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Prosa de Contextação

Prosa de Contextação

05 Carta sobre a 1a edição

06 A equipe

08 Violências camufladas: como a mentalidade disfarça as evidências


Eneida Desiree Salgado, colunista convidada

12 Prosa de Contextação entrevista Gisele Alessandra Schimdt e Silva

14 Ensaios [ou não]


Isabelle Rocha Nobre

15 O “medo das mulheres sem medo”


Marília Alves de Carvalho e Silva

16 Raquel
Gisele Figueiredo Endrigo

19 A face econômica da violência doméstica


Eliane Vieira Lacerda Almeida

22 Relacionamentos gentilmente abusivos


Juliana de Castro Santos Ludmer

24 Luto e reinvento
Rafaela Miotto de Almeida

25 Nós
Clarice Lippmann

28 Desvendando as faces ocultas do patriarcado: como as mulheres são


agredidas cotidiana e sutilmente na advocacia
Michelle Mendes
32 Precisamos conversar com ele
Natália Baldessar

36 Cotidiano
Fabíola de Oliveira da Cunha

40 Pensando na vida
Beatriz Maria Garboggini di Giorgi

41 Resistência feminista na prática da advocacia: a experiência do Coletivo


Feminista Sexualidade e Saúde
Letícia Ueda Vella e Fernanda Costa Nunes Meneses

44 Um dia comum em uma sessão de Turma Recursal


Juliana Mello de Queiroz

46 Quando a esperança vem de dentro


Bruna Gonçalves Braga

49 Políticas feministas inclusivas: pelo fim da desqualificação profissional e


surgimento de condições igualitárias de trabalho
Juliana Lopes Ferreira

51 Violência camuflada
Lucimar da Silva Moraes

54 Cultura do estupro
Mariana Imbelloni Braga
Carta sobre a 1a edição
Tema: Violências Camufladas

Prezadas leitoras, prezados leitores,


É com entusiasmo que apresentamos a primeira edição da revista
Prosa de Contextação, com o tema Violências Camufladas. Por meio desta
publicação, temos a oportunidade de nos fazer veículo para as potentes
vozes corporificadas nos textos que nos foram confiados, abrindo mais um
espaço para exposição de dores silenciadas por tanto tempo.
A revista Prosa de Contextação nasce da proposta de publicação de
textos de temas literários e relatos cotidianos escritos por mulheres advo-
gadas, no intuito de possibilitar, por essa rica forma de expressão pessoal
que é a literatura, um novo espaço de intercâmbio crítico e troca de vivên-
cias para a advocacia. O objetivo a partir do tema da 1a edição, Violências
Camufladas, é abrir espaço para expressão sobre violências percebidas por
mulheres advogadas seja em sua prática profissional, sua vida pessoal ou
sua observação da sociedade. A escolha da palavra “camufladas” justifica-
se pela compreensão de que inúmeros processos violentos são naturaliza-
dos nas práticas cotidianas. Assim, entendendo que mesmo situações ex-
plicitamente violentas para quem sofre a agressão são invisibilizadas pelas
estruturas de dominação, o termo “camufladas” é um convite ao desvelar
dos processos violentos como tais.
O convite foi aceito em formato de contos, relatos e poemas, todos
recebidos por meio de chamada pública aberta de 25 de fevereiro a 15 de
abril de 2018 pela revista Prosa de Contextação. Os textos recebidos sobre
a temática emocionaram e (co)moveram todas as envolvidas no processo
de organização da revista. O resultado do trabalho é agora compartilhado
com vocês, leitoras(es), a quem convidamos para iniciar esse percurso
literário trançado com ensinamentos sobre a vida real.

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A equipe

Diretora de Conteúdo
Juliana Ludmer. Mestranda no programa de pós-
graduação em Sociologia e Direito pela Universidade
Federal Fluminense – UFF. Graduada em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
– PUC-Rio (2014). Colunista da revista on-line Prosa
Verso e Arte. Advogada.

Diretora Literária
Mariana Imbelloni Braga. Mestranda em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
– PUC-Rio. Possui graduação em História pela Uni-
versidade Federal Fluminense – UFF (2011) e Direito
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
– PUC-Rio (2016).

Curadoria

Ana Carolina Mattoso. Doutoranda e Mestre em


Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio
(2017). Graduada em Direito pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ (2013).

Caroline Serafim. Especialista em Direito para a


Carreira da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
– Emerj. Graduada em Direito pela Universidade
Federal Fluminense – UFF.

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Gabriela Fenske. Graduada em Direito pela Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio
(2015). Editora-chefe da revista on-line Prosa Verso
e Arte. Advogada.

Isabelle Rocha Nobre. Mestranda em Artes e Di-


reitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ. Pós-graduanda em Direito Público
pela Fundação Escola Superior do Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro – Femperj. Graduada em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-Rio (2015).

Julia Gitirana. Doutoranda em Políticas Públicas pela


UFPR. Mestra em Ciência Jurídica e Teoria do Estado
pela PUC-RJ (2013). Especialista em Direito Penal e
Criminologia pelo UTP/ICPC (2016). Graduada em
Direito pela Puc-RJ (2010). Atualmente é professora
no curso de Graduação do Departamento de Direito
da FAE Centro Universitário (Curitiba/ São José dos
Pinhais - PR). Integrante do Grupo de Pesquisa Política
Por/de/para Mulheres e do Grupo de Pesquisa Teoria e
Prática do Estado: fundamentos, histórias e discurso.
E-mail: julia.gitirana@gmail.com

COLUNISTA
CONVIDADA
A colunista convidada da 1a edição da revista Prosa de Con-
textação é a professora Eneida Desiree Salgado.
Eneida Desiree coordena o Política Por/De/Para Mulheres.
Também é doutora em Direito e professora de Direito Consti-
tucional e Eleitoral. Líder do Núcleo de Investigações Consti-
tucionais (NINC) e autora das obras Princípios constitucionais eleitorais (2010) e Constituição
e democracia: tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico – Vinte anos de construção do
projeto democrático brasileiro (2007). Compartilhamos com vocês o texto que ela escreveu
para a revista Prosa de Contextação, sobre o tema Violências Camufladas.

Ilustração e Diagramação: Thais Linhares


Revisão: Carmem Becker e Anna Maria Moura Costa de Castro Santos.
Realização: Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro (CAARJ).

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Violências camufladas:
como a mentalidade disfarça as evidências
Eneida Desiree Salgado

A consciência de gênero nasceu em mim tardiamente. Embora desde criança


submetida a um regime jurídico diferenciado (meus irmãos homens tinham mais
liberdades e menos obrigações do que eu, bem como meus primos), não percebia isso
como um reflexo de eu ser uma mulher. Sempre me soou como uma injustiça pessoal.
As mulheres da família não pareciam se incomodar com as atribuições “naturalmente”
a elas impostas, nem com o lugar a elas destinado. Assim, a inadequada parecia ser
eu, que me sentia incomodada com a determinação, com justificativas “naturalizadas”,
de proibições, de regras de conduta, de boas maneiras, de restrições de temas, de
vocabulário, de uso do corpo, de código de vestimenta não aplicáveis aos homens
da casa e da família. Faltava em mim a
perspectiva coletiva, talvez por ausência de
interlocução com outras mulheres, muito
mais velhas que eu. Neste período, a
minha resistência era puramente na
esfera pessoal e demorou muito para
que o véu se afastasse.
As estruturas de pensamento
que dominavam a minha maneira
de ver o mundo não permitiam
que eu percebesse que era
uma questão de gênero, de
uma mentalidade que tratava
as mulheres como sujeitadas
e não como “sujeitas”. A
escola repetia [e vou usar
o verbo no passado mais
como um desejo do que
como uma constatação]

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a diferenciação, com um discurso que combinava divisão de papéis e justificativa
protecionista. Havia [novamente no passado, e vou deixar de chamar atenção a cada
vez, embora a ressalva inicial se aplique até o fim do texto] uma opressão exacerbada
à sexualidade feminina, aos desejos e curiosidades só das meninas. Dos meninos se
exigia ousadia e coragem, o que, em uma visão retrospectiva, me parece igualmente
opressivo. Eu trabalhava minha resistência com a superação da diferença. Sentava na
mesa com os adultos nos almoços de família e tinha (ainda tenho) palpite sobre tudo
– de política externa à escalação da seleção – e na escola me envolvi em projetos
e atividades coletivas e buscava me destacar por habilidades que usualmente eram
[...] ligadas aos homens: não tinha medo de falar em público ou de propor discussões
e praticava esportes competitivamente. E foi assim também na faculdade, onde a
violência vinha disfarçada de comentários jocosos de professores e colegas a respeito
da necessidade de estudar tanto para arrumar marido e, de maneira ainda mais intensa,
no movimento estudantil, que se dizia democrático e inclusivo naquele momento de
intensa discussão política após a destituição do Presidente Collor. Mulheres podiam
participar do debate e construir as soluções, mas o protagonismo era reservado aos
homens, “líderes naturais” e mais palatáveis ao eleitorado.
O mercado de trabalho – ontologicamente cruel e opressor – escancarou a
questão. Àquela altura do campeonato não podia ser apenas um problema comigo. A
construção da linguagem, a proibição do uso de calça para as mulheres (às vésperas do
século XXI!), a destinação dos cargos de decisão para os homens e de assessoramento
(normalmente secundário) para as mulheres eram escandalosas. O assédio combinava
insinuações de caráter sexual e questionamentos sobre a competência. A entrada
na vida acadêmica e no magistério acentuou mais ainda a violência. Camuflados de
preocupação, presenciei comentários sobre a dificuldade das mulheres de se dedicarem
à pesquisa e à reflexão tendo que cuidar da casa, de filhos e do marido (isso já no
século XXI!) e da impossibilidade de se encontrar uma escrita objetiva partindo de uma
mulher, em face de seu “natural” sentimentalismo. No entanto, consolação, podíamos

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ser boas professoras (ao menos de algumas disciplinas), devido à nossa
“natureza” maternal.
O mundo acadêmico é masculino em sua linguagem e sua aparência.
Ainda parece natural a realização de congressos e painéis puramente
masculinos. Ninguém estranha. Se, ao contrário, só há mulheres, ou se trata
de tema exclusivamente feminino ou já vem a acusação de sectarismo. Ou
pior: a sugestão de inclusão de homens para que a discussão não se torne
monótona [sim, isso aconteceu comigo em um diálogo com um sujeito que
se acha muito progressista e eu lhe pedi para refletir sobre sua sugestão,
sobre sua interlocutora e sobre a sua visão de mundo; perdemos contato
depois disso, não sei se ele refletiu ou se a reflexão lhe foi útil]. Ainda é
frequente que os elogios a uma mulher quando de sua apresentação em
eventos não se refiram às suas capacidades intelectuais, com um irritante
e inaceitável deslocamento do mérito ou com a menção a qualidades
que não dependem exclusivamente dos esforços pessoais. E, sempre, as
interrupções e as explicações sobre o que acabamos de falar. Os homens
nos explicam tudo, inclusive o que sabemos mais que eles.
Uma violência atua igualmente no campo acadêmico e no campo
político: a distinta adjetivação a manifestação enfática. Se é uma mulher
que fala energicamente, logo vêm as críticas contra a fala “histérica”
daquela “louca”, por vezes acompanhadas por comentários sobre os efeitos
da ausência de um homem para acalmá-la ou satisfazê-la. Se é o homem
que o faz, é um líder nato, capaz de convencer com seus argumentos e
sua confiança. No espaço político – institucional ou partidário – o mesmo
ocorre com o uso do capital sexual: a piscadela do Presidente Obama é
bem vista, elogiada, é um gênio da estratégia política; uma mulher bonita
na política é reduzida a uma manequim, uma boneca, uma cabeça oca, que
utiliza a sedução porque não tem mais nada a oferecer. A violência política

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contra as mulheres, ainda, manifesta-se pela constante diminuição de suas
qualidades e capacidades, com ataques diretos e misóginos não apenas à
sua atuação pública, como ocorreu com a Presidenta Dilma Rousseff antes,
durante e depois da sua destituição inconstitucional.
Essa mentalidade que insiste em reduzir as potencialidades das
mulheres faz com que tenhamos dúvidas sobre nossas próprias aptidões
e competências. Um homem, sempre encorajado a ousar e a buscar o
sucesso, apresenta-se para uma função ainda que não preencha mais do
que a metade dos seus requisitos. Uma mulher, em geral, só o faz se
considerar que cumpre satisfatoriamente todas as condições para o exercício
do cargo. Somos tão oprimidas por uma maneira de ver a sociedade e a
“natureza” que por vezes não percebemos a opressão: é como a água
para os peixes, algo em que estamos inseridas desde sempre e por isso
incorporamos esses padrões de pensamento e os repetimos ou negamos,
até onde der, a sua nocividade. Foi o que aconteceu comigo. Porém, depois
de tanta indignação pessoal a compreensão se estendeu, e assim nasceu
em mim a consciência.
Penso que após a tomada de consciência de gênero, ainda que
tardia, tenho como compromisso provocar a percepção dessas violências,
camufladas, escancaradas, simbólicas, políticas, reais. Não é fácil, porque
até mesmo a militância – seja qual for o seu campo e sua abordagem
– é questionada em uma mulher que, enfim, além de ter demorado a
se perceber, faz parte da parcela mais “privilegiada” do gênero: branca,
urbana, classe média, educação superior, hetero, cis, casada e mãe. Mas,
assim me compreendo, assim me desafio a desafiar outras mulheres a se
compreenderem e a perceberem as opressões e suas opressões, no campo
acadêmico e no campo político, para que se saibam capazes de reformarem
a si mesmas e reformarem o mundo. Que as deusas me (e nos) ajudem.

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Prosa de Contextação entrevista
Gisele Alessandra Schimdt e Silva

A advogada Gisele Alessandra Schimdt e Silva é nascida no Rio Grande do Sul


e radicada em Curitiba. É membra da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da
OAB-PR, Conselheira suplente do Conselho Estadual de Direitos da Mulher do Paraná,
membra do Comitê LGBT da Secretaria de Estado de Justiça, Trabalho e Direitos
Humanos do Paraná.
A advogada se tornou reconhecida em âmbito nacional a partir da sustentação
oral realizada no plenário do STF nos autos da ADI 4.275. Após Gisele subir à Tribuna,
foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal decisão reconhecendo, com base no direito
à autoidentificação, a possibilidade de retificação do nome e sexo no registro civil
por pessoas transgêneras sem necessidade da realização de tratamentos hormonais,
cirurgias de transgenitalização ou autorizações judiciais.
Ela aceitou dar uma entrevista à revista Prosa de Contextação. O conteúdo, agora
compartilhamos com vocês.

