valores e práticas outrora difundidas
Entretanto, ao estudarem o Islam ibérico, alguns historiadores do século XIX, como José
Amador de los Rios, e do século XX, como Cláudio Sanchez-Albornoz, optaram pela via
traiçoeira” dos povos semitas. Lembravam também das contribuições nas áreas de filosofia ou
esses historiadores recusavam-se a aceitar a hipótese de que grande parte das identidades ibéricas
chamar de “hispanismo racial”, construir uma imagem mitológica e unificada do “ser ibérico”,
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Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutora em Arqueologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Professora adjunta de História Medieval da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Programa de
Pós-Graduação em História da UFRRJ. Pesquisadora e membro fundador do PLURALITAS - Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos
(CNPq-UFRRJ); pesquisadora associada ao Centro de Pesquisa e Documentaçãodo Museu da Tolerância de São Paulo (USP), e do grupo de
pesquisa Jesus Histórico e sua Recepção (CNPq-UFRJ).
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Esse mito da unidade, que até hoje está muito presente no imaginário intelectual em
Esse mito de unidade hispânica em torno do passado cristão é ainda importante objeto de
estudos dos medievalistas. Assim, num combate intelectual contra o esquecimento, apontamos a
estudo ocorre exatamente no sentido de desconstruir os mitos que até os dias atuais afetam
oferecendo aqui lugares de fala à própria memória histórica das populações ibéricas, tomada
Diante disso, os estudos medievais voltaram suas atenções, a partir do fim do século XX,
especificamente para o último reduto de poder omíada no Ocidente. Tal reduto fundou Al-
História do Mediterrâneo.
Assim, é possível considerar que Al-Andaluz representa, entre os séculos VIII e XV, o ideal
Emirado de Córdova, vigente entre meados do século VIII e início do século X. Esse importante
Emirado, ou Principado, instaurou uma espécie de governo unificado cujo poder, iniciado com
Sucedendo ao regime omíada dos Emires no século X, Abd-al-Raman III colabora para a
fragmentação do poder islâmico ibérico. Respaldados por fortes aristocracias territorias e novas
monarquias como Aragão, Castela, Leão e Navarra, o avanço dos exércitos cristãos empreendeu
importantes derrotas sobre os pequenos reinos árabes, denominados Taifas,ii num longo processo
político e religioso o qual a historiografia optou por definir como “Reconquista Cristã”.
minorias não islâmicas de Córdova. Nesse momento, milhares de judeus e moçárabes procuram
Pela relevância histórica dos assuntos a serem discutidos neste artigo, a trajetória da
presença árabe na Península Ibérica será aqui estudada a partir de três grandes eixos temáticos.
intelectual e cultural que séculos de tolerância permitiram florescer nas principais cidades do
XI. Esse processo culminou no século XV, com a expulsão de milhares de judeus e muçulmanos
de Espanha e Portugal, e com a conversão de outros tantos milhares, condenados a viver sob as
Cristã” impôs a feudalização e a cristianização das relações de poder na Península Ibérica, além
de irreversíveis obstáculos à vida social dos grupos étnicos que compunham o mosaico ibérico.
Em 711, a vitória militar dos exércitos de Tariq ibn Ziyad sobre as tropas do enfraquecido
Reino Visigodo do então monarca Rodrigo revelou o profundo poder estratégico de organização
e de política, desenvolvido pelos omíadas, desde finais do século VII. Os êxitos obtidos na
Península Ibérica, idealizados pelo governo de Musa ibn Nussayr, em Ifriqiya (Tânger –
Magreb), confirmavam inicialmente pretensões comuns com relação à política omíada aplicada a
Tariq e suas tropas na Península Ibérica, estava a forte fragmentação da aristocracia visigoda, em
que rivais do rei Rodrigo, considerado ilegítimo, teriam solicitado ajuda aos árabes para fazer o
líder Áquila ascender ao trono. Pelo longo histórico de perseguição católica e de conversões
obrigatórias dos judeus ao Cristianismo no Reino Visigodo, havia ainda rumores sobre suposta
mão-de-obra, como as que foram realizadas no ano de 710. Desejavam ainda estender essa
chegando a alcançar regiões de domínio merovíngio (francos), como Tolosa (atual Toulouse),
732 d.C. Por conseguir paralisar os avanços muçulmanos sobre o território franco, essa batalha
infiel Islam.
que se “renderam facilmente ao inimigo”, e o “destemor” dos cristãos francos na defesa de seu
O trecho a seguir é de autoria anônima e data do século XI. Marca algumas impressões feitas
por um cronista ibérico sobre as campanhas militares árabes do século VIII. Assim como nas
crônicas merovíngias, o relato detalhado revela, para além das estratégias militares usadas no
expansão da ummah:
Entretanto, o que parecia ser apenas mais uma campanha para auferir valores ao governo
poder. É interessante observar que, imediatamente após os cercos militares de Tariq, a Espanha
firmados por membros da antiga nobreza territorial visigoda, conselhos citadinos ou,
deveriam constar ainda os novos compromissos jurídicos, políticos e fiscais das populações de
maioria moçárabe, em relação aos seus “novos senhores”. O aspecto primordial desses tratados
seria a criação de um estatuto social e jurídico denominado dhimmi (do árabe, protegido). Em tal
estatuto, as comunidades conquistadas que apresentassem origem cristã e até mesmo judaica,
obteriam uma espécie de status de “protegidos do Estado”. Para isso, deveriam acatar a carga
tributária imposta a cada grupo, a djizya, além de outras cobranças fiscais locais.
Mantran observa que também os governantes omíadas assumiam diversos compromissos com os
domínio árabe, referiam-se a um ponto tido como “nevrálgico” à estabilidade ibérica. Tratava-se
das políticas a serem desenvolvidas com relação às tribos Berberes que, junto aos árabes,
estreito de Gibraltar.
O caso Berbere exigiu dos governadores omíadas, até meados do século VIII, atitudes
arbitrárias sobre o destino dessas populações, ávidas por terras e benefícios. É muito provável
que tribos Berberes não tivessem as mesmas relações que árabes-islâmicos travavam com
cristãos e judeus. Por suas condições “marginais”, essas populações muladis não teriam grandes
deliberadas sobre terras e bens pertencentes aos “povos do Livro”. Nesse ponto, era necessário,
senão urgente, estabelecer limites às ações dos conquistadores, e impor obstáculos àqueles que se
opusessem à centralização árabe de Al-Andaluz. Como vemos, os estatutos da dhimma (do árabe,
proteção) versavam também a esse respeito, garantindo aos “protegidos” que, agressões e
devidamente ressarcidos.
Os Berberes, grupos tribais de origem africana, haviam sido recrutados, entre os anos de
705 e 708, pelos comandantes de Musa ibn Nussayr para compor as fileiras de expedicionários à
Península Ibérica. Entretanto, por não terem origem árabe, e por apresentarem fraca islamização,
aos Berberes eram reservados tratamentos inferiores, diferenciados dos demais membros árabes-
islâmicos das tropas de Tariq. Apoiados por ordens vindas de Damasco, os governadores
mais difícil acesso e de solo improdutivo. É assim que Adeline Ruquoi descreve a instalação
desses grupos marginalizados, afastados dos grandes centros de ocupação árabe como Sevilha,
conservarem, judeus e cristãos, suas antigas instituições religiosas, identidades, leis e bases
religioso sobre qualquer membro da população muçulmana com a qual passariam a conviver.
Cumpre esclarecer que o mosaico social ibérico, presente a partir do século VIII,
apresentava-se sob a forma de grupos sociais, identificados por suas condições religiosas e
Pela dhimma, seriam igualmente intoleráveis atos de repúdio ao Islam, ao seu profeta, e às
suas leis, sob pena de espoliação total de bens, castigos físicos, podendo chegar à pena capital.
No “Pacto de Omar”, encontramos de forma mais precisa, os pactos firmados por populações
(...) Quando vós [Omar] viestes até nós, pedimos-vos a segurança para nossas
vidas, nossas famílias, nossos bens e pessoas de nossa religião, sob as seguintes
condições: pagar o tributo sem demora e ser humilhados; não impedir nenhum
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Vale observar que a própria estrutura das Igrejas visigodas não foi alterada pela presença
árabe. Muitas dioceses mantiveram bens materiais e propriedades fundiárias chegando, inclusive,
a obterem permissão de usufruto de bens e finanças do derrotado Reino Visigodo. Mais tarde, a
servir objetivamente em sentido contrário: compor o duro cenário de golpes políticos e militares
da reconquista cristã nos territórios árabes, por muitos interpretada como uma “verdadeira guerra
de assimilação cultural começa a despontar no mundo ibérico. O quadro social que se apresenta
obrigatória).
síria, persa e berbere. Igualmente, como já discutimos, nem todos os que participaram das
invasões de Tariq em 711 eram muçulmamos praticantes, e outros milhares eram recém-
Nesse sentido, Al-Andaluz não é apenas um cenário que conserva regiões inteiramente
romanismo. É também, uma sociedade onde vemos despontar aspectos de uma nova concepção
de civilização. Durante todo o século VIII e parte do IX, os árabes muçulmanos, ainda que
melhoria das condições de plantio e colheita, tal como a implementação de técnicas de irrigação
Ocidente, como a cana-de-açúcar, frutas cítricas, tâmaras, arroz, e diversos tipos de verduras. A
alta produtividade desses gêneros na Península Ibérica, antes apenas acessíveis por meio de
exportadora.
crescimento, beneficiou as trocas culturais. Alguns historiadores, como Thomas Glick (1996),
Roger Collins (1986) ou Yossef Hayim Yerushalmi (1995) chegam a apontar para uma
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X.
período árabe só foi possível em função de um fenômeno social que poderíamos denominar de
(Abu Ali Ibn Sina – 980 -1037), do Ocidente islâmico, o pensador Averróis (1126-1198), natural
de Córdova, foi responsável pelas principais compilações e comentários sobre a obra aristotélica
Para Averróis, Aristóteles teria sido o mais proeminente pensador grego, pois
deparamos também com as observações do escritor Al-Hadrami, que visitava a cidade em pleno
século X. Em Córdova, o escritor, espantado, constatou uma verdadeira “corrida” aos livros,
feita por intelectuais e também por leigos. Além de ser um bem intelectual, os livros eram
verdadeiras jóias materiais, que atestavam o status daqueles que os possuíam, mesmo que a
princípio não tomassem conhecimento de seus conteúdos. A alta de preços para aquisição de
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determinadas obras estava diretamente ligada à demanda particular por bibliotecas domésticas,
Assim, em meio a um acirrado “leilão” para a compra de um livro que lhe interessava, Al-
Hadrami resolve indagar o vendedor sobre o outro pretendente que oferecia quantia exorbitante
pela produção:
aristotelismo, e da fusão dos conhecimentos sobre o universo e sobre a alma. Muitos filósofos
terrenas, permitiriam que as ciências do corpo, como a medicina, pudessem ser exercidas em sua
plenitude.
Hasdai ibn Shaprut, judeu de Córdova, chegou a exercer funções de médico e diplomata na
corte do Califa, colaborando nas relações, um tanto tensas, com os Reinos Cristãos do norte da
Na obra de 1180, intitulada “Cura das Almas Doentes”, de José ben Yehuda ibn Aknin,
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discute-se sobre os principais saberes necessários à educação judaica e, entre eles, destacam-se :
(...) Ler e escrever: o método de instrução deve ser organizado de tal modo que
o mestre comece primeiro com a escrita, a fim de que as crianças possam aprender
as letras . . . Depois ele deve ensiná-las a escrever até que sua escrita seja clara e
possa ser lida facilmente . . .
Torá [sic], Mishná e Gramática Hebraica; depois ele deve ensinar-lhes o
Pentateuco, os Profetas e os Ketuvim, isto é, a Bíblia, prestando atenção à
vocalização e à modulação, a fim de que elas se capacitem a pronunciar os acentos
corre-tamente . . . Depois ele deve fazê-las aprender a Mishná até que adquiram
fluência nela...
Poesia: depois o mestre deve instruir seus discípulos em poesia. Ele deve,
geralmente, fazê-los recitar poemas religiosos e tudo que se encontra de belo nos
diferentes tipos de poesia, e possa desenvolver neles todas as boas qualidades . . .
Talmude [sic]: . . .quando os discípulos tiverem quinze anos de idade, o mestre
deve exercitá-los na leitura do Talmude até que adquiram fluência nele. Mais tarde
... ele deve dar-lhes aquele tipo de instrução talmúdica que acentue entendimento
mais profundo, pensamento independente e investigação...
Matemática, aritmética: o mestre então dissertará a seus estudantes sobre
matemática, começando com aritmética ou geometria, ou instruí-los-á em ambas as
ciências ao mesmo tempo...
Astronomia: depois eles passarão à astronomia. Isso inclui duas ciências.
Primeiro, astrologia, isto é, a ciência na qual as estrelas apontam para eventos
futuros bem como para muitas coisas que existiam ou que existem agora... O segundo
campo da astronomia é matemático. Este campo deve ser incluído entre a
matemática e as ciências naturais. Essa ciência ocupa-se dos corpos celestes e da
terra...
Ciências naturais, medicina: depois dos estudantes terem assimilado as
ciências já mencionadas os mestres devem instruí-los nas ciências naturais. A
primeira deste grupo que se deve aprender é a medicina...
Lógica: é pela lógica que as atividades especulativas... se tornam claras. A
lógica apresenta as regras que mantêm em ordem os poderes mentais e conduzem o
homem no caminho da clareza e da verdade em todas as coisas nas quais pode
errar...
Filosofia: depois disso, é preciso ocupar-se com o estudo da Filosofia, aquela
que Aristóteles formulou em sua obra, Metafísica...
Essa é a primeira entre as ciências. Todas as outras ciências, que são apenas a
base do conhecimento, têm em mente esta disciplina... (Apud BEREZIN, R., 1982.
pp.106-107.).v
Citemos também caso de Rabi Moshe ben Maimon, ou Maimônides (1135-1204), talvez
um dos maiores expoentes da cultura judaica ibérica medieval. Suas obras mesclavam reflexões
e indagações metafísicas à preocupação com a saúde física e espiritual. Era rabino, médico,
filósofo, matemático e astrônomo, tendo também produzido vasta literatura epistolar, onde
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onde viveu com sua família. Por força das circunstâncias, precisou exilar-se em Fustat (atual
Cairo, no Egito) quando Almôhadas tomam a sua cidade natal, submetendo todos os judeus ao
juramento de fidelidade a Allah e suas leis, inscritas no Corão. Maimônides era um crítico voraz
Em diversas de suas cartas dirigidas aos judeus iemenitas e franceses, cita exemplos históricos de
todos os governantes que um dia fizeram uso desse tipo de violência contra os descendentes de
fragilidade de sua estrutura social. Algumas décadas depois, tribos Almôhadas também
as Taifas. Esse cenário não só contribuiu para que os reinos cristãos do norte voltassem a
cristãos por desígnio, mas também, para que Almorávidas e Almôhadas, que se instalaram em
Muitos desses “protegidos” acabam optando por buscar refúgio nos reinos cristãos como Aragão,
Castela e Leão, ou em regiões de domínio muçulmano, como o Império Parto (persa), Egito
É nesse momento, no século XI, que a retomada dos exércitos cristãos nas regiões
Esse projeto se conclui apenas no século XV, com a tomada definitiva da última Taifa
de todos os muçulmanos e judeus ainda residentes na Espanha dos reis católicos, em 1492. vii
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Taifas, e as abruptas campanhas de assentamentos das tribos radicais vindas do norte África,
constroem condições para uma lenta, porém significativa, recuperação política das aristocracias
centrais parecem explicar os êxitos da nova “Cristandade” ibérica, contra seus oponentes
“infiéis” muçulmanos.
concentravam-se em proteger minimamente as posses territoriais para que colheitas não fossem
devastadas, agora, a partir dos séculos XI e XII, os objetivos passariam a ser mais ambiciosos. A
sociedade cristã dos reinos ibéricos militariza-se não apenas para se proteger, mas para adquirir
novos espaços e, ainda, repovoar antigos territórios. Ou seja, a guerra passa a representar uma
realidade iminente e não somente um projeto futuro, sendo inclusive entendida como um novo
Mas, a partir do século XI, quando se definem as áreas políticas ocupadas pelos reinos
(...) Apesar da imagem que se tem da Idade Média como época em que nada
acontecia, de acordo com Jacques Le Goff a movimentação de homens era enorme.
Por nada ou muito pouco terem, os homens estavam sempre indo para outro lugar,
como peregrinos. Todas as camadas sociais se movimentavam: os cavaleiros, que
podiam conseguir prestígio e butim na guerra; os camponeses, à procura de novas
terras para cultivo e melhores condições de vida; os mercadores, que buscavam
novas cidades para estabelecer seus negócios; os clérigos e monges, atrás de „almas‟
a serem convertidas; os sábios, à procura de novos conhecimentos. Na Península
Ibérica , a mobilidade espacial, social e cultural a que nos referíamos deu lugar a
problemas de repovoamento e colonização, à aculturação e assimilação e também a
rejeições e confrontos. (PEDRÉRO-SANCHEZ, M, 2002. p.24-25).
REFERÊNCIAS
Referências Documentais
MAIMÔNIDES – Rabi Moshe ben Maimon (1135-1204). Epístolas. São Paulo: Maayanot,
1993.
______. Epístola do Iêmen (Iggeret Teyman) Tradução Alice Frank. São Paulo: Maayanot,
1996.
Referências Bibliográficas
BEREZIN, Rivka.(Org.) Caminhos do Povo Judeu. 2.ed. São Paulo: Renascença -Vaad
CARO BAROJA, Julio. Los Pueblos de España. Madrid: Istmo, 1981. 2 Tomos.
24
1986.
KUPERMAN, Diane. (orgs.) Ibéria Judaica: Roteiros de Memória. São Paulo: Expressão e
Humanitas-USP/FAPESP/LEI,2002.
MANTRAN, Robert. A Expansão Muçulmana. São Paulo: Pioneira, 1977. (Nova Clio, 20.)
___. A Península Ibérica entre o Ocidente e o Oriente. Cristãos, Muçulmanos e Judeus. São
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995. (Nova
História, 21.)
Península Ibérica. Século VII. 2.ed. Rio de Janeiro: Imprinta/Centro de História e Cultura
TRITTON, A.S. The Caliphs and Their Non-Muslim Subjects. Oxford, 1930.
Renata Vereza2
múltiplas facetas. Partes destas faces estão relacionadas de forma intrínseca com o desenrolar da
militar das entidades políticas cristãs que se denomina Reconquista. Assim posta, a ideia de
Reconquista envolve obrigatoriamente a questão do conflito militar e, mesmo que não possamos
considerar que a guerra era uma realidade em si para todos os indivíduos ibéricos, pelo menos
não todo o tempo, é importante considera-la como fator importante na conformação das
sociedades de fronteira, tal como foi vivenciado por boa parte do território ibérico medieval.
conquistas cristãs, em contraste, e muitas vezes em oposição, com aquela decorrida da expansão
comercial nestes mesmo espaços. Ao mesmo tempo, em vários casos, a situação perene de
como fatores modeladores das realidades das comunidades urbanas, não somente no que tange a
sua composição social, mas também em relação às estruturas de poder derivadas das
variados. As discussões acerca do período abrangido ainda são alvo de debates, sendo essa
temporalidade relacionada com a acepção adotada do próprio termo Reconquista. Tal qual foi
definido aqui se trata de abranger sete séculos de história. Assim, e diante do espaço aqui
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Professora do Depto de história da Universidade Federal Fluminense. Membro do Translatio Studii- núcleo
Dimensões do Medievo e da Rede Proprietas
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disposto, só nos é possível estabelecer algumas linhas gerais, isto é, levantar alguns pontos,
aqueles mais patentes, que demonstram o quanto a situação peculiar, quer de guerra, quer de
e que estão associadas à Reconquista estão presentes desde o período inicial do processo de
expansão. A ultrapassagem do domínio cristão da linha do Rio Douro, ocorrida por volta do
século X em meio a expansão dos nascentes reinos ibéricos, já indicava um grau de conflito mais
acentuado com as forças islâmicas, mesmo que ainda não de enfrentamento direto. O
no século XI, a um planejamento e ordenamento sob a supervisão real ou dos grupos dominantes
diretamente relacionados a este, sendo assim, algo distinto da iniciativa espontânea camponesa
alegada para as décadas iniciais do processo. Alegação esta que não pode ser aceita sem reservas
dela ocorrer.
Assim, as formações urbanas ibéricas têm aspectos característicos que as diferenciam das
suas congêneres do resto da Europa que vão além da presença de elementos islâmicos (mais
culturais do que humanos) mesmo que guardem relação com a presença desta sociedade na
economia urbana maior que o usual, mesmo nos grandes centros onde esperar-se-ia uma
preponderância comercial incontestável. A atividade pastoril, como uma cultura que admite
deslocamento, permite acompanhar a fronteira, tanto na sua expansão, quanto na sua retração.
Sendo assim, mais que adequada a tempos de fronteira flutuante tal quais os vividos por esta
sociedade.
peninsular é a ascendência de uma oligarquia urbana formada por proprietários de terras que, ao
mesmo tempo, assumiam um papel militar por ficarem responsáveis pela defesa e expansão do
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burguesia fortalecida e autônoma, encontra-se um grupo em boa medida terra tenente, com
funções militares definidas e com estreitas ligações com a monarquia. Essa conformação social
Este singular processo também gerou uma estrutura de povoamento com algumas
pretende aqui analisar. Ladero Quesada afirma que as formas urbanas acabam por condicionar o
pensamento, mas que, da mesma forma, que o pensamento condiciona as forma urbanas
reformulada a partir dessa relação, pensamento e forma. O fato urbano ibérico medieval não
escapa a essa lógica, nem premeditado fruto de ausência total de intencionalidade, mas
As cidades que se desenvolvem neste processo tem, muitas vezes, suas casas polarizadas
em torno de uma fortificação que ganha centralidade em relação à igreja. Bem como, o habitat é
muito marcado por elementos de fortificação, quase sempre o casario é associado a um castelo, o
que pode ser verificado pelo uso geral da palavra castro para designar o conjunto. (UTRILLA y
LAILENA, 1997)
povoamento, estes centros eram considerados, na prática, como cidades fronteiriças ou colônias
avançadas de uma nova realidade territorial do mundo cristão (FRANCHETTI PARDO, 1985).
Neste cenário vemos que a morfologia urbana destas cidades foi bastante condicionada pela
promontório, uma escarpa de uma serra, uma área bem abastecida por um rio ou uma pequena
elevação junto à confluência de dois rios. Une-se às condicionantes topográficas, o fato do poder
não estar ainda efetivamente centralizado até o XIV, portanto, não sendo o promotor da
ordenação urbana o que possibilita a geração de traçados urbanos irregulares, assimétricos e sem
planejamento geral.
