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APONTAMENTOS ACERCA DE

CULTURA, EDUCAÇÃO, POLÍTICA


E DIREITOS HUMANOS

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA


DO PARÁ – IFPA CAMPUS BELÉM
DIRETORIA DE EXTENSÃO - DEX
NÚCLEO DE ESTUDOS AFROBRASILEIROS – IFPA CAMPUS BELÉM

BELÉM-PA
2015
Dados para catalogação na fonte
Setor de Processamento Técnico
Biblioteca IFPA Campus Belém

A643 Apontamentos acerca de cultura, educação, política e direitos humanos /


organizadores Ana Paula Palheta Santana, Francisco de Assis Ribeiro
Cavalcanti, Heraldo de Cristo Miranda. — Belém : IFPA, 2015.
150 p. : il.

ISBN: 978-85-62855-44-3
Vários autores

1. Cultura. 2. Educação. 3. Direitos humanos. 4. Política.


I. Santana, Ana Paula Palheta. II. Cavalcanti, Francisco de Assis
Ribeiro. III. Miranda, Heraldo de Cristo. IV. Título.

CDD: 379.201
FICHA TÉCNICA

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARÁ – IFPA

Reitoria
Claudio Alex Jorge da Rocha
Pró-Reitoria de Ensino - PROEN
Elinilze Guedes Teodoro
Pró-Reitoria de Extensão e Relações Externas - PROEX
Mary Lucy Mendes Guimarães
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação- PROPPG
Ana Paula Palheta Santana
Direção Geral do Campus Belém
Manoel Antonio Quaresma Rodrigues
Diretoria de Ensino - DE
Laura Helena Barros da Silva
Diretoria de Extensão - DEX
Hélio Antônio Lameira de Almeida
Diretoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação -DPPI
Raidson Jenner Negreiros de Alencar
Coordenação do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB – IFPA
Helena do Socorro Campos da Rocha
EQUIPE DE ELABORAÇÃO
Organizadores
Ana Paula Palheta Santana
Francisco de Assis Ribeiro Cavalcanti
Heraldo de Cristo Miranda
Autores
Amanda Alves Miranda Cavalcanti; Antonio Maurício Dias da Costa
Breno Rodrigo de Oliveira Alencar; Diego Pereira Santos
Elaine Ribeiro Gomes; Elizia Cristina Ferreira
Fábia Nazaré Santos Grelo da Silva; Flávio José de Carvalho
Haroldo de Vasconcelos Bentes; Heraldo de Cristo Miranda
Jean Guilherme Guimarães Bittencourt; Márcio Ivan Lopes Ponte de Souza
Natália Conceição Silva Barros; Pedro Ergnaldo Gontijo
Raimundo Nonato de Castro; Robson Wander Costa Lopes
Ronaldo Luiz Silva do Nascimento.
Designer Gráfico
Jorge Davi Lima Lopes

Revisor Gramatical
Paulo Rafael Bezerra Cardoso

Capa
Rubens Pinheiro Cunha - Chefe do Setor de Artes Visuais do campus Belém.
SUMÁRIO

PARTE I - ESTÉTICA, CIDADE, POLÍTICA E CONTEMPORANEIDADE..10

DESCOLONIZAÇÃO E INCLUSÃO NA OBRA DE PORTINARI....................11

Elizia Cristina Ferreira

A POLIFONIA FORMADORA DO CARIMBÓ NAS REPRESENTAÇÕES DE


LITERATOS, JORNALISTAS E FOLCLORISTAS NO PARÁ (1900-1940).........24

Antonio Maurício Dias da Costa

UMA REPÚBLICA MODERNA: BELÉM E A REPRESENTAÇÃO PELA ARTE...


...........................................................................................................................47

Raimundo Nonato de Castro

PARTE II - IDENTIDADES, GÊNERO, CLASSES E SUAS


INTERSECÇÕES..............................................................................................69

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO RACISMO: UMA ANÁLISE


CONCEITUAL..................................................................................................70

Breno Rodrigo de Oliveira Alencar

FORMAÇÃO E RENOVAÇÃO DOS GOVERNOS DO PARÁ: ELITE


GOVERNAMENTAL, ELITE DURADOURA E ÍNDICE ELITIZAÇÃO (1983-
2006)..................................................................................................................91

Jean Guilherme Guimarães Bittencourt/Márcio Ivan Lopes Ponte de Souza

UM RELAMPAGO NA NOITE: SOBRE A FIGURA DO MONSTRO E A NOÇAO


DE TRANSGRESSÃO.......................................................................................104

Heraldo de Cristo Miranda

PARTE III - MITOS, RITOS E SIMBOLOS NA AMAZONIA.......................113

UM ESTUDO DE CASO SOBRE “CATOLICISMOS” NA AMAZÔNIA.........114

Robson Wander Costa Lopes

IRMANDADES DE COR NO GRÃO PARÁ:AFRICANOS, PARDOS E MESTIÇOS


NO GRÃO-PARÁ(ÚLTIMO QUARTO DO SÉCULO XVIII ATÉ A PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XIX)...........................................................................130
Diego Pereira Santos
PARTE IV - EDUCAÇÃO, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS............152

ALGUMAS NOTAS DELEUZIANAS AO PENSAR EM VALORES HUMANOS,


CIDADANIA E EDUCAÇÃO..........................................................................153

Pedro Ergnaldo Gontijo

CARTOGRAFIAS DA DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO: A PSICANÁLISE E


UMA OUTRA ERÓTICA.................................................................................164

Flávio José de Carvalho

“TUDO QUE É HUMANO CARECE DE FIRMEZA”......................................179

Ronaldo Luiz Silva do Nascimento

“PROMESSAS DE UM NOVO MUNDO”: CINEMA, HISTÓRIA E DIREITOS


HUMANOS.....................................................................................................188

Natália Conceição Silva Barros/Amanda Alves Miranda Cavalcanti

FILOSOFIA E TRABALHO: UMA REFLEXÃO NO LIMIAR DA


SOBREVIVÊNCIA E DA LIBERDADE............................................................196

Haroldo de Vasconcelos Bentes

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,


PERPECTIVAS DA POLÍTICA EDUCACIONAL E AS DIFICULDADES
ENCONTRADAS NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM....................205

Fábia Nazaré Santos Grelo da Silva

A INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL NA EDUCAÇÃO


INFANTIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES..................................................217

Elaine Ribeiro Gomes


PREFÁCIO
Helena do Socorro Campos da Rocha1

Trata-se de uma coletânea denominada “Apontamentos acerca


de Cultura, Educação, Política e Direitos Humanos organizada pel@s
Professor@s da Área de Ciências Humanas do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Pará - IFPA campus Belém Ana Paula
Palheta Santana, Francisco de Assis Ribeiro Cavalcanti e Heraldo de Cristo
Miranda atrelados ao Núcleo de Estudos Afrobrasileiros do IFPA campus
Belém.
Os textos foram agrupados sistematicamente em quatro eixos
norteadores.
A primeira parte trata da temática Estética, Cidade, Política e
Contemporaneidade agrupando três artigos: Em Descolonização e
Inclusão na Obra de Portinari, a autora Elizia Cristina Ferreira discute as
categorias descolonização e inclusão na obra Mestiço de Cândido Portinari,
inquietando-nos com questionamentos que nos levam a refletir acerca
da contextualização histórica e das relações da pintura com o mundo,
em 1934. Em A Polifonia Formadora do Carimbó nas Representações de
Literatos, Jornalistas e Folcloristas no Pará (1900-1940), o autor Antonio
Maurício Dias da Costa nos instiga a embarcar em um jogo de disputa
entre diferentes vozes, que contribuíram para promover o carimbó como
a música característica do caboclo amazônico no Pará na primeira metade
do século XX; No texto Uma República Moderna: Belém e a Representação
pela Arte, do autor Raimundo Nonato de Castro, mostra a importância da
produção de monumentos e quadros históricos, atendendo aos interesses
dos republicanos de forjar os valores pensados para a República.
Na segunda parte do Livro, denominada Identidades, Gênero, Classes
e suas Intersecções, foram agrupados três textos: No artigo, As Representações
Sociais do Racismo: Uma Análise Conceitual, o autor Breno Rodrigo de
Oliveira Alencar traça uma análise muito clara e instigante da temática
baseada em sua experiência como docente da disciplina Representações
Sociais do Racismo, ofertada no Curso de Especialização em Educação para
Relações Etnicorraciais - História e Cultura Afrobrasileira e Africana. No
segundo texto, os autores Jean Guilherme Guimarães Bittencourt e Márcio
Ivan Lopes Ponte de Souza com a temática Formação e Renovação dos
Governos do Pará: Elite Governamental, Elite Duradoura e Índice Elitização
(1983-2006), nos remetem à uma discussão da Teoria das Elites no contexto
político paraense diferenciando as categorias elites governantes de elites
duradouras e suas imbricações. No artigo denominado Um Relâmpago na
1 Pedagoga e Professora do IFPA Campus Belém, Coordenadora do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros do IFPA – campus Belém
Noite: Sobre a Figura do Monstro e a Noção de Transgressão, o autor Heraldo
de Cristo Miranda trava uma aproximação entre a figura do Monstro e a
noção de transgressão com base em Foucault destacando duas categorias: a
experiência-limite e o Monstro enquanto descontinuidade.
A terceira parte, agregada no eixo Mitos, Ritos e Símbolos na
Amazônia reúne dois artigos: Em Um Estudo de Caso sobre “Catolicismos”
na Amazônia, o autor Robson Wander Costa Lopes propõe um debate
conceitual sobre a noção de “catolicismo” permeada pela construção de
tipologias diversas no processo histórico no interior da Amazônia, mais
especificamente em Gurupá. O segundo texto intitulado Irmandades de Cor
no Grão Pará: Africanos, Pardos e Mestiços no Grão-Pará (Último Quarto do
Século XVIII até a Primeira Metade do Século XIX), o autor Diego Pereira
Santos discute a presença do negro nas irmandades de cor no Grão Pará
como um espaço privilegiado para as suas sociabilidades, tensões, uniões e
conflitos.
Encerrando o livro encontramos sete artigos atrelados ao eixo Educação,
Cidadania e Direitos Humanos. O primeiro texto trata da temática
Algumas Notas Deleuzianas ao Pensar em Valores Humanos, Cidadania e
Educação onde o autor Pedro Ergnaldo Gontijo propõe um diálogo sobre os
conceitos de Educação, Cidadania e Valores Humanos a partir da Filosofia.
No segundo artigo denominado Cartografias da Diversidade na Educação: A
Psicanálise e outra Erótica, o autor Flávio José de Carvalho discute a relação
entre diversidade e educação, a partir da questão de gênero, de raça ou etnia,
de crença religiosa e de identidade sexual, trazendo um tema atualíssimo
que é a homossexualidade, mas que é pouco discutido na área educacional.
O terceiro artigo intitulado “Tudo que é Humano Carece de Firmeza”, o
autor Ronaldo Luiz Silva do Nascimento pondera nosso estar no mundo e
nosso papel enquanto Humanos que somos através da obra O Banquete, de
Platão. No quarto artigo “Promessas de um Novo Mundo”: Cinema, História
e Direitos Humanos, as autoras Natália Conceição Silva Barros e Amanda
Alves Miranda Cavalcanti analisam os impactos do projeto de intervenção
didática “Cine-Debate Direitos Humanos”, desenvolvido na disciplina
História, em turmas do Ensino Fundamental e Médio, de uma escola pública
federal localizada em Pernambuco, destacando a viabilidade de inserção de
temáticas sobre Direitos Humanos no currículo escolar. O quinto artigo
trata da Filosofia e Trabalho: Uma Reflexão no Limiar da Sobrevivência
e da Liberdade onde o autor Haroldo de Vasconcelos Bentes, a partir do
olhar sobre o Ensino Médio Integrado, nos leva a reflexões inúmeras
acerca da Formação Integral do ser humano para a vida em sociedade e
como forma de minimização das relações desiguais através da Educação.
No sexto artigo, Formação de professores e a dignidade da pessoa humana,
Perspectivas da política educacional e as dificuldades encontradas no processo
ensino-aprendizagem, a autora Fábia Nazaré Santos Grelo da Silva, a partir
de sua experiência enquanto Tutora do Curso de Aperfeiçoamento em
Educação em Direitos Humanos traça os aspectos positivos de inserção
da temática na Formação Continuada de Profissionais da Educação. E,
por fim, o último texto intitulado A Inclusão de Crianças com Deficiência
Visual na Educação Infantil: Desafios e Possibilidades, a autora Elaine Ribeiro
Gomes provoca o leitor para a inclusão de crianças com deficiência visual
nas instituições de educação infantil na perspectiva da permanências através
de práticas pedagógicas inclusivas.
A obra “Apontamentos acerca de Cultura, Educação, Política e Direitos
Humanos” dá conta de vislumbrar perspectivas para o campo educacional
e da pesquisa no que tange aos achados e contribui de forma significativa
para a compreensão da importância da Área de Ciências Humanas para a
formação de um ser humano inteiro.
PARTE I - ESTÉTICA, CIDADE,
POLÍTICA E CONTEMPORANEIDADE

10
DESCOLONIZAÇÃO E INCLUSÃO NA OBRA DE PORTINARI
Elizia Cristina Ferreira2

O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo


para ser quadro; e o que falta ao quadro
para ser ele mesmo e, na palheta, a cor que
o quadro aguarda; e, uma vez feito, vê o
quadro que responde a todas essas faltas,
e vê os quadros dos outros, as respostas
outras a outras faltas.

(Maurice Merleau-Ponty, O olho e o


espírito)

Este texto apresenta do início ao fim apenas questões, a grande


pergunta é: como foram negociadas certas imagens da história da arte
brasileira? Ele tem, a princípio, uma pretensão estética de pesquisar alguns
conceitos fundamentais da filosofia da arte. Dentre esses conceitos está o de
mímesis que num amplo sentido diz respeito às relações entre linguagem e
verdade, realidade e representação e num sentido estético tange aos termos
de imitação, verossimilhança e ficção. A mimetização diz respeito então, a
relação entre a obra de arte e o mundo. Por isso, a pergunta pode ser colocada
da seguinte forma: qual a relação da arte com a vida? Com a sociedade?
Seria ela a relação de uma reprodução das estruturas sociais, de criação de
estruturas, ou ainda estaria a arte (ou deveria estar) desinteressada com a
vida? É dentro dessa pergunta que mora o outro lado da inquietação desta
pesquisa, a saber, como se apresentam as relações de descolonização e
inclusão na obra de Cândido Portinari, mais especificamente numa obra
muito conhecida chamada Mestiço de 1934 e numa outra nada conhecida
sobre a qual falarei ao final. O que significa desde a perspectiva mimética no
contexto da fase modernista no Brasil uma obra que coloca um mestiço em
cena e nos moldes em que o faz?
Essa questão da mímesis é um problema muito antigo, anterior
inclusive a guinada renascentista que colocou um A na Arte e a separou do
artesanato, quando então começam a ser gestados os conceitos de criação
(por oposição a imitação), de genialidade, de artista e de sua liberdade. A
despeito dessa suposta oposição e dos encaminhamentos teóricos que ela
sofreu, o conceito de mímesis ainda pode ser uma ferramenta interessante
para analisar as questões de arte e também de mídia na contemporaneidade.

2 Atualmente é professora na Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia


Afro-Brasileira) campus dos Malês – São Francisco do Conde – BA, onde coordena o grupo de
“Geofilosofia e performances de pensamento” e dentro dele a linha de pesquisa “Cartografias
sensíveis, artes, corpos e performances corporais”. Publicou diversos artigos sobre a filosofia de
Maurice Merleau-Ponty, entre eles “Reflexão e percepção em Merleau-Ponty”. E-mail: elizia@
unilab.edu.br.

11
Apenas a título de exemplo e sem maiores aprofundamentos, atentemos
para o caso das novelas globais com repercussão nacional e internacional e
todas as críticas de que são passíveis pelos papeis e tramas apresentados
por elas, em geral circunscritos a uma realidade específica e que no limite
repetem a exaustão certos esquemas sociais de exclusão seja racial, seja
de gênero, etc. Com essa menção quero dizer que a questão da mímesis
ainda é pertinente hoje em dia: se a arte imita a vida, na fórmula antiga;
ou se na subversão de Oscar Wilde - a vida é quem imita arte - cabe ainda
perguntar o que é que as imagens na arte têm a nos dizer sobre as produções
e reproduções de nossas estruturas sociais.
É imbuída dessa questão que planejo visitar o Modernismo em
geral (admitindo para isso o estatuto de um projeto) e a obra de Portinari
especificamente. Para pensar os fenômenos do mulatismo, racismo,
machismo, entre outros desde essa perspectiva mimética no que se referem às
imagens da arte e também compreender como se articularam as inquietações
que desencadeiam os mais diversos processos de descolonização na arte. Isso
acabará por mobilizar também a questão das coerções para a arte: de onde
elas vêm? São autônomas ou heterônomas? Noutras palavras, a arte deve ser
universal e desinteressada (fornecendo para si seus próprios cânones) ou
deve ser politizada (tendo as questões sociais, pedagógicas, dentre outras
como legisladoras)? Esse problema é, aliás, muito caro à polêmica modernista
no Brasil. Uma reflexão como essa deverá ter um caráter interdisciplinar
utilizando como fonte as questões da historiografia, das ciências sociais e da
antropologia. Por ora, apresento para vocês as fundamentações estéticas da
questão.

1 Arte, mímesis e criação


Tradicionalmente, desde Platão e Aristóteles, a mímesis enquanto
imitação, simulacro foi posta como característica específica da techné da
arte. Deve-se considerar que o conceito grego de arte – Téchne – não traduz
o que hoje compreendemos por arte, não tem o compromisso estético nem
o valor da genialidade. A despeito das posturas antagônicas desses filósofos
gregos (para Platão a mímesis significava um distanciamento da verdade e
o lugar da falsidade e da ilusão, ao passo que para Aristóteles era o lugar
da semelhança e da verossimilhança, o lugar do reconhecimento e da
representação), ambos tomavam a função mimética da arte como essa de
representar a natureza.
Para Platão, a mímesis da poesia, da pintura e das artes em geral (disto
que hoje chamamos de arte) está submetida ao mundo sensível como sua
cópia, seu simulacro. Sendo, o mundo sensível por sua vez também uma
mimetização do plano inteligível, as artes não constituem, portanto, um
conhecimento verdadeiro nem tampouco podem constituir uma téchne. Na
polis ideal da “República”, essas atividades são julgadas de acordo com os

12
cânones da transcendência da ideia e sua relação com a verdade. Trata-se de
uma engenhosa e rigorosa fundamentação ontológica na qual a arte, a fim
de ganhar o direito de permanecer entre os cidadãos, deverá abrir mão de
seu caráter polimorfo, isso é da sua infinidade de possibilidades semânticas,
dada sua abertura para inúmeros sentidos enquanto imagem, assumindo a
finalidade de educar, tornando-se então uma téchne.
Já Aristóteles, em sua obra A Poética, contrapõe-se ao pensamento
platônico e propõe uma reabilitação da mímesis – para isso ele faz uma
distinção inovadora dos tipos de artes miméticas na qual enquadra a poesia
como uma téchne específica de imitação por palavras. Suas reflexões são
importantes pois, considerando que no Renascimento a pintura e a escultura
passaram a ser consideradas belas-artes e ter o mesmo status que as artes
poéticas, a recepção da obra aristotélica passou a aplicar o que filósofo dizia
sobre as literárias às demais artes, tornando esse um texto decisivo para a
concepção de arte ocidental. Imitar seria, de acordo com ele, congênito ao
ser humano o qual se compraz na imitação.
O prazer nesse caso está na relação da imitação com o original e na
capacidade de aprender. Ao vermos uma obra de arte nosso prazer não
estaria tanto na beleza ali representada, mas na relação com aquilo que é
representado, na habilidade do artista em fazer tão próximo quanto possível
do real. A função mimética, aliás, nem é uma exclusividade das artes
poéticas, ela se apresenta também, por exemplo, na linguagem humana em
sua função de representar as coisas. A habilidade de adequar o nome ou o
signo em geral à coisa significada é a função mimética ou representativa da
linguagem, lugar em que pode, portanto, acontecer o verdadeiro ou o falso.
Somente muito posteriormente, a noção de criação passa a ser pensada.
“Criar é produzir alguma coisa a partir do nada” (Alberto, o Grande apud
JIMENEZ, 1999, p. 33). Essa afirmação de 1230 demonstra, segundo Marc
Jimenez, que ao menos a criação passou a ser pensada, embora ainda
fosse uma capacidade exclusivamente divina. A herança da escolástica,
em Santo Agostinho (354-430), por exemplo, é a de que nenhum artista
poderia rivalizar com Deus, fazendo-se necessário distinguir a criação
do artista da divina. O poder do artista vem de Deus. É preciso esperar
a Renascença no Ocidente para que o conceito de criação seja pensado e
aceito. Na Renascença, reivindica-se tal poder sem rivalizar com o poder
divino, o artista não produz “a partir do nada”, mas a partir de um saber
adquirido em numerosas disciplinas de caráter científico. Leon Battista
Alberti (1404 – 1472) define as normas da perspectiva [inovação trazida
por Giotto, em verdade] que se impõe aos pintores renascentistas e que lhes
exige agora o conhecimento da matemática. Pintar e esculpir se tornam
atividades intelectuais. É no início do Quattrocento que começa a tomada
de consciência do poder criador do artista “genial”3.
3 Sobre isso cf. “A ideia de criação autônoma” in: JIMENEZ, M. O que é estética?

13
Essa disputa entre mímesis e criação é deveras complexa, mas talvez
não seja o caso de nos atermos a ela. Parece-me que é justamente num
lugar alheio a esta contenda que a arte moderna e com ela as vanguardas se
colocaram e é onde também moram algumas das noções estéticas de filósofos
contemporâneos como é o caso de Merleau-Ponty. De acordo com ele, a
função da pintura não é criar ou imitar, mas sim, dirá, suspender os hábitos,
revelar o fundo de natureza inumana sobre o qual se instala o homem. A
tela deverá fazer ver o objeto, não importa quão aparentemente banal ele
seja, como quem vê pela primeira vez e vendo se extasia, pela celebração do
milagre da visão.
Genericamente falando, pensa-se que a imagem ou “a cópia”, a
representação enfim, carece de um sentido pleno, pois enquanto tal apresenta
apenas uma forma de aparecer do representado em questão (daquilo que
chamamos de tema da obra arte). Esta carência, que pode ser uma carência
“de verdade” deve-se ao fato de a imagem ser um duplo daquilo que ela
se propõe a representar. Mas, talvez também, se acompanhamos essa outra
proposta de raciocínio, embora a arte se origine de faltas (estou pensando
na frase que uso de epígrafe): a falta do mundo em ser um quadro, a falta
do quadro em ser ele mesmo. A imagem é, na pintura, no desenho, na arte
enfim, o excesso de uma falta, nunca uma cópia, nunca um duplo, tampouco
uma criação daquilo a que nada faltaria.
Nesse sentido, a obra de arte por um lado refletiria aquilo que é mais
banal, dado, cultural (que muitas vezes é assimilado como “natural“), mas
também seria capaz de questionar tal naturalidade e de instituir imagens para
outras faltas e outras necessidades. Por isso, ainda que uma obra não possa
interferir nos destinos políticos de uma sociedade, parece-me que a arte
em geral (e com ela todas as formas midiáticas contemporâneas) interferem
devagarzinho, “comendo pelas beiradas”, reproduzindo e fortificando certas
estruturas ou rompendo com elas e tornando tais rupturas em imagens
negociáveis e identificáveis. É nesse sentido que recorro ao referencial de
imagens proposto. É aqui que, segundo vejo, estaria de forma mais radical o
problema da mímesis, muito antes dessa oposição entre imitação e criação.
Sobre o que podemos discutir depois, por ora passemos ao que interessa.

2 Colonização da arte brasileira


O catálogo de exposição “Arte no Brasil – uma história na pinacoteca
de São Paulo” adverte: “A constituição de uma cultura visual no Brasil está
indissociavelmente ligada às suas origens portuguesas.” Considerando que
enquanto na Europa do século XVI a história da arte via seu rumo ser
dirigido pelas inquietações renascentistas, no período colonial brasileiro
o componente mais característico será o da temática religiosa. Também
não havia instituições de ensino de arte na metrópole o que influenciou a
produção aqui realizada, a qual era executada por aprendizes dos mestres

14
portugueses. Durante muito tempo, proibiu-se a entrada de estrangeiros
nas terras portuguesas de além-mar, à exceção do período de dominação
holandesa no nordeste brasileiro (1630-1654). Com isso, as primeiras
imagens artisticamente negociadas da terra brasilis ficavam a cargo das
alegorias do imaginário fantasiado pelos europeus.
Somente três séculos depois, no início do XIX, é que desembarcaram
por aqui os primeiros artistas viajantes de diversas nacionalidades com ou
sem formação, mas já com contato com uma tradição acadêmica. “Para
a arte brasileira, suas obras representam um marco inicial dos registros
da natureza no país, que se transformaria, durante o século XIX, num
dos principais símbolos da construção de uma nacionalidade. Para esses
artistas, no entanto, tais obras são a continuidade de uma tradição artística.”
(PICCOLI, V. e GIANCARLO, 2013, p. 35) Essas pinturas eram sobretudo
de paisagens e indicavam a habilidade do artista em representar os mais
belos cenários sem sair de seu atelier.
É no período em que a família real portuguesa vem para cá, em 1808,
que se inicia a institucionalização do ensino de arte, especialmente quando
em 1816 desembarca na então capital do Reino a missão artística francesa
formando uma geração de artistas os quais se dedicariam à atualização da
linguagem artística no país importando o modelo da França. A partir de
então, começa-se uma tradição de retratos e pinturas históricas. A Academia
Imperial passou por muitas crises, todas já indicando a necessidade de
formação de uma arte brasileira em que se representassem as paisagens
daqui ou então que os índios, habitantes originários da terra, assumissem o
papel de heróis míticos da saga de conquista e formação da nação brasileira.
Essa necessidade de instituição de uma arte nacional é desde o início
permeada por contradições. A originalidade era buscada em cópias de
várias ordens. Ora, para o ensino acadêmico de arte era importante, além
da capacidade de invenção, que o artista tivesse erudição, conhecimento dos
pintores clássicos, o que não era o caso dos artistas daqui. As realizações
da arte não poderiam ser conhecidas num país o qual não tinha tradição
de coleções de arte. “As referências dos jovens alunos de belas-artes
eram reproduções de pinturas e esculturas – em geral gravuras ou cópias
executadas por outros artistas”. Por isso os prêmios para esses alunos nos
salões de arte que aqui passaram a acontecer era justamente o de uma viagem
ao estrangeiro e sua incumbência era a de realizar cópias dos clássicos os
quais aqui cumpririam sua função didática.4Isso é, nossas primeiras imagens
negociadas são brancas!
Desde os salões até os prêmios tudo acontecia ao sabor de escargots,
foi gras e quiches... Já na Europa a organização dos artistas em “Academias”
visava uma diferenciação destes em relação aos artesões e juntamente com
4 Esses dois últimos parágrafos reproduzem alguns trecos de: PICCOLI, V. e GIANCARLO, H. Arte no
Brasil: um história na pinacoteca de São Paulo, guia de visitação. 2 ed. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2013.

15
os salões de arte faziam um controle mais ou menos homogêneo da exibição
e da premiação artística. Tudo isso se reproduziu aqui, enquanto cópia (em
vários sentidos, como afirmei antes, dos modelos, dos temas, dos processos
e das hierarquias). Ao mesmo tempo em que a necessidade de se encontrar
um caminho próprio permeava as ocupações dos artistas. Seja dos viajantes,
seja dos brasileiros.
Essa é mais ou menos a situação dos artistas do movimento modernista
no Brasil. A história comum aos representantes mais conhecidos: viajam
ao exterior, geralmente para Paris, e voltam para pintar os quadros verde-
amarelos. São “contaminados” pela tradição ocidental de arte, mas podem
também oferecer desvios para ela5.

3 O Modernismo e a inclusão do mulato em Portinari


Cândido Portinari nasceu no interior de São Paulo numa cidade
chamada Brodósqui em 1903. Contam suas biografias que morreu por
intoxicação causada pelas tintas que usava e mesmo tendo sido alertado
pelos médicos do risco para sua saúde aceitou a encomenda do governo
federal para pintar os painéis “Guerra e Paz” a serem ofertados a ONU como
presentes. Era filho de imigrantes italianos, de origem humilde e recebeu
apenas instrução primária. Estas, aliás, eram as características formadoras
do conjunto dos artistas brasileiros não apenas desse período do início do
século XX, mas desde muito antes. Em verdade, segundo Chiarelli, antes da
chegada da missão artística francesa ao Rio de Janeiro, em 1816 (quando
se institui a categoria artística no país), a arte, vista como artesanato, era
ofício de negros escravizados e/ou libertos e, quando a missão chegou,
ela passou a ser ocupada justamente por homens como Portinari, isto é
filhos de famílias humildes. Isso fez com que a arte brasileira tivesse uma
composição sui generis: foi talhada aos moldes do academicismo francês e,
simultaneamente, absorveu o universo da cultura popular do Brasil.
Algo desse destino se processou em Portinari, que desde criança já
manifestara vocação artística e aos 15 anos segue para o Rio de Janeiro,
para entrar na agora chamada Escola Nacional de Belas Artes afim de
um aprendizado sistemático da pintura. Em 1928, depois de alguns anos
concorrendo nos salões de arte ganhou o prêmio de “Viagem ao Estrangeiro”,
com a obra Retrato do poeta Olegário Mariano. Partiu então para Paris e
visitou também a Inglaterra, a Itália e a Espanha. Antes da viagem declarou
em entrevista a “O Jornal”:
[...] entendo que a estadia na Europa não deve ser aproveitada
pelo pintor para uma produção intensa e quase nada meditada,
como têm feito alguns colegas. Considero-o um prêmio de
observação. O que vou fazer é observar, pesquisar, tirar da obra
5 Para me valer da expressão que intitula um artigo muito interessante “Contaminações e desvios na pintura
da América latina” de GIL, Ana Lúcia Oliveira Fernandez e CHEREM, Rosângela.

16
dos grandes artistas – do passado nos museus, ou do presente
nas galerias – os elementos que melhor se prestem à afirmação de
uma personalidade. Procurarei encontrar o caminho definitivo
de minha arte fazendo estudos e nunca quadros grandes.

Quando voltou em 1931, Portinari tinha um objetivo: pintar o Brasil, suas


gentes, suas cores. Paulatinamente foi superando sua formação acadêmica e
fundindo ciência antiga da pintura e experimentação antiacadêmica (o que,
aliás, também já estava em voga nas vanguardas europeias).
Portinari começa a pintar produzindo retratos e essa é a sua solução
para sintetizar sua situação originária: ele tem uma necessidade de acesso ao
mundo artístico que exige uma comprovação das habilidades com as técnicas
realistas figurativas por um lado, mas também com o público elitizado por
outro. Nesses ínterins dos retratos de pessoas influentes na sociedade, em
1934, ele pinta o Mestiço, também um retrato, mas de um sujeito sem nome,
sequer sem artigo definido, expoente de uma temática recorrente na obra do
pintor: mulatos e mestiços como representantes de uma brasilidade que o
Modernismo como um todo quis retratar.
A sensibilidade do pintor de Brodósqui era diferente, entretanto.
Diferente, por exemplo, de uma Tarsila do Amaral que era neta de exsenhores
de escravos. Portinari era filho de imigrantes humildes e lavradores, e sua
infância pobre e interiorana funcionou como a motivação de sua iconografia.
Para além da tendência dos discursos de Estado naquele período, os quais
já caminhavam para a inclusão do negro e do mulato reforçando o mito da
democracia racial, Portinari deu também um retrato à alma negra e a um
lamento que ele soube reconhecer. Disse ele:
É um negro, um simples negro, um destino vago que não se
afirma, que não emergirá nunca do subsolo social. Os seus
estados de alma alternando entre a alegria, sempre limitada e
precária, e a humilhação, sempre latente, não impressionam a
ninguém e poucos acreditam que possam constituir motivo de
interesse artístico. Eu quis compreender o negro: vi que não é
alegre, porque a sua imaginação está muito mais próxima da
senzala, da escravidão, que dos júbilos do progresso. Sei que a
lascívia brilha nos seus dentes vivos, mas não ignoro que algo de
puro, de sensível, de humano, resistiu nele, à depressão imposta
por um destino de submissão, de renúncia. (PORTINARI, apud
HILL, 2008, p.390)

Ao colocar o mestiço e negro na cena do retrato, face a face com o


expectador Portinari recria as técnicas aprendidas das tradições da arte
europeia para adequá-las à situação nacional. Diferencia-se, por exemplo,
de um Coubert e de um Millet que em seus retratos de trabalhadores os

17
põe cabisbaixos e sem olhar para o público. Por conta dessa e de outras
temáticas, como a dos retirantes nordestinos, Portinari foi considerado
um reinventor poético das mazelas dos cenários nacionais, das crianças
maltrapilhas. Por conta disso também, os críticos de seu trabalho (Mario
Pedrosa e Mario de Andrade especialmente) entenderam ver nele uma
disputa que o ultrapassava. Enquanto o pintor ele revivia o “[...] drama do
artista contemporâneo, ao mesmo tempo artista e homem, e que não quer
abandonar nem os direitos desinteressados da arte pura, nem as intenções
interessadas do homem social” (ANDRADE, Mário de. “Portinari”, Diário
de S. Paulo, 15 dez. 1934 apud FABRIS, p. 37). Pedrosa chega mesmo a dizer
que a condição de genialidade de Portinari reside na matéria social, nessa
sua declarada intenção de um destino mais coletivo para arte (o que segundo
ele preconizava as intenções do muralismo), uma intenção engajada e,
portanto, não distante de um posicionamento histórico e político do artista.
A pergunta que se coloca aqui é: qual o sentido dessa nova imagem
da mestiçagem a qual se negocia? Para aquém das intenções do pintor, é
interessante averiguar como essas relações se instituíam de um modo mais
geral no período em que ele produzia, mas considerando que elas remontam
também ao nosso passado colonial e escravocrata.

4 Um rápido olhar múltiplo sobre a questão


O que em geral as críticas de arte e os comentadores calam no que
tange essas discussões diz respeito ao perverso fenômeno do mulatismo.
Muitas vezes, interessad@s na universalidade da arte (uma universalidade
em si mesma muito questionável, visto que diz respeito à Arte como um
fenômeno ocidental e com um início renascentistas, e porque não dizer um
fim contemporâneo) esquecemo-nos de refletir sobre uma categoria a qual
povoa muitas obras modernistas: a da mestiçagem.
Ora, na origem dessa discussão, tal como ela aparecia nas primeiras
produções teóricas do período colonial (das mais diversas áreas), afirmava-se,
e mesmo fundamentava-se cientificamente a inferioridade do mestiço. Vide
as afirmações do médico Raimundo Nina Rodrigues que defendia a partir
da genética uma inferioridade da raça negra. Posteriormente, entretanto,
houve uma valorização da miscigenação como característica autóctone da
formação da identidade brasileira (justamente no Modernismo). Esta é
uma questão apresentada e discutida numa importante tese de doutorado
intitulada: “QUEM SÃO OS MULATOS? SUA IMAGEM NA PINTURA
MODERNISTA BRASILEIRA ENTRE 1916 E 1934” de autoria de Marcos
Cesar Hill que muito inspirou esse primeiro contato com a problemática.
Hill nos aponta, inspirado numa gama de pesquisadores das mais
variadas áreas, que a defesa do negro feita por teóricos como Gilberto Freyre
pode muitas vezes até funcionar como antídoto para a desvalorização dos

18
africanos e dos afrodescendentes que haviam sido duramente agredidos
pelas teorias dos períodos coloniais. Ela, entretanto, opera também como um
neutralizador da questão, na medida em que reforça o mito da democracia
racial o qual se prestou a apagar a questão do racismo no Brasil.
Portinari nasceu numa república jovem que há pouco tempo também
tinha abolido oficialmente seus escravos. Ou seja, vive num momento no qual
é preciso fortalecer o novo regime, ao mesmo tempo em que se conta com
um contingente populacional livre para o trabalho, mas distante do modelo
trabalhista que se desenhava. Se na Europa as questões do movimento
socialista nascente se vinculavam aos problemas acarretados pela revolução
industrial e consequente exploração exacerbada dos trabalhadores, no Brasil
essas mesmas questões são imbuídas da relação servil com o trabalho que
permeava o “passado” recente de escravidão. Quando Portinari reconhece o
trabalhador como seu personagem principal, ele ou as imagens produzidas
aderem ao plano de construção de cidadania pela educação viabilizada pela
arte.
Em sua tese, Hill chama atenção também para o fato de que Mestiço
nasce alguns anos depois da fundação da Frente Negra Brasileira (1931)
em São Paulo, isto é, na sequência da tomada de consciência da classe
trabalhadora no mundo e no país, a qual passou a ser tida também por negros
e mulatos na forma de consciência de raça. Ademais, segundo esse mesmo
autor a obra em questão coincide com o período mais forte de migração
da população pobre, trabalhadora para os grandes centros econômicos que
ofereciam mais oportunidades (Considerando que os estados do nordeste,
em especial a Bahia viviam uma estagnação econômica). Nesse sentido, para
aquém de um realismo (interpretação questionável) de Mestiço, haveria
talvez uma idealização do artista em relação às condições que ele desejaria
para o trabalhador rural (nomeadamente, para o trabalhador mestiço) (c.f.
HILL, 2008, p. 454-455).
Esses (seja Mestiço seja o Preto da enxada ou também conhecido
como O lavrador de Café) “gigantes do trabalho”, para usar a expressão
de Annateresa Fabris, são as escolhas de Portinari para expressão de
características nacionais, sendo ele um autêntico modernista e se ocupando
das ocupações desse período. Ele nos faz, entretanto, uma leitura desses
personagens desde seu vínculo rural, ao qual ele pertencia, enquanto
imigrante pobre e marginalizado também. Ressaltando, que a despeito
da positividade com o qual o efeito ‘mestiço’ era encarado nas produções
artísticas do período, Portinari tinha uma sensibilidade diferente para a
questão. Nessas obras surge, segundo Mario Pedrosa, um valor social, para
além do plástico. Efeito alcançado justamente pelo reforço dado pelo artista
ao aspecto plástico dessa obra, fazendo dessas pinturas algo de similar a
esculturas graças ao volume alcançado pela destreza técnica do pintor.

19
Ademais, é preciso lembrar alguns pontos: nesse pot-pourri de
elementos que tentou na primeira metade do século passado dar mito a
uma identidade brasileira, o próprio Portinari teve sua origem mitificada.
Recorrentemente se omitia (em especial na letra de Mario de Andrade,
seu amigo e incentivador) sua filiação italiana. Frequentemente, se referia
a ele como um caipira do interior de São Paulo, quase como um Almeida
Júnior (1850-1899) natural de Itu e considerado por muitos como Oswald
de Andrade e Monteiro Lobato o primeiro a inaugurar uma arte nacional.
Ademais a fortuna crítica da arte de Portinari oscilou entre as acusações de
um excesso de formalismo, o que significaria um academicismo ultrapassado,
e os elogios quanto à capacidade de absorver qualquer linguagem pictórica.
Como também a literatura a respeito oscila em geral na questão de ele ter
participado de alguma maneira dos esforços que reforçaram o mito da
democracia racial.
De acordo ainda com Hill: “O caso específico de Portinari nos fornece
dados singulares para a análise das agudas contradições e ambigüidades que
permearam o contexto social, político e cultural do período varguista.” Para
esse estudioso, “[...] Portinari não escapou da forma autoritária de pensar
o homem brasileiro, o trabalhador e o próprio Brasil.” (HILL, 2008 p. 496)
Muito o contrário do que pensa a crítica Annateresa Fabris, que defende que
Portinari soube contar uma história sem aderir à versão oficial justamente
pelo modo diferenciado de representar o mulato na cena. De acordo com
ela, a respeito dos painéis dos ciclos econômicos pintado para o Ministério
da Educação e da Saúde:
Além da sobriedade da estruturação plástica, os painéis
dos ciclos econômicos chamam a atenção pelo fato de a
representação do trabalhador incidir quase sempre na figura
do negro, contradizendo em parte as fontes históricas e dando
ao escravo um destaque que ele nem sempre conseguia nos
estudos especializados.

Ao conceder primazia à figura do negro nos afrescos do


Ministério da Educação e Saúde Pública, Portinari apresenta
uma leitura particular do passado, que não vê como um objeto
histórico inerte, uma vez que nele está enraizada uma situação
presente que constitui o fulcro de sua operação artística. O
negro, nesse contexto, não é apenas um protagonista histórico
da constituição da nação brasileira. É, antes de tudo, uma
figura ideológica, por cujo intermédio Portinari questiona a
política populista proposta pelo governo Vargas, alicerçada
no pacto entre capital e trabalho. A iconografia portinariana
é bem significativa nesse sentido: a presença dominante do
negro, que permite criar de imediato uma associação com o
regime escravocrata, coloca em xeque a “mística do trabalho”
propugnada por Vargas e a idéia interclassista a ela inerente,
na medida em que apresenta uma única figura de trabalhador,
empenhado desde cedo na construção da riqueza nacional.
(FABRIS, 2005, p. 95 e 97)

20
Segundo ela, a imagem forte e saudável dada por Portinari aos
trabalhadores rurais e a ênfase nos negros e mulatos significava justamente
uma maneira de responder à teoria da inferioridade racial que ainda subjazia
à sociedade brasileira, considerando inclusive que sua obra Café, aclamada
no exterior, fora vetada para participar da Exposição internacional de Paris
de 1939, algo que poderia indicar que não se pretendia a figura do negro
como representante da construção e da riqueza do país.
A despeito desta divergência entre tais estudiosos, a questão aberta
deve funcionar como mote para tratamento da problemática desde a nossa
cultura imagética.

Considerações iniciais: mímesis, criação, descolonização e a obra


esquecida...
Do ponto vista formal, Mestiço traduz o dilema da querela modernista
que disputava a postura da abstração versus a figuração. Nele Portinari
demonstra ao mesmo tempo o domínio das técnicas clássicas, a capacidade
de dar volume a anatomia do corpo humano, mas na totalidade da obra
notamos além de pinceladas expressionistas também o agigantamento dos
pés e das mãos (característica que passa a ser comum em sua obra), recurso
por ele usado para salientar a força do trabalho, a relação do trabalhador
com a terra. Este recurso de deformação subverte a mimetização figurativa.
Com isto ele está mais próximo das exigências contemporâneas.
De fato, sob a alcunha de querela do realismo eram pensadas as questões
da arte no período em questão, num debate que se perguntava sobre as
relações entre arte e realidade (portanto, em última instância sobre o velho
problema da mímesis – “o futuro tem [mesmo] um coração antigo” já dizia
Levi...). A proposta então era a de que a arte fosse aproximada do público, mais
acessível e que se recusasse ao esoterismo a que contemporaneidade aderiu6.
Os críticos das vanguardas lhe denunciam a abstração obscura, especulativa,
afastada do humano e reclamavam uma volta a um novo tipo de realismo,
um realismo não ingênuo e simplesmente figurativo, mas concreto. Concreto
como a arte muralista, não só pela sua efetiva concretude, mas porque feita
de matéria e ideias comuns a uma sociedade, códigos reconhecíveis, em
simbiose com a arquitetura. Um realismo como o de Cézanne, portanto, não
figurativo. Essa seria uma chance de sobrevivência para pintura, pois, além
do afastamento causado pelos novos códigos artísticos, todo Modernismo
é perpassado pelas inúmeras produções de imagem que se manifestam nos
cinemas, nos cartazes, na televisão. A pintura, para sobreviver, deveria se
concretizar.
Em outra obra, entretanto, Portinari teria alcançado a tão sonhada
universalidade artística. Tal obra, se analisada formalmente coloca nosso
6 Cf. FABRIS, A. Portinari e a arte social.

21
artista num nível técnico tão elevado quanto o assim considerado pai da arte
moderna: Cézanne. Nela, ele representaria a mulher desde uma visão que
escaparia aos regionalismos de muitas expressões de contemporâneos seus,
como Di Calvanti, por exemplo. Trata-se de uma tela pintada no mesmo no
ano de Mestiço, 1934, cujo título é justamente Mestiça.
Ora, é sabido que além dos trabalhadores homens que foram
escravizados e capturados havia também as mulheres. É sabido também
que essas mesmas mulheres e suas descendentes, quando libertas ou como
escravas de ganho fomentaram a economia brasileira, trabalhando nas
lavouras de cana, vendendo quitutes nas praças, cumprindo enfim inúmeras
funções. Se Portinari atentou para isso ou não, é algo a se refletir (no painel
sobre o ciclo da cana ele omite a presença feminina que era considerável
nos canaviais segundo pesquisa feita pelo próprio artista), mas fato é que ele
produziu uma imagem poderosa do feminino que é ignorada nos textos seja
de crítica de arte, seja antropologia da imagem e assim por diante. Curioso é,
que mesmo pesquisadores como Hill se atêm ao discurso dos trabalhadores
deixando esquecidas as trabalhadoras negras e mestiças que compuseram
esse cenário na República nascente. Encerro com essa provocação, com essa
abertura para o esquecimento de Mestiça com intuito de instigar nossas
reflexões acerca das imagens que produzimos e das negociações que as
envolvem nos mais variados níveis.

REFERÊNCIAS
ARÊDES, Ana Carolina Machado. Os traços modernistas da pintura de
Candido Portinari. In: Revista de Artes e Humanidades, n 3, nov-abril
2009.
CHIARELLI, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, São Paulo, Lemos
Editorial, 2002.
FABRIS, Annateresa. Portinari e a arte social. In: Estudos Ibero-Americanos.
PUCRS, v. XXXI, n. 2, p. 79-103, dezembro 2005.
GIL, Ana Lúcia Oliveira Fernandez, CHEREM, Rosângela. Contaminações
e desvios nas pinturas da América Latina. In: DA Pesquisa: Revista de
Investigação em Artes, Florianópolis, v.3, n.1, 11p., ago.2007/jul.200.
Disponível em: <http://antigo.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/
numero1/plasticas/anagil-rosangela.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2012.
HILL, Marcos César de Senna. Quem são os mulatos brasileiros? Sua
imagem na pintura modernista brasileira entre 1916 e 1934. Tese
(doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes.
2008.
JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Unisinos, 1999.

22
MERLEAU-PONTY, M. A dúvida de Cézanne. Tradução Gerardo Dantas
Barreto. In:______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
______. O olho e o espírito. Tradução Gerardo Dantas Barreto.
In:______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
______. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro
de Moura. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PICCOLI, V. e GIANCARLO, H. Arte no Brasil: um história na
pinacoteca de São Paulo, guia de visitação. 2 ed. São Paulo: Pinacoteca do
Estado, 2013.

