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capa

o golpe
para além
das imagens
Perguntas e hipóteses de centenas de historiadores e cientistas sociais
compõem os eixos fundamentais por onde avança o conhecimento da
ditadura brasileira de 1964-1985

Tanques do
Exército a caminho
do Palácio das
Laranjeiras, no
Rio de Janeiro, em
1º de abril de 1964

16 | abril DE 2014
O
s fatos imediatos que definem dirija ao Palácio do Planalto para empossar o
o golpe civil-militar de 31 de presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
março de 1964 estão contados Mazzilli, na Presidência da República. Emble-
à exaustão e suas imagens mais máticas são igualmente as imagens dos tanques
emblemáticas, além de terem do Exército ocupando o centro do Rio de Janeiro
sido generosamente servidas à ou a praça dos Três Poderes, em Brasília, ou, dias
opinião pública por diferentes meios de comu- depois, as do líder comunista Gregório Bezerra,
nicação e com distintos enfoques nas últimas ferido, sendo arrastado no chão por soldados,
semanas, permanecem na web à disposição dos pelas ruas de Recife.
que desejam acessá-las com mais vagar, em um Entretanto, nas últimas décadas, a pesquisa
ritmo reflexivo mais particular. Entre essas ima- em ciências humanas e sociais no Brasil, circuns-
gens está a filmagem em preto e branco do presi- crevendo-se a seu campo próprio e, para isso,
dente do Congresso Nacional, o senador paulista valendo-se também e legitimamente de outras
Auro Soares de Moura Andrade, declarando, na fontes confiáveis de investigação, tratou de co-
madrugada de 2 de abril, a vacância da Presi- nhecer e decifrar, para além das imagens, o golpe
dência da República – mesmo encontrando-se o de 1964 e a ditadura que a ele se seguiu por 21
presidente constitucional do país, João Goulart, anos. Historiadores, sociólogos, antropólogos,
em território nacional – numa tumultuada ses- cientistas políticos, economistas e pesquisadores
são parlamentar em que se ouvem com clareza do direito formularam as perguntas que julga-
os xingamentos dirigidos pelo senador mineiro vam cruciais, propuseram hipóteses, lançaram-
Tancredo Neves a seu colega paulista e os gritos -se a estudos, e desse labor resultaram algumas
reiterados de “golpista” que partem de alguém questões amplas que parecem compor os eixos
em outra parte do auditório. Na sequência, se fundamentais por onde avança o conhecimento
veem meio confusamente as cusparadas lançadas do período, alguns com mais densidade, outros
pelo deputado Rogê Ferreira no rosto de Moura ainda com certa rarefação de respostas, a exigir
Andrade, antes que este deixe o plenário e se novas pesquisas. Entre estes, podem-se alinhar:
Arquivo / Agência O Globo

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O golpe do Congresso
O senador Auro Moura 1. qual a real natureza do golpe de 1964 e quais mentais para o percurso: os historiadores Maria
Andrade declara a os seus agentes; 2. quais os ordenamentos jurí- Helena Capelato e Marcos Napolitano, ambos
vacância da Presidência
dicos e institucionais que permitiram à ditadura da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
da República (1) sob a
perplexidade de brasileira de 1964-1985 um funcionamento dis- manas da Universidade de São Paulo (FFLCH-
Tancredo Neves (2). tinto de outras ditaduras do continente; 3. como -USP), a socióloga Angela Alonso e a historia-
Doutel de Andrade, que a ditadura se insere organicamente no processo dora Miriam Dolhnikoff, do Centro Brasileiro
lera o comunicado de
histórico do Brasil; 4. quais os impactos da di- de Análise e Planejamento (Cebrap), o sociólo-
Jango, protesta no
microfone (3). tadura sobre a sociedade brasileira, sobre suas go Marcelo Ridenti, do Instituto de Filosofia e
Confabulações do instituições e o desenvolvimento econômico; Ciências Humanas da Universidade Estadual de
deputado Ernani 5. quais os efeitos da ditadura sobre a cultura e Campinas (IFCH-Unicamp) e a cientista políti-
do Amaral Peixoto,
a produção cultural brasileiras. ca Glenda Mezarobba, da FAPESP, atualmente
sentado à esquerda (4).
Moura Andrade informa Ao entrar, aproveitando os 50 anos do golpe cedida à Comissão Nacional da Verdade (CNV),
que Ranieri Mazzilli de 1964, no vasto e denso matagal da pesquisa que atuou também na edição do material. A par-
assumirá a Presidência norteada por tais eixos, com a determinação de tir das orientações deles, dezenas de pesquisa-
da República (5) e
trazer à luz o que de mais relevante se produ- dores foram ouvidos e ajudaram a construir o
Almino Afonso, ministro
do Trabalho de Jango, ziu até aqui neste campo complexo, polêmico e relato especial de Pesquisa FAPESP sobre os
inconformado, protesta (6) gerador de distintas paixões, Pesquisa FAPESP 50 anos do golpe de 1964 que se estende pelas
contou desde o início com alguns guias funda- próximas páginas.

Foto  Arquivo / Agência O Globo  1 a 6 reprodução youtube

18 | abril DE 2014
Braços civis de
uma intervenção
militar
Estudos discutem
participação de setores da
sociedade no golpe de 1964

Rodrigo de Oliveira Andrade

P
assados 50 anos do golpe de 1964, ainda
ecoa em alguns setores da sociedade
a imagem dos tanques deslocando-se
às escuras pelas ruas de Juiz de Fora,
Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro — então
um dos centros da política brasileira —, cercados
por tropas comandadas pelo general Olympio
Mourão Filho, como se o golpe que derrubou o
então presidente João Goulart, o Jango, e afun-
dou o país numa ditadura de mais de duas dé-
cadas tivesse sido resultado de uma engenharia
política unilateral, imposta de cima para baixo
pelos militares. Estudos recentes, produzidos
em diferentes áreas, têm procurado aprofundar
o conhecimento sobre as condições, processos
e ações que culminaram na queda de Goulart, à
medida que fortalecem a corrente crítica de que
o golpe teria sido fruto de uma crise política que Marcha da Família
envolveu diferentes atores. Assim, tem sido cada nas Forças Armadas. Após o golpe, os civis foram com Deus pela
Liberdade em
vez mais recorrente entre historiadores, soció- colocados em segundo plano, do ponto de vista Andradas,
logos e cientistas políticos atribuir ao golpe uma político”, explica. Isso não quer dizer que os civis Minas Gerais
natureza também civil, e não só militar. não foram beneficiários do regime. Muitos em-
“A participação de grupos civis no golpe hoje presários e políticos, entre outros, foram sócios
é inegável, assim como o apoio de setores civis à da ditadura. Já o golpe de 1964, ele diz, teria si-
ditadura”, afirma a historiadora Miriam Dolhni- do resultado de uma ampla e complexa coalizão,
koff, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências na qual os civis desempenharam um papel fun-
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH- damental, “embora os agentes principais, ainda
USP). “A questão é que critérios utilizar para ca- assim, tenham sido os militares”.
racterizar o regime que se instalou em seguida. Se Napolitano é autor do recém-lançado 1964: histó-
houve participação e apoio civil, é importante rias do regime militar brasileiro (Contexto), livro em
destacar que os militares mantiveram o controle que faz um balanço histórico dos anos do governo
ARQUIVO / A TRIBUNA /AE

das decisões políticas em suas mãos.” de João Goulart, da configuração do movimento


Para o historiador Marcos Napolitano, também que desencadeou o golpe e do regime militar que
da FFLCH-USP, o regime que se seguiu ao golpe o seguiu. O livro é resultado de trabalhos de mes-
deve ser qualificado apenas pela sua natureza trado e doutorado orientados por ele, e também
militar. “A construção do regime foi centralizada de um projeto voltado à avaliação da transição da

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1

crise política do governo de Jango para o golpe de Aarão Reis, da UFF, ela relata que, em 7 de abril,
1964. Nele, Napolitano e seu orientando de mes- o Conselho Federal da OAB, em reunião, come-
trado, David Ribeiro, analisaram teses acadêmicas morou a vitória do movimento golpista, aliviado
que explicavam o golpe sob a justificativa de que ele por estar do “lado das forças justas”.
teria sido resultado da radicalização de seus auto-

O
res ou da falta de compromisso com a democracia, artigo é resultado de um projeto maior,
apresentando o protagonismo exercido pelo Poder desenvolvido por Denise no Núcleo de
Legislativo no processo de formulação, execução Estudos Contemporâneos (NEC) da UFF
e legitimação do golpe. Além de po- e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvol-
tencializar os conflitos ideológicos vimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nele,
da sociedade, as decisões políticas a pesquisadora faz uma análise das declarações
O golpe foi tomadas no Congresso Nacional em oficiais de várias instituições nos primeiros meses
meio aos debates sobre as reformas após o golpe. A Comissão Central da Conferên-
resultado de teriam sido cruciais para o desgas- cia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divul-
te e isolamento político de Goulart, gou, em julho de 1964, a “Declaração da CNBB
uma ampla e segundo eles. sobre a situação nacional”, em que se posiciona
complexa coalizão, O envolvimento de outros setores afirmando que “atendendo à geral e angustiosa
civis também foi fundamental para expectativa do povo brasileiro, que via a mar-
na qual os civis desestabilizar o governo de Jango, cha acelerada do comunismo para conquistar o
preparar o clima do golpe e legiti- Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo,
desempenharam mar a ação dos militares. Empre- e evitaram que se consumasse a implantação do
sários, a Igreja Católica e a própria regime bolchevista em nossa terra”. Segundo
um papel Ordem dos Advogados do Brasil Reis, as lideranças eclesiásticas cristãs conser-
fundamental, (OAB), por exemplo, foram a favor vadoras, como a Igreja Católica — à exceção de
da intervenção militar. A conclusão alguns bispos e da Ordem dos Dominicanos —,
afirma Napolitano é da historiadora Denise Rollem- ajudaram ainda a impregnar a luta política com
berg, do Departamento de Histó- valores religiosos. “Para eles, era preciso não só
ria da Universidade Federal Flumi- ‘salvar a democracia’, mas também ‘salvar a civi-
nense (UFF), no Rio de Janeiro. No lização cristã’, agitando-se, assim, o espantalho
artigo “Memória, opinião e cultura política – A do comunismo.”
Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura Por sua vez, a Associação Brasileira de Impren-
(1964-1974)”, publicado no livro Modernidades sa (ABI) não formalizou seu apoio, como o fize-
alternativas, organizado pelo historiador Daniel ram a OAB e a CNBB, conta Denise. Mas a leituras

20 | abril DE 2014
sões das manifestações de mas-
sa e dos movimentos populares.
Meio século depois, a Rede
da Democracia tem sido objeto
recorrente de estudos, atrain-
do a atenção de historiadores
que tentam entender até que
ponto ela influenciou o pro-
cesso de disputa pelo controle
do Estado por meio da doutri-
nação ideológica voltada à de-
sestabilização do governo de
Goulart. O trabalho mais re-
cente é o do historiador Aloy-
sio Castello de Carvalho. Em
sua pesquisa de pós-doutora-
do em história social na USP,
cujos resultados foram publi-
cados no livro A Rede da De-
mocracia: O Globo, O Jornal e
Jornal do Brasil na queda do
governo Goulart (1961-1964),
ele procura identificar padrões
discursivos na retórica conser-
2 vadora e antirreformista usada
1 João Goulart pelos jornais nas críticas ao go-
cumprimenta das atas das reuniões ordinárias e extraordinárias verno de Jango (ver Pesquisa FAPESP nº 181).
populares na Vila
Portuária, no Rio,
e do boletim de seu conselho administrativo su- Mas não foi só por meio de coalizões que a im-
ao lado de gere certa diversidade de posições nos debates. prensa se articulou para desestabilizar Goulart e
Tancredo Neves consolidar a ideia de que o país caminhava para o
2 Manchete
A imprensa comunismo. Além do Jornal do Brasil e O Globo,
d’O Globo sobre a A imprensa tornou-se peça-chave na conspiração o Correio da Manhã foi um dos mais importantes
posse de Ranieri contra Goulart em fins de 1963, segundo Marcos jornais brasileiros da época, não só quanto ao as-
Mazzilli, após Napolitano, quando três dos principais jornais ca- pecto empresarial, mas também com relação à sua
a declaração
de vacância da
riocas — O Jornal, dos Diários Associados, Jornal participação na política nacional. A historiadora
presidência do Brasil, da família Nascimento Brito, e O Globo, Maria Helena Capelato, professora da FFLCH-USP
da República da família Marinho — uniram vozes na chama- e há muito envolvida com estudos sobre a história
da Rede da Democracia, um arranjo midiático da imprensa no Brasil, tem analisado as manchetes
a favor da destituição do governo de Goulart. e títulos de editoriais e artigos da grande imprensa
O movimento era inspirado no seu contrário, a durante o período que antecedeu ao golpe.
Rede da Legalidade, organização de resistência O Correio da Manhã publicou dois textos que
liderada três anos antes por Leonel Brizola, à entraram para a história, segundo ela. Um editorial
época governador do Rio Grande do Sul, contra intitulado “Basta!”, em 31 de março de 1964, con-
a quebra da legalidade constitucional articulada clamava a renúncia de Goulart, sob o argumento de
pelo Exército, Marinha e Aeronáutica na tentativa que o presidente contribuíra para cultivar a intran-
de impedir que Jango assumisse o governo após quilidade e a insegurança entre a classe produtora,
a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. desregular a inflação e desagregar as Forças Arma-
fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 AGÊNCIA O GLOBO

A exemplo da rede de Brizola, a Rede da De- das por meio da indisciplina. Um dia depois, em 1°
mocracia usou o rádio para ajudar a enfraquecer de abril, outro editorial publicado pelo jornal, com
o governo Goulart. Todos os dias, explica o pes- o título “Fora!”, indicava o clima de radicalização
quisador, subsidiados por organizações como o política ao qual o país havia chegado. Para Maria
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Helena, os textos dos dois editoriais demonstram o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), intenso envolvimento dos representantes do jornal
políticos, empresários, militares, jornalistas e sin- no golpe. “Os títulos mostram o impacto que certas
dicalistas, entre outros, articulavam-se em oposi- expressões têm. Alguns autores, por exemplo, se
ção ao então presidente, em discursos em defesa referem a elas como ‘palavras balas’, devido à sua
do nacionalismo contra o comunismo, críticas à capacidade de atingir o cérebro do leitor”, diz. Ela
ineficiência do Congresso, à falta de legitimidade explica que em pesquisas historiográficas sobre o
de Jango e ao perigo de o governo ceder às pres- regime militar os jornais são usados apenas como