Por conseguinte, quando observamos as cidades da região castelhana vemos que a grande
muçulmanos conquistados que, por seu turno, também guardam com frequência esta
destas cidades foi determinada em função da sua posição geopolítica e estratégica e não em
relação a sua acessibilidade ou inserção dentro de uma rota mercantil. Não estamos excluindo
aquelas que se formam a partir de motivos diversos, como a construção de um grande mosteiro,
ou a privilegiada localização em uma via comercial. Também a morfologia nos indica o caráter
proeminente, está na raiz da formação urbana a condiciona com muito mais intensidade. Se a
fortaleza não ocupa espaço destacado e sim subordinado ao seu traçado, indica um assentamento
de caráter menos militar, o que não invalida a sua função de defesa. Ávila é um bom exemplo,
com um castelo sem posição de destaque em relação ao recinto, mas com muralhas de
proporções impressionantes e uma igreja com aspecto de fortaleza e com sua abside incorporada
a muralha da cidade.
para que ele deixasse de ter uma função essencialmente de defesa do território e de posto para
novos avanços. Não raro, a perda desta função militar implicou em agonia para diversos centros
urbanos que, em razão da sua localização, não podiam se integrar em nenhuma rota comercial ou
não tinham qualquer expressividade mercantil. Nestes casos, a fortaleza passou a servir
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Função que não se pode considerar desprezível e sim fundamental, pois na verdade, uma
boa parte dos castelos do reino castelhano foi construída, ou reconstruída, do século XV em
diante. Em um cenário onde a estruturação interna dos reinos ainda não estava bem definida, as
lutas dinásticas eram ameaças constantes a cisão das monarquias. A elite senhorial estava afeita a
sua relativa independência, o controle do território era fundamental não somente frente ao
inimigo externo, mas também na manutenção do poder interno. Coca, situação exemplar disto,
reconquistada em 1086 por Alfonso VI, o castelo se encontra fora da cidade e foi erguido
da sua manutenção, ou ainda do reaproveitamento de seu espaço para novas construções como
no caso de Arlanzón, fundada no século X, onde o castelo da mesma data deu lugar a uma igreja
construída no século XII. Estes casos estão relacionados com a situação acima citada de avanço
inclusive propicia a presença do elemento aristocrático de forma ainda mais acentuada no meio
urbano, situação anômala para a época. E, ao fim, percebe-se uma união entre o centro urbano e
o entorno rural mais aguçada. O conjunto de todas estas características, geradas durante o
populações que se fixaram ou foram fixadas nestes centros urbanos e a lógica de construção da
sociedade urbana. Mesmo que tenhamos em conta que todas as sociedades alto medievais
militarização profunda e prolongada, mesmo que não absoluta com dito acima, do território
ibérico, tanto do lado al-Andaluz, quanto do lado cristão. (GAUTIER DALCHÉ, 1990)
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Dentro deste cenário a relação entre muralha, portas e fortaleza define o traçado urbano
com muito mais intensidade do que outros elementos como igrejas ou mercados. Os espaços
religiosos, quando se alocavam junto às fortalezas criavam, assim, uma relativa centralidade
urbana que, no entanto, não significou centralidade geométrica. Os espaços comerciais vão, em
geral, se encontrar dispersos pela cidade, sendo o mercado semanal, que requeria mais espaço,
alocado fora dos muros ou em algum baldio que ainda se encontrava dentro do perímetro da
cerca. Estas áreas destinadas ao mercado, quer intramuros, quer depois anexadas por
alargamento posteriores da muralha, faziam as vezes de praças em uma malha urbana com raros
espaços destinados para tal. Em alguns casos, a praça do mercado, acabou por se transformar no
período final da Idade Média na Plaza Mayor da cidade por já ser um espaço de confluência
quarteirões, mas seguia o percurso mais fácil de construir e de defender. Daqui resultava que
entre o perímetro das muralhas e os quarteirões construídos restavam terrenos vazios, por vezes
bastante amplos, que eram aproveitados como terreiros. Em muitas cidades novas medievais
muralhas, que cumpriam originalmente as funções de praça. O fato de as igrejas não terem sido
as principais ou únicas definidoras da morfologia urbana, uma vez que as cidades castelhanas
surgidas no período foram antes de tudo enclaves de defesa tendo, portanto, outros elementos
concorrentes na sua formação. Não significa dizer que não atuassem como normatizadoras
dentro deste espaço e que não interferissem no traçado e nos arranjos espaciais. Sem dúvida que
esta interferência pode ser vista. Contudo, a afirmativa de Torres Balbás de que as igrejas
determinavam o traçado urbano deve, portanto, ser matizada, pois isto não pode ser
Inúmeros são os exemplos onde é perceptível uma adaptação das igrejas aos traçados
integrando-se na estrutura urbana, mas não como fator gerador dos mesmos. As igrejas podiam,
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por vezes, não gerar o traçado, contudo modificavam social e simbolicamente seu entorno
criando um espaço que se considerava sagrado e, portanto, separado do corpo da cidade. Esta
visão do edifício religioso levou à proibição presente em vários Fueros de se construir qualquer
outro edifício contíguo que não tivesse relação com a igreja. Da mesma forma, esta visão se
2000)
segundo na dinâmica urbana. O castelo que é visto hoje foi construído no século XV sobre o
espaço de uma fortificação anterior, mantendo a mesma localização desta fortaleza. Contudo,
pela localização periférica do castelo e pela origem romana do assentamento fica visível a
A partir de meados do século XIII, as novas fundações urbanas começam cada vez mais a
Real, fundada em 1262 por Alfonso X de Castela, já põe em prática os preceitos geométricos
indicados nas Siete Partidas, legislação emblemática produzida pelo mesmo rei neste período.
Traçado ortogonal, centro geométrico, linearidade das ruas, quarteirões quase simétricos, praça
central com igreja, edifício destinado à municipalidade e outras atividades públicas, e algum
comércio. Mesmo que nem todas as cidades, fundadas a partir do século XIII, contassem com
uma regularidade tão absoluta como a postulada acima, a planimetria urbana tendeu a se tornar
cada vez mais regular, como é possível verificar em ouras localidades de fundação baixo
medieval como Viana, Briviesca, Castellón ou Puente la Reina. (FRANCHETTI PARDO, 1985)
Esta última já permite entrever um traçado que conta já com bastante linearidade,
podendo ser percebidos eixos perpendiculares que condicionam a lógica de distribuição espacial
perceptível o alinhamento das casas em relação ao caminho e a largura razoável das vias de
passagem.
O único problema que não pôde ser evitado nas cidades maiores, portanto com maior
densidade populacional, foi o da altura das edificações. A necessidade de defesa fazia com que
se acentuasse a preferencia por viver dentro das muralhas e muitas vezes a solução foi expandir
verticalmente a cidade. Isso fazia com que as construções se sobrepusessem umas sobre as outras
deixando muitas ruas escuras e úmidas, o que se tornava um problema maior se considerarmos
que até o século XVI, quase nenhuma cidade ibérica era calçada.
Fazendo um giro importante na lógica apresentada até então é necessário considerar que
uma parte relevante das cidades ibéricas foi conquistas aos muçulmanos, isto é, não foi fruto do
Contudo, quando nos debruçamos sobre estas cidades islâmicas, em especial as de al-Andaluz,
vemos que algumas das características acima apresentadas se acentuam ainda mais. Notadamente
no tocante a questão defensiva e do papel das estruturas de defesa e sua atuação sobre a
morfologia urbana. Assim, analisar as características dessa malha urbana é fundamental, pois é
necessário considerar que quase metade das cidades Ibéricas cristas no fim da Idade Média é
existência e descrição destas cercas como a primeira das características de quase todas as
cidades. Para al-Idrīsī, Toledo está “fuertemente asentada, está rodeada de buenas murallas y
defendida por una ciudadela bien fortificada” (AL-IDRISI, 1964, p. 65). Outro geógrafo
muçulmano contemporâneo, al-Bakrī , sem citar as muralhas diretamente, vai colocar como
primeira característica da cidade seu caráter inexpugnável e inacessível, fazendo assim uma
separada do meio natural, rural, fica patente nas constantes citações à existência de mercados,
banhos e, deste modo, a muralha como componente essencial da madīna também define seus
de Toledo. Assim, seu tamanho, altura, o material construtivo e a sua resistência não só garantem
a segurança da cidade e como principal aparelho de defesa urbano, mas também indicam poder e
a riqueza da madīna. Uma vez que é a muralha que define o próprio espaço da madīna e, ao
mesmo tempo, é componente importante desta. A maior parte das cidades hispano-muçulmanas,
em especial as maiores, conta com uma cerca que pode ser de pedra, de tijolos de barro ou de
taipa endurecida com cal. Espessura, altura e número de torres eram determinados pelas
número de portas, mesmo que com isso se criem algumas fragilidades defensivas na própria
muralha. A título de exemplo, Córdoba, no século X, contava com 10 portas; Toledo no século
XI, com 11 e Sevilha, no século XII, com 14 ou 15. Os exemplos acima indicam realidades
relativas ao momento de auge de cada uma das cidades, não sendo, portanto um parâmetro para
estabelecer um modelo. A grande maioria das cidades é bem atendida por três ou quatro portas.
alcazaba), concentrava, no mais das vezes, toda a estrutura necessária a uma vida em separado,
mesmo que houvesse uma grande diferença entre as diversas fortificações no tocante à estrutura
interior. De maneira geral, este tipo de recinto podia contar com: espaço propriamente militar,
espaço residencial (com toda a estrutura necessária de dormitórios cozinhas dispensa, forno,
armazéns...), residência dos empregados, oficinas, mesquita, cisterna, banho, jardins que
chegavam a contar com horta, pomar e até espaços funerários. A complexidade da estrutura
interna de cada fortificação urbana é consoante com o tamanho e importância da cidade onde se
34
localiza e com o grau de permanência dos representantes do poder, no caso islâmico o central,
em seu interior.
cidades muçulmanas não conheceram uma organização comunitária, o que pressupunha certo
delegados. Mesmo o poder religioso era comandado pelo mesmo governante, não havendo assim
espaço para uma atuação política comunitária. A vontade da comunidade ou de grupo sociais não
2002). Deste poder participavam as elites que assumiam os altos postos funcionais e
representavam o poder central nas localidades, quando não o tomavam para si em franca
Assim, não é desprezível a função de polo que exerce a alcazaba no cenário urbano. Aqui
cabe, portanto, uma distinção importante. Na medida em que a alcabaza funciona como palácio
termo Alcázar (Qasr), hierarquizando o próprio espaço apesar da similaridade das funções.
Exatamente por ser espaço do poder, a arquitetura dos alcazares tende a ser suntuosa e a
expressar por sua grandiosidade a grandeza do próprio poder que representa. Mazzoli-Guintard
chega a lembrar que a porta de acesso principal segue esta lógica e marca a diferença entre dois
modos de vida diferentes recordando a natureza da sociedade que vive protegida em seu interior.
Contudo a suntuosidade não significa descuido com a segurança, pois os alcázares, tanto quanto
35
as alcazabas comuns, tem a mesma função de defesa das comunidades urbanas que os rodeiam.
(Mazzoli-Guintard, 2000)
Assim, e dentro de uma proposta de aproximação mais geral, é possível verificar que os
aparatos de defesa tem enorme preponderância nas cidades ibéricas. Mesmo que por conjunturas
mundo cristão, fortalezar, muralhas e acessos condicionaram não somente o traçado urbano da
malha urbana peninsular durante a Idade Média, mas também o fluxo de seus habitantes,
permanentes ou não. Do mesmo modo, por se distanciarem dos modelos de expansão urbana de
Referencias
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Fernando El Catolico, 2002.
UTRILLA Y UTRILLA, F, y LAILENA CORBERA, “Reconquista y repoblación: morfogénesis
de algunas comunidades rurales altoaragonesas en el siglo XII”, Aragón en la Edad Media, , Nº
13, 1997, pags. 5-40
37
Comunicações
38
Introdução
O princípio da centúria
herança conflituosa da centúria anterior. Sua tentativa de solução mais famosa foi liderada pelo
imperador Henrique V e o papa Calisto II com a Concordata de Worms em 1122. Ela estabelecia
que os bispos receberiam a autoridade espiritual por parte do papa, e a temporal por parte do
imperador. Este, por sua vez, poderia estar presente na ocasião da eleição dos bispos das
dioceses que estavam em territórios imperiais, comprometendo-se, todavia, a não intervir na
escolha do novo clérigo que estaria à frente do bispado.xii
O mesmo Calisto II aproveitou esse momento de maior tranquilidade para convocar um
xiii
Concílio Geral, o I Concílio de Latrão, realizado em 1123, sendo o primeiro dos três que
ocorreriam nesse século. Nesse Concílio, três cânones apresentam normativas sobre questões de
guerra.
O décimo cânone fala sobre a peregrinação à Jerusalém, sobre a proteção a família e bens
dos cruzados e a repreensão aos que abandonam os conflitos na chamada Terra Santa ou na
Península Ibérica.xiv
Aos que marcham para Jerusalém para ajudar na defesa do povo cristão e vencer a
tirania dos infiéis é concedida a remissão dos seus pecados. Tomamos sob a proteção
do bem-aventurado Pedro e da Igreja romana as suas casas, famílias e bens,
conforme decreto do papa Urbano. Os que se atreverem a sequestrar parte dos
mesmos ou capturá-los durante a peregrinação serão excomungados. Aos que
colocaram uma cruz sobre suas vestes para tomar o rumo de Jerusalém ou Espanha e
depois retrocederam, ordenamos pela autoridade da Sede Apostólica que retomem a
cruz e ponham-se novamente no caminho entre a próxima Páscoa e a seguinte. Caso
contrário, eles e suas terras sofrerão o interdito dos ofícios divinos, exceto o batismo
de crianças e a penitência dos moribundos.
Note que uma vez dada a palavra de lançar-se nessa longa e difícil empreitada, que a
muitos custava a vida, retroceder antes do cumprimento dos votos rendia uma condenação.
Assim como os benefícios concedidos são simbólicos – o perdão dos pecados e a excomunhão de
quem molestasse sua família e bens –, a punição também o era: a interdição de grande parte dos
ofícios religiosos (mantinha-se apenas o batismo das crianças e a penitência dos que estivessem à
beira da morte). Note que a punição não era restrita aos que desistiam, mas também aos seus
próximos, a sua família e aos que viviam em suas terras. Isso pode ser percebido pelo fato que a
interdição não fala especificamente só do cruzado, mas de crianças (possíveis filhos) e pessoas a
beira da morte.
É válido observar também que o ano de redação desse cânone é 1123. Nesse início do
século XII, já havia passado duas décadas desde a conquista de Jerusalém e o estabelecimento do
reino cristão na região. Na Península Ibérica, a tensão entre os reinos cristãos entre si, bem como
destes com as taifas muçulmanas era permanente.xvi Consideramos que esse prolongamento por
vários anos do contexto cruzadístico, as promessas feitas pelos eclesiásticos em uma sociedade
organizada em torno do cristianismo, bem como a possibilidade de enriquecimento em terras
estrangeiras criaram um cenário atrativo para muitos se alistarem como cruzados, algo que já foi
destacado pela historiografia (BINGEMER, 2002, p.139-143). Mas as condições adversas e
perigos do empreendimento religioso-militar com certeza fizeram muitos retornarem antes que
suas jornadas fossem completadas.
Percebemos, assim, que o discurso do cânone antagoniza cristãos e muçulmanos;xvii
coloca a Igreja na liderança do empreendimento cruzadístico; convida os cristãos a colocarem-se
a serviço da causa concedendo-lhes benefícios simbólicos (perdão dos pecados); tenta criar
condições favoráveis ao mesmo serviço usando o mesmo instrumental simbólico (excomunhão
dos que atacassem sua família e bens), e também lhe serve para repreensão para lidar com
desertores (interdição de ofícios religiosos). Ela legitima a guerra contra os que confessam outra
religião, e concomitantemente condena as prováveis manifestações de violência que poderiam
desmotivar o possível recrutamento de um combatente. Com armas discursivas, a Igreja fazia
com que outros movessem para ela armas físicas, materiais.xviii
O décimo quinto cânone relembra as normativas referentes aos movimentos da Paz e da
Trégua de Deus.
Podemos perceber que esse cânone é bastante direto, reiterando normativas anteriores,
sem detalhá-las.
A Paz de Deus foi um movimento iniciado bem anteriormente, entre fins do século X e o
início do XI. A historiografia costuma caracterizá-lo como uma tentativa eclesiástica de manter a
paz social, na qual as autoridades eclesiásticas pressionariam os guerreiros a não atacar templos,
mosteiros, os eclesiásticos e os pobres. Essa análise pode ser pautada numa interpretação mais
literal dos discursos do período, levando em conta apenas o que estava explícito nas normativas,
mas podemos considerar que o objetivo dos eclesiásticos ia além. Lembrando que nesse contexto
observamos o fortalecimento de poderes locais de uma aristocracia que procura se legitimar
trazendo para si o monopólio da violência, alegando-se protetores dos cristãos frente aos perigos
possíveis. Mais do que interessada numa paz social, o movimento da Paz de Deus seria uma
tentativa de salvaguardar os próprios eclesiásticos de possíveis espoliações por parte dos poderes
laicos, bem como trazer o campesinato ao seu favor, com o discurso de protegê-lo. É uma Igreja
que ao tentar organizar a sociedade eleva o seu próprio papel no seio da mesma.
A Trégua de Deus é usualmente vista como um desdobramento ou aprofundamento do
movimento anterior. Proibia-se o uso de armas em alguns dias da semana: na quinta-feira (que
seria o dia do Perdão), sexta-feira (Paixão de Jesus), sábado (dia de Aleluia) e domingo
(Ressurreição do Cristo). Durante algumas festas específicas do calendário litúrgico essa
interdição da violência também deveria ser respeitada, como o período do Advento, da
Quaresma, da Páscoa e de Pentecostes.
É preciso atentar, entretanto, que as autoridades eclesiásticas não estavam assim
condenando totalmente a violência. Se o discurso eclesiástico a repreende em algumas ocasiões,
não se opõe a ela em outros, legitimando-a indiretamente. Lembremos que em casos específicos,
como já assinalado acima, essa violência não é apenas legitimada, mas recompensada com
benefícios simbólicos. Especula-se que a noção de Guerra Santa, aliás, que envolve o
empreendimento cruzadístico, tenha heranças dos movimentos da Paz e da Trégua de Deus.
Concordamos com Bingermer que Paz de Deus e Guerra Santa poderiam, em princípio,
serem considerados movimentos contraditórios, mas no contexto em análise percebemos que eles
tornam-se cada vez mais associados.
Desejosos de manter a paz, pela graça de Deus, nas posses da Igreja romana,
proibimos, sob pena de excomunhão, a toda pessoa armada de invadir ou reter por
força Benevento, cidade do bem aventurado Pedro. Todo aquele que ousar agir
contra essa determinação será excomungado.
A proteção específica de uma cidade em um cânone obviamente não é sem motivo. Como
a normativa deixa a entender, trata-se de uma cidade que fazia parte do Patrimônio de São Pedro,
não muito distante de Roma. Tal questão aparece nesse Concílio pois pouco tempo antes
Beneveto fora invadida. Os domínios do Papado foram uma preocupação constante ao longo do
século. Ele tenta evitar uma futura invasão ou sítio dessa cidade, usando o tipo de armamento
que dispunha: o simbólico, expresso na ameaça de excomunhão dos invasores.
Meados do século
Avancemos alguns anos no tempo. A história nos mostra que o acordo de Worms não foi
efetivo por longo período, e as discórdias entre o Império e o Papado logo reiniciaram.
Citaremos um exemplo: três anos depois da Concordata, em 1125, Lotário II tornou-se candidato
a imperador, mas sem ser reconhecido como tal por muitas autoridades leigas. Em 1130, por
ocasião de uma conturbada eleição pontifícia, alguns eclesiásticos elegeram Inocêncio II,
enquanto outros apoiaram Anacleto II. Este último viria a ter o apoio da cidade de Roma e da
maior parte das cidades italianas. Os conflitos tiveram uma reviravolta em 1133, ocasião na qual
Lotário invadiu Roma com suas tropas e colocou Inocêncio II no trono de São Pedro. Este, em
retribuição, realizou a cerimônia de coroação de Lotário II, legitimando sua condição de
43
Vale destacar que essa normativa foi reafirmada posteriormente, no vigésimo primeiro
cânone do III Concílio de Latrão (realizado em 1179).
Note que o cânone aqui não inclui a condenação à quinta-feira nem a sexta-feira durante
o dia, bem como durante outras celebrações litúrgicas, como a historiografia aponta que seria
parte do movimento da Trégua de Deus (FRANCO JÚNIOR, 2006, p.74-75). Como se trata de
um movimento que se manteve por séculos, consideramos que as diferenças são frutos do modo
como cada contexto de apropria da Trégua. Entretanto, interessa-nos aqui o aprofundamento que
é dado a questão no texto do cânone. Em primeiro lugar, as interdições não estão apenas
implícitas ao citar o dito movimento, elas estão explícitas, detalhadas no próprio cânone. Em
segundo lugar, ressaltamos o fato de que a condenação não é imediata – ela só é proferida após
três avisos. Para nós, mostra um cuidado da Igreja ao lidar com a aristocracia guerreira em
especial, tentando dissuadir os cavaleiros do combate nesses momentos específicos, antes de
partir para um enfrentamento declarado com a excomunhão. Por outro lado, em caso de
insistência do violador da trégua, percebemos o zelo da liderança eclesiástica reunida em Latrão
no sentido de manter a condenação ao infrator. Nesse sentido, os bispos, responsáveis pela
condenação, são pressionados a seguir com rigor a norma geral estabelecida, sob o risco de
perderem o seu cargo. A normativa confere ainda aos bispos a função de zelar pela paz,
44
“prestando conselho e ajuda para manter a paz, sem acepção de pessoas, sem se deixar levar por
amor ou ódio”, ou seja, deixando de lado possíveis questões pessoais.
O décimo quarto cânone trata das competições e festas nas quais os cavaleiros combatiam
com outros cristãos – as famosas disputas das justas.
Ficam proibidas as justas e festas nas quais os cavaleiros têm o costume de combater
para mostrar suas forças e bravura, o que pode resultar em morte de pessoas e perigo
para as almas. Se algum participante encontrar ali a morte, não seja negada a ele a
penitência e o viático, se os pedir, mas o prive da sepultura eclesiástica.
Ressaltamos que essa normativa também foi reafirmada no vigésimo cânone do III
Concílio de Latrão.
Ao falarmos nas competições de justas normalmente a primeira imagem que nos vem à
mente são de dois cavaleiros com pesadas armaduras, montados em cavalos quase tão
armadurados quanto eles, vindo em carga e chocando-se com grandes lanças. Isso tudo sob os
olhares pomposos de uma dezena de nobres devidamente acomodados em verdadeiras
arquibancadas. Essa ideia é mais aproximada das competições que ocorriam nos séculos XIV e
XV. As famosas lanças que permeiam o nosso imaginário, por exemplo, são posteriores ao
século XIII. No XII, período sobre o qual nos debruçamos aqui, essa atividade esportiva tinha
caráter mais coletivo, além de um pouco mais pragmática e menos de exibição (FLORI, 2005,
p.97-112).
As competições ocorriam quase sempre entre grupos, e não eram tão planejadas,
elaboradas ou teatralizadas como se costuma pensar. Eram realizadas normalmente nos campos
entre duas cidades, com espaço suficiente para que os grupos se instalassem, criando “bases”,
tendo o objetivo primário de atacar o outro. O uso do cavalo não era tão comum, bem como das
armaduras, que eram bem mais simples que as dos séculos posteriores, protegendo, assim, bem
menos o seu usuário. Todavia, elas permitiam uma melhor mobilidade se comparadas às pesadas
armaduras da Baixa Idade Média, o que era mais adequado para os combates em grupos. Além
de cavaleiros, outras pessoas, como escudeiros e arqueiros, formavam as equipes. Para se
derrotar o grupo oponente não se requeria o assassínio do adversário, mas prendê-lo e pilhá-lo.
Os golpes eram, segundo os especialistas no assunto, mais moderados, podendo inclusive
envolver espadas com lâminas não tão afiadas. Entretanto, sempre era possível que um cavaleiro
ou outro participante mais exaltado se excedesse, levando o seu adversário a óbito. As disputas
simulavam situações de guerra e serviam de treino para estas, imitando, por exemplo, saques,
ataques frontais e fugas.xix
45
Segundo Jean Flori, os torneios serviam como catarse e como elemento formador de
identidade para uma aristocracia que se via cada vez mais reprimida entre as normativas dos
eclesiásticos durante a chamada Reforma Gregoriana, por um lado, e, por outro, as dos reis, em
um contexto de fortalecimento do poder real.xx
A Igreja condena os torneios, deixando como castigo para aqueles que vierem a falecer
neles a privação de uma sepultura eclesiástica. Uma punição simbólica, segregando o morto dos
outros cristãos. Essa condenação ganha peso ao lembrarmos que ocorria em uma sociedade que
considerava a morte biológica apenas como início de uma vida eterna.xxi Os motivos dessa
condenação são passíveis de questionamento. Alguns pesquisadores, numa leitura mais literal de
textos medievais, já defenderam a ideia de que a Igreja condenaria o combate por se derramar
sangue cristão, dividindo a Cristandade, enquanto ela deveria voltar-se para os seus inimigos
externos nas Cruzadas e as chamadas Guerras de Reconquista da Península Ibérica. Lembramos,
entretanto, que aceitando a premissa de que tais embates reafirmavam o caráter bélico dos nobres
e conferia-lhes prestígio, os eclesiásticos, fazendo uso do poder simbólico da Igreja para
condenar tais práticas, tentariam se colocar acima dessa aristocracia guerreira. Vale lembrar que
esses são tempos de um movimento eclesiástico que visava o seu fortalecimento perante as
autoridades leigas.