23
A POLIFONIA FORMADORA DO CARIMBÓ NAS
REPRESENTAÇÕES DE LITERATOS, JORNALISTAS E
FOLCLORISTAS NO PARÁ (1900-1940)

Antonio Maurício Dias da Costa* 7

O carimbó ganhou as páginas do Jornal do Brasil na edição de 1º


de setembro de 1975. O texto do jornalista Ribamar Fonseca intitulado
“Quando toca o carimbó, ninguém fica parado” relatava a “descoberta”
do ritmo em Belém, apresentado “pela primeira vez na cidade em 1958”.
As primeiras linhas do artigo eram categóricas: “De repente, um ritmo do
folclore local, até 1971 praticamente desconhecido dos próprios paraenses,
explodiu nos salões, ganhou as ruas, chegou ao rádio e à indústria do disco,
através de mais de uma dezena de gravações de conjuntos locais”.
A expressão musical é apresentada no texto como resultado do
sincretismo cultural africano, português e indígena, que se revelaria em seu
nome, nos instrumentos e na dança. Desta síntese, viria à tona a música
mestiça do “caboclo da Amazônia”. E a visibilidade urbana do carimbó teria
data de nascimento para o autor: o ritmo fora o centro de uma homenagem
ao cônsul norte-americano em Belém, George T. Colman, ocorrida no
Centro Cultural Brasil Estados Unidos em 1958.
A folclorista paraense Maria Brígido trouxe para o evento um grupo
de música e dança de carimbó do município de Marapanim, localizado na
região do litoral atlântico paraense, também conhecida localmente como
o “Salgado”. O grupo era dirigido pela própria folclorista e sua existência
indica a ocorrência de relações próximas entre grupos musicais folclóricos e
pesquisadores de folclore em fins dos anos de 1950 no Pará. Aliás, o grupo
de Maria Brígido se fez presente também mais tarde em outra homenagem,
que teria ajudado na definitiva difusão do carimbó em Belém: a recepção
do Ministro do Interior Costa Cavalcanti, em 1971, na sede da agremiação
esportiva Tuna Luso-Brasileira. Na matéria, a folclorista desempenha um
papel central na promoção do carimbó em eventos importantes relacionados
a personagens destacadas do mundo político.
Outro é exemplo de folclorista promotor de manifestações folclóricas
citado no texto é o do maestro Adelermo Matos. Assim como Maria Brígido,
Matos dirigia um grupo folclórico dedicado a apresentações de carimbó, com
a particularidade de ser um conjunto escolar de Belém. O grupo folclórico
do Colégio Augusto Meira teria em seu currículo apresentações em “várias
capitais, inclusive no Rio”. Nos dois casos, segundo a matéria, temos a
atuação de dois pesquisadores de carimbó na orientação de manifestações
culturais entendidas amplamente como populares.
7Professor Doutor – Faculdade de História – UFPA – Universidade Federal do Pará, Av. Augusto
*

Corrêa, n. 01, CEP: 66075-110, Belém, Pará, Brasil. A pesquisa que resultou neste artigo contou
com financiamento do Edital Universal 14/2013, CNPq. Email: makosta@pq.cnpq.br

24
O carimbó foi anunciado naquela edição do Jornal do Brasil como
novidade em Belém, em salões de escolas e num concurso promovido pela
Prefeitura de Belém. No entanto, já se destacava um alerta dos próprios
folcloristas quanto à mercantilização do ritmo. O texto falava em protestos
dos folcloristas locais por conta da “deturpação da música”, especialmente
promovida por gravações com “letras sofisticadas” presentes em LPs e nas
apresentações de conjuntos musicais em clubes recreativos da cidade.
A defesa da autenticidade do carimbó foi a bandeira levantada por
estes folcloristas exatamente no momento em que a música começava
a ser difundida pela imprensa nacional como representativa da cultura
regional paraense e amazônica. Ao lado da atuação de músicos e cantores
de carimbó, com seus LPs e apresentações ao vivo, os folcloristas tornaram-
se promotores da reflexão sobre a música como expressão cultural regional,
como se observa na matéria citada.
Este caso parece corresponder, à primeira vista, à formulação proposta
por Roger Chartier (1995, p. 179), de que, antes de tudo, “cultura popular é
uma categoria erudita”. Mas é necessário, neste como em outros exemplos,
atentar para os sentidos vigentes no contexto histórico em questão relativos
às manifestações estudadas e/ou promovidas pelos “eruditos”. Há um
percurso histórico particular dos termos folclore e cultura popular no
debate de intelectuais no Pará desde meados do século XIX até os anos de
1970, década da matéria citada.
Pretendo seguir neste artigo a parte inicial deste percurso,
especificamente aquela em que se desenvolveram e se diversificaram os
meios de comunicação a partir do século XX até os anos de 1940. Ao longo
deste período, os estudos de folclore foram assumindo gradualmente um
perfil intelectual definido, embora externo ao establishment acadêmico das
universidades. Os limites deste recorte cronológico serão aqui vez ou outra
ultrapassados em função de exercícios comparativos, de modo a enriquecer
a análise. Assim, será possível compreender a inserção do carimbó, enquanto
“música típica do caboclo amazônico”, na pauta dos debates de pesquisadores
do folclore e em suas interações com músicos, escritores e jornalistas.
De meados do século XIX a meados do século XX, o termo popular
ganhou diferentes sentidos nos estudos de literatos e folcloristas na Europa e
nas Américas. De manifestação da “alma nacional” e costumes camponeses,
o popular folclórico assumiu gradativamente o sentido de expressão da
tradição como sobrevivência no presente (ORTIZ, 1992, p. 05, 06, 25, 26).
Nos dois casos, o popular emerge como um todo homogêneo, sem conflito,
na forma de criações culturais de uma comunidade imaginada primitiva.
Trata-se, então, de uma trajetória de construção de sentido em que
a ideia de cultura popular se associa a uma espécie de herança passadista,
sempre em choque com o “processo civilizatório” (ORTIZ, 1992, p. 63). Daí

25
assumirem os folcloristas o papel de guardiões preservadores da autenticidade
de manifestações por eles tomadas como representativas da cultura popular.
Tal missão intelectual ganhou escopo político e institucional exatamente no
contexto de expansão e especialização do mercado cultural no século XX.
Este desenvolvimento se deu através da produção e do consumo massivo
de publicações impressas, de obras de artes plásticas, de espetáculos de
performance artística, da produção fonográfica, de programas radiofônicos
e televisivos (ORTIZ, 1992, p. 63).
No caso brasileiro, há duas fases distintas na história dos estudos
de folclore (CAVALCANTI, 2012, p. 73-74). A primeira, sobre a qual me
detenho neste texto, iniciou-se em meados do século XIX e se estendeu
até os anos 1940. Neste período, artistas e literatos desempenharam
centralmente o papel de inventariar manifestações culturais populares como
representativas da nacionalidade. A segunda fase começou em 1947 com a
criação da Comissão Nacional de Folclore (CNF), órgão nacional ligado à
UNESCO e dirigido pelo musicólogo e folclorista Renato Almeida. Com
a comissão, os estudos de folclore ganharam uma referência institucional
e de profissionalização, ampliada por iniciativas do órgão como a criação
da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (em 1958) e a publicação da
Revista Brasileira de Folclore (a partir de 1960).
Segundo Figueiredo (1998, p. 302), os estudos de folclore se iniciaram
no Pará na segunda metade do século XIX, em busca de manifestações
regionais (lendas, crenças e costumes) que apontassem um ângulo particular
e legítimo da história nacional. Esta perspectiva fortaleceu-se com o interesse
dos intelectuais modernistas, a partir dos anos 1920, pela busca de uma
linguagem nacional para as artes produzidas no país (CAVALCANTI, 2012,
p. 94-95). Com isso, o tema da brasilidade passou a sustentar-se na ideia de
unidade das manifestações folclóricas regionais.
O folclorismo representava, neste contexto, o ponto de vista dos
“eruditos” – literatos e artistas de formação acadêmica – sobre um espectro
variado de manifestações culturais, dentre crenças e rituais religiosos, mitos
e lendas, danças e cantos, musicalidades e folguedos. A inclinação mais geral
dos pesquisadores do folclore era a de abordar estas manifestações diversas
como se fossem um complexo coerente, como um saber a ser difundido não
só pela tradição, mas também por meio da educação formal.
O envolvimento de folcloristas com o universo do que compreendem
como “cultural popular” implica, por sua vez, num posicionamento
ambivalente de promotores de manifestações culturais em sua autenticidade
e, ao mesmo tempo, de pesquisadores de um objeto “científico”. Tal
ambivalência explica a “acidentalidade metodológica” do folclore como
campo de pesquisa e sua inadequação histórica ao meio acadêmico (ORTIZ,
1992, p. 30-32).

26
De todo modo, o desenvolvimento dos estudos de folclore acompanhou
de perto o progresso das ciências sociais no século XX. Belmont (1986,
p. 262) aponta a particular aproximação entre folclore e etnologia na
França desde fins do século XIX. O uso da noção de sobrevivência entre
os folcloristas franceses, para a coleta e estudo de produções populares,
exemplifica esta aproximação. Sobrevivência torna-se sinônimo de relíquia
e de resíduo, característica das expressões culturais verdadeiramente
autênticas (BELMONT, 1986, p. 263-4).
Portanto, o mérito pela descoberta das relíquias culturais caberia
ao expert do folclore, supostamente dotado de um entendimento mais
amplo da riqueza das manifestações do que seus próprios promotores. A
curiosidade do pesquisador lhe desperta o desejo por encontrar “sentidos”
para expressões culturais. Belmont (1986, p. 266) fala em “desejo” para se
reportar à sedução que os objetos de folclore exercem sobre o pesquisador
em vista de sua aparente irracionalidade. À medida em que o pesquisador
aplica sua “cultura letrada” na tradução das manifestações classificadas
como populares, ele produz novos sentidos, intercambiados com os sentidos
nativos e aptos a apreciação nos meios intelectuais.
Nestes termos, observo a polifonia em torno do carimbó atravessada
por clivagens de classe social: o mundo da maioria dos pesquisadores
folcloristas não era o mesmo dos músicos de serenatas (CORRÊA, 2010, p.
87), dos batuques de terreiros afroreligiosos, dos currais de bois-bumbá e
das rodas interioranas de carimbó. A distância era maior no caso de literatos,
jornalistas e folcloristas oriundos de famílias brancas e abastadas, moradores
dos bairros centrais de Belém. Tal distância se revela em discursos e em
práticas relativas às manifestações folclóricas, sempre representadas como
a cultura do “outro”, do exótico, do iletrado (FIGUEIREDO, 1998, p. 305).
Estas condições estão presentes nas entrelinhas das fontes aqui
utilizadas: os poemas, as crônicas, as letras de canção, as notícias de jornal, os
registros memorialísticos, dentre outros, revelam as trilhas de interlocução
que deram origem aos sentidos enunciados. Além disso, o emprego destas
fontes implica no conhecimento das condições histórico-contextuais em
que foram produzidos estes sentidos na forma de representações.
Emprego a noção de representação como projeção social de discursos
e ações que revelam interesses situados num campo de concorrência e
competição entre frações da sociedade (CHARTIER, 2002, p. 17). Em
outras palavras, a enunciação de sentidos para o folclore corresponde, em
última instância, à afirmação social dos enunciadores como porta-vozes e
guardiões de versões “autênticas” do que entendem como cultura popular.
Este artigo destaca, por exemplo, como artistas e jornalistas obtiveram
alguma projeção de suas obras e pontos de vista, quer divergindo das ou
afirmando as proposições dos folcloristas.

27
Os textos de memorialistas, por exemplo, falam mais de sua avaliação
sobre o lugar social ocupado pelo carimbó no tempo de produção do
escrito, do que sobre o tempo a que se refere a memória. Da mesma forma,
as notícias de jornal, os estudos de folclore, as crônicas e os poemas revelam
aspectos do contexto histórico das publicações, ao destacar a posição social
dos autores-enunciadores e seus interesses de interlocução com outros
sujeitos.
Em determinadas situações, estes autores-enunciadores aparecem
como mediadores culturais, isto é, como sujeitos que vivem diferentes
papéis sociais (VELHO, 2001, p. 25), quer como entusiastas do folclore,
quer como estudiosos. Em alguns casos, os mediadores podem ocupar uma
posição ambígua e de transição entre mundos sociais diferentes (VOVELLE,
2004, p. 214). Os excertos textuais e demais registros aqui analisados como
fontes apresentam exemplos de situações de mediação cultural. Nestas
circunstâncias, as vozes de mediadores e de demais sujeitos são consideradas
em função de seus interesses e de posições sociais ocupadas. Aqui há o
interesse em conhecer não só o que testemunham essas vozes, mas também
a quem elas testemunham (VOVELLE, 2004, p. 224).
Vejamos então de que forma estas diferentes vozes, nem sempre
consonantes, coincidiram na promoção do carimbó como a música
característica do caboclo amazônico no Pará na primeira metade do século
XX.

1 O Carimbó nas visões de pesquisadores e de autoridades públicas


A catedrática de folclore brasileiro da Escola Nacional de Música,
Dulce Lamas, empreendeu uma viagem de pesquisa de um mês ao Pará
em meados dos anos 1960. O relato sobre a viagem foi feito através de
carta endereçada ao presidente do Conselho Nacional de Folclore, Renato
Almeida7. Pelo fato da carta não conter datação, somente se pode deduzir
8

o período da pesquisa a partir da referência ao contato da pesquisadora


com o governador do Pará na época, o coronel Jarbas Passarinho. O militar
fora empossado no governo após cassação do governador eleito Aurélio do
Carmo, efetivado pela ditadura instituída no país a partir de 1964.
O fato da viagem de pesquisa da folclorista iniciar com uma
audiência com a autoridade política-militar maior do estado é revelador:
sua movimentação entre o arquipélago do Marajó e Belém, em busca de
registros sonoros de manifestações culturais, ocorreu com o decisivo suporte
de autoridades políticas e de personalidades da elite econômica e intelectual
local. Foi nestas condições que Dulce Lamas teve contato com apresentações
de carimbó, boi bumbá, cordões de pássaro8, quadrilha e festas de mastros
9

7 Museu da Universidade Federal do Pará, Acervo Vicente Salles, Pasta: Folclore, Subpasta:
Folcloristas.
8 Os cordões de pássaro e de bichos (de onças, peixes, camarões, caranguejos, etc.) são grupos

28
de santos.
A viagem foi justificada pela ausência de registros do norte do país no
acervo do Centro de Pesquisas Folclóricas da Escola Nacional de Música.
A pesquisadora fala do seu interesse pelas “tradições de nossa gente”, como
uma forma de objetificação do que entendia como cultura nacional. Em
outras palavras, registrar estas tradições folclóricas significa, neste sentido,
incorporá-las como bens ao patrimônio cultural do país (GONÇALVES,
1996, p. 23).
Lamas foi apresentada pelo Chefe do Serviço Médico da capital ao
Governador do Estado, que escreveu de “próprio punho” uma recomendação
ao Presidente da Cooperativa de Pecuaristas do Marajó para que a folclorista
fosse acolhida em uma fazenda do arquipélago. Neste ínterim, o Diretor da
Faculdade de Odontologia de Belém já havia providenciado a hospedagem
da pesquisadora na Fazenda “Santa Cruz da Tapera”, nas imediações do
município de Soure. Naquela cidade, Lamas foi auxiliada pelo Bispo do
Marajó na “localização dos portadores da cultura do folk”. Mas foi decisiva
a ajuda do prefeito da cidade, que organizou uma apresentação de carimbó
em frente ao principal hotel da cidade para que a pesquisadora pudesse
fazer seu registro.
A montagem do evento para pesquisa demandou gastos da prefeitura
com os pagamentos de dançarinos e tocadores, com o seu transporte e
com a oferta de bebidas alcoólicas. Do ponto de vista da pesquisadora,
mais importante que discutir os elementos propriamente musicais (ou
de logística) do carimbó foi descrever seus componentes performáticos:
instrumentos (especialmente os tambores), coreografia e trajes. Duas
dançarinas, em particular, chamaram a atenção de Dulce Lamas: a “velha
Tomásia, que diziam ter cem anos” e era “muito animada na dança”, e Odete,
uma “mulata benzedoura muito conhecida e solicitada em Soure”.
Importante observar que as mulheres em questão são referidas somente
com o primeiro nome, bem diferente das menções de Dulce Lamas aos
senhores e doutores, com nomes e sobrenomes, que contribuíram para sua
estada em campo. Odete, em particular, ganhou a atenção da pesquisadora
por ser dona de um barracão onde organizava bailes dançantes aos sábados,
nos quais era dançado o lundu. O interesse da pesquisadora pelas festas do
barracão de Odete foi obstado pela solicitação do prefeito de que a folclorista
não fosse àquele lugar, “por considerá-lo ambiente impróprio”. Por fim,
Lamas disse ter acedido à solicitação para não constranger o prefeito.
Este acontecimento é sumamente revelador da postura ambígua de
performáticos compostos por famílias nucleares e seus agregados. Os cordões têm como cerne
enredos românticos e melodramáticos, nos quais a trama gira em torno da morte e ressurreição de
um animal (como no bumbá). De aspecto fundamentalmente teatral, os “pássaros” e os “bichos”
são dotados de forte comicidade assentada na “matutagem”, isto é, em cenas engraçadas de matutos
que são o ponto alto de empolgação da plateia. (MOURA, 1997, p. 35).

29
muitas autoridades públicas locais perante manifestações lúdicas e artísticas
como o carimbó em meados do século XX. De um lado, o evento preparado
pelo prefeito, em frente a um hotel da cidade, serve como exemplo propício
das “tradições do nosso povo”, enquanto relíquia, sobrevivência folclórica.
Por outro lado, eventos dançantes, como os do barracão de Odete, que
escapavam ao controle estrito das autoridades públicas, eram apresentados
como impróprios, talvez por estarem muito dentro dos domínios do
popular. No segundo caso, o ambiente característico do carimbó e do lundu,
conduzido por gente comum como Odete, é visto por membros da elite
política de Soure como perigoso, não recomendável para a realização de
pesquisa folclórica, especialmente por ser mulher a pesquisadora.

Ao recuarmos no tempo, tende a se aprofundar este distanciamento


entre o mundo das autoridades públicas e das pessoas comuns do povo, em
torno de manifestações como o carimbó. É o caso do Código de Posturas
Municipais de Belém que, entre os anos 1848 e 1880, manteve um artigo com
a proibição de “(...) fazer batuques ou sambas, (...) tocar tambor, carimbó,
ou qualquer outro instrumento que perturbe o sossego durante a noite”9 10

(sob pena de pagamento de multa).


A presença deste artigo na legislação municipal durante quase toda
a segunda metade do século XIX em Belém pode ser lida pelo que indica
de forma inversa: batuques, sambas e carimbós se faziam efetivamente
presentes como manifestações musicais e de dança na cidade, provavelmente
realizadas por negros e mulatos em eventos como carnaval, festas juninas
ou em comemorações de amigos, parentes e vizinhos.
Vicente Salles (2004, p. 200-202), por exemplo, aborda a presença
do lundu no Pará desde o início do século XIX a partir de impressões de
viajantes europeus sobre a região. Nestas, o lundu seria uma espécie de
samba de roda, também chamado de batuque, praticado por negros em
festins populares, como nas comemorações profanas das festas de santo.
Na interpretação do folclorista, a larga repercussão do lundu ao longo do
século no Pará teria dado origem a “numerosas danças locais”, dentre elas o
carimbó (SALLES, 2004, p. 211).
Estes dados nos ajudam a entender a associação do carimbó, como
uma forma de batuque, com o universo lúdico musical do negro no Pará
no século XIX. Ao longo desse período ocorreram crises políticas e sociais
como a Cabanagem, a abolição da escravidão e o final da Monarquia. A
dança-música negra seguiu por este século como um elemento do mundo
dos desclassificados. Daí sua presença na cidade ser tratada nesta época
como caso de polícia.
Do ponto de vista de literatos paraenses do início do século XX, o
carimbó poderia suscitar interesse por sua vinculação às populações do
9 Código de Posturas Municipais de Belém – 1848, artigo 107 (capítulo 119, “Das Bulhas e
Vozerias”). Atualizado no Código de Posturas de 5 de maio de 1880 (Lei n. 1.028).

30
interior do estado. É o caso do vocábulo “carimbó”, descrito pelo fazendeiro
e naturalista paraense Vicente Chermont de Miranda em seu “Glossário
Paraense” (MIRANDA, 1968). O livro publicado originalmente em 1905,
posteriormente ganhou uma nota biográfica escrita pelo filho do autor em
1942. Na nota, Miranda é apresentado como homem de origem aristocrática,
com experiência de estudos na Europa, dono de engenho de açúcar herdado
dos pais, cartógrafo e botânico, ocupante de mandatos políticos durante o
Império como deputado provincial e intendente de Belém e autor de dois
livros sobre o Marajó.
No prefácio da edição de 1905, Miranda informa que o livro fora
escrito nas horas de lazer de suas fazendas, provavelmente resultando do
cotidiano de contatos com trabalhadores de suas propriedades. Segundo
ele, o livro buscava divulgar a “linguagem popular, usada correntemente
pela população rude e sensual dos nossos sertões”. A população “rude e
sensual” à qual o autor se refere corresponde provavelmente ao contingente
destacado de camponeses negros e mulatos de suas fazendas da região do
Rio Capim, importante núcleo de produção açucareira no Pará desde o
século XVII.10 11

A presença marcante da população negra na região certamente


contribuiu para o painel demográfico apresentado por Miranda relativo
ao Pará. Sem identificar a fonte dos dados mencionados, o autor aponta a
presença de 37% de “sangue africano” na população paraense, equiparando-
se à parcela de 37% de “sangue tupi” (MIRANDA, 1968, p. xii). Por isso,
a definição de “manifestações culturais populares” presentes no glossário
supõe a vinculação de expressões lúdico-artísticas com matrizes negras e
indígenas. No texto, o carimbó (tambor), associado à dança do batuque, é
uma expressão de origem africana, “importada pelos negros cativos”.
Instrumento, dança ou música, o carimbó se fazia vivo na cidade de
Belém do início do século XX, mas despertava pouco interesse intelectual.
O violonista negro Tó Teixeira, morador do bairro do Umarizal, compôs
um carimbó para um cordão carnavalesco de seu bairro em 1908. Entre
aquela data e o ano de 1916, Tó Teixeira participou do cordão “Pretinhos
de Moçambique”, entre seus 15 e 23 anos de idade (HABIB, 2013, p. 41). A
composição foi guardada pelo violonista como partitura até que a parceria
intelectual com o folclorista Vicente Salles, iniciada nos anos 1960, viesse
a impulsionar o conhecimento público da obra de Tó Teixeira. A partir
daquela década, Salles se beneficiou de muitas informações do violonista
sobre o cenário musical belenense, por ele muito conhecido.
Tais informações se fizeram presentes em vários livros de Salles sobre
a história da música no Pará (SALLES, 1970, 1980, 1981, 1985, 2005) e que
servem de base para estudos de outros pesquisadores. É o caso do livro do
violonista Salomão Habib sobre a trajetória de Tó Teixeira, publicado em
2013. A obra escrita é acompanhada de discos e vídeos com composições de
10 Sobre isto ver Chambouleyron (2010).

31
Tó Teixeira gravadas (em CD) pela primeira vez, e com execução de Habib.
É apresentado nesta coletânea o carimbó dos “Pretinhos de Moçambique”,
com a performance do violão solo de Habib e com o foco na melodia curta,
dançante, possivelmente usada como base para a execução percussiva e a
variação de estrofes improvisadas durante o cortejo.
Os cordões carnavalescos eram em geral oriundos de bairros
suburbanos de Belém e seus cortejos tiveram presença marcante nos carnavais
da cidade durante as três primeiras décadas do século XX. Segundo Corrêa
(2008, p. 15-17), os cordões eram compostos por homens fantasiados de
personagens (rainha do batuque, índio, embaixador, intérprete, feiticeiro,
porta-estandarte, baliza) ao som de chocalhos, tambores, pandeiros,
clarinetes, com que tocavam lundus, maxixes, quadrilhas e sambas. O
escritor De Campos Ribeiro, em seu livro de memórias de Belém, lançado
em 1966, relata que cordões de pretinhos (como o “de Moçambique”) eram
compostos “quase na totalidade de negros”, vestidos com “trajes “selvagens”,
portando “títulos de fidalguia” e que “cantavam e dançavam lundus, tocavam
pandeiros, atabaques, chocalhos” (DE CAMPOS RIBEIRO, 2005, p. 18).
Vale dizer que estas são impressões registradas na memória de
infância do autor11, dos anos 1900 e 1910, as quais foram atualizadas à
12

época da comemoração do 350º ano da fundação de Belém. O autor obteve


espaço com a efeméride para, com apoio do governo estadual, publicar sua
obra comemorativa da história da cidade. Mas, eventos que eram em 1966
reminiscência de uma “gostosa Belém de outrora”, para o autor, foram objeto
de preocupação policial nas décadas iniciais do século. Os cortejos oriundos
do subúrbio exaltavam rivalidades entre bairros quando seus percursos
se cruzavam pela cidade durante o carnaval. Os encontros de cordões
poderiam render enfrentamentos físicos e intervenção policial (CORRÊA,
2008, p. 09) (LEAL, 2008, p. 191). Nestes casos, o repertório performático
dos cortejos tendia a ser associado pelas autoridades à desordem pública e
à criminalidade.
Esta avaliação é feita de forma clara em uma carta publicada no jornal
Estado do Pará, na edição de 13 de janeiro de 1913, coluna “Tópicos e
Notícias” (p. 13). A missiva dos moradores da “Rua dos Tamoyos, entre as
travessas de Breves e Monte Alegre”, no bairro do Jurunas, buscava atrair a
atenção das autoridades públicas para o inconveniente de festas dançantes
com carimbó em uma casa da vizinhança. Os participantes são nomeados
e apresentados como uma “malta de desclassificados”, na maioria negros
e mulatos, não se poupando qualificações como “lugar de desocupados
e vagabundas”, “espaço de danças macabras e brigas”. A casa também
é apresentada como lugar onde “campeia grande feitiçaria”. Os autores
solicitam repressão policial, seguindo a linha proscritiva do artigo 107

11 De Campos Ribeiro começou sua atividade como jornalista nos anos 1920 nas colunas de
domingo do diário Folha do Norte e, depois, foi secretário de redação do jornal O Estado do Pará.
Tornou-se, neste período, membro da Academia dos Novos e passou então a desempenhar papel
destacado no meio literário paraense (DE CAMPOS RIBEIRO, 2005: 08).

32
do código de posturas municipais (“Das Bulhas e Vozerias”), que proibia
batuques e sambas, de modo a garantir o sossego público.
Em suma, bailes de carimbó na vizinhança da Rua dos Tamoyos nos
anos 1910, como possivelmente ocorria em outros bairros suburbanos à
época, podiam ser denunciados na imprensa como lugar de “desclassificados”,
de desordem e de feitiçaria. Mesmo que ocorressem em espaços de práticas
religiosas como terreiros de batuque12, como parece ser o caso. Nada mais
13

distante da visão condescendente de autoridades públicas paraenses sobre o


carimbó nos anos de 1960 como exemplo de “tradição de nossa gente”.
Neste caso em particular, o jornal Estado do Pará, assim como outros
diários belenenses do início do século, davam destaque a este tipo de notícia
tanto por sua repercussão entre os leitores e venda de jornais, quanto pelo
alinhamento dos editores com o que era avaliado como defesa do sossego
público. De todo modo, o carimbó dos “desclassificados” da Rua dos Tamoios
chamava tão pouca atenção dos interessados pelo folclore regional paraense
em 1913 quanto os carimbós executados em cordões carnavalescos, como o
que fora composto por Tó Teixeira cinco anos antes.
Na verdade, estas manifestações ocupavam espaços marginais
na sociedade belenense da época, especialmente do ponto de vista de
autoridades públicas e de alguns editores de jornais diários. Exemplar é a
mesma reprovação social estampada na imprensa paraense algumas décadas
antes, embora sem menção particular ao carimbó. Vicente Salles (1971, p.
189) menciona a existência de “sambas urbanos” no bairro do Umarizal em
fins do século XIX, dado obtido em uma nota publicada no jornal Diário
de Belém, de 18 de setembro de 1884. Segundo o autor, o texto apresentava
reclamações de moradores do bairro Umarizal contra batuques/sambas
realizados à noite. Assim como a carta de 1913 do Estado do Pará, a nota de
1884 do Diário de Belém “pedia providências à polícia, a fim de proibir esses
sambas noturnos”, com “tambores e pandeiros e gritos”.
A partir dos anos de 1920, surgiram em Belém novas avaliações sobre
o carimbó em escritos de literatos em revistas e jornais. Crônicas, poemas
e textos de opinião passaram a promover novos sentidos para a música/
dança local, distanciados de referências ao mundo dos “desclassificados” ou
a atentados ao sossego público.

2 O Carimbó e a Vanguarda Literária Paraense dos anos 1920-30


O historiador Aldrin Figueiredo (2012, p. 18-19) apresenta o
movimento literário paraense surgido em meados da década de 1910
como a defesa de jovens literatos de um “novo projeto de nação”. Apesar
das diferenças intelectuais, políticas e de origem social dos literatos, eles
12 De acordo com Silva (1976, p. 20), a expressão batuque é usada pelos afro religiosos de Belém,
desde os anos 1940, como sinônimo de religiões de matriz africana.

33
tomavam as redações de jornais e revistas de Belém do início do século XX
como um terreno comum. Além disso, seus escritos tendiam a promover a
figura do “homem mestiço da Amazônia” como tipo social característico e
matriz da identidade cultural regional.
A identificação do mestiço regional, o caboclo, como referência social
e cultural amazônica, relacionava-se, segundo Figueiredo (2012, p. 23), à
promoção de um aspecto da identidade nacional sob o ângulo do norte do
país. Para o historiador, esse é o denominador comum de poemas, contos,
crônicas e estudos dos literatos paraenses que se agruparam em sociedades
literárias desde 1916 e que se reuniram principalmente na Associação dos
Novos, criada em 1921 (FIGUEIREDO, 2012, p. 21-22).
Marcos históricos orientaram e reforçaram a organização dos grupos
literários belenenses até a vigência da Associação dos Novos: o tricentenário
da fundação de Belém (em 1916) e o centenário da adesão do Pará à
independência do Brasil (em 1823). Ao mesmo tempo, a criação de revistas
literárias como “A Semana” (em 1918) e “Belém Nova” (em 1923) estipulou
núcleos básicos de atuação dos literatos, completados pelo trabalho em
jornais diários e pela produção de livros (FIGUEIREDO, 2012, p. 17, 21-
22). Com a consolidação de sua projeção jornalística e literária, tornava-se
mais fácil para os “Novos” buscarem colocações na burocracia do estado e
ingressarem na carreira de professor (FIGUEIREDO, 2012, p. 49).
É com este pano de fundo que devemos entender o projeto intelectual
e artístico destes escritores: “derrubar os monumentos da literatura e das
artes” (FIGUEIREDO, 2012, p. 48) e, ao mesmo tempo, produzir uma
linguagem literária baseada nos “costumes da Amazônia” (FIGUEIREDO,
2012, p. 29). O objetivo seria o de promover uma nova identidade nacional
sob ângulo regional. E constituiriam a matriz para isso o mundo social e as
criações culturais do caboclo amazônico.
O manifesto literário que representa esta perspectiva de modo
categórico foi publicado em 1927 pelo poeta Abguar Bastos e intitulava-se
Flami-n’-Assú, associação do termo latino para “chama” com o sufixo tupi
“açu”, grande. A “Chama Grande” culturalmente mestiça de Bastos veio a
público na edição 74, de 15 de setembro de 1927, da Belém Nova. Bastos
apresenta o texto como “manifesto aos intelectuais paraenses” e nele propõe
a “índole nacional” como fundamentalmente mestiça: “Flami-n’-Assú é mais
sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico;
porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações étnicas”.
No mês seguinte, apareceu na mesma Belém Nova um poema do escritor
Teixeira Monteiro, enviado do Rio de Janeiro e intitulado “Bailado das Três
Raças” (Belém Nova, n. 76, Belém, 30 de outubro de 1927). Acompanhando
o mesmo ponto de vista de Flami-n’-Assú, o poema de Monteiro destaca
a batida do carimbó no terreiro como criação miscigenada, fruto das três

34
raças, relíquia da “autêntica” matriz cultural brasileira: “Retumba, retumba,
monótono, retumba / Ronca, ronca, no terreiro, o carimbó (...)”.
A música monótona do caboclo se faz presente no poema entre “vozes
bárbaras na floresta”, em que convivem mestiços de africanos, índios e
navegadores portugueses, mesclados à natureza agreste e de fortes odores.
Por isso, o carimbó seria no poema uma mistura de jongo, poracé e fado,
supostas matrizes musicais africanas, indígenas e portuguesas. Talvez como
resultado da fusão, o carimbó é apresentado como um canto triste, mas que
promove sensações prazerosas, expressão das emoções mais profundas da
“síntese das três raças”.
Segundo o poema, o lugar por excelência do carimbó é a floresta, e
não cidades interioranas, o subúrbio de Belém ou as festas carnavalescas. A
peça literária de Teixeira Monteiro se afinava com a orientação do “elogio
da mestiçagem”, perspectiva intelectual promovida por pesquisadores da
formação social brasileira em fins dos anos de 1920 e durante os anos de
1930. Esta interpretação da formação brasileira ganhou sua maior expressão
na obra “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre (de 1933) e se fez presente
como referência intelectual de artistas filiados a esta vertente (SCHWARCZ,
1995) (COSTA, 2001).
“Mas como um projeto político-intelectual, o papel da “mistura das
três raças” na formação das manifestações culturais autênticas” da nação se
ajusta a uma ideologia de conciliação. Este discurso é analisado por Roberto
DaMatta (1987, p. 68) como uma forma de posicionar grupos, parcelas
sociedade, em um plano hierárquico e, portanto, desigual de relações sociais.
Assim, o caboclo que vive entre as “vozes bárbaras da floresta” chama a
atenção como referência da nacionalidade e sobrevivência de um passado
formador da nação. Sua música, o carimbó que “retumba monótono”, atraía
o interesse dos modernistas enquanto uma das matrizes do que concebiam
como um projeto de nacionalização musical.
Não que os literatos paraenses tivessem estipulado uma pauta de
pesquisa musical relativa a manifestações folclóricas ainda nos anos de 1920.
Isso teria que esperar a atuação de músicos de formação erudita nos meios
intelectuais belenenses na década de 193013. De todo modo, a avaliação
14

dos literatos locais sobre manifestações folclóricas como a música não se


distanciava do projeto de pesquisa artística musical de Mário de Andrade14, 15

que começou a ganhar corpo em fins dos anos de 192015 (ANDRADE, 1928,
16

1929, 1934).

13 Sobre este assunto consultar Dias (2009) e Lemos (2012).


14 A dissertação de Dias (2009) aborda a confluência das obras de Mário de Andrade e do
compositor paraense Waldemar Henrique em torno da relação entre produção musical e pesquisa
do universo lendário amazônico entre as décadas de 1920 e 1930.
15 Sobre a relação entre pesquisa musical e o Modernismo paulista nos anos 1920 ver Wisnik
(1977).

35
Para o musicólogo e escritor paulista, a verdadeira música nacional
expressa a alma do povo que a criou e só pode ser encontrada, em sua forma
autêntica, no “ambiente popular”, isto é, no mundo rural (TRAVASSOS,
2000, p. 33-36). Caberia então aos músicos de formação acadêmica,
eruditos, recolher como “documentos” esta música associada ao cotidiano
religioso, de trabalho e de lazer das populações rurais, de modo a transpô-
la para a linguagem erudita. Assim, os compositores acadêmicos passariam
a fazer música brasileira de forma “natural”, “indo muito além da citação”
(TRAVASSOS, 2000, p. 47).
Portanto, na visão de Mário de Andrade e de outros músicos e literatos
brasileiros do seu tempo, a música rural, intuitiva, constituía um dos resíduos
de primitivismo da cultura brasileira. O primitivo cultural corresponderia,
então, às manifestações artísticas rurais ainda não desagregadas pela
civilização urbana e seu mercado de entretenimento. A música primitiva,
neste sentido, seria uma herança arcaica a ser documentada antes que viesse
a desaparecer, de modo a desempenhar um papel pedagógico na formação
da cultura contemporânea da nação.
Perspectivas semelhantes sobre a “arte primitiva” vigoravam, por
exemplo, no meio artístico-intelectual francês na década de 1920. Clifford
(1998, p. 136, 138, 144, 152) destaca a visão da vanguarda artística parisiense
daquela década de que África, Oceania e América eram reservas de outras
fontes estéticas exóticas frente ao racional, ao belo e ao normal do Ocidente.
Segundo o autor, o desenvolvimento concomitante do surrealismo e da
etnografia na França nos anos de 1920 esteve vinculado à valorização estética
do “nègre”, que poderia significar coisas como máscaras tribais africanas,
rituais do vodu haitiano, esculturas da Oceania e artefatos pré-colombianos
(CLIFFORD, 1998, p. 156).
No caso brasileiro e modernista, o exótico valorizado eram as criações
artísticas rurais e mestiças predominantemente. Em alguns poucos casos, a
ênfase era dada às expressões culturais negras. Um dos líderes da Associação
dos Novos nos anos de 1920, o escritor negro Bruno de Menezes, nascido no
bairro suburbano do Jurunas, lançou uma coletânea de poemas intitulada
“Batuque” na edição 78 da Belém Nova, em 18 de agosto de 1928. Em 1931,
a obra foi transformada em livro16 e, em 1954, conquistou um prêmio
17

literário concedido pelo Governo do Pará. Desde então, “Batuque” tem sido
uma das mais conhecidas e importantes obras do autor dentre suas várias
publicações de poemas, romances e estudos folclóricos.
A obra de teor simbolista, de fluxo poético-narrativo que evoca a
sonoridade de ritmos e timbres, está voltada para temas populares do universo
16 A primeira edição de Batuque como livro foi em 1931. Somente na edição de 1939 é que vão ser
acrescentados poemas novos como “Mãe Preta”, “São João do Folclore e Manjericos” e “Cavaleiro
Jorge”. A quinta edição (Editora Falângola), de 1966, foi uma tiragem especial em comemoração
aos 350 anos da fundação de Belém.

36
cultural negro conhecidos pelo autor desde a infância (FIGUEIREDO, 2012,
p. 111). Dentre estes temas, fazia-se presente o carimbó, mencionado no
poema “Alma e Ritmo da Raça”: “(...) Não é candomblé não é ‘Santa Bárbara’
/ Nem banzo banzado bom carimbó bolinoso; / - bailado benguela de gente
sem nome / Que agora machuca as ‘senhora’ e os ‘sinhô’ (...)”.
O poema tem como personagem uma mulher negra, sem nome, que
dança de forma sensual e tem um cheiro provocante, como fruta regional.
São comuns neste e em outros poemas do livro equivalências entre beleza
feminina negra e frutas regionais, ambas apresentadas como tentadoras para
o homem branco, externo a este mundo. O poema menciona uma música de
fundo, tocada com banjo e tantãs, que seria o “carimbó bolinoso”, música-
dança profana de sentido lúdico e sensual. O carimbó, que não é tocado com
curimbó, mas com instrumentos comuns no lundu e nos sambas (banjo e
tantãs), é apresentado pelo autor como a “alma e o ritmo da raça”, assimilada
de forma clandestina pelos senhores brancos.
A sensualidade inerente à dança-ritmo oriunda da música negra
corresponde, no poema, ao que há de exótico e, portanto, de primitivo
no carimbó. A composição artística de Bruno de Menezes em “Batuque”,
para além dos elementos de erudição e técnica poética, é marcada pelas
experiências vividas na infância, no Jurunas dos anos 1900, junto a bumbás,
cordões de pássaro (SALLES, 1993, p. 15) e, certamente, execuções de
carimbó. Em “Batuque”, o carimbó é uma expressão de dança e música
componente da lúdica negra existente no Pará.
Segundo Batista (2001, p. 11), os literatos modernistas paraenses dos
anos 1920 eram entusiastas dos folguedos suburbanos de Belém. Carnaval,
malhação de Judas, festas juninas, apresentações de boi bumbá, pássaros
e pastorinhas se faziam presentes em seus versos, crônicas e romances.
Em seus escritos, os folguedos suburbanos poderiam ser equiparados às
manifestações folclóricas rurais, o que revestia a presença dos escritores
nestes eventos de um sentido de coleta folclórica.
Batista (2001, p. 48, 49) destaca, por exemplo, os trabalhos de assessoria
de alguns literatos a grupos folclóricos nos anos da segunda década do
século passado, especialmente voltados para a preservação de tradições
como boi bumbá, banhos de cheiro e cordões carnavalescos. A defesa destas
manifestações significava, para os literatos, divulgação de seus conteúdos
e apresentações em revistas como A Semana e Belém Nova e nos jornais
diários da cidade.
Travavam-se embates nas folhas dos periódicos, naquela altura, em
torno da preservação de folguedos populares. Figueiredo (2012, p. 75, 124)
reporta a ocorrência, naquele período, de uma disputa entre literatos na
imprensa em torno da preservação dos “costumes paraenses”, relativos aos
folguedos carnavalescos e juninos. Neste debate, os cordões de pretinhos

37
assumiam papel destacado entre os que defendiam ou não a manutenção de
práticas carnavalescas antigas, oriundas da época do entrudo.

Mas o que era visto como exótico ou arcaico não estava tão distante
do mundo dos literatos. Lembremos que havia dez anos antes, o cordão
“Pretinhos de Moçambique” desfilava nas ruas da cidade com um carimbó
composto por Tó Teixeira. Neste caso, o sentido lúdico do carimbó
associava-se à disposição festiva da agremiação carnavalesca suburbana.
Nisto, a presença do carimbó na cidade se assemelhava muito ao que
descrevia Bruno de Menezes em seus versos. Vale destacar que o poeta era
amigo de Tó Teixeira e participou ao seu lado de serenatas boêmias juvenis
(CORRÊA, 2010, p. 84) e foi seu colega de profissão numa oficina gráfica em
sua primeira experiência profissional.
Bruno de Menezes apresentou em 1928 o carimbo, dança-música
profana como “alma e ritmo da raça negra”, mas outras visões eram propostas
por literatos do seu tempo. Por exemplo, o jornalista José Coutinho de
Oliveira elaborou uma definição de carimbó na edição de 20 de dezembro de
1937 da “Folha do Norte Vespertina” que o associava unicamente à religião.
Apoiado na leitura de um artigo do escritor e advogado Levihall de Moura
publicado no mesmo jornal dois dias antes, Oliveira escreveu um texto em
defesa da “macumba” e contra a repressão policial que terreiros e eventos
afro religiosos vinham sofrendo na cidade.
O artigo sinteticamente intitulado “Macumba” apresentava a tese de
Oliveira de que a macumba “significava um instrumento musical africano,
usado nos batuques e danças dos escravos negros” e que passou a ser
denominado carimbó, termo homólogo a batuque e a borocô. Este último
termo, por sinal, fez-se presente em uma composição de Pixinguinha e Gastão
Vieira, e gravada pelo próprio Pixinguinha em 1938. A letra da canção situa
de forma precisa o sentido de borocô como Nanã Buruku, entidade nagô
dos candomblés de caboclo, associada às águas e aos pântanos (AMARAL;
SILVA, 2006, p. 195).
O conhecimento do panteão do candomblé, estampado num samba
de sucesso divulgado no mercado musical carioca em 1938, destoava da
não familiaridade de José Coutinho Oliveira e de Levihall de Moura com
este domínio religioso. Isto era patente, apesar da afinidade de jornalistas e
literatos, como os citados acima, com a causa da religião africana no Pará
nos tempos repressivos do Estado Novo varguista.
O texto de Levihall de Moura, já mencionado e intitulado “Em
Defesa das Macumbas”, classificava as práticas afro religiosas como mero
folguedo popular, diversão dançante como o samba e o carimbó. Do ponto
de vista daquele escritor, advogado e militante comunista, este argumento

38
funcionava como defesa da liberdade de culto, pela qual militou nos anos de
1930, inclusive emitindo habeas corpus para mães e pais de santo ameaçados
de prisão (LEAL, 2011, p. 203).
O tipo de engajamento de Moura, no entanto, não se repetiu entre
muitos outros jornalistas belenenses naquela década. O jornal “A Folha
do Norte” se manteve como frente opositora à interventoria estadonovista
na imprensa local (LEAL, 2011, p. 82). O diário serviu como principal
plataforma de atuação dos 25 intelectuais locais que apresentaram manifesto
ao governo estadual em novembro de 1938 em favor da liberdade religiosa
constitucional.
Leal (2011) defende em sua tese o argumento de que o engajamento
político de escritores, músicos e jornalistas se baseou em um interesse
comum pelo que entendiam como cultura negra. A preocupação com
a defesa das manifestações culturais negras no Pará, neste contexto,
assinalou o desenvolvimento dos estudos folclóricos sobre o tema17 e seus 18

desdobramentos nas décadas seguintes (LEAL, 2011, p. 18).


O interesse pelo carimbó como manifestação da cultura negra,
enquanto nova perspectiva de estudo do folclore regional, foi também
impulsionado pelo advento da Missão de Pesquisas Folclóricas promovida
pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Os folcloristas
ligados ao projeto dirigido por Mário de Andrade realizaram pesquisa em
Belém entre 27 de junho e 7 de julho de 1938. Na ocasião, fizeram registros
sonoros e filmagens de boi-bumbá, babassuê e rituais de pena e maracá
(MOURA, 1997, p. 33) (VINCI DE MORAES, 2010, p. 07). Mas alguns dias
antes, a equipe havia gravado uma apresentação de carimbó em São Luís do
Maranhão.

3 O Carimbó e a Missão de Pesquisas Folclóricas


O projeto idealizado por Mário de Andrade derivou de sua viagem ao
Norte e Nordeste do país em 1928. Mário havia redigido o anteprojeto de
criação da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1936
e pretendia, já naquela data, estabelecer um projeto de patrimonialização
da música brasileira junto ao Ministério da Educação e Cultura (TONI,
2006, p. 25, 27). Com a recusa do ministro,ao assumir o cargo de diretor do
Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário incorporou o
projeto na pauta da Discoteca Pública do município em 1936 (TONI, 2006,
p. 28).
17 Exemplo disso é a apresentação de um espetáculo musical pelo compositor e folclorista Gentil
Puget no Teatro da Paz, em 1937, de canções em parceria com o escritor e letrista Dalcídio Jurandir.
A apresentação musical destacava “motivos do folclore negro” no repertório executado (LEMOS,
2012, p. 26). Puget costumava coletar motivos musicais em terreiros afro religiosos de Belém à
época, além do que assumiu a liderança do movimento pela liberdade religiosa de 1938 (LEMOS,
2012, p. 28, 37).

39
A missão seria a viagem de pesquisa de uma equipe composta por
folcloristas e músicos por estados do Nordeste e Norte do Brasil, voltada
para a preservação do patrimônio musical “em desagregação” com gravações
sonoras, fotografias e filmes. Tratava-se então de um projeto orientado para
a constituição de um patrimônio cultural em torno da “retórica da perda”:
colecionamento, restauração e preservação frente a processos de destruição
de manifestações da “cultura”, da “tradição” e da “memória nacional”
(GONÇALVES, 1996, p. 21, 22).
Após um périplo por cidades e regiões interioranas de Pernambuco,
Paraíba, Ceará e Piauí, a missão chegou à capital do Maranhão em 15 de
junho de 1938 e lá permaneceu até o dia 21 daquele mês. O tempo da
pesquisa fora encurtado em função da posse de nova gestão na Prefeitura
de São Paulo, que se mostrava desfavorável ao projeto de Mário de Andrade
(TONI, 2006, p. 30).
Em São Luís, os pesquisadores mantiveram o critério de seleção das
manifestações culturais empregado em outros lugares: assistir a apresentação
preliminar para decidir sobre a gravação e o arranjo cenográfico e técnico
empregado (TONI, 2006, p. 31). Estas foram provavelmente as condições
estipuladas para a gravação de uma apresentação de carimbó ocorrida
na capital maranhense. A filmagem realizada pelos pesquisadores em 19
de junho de 1938, no Bairro João Paulo18, teve um cenário montado com
19

folhagem, tronco de árvore e painel branco ao fundo. O registro foi feito com
uma câmera fixa e a reprodução das imagens segue de forma relativamente
acelerada.
A gravação apresenta um solo de voz e marimba (berimbau). Um
homem toca berimbau com a batida característica, de frente para a câmera.
Ele veste calça branca, camisa creme aberta com mangas, sapato branco e
boné. Após a introdução instrumental, adentra a cena uma mulher negra,
com chapéu de feltro e vestido branco, levantando as barras da saia do
vestido. A mulher caminha em direção ao tocador de costas para a câmera.
A dança é feita sempre segurando as barras da saia com requebros curtos,
voltas completas à direita e à esquerda, acompanhadas de canto.
A canção, tal como o som do berimbau, parece ter sido gravada em
outro momento e colada à filmagem. A cantiga é melancólica e aguda e
repete várias vezes a mesma frase: “Ôo Marimbeiro, marimbeiro, que a tua
marimba não ganha dinheiro”. Ao final, a dança torna-se mais rápida e então
a gravação é encerrada abruptamente.
Neste exemplo de carimbó maranhense do final dos anos de 1930, a
partir do crivo da Missão de Pesquisas Folclóricas, a música é executada

18 Vídeo “Missão de Pesquisas Folclóricas – Carimbó – São Luís do Maranhão, 19 de junho de


1938”. (Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hjWWVpF-Nlo -Vídeo publicado no
You Tube em 03/04/2013 por Álvaro Carlini, 35 segundos)

40
sem tambores, flautas ou qualquer instrumento semelhante. Trata-se de
uma versão diferente dos carimbós paraenses do final do século XIX e início
do século XX, sobre os quais as notícias aqui apresentadas mencionam
tambores e violões. O fato é que as diversas expressões do que podia ser
identificado como carimbó em diferentes situações ainda não perfaziam
uma referência folclórica característica em fins da década de 1930. Mas a
missão de pesquisas folclóricas dava a sua contribuição para esta tendente
caracterização artística e intelectual.
Em vista de sua orientação folclorística, a missão desprezava
manifestações que expressassem relações entre criações de artistas populares
e artigos difundidos pelos meios de comunicação. É o caso das gravações de
toadas do Boi Pai do Campo, realizadas em Belém durante a permanência
da missão na cidade entre 27 de junho e 7 de julho de 1938. Vince de Moraes
(2010, p. 08) afirma que estes registros foram marginalizados no acervo da
missão por apresentarem reproduções e adaptações de sambas de sucesso
no Rio de Janeiro da década então corrente.
Na fase final da pesquisa, o grupo chegou a Belém exatamente no
contexto de repressão às manifestações afroreligiosas, prática institucional
de alcance nacional no início do Estado Novo (TONI, 2006, p. 31). No caso
de Belém, a presença da missão provavelmente ratificava a atuação dos
escritores e jornalistas locais pela defesa da liberdade religiosa. Indício da
ligação com sujeitos do meio literário local é o contato dos pesquisadores
paulistas com o médico e escritor paraense Gastão Vieira. Conhecido de
Mário de Andrade desde 1927, Vieira contribuiu na busca de manifestações
folclóricas em Belém (TONI, 2006, p. 30), provavelmente orientando, dentre
outras coisas, a busca pelo registro das toadas do Boi Pai do Campo do
bairro suburbano do Jurunas.
Mas a descoberta feita pelos pesquisadores no Jurunas lhes pareceu
pouco auspiciosa: canções do mercado musical haviam sido apropriadas
por um grupo folclórico regional e vertidas para um formato propício às
apresentações de boi, próximas do batuque de carimbó. Segundo Vince de
Morais (2010, p. 12), os registros pessoais dos membros da missão indicam
o desapontamento com a descoberta e a constatação de “deterioração” de
um tipo de manifestação folclórica paraense. Para o autor, os diretores
da missão e seus pesquisadores desconsideravam as possibilidades de
mobilidade cultural no campo da música criada por artistas do povo.
A divulgação de sambas de sucesso da Capital Federal nos folhetos da
Revista Guajarina e nas apresentações teatrais do período da festa religiosa
do Círio de Nazaré são exemplo de mobilidade cultural na Belém dos anos
1930. As músicas do cinema, do disco gravado e dos programas de rádio eram
também popularizadas por estes meios. O teatro musicado e/ou revisteiro,
particularmente, tinha temporadas regulares em datas festivas importantes

41
do calendário da cidade à época: Carnaval, Festas Juninas, Círio de Nazaré
e Natal (CORRÊA, 2010, p. 140).
Esta modalidade de teatro popular esteve muito próxima de cordões
de pássaro e de boi bumbá entre os anos de 1910 e de 1940, por meio de seus
autores, músicos e atores. Segundo Moura (1997, p. 42), os bumbás revelaram
libretistas, músicos e intérpretes os quais passaram a se apresentar nas
revistas da quadra nazarena. Mais ainda, o recurso da paródia estimulava o
interesse das plateias pela burla de costumes e de temas políticos (CORRÊA,
2010, p.140). Da mesma forma, as canções apresentadas nos espetáculos
faziam-se também presentes nos repertórios de shows em bares e clubes e
eram divulgadas nos folhetos da Revista Guajarina.
A Editora Guajarina, criada em Belém nos anos de 1910, especializou-
se na publicação de folhetos de cordel e de letras de canções populares.
Segundo Salles (2005, p. 84), o repertório dos folhetos era composto por
modinhas e outras criações de compositores regionais nos anos de 1920. Na
década seguinte, este repertório seria substituído por canções de sucesso de
artistas cariocas, difundidas no disco e no rádio. Esta mudança correspondia
à tendente mobilidade cultural da vida urbana em Belém, que estabelecia
correspondências entre criações artísticas populares e produtos do mercado
cultural próximos deste universo. É suficiente lembrar que o setor de
entretenimento urbano do Rio de Janeiro, desde os anos de 1910, abria
espaços de profissionalização para pessoas oriundas dos meios populares
e formados musicalmente em rodas de choro, serestas de rua e bandas de
música (TRAVASSOS, 2000, p. 12).
O carimbó criado e executado na cidade, nos anos 1930 e 1940, esteve
provavelmente inserido nesta atmosfera de apropriação de produtos do
mercado cultural pelos criadores musicais locais. As toadas de boi gravadas
pelos folcloristas da missão paulista tinham traços dos lundus e carimbós
presentes nos folguedos populares de Belém, ao mesmo tempo em que
faziam versões do samba urbano carioca de sucesso nacional à época.