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dos golpistas em manchetes como
a de 1º de abril: “De Norte a Sul vi-
vas à contrarrevolução”. Dias de-
pois da mudança no poder, conta
Maria Helena, o jornal demonstrou
entusiasmo em relação à posse do
marechal Humberto de Alencar
Castello Branco em manchete –
“Rio festeja a posse de Castello”
– e defendeu as cassações de polí-
ticos, alegando que elas eram fru-
to da crise vivida pelo país. Apoio
igualmente explícito foi dado pelo
O Globo, que, além de ajudar a le-
gitimar o golpe, apoiou a ditadura
ao longo dos anos. “A apologia do
‘milagre econômico’, expressa em
editorial de 1984, por exemplo, po-
de ser entendida como uma tentati-
va de desviar a atenção dos leitores
quanto aos benefícios que recebeu
do poder nesse período”, diz Ma-
ria Helena. Em agosto de 2013, as
1 Organizações Globo reconheceram
1 Tanque do exército que apoiar o golpe foi um erro.
em frente ao Palácio fonte, sendo raros os trabalhos que os utilizam co- A trajetória dos principais jornais de São Paulo
da Guanabara,
mo objeto específico de estudo. “A imprensa em seguiu a mesma toada. Segundo ela, num primeiro
no Rio de Janeiro
geral e os jornais da grande imprensa brasileira momento, O Estado de S.Paulo apelou à interven-
2 Estudantes do em particular foram atores de extrema relevância ção militar, aplaudiu a Marcha da Família com
Mackenzie saem em naquele período.” Deus pela Liberdade — série de manifestações civis
passeata até a praça
promovidas entre março e junho de 1964 contra o

A
da República, SP,
onde fazem comício pesquisadora acaba de escrever um arti- comunismo, o governo e sua agenda reformista —
de apoio ao golpe go sobre a participação da imprensa no e festejou o sucesso do golpe. Ao longo da ditadu-
golpe para a coletânea Histórias do tempo ra, porém, o jornal assumiu uma postura crítica e
presente, organizada pela historiadora Marieta sofreu com a censura. É bastante conhecido o re-
de Moraes Ferreira, da Universidade Federal do curso da publicação dos poemas de Camões e das
Rio de Janeiro (UFRJ), prestes a ser lançada pelo receitas de bolo no lugar das notícias censuradas.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Nos anos finais do regime, conta Maria Helena, o
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação jornal participou da luta pela redemocratização
Getulio Vargas (FGV). Em março, Maria Helena do país e “até hoje se vangloria de ter lutado pela
coordenou um simpósio internacional, intitulado volta da democracia no Brasil”.
O Golpe de 1964 e a Onda Autoritária na América Já a Folha de S.Paulo, segundo a historiadora,
Latina, na USP, com apoio da FAPESP. fez críticas moderadas ao governo e às refor-
Por outro lado, a historiadora ressalta que al- mas de Goulart, mas também apoiou a marcha,
guns dos jornais que apoiaram a intervenção dos manifestou-se a favor do golpe e, em seguida,
militares, entre eles o Correio da Manhã, conde- fez elogios ao novo presidente Castello Branco.
naram o empastelamento, por exemplo, do Última “A Folha de S.Paulo apoiou o golpe, mas assumiu
Hora após os militares tomarem o poder. Segun- uma postura mais reservada quanto ao novo regi-
do ela, as publicações que aplaudiram o golpe, a me”, comenta. “É possível supor que essa atitude
exemplo de outros setores civis, clamavam por foi adotada para não pôr em risco o patrimônio
uma intervenção cirúrgica que restaurasse a or- da empresa e a reputação do jornal.” Ela explica
dem e devolvesse o poder ao povo. “Logo a im- que com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que deu
prensa percebeu que o caminho seria diferente. poderes absolutos aos militares, a Folha optou
Foram censurados e, então, passaram a partici- pela autocensura, chegando depois a colaborar
par dos movimentos pela redemocratização anos com os agentes da repressão encarregados das
mais tarde”, comenta. prisões e torturas — ao todo, o Estado brasileiro
A postura do Jornal do Brasil durante a primei- foi responsável pela morte de 426 pessoas entre
ra fase do regime foi diferente da assumida pelo 1964 e 1985, segundo a Comissão de Familiares
Correio da Manhã. O jornal comemorou a vitória de Mortos e Desaparecidos Políticos. Já os da-

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dos oficiais da Presidência da República mos- Ele cita um levantamento do Grupo de Estudos
tram que 475 processos envolvendo vítimas da sobre a Ditadura Militar da UFRJ, que verificou
ditadura militar passaram pela Comissão Espe- que entre 1971 e 2000 foram produzidas 214 teses
cial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da de doutorado e dissertações de mestrado sobre a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Em história da ditadura militar, 205 delas no Brasil.
editorial publicado em 30 de março Segundo Fico, um estudioso da produção histo-
de 2014, a Folha também reconheceu riográfica brasileira a respeito da ditadura militar,
que, “aos olhos de hoje, apoiar a dita- o crescimento do número de investigações sobre
dura militar foi um erro, mas as op- a temática é visível, em parte devido ao aumento
Os jornais da ções de então se deram em condições de alunos que ingressaram na universidade. Entre
bem mais adversas que as atuais”. 1971 e 1975, por exemplo, foram defendidos apenas
grande imprensa dois trabalhos. Já entre 1986 e 1990 houve 47 defe-
brasileira foram Ecos da conspiração sas. Entre 1996 e 2000 foram registradas 74 teses
Para o cientista social Paulo Ribeiro e dissertações. Os principais focos de interesse fo-
decisivos na da Cunha, professor da Faculdade de ram os movimentos sociais urbanos, temas da arte
Filosofia e Ciências da Universidade e da cultura, economia e assuntos relacionados à
campanha para Estadual Paulista (Unesp) de Marília, esquerda e à oposição em geral. Em seguida vêm
houve avanços importantes quanto à a imprensa, a censura e o movimento estudantil.
desestabilizar produção científica, pautada em pes- Durante todo esse período, ele ressalta, apenas
quisas e livros, voltada à reflexão do seis estudos focaram a natureza do golpe.
o governo de período da ditadura, embora admita Essa produção historiográfica reforça a tese de
Goulart, segundo que “ainda há muito por resgatar”. que o discurso antigovernista da imprensa en-
Mas para o historiador Carlos Fico, do controu adeptos em muitos segmentos civis, diz
Maria Helena Instituto de Filosofia e Ciências So- Napolitano, que atualmente coordena um projeto
ciais da UFRJ e coordenador de his- de pesquisa, apoiado pelo CNPq, voltado ao es-
tória na Coordenação de Aperfeiçoa- tudo do processo de construção e adensamento
mento de Pessoal de Nível Superior da memória sobre o regime militar construída
(Capes), apesar do crescente interesse de jovens pela imprensa a partir de 1974. A alegação de
historiadores e estudantes de graduação em histó- corrupção — como hoje, atribuída quase sempre
ria pelo período ditatorial, boa parte dos projetos ao populismo da esquerda — e a incompetência
de mestrado e doutorado na área não se propõe a administrativa de Jango marcavam o tom das
estudar os processos que levaram ao golpe. críticas de setores sociais amedrontados pelo
que julgavam ser a “proletarização” do país. Pa-
ra Napolitano, esse discurso, na verdade, serviu
para encobrir velhos interesses. “A ascensão dos
‘de baixo’ é sempre vista como ameaça aos que
estão nos andares de cima do edifício social.” O
historiador se refere às reformas de base, uma
das marcas do governo Goulart.

P
ara Marco Antonio Villa, professor aposen-
tado do Departamento de Ciências Sociais
do Centro de Educação e Ciências Hu-
fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 Nivaldo /Acervo UH / Folhapress

manas da Universidade Federal de São Carlos


(UFSCar), Jango nunca definira claramente essas
medidas. Em seu livro Ditadura e democracia no
Brasil (Zahar), no entanto, o historiador Daniel
Aarão Reis verificou que o reformismo de Gou-
lart previa a distribuição da terra por meio do
rompimento de monopólios; o crescimento pla-
nejado das cidades, combatendo a especulação
imobiliária; a criação de um sistema estatal para
o financiamento de atividades que garantissem
a autonomia nacional; e a incorporação do voto
de soldados, graduados das Forças Armadas e
analfabetos, entre outros pontos. Reis, no en-
tanto, afirma que é preciso relativizar o papel
de Jango nesse ponto da história. “O programa
2 das reformas de base foi estruturado por uma

pESQUISA FAPESP 218 | 23


ampla frente de movimentos sociais e lideranças o historiador identificou mais de 100 entidades
políticas”, afirma. “Diante dele, Goulart sempre civis que saíram às ruas contra o comunismo e
hesitou e tergiversou. Foi só em seus últimos me- a agenda reformista de Jango, entre elas a Orga-
ses de governo que ele começou a inclinar-se às nização pela União Cívica Feminista, entidade
posições reformistas.” conservadora e anticomunista da época.
Em seu livro, fruto de uma intensa revisão bi-
bliográfica, Reis explica que essas medidas, no Golpe final
entanto, não foram suficientes para que seu pro- Efetivado o golpe, veio a cartada final. Não dos
jeto tivesse apoio unânime, ao passo que a opi- militares, “mas da instituição que, a rigor, deveria
nião mais conservadora começou a se articular defender a legalidade constitucional: o Congresso
em grupos de pressão, cujas críticas Nacional”, destaca Paulo Cunha. Em 2 de abril de
intensificaram-se ante a apresenta- 1964, em meio a manifestações como a Marcha
ção do Plano Trienal, uma combinação da Vitória, no Rio, foi declarada a “vacância” de
de estímulos e restrições elaborada Goulart, que ainda estava no Rio Grande do Sul,
Dados do Ibope por Celso Furtado, então ministro do prestes a exilar-se no Uruguai. Em termos práti-
Planejamento, para incentivar o de- cos, diz Cunha, “o Congresso determinou que o
de março de senvolvimento e dominar a inflação. país estava sem presidente, sendo que o presiden-
“O Plano Trienal foi abandonado no te ainda estava no Brasil”. Dias depois, em 11 de
1964 mostram primeiro semestre de 1963. E, em meio abril, os parlamentares elegeram Castello Bran-
boa aprovação à turbulência política, a inflação não co para ocupar o posto de Goulart. “No contexto
parou de crescer. Em 1960 estava em de polarização política, o Congresso teve maior
pública de Jango 30,5%. Um ano depois foi para 47,8%. responsabilidade pelas medidas que não tomou,
Em 1962 saltou para 51,6%”, afirma já que não foi capaz de gerenciar a crise política
nas principais Marco Antonio Villa, cujas pesquisas ou negociar saídas institucionais democráticas”,
deram origem ao livro recém-lançado conclui Miriam Dolhnikoff, também pesquisadora
cidades do Brasil Ditadura à brasileira – A democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
golpeada à esquerda e à direita (LeYa). (Cebrap), fundado logo após o AI-5 por professo-
O país dividira-se. Manifestações res aposentados compulsoriamente pelo regime.
civis espalhavam-se em vários esta-

J
dos. No dia 19 de março de 1964, a ango não resistiu ao golpe, mas poderia tê-lo
primeira Marcha da Família com Deus feito, pondera Cunha. Segundo ele, Goulart
pela Liberdade reuniu cerca de 500 tinha apoio social e, inclusive, de alguns co-
mil pessoas no centro de São Paulo, entre elas mandos importantes nas Forças Armadas. Cunha
lideranças da classe média e da Igreja Católica tem coordenado, desde 2004, um projeto com
e políticos, como Ulysses Guimarães, um dos o objetivo de estudar a intervenção política de
líderes da marcha, segundo Reis. Outras mani- militares de esquerda e comunistas ao longo do
festações seguiram-se dias mais tarde, como a de século XX e, particularmente, o papel do setor
Santos, litoral paulista — ainda pouco estudada, militar do Partido Comunista Brasileiro (PCB),
de acordo com Napolitano. Em suas pesquisas, o Antimil, nas Forças Armadas. O projeto se ba-
seia em entrevistas, leituras da imprensa e fontes
documentais. Mais recentemente, o pesquisador

fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 DOMICIO PINHEIRO / ESTADÃO CONTEÚDO /AE
procura resgatar a história da Associação Demo-
crática e Nacionalista dos Militares (Adnam),
entidade formada por militares cassados cuja ex-
pressão política, segundo ele, foi a continuidade
de uma atuação da esquerda militar no pós-64 no
sentido de conquistar a anistia e a democracia.
Além do respaldo de parte dos militares, Jan-
go também contava com apoio popular. Segundo
Napolitano, dados do Ibope de março de 1964
mostram que o presidente tinha boa aprovação
pública nas principais cidades do Brasil, com
45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo
e 49% das intenções de voto caso fosse candida-
to em 1965 — a reeleição à época era proibida.
Apenas 16% consideravam seu governo “ruim
ou péssimo” e 59% eram favoráveis às reformas
apresentadas nos comícios de 13 de março, na
2 Central do Brasil, no Rio.