O vigésimo nono cânone atua contra uma modalidade específica de combate armado: os
que usam arco e flecha e as bestas.
Façamos mais um pequeno avanço no tempo. No tocante aos conflitos entre o Papado e
Império no século XII, a historiografia costuma destacar dois personagens: o papa Alexandre III
e o imperador Frederico I, mais conhecido por Frederico Barbarruiva.
Frederico Barbarruiva fez seis viagens a Península Itálica (GILLI, 2011, p. 27-28). Na
primeira delas, em 1154, antes mesmo de sua coroação, procurou restabelecer direitos imperiais
nos centros urbanos, que as comunasxxii tinham reivindicado para si. Esses direitos incluíam, por
exemplo, o uso de moinhos, pedágios, mercados e o pagamento do fodrum.xxiii Algumas cidades
se organizaram então em uma liga para fazer frente ao Império, tendo como liderança Milão. A
liga conseguiu vitórias militares, destruindo cidades que permaneceram fiéis a Frederico.
Frederico I assumiu o trono em 1155, tendo uma considerável estabilidade política na
região da atual Alemanha, que seria a base do seu poder. Assim, pôde voltar sua atenção para a
Península Itálica. Recebeu o endosso pontifício à sua coroa por Adriano IV, no mesmo ano, em
Roma.
Na sua segunda viagem a Península, em 1158, Barbarruiva submeteu os milaneses,
impondo-lhes uma obrigação de alto custo financeiro e simbólico: construir um palácio imperial
dentro de seus muros. Crema, cidade aliada de Milão, foi destruída, e os rebeldes tiveram que
arcar com a reconstrução das cidades de Lodi e Como. O imperador então proibiu ligas unindo
cidades, determinação que não viria a ter o efeito desejado.
Além de lidar com as rebeliões das cidades do vale do rio Pó, ao longo do XII o Império
enfrentou, por exemplo, insurgências de cidades da região da Toscana (GILLI, 2011, p.30-31 e
CARDINI, 1997, p. 92). Para tentar exercer um controle maior sobre as cidades, nomeou
potentados e ministeriales, mesmo nas localidades que em todo o tempo estiveram no lado
imperial da guerra. Segundo Patrick Gilli, tais representantes do imperador só geraram mais
descontentamento das cidades, pois insistiriam em permanecer totalmente alheios às realidades
locais, usando o poder abusivamente em benefício próprio, em detrimento das cidades, que se
diziam humilhadas e pilhadas (GILLI, 2011, p.31-32).
Em 1159 nosso outro personagem em questão ganha maior notoriedade. Por ocasião da
eleição do novo sumo pontífice, a maioria dos cardeais apoiou Alexandre III, defensor dos ideais
posteriormente chamados de reformadores, em especial da teocracia papal, tendo por base o
direito canônico. Frederico, por sua vez, reconheceu como papa Vitor IV, segundo alguns
historiadores seu amigo (BARRIO, 2005, p.192). Vitor tinha o apoio de alguns cardeais que
compartilhavam das ideias que destacavam o papel do imperador na organização da sociedade,
estas pautadas no direito romano, retomado cada vez mais no século em questão.xxiv Vitor IV,
que nessa ocasião da eleição tomou o Palácio de Latrão a força com a ajuda de seus partidários e
47
forçou o seu rival a abandonar Roma, foi apenas o primeiro de quatro antipapas que tiveram o
suporte imperial de Frederico para fazer frente a Alexandre III nos anos que viriam a seguir. xxv
Alexandre III teve um longo pontificado, e por conta da oposição imperial, em grande parte de
seu governo esteve fora da cidade de Roma.
Nesse contexto, inimizades comuns promoveram alianças. Entre 1164 e 1167 foi formada
uma nova liga interurbana, supostamente sob liderança de Verona, contendo cidades como
Veneza, e que decidiu reconstruir Milão. Esses aliados receberam o apoio de nada menos que
Alexandre III, colocando assim lado a lado inimigos do Império. A liga então financiou a
construção de uma nova cidade no norte da Península, a qual foi dada o sugestivo nome de
Alexandria. O Papa, por sua vez, ameaçou promover uma interdição dos ofícios religiosos em
cidades que porventura abandonassem a liga. Em 1176, o imperador Frederico viu sua autoridade
e poderio sofrerem uma violenta queda em Legnano, quando suas tropas foram derrotadas pelas
comunas insurgentes, que conquistaram ampla autonomia para as suas cidades, submetidas ao
Império cada vez mais apenas em uma esfera meramente simbólica.xxvi
Vale aqui uma ressalva: por mais que na maioria dos casos a Igreja tenha apoiado as
comunas, visando diminuir o poder imperial na Península, ela, todavia, não ficou imune ao
movimento comunal. A comuna de Roma, por exemplo, chegou a trazer de volta para a cidade,
em 1145, Arnaldo de Bréscia, antigo abade agostiniano que fazia duras críticas ao acúmulo de
riquezas do clero, que para ele estava excessivamente voltado para o mundo, afastando-se de
Deus. Arnaldo estava condenado como herege desde 1139, e tinha adversários influentes no
meio eclesiástico, como Bernardo de Claraval (MONTANELLI, Indro e GERVASO, Roberto,
1968, p.128-133). As divergências entre os poderes eclesiástico e comunal nesse ano tiveram,
por exemplo, um episódio no qual os normandos sitiaram o Capitólio a mando do Papa Lúcio II,
que no evento tomou uma pedrada na cabeça, permanecendo inconsciente até a sua morte, dias
depois.xxvii
Fim da centúria
vós os prejudicar, o bispo local o excomungará e essa sentença deverá ser observada
por todos até a restituição dos bens usurpados e satisfação em proporção aos danos
caudados. Os bispos e os sacerdotes que não se impuserem com força a tais medidas
serão privados dos seus cargos até que tenham o perdão da Sé Apostólica.
Este é o maior cânone dentre os que apresentam situações de violência nos três Concílios
de Latrão. Também é o mais enérgico tanto em sua condenação, como em sua legitimação. São
condenados grupos considerados heréticos, como os albingenses, contra os quais, aliás, foi
realizada uma Cruzada no século seguinte. Condenou-se também grupos oriundos de
determinados lugares, como os do reino de Aragão. Todavia, a condenação está pautada nem
tanto pela origem dos grupos, mas por suas ações: questionamento da Igreja no caso dos grupos
considerados heréticos e ataque a igrejas, mosteiros, viúvas etc., no caso dos demais. São
considerados semelhantes aos condenados aqueles que os auxiliassem de alguma forma, ou
comercializasse com eles. No início do cânone a Igreja lança mão de sua arma simbólica mais
recorrente, a excomunhão. Entretanto, no decorrer da normativa, a pena é aprofundada. São
considerados liberados dos condenados os que tivessem com eles laços, como os de vassalagem.
Assim, a Igreja visa enfraquecer mais os grupos que considera opositores. A seguir, os cristãos
são convocados a lutar contra estes, lhes confiscando os bens e impondo-lhes a escravidão.
Como recompensa, os combatentes receberiam os mesmos benefícios prometidos àqueles que
lutavam nas Cruzadas.
Assim sendo, nesse cânone existe a condenação da violência contra a Igreja e grupos
considerados indefesos, como viúvas, órfãos e idosos. Por outro lado, a violência contra os
grupos considerados inimigos da Igreja não é apenas legitimada, como é intensamente desejada
(“Nós [Igreja], como todos os fiéis, lhes ordenamos para a remissão dos seus pecados, opor-se
energicamente a essa praga tomando as armas contra eles”).
Considerações finais
Chegamos então à conclusão que no século XII a Península Itálica mostrou-se um cenário
conflituoso. Nesse âmbito, destacamos os embates políticos entre o Papado, o Império e as
comunas, que muitas vezes extrapolaram o campo diplomático e chegaram às vias das armas.
O Papado não possuía um exército militar eclesiástico para lutar por conta própria.xxviii
Todavia, não significa que ele eximiu-se das questões militares. Muito pelo contrário. Em
primeiro lugar, recorria a alianças com outros grupos, usando, por exemplo, tropas normandas e
a mencionada liga veronesa Mas também tinha suas armas, cujas principais eram simbólicas: a
excomunhão e a interdição dos ofícios divinos. Com esse arsenal simbólico o Papado procurava
50
coagir tanto desafetos como aliados que porventura pensassem em mudar de lado, mantendo
assim unidas suas comunas aliadas contra o inimigo comum, o Império.
DOCUMENTAÇÃO
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espanhol por Juan Cruz Puente.
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MCEVEDY, Colin. Atlas de história medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
51
Em 2010 quando assumimos a fronteira como objeto de pesquisa ainda não tínhamos a
noção de como seriam ricos os debates suscitados por esta temática. Nos eventos que
antecederam o II Encontro de História Militar Antiga e Medieval do CEPHiMEx, nos dedicamos
a elaboração de textos que abordassem a ocupação territorial e a manutenção da defesa na região
de Andaluzia. Para este encontro, que tem como tema central a História Militar, resolvemos
tratar dos aspectos gerais da guerra em Castela, tendo como ponto de partida o reajuste
fronteiriço protagonizado pela coroa e pelas Ordens Militares nos séculos XII e XIII.
Se observarmos um mapa referente a este mesmo período, veremos que Castela limitava
a leste com os reinos de Aragão e Navarra, a oeste com Leão (anexado em 1230) e ao sul com o
decadente império almôada (anexo 1). Sendo assim, devem ser empregados diferentes métodos
de analises para as distintas fronteiras que o reino abrigou nestes tempos. Entendendo que
discutir todos os contornos castelhanos extrapolaria o tempo viável, além fazer com que a
pesquisa perdesse o foco e se tornasse maçante, nos concentraremos nas abordagens sobre os
limites territoriais entre Castela e os domínios islâmicos. Pois, acreditamos que as relações entre
mouros e cristãos nesta fronteira ainda necessitam de explicações suficientemente sustentáveis
para impedir a generalização de uma estrutura destas características à simplesmente zonas de
contato e separação do mundo cristão com Al-Andalus5.
Como se trata de um artigo que visa explorar a guerra em Castela precisamos, depois de
estabelecida qual a fronteira a ser explorada aqui, delimitar o que compreendermos por
Reconquista, para melhor conduzir as investigações. Convencionou-se, mesmo que
errôneamente, entender os conceitos de Cruzada e Reconquista como sinônimos. Todavia,
definimos como Cruzadas as expedições militares consolidadas entre a ocupação de Jerusalém
(1099) e a tomada de Trípoli (1109)6. Em geral os objetivos destes combates se resumiam a
recuperação da herança de Cristo e a defesa dos cristãos contra o avanço muçulmano no
oriente7. Para Alain Demurger, a Cruzada caracterizou-se como uma peregrinação armada rumo
4
Mestre em História Medieval pela Universidade Federal Fluminense, Membro do Translatio Studi.
5
FACI, Javier. Introdução. In: RODRÍGUEZ LOPEZ, Ana. La consolidación territorial de la monarquía feudal
castellana: expansión y fronteras durante el reinado de Fernando III. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas. 1994. p. 02.
6
GUICHARD, Pierre. Islã. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente
medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p.638.
7
LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Cepuerj, 1997. p.272.
53
a Terra Santa, cujo anseio principal fora sua libertação frente ao infiel islâmico 8. Desse modo, “o
peregrino tornava-se um soldado de Cristo (Miles Christi), partindo para libertar o patrimõnio do
Senhor e a afronta por Ele sofrida9”.
Rodríguez López, tratando sobre as semelhanças entre as campanhas peninsulares e os
conflitos em Jerusalém, utilizou os termos Cruzada Ocidental e Cruzada Oriental10, cometendo
o mesmo erro que Franco Cardini ao generalizar todas as expedições militares da Cristandade
contra os inimigos da fé como Cruzada11. Tal definição, segundo Demurger, reflete a carência
que os historiadores modernos têm de uma definição precisa do que foram estes movimentos12,
afinal, “o contato brutal entre o Islã e a Cristandade sem dúvida evolui em cada front a um ritmo
próprio13”. Cabe ainda lembrar que em 1095 quando Urbano II havia lançado o apelo á Cruzada
em Clermont, os reinos ibéricos já estavam empenhados há praticamente três séculos na guerra
contra os mouros14, ou seja, “quando o ideal de cruzada se desenvolve o de reconquista já está
caminhando para a sua maturidade15”, de forma que tais idéias se ampliam na Península a partir
de um ideal de restauração da ordem visigótica16. Sendo assim:
Sem dúvida, como assinalou Renata Vereza, a Reconquista pôde ser associada a uma
Cruzada na medida em que os reis e a população abraçaram a ideologia vinculada pelo papado
de um inimigo incomum como justificativa para guerra18. Entretanto, segundo a autora, o
8
DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.2002. p.22.
9
Ibdem. p.23.
10
RODRÍGUEZ LOPEZ, Ana. La consolidación territorial de la monarquía feudal castellana: expansión y
fronteras durante el reinado de Fernando III. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas. 1994.
p.101.
11
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p.480.
12
DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.2002. p.22.
13
GUICHARD, Pierre. Islã. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente
medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p.638.
14
DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.2002. p.22.
15
VEREZA, Renata. Reconquista: Conceito Polissêmico. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes & CODEÇO,
Vanessa F. de Sá & SILVA, Marcio Felipe Almeida da (Org.). Anais do I Encontro de História Militar Antiga e
Medieval. Rio de Janeiro: CEPHIMEx, 2011.p.51.
16
GUICHARD, Pierre. Islã. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente
medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p.637.
17
Ibdem. p.639.
18
VEREZA, Renata. Reconquista: Conceito Polissêmico. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes & CODEÇO,
Vanessa F. de Sá & SILVA, Marcio Felipe Almeida da (Org.). Anais do I Encontro de História Militar Antiga e
Medieval. Rio de Janeiro: CEPHIMEx, 2011.p.50.
54
protagonismo dos reis frente às campanhas da Reconquista descaracteriza sua ação como
Cruzada, já que esta ultima esteve praticamente sobre condução do papado19.
Ainda seguindo as análises de Renata Vereza somos levados a percepção da Reconquista
através de um conceito polissêmico que varia de acordo com o olhar do historiador. Costuma-se
definir como Reconquista um processo de caráter militar situado tradicionalmente da revolta de
Pelágio em 718 a conquista de Granada pelos reis católicos em 1492, neste processo os cristãos
construíram nos espaços desolados da bacia do Douro uma fronteira no vasto man‟s land que
separava os reinos ibéricos e al-Andalus20. O historiador Ricardo da Costa se posicionou a favor
desta teoria de Reconquista a partir de um ponto de vista militar, pois o autor entende seu
conceito por reconquistar, conquistar de novo ou recuperar por conquista21, indicando uma
idéia de propriedade anterior a Espanha, remetendo-se a uma unidade étnico-territorial original22.
Para Vereza este modelo de Reconquista datado na Revolta de Pelágio é certamente errôneo,
uma vez que os primeiros avanços cristãos se fizeram sobre assentamentos na zona Douro fora
do domínio islâmico, de forma que as batalhas travadas neste período não faziam parte de um
plano militar de expansão territorial, tendo como objetivo a obtenção de saques e não a ocupação
territorial propriamente dita23. Sendo assim, a resistência dos povos nortenhos não poderia
significar exatamente uma comunidade permanente de oposição ao islã, de modo que “entender
reconquista simplesmente como um conflito armado, para além do reducionismo que induz,
implica em esvaziar o termo de toda a sua carga política e ideológica24”. Sendo assim, a
Reconquista foi mais do que uma guerra ou uma tentativa de expansão territorial. Podemos
entendê-la como um projeto político, uma vez que abarcou praticamente todo o mundo ibérico e
mobilizou os diferentes grupos sociais pertencentes ao reino25. Além disto, devemos caracterizá-
la por seu caráter de movimentação populacional e mobilidade social, defendido por Garcia de
Cortazar. Sendo assim, passemos as considerações a cerca da atuação das Ordens Militares no
cenário da Reconquista.
19
Idem.
20
DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.2002. p.41.
21
COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média: Um Estudo da Mentalidade de Cruzada na Península Ibérica.
Rio de Janeiro: Edições Para Todos, 1998. p.78.
22
VEREZA, Renata. Reconquista: Conceito Polissêmico. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes & CODEÇO,
Vanessa F. de Sá & SILVA, Marcio Felipe Almeida da (Org.). Anais do I Encontro de História Militar Antiga e
Medieval. Rio de Janeiro: CEPHIMEx, 2011.p.41.
23
Ibdem. p.44.
24
Ibdem. p.45.
25
VEREZA, Renata. Reconquista: Conceito Polissêmico. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes & CODEÇO,
Vanessa F. de Sá & SILVA, Marcio Felipe Almeida da (Org.). Anais do I Encontro de História Militar Antiga e
Medieval. Rio de Janeiro: CEPHIMEx, 2011.p.46.
55
No que tange ao fator militar do limes26, podemos observar uma ação fronteiriça
protagonizada pela coroa e pelas Ordens Militares no século XIII. Ação que acabou por ampliar
o espaço de ocupação cristã em 400.000 km² ao sul dos primitivos núcleos de resistência ao Islã.
Tal ação foi analisada por Ayala Martínez em os três momentos-chave que impuseram
consequências ao reino de Castela e alteraram a noção do limes, deslocando-o cada vez mais
para o sul. O primeiro destes momentos se inicia com a vitória em Las Navas de Tolosa (1212)
abrindo o caminho para a conquista da região do vale do Guadalquivir. Neste dito momento às
Ordens de caráter local (Calatrava e Santiago) se beneficiaram das concessões reais a medida em
que as Ordens estrangeiras (Templários e Hospitalários) passaram a ocupar um papel secundário,
devido aos seus constantes fracassos em guarnecer a fronteira.
O segundo momento-chave, descrito pelo autor, transcorre entre conquista de Córdoba e
a ocupação de Sevilha (por volta de 1236). Foi neste momento que Castela alcançou sua maior
extensão e atingiu uma hegemonia até então inédita, restando em seu caminho apenas o ultimo
bastião ainda sobre poderio islâmico, o reino de Granada. Acreditamos que ao abordar este
período o autor cometeu um equivoco procedendo a seguinte afirmação: “Cuando a mediados del
siglo XIII se completa la reconquista, y la fijacion de una frontera estable en Granada, reino
vasallo a fin de cuentas, permitia a la monarquia castellana retomar proyectos cruzadistas
africanos27”. Pois bem, é certo que o ardor da Reconquista mesmo tendo diminuído nos anos
finais do reinado de Afonso X não impôs fim ao projeto político de ocupação territorial no qual
se concentrava a Reconquista, o termo estável, utilizado pelo autor, não deve ser entendido como
falta de mobilidade e permeabilidade, mas sim a falta de combatividade.
Por último, o terceiro momento-chave, que o autor chama de Reconquista tardia, ocorre
durante o reinado de Afonso X. Partindo do principio que a delimitação dos limites com Granada
estariam mais claros e menos violentos, Ayala Martinez defende que o conceito de fronteira com
o Islã se transladou para além das linhas desenhadas pela guerra levada a cabo por Fernando III,
neste momento os limites territoriais adquiriram uma dimensão nova e de proporções elásticas,
convertendo o estreito de Gibraltar e as terras do Marrocos em zona teóricas de intervenção para
garantir a segurança dos territórios peninsulares28.
26
Limes: Palavra que sugeria a idéia de fronteira militar no Império romano, em seu sentido próprio significava
limite, baluarte ou caminho que limitava uma propriedade.
27
AYALA MARTÍNEZ, Carlos de. Las Ordenes Militares Castellano-Leonesas. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos
& BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la España medieval.
Madrid: Casa de Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 125.
28
AYALA MARTÍNEZ, Carlos de. Las Ordenes Militares Castellano-Leonesas. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos
& BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la España medieval.
Madrid: Casa de Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 136.
56
Naturalmente que ese hecho no es ajeno a los intereses de las potencias mercantiles
italianas mas cercanas a Castilla, empeñadas en desbloquear el estrecho, pero es
tambén un factor político de seguridad real y psicológica para el reino de Castilla, que
ampliaba asi sus expectativas de dominio territorial, al tiempo que mantenia viva la
idea de cruzada, esgrimible contra alguien más que um emirato doméstico, fuedatario
de Castilla. La frontera sigue siendo, de este modo, um factor claramente asociado a
la seguridad del reino, un elemento conustancial a su propria esencia 29.
É certo que o translado desta “fronteira elástica” para o Marrocos, coincidiu com
acontecimentos importantes no Magreb. Em 1269, o sultão merini Abu Yusuf havia deferido um
golpe mortal poder almôada, e entrando vitorioso em Marrakech iniciou a unificação do Magreb,
convertendo os merínidas em uma séria ameaça para Castela30. Sendo assim, mas do que
delimitar áreas de autoridade, a fronteira tendeu a se converter no espaço onde o monarca e seus
agentes de poder deveriam proporcionar a segurança.
Ayala Martinez explora bem a questão da utilização das Ordens Militares no decorrer da
Reconquista, posicionando-as como uma espécie de policia fronteiriça31, beneficiada pelas
frequentes concessões de terras limites do reino por sua atuação como peça fundamental na
política dos reinos peninsulares. Estes por sua vez, mais do que entidades fronteiriças, eram até o
século XIV autênticos reinos-fronteira32, cuja sobrevivência esteve ligada a capacidade de reagir
frente aos adversários.
Francisco Garcia Fitz também concorda com esse imaginário de um limes violento e
inquieto defendido por Ayala Martinez. Seu artigo Una Frontera Caliente, contribuiu para o
entendimento da guerra nos limites territoriais entre castelhanos e muçulmanos durante a Idade
Media Central, período em que se concentram nossos recortes.
Garcia Fitz deixa claro não pretender tomar partido nos debates levantados sobre a
melhor definição do que foi a Reconquista, mas compreende que o caráter deste processo sofreu
mudanças durante o reinado de Afonso VI (1072 – 1109). A guerra de fronteira que antes se
resumia a razias e butins passou a empreender objetivos mais ambiciosos, como o controle de
terras e fortalezas sobre domínio do islã. Com esta mudança, tanto a monarquia castelhana
quanto às lideranças mouras buscaram salvaguardar os pontos fortes do território, principalmente
os locais fortificados, o que levou a guerra durante o período a se caracterizar pela possessão dos
29
Ibdem. p. 137.
30
Ibdem. p. 125.
31
AYALA MARTÍNEZ, Carlos de. Las Ordenes Militares Castellano-Leonesas. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos
& BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la España medieval.
Madrid: Casa de Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 142.
32
Ibdem. p. 124.
57
pontos fortes, convertendo as operações de assedio no aspecto mais assíduo dos enfrentamentos
do período33.
Asi pues, tanto desde una óptica ofensiva como desde una perpectiva defensiva, el
control del território constituyó el eje contral de las actividades militares en las
distintas fronteras castello-musulmanas. Aunque no sea este el lugar para exponerlo
con detalle, cabe siquiera recordar que en el mundo medieval el castillo en general,
pero sobre todo la ciudad amurallada, era el centro de una tupida red de relaciones
institucionales, fiscales, económicas, políticas y militares de diverso tipo respecto a su
entorno geográfico mas o menos inmediato de tal forma que cuando hablamos de
control del territorio nos estamos refiriendo sencillamente al domínio de estos centros
neurálgicos34.
33
GARCÍA FITZ, Francisco. Una Frontera Caliente. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos & BURESI, Pascal &
JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la España medieval. Madrid: Casa de
Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 166.
34
Idem.
35
GARCÍA FITZ, Francisco. Una Frontera Caliente. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos & BURESI, Pascal &
JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la España medieval. Madrid: Casa de
Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 167.
36
Ibdem. p.170.