4 O Carimbó como Música Folclórica


O carimbó ganhou ampla repercussão midiática no início dos anos
1970 no Pará, vindo a ingressar o mercado fonográfico surgido localmente
naquele momento. O ritmo passou a fazer-se presente tanto em eventos
musicais voltados para as camadas médias urbanas (COSTA, 2010, p.
74-75) quanto em gravações musicais de artistas de origem interiorana
ou suburbana. Oscar de la Torre (2009, p. 146), por exemplo, apresenta a
considerável produção de LPs de carimbó nos anos de 1970. Segundo o
autor, os discos lançados neste período ajudaram a projetar no mercado
musical artistas como Verequete, Ely Farias, Alípio Martins, Candango do
Ypê, Grupo da Pesada, Hery Tapajós, Pinduca, Populares de Igarapé Mirim,

42
Vieira e seu Conjunto, dentre outros.
O sucesso midiático e artístico do carimbó manteve, entretanto,
íntima ligação com o seu caráter folclórico, constituído intelectualmente
em debates na imprensa, em textos literários e em escritos acadêmicos nas
primeiras décadas do século XX. Este sentido foi sustentado pelo cruzamento
posterior entre as práticas e as percepções de artistas e aficionados do interior
do Pará e do subúrbio de Belém em torno do carimbó, além das apreciações
de estudiosos no assunto orientadas para o campo do folclore.
A música executada e fruída em festejos de vizinhança, nos
brinquedos de cordões carnavalescos, em grupos juninos e em festas de
terreiros afro religiosos ganhou foros de representatividade sociocultural
ao longo do século XX. A invenção intelectual do carimbó como música
folclórica acompanhou, neste período, sua disseminação como música de
popularidade midiática e se tornou seu elemento constitutivo.
A produção de representações sobre o carimbó revela o lugar social
imaginário do intelectual letrado, jornalista e folclorista como “explicador e
regente do movimento social”: estudar a “música negra” ou “cabocla” reforça
esta posição de intérprete da “cultura nacional e regional” (WISNIK, 2004,
p. 76). Neste caso, o trabalho dos intermediários culturais testemunha em
seu próprio favor (VOVELLE, 2004, p. 224).
A síntese conceitual desta linhagem inicial de estudos e reflexões
de literatos, jornalistas e folcloristas lançou as bases da representação do
carimbó como expressão musical mestiça amazônica. Para os autores aqui
citados, a música-dança cabocla representaria a cultura/identidade nacional
no norte do país, derivada da “música negra”, quer como batuque afro
religioso, quer como expressão lúdica (música e dança) primitiva. Assim,
tornou-se possível ao carimbó, algumas décadas mais tarde, ingressar no
caminho do sucesso midiático e dos experimentos de estilização musical.
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46
UMA REPÚBLICA MODERNA: BELÉM E A REPRESENTAÇÃO PELA
ARTE

Raimundo Nonato de Castro19 20

No Pará, o processo de instalação da República ocorreu logo em


seguida à proclamação no Brasil. Os meios de comunicação favoreceram este
processo e, aos 16 de novembro de 1889, o Estado aderia ao novo regime.
Importa destacar que, desde 1886, o Club Republicano do Pará participava
ativamente do processo político local e contava com a participação de uma
elite intelectualizada formada por alguns nomes que atuaram diretamente
no processo de implantação e organização do governo republicano como,
por exemplo, Manoel Barata (1841-1916), Justo Chermont (1857-1926),
Lauro Sodré20 (1858-1944), Paes de Carvalho (1850-1943), só para citar
21

alguns21. 22

Vale lembrar que, enquanto os estados do Sudeste contavam com o


café como principal produto de exportação, o Pará destacava-se por ser um
dos grandes fornecedores do látex, fato este que inseriu a região amazônica
no contexto econômico mundial. Diante da demanda internacional
pelo produto, a geração de recursos financeiros possibilitou ao governo
atender aos interesses dos grupos estrangeiros que aqui se instalaram. Os
administradores republicanos deram início ao processo de reurbanização
da cidade de Belém. O que levou à instalação de lojas e serviços que seguiam
o modelo europeu, sobretudo, o francês. Maria de Nazaré Sarges destaca o
período da Bellé Époque22, persistente até os dias atuais no imaginário local,
23

como marcado por grandes transformações.


Contudo, antes do Estado se tornar o patrocinador do processo de
urbanização, a cidade de Belém passou por um crescimento populacional
considerável, em especial, devido à vinda de milhares de nordestinos
que fugiam da seca e viam na região uma possibilidade de garantir a sua
19 Mestre em História pela Universidade Federal do Pará (2012). Bacharel e Licenciado em
História pela mesma Universidade (2003). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará
(2013). Atualmente é professor de história no Instituto Federal do Para e professor colaborador
da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de História, com ênfase em História
Regional do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: historia do Pará, artes, imaginário,
república, religiosidade e Direitos Humanos.
20 Sobre a formação política de Lauro Sodré ver: COELHO, Alan Watrin. A ciência do governar:
positivismo, evolucionismo e natureza em Lauro Sodré. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal do Pará, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História
Social da Amazônia, Belém, 2006.
21 Farias analisa o contexto em questão e chama atenção para a forma de construção dos grupos
que passaram a fazer parte do Partido Republicano: “Entende-se que para compreender o
estabelecimento da República, é necessário voltar-se à constituição dos grupos que disputavam
o poder no momento da transição política. Desta forma, verifica-se o constante uso dos termos
“republicanos históricos” e “adesistas republicanos”, e talvez mais ainda das denominações;
“republicanos”, “democratas” e “católicos”(...). FARIAS,William Gaia. A construção da República
no Pará (1886-1897). Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2005. P. 13.
22 Sobre a Belle Époque na Amazônia ver: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo
a belle-époque, 1870-1912. 3ª ed. Belém: Paka-Tatu, 2010. DAOU, Ana Maria. A Belle Époque
Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

47
sobrevivência. Este crescimento ocasionou um impacto socioeconômico,
considerável, na região, demonstrando que o aparelho urbanístico não
estava preparado para atender às demandas da população crescente.
Diversos problemas se intensificaram como, por exemplo, a falta
de habitação para estes imigrantes. Belém, neste sentido, passou por um
processo de urbanização e, consequentemente, uma intensa e diversificada
vida cultural. Segundo Sarges23, a modernização da cidade de Belém coincidiu
24

com a modernidade surgida em Paris e Viena. Algo interessante para os


republicanos, que percebiam o conceito de modernidade intimamente
ligado ao de progresso. Diante disso, os políticos republicanos procuravam
intensificar as transformações sócio urbanísticas de Belém, especialmente
aquelas ligadas às questões internas. Neste caso, percebe-se, nitidamente,
a procura em criar hábitos urbanos e civilizados. Com isso, o papel da
educação cívica desempenharia uma função essencial na construção de
uma identidade nova para o Pará republicano.
A consolidação do regime republicano no Pará, na opinião de Sarges24, 25

relaciona-se à ascensão ao poder por Antônio Lemos, o qual passou a


representar os avanços obtidos, em termos arquitetônicos, urbanísticos e
artísticos, por meio de uma renovação estética da cidade. É claro, que o
momento vivido pelo governante foi propício à implantação da política
renovadora. O primeiro aspecto a caracterizar o novo regime, seria o da
organização de uma política que primasse pela limpeza. Assim a república
exigia que as cidades manifestassem, a seus cidadãos, a obrigação de
se manterem limpos e bem vestidos, criando-se uma imagem de uma
população educada e civilizada.
As novidades trazidas para a região, a partir, das riquezas produzidas
pela economia gomífera25, não se limitavam aos aspectos tecnológicos ou
26

materiais. Exemplo disso, está na vinda do maestro Carlos Gomes26 (1836- 27

1896) para o Pará. Tamanha importância do evento que o Brasil voltava


às atenções para a região, em especial, para a cidade de Belém. Para os
positivistas, como Lauro Sodré, este era um ponto fundamental, representado
pela prestação e reconhecimento dos feitos dos grandes homens da história.
E o povo se identificaria com os assuntos ritualizados. Geraldo Coelho27 28

destaca que a construção do mito “gomesiano” assemelhou-se ao que se


realizou no Rio de Janeiro em homenagem a Floriano Peixoto (1839-1895).
23 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Op. Cit.
24 Idem.
25 Osório Duque-Estrada nos informa acerca da importância da economia da borracha, quando
nos diz que: “(...) o imposto sobre a borracha pesa com a enorme cifra de mais de 2/3 na receita
geral do Pará, (...). DUQUE ESTRADA, Osório. O norte Impressões de viagem. Porto. Livraria
chardron, 1909. P. 69.
26 Chegou ao Pará, em 1895, já doente para ocupar a diretoria do Conservatório de Música de
Belém, cargo criado pelo governador Lauro Sodré. Faleceu em Belém.
27 COELHO, Geraldo Mártires. O brilho da supernova: a morte bela de Carlos Gomes. Rio de
Janeiro: Agir, 1995.

48
Transcrevendo noticiário de periódicos do Rio de Janeiro, em
alguns casos de forma minuciosa, os jornais locais trabalhavam
os funerais do Consolidador da República como tendo sido
a maior manifestação cívica até então ocorrida no Brasil,
detalhando os procedimentos adotados para a sua organização,
o seu desenrolar, os seus cenários e o seu efeito sobre o espírito
dos republicanos da Capital Federal28. 29

Comemorações de grande dimensão como essa geravam altos gastos


para o governo. Neste sentido, o apogeu da economia da borracha contribuiu,
de forma direta, para que estes eventos pudessem ser realizados. Sobre a
riqueza do estado, o governador Augusto Montenegro especificava que a
produção era extraída no próprio território paraense e que a constituição da
riqueza29 local era possível graças aos esforços do governo para conseguir
30

arrecadar as taxas para o tesouro estadual; e graças as exportações para


o exterior é que o estado conseguia se manter produtivo. Percebemos
que as riquezas advindas da produção do látex eram as responsáveis pelo
embelezamento da cidade de Belém, além do financiamento dos símbolos
cívicos, os quais deveriam proporcionar à população uma estreita ligação
com o novo governo. Embora, os debates ficassem restritos aos governantes,
o povo era levado a se identificar com os novos valores advindos da República,
por meio de uma política civilizacional, atuante através da simbologia.
As taxas de exportação da borracha e os valores que ingressavam
nos cofres públicos possibilitaram o fortalecimento da política e dos ideais
republicanos. Podemos perceber que o aumento da produção e dos lucros
recebidos pelo Estado coincidiu com as transformações empreendidas na
cidade de Belém pela administração de Antônio Lemos. E, consequentemente,
os contratos com os pintores e escultores, realizados tanto pela Intendência
Municipal, quanto pelo Governo do Estado.
Verifica-se certa coincidência entre a República e o momento
econômico favorável, o que possibilitou as grandes transformações
arquitetônicas na capital paraense. Além disso o contexto foi marcado como
favorável à produção artística. Assim, o pintor que se dirigia ao estado,
acreditava no sucesso de suas exposições bem como da possibilidade de se
tornar pensionista do estado.
Duas obras produzidas neste contexto apresentam características
de uma república que procurava republicanizar os elementos trazidos
do Império. Em primeiro lugar a tela encomendada para homenagear o
compositor Carlos Gomes e o Monumento à República. Com relação ao
primeiro, temos uma nítida mudança de pensamento, pois o compositor
28 Idem. P. 142.
29 PARÁ. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Augusto Montenegro ao Congresso
Legislativo do Pará em 7 de setembro de 1905. Belém: Imprensa Oficial, 1905. P. 10.

49
Carlos Gomes era considerado um monarquista. Apesar de toda a
importância tida em torno do grande homem que era, foi abandonado. No
entanto, o Estado do Pará, na figura de Lauro Sodré, realizou o convite para
que pudesse dirigir um conservatório de música em Belém30. 31

O quadro abaixo se apresenta recheado de políticos os quais se


estabeleceram no poder com a implantação da república. Os principais
nomes dos políticos considerados republicanos históricos se fazem presentes
na representação. E Lauro Sodré, positivista e responsável pela fundação do
Clube republicano, ganhando destaque por combater a Monarquia, ocupa
juntamente com o moribundo o centro da tela. Mesmo Carlos Gomes tendo
se mantido fiel à Monarquia, segundo Geraldo Coelho, a ritualização da
sua morte pelos republicanos procurava dar conta de uma necessidade
política de transformar o maestro num símbolo republicano, “proclamava-
se Carlos Gomes como símbolo do povo brasileiro”31. Depreende-se no 32

quadro a posição política ocupada por cada elemento na obra. Antônio


Lemos, por exemplo, não tinha, ainda a importância política que adquiriu
anos depois. Na tela, ele se encontra atrás de Lauro Sodré, em pé, mas com
o olhar direcionado ao expectador, mostrando-se imponente na observação
daqueles que seriam administrados por ele.

Figura 1: Domenico De Angelis & Giovanni Capranesi.Os Últimos dias de Carlos Gomes,
1899, óleo s/ tela 224 x 484 cm. Acervo: Museu de Arte de Belém – PA

Apesar do momento econômico favorável, os políticos que


compunham o Partido Republicano do Pará passaram a divergir, ocorrendo
então uma cisão política. Alguns políticos manifestaram-se contrários aos
30 Sobre a morte de Carlos Gomes o governador do Pará Lauro Sodré afirmava que “Aqui apagou-
se-lhe a fecunda existência gloriosa. Perdeu a Academia de Belas Artes em Carlos Gomes a alma
que haveria de animá-la; e mais ainda perdeu a pátria inteira que ele tanto tinha sabido honrar em
vida, quanto soube ela honrá-lo morto”. PARÁ. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do
Pará pelo Dr. Lauro Sodré Governador do Estado. Ao expirar o seu mandato no dia 1 de fevereiro
de 1897. Belém: Imprenso no Diário Oficial, 1897. P. 36.
31 COELHO, Geraldo Mártires. O brilho da supernova. Op. Cit. P. 148.

50
rumos adotados pela política paraense. Resultado, Lauro Sodré tido como
um dos grandes pensadores da República e primeiro governador eleito
do Pará foi posto na condição de opositor. A imagem inicial, porém, dos
políticos paraenses idealizadores da república no estado deveria ser outra.
Na tela acima, verificamos a homenagem que foi prestada ao compositor
Carlos Gomes. Diversos líderes republicanos estão em volta do corpo do
moribundo, prestando-lhe as homenagens cabida aos grandes vultos.
Aldrin Figueiredo chama atenção para um detalhe interessante: a morte está
idealizada. Por isso, o maestro Carlos Gomes foi colocado,
Ao centro da tela (...), numa idealizada bela morte, pisando
num sugestivo tapete de onça pintada, à guisa de um emblema
heróico, cercado por admiradores. Entre eles, num primeiro
plano, sentados ao lado do músico, Lauro Sodré (1858-1944) e
Justo Chermont (1857-1926). Mais a frente, em conversa, José
Paes de Carvalho (1850-1943) e o bispo do Pará Dom Antônio
Manuel de Castilho Brandão (1849-1910). Um detalhe digno
de nota, Antônio Lemos (1843-1913), em segundo plano,
reflete sua posição política em 1896, quando do evento narrado
em tela. Lemos assumiria a interintendência de Belém um ano
depois, em 1897, marcando uma ascensão definitiva até sua
queda política seguida da morte no exílio em 191332. 33

Com a morte do compositor, os políticos locais encomendaram a tela


em destaque. E a presença dos mesmos se faz presente na representação.
Pode-se observar além de Carlos Gomes ao centro, Lauro Sodré, Paes de
Carvalho e Antônio Lemos. Detalhe interessante é o fato de o maestro ser
compreendido a partir das artes, enquanto um herói para o regime então
instalado.
Carlos Gomes foi glorificado em Belém. Geraldo Coelho chama
atenção para o funeral do compositor, destacando uma teatralização da
dor, com a finalidade de manifestar a afetividade coletiva: uma espécie de
glorificação do herói. Essa atividade cívica, demonstrada por ocasião dos
funerais, apresentava-se com ausência de hierarquia, haja vista que todos
prestavam as homenagens devidas ao herói morto não havendo, para isso,
uma separação social. O ritual caracteriza-se enquanto um momento
completamente homogêneo na realização das homenagens.
Embora os políticos representados na tela tenham sido dispostos em
clima de homenagens e harmonia. Foram responsáveis pela formação de
grupos que passaram a rivalizar. Os debates nos jornais locais tornaram-
se constantes. Os periódicos assumiam, publicamente, posicionamentos
contrários às propostas políticas adotadas por ambos. Dentre as mais diversas
acusações contra o governo de Augusto Montenegro estavam os constantes
aumentos de impostos cobrados dos produtores de borracha. Na mensagem
32 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Janelas do Passado, espelho do presente: Belém do Pará, arte,
imagem e história. Belém: Prefeitura Municipal de Belém/Fundação Cultural de Belém – FUMBEL,
2011. P. 40.

51
dirigida ao Congresso Legislativo, em 7 de setembro de 1907, o governador
defendia-se destacando que se tratava de “um atentado à verdade afirmar-se
que o governo paraense vive a explorar os produtores com impostos novos
e agravação dos antigos”33. 34

No artigo publicado no jornal Folha do Norte, Ildefonso Tavares chama


atenção para a “nova comédia republicana”, realizando um diagnóstico da
situação da república paraense e o modo como ela se encontrava. Diz que
“achegaram-se os últimos de que falo ao calor oficial; esqueceram-se do seu
passado e hoje aprovam, dando palmas, o que ontem condenavam”. A crítica
tem como alvo o grupo republicano que estava no poder. De acordo com a
sua opinião, as leis eram “feitas com as mãos e desmanchadas com os pés”.
Tem-se uma crítica dura, que não poupava palavras. Para o crítico a república
havia se tornado uma “uma democracia aristocraticamente intolerante”34, 35

além de impedir a participação popular nos caminhos traçados pelo regime.

Figura 2: Aniversário de Lemos.O Jornal. Belém, 17 de dezembro de 1907. P. 1.

A imagem de Lemos nas páginas do O Jornal demonstrariam a relação


de poder e ao mesmo tempo a representação das artes. O político está de
perfil, mas os elementos compositivos da imagem deixam entrever uma
aproximação do intendente com as belas artes. E mesmo que a imagem
estivesse estampada nas páginas do jornal de propriedade de Lemos, fica
evidente a ideia de relacioná-lo a um homem culto e admirador do meio
artístico. No entanto, o rosto de Lemos procura reforçar a imagem de
33 PARÁ. Mensagem dirigida pelo Sr. Governador Dr. Augusto Montenegro ao Congresso
Legislativo do Pará em 7 de setembro de 1905. Belém: Imprensa Oficial, 1907. P. 24
34 A nova comédia republicana.Folha do Norte,Belém, 11 de junho de 1905. P. 1.

52
um homem que estava transformando a realidade belenense, ao mesmo
tempo em que inculcava na mentalidade popular a imagem de um legítimo
republicano.
Os meios de comunicação serviram, fundamentalmente, para que
os ideais de cada grupo pudessem ser avaliados pelo povo, ao menos pela
população letrada. Neste caso, a atuação dos jornais seria decisiva. De forma
objetiva e se enquadrando, de acordo com o grupo, expunham os seus
pensamentos, buscando atingir a população leiga, com o objetivo de definir os
caminhos adotados pelo grupo político que se queria dominante. Para levar
os debates ao conhecimento da população, os grupos rivais se digladiavam
em jornais, os quais procuravam de maneira parcial demonstrar os motivos
responsáveis pelo rompimento da aliança política, em 1897, bem como a
condição de inimigos adotada por ambos. Diversos jornais paraenses se
debatiam em favor de um grupo ou de outro. Dentre eles destaca-se A Folha
do Norte que defendia os interesses dos grupos ligados a Lauro Sodré, e os
jornais A Província do Pará e O Jornal, ambos defensores dos grupos rivais,
representados neste caso pela figura de Antônio Lemos.
Para termos idéia da situação, a violência entre esses grupos não
ficou apenas nas páginas dos jornais35, chegando até mesmo às agressões
36

e assassinatos, além da procura em eliminar os veículos de comunicação


opositores, por meio de incêndios, por exemplo. Nãose aprofundará esta
discussão em relação aos grupos acima identificados, pois, o assunto foi
amplamente debatido em vários livros, dissertações e teses, não sendo
interesse de análise deste capítulo36. Portanto, busca-se compreender a
37

forma de atuação dos republicanos paraenses sobre a utilização de imagens


e textos. Ou seja, o papel da educação e a formação da identidade baseada
nas representações derivadas destas manifestações. Por isso, a manutenção
destes republicanos no poder relacionava-se com a forma de construção
de valores e símbolos, isto é, dos elementos que direcionavam a atuação de
cada segmento na sociedade paraense.

35 Humberto de Campos afirma que Antônio Lemos, condescendente com os seus partidários,
destacava que alguns destes “de vez em quando exaltados pela paixão partidária praticavam
uma violência”. Campos chama atenção, ainda, para o fato de que muitos jornalistas de oposição
foram agredidos e outros emigraram. O autor da obra “Contrastes” escreve que certa vez Antônio
Lemos lhe assegurou que “nunca ordenei uma agressão, uma violência contra um adversário. E, se
soubesse que um correligionário premeditava alguma, teria impedido que ele a praticasse. Sorriu,
porém, acrescentou: - Só uma vingança foi executada por ordem minha. Foi a lição que tomou
Acrísio Mota. Mandei que lhe esfregassem na cabeça um pouco de pixe, para que ele se lembrasse
dos favores que me devia, e não fosse ingrato insultando-me. O meu empregado precipitou-se,
porém, e virou a lata na cabeça do rapaz, que teve de raspar até as sobrancelhas e escapou de
morrer afogado. O que se fez, quer na capital, quer no interior nunca teve a minha aprovação...”
CAMPOS, Humberto de. Contrastes (crônicas). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc. Editores, 1945.
Pp. 109-110.
36 Para uma análise aprofundada, ver: FARIAS,William Gaia. A construção da República no
ParáOp. Cit.

53
Algo a ser observado residia na ausência de uma identidade coletiva
para o Brasil. Essa tarefa caberia aos intelectuais da primeira República
(1889-1930), os quais deveriam criar símbolos e signos que devido ao seu
valor pudessem representar e encarnar as aspirações e ideais característicos
da coletividade. No entanto, diante das diversas ambiguidades produzidas
pela República, fazia-se necessário levar adiante o processo de educação, por
meio de uma pedagogia cívica que, na concepção de José Murilo de Carvalho,
procurava redefinir as bases republicanas para o estabelecimento de um
governo o qual “não fosse uma caricatura de si mesmo”. Nos primeiros anos da
república o descontentamento foi geral. Neste sentido, os propagandistas ao
lado dos principais participantes do movimento republicano, “rapidamente
perceberam que não se tratava da república dos seus sonhos”. Diante da
situação, diversos opositores passaram a manifestar as suas opiniões, como
a que foi realizada por Alberto Sales que considerou o novo regime o “mais
corrupto e mais despótico do que o governo monárquico”37. 38

Era preciso romper com este pensamento e o primeiro passo, para essa
alteração, seria possível graças aos avanços econômicos, os quais forçaram
as reformas das cidades, as quais passaram por processos de embelezamento
com transformações radicais, configurando-se em mudanças exigidas pelas
elites instaladas nas áreas urbanas. O governo sabia que era necessário
apoiar as exigências das elites amazônicas. As novas construções surgiram
no espaço urbano como, por exemplo, teatros, escolas, bancos, praças,
prédios, bulevares, entre outros, o que serviu para reforçar o imaginário de
uma república modernizadora.
O disciplinamento dos hábitos dos cidadãos era necessário e isso
seria obtido com a implantação de regras de moralização que iriam desde
as vias públicas chegando às residências. Essas atitudes buscavam impedir
que o interesse público fosse desrespeitado. As regras estendiam-se aos
estabelecimentos comerciais da cidade os quais deveriam manter-se limpos
e os seus proprietários estavam obrigados a pintá-los uma vez por ano,
além de lavados semanalmente. O descumprimento destas regras poderia
resultar em sanção a ser paga em papel moeda ou até mesmo o fechamento
do estabelecimento38. 39

Buscou-se, com isso, construir a imagem da cidade caracterizada pela


organização. Capaz de transformar, inclusive, o modo de agir e pensar da
população. O papel de educar a população e ao mesmo tempo de fiscalizá-la
caberia aos agentes municipais, representados por uma “Policia Municipal”,
que se destacava como instrumento de interferência na vida particular
dos habitantes da cidade. Somado a isso, a cidade embelezada, primava
37 CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. P. 33.
38 Sobre os comportamentos estabelecidos pelos códigos de posturas, Ver: SARGES, Maria de
Nazaré. Belém: Op. Cit. Sobre a ideia de nação na tela de Antônio Parreiras escrevi artigo intitulado:
O quadro Conquista do Amazonas de Antônio Parreiras e a ideia de nação. 19&20, Rio de Janeiro,
v.V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ap_rnc.htm>.

54
pela construção de uma identidade capaz de identificar-se com o culto aos
grandes homens. Na opinião de Sarges, o culto aos grandes vultos fazia parte
do processo de urbanização e seria importante fazer a população lembrar “de
quem realiza as grandes obras de modernização e, de certa forma, colabore
com o progresso da civilização”39. 40

Edinea Mascarenhas ressalta que a cidade considerada como espaço


comum é modificada, ganhando novas configurações e adequando-se à
nova função social. Neste sentido, “a modernidade traria um novo estilo de
vida e grandes transformações, não só materiais, como também espirituais
e culturais”40.41

1Símbolos republicanos paraenses


A construção de uma simbologia republicana paraense necessitava
apoderar-se dos elementos pensados ainda no Império. Neste sentido,
a reorientação pensada pelos republicanos passava pelas reformas
empreendidas em dois dos grandes símbolos do Império no Pará: o
Instituto Gentil Bittencourt e o Museu Emilio Goeldi. Ambos passaram
por um processo de republicanização. A reforma e construção de prédios
para abrigar o Museu e Instituto foram consideradas como grandes avanços
empreendidos pelos republicanos que viam na educação a forma de
condução da sociedade ao progresso.
Tanto que com a entrega do novo prédio que passou a abrigar o
antigo colégio de “Nossa Senhora do Amparo” (atual Gentil Bittencourt),
o governador Augusto Montenegro destacava que “o colégio nada trouxe
da velha casa: tudo quanto nele atualmente existe é completamente novo,
inclusive a própria roupa das meninas”41. As palavras do governador são
42

importantes, na medida em que usa o termo “velho” e “novo”, ressaltando


que do velho colégio nada se aproveitou, nem mesmo o uniforme, já com
relação ao termo “novo” percebe-se uma nítida necessidade de direcioná-
lo aos aspectos da modernidade os quais se apresentavam no contexto
republicano de transformação.
Antes disso, Lauro Sodré em mensagem dirigida ao Congresso do
Estado do Pará, datada de 1º de fevereiro de 1897, afirmava que a população
encontraria a partir da reforma que foi realizada no Museu Goeldi um local
digno, uma verdadeira obra patriótica. O Museu foi uma preocupação do
governador Sodré, pois “cuidei interessado dos destinos do Museu”. Neste
sentido, o estado destacou-se na produção de uma obra patriótica ao traçar
os objetivos do Museu, haja vista que “serve aos interesses do ensino público”.

39 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Op. Cit. P. 191.


40 DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus 1890-1920. Manaus: Editora Valer,
2007. P. 28
41 PARÁ. Mensagem dirigida pelo Senhor Governador Dr. Augusto Montenegro ao Congresso
Legislativo do Pará em 7 de setembro de 1906. Belém: Imprensa Oficial, 1906. P. 41.

55
Por isso, o museu serviria “a causa da propaganda em benefício dos
nossos créditos como povo livre e culto”. E os investimentos realizados
com a reforma do Museu levaram o governador do Pará a afirmar que
este ato seria mais bem chamado de “criação ao ato que o organizou”42. 43

Portanto, os rumos políticos adotados pelos republicanos procuravam


incorporá-las ao seu discurso, por meio de uma republicanização das
instituições herdadas do Império. O projeto republicano reafirmaria que
a implantação da República foi efetivada de forma pacífica, tanto que os
elementos herdados da Monarquia estavam sendo incorporados aos valores
republicanos. No entanto, era necessária a construção de elementos os quais
dessem à população um ar de confiança, garantidor da ordem e progresso
e que ocupasse o centro do debate. Neste sentido, o pintor/artista deveria
procurar retratar de forma fiel o mundo conhecido. Mesmo a partir de
seu próprio estilo, mostrando uma preocupação com o povo e as coisas
que o circundavam. E sua individualidade significaria “reconhecer a sua
nacionalidade”43. 44

Figura 3:Carlos De Servi. Atelier, 1900, óleo s/ tela 90 x 62 cm.

Acervo: Museu de Arte de Belém – PA


42 PARÁ. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Pará pelo Dr. Lauro Sodré Governador
do Estado. Ao expirar o seu mandato no dia 1 de fevereiro de 1897. Belém: Imprenso no Diário
Oficial, 1897. P. 34
43 VENÂNCIO, Giselle Martins. Pintando o Brasil: artes plásticas e construção da identidade
nacional (1816 – 1922). Revista História em reflexão: Vol. 2 n. 4 – UFGD – Dourados jul/dez
2008. Disponível em: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/
view/292. Acesso em 14 de setembro de 2011. P. 12.

56
Temos, então, um processo de construção no qual o poder inventivo se
torna durável pelo tempo. Nesta imagem, a mulher do povo destaca-se pela
pose e pela forma como segura o pincel, com certo ar de nobreza. Ao fundo
o busto do Barão do Rio Branco “um medalhão com a figura de Mariane
e o cenário com nítido colorido art nouveau e orientalista”44. A moça em 45

destaque constrói uma representação ideal da república, pois existe uma


harmonia no atelier um equilíbrio nas cores. O ambiente representa um
momento de paz, a figura feminina neste momento de ordem trabalha na
construção do progresso da nação, representada pelos seus grandes eventos
e fatos. Portanto, tem-se na imagem um conteúdo carregado de simbologia,
que fazia parte do processo de elaboração dos valores republicanos. A
pintura, então, é capaz de assumir uma dimensão trans-contemporânea
pelas infinitas possibilidades de suscitar olhares críticos45, posto que a 46

compreensão da história nacional parte de um entendimento da história


local, o qual levaria a um reforço da memória coletiva. Neste ponto, as
imagens são a escrita de quem não sabe ler.
As imagens construídas para o período republicano, segundo Aldrin
Figueiredo, foram capazes, em alguns casos, de construir a reputação do
pintor, mas destruíram a do historiador. Ao possibilitar este imaginário, o
historiador pintor não pensava em ser apenas regional, mas, se colocava
em âmbito nacional, em relação a sua arte. Por isso, faz parte do processo
de recriação da história em que os pintores trabalharam arduamente
amparando-se em fatos “exatos” os quais pudessem dar vida aos anseios das
encomendas. Os pintores realizavam persistentes pesquisas, assenhoreando-
se “dos dados históricos absolutamente exatos de que necessita para a
realização conscienciosa do seu trabalho”46. 47

O papel desempenhado pela imprensa tornou-se maior: os veículos de


comunicação tornaram-se o principal meio de informação e propaganda dos
republicanos do Pará. Acreditava-se que os jornais e revistas desempenhariam
papel fundamental na divulgação dos valores do novo regime. Nos artigos
os quais circulavam diariamente, criticavam a Monarquia e exaltavam à
República, sendo essa manifestação realizada em muitos momentos através
de textos de cunho científico. William Gaia Farias destaca que as habilidades
intelectuais deveriam estar a serviço do novo regime. Neste caso, os homens
das letras e das iconografias seriam os responsáveis por ampliar o número de
seguidores republicanos e, como afirmado anteriormente, os jornais seriam
o suporte ideal para que as propagandas republicanas chegassem de maneira
acessível à maioria da população. Na opinião de Farias, no “positivismo
defendido por Lauro Sodré”, os republicanos dedicaram-se à “produção de
iconografias com objetivo de criar um imaginário republicano paraense
44 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Janelas do Passado, espelho do presente. Op. Cit. P. 51.
45 Sobre o tema ver: SALGUEIRO, Valéria. Pintor e crítico - Antônio Parreiras n’O Estado de
São Paulo (1894-1895). 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponível em:<http://www.
dezenovevinte.net/criticas/ap_vs.htm>. Acesso em 16/04/2010.
46 A “Conquista do Amazonas”. A Província do Pará, Belém, 17 de julho de 1905. P. 2.

57
através da manipulação de símbolos”47. 48

A utilização dos elementos pictóricos enquanto representação


republicana foi debatida por alguns historiadores paraenses e nacionais, que
perceberam nas imagens a ligação entre o artista e o contexto representado.
Peter Burke chama essa relação de “o impacto da imagem na imaginação
histórica”. Neste caso as imagens colocadas diante de homens permitem
“compartilhar as experiências não verbais ou o conhecimento de culturas
passadas”48. Entre o povo, as imagens têm impacto muito maior que a
49

linguagem, pois o olhar permite uma aproximação com os heróis. A razão


e o intelecto são afetados por esta representação, adquirindo importância
muito maior. As pinturas históricas, portanto, ganham ênfase no processo
de criação de imagens moldando a memória coletiva a República recém-
instalada.
As obras de artes apresentam-se como um diálogo aberto, anseiam
por serem interrogadas, já que o objeto se torna uma arte contemporânea
na qual o olhar dirigido é capaz de perceber o olhar evocativo e ideológico
que tem, criando, neste sentido, públicos constantemente renovados. As
imagens passam por processos de seleção ou mesmo de eleição, devendo ser
guardadas e preservadas, pois contribuíram para moldar a ideia de nação,
processo este manifestado no Brasil ao longo do século XIX e nas primeiras
décadas do XX. O período Monárquico e Republicano demonstrava ser
o processo de fundação da nação necessário para construir também uma
memória nacional. Neste caso, o papel desempenhado pelo Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil - IHGB49 foi de fundamental importância,
50

tanto para o Império quanto para a República. E, no âmbito regional, foram


fundados os institutos estaduais, os quais deveriam fornecer ao nacional
uma história única representativa da nação brasileira.
Neste processo de criação da identidade brasileira, a cidade de Belém
sofreu profundas alterações. O Teatro da Paz é um exemplo na medida
em que a reforma empreendida entre os anos de 1887 e 1890 possibilitou
a introdução de uma imagem a qual teria como função decorar a sala de
espetáculos denominada “Alegoria da República”50 a qual segundo Roseane
51

Silveira de Souza foi pintada pelo pernambucano Chrispim do Amaral e


47 FARIAS,William Gaia. Op. Cit. P. 43.
48 Peter Burke destaca que o uso de imagens por historiadores não pode e nem deve ser limitado
“evidencia” no sentido estrito do termo. Para saber mais sobre o assunto e a forma como as imagens
constituem evidências históricas ver: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São
Paulo: Edusc, 2004.
49 Para uma análise mais aprofundada acerca do papel desempenhado pelo IHGB na formação da
identidade nacional ver: KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB
entre as décadas de 1840 e 1860. São Paulo: Edusp, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2009.
50 A imagem foi realizada no atelier do coreógrafo francês Eugène Carpezat e por esta razão “ainda
hoje é comum atribuírem a alegoria do pano” a este pintor e coreógrafo. SOUZA, Roseane Silveira
de. Teatro da Paz: histórias invisíveis em Belém do Grão-Pará. Anais do Museu Paulista. São Paulo.
N. Sér. v. 18. n. 2. P. 93-121. jul.-dez. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bgoeldi/v4n3/
v4n3a16.pdf.

58
disposta naquele ambiente. A imagem mostra a união entre os povos,
representado pela chegada do novo regime e fazia parte das celebrações
à república brasileira. Destaque-se que a pintura histórica desenvolvida
na Academia Imperial de Belas Artes51, desfrutava de grande prestígio
52

devido, sobretudo, ao fato de o pintor de história ser considerado apto a


criar imagens capazes de veicular à memória nacional. Ressalte-se que a
Academia apresentava como projeto político com a criação de fundamentos
culturais da nação; por meio da fundação de símbolos nacionais, de modo a
consolidar um verdadeiro imaginário para o país52. 53

Para que o resultado fosse obtido, o artigo 32 do Decreto nº 3937, de


13 de abril de 1901, que regulamentava o funcionamento da Escola Nacional
de Belas Artes, definia que os professores deveriam ser escolhidos dentre os
artistas de reconhecimento e competência e nomeados pelo conselho escolar
por um período de cinco anos. Fazia parte da política republicana, ainda, o
incentivo aos alunos por meio de concurso anual, no qual eram ofertados
como prêmios viagens à Europa na condição de pensionistas do Estado. O
governo preocupava-se em construir uma arte de afirmação nacional, tanto
que o prêmio deveria ser concedido apenas a brasileiros natos53. 54

A imagem histórica apresenta como principal característica a


sua dimensão. Na opinião de Coli esta era considerada essencial, sendo
que a grandiosidade da tela permitiria ao público identificar-se com ela,
incorporando-se à cena. Por isso, as obras de artes não apresentam um único
significado. E, por possuir características polissêmicas, devem ser vistas
como parte de um discurso complexo o qual informa vários significados
que ora se complementam ora se distinguem.
O pintor deveria utilizar os pincéis para construir uma história.
Para tanto, necessitava analisar documentos os quais ao serem transcritos
adquiriam novos significados, embora em muitos casos os mesmos fossem
“omitidos, para justificar o argumento da obra”54. Com isso, a produção
55

de valores deveria ser consolidada na tela gerando uma espécie de mito


fundador. O trabalho, realizado pelo artista, inserir-se-ia no imaginário
como uma manipulação. Pois, estava envolvido numa articulação de
discursos, os quais eram construídos por meio de signos que passaram a
ocupar em muitos casos o lugar da escrita, reforçando a ideia republicana.
51 Fundada em 1816 com a vinda da missão artística francesa. Segundo Giselle Martins, a
Academia Imperial de Belas Artes estava estruturada nos preceitos básicos do neoclassicismo.
Organizada pela missão francesa buscava divulgar as noções de arte como representação do belo
ideal, a valorização do desenho como estrutura básica da obra de arte e a preferência por algumas
técnicas especificas como a pintura a óleo ou de alguns materiais como o mármore ou o bronze
para as esculturas. VENÂNCIO, Giselle Martins. Pintando o Brasil: Op. cit. P. 4.
52 Decreto nº 3937 de 13 de abril de 1901, Regulamento da Escola Nacional de Belas Artes.
53 O artigo 147 destaca que para ser admitido no concurso era necessário que o candidato provasse
ser brasileiro e não ter mais de 30 anos. Decreto nº 3937 de 13 de abril de 1901, Regulamento da
Escola Nacional de Belas Artes.
54 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de.Eternos modernos: uma história social da arte e da literatura
na Amazônia, 1908-1929. (Tese de Doutorado), São Paulo: Unicamp, 2001. P. 87.

59
Os discursos e mensagens eram revestidos de conteúdos simbólicos, que
procuram inserir-se no cotidiano de determinados grupos.
Este processo não é nada simples, pois as análises dos trabalhos procuram
entender e confiar na obra que é analisada. Deve-se compreender o universo
do artista, de modo, que o olhar se faz necessário para entendimento da arte.
Portanto, antes de acreditar no texto, devemos acreditar na arte enquanto
objeto que clama por uma decifração. Neste sentido, para se compreender
um quadro é preciso interrogá-lo. E, nada melhor, do que os procedimentos
comparativos. Por isso, podemos afirmar que os quadros elaborados a partir
da encomenda55, tinham dentre suas várias funções trabalhar a ordem e a
56

regeneração. Com a derrocada do Estado imperial, a República precisava


estabelecer novos rumos a serem seguidos. Neste caso, as novas concepções
de educação favoreciam esta implantação. E vários pintores fizeram parte
deste universo, não só no Pará, mas em vários estados da federação, com a
construção de obras históricas capazes de marcar o nascimento de um novo
Estado relacionado com o novo momento político.
A pintura se tornou um elemento pedagógico, o que na concepção
de Coli se trata de um elemento heróico. A razão humana vai, portanto,
“dominar toda a animalidade, permitindo ao homem desvendar o segredo
do universo e de assenhorear-se pelo mundo do saber” e o pintor vai ser
capaz de produzir e revelar uma arte de caráter cívico sendo que a obra se
torna “portadora de emoção e de memória, vai manifestar as experiências
de vida individual e coletiva do seu autor”56. 57

Assim, o ato de ver ganha um sentido específico no contexto. Diante


do que é visto, ganha estatuto de existência, caracterizando-se como uma
forma de apropriação. Não há com isso, história sem discurso, na medida
em que o olhar abarca e se torna próximo da mão. Estamos, neste sentido,
diante de discursos que estabelecem uma história a qual não se define pela
cronologia, nem por seus acidentes, mas pela produção de sentidos.
Eni Puccinelli Orlandi destaca que “a história se faz assim com um
imaginário”57 a partir dos relatos, das imagens, dos monumentos e da
58

elaboração de conceitos que passam a interferir no cotidiano das pessoas.


55 O Pintor Parreiras. O Jornal, Belém, 13 de julho de 1905. p, 1. Valéria Salgueiro destaca
que Parreiras pintou muitos quadros históricos por encomendas de governantes e dirigentes
de instituições. Enfatizando sempre a história do Brasil, que nas suas pinturas leva em conta os
critérios e as composições estabelecidos por quem encomendou cada obra. SALGUEIRO, Valéria.
Antônio Parreiras: notas e críticas discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista.
Niterói: EdUFF, 2000.
56 Jorge Coli, em sua obra o Corpo da Liberdade, permite uma compreensão maior da relação entre
a arte e a educação e de como os governantes se utilizaram deste saber para inferir a sua forma de
pensar, dando ao sujeito uma interpretação que em muitos casos foi feita à sua maneira o que gerou
diversos eventos de oposição à política adotada pelo Estado. COLI, Jorge. O corpo da liberdade:
reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 2010. P. 98.
57 ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas,
SP: Pontes, 2001. P. 19.

60
No caso da República, percebemos que ela procura apagar os sentidos do
Império com o estabelecimento de “novos valores”, construindo novas
leituras, propondo-se a filtrar o contexto científico e historiográfico, ora
apagando, ora atualizando outros aspectos dessa contemporaneidade,
perpetuando com isso o “discurso da dominação cultural, isto é, aquele
que se dá em um sentido único, ‘eterno’”58. Outro aspecto importante, está
59

relacionado com a construção da identidade. É justamente no discurso


histórico que o homem se constrói em sua dimensão memoriável. O
resultado de um processo político e ideológico, formado pelo confronto
das relações de força e de sentido, instituído pelo que Hobsbawm59 chama 60

de “tradição inventada”: apresentando-se como algo que deve ser dito, ou


mesmo esquecido, Ao mesmo tempo lembrado a propósito do passado,
no que diz respeito “à constituição da sua memória”60. Vale ressaltar que 61

os artistas buscam no conhecimento dos eruditos imagens que podem


expor mensagens desejadas. Por isso, podemos afirmar que, com base nas
informações obtidas por seus estudos e análises de mitos e lendas, os pintores
utilizam elementos atuais, eruditos e populares, atendendo às aspirações
políticas, de modo, a representá-los enquanto imagens.
Geraldo Coelho enfatiza que a necessidade republicana para criar
símbolos começou a ganhar forças no Pará com o governo Provisório de
Justo Chermont. De acordo com o pensamento político do momento, havia
uma necessidade de implantar valores cívicos e morais e a confecção de
monumentos dedicados à República, por meio do qual os cidadãos deveriam
ser levados a “simpatizar com as instituições republicanas” criando, assim,
“um imaginário republicano propriamente dito” foi o principal meio para
tal propósito. Como exemplo deste culto patriótico e liturgia cívica, Geraldo
Coelho destaca os funerais de Floriano Peixoto e Carlos Gomes, o primeiro
pelo fato de ter combatido os movimentos contrários à República, ficando
conhecido como Marechal de Ferro, e o segundo pelas suas óperas, como o
Guarany, as quais representavam, nas concepções letradas ou não, práticas
de cidadania realizadas por lutas contra o sistema escravista e a ordem
monárquica. Em ambos os casos, a população é levada a se identificar, na
representação, por uma espécie de dor pública que colocava a república
recém-nascida na condição de órfã. Temos a idealização de uma mudança
política relacionada às transformações sociais mediante oportunidades
públicas. Por isso, nos dois eventos há uma nítida encenação de uma
pedagogia política, no sentido de que a cenografia “principal era a República
em si mesma”, apesar da maneira como os rituais de maneira figurativa
colocam a república “pranteando os seus grandes filhos”61. 62

58 Idem. P. 131.
59 Para Hobsbawm “o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, as interpretação
históricas, e daí por diante são elementos altamente aplicáveis a inovação histórica comparativamente
recente, a ideia de nação”. HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984. P. 22.
60 ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto:Op. Cit. P. 140.
61 COELHO, Geraldo. No coração do povo: o monumento a República em Belém 1891-1897.

61
Seguindo as orientações de Paul Ricouer, o louvor e as façanhas se
mostram nestes rituais realizados pelos “sepulcros funerários que avisam
e admoestam todos aqueles que estiveram ausentes do local e do tempo”.
Tem-se, com isso, uma ampla relação de legibilidade e visibilidade, capaz de
construir um signo monumental do poder político absoluto na infinidade
de sua representação. Construindo-se um imaginário que não designa
a simples visibilidade, colocando aos olhos do povo os acontecimentos e
personagens em narrativas que direcionam o discurso. Apresentando uma
interpretação capaz de gerar a beleza, a justiça e a felicidade com o objetivo
de atingir a todos. Este “efeito-poder”, expressão de Ricouer, encontra um
campo privilegiado de exercício na esfera política, pois o poder é animado
pelo desejo absoluto e essa marca compõe um imaginário transtornado
“levando-o para o lado fantástico”62. 63

Além das festividades relacionadas às grandes figuras que se destacaram


no cenário nacional na construção e manutenção dos valores republicanos
e sociais, anualmente em Belém, no mês de novembro, ocorriam intensas
comemorações para festejar o natalício da República. Bem como a realização
de concursos para construções de monumentos que facilitassem o sentido
pedagógico por meio de uma linguagem direta, objetiva, de valorização do
governo e do sistema político instalado, estabelecendo um contato direto
com o povo e alimentando os seus sentimentos cívicos. O monumento à
República, edificado em Belém e de autoria de Michele Sansebastiano63, 64

deveria ser entregue obedecendo à concepção republicana, de modo atender


o caráter cívico-pedagógico proposto para o monumento. De certo modo,
dependeria da existência de um imaginário previamente construído, tarefa
esta realizada com êxito pelos diversos festejos, anualmente, anunciados nas
folhas dos jornais da cidade.
As imagens e monumentos procuram servir de base ideológica
e genética do poder. A forma como a construção do monumento foi
amplamente anunciada, seja na formação do Club Republicano ou mesmo
pela constante atuação da imprensa, somadas ao papel assumido pelos
concursos, favoreceu a ampliação dos conceitos relacionados ao ideário de
República. Não podemos esquecer o papel essencial da doutrina positivista
que viu a necessidade de construir uma imaginação republicana, apoiada em
velhos significados. Como, por exemplo, definido na figura de Tiradentes,
saído da condição de insurgente, a símbolo do novo regime. Esses fatores
contribuíram para justificar uma República pautada nos ideais burgueses de
progresso, seja político ou moral, resultando na síntese de uma civilização.
Belém: Paka-Tatu, 2002. P. 137.
62 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,
2007. P. 278.
63 Segundo Aldrin Figueiredo “Michele Sansebastiano, autor do imponente monumento a
Republica existente em Belém, se chamava Vincenzo Michelangelo, nascido em 1852 em Gênova,
e que iniciou seu aprendizado artístico com Luigi Montecuco”. FIGUEIREDO, Aldrin Moura de.
Janelas do Passado, espelho do presente.Op. Cit. P. 46.