24 | abril DE 2014
mo a descoberta da Operação Brother Sam, que
consistiu na disponibilização de suplementos mi-
litares, incluindo um porta-aviões, aos golpistas.
“Os EUA viam Goulart com enorme desconfiança.
Eles não queriam uma segunda Cuba na América
Latina”, explica. “O governo Kennedy auxiliou a
configuração do golpe. Mas com a não resistência
de Goulart o uso desse aparato não foi necessário.”
Fico obteve recentemente o plano de contingência
discutido pelo embaixador norte-americano Lincoln
Gordon com o Departamento de Estado em dezem-
bro de 1963, o qual sustenta a tese de que Kennedy
poderia intervir, se necessário. Essa discussão vem
sendo retomada mais recentemente, diante da divul-
gação de novos documentos, antes sigilosos, sobre a
1 participação dos EUA no golpe de 1964 (ver matéria
1 Multidão ouve Jango na página 43). Em entrevista recente, o cientista po-
defender as reformas Para Carlos Fico, João Goulart decidiu não re- lítico e brasilianista Thomas Skidmore, da Universi-
de base no comício na
Central do Brasil
sistir por várias razões. Entre elas porque o Con- dade Brown, nos EUA, afirmou ter sido informado
gresso o impediu, e também porque já não contava do golpe um dia antes, em 31 de março, num jantar
2 O ministro da mais com apoio de setores militares. “O próprio com Gordon, no Rio. Em 2006, Skidmore doou seus
Justiça, Luis Antônio Jango era de índole pacifista. Qualquer tentativa arquivos pessoais, com cerca de 6 mil documentos,
Gama e Silva, e o
locutor da Agência
de conter o golpe poderia desencadear uma guerra em português e inglês, para a Brown — os arquivos
Nacional, Alberto civil”, avalia o historiador. Segundo ele, a principal podem ser acessados no endereço http://library.
Curi, anunciam o AI-5 razão para Goulart não resistir talvez tenha sido brown.edu/collections/skidmore/.
o fato de, na manhã de 1º de abril, o ex-ministro Por mais que as pesquisas sobre a época tenham
da Fazenda San Tiago Dantas tê-lo avisado de avançado, ainda há lacunas na história que preci-
que os Estados Unidos (EUA) reconheceriam e sam ser investigadas. “A própria participação do
apoiariam um governo alternativo ao dele. Fico Congresso carece de estudos mais específicos”,
é coordenador de um projeto de pesquisa com o comenta Cunha. O mesmo pode ser dito sobre a
objetivo de ampliar a compreensão dos sistemas participação dos empresários antes, durante e de-
repressivos da ditadura militar brasileira e enten- pois do golpe — ainda muito pouco estudada. Pa-
der a influência dos EUA nas ditaduras do Brasil ra Carlos Fico, muitos veem o golpe como evento
e da Argentina. Seus estudos deram origem, en- inaugural da ditadura. Na verdade, diz o historia-
tre outros, ao livro O Grande Irmão: da Operação dor, ele foi a expressão de um autoritarismo que
Brother Sam aos anos de chumbo – O governo dos por muito tempo rondou o país. “Esse evento-chave
Estados Unidos e a ditadura brasileira (Civilização da história do Brasil ainda precisa ser melhor es-
Brasileira), editado em 2008. tudado”, conclui. Reis, por outro lado, ressalta que
De acordo com Fico, os principais achados so- ainda é preciso entender melhor as conexões da
bre a participação dos EUA no golpe de 1964 fo- ditadura com as lideranças sindicais — urbanas e
ram divulgados entre os anos de 1970 e 1980, co- rurais. “Há um tabu sobre o assunto, mas ele ten-
de a cair nos próximos anos”, afirma. Segundo ele,
AS Ondas da violência sem compreender a ditadura como um constructo
Total de mortos pela repressão social e histórico, se avançará muito pouco no en-
política entre 1964 e 1985 – 69
73 426 tendimento do período ditatorial. n
e o número de pessoas cujos 41
25 Total de mortos
corpos nunca foram
encontrados
55
53 179 Projetos
54
17 Desaparecidos
n  Total de mortos 1 Da crise política ao golpe de Estado: conflitos entre o Poder Exe-
cutivo e o Poder Legislativo durante o governo de João Goulart (nº
n Desaparecidos
2013/25214-3); Modalidade Auxílio Publicação Regular - Livro Brasil;
34 fonte  Comissão de Familiares
Pesquisador responsável Marcos Francisco Napolitano de Eugenio
de Mortos e Desaparecidos
28 7 Políticos (FFLCH/USP); Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP).
24 23
4 2 Da renúncia ao golpe: a consolidação do projeto golpista no Con-
2 12
15 gresso Nacional (nº 2010/14533-2); Modalidade Bolsa no País –
13 Regular – Mestrado; Pesquisador responsável Marcos Francisco
9 10
0 Napolitano de Eugenio (FFLCH/ISP); Bolsista David Ricardo Sousa
4 5 6 5
3 3 4 2 Ribeiro; Investimento R$ 25.752,10 (FAPESP).
0 0 1 1 0
0 2 1
0 0 0 0 0 3 O golpe de 1964 e a onda autoritária na América Latina (nº
0 0
2013/21149-2); Modalidade Auxílio Organização – Regular; Pes-
quisadora responsável Maria Helena Rolim Capelato (FFLCH/USP);
4

9
70

71
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84

85
6
6

6
6

19

Investimento R$ 20.766,76 (FAPESP).


19

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19

19
19

pESQUISA FAPESP 218 | 25


marcas
profundas
Especialistas examinam os
efeitos dos 21 anos de ditadura na
sociedade contemporânea

Eduardo Nunomura

P
assaram-se cinco décadas, outras tantas
se passarão e o golpe de 1964 permane-
cerá selando nossa realidade. Quem o
diz é o saber científico acumulado em
anos de artigos, livros publicados e projetos de
pesquisa nas melhores instituições de ensino do
país. Parte do que somos, do que poderíamos ser
e do que jamais seremos está ligada à herança do
regime militar no Brasil. De um lado, caminhamos
para a sétima eleição presidencial democrática e
podemos celebrar o fato de ter tido um professor
exilado, um líder sindical preso na ditadura e
uma guerrilheira presa e torturada ocupando
o posto máximo da República. De outro, muito
do que ainda nos falta como nação se deve a um
Estado e a uma sociedade que não se desfizeram
das amarras e armadilhas do passado. Os pes- ramilitares e milicianos dos nossos dias, explica
quisadores se debruçaram e prosseguem com o historiador, vinculado à Universidade Federal
afinco na análise dos impactos e consequências do Rio de Janeiro (UFRJ). A atual democracia
de um período que ainda rende inúmeras teses poderia ter dado um basta nessa lógica, mas não
e dissertações, mas talvez jamais consigam res- o fez. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal re-
ponder a uma questão crucial: seremos capazes cusou “abrir velhas feridas” ao se opor à revisão
de um dia virar a página da história? da Lei da Anistia. “1964 continua acontecendo
Em 2014, os brasileiros viram as cenas de bar- a cada dia”, diz Teixeira da Silva.
bárie da faxineira Claudia Silva Ferreira sendo Para um jovem nascido na democracia, talvez
arrastada por um carro da Polícia Militar, na zo- seja difícil relacionar a repressão da polícia do
na norte do Rio, após ter sido baleada num fogo Exército com a institucionalização da violência
cruzado entre traficantes e policiais. “A tortura, e a militarização das polícias. Mas isso é um fa-
os assassinatos e os desaparecimentos foram to e também um campo de estudo. O Núcleo de
políticas de Estado na ditadura, mas a violência Estudos da Violência da Universidade de São
policial continua sendo praticada sistematica- Paulo (NEV-USP) foi criado em 1987 para in-
mente no Brasil”, critica o historiador Francisco vestigar por que o Brasil que se redemocratiza-
Carlos Teixeira da Silva, coautor de Moderniza- va manteve traços de uma herança autoritária e
ção, ditadura e democracia: 1964-2010 (Objetiva, para refletir sobre os desafios que esse passado
2014). A gênese dessa violência une os porões da ainda apresenta para a consolidação do Estado
polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão democrático de direito. De lá para cá, as taxas
mantidos vivos na democracia de 1946 a 1964, de criminalidade explodiram dos anos 1980 aos
os 21 anos de regime militar e a polícia e os pa- 1990, sobretudo a de homicídios, e agora a socie-

26 | abril DE 2014
país, tendo como objeto de estudo o esquadrão da
morte. Segundo ele, ali começou a firmar-se uma
espécie de pacto com a opinião pública que tolera
a matança de criminosos – ou suspeitos de terem
cometido crimes – por agentes policiais como se
fosse adequada política de segurança. O núcleo
já realizou estudos sobre a impunidade penal, as
consequências da permanência do perfil militar
das polícias e a violação dos direitos humanos.

A
cientista política Maria Helena Moreira
Alves também se dedica a estudar os res-
quícios do golpe de 1964 sobre a doutrina
de segurança nacional, ainda em pleno vigor em
sua opinião. Ela entende que as instituições bra-
sileiras continuam incapazes de dar respostas à
democracia. E isso decorre do fato de que elas
não se abriram para as outras classes sociais, mas
se tornaram peças utilitárias para a preservação
de poder das elites. A pesquisadora cita o Judi-
ciário, os partidos, as polícias e a imprensa co-
mo algumas das instituições que falham em não
representar os interesses da maioria da popula-
ção. “Diferentemente do período da resistência,
focada na luta armada de classe média, hoje as
vítimas da violência são pobres, camponeses e
os moradores das periferias, que desaparecem
ou são silenciadas”, critica a autora de Vivendo
no fogo cruzado (Editora Unesp, 2013), sobre a
política de retomada dos morros e comunidades
pelo governo do Rio. Irmã caçula do deputado
Márcio Moreira Alves, cujo discurso desafiador
no Congresso foi o estopim para a decretação do
Ato Institucional Número 5 em 1968, Maria Hele-
na publicou também Estado e oposições no Brasil:
1964-1984 (Vozes, 1984) e é professora aposenta-
Policiais militares da da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
reprimem dade se vê às voltas com o crime organizado. Há Presa em 1970, torturada nos porões do Doi-
manifestantes em
pelo menos duas gerações, a população deixou -Codi do Rio de Janeiro, a historiadora e psicóloga
Brasília, em 2009:
violência praticada de enxergar a polícia como eficiente. Cecília Maria Bouças Coimbra defendeu tese de
por agentes do O sociólogo Sergio Adorno, coordenador do doutorado que foi publicada em livro já esgota-
Estado é uma das NEV-USP e diretor da Faculdade de Filosofia, do sob o título Guardiães da ordem: uma viagem
heranças da ditadura
Letras e Ciências Humanas da USP, lembra que pelas práticas “psi” no Brasil do “milagre”. Nesse
na ditadura imperava o medo de falar. Nos anos trabalho, a pesquisadora mostra como testes eram
1970, Adorno era universitário e nas aulas de aplicados por psicólogos para traçar o perfil dos
sociologia seus professores não podiam citar a chamados terroristas presos. O objetivo era usar
palavra “marxismo”. A censura abafava o fenô- esse perfil construído para intimizar (tudo está
meno da violência, que só se tornou bastante visí- vinculado a uma certa essência que todo sujeito
vel depois da saída dos militares. “As instituições teria), privatizar (tudo vincula-se à vida privada)
encarregadas da aplicação de lei e ordem conti- e justificar uma visão familiarista (os opositores
nuam adotando um tratamento autoritário para políticos seriam emocionalmente perturbados,
DIDA SAMPAIO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

conter a violência e têm uma concepção da ordem com dificuldades de relacionamento e advindos
que é inspirada na lógica da guerra”, explica. “O de famílias desestruturadas). “Ignoravam a reali-
criminoso é um inimigo que deve ser extirpado.” dade social, como se o sujeito não fosse produto
O NEV-USP é desde 2000 um dos Centros de de seu contexto histórico”, afirma Cecília. Em
Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. seu pós-doutoramento, na USP, o estudo Opera-
A Fundação tem financiado várias pesquisas sobre ção Rio: o mito das classes perigosas, a pesquisa-
o tema, como a de uma investigação de Adorno dora, fundadora e hoje vice-presidente do grupo
sobre a continuidade do discurso autoritário no Tortura Nunca Mais-RJ, fala da produção feita

pESQUISA FAPESP 218 | 27


Assembleia de
metalúrgicos no ABC,
berço das greves do
fim dos anos 1970:
tentativa de
despolitizar sindicatos
acabou por politizar
as negociações
salariais

pelos meios de comunicação hegemônicos do Argelina Cheibub Figueiredo, já gerou uma série
“inimigo” a ser perseguido. Aponta historicamen- de artigos e livros, além de teses de mestrado e
te como, desde o final do século XIX, se associa doutorado. Limongi também faz parte de outro
indissoluvelmente pobreza com criminalidade. Cepid da Fundação, o Centro de Estudos da Me-
trópole, onde estuda questões eleitorais.

M
as a segurança pública, talvez a face mais A Guerra Fria, que se caracterizou por dispu-
visível da herança da ditadura, não é a tas estratégicas e conflitos indiretos entre Esta-
única questão mal resolvida, na análise dos Unidos e União Soviética, era um fator de
dos estudiosos. Não é raro disseminar em certas maior importância nos cálculos políticos que
camadas da opinião pública discursos de des- os partidos brasileiros faziam naquele período,
crença em relação ao atual regime político. Ora explica Argelina. Os três partidos sobre os quais
é a desconfiança nas instituições, ora a percep- gravitava a vida política (o PSD, mais ao cen-
ção de que os governantes são corruptos. Para tro do sistema político nacional, o PTB de João
o cientista político Fernando Limongi, da USP, Goulart e os conservadores oposicionistas da
essa visão é baseada em muito preconceito e falta UDN) possuíam muitas correntes internas, que
de conhecimento sobre o papel e a atuação das se posicionavam radicalmente conforme o tema
instituições. O projeto temático da FAPESP Ins- em disputa. As reformas de base propostas por
tituições políticas, padrões de interação Executivo- Jango, por exemplo, foram defendidas com unhas
-Legislativo e capacidade governativa, iniciado e dentes por grupos de esquerda entre os traba-
em 1997, desmente a construção de que o regime lhistas. Na época, eles viram sua representação
político pré-1964 funcionava mal e isso gerou um no Congresso crescer nas eleições de 1962, mas
conflito que resultou no golpe. não tinham maioria. Apesar disso, não aceitavam
“Esse diagnóstico, que a meu ver estava errado, nenhum tipo de negociação – bem diferente do
influencia a Constituinte de 1987, que redesenhou cenário atual. Em seus estudos sobre o Legisla-
as relações institucionais, fortalecendo o Poder tivo, a cientista política lembra que o Congresso
Executivo, mas sem deixar de buscar tornar o tem 70 anos de atividade parlamentar pratica-
Legislativo mais eficiente, aumentando a capa- mente ininterrupta, com exceção de alguns meses
cidade de o presidente ter sua agenda política de 1966 e 1969. “Os deputados, prefeitos fora das
ALFREDO RIZZUTTI / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

implementada”, diz Limongi. Mas os estudos do capitais e vereadores continuaram sendo eleitos,
projeto temático que comparam o período 1945- o que fez com que a política local nunca deixasse
1964 com o atual mostram que antes do golpe o de ter influência, o que persiste até hoje”, explica.
sistema funcionava de forma diferente, que o Exe- A ditadura teve a preocupação de institucio-
cutivo não dominava tão fortemente o processo nalizar o governo dos militares, estabelecendo
legislativo, mas não é o mesmo que afirmar que o suas reformas, criando um Executivo forte, onde
sistema estaria à beira de um colapso. Funcionava, um dos principais mecanismos de aprovação de
apenas de forma diferente. O projeto temático, projetos era o decreto-lei. A Constituição de 1988
coordenado por Limongi e pela cientista política acabou por manter poderes atribuídos ao chefe