1) Vamos começar falando um pouco de você e da sua trajetória. Quem é a Dra.


Gisele Alessandra, que para muitas e muitos é sintetizada na advogada que sustentou
oralmente nos autos da ADI 4.275 perante as ministras e ministros do STF? Como a sua
história pessoal se relaciona com a sua militância na advocacia?

Sou uma pessoa extremamente metódica; se tenho um objetivo a ser alcançado,


traço uma reta até ele e nada me tira desse caminho. Minha história pessoal sempre foi
de muito trabalho, extrema hipossuficiência e vulnerabilidade, mas nunca perdi o foco e
por isso até o presente momento me considero uma sobrevivente; minha militância se
dá porque acredito que é possível construir uma sociedade mais justa e igualitária.

2) Do ponto de vista pessoal, como foi a experiência de representar, no plenário


do STF, a pauta de diversas pessoas transgêneras?

Fazer uma sustentação oral é sempre um desafio para qualquer advogado e


sempre tive um certo receio disso, porque sou tímida e tenho dificuldade de falar em
público. Só que faz parte da carreira de advogado e simplesmente encarei como um
trabalho a ser feito. A experiência foi indescritível e considero que foi o ápice de minha
carreira até o momento, mas ainda pretendo fazer varias sustentações orais e também
atuar no Tribunal do Júri.

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3) O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, em 2016, a
inclusão do nome social de advogadas transgêneras e advogados transgêneros no registro
da Ordem; em 2018, o Supremo Tribunal Federal autorizou as mudanças de prenome e
sexo no Registro Civil de transgêneros sem necessidade de cirurgia de transgenitalização,
tratamentos hormonais ou autorizações judiciais. Em 1º de março de 2018, o Tribunal
Superior Eleitoral decidiu pela possibilidade de caracterização de candidatos nas eleições
de acordo com a identidade de gênero, tendo as mulheres transgêneras direito a concorrer
na cota destinada ao sexo feminino. Na sua perspectiva, como essas decisões podem
impactar na forma como os diversos atores (advocacia, magistratura, promotoria etc.)
que atravessam o Sistema de Justiça encaram a transgeneridade?

Essas decisões são grandes conquistas no sentido de nossa inserção na sociedade


e no resgate de nossa dignidade. Assim, esses atores simplesmente deverão nos acolher
como sujeitos de direitos e cidadãos, que é o que somos.

4) Em sua visão, para além dos limites das instituições jurídicas, como acha que
essas decisões podem impactar nas violências camufladas e invisibilizadas que atingem
pessoas transgêneras aqui no Brasil?

Acredito que são apenas o primeiro grande passo no sentido de coibir discriminações,
violência e preconceitos, mas o caminho ainda é longo e árduo. Sou otimista e acredito
que num futuro (talvez não muito próximo) a sociedade brasileira seja mais justa e
igualitária. Neste momento, estou em Cambridge/Massachusetts, onde realizei uma fala
no Brazil Conference at Harvard & MIT e percebo que aqui a inserção é mais natural.

5) Após a recente decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 4.275,
já foi possível identificar à sua volta efetivação cotidiana do direito de transgêneros e
transgêneras à retificação de nome e sexo no registro civil?

Sim, sempre há trabalho e agora o STF precisa publicar o inteiro teor do acordão
para que o CNJ possa publicar uma resolução, como se deu no casamento homoafetivo,
para que o material se pacifique nos cartórios, apesar de alguns cartórios já estarem
retificando sem maiores óbices e mesmo sem a resolução do CNJ.

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Ensaios [ou não]
Isabelle Rocha Nobre

Se tivesse um homem pra te comer direito, parava de chilique.


Manda sua mãe buscar pra você, como eu vou saber onde ficam as coisas?
Eu já dou 100 reais de pensão pra ela ficar com os filhos dela.
Chama um homem pra levantar essa caixa.
Como assim, tá viajando sozinha?
Dá uma boneca pra essa menina.
Já era, tirou habilitação.
Nossa, bonita e inteligente, tem que tomar cuidado.
Que comida! Já tá boa pra casar!

Então, o que queria te dizer, mas achei melhor falarmos em particular, era que tudo bem
a sua namorada, mas não é melhor você se expor menos?
É que eu estava na internet e vi sua foto com ela, você sabe, o que as pessoas vão
pensar... Eu não falo por mal, você sabe quanto te amo, mas poxa, o que vão pensar, dá pra
perceber que estão muito próximas, tem o olhar também, eu só falo porque quero seu bem,
imagina se a família percebe, se falam de você... e tem também sua carreira, têm coisas que
é melhor deixarmos entre quatro paredes, ninguém tem que saber da sua vida, você tem que
se poupar, que se cuidar, as pessoas são más, vão falar de você, melhor apagar a foto, mas
é só uma sugestão. Apaga.

Eu cheguei cansado. Trabalhei o dia todo e você fez o quê? Você não entende, lá na
empresa tá uma merda, demitiram mais gente, e a outra lá ganhou barriga e fica em casa
de pé pro alto enquanto a gente rala pra dividir as metas. É complicado, você não entende.
Esquenta minha janta. Dá um banho nesse garoto, que horror criança suja. O que você fez
hoje? Eu disse que estou cansado, né? Dá pra trazer uma cerveja não, amorzinho?? Hoje o dia
foi triste, na empresa tá tudo uma merda. Apaga a luz pra eu descansar. Apaga.

Sinto lhe informar que esse seu artigo não é publicável. Desculpe, mas é informal
demais. Não dá pra escrever em primeira pessoa, suas experiências não são ciência. Tem
também esse tom emotivo, pouco racional, muita palavra, não é o que a academia quer. Veja
bem, é que sempre foi assim. Existe a epistemologia e dentro dela não há vivências. Há o que
há. Desculpe, não é tolerável. A construção do conhecimento não pretende considerar suas
vivências. Melhor apagar. Mas só se quiser publicar. Apaga.

Parece que ela vai continuar defendendo aqueles bandidos, você percebeu quanta
gente juntou naquelas manifestações, e agora também com essas rodas de mulheres, isso é
perigoso pra gente, tá tendo adesão, percebeu? ...sei não, melhor a gente ficar de olho, ficar
na espreita, não é só universitário, tá pior que liderança comunitária, já não é só ativismo, tá
mudando coisa, vamos perder espaço, e se denunciar a gente? Apaga essa Marielle. Apaga.

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O “Medo das Mulheres Sem Medo”
Marília Alves de Carvalho e Silva

As mãos abriam a saia estampada


Por baixo a meia-calça para espantar o frio
A calefação aquecia os corpos
Já quentes pelo encontro de pele e desejo

Deitaram na impessoalidade do apartamento alugado


Com a pessoalidade dos amantes livres
Liberdade que exalava de cada poro dela
E era mais sentida a cada gota de suor derramado

O vapor condensado na janela


Barreira que separava o quarto em chamas
E a noite fria de um janeiro na Europa
Universo paralelo

Os primeiros raios de sol dissiparam o vapor


E a luz trouxe os contornos da realidade
O inverno europeu nos atos e palavras
Ela “se levantou quando o amor não estava mais sendo servido”

À tarde a conversa em um descampado


Fusão do frio no interior e exterior dos corpos
O vento parecia cortar o rosto
Que não era mais cortante que as palavras dele:

“Tu és mestra em direitos humanos


De esquerda, viajando sozinha
Linda
Mas mulher muito livre pra mim é puta”

Puta mulher bem resolvida.

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Raquel
Gisele Figueiredo Endrigo

Raquel abriu os olhos e viu que já estava amanhecendo. Levantou-se com dificuldade
e sentou-se na beirada da cama. Permaneceu imóvel, olhando fixamente a parede branca.
Sua cabeça doía com o esforço da tentativa de organizar o pensamento. Mas, por mais que
tentasse, não conseguia desfazer a confusão de ideias. Sabia que algo estava errado, mas não
entendia claramente. Às vezes não conseguia lembrar o nome dos filhos, ou não reconhecia
onde estava, e isso a desconcertava. Um lampejo de lucidez, de vez em quando, atravessava
sua mente. E nesses momentos pensava: “Estou caduca mesmo”. Não podia deixar que os
filhos percebessem que a idade tirava-lhe o juízo. Um dia chegariam aos 85 anos e veriam
como era duro sentir a mente definhar em um processo irreversível. Pensavam que ela não
se dava conta do que lhe acontecia, mas, na verdade, era a angústia dessa certeza que a
estarrecia. Era como estar trancada dentro de uma caixa escura e não conseguir sair, ou
estar perdida no mato e não achar saída para a civilização. Um sonho sem nexo do qual
não conseguia acordar. Podia aceitar a perda de vitalidade e força, mas perder o último fio
de conexão com a realidade era algo que lhe imprimia um desânimo mortal. Percebeu um
movimento no quarto.
–“Dona Raquel, a senhora já está acordada? Como estamos hoje? A senhora tá bem
coradinha, né? Vamos tomar um café?”
“Que mulher estúpida”, pensou Raquel. Ainda por cima tinha que aturar essa mulher
estranha nesse lugar estranho, que a tratava como um bebê. Queria estar em casa... Mas
após um incidente em que quase pôs fogo na casa, ao dormir no sofá com um cigarro aceso,
os vizinhos tiveram que chamar a assistente social e foi levada a um asilo. Os filhos há tempos
não a viam.
A mulher ajudou Raquel a caminhar até o banheiro.
–“A senhora está uma verdadeira atleta hoje, Dona Raquel!”
Raquel fechou os olhos. “Vaca!”. A mulher a auxiliava na higiene íntima. “Era só o que
me faltava. Uma estranha limpar a minha bunda”. Apesar de ressentir-se com a ajuda, Raquel
quedava-se obediente. Aceitava a água fria e os movimentos rudes da mulher. Não havia
outra opção.
A mulher levou Raquel até à varanda e depositou a velha em uma poltrona surrada.
Colocou-lhe nas mãos um copo de café frio e um pão requentado. Comeu sem expressão, os
olhos fundos, a boca murcha, os ombros caídos enfiados em um casaco molambento.
–“A senhora comeu muito bem hoje, dona Raquel!”
Do que aquela estúpida estava falando? Sua barriga roncava igual porco. Não se lembrava
de ter comido nada! Essa pilantra devia ter roubado toda a comida dela e ia deixá-la passando
fome. Bem sabia que essa gente era tudo um bando de ladras. Roubando sua comida, suas
roupas, seus objetos queridos. Assim que os filhos chegassem, reclamaria dessa mulher que
a tratava tão mal! Eles não tinham ideia do que a mãe passava.
A mulher sumiu por alguns instantes e voltou com um copo de água e um comprimido.
–“Vamos tomar o nosso remedinho?”

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Ah! Os comprimidos! Eram parte da conspiração para deixá-la em um estado de
permanente alienação. Recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Se ao menos o seu Francisco
estivesse ali... Mas a polícia entrara em sua casa e o levara preso. Estava angustiada com a
falta de notícias. Que polícia mais insensível! Não sabiam que ela tinha seis filhos pequenos
para criar?
A enfermeira voltou depois de um tempo acompanhada de uma pessoa e Raquel olhou
para a mulher parada ao seu lado. Não enxergava direito.
–“Quem é que taí?”
–“Sou eu, mãe! A Cida!”
–“Ahn...” – disse sem expressão.
Cida era a filha do meio. Trabalhava em outra cidade e quase não tinha tempo para ver a
mãe. Sentou-se ao lado dela e pôs-se a ouvir suas lamúrias. Que aquela enfermeira era uma
ladra. Que os outros filhos eram uns desnaturados; nunca vinham visitá-la. Que ela passava
fome...
–“E o Francisco, teu pai... a polícia levou ele preso e não solta mais...” – queixou-se,
chorosa.
–“Mamãe! O pai abandonou a gente quando eu tinha cinco anos e a gente nunca mais
teve notícias dele! Isso já faz sessenta anos!”
A enfermeira balançou a cabeça. “Melhor concordar”, sussurrou. Cida contraiu os lábios
para não dizer mais nada. Não devia ter refutado a mãe. Mudou o assunto e começou a falar
dos netinhos, bisnetos de Raquel. Comentou os progressos de Jéssica na escola, das aulas de
natação de Maicon, da graça que era Luana fazendo balé. Tinham sorte de morar perto de um
centro comunitário que oferecia todas essas atividades. Olhou para a mãe e suspirou. Sabia
que ela não fazia a mínima ideia de quem eram eles. De repente, Raquel ficou muito agitada
e arregalou os olhos em direção a Cida.
–“Filha minha! Corre que teu pai quer te jogar no rio!”

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Os olhos de Cida encheram-se de lágrimas. Sabia da história que seu pai queria matá-la
quando nasceu. Vivia alcoolizado e disse à mãe que não ia criar puta para o mundo. A mãe
teve que escondê-la na casa dos vizinhos. Cida lembrou-se do médico dizendo que Raquel
perdera a memória recente e que só se lembraria de fatos muito antigos. Estranhos caminhos
da mente... A nitidez das lembranças de outrora era assombrosa.
–“Está tudo bem, mãe. Ele já foi embora”.
Ao ficar sozinha novamente, Raquel esforçava-se para lembrar de algo. Quem é que
acabara de estar com ela? Olhou em volta e espantou-se. Onde é que ela estava? Aquela não
era a sua casinha no morro do Piolho, que Francisco havia alugado.
–“Quero ir pra minha casa! Quero ir pra minha casa!” – gritava Raquel.
–“Calma, dona Raquel. Nós vamos até a sua casa, está bem?”
Raquel continuou sentada na poltrona e logo se acalmou. Resmungava coisas ininteligíveis
quando vislumbrou um casal vindo em sua direção. Apertou os olhos para conseguir enxergar
melhor e levou a mão ao peito. “Francisco! Você voltou, meu amor!”
–“Oi, mamãe” – era Francisco, o filho mais velho, igual ao pai em nome e aparência,
confundindo Raquel.
–“Como vai, dona Raquel? Trouxe um presente para a senhora.”
Raquel desembrulhou uma caixa de sabonetes que Lúcia, a nora, lhe estendera. A velha
fez um muxoxo. “Será que ela pensa que eu sou fedida?”
–“A senhora tá precisando de alguma coisa, mãe?”
Raquel olhou para o filho. Tão generoso! E essa mulher que estava ao lado dele? Era sua
amante! Roubara Francisco dela, deixando-a com seis filhos para sustentar! Não... espere um
pouco... esse era o filho, não o pai. Raquel ficou atônita. Mesmo assim, achava a nora uma
vagabunda. Dera três filhas a Francisco e dizia que ele era o pai, quando bem sabia que o pai
era outro... “Pobre do meu filho!”
Raquel sentia-se cansada. O filho percebeu a fadiga da mãe, beijou-lhe a fronte e
foi embora. Cida e Francisco visitavam a mãe uma vez por ano. Os outros filhos estavam
perdidos pelo mundo.