62
Frances A. Yates destaca o papel desempenhado pela memória, já que
a caracteriza como uma criação de sistemas de imagens as quais “devem
ter brotado e desaguado em obras criativas de arte e literatura”64. Por esse 65

posicionamento, surgiram coleções que estavam repletas de valores morais e


cívicos nos quais as imagens se destacavam por uma fabricação direcionada
a construir uma memória de caráter coletivo.
Além de pintores, muitos artistas estavam na condição de historiadores,
fato este que os levou a desempenhar uma função definidora para do
Estado Nação, na medida em que “cada futuro se tornava um presente”.
Posteriormente este passado histórico no tempo progressivo da ciência
histórica garantia uma profundidade e “assim projetava a existência continua
da nação”. Portanto, ter um fato passado capaz de gerar uma unidade era
considerado essencial à formação de uma nação, sendo caracterizada
como “um princípio espiritual”, considerada sagrada e baseada em “um
passado heróico”. Neste caso a nação era “uma solidariedade em larga
escala, constituída da percepção dos sacrifícios feitos no passado”. O artista
desempenha um papel fundamental, buscando as origens da existência da
nação, imaginando-a de modo a apresentá-la aos cidadãos, confrontando-
os mesmo nos locais mais distantes da nação.
Neste sentido a construção da história da nação torna-se uma espécie
de centro de estimulo narrativo, pois se vale de documentos considerados
oficiais para responder às “perguntas sobre o Estado, as instituições de grande
escala e seus governantes”. A história quando escrita por um profissional
“substitui o saber popular e a cultura, as sagas familiares de dinastias e
linhagens nobres e as narrativas em que a vontade de Deus manifestava-se
no passado”65. 66

Portanto, era necessário avançar. Em 1903 foi realizado o Congresso


Político66, que procurava definir os novos rumos de atuação dos republicanos
67

paraenses. Após o Congresso, foi dado início a um novo concurso o qual


tinha como finalidade o erguimento de um monumento comemorativo
daquele acontecimento. Tratava-se de um estudo detalhado de colunas e
entablamentos com a colocação dos escudos municipal, estadual e nacional,
com redação em bronze a ser colocado no Bosque Rodrigues Alves, local
de realização do evento. Tal concurso teve como vencedor o pintor francês
64 YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. P. 121.
65 SMITH, Bonnie G. Gênero e história: homens, mulheres e a prática histórica. São Paulo:
EDUSC, 2003. Pp. 311 – 313.
66 Antônio de Carvalho afirma que o “Congresso político da natureza do aquele foi, até hoje,
o primeiro que se realizou no Brasil e talvez em toda a América, tendo sido, ainda, muito
raras semelhantes assembleias, mesmo nos Estados Europeus de mais longa vida”. Quanto ao
“monumento para cujo projeto está em via de ser aberto concurso artístico em Belém, Rio de
Janeiro e Roma, deverá comemorar e perpetuar condignamente, mas sem exageros de ostentação,
a primeira reunião do Congresso dos Intendentes Municipais e dos chefes políticos do Partido
Republicano Paraense, realizada em Agosto de 1903, na capital do Estado do Pará”. CARVALHO,
Antônio de. O congresso político de 1903. Belém: Secção de Obras d’A PROVINCIA DO PARÁ.
1904. P. 3.

63
Maurice Blaise que naquela ocasião era professor na Escola Normal.
Vale afirmar que os jornais A Província do Pará e “O Jornal” estampavam
nas suas primeiras páginas o edital deste concurso como um evento de
grande importância devido ao seu caráter nacional, chamando atenção
dos leitores para o resultado do mesmo. Saliente-se que o monumento de
Maurice Blaise deveria apresentar elementos que chamassem atenção do
observador pela grandiosidade e beleza da obra, passando a abrigar uma
referência republicana.
Como vencedor do concurso que foi realizado no início de 1906,
Blaise recebeu67 no dia 09 de junho de 1906 o prêmio no valor de 3:000$
68

na casa A.B. de Brito & Cia, que ficava localizada à rua Treze de Maio. O
monumento comemorativo do congresso dos intendentes municipais e dos
chefes políticos do partido republicano paraense vencedor foi erguido neste
mesmo ano.
Tem-se, portanto, a realização de um processo de construção de uma
identidade regional/nacional, por intermédio de um projeto de educação
pedagógica de caráter cívico, de modo a fornecer ao mais leigo cidadão uma
sequência dos fatos republicanos, que no caso da pintura Aldrin Figueiredo
afirma existir “(...) uma autoridade compartilhada entre a história e a pintura
que era entronizar como ‘santo’ a imagem do herói da pátria (...)”68. 69

Figura 4:Mauricio Blaise. Monumento Comemorativo do Primeiro Congresso dos


Intendentes Municipais. 1906.Bustos: Governador do Estado: Augusto Montenegro e
Intendente de Belém: Antônio Lemos
Local: Bosque Rodrigues Alves - Belém-Pará.Foto: Nonato Castro

Daniella Moura destaca que os políticos republicanos paraenses


se utilizaram de diversos rituais cívicos. Dentre os quais as grandes
comemorações, dos dias 15 e 16 de novembro realizadas constantemente
como uma forma de inserir e reforçar o ideário de cidadania ao lado dos
sentimentos de participação política.
67 O congresso político de 1903. A Província do Pará, Belém, 10 de junho de 1906. P. 1.
68 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos modernos. Op. Cit. P. 155.

64
A República, no entanto, revelava o seu outro lado nas reuniões
fechadas, exclusivas, realizadas para um pequeno grupo, mas amplamente
divulgadas na imprensa tornando-se conhecidas de toda a sociedade. Eram
os famosos banquetes, os quais não tinham período definido para ocorrer.
E esses eventos, nas palavras de Moura, “representam vantagens políticas
concretas”, o que favorecia as políticas públicas a serem tomadas pelos
republicanos em cada município. Pois, no “interior dos salões de banquetes
(...) eram feitos pedidos, implorações benevolências e realizadas as conversas
mais íntimas (...)”69. 70

Outro aspecto relacionado à questão da pedagogia cívica, que


chama atenção de Figueiredo, reside na preparação dos alunos para se
identificarem desde crianças com os valores pátrios, no caso em questão
os valores republicanos. Diante disso, as mulheres adquiriam uma função
essencial: nas concepções dos literatos, elas apresentavam uma aproximação
com a vocação pátria, na medida em que elas estavam mais próximas ao
“sentido de vocação pela pátria, além do que o aspecto maternal implicava
num excelente indício de devotamento e santificação”, o que levava, em
muitos momentos, a comparação com a imagem de “Santana Mestra, mãe e
educadora de Nossa Senhora”70. 71

Considerações finais
Podemos afirmar que a produção de monumentos e quadros
históricos procurava construir e reinventar o passado nacional. Desta forma,
as festas e solenidades assumiram um papel de fundamental importância.
Pois, objetivavam incorporar o povo aos eventos políticos republicanos.
A representação se mostrava como uma espécie de acesso ao passado e
o povo passava a ocupar um lugar privilegiado. Portanto, as divulgações
destes eventos em jornais, sobretudo naqueles ligados aos grupos políticos
dominantes, atendiam os interesses dos republicanos de aproximar o povo
dos valores pensados para a República.
Neste sentido, a contribuição de Ginzburg é relevante na medida
em que afirma que as imagens passam por um processo de domesticação,
destacando-se enquanto uma representação real, concreta e corpórea,
tornando-se uma espécie de símbolo concreto da abstração do Estado71. 72

Portanto, a representação, se faz como realidade que evoca ausência,


tornando-se visível à realidade representada, sugerindo com isso algo que
está sempre presente.

69 MOURA, Daniella de Almeida. A República paraense em festa(1890-1911).Dissertação


(mestrado) – Universidade Federal do Pará, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de
Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2008. P. 77.
70 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Eternos Modernos. Op. Cit. P. 159.
71 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

65
Portanto, as imagens adquirem, em especial, a forma e valores no
contexto em que se relacionam. As obras expostas, na cidade de Belém,
no início do século XX adquiriram utilidades as mais diversas, servindo
para decorar, mas também como elementos definidores do status social do
agente que as adquiria. Com isso, a ideia de civilização na Amazônia se
reforçava graças à presença de um número significativo de estrangeiros que
se estabeleciam na região com objeto de aumentar os lucros oriundos das
vendas da borracha no mercado internacional.

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66
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YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.

68
PARTE II - IDENTIDADES, GENERO,
CLASSES E SUAS INTERSECÇÕES

69
AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO RACISMO: UMA ANÁLISE
CONCEITUAL

Breno Rodrigo de Oliveira Alencar72 73

INTRODUÇÃO
A perspectiva que se abre com a discussão empreendida pelo Núcleo
de Educação Afro-Brasileira em seu III Congresso sobre Diversidade e
Questões Étnico-Raciais é, certamente, uma areia no deserto da educação
tecnológica brasileira, mas também figura como um importante marco
para o desenvolvimento da educação em nosso país, seja pelo caráter de
inovação presente na proposta, seja pelo recente reconhecimento desse
caráter quando o mesmo Núcleo foi convidado pela Ordem dos Advogados
do Brasil a compor a Comissão da Verdade da Escravidão Negra.
Resultado de uma ação inovadora capitaneada pela Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação e na ocasião abraçada pela Coordenação de
Ciências Humanas do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia
do Estado do Pará (IFPA), o evento permitiu não só assegurar a continuidade
das políticas públicas inauguradas com a Lei n.º 10.639/2003 como
também proporcionou aos seus convidados e participantes um riquíssimo
e qualificado debate sobre os limites e possibilidades da discussão sobre
alteridades na educação tecnológica.
Nesse horizonte não podemos perder de vista a relevância do curso de
Especialização em Educação para as Relações Etnicorraciais (ERER), em suas
versões presencial e virtual, que tem promovido ao longo de sua existência a
integração entre os conhecimentos teórico, propedêutico e tecnológico e ao
mesmo tempo garantido a formação continuada e qualificada de recursos
humanos que atuam diretamente junto a sociedade civil.Uma das disciplinas
ofertadas neste curso é de singular importância neste contexto, de tal modo
que escolhi debruçar-me sobre seu horizonte epistemológico para discutir
sua pertinência no processo de compreensão da temática racial no cenário
72 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA (2015-
). Graduado em Ciências Sociais com concentração na área de Antropologia pela Universidade
Federal do Pará (2008) e Mestrado em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela
Universidade Federal do Pará (2011). Docente de Ciências Sociais pertencente ao quadro de
servidores da Coordenação de Ciências Humanas e membro do Grupo Interdisciplinar de Estudo
e Pesquisa em Cultura, Educação e Política (GICEP) do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Pará (Professor EBTT). Possui experiência como Etnógrafo junto ao Museu
Paraense Emílio Goeldi onde atuou como servidor efetivo (2011-2014) e Professor, Pesquisador
e Orientador de Trabalhos de Conclusão de Curso na área da Educação Ambiental quando atuou
como Professor Licenciado Pleno de Ciências Sociais junto a Fundação Centro de Referência em
Educação Ambiental Escola Bosque Prof. Eidorfe Moreira (2009-2014)

70
da educação tecnológica.
Representações Sociais do Racismo, como é chamada, é uma disciplina
com trinta horas de carga horária no currículo do ERER, tendo sido ofertada
nas modalidades presencial entre abril de setembro e 2014 e à distância
entre janeiro e fevereiro de 2015. Na primeira oportunidade, não foi possível
planejar o curso em condições de tempo e recursos favoráveis73, o que só 74

pode ser possível quando na modalidade virtual. Revisei, então, a bibliografia


selecionada e o debate por ela suscitada. Originalmente, em virtude desse
cenário, a disciplina teve como horizonte a perspectiva de compreensão do
racismo enquanto ideologia, portanto como produto das representações
coletivas que historicamente produziram e reproduziram mecanismos de
discriminação e exclusão social. Partindo de uma perspectiva simbólico-
interacionista as representações sobre raça e cor foram abordadas como
constitutivas do imaginário social, manifestando-se nas interações sociais e
determinando, a partir delas, o pensar, o agir e o se relacionar.
Com as críticas apresentadas pelos participantes do curso na
modalidade presencial, no que se refere à bibliografia selecionada e os
desdobramentos naturais obtidos quando se revisa a metodologia aplicada,
pôde-se observar que na dimensão simbólico-interacionista fazia-se
necessário demonstrar como as representações sociais se manifestavam
em meio a estrutura social. Para isso foi realizada uma compilação de
dados estatísticos em diferentes instituições que abordam a questão para
avaliar se aquilo que fora inicialmente pensado como ideologia poderia ser
demonstrado como um fato sociológico.
Em virtude do envolvimento com os referenciais teóricos que tratam
do assunto e do amadurecimento intelectual provocado por essa mesma
leitura em comparação com os dados posteriormente compilados o que se
perseguiu foi uma solução para um problema aparentemente simples: afinal,
o que são as representações sociais do racismo?
Responder a essa pergunta se faz necessário porque o problema no qual
se insere essa questão é ideológico. Logo, antes mesmo de tentar relacionar
as representações sobre cor e raça como sinônimos de exclusão social, ou,
antes de adotar esses critérios para demonstrar que há uma correlação lógica
entre cor, raça e estruturas de dominação, é fundamental compreender de
que fenômeno estamos tratando, sob o risco de levar a cabo um projeto
assentado em inferências particulares ou assentado na dedução cujos dados
estatísticos sujeitam a interpretação do caso particular. Não é uma tarefa
simples, mas é provável que seja o pontapé inicial de um projeto mais amplo
que só poderá ser possível de se realizar se começarmos pelo que há de mais
elementar. E, se Victor Hugo estiver certo e a prudência for a primogênita da
sabedoria, esperamos obter com essa proposta de aproximação ao tema pela
73 Na ocasião integrei o corpo docente do curso no mesmo mês em que fui nomeado para o cargo
de professor efetivo do IFPA

71
via dos conceitos condições para compreender - porque seria difícil explicar
- o sistema ideológico sob o qual se vertem as representações baseadas nas
categorias raça e cor, que justificam o seu acionamento para promover uma
exclusão sistemática daqueles que não se ajustam ou resistem ao modelo de
sociedade a qual histórica e culturalmente se idealizou em nosso país.
Com a finalidade de apontar caminhos para se pensar esse problema o
presente estudo se compõe de uma análise conceitual baseada nas noções de
representação, representação social e racismo. Tomados como fenômenos
distintos, procuramos identificar neles uma correlação capaz de orientar o
projeto de mapear as representações sociais do racismo.

1 REPRESENTAÇÃO
Empiricamente, as representações podem representar qualquer
coisa, ou seja, qualquer objeto pode ser mentalmente representado. As
representações são assim funções mentais. Representando, fazemos viver
o mundo. Por se tratar de uma manifestação do pensamento, o termo
representação possui um caráter cultural e político que, segundo Pitkin74, 75

distribuiu-se em “mapas semânticos”. Etimologicamente é de origem latina,


tendo sua origem ligado ao vocábulo repraesentare que significa “tornar
presente” ou “apresentar de novo”. No latim clássico, seu uso é quase
inteiramente reservado para objetos inanimados e não tem relação alguma
com a ideia que fazemos dela no teatro e na política.
Na língua alemã, por outro lado, representação apresenta três
significados distintos: vertreten, darstellen e repräsentieren. A primeira
delas, “vertreten”, significa “atuar como um agente para alguém”; “darstellen”
traduz a ideia de “retratar” ou “colocar algo no lugar de”; o significado da
terceira, “reprësentieren”, é próximo ao de “vertreten”, só que mais formal e
com conotações mais elevadas.
Tanto em inglês quanto em português o modo pelo qual uma pintura,
um pintor ou um ator de palco representa e também o modo pelo qual um
agente ou um legislador eleito representa estão ligados ao mesmo termo.
De acordo com Santos75 o significado que damos ao termo hoje
76

tem sua origem no começo dos séculos XIII e XIV quando a palavra
“repraesentare” passou a dizer que o papa e os cardeais representam a pessoa
de Cristo e dos apóstolos. Um outro exemplo é o dos juristas medievais que
começaram a usar o termo para personificar a vida coletiva. Desta forma,
uma comunidade seria uma persona non vera sed repraesentata. Assim, a
partir deste momento, o termo “representação” passa a significar também
“retratar”, “figurar” ou “delinear”. Neste mesmo contexto o termo passa a ser
74 PITKIN, H. F. “Palavras, instituições e idéias”. Lua Nova, nº. 67, 2006, p. 15-47.
75 SANTOS, D. V.. Acerca do conceito de Representação. Revista de Teoria da História Ano 3,
Número 6, dez/2011.

72
aplicado a objetos inanimados que “ocupam o lugar de” ou correspondem
a “algo ou alguém”. Além disso, passa a significar também “produzir uma
peça”. Na teoria política, o conceito de representação é encontrado pela
primeira vez em 1651, em O Leviatã de Thomas Hobbes.
O aparecimento da palavra “represent” no Oxford English
Dictionary ocorre possivelmente no final do século XIV. A partir daí,
a palavra “repraesentare” passa a ser utilizada cada vez mais de acordo
com os desenvolvimentos de ideais representativas na teoria política e o
desenvolvimento das instituições. Um desenvolvimento semelhante parece
ter ocorrido no francês. Pelo menos de acordo com Littré, 76a palavra 77

représenter era usada para imagens e objetos inanimados que encarnam


abstrações, muito antes de vir a significar algo como uma pessoa agindo por
outras. Mas, no século XIII, pode-se falar de um encarregado representando
a pessoa de seu senhor.
Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia77, indica que 78

representação significa “imagem” ou “ideia” ou ambas as coisas e que este


termo foi usado pelos escolásticos para se referir ao conhecimento como
“semelhança” do objeto. Com base em Ockham, Abbagmano distingue três
significados fundamentais para o termo “representação”. Em primeiro lugar,
a representação designa aquilo por meio do qual se conhece algo, ou seja, o
conhecimento é representativo; em segundo lugar, por representar pode-se
entender conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento conhece-se outra.
Neste sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem. E em terceiro
lugar, por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo
como o objeto causa o conhecimento.
Na continuação da história do desenvolvimento do vocábulo
“representação”, Abbagnano diz que com a noção apresentada por Descartes,
em suas meditações, da ideia como “quadro” ou “imagem” da coisa, o termo
voltou a ter importância. Após isso, foi difundido na obra de Leibniz, o qual
afirma ser a mônada” uma representação do universo. Mas a difusão deste
termo em língua alemã e em outras línguas europeias coube a Wolf. Após
isto, Kant estabeleceu um significado geral para o vocábulo “representação”,
considerando-o o gênero de todos os atos ou manifestações cognitivas,
não dependendo de sua natureza de quadro ou semelhança e deste modo o
conceito passou a ser utilizado em filosofia.
Carlo Ginsburg, seguindo Roger Chartier, destaca a ambiguidade
do termo “representação” que ora “faz as vezes da realidade representada”,
evocando a ausência; ora a torna visível, sugerindo sua presença. Esta
oscilação entre substituição e evocação mimética já está registrada no
verbete “représentation” desde 1690 no Dictionnaire universel de Furetiére78. 79

76 LITTRÉ, M. P. E. Dictionnaire de la langue française. Paris: Hachette, 1875.


77 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Brasil: Martins Fontes, 2007.
78 GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das

73
Gustavo Blázquez79 escreve que nos dicionários de língua portuguesa
80

o significado de representação é construído em torno de quatro eixos: 1) A


representação é “o ato ou efeito de tornar presente”, “patentear”, “significar
algo ou alguém ausente”; 2) A representação é “a imagem ou o desenho que
representa um objeto ou um fato”; 3) A representação é “a interpretação,
ou a performance, através da qual a coisa ausente se apresenta como coisa
presente”; 4) A representação é “o aparato inerente a um cargo, ao status
social”, “a qualidade indispensável ou recomendável que alguém deve ter
para exercer esse cargo”; a representação também se torna “posição social
elevada”.
A palavra “representação” tal como se vê é polissêmica e além da
linguística atraí o interesse de outras áreas no âmbito das ciências humanas
ou sociais. Nessa direção e ainda no âmbito das finalidades desse texto
o termo alcança duas perspectivas significativas: a) a de uma pessoa que
através da consciência ativa a memória de um conhecimento a priori; b) a
de atividade ou atividades que levam um indivíduo a representar um objeto,
tal como uma imagem visual ou verbal.
Para esclarecer melhor essa compreensão faz-se necessário a
aproximação com duas áreas do conhecimento que são, particularmente,
capazes de nos orientar diante do objetivo que este texto se destina.
Centrada na noção de subjetivação, a psicologia encara a representação
como um ato cognitivo desencadeado pelo conhecimento através da
memória de acordo com o conjunto de saberes adquiridos por um indivíduo
no curso de sua história. Assim, falamos de representação cada vez que
um conjunto de dados da realidade material do mundo corresponde a um
novo conjunto de unidades - também materiais - que fornecem alguma
“descrição” do primeiro conjunto. Uma tal representação dos elementos do
real e das relações entre estes elementos é ativada sempre que alcançarmos
a consciência de uma determinada realidade e, eventualmente, de sua
organização. Essa abordagem a qual possui caráter modelador é herdeira
da tradição aristotélica posteriormente discutida por Kant para quem a
representação, por exemplo, leva o pensamento a associar as relações entre
várias espécies zoológicas sob a forma de uma árvore hierarquicamente
organizada, a representar um conjunto de procedimentos operacionais
na forma de um programa, etc. Na maioria dos casos, o resultado é uma
construção teórica, hipotética, cujas relações com a realidade do mundo e
com a realidade psicológica não são diretas. Na perspectiva psicológica a
representação como realidade, portanto, é definida como o conjunto das
aquisições de um indivíduo traduzidas no plano de suas estruturas mentais.

Letras, 2001.
79 BLÁZQUEZ, G. Exercícios de apresentação: Antropologia social, rituais e representações In:
CARDOSO, C.F; MALERBA, J. (org) Representações - Contribuição a um debate transdisciplinar.
Campinas: Papirus, 2000, p 169-194.

74
A existência do que pode ser chamado de um “sistema mental”
corresponde a um nível de realidade inacessível tanto à observação direta
quanto à introspecção, cuja natureza, forma e meios organizacionais e
metodológicos é o objeto a ser apreendido. Isto se refere aos elementos
disponíveis de um sistema latente cujo cenário estaria sujeito aos processos
(concebíveis em termos de recuperação, de ativação, etc.). Esse cenário é
acompanhado também por fenômenos não necessariamente psicológicos
como a “consciência”. Essa compreensão do termo “representação” difere
principalmente da aceitação prévia ao caráter individual de seu conteúdo,
mesmo postulando-se a existência de invariantes cognitivas e leis gerais de
funcionamento psicológico.
Além do caráter cognitivo e mental, a representação também pode
ser compreendida como experiência subjetiva. Citemos, por exemplo, a
mobilização de uma “imagem mental” que corresponde à evocação pelo
indivíduo de certos aspectos do mundo os quais pertencem à sua experiência
a priori. Nesse sentido, a “imagem” é uma certa representação do real, mas
o que é introduzido aqui é um novo aspecto: que de uma forma subjetiva e
consciente da atividade mental, muitas vezes, mas nem sempre, associamos
fenômenos sensoriais a imagens.
Por outro lado, no âmbito da fenomenologia do conhecimento, a
filosofia destaca que a representação se forma entre a camada perceptiva e
aquela do pensamento teórico. Para Cassirer80 a representação operaria entre
81

a “expressão” perceptiva e o uso formal do “signo” (puramente relacional).


Neste sentido, a linguagem cotidiana é o local privilegiado para a formação
de significados representativos, pois o pensamento é geralmente centrado
em produtos da atividade simbólica em vez de suas formas elaboradas.
Na fenomenologia do conhecimento de Cassirer, a intuição representativa
possui três propriedades características:
a) Ele analisa o que já existe no pensamento e que não cessa de se renovar,
ou seja, o que está no nível da expressão sensível. Podemos vê-lo nas
formas primitivas do mito, impregnado que estão pela expressividade
perceptiva. Nisso se reúnem, a partir do exterior, as projeções das tensões
inerentes à ação humana que sob a forma de diferenciações separam
as totalidades imagéticas, dos complexos, das partes significativas, dos
“centros de vontade e de agir” que constituem o horizonte de expectativas
do pensamento humano. Neste sentido, a palavra tem, segundo Cassirer,
um poder quase ilimitado. Não há nada dentro ou fora dela que não
possa ser comparado ou “medido”: sua estrita e simples presença contém
em si todo o ser. A palavra não é somente alguma coisa do real, ela é o
real.
b) A representação intuitiva propriamente dita toma sua forma assim
que passamos do simples “ter lugar” para um “assumir lugar”. Como
80 CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

75
representação de fato, algumas formas sensíveis têm a função de se
um retornar à: utilizadas no lugar de outras formas sensíveis, elas vão
significar a existência de uma narrativa. A diferença simbólica não está
mais aqui apenas na origem de uma forma (a estrutura da narrativa do
mito), ela constitui agora a estrutura específica de um tipo particular de
formas. Ao contrário da denominação expressiva na qual ter o nome é
ter a coisa, para a denominação representativa ter o nome é dispor de
uma maneira de encontrar a coisa significada, representada por trás do
aspecto sensível nomeado que funciona como um representante.
c) Na camada intuitiva, a coisa assume o papel de um horizonte para o
pensamento, um espaço de experiência ou de exploração: “Alguma coisa
é sob milhares de formas”, afirma Cassirer. Cada aqui e agora singular
da camada expressiva, cada feixe sensível impregnado, está agora na
presença de algo mais: outros lugares, outros tempos, outros “eu” que é o
índice ou sintoma. A coisa aqui é o que unifica os fenômenos envolvidos
e aqueles que estão conectados conforme as possibilidades, refletindo a
centralização de uma perspectiva e servindo como o ponto de origem de
possíveis atividades.
Todo feixe sensível centrado representando um “estado” de coisas é
um objeto. Isso significa que o objeto é invariante para um conjunto de
possíveis variações que podem ser encontradas ou reconhecidas quando,
por exemplo, significam o emprego de um nome. O objeto funciona, assim,
como um protótipo de um jogo aberto de representações.
Não pretendo com estas observações esgotar as possibilidades de
compreensão da categoria, mesmo porque caberia ainda avançar terreno
sobre a importância da mesma na linguística, na semiótica, na história da arte
e na psicanálise, mas para as finalidades a que elas se prestam podemos obter
que o modo como o pensamento opera, no plano subjetivo, a compreensão
do mundo se dá pela via da consciência, cuja percepção do real só pode ser
alcançado com o uso recorrente e inalienável da memória. Somente isso
é o suficiente para demonstrar que como dado a representação exige que
se compreenda o papel das ideias, noções e preconceitos que constituem o
horizonte de percepção do indivíduo.
Nossa memória, que é um portfólio à espera de oportunidade
para se manifestar foi construída segundo modelos de subjetividade e
subjetivação exteriores a minha consciência, não por imposição como
acreditava Durkheim, mas pela condição mesma de sujeito no mundo que
compreende a própria existência em relação aos outros que se apresentam
e são reconhecidos como meus semelhantes tanto no presente como no
passado, através das fotos, das narrativas, dos mitos... Sob este aspecto, o
que nos permite avançar ao campo das representações sociais já não é, por
sua distinção fenomenológica, tanto a capacidade de reconhecer nos objetos

76
imagens ou aparências, mas a unidade entre modelos de pensamento que
permitem a identidade entre um eu e um outro.
Nesse nível esgotamos o caráter metanarrativo de constatação do real
e passamos ao sua compreensão ideológica. Portanto, não sendo outra coisa
que não seja projeções de ideias, noções e preconceitos antecipadamente
definidos, a teia de significados sob a qual se acomodam nossa percepção do
mundo, em sendo ideológica porque caracterizadas pelo horizonte histórico
do agenteé orientado pela tradição que não só influencia o encadeamento
(a lógica) do pensamento como determina as estruturas pelas quais ele se
move. No meio disso o recurso que usamos para associar o que queremos
expressar é linguagem, é símbolo, é uma representação.
É importante notar que a escola hermenêutica inaugurada por
Schleiermacher dá enormes contribuições nesse sentido e permite
estabelecer as pontes entre o horizonte do particular e aquele que chamamos
de horizonte ou consciência coletiva. Em Gadamer81, por exemplo, uma 82

vez que o preconceito é um juízo que se forma antes da prova definitiva, a


representação - minha interpretação - é a tela sob a qual tal juízo se projeta.
Ricoeur82 afirma, por sua parte, que o preconceito é o horizonte do presente,
83

é a finitude do próximo em sua abertura para o longínquo.

2 REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Como foi possível observar a representação é um fenômeno do
pensamento. Isolada refere-se apenas ao que tem origem no âmbito da
psicologia individual. Sua passagem para o nível coletivo é realizado
pela memória e portanto passa a situar a questão nas fronteiras entre a
subjetivação e socialização. Historicamente, a compreensão teórica desse
processo tem início em 1886, quando o sociólogo francês Émile Durkheim
recusa a tese de que o fenômeno religioso é o resultado de uma escolha
individual. Desenvolve-se a partir daí a noção de “representação coletiva”,
criada para demonstrar que a religião apresenta-se como um conjunto
socialmente definido de prescrições de caráter obrigatório e também como
um “sistema de representações”83. Em 1887, Durkheim publicou uma
84

resenha sobre o livro A irreligião do futuro, de Jean-Marie Guyau, no qual


trata a religião como um fenômeno mental definido na ordem da sociedade,
cujas consciências individuais, sob pena de sanções, devem dobrar-se.
Segundo Oliveira, tem-se aí, além da concepção de religião como fenômeno
social, que não seria esquecida, o esboço da relação entre representações
coletivas e fato social que seria finalmente apresentada alguns anos mais
tarde, em 1895.
81 GADAMER, H-G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
82 RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
83 Para mais detalhes acerca da análise sobre a expressão nos textos de Durkheim ler OLIVEIRA,
M. O conceito de representações coletivas: uma trajetória da Divisão do Trabalho às Formas
Elementares. Debates do NER, Porto Alegre, ano 13, n. 22 p. 67-94, jul./dez. 2012, p. 72 e seguintes.

77
Conceitualmente, as representações coletivas são a síntese do que os
homens pensam sobre si mesmos e sobre a realidade que os cerca. Nesse
ponto, não posso concordar com a perspectiva de que ela é uma forma de
conhecimento socialmente produzida, como afirma Oliveira. A unidade
que encontramos no esforço coletivo em se representar como grupo aqui
está mais próximo do tipo ideal weberiano do que numa autoconsciência
uniforme que um grupo tem de si.
Como podemos constatar em entrevistas com indivíduos de diferentes
classes, mas pertencentes, a mesma sociedade é a reunião de visões de
mundo capazes de serem combinadas em um contexto determinado e
segundo tipos determinados de relação em que podemos encontrar o que
chamamos de representação coletiva. Com base nesse critério o que de
fato podemos encontrar são três tipos distintos de representação: a) a do
indivíduo particular; b) a do seu grupo de pertença; e c) a coletiva, sendo que
nesta última as representações ganham autonomia e um realidade própria.
Por alcançarem essa característica é que as representações não só
constituem um modelo de pensamento como tanto podem guiar como
servir de referência para as ações sociais. Isso nos leva a considerar que
o indivíduo, ainda que mergulhado no imaginário de seu grupo, possui
autonomia para discordar, se opor e até resistir, e o que determina se no fim
das contas ele seguirá as convenções do meio em que se encontra é muito
mais o conjunto de eventos com o qual se deparará do que com um roteiro
predeterminado de ação. Com isso a substituição do termo “coletivas” pelo
termo “sociais” nos permite compreender que as representações sociais
além de possibilitarem a mudança não derivam de uma única sociedade,
como em Durkheim, mas de diversas comunidades que existem no interior
da sociedade maior.
A partir de 1961, através da liderança exercida por Serge Moscovici
(psicólogo francês de origem romena) junto ao que tornou-se conhecido
como Psicologia Social, as representações sociais passaram a ser analisadas
como o conjunto de conceitos, frases e explicações originadas na vida diária
durante o curso das comunicações interpessoais. Seguindo essa perspectiva
as representações sociais têm, entre outras, a característica de facilitar
a comunicação e com isso garantir o que ele chama de “capital cognitivo
comum” aos membros de um mesmo grupo. Isto é ressaltado tanto por
Cardoso84 como por Spink85 tendo em vista as contribuições de Denise
85 86

Jodelet, para quem o conceito de representações sociais diverge do conceito


de representação coletiva, em razão de suas estruturas serem dinâmicas e
apreendidas no contexto das comunicações sociais e, desta maneira, mais
flexíveis e permeáveis que o conceito Durkheimiano. Estas características
84 CARDOSO, C. F. Uma opinião sobre as representações sociais. In: Representações -
Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, 9-29.
85 SPINK, M. J. P. O conceito de representação social na abordagem Psicossocial. Cadernos de
Saúde Pública. Rio de Janeiro, V 9, nº 3, p 300-308, 1993.

78
aproximam as representações sociais das modernas análises de discurso que,
influenciadas por Wittgenstein1, são centradas na relação entre linguagem
e ação.
Obtivemos com esta breve revisão da literatura que as representações
sociais sob o manto da análise sociológica e da Psicologia Social diferem
da Psicologia Clássica e da Filosofia por seu caráter socializador que pode
ser caracterizado tanto como uma forma de saber prático que através da
memória liga um sujeito a um objeto; como uma relação que o sujeito
estabelece com seu objeto na perspectiva da simbolização e da interpretação
do mesmo num determinado contexto; como uma mobilização desse objeto
no imaginário das representações que o cercam; e como um recurso de
ajuste prático do sujeito ao seu ambiente.

3 RACISMO
O racismo é um termo que vem se tornando cada vez mais popular
entre os brasileiros. Tal fato se dá por sua crescente politização semântica
cuja origem está relacionada à constituinte de 1988, quando grupos
historicamente excluídos passaram a reivindicar maior participação e
poder nas diferentes esferas da vida nacional. Tal movimento teve lugar
tanto entre a população negra e afro-brasileira quanto para a população de
origem indígena que se valeram do mesmo topus para denunciar séculos
de escravidão e genocídio cometido pelo Estado. Ainda que a luta contra o
racismo não seja o único elemento articulador na busca por igualdade social
ele é certamente o principal mobilizador da luta contra as distorções que ele
produziu ao longo de nossa história como sociedade. Prova disso é que em
2010 o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288) garantiu à população negra
a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais
formas de intolerância étnica presentes no imaginário coletivo e que são
responsáveis, entre outras coisas, pelo assassinato seletivo da população
negra, pela exclusão de oportunidades, primeiro através da carência no acesso
à educação e depois pela exclusão dos postos de trabalho mais qualificados,
cerceamento de direitos e de serviços e qualidade, pela segregação seletiva
em espaços públicos e pela ojeriza cotidiana que facilmente se manifesta
através do imaginário racial.
Diante desse contexto, cabe-nos compreender, entre as muitas
possibilidades de explicação do fenômeno, aquela que melhor se ajusta, tendo
como horizonte os conceitos de representação e das representações sociais
no cenário de desigualdades produzidas em função desse imaginário racial.
Para isso, fazemos novamente uma análise dos elementos que ajudaram a
constituir esse fenômeno.

79
Na origem está a ideia de raça que é tão contemporânea quanto as de
classe e de nação, ambas surgidas na modernidade. Segundo Banton86, estas 87

ideias aparecem no meio europeu em consequência das transformações


sociais resultantes do Renascimento e se espalham pelo globo após o século
XV durante o processo de expansão marítima. Porém, enquanto as ideias
de classe e nação são inspiradas no movimento de formação dos estados
modernos, a raça é revisitada e inspira o desenvolvimento de uma doutrina:
o racismo.
O primeiro registro do surgimento da ideia de raça está associado ao
mundo antigo. Os gregos, por exemplo, usavam a expressão “πας μη Ελλην
βαρβαρος”, que significa literalmente “quem não é grego é um bárbaro”. Eis a
razão para gregos e romanos tratarem como “invasões bárbaras” os levantes
de macedônios e vikings – antes sob sua dominação – que buscavam na
expansão territorial a sua independência política, econômica e cultural.
Por se tratar de um contexto onde a circulação era limitada pela
tecnologia rudimentar dos transportes e pelos constantes conflitos entre
os povos, o contato com o diferente se resumia às adjacências territoriais,
onde os tipos raciais pouco variavam. Somente com a estabilização política,
a expansão do comércio e o desenvolvimento do transporte marítimo ao
longo da idade média é que as populações vão entrar em contato com
mais intensidade e menos risco. Nesse processo, o surgimento da ciência
desempenha um papel fundamental, pois do contato entre as diferentes
culturas surge o método de registro e coleta de informações, tanto no campo
das ciências exatas como no campo das ciências humanas.
O relato detalhado das viagens de Marco Polo pelo oriente, incluindo a
China, foi durante muito tempo uma das poucas fontes de informação sobre
os costumes, hábitos e práticas dos asiáticos. Conhecida como “a rota da
seda”, o caminho aberto por Marco Polo em direção à Ásia favoreceu ainda
o contato com a fauna e a flora, o que possibilitou o desenvolvimento da
ciência taxonômica. Mobilizada para atender o interesse em compreender a
diversidade de espécies animais, a ideia de raça desenvolve-se neste cenário.
A etimologia se divide entre a teoria de que a palavra raça é oriunda do
termo latinoradix, que significa raiz ou tronco, e a que considera a palavra
italiana razza, que significa linhagem ou criação, sua primitiva. Seja qual
for a sua origem, ela foi introduzida na literatura científica pela zoologia
desde a Idade Média e até o século XVIII era utilizada para se referir ao
conjunto de descendentes de um ancestral comum, com ênfase nas relações
de parentesco e não em traços físicos como a cor da pele.
Da classificação das espécies animais e vegetais para a classificação dos
seres humanos não demorou muito. A primeira delas foi a “Nouvelle division
86 BANTON, M. A herança intelectual. In. ______. A ideia de raça. Lisboa: Edições 70, 1977, p.
11-23.

80
de la terre par les différents espèces ou races qui l’habitent” (“Nova divisão da
terra pelas diferentes espécies ou raças que a habitam”) de François Bernier,
publicada em 1684. No século XIX, vários naturalistas publicaram estudos
sobre as “raças humanas”, como Georges Cuvier, James Cowles Pritchard,
Louis Agassiz, Charles Pickering e Johann Friedrich Blumenbach. Nessa
época, as “raças humanas” se distinguiam pela cor da pele, tipo facial
(principalmente a forma dos lábios, olhos e nariz), perfil craniano e textura
e cor do cabelo, mas considerava-se também que essas diferenças refletiam
diferenças no conceito de moral e na inteligência, pois uma caixa cranial
maior e/ou mais alta representava um cérebro maior, mais alto e por
consequência maior quantidade de células cerebrais.
Atribui-se ao processo de expansão colonial europeu papel de destaque
na relevância que o conceito de raça adquiriu no final do século XVIII. Isto
porque como consequência dos estudos taxonômicos as teorias científicas
das raças humanas vão se desenvolver e se consolidar nesse cenário com o
objetivo de justificar a ordem social emergente à medida que a Inglaterra
e outras nações europeias se tornavam potências imperiais, governando
territórios e populações subjugadas.
Mergulhados nesse confuso cenário que envolvia conhecimento,
política e cultura anatomistas como o alemão Johann Fridrich Blumenbach
desenvolveram teorias como a de existência das raças humanas. Assim se
desenvolveu o termo caucasoide para se referir aos europeus, mongolóides
para os asiáticos, etíopes para os africanos, ameríndios para os povos nativos
das Américas e malaio para os polinésios.
O respeito endossado pelos interesses políticos e econômicos fizeram
estas formas de classificação e muitas outras propostas posteriores servirem
de base para o surgimento de ciências como a linguística e a própria
antropologia cujo pecado original fora servir de apanágio das potências
europeias para uma dominação mais sistemática e eficiente dos povos, como
o ocorrido na África e no sul da Ásia.
Sob a influência deixada por Blumenbach, o Conde Joseph Arthur de
Gobineau (1816-1882), considerado o pai do racismo moderno, propôs a
existência de três raças: branca (Caucasiana), negra (Negróide) e amarela
(Mongolóide). De acordo com Gobineau, a raça branca possui moralidade,
vontade e inteligência superiores; são estas qualidades hereditárias que
estão na origem da disseminação da influência ocidental por todo o mundo.
Os negros, por contraste, são menos capazes, marcados por uma natureza
animal, pela falta de moralidade e pela instabilidade emocional.
As ideias de Gobineau e dos seus colegas proponentes do racismo
científico influenciariam mais tarde Adolf Hitler, que as transformou na
ideologia do Partido Nazista e outros grupos de supremacia branca como
o Ku KIux Klan nos Estados Unidos e os arquitetos do apartheid na África

81
do Sul. Ao longo do século XIX, raça não apenas se consolidou como
importante descritor das características biológicas e socioculturais, como
passou a receber tratamento cada vez mais científico.
Num período de intenso debate sobre as origens, discutia-se se as
diversas raças humanas descendiam de um ancestral comum (monogênese)
ou tinham origens distintas (poliogênese). O pensamento darwinista da
segunda metade do século XIX consolidou a perspectiva de uma origem
única, embora o evolucionismo tenha atribuído às diferentes raças maior ou
menor desenvolvimento físico, moral e intelectual, situando os europeus no
topo da hierarquia e negros e índios nos níveis mais baixos desta.
Interessava às grandes potências imperialistas europeias o endosso da
ciência a uma doutrina racista, pois dessa forma teriam uma justificativa
para a anexação de outros territórios, a submissão e a exploração das suas
populações, apontadas como inferiores. Neste sentido, algumas nações,
como a Inglaterra, a França e a Alemanha, reestruturaram seu universo
simbólico, acionando signos, ideias e valores que sugeriam a união, a força
e a capacidade de vencer do povo e do regime.
O orgulho de ser alemão, por exemplo, emergiu na segunda metade
do século XIX, ao tempo das reformas de Bismarck, não só como forma de
reação ao expansionismo francês do Segundo Império bonapartista, mas
também como fórmula para isolar e afastar os judeus, com base em razões
políticas e argumentos pseudocientíficos.
As dificuldades da unificação alemã e os problemas econômico-
financeiros do período de 1870 a 1890 foram atribuídos à presença e à atuação
especulativa e antigermânica dos judeus. Essas denúncias eram reforçadas
pela pregação tradicional da igreja católica, segundo a qual os judeus, além
de culpados pela morte de Cristo e acusados de pacto com o demônio, eram
também identificados com a prática da usura e a espoliação em todo tipo
de negócio. Aos poucos, formou-se uma consciência nacional germânica
voltada para os ideais de união, liberdade e expansão. Desenvolveu-se assim
um racismo especificamente germânico, baseado na defesa da superioridade
natural do povo alemão e na rejeição aos judeus.
Esta é uma das razões para a Alemanha ser considerada o berço do
antissemitismo moderno, recuperado e exacerbado pelo nazismo. O ódio
aos judeus na Alemanha não foi uma invenção de Adolf Hitler. O programa
nazista das décadas de 20 e 30 deu uma versão moderna aos estereótipos
vigentes desde os tempos medievais. A pureza da raça transformou-se,
assim, em dogma e ideal, ambicionado em países de regimes autoritários.
Ao escrever Mein Kampf em 1924, Adolf Hitler propagou seus ideais de
purificação da raça alemã. Nessa obra, o judeu é responsabilizado pela
degradação da pureza da raça ariana e considerado o fermento da corrupção
física e moral. Hitler identifica o mal com os vícios dos judeus e o bem com

82
as virtudes dos arianos.
O imaginário europeu logo se viu povoado por super-homens louros
de olhos azuis. A elite europeia convenceu-se de que era diferente, superior
ao resto do mundo. A pesquisa apurada do corpo humano transformou-se
num estratégia biopolítica incentivada pelos países imperialistas que viam
na genética opções para obter o controle da vida e da sociedade. Assim,
poderiam selecionar “cientificamente” os mais puros e eliminar aqueles que
simbolizassem perigo.
Nas primeiras décadas do século XX, raça permeava de tal modo a
vida social, que antropólogos e juristas discutiam a aplicabilidade de um
mesmo conjunto de leis para pessoas tidas como racial e evolutivamente
distintas. No Brasil, o médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues,
da Faculdade de Medicina da Bahia, propôs, sob influência dos debates
internacionais então em curso e de autores da antropologia criminal italiana,
a criação de leis distintas para brancos e não brancos87. E, como em muitos
88

outros países das Américas, as políticas de imigração, em face da influência


do pensamento eugênico, pautavam-se em discussões sobre migrantes com
características inferiores ou superiores88. 89

Podemos ver que, de acordo com as conveniências do momento, o


conhecimento científico foi vulgarizado com o objetivo de facilitar sua
compreensão pelo grande público. Apropriando-se dos avanços das
ciências biológicas e colocando-os a serviço de interesses imperialistas e de
uma burguesia em ascensão, os cientistas produziram todo um horizonte
discursivo que marcou o desenvolvimento das representações sociais sobre
o racismo. Ao vulgarizar as teorias e informações complexas decorrentes de
prolongadas pesquisas, faziam a ponte entre o discurso científico e o popular.
Dessa forma, interferiam no imaginário social, gerando ou reforçando
estereótipos e atitudes discriminatórias. Assim, entre 1860 e 1890 o conceito
de evolução se popularizou, dando origem a novas teorias.
Uma delas foi o arianismo que justifica a desigualdade entre os homens
e adverte contra o cruzamento das raças. Arthur de Gobineau, seu mais
importante teórico, faz distinção entre as raças semita e ariana. Classifica a
primeira como física, moral e culturalmente inferior à ariana – a qual seria
o europeu puro – e rotula os semitas de inassimiláveis e pervertedores. Os
semitas seriam uma raça híbrida, branca, mas abastardada por uma mistura
com os negros.
Em 1869 e 1870, o conde de Gobineau esteve no Brasil e manteve
intensa amizade com o imperador Dom Pedro II, discutindo com ela a
abolição e política de imigração. Curiosamente previu para menos de
87 CORRÊA, M. As ilusões da liberdade. Bragança Paulista: EDUSF, 1998.
88 SKIDMORE, T. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930).
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

83
duzentos anos o desaparecimento dos habitantes brasileiros, condenados
pelo crescente processo de miscigenação. As ideias de Gobineau foram
retomadas e divulgadas por Houston Chamberlain (1855-1927), um dos
maiores teóricos do pensamento racista do século XX e fervoroso defensor
da superioridade germânica.
Outra teoria que se popularizou foi o Darwinismo social, uma teoria
da evolução social baseada na analogia com as ciências biológicas que
substitui os organismos vivos pelos grupos sociais em conflito. Os teóricos
do darwinismo social inspiraram-se em Charles Darwin (1809-1882) e sua
obra A Origem das Espécies, de 1859, em que defende a tese da evolução
das espécies biológicas com base na sobrevivência dos mais capazes. No
entanto, esses pensadores adaptaram e até distorceram as ideias de Darwin,
Alguns consideravam a seleção social como um processo negativo, no qual
os tipos “inferiores” seriam favorecidos e acabaram colaborando para uma
progressiva degeneração física, mental e moral da humanidade, destinada,
por isso mesmo, ao desaparecimento.
Entre os principais defensores dessa teoria encontram-se Ludwig
Gum-plowicz, G. Bagehot, G. Ratzenhofer, H. Haeckel e George Vacher
Lapouge. Este último, aliás, tinha uma visão pessimista em relação ao Brasil,
referindo-se ao país como “uma imensa nação negra em regressão para a
barbárie”.
Por sua parte, a teoria do Evolucionismo Social propunha a
interpretação do desenvolvimento sociocultural do homem com base
no conceito de evolução. Afirmava a existência de uma espécie humana
única, que se desenvolveu em ritmos desiguais e com diferentes formas de
organização (estágios de civilização), variando das mais simples às mais
complexas. O ponto máximo do progresso humano teria sido atingido pela
cultura ocidental; as demais culturas seriam menos evoluídas, primitivas.
Entre os principais estudiosos dessa corrente destacou-se o inglês Herbert
Spencer (1820-1903), responsável pela forma mais radical do evolucionismo
sociológico. Introduziu a expressão sobrevivência do mais apto e popularizou,
entre 1860 e 1890, o termo evolução. Dois outros importantes filósofos desta
corrente são Thomas Husley (1825-1895) e Ernst Haeckel (1834-1919), que
distingue três estágios de evolução da humanidade: selvageria, barbárie e
civilização.
Por fim, desenvolveu-se uma corrente de pensamento baseado na
Eugenia. O termo que lhe deu origem foi cunhado por Francis Galton,
conhecido pela descoberta das impressões digitais, em 1883, e dizia respeito
à ciência do melhoramento biológico do tipo humano. Em sua teoria a
maioria das qualidades físicas, mentais e morais dos humanos era herdada.
Desse modo, o progresso humano dependeria de como essas qualidades
seriam passadas para as gerações futuras. Como premissa defendia a

84
necessidade de o Estado formular um plano com o objetivo de selecionar
jovens aptos a procriarem os mais capazes. Propunha a escolha de uma
boa raça (a mais pura) ou do bom nascimento, chegando ao extremo
de defender a esterilização de doentes e criminosos, judeus e ciganos. A
eugenia incentivou experiências desse tipo no Terceiro Reich, que se propôs
a elaborar um plano de purificação racial, marca do holocausto judeu.