58
Los soldades visten de rojo y las riendas de sus caballos son de fuego y sus caras como
el tizon; la galanura de su rostro es como las ollas, y sus ojos como fuegos; su jinete es
mas rápido que los leopardos y mas cruel que el lobo en la noche41.
37
GARCÍA FLORES, Antonio. Fazer Batallas a los Moros por las Vecindades del Reyno. In: AYALA
MARTÍNEZ, Carlos & BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la
España medieval. Madrid: Casa de Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 268.
38
Ibdem. p. 267.
39
GARCÍA FLORES, Antonio. Fazer Batallas a los Moros por las Vecindades del Reyno. In: AYALA
MARTÍNEZ, Carlos & BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y representación de la frontera en la
España medieval. Madrid: Casa de Velázquez & Universidad Autónoma de Madrid. 2001. p. 290.
40
Idem.
41
JIMENEZ DE RADA, Rodrigo. Historia de los Hechos de España. Trad. Juan Fernandez Valverde, Madrid.
1989. p.150.
59
Ao propor nas fronteiras uma sociedade organizada para paz e não para a guerra,
Rodriguez Molina baseou-se na idéia de que a necessidade de intercâmbios e o desejo de
sobrevivência permitiram outros tipos de condutas pacificas, mas engajadas no âmbito da
42
Ibdem. p.217.
43
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995. p.216.
44
Ibdem. p.217.
45
FLETCHER, Richard. Em busca de el Cid. São Paulo: Editora Unesp. 2002. p.69.
46
Ibdem. p. 85.
47
RODRÍGUEZ MOLINA, José. La vida de moros y cristianos en la frontera. Alcalá la Real: Alcalá Grupo
Editorial. 2007. p.13.
60
diplomacia e fomento de intercâmbios48. Em sua opinião, não parece que a fronteira foi um
cenário exclusivamente de conflitos, nem que protagonizou confronto permanente entre facções
cristãs e muçulmanas49. Esta idéia não esconde, obviamente, uma critica a corrente de
historiadores que tem defendido o estado de guerra permanente no limes castelhano, “en si, no es
más que una verdad a medias y que hábilmente manipulada puede derivar en una concepción
guerrera y violenta de la frontera50”.
Garcia Fernandez, que também trabalha amplamente esta questão, chama atenção para os
particularismos locais dos senhores do limes que causavam os conflitos, rompendo assim com a
tendência em acreditar que a guerra na fronteira era uma luta cega que envolvia toda Castela
contra todo o lado islâmico representado por Granada ou pelo Magreb. Sendo assim, o conflito
oscilava entre um estado de guerra e de paz atenuada51 , dependente da existência de uma
realidade fronteiriça que sofria alterações de acordo com os interesses dos grupos que habitavam
nas zonas de contato. Segundo o autor, a condução dos conflitos tinha mais haver com os anseios
dos homens da fronteira do que com os assuntos de interesse exclusivo do reino ou do monarca.
Ao tratar das relações interculturais entre os distintos grupos, não devemos cometer os
erros básicos da historiografia medieval hispânica, salientados por Thomas F. Glick. Para o
autor, alguns historiadores perdem sua imparcialidade ao minimizar os fatores positivos do
contato e observar o intercambio apenas nos tempos de paz, sendo assim não devemos acreditar
que a difusão cultural e o conflito étnico são fenômenos mutuamente excludentes52. O fato de
pesquisarmos uma sociedade em pleno conflito não quer dizer que não havia tolerância, e que
mesmo dentro desta esfera de tolerância não poderia também haver enfrentamentos. Para Glick
hostilidade e complacência são fatores que andaram de mãos dadas na Península.
48
Ibdem. p.137.
49
Ibdem. p.144.
50
idem
51
GARCIA FERNANDEZ, Manuel. Andalucia: guerra y frontera (1312 - 1250). Andalucia: Fondo de Cultura
Andaluza. 1990. p.135.
52
GLICK, Thomas F. Cristianos y Musulmanos em La España Medieval (711-1250). Madrid: Alianza Editorial.
1993. p.218.
61
ANEXO 1
ANEXO 2
ANEXO 3
BIBLIOGRAFIA
AYALA MARTÍNEZ, Carlos & BURESI, Pascal & JOSSERAND, Philippe. Identidad y
representación de la frontera en la España medieval. Madrid: Casa de Velázquez &
Universidad Autónoma de Madrid. 2001.
CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2002.
GUICHARD, Pierre. Islã. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2002.
JIMENEZ DE RADA, Rodrigo. Historia de los Hechos de España. Trad. Juan Fernandez
Valverde, Madrid. 1989.
VEREZA, Renata. Reconquista: Conceito Polissêmico. In: PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes
& CODEÇO, Vanessa F. de Sá & SILVA, Marcio Felipe Almeida da (Org.). Anais do I
Encontro de História Militar Antiga e Medieval. Rio de Janeiro: CEPHIMEx, 2011.
65
A partir do Édito de Milão em 313 d.C., promulgado por Constantino I, o Grande, dando
liberdade de culto à Igreja Cristã, esta não mais parou de crescer e, por isso mesmo, Jerusalém na
Palestina, cidade onde pregou e foi martirizado Jesus Cristo, adquiriu grande importância
religiosa54. Com a divisão irreversível do Império Romano após a morte do imperador Teodósio
I, em 395, Jerusalém ficou sob o controle do Império Romano do Oriente, nova designação dada
às províncias orientais do Império, com a capital situada numa antiga colônia grega chamada
Bizâncio, refundada e rebatizada, em 11 de maio de 330, pelo imperador Constantino I, o
Grande, como “Nova Roma”, mais conhecida historicamente pelo seu cognome popular de
“Constantinopla55”.
No início do século VII, em sua luta milenar contra o Império Persa, o Império do
Oriente não se apercebeu da ascensão de uma nova potência no horizonte; o “Islã”.
De conceito puramente religioso, e a principio étnico, o Islã era constituído por tribos
árabes que foram unificadas por seu fundador o “Profeta Mohamed”. O Islã, como doutrina
político-religiosa, possuía preceitos claramente expansionistas e messiânicos56, adotando a
designação genérica de islamitas ou muçulmanos.
Esgotados pelos séculos, praticamente ininterruptos, de guerra, tanto o Império do
Oriente quanto o Império Persa não estavam aptos para fazer frente a esta nova e jovem potência.
Em 637, na batalha de Kadisaya57, os árabes derrotaram os persas, que viram seu Império sair
das páginas da história.
Entretanto, já em 634 os islamitas invadiram a Palestina derrotando as forças bizantinas
do imperador Heráclio58 na batalha do rio Yarmak, na atual Jordânia. Em 635 tomaram
Damasco, capital da província da Celesíria, onde o próprio irmão do imperador foi morto. Logo
após caíram as cidades de Antioquia e Alepo. Em 637 os muçulmanos tomaram Jerusalém e
ocuparam toda a Palestina.
53
Bacharel em História (UERJ) com Pós-graduação em Logística (UFF) e Ciências Políticas (UCP).
54
In Carroli Bark. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1974, Pág. 35.
55
Idem. Pág. 38.
56
In Maalouf, Amim. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo, Braziliense, 1988, Pág. 39.
57
In Keegan, John. Uma História da Guerra. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, Pág. 112.
58
In Runciman, Steven. A Civilização Bizantina. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1977, Pág. 98.
66
59
In Diehl, Charles. Os Grandes Problemas da História Bizantina. São Paulo, EDAMERIS, 1961, Pág. 56.
60
in Runciman, Steven. A Civilização Bizantina. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1977, Pág. 133.
61
In Runciman, Steven. A Teocracia Bizantina. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1978, Pág. 65.
67
O imperador bizantino Alexis Comneno, em 1085, preocupado com o avanço dos turcos,
passou por cima do cisma religioso que separava as igrejas latina e ortodoxa deste 1054, e entrou
em negociações com o papa Urbano lI para o envio de reforços militares ao Império62.
Desde os tempos do papa Gregório VII que a idéia de uma guerra santa contra os
muçulmanos, e os não-católicos em geral, era alentada. Urbano viu aí uma real possibilidade de
alocar a incipiente violência dos cavaleiros feudais católicos63 e de por sob seu controle
eclesiástico as terras do oriente, há muito cismático ou perdido para a Sé de Roma.
Alexis, ao contrário de Urbano, só desejava mesmo obter apoio para combater os turcos,
e não uma multidão de latinos fanáticos e famintos para libertar a Terra Santa, coisa totalmente
sem sentido para os bizantinos da época.
Este movimento iniciado com o imperador Alexis Comneno e o papa Urbano II passou a
ser denominado genericamente de “Cruzadas64”. Durou de novembro de 1095 até agosto de 1291
na Terra Santa, e mais algum tempo em outros locais, como no Báltico oriental, no continente
Europeu, onde oficialmente terminou em 1290, mas na prática ocorreu até o século XV, e na
Península Ibérica, onde durou até a reconquista final dos cristãos frente aos mouros, também no
século XV.
Em 26 de novembro de 1095 já se podia ver em Clermont, região do Lange D‟oc francês,
onde a Igreja convocara um concílio, as primeiras neves de inverno. A presença do papa Urbano
II, francês de nascimento, atraiu uma multidão tão grande que o discurso papal teve que ser
realizado do lado de fora da catedral para que todos pudessem ouvir:
“Ó raça dos francos! Raça amada e eleita de Deus!... Dos confins de Jerusalém e de
Constantinopla chegou-nos uma notícia dolorosa, a qual diz que uma raça amaldiçoada,
inteiramente afastada de Deus, invadira violentamente as terras desses cristãos e as despovoara
com pilhagem e fogo. Essa raça levou uma parte dos cativos para sua própria terra e matou a
outra por meio de cruéis torturas. Eles destroem os altares, depois de os profanarem com sua
impureza. O reino dos gregos está agora desmembrado e privado de um território tão vasto que
não pode ser atravessado em dois meses.
Sobre quem repousa então a tarefa de vingar essas afrontas e de reconquistar esse
território se não sobre vós - a quem, acima de todos os outros, Deus conferiu uma notável glória
em armas, grande bravura e força a fim de humilhar as cabeças daqueles que vos resistem? Que
os feitos de vossos ancestrais vos encorajem - a glória e a grandeza de Carlos Magno e outros
monarcas vossos. Que o Santo Sepulcro do Nosso Senhor o Salvador, agora na posse de nações
62
In Louis Bréhier. Crusades. http://www.newadvent.org/cathen/04543c.htm, Página visitada em 25/07/2012.
63
In Le Goff, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa, Editorial Stampa, 1984, Pág. 68.
64
In Grousset, René. As Cruzadas. São Paulo, DIFEL, 1965, Pág. 111.
68
impuras, vos faça erguer-vos e aos santos lugares que se acham agora manchados com
poluição. Que nenhuma de vossas posses vos atenha, nem a ansiedade pelos vossos assuntos
familiares. Pois esta terra onde habitais, cercada de todos os lados pelo mar e pelas montanhas,
é agora demasiado pequena para vossa grande população; mal fornece suficiente alimento para
os seus cultivadores. Eis porque vós vos matais e devorais uns aos outros, porque desencadeais
guerras e muitos de vós pereceis em lutas intestinas.
Façamos, portanto, com que o ódio vos abandone; que vossas disputas terminem. Entrai
no caminho para o Santo Sepulcro; arrebatai aquela terra de uma raça perversa e submetei-a a
vós próprios. Jerusalém é uma terra mais frutuosa do que todas as outras, um paraíso de
delícias. Aquela cidade real, situada no centro da terra, implora que vades em seu socorro.
Empreendei esta viagem seriamente para a remissão de vossos pecados e estejais certos da
recompensa, da glória imperecível no Reino do Céu65”.
No meio do povo ergueu- se uma exclamação: “Dieu Ii volt66”- Deus o quer! Urbano
aceitou-a e conclamou a assembléia a tomá-la como seu grito de guerra; “...aconselhou aqueles
que empreendiam a Cruzada a usarem uma cruz na testa ou no peito como símbolo67”.
Imediatamente alguns nobres, “...lançando-se aos pés do papa ofereceram-se e as suas
propriedades ao serviço de Deus68.”
Assim nos relata o cronista William de Mamesbury69. Entre estes estava também um
plebeu conhecido como Pedro, o eremita, que viria a ser um dos maiores entusiastas daquele
movimento.
Por estas linhas já se deduz o caráter religioso deste empreendimento, mas se
observarmos por baixo das brumas do tempo e dos sentimentos humanos, veremos que não foi
apenas o ardor religioso que motivou aqueles homens e mulheres a empreender uma “Guerra
Santa” que duraria mais de duzentos anos. Na verdade veremos que todas as motivações políticas
e econômicas estavam ali representadas. Desde o desejo dos cavaleiros secundogênitos de terem
um feudo ao desejo sincero e sem escrúpulos das repúblicas marítimas italianas de se
apoderarem das rotas comerciais do Mediterrâneo oriental.
Para a Igreja Católica, entretanto, esta seria uma “guerra justa”, pois o inimigo era um
descrente em Cristo, seres que profanaram altares e vilipendiaram cristãos, mesmo que estes
cristãos fossem ortodoxos. Para os cruzados a Igreja oferecia a remissão dos pecados, para o
imaginário da época, recompensa superior a todos os tesouros da Terra.
65
In Howarth, Stephen. Os Cavaleiros Templários. Lisboa, Livros do Brasil, s.d., Pág. 45.
66
Idem. Pág. 48.
67
Idem Pág. 57.
68
Idem Pág. 57.
69
In Louis Bréhier. Crusades. http://www.newadvent.org/cathen/04543c.htm, Página visitada em 25/07/2012.
69
Com a tomada da Terra Santa pelos cavaleiros cruzados em 1099 passou a ser necessário
defendê-la. Neste ponto começa o nosso interesse atual, pois essa defesa foi exercida com maior
vigor pelas Ordens de Cavalaria criadas a princípio com esta finalidade.
Talvez nem Alexis e nem mesmo Urbano tivessem a noção exata, naquele longínquo ano
de 1085, da dimensão que tomaria o empreendimento humano que eles estavam propondo, e que
modificaria radicalmente a história da Europa, do Oriente Médio e da humanidade de uma forma
geral.
Também conhecidas como “Ordens Religiosas Militares”. Sua origem remonta à época
das Cruzadas, nos séculos XI e XII, quando eram basicamente irmandades de combatentes sob a
égide da Igreja Católica Romana. Aliavam em si os dois maiores ideais da Idade Média que eram
a bravura da Cavalaria e o ardor religioso.
Seus membros normalmente faziam o tríplice voto de “pobreza, castidade e
obediência70”, que estava inserido em seus códices. Sua organização religiosa muito se
assemelhava às Ordens Religiosas eclesiásticas. O que as diferenciavam destas era sua função
militar: “Combater com mente pura pelo supremo e verdadeiro rei, Jesus Cristo71”.
Constituídas, em seus alto escalões, por nobres europeus pertencentes à classe da
Cavalaria, a função militar das Ordens rapidamente assumiu posição de proeminência frente às
outras. Estas Ordens seguiam regras aprovadas pelo papa ou por concílios feitos em seu nome.
Nos costumes medievais, “ordo” – Ordem – significava muito mais que uma
organização, ou uma corporação, já que abrangia a idéia de uma função social e pública. Os
homens que pertenciam a uma “ordo” não só seguiam seu destino pessoal, mas também
ocupavam um lugar na sociedade cristã. Os guerreiros, como classe, eram agora uma “ordo”
com um “officium72”. Este “officium”, ou papel, foi fundamental para o espírito das Ordens. Ele
está explicitado no segundo parágrafo da Regra, conhecida como a Regra Latina ou Primitiva
(dos Templários), que foi anexada às atas do Concílio de Troyers73.
As três maiores e mais importantes Ordens foram: a “Ordem dos Cavaleiros do
Hospital de São João de Jerusalém” ou “Ordem dos Hospitalários”; a “Ordem dos Cavaleiros
do Templo de Salomão” ou “Ordem dos Templários”; e a “Ordem dos Cavaleiros Teutônicos
do Hospital de Santa Maria de Jerusalém” ou “Ordem dos Teutônicos”.
Possuíam todas basicamente as mesmas estruturas, sendo dirigidas por um Grão-
Mestre, eleito dentro da Ordem por um colégio eleitoral composto por cavaleiros, e um conselho
executivo formado por oficiais de várias patentes. Dividiam os territórios onde eram
representadas, para efeito de administração interna, em províncias dirigidas por um mestre
regional ou por um grande oficial. Em caso de extrema necessidade podia-se reunir um
“Capítulo Geral”, que era a reunião de todos os representantes da Ordem em questão, e esta
assembléia tinha autoridade superior a do próprio Grão-Mestre.
70
In Duby, Georges. Guilherme Marechal – ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro, Graal, 1987, Pág. 47.
71
Prawer, Joshua in Burman, Edward. Templários: os Cavaleiros de Deus. São Paulo, Círculo do Livro, s.d., Pág.
31.
72
In Runciman, Steven. História das Cruzadas, Lisboa, Livros Horizonte, vol. I., 1992, Pág. 69.
73
In Oldembourg, Zoé. As Cruzadas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, Pág. 65.
71
74
In Christiensen, Eric. Conquistas Mongólicas. Rio de Janeiro, Cidade Cultural, 1990, Pág. 87.
75
In Aziz, Philippe. A Palestina dos Cruzados, Rio de Janeiro, Otto Pierre, 1978, Pág. 103.
76
In Burman, Edward. Templários: os Cavaleiros de Deus. São Paulo, Círculo do Livro, s.d., Pág. 153.
77
In Da Costa, Ricardo. A Guerra na Idade Média. Rio de Janeiro, Paratodos, 1998, Pág. 56.
78
In Aziz, Philippe. A Palestina dos Cruzados. Rio de Janeiro, Otto Pierre, 1978, Pág. 149.
79
In Christiensen, Eric. Conquistas Mongólicas. Rio de Janeiro, Cidade Cultural, 1990, Pág. 77.
72
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74
Em geral, quando ouvimos falar sobre o exército romano nos vêm à mente a imagem da
Antiguidade.
Muito desta representação do poderoso exército com suas invencíveis legiões foi forjada
por filmes e séries, como “Gladiador”, “Roma”, “Ben-Hur”, entre tantos outros que poderiam ser
Nesta exposição, no entanto, não trataremos deste exército de tipo imperial, que autores
antigos, como o Flávio Vegécio, nos legaram em seus registros, e que é uma realidade da
História Militar Romana entre os séculos I a.C. e II d.C. Nosso foco é outro, para além dos
da infantaria pesada com o aumento das demandas da Plebe por maior participação política, no
século V a.C.
Por conseguinte, este trabalho se desenvolve em um formato de ensaio, que nos permite
uma exposição mais livres das ideias, centrando as nossas preocupações na apresentação de
II.
80
Doutor vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ). Professor da
Universidade Salgado de Oliveira, Campus Niterói. E-mail: profdiogo.psilva@gmail.com
76
entre os estudos sobre a Grécia Clássica e sobre a República Romana. Durante séculos, ergueu-
sociais que ocorriam na Península Itálica, daqueles que estavam ocorrendo no Mediterrâneo
os séculos VI e V a.C.
(1965), Victor Hanson (1993), Moses I. Finley (1990), Jean-Pierre Vernant (2009), Marcel
Detienne (1985; 1988), Pierre Vidal-Naquet (1985) – que se debruçaram sobre a relação
Em relação a este ponto, cabe um parêntesis. Entre os séculos VIII e VII a.C.,
modelo de combate oposto ao da guerra aristocrática até então dominante nesta região.
hoplita – soldado de infantaria equipado com uma panóplia específica, hoplon, (armadura, grevas
ou cnêmides, escudo, elmo, lança) –, o qual atuava em grupos de combatentes dispostos de tal
forma que o escudo de um protegia a metade do lado esquerdo de seu companheiro, e as lanças
das cinco primeiras filas projetavam-se para frente (FERREIRA, 2004, p. 51).
Neste tipo de embate, o combatente não dependia apenas de suas capacidades pessoais
como guerreiro – tal qual no Período Homérico –, mas principalmente de seus companheiros, a
ação deixava de ser individual e tomava uma dimensão coletiva, sendo mais importante “manter
o seu lugar na fileira, lançar-se a um só tempo sobre o inimigo, combater escudo contra escudo,
No período homérico, o herói era o bom condutor de carros de guerra, o hippeus, que
Ilíada de Homero – como os combates entre Aquiles e Heitor, Páris e Menelau, Glauco e
Diomedes, entre outros – nos levam a afirmar que as batalhas se configuravam a nível individual,
através de vários duelos que se desenvolviam durante os embates, nos quais os prómachoi se
enfrentavam.
inspirado pelo ardor de alguma divindade, encontrava-se numa espécie de êxtase que o permitia
executar ações incríveis, o que leva Jean-Pierre Vernant a concluir que “o valor militar se
afirmava sob a forma de uma aristeia, de uma superioridade pessoal” (VERNANT, 2009, p.67).
Por outro lado, no modelo de combate dos hoplitas, não há espaço para as façanhas
Um exemplo drástico deste novo regime de pensamento foi apresentado por Heródoto em
sua narrativa sobre a Batalha de Platéia. Nela, Heródoto menciona a história de Aristodamo, um
dos “Trezentos de Esparta” que voltou à sua pólis sem ser ferido. Em Platéia, ele lutou
bravamente, uma vez que buscava se livrar da vergonha de não ter morrido nas Termópilas;
entretanto, a despeito de seus grandes feitos em combate, os espartanos não lhe concederam as
honras fúnebres devidas aos melhores, recusando-lhe a aristeia, uma vez que lutou imbuído pela
lyssa e tinha abandonado sua linha de combate (HERÓDOTO. Histórias IX, 71. VERNANT,
2009, p.68). Neste novo regime de pensamento, o furor guerreiro se torna opróbrio, e a virtude
55).
cidadania restrita aos aristocratas e outra organização que propunha uma expansão desta
cidadania a outros grupos da sociedade; e, neste mesmo processo, o confronto entre o modo
combate coletivo.
III
V a.C., podemos levantar a hipótese de que seguiram as mesmas linhas gerais das
A leitura das obras de Plutarco, Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso, nos permite
Monárquico, em Roma (séc. VIII-VI a.C.). As evidências materiais advindas das tumbas do
Lácio no período oferecem dados importantes para considerarmos a existência de uma separação
cidade de Roma esteve, pois, atrelado à emergência de uma aristocracia guerreira, detentoras das
terras, os patrícios (GRANDAZZI, 2010, p.153). Da mesma forma, a expansão inicial de Roma
sobre os vilarejos vizinhos no Lácio foi capitaneada por estes mesmos patrícios, que viram sua
Neste ponto devemos retornar ao nosso argumento inicial, considerando o contexto das
relações culturais existentes na Bacia Mediterrânica do século V a.C. Este período assistiu a uma
grande expansão da colonização grega pelo Mediterrâneo, em especial no sul da Itália, região
79
conhecida como Magna Grécia. Da mesma forma, ao norte estavam os etruscos e os gauleses, e à
volta do Lácio vários povos italiota – como equos, volscos, oscos e samnitas.
Após expulsar o rei etrusco, a situação de Roma era militarmente vulnerável. É neste
contexto que devemos observar as pressões da plebe por maior participação no jogo político e a
Em dois momentos do século V a.C – nos anos 494 a.C. e 449 a.C. – os plebeus
recorreram à chama secessio – um greve política e militar –, que obrigou os patrícios a cederem
passagem do século VI para o V a.C., na qual a infantaria pesada formada por plebeus adquiriu
cavalaria nobre mostravam-se insuficientes nas campanhas contra as cidades etruscas e contra os
de grupo social e estimulou a sua atividade política – tal qual se verificou na Grécia Arcaica. O
papel decisivo na condução das campanhas estava na estratégia militar baseada nos soldados de
infantaria pesada. Dado que estas formações de elite eram constituídas principalmente por
Por certo, o desenvolvimento e a adoção infantaria pesada não gerou uma democratização
do acesso à função guerreira, já que para ingressar nas fileiras das legiões o cidadão-soldado
80
deveria possuir meios para prover seu armamento, comprando-o ou fabricando-o. Deste modo, a
As secessões da plebe de 494 aC. e 449 a.C. levaram à instituição de legislações que
permitiram importantes vitórias políticas para os plebeus ricos – como a criação de magistraturas
Tributa. Estas conquista culminaram na Lex Canuleia que terminou com a proibição do
casamento entre patrícios e plebeus, em 445 a.C (ALFÖLDY, 1990, pp. 28-35; OAKLEY, 2004,
p. 15-20).
então, relacionada à difusão da hoplitia na Península Itálica. Como afirma Grandazzi, este tipo de
combate é criador de novas solidariedades, tanto na guerra como na cidade, e a reforma deve ter
tido não somente militares, mas também políticos e sociais (GRANDAZZI, 2010, p.161).