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Antes de dormir, Raquel engoliu mais um comprimido que a enfermeira lhe oferecia.
Gostava daquela pequena cápsula amarela. Em poucos minutos, uma sensação de paz e
entorpecimento tomava conta do seu corpo. Sorriu para a visão de Francisco, postado a sua
frente. Vestia um terno de linho branco, tinha na cabeça um chapéu de palhinha e calçava
sapatos bicolores muito elegantes. Como estava bonito!
Raquel deitou-se na cama com a ajuda da enfermeira, virou-se de lado e aninhou-se
no travesseiro, colocando as duas mãos embaixo da cabeça, junto ao rosto. Ficou observando
a pequena luz de uma lâmpada no corredor. Ela iluminava os recônditos mais escuros de sua
mente. Lembrou-se dos filhos pequenos brincando no quintal, da luta para criá-los sozinha,
dos bichos abandonados que ela recolhia e cuidava. Olhou para a visão de Francisco, o marido,
que lhe sorria maliciosamente. “Seu filho de uma puta!” Mas as lembranças se embaralhavam
e se esvaeciam. Eram como água que saía da torneira. Escapavam rapidamente pelo ralo de
sua memória. E tudo o que via era a imagem de quando era a menina da roça, no interior
da Bahia. Uma recordação tão viva, que parecia ter sido ontem. O vestido sujo, os cabelos
desgrenhados, os pés descalços na terra. Carregava na mão um ouriço morto, que serviria
de jantar para a família. “Papai do Céu, me perdoe por matar esse bichinho, mas eu prometo
que, quando a gente não tiver mais passando fome, eu vou cuidar de todos os bichos que
encontrar pro resto da vida!”

A face econômica da violência doméstica


Eliane Vieira Lacerda Almeida

Acredito que a maioria dos profissionais passa por alguma situação que se torna o divisor
de águas dentro da sua carreira. A minha aconteceu quando eu estava no último semestre da
faculdade e era estagiária forense do Ministério Público, em uma das Promotorias vinculadas ao
Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Capital do Rio de Janeiro. Já estava
há alguns meses lá quando me apareceu esse caso de tentativa de estupro de vulnerável.
Eu tinha lido o processo. O padrasto – típico homem de bem –, supostamente tinha tentado
estuprar a enteada enquanto ela estava dormindo. Após a leitura, fui assistir a gravação da
audiência. Perante o juiz a criança mudou a sua versão dos fatos, dizendo que foi um equívoco,
na interpretação dela. Eu só consegui sentir raiva, porque, para mim, a criança podia ter sido
coagida a alterar a história. Contudo, não foi isso que me fez me encontrar dentro do Direito,
foi quando ouvi a mãe da menina que o mundo se tornou mais nítido e doloroso.
Após as perguntas de praxe, o Promotor perguntou para a genitora se ela era dependente
financeiramente do homem. A mãe, envergonhada, respondeu que sim.
Essa pergunta pode parecer singela, porém, ela guarda em si um dos pontos mais cruciais
sobre a violência contra a mulher: a dependência financeira da mulher em posição de vítima
com relação ao seu agressor. Cinco anos de faculdade de Direito não são suficientes para nos
ensinar sobre os anseios subjetivos das pessoas e suas demandas individuais.

19
Para mim, que estava de fora daquela relação, era óbvio que esse
homem tinha que ser preso, se possível para sempre e nunca mais
ter contato com nenhuma criança no mundo. É muito mais fácil julgar
a realidade do outro e projetar nossas expectativas em cenários dos
quais temos afastamento afetivo. É humano tornar a análise dos casos
passional e nos rebelarmos contra uma violência que não estamos
sofrendo. Porém, um bom profissional do Direito tem que ter maturidade
para reconhecer as suas próprias limitações e, naquele momento, vi que
não tinha esse conhecimento sobre a vida real.
Foi a pergunta sobre o que prendia aquela mulher àquele homem
que me fez entender que eu mesma estava invisibilizando a dor dela. Às
vezes o que, em um primeiro momento, entendemos como abandono,
pode ser a forma pela qual as pessoas acham que estão cuidando umas
das outras. Às vezes mais vale crer que o agressor mudará, do que ver
os seus filhos passando fome.
Não quero com isso, de modo algum, dizer que as mulheres devam
ser coniventes com condutas criminosas. Ao revés, quero despertar as
colegas advogadas para a necessidade de olhar mais de perto o que
permeia os anseios das mulheres que sofrem violência doméstica. O
sistema de encarceramento é a violência institucionalizada pelo Estado e
ele não é violento apenas em si, mas sim em todo o seu processo, inclusive
para a vítima. Não são raros os casos em que a mulher em situação de
violência sofre coação nas delegacias para não registrar a ocorrência ou
é, de alguma forma, tratada com violência pelas autoridades.
No caso que apresentei, não bastou uma lei de proteção às
mulheres, um juizado especializado e a coragem dessa família em denunciar
o homem. A violência doméstica tem origem tão profunda e deságua em
tantos problemas que as mulheres enfrentam na vida cotidiana que, na
prática, a lei simplesmente pode não alcançar a realidade fática.
Depois de formada, comecei a advogar na ONG TamoJuntas,
que é uma rede multidisciplinar de atendimento às mulheres vítimas de
violência de gênero, além de também advogar de forma privada para
mulheres com o mesmo perfil. Na advocacia, comecei a ter contato mais
direto com as mulheres. Vi, ao longo desse pouco tempo de formada,
muitas mulheres que foram violentadas, das mais diversas maneiras,
também se recusando a fazer o registro de ocorrência. Algumas por não
quererem se expor, outras por apenas desejarem encerrar o caso, mas
na maioria dos casos que peguei, as mulheres queriam apenas garantir
o direito de pensão aos seus filhos.
Não é leviandade fazer esse tipo de reflexão sobre como a
questão financeira permeia a vida das mulheres, uma vez que até
mesmo nós, advogadas, recebemos menos que os nossos colegas
homens. Em sendo o dinheiro um instrumento de poder, não podemos
banalizar o quão violenta é a remuneração desigual entre os gêneros.
Se mulheres estão se mantendo em relacionamentos abusivos por
falta de autonomia financeira, qualquer pagamento abaixo do justo é
instrumento de perpetuação de opressão às mulheres.

20
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou,
neste ano de 2018, um estudo chamado “Estatísticas de Gênero:
Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil”, o qual, dentre outros dados,
constatou que, entre 2012 e 2016, as mulheres ganharam, em média,
75% do que os homens receberam, ao ser analisado o rendimento
habitual médio mensal. As mulheres, mesmo tendo melhores níveis
educacionais, continuam recebendo muito abaixo do que os homens.
Até mesmo a nossa lei demorou bastante tempo para reconhecer o
direito das mulheres na área formal de trabalho. Isto porque, somente
em 1962, através do Estatuto da Mulher Casada, as mulheres foram
reconhecidas como igualmente responsáveis pelos encargos materiais
da família.
Antes disso, o entendimento que estava em vigor era o da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) datada de 1943. Nesse
diploma legal, no art. 446, havia a presunção de que as mulheres
casadas estavam autorizadas a trabalhar. Contudo, no parágrafo único
do mesmo artigo constava a previsão de que o marido ou o pai podiam
pedir a rescisão do trabalho dessa mulher, caso o desempenho da função
ameaçasse o vínculo familiar. Esse artigo somente foi revogado pela
Lei no 7.855, de 24 de outubro de 1989. Ou seja, não tem nem trinta
anos que o ordenamento jurídico nos permite trabalhar sem estarmos
expostas às vontades dos homens. A nossa defasagem financeira não
está desassociada das políticas públicas de exclusão das mulheres e isso
ainda reflete na nossa vida profissional e nos nossos salários.
Uma assistida minha tem uma filha com deficiência e, por precisar
acompanhar a criança em diversas consultas, não consegue entrar
no mercado formal de trabalho. Ao receber a notícia que o juiz fixou
alimentos provisórios que não cobririam nem metade dos gastos que
a família tinha com medicamentos, a primeira coisa que ela me disse
foi: “Vou ter que voltar com o meu marido para conseguir continuar
custeando o tratamento da minha filha”.
Como advogada, não cabe a mim fazer qualquer tipo de julgamento
ou decidir pelas mulheres. Contudo, como ser humano, preciso enxergá-
las como pessoas e tentar, sempre que possível, fortalecê-las dentro
dos seus anseios próprios. Adoto como prática sempre perguntar o que
as mulheres que sofrem violência de gênero querem com um processo.
Trabalhando em cima dos desejos subjetivos individuais delas, explico
em uma linguagem de fácil acesso os caminhos possíveis, apresento as
alternativas existentes e deixo que elas escolham o que fazer.
Dar autonomia para que nossas clientes decidam o que fazer com a
violência que sofreram é, a meu ver, um importante passo para o resgate
da autonomia dessas mulheres. Inserirmo-nos, enquanto advogadas, em
redes multidisciplinares, para termos mais possibilidades a apresentar a
essas mulheres, é nos abrirmos para um combate efetivo à desigualdade
de gênero, porque nem sempre a lei alcança a realidade das mulheres.

21
Relacionamentos gentilmente abusivos
Juliana de Castro Santos Ludmer

Esta história é de Sofia. A única razão para ser eu a escrevê-la é o potencial silenciador
dos processos violentos, o qual muitas vezes rouba das vítimas a força necessária para des-
velá-los.
Sofia acordou com a cabeça pesada e os olhos inchados. O choro da noite anterior havia
deixado rastros pelo seu corpo. Sentia a carne cansada, mas sabia-se obrigada a vestir o sor-
riso ensebado que lhe era exigido diariamente no trabalho.
Maquiou-se cuidadosamente para apagar as marcas do desgaste. O mundo não podia
sabê-la fraca. A dor é incômoda aos outros, repetia a si mesma.
Abotoou a blusa social e se olhou no espelho de corpo inteiro. Naquela imagem embal-
samada de produtos estéticos, o caos dentro de si estava escondido. Apresentável, esta era
a definição para a mulher que lhe devolvia o reflexo.
Caminhou até a estação de metrô. O barulho dos saltos dava ritmo ao seu passo fin-
gidamente disposto. Da plataforma, observou os trilhos em busca de sinais da chegada dos
vagões. Foi o suficiente. Nos poucos segundos em que se esqueceu de não pensar, as lem-
branças a envolveram.
No dia em que conheceu Paulo, havia feito, pela manhã, o mesmo trajeto. Estava in-
segura ‒ era seu primeiro dia no novo emprego e em nova cidade, duas conquistas muito
desejadas. No horário de almoço, em busca de um restaurante que lhe apetecesse, esbarrou
com alguns dos seus colegas de trabalho, que almoçavam na companhia de um amigo, infor-
malmente apresentado a ela na ocasião: Paulo.
Paulo lhe agradou de imediato. Era tímido, não especialmente bonito, embora não
pudesse ser classificado como feio. Tinha voz mansa e soava culto. Em uma única conversa,
emendava direito com literatura e história, em uma costura que, em sua narrativa, fluía de
forma sinfônica. Sofia sorriu ao ouvi-lo falar. Paulo correspondeu ao sorriso.
Saíram algumas vezes, e Sofia, sem que se desse em tempo, viu-se apaixonada por ele.
Enumerava mentalmente as qualidades do rapaz e surpreendia-se com a forma gentil com a
qual este a tratava. Parecia excesso de sorte: conhecer alguém tão encantador naquele curto
período de tempo.
Os pensamentos de Sofia foram arrebatados pelo barulho do metrô, que bruscamente
estacionava. As portas à sua frente se abriram, ela ingressou no vagão lotado. Segurou-se
na barra de ferro e, ao erguer a cabeça, notou os olhares a ela destinados. Conhecia aqueles
olhares ‒ estes lhe eram endereçados quando chorava em público. Absorta nas lembranças,
não realizara que as lágrimas lhe haviam retornado à face.
Paulo detinha esse poder. Fazê-la chorar. Não era culpa dele, Sofia pensava. A culpa era
sua. Se ele não correspondia ao encantamento, a culpa era sua, por não estar à altura. Se
ele era capaz de lhe ferir, a culpa era sua, por ser fraca. Se ele a ofendia, a culpa era sua, por
ser defeituosa. Paulo não podia ser responsabilizado por isso; ele era sincero em sua opinião
a respeito dela.