4 CONCLUSÃO: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO RACISMO


De tudo que se pôde apreender ao longo dessa breve exposição, a mais
evidente é a de que as representações como fruto do pensamento individual
não determinam (e também não são determinadas) pelas representações que
um grupo ou sociedade possui de determinado fenômeno. Ao mesmo tempo
podemos concluir ser o racismo uma ideia produtora de um comportamento
diante do que a cada uma de nós se manifesta sensivelmente como diferente
daquilo que é percebido como normal ou natural no meu meio.
A relação existente entre estes três estados de coisas só pode ser
estabelecida se compreendermos que o fenômeno o qual leva nossa
consciência a elaborar representações sobre o mundo é o mesmo que
nos ajuda a discriminar a sucessiva cadeia de acontecimentos produtora
nessa mesma consciência de uma memória das coisas, pois o que há em
comum entre as pessoas, a sociedade e a discriminação é que todas elas são
historicamente determinadas. Com isso pretendo aqui demonstrar que pari
passu a tentativa de explicar o racismo está o fato de que é a própria maneira
com que se concebe a existência humana a qual define nossa posição no
mundo e diante dele. Corroborando uma expressão que se popularizou
em anos recente, podemos dizer que “somos todos racistas” porque somos
todos dotados de preconceitos.
Aqui não vislumbro o preconceito como a mácula do juízo que
ignora a diversidade, mas como a instância primeira da representação. Não
conhecemos o mundo até conhecê-lo. O que ocorre com o preconceito que
leva à discriminação é o fato de que por um esforço coletivo de manutenção
da tradição, da ordem natural das coisas, o indivíduo se indispõe a desbravar
o desconhecido e, portanto, conhecê-lo, atuando diante dele apenas o que as
representações do grupo ao qual pertence orientam como prática.
Em suas Formas Primitivas de Classificação, Émile Durkheim e Marceu
Mauss89, numa perspectiva racionalista orientada pela Escola Sociológica
90

Francesa, demonstram que o ato de classificar as coisas é inerente ao


pensamento, porque frente a ele o que se depara não é um mundo com formas
e características homogêneas. Há um universo de coisas e fenômenos que
somente um pensamento reflexivo é capaz de compreender. A esse mundo,
89 MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In. _____. Ensaios de Sociologia. São
Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 399-455.

85
o qual originalmente cerca os indivíduos pelas relações de parentesco, o
que se faz é distinguir a consciência de si do mundo exterior segundo os
referenciais linguísticos com os quais eu compartilho experiências afeto-
cognitivas de existência. É portanto, no interior do meu grupo de parentes
que sou.
Com esse ser que invariavelmente tem acesso ao mundo pela
decodificação sensorial com base nas experiências compartilhadas através
de seu círculo de parentes, existe outro, distante ou imaginado, o qual só
vem à consciência pela simbolização. Trata-se de uma simbolização que
busca compreender não só a existência do que a decodificação sensorial
estabelece como real, mas daquilo que num mundo de infinitos fenômenos
encontra sentido diante das representações existentes apenas na consciência
particular. Para Oliveira(2012), é esse movimento que insere o indivíduo
no mundo permitindo a ele ver sentido na sociedade em que se encontra.
O caminho aberto por esta perspectiva permite compreender como as
sociedades mudam, ou melhor, como mudam suas maneiras de ver o mundo.
Não seria possível poder admitir isso se a consciência coletiva exercesse uma
tal pressão sobre o indivíduo que este se encontrasse impedido de pensar (e,
portanto, de imaginar) sua situação no mundo.
O dia e a noite, o branco e o preto, o alto e o baixo, o que está a frente
e o que está atrás. Essas são categorias que surgem das representações que
fazemos do mundo. São como imperativos sensoriais que só existem porque
o homem possui a faculdade de definir, deduzir e induzir, nos dirá Mauss.
Como inferências - não das coisas, mas do que as coisas significam - elas,
portanto, são incapazes de nos levar a preconceitos.
Só chegamos a este estado de pensamento porque entre o perceber
e o compreender nosso pensamento é mediado por juízos de valor. De
acordo com esse entendimento, os juízos de valor estão disponíveis ao
pensamento somente em caráter coletivo, pois tal como assevera Oliveira90 91

são construídos coletivamente. O conceito que utilizamos para denominar


este fenômeno chama-se etnocentrismo, o qual corresponde a uma visão
do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e
todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos
modelos, nossas definições do que é a existência.
No plano intelectual, pode ser visto como dificuldade de pensarmos a
diferença, isto é, uma cegueira diante das diferenças culturais cuja tendência
é nos levar a pensar e agir como se elas não existissem; no plano afetivo, como
sentimento de estranheza, medo, hostilidade que produz juízos negativos
das demais culturais. A composição da palavra deixa isso claro: etno também
está presente em etnia, que quer dizer “cultura”, e centrismo indica o “centro”.
Quer dizer: toma-se a própria cultura como centro de referência para medir
as demais por comparação. Etnocentrismo significa, portanto, a atitude de
90 OLIVEIRA, M. (idem)

86
qualificar um grupo, uma cultura ou um país comparando-o à sua própria
referência, que é considerada sempre a melhor.
Na maior parte das vezes, a atitude etnocêntrica implica uma
desvalorização do que é diferente da nossa própria cultura. Consideramos
bárbaro o que não é civilizado, e só consideramos civilizado o que nos
é familiar, próximo do nosso jeito de ser, dos nossos valores, das nossas
maneiras. Em um sentido importante, o etnocentrismo não é um problema.
Trata-se de uma consequência inerente ao fato de pessoas viverem sob a
influência de qualquer dada cultura e da realidade socialmente construída
que a acompanha. Exatamente da mesma maneira como todo indivíduo
é até certo ponto egocêntrico, assim também todos os sistemas sociais
promovem até certo ponto uma opinião positiva de si mesmos e do mundo
em volta. Tal como sua contrapartida psicológica, o etnocentrismo torna-se
um problema na medida em que distorce a maneira de ver outras culturas,
sobretudo quando usado ideologicamente como base para opressão social.
Este foi o caso da doutrina racial.
O Racismo foi uma doutrina, criada, portanto inventada, num contexto
em que a intelecção assumiu a dianteira do processo de compreensão do
mundo. Sem perder tempo com a análise semiótica (indispensável, mas
indisponível frente à proposta deste trabalho), o que se extrai da experiência
histórica envolvida neste processo é que uma reunião de símbolos foi
acionada para disciplinar o pensamento humano segundo um juízo de
valor compartilhado. Como doutrina, a ideologia racial era orientada pelas
intencionalidades daqueles personagens que ocupam no imaginário coletivo
o centro de referência para o pensamento e a ação. A escalada do racismo
como doutrina baseou-se, portanto, numa visão etnocêntrica produzida a
partir de representações socialmente construídas sobre um tipo humano
ideal. Como essa perspectiva era baseada em juízo de valores o que se tem
é um tipo ideal heurístico, artificial, logo passível de ser imaginado, mas
não representado, já que representamos o que é capaz de ser mentalmente
percebido. Um tipo ideal produzido a partir dessa perspectiva só poderia
servir então como modelo.
O modelo tal como se admite na corrente estruturalista não se refere à
realidade empírica. Não podemos, a partir dele, por exemplo, compreender
as relações sociais. E é bem isso que vamos encontrar na manifestação das
representações raciais: modelos puros em que não existem sujeitos, mas
indivíduos com posições determinadas.
Como a vida prática sempre passa rasteira na vida intelectual, o
que as representações raciais tem de mais fugidio enquanto amparo para
a manifestação racista é o fato de que se partirmos do a priori cognitivo
quem é o que, ou quem pertence a tal raça? Sem me opor ao fato de que as
pessoas sabem o que estão fazendo quando insultam ou privam o outro de

87
algum direito em razão de suas representações sobre cor e origem, o que o
agente da ação discriminatória não consegue perceber é que as categorias
de entendimento que orientam sua pratica lhe alienam como sujeito. E
apenas para não aparentar apologia do pop “somos todos racistas”, porque
além de termos preconceitos estamos localizados em algum portfólio de
classificação dos outros.
Isso basta para dizer que a representação que se tem da raça talvez
não seja o nosso vilão quando se fala em discriminação. O problema central
é que as representações que faço sobre a aparência racial de alguém (e as
faço por inferência e comparação) estão combinadas aos juízos de valor
que possuo em relação às noções de classe, gênero, origem, geração, etc.
A representação que faço das raças é, portanto entendimento, já o racismo
é atitude, é comportamento diante da alteridade. Na representação racial
eu vejo alguém que é diferente de mim ou do grupo ao qual pertenço. Na
atitude discriminatória, pelo contrário, não há um sujeito, há um indivíduo
que não se encaixa no modelo.
Se acaso chegamos a algum lugar com esta explanação, esse lugar é o do
mapeamento indispensável dos conceitos os quais nos ajudam a estabelecer
os limites de nosso problema inicial: definir o que é representação social do
racismo buscando compreender como se produzem e reproduzem tanto tal
representação como o ato discriminatório dela derivado. Nesse aspecto pelo
menos duas breves considerações.
A primeira é aquela que nos permite perceber que o ato discriminatório
é um ato linguístico, portanto, simbólico e atravessado por intencionalidades
que se não estão ocultas sugerem que não querem alcançar o nível da
consciência. No folclore, como bem analisou Florestan Fernandes91, isso 92

é tornado evidente quando o autor analisa “a posição sui generis” que o


escravo negro ocupou na vida íntima da sociedade brasileira, através das
cantigas de ninar, nos contos populares e nas piadas.
Por outro lado, se o lugar da palavra é um lugar privilegiado dentro
da cadeia a qual constitui o pensamento, é por meio dela que podemos
avaliar, em que pese sua capacidade de traduzir o que temos em mente,
a relação entre o símbolo e sua eficácia. A representação sobre a raça não
é o que condiciona o racismo, mas o contexto em que o ato ilocucionário
se manifesta para tornar essa representação o mediador entre eu e algo
que esse eu não reconhece como alteridade. O insulto racial, como bem
demonstra Guimarães92 , possui essa característica em se tratando de Brasil,
93

pois ao mesmo tempo em que identifica o outro com estigmas, atualiza o


entendimento que se tem do lugar de si (para quem insulta) e do outro num
imaginário pessoal, mas que pode ser compartilhado, ainda que num outro
contexto no qual quem insulta certamente poderá ser insultado algum dia.
91 FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.
92 GUIMARÃES, A. S. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2012.

88
REFERÊNCIAS
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Edições 70, 1977, p. 11-23.
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representações In: CARDOSO, C.F; MALERBA, J. (Orgs.) Representações
- Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p
169-194.
CARDOSO, C. F. Uma opinião sobre as representações sociais. In:
Representações - Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas:
Papirus, 2000, 9-29.
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CORRÊA, M. As ilusões da liberdade. Bragança Paulista: EDUSF, 1998.
FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.
GADAMER, H-G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São
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GUIMARÃES, A. S. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34,
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LITTRÉ, M. P. E. Dictionnaire de la langue française. Paris: Hachette,
1875.
MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In. _____. Ensaios
de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 399-455.
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Divisão do Trabalho às Formas Elementares. Debates do NER, Porto Alegre,
ano 13, n. 22 p. 67-94, jul./dez. 2012, p. 72 e seguintes.
PITKIN, H. F. “Palavras, instituições e idéias”. Lua Nova, nº. 67, 2006, p.
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RICOEUR, P. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1993.
SANTOS, D. V. Acerca do conceito de Representação. Revista de Teoria da
História Ano 3, Número 6, dez/2011.
SKIDMORE, T. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento

89
brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SPINK, M. J. P. O conceito de representação social na abordagem Psicossocial.
Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, V 9, nº 3, p 300-308, 1993.

90
FORMAÇÃO E RENOVAÇÃO DOS GOVERNOS DO PARÁ: ELITE
GOVERNAMENTAL,ELITE DURADOURA E ÍNDICE ELITIZAÇÃO
(1983-2006)
Márcio Ivan Lopes Ponte de Souza93 94

Jean Guilherme Guimarães Bittencourt94 95

INTRODUÇÃO
O presente trabalho resulta de uma pesquisa teórico-empírica baseada
na Teoria das Elites. Em geral, o tema das elites tem sido fonte de grande
controvérsia acadêmica, ora no sentido de reverenciá-la, ora voltada para
sua crítica de forma mais contundente. Porém, se aceitarmos o pressuposto
básico da teoria segundo o qual existe uma minoria organizada que dirige a
maioria desorganizada, a identificação e formação dessa minoria organizada
ou elite passa a ser um locus privilegiado de investigação.
No caso específico, nosso objeto de pesquisa foi o que denominamos
elites governamentais do Estado do Pará, definidas como aqueles membros
componentes do secretariado de sete administrações estaduais, delimitado
temporalmente entre os anos de 1983 e 2006, no qual procuramos demonstrar
a existência de uma elite governamental que perpassa vários governos a que
denominamos elite duradoura.
O tema das elites já esteve em grande evidência na Ciência Política, o
que levou mesmo à constituição de uma das principais correntes teóricas da
mais jovem das Ciências Sociais. A Teoria das Elites, elaborada originalmente
por Gaetano Mosca (1858-1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert
Michels (1876-1962), em oposição ao marxismo, e, em certa medida ao
liberalismo, ganha reconhecimento internacional e acadêmico a partir de
sua exportação para os Estados Unidos e os estudos dirigidos por Harold
Lasswell (1902-1978). Com Wright Mills (1916-1962) alcança seu auge,
tanto na divulgação de seus postulados quanto na crítica que se seguiu. Para
Bobbio (2002) é a primeira teoria propriamente dita de Ciência Política.
Michels (1982) ampliava a aplicação do conceito para outros tipos
de organização, como os partidos políticos, dada a impossibilidade de se
aplicar uma abordagem democrática de fato ante a inevitável tendência à
oligarquização das instituições. Lasswell (1967) destacou a importância de
se estudar o poder e a influência, aplicando a teoria inclusive aos Estados
socialistas, enquanto Mills (1975) se utilizou do método da posição
institucional para mapear as elites. Com o desenvolvimento das correntes
pluralista e marxista, o elitismo perde espaço para outras propostas
93 Sociólogo e mestre em Ciência Política pela UFPA. Professor de sociologia e filosofia da rede
estadual de ensino do Pará.
94 Sociólogo e mestre em Ciência Política pela UFPA. Professor de Ciências Sociais do IFPA.

91
metodológicas, porém sem invalidar sua proposta investigativa.
No Brasil ainda é tímida a produção de pesquisas sob esse enfoque,
apesar de relevantes pesquisas terem sido realizadas em várias regiões do
país nos últimos anos95. Nesse sentido, o presente trabalho se justifica tanto
96

pela parca quantidade de pesquisas realizadas sob essa metodologia, quanto


pelo relativo ineditismo desse tipo de abordagem no espaço político da
Amazônia.
Nossa fonte e material de pesquisa foram os termos de posse arquivados
na Secretaria Estadual de Administração (SEAD), onde se registram as
nomeações do Secretariado de Estado e cargos afins. Utilizando-se o método
da “Posição Institucional” foi possível detectar um grupo político formado
a partir da composição de cada governo investigado, a chamada “elite
governamental” e, deste grupo, percebemos vários nomes que participaram
também de outras gestões, compondo assim o que chamamos “elite
duradoura”. Cada membro desse último grupo corresponde a uma conexão
política que pode ser entre dois, três, quatro ou mais gestões. Analisando
estes dados à luz do elitismo, produzimos um “índice de elitização” (IE)
que demonstra e permite comparar o quanto cada governo produziu,
percentualmente, de nomes que compuseram a “elite duradoura”.
Contextualizada no Estado do Pará, a pesquisa se voltou para a seguinte
questão: se elites existem, qual a sua composição, como se formam e como
podem ser investigadas do ponto de vista da Ciência Política? O problema
de pesquisa implica ainda três questões complementares: a) uma definição
para elite; b) a utilização de uma abordagem metodológica eficiente e eficaz
para identificá-las e c) que consequências podem ser observadas a partir
de sua formação e renovação. Portanto, a problemática se orienta para a
observação de quem governa, isto é, os nomes que ocuparam por nomeação
direta do governador os principais cargos executivos estaduais entre 1983 e
2006.
O objetivo geral da pesquisa foi realizar uma aplicação empírica da
Teoria das Elites no espaço político paraense visando identificar ou “mapear”
quem foram as elites governantes dentro do recorte temporal proposto e
que nuances podem ser observadas a partir disso. Especificamente, nossos
objetivos se direcionaram para, por um lado, contribuir para o debate teórico
centrado na Teoria das Elites, ao propor uma diferenciação conceitual para
elites no estudo em tela; e, por outro, contribuir para a análise da formação
das elites governamentais paraenses, identificando os grupos e subgrupos
políticos resultantes dessa formação e, por fim, elaborar um índice que
permitir medir o grau de elitização de cada uma das sete administrações
investigadas. A elitização decorreria da maior ou menor ocorrência de
membros da elite duradoura na formação de uma dada cúpula governante.
95 Para um balanço dessa produção acadêmica vide o “dossiê elites” IN: Revista de Sociologia e
Política, Curitiba, v. 16, n. 30, jun. 2008.

92
Nossa hipótese é a de que cada governo, uma vez formado, cria uma
elite governamental, emergindo desta elite um subgrupo político a fazer
conexões com outros Governos – grupo este a que denominamos “elite
duradoura”-, em maior ou menor grau, o que determinaria, em termos de
índice, qual gestão governamental produziu mais membros que compuseram
a “elite duradoura” ao longo dos governos paraenses analisados, segundo
nossas definições e metodologia adotadas.
Conceitualmente, identificamos a existência de uma “elite duradoura”,
que também é elite governante, porém, trata-se de um tipo especifico de
elite governante, capaz de atuar em mais de um mandato – o que se mostrou
válido, tanto à época em que não existia o instituto da reeleição em eleições
para o Executivo, quanto a partir da institucionalização deste instituto.
Para alcançar os objetivos propostos foi necessário realizar uma
pesquisa qualitativa e quantitativa. A fim de cumprir o escopo qualitativo
de debater teoricamente a Teoria das Elites, partimos de suas premissas
elaboradas originalmente por Gaetano Mosca (1958), Vilfredo Pareto (1980)
e Robert Michels (1982). Para produzir a pesquisa empírica, recorremos
ao conceito de tipo ideal (WEBER, 1967) para definir as elites no estudo,
bem como ao método da “posição institucional” de Wright Mills (1975) para
chegarmos aos conceitos de elite governamental e elite duradoura.
Para cada Governo investigado foi criada uma sigla, visando facilitar
a tabulação dos dados, referente aos nomes que compuseram o respectivo
Secretariado. Por fim, identificamos a elite governamental a partir do
levantamento e análise dos Termos de Posse arquivados na Secretaria de
Administração do Estado do Pará (SEAD).
Com base nesta segregação, definimos sete grupos políticos
ou “gabinetes” correspondentes a sete administrações investigadas.
Internamente, no grupo original formado em dado governo (elite
governamental), percebemos que certos nomes participaram apenas
daquela gestão enquanto outros atuaram em demais administrações, o que
nos levou a uma separação qualitativa entre os nomes que possuíam ou
não conexões com outros governos. Os nomes que apresentavam conexões
seriam membros de um subgrupo que denominamos “elite duradoura” –
a fim de diferenciá-la da elite governamental circunscrita a cada governo.
Esta “elite duradoura” pode ter uma frequência em dois (conexão binária),
três (conexão terciária), quatro ou mais governos (conexão quaternária).
Apesar de ser um estudo comparativo, em se tratando de analisar
diferentes governos conforme certas variáveis destacadas, o “índice
de elitização” resultante da série investigada acaba por descrever
percentualmente a quantidade de nomes por governo que compuseram a
elite das elites governamentais paraenses.

93
1 Limites e possibilidades da teoria das elites
O termo “elite” surge no quadro de pensamento das Ciências Sociais
carregado de inúmeras interpretações, sendo a falta de consenso acerca
de uma definição de “elite” na bibliografia especializada um dos primeiros
problemas metodológicos a serem enfrentados (FARIAS, 2011).
De uma forma geral, antes da abordagem sociológica, o termo aparece
pela primeira vez num dicionário de língua francesa em 1771 e, novamente,
em 1823, quando é mencionado em língua inglesa, momento em que seu
uso já estava ampliado para designar certos grupos sociais (LASSWELL;
LERNER, 1967). No período que antecede ao debate acadêmico, seu uso
original estava restrito à linguagem militar (unidade de elite), ainda que o
conceito estivesse ligado à designação de pessoas que deteriam qualidades
excepcionais ou ocupassem altas posições sociais (KELLER, 1967).
Porém, é ponto pacífico entre os estudiosos do tema que, a partir da
obra dos cientistas políticos italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, bem
como do cientista político alemão Robert Michels, que o termo passa a ter
uma aplicação teórica para as Ciências Sociais e áreas afins e, em especial,
para a Ciência Política. Num segundo momento, Charles Wright Mills seria
o maior responsável pela difusão da Teoria das Elites na ciência política
norte-americana.
Mosca lançou as bases da teoria ao propor uma metodologia de
análise que considerasse, a priori, a existência de duas categorias, quais
sejam, governantes e governados, cuja relação se assentava num conjunto
de crenças e valores que permitiriam a dominação da elite (classe política
dirigente) sobre a massa, fenômeno que o autor denominava fórmula
política (MOSCA, 1958).
Pareto (1984), de sua parte, considerou a ampliação do conceito de elite
para todos os campos de atuação humana e dividiu a elite política em duas
camadas: elite governante e elite não-governante, ressaltando a circulação
entre esses dois segmentos (circulação de elites) como o fator essencial de
oxigenação da sociedade política.
Michels (1982), por sua vez, trouxe o conceito para dentro das
organizações sociais formulando a célebre Lei de Ferro das Oligarquias.
De acordo com esta lei, haveria uma tendência inelutável nas grandes
organizações de representação, tais como sindicatos e partidos, no
sentido de que os dirigentes se convertam em uma oligarquia, afastando-
se progressivamente dos interesses da massa que deveriam representar,
buscando sua perpetuação no poder e ainda dificultando a adoção e a prática
de critérios democráticos de sucessão e renovação de dirigentes.

94
Com o lançamento do polêmico livro de Charles Wright Mills A
Elite do Poder, em 1956, a Teoria das Elites passa a ter uma projeção mais
ampla, seja para sua desconstrução, seja para sua defesa. A obra de Mills
abordava empiricamente as elites norte-americanas, afirmando que haveria
um círculo de poder formado por três segmentos dessas elites: o político, o
econômico e o militar, os quais se inter-relacionavam, concentrando entre
si as principais decisões em prol de seus interesses particulares – sendo,
porém, menos uma coleção de pessoas do que um conjunto de entidades
associadas (MILLS, 1975, p.24-25). O autor desenvolve ainda o método da
posição institucional para mapear as elites em questão, do qual falaremos
mais adiante.
É certo que a Teoria das Elites, desde sua formulação original na
passagem do século XIX para o século XX, tem obtido reconhecimento
de sua importância no processo de construção da Ciência Política. Em
publicações mais recentes, foi considerada a primeira teoria de Ciência
Política propriamente dita (LEONI, 1991; BOBBIO, 2002). As concepções
ora divergem, ora convergem, mas há uma tendência geral em se admitir a
existência de elites, mesmo com todos os problemas que o conceito venha a
suscitar, deixando evidente a validade do debate. Nesse sentido, Perissinotto
& Codato (2008) apontam que, no momento em que Mosca chamou a atenção
para a importância de se debruçar sobre o estudo das elites, estabeleceu-se
um novo programa de investigação no âmbito da Ciência Política.

2 O elitismo como método de análise


Uma das questões centrais que permeiam universalmente todos
os estudos acerca dos fenômenos políticos é a questão do poder (FUKS;
PERRISSINOTO, 2005), o que englobaria também a Teoria das Elites.
Porém, a partir dessa problemática e das dificuldades em torno de um
consenso sobre quem detém o poder, duas propostas metodológicas foram
elaboradas com base na tradição weberiana: o “método posicional” e o
“método decisional”.
O método posicional afirma que o poder de se tomar decisões políticas
concentrar-se-ia em indivíduos ocupantes das posições institucionais
estratégicas em uma comunidade ou organização. Portanto, para se descobrir
quem governa a comunidade seria necessário, antes de mais nada, “mapear”
essas posições institucionais estratégicas para, em seguida, realizar aquilo
que Mills chamou de uma “sociologia das posições institucionais” (MILLS,
1975). O método decisional, por seu turno, considera que se o poder é o
poder de decidir, somente estudos de processos decisórios concretos é que
poderiam revelar ao analista político os indivíduos ou grupos capazes de
exercer o poder, sendo insuficiente para tal o simples mapeamento das
posições de mando (DAHL, 1970). No presente estudo optamos por delimitar

95
nosso escopo metodológico ao método posicional, diante das evidentes
dificuldades de aplicação do método decisional, vez que demandante de
estudos de caso de processos decisórios.
Como já mencionado, os estudos elaborados nos E.U.A. a partir da
década de 1950 possibilitaram o desenvolvimento de inúmeros trabalhos
sobre o tema das elites, ampliando seu enfoque metodológico (GRYNSZPAN,
1996). O debate metodológico que se segue desemboca na predominância de
diferentes correntes teórico-metodológicas da Ciência Política nos Estados
Unidos, como o elitismo, o pluralismo e o marxismo da escolha racional.

3 Análise das elites governantes no presente estudo


Partindo do método da posição institucional para descrever a
formação e a organização da Elite Governamental paraense entre os anos
de 1983 e 2006, observamos, em primeiro lugar, as posições existentes
no interior sistema político em análise. Nosso ponto de partida consistiu
em identificar que posições poderiam exercer um nível considerável de
poder em se tratando do executivo estadual, além do próprio governador,
é claro, a ponto de configurar seu ocupante como membro de uma elite
governamental. Definimos para os efeitos deste estudo que tais posições
correspondem ao Secretariado de Estado.
Em seguida, desenvolvemos o conceito de “conexão política”, definida
por nós como um elo de ligação, por meio de uma espécie de ator-ponte,
entre dois ou mais governos, a partir da permanência de certos personagens
em posições de elite governamental. Cada “conexão” – que pode ser do tipo
binária (entre dois governos), terciária (entre três governos) ou quaternária
(entre quatro governos ou mais) – corresponde à frequência com que certos
nomes se repetem na formação de cada governo, considerando-se diferentes
gestões.
Sabemos que os postos-chave são ocupados de acordo com a indicação
política do governador em negociação com seus aliados. Portanto, cada
governo tem um “rosto” visível a todo investigador da política, o que
permite reconhecê-lo como elite governante em oposição à elite não-
governante (PARETO, 1980). O governo formado pelos atos de nomeação
está devidamente registrado nos termos de posse do Secretariado.
Ao esmiuçar todos os Termos de Posse arquivados na SEAD (Secretaria
Estadual de Administração) entre 1983 e 2006, verificamos os nomes –
único dado comum e universal a todos os documentos – de quem compôs
os diversos governos paraenses ao longo de 24 anos. Daí a descoberta de
que determinadas gestões são compostas por uma quantidade maior ou
menor de indivíduos que já pertenceram a outros governos e mais: alguns
indivíduos passam não somente por dois, mas por três, quatro e até mais

96
governos, correspondendo assim esses personagens a uma espécie de
subgrupo político dentre outros grupos políticos formados em cada um dos
diferentes governos configurando-se, desse modo, uma “elite governamental
duradoura”, ainda que não coesa.
Vale ressaltar que esta “elite duradoura” pode se apresentar de forma
contínua ou descontínua na gestão da administração superior de diferentes
governos. Isto significa que determinados membros deste grupo podem
aparecer em uma determinada administração e ressurgir somente após
intervalos de uma, duas ou mais administrações, ao passo que outros
representantes dessa mesma “elite duradoura” solidificam-se por duas, três,
quatro ou mais administrações em sequência. Este fenômeno perdura até que
se vejam sob a égide de uma nova elite em ascensão, que exigirá a instauração
de uma nova elite governante, removendo as antigas oligarquias. É por esta
razão que Pareto compara a História a um “cemitério de aristocracias”.
Toda classe política dirigente ou “elite governamental” assenta seu
domínio numa “fórmula política” (MOSCA, 1958). Por exemplo, a fórmula
política, elaborada pela ditadura militar que governou o Brasil entre 1964
e 1985, passou por inúmeras transformações, caso dos Atos Institucionais
impostos pelo Governo militar de então. Apesar disso, o processo de
redemocratização desencadeado a partir do final dos anos 1970 na América
Latina impôs à ditadura militar brasileira mudanças na sua fórmula política,
que buscou fazer a chamada transição lenta e gradual para a democracia
de modo a eleger seus “apadrinhados” políticos, sendo a eleição direta
para governos estaduais, em 1982, uma das mais significativas dentre essas
transformações. No entanto, como aponta Mosca, quando uma fórmula
política se apresenta de alguma maneira obsoleta, ou quando a fé nos
princípios sobre os quais ela se apóia torna-se fraca, trata-se de um indício
da iminência de sérias transformações na classe dirigente política (MOSCA,
1958, p.308). É assim que ocorre a circulação das elites possibilitando
a ascensão, no Estado do Pará, da legenda de oposição à ditadura, o
PMDB (Partido do Movimento Democrático do Brasil), em detrimento
do candidato da situação, Oziel Carneiro (PDS- Partido Democrático
Social), na primeira eleição direta para governador desde a instauração da
ditadura a qual elegeu Jáder Barbalho. É assim também, em mudanças na
fórmula política, que o segundo governo de Almir Gabriel realiza uma
reforma administrativa e amplia consideravelmente os postos de comando
da administração superior do Poder Executivo, expandindo o número de
membros da “elite governamental”, criando as chamadas “super-secretarias”
que passaram a coordenar secretarias menores.
A variação, em termos gerais, do número de termos de posse nos
governos paraenses investigados atesta a circulação das elites no âmbito
do Poder Executivo Estadual, se considerarmos que entre a passagem de
um governo para outro haveria necessariamente uma circulação das elites.

97
Entretanto, isso não significa que alguns dos elementos que compuseram um
governo anterior não possam reaparecer na estrutura de um novo governo,
pelo contrário, demos relevo ao fato de que a montagem das diversas
equipes de governo e de seus respectivos nomes no intervalo entre 1983
e 2006 resulta em um subgrupo político restrito e resistente à circulação
das elites. Na tabela abaixo apresentamos o quantitativo de termos de posse
referentes ao secretariado em números absolutos e percentuais, comparando
cada governo, conforme as siglas que criamos, onde “G” significa “governo”
seguido do nome do respectivo governador, quais sejam, Jader Barbalho,
com dois mandatos, (JB1,2), Hélio Gueiros (HG), Carlos Santos (CS), Almir
Gabriel, também com dois mandatos (AG1, 2) e Simão Jatene (SJ):
Tabela 01: Composição por termo de posse dos Governos estaduais do
Pará (1983 a 2006)

GOVERNO QUANT %
GJB1 42 14,58
GHG 36 12,50
GJB2 24 8,33
GCS 18 6,25
GAG1 29 10,07
GAG2 67 23,26
GSJ 72 25,00
TOTAL 288 100,00
Fonte: SOUZA, 2012.

Os dados expostos na Tabela 01, denotam, em primeiro plano, uma


constatação interessante: o segundo Governo Almir Gabriel (1999-2002) e
o Governo Jatene (2003-2006) montaram seu secretariado com um número
bem maior de termos de posse se comparados a outras administrações. E
esta variação não pode simplesmente ser atribuída ao predomínio eleitoral
do PSDB (de 1995 a 2006) na série histórica observada. Deve-se ressaltar
que, na transição do primeiro para o segundo mandato de Almir Gabriel,
houve uma reforma e ampliação da estrutura administrativa estadual, o que
levou ao aumento considerável de cargos estratégicos do chamado primeiro
escalão, sendo este um importante viés de explicação do fenômeno. Ainda
assim, o Governo Simão Jatene apresentou um número de conexões menor
do que outras administrações, apesar de deter um número bem maior de
cargos e, portanto, de termos de posse, o que não estabelece uma relação
diretamente proporcional entre a quantidade de termos de posse e o índice
de elitização. Este dado será melhor apresentado adiante, quando estiverem
sendo comparados os quantitativos do “índice de elitização”.
Note-se ainda que a tabela 01 apresenta duas tendências em relação à
quantidade de termos de posse. A primeira corresponde a uma tendência
média decrescente no número de nomeações, período em que o Estado

98
foi governado pelo PMDB (1983-1994), tendência esta que permanece no
primeiro governo Almir Gabriel (1995-1998), contabilizando apenas 29
nomeações, menos que as 42 do primeiro Governo Jáder Barbalho e as 36
do Governo Hélio Gueiros e pouco mais do que as 24 do segundo Governo
Jáder Barbalho. Porém, após a reforma administrativa e institucional
realizada por Almir Gabriel em seu segundo mandato, surge uma nova
tendência: a de aumento da quantidade nomeações devido à criação de
novas secretarias e, portanto, do número de membros constituintes da “elite
governamental”. Os números saltam de 29 para 67 termos de posse, apenas
do primeiro para o segundo mandato de Almir, permanecendo a tendência
crescente no Governo Simão Jatene, com 72 nomeações.

4 Índice de elitização (IE)


O “índice de elitização” (IE) é um conceito desenvolvido por nós para
indicar o quantitativo percentual de membros da “elite duradoura”. Quem
são os membros que compõem esse subgrupo político? Todos aqueles que
participaram de dois ou mais governos, comprovado mediante o registro
oficial contido nos termos de posse consultados. Definimos o IE a partir de
uma razão simples: verificamos o total de termos de posse do Governo em
questão. Em seguida subtraímos o número de nomes que possuem “conexão
política” daqueles “sem conexão”. Depois, atribuímos valor de 100% para
o total de termos de posse e um percentual correspondente para aqueles
“com” e “sem” “conexão”, resultando numa percentagem de quanto do grupo
político formado em dado governo participou de outras gestões, sendo
estes precisamente os membros da chamada “elite duradoura”. O percentual
correspondente de casos com “conexão” ou “elite duradoura” por governo
equivale ao próprio IE, como demonstrado na tabela abaixo:
Tabela 02: Situação quanto à “conexão” por termo de posse dos
governos estaduais do Pará (1983 a 2006)

GOVERNO Com conexão Sem conexão


GJB1 28,57 71,43
GHG 41,67 58,33
GJB2 41,67 58,33
GCS 38,89 61,11
GAG1 55,17 44,83
GAG2 74,63 25,37
GSJ 38,89 61,11
Fonte: SOUZA, 2012.

A Tabela 02 aprofunda os dados segregados na tabela anterior. Em


cômputos gerais, o GAB2 foi o recordista no percentual geral do número
de membros que compuseram a “elite duradoura” cujos nomes vieram
importados ou foram exportados para outros governos, apontando assim o

99
maior IE. O GJB1 é o que apresenta menor percentual do IE. O GHG e GJB2
empatam em um percentual que acusa a subida da participação na “elite
duradoura”. O GCS apresenta leve queda, se se levar em consideração seu
curto governo, mantendo a média anterior. Ressalvamos que as prováveis
explicações para esta variação devem ser apresentadas num outro trabalho.
Já o GAG1 apresentou maior IE que todos os seus antecessores
funcionando como um marco divisor dessa tendência crescente, não apenas
batendo o recorde até esta administração, como também dilatando esse
percentual no GAG2, saltando de 55,17% para o recorde que computou
74,63% de IE. Seu sucessor, GSJ, quedou a média e retornou a patamares
semelhantes à média anterior (das administrações do PMDB).
No Gráfico 01, abaixo, demonstramos a linha evolutiva dos governos
observados e suas quedas e subidas percentuais conforme o IE. Nele fica
clara a maior capacidade de fornecimento de membros da “elite duradoura”
por parte das administrações tucanas do que as gestões dos peemedebistas
no período em tela.
Gráfico 01: Situação quanto à “conexão” por termo de posse dos
governos estaduais do Pará (1983 a 2006)

Fonte: SOUZA, 2012.

Considerações finais
Acreditamos ter contribuído para enriquecer o debate em torno de um
dos principais problemas epistemológicos que a Teoria das Elites apresenta,
qual seja: uma definição para elite. No presente trabalho, foram construídos
tipos ideais para definirmos elite como: 1) elite governamental, a partir do
conjunto daqueles membros do Secretariado dos Governos investigados, e

100
2) elite duradoura, o conjunto dos componentes da elite governamental que
participaram de dois ou mais Governos. A partir daí buscamos os termos de
posse para levantar os nomes que compuseram os Governos do Pará entre
1983 e 2006, separando-os em elite governamental e elite duradoura, e desse
levantamento calculamos o índice de elitização de cada governo investigado.
Concluímos, a partir dos dados analisados, haver uma relativa baixa
circulação no seio das elites que formam o total de nomes constituintes da
elite governamental, pois a média do índice de elitização da série histórica
da elite duradoura correspondeu a aproximadamente 45,6% de nomes
que compuseram os diversos secretariados. Apesar do número dos casos
“sem conexão” apresentar-se quase sempre acima do número de casos com
“conexões”, em tese, espera-se uma considerável circulação de elites na troca
de governos, especialmente se estas se dão entre grupos políticos de oposição.
Contudo, a média de circulação da série histórica foi de aproximadamente
54,4%, inferior, portanto, a 60% que seria, a nosso ver, o patamar mínimo
esperado para falar-se numa alta circulação de elites. Vale lembrar que, por
ocasião da transição entre o grupo político do PMDB para o oposicionista
PSDB, os dois Governos de Almir Gabriel foram os que apresentarem os
maiores índices de elitização (55,17%, quando derrota o PMDB, e 74,63%,
na reeleição do próprio PSDB), aproveitando, portanto, muitos nomes que
compuseram governos peemedebistas anteriores.
Já a ideia de conexão política, outro achado de nossa pesquisa, diz
respeito justamente à ocorrência de nomes que são aproveitados em
diferentes governos. A resistência da “elite duradoura” pode ser constatada
na frequência e na repetição desses nomes ‘intra’ e ‘entre’ governos, que é
considerável e que dialoga com a teoria da circulação das elites (PARETO,
1980) e também com a Lei de Ferro das Oligarquias (MICHELS, 1982) ante a
composição de novas administrações no exercício do governo. A partir desta
descoberta, atribuímos uma qualidade para a “elite duradoura”: seu caráter
de ser “resistente” às trocas de governo, o que a diferencia da simples “elite
governamental”, cujo caráter é circunstancial e transitório. Consideramos
que essa distinção conceitual pode ser uma contribuição ao debate teórico
sobre a Teoria das Elites, além da elaboração do índice de elitização. Este
último procura expressar em termos percentuais a capacidade de um
grupo político formado, egresso de uma dada elite governamental, em
ser mais resistente à circulação das elites. Apesar desta circulação ocorrer,
certos grupos ou indivíduos demonstram, como vimos, uma capacidade
maior de manter seus tentáculos em outras administrações, chegando,
inclusive, a integrar governos de oposição àquele no qual foram nomeados
originalmente.
A máxima paretiana de que a história é um “cemitério de aristocracias”
é revista por nossos resultados: houve, inegavelmente, uma circulação de
elites, porém esta não se mostrou expressiva; certos membros de governos

101
anteriores mantiveram-se por seis administrações investigadas, por exemplo.
Esses indivíduos que fizeram conexões com outros governos, pertencem à
elite duradoura que transcende o governo que a nomeou, sendo resistentes,
em certa medida, à circulação e à Lei de Ferro das Oligarquias quando
da ascensão de um novo grupo/partido político. Esta elite duradoura se
aproxima daquilo que Pareto designava como uma elite da elite. Por outro
lado, é óbvio que não poderia esta elite duradoura ser eterna: quanto mais
tempo estiver na posição de elite governamental, mais forças irão se fundir
na pressão para removê-las, o que, cedo ou tarde, ocorrerá inevitavelmente
– daí a história ser considerada um “cemitério de aristocracias”. Assim
sendo, concluímos a presente pesquisa alertando para a necessidade, em
particular, de cientistas e analistas políticos brasileiros se debruçarem sobre
os indivíduos e grupos que governam, pois suas decisões e políticas estão
ligadas às suas características, sua formação, seu processo de recrutamento
e treinamento e, não obstante, sua circulação, inevitável, até para aqueles
personagens que são mais perenes, pois nenhuma elite consegue resistir
tempo suficiente a ponto de estancar a circulação de elites.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Ensaio sobre a ciência política na Itália. Trad. Maria
Celeste F. Faria Marcondes. Brasília: UnB, 2002.
DAHL, Robert A. A critique of the ruling elite model. The American
Political Science Review, 52 (2): 463-469, 1958.
______. Further reflections on ‘The Elitist Theory of Democracy’. The
American Political Science Review, 60 (2): 296-305, 1966.
FARIAS FILHO, Milton Cordeiro.  Elites políticas regionais:  contornos
teórico-metodológicos para identificação de grupos políticos. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v.26, n.77, pp. 175-188, 2011.
GRINSZPAN, Mario. A teoria das elites e sua genealogia consagrada.
Boletim Informativo Bibliográfico– BIB, Rio de Janeiro, ANPOCS, n 41,
pp 35-86, 1º semestre de 1996.
KELLER, Suzanne. O destino das elites. Rio de Janeiro, Forense, 1967.
LASSWELL, Harold D.; LERNER, Daniel. As elites revolucionárias. Rio de
Janeiro,Zahar, 1967.
LASSWELL, Harold D. Política: Quem ganha o que, quando e como.
Brasília: Ed. da UNB, 1984.
MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília: Ed. da
UNB, 1982.

102
MILLS, Charles Wright. A Elite do Poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
MOSCA, Gaetano. História das Doutrinas Políticas. Rio de Janeiro: Zahar,
1958.
PARETO, Vilfredo. Forma y equilibrio sociales. Madrid: Alianza, 1980.
________________. Manual de economia política. S. Paulo: Abril Cultural,
1984(Coleção: Os economistas, Vol. I)
PERISSINOTO, Renato Monseff; FUKS, Mario. Recursos, decisão e poder:
conselhos gestores de políticas públicas em Curitiba. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Vol. 21, nº. 60, pp 67-82, Fev. 2006
PERISSINOTTO, Renato Monseff; CODATO, Adriano.Apresentação: por
um retorno à Sociologia das Elites. Revista de Sociologia e Política. v.16,
n.30, pp. 7-15, 2008.
SOUZA, Márcio Ivan Lopes Ponte de. Formação e Renovação dos Governos
do Pará: elite governamental e grupos políticos (1983-2006). Dissertação
de Ciência Política, Universidade Federal do Pará, 2012.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.

103
UM RELÂMPAGO NA NOITE: SOBRE A FIGURA DO MONSTRO E
A NOÇÃO DE TRANSGRESSÃO96 97

Heraldo de Cristo Miranda97 98

INTRODUCAO
Diante do tema referido, um questionamento preliminar poderia
ser feito: Como a figura do Monstro nos permitiria uma aproximação a
noção de transgressão? Meu empreendimento de reflexão aqui terá como
derradeiro objetivo exatamente tentar alinhavar alguns apontamentos em
torno desta questão primeira. Destarte, utilizo-me daquilo que chamarei
de algumas rápidas proposições reflexivas tiradas em sua maioria do filosofo
Michel Foucault: 1. Sobre a noção de experiência-limite 2. Sobre o Monstro
enquanto descontinuidade.Portanto, minha hipótese é que a discussão
acerca do tema do Monstro permite ultrapassar uma ideia de Transgressão
enquanto passagem do lícito para o ilícito, do legal para o ilegal.

1 SOBRE A EXPERIÊNCIA-LIMITE
O ambiente intelectual francês nas décadas de 1940 e 1950 – o qual
Foucault foi formado – se compõe com a notoriedade de autores como
Hegel, Heidegger, Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Althusser; portanto,
existencialismo, marxismo, fenomenologia são os traços mais fortes que
desenham a cena do pensamento filosófico. Todo esse contexto demonstra
um afastamento de Foucault em relação ao existencialismo, à fenomenologia,
ao próprio marxismo, mas, ao mesmo tempo, demarca uma aproximação a
outras tradições filosóficas. Dirá Foucault em uma entrevista no final da
década de 1970: “Fui aluno de Althusser, e na época as principais correntes
filosóficas na França eram o marxismo, o hegelianismo e a fenomenologia.
Eu os estudei, com certeza, mas o que me deu, pela primeira vez, o desejo
de concluir um trabalho pessoal foi a leitura de Nietzsche” (FOUCAULT,
2001, p.1348)98. Esse afastamento, por exemplo, em relação à fenomenologia
99

e consequente aproximação em relação a Nietzsche, dar-se-á também pelo


96 Texto base para a aula inaugural Curso de Aperfeiçoamento em Educação em Direitos Humanos
do IFPA, Campus Belém, realizada no dia 13 de dezembro de 2014.
97 Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (2000), Mestrado em
Sociologia pela Universidade Federal do Pará(2003) e Doutorado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Pará (2012). Realizou Estágio na École des Hautes Étudesen Sciences
Sociales (EHESS), em Paris, no período de outubro de 2010 à setembro de 2011. Atualmente,
exerce o cargo de Professor de Ciências Sociais, em regime de dedicação exclusiva, junto ao
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), Campus Belém. Áreas de
interesse: Teoria Antropológica; Filosofia Contemporânea.

98 FOUCAULT, Michel. Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins In  :Dits et
Écrits I – 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001, p.1348. Todas as traduções de textos de
Foucault são de minha autoria.

104
problema da experiência.
A fenomenologia é negada porque não caberia no empreendimento de
Foucault uma ideia de experiência enquanto um olhar reflexivo sobre um
objeto do vivido, tomando as significações do cotidiano a fim de encontrar
um sujeito que seria, em suas funções transcendentais, o fundador dessa
experiência do cotidiano99. Foucault prefere pensar a ideia de experiência
100

como a pensaria o poeta francês Georges Bataille, o filósofo também francês


Maurice Blanchot, o próprio Nietzsche, isto é, como uma experiência limite,
tentando pensar o mais próximo daquilo que seja o não-vivido. Não se quer
mais fundar o sujeito, mas dissolvê-lo.
Dirá Foucault em entrevista na primeira metade da década de 1970:
A fenomenologia procura captar a significação da experiência
cotidiana para encontrar em que o sujeito que eu sou é
efetivamente fundador, em suas funções transcendentais,
dessa experiência e de suas significações. Em contrapartida, a
experiência em Nietzsche, Blanchot, Bataille tem por função
arrancar o sujeito a ele mesmo, fazer de modo que ele não seja
mais ele mesmo ou que ele seja levado a sua aniquilação ou a sua
dissolução. É um empreendimento de dessubjetivação. A ideia
de uma experiência limite, que arranca o sujeito a ele mesmo,
eis o que foi importante para mim na leitura de Nietzsche,
Bataille e Blanchot”. (FOUCAULT, 2001, p.863)100. 101

Como disse, Foucault se aproxima de tradições filosóficas que


executariam uma ruptura naquele horizonte intelectual.
Se em seu Pensée du dehors101, Foucault visualiza, de Sade a Blanchot,
102

um pensamento que se ordena na exterioridade, essa mesma assertiva, por


outro lado, alcança-o: aquela ordenação que ultrapassa os limites enquanto
vértebras as quais sustentam toda uma longa, densa e ao mesmo tempo
tateante arquitetura de reflexão proposta por ele. Aliança não com os muros,
mas com o que lhes ultrapassa, com o transitório.
Esse pensamento que se situa fora de toda subjetividade, para
fazer surgir dela, como do exterior, os limites, enunciando o
fim, para fazer cintilar a dispersão e recolher apenas a invisível
ausência e que, ao mesmo tempo, se situa no limiar de toda
positividade, não tanto para compreender-lhe o fundamento
ou justificá-la, mas para reencontrar o espaço no qual ela se
desdobra, o vazio que lhe serve de lugar, a distância na qual ela
se constitui” (FOUCAULT, 2001, p.549)102. 103

99 Para novas posições acerca deste debate sugiro o belo texto de NALLI, Marcos. Foucault e a
Fenomenologia. Edições Loyola. São Paulo: 2006.
100 FOUCAULT, Michel. Entretien avec Michel Foucault In: Dits et Écrits I – 1976-1988. Paris :
Éditions Gallimard, 2001, p.862.
101 La Pensée du dehors, Crítique, nº 229, junho de 1966, PP. 523-546. In: FOUCAULT, Michel.
Dits et Écrits I - 1954-1975. Éditions Gallimard,2001.
102 FOUCAULT, Michel. La Pensée du dehors Dits et Écrits I - 1954-1975. Éditions Gallimard,
2001, p. 549.

105
Ausência, vazio, distância são as vestes de Foucault no exercício da
sua expérience du dehors, ou seja, em seu empreendimento reflexivo que é
circunscrito pela ideia de expeciência-limite.

2 SOBRE O MONSTRO ENQUANTO DESCONTINUIDADE


Uma tradição de pensamento que também tornou possível um
amadurecimento reflexivo acerca das anormalidades foi aquela representada
pelo filosofo francês Georges Canguilhem, autor do clássico Le Normal et
le Pathologique, publicado, em sua primeira edição, em 1966.Canguilhem,
orientador de Foucault em sua tese sobre a Historia da Loucura, inicia um
debate que será intensificado por Foucault em outros termos, durante Les
Anormaux, curso pronunciado no Collège de France entre janeiro de 1974 e
março de 1975103. Ali, o principal objetivo é analisar e articular os diferentes
104

elementos os quais permitiram na historia do ocidente moderno – e por que


não contemporâneo – a constituição do conceito de anormalidade.
Les Anormaux segue as análises realizadas por Foucault no curso do
ano anterior, dedicado ao poder psiquiátrico. Em Le Pouvoir Psychiatrique104, 105

curso de 1973-1974, no Collège de France, Foucault  analisa o papel da


psiquiatria enquanto uma tecnologia disciplinar que normatiza os corpos
dos indivíduos. Em  Les anormaux  permanece este estudo em torno da
psiquiatria, agora vista como aquela que se relaciona com as diferentes
normatividades sociais por meio da noção de perigo. Eis o surgimento
do individuo perigoso. Foucault oferece uma descrição dos três elementos
que constituiriam a “família” dos anormais no fim do século XIX. Seriam
eles: o monstro, o individuo incorrigível, o onanista. A leitura dessa família
dos anormais - a qual será coberta pela ideia de degeneração pelo saber
medico - será realizada por meio de dois movimentos: o das instituições,
aquelas de controle, produtoras de todo um conjunto de mecanismos,
dispositivos de vigilância, e o dos saberes (a psicopatologia), aqueles da
classificação, da taxonomia moral atribuída aos “anormais”. Aqui, inverterei
premeditadamente a ordem de exposição realizada por Foucault desses
personagens que compõem a chamada família dos anormais:
O Onanista. Trata-se da figura da criança masturbadora. Surge
no século XVIII tendo como pano de fundo, seja no campo dos saberes,
seja no campo das instituições, as novas relações entre a sexualidade e as
organizações familiares, ou mesmo a nova importância dada ao corpo e a
saúde, aparecimento do corpo sexual da criança. Cabe aqui referencia às
análises realizadas por Foucault em Naissance de la Clinique, no qual a
chamada anátomo-clínica, no início do século XIX, seria o grande corte na
história da medicina ocidental, principalmente pela influência da anatomia
103 FOUCAULT, Michel. Les Anormaux. Cours au Collège de France.1974-1975. Paris : Hautes
Études/Gallimard-Seuil, 1999.
104 FOUCAULT, Michel. Le Pouvoir Psychiatrique-Cours au Collège de France.1973-1974. Paris:
Hautes Études/Gallimard-Seuil, 2003.