IV
partir das mudanças ocorridas na forma de conduzir a guerra. Isto não significa dizermos que a
nova forma de organizar os combates levou à nova forma de organização política. Ambos fazem
parte de um fenômeno maior, encontra-se nas disputas entre dois regimes de pensamento – que
Referências bibliográficas:
Documentação escrita:
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82
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84.
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(Ed.). Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris: Éditions EHESS, 1985. p. 161-
181.
83
*
Doutorando PPGHC, IH, UFRJ. Membro do NEA.
81
Aristóteles fala de algumas possibilidades para se chegar à tirania, a saber: 1) demagogos que exercem o poder ao
caluniarem os reis; 2) os próprios reis excedendo seus direitos ancestrais e seus poderes de se tornar despóticos; 3)
juízes que usam seus poderes para acessarem a tirania; 4) finalmente, aqueles decorrentes de oligarquias, quando a
magistratura principal será confiada a um homem. Pisístrato, de acordo com as narrativas clássicas (Hdt. I 59, 4;
Arist. Ath. Pol. 14).conseguindo a confiança do povo realizando um estratagema, a fim de obter o controle de
Atenas: infligindo uma ferida e manifestando-se ao demós que tinha sido atingido por seus inimigos, chamando para
si a proteção de um grupo de guarda-costas.
84
maneira depreciativa a atitude dos tiranos, em virtude dos mesmos estarem preocupados com o
comércio e em proporcionar a igualdade social em todas as classes, cujo resultado das ações do
tirano era desagradável para as elites.
Nas observações do pesquisador Ferrill (1978, 385) após 400 a. C., a tirania pode ser
considerada de maneira tradicional como um governo exercido por um governante arbitrário,
despótico, cruel e, freqüentemente, dominando completamente a pólis como um autocrata (e,
geralmente, como um usurpador) que exerce um poder executivo pleno. Neste período, a tirania
é impopular e exatamente o oposto das instituições democráticas. Todas as conotações modernas
da palavra tirano são apropriadas para este segundo período da tirania grega quando aplicada aos
sucessores de Pisistrato, Hipias após o assassinato do irmão Hiparco por opositores. Entretanto,
podemos relativizar essa conotação clássica e moderna de tiranos como déspotas, se passarmos a
considerá-los como mantenedores da justiça (Hammond: 1982, 350). Aristóteles82 aponta uma
distinção entre os "maus", todos os tiranos de sua época (final do período Clássico) e a metade
dos tiranos arcaicos como aqueles que contribuíram para o bem publico83. As reformas
econômicas implementadas pela tirania não garantiram os direitos territoriais para todos os
grupos sociais, mas proporcionaram condições ou incentivos econômicos para que alguns
segmentos da população conseguissem acumular riquezas (Morris: 2010).
Pisístrato governou Atenas por mais de vinte anos (Andrewes: 1982, 393). A renuncia de
Sólon do poder gerou um conflito de interesse entre as elites atenienses. A ascensão de Pisistrato
entre 546 e 560/1 a.C. foi precedido por uma luta entre três facções aristocráticas compreendidas
pelos grupos sociais da montanha, da planície e da costa84. O autor Grant (1987, 56-7) afirma
que Pisístrato não modificou as instituições políticas deixando intactas as reformas
constitucionais de Sólon, que libertava os cidadãos de poucos recursos da escravidão por dívida.
Credita-se a Pisistrato ter financiado esses esforços com a combinação de um imposto sobre a
agricultura e a utilização das receitas provenientes de minas de prata (Starr: 1982, 433). Os
agricultores investiram consideravelmente nos olivais e lagares de azeite para exportação
(Andrewes: 1982, 408). Andrewes (idem, 407) descreve que o tirano criou um juizado itinerante
82
Cf. Jacoby, 1986, IIIb, p. 101, Rhodes, 1981, p. 17 e G. E. Pesely (1999) creditam a Aristóteles a autoria do
papiro Oxyrrinchia Hellenica (P. Oxy. V 842, XIII PSI 1304 e P. Cair. temp. inv. n. 26/6/27/1-35), um documento
que diminui a credibilidade do bom tirano e atribui a Pisistrato um retrato típico de impopularidade.
83
Orthagoras tirano de Sicyon tinha uma boa reputação e de um governo quase constitucional. Periandro, tirano de
Corinto e Pittacus de Mytilene foram incluídos por escritores antigos entre os Sete Sábios caracterizados como
homens de profunda sabedoria e devoção a verdade e a justiça (Grant 1987, 101).
84
Sobre a datação entre 560/1 ver: T.E Rihll (1989). A. J. Dominguez (2001, 97). Sabemos que, no momento, após
a retirada da Solon, três partidos que disputam o poder em Atenas entre 561-560 a. C. Pisístrato, que mais tarde
tornou-se tirano da cidade, era o líder do partido da Montanha (Hdt. I. 59, 3), e que tiveram o apreço da população
da Ática por seu desempenho na guerra contra Megara (Hdt. I. 59, 4 e Arist. Ath. Pol. 14, 1).
85
85
Grant (1987, 61) considera que apesar do preconceito subseqüente contra os 'tiranos', os democratas no período
clássico, consideram o mandado de Pisistrato como um período de paz e justiça, apontando como os principais
motivos: a abstenção em não alterar a constituição soloniana, não insuflando uma revolta social, exercendo o
controle do Estado e a manutenção das instituições atenienses, restringindo o poder das famílias eupatridas e como o
Estado deve ser gerido com o apoio do demós.
86
Peisistratus e suas vários expulsões, conforme Hind: 1974, 1-18.
86
Para tomar a polis de Atenas, Pisistrato contou com um contingente militar composto por
mercenários87, ou pelo menos teve ajuda, de um contingente militar formado por uma coligação
de alidos políticos advindos de Tebas, Naxos, Argos, e da Eretria. Heródoto (I. 64) demonstra-se
contrário à idéia da organização desse mercenariato, qualificando-o como um voluntariado com
suas despesas pagas. O envolvimento das regiões de Tebas e da Eretria pode ser relacionado com
uma aliança política e do apoio de Lygdamis de Naxos com Pisistrato. De acordo com W. Parke
(1970, 9) e Seltman (1924), os emblemas tipo triskeles (três pernas marchando) encontrados nas
moedas de Atenas (Wappenmunzen), cunhadas com metal vindo das minas do Laurion são
similares aos símbolos encontrados nos escudos nos vasos cerâmicos, considerada como uma
associação que ratifica o uso das moedas para o pagar dos soldados mercenários. Seltman afirma
que o tirano reuniu o dinheiro quando estava na Eretria e na região de Pangaeus (Macedônia).
Pisistrato teria explorado as minas do monte Pangaeus, transportado o material para a Eubeia e
cunhando as moedas com as quais poderia contratar os mercenários. Este fato explicaria as
diferentes marcas de cunhagens encontradas (vide anexo), mas todas elas cunhadas com um peso
padrão de 8,6g para garantir sua autenticidade comercial. Heródoto (I.64) fala de "contribuições"
que foram dadas, em especial por Tebas, enquanto que Aristoteles (15.7) diz que o dinheiro se
originou em torno da exploração do monte Pangaeus. A presença da imagem numismática da
efígie da cabeça de Athena com a coruja destacam o tema da unificação da Ática, tendo Athena
Polias como divindade protetora da tirania.
Em 546, Pisistrato parece ter contratado mercenários de Tebas, usando moedas
produzidas em Chalcis e mais tarde instituiu o tetradrachma como moeda padrão na cunhagem
ateniense. Esse período coincide com a instituição da tributação e o período em que a cunhagem
estava nas mãos dos Eupatridae (elites). A tributação demonstra que os eupatridas estavam
fazendo uso da moeda para o comércio. Os tetradracmas encontrados ao redor do mar Egeu
foram usados para o comercio exterior, o pagamento de impostos e patrocinar as reformas da
polis atenienses. A adoção das moedas no governo de Hipias com uma nova coruja em um
formato diferente, as didrachmas menores que as tetradracmas, foram usadas para pagar do
mercenariato88.
87
De acordo com Vos (1963, 66-67) analisando as imagens cerâmicas, os mercenários que foram contratados por
Pisístrato eram os arqueiros citas no final do VI a. C., enquanto que para Shapiro (1983, 07-108) seriam homens
trácios. Um conjunto de autores (Parke: 1970, 9; H. Berve: 1967, 52; A. Andrewes, 1974, 107; L. H. Jeffery: 1978,
96; F. J. Frost: 1984, 28392) identificam os mercenários como uma guarnição militar mista composta por trácios,
naxianos, eretrianos e argivos.
88
O uso da moeda pelo Estado, padronizada no governo de Hipias, demonstrando a mudança de uma economia
interna para externa.
87
89
A monção para uma guarda pessoal foi proposta por Aristeon entre o Arcontado de Comeas e Hegesias.
90
Sobre a realização deste estratagema por Cylon e o miasma que a familia dos Alcmeonidas carrega por este
acontecimento entre 636/5 ou 632/1, ver: Cadoux (1948); Lang (1967) e Mosse (1969, 51).
91
De acordo Sommerstein, (1981, 167-8), Aristófanes seria neto de um soldado maceiro (doriforo) da guarda
pessoal de Hipias.
88
Considerações Parciais
Nas palavras de Aristóteles, Pisístrato foi um reformador, promotor de grandes mudanças
e de um controle da polis ateniense. Exercendo um controle moderado do que uma tirania
constituicional. Nas reformas, Pisístrato não empreendeu grandes mudanças constitucionais,
somente impondo uma taxação aos produtos agrícolas da Ática.
Pisistrato, assim como Sólon, desenvolveu a classe dos pentacosommedinas, aqueles que
produziam quinhentas ou mais medidas de milho e azeite por ano, sobre taxando-os com 10 por
cento. Os sacerdotes oficiantes dos templos, ou chefes de cultos locais recolhiam este imposto
que era transportado para o templo de Athena Polias. O tempo atuou como um centro religioso
de Atenas que guardava o tesouro. Ao criar a tributação, o tirano desenvolveu uma receita
suficiente para a defesa em tempo de guerra (Tucidides 6.54.5) e para despesas de viagens, como
a ida ao templo de Apolo Pitico em Delos, criando um perímetro de fronteira. Pisistrato usou as
moedas para contratando os mercenários. O uso dos soldados maceiros, como novos cidadãos ou
estrangeiros, como uma força armada trouxe a prosperidade a Atenas permitindo o tirano praticar
a justiça e instaurar um período de estabilidade e desenvolvimento econômico, que abriram
caminho para o imperialismo ateniense no V a. C. com o uso dos hoplitas e da marinha.
92
J. Boardman (1975, retomada em 1989) criou a hipótese de que existem signos na cerâmica ática de propaganda
política de Pisistrato, criticada por Cook (1987, 168) considerando a figura de Heracles como um soldado maceiro
como um dado irrelevante.
93
Na cerâmica Ática diversas identificações possíveis aparecem como temas: carros subindo para o Olimpo nas
cenas de Heracles podem alusivamente se referir à toma da Acrópole, o uso da maça como a arma da guarda de
Pisistrato. Heracles busca incessantemente a mudar de condição querendo coabitar o Olimpo mudando de categoria
social de homem para semi-deus.
89
Anexos
Anexo 1 – Moedas atenienses cunhadas em 590 a.C. sob a influência da família dos
Alcmeonidas e da aristocracia de Atenas. Os símbolos utilizados foram, por exemplo, a coruja
(representando Atena, deusa protetora da pólis), o quadrado (simbolizando uma
fortificação/muralha/cidade) e o touro (a aristocracia rural).
(Franke, P.R. and M. Hirmer, 1964. Die Griechische Münze. München: Hirmer verslag München. p
114.)
Anexo 3 – Introdução da moeda com a efígie de Athena com a coruja. Este exemplar pode ser
datado do tempo de Hipias em torno de 510 a.C. Na moeda no anverso esta representada o busto
de Athena Polias e no reverso, a coruja de olhos glaucos (grandes e escuros, que tudo vê) como
símbolo animal de Atena (ligado à sabedoria), um ramo de oliveira e a palavra ATHE,
imprimindo seu local de cunhagem, a polis de Atenas.
(Franke, P.R. and M. Hirmer, 1964. Die Griechische Münze. München: Hirmer verslag München. p
117.)
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.
93
Conferência de Encerramento
94
Introdução:
Romana, ao longo, sobretudo, das sete primeiras décadas do século I d.C., tratando do contato
entre judeus, gregos e romanos, interação esta que foi caracterizada por processos de parcial
assimilação da cultura clássica por parte da elite judaica, embora sem que esta tenha jamais
abandonado as suas tradições ancestrais e pela significativa resistência política, mas em especial
cultural, da maior parte dos judeus diante do helenismo e do poder exercido por Roma, ao
Ultrapassando o estudo deste contexto histórico, o presente artigo igualmente está voltado
para a reflexão acerca das explicações, que poderiam ter levado os judeus a se rebelarem contra o
segundo dois diferentes pontos de vista. O primeiro emitido por uma testemunha ocular deste
conflito bélico, o historiador judeu Josefo, posteriormente cidadão romano portador da tria
xxx
nomina Titus Flavius Josephus e o segundo defendido pelo Professor Martin Goodman, da
Universidade de Oxford, que espelha a percepção sobre tal momento da história da Judeia,
Professor Goodman, analisando suas respectivas reflexões sobre este recorte temático e, por fim,
expondo minha opinião. No caso da fonte textual que ilumina o presente trabalho: fragmento da
94
Professor Adjunto II de História Antiga do DHIST – Departamento de História do ICHS – Instituto de Ciências
Humanas e Sociais da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio Janeiro e membro fundador e pesquisador do
Grupo de Pesquisa PLURALITAS / UFRRJ / CNPq.
95
primeira obra redigida por Josefo, não apenas irei dedicar-me ao cenário histórico ali presente,
como também adiante tecerei comentários acerca da historiografia deste autor, como se verá.
Estas são praticamente as palavras iniciais de Flávio Josefo em sua primeira obra, que
xxxii
tem por título original em grego: (Istori/a )Ioudaikou= Pole/mou pro\j (Rwmai/ouj e
cuja tradução é História da Guerra Judaica contra os Romanos, mais conhecida por seu título
abreviado: Guerra Judaica. Algumas questões tanto de cunho histórico quanto historiográfico já
devem ser aqui destacadas e analisadas. Embora o fragmento acima transcrito, de autoria de
Josefo, seja composto por poucas linhas, em contrapartida ele é rico de informações não apenas
no que tange ao contexto histórico desta guerra mas também de características da historiografia
que Josefo nos fornece várias informações as quais listarei a seguir e, logo após, comentarei cada
uma delas, em separado. Transmite-nos Josefo em seu relato: 1) “A guerra dos judeus contra os
romanos - a maior não apenas das guerras de nosso próprio tempo [...]”; 2) “[...] os infortúnios
de meu país [...] o qual deveu sua ruína à rivalidade civil [...]”; 3) [...] foram os tiranos judeus,
96
que arrastaram sobre o Templo sagrado as mãos relutantes dos romanos [...]; 4) [...] a
conflagração foi atestada pelo próprio Tito César, que saqueou a cidade [...] e 5) [...] por toda
Antes, entretanto, de tratar dos cinco excertos de Josefo acima transcritos, faz-se
necessário desdobrar o item 3, no qual o historiador refere-se àqueles por ele chamados de
“tiranos judeus” e que, ainda segundo Josefo, foram os responsáveis pela destruição do Segundo
Templo de Jerusalém, levada a cabo pelas tropas romanas sob o comando de Tito, naquela altura
filho do então Imperador Vespasiano e, futuramente, seu sucessor no trono imperial de Roma.
Afinal, quem eram esses “tiranos judeus” segundo Flávio Josefo? Em outra passagem desta
Livro II, §§ 117 – 118 -, este autor nos esclarece quem compõe tal segmento da sociedade
judaica, o qual vem a ser uma “quarta filosofia”, que se somar aos três mais relevantes - aliás
descritos por Josefo nesta sua primeira obra: saduceus, fariseus e essênios. Entendo que este
quarto grupo era o dos zelotas. E embora sejam os quatro que mais se destacam tanto na
historiografia quanto no tecido social da antiga Judéia, houve outros segmentos na sociedade
judaica de então, o que demonstra sua riqueza e multiplicidade quanto a diferentes interpretações
das tradições judaicas, o que nos autoriza a falar em “Judaísmos Antigos”, no plural e não no
singular.
Tais grupos sociais marcados, sobretudo, por suas diferentes posições político-culturais,
foram denominados por Josefo pela palavra grega ai(/resijxxxiii, aqui no caso nominativo, mas
que declinada para o caso genitivo nos conduz à ai(re/sewjxxxiv, tal qual surge na transcrição
mais abaixo dos §§ 117 – 118 do Livro II, uma vez mais de História da Guerra Judaica contra
os Romanos. Trata-se, portanto, da mesma palavra, apenas diferenciada pela declinação grega,
que ao alternar suas terminações, indica a que casos pertencem ou seja, enquanto o nominativo é
o sujeito da oração, o genitivo indica posse / pertencimento ou algo ou alguém de que(m) se fala.
E, afinal, quais as possíveis traduções para o termo grego ai(/resij? De acordo com o Dicionário
97
(LIDDELL e SCOTT, 1997, p. 22): “escolha”, tal qual usada pelo historiador ateniense do
século V a.C. – Tucídides e também pelo filósofo Platão, o qual igualmente a empregava no
sentido de propósito, objetivo, intenção, determinação. Este mesmo termo grego, ainda segundo
os autores do Dicionário supracitado, pode ainda ser traduzido por “escola” ou “seita” ou “[...]
uma seita religiosa, tal qual os Saduceus e Fariseus [...]”, entretanto neste sentido,
aqui registrar uma outra tradução para esta mesma palavra grega, desta feita presente no
Dicionário Grego-Francês de Anatole Baillyxxxvi (BAILLY, 2000, p. 48): “[...] preferência por
André Paul, em sua obra O Judaísmo Tardio: História Política, a partir de fragmento de
autoria do próprio Josefo, presente nos §§ 162 - 166 do Livro II de História da Guerra Judaica
grupos socioculturais e políticos, que como acabamos de ver, podem ser identificados como:
escolhas, propósitos ou seitas religiosas. Na transcrição logo a seguir, de autoria de André Paul,
com base em excerto retirado de texto de Josefo - como imediatamente supracitado - embora
Paul utilize o termo “seitas”, discordo deste autor, optando pelo significado que a meu ver
melhor define estes quatro segmentos da sociedade judaica, estas quatro correntes de
escolas filosóficas. E os dois primeiros grupos acima referidos faziam parte da elite, portanto da
classe dirigente da Judéia Romana: saduceus e fariseus, sendo Josefo um destes últimos e, não
por acaso, poupou tais grupos da acusação pela deflagração da guerra judaica contra Roma,
preferindo depositar a responsabilidade sobre o início deste conflito bélico, nas mãos dos zelotas
(ou zelotes), grupo excluído da elite dirigente judaica, o qual Josefo chamou de “tiranos” como
se viu da transcrição acima e tal qual se verá na transcrição que se seguirá a que ora se apresenta.
98
autoria de André Paul, com o segundo, destacado, apresentado por Paul - e com observação sua -
a partir do texto de Flávio Josefo presente nos parágrafos supracitados do Livro II de História da
“Os fariseus formavam uma das quatro seitas judaicas (as outras eram
as dos saduceus, dos essênios e dos zelotes) descritas por Josefo, que as opõe
sistematicamente aos saduceus:
[...]
Cabe aqui tecer alguns comentários sobre a transcrição acima, especialmente nos excertos
por mim negritados. Em primeiro lugar, embora André Paul restrinja a quatro, o número de
para além de saduceus, fariseus, essênios e zelotas (ou zelotes), houve uma pluralidade de grupos
sociais na Judéia do século I d.C., tanto inseridos nas tradições judaicas quanto ao menos a ela
estando relacionados tanto por afinidade quanto por oposição. Trata-se do que Christiane
Saulnier e Bernard Rolland denominaram “grupos político-religiosos”, ao citarem para além dos
99
samaritanos”. A estes três, eu ainda acrescentaria um grupo caracterizado por seu crescente
Paulo, a este grupo acrescentou-se, cada vez mais, um número crescente de gentios, provenientes
do mundo helenístico. Voltando aos “samaritanos”, quanto a estes, os dois autores supracitados
André Paul, sobre os fariseus, não foi por acaso - como sempre ocorre na obra de Josefo -, que
este historiador tanto valorizou o movimento farisaico. No excerto acima transcrito e ora repito,
diz o autor: “[...] eles representam a seita superior [...]”. Isto ocorre, pois de acordo com
Aliás, retomando a questão do preciso significado da palavra grega ai(/resij, já tendo sido
acima apresenta a pluralidade de traduções a ela pertinentes, na altura na qual citei - no campo
100
preciso, abaixo transcrever o que nos ensina, uma vez mais, Mireille-Hadas Lebel, quanto ao
correto significado deste termo grego. Diz-nos esta historiadora (HADAS-LEBEL, 1992, p. 37):
Josefo refere-se aos fariseus, saduceus e essênios como integrantes do que ele considera
serem as “filosofias judaicas”, as quais se contrapõe aquela citada na próxima transcrição, que
trago a este artigo, na qual este historiador nos fala de uma quarta escola filosófica ou “seita
religiosa”, na realidade identificada por Mireille Hadas-Lebel pelo termo “Quarta Filosofia” e
que é, a meu ver, indubitavelmente a dos zelotas, os quais foram, segundo Josefo, os “tiranos”
que levaram a Judéia à ruína, culpando-os ele pela guerra que promoveram contra Roma.
Este argumento opõe-se à teoria formulada em fins do século XX pelo Professor Martin
Goodman, da Universidade de Oxford, como se verá mais adiante - em dois tópicos destacados -,
teoria que, segundo este renomado e respeitado historiador, sustenta que não foram os zelotas -
pertencentes a grupos menos favorecidos da sociedade judaica e que nada comandavam, embora
desejassem expulsar os romanos de seu território -, mas sim foi a classe dirigente da Judéia,
essencialmente composta por saduceus e parte dos fariseus, a verdadeira responsável pela
deflagração deste conflito bélico. Na realidade, segundo o Professor Goodman, foi a luta interna
101
desta elite local pelo controle do poder na Judéia, que levou ao rompimento com Roma. E
Josefo, naturalmente, não defende esta posição por ser um fariseu e, por sê-lo, como sempre
apresentada, de autoria de André Paul e Flávio Josefo, observa-se que este critica os saduceus e
elogia os fariseus.