22
A primeira vez que Paulo a criticou, Sofia ficou surpresa. A crítica veio suave, em for-
mato de brincadeira. Uma piada relacionada ao sobrepeso de Sofia. Paulo não gostava de me-
ninas acima do peso que julgava ideal, havia lhe avisado em alguma ocasião. Sofia se sentiu
mal com o comentário, mas não acreditou que contivesse um julgamento velado. Até o dia
em que foi explícito. Bola, foi como passou a chamá-la. Carinhosamente.
Sofia relevou a brincadeira incômoda. Também se achava acima do peso, preferiu não
reclamar de imediato. Talvez devesse emagrecer, aproveitar a sugestão de alguém que preza-
va pelo seu bem-estar.
Aquele comentário irônico foi apenas o início. Com um pouco mais de intimidade ‒ de-
pois de dois ou três meses saindo ‒, Paulo começou as explosões. Ele justificava: Sofia o ir-
ritava. Em acessos de raiva, o rapaz atribuía a ela uma sequência de adjetivos depreciativos:
burra, gorda, desprezível, sem graça, desinteressante, incompetente. Sofia se ofendeu, pas-
sou a conferir a si mesma o direito de sentir raiva. Aquelas não eram sugestões, ele a estava
ferindo.
Sofia lembrava-se do momento preciso em que decidira se afastar de Paulo. Ia viajar
por três semanas com uma amiga, ocasião perfeita para interromper o contato com ele. Não
estava disposta a seguir em um relacionamento nesses moldes agressivos.
Contudo, nos dias que antecederam ao período de afastamento físico, curiosamente,
ele se transformou. As críticas transmudaram-se em elogios. Paulo alterou sua narrativa em
relação à Sofia. Esta passou a ser discursivamente descrita como uma profissional admirável,
a mulher com quem queria construir vida conjunta. Sofia, inicialmente arisca, aos poucos se
viu retomando os laços com Paulo. Reconciliaram-se. Ela não sabia explicar as razões. Era
sempre assim, como areia movediça. Quando tentava sair, algo mudava. Paulo mudava a
forma de vê-la. E ela amava essa nova Sofia que ele construía nos períodos de calmaria – tão
diferente da Sofia desprezível que ele outrora parecia convencê-la a ser.
Sofia sentiu um esbarrão contra seu corpo. O toque bruto a trouxe de volta ao cotidiano.
Ao metrô lotado, ao trajeto de ida ao trabalho, aos pés assentados em sapatos de salto alto um
pouco apertados. Observando as paredes que se sucediam atrás das janelas de vidro, Sofia
deu-se conta de que sua estação havia chegado. Esgueirou-se entre os demais passageiros,
forçando passagem contra o labirinto humano que a separava da porta do vagão. Finda a
jornada até a plataforma, Sofia ajeitou a saia e a blusa, e seguiu rumo à rua principal.
Mula. Essa era a forma pela qual Paulo agora a chamava. Ele tinha alguma razão, Sofia
pensava. Não estava conseguindo se concentrar no trabalho ou nas leituras, antes frequentes
em sua rotina. Talvez sempre tivesse sofrido de dificuldades de aprendizado, e faltasse al-
guém com coragem para lhe dizer isso. Talvez devesse ser grata por Paulo continuar em sua
vida. Ou será que deveria afastá-lo?
Sofia avistou o prédio em que trabalhava. Respirou fundo, passou a mão pelos cabelos,
limpou o vestígio das lágrimas em sua face. Conferiu sua aparência em um espelho portátil.
Externamente, não era possível identificar o sofrimento que a consumia. Que bom, a dor é
incômoda aos outros, repetiu a si mesma. Engoliu em seco, e seguiu em direção ao trabalho,
com um sorriso forçado estampado no rosto.

A história de Sofia é real. Todos os pensamentos descritos nesta narrativa foram re-
latados por ela. A autoavaliação de Sofia – moldada pelas críticas de Paulo – não condiz com
o que ela é aos olhos dos que a conhecem. Sofia é uma das mulheres mais incríveis com as
quais já convivi. Espero ajudá-la a nunca esquecer isso.

23
Luto e Reinvento
Rafaela Miotto de Almeida

Aos homens que nos calam


Que nos arrancam o movimento dos braços
Que nos magoam desde a semente
O desapreço contínuo nos seus lábios crispados
O horror do olhar que reflete o algoz
A força que me jogou ao chão
E ruborizou minha face
Com palavras, com gestos, com desdém
Desde o alto se proclama superior
Imprime em meu corpo seu rastro de morte e seca
Turbou minha terra, minhas celebrações
Destilou suas mentiras para mim e para elas
E se roga meu defensor
Desde o primeiro até o último
A você, que fez o mesmo que seu pai
Minha voz ainda existe
Meus cantos ainda ecoam
Meu corpo se move, se revolta e mostra vida
Minha memória vence as dores
Minha verdade desmente seus engodos
Meu futuro vislumbra novas bodas
Minha armadura reluz límpida
Sou minha defesa
O cansaço assola
Mas sou feita de luta
E ela persiste.

24
Nós
Clarice Lippmann

Dedicando-me à escrita na coluna que publico em uma revista on-line, tive a


oportunidade de escrever sobre Lou Andréas-Salomé, por ter assistido sua cinebiografia
lançada no começo de 2018 nos cinemas brasileiros. Ao me aprofundar um pouco mais
em sua história, percebi o quanto foi injustiçada em seu legado, sempre vinculada aos
nomes de homens que passaram por sua vida. Ressalto: a maioria tão genial quanto
ela, afinal, Lou sempre circulou por um meio acadêmico efervescente. De imediato,
penso em Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Sigmund Freud e Rainer Maria Rilke, todos
importantes figuras em sua jornada, tanto profissional quanto pessoal.
Todavia, Lou não teve o mesmo destaque que nenhum desses homens. Fosse
na filosofia, literatura, poesia ou psicanálise, não adquiriu o mesmo nível de fama, de
publicações em línguas estrangeiras, ou tiragens de livros vendidos. Viveu, por assim
dizer, à sombra dos homens, mesmo sendo uma mulher de inteligência e produção
ímpares para tantas áreas do conhecimento.
Refletindo sobre essa sensação de injustiça e disparidade entre o reconhecimento
dado a homens e a mulheres, me recordei de uma palavra alemã: “Trittbrettunsterblich
keit”. A tradução mais próxima seria algo como “uma imortalidade alcançada por estar à
sombra de alguém” . Uma vinculação direta de sucesso a outra pessoa, algo que, muito
comumente, acontece conosco, mulheres. Relacionado, é claro, aos homens que nos
cercam. Aos homens que nos aprovam, e ao pensamento da sociedade de que o valor
de uma mulher está atrelado à aceitação que ela tem pelo olhar masculino.
Pensei em todas as pequenas conexões obrigatórias que me foram feitas ao longo
da vida por todos os homens que participaram dela. Parentes, amigos, companheiros.
Todos, de alguma forma, foram citados como meio de aprovação pessoal. Alguns em
pequena escala, em comentários inocentes, mas que poderiam carregar um teor de
machismo introjetado e não premeditado. Outros, literalmente ligados à ideia do olhar
masculino positivo, para me trazer alguma forma de mérito.

25
Posso citar a primeira vez que me questionei sobre a importância de identificação de
gênero, sem nem ter ideia do que seria isso. Eu deveria ter entre seis ou sete anos, e estava
brincando no recreio com meus amigos. Tinha facilidade em criar amizades masculinas, muito
provavelmente por reproduzir a ideia machista de que a companhia masculina era em si
“melhor”. Os meninos eram mais livres, podiam sentar do jeito que queriam, andar do jeito
que queriam, se sujar, se machucar, isso era esperado deles. De nós, mulheres, desde muito
pequenas eram exigidos elegância, decoro, palavras que sequer deveriam fazer parte do
imaginário e vocabulário infantil.
Nesse momento supracitado, estávamos brincando de pega-pega, e em algum momento
uma coleguinha comentou algo como “a Clarice parece um menino, é uma peste igual a
vocês”. Um amigo meu na época se virou para mim e logo respondeu, em um tom que, para
ele, deveria soar como um elogio: “Mas ela parece mesmo. Se ela pudesse, teria nascido
menino, não é?” e me fitou sem sombra de dúvida nos olhos. Eu me lembro de me sentir
triste, de certa forma diminuída, sem nem entender por quê.
Por mais banal e até piegas que pareça, esse comentário repercutiu em mim, tanto que
me recordo disso até hoje. Naqueles tempos, não entendia que o que tinha me doído era a
mensagem por trás: “Clarice, você poderia ser mais. Você poderia não ser mulher, poderia ser
homem”. Foi o primeiro baque de compreender que nós, mulheres, não somos tão relevantes
assim na sociedade. Somos um gênero subalterno.
Pequenos apontamentos similares me traziam uma frustração parecida: nas escolas em
que estudei, quando me saía bem em alguma matéria, não raro ouvia “não à toa você é irmã
do seu irmão”, “não podia ser diferente, seu irmão é tão inteligente”. Como se meu mérito
de alguma forma tivesse algum ligame direto às conquistas do meu irmão, e não fossem
merecimentos relativos às capacidades de cada um. Por isso, muitas vezes eu preferia não
contar aos professores sobre essa conexão familiar.
Também não foi incomum escutar comentários do tipo nas relações amorosas que
tive. Tanto me conectando à aprovação masculina do meu companheiro, como provando
de algum modo que eu era uma mulher admirável ou competente por justamente ter um
companheiro. Isso porque não estar solteira pressupõe que um homem me aprovou como
digna da companhia dele em um relacionamento estável, e isso diria muito sobre mim, e não
sobre algo que foi escolha dele: querer estar ao meu lado.

26
Para muitos, essa estabilidade amorosa seria por si só um mérito, pois me diferenciaria
das outras que não estão em uma relação estável monogâmica. Eu fui escolhida, elas não.
Fui agraciada com a chance de ter um homem comigo, que se comprometeu a estar apenas
comigo, sem dividir sua companhia com ninguém. “Você é muito inteligente, não à toa tem
namorado”. “Você é tão bonita, é lógico que não estaria solteira”. “Você é muito interessante,
não poderia mesmo estar sem um homem”. Ouvi alguns desses comentários sobre mim,
todos proferidos em tom de lisonja, e me soaram mais próximos da objetificação do que do
elogio. Como se minhas virtudes e qualidades tivessem que necessariamente atrelar uma
companhia masculina.
Afinal, se eu sou tudo isso acima, que homem não iria querer me ter como sua posse? Eu
deveria me sentir grata por isso, diferenciada. Como é maravilhoso ter a aprovação, o desejo,
a admiração do olhar masculino, não? Nem todas as mulheres podem tê-lo! Que privilégio!
O mesmo ocorreu – e tende a ocorrer – enquanto jovem mulher solteira. “Como alguém
como você está desacompanhada?” “Não é possível que você esteja solteira” e frases do
gênero já foram dirigidas para mim no mesmo tom e contexto que as anteriores. Todas foram
recebidas com o mesmo desconforto.
Para quem as diz, imagino, é como se a conta não fechasse: se um sujeito hipotético do
sexo masculino aprova minhas qualidades, como não haveria alguém do mesmo gênero em
minha vida que também não aprovasse, e quisesse cumprir esse papel de me ter como posse?
Soa como se eu, jovem mulher, não pudesse ter a liberdade de escolher não estar em um
relacionamento; como se devesse existir uma disputa ou competição pelo “título” de homem
a ser meu companheiro entre os indivíduos do sexo masculino. Eu seria um troféu a ser
conquistado, um objeto cobiçável cuja posse ninguém, surpreendentemente, teria clamado.
E então eu pergunto: onde está a lisonja, o elogio ou o reconhecimento nisso?
Não, em resposta muito atrasada ao meu amigo de infância, eu não queria ter nascido
menino. Eu não tenho nenhum desafeto com meu irmão, apenas sei que meus talentos não
dependem dos dele. Eu não me sentia incomodada dentro das relações que tive, pois o ponto
fundamental de todos esses laços foi que eu escolhi me atrelar.
Sim, eu quero estar solteira. Sim, eu tenho minhas qualidades, e todas elas só dizem
respeito a mim. Posso afirmar sem hesitar que, sim, eu quero ser como todas as outras
mulheres. E quero que todas, não só eu, possam ser como somos. Com nossos méritos e
deméritos não vinculados ao sexo masculino. Sem a insistência incômoda de nos colocar
na sombra de um homem para nos trazer reconhecimento. Sem a injustiça de ser posta,
necessariamente, ainda mais à sombra, quando procuramos o reconhecimento de nossos
méritos em instâncias nas quais há também participação masculina. “Ela é tão boa quanto um
homem” é, infelizmente, um comentário que passa na cabeça de um menino de sete anos,
mas é reproduzido por homens de todas as idades.
Contra essa ainda infelizmente corrente de machismo, que possamos ter a liberdade
de querer ser como nós escolhemos. Sigamos desfazendo os – outros – nós que tentam nos
amarrar e conectar nossos méritos a figuras masculinas, nos prendendo a essas ofensas
disfarçadas de lisonjas.
Sejamos reconhecidas e reconheçamos umas as outras, em suma, apenas por sermos
nós mesmas. Nós merecemos isso.

27
Desvendando as faces ocultas do patriarcado:
como as mulheres são agredidas cotidiana
e sutilmente na advocacia
Michelle Mendes

Nós, mulheres, sofremos opressões em todas as esferas e fases de nossas vidas. Com
muita sorte, somos criadas de uma forma extremamente rigorosa – como eu fui – e temos
nossa jovem personalidade desenvolvida dentro de limites que estabelecem e definem como
vamos nos comportar desde crianças até adultas. Ouso dizer sorte, pois talvez isso tenha me
preservado de algumas agressões que vi colegas minhas sofrerem. Mas que fique claro que
em nenhum momento e sob qualquer hipótese viso a atribuir a culpa de qualquer violência
à mulher. Esse é um processo que a sociedade inteira já faz por nós, e nós mesmas não
podemos incorrer nesse tipo de comportamento.
Isto posto, esclareço que o machismo dentro da advocacia nunca foi uma surpresa para
mim, e imagino que não seja para nenhuma de nós. Afinal, na condição de mulher, durante
anos eu já estava inserida na sociedade patriarcal antes de vir a ser uma advogada. Como
uma jovem advogada, ainda que quase recém-formada, já posso dizer que vi e vivi diversas
agressões, algumas escancaradas e algumas outras nem tanto, de qualquer forma não sa-
beria colocar aqui o que é pior, se é ter plena consciência das diversas violências vividas, ou
não.
No entanto, durante a minha trajetória, por mais que eu tenha sempre me portado de
forma excessivamente séria e, até diria, adotado uma certa postura “masculina”, isso nunca
tirou de mim e não tira de nós a condição de ser mulher, ou o “outro sexo”, como bem diz
Simone. Dessa forma, as violências, em suas diversas e mais profundas formas, fazem parte
de nosso cotidiano. Aliás, essa talvez seja a primeira forma de violência da nossa profissão, a
qual é de tal modo cruel que nos faz ajustar traços de nossa personalidade de forma que nos
encaixemos nos moldes aceitos pela advocacia. Penso não ser coincidência jamais ter visto
mulheres fora de um determinado padrão de conduta e beleza atuando em grandes escritóri-
os. De alguma forma parece que para sobrevivermos temos que praticamente “ser homens”,
mas sempre lembrando que não importa o que façamos, jamais seremos iguais a eles.