106
patológica. O espaço corporal será definido não mais pelos órgãos, mas pelos
tecidos. O novo espaço de percepção será objetivamente o corpo do doente,
cujas doenças serão organizadas em classes a partir do tipo do tecido. A
doença não é mais percebida pelo modelo ideal da medicina clássica, mas
agora de maneira corporal, analítica e acima de tudo real, ou seja, perceber
a doença é perceber o corpo105. 106

Ao tratar da figura do onanista, Foucault também discute o


desenvolvimento de um conjunto de técnicas de direção da consciência,
de procedimentos confessionais nascidos na esteira do Concilio de Trento.
Essa obrigação confessional apontara para um policiamento discursivo
do desejo, do corpo sexual. E mais, policiamento que identificara como
fora da normalidade exatamente essa criança que “abusaria” de sua
própria sexualidade, diante da negligencia cometida por seus pais frente a
necessidade de vigilância do corpo e fundamentalmente de seu prazer. A
cruzada contra a masturbação realizada na Inglaterra por volta de 1710, dirá
Foucault, será antes um controle sobre essa anormalidade que não resiste as
tentações de sua própria carne.
O Individuo Incorrigível. Para Foucault, essa anormalidade estaria ligada
ao surgimento e instauração de todo um conjunto de técnicas de disciplina
que ocorrem durante o século XVII e XVIII nas chamadas instituições
disciplinares, escolas, quartéis, conventos, prisões, etc. Trata-se de novos
procedimentos de disciplinamento do comportamento, das aptidões,
enfim, do corpo. A finalidade dessas chamadas instituições disciplinares
será restituir os indivíduos, corrigir, de melhorar, de fazer voltar aos bons
sentimentos. Diante desse cenário se organiza uma outra taxonomia das
anormalidades que conduzira ao aparecimento de instituições de correção.
Dirá Foucault, será o nascimento tecnico-institucional da cegueira, da
surdo-mudez, dos imbecis, dos retardados, nervosos, desequilibrados.
O Monstro. Eis a figura que mais me interessa aqui. Foucault discernira
três aspectos dessa figura: O monstro juridico-biologico, isto é, personagem
construído em torno da lei natural. Figura que subverteria as leis biológicas,
leis da natureza. A imagem do ser meio homem, meio bicho presente na
Idade Média, as individualidades duplas no renascimento, os enunciados
acerca dos hermafroditas no séculos XVII e XVIII apontariam para essa
dupla infração do monstro. A monstruosidade trazia em si um indicio de
criminalidade. A exceção em relação a forma da espécie e em relação as
regularidades jurídicas (casamento, batismo, regras de sucessão). O monstro
moral, ou seja, personagens que trazem em sua criminalidade uma suspeita
de monstruosidade.
Foucault apresenta a figura do monstro político e a aproximação entre
crime e o tirano como ocorrera na Revolução francesa e todas metáforas
relacionadas a Luis XVI. Os monstros fundadores da psiquiatria criminal,
105 FOUCAULT, Michel. Naissance de la Clinique. Paris : PUF, 2009.

107
isto é, trata-se do exame dos casos mais importantes no século XIX. Um
desses casos recebeu o interesse especial de Foucault a ponto de publicar
uma apresentação apenas em torno dele106. Esses casos são cruciais para
107

constituição de todo um enunciado acerca da ingerência, da anormalidade


que a psiquiatria levara adiante. Ora, essa taxonomia teratológica elaborada
no final do século XIX estará diretamente ligada ànoção de perigo que a
psiquiatria (e por que não outros saberes, como a pedagogia) se ocupara
por vigiar , “neutralizar”, “cuidar”, seja da saúde da criança masturbadora,
do perigo de ausência de trabalho do individuo indisciplinado ou mesmo
da loucura criminal do monstro.
Ora, a abordagem foucaultiana considera a importância da
descontinuidade histórica. Fala-se de ruptura, mas não rupturas
epistemológicas. Por exemplo, o processo de dominação da loucura pela
razão descrito em Histoire de la Folie é, mesmo com suas condições de
possibilidades antecedentes, descontínuo. O elemento que compõe o
estatuto epistemológico é negado, ou seja, o progresso da ciência. Em um
texto importante para a elaboração de L’Archéologie du Savoir, intitulado
de Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie (1968),
Foucault dirá “A descontinuidade era esse estigma da dissipação temporal
que o historiador tinha se encarregado de suprimir da história. Ela tornou-
se agora um dos elementos fundamentais da análise histórica” (FOUCAULT,
2001, p.726)107. 108

Foucault não pensará a descontinuidade como o postulado, mas


sim como uma “maneira de fazer” história, no sentido que ele atribui
no prefácio à edição norte-americana de Le Normal et le Pathologique,
de Georges Canguilhem, que “insiste sobre o fato de que o encontro das
descontinuidades não é para ele nem um postulado nem um resultado”, mas
antes uma maneira de fazer” (FOUCAULT, 2001, p. 435, )108. Ora, a figura do
109

monstro circunscreve essa descontinuidade. O monstro questiona as origens


e as identidades por meio de sua natureza híbrida, subversiva, plural. O
monstro, sendo híbrido, é um ser descontinuo e que portanto organiza a
continuidade pois costura os diversos aspectos que constituem o humano.
Ele é uma chave para interpretar o que é múltiplo, diverso, exatamente por
ocupar a fronteira entre o continuo e descontinuo.
A figura do monstro abre uma nova condição de possibilidade para
se refletir acerca da própria identidade, pois cria um cenário que, a partir
de uma trajetória descontinua, constrói uma unidade, uma identidade
movediça, estranha, na zona limítrofe do masculino e do feminino, da
106 Ver a obra coletiva apresentada por FOUCAULT intitulada Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé
ma mère, ma sœur et mon frère..., publicada pela Gallimard, 1977.
107 FOUCAULT, Michel. Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie. In :
Dits et Écrits II- 1954- 1975. Editions Gallimard, 2001, p.726.

108 FOUCAULT, Michel. Introduction par Michel Foucault. In  : Dits et Écrits II- 1976- 1988.
Editions Gallimard, 2001, p.435

108
origem e do futuro, do humano e do divino, do animal e do homem, do
individual e do coletivo, da criança e do adulto, do permitido e do interdito.
Canguilhem em sua obra La Connaissance de la Vie (1952), no capitulo
que trata acerca das monstruosidades, dirá: “A vida é formação de formas,
enquanto o conhecimento é a analise dos materiais disformes”.
Dito de outra maneira, a figura do monstro coloca em questão
a vida quanto ao poder que ela tem de nos ensinar sobre a ordem. Se o
louco nos revela acerca da razão, o monstro nos ensina sobre as pretensas
normalidades. As experiências-limite nos permitem colocar em questão as
identidades. Dirá Foucault acerca disso: “Pois essa identidade, bem fraca,
no entanto, que tentamos assegurar e juntar debaixo de uma máscara é ela
mesma apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis disputam
entre si”109. Máscara, paródia, etc. A identidade aqui não trata da procura
110

da “origem” dos traços identitários de um grupo, mas antes, persevera-


se pela dissolução da noção de identidade. Diz Foucault: “A história,
genealogicamente dirigida, não tem, por fim, reencontrar as raízes de nossa
identidade, mas se obstinar, ao contrário, a dissipá-la; ela não empreende
encontrar a morada única de onde nós viemos. Essa primeira parte para a
qual, os metafísicos nos prometem, faremos retorno; ela empreende fazer
aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam”110. 111

CONSIDERACOES FINAIS: “UM RELÂMPAGO NA NOITE”


Destarte, a ideia de experiência-limite e a figura do Monstro permitem
colocar em questão, em suspeita uma ideia transgressão presente, por
exemplo, nas analises realizadas pela chamada Escola de Chicago. Entre
os seus vários autores, o tema da transgressão foi sempre recorrente
principalmente associado à noção de desvio. Por um lado, concentraram
suas reflexões em torno do desvio enquanto transgressão da norma, por
outro - autores como Erving Goffman e Howard Becker- consagraram seus
estudos ao reconhecimento e qualificação do desvio por uma instancia de
controle social, mostrando que um desvio reconhecido como tal supõe um
processo de estigmatização111. Portanto, em Goffman, por exemplo, a ideia
112

de transgressão é explicada – numa clara passagem do lícito para o ilícito –


como o individuo desviante o qual ultrapassa uma norma.
Vale acentuar aqui um distanciamento de Goffman em relação a
Foucault quanto à ideia de desvio bem como a ideia de instituição. Para
Goffman, a prisão, o asilo, os internatos se distinguem claramente de outras
instituições sociais ou mesmo do restante da sociedade. Já para Foucault
109 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: Dits et Écrits I- 1954- 1975. Editions
Gallimard, 2001, p. 1022
110 Idem, p.1022.
111 GOFFMAN,Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de
Janeiro, LTC, 1988.

109
são os traços comuns em relação ao conjunto das instituições sociais que
interessam, ou seja, o sequestro do tempo, a tomada dos corpos, a relação
entre forma salário e forma salário do trabalho. As pessoas estabelecem
inúmeros laços com varias instituições e é exatamente isso o que interessa
a Foucault, ou seja, o que lhe importa é a multiplicidade das instituições
e o poder disciplinar o qual emerge delas. Esse poder não é um traço
comum apenas das instituições totais112. Foucault se distancia desta ideia
113

de transgressão acentuada por Goffman e os autores de uma sociologia do


Desvio.
Em seu Préface à la transgression - a conhecida homenagem a Georges
Bataille realizada pela Revista Critique em 1963 -Foucault tenta qualificar
os valores da transgressão por meio da metáfora do l’éclair dans la nuit, do
relâmpago na noite. A transgressão em sua relação com o limite não são
meros opostos. Segundo Foucault, “A transgressão leva o limite ate ao limite
do seu ser; ela o conduz a despertar-se acerca de seu desaparecimento
112 “Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e
trabalhar em diferentes lugares, com diferentes co-participantes, sob diferentes autoridades e sem
um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito com a ruptura
das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida (...). Todos os aspectos da vida são
realizados no mesmo local e sob uma única autoridade” (GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões
e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2008.p17)). Apesar de algumas tentativas de aproximação entre
Foucault e Goffman ( Como por exemplo, a tentativa em aproximá-los por meio da idéia de uma
sociedade moderna que se caracteriza pelos espaços dos enclausuramentos, bem como pelos seus
modos de exclusão. A sociedade moderna seria, para os dois, diriam alguns de seus intérpretes,
cada vez mais disciplinada, tendo as prisões como um prolongamento do que existe nos lugares
mais comuns), jamais Foucault pretendeu realizar uma espécie de história das prisões ou dos
asilos, ou mesmo um impulso em direção a uma análise das prisões enquanto uma instituição
total. A distância entre ambos é singularmente significativa. Em inúmeros momentos ratifica-se
isso na fala do próprio Foucault. Em entrevista com M. Dillon, em 1979, Foucault, ao responder
sobre os autores que também se preocupam com o problema da manipulação do indivíduo pelo
Estado e por outras instituições nos Estados Unidos, determina com clareza o seu distanciamento
em relação à Goffman: “Os problemas que trato em meus livros não são novos. Eu não os inventei.
Uma coisa me impressionou nas resenhas que foram feitas de meus livros nos Estados Unidos,
em particular no que se escreveu sobre o livro que consagrei às prisões. Diz-se que eu tentava
fazer a mesma coisa que Erving Goffman em sua obra sobre os asilos (...). Não procuro fazer a
mesma coisa que Goffman. Ele se interessa pelo funcionamento de um certo tipo de instituição:
a instituição total – asilo, escola, prisão. De minha parte, tento mostrar e analisar a relação que
existe entre um conjunto de técnicas de poder e de formas políticas como o Estado” (FOUCAULT,
Michel. Foucault étudie la raison d’État. In: Dits et Écrits II- 1976- 1988. Editions Gallimard, 2001,
p. 804). Esse distanciamento já fora apontado anos antes, no curso do Collège de France, 1973-
1974, Le Pouvoir Psychiatrique. Na aula do dia 7 de novembro de 1973, primeira daquele curso,
Foucault, afirmando que o poder não pertence nem a alguém nem mesmo a um grupo, pois apenas
existiria poder porque há uma dispersão, uma rede, um sistema de diferenças que torna possível o
funcionamento desse poder, tenta se afastar dos psicossociólogos da época que vêem o asilo como
uma instituição senão edificada por regras, uma instituição total entendida em si mesma, na qual
o corpo do médico, por exemplo, não teria uma atenção maior do ponto de vista da inscrição e da
engrenagem que movimentaria esse poder. Dirá o próprio Foucault: “E essa presença física, com
aquelas qualidades, que funciona como a cláusula da dissimetria absoluta na ordem regular do
asilo. É essa presença que faz com que o asilo não seja, como nos diriam os psicossociólogos, uma
instituição funcionando segundo regras; é um campo, na realidade, polarizado por uma dissimetria
essencial do poder, que toma, então, sua forma, seu rosto, sua inscrição física no corpo mesmo do
médico”( FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique-Cours au Collège de France.1973-1974.
Paris : Hautes Études/Gallimard-Seuil, 2003, p.6)

110
eminente, a se reencontrar naquilo que ela exclui (mais exatamente talvez a
se reconhecer pela primeira vez), a experimentar sua verdade no movimento
de sua perda (…). A transgressão não está, então, frente ao limite como
o preto e o branco, o proibido e o permitido, o exterior e o interior, o
excluído e o espaço protegido da casa. Ela é antes (…) alguma coisa como o
relâmpago na noite, que do fundo do tempo, dá um ser denso e preto ao que
ela nega, a ilumina do interior e do fundo ao topo; deve-lhe, no entanto, sua
luz brilhante, sua singularidade dolorosa e vertical; perde-se nesse espaço
sobre o qual assinala sua soberania e se cala enfim tendo dado um nome
ao obscuro”113. Se para uma sociologia do desvio, às feições de Goffman, o
114

monstro seria antes aquele que transgride uma norma, uma lei biológica
ou jurídica, para Foucault o monstro organiza a identidade. Não aquela
entendida como entidade fixa, não aquela essencialista, aquela estável, e
sim aquela descontinuidade. Portanto, a figura do monstro nos oferece uma
crítica dos dispositivos que explicam o processo pelo qual a sociedade exclui
uma parte da população. O monstro, da mesma forma que a transgressão,
conduz a despertar-se acerca de seu próprio limite, a se reencontrar com
aquilo que o exclui, a colocar em suspeita as normalidades, a se reencontrar
com o que não se é, a pulverizar os desvios e aquela passagem do legal ao
ilegal, do interdito ao permitido, como um subversivo relâmpago na noite.

REFERÊNCIAS
CANGUILHEM, Georges La Connaissance de la Vie.Paris: Vrin, 1993.
FOUCAULT, Michel. Une interview de Michel Foucault par Stephen
Riggins In :Dits et Écrits I – 1976-1988. Paris: Éditions Gallimard, 2001.
________________. Entretien avec Michel Foucault In: Dits et Écrits I –
1976-1988. Paris : Éditions Gallimard, 2001.
________________. La Pensée du dehors Dits et Écrits I - 1954-1975.
Éditions Gallimard, 2001.
________________. Les Anormaux. Cours au Collège de France.1974-1975.
Paris : Hautes Études/Gallimard-Seuil, 1999.
_______________. Le Pouvoir Psychiatrique-Cours au Collège de
France.1973-1974. Paris : Hautes Études/Gallimard-Seuil, 2003.
_________________. Naissance de la Clinique. Paris : PUF, 2009.
_________________. Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle
d’épistémologie. In : Dits et Écrits II- 1954- 1975. Editions Gallimard, 2001.

113 FOUCAULT,Michel.  Préface à la transgression. in  Dits et Écrits I - 1954-1975. Éditions


Gallimard,2001.

111
_______________. Introduction par Michel Foucault. In : Dits et Écrits II-
1976- 1988. Editions Gallimard, 2001.
__________________. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: Dits et Écrits
I- 1954- 1975. Editions Gallimard, 2001, p. 1022
__________________. Préface à la transgression. in Dits et Écrits I - 1954-
1975. Éditions Gallimard,2001.
GOFFMAN,Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade
Deteriorada. Rio de Janeiro, LTC, 1988.

112
PARTE III - MITOS, RITOS E
SIMBOLOS NA AMAZÔNIA

113
UM ESTUDO DE CASO SOBRE “CATOLICISMOS” NA AMAZÔNIA

Robson Wander Costa Lopes114 115

INTRODUÇÃO
O interesse por esta pesquisa surgiu da necessidade em compreender
uma diversidade religiosa que aos olhos do senso comum não se manifesta
tão prontamente. Eis a formulação da problemática: a noção de catolicismo
é estruturalmente unívoca? Como resposta provisória, proponho a seguinte
hipótese: Gurupá, uma sociedade de colonização seiscentista, de cultura
tradicional, apresenta uma diversidade de catolicismos, de modo particular
no que se refere ao “catolicismo popular”, o que contradiz a pretensa unidade
e universalidade da noção em questão.
Assim, o objetivo é aprofundar a análise epistemológica, portanto,
conceitual sobre a noção de “catolicismo” em sua compreensão de unidade e
universalidade. Não se trata de descrever a função ou a estrutura das práticas
religiosas para elaborar uma teoria, mas colocar em discussão a construção
de tipologias diversas no processo histórico no interior da Amazônia. Não
proponho uma definição e sim um debate.
Metodologicamente fiz a revisão da bibliografia sobre a história
do catolicismo em Gurupá, a pesquisa documental e o tratamento dos
dados coletados em entrevistas temáticas seguindo os procedimentos
metodológicos da história oral (DELGADO, 2006), bem como o uso de
recortes etnográficos e a observação participante em várias oportunidades
de visita ao campo da pesquisa.
O presente trabalho está organizado em três seções: a primeira seção
põe em debate as noções de “catolicismo” e “catolicismo popular” buscando
delinear a estrutura epistemológica desses conceitos bem como a estrutura
metodológica do trabalho. A segunda seção situa a pesquisa no espaço
favorecendo a localização onde será estudado o catolicismo. A terceira
seção faz a abordagem histórica das instituições católicas em Gurupá e suas
114 Filósofo e Cientista da Religião. Mestre em Ciências da Religião (PPGCR-UEPA). Pós-
Graduado (especialização) em Ciências da Religião (IESPES) Licenciado Pleno em Filosofia (FPA/
IPAR) e Licenciado Pleno em Ciências da Religião (UVA/IPAR). Professor de Ensino Básico,
Técnico e Tecnológico, área de FILOSOFIA, do Instituto Federal do Pará (IFPA). Membro do
Grupo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa em Cultura, Educação e Política (GICEP-IFPA),
atuando na linha de pesquisa Mito, Símbolos e Religião na Amazônia; e do Grupo de Pesquisa
Movimentos Sociais, Educação e Cidadania na Amazônia (GMSECA/CCSE/UEPA). Experiência
em docência na Educação Superior (Graduação e Pós-Graduação) e na Educação Básica (Ensino
Religioso, Filosofia e Sociologia). Experiência na Coordenação de Projeto de Pesquisa em Filosofia
e Religião, na Coordenação Pedagógica Escolar, na Formação de professores e na formação de
lideranças do movimento social. Trabalhou como agente de pastoral na formação e assessoramento
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na região do Xingu (Altamira-PA) e na zona isográfica
do Marajó (Gurupá-PA).

114
tipologias. As Considerações Finais retomam a problemática e a hipótese
colocando em debate as compreensões acerca dos catolicismos identificados
na pesquisa.

1 “CATOLICISMO POPULAR” E O DEBATE EPISTÊMICO-


METODOLÓGICO
A compreensão de “tipos” ou sua derivação, “tipologia (s)”, neste
trabalho, parte do conceito postulado por Max Weber, enquanto recurso
metodológico, que ao orientar-se pelos fins, possibilita compreender o
“sentido” e verificar a “imputação causal dos desvios às irracionalidades
que os condicionam” (WEBER, 2012, p. 05). O intento será o de deixar de
lado “os conceitos vagos e gerais [...] e tentar penetrar nas características
peculiares e nas diferenças entre esses [...] mundos do pensamento religioso
que existiram historicamente [...]” (Idem, 2004, p. 44). Portanto, a tipologia
é a verificação de um “tipo ideal” que se constitui de uma
individualidade histórica [...] um complexo de elementos
associados na realidade histórica que nós aglutinamos em um
todo conceitual, do ponto de vista de seu significado cultural
(WEBER, 2004, p. 45)

A intenção do teórico acima na construção do “tipo ideal” é a evidência


das ações sociais sob uma forma que faça sentido. Entretanto, como diz o
mesmo autor: “não se trata, de modo algum, de um sentido objetivamente
‘correto’ ou de um sentido ‘verdadeiro’ obtido por indagação metafísica”
(WEBER, 2012, p. 4). Portanto, os tipos ideais são “modelos elaborados
para a pesquisa e que não existem em seu estado puro na realidade”
(WILLAIME, 2012, p, 53). “São apenas um recurso metodológico, com
valor exclusivamente instrumental” (MARIZ, 2011, p. 78). É o esforço da
racionalidade para compreender as ações que em suas complexidades nos
parecem irracionais.
Nesse sentido, Lemos Filho (2000) propõe em sua obra “Os catolicismos
brasileiros” uma metodologia de análise que possibilita duas maneiras de
compreender as tipologias diversas no interior do catolicismo: uma é a via
histórica de análise e a outra a institucional. Não obstante, o autor tem por
objetivo “buscar uma explicação na organização e nos conflitos ideológicos,
tanto no processo histórico da formação do catolicismo no Brasil como
na sua realidade atual” (Idem ibidem, p. 10) demonstrando a sua grande
diversidade.
Todavia, neste trabalho, de maneira introdutória, busco por uma
síntese sistemática proposta por Berger (1985) que compreende a dialética
entre as grandes linhas teóricas de Weber e Durkheim, sendo que para o
autor em questão é importante destacar que

115
Weber tem uma compreensão da realidade social como
sendo continuamente constituída por significação humana, e
Durkheim a considera como tendo o caráter de choseité contra
o indivíduo; ambas estão corretas (BERGER, 1985, p. 16).

Assim, para a verificação da diversidade do catolicismo, a partir de


um estudo de caso, tanto em sua compreensão diacrônica, percebidas
pela história da Igreja115 em Gurupá, quanto em sua acepção sincrônica
116

atualizada através das reminiscências registradas nos discursos e nas práticas


religiosas do sujeito da pesquisa, entendo que a dialética entre a história e
as instituições eclesiais é o que produz sua tipologia, e, em última instância
o seu “sentido”. E dentre as várias tipologias já identificadas em diversos
estudos sobre o catolicismo, uma tipologia, em especial, suscita a discussão
sobre a sua unidade e sua universalidade: a noção de “catolicismo popular”.
O “catolicismo popular” é uma categoria de análise consagrada em
teologia e em ciências sociais. Há, de modo geral, uma abordagem acadêmica
sobre esse conceito no Brasil feita por estudiosos vinculados à própria Igreja.
Essas abordagens embasam uma visão bastante teológica, com finalidades
pastorais, litúrgicas e demais temas do interesse da instituição eclesiástica.
Várias noções surgiram no intento de corresponder às finalidades pastorais,
como por exemplo: “religião do povo” e “religiosidade popular”116. 117

É possível classificar outros autores que tematizaram a noção de


“catolicismo popular” refletindo sobre suas implicações categóricas e
epistemológicas. A teologia, a partir desses autores, vê-se obrigada a lançar
mão com mais rigor de outras ciências, especialmente da história, da
sociologia e da antropologia cujos enfoques são mais acadêmicos e menos
eclesiásticos e pastorais117. 118

Contudo, a compreensão epistemológica de “catolicismo popular”


tanto no primeiro grupo quanto no segundo grupo de autores, ambos
acima indicados, tende a justificar uma militância protecional dos cientistas
sociais frente a seu objeto de pesquisa, os mais pobres e oprimidos. E, por
outro lado, justifica a pertença do pesquisador em seu próprio campo
religioso, mantendo um desnível entre uma tipologia não oficial e outra
115 O termo “Igreja”, com inicial maiúscula, doravante referir-se-á à Igreja Católica Apostólica
Romana, portanto assume igualmente o significado de Catolicismo Romano ou Catolicismo
Oficial.
116 Dentre essas obras cito os seguintes autores: B. Beni dos Santos e Roberto M. Roxo (1978);
Segundo Galileia (1978); Giorgio Paleari (1991); e vários autores da obra intitulada Religiosidade
popular e misticismo no Brasil (1984); esses autores focam suas reflexões na preocupação
estritamente pastoral e visivelmente tutelada por uma teologia pós-conciliar (Concílio Vaticano
II, 1962-1965) que busca corresponder aos novos anseios da Igreja diante do desafio de acolher a
religiosidade conservada pelas classes populares no Brasil.
117 Dentre outros, vale citar: João Alfredo Montenegro (1972); Leonardo Boff (1976); Riolando
Azzi (1978); Pedro A. Ribeiro de Oliveira et al.(1978); Eduardo Hoornaert (1978); e Maria Valéria
Rezende (1987).

116
tipologia oficial de referência, o que favorece as pretensões de unidade e
universalidade.
Outros estudiosos, nos mais diversos campos das ciências sociais se
debruçaram sobre o catolicismo abrangendo uma vasta área temática.118 119

Todavia, a compreensão de “catolicismo popular” pressupõe uma referência


à tradição católica, ainda que estejamos falando de diversas tipologias.
Nesse sentido, é importante abordar mais especificamente algumas dessas
compreensões tipológicas, cuja reflexão nos ajudará no intento deste
trabalho119. 120

Por um lado, o “catolicismo popular” pode ser entendido como


um campo que está mais para os “não especialistas do sagrado”
independentemente de sua classe social, pois são as práticas religiosas que
definem essa noção. Neste caso, o “catolicismo popular” define-se como
sendo um
[...] conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas
como católicas, de que partilham, sobretudo os não-
especialistas do sagrado, quer pertençam às classes subalternas
ou às classes dominantes. [...]. (MAUÉS, 1999, p. 171, grifo
meu).

Por outro lado, é importante também notar que além de um conjunto


de crenças e práticas que se dizem católicas, o alcance do que se entende por
“catolicismo popular” ultrapassa as fronteiras da instituição e vai além do
aspecto doutrinário da Igreja. Assim,
Quando nos referimos ao catolicismo, estamos na verdade nos
remetendo a um intricado sistema de práticas, significados,
rituais e personagens que transitam por este universo religioso
e que ultrapassam as fronteiras institucionais da Igreja e
ortodoxia católicas. (STEIL, 2001, p. 10, grifo meu).

Se para o primeiro autor o “catolicismo popular” se caracteriza por


uma “tensão constitutiva” interna do campo católico independentemente
das classes sociais que o compõem (MAUÉS, 1995, p.15), para o segundo,
por sua vez, essa noção caracteriza-se como um trânsito o qual permeia as
práticas de outros campos da religiosidade ainda que não sejam estritamente
118 Dentre outros é importante destacar alguns autores reunidos no Grupo de Estudos do
Catolicismo do ISER, na edição de 1992 sob a coordenação de Pierre Sanchis (1992). São eles:
Carlos Rodrigues Brandão, Nair Costa Muls, Telma de Souza Birchal, Matias Martinho Lenz,
Patrícia Birman, Raymundo Heraldo Maués e Ralph Della Cava.
119 Poder-se-ia, ainda, delinear várias outras tipologia do “catolicismo” e diferentes noções de
“catolicismo popular”, como por exemplo: a noção de “ambivalência”, adaptação e protesto em Meslin
(1992, p. 243); a noção de “resistência” em Rosendahl (1996, p. 73); a noção de “ambiguidades” em
Macedo (1986). Enfim, como já demonstrara Lemos Filho (2000) há uma grande diversidade de
“catolicismos”.

117
católicos, embora, as análises de modo geral tendem a classificar tais práticas
numa relação de marginalidade e de subalternidade com a tradição ortodoxa
da Igreja (STEIL, op. cit.).
Numa outra perspectiva de análise, mas ainda no horizonte do
reconhecimento da Igreja ao pertencimento do que seja “catolicismo
popular”, vale elucidar que essa noção
inclui também uma aceitação – embora nem sempre passiva –
dos ditames da hierarquia eclesiástica, o sincretismo católico
é capaz de se manifestar nas mais diversas culturas e etnias,
nas mais diversas classes e camadas sociais, incorporando
elementos os mais variados, mas sempre permanecendo
católico. (MAUÉS, 1992, p. 200, grifo meu)

O autor acima, inspirando-se nos trabalhos de Boff (1977,1982),


Cintra (1977) e Fernandes (1982), destaca a tipologia da “universalidade”
ou a “globalidade” do catolicismo que, a despeito das tensões internas como
algo constitutivo, preserva “um núcleo essencial da fé” ou uma “identidade
católica”. É preciso, porém, que se questione o entendimento epistemológico
a esse respeito, pois ao tratar-se de sincretismo a noção de “identidade” não
parece mais sustentar-se como uma noção unívoca, uma vez que a própria
catolicidade incorporou diversos elementos de culturas e religiões pagãs
como propõe Eliade (1979, p. 128) que ao comparar os diversos símbolos da
fecundidade, em diversas culturas, verifica que as “conchas que simbolizam
a ressurreição, por exemplo, em muitos monumentos funerários romanos
passaram para a arte cristã”. Portanto, as fronteiras conceituais de uma
“identidade” religiosa, nesse sentido, há de se considerar a noção de conceito
em Deleuze e Guatarri (2000) ao sustentarem que não havendo conceito
simples resta a multiplicidade para a elaboração do conceito, embora nem
toda multiplicidade seja conceitual.

2 UM PORTO PARA O CATOLICISMO NA AMAZÔNIA PARAENSE


Gurupá, enquanto jurisdição eclesiástica da Igreja Católica, pertence
à circunscrição da Prelazia do Xingu. Essa jurisdição foi criada em 1934
através da Bula papal Animarum bonum postulat, de Pio XI (AAS, 1935). A
Prelazia do Xingu está localizada na Província Eclesiástica de Belém-PA e
compõe o Regional Norte 2 da CNBB (Pará e Amapá), com sede na cidade
de Altamira-PA (CERIS, 2010). A paróquia de Santo Antônio de Gurupá
foi fundada em 1693. A partir de 1831 passou a fazer parte da Diocese de
Santa Maria de Belém do Grão Pará (LEITE, 1943), atualmente fazendo
parte da Prelazia do Xingu. Gurupá está localizada na região das ilhas
do Marajó, à margem direita do Rio Amazonas, e apresenta as seguintes
características populacionais: população urbana: 9.580, população rural:

118
19.482, totalizando uma população residente de 29.062. A cidade situa-se
a 500 km de Belém, a capital do Estado do Pará. Com relação ao aspecto
religioso, de acordo com o censo demográfico a população residente
apresenta os seguintes dados resumidamente: Católicos Romanos: 23.247,
Católicos Brasileiros: 950, Evangélicos: 3.527, Testemunhas de Jeová: 288,
e Sem Religião: 1.051(IBGE, 2010). Portanto, a população do município
de Gurupá é predominantemente católico-romana, o que justifica uma
cultura sedimentada pelo processo histórico desde a colonização ibérica na
Amazônia no século XVII.

3 OS CATOLICISMOS EM GURUPÁ: UMA TRAJETÓRIA DE


TIPOLOGIAS

Catolicismo ibérico militarizado (1616-1655)


A colonização ibérica na Amazônia no século XVII inicia-se e
desenvolve o catolicismo lusitano como um fato que se prolonga através dos
séculos posteriores até os dias de hoje, ainda que suas tipologias tenham se
tornando diversas e muitas vezes conflitivas (AZEVEDO, 1999). No começo
da colonização amazônica, no século XVII, têm-se registros da presença
dos padres da Companhia de Jesus (Jesuítas) na Capitania de Gurupá com
a seguinte classificação histórica: “[...] a administração das Aldeias da
Amazônia iniciada em 1655, interrompida em 1661, e retomada em 1680,
permaneceu inalterável daí em diante” (LEITE, 1943, p. 133).
O catolicismo colonial, marcado pelos elementos medievais, guerreiro,
leigo e patriarcal, sustentava-se na existência de irmandades fomentadas
pelas tradições das congregações religiosas vindas, exclusivamente de
Portugal, que, através de suas organizações, foram dando forma às diversas
folias e expressões religiosas, como maneiras de homenagear o santo
padroeiro. (HOORNAERTE, 1978). Ainda hoje, na festa de São Benedito
de Gurupá, os foliões são denominados com título de oficiais, vestem-se
como tal, usam uma opa vermelha como os militares das ordens imperiais
medievais e obedecem a uma hierarquia claramente definida: mantenedor,
sargento, alferes, mestre sala, tamboreiros, etc.

Catolicismo leigo tradicional (1754-1932)


Com a expulsão dos religiosos da Amazônia, por parte da Coroa
Portuguesa representada por Marquês de Pombal, através de uma lei
decretada no ano de 1759 (MOREIRA NETO, 1992)120, a presença de clérigos
121

120 Trata-se da Lei de 03 de setembro de 1759 de D. José I, durante o governo do secretário de


Estado Sebastião José Carvalho e Melo que aboliu o Regime de Missões e expulsou os jesuítas,
somando-se também a este ato oficial, a saída dos frades franciscanos da Piedade e da Conceição e
os Mercedários, subsistindo apenas os Carmelitas e franciscanos de Santo Antônio, entre as antigas
ordens missionárias o que dizimou a presença de clérigos, especialmente nas localidades mais

119
em Gurupá, assim como em toda região Amazônica e em toda a Colônia,
foi bastante enfraquecida, quase nula, durante muitos anos, restando os
leigos como os únicos responsáveis pela manutenção de sua religião através
das irmandades religiosas tradicionais. Nas reminiscências do sujeito
da pesquisa permanecem os registros de que a ausência de clérigos não
significou uma negação da moralidade e da catolicidade entre os devotos:

Do que eu lembro [...] aprendendo com os antigos, eu lembro


que o respeito era mais, aí tinha muito cuidado, tinha muito
zelo pela irmandade e também na hora do serviço da folia a
gente [...] não se via ninguém assim, de short [...] tinha que vir
tudo bem preparado [...] e sobre o respeito, sobre a alimentação
também dos foliões existia muito cuidado [...] (Mestre Amaro,
Folião de São Benedito de Gurupá).

Assim, mesmo com a ausência de clérigos os gurupaenses não


deixaram de celebrar suas festas religiosas, cultuar seus santos e manter
um catolicismo leigo baseado nas devoções populares, como ainda hoje
é possível constatar na existência de diversas irmandades religiosas leigas
que tiveram origens no período colonial e organizadas pelos padres jesuítas
lusitanos. Nesse sentido, corrobora com o argumento o depoimento abaixo:

No Gurupamiri tinha duas festas muito importante; tinha uma


lá em cima que era a de São João, e tinha aí em baixo que era a
de Nossa Senhora de Nazaré e [...] não lembro bem os outros,
mas tinha outras orações [...] Na Ribeira também [...] Lá na
Ribeira tinha [...] a Santíssima Trindade, num povoado, no
outro era Santa Apolônia, tinha esses dois tipos de festejos [...]
[No] Jocojó tinha Santíssima Trindade. Na Ribeira era Divino
Espírito Santo, no Jocojó era Santíssima Trindade que tinha.
[...] Tinha uma diferença [...] entre as músicas dos chamados
foliões, né, que pras outras irmandades [...] até hoje tem, [o]
gambá, tudo isso tinha [...] Já [...] da Santíssima Trindade e
do Divino Espírito Santo eles tinham um negócio diferente,
um negócio de um bumbozinho que ia batendo, aquela coisa
toda... é a caixa, né, aí tinha isso. Toda essa diferença tinha
entre um tipo de irmandade e outra [...] As Irmandades era que
administrava tudinho aquela direção ali, aquele culto, aquelas
coisas ali [...]. (Alferes, liderança veterana das CEBs).

Dessa maneira, um tipo de catolicismo marcado pelas tradições ibéricas


de devoção aos santos organizava a comunidade dos ribeirinhos a partir das
irmandades religiosas que assumiam um calendário anual de promover as
festas de seus padroeiros. O clérigo não tinha nenhuma intervenção direta
nessas organizações, pelo contrário, todas as lideranças, administrativas
distantes. Veja também Azevedo (1999) e Leite (1943).

120
e do culto, eram leigas sem instituições ou instruções oficiais da Igreja. A
tradição religiosa e cultural do povo de Gurupá tem sua forma católica
trazida pelos colonizadores ibéricos desde o século XVII. Nesse sentido,
Galvão (1976, p. 3) afirma que “o caboclo de [Gurupá], como da Amazônia
em geral, é católico”.

Catolicismo romanizado (1880 -1970)


Segundo Mata (1992) e também Maués (1999) no fim do século
XIX e princípio do século XX começou uma reforma promovida pela
Igreja na região. Foi desenvolvido um processo de reestruturação: novas
circunscrições eclesiásticas foram criadas, novas congregações de religiosos
chegaram da Europa para trabalhar em diversos setores da pastoral, como,
saúde, educação, missão indígena, paróquias, etc. Mata (1992, p. 344),
ao falar deste período de “reforma da Igreja na Amazônia”, sugere que as
“dificuldades financeiras” do clero regional foram uma das principais
causas da reforma, especialmente no que se refere à importação de novas
congregações religiosas do centro europeu para a Amazônia. A congregação
dos padres Missionários do Preciosíssimo Sangue chegou à região do Xingu
em 1929 (Idem Ibidem) e a partir de 1931 seus padres começaram a fazer
“desobrigas” em Gurupá. O primeiro registro dessa presença é do padre
Marcos Schawalder, em 1931, e depois do padre Clemente Geiger, em 1932121 122

Estas novas congregações de clérigos trouxeram consigo seus santos e


os colocaram ao lado, quando não, no lugar, dos santos tradicionais trazidos
a partir do século XVII pelos ibéricos colonizadores, agora pertencentes às
famílias e às irmandades. Com a chegada de novos santos, foram criadas novas
associações e novas irmandades nas paróquias sob o controle do vigário. Na
igreja Matriz de Gurupá tem um altar lateral dedicado ao Sagrado Coração
de Jesus que serviu para a devoção do grupo do Apostolado de Oração
criado pelo então vigário Cristóvão Mühlbauer (1950). Além desta imagem
o templo tem vitrais com santos e símbolos difundidos nesse período: São
Gaspar Del Búfalo, Santa Maria Goretti, São José Operário, o Cálice com o
Sangue de Cristo, Papa Pio X, São João Maria Vianey e um vitral que ostenta
o brasão do Congresso Eucarístico de Manaus, realizado em 1952.
Beozo (1981) e Maués (1999) veem nesta importação de religiosos com
seus santos e com a criação de novas irmandades e confrarias, uma estratégia
da Igreja, uma ação de controle clerical sobre o laicato e o clero regional.
Para Mata (1992) houve uma “rápida assimilação” por parte dos católicos,
o que caracterizou o “enraizamento” do processo de romanização na região
amazônica. Mas Oliveira (1976 p. 140) prefere denominar esta “assimilação”
de “catolicismo privatizado”, isto é, “um processo de reapropiação (sic), por
121 Mühlbauer (1950) ao documentar o Livro de Tomo da Paróquia de Gurupá informado que
“no ano de 1932 Gurupá foi entregue para cura das almas aos Revºs (sic) Padres da Congregação
do Preciosíssimo Sangue”.

121
parte dos leigos, das devoções romanizadas [...] estabelecendo relações
diretas e pessoais com os santos”. O que parecia uma atitude de obediência
torna-se uma forma de rebeldia diante da tentativa de controle religioso do
clero.

Catolicismo libertador das Comunidades Eclesiais de Base-CEBs (a


partir de 1970)
As transformações e as mudanças sociais que ocorreram em Gurupá
a partir da década de 1970 não podem ser compreendidas sem que se
verifiquem as interlocuções entre religião e política, através das CEBs
organizadas por leigos atuantes nas pastorais. Assim,

[...] a ação das CEBs em Gurupá é de suma importância para


entender a relação que os moradores passaram a ter com a
religião católica a partir da década de 1970. Não apenas
uma relação religiosa, mas uma visão politizada do mundo
se instalou nessa comunidade, tal visão se traduziu em
organizações de sindicatos, formação de comunidades que
deram voz e vez ‘à gente de terceira’. (PANTOJA, 2011, p 125).

Com o reconhecimento da organização das CEBs, em 1975


(PARÓQUIA, 1975), a Igreja abriu espaço para um novo modo de relações
baseado na união entre o povo e na confiança deste nas suas lideranças,
que contribuiu para superar a velha relação de dominação patrão/freguês,
padrinho/afilhado. Um dos cantos de domínio público, dentre tantos outros,
entoados naquela época e ainda hoje pelo povo das CEBs traz o seguinte
verso: “Eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece
acreditar no menor.” A letra do canto expressa o nível de confiança entre
os trabalhadores e suas lideranças. Dessa maneira, os mutirões para limpar
e plantar roças, construir casas de vizinhos, adquirir embarcações, etc.; as
cantinas e revendas de remédios, combustível e estivas em geral foram se
constituindo em formas concretas de resistência ao sistema econômico
comercial vigente. A lógica das relações sócio-políticas passou por um
processo de reestruturação com as práticas sociais que adquiriram novo
sentido. Por exemplo, os antigos “convidados” de trocas de dias de trabalho,
a partir da organização da CEB, foram transformados em “mutirões”
entendidos como doação e solidariedade.

Catolicismo sedimentado por reminiscências afro-indígenas


É preciso, porém, ressaltar que ao lado desses elementos da
influência ibero-medieval católica, lusitana ou romana, a cultura local traz
consigo outros elementos fortemente marcados que vão além dos limites do

122
catolicismo e revelam em profundidade traços históricos das culturas afro-
ameríndias, sendo que a matriz indígena é mais explícita que a africana.
Assim,
O caboclo de Itá [Gurupá], como da Amazônia em geral,
é católico. Não obstante, sua concepção do universo está
impregnada de ideias e crenças que derivam do ancestral
ameríndio. Essa maneira de ver o mundo não representa o
simples produto da amalgamação de duas tradições, a ibérica e
a do indígena. Essas duas fontes supriram o material básico de
que envolveu a forma contemporânea da religião do caboclo
amazônico. (Galvão, 1976, p. 3).

Nesse sentido, não me refiro apenas às formas exteriores, como por


exemplo: os instrumentos da folia, a dança do gambá, as “simpatias” contra
mau-olhado (quebrantos e panemas); mas e, sobretudo, “às crenças arraigadas
na mente do caboclo [...] igualmente ativas e capazes de despertar atitudes
emocionais e místicas na mesma intensidade que o corpo de catolicismo”,
ou seja, as imagens dos “santos e os bichos visagentos” (Galvão, 1976, p.
64)122.
123

Do mesmo modo, os foliões de São Benedito que também oficiam nas


irmandades das comunidades rurais, quando executam algumas cantigas,
cantam frases que para os próprios mestres-salas (cantores-chefes das folias)
são indecifráveis. Assim registramos a seguinte frase que compõe a cantiga
de agradecimento da mesa: “Ajuê, ajuê ticumbê, ajuê, ajuê, ticumbê, congo
real num é conumbê” (LOPES, [2002], faixa 6). Esse tipo de memória sugere
uma reminiscência, quiçá africana, corroborando com várias pesquisas que
estudam a presença do negro africano na Amazônia123. 124

Portanto, a pajelança e as reminiscências africanas não constituem, por


definição, um tipo de catolicismo, mas o compõem, em vários momentos
históricos, em várias instituições, e em diversas tipologias do “catolicismo
popular”, apresentando-se como um elemento importante na construção
do “sistema simbólico”124 da estrutura religiosa e cultural da sociedade
125

estudada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Gurupá, onde o porto é a porta da cidade, verifica-se um espaço
cultural sedimentado pela história de colonização tradicional que acomodou,
122 Sobre o tema da “pajelança cabocla” e sua relação com o catolicismo na região do Salgado
paraense confira Maués (1992).
123 Há vários autores que estudaram sobre a presença do negro na Amazônia e no Pará, dentre
os quais destaco os seguintes: Vicente Salles (1988 e 2004), Aldrin Figueiredo (1994) e Anaíza
Vergolino (2005).
124 A noção de “sistema de símbolos” está baseada nos estudos de Geertz (1989).

123
a partir do século XVII, diversos catolicismos: o ibérico militarizado, o
leigo tradicional, o romanizado e o libertador. No bojo e na atuação dessas
tipologias, especialmente com a presença jesuítica no período colonial e
posteriormente com a chegada das congregações religiosas, no período da
“romanização”, foram duas as fontes culturais de pretensões universais: a
lusitana, de 1616-1754, e a romana, de 1880-1970; evidentemente que tais
modelos eclesiológicos marcaram a religião local e permanecem perceptíveis
na memória e nas práticas dos católicos contemporâneos, como foi possível
verificar pelo registro etnográfico e pelo discurso dos sujeitos.
As tipologias as quais denomino de “ibérico militarizado” e a “leigo
tradicional” atuaram igualmente na história local e continuam visíveis nas
instituições e nas práticas religiosas. Tais tipologias são identificadas pela
suntuosidade das Irmandades religiosas leigas em suas festividades e folias
e, principalmente, pela intensa prática da devoção aos santos atualmente.
A tipologia denominada “catolicismo libertador...” precisaria ser
verificada com mais profundidade, uma vez que ainda grande parte da
população gurupaense se identifica como “povo das CEBs” e embora
tenha sido fruto de um movimento iniciado em Roma, na década de 1960,
esse tipo de catolicismo recebeu muitas contribuições culturais latino-
americanas e, diferente das outras tipologias, assumiu com mais facilidades
as manifestações culturais onde se estruturou.
Todavia, em linhas gerais, mesmo que bastante diferentes entre si,
esses catolicismos possuem algo em comum: a característica de “catolicismo
popular”, pois o principal agente em confronto ou em conformidade com a
estrutura da hierarquia eclesiástica foi o leigo. Muitas podem ser as variáveis
históricas e sociais na caracterização dessa tipologia, mas a distância dos
clérigos e até mesmo a sua total ausência possibilitou aos leigos reformularem
e criarem suas próprias tipologias de catolicismos ao longo da história cujos
sinais permanecem ainda hoje.
Uma dessas características é a prática da devoção aos santos que,
independentemente da tipologia, associa-se ao fenômeno da pajelança,
entendida como um sistema de crenças, de cura e de cosmovisões. São as
devoções aos santos que, de forma mais veemente, expressam a cultura e a
religião dessa sociedade, a despeito dos modelos eclesiológicos implantados
pelas autoridades oficiais da Igreja, romana ou lusitana.
Com base nas constatações realizadas neste trabalho posso afirmar
que há um contrassenso no que se refere ao horizonte unívoco de
pertencimento, por parte do “catolicismo popular”, à tradição católica
universal. As Irmandades leigas, por exemplo, historicamente constituídas
por afrodescendentes e nativos ameríndios, institucionalizaram sua
experiência religiosa e elaboraram, com base em suas formas simbólicas,
seu próprio sistema simbólico sem a presença dos clérigos, graças ao longo

124
período pós-pombalino em que leigos assumiram o catolicismo como
uma religião autônoma e independente da hierarquia eclesiástica. Não se
trata apenas de “privatização”, “assimilação”, ou “enraizamento” diante das
“estratégias da Igreja”. Essas compreensões fazem do catolicismo popular e
suas tipologias uma instância subalterna ao oficial. Não. Mais que isso, trata-
se de construções, de criações de novas estruturas e novas tipologias. São
novos catolicismos que surgem com base em velhos modelos eclesiológicos.
E numa relação dialética coexistem entre si.
Se pela análise histórica há uma pluralidade de tipologias, também
pela análise antropológica verifica-se nas próprias instituições religiosas
contemporâneas tal pluralidade que, dialeticamente, interagem e compõe a
noção de “catolicismo popular”. Isso me permite entender que os sistemas
simbólicos, ou seja, os catolicismos, oficial e o popular com suas tipologias,
intercruzam-se e interagem em suas representações distintas, e cada um
desses sistemas mantem sua diferenciação justamente por terem unidade
e desestabilidade simbólicas, simultaneamente, entre si, a partir de suas
experiências religiosas que justifiquem o seu próprio sistema.
Se há uma interconexão, ainda que seja um interstício de instabilidade
simbólica, entre os mais variados aspectos da realidade social, então posso
afirmar que tais representações religiosas constituem sistemas simbólicos
distintos que, embora estejam em constante relação, não estão em desníveis
hierárquicos em sua tipologia e em sua epistemologia. Portanto, Gurupá,
uma sociedade de colonização seiscentista, de cultura tradicional, apresenta
uma diversificação de tipos de catolicismos e nos assegura pôr em questão a
noção de uma tipologia que se pretende una e constitutivamente universal.