No entanto, quando este historiador judeu da Antiguidade afirma que: “Os saduceus [...]
são rudes [...] e suas relações com seus compatriotas são tão desprovidas de amabilidade como
com os estrangeiros”, Josefo oculta o fato de que os saduceus, principais autoridades judaicas
Roma, no comando da Judéia. Ao informar que as relações dos saduceus eram “[...] desprovidas
de amabilidade [...] com os estrangeiros”, Josefo tenta nos transmitir a sensação de que os
saduceus nunca tiveram bom contato com as lideranças romanas dentro e fora da Judéia, fato que
a meu ver não se sustenta, já que Roma sempre buscou, em quaisquer de suas províncias, cooptar
portanto deste quarto segmento do tecido social judaico do século I d.C., aquele ao qual este
historiador refere-se como sendo o dos “tiranos judeus”. Reitero que Josefo os condenou por
terem sido eles os responsáveis pela guerra que narrou, naturalmente por não serem tais
“tiranos” - os zelotas - parte da elite judaica à qual pertencia Josefo, neste caso os fariseus,
como já supracitado. Por conseguinte ele eximiu seu próprio grupo social de qualquer culpa pela
Relata-nos, portanto, Josefo, sobre o nascimento da “quarta filosofia” - dos zelotas - para
o autor, os “tiranos” que levaram Jerusalém e a Judeia à ruína (JOSEFO, História da Guerra
Quanto à análise de cada um dos cinco tópicos listados no início deste artigo, todos eles
fragmentos do primeiro texto de Josefo, aqui transcrito, preliminarmente faz-se necessário dizer
que por mais que este autor tenha buscado adequar-se ao modelo clássico (grego) de
Revista de História da UNICAMPlii, Carlo Ginzburg nos ensina que (GINZBURG, 1991, pp. 91
que as três grandes noções-pilares, que sustentavam a historiografia grega, na Antiguidade, eram
significam: visão clara ou clareza; o ver com os próprios olhos - na prática ser o historiador uma
testemunha ocular dos fatos que descreve, como é o caso de Josefo quanto à guerra judaico-
Com referência ao termo e)na/rgeia, Ginzburg esclarece que este indica o que é claro,
que imprime vida, vinculando-se à experiência direta, enquanto seu adjetivo e)nargh/j - enargḗ s
significa claro, palpável, concluindo que e)na/rgeia remete à certeza da verdade histórica. Um
historiador clássico, portanto, reconhecia que a verdade de suas palavras era transmitida por
meio de e)na/rgeia, com o objetivo de convencer seu leitor. No que tange à palavra au)toyi/a,
o mesmo autor lembra que na Grécia era comum e desejado que o historiador fosse uma
testemunha bastante vinculada aos fatos que relatava, levando-se em conta a au)toyi/a, a qual
103
remetia à visão direta, olhar este que demonstrava que as informações chegadas por meio de
boatos eram tidas como inferiores, isto é, menos relevantes. No tocante à eãkfrasij, Ginzburg
aponta que seu conceito abrangia um campo amplo, que ia da descrição de ações - como a guerra
Estas três noções pilares articulam-se a partir da primeira como este mesmo historiador
ainda demonstra, afirmando que a e)na/rgeia - enárgeia era um instrumento adequado para
transmitir a au)toyi/a - autopsía, ou seja, era conferido ao historiador relatar sua experiência
direta, como testemunha, àqueles aos quais se dirigia, apresentando a estes uma realidade
impalpável, e ainda ressaltando que a eãkfrasij - ékphrasis tinha como meta a e)na/rgeia -
enárgeia, a qual, por sua vez, e como já dito, remetia à sensação de verdade, ou de forma mais
produção historiográfica grega da Antiguidade, por conseguinte, clássica, posto que também
perceptível na historiografia romana - e Josefo, a meu ver pode ser considerado um historiador
modelo historiográfico grego clássico deveria levar em conta a convergência das três noções
resultado: um historiador portador de uma descrição, amparada em uma visão clara, oriunda de
seus próprios olhos, garantindo a verdade, que se esperava obter a partir de uma precisão
direta e concreta.
Josefo presente neste artigo, pode-se visivelmente notar que embora este historiador pretenda nos
apresentar uma descrição clara, a partir de seu posto de testemunha ocular dos fatos, para que
transmita a seus leitores uma sensação de verdade, não é exatamente isto que se vê. Nota-se
104
perceptível subjetividade deste autor, basta que analisemos, um a um, estes mesmos cinco itens /
1) “A guerra dos judeus contra os romanos - a maior não apenas das guerras de nosso
próprio tempo [...]”. Após tantos conflitos bélicos que atingiram o mundo, como por exemplo as
culminaram com a derrota e aniquilação total do Império Persa dos Aquemênidas; para Josefo a
guerra que ele relata fora, até aquele momento, a maior de todas. Isto reflete a importância que o
autor dava a si próprio, como o responsável por relatar tal conflito, acrescido do fato de que para
ele, naturalmente uma guerra que teve por apogeu, a trágica destruição - naturalmente para os
judeus - do Templo de Jerusalém, era de fato a mais relevante de todas, a partir de seu ponto de
vista judaico. É importante lembrar-se que embora considerado um traidor, por ter passado para
o lado romano durante esta guerra, Josefo sempre fez questão de ressaltar que era judeu e
liii
buscou, em suas demais obras, sobretudo em ) Ioudai+kh=j )Arxaiologi/aj - História da
Antiguidade Judaica, mais conhecida pelo título resumido de Antiguidades Judaicas - destacar o
imenso valor da nação e da tradição religiosa dos judeus, para a humanidade, mas no caso desta
obra, em especial para o mundo clássico antigo: Grécia e Roma. Em suma, esta primeira
2) “[...] os infortúnios de meu país [...] o qual deveu sua ruína à rivalidade civil [...]”.
De fato, desde o início da guerra, em 66 d.C. até a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., houve
um período de ausência do domínio romano sobre a Judéia, o qual se explica por problemas
sucessórios internos no Império. Refiro-me aqui ao chamado “ano dos quatro Imperadores” - 68
/ 69 d.C. Morto Nero, sucederam-no, por pouco tempo, Galba, Oto e Vitélio, até que finalmente
ascendeu ao trono de Roma, no ano 69, aquele que fora o comandante militar romano na Judeia -
sobretudo na Galileialiv - para lá enviado pelo Imperador Nero, no início da Guerra: Vespasiano.
Uma vez este tendo se tornado o novo Imperador, coube a seu filho Tito - seu futuro sucessor de
105
79 d.C. a 81 d.C. – recomeçar os ataques aos judeus e foi exatamente Tito, por sinal ao lado de
Josefo, que sitiou, atacou e destruiu Jerusalém e seu Templo, no verão do ano 70 d.C.
E esta provisória ausência de poder direto romano sobre a Judéia permitiu o surgimento
de um Estado Judeu independente – citado aliás pelo Professor Goodman -, e foi neste momento
que se estabeleceu uma guerra civil entre facções judaicas, conflito este que somente encerrou-se
3) “[...] foram os tiranos judeus, que arrastaram sobre o Templo sagrado as mãos
relutantes dos romanos [...]”. Este fragmento não apenas é subjetivo como tendencioso, neste
caso, pró-romano. Por quê? Ora, consideremos que após ter sido feito prisioneiro por
Vespasiano, no início desta guerra, em Jotapata na Galiléia, Josefo passou para o lado romano
tendo estado, como já supracitado, ao lado de Tito no momento do cerco e ataque romanos a
Jerusalém e ao Templo. Josefo lá estava, aparentemente, como tradutor, falando aramaico com
os últimos resistentes judeus no Monte do Templo e grego com Tito. Na realidade, para os
judeus, já durante a guerra Josefo passara para o lado romano e após a destruição de Jerusalém
ele foi viver em Roma, às custas do Império e recebeu a cidadania romana de Vespasiano,
A sua primeira obra, cujo fragmento aqui analisamos - História da Guerra Judaica
contra os Romanos - foi, segundo significativa parte da historiografia contemporânea, uma obra
de encomenda, feita por Vespasiano para que todos os judeus e povos do Oriente fossem
admoestados a não se rebelarem contra Roma, caso contrário teriam o mesmo fim trágico que a
Judéia teve, a saber: a) a mesma destruição de suas estruturas socioculturais, políticas e até
uma igual diáspora tal qual foram vítimas os judeus, boa parte dos quais foram então expulsos da
Judéia, dispersão derivada da expulsão de sua terra ancestral. No caso judaico, a diáspora
Vespasiano e já próximo da chegada de Tito ao trono. Ora, não me parece haver dúvidas de que
o trecho que ora analisamos foi propositalmente escrito para defender a ação dos romanos, como
se eles culpa alguma tivessem pela destruição de Jerusalém e do Templo. “[...] mãos relutantes
dos romanos [...]”? Significa, portanto, que estes relutaram em incendiar a cidade e seu lugar
mais sagrado? Na verdade por ser o cerne da nação judaica, ao decidir destruir o Templo, os
Judéia, como supracitado. Em contrapartida, algum culpado, segundo Josefo, deveria haver. Que
E esta clara defesa às ações de Tito, nitidamente devastadoras para a nação judaica, volta
a se repetir no quinto fragmento que destaquei: 5) “[...] por toda a guerra ele [...] adiou a
captura da cidade [...].” Equivale dizer que ele, Tito, adiou o quanto pôde conquistar Jerusalém,
relato através do qual Josefo pretende fazer crer a seu leitor a boa vontade de Tito para com os
judeus. Um óbvio sinal da posição pró-romana de Josefo, que não se adequa a um invasor que
para por fim a uma revolta, decide aniquilar o centro vital da Judéia: Jerusalém e, sobretudo, o
seu Templo. Ao menos, no quarto excerto que selecionei, Josefo demonstra ser menos subjetivo
em sua narrativa, ao registrar que: 4) “[...] a conflagração foi atestada pelo próprio Tito César,
que saqueou a cidade [...]”. Mas isto o autor nunca poderia deixar de relatar, posto que fora
mesmo Tito quem não apenas comandou o saque, mas a destruição de Jerusalém e do Templo.
Tal fato era incontestável e se Josefo pretendia seguir o modelo historiográfico grego, clássico,
tal qual antes mencionado, ou seja, descrever com clareza o que vira com seus próprios olhos,
buscando passar a seus leitores a verdade - ou ao menos a “sensação” da verdade - não havia
como ele deixar de mencionar as ações de Tito acima mencionadas. Ele o faz, mas culpa os
“tiranos” judeus pelos infortúnios de sua nação e seu povo, absolvendo Tito.
Por fim, quanto à minha afirmação supra, de que boa parte da historiografia
contemporânea considera História da Guerra Judaica contra os Romanos como uma obra
107
encomendada pelo Imperador Vespasiano, por conseguinte redigida a partir das determinações
deste soberano romano, cito abaixo dois exemplos: a) o do texto da Introdução desta obra,
editada na “Loeb Classical Library” da Universidade de Harvard, com tradução do original grego
Na Introdução de The Jewish War - A Guerra Judaica, publicada por Harvard, e a esta
“Quanto a seu objetivo (sua intenção), escrita como foi quase que
imediatamente após a guerra sob o patrocínio de Vespasiano, há bom
fundamento para se acreditar que ela foi oficialmente “inspirada” [...]. Foi
um manifesto (proclamação) o qual pretendia (tinha a intenção de) ser um
aviso (uma advertência, admoestação) ao Oriente acerca da inutilidade de
mais (adicionais) oposições e aquietar a sede / ânsia (o desejo) de vingança do
pós-guerra, a qual finalmente conduziu (levou) às violentas deflagrações (de
guerras) sob Trajano e Adrianolv. O perigo de uma insurreição dos Partas era
uma constante ameaça e é significativo que os Partas se encontrem em
primeiro plano na lista dos leitores contemplados (considerados) lvi [...].” lvii
Embora Josefo nos aponte outra justificativa para a redação de História da Guerra
Judaica contra os Romanos, como se verá na próxima transcrição abaixo, na realidade concordo
que esta tenha se tratado de uma obra de encomenda, feita pelo Imperador Vespasiano, tal qual
esclarecido na transcrição imediatamente acima. Notemos que os partas são realmente o primeiro
povo a ser citado por Josefo, na altura em que ele demonstra sua “preocupação” - leia-se
“necessidade de deixar bem claro” - o poder vitorioso de Roma face aos judeus, poder este que
também seria utilizado, caso necessário, contra quaisquer insurgentes junto à fronteira oriental
mensagem subjacente que revela a dupla intenção do Vespasiano, por trás da redação desta obra
de “encomenda”, quais sejam: a) o reconhecimento da real ameaça dos Partas a Roma - como
imediatamente acima) - ameaça esta que preocupava o Imperador, e não Josefo, e b) admoestar
não apenas os judeus, mas os povos do Oriente, em especial os Partas, para que não se
rebelassem ou ousassem atacar Roma, caso contrário estes teriam o mesmo fim trágico, que teve
a Judéia.
contra os Romanos, não só ratifica a informação do texto introdutório da mesma, reitero: acima
transcrito, como também revela a justificativa dada por Josefo para redigir esta obra, obviamente
ocultando ter sido uma encomenda do Imperador. Na realidade, Josefo apresenta sua
“verdade” sobre este conflito bélico, a qual somente pode ser encontrada em sua historiografia,
que não só - ao menos para Josefo -, era necessária mas também precisa, seguindo o modelo
início desta obra (JOSEFO, História da Guerra Judaica contra os Romanos, Livro I, § 6):
encomendada pelo Imperador Vespasiano, passo a tratar do segundo exemplo por mim acima
referido, ou seja, a posição de Mireille Hadas-Lebel em sua obra sobre a vida, trajetória e obra de
Flávio Josefo. Informa-nos esta autora (HADAS-LEBEL, 1992, pp. 237 – 238):
Ora, o fragmento acima transcrito, de autoria de Mireille Hadas-Lebel, não reforça a tese
de que a primeira obra de Josefo foi mesmo uma encomenda, como também espelha, com
precisão, as informações fornecidas pelo próprio Flávio Josefo no § 6 do Livro I, portanto logo
as “explicações convencionais” :
Romana e, sobretudo, a hipótese de Flávio Josefo a qual aponta, segundo ele, os culpados pela
deflagração da guerra contra Roma passo, doravante, às tradicionais explicações que poderiam
ter levado os judeus a se rebelarem contra o Império e, por fim, à teoria formulada pelo Professor
Martin Goodman a qual, para este historiador, foi o real motivo que deu início à guerra judaico-
romana no ano 66 d.C. e que se prolongou até 73 d.C., com o fim do último foco de resistência
judaica, no alto do rochedo de Massada, às margens do Mar Morto, portanto três anos após a
Martin Goodman nos elenca cinco razões as quais, ao longo de toda história da Judéia
Romana no século I d.C., poderiam ter feito eclodir este conflito bélico, entretanto isto só
ocorreu em 66 d.C. Por quê? Vejamos cada um destes cinco motivos e aquele que foi, para este
historiador, o que realmente fez deflagrar esta guerra. Na Introdução de seu livro A Classe
110
Goodman nos apresenta uma lista de cinco, tal qual ele mesmo chama de “explicações
convencionais”, as quais listarei e comentarei logo a seguir, no entanto já adianto que nenhuma
delas foi, para este autor, a causa do início desta insurreição, que evoluiu para a guerra.
“Tensões de classe” e, finalmente, 5) “Desavenças com não judeus locais”. Vejamos, portanto,
ininterruptamente), rei da Judéia, que claramente serviu aos interesses de Roma, Otávio, então já
sob o título de Augusto - primeiro Imperador de Roma, no ano 6 d.C. destituiu o filho daquele -
Arquelau - de seu cargo de etnarca da Judéia, incluindo a Samaria ao norte e a Iduméia ao sul
(esta a terra natal de Herodes Magno). A título de exemplo do elo direto deste rei da Judéia com
os dois últimos líderes da República, sendo o segundo deles também o primeiro do Império,
Herodes edificou, em Jerusalém, a Fortaleza Antônia, nome dado em honra a Marco Antônio.
Tal prédio localizava-se ao lado do Templo de Jerusalém e era dali que as guarnições romanas
vigiavam a movimentação dos devotos judeus, nos pátios do Templo, principalmente durante as
três grandes festas de peregrinação do calendário judaico, nas quais os judeus rumavam ao
Templo de Jerusalém, onde ofereciam sacrifícios. Tais festividades naturalmente ainda constam
do calendário judaico, até nossos dias, mas não com o caráter peregrino, considerando a
destruição do Templo, pelos romanos, no verão do ano 70 de nossa era. Nota-se, portanto, que ao
construir tal Fortaleza ao lado do local mais sagrado para os judeus, Herodes Magno concedeu
Sobre tais festas, Élie Barnavi, diretor da obra História Universal dos Judeus: da Gênese
ao Fim do Século XX lxii assim nos as descreve (BARNAVI, 1995, pp. 72):
Mas esta não foi a única obra que Herodes Magno, nitidamente pró-romano, realizou na
Judéia. No livro I, § 403 de História da Guerra Judaica contra os Romanos, Josefo nos relata a
construção de Sebaste, na Samaria (que era parte da Judéia lato sensu), portanto território
realidade, o nome Sebaste vem do grego sebasto/jlxix, que se traduz por (LIDDELL e SCOTT,
1997, p. 725): “reverenciado, augusto: usado para representar / expressar o nome imperial
Augustus [...].” Portanto, esta cidade, no litoral da Samaria, recebeu o nome de Sebaste, em
homenagem a César Augusto, daí também conhecida pelo título de Cesaréia Marítima, já que
localizada na costa mediterrânea da Judéia lato sensu (ou Samaria stricto sensu).
Até este ponto, não se chegou, ainda, aos governadores romanos propriamente ditos,
contudo, achei relevante citar como desde o reinado de Herodes Magno, na segunda metade do
século I a.C., as lideranças locais da Judeia eram claramente pró-romanas. A grande exceção
Templo de Jerusalém, o qual, no entanto, já existia, embora sendo uma edificação modesta,
112
desde a volta do Exílio judaico da Babilônia, portanto desde fins do século VI a.C. - início do
Mas e quanto, objetivamente, à “incompetência dos governadores romanos” tal qual nos
aponta o Professor Goodman? O fragmento abaixo transcrito, presente em sua obra supracitada,
Embora em História da Guerra Judaica contra os Romanos, Livro II, 169, Josefo refira-
lxxiii
se a Pilatos como e)pi/tropoj - Procurador - em Roma Procurator, segundo o geógrafo
Estrabãolxxiv -, na realidade Pôncio Pilatos foi Prefeito da Judeia, como se comprova a partir de
uma epigrafia encontrada no século passado, onde fora a cidade de Cesaréia Marítima, portanto
no atual litoral norte do Estado de Israel. Ainda que tal registro não esteja completo, posto que
grafado sobre pedra parcialmente danificada, é possível claramente ler-se o que dele restou,
brilhante exposição de 2008 “Tesouros da Terra Santa: do Rei David ao Cristianismo”, ocorrida
no MASP - Museu de Arte de São Paulo, contando com valioso acervo do Museu de Israel,
Jerusalém e organizador da mesma juntamente com Andréa Sapolnik Calina e Luiz Calina
Martin Goodman está absolutamente correto, no que tange às suas considerações sobre a
inclusive quanto à proibição da confecção de imagens, tal qual determinada no Decálogo (Torá -
“1) E falou Deus todas estas palavras, dizendo: 2) Eu sou o Eterno, teu Deus,
que te tirei da terra do Egito, da casa dos escravos. 3) Não terás outros deuses diante
de mim. 4) Não farás para ti imagem de escultura, figura alguma do que há em
cima, nos céus, e abaixo, na terra, nem nas águas, debaixo da terra. 5) Não te
prostrarás diante deles, nem os servirás, pois Eu sou o Eterno, teu Deus [...].” lxxvii
A título de exemplo, quanto ao desrespeito de Pilatos face à esta norma da Torá, portanto
autoria de Flávio Josefo, presente no Livro II, §§ 169 - 174, ainda da sua primeira obra, já tão
trabalhada neste artigo, trecho este que revela a provocação de Pilatos, em especial ao
significativo segmento da sociedade judaica que não se helenizara - posto que outra parte
(sobretudo a elite) o fizera - portanto se o helenismo - a influência cultural grega - era rejeitada
por boa parte dos judeus, estes naturalmente não aceitavam o uso de imagens, preservando assim
as prescrições da Torá. E que provocação foi esta, realizada por Pôncio Pilatos? A inserção em
37 d.C. (JOSEFO, História da Guerra Judaica contra os Romanos, Livro II, §§ 169 - 174):
são chamadas de estandartes. Isto provocou grande agitação entre os judeus durante
o dia. Estes ficaram consternados diante da visão, como se as suas leis tivessem sido
esmagadas com os pés, pois não era permitido colocar imagens na cidade, enquanto
a indignação do povo da cidade agitava as pessoas do campo, que afluíam juntas em
multidão. Apoiando-se em Pilatos (indo) a Cesaréia, (os judeus) imploraram-lhe
retirar os estandartes de Jerusalém e guardar (respeitar) as leis de seus
antepassados. Quando Pilatos recusou-se , eles caíram prostrados ao redor de sua
casa e por cinco dias e noites inteiros permaneceram imóveis naquela posição. No
dia seguinte Pilatos tomou seu assento de magistrado no grande estádio e convocando
a multidão, com a aparente intenção de respondê-la, deu o sinal combinado, a seus
soldados armados, para cercarem os judeus. Encontrando-se estes dentro de um anel
triplo de tropas, os judeus ficaram em silêncio, face a esta visão inesperada. Pilatos,
após ameaçar trucidá-los, caso eles se recusassem em admitir imagens de César, fez
sinal a seus soldados para desembainharem suas espadas. Em consequência disso, os
judeus, em ação combinada, atiraram-se em conjunto ao chão, estenderam seus
pescoços e exclamaram que eles estavam mais preparados para morrer do que para
transgredir a lei. Pilatos, enormemente admirado com a pureza do fervor religioso,
ordena retirar imediatamente os estandartes de Jerusalém.” lxxviii
Este excerto nos revela um claro exemplo do desrespeito de Pilatos às tradições religiosas
judaicas reforçando, portanto, o que Martin Goodman nos informa sobre a “incompetência dos
governadores romanos”. Contudo, aproveito esta transcrição supra para apontar a ambiguidade
na narrativa de Flávio Josefo. Observemos que, se por um lado seu texto é pró-judaico, na altura
na qual relata a força da fé de seu povo, que se mantém fiel às determinações da Torá; por outro,
embora de fato deixe claro não apenas a “incompetência”, mas como também nos descreveu o
provocação que faz à religião dos judeus, a última frase de Josefo, presente no fragmento acima
transcrito, nos indica nitidamente uma postura pró-romana do autor, ao dizer que “Pilatos,
estandartes de Jerusalém.”