28 | abril DE 2014
do Executivo pelos governos militares para evitar mas também se opor às políticas do regime que
que um presidente fraco se tornasse incapaz de produziram crescente concentração de renda e
governar diante de um Congresso conservador, deterioração das condições de vida. Nesta pers-
explica Argelina. Mas isso não tornou o Legisla- pectiva, o Partido dos Trabalhadores não surgiu
tivo refém da Presidência, que agora depende de por mero acaso em 1980.
intensas negociações com os líderes dos partidos O pesquisador Armando Boito Jr., professor
para poder definir sua agenda, seja por meio de titular de ciência política da Universidade Es-
projetos de lei ou medidas provisórias. “Hoje o tadual de Campinas (Unicamp), lembra que o
presidente é mais forte do ponto de vista insti- Brasil do ciclo militar manteve a política desen-
tucional, mas tem de governar dentro de uma volvimentista, ao contrário dos vizinhos Chile
coalizão, já que o Congresso tem condições de e Argentina, que adotaram em suas respectivas
se impor quando quer.” ditaduras o modelo capitalista neoliberal. Na dita-
dura brasileira, o Estado preservou, de múltiplas

U
m outro objeto de estudo ainda pouco explo- maneiras, sua função de indutor do crescimento.
rado se refere ao mundo do trabalho e dos “Os militares mantiveram a política de industria-
trabalhadores nesse período. Fundamental lização, mas liquidaram com o populismo, que
para compreender o golpe de 1964 e suas conse- era a base popular do desenvolvimentismo. Ten-
quências, o papel dos trabalhadores e do mundo taram avançar com uma perna só”, compara. Na
do trabalho demanda mais pesquisas, na avaliação redemocratização, o primeiro presidente eleito,
do sociólogo Marco Aurélio Santana, diretor do Fernando Collor, abriu as portas do país para o
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. capitalismo internacional, levando à regressão
“Há, depois do golpe, uma visão muito crítica da da industrialização brasileira.
participação deles no pré-1964, como se tivessem Quando Lula assumiu o poder,
‘errado’ no pré-1964, sido ‘derrotados’ em 1964 e ele adotou uma política chamada de
ficado ‘imobilizados’ e/ou ‘ausentes’ no pós-1964”, neodesenvolvimentista por Boito Jr., Correntes
explica. A exceção ficaria por conta de dois mo- autor, dentre outros, do livro Políti-
mentos relevantes, as greves operárias de 1968 – ca neoliberal e sindicalismo no Brasil internas dos três
em Osasco (SP) e Contagem (MG) – e a partir de (Editora Xamã, 2002). “O neodesen-
1978, com as greves do ABC paulista, lembra San- volvimentismo é o desenvolvimentis-
partidos sobre
tana. O sociólogo adverte que logo após tomarem mo possível dentro do modelo capita- os quais
o poder as Forças Armadas trataram de cassar e lista neoliberal ainda em vigor. Essa
prender as lideranças comunistas-trabalhistas que política favorece, principalmente, a gravitava a vida
eram hegemônicas no sindicalismo da época. E, grande burguesia interna brasileira,
buscando uma reorientação sindical, favoreceram mas obtém apoio, também, em am- política (PSD,
a aproximação com correntes ligadas ao sindicalis- plos setores populares.” Boito Jr. en-
mo conservador, mais propenso às conciliações e tende que se formou, sob os governos
PTB e UDN) se
negociações, além de ter um cunho assistencialista. petistas, uma ampla e heterogênea posicionavam
“A ditadura tentou despolitizar os sindicatos, frente política que favoreceu a luta
mas acabou por politizar as negociações sala- dos sindicatos mais do que aquelas radicalmente
riais ao adotar como política econômica central prevalecentes na década de 1990 e
o combate à inflação pelo controle dos salários, sob a ditadura militar. conforme o tema
a chamada ‘política de arrocho salarial’”, conta Nos governos Lula e Dilma, cresceu
Santana, que atualmente coordena o projeto de muito o número de greves (segundo
em disputa
pesquisa Trabalho, trabalhadores e regime dita- o Dieese, foram 873 em 2012 ante as
torial: a experiência brasileira (1964-1985). “Os 312 de 2004) e os trabalhadores ob-
sindicatos passaram a lutar contra o arrocho sa- tiveram aumento real de salário (18%
larial, o que levou a uma tensão muito forte entre dos acordos e convenções tiveram aumento real
capital e trabalho, agora transplantada para den- em 2003, essa porcentagem foi num crescendo
tro do Estado.” Embora rapidamente reprimida até chegar a 96% no ano de 2012). “Por um lado,
nas greves de 1968, uma nova classe operária já se os sindicatos se tornaram atores reconhecidos
delineava no país, mais politizada e escolarizada, no jogo político, mas, devido a sua posição subal-
que resultou na emergência de novas lideranças terna na frente política neodesenvolvimentista,
sindicais nas metrópoles. O melhor exemplo é acabaram relegando para segundo plano algumas
Luiz Inácio Lula da Silva, que em pleno regime de suas bandeiras, como a jornada semanal de 40
militar era capaz de reunir de 50 mil a 60 mil horas e a regulamentação restritiva da terceiri-
trabalhadores em assembleias no ABC paulista. zação”, analisa Boito Jr.
A luta específica dos trabalhadores se politizou, O economista Edmar Bacha, sócio-fundador
buscando, inclusive, a forma partidária, porque do Instituto de Estudos de Política Econômica
perceberam que não bastava reivindicar salários, Casa das Garças, discorda de que Lula e Dilma

pESQUISA FAPESP 218 | 29


ano antes do golpe, duran-
te o governo de Jango. “O
déficit do setor público e o
endividamento eram preo-
cupantes. Sob Jânio uma
renegociação bem-suce­
dida da dívida externa fo-
ra conduzida pelos embai-
xadores Roberto Campos
e Walther Moreira Salles.
A crise política de l962-63
obrigou a nova tentativa
de renegociação, porém
fracassada”, diz Macari-
ni. Para atravessar o perío-
do de águas turbulentas,
que durou de 1964 a 1967,
o primeiro presidente mi-
litar, o marechal Castello
1 Branco, criou o Plano de
Ação Econômica do Go-
tenham instaurado um governo de viés desenvol- verno (Paeg). Com o objetivo de combate à in-
vimentista e observa que as comparações com o flação, o plano promoveu uma severa contenção
regime militar são muito desiguais. O governo de do crédito, aliada à deterioração do poder de
Geisel investia entre 5% e 7% do Produto Inter- compra dos salários e ao corte de gasto público
no Bruto (PIB), enquanto atualmente, excluído (incluindo o investimento).
o programa Minha Casa, Minha Vida, essa taxa O Paeg proposto pelos ministros Roberto Cam-
fica entre 1% e 2%. E em vez de industrialização pos e Otávio Gouveia de Bulhões conseguiu reali-
estaria havendo um retrocesso, afirma Bacha, zar as reformas tributária, monetária-financeira,
um dos pais do Plano Real e membro do conse- habitacional e do setor externo. São dessa época
lho consultivo internacional da Yale University. heranças que perduram até os dias de hoje, como
“Falta ao governo atual um entendimento sobre a criação do Banco Central, do Conselho Mone-
o que é a industrialização na época da globaliza- tário Nacional, das financeiras e do mercado de
ção. Uma coisa é um país pobre e agrário, num ações, do Sistema Financeiro da Habitação, do
período em que a economia mundial era desin- Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS),
tegrada, adotar uma política de substituição de além da transformação dos impostos em casca-
importação. Hoje não adianta fazer isso, porque ta em impostos sobre o valor adicionado (IPI e
se protege a indústria nacional elevando o custo ICM). “Mas essas reformas só vieram a ser senti-
da produção”, compara. das pela população a partir de 1968, quando a si-
tuação econômica mundial melhorou e havia uma

A
respeito da economia nos anos da ditadura, grande liquidez internacional”, acrescenta ele.
e a despeito das diferentes fases que ela De 1968 até o começo de 1974, o país viven-
experimentou no período, uma das ima- ciou o chamado “milagre econômico”, registran-
gens mais recorrentes nos debates é a do “milagre do taxas de crescimento acima de 10% ao ano e
brasileiro”. O economista José Pedro Macarini, inflação controlada abaixo dos 20%. O “Brasil
da Unicamp, procurou desmitificar esse tema. grande” mergulhou numa fase de construção
“O milagre não perseguiu a industrialização, mas de grandes obras, como a rodovia Transamazô-
apenas o crescimento. A única forma de legitimi- nica, a ponte Rio-Niterói, a hidrelétrica Itaipu
dade do governo junto à população era crescer a e a Ferrovia do Aço. “Mas foi a partir de Delfim
altas taxas”, explica. Mas o foco na industrializa- Netto que houve a ampliação dos grandes em-
ção ocorreria apenas no governo Geisel com o 2º préstimos de instituições financeiras do exte-
fotos  ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Programa Nacional de Desenvolvimento (PND). rior, que vai crescendo até desaguar na crise da
Antes do golpe de 1964, o Brasil atravessava dívida externa nos últimos anos dos governos
uma fase de desaceleração, evoluindo para uma militares”, observa Macarini.
crise econômica aberta. Se na década de Juscelino Antonio Delfim Netto, economista formado pela
Kubistchek o PIB crescia 7,5% ao ano, em 1963 USP, participou dos governos dos generais Costa
ele cresceu 1,6%. A inflação medida pelo Índice e Silva (1967-1969), Médici (1969-1973) e João Fi-
Geral de Preços, da Fundação Getulio Vargas, gueiredo (1979-1985). A dívida externa brasileira
rondava a casa dos 30% com JK e atingia 81% um era de US$ 3,5 bilhões entre 1963 e 1968, chegou a

30 | abril DE 2014
US$ 12,5 bilhões em 1974 e, por conta de novos em- O físico José Goldemberg, ex-reitor da USP, lem-
préstimos, dos juros e amortizações, alcançou US$ bra que os principais representantes da comuni-
100 bilhões em 1980. É importante lembrar que em dade científica, sobretudo a Sociedade Brasileira
1975 houve uma contração da economia mundial. de Física e a Sociedade Brasileira para o Progresso
O 2º PND, no governo Geisel, seria também uma da Ciência, se opuseram publicamente ao projeto
resposta ao primeiro choque do petróleo e tinha dos militares, uma vez que o acordo nuclear com
como finalidade estimular a produção de insu- a Alemanha previa a compra de um pacote fecha-
mos básicos, bens de capital, alimentos e energia. do e a própria ciência brasileira não teria acesso à
“A indústria de bens de produção se diversificou tecnologia nuclear. O acordo era benéfico para os
pouco, não livrou o país da grande dependência cofres alemães. Em 1967, o governo anuncia a com-
de importações de máquinas e equipamentos e pra da usina de Angra 1. Mas, em 1975, os cientistas
não houve transformação estrutural da economia foram surpreendidos com a intenção de Geisel de
durante o milagre”, critica Macarini. Embora rea- ampliar o acordo com a Alemanha, com a compra
lizado aquém de suas ambiciosas metas originais de oito grandes reatores nucleares. “Hoje se sabe
e num cronograma muito dilatado e acidentado, que essa oposição foi fundamental para evitar a
o 2º PND provocou transformações estruturais nuclearização do Brasil”, lembra Goldemberg. Dos
da economia que não deixaram de constituir uma oito reatores, só Angra 2 foi concluída, enquanto
herança positiva para o período iniciado em 1985. Angra 3 está prevista para 2018.
Sindicatos perseguidos, partidos cassados, re-

N
essa conta do endividamento externo en- crudescimento da violência, criminalização da
tra o polêmico acordo de cooperação que juventude, crescimento aliado ao aumento da de-
o Brasil assinou com a Alemanha para a sigualdade social, tudo isso fez parte da realidade
construção de Angra 1. O país europeu foi o único do regime militar. Como e por que boa parte da
que se dispôs a transferir a tecnologia da ultra- sociedade aceitou fazer parte desse jogo é uma
centrifugação do urânio, diz o pesquisador Luiz questão em aberto. Novas gerações de pesquisa-
Alberto Moniz Bandeira, autor de O “milagre dores, como a historiadora Janaina Cordeiro, da
1 Planos econômicos alemão” e o desenvolvimento no Brasil (Editora Universidade Federal Fluminense, têm procurado
da ditadura criaram Unesp, 2011) e O Governo João Goulart: as lu- desemaranhar esse novelo. Ela defendeu, em 2012,
condições para o
tas sociais no Brasil – 1961-1964 (Editora Unesp, uma tese sobre as comemorações do Sesquicente-
“milagre brasileiro”,
com incentivos para 2010). “A transferência foi feita clandestinamente, nário da Independência no ano de 1972. O trabalho
a indústria nacional, pelos técnicos e cientistas que vieram pela Alema- será publicado neste ano sob o título A ditadura em
a exemplo da nha, de acordo com o protocolo industrial, e não tempos de milagre: orgulho, comemorações e con-
automobilística
estavam sujeitos a salvaguardas.” O país europeu senso pela editora da FGV e com apoio da Faperj.
2 Ministro da aceitou transferir a tecnologia porque necessitava Nele, a autora afirma que os governos militares
Fazenda, Delfim de urânio enriquecido para produção de energia recorreram a estratégias para alcançar determina-
Netto (ao lado dos
elétrica, e não queria ficar na dependência dos dos graus de consenso social. Eles não inventaram
colegas Reis Velloso
e Pratini de Moraes) Estados Unidos. Professor titular aposentado a ideia de construção do novo, mas essa imagem
permitiu a empresas da Universidade de Brasília, Moniz Bandeira foi minuciosamente retomada e reelaborada por
nacionais tomarem reitera que os militares viam como fundamental eles. Citando a formulação do historiador Robert
empréstimos
o domínio da energia nuclear pelos brasileiros, Gellatelly, que estudou a conformação do pacto
internacionais, o que
colaborou para a inclusive para se afirmar em uma posição de po- social sob a Alemanha nazista, Janaina afirma que
expansão da tência mundial. mecanismos de coerção e consentimento ajudaram
dívida externa a obter o apoio dos brasileiros. “A ditadura soube
estabelecer diálogos com importantes tradições
nacionais, ativar sentimentos patrióticos e ufanistas
que são componentes importantes de determinado
imaginário coletivo nacional”, conclui. n

Projetos
1. Núcleo de Estudos da Violência - NEV/USP (nº 13/07923-7); Mo-
dalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisa-
dor responsável Paulo Sergio de Moraes Sarmento Pinheiro (USP);
Investimento R$ 10.712.071,92 (FAPESP).

2. Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e


capacidade governativa (nº 2011/08536-1); Modalidade Auxílio Pesqui-
sa - Projeto Temático; Pesquisador responsável Fernando de Magalhães
Papaterra Limongi (USP); Investimento R$ 516.178,52 (FAPESP).

3. Centro de Estudos da Metrópole - CEM (nº 2013/07616-7); Modalida-


de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora res-
2 ponsável Marta Arretche (USP); Investimento R$ 7.110.948,20 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 218 | 31


O impacto na
academia
Três centenas de professores foram afastados das
universidades brasileiras pela ditadura, período marcado
pela estruturação da pós-graduação

Marcos Pivetta

N
o início de 1964, o jovem médico Tho- rias e na União Nacional dos Estudantes (Une)
mas Maack, auxiliar de ensino no De- era exercida basicamente fora da universidade.
partamento de Fisiologia da Faculdade “Achei que iria ficar uns poucos dias preso e seria
de Medicina da Universidade de São solto. Mas, como me recusei a dar nomes, me
Paulo (FMUSP), tinha que cumprir uma tarefa mantiveram preso por mais tempo”, relembra
cotidiana tão prosaica quanto necessária antes Maack, que foi demitido da USP, ao lado de seis
de iniciar o expediente na instituição médica colegas da Faculdade de Medicina, por meio de
situada na avenida Doutor Arnaldo, zona oeste um decreto assinado em 10 de outubro de 1964
da capital paulista. Tomava o bonde na esquina pelo então governador paulista Adhemar de Bar-
das ruas da Consolação e Maria Antônia levando ros. Em cumprimento a um habeas corpus obtido
nos braços o material de trabalho e um cesto por seu advogado, o médico foi libertado em 15
vermelho no qual transportava a filha de menos de dezembro de 1964, pouco depois de ter sido
de 1 ano de idade, Marisa, à creche do Hospi- transferido do navio para uma prisão comum de
tal das Clínicas, parada obrigatória antes de ir Santos. No dia seguinte à sua soltura, os militares,
para a faculdade. Em 8 de junho daquele ano, informados do descuido jurídico-administrativo,
pouco mais de dois meses após o golpe militar, tentaram prendê-lo de novo. Era tarde. Maack, a
o médico de 28 anos foi preso em seu laborató- mulher e a filha já tinham iniciado seu roteiro de
rio, acusado de atividades subversivas dentro fuga, que incluiria passagens por Curitiba e pelo
da universidade. Entre as “provas” de atuação Paraguai e terminaria nos Estados Unidos. Em
esquerdista figurava a cor do cesto usado para 2010, Cornell lhe conferiu o título de professor
carregar a filha. O encarceramento de Maack – emérito de fisiologia e biofísica, depois de mais
que nasceu na Alemanha, veio com 1 ano de idade de 40 anos dedicados à instituição.
para o Brasil e fez brilhante carreira acadêmica A saída forçada de Maack da USP é um dos
na escola médica da Universidade Cornell, em cerca de 300 casos estimados de docentes do
Nova York – duraria mais de seis meses, um dos ensino superior que foram aposentados compul-
mais longos entre os professores universitários soriamente ou exonerados de suas funções nos
perseguidos pelo regime militar. Por cinco meses, dois grandes expurgos promovidos pela ditadura
ao lado de estivadores e outros trabalhadores, o nas universidades brasileiras. A contabilidade dos
médico esteve preso no navio Raul Soares, antiga expurgos ainda é inconclusiva devido à escassez
embarcação de passageiros que fora transformada de documentos e trabalhos sobre o tema. A his-
em cárcere flutuante e se encontrava ancorada a tória do então médico da FMUSP não é a mais
curta distância do porto de Santos. branda nem a mais dramática de perseguição a
Boa parte desse tempo foi mantido incomu- professores universitários. É, sim, ilustrativa do
nicável. Maack diz não ter sofrido tortura física, modus operandi da ditadura, já em seus primeiros
embora a pressão psicológica feita pelos agentes dias, para perseguir professores universitários.
da ditadura para delatar colegas da universidade Em seus 21 anos de duração, o regime autoritário
fosse uma companheira frequente. Ele era, de fa- prendeu, torturou e matou intelectuais e mem-
to, militante de esquerda, mas sua atividade polí- bros da academia. Até hoje sem explicação, o
tica em sindicatos, organizações político-partidá- desaparecimento em 1974 de Ana Rosa Kucinski,

32 | abril DE 2014
Invasão da UnB em
1968 pelo Exército: docente do Instituto de Química da USP, então Schenberg, a mim, vários outros, houve muito
universidade da
capital federal foi uma
com 32 anos, e de seu marido, o físico Wilson protesto, cartas mandadas por físicos franceses,
das mais perseguidas Silva, figura entre os episódios mais trágicos – e americanos, o Yang mandou uma carta para Cos-
durante a ditadura ainda sem fim – produzidos pelo regime autori- ta e Silva [o presidente militar Arthur da Costa e
tário em seus momentos de maior violência. Vale Silva], mas a chamada revolução foi implacável.
lembrar que entre as funções desempenhadas Depois, o ministro Velloso [João Paulo dos Reis
pelo jornalista Vladimir Herzog, morto nas de- Velloso, ministro do Planejamento] achou que
pendências do II Exército em São Paulo em 1975, era tudo uma besteira e trouxe gente como Sér-
estavam as aulas que dava na Escola de Comu- gio Porto, o Rogério Cerqueira Leite, que voltou
nicações e Artes (ECA) da USP e na Fundação dos Estados Unidos para a Unicamp, fundada
Armando Álvares Penteado (FAAP). por Zeferino Vaz em 1970. Então, mesmo na di-
tadura, muita gente estava trabalhando, o grupo

E
m extensas entrevistas concedidas nos úl- de Campinas, o pessoal de Recife, que começou a
timos 14 anos a Pesquisa FAPESP, pesqui- se desenvolver. Se houve um atraso real foi mais
sadores de renome contaram passagens de na formação de gente”, disse, na entrevista, Leite
sua vida em que sofreram ataques ou perderam o Lopes, que morreria em 2006.
emprego na universidade por causa da ditadura. Um dos mais ativos pesquisadores brasileiros
Em um depoimento dado ao número 59 da revis- da área de bioquímica nas últimas décadas, o mé-
ta, de novembro do ano 2000, o físico José Leite dico Isaias Raw era, como Thomas Maack, docen-
Lopes – que se demitiu do cargo de diretor cien- te da FMUSP quando foi preso em 1964, acusado
tífico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas de atuação subversiva. Em entrevista à Pesqui-
(CBPF) em 1964 por causa do golpe de Estado, foi sa FAPESP de julho 2005 (edição 113), lembrou
arquivo cedoc-unb

para a França, retornou ao Brasil três anos mais do impacto psicológico de seu encarceramento,
tarde e foi cassado pelo AI-5 em 1969 – faz um que durou 13 dias, sobre a família. “Como é que
balanço dos efeitos da atuação do regime militar você explica para os seus filhos pequenos que a
em seu campo de trabalho: “Bem, eles tiraram o polícia está errada e você certo? Não existe isso.

pESQUISA FAPESP 218 | 33


decreto 477, que permitia expulsar alunos, fun-
cionários e professores universitários de forma
sumária, sem direito a praticamente nenhuma
defesa. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas da USP foi severamente atingida
por esse segundo expurgo e nomes como Fer-
nado Henrique Cardoso, Bento Prado Jr., José
Arthur Giannotti, Florestan Fernandes e Octa-
vio Ianni foram compulsoriamente aposentados.
“Por serem vistas como centros irradiadores de
esquerdismo no país, as universidades foram um
dos primeiros alvos dos militares, ao lado dos
sindicatos e organizações de trabalhadores ru-
rais”, diz o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
autor de um estudo de seis anos sobre o tema que
redundou no livro recém-lançado As universida-
des e o regime militar (Jorge Zahar Editor). Motta
estima em mais de mil o número de alunos que
foram expulsos das universidades entre 1969
1 e 1979. A exclusão de 250 estudantes em 1969
1 Navio Raul Soares: da Universidade de Brasília (UnB), várias vezes
médico Thomas Não tem explicação”, afirmou, na ocasião, Raw. invadida pelos militares durante a ditadura, é o
Maack ficou cinco
meses preso na
O pesquisador continuaria sua carreira no Brasil episódio mais conhecido dessa faceta do regime.
embarcação perto até 1969, quando foi cassado e então partiu para

A
da costa de Santos uma longa temporada no exterior (trabalhou em partir de 1970, foram constituídas cerca de
2 Físico Roberto
Israel e nos Estados Unidos) antes de regressar 35 Assessorias Especiais de Segurança e
Salmeron, na década em definitivo ao país em 1980. Informações (Aesis ou ASIs) nas principais
de 1960: carreira na Em certos casos, a repressão da ditadura nas universidades do país, com funcionários encarre-
França a partir de universidades fez com que pesquisadores de gados de vigiar e abastecer o Serviço Nacional de
1968
ponta que passavam uma temporada no exte- Informações (SNI) com relatos sobre o que ocorria
3 Casal de rior adiassem, às vezes para sempre, o retorno no ambiente acadêmico. Espiões do regime militar,
pesquisadores Ruth e ao Brasil. O casal de médicos Ruth e Victor Nus- que se passavam por estudantes, frequentavam as
Victor Nussenzweig:
volta ao Brasil
senzweig, cujos trabalhos em prol de uma vacina universidades e, em alguns casos, foram até des-
cancelada por causa contra a malária são referência até hoje, se viu mascarados. Em junho de 1976, durante uma reu-
do golpe obrigado a fazer essa opção em abril de 1964. nião no auditório da Geografia da USP, os alunos
Eles já estavam na Escola de Medicina da Uni- flagraram um desconhecido que se preparava para
versidade de Nova York (NYU), onde permane- gravar, na surdina, o encontro. Houve confusão e
cem até hoje (ele com 86 anos e ela com 85), mas o desconhecido sumiu da universidade e não foi
alguns dias depois do golpe visitavam a FMUSP, mais visto. Segundo Motta, a estrutura de espiona-
onde ambos se formaram e eram professores, gem militar nas instituições superiores de ensino,
prospectando uma possível volta. “Então percebi que passou a ser denunciada em meados dos anos
que esse coronel estava realmente mandando na 1970 nas reuniões da Sociedade Brasileira para o
faculdade. Se mandava na faculdade, mandava Progresso da Ciência (SBPC), foi extinta oficial-
em mim. Percebi que eu não tinha poder algum.
O coronel não ligava se eu era professor ou não.
Percebi que não poderia mais ficar no Brasil. A
Ruth e eu voltamos para os Estados Unidos”,
Victor contou à revista em uma entrevista con-
cedida em dezembro de 2004 (ver edição 106),
relembrando um encontro com um militar ins-
talado na FMUSP.

Dois grandes expurgos


De forma esquemática, os estudiosos do período
apontam dois momentos em que ocorreram gran-
des expurgos de professores nas universidades. O
primeiro se deu em 1964, nos meses seguintes ao
golpe, e o segundo em 1969, depois do AI-5 e do 2

34 | abril DE 2014
mente em 1979. No entanto, al- anos que estiveram à frente do poder, embora o
gumas universidades, como as estímulo ao aumento das vagas em instituições
federais do Maranhão, Paraíba, privadas de ensino tenha sido ainda maior.
Sergipe, Amazonas, Santa Cata- Movimento semelhante ocorreu na pós-gra-
rina, Espírito Santo, Santa Ma- duação. Em 1961 havia apenas 6 cursos nessa área.
ria e Fluminense e a estadual de Em 10 anos, de 1964 a 1974, o número subiu de
Londrina, demoraram anos para 23 para 403. Em 1984, último ano da ditadura, a
desmontar o aparato de espio- pós brasileira contabilizava 792 cursos de mes-
nagem, e o historiador levantou trado e 333 de doutorado. Entre 1964 e 1976, o
evidências de que algumas ASIs número de bolsas de pós-graduação concedidas
ainda funcionavam na primeira pelas agências federais (Capes e CNPq) pulou de
metade da década de 1980. cerca de mil para 10 mil, segundo o trabalho de
No livro, provavelmente o Motta. Ainda como estímulo à pesquisa científi-
mais abrangente sobre a ques- ca e tecnológica, os governos militares criaram a
tão, Motta traça um panorama Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) em
das perseguições, da vigilância 1967, a Embraer em 1969 e a Empresa Brasileira
e da repressão nas universida- de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1973.
des do país e discute as reformas “Pela primeira vez no Brasil, o desenvolvimento
3 no ensino superior promovidas científico e tecnológico foi colocado como prio-
pelo regime autoritário, como ridade de governo”, disse, sobre a criação da Fi-
a extinção da cátedra entre os professores uni- nep, o economista João Paulo dos Reis Velloso,
versitários, o estímulo à pós-graduação, o acordo em entrevista publicada por Pesquisa FAPESP
do Ministério da Educação (MEC) com a Usaid em julho de 2008 (ver edição 149). Reis Velloso
(a Agência dos Estados Unidos para o Desenvol- foi ministro do Planejamento de 1969 a 1979, em
vimento Internacional), as alterações feitas no dois governos do período da ditadura militar, os
sistema de vestibular e o antigo projeto Rondon. dos generais Médici e Geisel.
Essa última iniciativa levou, entre 1967 e 1989, “Os militares promoveram uma norte-america-
centenas de milhares de universitários a desen- nização do ensino e da pesquisa no Brasil, que era
volver atividades de extensão no interior do Bra- o modelo que ganhava espaço inclusive na Euro-
sil, em especial na Amazônia, e foi criticada pelos pa”, diz Luiz Antônio Cunha, professor titular da
opositores do regime militar como uma forma de Faculdade de Educação da Universidade Federal
cooptação ideológica da juventude. O historiador do Rio de Janeiro (UFRJ), autor de obras que ana-
fez pesquisas em 22 bibliotecas e arquivos do Bra- lisaram os efeitos da ditadura no ensino superior,
sil e do exterior, como os da própria Usaid e da como A universidade reformanda: o golpe de 1964
National Archives and Records Administration e a modernização do ensino superior, título publi-
II, além de vasculhar a literatura sobre o tema e cado em 2007 pela Editora Unesp. “Mas é ruim
realizar entrevistas com mais de 50 professores pensar que tudo de bom ou de ruim se iniciou
universitários afastados em algum momento de com a ditadura militar. Desde o final da Segunda
seu trabalho pela ditadura. “Aqui não vai nenhum Guerra Mundial, o Brasil já tinha começado um
elogio à ditadura”, diz Motta. “Mas ela se apro- esforço para melhorar seu ensino superior e a pes-
priou de alguns pontos da reforma universitária, quisa, e havia enclaves de modernidade antes do
uma demanda que já existia antes de 1964, e os golpe: primeiro foi fundado em 1950 o Instituto
implementou de forma autoritária.” Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José
fotos 1 ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE /  2 Arquivo pessoal  3 léo ramos