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129
IRMANDADES DE COR NO GRÃO PARÁ: AFRICANOS, PARDOS
E MESTIÇOS NO GRÃO-PARÁ (ÚLTIMO QUARTO DO SÉCULO
XVIII ATÉ A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX)
Diego Pereira Santos125 126

1. A Historiografia sobre o tema Irmandades de cor – Apontamentos


Sempre que se pretende fazer uma análise e inquirir as irmandades
religiosas, algumas obras se tornam imediatamente referenciais e
comportam diferentes vieses analíticos. Pode-se identificar apesar da
regionalização dos temas a Minas Gerais tentativas “globalizantes” de
explicação das irmandades. A obra de Julita Scarano126, apesar de analisar
127

apenas uma fraternidade consegue dimensionar a dinâmica interna e a


situação geral dos sodalícios mineiros. Sua análise ganha vida à medida
que permite invocar e retornar a ela pela sua amplitude, relegando a ideia
de uma percepção inesgotável do tema. Todavia, pode-se identificar o seu
não entendimento das irmandades sob um direcionamento político, nesse
sentido, privilegiando uma apreciação de cunho assistencialista127. 128

Procurando dar um sentido de sociabilidade ao tema, seguindo uma


linha de história social, tem-se a possibilidade de analisar a obra de Caio
Boschi128. Construída dez anos depois da obra de Scarano, ela deixa de
129

lado o caráter assistencial das irmandades, contudo continua contribuindo


para alguns antagonismos prementes na nossa historiografia relativas ao
lugar do negro na sociedade escravista. É assim que ao nos falar sobre os
negros nas irmandades, em concordância com Scarano, Boschi concretiza,
“únicas instituições nas quais os homens de cor podiam exercer, dentro da
legalidade, certas atividades que pairavam acima de sua condição... onde,
esquecida a sua situação de escravo, poderia viver como um ser humano”129. 130

Aparenta no livro e especialmente neste excerto uma percepção que se


enquadra na ideia do escravo realizando movimento pendular – oscilatório
– da sua condição, ora se comportando como “coisa”, mas quando dentro

125 Graduado e licenciado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2010), mestre
em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2013). Membro do
grupo de pesquisa História da Amazônia Colonial. Atualmente tem dedicado pesquisa sobre o
tráfico interno de escravos das capitanias e províncias brasílicas após a criação da Companhia
Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão e da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco
e da Paraíba, destacadamente no último quartel do século XVIII até 1850.

126 SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo, Editora Nacional, 1976.
127 O nosso entendimento sobre as irmandades nos permite entendê-las para além do seu viés
assistencialista, ou seja, a garantia do enterro e de ritos fúnebres “dignos”. Compreendemos que,
além disso, tais associações são também reflexos do contexto aos quais estão inseridas, e mais,
profundamente embebidas em relações de conflito e negociações.
128 BOSCHI, Caio. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas
Gerais. São Paulo, Editora Ática, 1986.
129 Id., Ibid.p. 14.

130
da ‘instituição’ (irmandade) seria ‘esquecida’ sua condição, comportando
a ideia, agora, de ‘ser humano’. Esquece-se, igualmente, nesta obra, que as
irmandades eram compostas e dirigidas também por libertos, sendo os
negros escravos privilegiados no seu estudo. Além disso, Boschi na época
que escreveu o livro chegou a mencionar que os estudos sobre negros nas
irmandades coloniais estariam relegados ao campo das “raras exceções”130. 131

Apesar de terem seus trabalhos hoje muito criticados, eles – Scarano e


Boschi – são responsáveis pela abertura das possibilidades de pesquisa para
o tema, fatos que por si já são de grande valia para a nossa historiografia.
Os trabalhos indicados devem ser considerados a partir do tempo em que
foram escritos em uma clara referência a máxima “A história é filha do
seu tempo”, sendo a produção historiográfica de uma determinada época
também parte da compreensão da história e das relações sociais de um
determinado período.
Faz-se importante observar a dificuldade de mencionarmos todos - ou
pelo menos a maioria - dos trabalhos produzidos sobre Irmandades após
Caio Boschi e Julita Scarano, em um trabalho monográfico. Entretanto,
analisaremos algumas pesquisas coetâneas sobre o tema.
Contemporaneamente o trabalho que mais chamou a atenção, entre
outros, para o tema das irmandades negras no âmago das irmandades
religiosas foi o trabalho de Lucilene Reginaldo131, pela profundidade com
132

que a autora consegue perceber a escravidão negra nessas associações


para além do contexto nacional e até certo ponto regional (Bahia), mas
conseguindo concatenar “África” e “Portugal” nas suas discussões, o que
confere um caráter particular ao seu texto.
Localmente destacamos como pioneiros, ao falar das Irmandades
religiosas, os livros de Vicente Salles “O Negro no Pará sob o regime da
escravidão”132 e “O Negro na Formação da Sociedade Paraense”133, em
133 134

particular. No primeiro, Salles ao falar sobre as Irmandades fomenta as


discussões a partir da criação entre a população de um “espírito associativo”.
A discussão, mesmo que secundária no livro sobre “Irmandades” denota o
caráter assistencialista das mesmas.
Trabalhos regionais coevos sobre o tema no Pará foram de forma
direta ou indireta vinculados a Aldrin Moura de Figueiredo. Tomemos
como exemplo dois de seus trabalhos: Os Reis da Mina: a irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Pará, do século XVIII ao XIX134 135

130 BOSCHI. Op, cit. pp.07. A despeito dessa afirmação Boschi não faz menção a 4 indicações
feitas na obra de Scarano.
131 REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades Negras, experiências Escravas e
Identidades Africanas na Bahia Setecentista. Tese para a obtenção do título de doutor em História.
Campinas, Unicamp, 2005.
132 SALLES,Vicente. O Negro no Pará sob o regime da escravidão, Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas/ Universidade do Pará, 1971 Brasília: Ministério da Educação; Belém.
133_______, O Negro na Formação da Sociedade Paraense, Paka-Tatu, Belém, 2004
134 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de “Os Reis da Mina: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos no Pará, do século XVIII ao XIX”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, N.S., 9
(1): 103-121.

131
e Escravos e senhores nas Irmandades religiosas na Amazônia do século
XIX135. No primeiro artigo, Figueiredo procurou percorrer o cotidiano e as
136

vivências dos escravos tendo como ponto de partida a Irmandade de Nossa


Senhora do Rosário, tomando esta como o centro da discussão. A partir da
Irmandade dos negros ele pretendeu reconstruir em alguns pontos as formas
associativas e os laços de solidariedade dos mesmos no Pará. Já no outro, o
autor procurou analisar essas corporações, de um modo geral, desenhando
sua estrutura organizacional, não obstante à maneira de as irmandades se
inscreverem no rol de sociabilidades na colônia, bem como as disputas
entre elas, tendo como palco precípuo as Igrejas. O autor ainda remontou,
neste último, aspectos do ritualismo, morte e suas procissões. O trabalho
com o cotidiano e as vivências desses escravos passa a ser o grande mérito
dos trabalhos de Aldrin Figueiredo. Além da abertura para o tema no Pará.
O último trabalho de teor monográfico de relevo sobre irmandades
paraenses é de Márcio Couto Henrique136. Este procurou fazer um
137

apanhado do século XIX e os embates entre o “processo de Romanização”


e as irmandades religiosas até então estabelecidas. Com essa intenção, o
autor reconstrói a experiência desses escravos com a clara finalidade de
entendê-los como sujeitos históricos. Henrique corrobora seu trabalho com
uma gama documental consistente procurando preencher as lacunas de
uma documentação esparsa. Para tal se debruça sobre relatos de viajantes e
jornais, além de fontes especificas das Irmandades, como compromissos e
autos de prestação de contas.
As discussões não se esgotam no contexto amazônico visto que muito
fora produzido em palestras e outros trabalhos de cunho acadêmico sob o
tema das irmandades no âmbito internacional. Os trabalhos de europeus
sobre o tema têm possibilitado arguições e inquietações novas à realidade
local, como pensar as devoções (especialmente negras) não apenas enquanto
produto da realidade colonial, mas também como parte integrante das
devoções cujas formações remetem à península ibérica, além de pensá-las
como extrato da religiosidade a qual atravessa o atlântico e se dissemina
entre as populações do “Novo Mundo” possibilitando o entendimento
das suas dinâmicas e “usos”. A origem ibérica das Irmandades à que nos
referimos, esteve precocemente ligada à Espanha, chegando a se instalarem
durante o século XIV. Segundo Ortiz de Zuniga, as confrarias de escravos em
Sevilha remetem ao reino de Henri III (1390)137. Oportunamente podemos
138

135______. “Escravos e Senhores nas Irmandades religiosas na Amazônia do século XIX”.


Amazônia IPAR, 5 (AGOSTO/DEZEMBRO 2001), pp. 28-50.
136 HENRIQUE, Márcio Couto. (1997). O Senhor do céu não é o senhor da terra: a experiência
religiosa dos escravos nas irmandades paraenses, 1839-1889. Monografia de conclusão do curso de
História, Belém, CFCH-UFPa.
137 Ortiz de Zuniga, Anales eclesiástico y seculares de Sevilla. 1471, Lib. XII, in Fernando Ortiz
Fernandez, “Los cabildos afrocubanos”, Revista bimestre Cubana, 16 1921, p. 12; Tardieu, Idem,
p. 552 Apud LAHON, Didier. Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l’Ancien Regime
(1441-1830). These pour l’obtention du grade de Docteur de L’ ehess. Paris, Ecole Dês Hautes
Etudes En Sciences Sociales, 2001.

132
assinalar também os trabalhos de Didier Lahon138 e Bernard Vincent. O 139

primeiro procurou elucidar discussões sobre confrarias negras em Portugal


chegando a tecer comparações com suas congêneres brasileiras. O segundo
tem se dedicado à reconstrução da história de São Benedito e a origem e
disseminação desta devoção.
2. As rotas da escravidão e a Amazônia Oitocentista
2.1. Escravidão negra, tráfico e mestiçagem.
A “lógica diferenciada” da Amazônia no seu processo de ocupação
e a mão de obra predominante indígena, muitas vezes negou à região
uma contribuição dos negros africanos desembarcados, como se além de
terem chegado em menor número, pouco ligados estiveram ao processo
colonizador na Amazônia, na maioria das vezes analisado como vinculado
determinantemente ao extrativismo vegetal. Este estereótipo esteve ligado
ao que José Maia Neto chamou de uma “leitura empobrecida”, a qual não
dá conta da totalidade ou pelo menos da maior parte das experiências
construídas pelos negros no Grão Pará e nem do projeto colonizador
pensado para a Amazônia139. Para Vergolino e Figueiredo este olhar esteve
140

ligado também a se tentar explicar a Amazônia a partir do modelo da


plantation escravista do nordeste durante o século XVII140. 141

Em outra perspectiva – ligada ao comércio de escravos negros para a


região amazônica – Rafael Chambouleyron afirma que o tráfico de negros
escravos para a Amazônia durante o século XVII e início do XVIII se
organizou a partir de pressupostos diferentes do tráfico brasileiro141. Segundo 142

Chambouleyron, dois eixos caracterizaram os diversos empreendimentos


para o envio de africanos à Amazônia:
a Coroa teve um papel crucial para definir, estabelecer e
organizar as rotas do tráfico. Por outro lado, o tráfico negreiro
para a região amazônica [...] efetivou-se em vez do atlântico sul,
deveríamos falar antes do atlântico equatorial. A ligação central
aqui se fazia entre o Estado do Maranhão, a Guiné e a Mina142. 143

138 LAHON, Didier. Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l’Ancien Regime (1441-
1830). These pour l’obtention du grade de Docteur de L’ ehess. Paris, Ecole Dês Hautes Etudes
En Sciences Sociales, 2001.eLAHON, Didier, «Le berger, le cuisinier, la princesse et l’empereur
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libertà tra Medioevo ed età moderna nel Mediterraneo, (a cura di Giovanna Fiume), INCONTRI
MEDITERRANEI. NUMERO MONOGRAFICO - XVII - 1/2008, pp. 170-192.
139 BEZERRANETO, José Maia. Escravidão negra na Amazônia. (Secs. XVII-XIX). Belém: Paka-
Tatu, 2001, pp. 17.
140 VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na
Amazônia colonial. Uma notícia histórica. Belém: APEP, 1990, pp.27-28.
141 O “brasileiro” ora em destaque, identifica o tráfico no “Estado do Brasil”, em contraposição ao
Estado do Maranhão, já que neste momento os Estados se encontram divididos, esta divisão se dá
em 1621.
142 CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o Estado
do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista brasileira de História. São
Paulo, v. 26, n° 52, pp. 97 – 2006.

133
Mencione-se que outras pesquisas têm demonstrado à dinâmica no
que se referem as “nações” africanas. Assim, ainda que consideremos a
existência do tráfico entre a Guiné e a Costa da Mina nesse período, antes
é necessário problematizar o que seria a “Mina”, bem como o significado
da expressão “Guiné”, denominações estas que incorporavam também o
olhar das autoridades coloniais no continente africano143 (analisaremos 144

este aspecto mais detidamente no segundo capítulo). O que de certa forma,


alerta Chambouleyron, a respeito das “denominações” – “Guiné” e “Mina”
– aparecendo estas indicando provavelmente uma área mais ampla da costa
da Senegâmbia ao golfo da Guiné144. 145

Apesar das tentativas de aproximação aos números relativos ao


tráfico de escravos para a Amazônia, qualquer dos dados apresentados,
aqui ou em outras análises, não passam de aproximações, até porque as
fontes apresentam-se de forma fragmentada e dispersa. Consideremos,
todavia, para além do tráfico via estanco ou estanque, ou seja, a partir
das Companhias de Comércio, iniciativas particulares sobre o comércio
negreiro para a Amazônia145. 146

Nesse sentido, análises de dados isolados sobre o tráfico têm


demonstrado que de 1693-1846, praticamente 67,1 % dos registros de
embarque/desembarque se referem à região da Senegâmbia, por outro lado,
os dados relativos à África Centro Ocidental, aparecem como segunda
maior porcentagem, com a estatística de 22,3% segundo os mesmos dados.
Compartimentando os registros entre os anos 1693 e 1799 estes
correspondem a 335 registros, destes aproximadamente 80 %, ou seja, 267
indicam entre os lugares de embarque a região da Senegâmbia, lembrando
que em sua acepção histórica esta área corresponde aos atuais países de
Senegal, Gâmbia, Guiné, até a costa sul de Serra Leoa. O segundo maior
percentual (11%) corresponde à África Centro Ocidental, dessa maneira,
bem abaixo se compararmos aos primeiros. Esta última região fazia parte
do que hoje são Estados do Congo e Angola. Em ordem decrescente
encontramos os embarcados de outras partes da África constando 3,8 % (13
registros).
Ainda na segunda metade do século XVIII um ofício do governador
e capitão general do Estado do Maranhão e Pará para Mendonça Furtado,
ora capitão geral, deixa entender o estado como os escravos chegaram à
capitania, não obstante a própria qualificação ou desqualificação dos
mesmos. Fala-se em relação ao “miserável estado” em que chegavam estes
escravos, sobre os motivos deste, destacam-se: primeiro, embarcarem em
angola já doentes com febres e bexigas; lotação do navio e em terceiro lugar
143 No que se refere às denominações internas e externas, bem como a dinâmica das mesmas, ver:
PARÉS, Luis Nicolau. A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. 2ª Ed.
Ver. – Campinas. Editora da Unicamp, 2007.
144 CHAMBOULEYRON, Idem, Ibidem.
145 Site: www.slaveryvoyage.org (base de dados para o Comércio Transatlântico de Escravos).

134
a maior parte dos negros serem Moxicongos, segundo o ofício, “de ínfima
reputação, por serem sumariamente mortais, e todos tão moles, que pessoa
nenhuma se resolve pelo Brasil a comprá-los a menos de ser preços mais
módicos”146. 147

Já na primeira metade do século XIX, entre 1800-1846, do total de 203


notificações, aproximadamente 46,5 % do total desses dados pertenciam
a Senegâmbia. Comparativamente a estatística acima, percebemos que
há, então, uma diminuição do número de desembarcados da dita região,
entretanto, há um crescimento no número de embarcados da África Centro
Ocidental, passando estes a representar 40,3 % dos desembarcados. Anaíza
Vergolino, não obstante, já havia suposto esta mudança de ‘rota’ em relação
ao tráfico ao sugerir que entre 1753–1775 havia a predominância de cativos
de Bissau e Cacheu e posteriormente percebendo um decréscimo destes
africanos entre 1775-1795 a despeito dos de Angola e Moçambique a partir
de 1795147. 148

Outro aspecto que chama a atenção nos dados arrolados é que eles têm
como última data em relação ao tráfico o ano de 1846, dados até certo ponto
tardios se compararmos aos de Bezerra Neto que citando Salles afirma que
o tráfico transatlântico entre o Grão Pará e as praças africanas encerraria
por volta de 1834. Apesar da diferença de 12 anos concordamos com José
Maia Neto no sentido da percepção de um processo de miscigenação da
população, já que os dados parecem seguir uma mesma direção indicando
as primeiras levas de negros africanos ainda no século XVII, referência
partilhada por outros autores como Arthur César Ferreira Reis.
Em relação ao início de um processo de miscigenação da população
negra no Grão Pará, José Bezerra Neto assegura,
as primeiras gerações de cativos crioulos na região Amazônica
devem ter começado a aparecer com maior destaque as últimas
décadas do século XVIII (...) Não é à toa, portanto, que somente
à medida em que se adentrava o século XIX houvesse uma
diminuição cada vez maior dos contingentes africanos e negros
no interior da população escrava148. 149

Mas e a religiosidade leiga? Para além das irmandades negras às


quais se voltará mais tarde, percebe-se que a criação de irmandades de cor,
não negras, como as de pardos e índios foram marcantes na religiosidade
amazônica oitocentista.

146 Arquivo Histórico Ultramarino – “Projeto Resgate” – Caixa 45, número 4105; 1759 Agosto, 6,
Pará. Ofício do [governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará], Manuel Bernardo
de Melo e Castro para o [capitão general] Francisco de Xavier de Mendonça Furtado, sobre o
número de escravos pretos que chegaram a capitania e o preço pelo qual foram vendidos.
147 VERGOLINO-HENRY et FIGUEIREDO. Op. Cit., pp. 50.
148 Op. Cit., pp. 44-45.

135
Até a presente data, o único local em que fora encontrada uma
irmandade exclusivamente de índios fora a confraria do Glorioso São João
Batista da povoação do Vimioso, nas proximidades de Bragança.Aldrin
Figueiredo e Marcio Henrique lançaram o compromisso da irmandade supra
citada nos seguintes termos, no capítulo 1: dos irmãos e suas qualidades,
diz-se que a irmandade seria composta por índios de ambos os sexos, não
havia a proibição em relação à entrada de outras pessoas, e só sim que elas
sirvam os empregos de secretário e tesoureiro, na falta dos irmãos que
saibam ler e escrever149. Portanto, somente nesses dois “empregos” os não
150

índios poderiam compor a irmandade; sendo assim, os principais cargos


estariam nas mãos dos indígenas. Este aspecto, prática comum também nas
irmandades de negros, fica evidente também nesta “irmandade de índios”
onde há a aceitação de outras pessoas, em especial brancas, em alguns cargos
da mesa diretora.
A justificativa para este aceite pode ser um indicativo: primeiro que os
irmãos negros e índios, em alguns casos, não sabiam ler nem escrever (como
dito no próprio compromisso da Irmandade do Vimioso); em segundo lugar,
evitar roubos ou furtos, por isso na maioria das vezes se pede que o irmão
tesoureiro e o juiz sejam pessoas “abonadas”. E finalmente e, não obstante,
a segunda hipótese, sendo alguém de “posses”, pudesse garantir o brilho e a
pompa com que se faziam as festas anuais dos santos patronos.
Todavia, sugerir que houvesse uma unidade entre as diversas
irmandades étnicas seria supor que brancos, negros, pardos e índios
vivessem uma “união”, que a partir dos seus “compromissos” não se deixa
perceber. Deve-se entender que, principalmente entre as fraternidades de
pardos e negros, parece haver uma tensão iminente, como o caso de algumas
irmandades de pardos que não aceitam negros como irmãos. Essa percepção
não é uma característica que particularize o Pará já que em outras regiões
do país fora comum essa distância dentro das instituições de cor. Segundo
Maria Aparecida Quintão, citando um trecho da representação dos vigários
das igrejas coladas de Minas Gerais:
As Irmandades dos pretos e pardos são as mais arrogantes,
soberbas e descomedidas, já porque muitos dos pardos são
abundantes e dotados de préstimos com que adquirem a
benevolência e proteção de pessoas poderosas, já porque
muitos dos pretos tem a proteção e assistência de seus senhores
que fazem timbre e ponto de honra de sustentar e defender as
pretensões das irmandades em que os seus escravos são irmãos,
de sorte que estes indivíduos destituídos por sua condição de
figurarem ou terem autoridade alguma, se consideram em uma
grande figura quando se alinham...150 151

149 HENRIQUE, Márcio Couto; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os devotos do Vimioso: uma
confraria de índios no Pará do século XIX. Cadernos de História Social (Campinas), Campinas, V.
N° 5, pp. 71-77, 1997.
150 QUINTÃO, Maria Aparecida. O significado das irmandades de pretos e pardos: O papel das
mulheres. Disponível em <www. desafio.ufba.br/gt4-015.html>. Acesso em 07 junho 2010.

136
A visão que se tem do processo de mestiçagem da população
Amazônica, neste período, não pode estar dissociada do olhar dos viajantes
sobre a mesma. Parece-nos óbvio que estes também trouxessem à tona suas
experiências que de certa maneira incorporavam a presença do ‘mestiço’
através da percepção da população. Em Belém no alvorecer do século XIX,
viajantes das mais variadas nacionalidades “passaram” por Belém e deixaram
suas impressões daquela população.
2.2. Os viajantes e naturalistas na Belém no século XIX:
A Belém da primeira metade do século XIX é caracterizada, segundo
Antonio Rocha Penteado, pelo chamado “aterro do Piri”. Este passou a
dividir os bairros da Cidade e da Campina. Aires de Casal, ainda, em 1817,
considerou Belém uma “cidade episcopal, medíocre, d’aspecto alegre,
populosa e comerciante, ornada com muitas capelas e praças, um convento
de Capuchinhos, outro dos Carmelitas calçados; Casa de Misericórdia e um
Hospital”151. O viajante também observou que a cidade estava dividida em
152

duas paróquias, a da Catedral (Santa Maria da Graça) e a de Santa Ana; que


seus habitantes não se destacavam pelo número de negros.152 153

Pouco tempo depois, por volta de 1820, Spix e Martius, caracterizaram


a população de Belém “como a de um aglomerado urbano, onde havia
inúmeras pessoas da “alta burguesia de sangue europeu”153, mas, segundo 154

eles, poucos eram os mulatos e negros, o que segundo os autores se deve à


orientação do tráfico para outras regiões do Brasil.
Comentando estas citações do início dos oitocentos, podemos entender
a não percepção de negros e mulatos, no caso de Aires de Casal, talvez em
decorrência do processo de miscigenação em curso. Enquanto a consideração
do tráfico orientado para outras regiões, segundo Spix e Marthius, sabemos
que não deixou de existir, pelo menos não neste momento.
A Cabanagem (1835-40), importante “Revolução social” que abalou
profundamente a Belém do século XIX, segundo Antonio Penteado, não
chegou a abalar a evolução urbana da capital do Pará154. Daniel P. Kidder que
155

visitou Belém neste período percebeu “que a mistura racial entre brancos
e índios tinha gerado um grande número de mestiços, que ocupavam
qualquer posição social: o comércio, as artes manuais, a marinha, a milícia,
o sacerdócio e o eito155. 156

151 CASAL, Aires de. Corografia Brasilica, pp. 297 apud PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do
Pará: Estudo de Geografia Urbana. Universidade Federal do Pará, 1968, pp. 110.
152 Idem, Ibidem.
153 SPIX, J. B. & MARTHIUS, C. F. Viagem pelo Brasil, Vol. II, pp. 332 apud PENTEADO, Antonio
Rocha. Belém do Pará: Estudo de Geografia Urbana. Universidade Federal do Pará, 1968, pp. 116.
154 PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do Pará: Estudo de Geografia Urbana. Universidade
Federal do Pará, 1968, pp. 120.
155 KIDDER, Daniel P. Reminiscência de Viagens e Permanência no Brasil, p. 169.

137
Esta visão, ainda que desconsidere o negro enquanto parte da
“mistura”, intencionalmente ou não, elucida a própria inserção do mestiço
na sociedade, ocupando diferentes ocupações, o que demonstra certa
diferença com as “pessoas de sangue europeu” do início do século percebido
por Spix e Marthius. É claro que as experiências desses viajantes na cidade
do Pará não se constroem no mesmo espaço, o que quer dizer que eles não
vão vivenciar os mesmos ambientes, sendo este o cuidado necessário diante
das suas “impressões”. Spix e Marthius, por exemplo, ficaram em sua estadia
na cidade do Pará, no que a época se chamavam “rocinhas”, áreas distantes
do centro comercial da cidade que começava a se expandir.
Também no segundo quartel da primeira metade do século XIX,
Wallace ao se deparar com a população de Belém, apresenta uma curiosa
mistura de raças: “o português trigueiro, os brasileiros corpulentos, os
sorridentes negros, os índios indolentes...” e “entre estes, umas cem sombras
e misturas, que exigem vista esperta para as diferenciar”156. 157

Os ex escravos, seus descendentes, partes integrantes do processo


de “mestiçagem”, estiveram em Belém, na maioria dos casos, ligados à
criação e reprodução das irmandades leigas, especialmente as negras. Nesse
sentido, faz-se necessária uma reflexão sobre o tráfico de escravos para a
Amazônia e o possível aumento do número de irmandades de cor enquanto
consequência das rotas de embarque-desembarque entre as praças africanas
e a Amazônia.
O estudo do africano da diáspora, daqueles que foram arrancados
à força da suaterra e trazidos para a América Portuguesa, revela-nos a
maneira como se inseriram na sociedadebrasileira e o produto, a síntese
desse encontro, quenão é homogêneo, nem uniforme, mas marcado por
inúmeras tensões e contradições.
Tentando nos aproximar das irmandades e seus ritos, particularmente
como os irmãos de cor legavam os seus bens e demonstravam a sua
religiosidade a partir dos santos de devoção, resolvemos percorrer os
registros de testamento, já que entre o segundo quartel do século XVIII e
início do século XIX a religião está impregnada de fervor devocional. Neles
encontramos as filiações e a preferência por determinado tipo de devoção,
o que de certa forma, nos possibilitou fazer um “perfil” entre os libertos,
os pardos (praticamente não aparecem, ou não se designam enquanto tais)
e os brancos. Também a partir dessas fontes foi possível destacar o papel
das imagens no “processo de catequese” das populações do “Novo Mundo”
e possíveis aproximações e afastamentos em relação às hagiografias.
Entendendo-se por afastamento, as diferenças entre as hagiografias e as
representações imagéticas. É dentro deste enfoque que nos debruçamos sob
tais registros reconhecendo-os também enquanto elementos fundamentais
no entendimento das irmandades.
156 WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e rio Negro, p. 9.

138
2.3. Entre os “Irmãos libertos”:
Em 1812, o testador Francisco Dias de Brito natural da cidade do Pará
e filho legítimo de Bernardo Dias de Brito e de Antonia Maria foi casado
com a preta liberta Rita Maria de Santa Anna. Declarou que era irmão da
Irmandade de Santa Efigênia e em cuja capela queria ser sepultado. Quando
casou com a dita sua mulher ela já possuía um escravo por nome Geraldo
Pedro, crioulo oficial de pedreiro. Revelou ainda que Francisco Antonio,
oficial de sapateiro era seu devedor, assim como o preto Domingos, escravo
do senhor Eugenio Pantoja de dois machados, um baú de pau amarelo e
outros objetos157. Apesar da proximidade do testador com negros (como
158

consta do próprio testamento), não fica claro no registro se ele mesmo era
negro ou não.
Note-se, contudo, que alguns aspectos chamam atenção: de um lado o
testador diz ter sido casado com uma preta liberta o que provavelmente se
deu a partir de uma relação amorosa, todavia, não podemos desconsiderar
que, especialmente as escravas, viam no casamento uma possibilidade
de conseguir a sua liberdade, vendo o próprio casamento enquanto uma
abertura para alcançar esta. Fica difícil precisarmos se ela conseguiu a
liberdade antes ou depois do casamento, apesar de já possuir um escravo
antes mesmo do enlace matrimonial, o que com a sua renda poderia ter
servido para a compra da liberdade.
Por outro lado, o testador declara pertencer a Irmandade de Santa
Efigênia, uma confraria que em Belém e na maior parte do Brasil fora uma
devoção em que podemos encontrar uma predominância de negros escravos
e libertos. Isso nos faz refletir: quais seriam os motivos que fizeram com
que aquele “filho legítimo” se dissesse naquele momento irmão da mesma?
Uma hipótese bem clara seria justamente a relação com a ex escrava, senão
a própria relação que mantém com outros escravos, mesmo estes sendo
declarados como “devedores”.
Antonio Manuel Caetano declarou em 1846:
Declaro que sou natural do reino da África, de Naçam Bigogo,
vindo para o Brazil da idade de quinze annos pouco mais ou
menos. Declaro que nunca cazei e sempre vivi no estado de
solteiro. Declaro que sou Irmãm da confraria de santa efigênia
e sam Lisbam, e sam benedicto, não devo nada dos meus
annnuais athe o prezente158.159

Em relação as Irmandade citadas são tidas como “irmandades


negras”159, nas quais os negros construíram solidariedades e sociabilidades.
160

157 Centro de Memória da Amazônia (CMA), Cartório da Provedoria de Capelas e Resíduos – 11ª
Vara Cível, Sub-Série: Testamentos, Ano: 1812. Testador: Francisco Dias de Brito.
158 Centro de Memória da Amazônia (CMA), Cartório da Provedoria de Capelas e Resíduos – 11ª
VaraCível, Sub-Série: Testamentos, Ano: 1846. Testador: Antonio Manuel Caetano.
159 Note-se que nem todas as irmandades do Rosário são devoções tidas como negras.

139
Percebe-se, entretanto, a preocupação deste liberto em declarar que “não
deve nada dos seus anuais” o que deve estar relacionado à preocupação
deste escravo com a morte – “o bem morrer” – e evidentemente com os
ritos exteriores que se mantiveram durante o período colonial e imperial,
não somente em relação aos escravos, mas para a maior parte da população.
A indicação da “nação” não é algo tão comum nesse tipo de registro.
Mencione-se, no entanto, que o ex escravo se refere a “Bujagó”, nação
da Guiné-Bissau de onde provavelmente desembarcaram na Amazônia
Portuguesa ao longo do século XVIII e as primeiras décadas do XIX. Ainda
que não saibamos a idade desse liberto quando ele escreveu este testamento,
é certo que ele faça parte da “rota negra” estabelecida no período supra
citado160.161

Retome-se, neste sentido, o citado testamento de Quitéria Maria


Paula, declarando ser natural da Costa da Mina e de Nação Bujagó em 1840
também enquanto parte deste “tráfico de etnias”. Neste caso, é importante
mencionar a “confusão” realizada: a menção da naturalidade da escrava
na Costa da Mina, atual Gana e, ao mesmo tempo, a sua nação bujagó,
atual arquipélago da Guiné-Bissau é, na melhor das hipóteses, uma falha
de localização. Interessante salientar que nem sempre os testamentos são
escritos pelo testador, podendo ser feito também oralmente ou mandando
alguém escrevê-lo, nesses casos, já apareceria um terceiro sujeito capaz
então de imprimir o seu “olhar” no registro161. 162

2.4. Quanto à “representatividade” das devoções negras162: 163

Segundo as Ordenações Filipinas no Título LXXXI – Das pessoas, a que


não he permittido fazer testamentos, explicita-se no item quatro: o herege,
ou apostata não póde fazer testamento, nem o escravo, nem o religioso
professo, nem o pródigo, a que he defesa, e tolhida a administração de seus
bens, nem outros semelhantes a estes163. A partir da legislação percebe-se que
164

os escravos não poderiam fazer testamento, somente se fossem autorizados


por seus senhores, nem mesmo poderiam ser testemunhas. Este fato nos
leva a reconhecermos os limites da fonte (testamentos).
No ano de 1801, Maria de Jesus da Encarnação declarou que era natural
de Coimbra e tivera sido casada com Pedro Costa de quem era viúva, de
160 Para maiores informações ver também: BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra
no Grão Pará (Sécs XVII-XIX). Belém: Paka-Tatu, 2001 e VERGOLINO-HENRY, Anaíza &
Figueiredo, Arthur Napoleão. A presença Africana na Amazônia colonial: Uma notícia Histórica.
Belém: Arquivo Público do Estado do Pará, 1990.
161 Ordenações Filipinas – Livros IV e V. Edição fac-símile da edição feita por Cândido Mendes
de Almeida - Fundação Calouste Gulbekian. Rio de Janeiro, 1870, pp. 901-907.
162 A ‘representatividade’ se refere não somente aos testadores que declaram pertencer a alguma
irmandade negra, mas também àqueles que de alguma forma demonstram a partir dos testamentos
certa “simpatia” por determinada congregação, ‘simpatia’ esta que pode ser evidenciada pela posse
da imagem dos santos, por “lembrar” de deixar quantias em dinheiro para reforma da Igreja ou
alfaias à irmandade, dentre outros.
163 Ordenações Filipinas, Op. Cit. p. 909-910.

140
cujo matrimonio não teve filhos, por este motivo diz poder dispor de seus
bens à sua satisfação e sem constrangimento:
Declaro que sou irmão treceiro de São Francisco e quero
que o meo corpo seja sepultado na mesma ordem terceira,
acompanhada pelas mais Irmandades de que também sou
indigna irmã, a saber, nossa senhora do Carmo, Nossa Senhora
do Rozario, almas, São Benedito, e Santissimo, e a forma do
meu funeral deixo á disposição de meu testamenteiro (...)
Declaro que sou possuidora dos seguintes trastes, a saber dois
cordoens de ouro hum grosso, e outro mais fino (...) hum
crussefixo tambem de ouro, quatro colheres, e dois garfos de
prata, três anneis de ouro, huma bacia grande de arame, hum
tacho de cobre; e dois ditos mais pequenos também de cobre,
dois baús de páo (...) huma papeleira pequena, e mais trastes
que se acharem deixo á minha preta Anna Joaquina á exceção
dos de ouro, prata, e cobre assim nomeados, que quero que
se vendão para com o seu rendimento se fazerem as minhas
desposiçõens...164 165

Ressalte-se que a participação de branco sem irmandades tidas como


irmandades de negro não fora incomum na cidade do Pará. As irmandades
eram locais para o exercício de uma série de direitos, como o de ser enterrado;
escolher ser enterrado com o habito da ordem; garantia de sufrágios na hora
da morte, a celebração de missas, os gastos do enterro, além de ritos de
passagem que deveriam assegurar a “salvação” da alma do irmão.
Entretanto, a inserção em mais de uma irmandade pode ser identificada
para além das vantagens asseguradas, como um sinal exterior da devoção,
já que a morte seria velada por maior número de pessoas e possivelmente
com maior pompa. Sobre a realidade de Minas Gerais no século XVIII,
Júnia Furtado afirma que a “inserção nas irmandades e a garantia de enterro
com pompa e luxo deveriam eternizar na morte o lugar de destaque que
almejaram e alcançaram em vida”165. 166

No caso em destaque, observa-se que a preocupação com os sufrágios


era fundamental àqueles que estavam deixando esta vida. Maria de
Encarnação deixa claro que parte dos seus bens, especificamente, aqueles
de ouro, prata e cobre ela quer que sejam vendidos para que com sua renda
sejam realizadas as garantias a que nos referimos acima, já que a mesma não
possui herdeiros descendentes e nem mesmo ascendentes (aspecto também
explicitado no testamento). Antonia Rita de Carvalho, em 1815, natural

164 Centro de Memória da Amazônia (CMA), Cartório da Provedoria de Capelas e Resíduos – 11ª
Vara Cível, Sub-Série: Testamentos, Ano: 1801. Testador: Maria de Jesus da Encarnação.
165 FURTADO, Júnia Ferreira. Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de
forros e livres nas minas setecentistas.pp. 400. In: JANCSÓ, István; KANTOR, Íris (orgs.). Festa:
Cultura& Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001.

141
de Évora e declarante de que não tem filhos nem herdeiros alguns é ainda
mais explicita, “declaro que possuo huma (sic) escrava por nome Thereza
de Nação Congo a qual deixo a minha herdeira caso exista depois da minha
morte para com o seu valor me mandar dizer algumas missas pela minha
alma”166. 167

É provável que as viúvas e solteiras também, nesse caso, despendessem


seus bens materiais e simbólicos mais frequentemente em favor das
irmandades do que os outros grupos sociais, se não, vejamos: em 1844,
Joaquina Rosa de Souza, declarou que era natural desta cidade – Belém
– filha dos falecidos Nicolau Antonio de Souza Trovão, e de dona Anna
Raimunda de Souza, no estado de solteira, confessou que o seu corpo seria
envolto com a mortalha de Cristo e sepultado na sua freguesia de Santa
Anna da Campina. Esta legou a esmola à senhora santa Anna de sua
freguesia trezentos mil reis, à Irmandade do senhor de Mattozinhos no
Porto trezentos mil réis e à Irmandade de São Benedito desta cidade mil
réis para acompanhar o seu corpo à sepultura, ao glorioso santo Antonio
também deixou mil reis para a compra de suas alfaias167. 168

Seguindo os dois testamentos citados é possível perceber que não


somente em relação aos negros, mas também em relação aos brancos, e
particularmente entre os portugueses, no século XIX, está entre as mais
“declaradas” a devoção a São Benedito, seja esta de forma direta ou através
do que chamamos ‘representatividade’.
As origens da devoção a São Benedito remontam à região da Sicília onde
nasceu em 1526. Mais tarde, Benedito entrou na ordem dos franciscanos
de Palermo como frade observante. Segundo as hagiografias a reputação
e a santidade de Benedito se disseminam rapidamente a ponto de todos o
reconhecerem, tendo este prestígio chegado à nobreza siciliana e até as altas
autoridades religiosas que não hesitavam em pedir conselhos tanto sobre
questões espirituais quanto temporais. Após a sua morte em 1589, o culto
irá se espalhar para além do território siciliano. Todavia, ele somente será
beatificado em 1743. Em Portugal, sua veneração se inicia ainda no século
XVII, no mosteiro de Santana, onde em 1609 foi instituída uma Irmandade
de São Benedito168. 169

No Brasil, o seu culto teria sido introduzido antes de 1612169, 170

sensivelmente na mesma época que em Portugal e provavelmente pela mesma


166 Centro de Memória da Amazônia (CMA), Cartório da Provedoria de Capelas e Resíduos – 11ª
Vara Cível, Sub-Série: Testamentos, Ano: 1815. Testadora: Antonia Rita de Carvalho.
167 Centro de Memória da Amazônia (CMA), Cartório da Provedoria de Capelas e Resíduos – 11ª
Vara Cível, Sub-Série: Testamentos, Ano: 1844. Testadora: Joaquina Rosa de Souza.
168 Flos Santorum, volume IV, Historia Seráfica da Ordem de S. Francisco, livro 3°; Dicionário de
Santos, Ed. Europa-América, Lisboa, 1992 Apud Lahon, Didier. O negro no coração do império:
uma memória a resgata, século XV-XIX (História e Histórias). – Lisboa: Luviprint, Artes Gráficas,
1999.
169 Fr. Antônio de Sª Mª Jaboatão, Novo orbe seráfico brasilico ou Chronica dos Frades menores da
Província do Brasil, IHGB, RJ, 1858-62, 2ª parte, p. 433.

142
razão: o interesse demonstrado por Filipe III em usar a cor de Benedito para
facilitar a conversão das populações negras do Novo Mundo170. 171

Em Belém, a irmandade de São Benedito, criada em 1769, ocupava o


altar lateral na Igreja do Rosário dos Pretos da Campina, sendo constantes
os embates entre elas. A partir da pesquisa foi possível identificar, para além
da irmandade na capital, outras seis congêneres no interior: Irmandade de
São Benedito da vila de Cintra (atual Maracanã – 1855), Irmandade de São
Benedito ereta na vila do divino Espírito santo do rio Mojú, Irmandade do
Glorioso São Benedito ereta na vila de Bragança (Compromisso aprovado
em 1853), Irmandade de São Benedito ereta na Vila de Santarém (1800), São
Caetano de Odivelas (1833) e São Benedito de Gurupá171. 172 4

Então, se a historiografia regional consagrou à irmandade de Nossa


Senhora do Rosário dos homens pretos a mais importante das chamadas
“irmandade de cor” do período colonial, parece-nos que, durante o
transcorrer do século XIX, a Irmandade de São Benedito ganha bastante
prestígio passando a congregar também em seu seio parte da elite local
deste período.
O “olhar”, especialmente dos viajantes, sobre a Irmandade do Rosário
dos Pretos, a mais antiga e conhecida entre esses sodalícios em Belém e a sua
participação em cultos e procissões na dita cidade pode ter contribuído para
a grande importância dada a esta. Vejamos o que Aldrin Figueiredo nos fala
do tempo da reconstrução da Igreja do Rosário dos Pretos, em 1848, citando
o viajante Henry Bates:
Construíram [os negros escravos] aos poucos, com seu próprio
esforço, uma bela Igreja denominada Nossa Senhora do
Rosário e acrescenta que nas primeiras semanas que passou no
Pará, notou [Bates] que uma fila de negros de ambos os sexos
costumava desfilar tarde da noite pelas ruas cantando em coro.
Todos levavam na cabeça uma pequena quantidade de material
de construção – pedras, tijolos, argamassas, ou tábuas172. 173

Da mesma maneira o naturalista afirma que os negros celebravam a


festa de Nossa Senhora do Rosário a qual constituía em um grande sucesso173. 174

Considere-se, no entanto, relacionado ao culto, algo conhecido como


“reciprocidade” entre as diversas irmandades, ou seja, em festejos e, às vezes,
170 Fiume, G. e Modica, M., (a cura di), San Benedetto il Moro. Santità, a giografia e primi processi
di canonizzazione, Palermo, 1998, p. 175; Fiume, G.(a cura di), Il santopatrono e la citta. San
Benedetto il Moro: culti, devozioni, strategie di età moderna, Veneza, 2000.
171 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003, atual 1157, exceto o Compromisso
da Irmandade de São Benedito de Santarém. No capítulo referente às Irmandades destacaremos
mais as brigas entre as devoções sob o mesmo teto, assim como faremos um estudo mais atencioso
sobre a Irmandade de São Benedito ereta em Belém e Santarém.
172 BATES, Henry. O Naturalista no rio Amazonas. Apud FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os
reis de Mina: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Pará do Século
XVII ao XIX, Bol. Mus. Pará. Emílio Goeldi. Ser. Antropol. 9(1), 1994, pp. 117.
173 Idem.

143
até mesmo enterros de “irmãos” que pertencessem a várias irmandades
(aspecto comum) havia uma “confusão de cores” entre as diversas confrarias.
Este lado “exterior” da devoção pode ter escamoteado das impressões
dos viajantes os diversos sodalícios de cor, particularmente os de negros,
contribuindo para uma visão que permitisse a preeminência da devoção à
virgem do Rosário dos pretos.

3. As devoções de cor no Grão Pará


Para ter um entendimento geral dos sodalícios de cor do Grão-Pará,
faz-se necessário observar tabela a seguir, nela busca-se ter uma compreensão
abrangente das associações conhecidas.
TABELA 1 – Mapa Geral das Irmandades de cor no Grão-Pará
Titulo LugarIgreja – Data da Data do Étnica / Observações
Irmandade Cidade. Criaçao. Compromisso

N. Srª do Igreja do Rosário 1682 Não encontrado. Irmandade Negra.


Rosário dos dos Pretos – Belém Informações
Pretos 1º sobre a
compromisso Irmandade em
aprovado) CRUZ (1973)
S. Benedito Igreja do Rosário 1769 1856 Irmandade Negra.
dos Pretos (Mina) –
Belém. 1º
compromisso
aprovado
S. Benedito ParoquialIgreja Erecta no ano 1856 Irmandade
– Vila de Cintra de 1855
(atual Maracanã) Negra.
S. Benedito Vila de Santarém. 1800 1800 Irmandade

Negra.
S. Benedito Vila de Bragança. 1798 1853 Consta Irmandade negra.
do recibo da Mas que “será com-
Collectoria de posta de pardos e
rendas internas pretos de ambos os
do Pará. sexos”.
S. Benedito Vila de São Caeta- 1833 1856 Irmandade negra.
no de Odivelas.
S. Benedito Vila do Divino Não consta 1856 Difícil perceber o
Espírito Santo do caráter étnico na
Rio Mojú. Irmandade

Irmandade.
S. Benedito Vila de Itá Não Não encontrado. Irmandade negra.
(Gurupá) encontrado.

144
S. Elesbão e Convento de Nossa 1790 1856 Irmandade negra.
Efigénia Senhora do Monte
do Carmo – Belém. 1º
compromisso
aprovado
S. Raimundo Igreja de Santana – Provavelmente Não encontrado. Irmandade
Nonato Belém. por volta de
1870 negra

Santíssima Igreja Matriz de 1850 1856 Irmandade de pardos.


Trindade dos Santo António da
Pardos Vila de Gurupá.
Santíssima Igreja _______ 1856 Irmandade de pardos.

Trindade dos Vila de Vigia


Pardos
N. Srª do IgrejaMatriz – Vila Novamente 1856 Irmandade de pardos.
Livramento de Santarém criada no ano
dos Pardos de 1847.
S. Pedro Igreja _______ 1856 Irmandade de pardos.
dos homens
Pardos – Belém.

Fonte: SANTOS, Diego Pereira (2010)

O Pará possui uma posição particular no que se refere às devoções:


conta com uma única irmandade do Rosário dos negros, em Belém, possui
5 das 6 irmandades de São Benedito independentes de outras devoções,
existindo, todavia, devoções até agora ainda não encontradas em outros
lugares – como a de São Raimundo Nonato, dos negros, em Belém, uma de
São Pedro dos Homens Pardos (Belém) e duas da SantíssimaTrindade dos
Pardos, em Gurupá e Vigia.
A devoção à Virgem do Rosário desenvolveu-se a partir do impulso
da Ordem dos Dominicanos, sendo desde o século XVI uma das principais
invocações do processo de conquista e conversão dos gentios, passando
então, a ser divulgada por todas as ordens religiosas missionárias174. A 175

origem deste culto remonta ao início do século XIII – contexto de combates


às heresias modernas. Segundo a tradição católica, “Domingos de Gusmão,
religioso dominicano e pregador na região de Albi, sul da França, teve uma
revelação da Virgem que lhe ensinou um método de oração no qual seria
invocada com a ajuda de contas unidas por um cordão175. 176

Mas a relação da devoção do Rosário sempre existiu vinculada aos


negros, desde sua origem na península ibérica ou fora produto da realidade
e das agruras da escravidão? Autores diversos tentam explicar esta ligação.

174 REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e
identidades africanas na Bahia Setecentista.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para
a obtenção do título de doutor, pp. 54.
175 REGINALDO, Lucilene Apud Juliana Beatriz Almeida de Souza. Viagens do Rosário entre a
Velha Cristandade e o Além Mar, Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, 2, (2001), pp. 382.

145
Sanders lançou a possibilidade de que a “natureza semi mágica,
quase talismãnica do rosário pode ter constituído umapeloentre os
africanos acostumados a feitiços”176. Entende-se que pode ter havido uma
177

possibilidade da relação feita pelos africanos entre o rosário e seus cultos


tradicionais os quais incorporam, por vezes, amuletos, patuás e bolsas de
mandingas, contudo, seria forçoso imaginar que a devoção surge em meio
aos negros africanos.
Nesse sentido, entendemos que a devoção do Rosário e a relação entre
ela e os negros começa a se desenvolver a partir do processo de aprendizado
pelos negros dos ensinamentos cristãos. É conhecida dentro da própria
África, especialmente na área central, Congo e Angola, irmandades do
Rosário as quais já aparecem ligadas aos negros. Lucilene Reginaldo ratifica,
A devoção ao Rosário em Luanda esteve associada
especialmente aos negros cativos e forros. Tratava-se de uma
devoção reservada aos africanos inseridos na experiência da
escravidão, seja na condição de cativos ou de libertos. Nesse
sentido, a devoção ao Rosário entre os negros nasceu vinculada
às marcas da ‘conversão cativeiro’.177178

Há duas devoções do Rosário na cidade do Pará, uma de brancos


confirmada em 1630, mas que segundo o compromisso já se encontra
estabelecida desde 1620 “aumentando a glória de (oxidado) povoadores
desta cidade”178. E a outra dos negros, que como demonstra o quadro acima
179

tem o seu compromisso aprovado em 1682179. 180

Segundo Jorge Fonseca, referindo-se às Confrarias de Nossa Senhora


do Rosário – em Portugal – afirma:
em algumas terras, estas associações eram provavelmente
confrarias de brancos, mas que com o aumento da população
negra, os africanos e seus descentes foram entrando, mantendo-
se sempre com o caráter misto; em outras o convívio deve ter se
tornado difícil, devido ao preconceito dos brancos e à resistência
dos negros, o que segundo ele teria levado a permanência na
mesma igreja de confrarias separadas para os diferentes grupos
racial; Mas também pode ter ocorrido que a separação tenha se
dado deste o início como iniciativas autônomas180. 181

176 SAUNDERS, História Social dos escravos e libertos negros em Portugal, pp. 206.
177 REGINALDO. Op. Cit. pp. 36.
178 Compromisso da Irmandade do S. S. Rozario da Cidade do Gram-Pará.
179 Fica claro a partir do enunciado do Compromisso da Irmandade dos Rosário dos Brancos
que, nem sempre o Compromisso concorda com a data de criação da devoção. Este aspecto parece
ter sido ponto de convergência entre as irmandades do Pará, que passavam tempos sem a dita
aprovação.
180 Fonseca, Jorge. Elementos para a História do Associavitismo dos negros em Portugal: A
Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens pretos de Elvas. Callipole. Revista de Cultura.
N° 17, 2009, pp. 24-25.