28
Uma das primeiras vezes que percebi isso foi durante as
primeiras entrevistas em escritórios de advocacia criminal. Já
sabendo como é esse tipo de ambiente, a minha maior preocu-
pação era demonstrar uma imagem séria, rígida e, como men-
cionei, de certa forma “masculina” mesmo, para que não duvi-
dassem de minha capacidade. Não obstante, em mais de uma
entrevista me perguntaram se eu, “por ser mulher”, estaria dis-
posta a lidar com o processo criminal e suas exigências, como
ir a delegacias, lidar com clientes exigentes e nervosos etc. A
primeira vez que escutei essa pergunta, fiquei desconcertada e
achei que fosse algum tipo de brincadeira. Entretanto, percebi
que essa mesma pergunta se repetia exatamente da mesma
forma em outras entrevistas, sempre se iniciando com a frase:
“Você, sendo mulher...”. Não é preciso dizer que não acredito
que a mesma pergunta seja direcionada a homens e, não por
um acaso, a única vez que não fui questionada nesse sentido, foi
ao ser entrevistada por uma mulher. Não entendo por que esses
advogados, ilustres doutores e pós-doutores, nos perguntam se
estamos dispostas a exercer um trabalho para o qual estudamos
exatamente para desempenhar.
Ainda no universo das entrevistas, muitas advogadas
presenciam a preocupação que os advogados contratantes têm
em saber sobre questões pessoais. Compartilho da experiência,
que muitas colegas já vivenciaram, de ser interrogada sobre
minha vida afetiva durante uma entrevista de emprego. Por
algum motivo, advogados tendem a se preocupar se desejamos
nos casar e ser mães em breve, algo que certamente – em seu
imaginário – afetaria nossa capacidade profissional de forma que
não afetaria a de um homem. Da mesma forma, enquanto o
advogado recém-casado ou novo na paternidade é mais cotado
para receber uma promoção por ter se tornado “provedor”, à
advogada é recomendado que se afaste da profissão para dedicar
mais tempo à família.
Um dos maiores problemas e frustrações dessas séries de
violências escondidas ou disfarçadas em comportamentos cotidi-
anos é a dificuldade em confrontá-las com comportamentos que
também poderiam ser considerados cotidianos. O que percebi
até hoje em todos os ambientes em que trabalhei, e vi o mesmo
acontecer com colegas de profissão, é o advogado sênior tentar
forçar uma relação de amizade e camaradagem desde a entrada
da jovem mulher advogada ou estagiária no escritório, seja fa-
lando sobre sua vida pessoal, seja adotando uma postura força-
damente coloquial. Dessa forma, suas violências são emitidas
em um ambiente que é mais confortante para ele, e quando nós
nos impomos ou contestamos, somos taxadas de “demasiada-
mente sensíveis”, “exageradas” ou ainda “loucas”.
A violência contra a palavra da mulher também é extrema-
mente comum em escritórios. Homens advogados acham que
nós não percebemos que temos nossas falas frequentemente

29
cortadas por eles. Nossa opinião é pouco, se
levada em consideração em discussões em grupo.
Quando um advogado ou ainda um cliente pede a
nossa opinião, ainda mais comum é escutar que
precisam de um julgamento “sensível”, “feminino”
e/ou “materno” do problema em questão – ape-
sar de nunca ter entendido o que isso significa.
Não obstante, manter uma posição política que
tradicionalmente faz parte de uma minoria pode
ser ainda mais desafiador no ambiente da advo-
cacia. Muitas vezes que defendi uma opinião so-
bre algum assunto político em discussão no mo-
mento, fui diminuída e vi meus argumentos serem
atribuídos ao simples fato de ser mulher. Esse tipo
de resposta reducionista é uma das ferramentas
do patriarcado que por vezes é muito difícil de
confrontar. Da mesma forma, quando uma mul-
her está explicando um determinado assunto e é
interrompida por um colega que visa a explicar
exatamente o mesmo ponto que ela já estava fa-
lando antes.
Não obstante as adversidades no âmbito
prático-jurídico, a ocorrência de violências
disfarçadas de situações ou comportamentos
“normais” é muito frequente e teve início nos
primeiros anos de universidade. Apesar de ter
estudado em uma faculdade onde a maior parte
do corpo docente é composta por mulheres, e
sempre ter tido muitas professoras que foram
e são verdadeiras inspirações feministas, a
quantidade de professores homens que assumiam
uma postura extremamente machista para com
as alunas era gritante. Em um determinado
momento, um professor – muito conhecido por
ter uma postura racista e misógina – concedia a
revisão de uma prova e resolveu reclamar que os
meus argumentos sobre seus erros na correção
eram nada mais que um “chilique”. Além disso, era
extremamente comum ver estudantes mulheres
serem interrompidas por ele e outros professores
durante alguma discussão em aula, visando a
finalizar o assunto. Tal situação não se repetia com
os alunos do sexo masculino, sendo evidente a
irrelevância que tais docentes atribuíam à opinião e
contribuição das mulheres, forçadamente caladas
durante o debate.
Não suficientes as violências diretamente
contra o corpo, a personalidade, o espaço
privado e a fala da mulher, também temos nossa

30
competência constantemente questionada. Com
o tempo pude perceber que, na nossa profissão,
a mulher advogada ou professora de Direito,
quando seu companheiro ou marido também é
da área, é sempre conhecida como “a esposa
de”, “a companheira de”. Sendo mulher, nossa
capacidade é reduzida à capacidade de nosso
companheiro, ou ainda, a nossa capacidade é de
alguma forma construída graças à capacidade de
nosso companheiro. Somos conhecidas ou ainda
acreditadas porque somos esposas e companheiras
de grandes professores e advogados. Para nos
apresentar é dada a ficha completa de nossos
maridos, com direito a livros publicados, escritórios
trabalhados e congressos participados. E, somente
assim, somos reconhecidas.
Honestamente, eu não saberia dizer o
que passa na cabeça de um homem. Ser criado
e crescer em um mundo onde ele pode fazer
e falar qualquer coisa, principalmente com
mulheres, e especialmente se este homem é
branco, heterossexual, e pertence a uma classe
economicamente favorecida. Realmente, deve ser
muito bom ser um homem nessas circunstâncias.
Estou falando de possuir um poder que eu jamais
saberia descrever. Não imagino como seja não
precisar pensar antes de falar e de fazer. Não
precisar antecipar todas as formas de como poderei
ser interpretada, e se serei mal compreendida ou,
ainda, malvista. Não precisar pensar todos os dias
como me vestir adequadamente, e como expressar
qualquer atitude. Tudo para que, no futuro, eu não
seja culpada por algo que vão fazer contra mim.
Em todo caso, a violência contra a mulher
advogada nem sempre é evidente, pode ser
sutil, estar disfarçada em práticas consideradas
“normais”, como a interrupção em discussões, as
perguntas pessoais em entrevistas, ou a atribuição
de nossa competência à carreira de nossos
companheiros, e por aí vai. Entretanto, para nós,
mulheres conscientes, essas violências funcionam
como pequenas e finas agulhas que nos perfuram
pouco a pouco, dia a dia. E, ter plena sabedoria
sobre a existência e a frequência dessas violências
me faz enxergá-las como verdadeiras e eficazes
ferramentas de opressão, as quais precisamos
discutir e abordar com nossas colegas para, juntas,
lutarmos constantemente contra.

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Precisamos conversar com ele
Natália Baldessar

Um fantasma nos ronda. Ele nos assombra e nos persegue por todos os cantos. Não
descansa. Não nos esquece.
É verdade. Durante muito tempo achamos que era só invenção da nossa cabeça; nos
acusaram de disseminar “manias de perseguição”. Aliás isso também é obra do fantasma.
Para ele, quanto mais tempo as pessoas nos desacreditarem mais poderá continuar a sua
tarefa.
O fantasma, coitado, não tem vida e por isso quer que a gente também não tenha uma.
Ele se ocupa de controlar todos os aspectos da nossa vida. Afinal, ele não tem mais o que
fazer mesmo.
O “sem corpo” começa a agir desde que nós somos crianças. Sem coração. E continua
até a nossa morte. É um tipinho que não respeita nem as crianças, nem as idosas.
É ele que vai ditar o que podemos vestir. Quase nada. O que podemos falar. Quase nada.
O que podemos fazer. Quase nada. Por onde podemos andar. Com quem podemos conversar.
Que profissão vamos ter. E o que vamos poder fazer na profissão que escolhermos.
Mas isso não basta. Ele também tem a função, a mais fantástica delas, de apagar os
rastros das suas “pequenas traquinagens”. Ele vai fazer desaparecer os rastros de todos os
incômodos que causar na sua vida.
No princípio, vai sentir algo se revolvendo dentro de você. É algo como um sugador
gelado que surge de dentro da sua barriga e lhe dá aquela sensação de ser vazia por dentro,
de que as suas entranhas foram parar no chão. Seu rosto vai perder a expressão. É algo au-
tomático. Sua face pode perder a cor.

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No princípio é assim. Você pode querer comentar, reclamar sobre o acontecido, mas
como o fantasma tem muitos e muitos anos de experiência, ele já terá exercido a outra
etapa da sua função. Ele já terá apagado os rastros do seu “destrabalho”. Você vai sentir
isso também. Depois do vazio, ainda vem esse outro sentimento. A sensação paralisante de
embrulho de tudo o que tem por dentro, de impotência misturada com revolta.
Depois de um tempo você para de sentir.
Você se desliga dessas sensações e começa a esquecer.
Não se sinta culpada. É uma estratégia de sobrevivência. São sentimentos muito fortes.
Muito paralisantes, e claro, você precisa seguir.
Nós seguimos. Durante muito tempo, nós seguimos. Não adiantou. Não chegamos
muito longe.
Nós. Nem eu nem você.
Caso você ainda não tenha percebido. Sim. Esse fantasma só gosta de mulheres. Meninas
também. Triste, né? Eu também acho.
Nós queríamos mais, mas, simplesmente, não deu. Não aconteceu. Outras coisas en-
traram no caminho. Não deu.
É assim. Enquanto esse fantasma estiver rondando o seu caminhar será mais lento.
Você terá apenas uma subvida.
Sim. Essa vida que você vive, que você compartilha com as suas pessoas queridas, que
você posta no Instagram e no Facebook, que acha maravilhosa, a que agradece ao seu Deus
todos os dias. Então. É uma subvida.
Você também pode não acreditar nisso. Tudo bem. Mas, pensa. Para começar do básico.
Você sabe o que é se vestir sem ter que pensar no que as pessoas vão dizer, nos caminhos
que você vai fazer? Quantas vezes disse para si mesma que não poderia fazer determinada
coisa ou ir a determinado lugar sozinha porque é mulher?
Enquanto esse fantasma rondar, não tem jeito, você perde. Você, mulher, perde.
Perde muito.

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Não apenas perde o que tem. Aquilo que
conquistou com esforço e dedicação especial. Mas
também tem o “perder” de outros tipos. O perder verbo
que se conjuga em vários tempos e modos. Tem o
perder de quem conseguiu, alcançou, mas não adianta,
não vai poder usar. Da lentidão extremada em tudo o
que pretende realizar. E também o perder do tipo que
você deixa de ganhar. Das oportunidades perdidas. Do
crescimento perdido.
Tem outra forma, também, talvez menos cruel de
enxergar a subvida. Pensar na vida plena que podemos
ter amanhã. Pense nessa vida. Pense em todos os
detalhes dessa vida. Pense em como seria você. Como
seriam seus amigos, seus amores, seus colegas de
trabalho.
Quando estiver com essa pintura pronta na sua
mente. Pense no hoje.
Viu?
Então pense. Por que não chamamos esse
fantasma para conversar? Qual o problema? Você tem
medo? O que mais ele pode fazer para você?
Eu sei que pode pensar que não adianta conver-
sar com um tipo desses, um detentor de uma subvida,
um destituído de qualquer humanidade. Sei que a sim-
ples ideia de perder tempo com uma conversa dessas
já pode parecer ultrajante. Depois de tudo que temos
que passar, ainda temos que conversar com ele?
Mas então. Temos. Se não for a gente, quem
será?
Algumas pessoas que se cansaram da subvida
já tentaram chamar a atenção, alertar as mulheres e
a todos sobre esse fantasma. Foram desacreditadas.
Chamadas de vários nomes. Lunáticas. Radicais.
Extremistas. Feminazi!
O fantasma é assim. Só quem sente seus efeitos,
sabe que ele existe.
Então, precisamos mudar o método. Resolvemos
que vamos conversar com ele.
Só tem uma coisa. Dizem que para conversar
com os fantasmas a gente precisa chamar o ser sem
corpo pelo nome. Sim. Isso aparece o tempo todo na
televisão. Você precisa chamar o fantasma pelo nome.
Isso atrapalha um pouco as coisas porque o fan-
tasma não quer ser visto, muito menos quer que saib-
am o seu nome. É uma das tarefas dele “apagar os
seus rastros”, lembra? E que forma melhor de apagar
esses rastros do que fingir que eles aconteceram “por
obra da natureza”? É comum ele desaparecer quando
a gente o chama pelo nome.

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Vamos chamá-lo pelo nome, mesmo assim.
O nome dele você sabe qual é, né? Ele se cha-
ma machismo. Assim mesmo, minúsculo. É porque
é a natureza diminuta dele.
Vamos chamá-lo e fazê-lo ouvir o que temos a
dizer. Tarefa difícil, sim. Mas não impossível.
Vamos dizer.
Vamos falar. Vamos falar para ele.
Vamos falar que o vimos fazendo coisas erradas
com a nossa vida. Vamos falar que sabemos o nome
dele e que vamos chamá-lo toda vez que o virmos
fazendo essas coisas com as nossas vidas.
E quando isso acontecer, vamos falar.
Vamos falar que temos direito. Vamos falar
que temos direitos.
Vamos falar que somos. Vamos falar que sen-
timos. Vamos falar que não vamos fingir que não
aconteceu nada. Vamos falar.
Vamos falar que vamos fazer aquilo que temos
vontade. Aquilo que acorda nossa alma. Aquilo que
nos realiza. Tudo o que nos traz prazer de viver.
Vamos falar que vamos trabalhar. Vamos ao
trabalho.
Vamos falar que nosso trabalho não é lazer.
Trabalhamos porque queremos. Temos obrigações.
Somos competentes.
Vamos falar que merecemos e queremos.
Vamos falar que queremos agora. Vamos falar
que precisamos agora.
Vamos falar mesmo que os homens falem por
cima. Não vamos calar. A fala é nossa.
Vamos expressar nossas ideias e vamos “lem-
brar” ao nosso colega que a ideia não foi dele, ela é
nossa. Sim, mulheres têm muitas boas ideias.
Também vamos falar de nossas ideias sem pe-
dir gabarito. Vamos saber que estamos certas.
Vamos viver os direitos que são nossos. Va-
mos vivê-los sem pedir licença, sem perguntar se
podemos. Eles são nossos.
Vamos parar de aceitar os inaceitáveis.
Nem toda violência é igual. Nem toda violên-
cia é episódica. Nem toda violência é evidente. Nem
toda violência é singular.
A violência igual, repetida, diminuidora, limita-
dora, segregadora, secular, sub-reptícia, dirigida às
mulheres, é um fantasma e se chama machismo.
E você? Já viu esse fantasma?
Vamos chamá-lo para conversar?