dos Campos, depois a Faculdade de Medicina da

O
historiador da UFMG compilou números USP em Ribeirão Preto em 1952 e a UnB em 1962.
que mostram o investimento dos mili- Nessas instituições, a obrigatoriedade das cáte-
tares nas universidades e no sistema de dras foi contornada pela novidade do regime de-
pós-graduação do país. “Eles precisavam formar partamental, o ensino era estreitamente ligado à
quadros técnicos para tocar seu projeto de de- pesquisa, os professores dedicavam-se ao trabalho
senvolvimento para o Brasil”, afirma Motta. Em acadêmico em tempo integral e a pós-graduação
1960 havia 93 mil alunos nas universidades do stricto sensu deu seus primeiros passos.”
país, pouco mais da metade em instituições pú- A percepção sobre os impactos mais gerais e
blicas. Em 1964, ano do golpe, esse número era a longo prazo das medidas implementadas pe-
de 142 mil estudantes. Em 1984, nos estertores da la ditadura nas universidades e no sistema de
ditadura, chegou à casa de 1,4 milhão de univer- pesquisa nacional nem sempre é nítida entre
sitários, dos quais 570 mil provenientes de insti- os professores que foram alvo de perseguições.
tuições públicas e 830 mil de estabelecimentos “Para mim, é impossível avaliar os efeitos”, diz
particulares. Os governos militares criaram 12 Michel Rabinovitch, hoje com 88 anos, docente
novas universidades federais nos 15 primeiros da FMUSP em 1964, que teve de deixar o país

pESQUISA FAPESP 218 | 35


arquivo pessoal
Registro de 2008
de ex-professores da
FMUSP aposentados
ou demitidos durante
a ditadura: Michel
Rabinovitch, Erney
Plessmann de
Camargo, Isaias Raw
e Luiz Rey (à frente,
da esq. para dir.); Pedro
ameaçado pela ditadura. “Talvez o impacto te- outros, foram demitidos ou se afastaram por con-
Henrique Saldanha
nha sido pontual, menor do que no caso das uni- ta própria”, diz Mansan, que continua estudando
(de óculos) e Thomas
Maack (ao fundo)
versidades argentinas.” O parasitologista Erney o tema ditadura e universidades no doutorado.
Plessmann de Camargo, um dos sete professores A partir de 2012, com a criação da Comissão
da FMUSP afastados ao lado de Thomas Maack, Nacional da Verdade, várias universidades do
destaca que uma das sequelas do golpe foi de or- país, como a UFRJ, a UnB, a Unicamp, a Unesp e a
dem psicológica. “Houve uma desmoralização do Universidade Federal da Bahia (Ufba), instituíram
espírito da universidade, uma baixa no orgulho e comissões da verdade para apurar o que ocorreu
nas liberdades”, afirma Camargo. “E cresceram em seus campi e com seus professores,
as delações e traições no meio.” Por outro lado, funcionários e alunos durante os anos
houve também gestos de solidariedade extrema, da ditadura. A USP, maior universidade
como a demissão espontânea em 1965 de 223 pro- do país, criou a sua comissão no ano
fessores da Universidade de Brasília (UnB), quase passado. Estima-se que 47 pessoas li- Regime militar
80% dos docentes da nascente universidade, em gadas à universidade (professores, fun-
razão de a ditadura ter perseguido e demitido 15 cionários, alunos e ex-alunos) foram instalou centrais
professores. O livro A universidade interrompida: mortos ou desapareceram durante a
Brasília 1964-1965, do fisico Roberto Salmeron, ditadura, o que equivaleria a mais de
de espionagem
outro perseguido pela ditadura que fez brilhante 10% de todas as pessoas assassinadas em 35
carreira no Centro Europeu de Pesquisas Nuclea- em razão de perseguições pelo regi-
res (Cern) e na Escola Politécnica de Paris, narra me militar. “Nossa prioridade inicial universidades
a saga da UnB naqueles tempos de repressão (ver é compreender o aparato institucional
também entrevista por ele concedida à Pesquisa instalado na universidade pela ditadu- brasileiras para
FAPESP edição 100, em junho de 2004, a respeito ra para vigiá-la”, afirma a historiadora
de sua trajetória profissional e demissão da UnB). Janice Theodoro da Silva, professora
vigiar os passos
aposentada da USP que, no momento, de professores
Fora do eixo Rio-SP-Brasília está à frente dos trabalhos da comis-
Há poucos trabalhos centrados no que ocorreu são. “Parece que havia 10 pessoas nesse e alunos
em universidades de fora do eixo Rio-SP-Brasília. setor, mas dizem que os registros dos
Um desses raros estudos é a dissertação de mes- informantes foram queimados.” Em
trado do historiador Jaime Valim Mansan, defen- princípio, a data prevista para a co-
dida na Pontifícia Universidade Católica do Rio missão, que ainda não conta com pesquisadores
Grande do Sul (PUC-RS) em 2009, Os expurgos dedicados aos seus trabalhos, encerrar seu fun-
na UFRGS: afastamentos sumários de professores cionamento é maio deste ano. Mas a prorrogação
no contexto da ditadura civil-militar (1964 e 1969). de seu funcionamento deverá ser pedida. Inicia-
No estudo, Mansan contabiliza 41 professores e 5 tivas como essa e a abertura de novos arquivos
estudantes que foram afastados por perseguição sobre o período são um estímulo para que mais
ideológica da universidade. “Em alguns casos, estudiosos se debrucem sobre as relações entre
eles foram aposentados compulsoriamente. Em a ditadura e as universidades. n

36 | abril DE 2014
A arte
de ser do
contra
posteriores ao golpe — que bebera na fonte das
Apesar da censura, houve forte presença relações entre os artistas e o PCB e os Centros
Populares de Cultura (CPC) da União Nacio-
de uma cultura de esquerda e de oposição nal dos Estudantes (UNE) — é o sentimento de
“brasilidade revolucionária” (ver edição 206 de
durante a ditadura Pesquisa FAPESP). Esse, aliás, é o título de um
livro seu, lançado em 2010, em que explora um
Marcos Pivetta certo romantismo de artistas comunistas, como
o escritor Jorge Amado, o cineasta Nelson Perei-
ra dos Santos ou o dramaturgo Dias Gomes, que
produzem obras alimentadas por um sentimento

E
m um artigo clássico, escrito original- de construção de um novo país.
mente na França em 1970 e traduzido Talvez o estudo de maior fôlego de Ridenti seja
para o português oito anos mais tarde, o o livro Em busca do povo brasileiro – Artistas da
crítico literário Roberto Schwarz afirma revolução, do CPC à era da TV (Editora Unesp),
que, “apesar da ditadura da direita, há relativa originalmente editado no ano 2000, mas que
hegemonia cultural de esquerda no país” entre foi revisto, ampliado e relançado neste ano por
1964 e 1969. Dos anos 1970 até o fim da ditadura ocasião dos 50 anos do golpe. Como sugere seu
em 1985, quando o regime reprimiu, censurou e título, a obra não se fixa na trajetória de um gru-
se fechou ainda mais antes de começar sua lenta po de artistas ou de um setor cultural (cinema,
e gradual abertura, o tom da produção artística teatro, música, literatura ou TV), mas, sim, no
nacional, em linhas gerais, continuou exprimin- quadro mais geral do setor. O sociólogo pensou
do esse aparente paradoxo. Os estudos sobre a em reescrever inteiramente o livro, mas acabou
produção cultural nos anos da ditadura versam, optando por fazer revisões tópicas, atualizar as
em sua maioria, sobre movimentos e artistas que, referências bibliográficas e acrescentar um pos-
de forma mais ou menos explícita, seja em pro- fácio. As atualizações fazem um mapeamento de
duções mais alternativas ou dentro da chamada
lógica do mercado, contestaram o regime. Esse
tema se tornou um campo fértil de pesquisas
nas duas últimas décadas. “Minha geração se
interessa pela política por meio do contato com
obras culturais que falam da ditadura”, afirma
Marcelo Ridenti, 55 anos, professor do Depar-
tamento de Sociologia do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas (IFCH-Unicamp).
Ridenti é um dos autores que mais pesquisa-
ram as relações da produção cultural e da política
durante o regime militar. Seus trabalhos cobrem
desde os anos 1950, período anterior ao golpe em
que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) era
um ator importante no impulso às artes (enga-
jadas), passam pela efervescência dos anos 1960
e a repressão mais barra pesada dos 1970 e se
estendem até meados da década de 1980, com o
Paulo Autran e processo de redemocratização do país. Uma das
Tereza Raquel na
expressões usadas por Ridenti para descrever a
divulgação

peça Liberdade,
liberdade: alvo relação entre a política e a esfera cultural do pós-
da censura -Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos

pESQUISA FAPESP 218 | 37


1 Filme Zuzu Angel,
de 2006: produção
cinematográfica
sobre o regime
militar

2 Artistas de teatro
em greve contra a
censura em 1968, na
passeata dos 100 Mil
na Guanabara

boa parte da produção acadêmica que pesquisou a montagens teatrais que foram em algum mo-
algum aspecto da produção cultural na ditadu- mento proibidas de serem encenadas. O estudo
ra militar. “Houve muitas novidades em termos resultou em sua tese de doutorado defendida em
de estudos depois dos anos 2000”, diz Ridenti. 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e

U
ma das contribuições mais importantes são censura na ditadura militar (1964-1985). “As peças
os trabalhos do historiador Marcos Napo- que a censura analisava iam desde montagens
litano, professor da Faculdade de Filosofia, amadoras até produções de grupos profissionais,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de e as proibições podiam ser por questões ideoló-
São Paulo (FFLCH-USP), que tem esmiuçado gicas ou simplesmente porque o censor achava
com especial destaque os caminhos da música que a montagem ia contra a moral e os bons cos-
popular brasileira, e em menor escala da produ- tumes”, diz Miliandre.
ção audiovisual, durante o regime autoritário. Em Dependendo da época (depois do AI-5, em de-
2011, ele defendeu sua tese de livre-docência, na zembro de 1968, a censura política se acentua),
qual tratou dos dilemas e da contradições das po- das “instruções superiores” e, às vezes, até do
líticas culturais originadas ou desenvolvidas em humor do censor de plantão, a mesma peça podia
oposição à ditadura entre 1964 e 1968 por quatro ser proibida numa ocasião e liberada em outra.
correntes distintas: comunistas, católicos, liberais E não eram vetadas apenas as peças de autores
e movimentos contraculturais (como o tropica- considerados como de oposição, como Liberda-
lismo). Todos eram contrários à ditadura, mas de, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Ran-
cada segmento tinha particularidades e visões gel, ou “pornográficos”, caso de Toda nudez será
diferentes do que deveria ser a arte. “A própria castigada, de Nelson Rodrigues. Um texto como
ideia de oposição alimentava a produção cultural Golias em circuito fechado, de autoria de Marcos
do período, bastante rica”, diz Napolitano. “Mas, César, Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli e
enquanto a produção da esquerda católica expri- protagonizado pelo comediante Ronald Golias,
mia uma cultura basista, amadora e comunitária, nem de longe um crítico do regime, podia (e foi)
a da contracultura era, por exemplo, sectária, interditado em certos momentos pela censura,
experimental e transgressora.” que associava a suposta “degradação moral” da
Uma quantidade significativa de trabalhos mais montagem a “planos de subversão”.
específicos, que enfocam basicamente a produção O historiador Flamarion Maués, que hoje faz
de um setor artístico durante a ditadura, tem sido pós-doutorado com bolsa da FAPESP na Escola
produzida por uma nova geração de pesquisado- de Comunicações e Artes (Eca) da USP, trabalha
res da área de humanidades. Miliandre Garcia, com as relações do mundo editorial e a ditadura.
38 anos, hoje professora de história da Univer- No mestrado e doutorado, ambos defendidos no
sidade Estadual de Londrina (UEL), analisou o Departamento de História da FFLCH ao longo
funcionamento da censura teatral, cujos docu- da última década, estudou o papel de editoras
mentos estão armazenados no Arquivo Nacional, “políticas” ou de oposição, respectivamente, no
em Brasília. O material inclui informações sobre Brasil e em Portugal. No Brasil, analisou editoras
cerca de 22 mil peças e 702 processos de censura como a Brasiliense e a Marco Zero, que atuaram

38 | abril DE 2014
2

durante o período de abertura política no país. duação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs)