Ora, ainda que o tenha feito por admiração ao “fervor religioso” dos judeus, e neste
ponto Josefo reforça sua posição pró-judaica, no momento no qual ele comunica-nos, entretanto,
que Pilatos deu ordens para imediatamente serem retirados de Jerusalém os estandartes, portanto
as efígies / imagens do Imperador Tibério, este historiador, a meu ver, nada mais fez do que
deixar registrada a “compreensão” romana, diante das tradições judaicas, por conseguinte o
115
retrato e o comportamento finais deste episódio, que Josefo nos deixa de Pilatos, é a de um líder
que cede e respeita as tradições da nação então politicamente dominada por Roma. Neste exato
ponto de seu texto, Josefo é, em meu entendimento claramente pró-romano. E isto fortalece
minha convicção na ambiguidade não apenas do conteúdo narrativo desta sua obra mas,
sobretudo da divisão deste autor entre o apoio a seu povo ancestral e ao Estado ao qual ele se
lxxix
Os Prefeitos e Procuradores romanos da Judéia não foram os únicos líderes que
representaram a opressão de Roma em face desta província. Ainda durante as últimas décadas da
República, pode-se citar a inabilidade do general romano Cneu Pompeu lxxx - ou Pompeu Magno
- Cnaeus Pompeius Magnus, o qual após vencer, em 64 a.C., o já enfraquecido Reino helenístico
dos Selêucidas, então centralizado na Síria, avançou para a conquista da Judéia, no ano seguinte
invadindo, com suas tropas, não apenas Jerusalém, mas realizando um ato que, aos olhos dos
judeus, foi visto como uma nítida forma de opressão do domínio romano, devido ao máximo
desrespeito levado a cabo por Pompeu, no episódio da profanação do Templo de Jerusalém. Uma
vez mais, é Josefo quem, na mesma obra aqui estudada, nos descreve tal episódio, abaixo
transcrito no qual, embora este historiador judeu ateste o desrespeito e de modo subjacente a
opressão e a agressão romana face ao mais importante espaço sagrado do judaísmolxxxi, ao final
de seu relato, sempre ambíguo, tal qual ocorre na narrativa acima que envolveu a inabilidade do
Procurador Pilatos face às tradições religiosas judaicas, no texto de Josefo logo a seguir
supracitada, ao apresentar Pompeu Magno como um invasor que não chega a ser um profanador
116
de fato embora, ao entrar no Santo dos Santos - local mais sagrado Templo de Jerusalém - este
Ora, como não considerar uma profanação, a entrada de Pompeu no recinto mais sagrado
do Templo - o Santo dos Santos - somente permitida ao Sumo Sacerdote judaico? Como
sabemos, entretanto, a narrativa de Josefo ao amenizar os atos romanos é novamente uma atitude
proposital, visto ser fruto da posição do autor, que redigiu esta obra já como cidadão romano,
vivendo em Roma - e não mais na Judéia - e sob a proteção do Imperador Vespasiano. Vejamos,
finalmente, o que nos relata Josefo sobre o primeiro real contato direto entre Roma e os judeus
“Nas calamidades até aquele momento, nada agrediu tanto a nação como o
Templo, até então não visto, ter sido desvelado pelos estrangeiros. Pompeu, em
companhia de seus seguidores, tendo, na verdade, entrado na parte mais sagrada do
Templo, lugar em que somente ao Sumo Sacerdote era permitido entrar, contemplou
os objetos do interior: o candelabro e luminárias, a mesa, os vasos para libação e
incensórios, todos de ouro maciço, um acúmulo de fragrâncias e o depósito de
dinheiro sagrado, que somava dois mil talentos. Ele (Pompeu), porém, não tocou
nem nestes, nem em quaisquer outros dentre os tesouros do Templo, entretanto no
dia seguinte à (sua) captura, ordenou aos guardiães purificar o Templo e dar
prosseguimento aos sacrifícios, como de costume.” lxxxii
romano face à Judéia e aos judeus, deve-se fazer referência ao Imperador Calígula, que reinou de
37 a 41 d.C., o qual foi mais opressor ainda, na altura em que determinou que uma estátua sua
fosse posta no Templo de Jerusalém. Ora, se nem o D‟s de Israel tinha imagens, e apenas Ele
habitava este espaço sagrado, como ali poderia ser posta uma imagem do invasor, do Imperador
romano? Uma vez mais é Josefo que nos relata tal episódio, desta vez, entretanto, não poupando
a figura de Calígula. Isto porém, a meu ver, está ancorado ao fato de que este líder não deixou
marca positiva nem mesmo para os próprios romanos e, devemos lembrar, que as obras de Josefo
foram redigidas já durante outra dinastia, a dos Flávios (69 a 96 d.C.). No entanto, o autor
condescendente face às tradições judaicas. Por outro lado, Josefo faz questão de ressaltar a
grande fé dos judeus para com sua religião. O texto, portanto, é uma vez mais ambíguo, ora pró-
judaico e ora pró-romano, como o é toda esta primeira obra de Josefo, aqui apresentada e
analisada.
hebraico e por conseguinte judaico: “D‟s é o senhor da História”. Na realidade, como visto
anteriormente neste artigo, na altura em que André Paul cita Josefo, este historiador nos informa
que: “[...] fariseus [...] atribuem tudo ao destino e a Deus [...]”lxxxiii e ademais, como nos
esclarece Mireille Hadas-Lebel, igualmente já apresentado no início deste artigo, Josefo era um
fariseu, ou melhor, aderiu ao farisaímo após conhecer as outras duas principais escolas ou
correntes do judaísmo: a dos saduceus e a dos essênios. Apoiando-se nas informações que o
próprio Josefo fornece em outra de suas obras: a Autobiografia, relembro, portanto, o que nos diz
esta autora, já supracitada: “[...] três correntes religiosas do judaísmo [...], Josefo dá prioridade
à dos fariseus. [...] é a ele que Josefo termina por aderir ao final de sua busca espiritual
[...].lxxxiv
Por fim, relata-nos Josefo, quanto ao opressor episódio, promovido por Calígula,
chamado no texto abaixo transcrito por seu nome verdadeiro - Gaius - face aos judeus e às suas
crenças religiosas, narrativa que destaca a intervenção do D‟s de Israel, como o Senhor da
História. (JOSEFO, História da Guerra Judaica contra os Romanos, Livro II, §§ 184 - 203):
“Gaios (…) enviou Petrônio com um exército para Jerusalém, para erigir no
Templo estátuas do próprio Gaios, tendo ordenado, caso os judeus não aceitassem,
condenar à morte os recalcitrantes e reduzir à escravidão todo o restante do povo.
Estas ordens, porém, estavam sob os cuidados de Deus. Petrônio, [...]com três
legiões [...], deixou Antióquia em marcha para a Judéia. Entre os judeus, alguns não
acreditavam nos rumores de guerra, outros creram, mas não viram meios de defesa, o
alarme, entretanto, logo tornou-se universal, o exército tendo já atingido Ptolemaida.
(...)
seguida a eles mesmos. Até então transigindo com a vasta multidão e suas súplicas,
ele deixou as estátuas e suas tropas em Ptolemaida e avançou em direção à Galiléia,
onde ele convocou para Tiberíades a população [...]. Lá ele frisou o poder dos
romanos e as ameaças do Imperador e, além disso, apontou a imprudência da
solicitação deles, todas as nações súditas, ele advertiu, haviam erigido, em cada uma
de suas cidades, estátuas de César, juntamente com aquelas de seus outros deuses, e
que somente eles (os judeus) se oporiam a esta prática, o que equivalia quase a uma
rebelião, agravada por insulto. Quando os judeus expuseram o costume e as leis de
seu povo, que não permitiam colocar imagem, nem de Deus, nem de homem, não
apenas no interior do seu Templo, nem em qualquer lugar [...], Petrônio, tomando a
palavra disse: “Mas eu também devo fazer cumprir a lei do meu senhor, se eu
transgredi-la e os poupar, eu serei morto, com justiça. Guerra será feita sobre vocês
por ele, que me enviou, não por mim, já que eu também, como vocês, estou sob
ordens.” Com isto a multidão gritou que estava pronta para suportar tudo pela lei.
Petrônio [...] disse: “Então vocês vão à guerra com César?” Os judeus
responderam [...]que caso ele desejasse erguer estas estátuas, ele primeiro deveria
sacrificar toda a nação judaica [...]. Estas palavras encheram Petrônio de
admiração e piedade diante de um espetáculo de incomparável devoção deste povo à
sua religião e sua inabalável resignação à morte. Então, por ora, ele os dispensou,
nada sendo decidido.
(...)
E por que razões eu acima transcrevi estes dois relatos de Josefo, quanto ao que Martin Goodman chamou
de “a opressão do domínio romano”? Porque para este historiador antigo, no que concerne a este
tópico, ele teria sido uma provável causa da guerra de 66 a 73 d.C. - mas que para o Professor
Goodman não foi -, autor este que cita tanto Pompeu quanto Calígula, ao descrever o item
supracitado. Vejamos o que nos informa este historiador de Oxford (GOODMAN, 1994, p. 23):
O texto acima transcrito, de autoria do Professor Goodman, revela-nos portanto o episódio anteriormente
narrado por Josefo, quanto à invasão e à profanação do Templo de Jersusalém, levada a cabo pelo general romano
Pompeu Magno. Mas Martin Goodman retroage cronologicamente, referindo-se a um período de cerca de um
século, no qual os judeus conseguiram autonomia política no Reino dos Asmoneus. Estes, como nos informa este
Professor de Oxford, eram os sucessores de Matatias e de seus filhos Judas, Jônatas e Simão, conhecidos pela
historiografia como os “irmãos Macabeus”. Assim sendo, a insurreição macabeia - a qual podemos chamar de
revolta - iniciou-se em 167 a.C., quando Matatias recusou-se a obedecer as ordens anti-judaicas determinadas pelo
rei helenístico selêucida Antíoco IV Epífanes. E, como lembrou-nos Martin Goodman, Pompeu foi o responsável
por enfraquecer o Reino judaico dos Asmoneus, além de ter desrespeitado o maior espaço sagrado do judaísmo - o
Imperador Gaius - Calígula -, no que concerne às tradições religiosas judaicas e, uma vez mais,
chegando até o Imperador Nero, em cujo governo (54 a 68 d.C.) iniciou-se a revolta judaica
contra Roma (66 d.C.), informa-nos Martin Goodman (GOODMAN, 1994, pp. 24 - 25):
poderiam ter levado os judeus à insurreição contra Roma, a qual se transformou em uma longa
guerra de sete anos, rumando à teoria formulada pelo Professor Martin Goodman, quanto ao real
motivo que fez eclodir a guerra judaico-romana no ano 66 a 73 d.C., doravante aponto as três
demais possíveis razões para o início deste conflito bélico, todas elas - as cinco - insuficientes
segundo Martin Goodman, para explicar o começo desta revolta. Seguem, portanto, e bem mais
historiador.
O que vem a ser, então, o que ele chamou de “suscetibilidades religiosas judaicas”? Tal
item está diretamente vinculado a tudo o que já foi acima descrito, quanto ao desrespeito romano
no que concerne às tradições judaicas e, sobretudo, à religião dos judeus. O Professor Martin
Goodman é tão claro e objetivo que, quanto à questão das “suscetibilidades religiosas judaicas”,
o texto de sua autoria vale à pena ser aqui, uma vez mais transcrito, por ser claramente
intensamente sentido por alguns [...]. Muitos judeus conservavam uma reação
instintiva de que tudo que fosse grego era perigoso à religião ancestral deles. Essa
atitude era reforçada pelo festival de Hanucá, que comemorava a vitória dos
macabeus contra o helenismo lxxxviii [...].lxxxix
Em suma, neste item o que o Professor Goodman nos quer revelar, basicamente, é que os
judeus teriam muitos motivos para se rebelar contra Roma e sua cultura helelenizada no Oriente
religiosas judaicas, que eram desconsideradas por uma Roma pagã, ou melhor, por um
Calígula, narrados por Josefo e citados por Martin Goodman, servem claramente para reforçar o
tópico ora analisado, ou seja, o desrespeito romano à religião dos judeus, fato que poderia ter
feito eclodir a guerra contra o Império, no ano 66 d.C., mas que, entretanto, segundo este
historiador e professor da Universidade de Oxford não foi o real motivo que levou ao início deste
conflito bélico, posto que se o fosse, teria acontecido muito antes do ano 66, como se viu das
provocações feitas pelos três líderes romanos supracitados, ao longo de mais de um século antes
4) “Tensões de classe”:
Neste item, Martin Goodman atém-se à uma luta interna da sociedade judaica entre a sua
somente se opunham à helenização mas também sentia-se oprimida por seus compatriotas mais
enriquecidos, a elite judaica, esta sim majoritariamente, mas não na totalidade, helenizada e
posteriormente também romanizada. Há aqui, portanto, três questões que são destacadas por este
autor, com base nos relatos de Josefo, envolvendo: 1) a aprovação x oposição ao helenismo; 2) a
opressão sofrida pela grande maioria dos judeus, fruto das ações da própria elite judaica e 3)
122
novamente uma posição pró-romana de Josefo, o qual culpa esta luta de classes na própria
sociedade judaica como um dos fatores que teriam levado à guerra. Sobre tais questões, explica-
Aliás, cabe aqui uma observação quanto ao uso da língua grega pela elite judaica. Uma vez que
Josefo era fariseu, portanto membro deste segmento social, ele falava e escrevia fluentemente o idioma
helênico, como se vê de suas quatro obras: História da Guerra Judaica contra os Romanos - ou
como é mais comumente conhecida: Guerra Judaica -, Autobiografia, Contra Apião e História
da Antiguidade dos Judeus - neste caso também mais conhecida pelo título resumido de:
Antiguidades Judaicas. Note-se, contudo, que tanto em sua primeira obra quanto na última, o
nome “História” aparece não por acaso, uma vez que tendo Tucídides por seu paradigma
historiográfico, Josefo quis mesmo redigir e relatar o que ele considerava uma investigação, ou
Ademais, era Josefo quem estava ao lado de Tito, por isso acusado com justiça pelos
judeus de ser um traidor, atuando como tradutor deste comandante militar romano - então filho
do Imperador Vespasiano e seu futuro sucessor -, na altura em que Tito já invadira Jerusalém
com suas tropas e cercava o Monte do Templo - último foco da resistência judaica em Jerusalém
-, pouco antes dos romanos, por ordens deste líder, terem incendiado este espaço sagrado,
destruindo-o. Josefo, que falava grego assim como Tito, transmitia suas admoestações e
123
ameaças, para que os judeus se rendessem, falando com eles em aramaico, o idioma corrente de
significativa parte da sociedade judaica do século I d.C., permanecendo o hebraico como a língua
Era fato que a Judeia Romana era majoritariamente habitada por judeus mais
concentrados nas suas colinas - e Jerusalém lá se localiza - e gregos que viviam em maior parte
nas cidades helenísticas de sua costa mediterrânea. Considerando a pequena extensão territorial
desta província, o contato entre ambas as comunidades não era nada raro. Aliás somente a título
de exemplo, também em Alexandria - no Egito - houve conflitos eram gregos e judeus ao longo,
sobretudo, dos séculos I e II d.C. Uma vez mais a oposição de boa parte da sociedade judaica ao
helenismo e à sua cultura, inclusive sua língua, faz-se aqui presente. Em mais um claro exemplo
de tal rejeição a tudo o que fosse grego, pode-se citar o fato de que a Tanach - a Bíblia Hebraica
- considerava como apócrifos - “desconhecidos”, “obscuros” - sete Livros os quais ficaram fora
de seu cânon, assim como da Bíblia das Igrejas Evangélicas, neste caso por eles chamados de
Antigo Testamento, fato que não ocorreu no igualmente intitulado Antigo Testamento das Igrejas
Católica Romana e Ortodoxa do Oriente, as quais incluíram em seu cânon estes mesmos sete
E por que estes Livros foram considerados apócrifos para os judeus? Porque redigidas em
língua grega, portanto o idioma do inimigo politeísta, na visão judaica. Na realidade, ao menos o
1º Livro dos Macabeus teria tido um primeiro rascunho em aramaico, no entanto foi a sua versão
em grego que ficou cristalizada e que chegou até nós. E para os judeus o único idioma, por eles
considerados de inspiração divina era o hebraico, portanto quaisquer textos que fossem escritos
124
em outra língua, sobretudo grego, foram considerados sem inspiração do D‟s de Israel. Contudo,
em termos de historiografia, os Livros dos Macabeus, sobretudo o 1º, são fundamentais para a
Selêucidas.
Por fim, sobre o que o Professor Goodman chamou de “Desavenças com não
sua teoria para explicar o real motivo da deflagração deste conflito bélico:
Apesar dos cinco tópicos acima descritos e analisados, itens estes formulados pelo
do conflito bélico aqui estudado, nenhum deles foi, para este historiador, o real motivo que o fez
aqueles os quais chamou de “tiranos judeus” - na prática os zelotas - por terem levado os judeus
a confrontar o Império.
judaica contra Roma, 66 - 70 d.C., o Professor Martin Goodman finalmente nos aponta a sua
teoria, para explicar o que para ele foi a real motivação para a eclosão da guerra judaico-romana,
Aí está: para o Professor Martin Goodman, o real motivo para a deflagração da revolta
judaica contra Roma, no ano 66 de nossa era, foi a disputa pelo poder entre os líderes judaicos da
Judéia e o enfrentamento que se transformou em uma guerra civil - leia-se, na expressão deste
renomado autor, a “luta de facções”-, a qual é claramente visível sobretudo durante o que Martin
emergiu na Judéia a partir de 67 d.C. até a destruição do Templo de Jerusalém, realizada pelos
Conclusão:
126
À vista de todo o exposto neste longo artigo, como se viu, procurei enfatizar o
Professor Martin Goodman, após minuciosa pesquisa acerca deste tema. Acredito ter contribuído
para mostrar quão rico é o debate historiográfico, além de ressaltar que, em se tratando de uma
ciência humana, portanto não exata, a História é subjetiva e nos conduz à valiosa reflexão acerca
do ser humano e seus atos, sobretudo em um contexto de dominação imperialista, que atingiu
uma província dividida entre uma elite em geral helenizada e romanizada, portanto voltada para
a cultura clássica e um majoritário segmento da população local, que se opôs a tais influências
Por fim, tendo de um lado as explicações tradicionais que poderiam ter levado à
deflagração deste conflito bélico, somadas ou inseridas nas justificativas para a mesma, que nos
é fornecida por Flávio Josefo, sobretudo o principal dos motivos por ele apontado - a
responsabilidade que atribuiu àqueles que chamou “tiranos judeus”, na prática a “quarta
filosofia” - os zelotas - culpando-os pelo início da revolta aqui estudada; e de outro, a teoria
formulada pelo Professor Goodman para tal episódio,; em conclusão posiciono-me apontando
que me parece no mínimo significativamente relevante a proposta elaborada por este historiador
de Oxford, qual seja, a de que o real motivo para a eclosão da revolta dos judeus contra Roma,
em 66 d.C., estava diretamente alicerçada na luta de facções na classe judaica, a qual levou ao
rompimento de sua aliança com o poder romano, o qual a cooptara várias décadas antes, para
Sendo assim, a abordagem teórica proposta por Martin Goodman parece-me fazer
todo o sentido, visto que todos as tradicionais explicações dadas para a deflagração da guerra,
embora fossem motivos sólidos para que ela ocorresse, restaram inertes até o ano 66 de nossa
era. Se, a título de exemplo, de fato Pilatos e Pompeu, realmente foram compreensivos com as
127
tradições religiosas judaicas, tal qual nos relata Josefo, narrativa que nos faz desconfiar, ao
menos parcialmente, das informações deste historiador judeu, posto que claramente pró-romanas,
ainda que Calígula não tenha sido poupado, e levando-se em conta todas as demais
convencionais justificativas para que a guerra tivesse começado, sobretudo por todo século I
d.C., a pergunta a ser feita é: Por que isto apenas ocorreu em 66 d.C.? A resposta fornecida pela
teoria do Professor Goodman parece-me a mais plausível de todas, ainda que sempre tenhamos
que considerar a riqueza da pluralidade presente em análises de relatos históricos, redigidas por
diferentes autores.
Referências Bibliográficas:
Documentação:
JOSEPHUS. The Jewish War. Livros I a VII. Tradução do grego para inglês de H. ST. J.
THACKERAY. Cambridge-Massachusetts e Londres: Loeb Classical Library - Harvard
University Press, 1989.
Bibliografia: xcvi
BARNAVI, Élie (dir). História Universal dos Judeus - Da Gênese ao Fim do Século XX. São
Paulo: Cejup, 1995.
CALINA, Luiz e CALINA, Andréa Sapolnik - Calina Projetos Culturais e Sociais (concepção,
desenvolvimento, produção e coordenação geral), The Israel Museum, Jerusalem (co-
organizador) e SAMMARONE, Valéria e Publical Comunicações (material promocional e
catálogo). Tesouros da Terra Santa. Do Rei David ao Cristianismo. Realização: MASP, The
Israel Museum, Jerusalem e Calina Projetos Culturais e Sociais. São Paulo, 2008.
ISRAËL, Gérard e LEBAR, Jacques. Quand Jérusalem Brûlait. En l’an 70, le 29 août. Paris:
Éditions Robert Laffont, 1970.
128
PAUL, André. O Judaísmo Tardio - História Política. São Paulo: Paulinas, 1983.
RAJAK, Tessa. Josephus. The Historian and his Society. Londres: Duckworth, 1983.
SCHWARTZ, Seth. Josephus and Judaean Politics. Leiden: E.J. Brill, 1990.
Notas de fim:
i
Do hebraico, termo de origem bíblica, comumente utilizado para indicar “terras longínquas ao extremo Ocidente”. Na Antiguidade Tardia e na
Idade Média, já em relatos talmúdicos do século IV, Sefarad passou a significar, exclusivamente para os judeus, as terras ibéricas.
ii
Do árabe tawa‟if - nação, povoado, grupo ou seita.
iii
Moçárabes, ou Musta‟rib, de origem árabe, comumente usado no medievo para designar os cristãos que habitavam terras de domínio
muçulmano. Os moçárabes eram considerados “arabizados”, mas não islamizados.
iv
É formada pelo conjunto de indivíduos de uma comunidade religiosa de origem judaica em território muçulmano ou cristão, desde a Alta Idade
Média. Mais tarde, as aljamas ganharam significado físico de “bairros judeus” ou “ruas dos judeus”. Então, nos reinos cristãos como Castela, as
aljamas passaram a ser conhecidas como juderías, e em Portugal, de judiarias.
v
Torah – Termo hebraico para o o conjunto dos cinco livros que compõem o cânone denominado Pentateuco, cuja compilação final acredita-se ter
sido concluída por volta do século IX a.C.; Mishnah – Conjunto textual de origem rabínica contento a gama de discussões orais elaboradas pela
intelectualidade religiosa judaica da Judéia romana, entre os séculos I e II d.C.; Talmud - Conjunto de estudos filosóficos, jurídicos, exegéticos e
literários elaborados em academias rabínicas do norte da Palestina e da Babilônia, entre os séculos IV e VI d.C. Em suas duas versões, a de
Jerusalém (Yerushalmi) e da Babilônia (Bavli), utilizou como base todos os tratados mishnaicos, servindo de grande orientação para as
comunidades religiosas judaicas de todo o Oriente e do Mediterrâneo.
vi
Sobre Maimônides, é interessante a leitura de suas cartas dirigidas às comunidades européias e do Oriente Médio. Já publicadas em português
pela editora Maayanot, propiciam maior conhecimento sobre a filosofia e o pensamento religioso de uma das maiores representações da cultura
judaica medieval. MAIMÔNIDES – Rabi Moshe ben Maimon (1135-1204). Epístolas. São Paulo: Maayanot, 1993. e também, Epístola do Iêmen
(Iggeret Teyman) Tradução Alice Frank. São Paulo: Maayanot, 1996.
vii
Desde 1391, como resultado das pregações carismáticas de clérigos como Vincent Ferrer e Fernando Martinez de Ecija, massacres e violações
eram realizados sobre as comunidades judaicas de Toledo e Sevilha, demonstrando os novos rumos das políticas sociais e religiosas em Castela
no final da Idade Média.
viii
A palavra Concílio significa assembléia. Em nosso caso específico tratam-se de reuniões de eclesiásticos para legislar sobre doutrina religiosa
e disciplina eclesiástica. Suas decisões, expressas nos cânones, são fundamentos para o Direito Canônico. Existem Concílios menores, que são
129
denominados Sínodo, no qual um bispo reúne os eclesiásticos de sua diocese, e os Concílios Provinciais, nos quais um arcebispo dirige as
reuniões com a participação dos eclesiásticos de sua província eclesiástica. No nosso caso, trabalharemos com os maiores, chamados
normalmente de Ecumênicos ou de Universais, que reúne lideranças eclesiásticas de todas as dioceses e cujas decisões seriam a princípio
obrigatórias para todos os cristãos. Cf. FOREVILLE, Raimunda. Estructuras Eclesiales y Concilio Ecumenico en la perspectiva historica
medieval. In:_____. Lateranense I, II y III. Vitoria-España: ESET, 1972, p.7-22.
ix
Um antipapa era uma outra liderança eclesiástica que de declarava Papa com o auxílio de grupos religiosos. Normalmente por ocasião de uma
eleição papal é que surgiam divisões, com grupos diferentes apoiando lideranças distintas. Cf.: BARRIO, M. e outros. Diccionario de los papas
y concílios. Barcelona: Ariel, 2005, p.172-212 e FRÖLICH, Roland. Curso básico de História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1987, p.88.
x
Muitas vezes o imperador servia de árbitro na escolha dos novos papas. A influência dos poderes leigos fica evidente, por exemplo, com o
privilegium othonis, de 962, pelo qual o papa deveria jurar fidelidade ao imperador, submetendo assim os eclesiásticos ao poder secular. Cf.