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Cotidiano
Fabíola de Oliveira da Cunha

Quando não sei o que fazer, paro tudo e tomo um café. Talvez, essa seja a melhor
solução, para alguns, já que nem todos gostam de café. Um café pode aliviar e organizar
ideias, o que nem sempre é algo tão simples. Eu vou não ser pessimista neste texto, mas me
acompanhe nessa reflexão que alguns litros de café me trouxeram.
O que trago a seguir é dedicado a Myrthes Campos, Carolina Maria de Jesus e Marielle
Franco. Myrthes foi a primeira mulher advogada no Brasil e se ela não tivesse dado esse pon-
tapé, talvez muitas de nós nem estivéssemos exercendo a advocacia, enquanto Carolina Maria
é considerada uma das mais importantes escritoras negras do Brasil. Favelada, catadora de
papel e que sempre escreveu o que via a seu redor. E Marielle Franco foi uma das vereadoras
mais bem votadas do Rio de Janeiro, negra, de origem econômica desfavorecida, mãe, em
união estável lésbica, executada por ser defensora dos direitos humanos. Essas três mulheres
brasileiras, de realidades completamente opostas, resumem bem a reflexão a seguir.
Você já parou para pensar como é cursar uma universidade no Brasil? Mais especifica-
mente, já pensou naqueles perrengues típicos de um estudante, como gastar dinheiro em
xérox ou lanche? Alguns, depois de formados, podem rir dessas situações. Mas pense que
rir de perrengues é mais difícil para uns do que para outros, principalmente para mulheres
periféricas.
A dificuldade começa quando a mulher pobre quer entrar no ensino superior. Caso seu
ensino médio não tenha sido bom, ela não irá passar em um vestibular concorrido para o curso
de Direito, por exemplo, e acaba procurando uma universidade particular, não muito cara,
com um bom desconto. Assim, dá para estudar e trabalhar. Ela não pode ficar desempregada,
pois terá de trancar a faculdade por falta de dinheiro.
Mas, suponhamos que tudo dê certo em relação a seu estudo universitário e essa mulher
periférica, que mora em uma zona de conflito territorial, qualquer que seja ele, já começa
desfavorecida. Sua volta para casa é um filme de drama com pitadas de terror. Se ela tiver
carro ou moto, já tem uma ‘’sensação de segurança’’. Mas a maioria das universitárias usa
transporte público.

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Temos então o terror. O terror de ser assaltada enquanto está apenas exercendo o seu
direito de ir e vir, seja o medo de saltar do transporte público à noite e caminhar em uma
rua mal iluminada até sua casa, ou mesmo de ter alguma parte do seu corpo apalpada por
qualquer um. Os constrangimentos sexuais por que toda, repito, TODA mulher, cis e trans,
passa única e exclusivamente por ser mulher. E o maior medo de todos, o de ter sua dignidade
sexual violada enquanto seu corpo transita pelas ruas.
Fora isso, tem a fome em dias de pouca grana para comprar aquela coxinha salvadora, já
que o livro que o professor pediu custa duzentos reais, tem a falta de saúde mental vinda do
uso diário dos transportes lotados, tem o medo que colocam em cima da prova da Ordem.
Finalmente ela cola grau, acha que sua vida vai melhorar. É hora de viver o sonho.
O terninho elegante e parcelado no cartão já foi pago. Sua estante está mais arrumada
do que nunca. Seus cartões de visita já estão prontos. Seu currículo, sendo distribuído. Mas,
enquanto esse emprego não vem, ela arruma um fora da sua área, algo que não irá satisfazê-
la.
Na profissão de advogada seus primeiros clientes são parentes. Uma ação contra uma
prestadora de internet aqui, uma de alimentos ali e assim vai. Passam-se meses e nada de um
emprego fixo e seus rendimentos como autônoma não pagam nem as necessidades básicas.
Quer muito fazer um mestrado, mas perdeu o edital. Agora só no próximo ano, claro
que em universidade pública, já que não pode pagar por uma particular. Tentou fazer uma
pós-graduação, mas cadê o dinheiro?
No caminho para o Fórum, vê que a população de rua aumenta a cada dia. Percebe que
pessoas e animais dividem o mesmo espaço de refeição, a lixeira.
Quer ajudar, compra uma quentinha para um e um pouco de ração para outro. Mas não
vê uma mudança real. E percebe, triste, que se comprar quentinha e ração todo dia para aju-
dar, ela que ficará sem ter como comer.
Para se distrair ela lê o Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e percebe que o
sistema econômico opressor é o mesmo dos anos 50.
Fazendo uma retrospectiva, nota que na sala de aula havia mais mulheres do que ho-
mens, mas no mundo corporativo é o contrário. Ela se lembra de Myrthes Campos, primei-
ra advogada brasileira que concluiu o curso de Direito em 1898, mas, devido à sociedade

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machista da época, só conseguiu ingressar no
quadro de sócios efetivos do Instituto dos Ad-
vogados do Brasil em 1906, ingresso necessário
para exercer a advocacia.
Os dias correm, e uma ativista política e
vereadora eleita de forma democrática chama-
da Marielle Franco é assassinada, executada a
tiros. Ela se indigna, se expressa nas redes so-
ciais, e vê que tem que esperar as investiga-
ções. Passados 15 dias, esse crime ainda não
foi solucionado. Militantes de direitos humanos
estão sendo executados apenas porque querem
melhorar a sociedade e o sistema político.
Ela vai percebendo que no seu trabalho
– aquele que não é da sua área de formação,
mas que paga suas contas e concilia com o
horário dedicado às poucas causas jurídicas que
pega – ela é a única mulher jovem e periférica
que conseguiu terminar um curso superior,
que consegue ler e interpretar um texto sem
dificuldades. Ela é a única que questiona o
capitalismo, enquanto as outras acham o único
sistema possível, já que aprenderam na escola
que comunismo leva à miséria e não veem o
quanto fomentador de miséria é o capitalismo;
acreditam em meritocracia e não se questionam
sobre o sistema que praticamente obriga o
indivíduo a estar endividado, cheio de parcelas
que tenta encaixar em seu orçamento mensal.
E com isso essa mulher vai deixando que
sua esperança e sua paz interior entrem na UTI
quando vê pessoas em situação de miséria, e vê
corpos estirados no chão. Quando vê homens
ejaculando em mulheres no transporte público
e tudo não passa de uma contravenção penal,
a importunação ofensiva ao pudor. Quando
vê travestis mortas brutalmente por puro
preconceito, assim como Dandara dos Santos.
Seus amigos falam que ela tem que relaxar
e ter esperança, que vai aparecer algum bom
emprego logo, seja um concurso público ou um
escritório dos sonhos. Mas nada aparece.
Ela então acha aquela faísca de
esperança quando lembra que logo terá eleição
presidencial. Mas ao olhar as intenções de voto

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ela estremece. Tenta acreditar que os resultados
estão errados.
Até que um dia seu telefone toca para uma
entrevista de emprego em um escritório do qual
ela quer muito fazer parte. E na última etapa,
quando só resta ela e mais uma candidata, ela
não passa. Será que é por causa de algum erro
de português ou jurídico? Será que é porque ela
mora longe do emprego e a passagem é cara?
Será que é pelo peso? Afinal, para as mulheres
a aparência é um fato muito decisivo. Se não
arruma ninguém é por ser gorda, e no verão
precisa entrar no projeto “barriga negativa”.
Depois desse labirinto de pensamentos ela
percebe que a outra candidata tinha o mesmo
corpo dela, e que a vaga não era para modelo,
e sim advogada. O motivo da eliminação foi
outro. Motivo que ela nunca saberá. E o tempo
a passar, escancarando realidades violentas na
sociedade.
Ela tem como frase motivacional um
trecho de um poema de Cecília Meireles que
diz: “Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é
possível reinventada”.
As pessoas querem que ela seja uma
Annalise Keating, de How to Get Away with
Murder. E ela ri de nervoso por tentar caber na
personagem.
E finalmente arruma um emprego na área
e está mais feliz. Só que sua felicidade nunca
será plena enquanto não parar de ver corpos
amontoados em praças públicas, vivos ou
mortos, enquanto a população alienada apoia
um sistema econômico falho e opressor.
Essa mulher pode ser você, pode ser uma
conhecida ou pode ser eu. Mas isso não importa,
o que importa é que devemos sempre questionar
nosso papel na sociedade, e lembrar que a luta
digna do seu semelhante deve ter a sua empatia
e apoio.
Quero que essas palavras sirvam de
reflexão e de ação, e que mulheres em posições
mais privilegiadas ajudem as que precisam de
visibilidade, levando consigo a certeza de que
a luta das mulheres muda o mundo. Agora,
aconselho que você tome um café e vá agir.

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Pensando na vida
Beatriz Maria Garboggini di Giorgi

Vida para viventes e sobreviventes, não admite opostos nem contrários, é o único es-
tado perceptível. Mas vida requer complementos.
Se não me engano, e me engano bastante, Oscar Wilde teria dito que a vida imita a arte.
Não entendo muito bem essa frase.
Vida e arte são conceitos de categorias diversas. Sem vida não há chance de arte e sem
arte apenas a vida humana fica sem graça, anulada. Mas amo a arte como o ar que respiro e
posso tentar viajar pela onda de Wilde.
A vida imita a arte e vai mais fundo. A vida é discípula tão aplicada da arte que supera
a mestra.
Outro dia, uma mulher moradora de rua vagava pelo bairro onde moro, catou um gra-
veto no meio-fio, observou-o, pôs na boca, lambeu, experimentou e descartou. O intenso
poema Bicho, do Bandeira, parece tímido diante da cena. Se uma obra de arte tentasse imi-
tar essa cena seria provavelmente considerada exagerada. E as coisas que acontecem e não
vemos podem ser mais fortes ainda, imagino.
Só prestar atenção ao redor que é vida na veia, sem rascunho nem enfeite, pois nem
vida nem arte são descartáveis.

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Resistência feminista na prática da advocacia:
a experiência do Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde
Letícia Ueda Vella
Fernanda Costa Nunes Meneses

O universo jurídico é um espaço tradicionalmente masculino. Essa condição nasce a par-


tir da suposta neutralidade do ensino das universidades, que não se atentam para a questão
das desigualdades de gênero em seus currículos e em salas de aula , e é mantida na prática
da advocacia por instâncias de poderes extremamente conservadoras que, de forma sutil, ou
às vezes explícita, colocam o “ser mulher” como uma desvantagem competitiva em ambien-
tes de disputa.
Essa realidade afeta diretamente as mulheres advogadas, que encontram diversos
obstáculos para a construção de suas carreiras , mas também gera um saber apropriado por e
para homens, que faz com que as mulheres, em geral, tenham seu acesso à Justiça dificultado
e, muitas vezes, restrito.
O ensino tradicional do Direito geralmente é pautado por estudos abstratos, teóricos
e distanciados de problemas sociais concretos. Essa estrutura faz com que, muitas vezes,
atendimentos jurídicos sejam conhecidos por serem impessoais e hierarquizados (a pessoa
fala o seu problema e o advogado dá a solução). Entretanto, esse modelo se mostra inefi-
caz e insensível para lidar com realidades que envolvam afetos, relações de desigualdade e
opressões.
Nesse sentido, pensar em práticas de advocacia construída por e para mulheres se
torna um desafio. Como a arena jurídica pode ser ocupada por mulheres? Como transformar
o Direito em instrumento de efetivação da luta feminista tanto em âmbito individual como
estrutural?
Foi pensando nessas perguntas que o projeto de assessoria jurídica do Coletivo Femi-
nista Sexualidade e Saúde surgiu. Por meio da realização de atendimentos individuais, bem
como pensando uma atuação mais estratégica em temas envolvendo gênero e saúde, bus-
camos a construção de um novo olhar para o Direito: um olhar mais empático, sensível e
aberto para as questões de gênero.
A proposta é atender mulheres nas mais diversas áreas do Direito, sempre com um
olhar humanizado e colocando a mulher como protagonista de sua história. Assim, nosso
esforço vai muito no sentido de simplificar a linguagem rebuscada e antiquada comumente
associada ao Direito, fazendo com que as mulheres se apropriem das ferramentas jurídicas,
usando-as para garantir mudanças positivas e concretas em suas vidas.
Além dos atendimentos individuais, também é pensada uma atuação mais estratégica
no campo dos direitos das mulheres. Nesse sentido, buscamos atuar e acompanhar ações
jurídicas e projetos de lei que tratam de temas relacionados à saúde, gênero e direito, bem
como realizar rodas de conversa e formações com essa temática.
Acreditamos que um atendimento humanizado é aquele que conta com profissionais
que exerçam uma escuta atenta e ativa das mulheres atendidas, tendo como principal base a
empatia e a autoridade compartilhada, ou seja, as possíveis soluções para o caso devem ser

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construídas conjuntamente. Para tanto, é essencial o cuidado com a linguagem, tornando o
conhecimento jurídico mais acessível. Além disso, entendemos que as profissionais devam ter
um olhar mais amplo, enxergando a mulher como um todo em suas relações e subjetividades.
Aqui, ressaltamos a importância de atuar sempre em rede, ativando os diversos serviços
necessários para atender a mulher de forma completa.
Entretanto, a construção de um projeto de resistência que visa à utilização dos instru-
mentos jurídicos por e a favor das mulheres expôs de forma evidente alguns desafios enfren-
tados cotidianamente.
Para começar, o judiciário, de forma geral, é ainda pouco aberto a questões de gênero.
Isso se reflete em processos de revitimização para mulheres que tentam acessá-lo em busca
da garantia de direitos. A palavra feminina é constantemente desacreditada e noções conser-
vadoras sobre família e o papel da mulher ainda norteiam grande parte das decisões.
Mas não é só nas decisões que encontramos visões machistas e opressoras. As estruturas
patriarcais perpassam as instituições do Direito como um todo e as dificuldades de trabalho são
encontradas em diferentes espaços: Delegacias, Ministério Público e até mesmo Defensoria
Pública. De forma exemplificativa, no início de 2018, o Defensor Geral de Pernambuco disse
que “mulher de minissaia está dando oportunidade” para assédio e que a vestimenta de
uma mulher é parte de um simbolismo que “diz muito para fins de processo, para fins de
condenação ou absolvição no campo criminal” .
Ainda, vivenciamos em nosso dia a dia uma dificuldade de trabalhar em rede e acionar
diferentes serviços voltados para a proteção dos direitos das mulheres. O que presenciamos
atualmente em São Paulo é um completo desmonte dos equipamentos e serviços voltados
para acolhimento de mulheres, com cortes de verbas e fechamentos de unidades. Como
exemplo, podemos citar a Casa da Mulher Brasileira, espaço que foi idealizado para atender
as mulheres em situação de violência, contando com diversos serviços em um local só. A obra
já está concluída desde novembro de 2016, mas encontra-se fechada e abandonada, o que
demonstra grande descaso do Poder Público com o tema.