Seu trabalho de mestrado virou recentemente o – deteve-se na análise pormenorizada de cinco
título Livros contra a ditadura: editoras de oposi- produções: Nunca fomos tão felizes, de Murilo
ção no Brasil, 1974-1984 (Publisher Brasil, 2013). Salles, de 1984; Corpo em delito, de Nuno Cesar
Agora, no pós-doutorado, continua no tema e Abreu, de 1990; Ação entre amigos, de Beto Brant,
realiza um estudo comparativo entre a atuação de 1998; A terceira morte de Joaquim Bolívar,
de editoras políticas no Brasil e em Portugal em de Flávio Cândido, de 2000; e Zuzu Angel, de
momentos de transição de regime. O contexto Sérgio Rezende, de 2006. “A partir da abertura,
brasileiro é o mesmo de seus estudos anteriores, notadamente após a Lei da Anistia de 1979, o ci-
a abertura política iniciada na última fase dos nema pôde falar de maneira mais direta sobre a
governos militares. Em Portugal, o momento de ditadura militar que estava se esvaindo, afirma
passagem escolhido é o da Revolução dos Cravos Caroline. “O processo é ainda um tanto ‘caute-
(1974-1975), movimento de caráter democrático, loso’. Os filmes evitam, por exemplo, creditar a
anticolonial e socialista, liderado por oficiais de tortura abertamente aos militares, mas situam
média patente, que pôs fim a décadas de ditadura explicitamente suas tramas no período do regi-
fotos 1 divulgação / globo filmes  2 GONçaLVES / CPDoc JB / Folhapress

de Salazar e de seus sucessores. “Identifiquei 140 me militar e expõem a opressão desse contexto
editoras políticas em Portugal, um número muito histórico específico.”
alto para um país tão pequeno”, diz Maués. No

N
Brasil, ele havia mapeado apenas 45 editoras de o mestrado, Caroline evitou trabalhar com
perfil semelhante. a produção cinematográfica do Cinema
Um conjunto de 74 filmes lançados entre 1979 Novo de Glauber Rocha ou de Nelson Pe-
e 2009 que retrataram a ditadura foi alvo de uma reira do Santos e do Cinema Marginal de Rogério
dissertação de mestrado apresentada em 2011 Sganzerla ou Julio Bressane. As fitas desses dois
pela socióloga Caroline Gomes Leme no IFCH- movimentos foram feitas entre os anos 1960 e 1970
-Unicamp. Além de comentar todos esses filmes, e a socióloga as considera como filmes rodados
o trabalho – que virou no ano passado o livro Di- sob a ditadura, que sentiam mais diretamente os
tadura em imagem e som: trinta anos de produções impactos do golpe e da censura e, por vezes, re-
cinematográficas sobre o regime militar brasileiro corriam a alegorias ou outros recursos estéticos
(Editora Unesp) e foi eleito o melhor mestrado para se referir ao regime autoritário. Já as pro-
de 2012 pela Associação Nacional de Pós-Gra- duções dos anos 1980 começavam a usufruir de

pESQUISA FAPESP 218 | 39


alguma liberdade para tratar do golpe e dos go- cutem como se deu essa hegemonia cultural
vernos militares. No doutorado, a socióloga está de esquerda na história recente do país. Uma
estudando o cinema paulista dos anos 1960 e 1970. corrente significativa de estudiosos advoga a
Trabalhando no campo das artes plásticas, o his- ideia de que esse domínio se deu, em grande
toriador Artur Freitas, professor da Universidade medida, via mercado, embora o regime militar
Estadual do Paraná (Unespar), lançou em 2013 o tenha adotado algumas iniciativas na área cul-
livro Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo tural, como a criação da Embrafilme em 1969,
no Brasil (Edusp). No estudo, que expande uma que tinham o objetivo de trazer para seu campo
pesquisa feita para seu doutorado defendido na de influência a produção de alguns setores. O
década passada, Freitas analisa em detalhes seis apoio ao estabelecimento de uma rede nacio-
obras ou intervenções de três artistas plásticos nal privada de televisão, no caso a Rede Globo,
(Cildo Meireles, Artur Barrio e Antonio Manuel) também em 1969, fez parte de um projeto dos
durante o regime militar. “Essa arte de vanguarda militares de integrar o país e também influir no
mostra-se crítica à ditadura, mas é mais concei- campo da cultura. “O regime militar investiu
tual: baseia-se em objetos e performances e esti- muito em infraestrutura para televisão”, afirma
mula o espectador a participar da obra”, afirma Esther Hamburger, da ECA-USP, que pesquisa
Freitas. Uma das performances estudadas é a obra a produção televisiva e de cinema no país. “Mas
Tiradentes: totem-monumento ao preso político, nos anos 1970 e 1980 a programação de TV nem

Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970 © Coleção do artista e coleção Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Porto in Cildo Meireles (Cosac Naify, 2014)
exposta em abril de 1970 durante a Semana da sempre era o que os militares queriam.” Estudos
Inconfidência, em Belo Horizonte, na qual Cildo recentes de Esther destacam o papel das teleno-
Meireles queima 10 galinhas vivas amarradas a velas em criar uma representação mais próxima
uma estaca, em um alusão mais do que direta às da realidade nacional ainda em plena ditadura
práticas repressivas da ditadura. (ver Pesquisa FAPESP edição 186).
Ser de oposição à ditadura também era uma

C
omo o artista plástico pôde publicamente postura que encontrava reconhecimento entre
questionar, já num período posterior ao uma parcela considerável dos consumidores de
AI-5, o regime autoritário sem ter sido cen- uma cultura de esquerda. “Alguns escritores, como
surado? “As artes plásticas tinham uma inserção Carlos Heitor Cony, não eram de esquerda, mas
social mais reduzida que as artes de espetáculo e acabaram escrevendo obras associadas à luta con-
os censores se preocupavam mais com a produção tra a ditadura e foram reconhecidos como tal pelo
musical, teatral e cinematográfica, que atingiam mercado”, diz Rodrigo Czajka, sociólogo da Unesp
um público mais amplo”, diz Freitas. O historiador de Marília, que realizou estudos sobre intelectuais
destaca um ponto interessante que ocorreu com e a imprensa comunista no Brasil. “Esse foi o caso
Meireles e outros artistas de vanguarda, como Hé- do romance Pessach, de Cony, que descreve a crise
lio Oiticica e Lygia Clark: com o passar do tempo, existencial de um intelectual em aderir ou não à
ainda durante a ditadura, mas sobretudo após o luta armada.” O pesquisador também tem analisado
seu final, esses artistas alternativos se tornaram os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) em que foi
Inserções em circuitos os principais expoentes de seu setor no país e suas investigada a ação de inúmeros intelectuais ligados
ideológicos: projeto obras foram muito valorizadas. à resistência contra o regime militar. Czajka, aliás,
Coca-Cola, obra de
Essa questão se insere em um dos debates é o organizador do colóquio “A cultura e as artes
1970 de Cildo
Meireles: protesto nas ainda atuais entre os pesquisadores, que dis- no regime militar: 50 anos do golpe” entre 22 e 25
artes plásticas deste mês na Unesp de Marília, em que
a produção cultural nos anos da dita-
dura será debatida por duas dezenas
de estudiosos. n

Projetos
1. Formação do intelectual e da indústria cultural no
Brasil (nº 08/55377-3); Modalidade Projeto Temático;
Pesquisador responsável Sérgio Miceli – Unicamp;
Investimento R$ 534.463,00 (FAPESP).
2. Cinema e sociedade: sobre a ditadura militar no Bra-
sil (nº 09/04093-8); Modalidade Bolsa de Mestrado;
Pesquisador responsável Marcelo Ridenti - (IFCH-
-Unicamp); Bolsista Caroline Gomes Leme; Investi-
mento R$ 18.385,94 (FAPESP).
3. A edição política no Brasil e em Portugal: ação
editorial e engajamento político no combate às dita-
duras (nº 2013/08668-0); Modalidade Bolsa de Pós-
-doutorado; Pesquisador responsável Sandra Reimão
– Eca-USP; Bolsista Flamarion Maués; Investimento
R$ 163.082,88 (FAPESP).

40 | abril DE 2014
O passado no
presente Pesquisadores buscam compreender como o Estado vem
lidando com o legado de graves violações de direitos humanos

Glenda Mezarobba

Montagem com

N
ão foi apenas o conhecimento acerca do transição seja tão antiga quanto a própria de- rostos de mortos e
desaparecidos
golpe de Estado e da própria ditadura mocracia1, na modernidade suas origens estão
militar que avançou nos últimos anos. conectadas às duas grandes guerras mundiais e
Mais recentemente, pesquisadores bra- seu desenvolvimento associado aos julgamentos
sileiros passaram a se dedicar também à com- de remanescentes das juntas militares na Grécia,
preensão de como o Estado, por intermédio dos em 1975, e na Argentina, em 19832. A instalação
sucessivos governos, vem lidando com o legado de do Tribunal Penal Internacional e o fato de as
graves violações de direitos humanos do período. Nações Unidas terem criado, em 2012, uma re-
Até meados dos anos 1980, o tema praticamente latoria especial sobre a promoção da verdade,
não constituía objeto de estudo para cientistas justiça, reparação e garantias de não repetição
sociais, tampouco para as humanidades de modo também são considerados marcos importantes.
geral, inclusive fora do país. Foi somente a partir Não se trata de uma forma distinta de justiça; a
de 1995, com o lançamento dos três volumes da noção diz respeito a uma forma ampla de justi-
obra Transitional justice: how emerging democra- ça durante determinada transição política – por
cies reckon with former regimes, editada por Neil exemplo, de uma ditadura militar para a demo-
Kritz e publicada pelo United States Institute cracia – e envolve a ideia de que instituir um
Comissão Nacional da Verdade

of Peace, que a junção de duas noções distintas regime democrático leva à substituição de um
(transição + justiça) tornou a expressão “justiça regime de força pelo Estado de direito, o que im-
de transição”, e consequentemente esse novo plica tornar cada cidadão responsável por suas
saber, conhecida. ações. “Em poucos anos”, observa o jurista ar-
Embora autores como o filósofo norueguês gentino Juan Méndez, da American University,
Jon Elster acreditem que a ideia de justiça de “a comunidade internacional fez consideráveis

pESQUISA FAPESP 218 | 41


avanços em direção ao reconhecimento de que na crença da universalidade dos direitos huma- 1. ELSTER, Jon. Closing the
o legado de graves e sistemáticas violações ge- nos e encontram sustentação na legislação in- books: transitional justice
ra obrigações dos Estados para com as vítimas ternacional de direitos humanos e na legislação in historical perspective.
Nova York: Cambridge
e as sociedades”.3 humanitária, o esforço faz muito mais sentido do
University Press, 2004.
Isso significa que hoje os Estados têm o dever que pode sugerir o senso comum – acostumado a
de reparar, de oferecer justiça e verdade, e de classificar incursões ao passado como exercícios 2. TEITEL, Ruti G.
tornar instituições, como as forças de seguran- arqueológicos inúteis ou, pior, “revanchismo”. Transitional justice. Nova
York: Oxford University
ças, democráticas. Cabe ressaltar que o enfoque Para a argentina Ruti Teitel, professora na New
Press, 2000; BICKFORD,
principal está nos direitos e nas necessidades York Law School, por definição, transições cons- Louis. Transitional justice.
das vítimas. Em relação ao caso brasileiro, é no tituem tempos de contestação de narrativas his- In: HORVITZ, Leslie Alan;
cumprimento destas obrigações que se inserem, tóricas. “Desse modo, transições apresentam o CATHERWOOD,
por exemplo, iniciativas como a abertura de ar- potencial para counter-histories.”4 Para além do Christopher; Macmillan
quivos da ditadura e a criação da Comissão Na- esforço de incluir na história recente do país a encyclopedia of genocide
cional da Verdade. Constituem, portanto, foco de narrativa de vítimas e sobreviventes do período, and crimes against
humanity. Nova York:
investigação para os pesquisadores interessados no caso do Brasil isso equivale a pensar o que a
Facts on File, v. 3,
no caso nacional tópicos como a Lei da Anistia, a ênfase inicial no dever de reparar economica- p. 1.045-47, 2004.
ausência de punição aos torturadores, o arranjo mente as vítimas da ditadura tem a dizer, por
institucional que tem assegurado a impunidade exemplo, sobre a qualidade da democracia que 3. MÉNDEZ, Juan E.
Accountability for past
aos agentes do Estado, a legislação reparatória vem sendo construída desde 1985, sobre suas
abuses. Human Rights
sancionada a partir de 1995, o papel das Forças instituições e sobre a permanência da tortura e Quarterly. Baltimore, v. 19,
Armadas e os milhões de documentos oficiais já dos desaparecimentos forçados. Sobre, em sín- n. 2, maio/1997, p. 255.
desclassificados pelo Estado brasileiro, ou por tese, a constância do que pior existia no passa-
4. TEITEL, Ruti G.
países como os Estados Unidos, o Reino Unido ou do, no presente. “Eu creio que a reconciliação é
Transitional justice
a Alemanha, sobre a ditadura iniciada em 1964. um objetivo fundamental de qualquer política genealogy. Harvard
Interdisciplinar por definição, essa área do co- de justiça de transição, porque o que não quere- Human Rights Journal.
nhecimento tem despertado o interesse de cien- mos é que se reproduza o conflito”, avalia Juan Cambridge (MA), v. 16,
tistas políticos e sociais, filósofos, historiadores, Méndez. “Nesse sentido, tudo o que fazemos – Spring/2003, p. 69.
juristas e estudiosos das relações internacionais justiça, verdade, medidas de reparação – tem de 5. MÉNDEZ, Juan E.
dispostos a entender, por exemplo, o envolvi- estar inspirado pela reconciliação, mas a recon- Entrevista concedida pelo
mento de várias instituições do sistema ONU em ciliação verdadeira, não a falsa reconciliação que ex-preso político, ativista
comissões de verdade e em tribunais penais in- na América Latina se pretendeu como desculpa de direitos humanos,
ternacionais, bem como o papel desempenhado para a impunidade.” Na interpretação de Mén- ex-integrante da Comissão
Interamericana de
por organizações não governamentais de direitos dez, a “verdadeira reconciliação” exige o reco-
Direitos Humanos da OEA
humanos nesses processos de acerto de contas. nhecimento dos fatos, não pode ser imposta por e presidente do ICTJ
Por adotar approaches que não são exclusivamen- decreto e “tem de ser construída nos corações à doutoranda Glenda
te jurídicos, mas buscam incorporar, de forma e mentes de todos os integrantes da sociedade Mezarobba. Nova York,
ampla, as várias dimensões de justiça capazes de por intermédio de um processo que reconheça 20 mar. 2007.
contribuir para a reconstrução social, baseiam-se o valor de cada ser humano e sua dignidade”.5 n