CARDINI, Franco. A Itália entre os séculos XI e XIII. In: MONGELLI, L. M. (Coord.). Mudanças e Rumos: o Ocidente Medieval (Séculos
XI-XIII). Cotia: Íbis, 1997, p. 88. Outro ponto claro de influência, muito combatido pelos reformadores, era a prática da simonia, venda de
cargos eclesiásticos.
xi
Termo criado pelo historiador francês Augustin Fliche, autor da obra La Réforme Grégorienne, de 1924. Antes mesmo desse estudo Fliche já
tendia a conferir um protagonismo gregoriano no contexto religioso do século XI, como podemos observar nos títulos das obras produzidas por
ele anteriormente: Études sur la polémique religieuse à l‟époque de Grégoire VII e Saint Grégoire VII. Sobre esse tema recomendamos o artigo
SILVA, Andréia e RUST, Leandro. A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito. História da Historiografia. Ouro Preto,
n.03, p.135-152, setembro de 2009.
xii
Note que tal acordo não foi fruto de uma relação especialmente amistosa entre o imperador e o papa envolvidos na questão: o próprio Henrique
V havia eleito anteriormente um antipapa, Gregório VIII.
xiii
É preciso destacar que o reconhecimento desta reunião como Concílio Ecumênico ou Geral foi posterior, tal como costumava ser nesse
contexto.
xiv
É importante destacar que os textos dos cânones que apresentamos aqui são uma tradução livre que fizemos da versão em espanhol traduzida
por Juan Cruz Puente, presente da obra de Raimunda Foreville, intitulada Lateranense I, II y III, confrontando com as traduções para o inglês
apresentada por Norman Tanner nas obras First Lateran Council – 1123 A.D., Second Lateran Council – 1139 A.D. e Third Lateran Council –
1179 A.D. Essa tradução foi parte dos estudos que desenvolvemos no âmbito do mestrado. Para saber mais, Cf. PAULA, Marcelo. Violência e
Papado no século XII: um estudo comparado dos Concílios Lateranenses. Dissertação de mestrado em História Comparada. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2012.
xv
Tais conflitos são usualmente conhecidos como Guerras de Reconquista. Foram guerras com caráter semelhante que os reinos cristãos
empreenderam para conquistar territórios sob domínio muçulmano na Península Ibérica. O termo “Reconquista” é parte do discurso de que os
reinos cristãos centro medievais estariam apenas retomando terras que teriam sido anteriormente deles, remetendo sua suposta origem em
reinados da Alta Idade Média, como o Visigodo. Sobre os discursos de legitimação do movimento da Reconquista, recomendamos um artigo de
Maria Tudela Velasco, no qual ela afirma que a violência era justificada pelo resgate das terras e salvaguarda da Cristandade diante de seus
inimigos. Cf.: TUDELA VELASCO, Maria. La consideración ética de la guerra y el uso de la violencia en la España Medieval. En la España
Medieval, Madrid, v.3, n. 7, p.8-25, 2007. Sobre o termo Reconquista em si, Cf. VANOLI, Alessandro. L‟invencione della Reconquista. Note
sulla storia di una parola. Reti Medievali. Firenze, n.9, p.1-13, 2008/1. Disponível em www.retimedievali.it
xvi
Nesse período, o antigo Califado de Córdoba, que ocupava a maior parte da Península, já havia sido fragmentado em diversos reinos
muçulmanos menores, as chamadas taifas, e perdido muitos territórios para reinos cristãos. Veja no mapa disponível em MCEVEDY, Colin.
Atlas de história medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.69.
xvii
Vale destacar que os muçulmanos aparecem na documentação normalmente como sarracenos, e em alguns casos como infiéis.
xviii
Cabe aqui um esclarecimento: ao longo desse capítulo, alternamos o uso de termos como poder simbólico, instrumental simbólico, armas
simbólicas ou discursivas, arsenal simbólico, dentre outros vocábulos semelhantes, para ações da Igreja como a promessa de perdão dos pecados.
Eles foram usados para destacar que a esfera de ação da Igreja nesses momentos está no plano discursivo, não se concretizando fisicamente.
xix
Para uma descrição mais técnica dos procedimentos e equipamentos envolvidos nas Justas, bem como encontrar algumas iluminuras sobre as
mesmas, Cf.: SPINELLI, Mariano (dir.). A Época da Cavalaria. s/d.: Folio, 2009, p.72-73.
xx
Tanto os eclesiásticos como as realezas compuseram textos legislando contra essas competições, algumas vezes condenando-as totalmente,
como é o caso desse cânone, outras vezes limitando-as com o objetivo de controlá-las. Na Inglaterra do XII, por exemplo, o rei Ricardo Coração
de Leão revogou a proibição dos reis anteriores aos torneios, mas limitou-as a apenas cinco locais, todas realizadas nos arredores de Londres, e
sempre cobrando uma taxa dos participantes. Cf. FLORI, Jean. op. cit., p.104-105.
xxi
Não citamos aqui diretamente, mas não poderíamos deixar de mencionar que Georges Duby possui três obras que são largamente citadas por
autores ao abordar esse assunto, inclusive os citados Jean Flori e Ricardo da Costa. Tratam-se dos livros A sociedade cavaleiresca, O Domingo de
Bouvines e Guilherme Marechal: o melhor cavaleiro do mundo. Na primeira o autor faz uma análise sobre os aspectos sócio-culturais daquela
sociedade, com foco nos valores que seriam típicos da cavalaria. Nas outras duas ele cria duas narrativas similares a romances, mesclando
descrição e análise. Na primeira volta-se para uma batalha específica do século XIII, realizada em um dia de domingo na cidade de Bouvines, na
França. Na segunda trabalha a tragetória de Guilherme, cavaleiro normando do século XII, cuja crescente reputação rende-lhe admiradores e
rivais. Cf. DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989; ______. O Domingo de Bouvines. São Paulo: Paz e
Terra, 1993; ______. Guilherme Marechal: o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
xxii
Uma Comuna era o modo de organização que algumas cidades criaram para tentar conquistar maior autonomia perante senhorios – fossem
laicos ou eclesiásticos – e administrar as cidades. O contexto de crescimento econômico da Península Ibérica na Idade Média Central (séculos XI
a XIII) fomentou a criação de movimentos comunais. Elas eram organizadas de modo distinto, dependendo do tempo e do lugar. Para saber mais
sobre o assunto, Cf. GILLI, Patrick. Política e Instituições: as Quatro Idades das Comunas. In:_______. op. cit., p.57-96
xxiii
Imposto que as cidades deveriam pagar para financiar o imperador e seus oficiais quando eles estivessem em viagem na Península.
xxiv
Vale lembrar que é no XII que é organizada a Universidade de Bolonha, que seria campo fecundo de juristas versados no direito romano. O
próprio imperador Frederico no início do seu reinado recorreu ao serviço de quatro deles para a redação da Constitutio de regalibus, pela qual ele
defendeu privilégios que os movimentos comunais teriam usurpado dele. Cf. GILLI, Patrick. op. cit., p.30-31. Um ponto interessante é que o
mesmo Alexandre III, defensor da teocracia papal, era professor de direito na mesma Universidade de Bolonha, autor de obras de destaque no
meio. Cf. BARRIO, op. cit., p.192-197.
xxv
O pontificado de Alexandre III foi de 1159 a 1181. Enfrentou a oposição dos antipapas Vitor IV (1159-1164), Pascoal III (1164-1168), Calisto
III (1168-1178) e Inocêncio III (1179-1180). Cf. FRÖLICH, op. cit., p. 88 e BARRIO, op. cit., p.192-197.
xxvi
Com a Paz de Constância, 1183, o imperador Frederico Barbarruiva reconheceu oficialmente as autonomias das cidades vitoriosas, ainda que
nesse documento ele tenha tido a intenção de expressar que ele teria gentilmente concedido tais benefícios. Um fragmento desse texto medieval
pode ser encontrado em GILLI, op. cit., p.33-34.
xxvii
Não poderíamos deixar de lembrar que os diferentes grupos dentro das cidades, e consequentemente, as próprias comunas, não eram
totalmente coesos, sem disputas de poder internas. Esses ambientes também eram palco de conflitos entre indivíduos e grupos com interesses e
130
idéias distintas, ainda que eles normalmente tivessem em comum a vontade de conquistar maior autonomia frente aos seus senhores. Eram, por
vezes, cenário de lutas armadas.
xxviii
Ressaltamos que pelo discurso hegemônico dentre os eclesiásticos, os clérigos não poderiam pegar em armas.
xxix
O presente artigo é fruto de minha conferência de encerramento do II Encontro de História Militar Antiga e Medieval, promovido pelo Centro
de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército (CEPHiMEx), realizado em 19 de setembro de 2012 no Espaço cultural LAGUNA
(Palacete Laguna), Maracanã – Rio de Janeiro.
xxx
A tria nomina romana era formada por três partes: a) praenomen: o nome originalmente dado à pessoa; b) nomen: o vínculo do indivíduo ao
seu clã de origem, um “nome gentilício” e, c) cognomen, que poderia determinar a família originária da pessoa no clã ou referir-se à uma
característica pessoal do cidadão.
xxxi
Livre tradução minha do inglês (considerando o texto original grego) e negritos de destaque meus dos fragmentos encontrados em
JOSEPHUS. The Jewish War (Livros I – III, páginas 2-3 e 6-7), que é parte da célebre e academicamente respeitada Coleção “Loeb Classical
Library”, publicada pela Universidade de Harvard e, no caso desta obra, tendo por tradutor do original grego para inglês: H. ST. J.
THACKERAY. Ver nota completa no item “Bibliografia”.
xxxii
(Istori/a )Ioudaikou= Pole/mou pro\j (Rwmai/ouj : transliteração para o alfabeto latino: Historía Ioudaikoû Polémou pròs Rōmaíous.
xxxiii
ai(/resij : transliteração para o alfabeto latino: haíresis.
xxxiv
ai(re/sewj: transliteração para o alfabeto latino: haréseōs.
xxxv
Ver referência completa no item “Bibliografia”.
xxxvi
Idem nota acima.
xxxvii
A abreviação “Gu” aqui se refere à primeira obra de Josefo, comumente conhecida por “Guerra Judaica” a qual, na realidade, em seu
original grego tem por tradução precisa como já informado neste artigo: “História da Guerra Judaica contra os Romanos”.
xxxviii
Negritos de destaque meus.
xxxix
O termo “palestinense”, referindo-se à “Palestina”, é absolutamente inadequado, a meu ver, quanto ao século I d.C. Na realidade, foi
somente no século seguinte, após a uma nova revolta judaica contra Roma ter fracassado (conhecida por Revolta de Bar Kochba), que em 135
d.C. o Imperador Adriano, propositalmente objetivando desvincular e desenraizar os judeus de suas terras ancestrais, Judá e Judéia, trocou o
nome desta região para Palestina, nome que etimologicamente vincula-se aos filisteus, tradicionais inimigos dos hebreus no início do I milênio
a.C. Portanto no século I de nossa era, entendo que o nome correto a ser dado a este recorte espacial é mesmo Judéia e não Palestina, o qual só
faz sentido a partir do século seguinte, pelas razões acima descritas.
xl
Pentateuco é o nome grego, adotado pelos cristãos, que se refere à Torá - os cinco primeiros Livros da Tanach (a Bíblia Hebraica).
xli
Os autores fazem referência ao Templo de Salomão (rei de Israel entre aproximadamente 960 a 922 a.C.), uma vez que este foi o 1º Templo de
Jerusalém, construído por este monarca para ser dedicado ao D‟s de Israel. Esta importante edificação sagrada foi destruída quando da conquista
babilônica (586 a.C.) do Reino de Judá (formado pelas duas antigas Tribos do Sul: Benjamin e Judá), que surgira a partir dos cismas político e
religioso os quais atingiram a antiga monarquia unificada de Israel, exatamente na sucessão do rei Salomão (cerca de 922 a.C.), levando ao
aparecimento, ao norte, do Reino de Israel, desta feita composto pelas demais antigas dez Tribos de Israel. Como a região da Samaria ficava
neste reino do norte, desde fins do século X a.C. os samaritanos haviam se afastado de Jerusalém e seu Templo. Mesmo após a reconstrução deste
espaço sagrado, a partir do retorno judaico do Exílio da Babilônia (539 a.C.), Templo este ampliado e arquitetonicamente embelezado no reinado
de Herodes Magno (37 a 4 a.C.), os samaritanos mantiveram-se afastados também deste novo Templo, portanto tal situação de distanciamento de
Jerusalém e de seu mais sagrado espaço, prolongou-se até o século I d.C., precisamente até a destruição do 2º Templo, feita pelas tropas romanas
sob o comando de Tito durante a 1ª Revolta Judaica contra Roma, da qual Flávio Josefo foi testemunha ocular e narrou em sua primeira obra.
Autobiografia, que é uma das quatro obras que Josefo redigiu, sendo as demais: História da Guerra Judaica contra os Romanos ou “Guerra
xlii
Judaica”; Contra Apião e a última delas, História da Antiguidade Judaica ou “Antiguidades Judaicas”.
xliii
Negritos de destaque meus.
xliv
No original grego: ai(/resij, cuja transliteração para caracteres latinos, como já acima informado, nos leva à: haíresis.
xlv
Autobiografia. Obra já citada em nota acima.
xlvi
Negritos de destaque meus.
xlvii
Centro religioso, social e político (sobretudo) de Jerusalém e da Judéia.
xlviii
O Tribunal Judaico, sediado em Jerusalém.
xlix
Filho e sucessor de Herodes Magno, que embora não tenha recebido do Imperador Augusto, o título de rei, mas sim de etnarca, governou por
dez anos (4 a.C. a 6 d.C.) os territórios da Judéia stricto sensu, da Samaria (ao norte) e da Iduméia (ao sul). Em 6 d.C., aos olhos do soberano
máximo de Roma, Arquelau não mais servia aos interesses do Império – como fizera seu pai – para comandar a Judéia segundo os objetivos
romanos, portanto ele foi deposto por Augusto, que conduziu a seu lugar o primeiro dos Prefeitos - mais tarde chamados Procuradores, a partir do
ano 44 d.C. - da Judéia, neste caso, Copônio.
l
Embora historiograficamente seja aceito usar a palavra “Deus” para se referir à divindade única e suprema de Israel e da Judeia; por respeito
tanto religioso quanto à tradição hebraica e judaica, uma vez que no Shemót - segundo Livro da Bíblia hebraica: a Tanach ou Tanakh, que tem
seu equivalente no segundo Livro do Antigo Testamento cristão: o Êxodo, considerando que no capítulo 3 deste Livro o Deus de Israel não
revelou seu nome, se auto identificando por “Serei O que Serei” e “Serei”. A Bíblia Hebraica também a Ele se refere como “Eterno”, é
aconselhável o uso do termo D‟s ou D‟us, de modo a que nunca seja registrada a palavra Deus em material algum que possa ser destruído como,
por exemplo, papel. Por esta razão, embora aqui se trate de um texto historiográfico e não teológico, optei, em respeito à tradição judaica, por
grafar o nome da divindade única e suprema de toda a História de Israel, por D‟s.
li
Livre tradução minha do inglês (considerando o texto original grego) e negritos de destaque meus do excerto presente na mesma obra e edição
citada em nota anterior, ou seja, em JOSEPHUS. The Jewish War (Livros I – III) neste caso nas páginas 366 a 369. Novamente ver nota
completa no item “Bibliografia”.
lii
Ver referência completa no item Bibliografia.
131
liii
) Ioudai+kh=j )Arxaiologi/aj : transliteração para o alfabeto latino: Ioudaïkē̃s Archaiologías.
liv
Podemos geograficamente considerar a antiga Judéia em dois sentidos: lato e stricto. A Judéia stricto sensu limitava-se a Jerusalém e a seus
territórios montanhosos circunvizinhos, que chegavam às margens do Mar Morto, mas não ao Mediterrâneo. Por outro lado, a Judéia lato sensu
englobava não apenas esta região, mas também a Iduméia (ao sul) e rumo ao norte, a Samaria e, em seu extremo setentrional, a Galiléia.
lv
Referências a dois posteriores movimentos revoltosos judaicos contra o Império Romano, respectivamente a rebelião de 115 d.C., no reinado de
Trajano, que se iniciou na Cirenaica e estendeu-se até Alexandria, no Egito, cujo fim foi a destruição da relevante comunidade judaica
alexandrina e a segunda revolta judaica, desta feita uma vez mais na Judéia, ao final (132 a 135 d.C.) do reinado de Adriano (117 a 138 d.C.),
liderada por Bar Kochba, cujo desfecho foi a expulsão dos judeus de Jerusalém e da Judéia (dando início à grande diáspora – dispersão dos
judeus pelo mundo mediterrâneo e europeu até seu gradual retorno a partir do final do século XIX e a criação do Estado de Israel, em 1948, por
determinação da ONU) e o fim da Judéia, na Antiguidade, momento no qual este Imperador propositalmente, objetivando desvincular e
desenraizar os judeus de sua terra ancestral - Iehudah, que se traduz tanto por Judá – bisneto do Patriarca Abraão e uma das antigas 12 Tribos de
Israel, como por Judéia – renomeou-a Palestina, nome cuja etimologia remonta aos filisteus, antigos inimigos dos hebreus.
lvi
De fato, para além da fronteira extremo-oriental do Império Romano, a grande ameaça a este era a dos Partas, os quais Roma nunca conseguiu
conquistar. Ademais, no início de História da Guerra Judaica contra os Romanos, Josefo cita sua “preocupação” quanto à falta de informações
precisas sobre esta guerra, especialmente no que concerne ao trágico desfecho para os judeus e a vitória romana - e neste ponto está a
“propaganda” afirmativa imperial determinada por Vespasiano para a redação desta obra. E ao registrar tal “preocupação”, os primeiros aos quais
Josefo se dirige são os partas, como se viu na transcrição ao longo deste artigo.
Livre tradução minha do inglês e negritos de destaque meus, de fragmento da Introdução de JOSEPHUS. The Jewish War (Livros I – III),
lvii
lxxviii
Idem duas notas acima.
lxxix
Na realidade os líderes romanos da Judéia eram chamados de Prefeitos, de 6 d.C., quando Copônio, o primeiro deles, substitui Arquelau - o
filho de Herodes Magno -, até 41 d.C. Após três anos de governo do rei judeu Agripa I - neto de Herodes Magno - nomeado soberano da Judéia
pelo Imperador Cláudio, devido à prematura morte daquele, em 44 d.C., a partir desta data e até o início da revolta judaica contra o Império, em
66 d.C., os governantes romanos da Judéia passaram a ser chamados de Procuradores.
lxxx
Pompeu, Júlio César e Crasso - ou mais precisamente Marco Licínio Crasso - compunham o chamado Primeiro Triunvirato, o qual embora
tendo sido uma aliança política de cunho informal, na prática governou a República Romana no final da primeira metade do século I a.C. A este,
seguiu-se um Segundo Triunvirato, desta feita formado por Marco Antônio, Otávio e Lépido, na segunda metade deste mesmo século, tendo sido
os dois primeiros, os últimos líderes da República. Após vencer Antônio e Cleópatra VII - última rainha ptolomaica do Egito - na batalha de Ácio
(31 a.C.), Otavio tomou Alexandria e conquistou o Egito para Roma, logo tornando-o uma província privada sua e dos futuros Imperadores
romanos, ele mesmo foi o primeiro, então cognominado Augusto a partir de 27 a.C., e esta forma de propriedade privada do Imperador deveu-se,
sobretudo, à importância econômica do Egito, por sua alta fertilidade agrícola.
Embora aqui eu me refira a “Judaísmo”, no singular, posto que estou considerando a religião dos judeus como um todo unificado, de fato,
lxxxi
como já acima descrito neste artigo, havia na antiga Judeia várias correntes religiosas judaicas, fato que nos autoriza a falar, de modo mais
correto, em “Judaísmos”, portanto no plural.
lxxxii
Negritos de destaque meus.
lxxxiii
Idem nota acima.
lxxxiv
Uma vez mais, os negritos de destaque são meus.
lxxxv
Idem nota acima.
lxxxvi
Novamente, negritos de destaque meus.
lxxxvii
Idem nota acima.
lxxxviii
Segundo Droysen, em teoria cunhada no século XIX, em termos bastante resumidos e objetivos, “helenismo” vem a ser o contato e até a
mescla de elementos culturais helênicos, sobretudo da cultura clássica grega, com componentes das culturas do Oriente Próximo, cujas
sociedades antes dominadas pelo Império Persa da dinastia dos Aquemênidas (séculos VI a IV a.C.), passaram a receber forte influência cultural
helênica, a partir da vitória de Alexandre da Macedônia sobre os persas (segunda metade do século IV a.C.). O consequente domínio político
greco-macedônico sobre as antigas satrapias persas, ou seja, a formação dos Reinos Helenísticos e seu período histórico homônimo (séculos III a
I a.C.), em especial no que tange à Judeia, sob controle dos Ptolomeus do Egito e posteriormente do Selêucidas - reino da Babilônia à Síria, mas
sobretudo sediado nesta última região -, tal domínio helenístico surgido a partir de Alexandre, culturalmente sobreviveu mesmo após a conquista
de tais reinos helenísticos e os povos a eles submetidos, por Roma, portanto o helenismo se manteve ativo durante o domínio romano sobre o
Oriente Próximo, inclusive na Judéia. Esta dominação cultural helenística, de base grega, portanto, sobre as nações próximo-orientais, as fez ter
maior contato com a cultura grega e, por conseguinte, segundo Droysen, floresceu o helenismo, o qual, como bem lembrou o Professor Goodman,
era um inimigo diante do judaísmo, basicamente por opor o politeísmo grego ao monoteísmo judaico, mas também por uma série de práticas
culturais helênicas, que se antagonizavam com as tradições religiosas judaicas. Devo acrescentar, entretanto, que as civilizações próximo-
orientais, e aqui destaco a egípcia e a judaica, reagiram culturalmente ao helenismo, reação esta visivelmente perceptível nas fontes históricas de
ambas as civilizações, documentação esta que nos revela sólida manutenção destas culturas milenares diante não apenas do helenismo, mas
também da romanização que posteriormente as atingiu.
lxxxix
Negritos de destaque mesus.
xc
Aqui o Professor Goodman faz referência à “História da Guerra Judaica contra os Romanos” ou resumidamente “Guerra Judaica”, Livro
VII, §§ 260 – 261).
xci
Negritos de destaque meus.
xcii
i(stori/a : transliteração para o alfabeto latino: historía.
xciii
Embora o Professor Goodman utilize o termo “Palestina”, referindo-se ao século I a.C. - época do reinado de Herodes Magno -, tal nome só
passou a ser aplicado à Judeia, substituindo-o, a partir de um ato proposital do Imperador Adriano, que reinou de 117 a 138 d.C., soberano
romano este que, ao vencer a 2ª Revolta Judaica contra o Império, esta liderada por Bar Kochba de 132 a 135 d.C., após expulsar os judeus de
Jerusalém e da Judeia, Adriano, como já acima citado, propositalmente desvinculou-os de sua terra ancestral - Iehudah - termo hebraico que pode
ser traduzido por Judeia ou Judá, que não apenas foi um dos filhos de Jacó ou Israel, mas também o nome de uma das antigas Tribos de Israel,
no período pré-monárquico - fins dos século XIII ao final do século XI a.C., daí derivando o nome judeu para os hebreus do que veio a ser o
Reino do sul, de Judá, após os cismas político e religioso, que ocorreram na sucessão do Rei Salomão - último monarca do unificado Reino de
Israel (cerca de 1010 a 922 a.C.). A partir do período de dominação persa (séculos VI a IV a.C.), o nome Judá foi substituído por Judeia, ambos
sendo traduções do termo hebraico Iehudah. Ora o que o Imperador Adriano fez foi desvincular e, mais ainda, desenraizar os judeus de sua terra
ancestral - Judá / Judeia, atribuindo um novo nome para esta região: Palestina, que etimologicamente vem de Filisteia, portanto vinculado aos
filisteus, antigos inimigos dos hebreus no período da Confederação Tribal e da Monarquia Unificada de Israel (séculos XIII a X a.C.).
xciv
Neste ponto, Martin Goodman refere-se à “História da Guerra Judaica contra os Romanos” - “Guerra Judaica”, Livro II, § 284).
xcv
Negritos de destaque meus.
xcvi
Títulos citados no artigo ou apenas consultados para a redação do mesmo, embora não diretamente citados.
133
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