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E, por fim, observamos um descrédito das próprias profissionais mulheres que tentam
trazer uma perspectiva de cuidado mais humanizada para a advocacia. Recentemente, veio
à mídia um caso que ilustra bem essa questão: uma advogada de Fortaleza, ao assumir uma
postura de cobrança e envolvimento com um caso de guarda que culminou com a morte de
uma criança, foi taxada de desqualificada, imatura e ingênua por um juiz, em audiência. A
fala do magistrado é sintomática: “Uma advogada, minha filha, que se envolve emocional-
mente no processo é uma advogada desqualificada. O advogado dá uma assessoria técnica e
somente. Você se queimou comigo (...). Como é que a OAB dá um título a uma pessoa que
não está qualificada para exercer a profissão? Então era isso que eu queria dizer a você, não
ia dizer na frente do povo, mas queria dizer a você. Não continue assim porque você vai preju-
dicar a sua profissão. É um conselho que eu dou a você. Eu vou atribuir à sua imaturidade, à
sua ingenuidade, à sua pouca vivência da prática...” .
Tanto o fato de ser mulher “autoriza” um questionamento acerca da capacidade da
advogada em atuar como a tentativa de tornar o atendimento jurídico humano é questionada,
garantindo a manutenção de um sistema distanciado e dominado por homens, sempre
caminhando na contramão da construção de um espaço de resistência ao retrocesso e garantia
de direitos.
O “ser mulher”, portanto, repercute em diversas facetas de nossa atuação: tanto na
consecução dos direitos das mulheres que atendemos quanto nas ações estratégicas que
desenhamos, já que enfrentamos instituições jurídicas marcadas por uma ideologia patriarcal
e conservadora que geralmente resistem à aceitação de argumentos de gênero e não
reconhecem as desigualdades socialmente construídas para a tomada de decisões. Bem como
no próprio fato de sermos mulheres atuando como advogadas em um saber tradicionalmente
masculino: descrédito, desconfiança e reforço de estereótipos de gênero também marcam o
nosso dia a dia.
Portanto, em meio a essa forma de construção e manutenção do saber jurídico,
ressignificar as estruturas do Direito pensando em gênero e desigualdades é uma tarefa
difícil, mas que deve ser realizada, tendo em vista seu potencial de transformação.
Acreditamos que a resistência feminista na advocacia é um trabalho de força e união
em várias frentes. Ela passa pela ressignificação do atendimento e da assessoria jurídica para
mulheres como um todo, construindo em nossa prática cotidiana o Direito enquanto um saber
voltado para mulheres. Nosso principal trabalho nessa caminhada, portanto, é criar estraté-
gias políticas para garantir mudanças institucionais, de modo que o sistema de justiça seja
um espaço de verdadeira efetivação de direitos e emancipação de mulheres.

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Um dia comum em uma sessão
de Turma Recursal
Juliana Mello de Queiroz

A sessão de julgamento daquele 18 de julho


de 2017 teria, a princípio, todas as condições para
se desenvolver como qualquer outra. A pauta, como
de costume, seguia atrasada, a sessão marcada para
começar às 10h iniciara por volta das 12h, as indeni-
zações por danos morais foram, sem exceção, todas
minoradas. Até aí nada de novo, o dia se desenvolvia
como qualquer manhã em uma Turma Recursal dos
Juizados Cíveis do Rio de Janeiro.
Enquanto aguardava meu julgamento, identi-
fiquei que a Turma era composta por três mulheres,
as quais pouco se pronunciavam... Em regra, o voto
da i. Relatora era confirmado pelas demais integran-
tes do colegiado. Entretanto, em certo momento
passei a reparar a conduta de um elemento, o qual
se sentou ao lado de uma julgadora e começou a
opinar pontualmente em algumas sustentações.
Mais um ponto recorrente nas Turmas e
na sociedade predominantemente machista:
arbitrariedades não previstas no ordenamento jurídico
e falas femininas interrompidas por intervenções
masculinas.
Ato contínuo, eis que chegou o momento de
sustentar e explicar por que a sentença favorável
em face de um reconhecido supermercado deveria
ser mantida.
A causa tratava-se de uma ação indenizatória
em face de um supermercado e de um estacionamen-
to consideravelmente conhecidos no Rio de Janeiro.
A Autora fora vítima de um assalto dentro do esta-
cionamento por volta das 15h da tarde na véspera
de um feriado olímpico em 2016. Ao sair do seu veí-
culo fora rendida por quatro homens armados, sendo
que, mesmo sem oferecer qualquer resistência, um
dos agentes, apontando uma arma para sua cabeça,
tentou puxá-la para dentro do carro.
Por sorte, a então namorada da Autora, que já
estava distante do veículo, ao perceber a cena e a
tentativa do assaltante, aproximou-se do automóvel
gritando e pedindo por ajuda, fato este que dese-
stimulou o agente na tentativa de levar a Autora
consigo.

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Aquele senhor que curiosamente não fazia parte
da composição da Turma influenciou a todo momento
o voto das julgadoras. Durante alguns momentos de
sua explanação chegou a dizer que era dever da Autora
conhecer que a criminalidade no bairro de Santa Cruz
é alta e que, portanto, não haveria responsabilidade
do supermercado ou mesmo do estacionamento.
Naquele momento, a única estratégia argumen-
tativa possível para mim, enquanto advogada que atu-
ava em causa própria, era a tentativa de criar uma
empatia no julgamento das três julgadoras que forma-
vam a Turma. Foi necessário lembrar para as mulheres
que precisavam exarar seus votos que o maior temor
de uma mulher ao ser assaltada em um local ermo por
quatro homens armados é o medo de ser vítima de um
abuso sexual.
Naquele momento foi preciso dizer o óbvio para
mulheres que, ainda que inconscientemente, já sa-
biam disso: uma mulher lésbica, acompanhada por
sua namorada, tentando ser levada para dentro de
um carro com quatro homens armados tem a única
certeza de que ao entrar naquele veículo seria vítima
de algum crime sexual.
Durante aquela sustentação foi preciso pedir
para que as três mulheres parassem de ouvir aquele
homem que não deveria estar ali enquanto julgador,
vez que não estava compondo a Turma, e olhassem a
sutileza e, ao mesmo tempo, a obviedade do caso.
No decorrer daquela sustentação, vi que a grande
maioria ficara indignada com o voto lido pela Relatora,
a qual minorou aquele dano moral para R$ 4.000,00
(quatro mil) reais. Na realidade todos ficaram indigna-
dos com os absurdos que se sucederam naquele dia:
a primeira reação de indiferença das julgadoras, da
misoginia do homem que sequer deveria estar ali e
com o voto final prolatado.
Como dizia no início, tudo se desenvolveu como
de costume nas salas das Turmas Recursais do Rio de
Janeiro...

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Quando a esperança vem de dentro
Bruna Gonçalves Braga

Há nove meses descobri que seria mãe. Descobri que os medos, mais do que nunca,
passariam a habitar minha vida, trazendo à tona as verdadeiras questões que merecem ser
debruçadas, dilaceradas, exorcizadas e mais do que tudo, ditas.
Descobri que quem estava a caminho no meu ventre seria um menino. Sempre amei
os meninos, me casei com um, vivi minha vida inteira entre dois irmãos e um pai. Todos bem
ciumentos, por assim dizer.
Recordo-me de um episódio que marcou minha adolescência por longos anos, quiçá minha
vida toda, antes de iniciar um trabalho de autoconhecimento depois de adulta; esse fato foi sim
um grande trauma na minha vida. Lembro-me que uma vez, no Colégio católico e conservador
no qual estudei, fui chamada de “piranha” pelos amiguinhos de outra turma, mas não fui apenas
chamada assim para mim, direcionaram esse tratamento aos meus irmãos. Tudo isso porque eu
usava uma calça justa que na época era o que as meninas queriam vestir.
Meus irmãos, cumprindo o papel que lhes cabia, não tardaram em contar para o meu pai
sobre isso. Parece bobo, mas esse pequeno comentário sem fundamento, estúpido, agressivo
e opressor me podou de tal maneira que hoje, após anos de aprofundamento, consigo ver
o quanto me moldou. Desde esse momento, tive medo, medo do que poderiam pensar, de
como seria vista, de como deveria me comportar e seguir os padrões que meus agressores
achavam ideal.
Chorei, sofri, me senti completamente vulnerável, como naqueles sonhos em que nos
encontramos nuas na rua, no trabalho ou na escola e só queremos achar um lugar para nos
esconder.
Esse foi apenas um dos grandes desafios que estavam por vir. Com o tempo, fui me
acostumando com essa realidade e passando a questionar certas estruturas. Por que minha
mãe só direcionava a mim o convite de lavar louça após o jantar? Por que meu pai mandava
meus irmãos cuidarem de mim? Eu sou fraca, por acaso? Por que minha roupa diz mais sobre
mim do que o comportamento? Aos poucos fui entendendo o cenário e vendo que enquanto a
covardia e o silêncio fizessem parte da minha vida, eu continuaria a ser xingada de “piranha”, o
agressor sairia feliz e contente, e eu sofrendo meus traumas e me fechando para a vida.

46
Observei, tomei coragem e vesti a camisa da guerra. A verdade é que a vida é uma guerra
sim, podemos optar por viver de modo pacífico, mas para viver com plenitude é necessário
levantar bandeiras e fazer aquilo que sabemos lá dentro que é certo.
Não acho certo meninas serem chamadas de piranha porque usam determinada
vestimenta, não acho certo meninas serem convidadas a lavarem a louça enquanto meninos
podem ficar à mesa debatendo a vida alheia, ou simplesmente jogando videogame, como
os meus irmãos, não acho certo mulheres serem estupradas e culpadas pelo descontrole
masculino diante de suas roupas, não acho certo mulheres ganharem menos que homens
sendo que ambos possuem o mesmo nível de conhecimento, não acho certo mulheres serem
mortas porque são mulheres, não acho certo que mulheres sejam abusadas e agredidas
todos os dias pelos próprios maridos, nem que sejam menos representadas no Congresso,
nem que sejam objetivadas na rua e nas relações abusivas, nem que recaiam exclusivamente
sobre elas as tarefas domésticas, além das tarefas profissionais que foram conquistadas
arduamente, nem que sejam chamadas de loucas e tenham seus hormônios como os grandes
vilões e causadores de toda essa segregação. NÃO ACHO CERTO.
Não acho certo.
Diante de tantos argumentos contra esse meu sentimento de que as coisas estão erradas,
já me responderam, “mas a vida não é justa”, e hoje, sei que a vida se faz justa à medida que
fazemos a nossa parte de não nos prostrar ao que parece ser a voz natural das coisas. Nosso
maior desafio é lutar, CONTESTAR. Compreender esta lógica o coloca no mundo real, com
poderes para, sim, mudar o mundo, mesmo que seja aquele que diz respeito às pessoas que o
envolvem, apenas.
Desde que compreendi o poder da minha contestação e da minha voz, nunca mais “piranha”
me afetou. Aprofundei-me em mim, me respeitando, compreendendo meus gostos, minhas
vontades, minhas expressões sinceras de mim mesma e resolvi quebrar paradigmas.
Recentemente ouvi de um superior do local onde trabalhava que ele não gostava de
trabalhar com mulheres porque elas menstruavam e tinham filhos e por isso davam prejuízo
à empresa. Na hora, fiquei estarrecida. Pensei: acho que não ouvi certo. Vou confirmar se
é isso mesmo. E era. Tive que elevar o tom, afinal aquilo estava me ofendendo, além de
demostrar tamanha ignorância. Peguei minha bandeira e logo a firmei naquele ambiente. Para
total surpresa não tive adeptas, fui na verdade taxada de feminista e revoltada sem causa.
Ignorei, ali fixei minha bandeira.
Esse mesmo superior, anos mais tarde, veio a ser meu chefe direto, e nunca entendi o
porquê de ele se preocupar tanto com as minhas redes sociais mesmo não fazendo parte delas.
Nunca entendi o porquê de ele não entender como meu marido não tinha ciúmes e me deixava
sair de vestido curto na rua. Nunca entendi por que se preocupava tanto com a minha vida
noturna. Nunca entendi muita coisa nessa relação que a vida colocou como desafio para mim.

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Após cinco anos ali dedicados, fui mandada embora, com vários argumentos que, concordo,
realmente vinham acontecendo, como comodismo, desinteresse em fazer os arquivos dele, ou
as ordens de pagamento dos serviços que ele pedia ao escritório, ou ainda minha abstenção
em não ficar após tantos anos tentando mostrar serviço a alguém que não admirava e que
nada podia absorver, simplesmente porque ele não sabia compartilhar. Fui mandada embora
sem nenhum feedback em dois anos de trabalho com ele, após passar por todos os demais
gestores sendo elogiada, após passar na OAB no oitavo período da faculdade, fato que ele
nunca conseguiu ao longo de sua carreira jurídica e fui obrigada a ouvir que minha exposição
nas redes sociais me prejudicou. Biquíni demais.
Lembrei do “piranha” da época do colégio.
Meu Deus, velhos traumas à tona. Eis que, descubro que estou grávida. Uma semana
depois, reintegrada. GRÁ-VI-DA. De um menino.
Entendi o desafio. Além de ter de voltar a conviver com esse chefe do qual teria vergonha
se fosse meu filho, irmão, marido, ou qualquer coisa do tipo, eu entendi o desafio que realmente
importa e que merece atenção: criar um filho homem. Já consigo sentir que o amor é muito
forte, que a vontade de doar tudo para o pequeno ser que cresce em mim é gritante, desde o
momento da descoberta desta chegada inesperada. Mas eu tenho responsabilidades comigo
mesma para com esse presente que a vida me deu.
Criar um homem. Mas um homem de verdade, daqueles que não me envergonhariam
com ideias ignorantes e abusivas, um homem que saiba seu lugar no mundo e tenha respeito
pelo outro, seja do mesmo sexo ou não, que não finja que não vê quando o amiguinho tentar
beijar a amiguinha à força, ou que lhe defira comentários depreciativos e ele saiba se posicionar
e não tenha medo de levantar a bandeira do justo, por mais minoria que seja.
Como me falaram várias vezes, “a vida não é justa”, e eu peço licença e discordo, a vida
pode não ser justa, mas quem a torna justa somos nós, nos desafios diários. Eu escolho lutar
por uma vida justa, e não me calar mais, nunca mais.