Avanços da Comissão da Verdade


O advogado e professor da Faculdade de direitos humanos ocorridas no país entre Paiva em janeiro de 1971 e o funcionamento
Direito da Universidade de São Paulo (USP) 1946 e 1988. Na atual fase de da Casa da Morte em Petrópolis, centro
Pedro Dallari, coordenador da Comissão funcionamento, a comissão se dedica a clandestino de tortura mantido pelo Centro
Nacional da Verdade (CNV), diz que os consolidar todas as informações iniciais de Informações do Exército na região
trabalhos da comissão resultaram em provenientes de pesquisas em documentos serrana fluminense na primeira metade
avanços importantes. Um exemplo, que armazenados em arquivos públicos, de dos anos 1970. Outros relatórios parciais
classifica como um “fato inédito, um divisor testemunhos e de oitivas para entregar seu serão produzidos até o final do ano.
de águas”, seria a concordância das Forças relatório final em 10 de dezembro deste Dallari lembra que não houve
Armadas brasileiras, tornada pública em ano, Dia Internacional dos Direitos contestação às informações divulgadas
abril deste ano, em investigar atos de Humanos. Na área de pesquisa, a comissão pela CNV até o momento. “A apuração
violação aos direitos humanos ocorridos se divide em 13 grupos de trabalho. do que ocorreu durante a ditadura
em suas dependências durante a ditadura Até agora a CNV divulgou quatro não começou com a CNV e também não
militar. “Essa é uma atitude muito boa relatórios parciais, sobre casos ou eventos acabará com o encerramento de nossos
das Forças Armadas”, diz Dallari.   mais específicos ocorridos durante a trabalhos. Não vamos esgotar o tema.
Criada em 2011 e instituída no ano ditadura, como a prisão, tortura, morte Novas informações sempre poderão surgir
seguinte, a CNV investiga violações aos e desaparecimento do deputado Rubens no futuro”, afirma Dallari. Marcos Pivetta

42 | abril DE 2014
De onde vem a
informação
Arquivos brasileiros e norte-americanos alimentam
as investigações sobre os crimes da ditadura

Márcio Ferrari

N
o fim de março, a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) denunciou o general re-
formado José Antonio Nogueira Belham
como um dos responsáveis pela morte
do deputado Rubens Paiva, preso e torturado
pela ditadura militar. Paiva foi detido e morto
em janeiro de 1971 em bases da Aeronáutica e
do Exército no Rio de Janeiro. Belham à época
comandava o Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa In-
terna (DOI-Codi) do Rio, mas sempre sustentara
que estava de férias quando Paiva foi preso. Uma
ficha funcional que ele próprio repassou para a
CNV mostrou, no entanto, que ele havia recebido
diárias de serviço justamente naqueles dias. Esquema
O episódio demonstra não só a importância do mam cerca de 10 milhões que estão nos arquivos de método de
espionagem:
exame dos arquivos dos órgãos sob controle da estaduais”, diz Rodrigues. exemplo de
ditadura, como a atenção para detalhes que às ve- Com a Lei de Acesso à Informação, de 2011, o material guardado
zes passam despercebidos até pelas pessoas mais Arquivo Nacional se organizou para, no ano se- no Arquivo
interessadas neles. “A importância principal dos guinte, liberar ao público todos os documentos Nacional

trabalhos da CNV é a possibilidade de articular sobre a ditadura militar, a não ser que estejam
informações testemunhais e materiais vindas de sendo tratados tecnicamente. Estão lá, recolhi-
diversas fontes”, diz Vicente Câmara Rodrigues, dos, todos os arquivos do Conselho de Segurança
assistente da diretoria do Arquivo Nacional para Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investi-
o projeto Memórias Reveladas – Centro de Re- gações (CGI) e do Serviço Nacional de Informa-
ferência de Lutas Políticas, 1964-1985, que tem ções (SNI), provenientes da Agência Brasileira
como coordenadora a pesquisadora Inez Stampa. de Inteligência (Abin).
O acervo que agora se encontra reunido em Em cada órgão federal há um representante
rede tornou-se o destino final dos documentos do Sistema de Gestão de Documentos de Arqui-
sobre a ditadura militar quando, em 2005, a Ca- vo (Siga) ou da Casa Civil, que coordena e torna
sa Civil da Presidência da República determinou acessíveis, entre outros, os papéis da ditadura
que as instituições federais transferissem toda a militar, repassando-os ao Arquivo Nacional. Este
informação guardada sobre o período para o Ar- também pode tomar a iniciativa de buscar docu-
Arquivo Nacional

quivo Nacional. Isso decuplicou a quantidade de mentação nesses órgãos. Segundo Rodrigues e
dados sobre o regime abrigados na instituição. Inez, hoje estão recolhidos no Arquivo Nacional
“Só no Arquivo Nacional estima-se que existam os documentos de 30% dos órgãos federais (o que
16,5 milhões de páginas de textos, a que se so- não significa 30% do total de dados).

pESQUISA FAPESP 218 | 43


Uma vez obtidos, os papéis passam por alguns vos”), uma parceria entre
processos antes de chegarem ao público. Primei- a Brown e a Universidade
ramente são classificados sumariamente. Se ne- Estadual de Maringá (PR).
cessário, passam para a área de preservação. Em O site contém quase 10 mil
seguida vão para o controle de informação, onde documentos norte-ame-
são descritos (o que é, quem enviou para quem ricanos produzidos pelo
etc.) e digitalizados. A partir daí são abertos ao Departamento de Estado
público no banco de dados Memórias Reveladas. e pela Agência Central de
Mesmo com todo esse cuidado, nem sempre é Inteligência (CIA). Neles
possível saber se os arquivos foram adulterados. estão registradas obser-
Mas, como cada órgão tinha um sistema de in- vações sobre o perfil dos
formações sigilosas que se reportava ao SNI, as estudantes que se mani-
cópias enviadas para lá são valiosas para compa- festavam contra o regime,
ração com os originais. Nos casos em que os ór- o apoio ativo de parte do
gãos informam destruição (queima) de arquivos, empresariado brasileiro e
é possível comprovar se isso realmente ocorreu detalhes sobre as ativida-
por meio de atas exigidas pelo extinto Regula- des do adido militar dos
mento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos. Estados Unidos, coronel
A troca de informações com a CNV foi reforçada Vernon Walters, nos pri-
pelo deslocamento de funcionários do Arquivo meiros anos do regime.
Nacional para colaborar nos trabalhos de inves- “Estamos encontrando
tigação. E na sede do arquivo há uma área desti- detalhes importantes so-
nada exclusivamente aos pesquisadores da CNV. bre o apoio ao Ato Insti-
tucional nº 5 pela Câmara

O
estado de São Paulo mantém 340 mil re- de Comércio Brasil-Esta-
gistros de fichas do Departamento Esta- dos Unidos em São Paulo
dual de Ordem Política e Social (Deops) e sobre o debate interno
abertos para consulta pública desde o início de no Departamento do Esta-

léo ramos
Arquivo do Deops
1994, por determinação da Secretaria de Cultura. do a respeito dos efeitos do decreto”, diz Green. em São Paulo:
quase 10 milhões
Segundo Lauro Ávila Pereira, ex-diretor do De- “Mas temos que entender que a pesquisa mais
de páginas sobre
partamento de Preservação e Difusão do Acervo, interessante neste momento é um trabalho longo a ditadura
há quase 10 milhões de páginas de documentos e detalhado, juntando fontes, elementos e indí-
sobre a ditadura militar no arquivo, 10% delas cios para construir uma leitura mais densa das
digitalizadas. Os processos de tratamento e di- relações entre os dois países.”
gitalização contaram com apoio da FAPESP e da A participação indireta dos EUA no golpe e
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, por na ditadura militar foi confirmada em 1977 pe-
meio do edital Marcas da Memória. la pesquisadora Phyllis Parker, que encontrou
Os documentos do Deops são os mais procu- documentação sobre a operação Brother Sam
rados do Arquivo Público do Estado e o fato de já (“irmão Sam”) e publicou um livro sobre o as-
estarem disponíveis há 20 anos formou, segundo sunto, O papel dos Estados Unidos da América no
Pereira, “uma geração de pesquisadores especia- golpe de estado de 31 de março. As violações aos
lizados”. Eles se encarregam do difícil trabalho de direitos humanos haviam entrado na pauta dos
leitura das informações contidas na documentação. assuntos governamentais por iniciativa do pre-
Para evitar perdas, o Arquivo do Estado optou por sidente Jimmy Carter (1977-1981). “Até então as
manter a lógica do arquivamento feito pelos órgãos informações sigilosas não davam ênfase à tortura
de segurança do regime em São Paulo. e a outros abusos da primeira década da ditadu-
Contribuições suplementares e preciosas so- ra”, diz Kornbluh. “Mas os documentos norte-
bre as violações aos direitos humanos durante -americanos que estão sendo revelados agora
a ditadura vêm de pesquisadores dos arquivos lançam luz sobre horríveis agressões cometidas
do governo norte-americano. Dois dos mais im- pelos militares – e também expõem o papel do
portantes estiveram no Brasil para participar Brasil na Operação Condor e outras ações secre-
de eventos que marcaram o 50º aniversário do tas das forças policiais brasileiras no exterior.” n
golpe: James Green, historiador da Universidade
Brown, e Peter Kornbluh, diretor de documen-
tação sobre o Brasil no National Security Archi- Projeto
ve, organização sem fins lucrativos vinculada à Preservação e difusão da memória pública: modernização e amplia-
ção dos laboratórios do Arquivo Público do Estado de São Paulo (nº
Universidade George Washington. 2009/54965-1); Modalidade Programa Infraestrutura 6 - Arquivos;
Green participou da inauguração do site do Pesquisador responsável Carlos Bacellar – FFLCH-USP; Investimento
projeto Opening the Archives (“abrindo os arqui- R$ 1.692.982,33 (FAPESP).

44 | abril DE 2014
arquivos
britânicos
eo
golpe
de 1964

William Torres Laureano da Rosa

Documentos do

O
acesso a documentos oficiais do Reino mação de Castello Branco no cargo de presidente National Archives
mostram troca de
Unido mudou consideravelmente nos um dia antes da sua escolha), bem como o inter- informações entre
últimos anos. Desde 1958, documentos câmbio de informações com representantes da ingleses e americanos
com mais de 30 anos de existência são selecio- diplomacia estadunidense, entre os quais John sobre a intervenção
nados pelo governo para preservação e posterior Plank, chefe da seção de América Latina do Bu- militar no Brasil

divulgação. Mais recentemente, o Parlamento reau of Intelligence and Research, e Ellsworth


Britânico aprovou o Freedom of Information Bunker, embaixador dos EUA na Organização
Act, o que permitiu que solicitações individuais dos Estados Americanos (OEA).
desclassificassem e liberassem diversos docu- Os documentos não fornecem apenas indica- 1. “I am afraid that
mentos para acesso antes mesmo de completado ções diretas dos acontecimentos e dos envolvidos, this present letter must
o período previsto em lei. Com base nessas in- de acordo com os diplomatas da época. O cruza- also be rather woolly,
but I think you should have
formações, tem sido possível, por exemplo, co- mento das informações obtidas nos documentos
it on record that there
nhecer e analisar a posição do Reino Unido em britânicos com as existentes nos EUA revela as- has been an outbreak of
relação à situação política brasileira, em 1964, e pectos importantes dessa “parceria”. Nesse pe- rumours and statements
as redes de informação existentes naquela época ríodo, por exemplo, observa-se que, embora os concerning possible
entre Londres e Washington. EUA e o Reino Unido fossem aliados e compar- coups d’état”
Os documentos indicam que a possibilidade de tilhassem informações sobre o Brasil, isso não se (FO 371/173760).\
um golpe de Estado no Brasil não era novidade deu de forma irrestrita. Nos documentos já des- 2. “As usual, these
para a diplomacia britânica. Em carta enviada em classificados, a participação dos EUA no golpe de coups d’état are predicted
janeiro de 1964 ao Departamento Americano do Estado foi mantida em segredo pela diplomacia as coming from variously
serviço diplomático britânico sobre a possibili- britânica. Em um relatório sobre conversa com the Right, the extreme Left,
dade de golpe de Estado no Brasil, o conselheiro Dean Rusk (secretário de Estado dos EUA) sobre and the President”
(FO 371/173760)
Ronald Burroughs reportou um “surto de rumo- essa possível participação dos EUA, datada de
res e declarações sobre a possibilidade de golpe 1º de abril de 1964, o embaixador britânico em 3. “General Castello
de Estado”.1 Burroughs afirma que “esses golpes Washington, Lord Harlech, reportou que em re- Branco […] warned the
de Estado são previstos vindo de diferentes la- lação à deposição do presidente Goulart os EUA Minister of War on
dos, da direita, da extrema esquerda, e do presi- “teriam pouca, se é que alguma, influência nos January 16 that the latter
should not count on
dente”.2 De acordo com informações obtidas por eventos que estavam prestes a acontecer”.4 A não
the Army supporting a coup
intermédio do adido militar dos Estados Unidos, participação estadunidense no golpe aparece co- by the President. If any
“General Castello Branco [...] alertou o ministro da mo consensual na correspondência diplomática such move were set
fotos  William Torres Laureano da Rosa / National Archives

Defesa que ele não poderia contar com o Exército britânica de 1964, sendo novamente discutida e on foot he, Castello Branco,
apoiando um golpe do presidente. Se qualquer ato reafirmada em duas ocasiões diferentes: quan- would call out troops to
nesse sentido fosse iniciado ele, Castello Branco, do das denúncias de cooperação dos EUA feitas oppose it”
(FO 371/173760)
chamaria as tropas para se opor a isso”.3 tanto por jornais franceses quanto pelo jornalista
A leitura dos documentos evidencia que tais brasileiro Bocaiúva Cunha. Ainda há muita novi- 4. “The Americans
informações eram obtidas não só por intermédio dade a ser descoberta sobre o período, e o acesso were watching the situation
de brasileiros próximos da diplomacia britânica a um número maior de documentos em acervos very closely, but they
– entre os quais o jornalista Ruy Mesquita, de O no Brasil, EUA e Reino Unido é certamente uma would have little influence,
if any, on the course of
Estado de S.Paulo – mas também por intermédio ferramenta importante para tanto. n
events” (FO 371/173761,
de um sistema de cooperação entre o Reino Uni- Opinion of Mr Rusk on the
do e os Estados Unidos. Tal cooperação consistia William Torres Laureano da Rosa. Doutorando em relações
situation developing in
internacionais na University of Sussex e pesquisador do Instituto
em acesso britânico a boletins informativos da Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Brazil: no U.S. influence
CIA (um dos quais sugeriu fortemente a confir- Unidos (INCT-INEU). on course of events)

pESQUISA FAPESP 218 | 45

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