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Políticas feministas inclusivas: pelo fim da desqualifica-
ção profissional e surgimento de condições igualitárias
de trabalho
Juliana Lopes Ferreira

O gênero é diferenciado em tempos e lugares em uma relação atravessada pelo poder.


A percepção que temos de nós vem de um marco socioeconômico normativo e cultural. O
modelo atual já não nos serve mais e para construirmos uma sociedade em condições iguali-
tárias é necessário abandonar os pensamentos pensados para criar uma realidade diferente,
ou seja, pensamentos novos para novas ações.
Pensar pensamentos pensados nos trouxe a naturalização de alguns hábitos compor-
tamentais adquiridos ao longo dos séculos que só agora, na história da evolução da humani-
dade, começam a ser fortemente questionados. Apenas ontem conquistamos o direito ao voto
e a liberdade para vestir o que quisermos.
Apesar disso, situações de nosso dia a dia revelam que a estrutura de agir e pensar pa-
triarcal tenta se reinventar através de atitudes supostamente afáveis ou reveladoras de uma
pretensa sensibilidade por demonstrar um “olhar para o outro”. Assim, a ideia da inclusão é
subvertida para manter a antiga estrutura dominante de outra forma e faz surgir uma nova
ordem que de nova só tem o nome.
Dias atrás, assistia uma palestra quando ouvi a história de um caso interessante. Car-
la, profissional bem-sucedida, encontrava algumas dificuldades durante a reunião de jovens
gestores na qual era a única mulher presente. A empresa passava por uma reestruturação
significativa e era preciso implementar ações práticas até então desenvolvidas no campo das
ideias.
Acostumada a ser interrompida ou pouco ouvida na mesa de discussões ao longo do
processo de tomada de decisão, Carla conseguiu finalmente expor o plano de ação que pas-
sara desenvolvendo intensamente nos últimos dias.
Enquanto os demais acompanhavam o desfecho de sua fala, o chefe chegava à con-
clusão de que ela alcançara a solução do problema. Dirigindo-se para a funcionária, ele diz
satisfeito: “Carla, você é uma flor entre os espinhos”.

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Antes que ela pudesse falar, a reunião foi encerrada e todos foram dispensados, seguin-
do para suas salas. Sozinha, na sala junto ao seu chefe, indagou: “Falaria assim com um fun-
cionário homem?” Ele, pasmado com a colocação, tentou explicar que o intento foi elogiá-la
por ter se destacado com brilhantismo.
O que se vê por trás disso é uma fala que desqualifica o empenho da profissional no
exercício de suas funções. Um “ato falho”, como justificado por ele. Ato cheio de significados
e conceitos equivocados decorrentes de comportamentos arraigados há séculos.
Essa, entre outras situações vivenciadas no mundo profissional, revela a ofensa mas-
carada de elogio como uma forma de violência camuflada. Às mulheres, a associação entre
estética e delicadeza. Aos homens, o costume de considerá-los fortes e inteligentes.
O viés de gênero permeia as regras sociais e determina o acesso diferencial de mulheres
e homens às oportunidades. A lei nos assegura a igualdade em direitos e obrigações, mas a
igualdade apenas se materializa com o acesso concreto aos direitos no cotidiano.
Essa é uma realidade ainda distante no Brasil, país que ocupa a posição 90 das 144
listadas no ranking de igualdade de gêneros do relatório da Global Gender Gap Report 2017,
o que revela a falta de representação política e de participação das mulheres na economia
brasileira.
A igualdade formal é importante, mas é passível de críticas porque não traz uma igual-
dade baseada na auto-organização dos grupos sociais, na garantia do acesso desses grupos
aos meios de decisão, por exemplo. No Brasil, são poucas as mulheres que ocupam cargos de
representação e cargos de gestão em seus locais de trabalho.
Nossas percepções são divididas pelo pensamento linear binário (certo ou errado;
feminino ou masculino), produtor de uma ordem social determinista que classifica e hierar-
quiza pessoas. Tudo isso como resultado de relações de poder em uma realidade complexa
com diversas categorias que se inter-relacionam: gênero, raça, etnia e classe social.
Compreender questões históricas-culturais que caracterizam a sociedade da antiga
estrutura nos ajuda a perceber melhor seu funcionamento e os mecanismos que possui para
tentar manter as rédeas do poder e continuar ditando as regras do jogo.
Ao ocuparmos espaços e falarmos com firmeza e conhecimento sobre o que hoje se en-
contra encoberto por algo, como o elogio que esconde uma ofensa ou o sorriso que propaga
um comportamento repressor, conseguimos nos inserir em um processo ativo de mudanças
pelo fim de políticas sexistas e surgimento de novas ações em nossos locais de trabalho, por
exemplo. E assim começam a se abrir possibilidades de construção de uma sociedade emer-
gente, inclusiva e paritária.

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Violência camuflada
Lucimar da Silva Moraes

Em um dia qualquer, a campainha toca, eu abro a porta, ela entra e se apresenta.


Sentada em uma cadeira, voltado para mim um rosto sofrido, um olhar doce e distante,
ela se mexe de forma inconstante. Ela parece totalmente desconfortável. Tem olhar assustado,
que sangra, e um coração machucado. Suas mãos são trêmulas com um sorriso tímido. O co-
ração que não pulsa, mas que apanha. A alma sofrida nem sempre por uma dor física, mas que
machuca da mesma forma e deixa na alma marcas profundas. Uma mulher, mutilada em sua
dignidade. Um corpo frágil, com cicatrizes imperceptíveis ao meu olho nu. Uma mulher, que
tenta se livrar das amargas cicatrizes ocultas em sua alma e do orgulho ferido. Para ela em cada
segundo, cada minuto, cada hora, e cada dia simplesmente viver se torna cada vez mais um
tormento. Uma mulher sem forças para reagir, indefesa, sem coragem para em frente seguir.
Uma mulher que não enxerga mais metas, não tem mais planos. O mocinho dos seus sonhos
das histórias em quadrinhos se tornou vilão de seus maiores pesadelos. No seu corpo não são
evidentes os hematomas, mas em seu interior estão camuflados os sintomas. Porque sua alma
sangra, seu coração carrega dor. Ela quer fugir, gritar, chorar, mas não sabe para aonde ir.
Ela continua ali sentada, assustada, perdida a minha frente. Passou um minuto, depois outro,
respirou fundo, na tentativa de acalmar seus nervos antes que começasse a falar; as palavras
saem engasgadas e o choro preso. Ela desvia o rosto, tentando ordenar os pensamentos. E
nesse momento, sinto um nó me subindo a garganta e penso: “Chore, mas não se desespere.
Tenha Fé!”. Mas eu me calo.
Ela me olha, pedindo desculpas, assume toda culpa, se levanta, diz que foi engano, se
sente envergonhada e diz que vai embora. Eu penso mais uma vez: as palavras podem ser dis-
torcidas, mas os gestos não. E dessa vez não me calo, peço que fique e seguro sua mão firme,
olho dentro dos seus olhos, e digo: “Vai, confia em mim”.

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Do choro preso, vêm as lágrimas que escorrem sobre sua face,
e ela chora, pelo medo de relatar o que sente, chora por não ter mais
esperança, chora pela vida sofrida que vem em sua lembrança. O
coração machucado, o orgulho ferido. Chora pelos sonhos desfeitos.
Chora pelo casamento imperfeito. Suas mãos continuavam trêmulas e
pude perceber suas olheiras como se não dormisse há dias, semanas
ou meses. Ela parecia escolher as palavras com muita cautela e
compulsivamente tocava sua aliança grossa de casamento, como se
fosse uma algema que a acorrentasse ao seu parceiro. Reparei que
ela repetia esse gesto com frequência. A vida que levava era como
uma prisão, uma jaula, um passarinho preso a uma gaiola, mesmo
que não percebesse. Um sorriso triste atravessou-lhe o rosto, e nesse
momento percebi o que estava tentando me dizer. E ela finalmente
se abre e recomeça seu relato: Ela queria ter um casamento normal.
Fazer de cada dia, um dia especial. Ser amada e respeitada. Sentir
aquele frio na barriga, borboletas no estômago. Todos os planos,
as promessas, que foram feitas e em que ela acreditou cegamente,
foram em vão. Ele nunca dava qualquer dinheiro a ela a não ser o
necessário para os mantimentos da casa. Não permitia que saísse
de casa sozinha, que tivesse amigos, ou ao menos que recebesse
visitas. Era proibida de trabalhar ou de terminar os estudos,
que parou quando casou. Tratava-a com indiferença, e tudo que
fazia nunca era suficiente ou bom o bastante. Ela se sentia inútil
e humilhada por ele a todo instante. Ela era proibida de usar um
decote, usar um vestido curto, e muito menos usar qualquer tipo
de maquiagem, o batom sempre de cores suaves, e as raras vezes
que saíam juntos, ela se sentia oprimida, porque ele fazia questão
de brigar com ela por qualquer motivo ou situação. Mas, quando
estavam entre os amigos dele, sempre fazia questão de ser gentil e
amável. Ele a monitorava a todo tempo pelo celular e até mesmo os
seus pensamentos. Enviava mensagens para ela a todo momento,
para saber o que estava fazendo. Ele a ameaçava toda vez que ela
dizia que iria sair de casa, ele a fazia sentir-se pequena e incapaz de
reagir. A palavra dele era lei. E ela sempre obedecia com medo das
consequências. Quantas vezes foi obrigada a ter relações com ele,
mesmo estando indisposta, pelo simples fato de satisfazê-lo e não
deixá-lo enfurecido. E tantas outras vezes, que teve que lavar suas
roupas, e sentia o perfume barato de alguma mulher que ele havia
saído, ou uma marca de batom deixada em sua camisa. Ela tentou ser
uma esposa melhor, por algumas vezes achava que a culpa seria sua
e não dele. Que ele iria mudar e se tornar um companheiro melhor.
Ela enxuga os olhos, seus dedos estavam úmidos com as lágrimas, e
eu imaginava que sua alma estava escorrendo para fora do corpo. Ela
estava simplesmente perdida na falta de atitude de uma vida fechada
pela sua alma aprisionada e mutilada pela sua dignidade de uma

52
ameaça velada. Seu casamento era cheio de regras e hierarquia. Mas
ela tem medo de tentar, de arriscar, de recomeçar. Ela respira fundo,
tentando acalmar seus nervos. Ela se mexe mais uma vez na cadeira,
ajeita uma mecha de cabelos com os seus olhos fixados ao chão
e arrasta os pés por um momento. Conseguia perceber os soluços
crescendo em seu peito, sufocando-lhe as palavras. Ela suspirava,
cansada. Cansada de falar, cansada de chorar, cansada da vida que
levava. Estava frágil e vulnerável. Havia por fim chegado ao seu
limite. Ela se recostou à cadeira, e dessa vez olhou para mim com um
olhar triste, enquanto tentava recuperar seu equilíbrio emocional. O
coração ainda batia acelerado, a boca parecia estar seca, ela respira
fundo. Apesar do seu cansaço, do cabelo embaraçado, ela balançou a
cabeça levemente, parecia estar pensando se não havia sido um erro
ter me procurado. Mas as palavras saíram antes que pudesse contê-
las. E ao mesmo tempo parecia estar aliviada, por ter desabafado.
A expressão do rosto dela transbordava compaixão. Ela encolheu
os ombros, parecendo envergonhada. Havia algo assombrado em
sua expressão. Ela olhava o relógio, parecendo preocupada pelo
tempo que já estava ali, com receio de que ele pudesse descobrir
e prevendo as consequências. Por fim, ela levanta a cabeça, dá um
sorriso melancólico, antes de desviar o seu olhar para longe. Senti
meu estômago se revirar quando ela parou de falar. Levanto-me,
seguro mais uma vez a sua mão, e dessa vez mais firme, olho bem
dentro dos seus olhos, levo-a até o banheiro e peço que lave o rosto,
e se olhe no espelho. Percebo que ela está envolvida em um turbilhão
de emoções, sentindo-se confusa e amedrontada e com dificuldades
para respirar. E digo: “Descubra-se, tente se conhecer. Seja o seu
melhor, seja feliz, acredite na sua força interior e comece a viver.
Redesenhe a sua vida, abandone o medo, a insegurança. Siga em
frente, siga adiante. Permita-se, aproveite a vida. E lembre-se, o
mundo sempre tem um plano melhor pra gente”.
E ela pela primeira vez se olhou no espelho confiante, de ca-
beça erguida, seu olhar já não estava tão distante. Sua expressão
suavizou. Ela respirou, sorriu, mesmo que ainda timidamente, perce-
bendo que denunciar uma violência, mesmo que oculta, camuflada,
velada não é sinal de covardia, pelo contrário, é o gesto mais corajoso
a se ter na vida.
Então, ela agradece, por tê-la escutado, pelo seu desabafo, me
pergunta o valor do honorário. E eu respondo: “Não me deve nada,
apenas denuncie. Tenha brio”.
Em seguida, abro a porta, mais uma vez ela agradece, se des-
pede e vai embora. Mas, só que agora, de cabeça erguida, passos
firmes e tendo a certeza que com o sofrimento de todo o tormento
vivido se descobre por fim o amor-próprio.
“A violência camuflada é como o vento, não se percebe, mas
se sente!”

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Cultura do estupro
Mariana Imbelloni Braga

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Esconde esse peito
Também com essa bunda
Ainda quer respeito?
Traiu o marido?
Ó o tamanho do vestido.
Mas também, se estivesse em casa.
No caso, qual casa?
A do “ô lá em casa”
Ou do assédio do padrasto?
Tudo é nefasto quando contado
Revolta on-line contra os monstros tarados
Mas que ninguém mencione seu estupro domesticado
Seu convite ameaça
Seu toque onde não foi chamado
Sua piada sem graça armada contra meu corpo exausto
Calado, você é trinta
Seu riso é a sentença do meu fado
Sua conivência me violenta ao cadafalso.
Mas meu grito não se encerra nesse quarto
Contra o claustro da tua cultura inculta
Somos muitas.

54
Prosa de Contextação
Impressa na Gráfica WalPrint,
Rio de Janeiro, 2018.
E-mail: prosadecontextacao@gmail.com

Facebook: https://pt-br.facebook.com/revistaprosadecontextacao/

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