146
Em relação à devoção do Rosário de Belém, apesar da diferença
atestada pela data dos compromissos, segundo os estudos e pesquisas
no concernente às Irmandades do Pará, parece que esta esteve ligada às
iniciativas autônomas referendadas por Fonseca, particularmente por parte
dos negros, o que de certa maneira poderia explicar à independência das
outras devoções negras em relação a ela, como as devoções a São Benedito
e Elesbão e Efigênia.
Em Belém, no compromisso dos “Atlantes da Etiópia”, aprovado em
1790, alguns aspectos devem ser referendados: primeiramente, destaque-se
na apresentação do compromisso:
A Divina Providencia que sem excepção de Pêssoas olha só
para corações bem dirigidos dispôz os dos humildes pretos no
fim deste compromisso assignados, a que se revestissem com o
glorioso Brazão de Instituidorez da devota Irmandade dos dous
Atlantes da Etiópia (…)181182

Chama a atenção à denominação “dirigida” aos pretos e o


reconhecimento destes através de um “Brazão de Instuidores”. Sobre que
pessoas deveriam ser admitidas na Irmandade de Elesbão e Efigênia, diz-se:
“§ 1° [...] poderão ser admittidos todos os Fieis de hum e outro
santo[...] que tão somente os Escravos, quenão apresentarem
licença em escriptis de seus respectivos senhores, ficando desde
já de accordo as Pêssoas brancas, que tiverem a mesma devoção,
que esta os hão conduzir á huma perfeita humildade”182 183

A respeito de estar se falando de uma Irmandade de negros, é


possivel perceber que a “condução da irmandade em perfeita humildade”
é justamente a imagem que muitas vezes se quis do próprio negro escravo,
mas que a partir do registro, está direcionado as pessoas brancas.
Como na maioria das Irmandades de cor, os Irmãos escravos que
viessem a participar da dita irmandade deveriam apresentar licença, em
escrito, de seus senhores. Perceba-se que, a intenção da licença era para que
faltando ao dito irmão a satisfação do que dever pagar a Irmandade possa
cobrar de seu senhor o que o dito irmão aceito na irmandade não tiver pago.
Fica evidente que a licença cobrada servia como garantia a Irmandade do
pagamento de possíveis obrigações não cumpridas.
Relevante considerar também, no inciso 3, um aspecto que pode
inclusive apresentar um indicativo interessante para as pesquisas
181 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003 – atual 1157 – Compromisso da
Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigénia, pp. 41-52.
182 Idem, Ibidem.

147
quantitativas sobre a escravidão em Belém, vejamos:
§ 3° Pagará cada um dos Irmãos que assim entrarem na
Irmandade a quantia de qua trocentos reis tendo menos
idade de trinta e cinco annos, porque attendendo a que no
fallecimento de cada hum dos Irmãos hade a Irmandade
fazer gasto particular assim nas Missas (…) queremos, que os
Pretendentes que passarem da idade referida pagem álem da
entrada os annuaes correspondentes aos annos, que assim tiver
de mais, regulando-os os Irmãos da Mesa por pouco mais, ou
menos, sê ao certo se não souberem;183 184

Há, neste inciso, um parâmetro para a cobrança das entradas, aos 35


anos. É sabido qu eentre as funções primordiais de uma irmandade está a
de cuidar dos “ritos funebres”, o que a maioria dos autores chama de “boa
morte” dos irmãos defuntos, assim como das missas que seriam rezadas
pela alma destes184. Nesse sentido, é provavel que o indicativo no texto
185

estivesse ligado a um momento de maior incidência de morte na população.


No entanto, não há espaço nesse trabalho para a constatação desse dado.

3.1 Devoções: Entre negros e pardos:


As devoções a São Raimundo Nonato, dos negros em Belém, a de
São Pedro dos homens Pardos (Belém) e duas da SantíssimaTrindade dos
Pardos, em Gurupá e Vigia, têm ligações estreitas com a problemática da
escravidão anterior à escravidão no “Novo Mundo”, ou seja, com a Ordem
dos Trinitários e dos Mercedários, São Raimundo Nonato185 e São Pedro 186

Nolasco. Uma vez que tanto a Ordem da Santíssima Trindade, colocada sob
a proteção de Nossa Senhora do Bom Remédio, fundada em 1198, por São
João da Matha, como a Ordem dos Mercedários, fundada em 1222, por Pedro
Nolasco, na qual Raimundo Nonato foi o primeiro Mestre, destinaram-se
ao resgate dos escravos – brancos na época – cativos dos muçulmanos na
África do Norte. Este aspecto tornou a Senhora das Mercês a protetora dos
cativos. Apesar da ausência desta devoção no Pará ligada aos irmãos de cor,
o culto de santos brancos em altares laterais das igrejas das Mercês de negros
e de pardos permitem colocar a hipótese que muitas irmandades das Mercês
e da Santíssima Trindade foram de negros ou de pardos.

183 Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigénia. Op. Cit. pp. 43.
184 Segundo Maria Aparecida Quintão, o prestígio e a riqueza de uma irmandade estão ligados ao
número de missas rezadas pelos irmãos mortos.
185 Alguns autores atribuem esse papel a seu contemporâneo São Raimundo Penafort que
aconselhou Pedro Nolasco na criação da ordem de Santa Maria da Mercês. No entanto, Penafort
era Dominicano e como tal foi Geral da Ordem. No Mártir o logo santo Raimundo Nonato é
celebrado no dia 26 de Agosto. Mas a confusão entre os dois já é antiga, inclusive na iconografia.
Sobre a vida de Raimundo Nonato: Vicent F. Zuriaga Senent, La Imagen devocional en la orden
de Nuestra Señora de la merced, Tradición, Formación, Continuidad y Variantes, Universitat de
Valencia, Servei de Publicacions, pp. 332-351, 2005.

148
Em relação à Irmandade de São Raimundo Nonato, localizada na
Igreja de Santana - Belém, teve como organizador “mestre” Leopoldino do
Espírito Santo Figueira de Andrade, este era filho de uma negra de nome
Mônica Maria da Assunção, nascida na condição de escrava, mas liberta aos
sete anos de idade por sua mãe Joana Paula – escrava de Bernardino Diniz.
Em 1870, Leopoldino resolveu ir até a ilha das Onça sonde participaria da
tradicional festa de São João. Na canoa que o conduzia iam sete mulheres.
Entre as modinhas, chulas e trovas populares, falou-se “acidentalmente em
São Raimundo, no culto que lhe dedicavam às mulheres, nos milagres que
ele as acudia e no muito que era preciso querê-lo e venerá-lo”186. Isto fora 187

suficiente para a criação da irmandade e a devoção teve início em pleno rio


Guajará.
Segundo Couto Henrique, a participação de mulheres nesta Irmandade
foi uma de suas peculiaridades, particularmente entre as mulheres cativas,
citando Arthur Viana, Henrique afirma que em pouco tempo a irmandade
já possuía cerca de mil irmãs, em grande maioria escravas187. A expressão 188

“Nonato”, no nome do futuro santo, faz referência a um episódio de sua vida,


quando do parto de sua mãe o consequente falecimento desta. A expressão
virou sinônimo de “não nascido”. O que poderia vir a explicar o crescimento
no número de mulheres nesta Irmandade e a identificação destas com o
santo. Raimundo Nonato é invocado como santo das parturientes, parteiras
e obstetras. Provavelmente essa devoção local é um equivalente masculino
da Senhora do Bom Parto ou da Senhora de Ó.
Outro aspecto elucidado por Márcio Henrique é a forma como a
mesma era administrada, sendo a maioria das “funções” e “empregos”
realizada por mestre Leopoldino: “recebia jóias e mensalidades, aplicava
os dinheiros recebidos, acudia com remédios e médicos as irmãs enfermas
(…) isso tudo sem livros de escrituração, sem notas e papeladas”188. O que 189

deve estar ligado às formas de burlar as tentativas de controle da Igreja, cada


vez maiores, do final do século XIX – já que a Igreja católica estava passando
por um processo de reforma – “Romanização”.
As pesquisas de historiadores regionais, nas duas últimas décadas, já
demonstraram que nem tudo era apoio e ajuda mútua entre as irmandades
de negras, os casos em relação às tensões e conflitos entre a Irmandade do
Rosário dos Pretos e a de São Benedito são fundamentais para entendermos os
vínculos nem sempre harmônicos entre elas. Pouco se destacou, entretanto,
da relação entre pardos e negros. Contudo, a partir dos compromissos e
estudos coevos podemos perceber que o entendimento entre as mesmas
186 As informações aqui citadas em relação à devoção de São Raimundo Nonato, fazem-se
presentes, segundo o quadro exposto das irmandades em Cruz, Ernesto. História do Pará. Belém:
Governo do Estado do Pará 1973, pp. 377, pela escassez de fontes em relação a mesma.
187 HENRIQUE, Márcio Couto. (1997). O Senhor do céu não é o senhor da terra: a experiência
religiosa dos escravos nas irmandades paraenses, 1839-1889. Monografia de conclusão do curso de
História, Belém, CFCH-UFPa, p. 35
188 HENRIQUE, Op. Cit., p. 35-36.

149
estava longe de ser uma realidade.
No compromisso da Irmandade da Santíssima Trindade dos Pardos da
vila de Gurupá, no capítulo 1, mesmo artigo, diz-se em relação aos irmãos
e suas qualidades: “serão admittidos para irmãos desta confraria todas as
pessoas livres de ambos os sexos que voluntariamente o requererem”189. 190

As negociações e conflitos entre pardos e negros parecem também


ser um dos papéis importantes no que se referem às irmandades de cor
da cidade do Pará. Percebe-se a partir do compromissoque, somente as
pessoaslivres seriam aceitas comomembros. Parece claroque os escravos
recém chegados da África, em menor número já na segunda metade do
século XIX se comparamos aos crioulos, estavam excluídos desses sodalícios.
O que provavelmente se refere a “nova” composição das irmandades e a
mestiçagem da população, mas também a postura dessas irmandades de
pardos em relação aos negros recém-chegados e as suas fraternidades.
Na Irmandade de Nossa Senhora do Livramento dos Pardos de
Santarém, estando reunidos, os irmãos elegerão seus empregados, “a saber:
dois juízes, duas juízas, doze mordomos, um secretario, um tesoureiro, um
procurador e um andador”190 . Os mordomos, nas irmandades dos pardos,
191

além de estarem em maior número, como fica claro na citação acima,


também garantiam mais privilégios nessas devoções do que em relação
as outras de cor. Em caso de falecimento de algum irmão, na irmandade
da Santíssima Trindade dos Pardos de Gurupá, este mandará dizer por sua
alma, se tiver sido Imperador ou imperatriz cinco missas, se mordomo três
missas se for simples irmão duas (…)191. O número de sufrágios designados
192

aos mordomos vem a confirmar a diferenciação dos mordomos nestas


associações.
É possível que as irmandades de pardos tenham tido, em alguns casos,
não como membros, mas como “propriedade” ou “bens” os escravos, que
entrariam e eram designados juridicamente por “bens semoventes”, ou seja,
bens que andam ou se movem. Vejamos: entre as competências do tesoureiro
do Livramento dos Pardos, “Terá um livro de Receita e despesa (…); e outro,
para lançar as alfaias, bens moveis, semoventes, e de raiz que legitimamente
pertencer a irmandade”192. De outra maneira, há outras irmandades em que
193

os negros não participavam pela proibição de tê-los como membros, como a


Irmandade da Misericórdia. Aqueles não raro estiveram a serviço da mesma
como enfermeiros ou carregadores.
189 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003 – atual 1157 – Compromisso da
Irmandade da SantíssimaTrindade dos Pardos, pp. 116.
190 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003 – atual 1157 – Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora do Livramento dos Pardos, pp. 26.
191 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003 – atual 1157 – Compromisso da
Irmandade da Santíssima Trindade dos Pardos, pp. 117.
192 Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice 1003 – atual 1157 – Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora do Livramento dos Pardos, pp. 26.

150
CONCLUSÃO
A compreensão das irmandades de cor, muitas vezes, levadas a cabo
em numerosos textos relativos às Irmandades negras do Brasil está ligada a
existência de estereótipos sobre o papel e a função dessas instituições junto
às populações negras escravas e libertas. Estes estereótipos baseiam-se em
uma opção ideológica, mas encontram suas raízes no modelo monográfico
local e mais geralmente no quase ausente método comparativo.
Assim, esquematizando, para uns as irmandades negras teriam sido
uma instituição criada no Brasil e tendo como objetivo enquadrar, controlar
e aculturar as populações escravas a fim de impor-lhes a religião católica – o
que não é totalmente errado – e consequentemente teria sido um obstáculo
maior à constituição de uma consciência de classe, o que teria conduzido
a uma atitude de passividade. Para outros, a mesma instituição, o mesmo
objetivo das autoridades políticas e religiosas portuguesas teria não somente
parcialmente falhado, mas teria permitido de modo quase paradoxal que
a instituição se transformasse num lugar de resistência – apesar de não
contestatório – à opressão escravagista e de preservação, até mesmo de
reprodução, dos valores e traços culturais de origem africana, no domínio
religioso em particular.
Todavia, para além da pertença a um dos elementos do binômio
acomodação/resistência, que, em nossa opinião, limitou a problematização
do tema durante várias décadas, na maior parte dos trabalhos, e apesar de
frequentes referências às origens metropolitanas da Irmandade enquanto
instituição falta quase sempre uma análise comparativa sistemática do papel
e da função de enquadramento social e religioso das populações brancas da
metrópole e, consequentemente, do Brasil.
Em relação às devoções dos “irmãos de cor”, negros livres e cativos e
pardos fizeram das irmandades do Grão Pará um espaço privilegiado para
as suas sociabilidades, tensões, uniões e conflitos que permeiam as relações
entre esses sodalícios. A sociedade paraense do século XIX, em especial
a Belemense, percebida pelos viajantes europeus através da mistura entre
raças, vai se moldando sobre rupturas e permanências em relação à Belém
do século XVIII e a cidade do porvir. Nesse sentido, a religiosidade vai se
transformando e ensejando também novas formas de vivência e múltiplas
realidades.
Ainda que tenhamos optado didaticamente pelas denominações
estáticas, pensamos que existem uma série de variantes étnicas muito mais
profundas e “misturas” que o olhar estático e seccionado negro-índio-pardo
pode apresentar ou mesmo escamotear.

151
PARTE IV - EDUCAÇÃO, CIDADANIA E
DIREITOS HUMANOS

152
ALGUMAS NOTAS DELEUZIANAS AO PENSAR EM VALORES
HUMANOS, CIDADANIA E EDUCAÇÃO

Pedro Ergnaldo Gontijo193 194

As linhas desta escrita são linhas de articulação e linhas de fuga,


intensidades, velocidades, movimentos que territorializam
e desterritorializam o pensamento de Deleuze, a educação,
e o nosso próprio pensar. É uma escrita que acompanha um
pensamento instável, indefinido, inquieto, que vai e volta, que
não para, que busca pensar sempre de novo e, de novo, sempre
pensar. A escrita é afim a um pensamento e inseparável de um
devir. (KOHAN, 2002)

Para iniciar...
Parece necessário dizer que se procura fazer aqui uma tentativa de
produzir o que foi chamado por Larrosa (1994, p. 35) de um trabalho de
“teoria”, entendendo isso como a produção de um pensamento e de uma
escrita que reúne, desloca e provoca ressonâncias de ideias e de pensamentos
de alguns lugares e campos determinados para outro campo em que nos
interessa produzir novos efeitos de sentido.
Ou também pensar a teoria como Deleuze apresentou no diálogo com
Foucault em 1972, publicado com o título de Os intelectuais e o poder: Uma
teoria é como uma caixa de ferramentas. (...) Se não há pessoas para utilizá−
la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não
vale nada ou que o momento ainda não chegou. (FOUCAULT, 1982, p.71)
Não se trata de busca por afirmação de verdade ou de negação de alguma,
apenas de produzir sentido.
A produção de sentido não é unívoca, não ocorre do mesmo modo
para todos e sequer ocorre para alguns. A produção de sentido é questão
da relação que se estabelece entre os participantes da comunicação, da
interação. A escolha dos conceitos, das “ferramentas”, tem relação também
com a habilidade de quem se dispõe a usá-las e de sua criatividade. Não há
193 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, onde leciona na graduação
em Filosofia. Trabalha com disciplinas como: Estágio Supervisionado na Licenciatura, Ética,
Metodologia do Ensino de Filosofia e eventualmente outras disciplinas, coordena o Subprojeto
de Filosofia do - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência PIBID/CAPES/UnB.
Desenvolve atividades de pesquisa na área do Ensino de Filosofia , Filosofia da Educação, Ética e
Filosofia Política. Possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (1993), mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (2003) e Doutorado em
Filosofia da Educação pela UNICAMP (2008). Foi professor da Secretaria de Educação do Distrito
Federal (1996 - 2006). É membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz - CBJP, organismo vinculado
à CNBB. É diretor da Associação de Comunicação e Cultura do Gama.Tem experiência na área de
Filosofia, com ênfase em Ensino de Filosofia no Ensino Médio e Filosofia da Educação, atuando
principalmente nos seguintes temas: ensino de filosofia, educação, psicodrama, integração e
criatividade, ética, filosofia política e Direitos Humanos.

153
um uso predeterminado das mesmas e a familiaridade com uma ou outra
ferramenta dará o tom de uso da mesma. Um estilo assim de escrita pode
interagir com alguns possíveis modos de leitura.
A pretensão é justamente que seja um funcionar produzindo e
provocando sentidos. Nesse caso, é preciso teorizar sobre os conceitos de
Educação, Cidadania e Valores Humanos e interações entre eles, de modo
que suscite novas ressonâncias. Todavia desejamos fazer isso a partir de um
campo de saberes um pouco mais específico, mesmo que interdisciplinar ou
transdisciplinar - a filosofia - entendendo esta como Foucault (1980) propôs:
A filosofia é o movimento pelo qual nos libertamos – com esforços,
hesitações, sonhos e ilusões – daquilo que passa por verdadeiro, a
fim de buscar outras regras do jogo. A filosofia é o deslocamento e a
transformação das molduras de pensamento, a modificação dos valores
estabelecidos, e todo o trabalho que se faz para pensar diferentemente,
para fazer diversamente, para tornar-se outro do que se é.

Pois bem, mais do que escrever de um lugar próprio e consolidado


sobre esses conceitos, escrevo do esforço de tornar o que vivo e penso
sobre educação, valores humanos e cidadania algo diferente do que venho
vivendo em diferentes espaços. Escrevo no esforço do movimento, num
devir. A escrita pode ser expressão dessa conjugação de devires outros num
devir livro ou devir texto. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de
assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre
dois reinos. (DELEUZE, 1998,p.10)
Vamos pensar esses conceitos, porém invertendo o foco na ordem do
título. Iniciamos pensando sobre os valores humanos, depois a cidadania e
relações de poder e por último pensar a educação e relações pedagógicas que
possam inspirar e fomentar outras práticas educativas. Nessa empreitada
uma leitura particular de Foucault e, sobretudo, de Deleuze ocupam o texto
em diferentes direções, às vezes caoticamente, conformando esse mapa
ainda em construção.

1 Valores Humanos?
Algo de problemático já começa quando se pensa em valores humanos,
mas não diminui ao pensar a cidadania e a educação, pois em qualquer
caso estamos falando de valores, nem que seja dos valores que parecem
importantes de serem cultivados pela sociedade contemporânea. Conforme
esclarece Oliveira (2008) o contexto mundial é como todo um problema
ético, ou seja, provoca a pergunta: o que deve ser feito para continuar nossa
existência? Para tentar explicitar esse problema ele faz uso de duas análises.

154
A primeira diz respeito à civilização técnico-científica e a alteração
do panorama das éticas tradicionais. Pela primeira vez na história da
humanidade temos que o comportamento de apenas um ser humano ou de
um grupo pode colocar em risco a vida no planeta como um todo. Se antes
as éticas tradicionais davam conta, sobretudo, de fenômenos que estavam
circunscritos ao âmbito local e regional, o momento atual exige um esforço
por encontrar elaborações que possam produzir sentido no campo ético de
forma global.
A segunda, que é decorrente dessa primeira, diz respeito à nova
configuração das relações internacionais, dado que assistimos fenômenos
como desemprego estrutural, competitividade internacional e a substituição
da política pela economia, ou seja, a racionalidade política como que
subordinada a uma racionalidade econômica. Nesse contexto, parece-nos
que a composição de valores a serem considerados humanos e a inspiração
deles para pensar processos educativos estão diretamente associadas às lutas
no campo da política, mas também da biopolítica.
Na história já presenciamos tentativas de elaborar éticas universais ou
baseadas em princípios que se acreditava serem universalizáveis. Houve quem
defendesse a crença em uma lei natural que pudesse fundamentar a ética a
partir do modo como a natureza funciona. Nesse sentido se consideraria
que o que está de acordo com a natureza é bom. Houve quem defendesse
a crença na lei positivada, o contratualismo e outros na ação comunicativa,
postulando que o “dever ser”das relações humanas seja constituído através
da ação comunicativa entre os interessados.
Porém, o que muitas vezes foi ignorado é a própria fragilidade
e contingência desses princípios, pois respectivamente podem ser
questionados: o modo como a natureza é ordenada não gera necessariamente
um “dever ser”, um modo como as coisas devem ser, normas de conduta.
Da mesma forma seja pelo pacto ou contrato social, seja pelo diálogo, não
parece haver como garantir igualdade das partes nas negociações em jogo.
Isso mostra que mesmo sendo desejado, encontrar um denominador comum
para servir de base universalizável para uma ética e para um constructo de
valores não é tarefa fácil.
Daí, parece instigante pensar na impossibilidade ter valores humanos
como coisa dada ou pronta, pois em nome destes, vemos defesas de coisas,
ideias, práticas e instituições, inclusive antagônicas, em diferentes áreas.
Podemos perceber isso, por exemplo, como valores humanos inspiram
defesas opostas em temas como eutanásia, suicídio, democracia, justiça.
Dificuldades que aumentam quando há uma confusão prática
relacionada aos critérios fundantes da constituição de valores ou mesmo
de questões como a construção da Justiça em diferentes âmbitos. Vemos,
indiscriminadamente, defesas de que fazer justiça é dar a cada um conforme

155
a lei determina, ou que seria dar a cada um conforme a necessidade, ou
conforme o mérito ou mesmo dar a cada um igualmente. Uma análise mais
cuidadosa revelaria que não se trata de uma única decisão, mas sim de
decisões necessárias em situações específicas para cada uma e que podem
resultar em opções diferentes sobre o critério de justiça a ser usado. Nesse
caso um critério precedente seria pensar como valor a construção da
igualdade e a justiça como concretização dessa igualdade.
Se podemos ter divergências diferentes sobre vários aspectos e,
sobretudo, no campo da política sobre a construção das mediações
institucionais que disseminem novas práticas e consolidem perspectivas
inclusivas, talvez algo mínimo que possa ser construído é a ideia de que o fim
deve ser sempre o bem comum. Mas essa afirmação sendo feita a posteriori,
como expressão e aposta em possibilidades de criação e construção comum.
É claro que não resolve algumas disputas, mas estabelece parâmetros para
balizar inclusive os processos decisórios, podendo sinalizar caminhos
possíveis na finitude e contingência da experiência humana.

2 Cidadania e produção de encontros.


Chegando a Espinosa, por meio da leitura de Deleuze, pode-se focar
em alguns aspectos enfatizados por este e que permitem a conformação de
uma perspectiva para pensar os processos interacionais inerentes a qualquer
relação e, portanto, que possibilitam pensar essa interação social e processos
sociais. Para Espinosa há uma hierarquia nos gêneros de conhecimento
relacionados e implicados na existência e consequentes encontros que
compõem essa.
Quando se está num primeiro nível/gênero somos dependentes do
acaso dos encontros de corpos/ideias e de seus efeitos. Num segundo nível/
gênero, o modo de existência da humanidade comporta e compreende as
relações fortuitas e as regras de composição dos encontros entre corpos e
ideias o que permite deixar a postura basicamente passiva do primeiro nível.
Por último, no terceiro nível/gênero é possível compreender que a espécie
humana são essências singulares.
O que mais interessa aqui é essa compreensão de que o ser humano
é resultado dessas interações que, por sua vez, dependem do gênero
de conhecimento desses processos alcançados. Todos são fluxos, mas
todos são corpos. Os corpos afetam uns aos outros. Os encontros afetam
e transformam os corpos. Há encontros que potencializam a vida. Há
encontros que enfraquecem a vida. Isso permite perguntar sobre o que
ocorre em diferentes encontros nas instituições como um todo e em que
medida são encontros que potencializam as vidas daqueles envolvidos nas
diferentes interações. Se se pensa uma relação cotidiana como o encontro
de professores com seus alunos pode-se perguntar: O encontro com os

156
alunos potencializa suas vidas ou esvazia suas forças de vida? Como eles são
afetados desde que chegam à escola? Não são poucos, que de seus “lugares”
de poder, costumam produzir afetos tristes nos demais vampirizando suas
potencias de viver.

O resultado deste trabalho é a produção em série de um indivíduo


que será o mais despreparado possível para enfrentar as provas
importantes de sua vida. É completamente desarmado que ele
enfrentará a realidade, sozinho, sem recursos, emperrado, por toda
esta moral e este ideal babaca que lhe foi colado e do qual ele é incapaz
de se desfazer. Ele foi, de certo modo, fragilizado, vulnerabilizado,
ele está prontinho para se agarrar a todas as merdas institucionais
organizadas para o acolher: a escola, a hierarquia, o exército, o
aprendizado da fidelidade, da submissão, da modéstia, o gosto pelo
trabalho, pela família, pela pátria, pelo sindicato, sem falar no resto.
(GUATTARI, 1987, p. 13)

Isso provoca outra perspectiva de concepção de cidadania. Tê-la como


algo em construção, transformação, expressão do universo simbólico. Daí
propor um experimentar o estranhamento com relação à própria cidadania,
com o que faz com que as pessoas sejam o que elas são e com as relações que
as pessoas estabelecem com esse “são” que elas têm no interior da sociedade.
O “eu”, a “pessoa” não são dados. São construídos como outros conceitos
historicamente contingentes. Sujeitos são sempre resultados das relações,
portanto sempre construídos. “Jeitos” pelos quais indivíduos e coletividades
se constituem como sujeitos
Deleuze com Guattari propõe uma formulação em que o desejo não
é natural e não é resultado de falta, mas sim uma montagem elaborada de
uma produção social resultante de múltiplos agenciamentos. Tanto sujeitos,
como instituições são efeitos e resultados dos encontros entre formas e
forças as quais habitam o mundo.
As instituições são “meios artificiais” (arranjos sociais) na perspectiva
de satisfação ou transformação de tendências naturais. As instituições
são atravessadas de forças que as constituem. Elas são, segundo Deleuze,
transversalizadas e atravessadas por forças de produção e reprodução,
moleculares e molares. O poder realmente se efetiva quando o humano
deseja o que o sistema induz a desejar agindo de forma afirmativa e não
repressiva. Os diferentes modos de subjetivação se conformam como
invenção ou criação de um coletivo.
As tendências naturais, conforme Deleuze, estão atreladas
exclusivamente às urgências do animal, portanto referem-se a um número
pequeno de questões. Se há a possibilidade de se dizer que a tendência se
satisfaz através dos meios, não podemos afirmar que os meios se explicam

157
pelas tendências, pois eles são sempre constructos sociais que incluem
diversos condicionantes. Assim cidadania não teria necessariamente relação
com as instituições atualmente vigentes e, mesmo tendo o desafio, também
seria retomar a pergunta sobre a que necessidades, talvez básicas, tal ou qual
instituição responde. Outra pergunta poderia emergir sobre quais novas
instituições e novos modos de subjetivação podem ser criados.
Para Deleuze (2005), Foucault se mostra um novo cartógrafo
elaborando uma nova abordagem sobre o poder, um novo mapa. Deleuze
ressalta que Foucault explicita uma transversalidade entre lutas em diferentes
campos e que sua crítica a alguns postulados das formulações tradicionais
da esquerda estavam baseados em equívocos. Enumera esses equívocos
em alguns postulados, dos quais selecionamos quatro que nos parecem
pertinentes para essa abordagem:
 Postulado da Propriedade que localizava o poder nesta, mas Foucault
mostrou que o poder é menos uma propriedade que uma estratégia. É
algo que se exerce, mais do que se possui;

 Postulado da Localização que acreditava na localização do poder no


Estado e Foucault mostrou que os aparelhos de Estado fazem parte com
os aparelhos privados de uma grande engrenagem. O poder seria local
porque nunca é global, mas ao mesmo tempo nunca é local por não ser
localizável;

 Postulado da Essência ou do Atributo que acreditava no poder


como tendo uma essência e mostra que o poder não é essência, pois é
operatório e não é atributo, mas sim relação.

 Postulado da Modalidade no qual se pregava que o poder agiria


por violência ou ideologia, ora reprimindo, ora enganando e Foucault
mostrou que o poder produz realidade mais que combate e destrói.
Se concordamos com a leitura de Deleuze sobre Foucault e sua analítica
do poder, em que mostra que este não é definido pela propriedade, pela
localização, por uma essência ou atributo ou por uma modalidade, podemos
também postular sobre uma compreensão de cidadania e uma concepção de
educação que fuja das “formas” gerais que justificavam o modo de existência
das instituições, inclusive as educacionais.
Os sistemas educacionais e as escolas, em particular, formam espaços
onde o poder se expressa de modo exemplar. Todo o processo de organização
curricular, de organização de calendário escolar, de definição das atividades
e seleção de conteúdos, dos sistemas de avaliação, promoção e reprovação
constituem dispositivos que explicitam e moldam as subjetividades
envolvidas nesses processos, revelando os princípios acima elencados.

158
3. Docência e prática educativa que aprende
Ao organizar o trabalho pedagógico há que se perguntar em que
medida a aprendizagem, de qualquer área ou disciplina e o conjunto das
aprendizagens científicas, artísticas, e outras ocorrem como aprendizagens
imaginativas, além de diagnosticar o que se tem feito nessas interações
em salas de aula e postular outras possibilidades e outras potencialidades.
Mais que algum resultado formal das leituras e das construções textuais,
de cálculos ou outras atividades e menos ainda da padronização que pode
ocorrer em processos avaliativos ou de aprendizagem, algo que importa
também é o processo em que haja abertura para quaisquer respostas,
inclusive as totalmente inesperadas. Portanto, não interessa moralizar essa
ou outra construção, quando muito na mesma medida em que se trabalha:
há que se trabalhar coletivamente as inquietações as construções permitem.
Podem-se pensar o professor como aquele que se torna permeável
por afetamentos e que sente sua subjetividade sendo transformada no
processo pedagógico no qual ele está inserido. Poderá estar em sala como
um estrangeiro, um forasteiro e manter semblante de professor humano:
palpitante e expressivo, que se assume inseguro e balbuciante e estabelece
relações frágeis.
Um interessante trabalho pedagógico poderá ser o que consegue não
subestimar, em suas ações pedagógicas, a vivência das crianças e adolescentes.
Ouvindo relatos de estagiários sobre aulas observadas nas escolas, uma
de suas queixas é que professores, às vezes ou muitas vezes, desprezam a
capacidade dos estudantes. A preocupação em direcionar, interditar ou
outra coisa que o valha no trabalho pedagógico acaba por matar o que pode
ser o fundamental que é despertar e alimentar o potencial de aprendizagem
de estudantes. Isso exige outra postura de docente.
Quando se pensa na pequena parcela do processo educacional que
é aquele que passa em uma escola ou menos ainda, numa sala de aula,
na relação de docência estritamente falando e buscamos relacionar com
valores humanos e cidadania o que nos salta como produção de sentido,
necessária é a possibilidade de pensar e praticar a aula como tempo-espaço
do encontro e do diálogo. Assume-se que a educação é constituída de
processos relacionais, performativos e estéticos; processos de produção de
cultura e autonomia; processos de autoria e imaginação.
Entendendo que o conhecimento opera por rizoma e não de forma
arborescente, não há hierarquia de saberes e a própria aula é um rizoma.
A aula não é do professor. O momento é daqueles que ali se encontram e
começa antes da hora marcada no relógio, pois há o processo de preparação
de todos. Mudar as perguntas que se faz aos estudantes. Perguntar não só se
entenderam, mas perguntar o que fazem com isso que hoje foi a aula? Como
podem fazer funcionar esta aula, este conteúdo? Como já alertara Deleuze

159
(2003) não se aprende com quem diz “faça como eu”, mas sim com quem
diz “faça comigo”. A aprendizagem é o território de cada um como aprendiz.
Não se sabe a priori o que produz afetamentos no outro. Pode ser um olhar,
um jeito de falar, um texto específico, uma brincadeira, um exemplo, uma
palestra. Algo indeterminado é que dispara a aprendizagem.
As transformações tecnológicas, informacionais, comunicacionais
no mundo e seus reflexos na escola alteraram profundamente o sentido
da existência dessa, a ponto de muitos afirmarem a perda de sentido da
escola no contexto contemporâneo. No mínimo, parece plausível ter claro
que a escola não é mais o espaço por excelência da aprendizagem, ou que
uma série de funções que a escola já teve outrora esteja agora diluída em
outras instituições. Ou ainda como propõe Deleuze em seu Post scriptum
sobre as sociedades de controle: os limites das instituições se fragilizaram ou
inexistem sendo assumidos na ordem do controle.

4 Uma prática educativa como uma introdução a uma vida não fascista
Num estado democrático de direito a vida pública não pode se resumir
ao jogo de interesses privados os quais se digladiam ou se alternam, levando
à banalização tanto da ética quanto da política, pois dilaceram as relações
entre elas. Talvez se precise de uma associação de conceitos para dar conta dos
novos desafios teóricos e inspiradores de novas práticas nas relações humanas
em geral e nas relações educacionais em particular. Conceitos estabelecidos,
mas com processos renovados de consolidação como “dignidade da pessoa
humana” que precisam ser desterritorializados e reterritorializados, ou
conceitos novos como, por exemplo: “ecoconstitucionalismo” que estabelece
outra relação de direitos e deveres para com o conjunto da natureza
permitem bases mínimas de sociabilidade democrática no engendramento
de novos valores.
Precisamente sobre como esse processo pode ocorrer nas práticas
educativas, assumi-se de Deleuze duas inspirações a partir de duas leituras
diferentes de aspectos de sua obra, sendo uma de Foucault e outra de René
Scherer.
Propomos alguns deslocamentos e ressonâncias nos dizeres de Foucault
no prefácio que escreveu ao Anti Édipo que depois ficou conhecido como
Introdução a uma Vida não Fascista. Lá, ao apresentar e caracterizar a obra
de Deleuze e Guattari, Foucault avalia que o texto tem três adversários e que
o pior deles é o fascismo. Não somente o fascismo de Hitler e Mussolini,
mas os microfascismos que estão em cada pessoa e que as leva a desejar o
poder. Procurou sintetizar em alguns princípios, aspectos que poderiam,
caso fosse o objetivo, tornar o Anti Édipo um guia de uma vida não fascista.

160
O deslocamento e ressonâncias estão no sentido de, apropriando desses
princípios, criar o que se poderia chamar uma prática educativa não fascista.
Afirmar pistas, delimitações de postura, de relações as quais contribuam
para uma postura docente que não se renda aos apelos do poder e assim não
seja fascista. Pode-se descrevê-los da seguinte forma:
a) Entender o ato pedagógico como um ato profundamente político
e a ação pedagógica liberta de qualquer busca de fundamento
unitário totalizante e, assim, na ação, dispersar sentidos e multiplicar
possibilidades;
b) Como ação política, o ato educativo, pedagógico deve fazer crescer
a ação, o desejo e expandir o pensamento, mais que qualquer prática
de subdivisão e hierarquização;
c) Desenvolver uma pedagogia nômade, preferindo experiências que
fortaleçam a multiplicidade e a positividade abandonando as forças
do negativo e da uniformização. Evitar as formas de vivência do
poder pedagógico que tradicionalmente se encastelam em categorias
que castram o pensamento e a ação;
d) Ligar sempre o desejo com a realidade de modo a conseguir uma
força revolucionária que potencialize o combate por uma proposta
pedagógica nômade e fazer isso com uma militante alegria;
e) Sendo a educação um dos lugares mais habitados por “verdades” e
por universais, uma ação político-pedagógica não terá como foco
se apresentar como verdade ou desacreditar um pensamento, mas
procurará ampliar as possibilidades de pensar e agir;
f) Fugir dos universais que estabelecem fora das relações de poder a
existência do homem, do sujeito, do indivíduo. Pensar nesses como
produtos do poder. Pensar o espaço da sala de aula como um espaço-
tempo que fortaleça a coletividade;
g) O desejo de poder aparece de diversas formas, sobretudo, na melhor
das intenções, na ilusão de que está imune aos seus encantos e
contornos;
h) Sendo o indivíduo produto do poder, a ação educativa a ser
desejada não é aquela que restabeleça “direitos”, mas sim a que
promova a “desindividualização” por multiplicação, deslocamento e
agenciamentos.
i) Por último, literalmente na expressão de Foucault: “não caia de amores
pelo poder” e pensar, por exemplo, o lugar do professor não como
este espaço de poder que esquadrinha, organiza o espaço e tempo
dos alunos, hierarquiza e prioriza conteúdos, mas um exercício de
desinstalação dos pedestais do saber, da verdade, da moral.

161
​ cabando com o “dever ser”, não há necessidade de afirmação de
A
nenhuma forma institucional vigente. É possível reordenar e criar toda uma
nova geografia da aprendizagem e do ensino. Nessa mesma perspectiva, a
outra apreciação foi feita por Scherer (2005) sobre o aprender com Deleuze.
Ele propõe o que seria um aprendizado com Deleuze e o que implica esse
processo. Como máxima norteadora seria praticar a despersonalização e
abrir-se às multiplicidades que nos atravessam e libertar-se da ilusão de
sermos consciência e sujeitos. Destaco dois pontos:
a) A imprevisibilidade do como se aprender;
b) Pensar, mais que organizar o pensamento logicamente. Produzir
ideias, mesmo que inclassificáveis, indeterminadas. Repensar a
distinção entre o verdadeiro e o falso. O esforço de Deleuze estaria
em desobstruir o pensamento daquilo que o entrava e deforma;
Talvez pudéssemos terminar esse texto com as palavras do próprio
Deleuze proferidas ao final de uma entrevista concedida a Toni Negri
publicada com o nome de Controle e devir. Nessa entrevista Deleuze afirma
que em Mil Platôs o que se procurou foi mostrar que uma sociedade vai se
definindo mais por suas linhas de fuga e não por contradições e, que nesse
contexto, categorias de maioria e minoria parecem mais apropriadas do que
“classes”. Nessa abordagem, maioria é um modelo, minoria é devir. Pode-se
ser maioria e minoria ao mesmo tempo em critérios diferentes. Quando se
é minoria, a perspectiva é estar como ‘máquina de guerra”, ou seja, procurar
modos de ocupar, preencher ou inventar espaço-tempo. Parece que o
que podemos fazer é apenas explicitar os lugares, mapear os territórios
percorridos e no fazê-lo, expor, também, a discursividade que possibilitou a
experiência do pensar. Deleuze propõe uma perspectiva diante dos desafios
afirmando que é hora de acreditar no mundo e suscitar acontecimentos:
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar
no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.
(DELEUZE, 1992, p.218)

REFERÊNCIAS:
DELEUZE, G. Foucault; tradução Claudia Sant’Anna Martins; revisão da
tradução Renato Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água, 2000.
_____. A Dobra: Leibniz e o Barroco. (Trad. Luiz B. L. Orlandi); Campinas:
Papirus, 1991.

162
_____. A Ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_____. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
_____. Espinosa: Filosofia Prática. (Trad. Daniel Lins e Fabien Pascal
Lins);São Paulo: Escuta, 2002.
_____. Proust e os Signos. (trad. Antônio Piquet e Roberto Machado); 2
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago,
1976.
_____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1995.
_____. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1997 b.
DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos.São Paulo: Editora Escuta,
1998.
FOUCAULT, Michel. O Filósofo Mascarado (Le Philosophe masque),
em ‘Le Monde” n. 10945, de 06 de abril de 1980. (Tradução portuguesa
de Selvino José Assmann. Fpolis, setembro de 2000). Texto acessado em
15/11/2014 http://www.lite.fe.unicamp.br/papet/2002/fe190d/texto08.htm
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; organização e tradução de
Roberto Machado. Rio de Janeiro.: Edições Graal, 2ª Ed. 1982.
GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo.
São Paulo-SP: Editora Brasiliense, 3ª ed, 1987.
KOHAN, Walter O. Entre Deleuze e a Educação. In Educação e Realidade.
Porto Alegre v. 27 n.02 p.124. jul./dez. 2002.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: Silva, Tomaz Tadeu. O
sujeito da educação. Petrópolis:Vozes, 1994, p.35--86.
OLIVEIRA, M.A. Os Desafios da Ética Contemporânea. Kairós - Revista
Acadêmica da Prainha Ano V/1, Jan/Jun 2008.
SCHÉRER, René. Aprender com Deleuze. In Educação e Sociedade.
Campinas, vol. 26, n. 93, p. 1183-1194, Set./Dez. 2005. Disponível em
<http://www.cedes.unicamp.br>

163
CARTOGRAFIAS DA DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO: A
PSICANÁLISE E UMA OUTRA ERÓTICA
Flávio José de Carvalho194 195

À GUISA DE INTRODUÇÃO
A reflexão presente neste texto representa um dos movimentos
discursivos de nossa investigação acerca da questão da diversidade na
educação, tema que vimos investigando no Grupo de Pesquisa Educação
e Ensino de Filosofia (UFCG/CNPq), cujas discussões abrangem a relação
diversidade e educação, nos âmbitos da questão de gênero, de raça ou
etnia, de crença religiosa e de identidade sexual. O título do nosso projeto
de pesquisa é “Cartografias195 da diversidade na Educação”, numa alusão
196

enfática à metodologia predominante nas nossas investigações. Contudo,


no texto que apresentamos a seguir não a utilizaremos devido ao caráter de
revisão bibliográfica e crítica que o constitui, embora este não esteja isento
tampouco alheio às importantes contribuições que Michel Foucault ofereceu
para a discussão da homossexualidade no Ocidente196. 197

Diante do exposto, desenvolveremos um exercício filosófico acerca


de duas questões fulcrais: primeiramente, arguimos se haveria um
determinismo biológico da homossexualidade; reconhecemos que Freud já
compreendia que a natureza humana não se constitui única e exclusivamente
de características heterossexual ou homossexual. Neste sentido, em seu
escrito “A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher”,
Freud insinua a tese, porém, apresenta certas vicissitudes em defendê-la,
que somos constitutivamente bissexuais; o corolário desta informação é
194 Doutor em Filosofia e Professor da Universidade Federal de Campina Grande. Contato: flavio.
carvalho@ufcg.edu.br.
195 Durante a investigação utilizamos a metodologia da cartografia, cujas ideias e práticas iniciais
foram realizadas por Foucault. Entretanto, Deleuze se ocupou em demonstrar sua aplicação bem
como suas inúmeras possibilidades e neste sentido a cartografia vincula-se ao desafio de nos
direcionar para as heterotopias, os vários lugares possíveis, para outros novos espaços, diferentes
relações, que por sua vez estimulam o reconhecimento e a criação das novas formas de existência e
de subjetividade, com suas modalidades de relação do sujeito consigo mesmo e com a realidade que
o cerca, sempre no exercício da liberdade. Trabalhar com a metodologia cartográfica oportuniza
que se à cópia, à mera reprodução, uma vez que a cartografia constituirá tantos diagramas quantos
forem os elementos envolvidos e as relações possíveis de serem reconhecidas. Lançar o olhar
cartográfico sobre o texto literário requer ir além da análise do discurso ou a interpretação dos
fatos, requer o movimento de encontrar o elemento marginal que se dissolve e se camufla no texto,
requer dar atenção ao detalhe, à fala secundária, ao não dito do texto.
196 Foucault manteve uma discussão acirrada contra o entendimento de que a homossexualidade
seria determinada por elementos biológicos; criticava inclusive o uso do termo “homossexual”,
que se associava ao determinismo biológico, preferindo utilizar o vocábulo “gay”, por conta de sua
conotação de militância, de comprometimento político. Sugestões de leituras: FOUCAULT, M.
História da sexualidade: vol. I: a vontade de saber. Graal, 2007; e também, FOUCAULT, Michel. Um
diálogo sobre os prazeres do sexo Nietzsche, Freud e Marx. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005; ou ainda:
FOUCAULT, Michel. Ditos e escrito, vol. V: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense,
2004.

164
conceber que não há coerência em falar em “opção sexual”, antes falar em
“orientação ou identidade sexual”.
A segunda questão se apresenta como corolário da primeira investigação,
qual seja qual a importância que o conjunto de ideias de uma dada época
social pode imprimir sobre um campo do saber humano197. Escolhemos 198

como exemplo o saber e o discurso da psicanálise, discutindo assim o quão


a psicanálise desde Freud até os dias atuais sofre o peso das ideologias
(conjunto de ideias) de uma sociedade em que a heterossexualidade é o
padrão de conduta e de mensuração, e tudo o mais, em termos de variáveis
de vivência erótica ocupa a marginalidade dos relacionamentos humanos.

1 PRIMEIRO OLHAR SOBRE O TEXTO DE FREUD: ALGUMAS


VICISSITUDES
Começando pela análise do texto de Freud, vemo-lo ocupado
em justificar a escassez de reflexão sobre o tema [já em seu tempo, ou
melhor, sobretudo em seu tempo]. Ele alerta para o fato de que, apesar do
homossexualismo entre as mulheres ser menos notificado, ele é tão existente
quanto entre os homens. Atente-se que já nesta época a exposição pública
da sexualidade feminina (homossexual) acompanhava aproximativamente
a mesma omissão em termos da conduta heterossexual, ou seja, era
insuficiente ou não era exposta ou tematizada.
O primeiro movimento interpretativo de Freud – que o acompanhará
ao longo de todo o texto – é a busca de estabelecer relações causais entre a
orientação sexual da jovem e sua vida familiar, pautado na reflexão vinculada
ao Complexo de Édipo. Por exemplo, ele descreve a difícil situação que a filha
vivenciava junto à mãe: “Tratava os filhos de modo inteiramente diferente,
sendo decididamente áspera com a filha e de excessiva indulgência com os
três filhos”198. Ao mesmo tempo descreve a indolência da filha frente ao pai:
199

“a paciente era sempre reservada no que dizia sobre a mãe, ao passo que, em
relação ao pai, nada disso acontecia”199. 200

Porém, percebemos que com o desenvolvimento do texto, Freud amplia


a reflexão e expõe a problematicidade da questão para além dos vínculos
familiares; neste momento, emerge sua oscilação entre a possibilidade do
tratamento da chamada “inversão” e a consideração da “bissexualidade
originária”. Estes dois trechos, que são consecutivos apontam neste sentido,
senão vejamos: “A tarefa a cumprir não consiste em solucionar um conflito
neurótico, mas em transformar determinada variedade da organização
197 Ver FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
198 FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In Edição
Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
199 Ibidem.

165
genital da sexualidade [grifo nosso] em outra.”200 E em seguida: “Tal 201

realização — a remoção da inversão genital ou homossexualismo — nunca,


pela minha experiência, é matéria fácil.”201 E assoma outra problemática,
202

acerca da possibilidade de falar-se em cura da inversão: “Em geral,


empreender a conversão de um homossexual plenamente desenvolvido em
um heterossexual não oferece muito maiores perspectivas de sucesso que
o inverso; exceto que, por boas e práticas razões, o último caso nunca é
tentado”.202 203

A compreensão freudiana mostra-se cada vez mais oscilante acerca


do entendimento da bissexualidade originária. Isso se evidencia quando ele
destaca que tal situação depende da escolha do objeto: “Devemos lembrar-
nos de que também a sexualidade normal203 depende de uma restrição
204

na escolha do objeto”. (...)“Via de regra, o homossexual não é capaz de


abandonar o objeto que o abastece de prazer e não se pode convencê-lo
de que, se fizesse a mudança, descobriria em outro objeto o prazer a que
renunciou”204. 205

Neste fragmento, compreendemos que se apresenta uma dupla


possibilidade interpretativa: ou entende-se a homossexualidade como
momento de fixação do sujeito sobre o objeto de prazer, e assim coloca-se a
homossexualidade como escolha, ou como outrora, se dizia “opção sexual”;
ou entende-se a homossexualidade como uma outra potencialidade da
psique humana enquanto vivência de sua sexualidade, o que ratificaria a
recém-adotada expressão “orientação sexual”.
No seguimento do texto, Freud continua se detendo em considerações
acerca do método psicanalítico e semeando elementos da vivência da
200 Ibidem.
201 Ibidem.
202 Ibidem.
203 Acerca do uso da nomenclatura “normal”, “anormal’ e similares no texto de Freud selecionamos
os seguintes trechos; todavia, seu discurso no geral parece apontar num sentido diverso, ou seja, de
não compreender tais orientações como patológicas ou não:
- “Então, logo descobrimos seu plano secreto, que é obter do notável fracasso de sua tentativa um
sentimento de satisfação por ter feito tudo quanto possível contra a sua anormalidade, com o qual
pode resignar-se agora de consciência tranqüila. [sic]”
- “Estou ciente da importância que se prende à primeira das perguntas, contudo não se deve
exagerá-la e permitir-lhe que obscureça o fato de características secundárias esporádicas do
sexo oposto amiúde estarem presentes em indivíduos normais, e de características físicas bem
acentuadas do sexo oposto poderem existir em pessoas cuja escolha de objeto não experimentou
mudança no sentido da inversão. “
- “A segunda questão — se se tratava de um caso de homossexualismo congênito ou adquirido —
será respondida pela história completa da anormalidade da paciente e de sua evolução. O estudo
desse aspecto nos mostrará até onde essa questão é estéril e despropositada.”
- “Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa normal, leva algum tempo antes de se tomar finalmente
a decisão com referência ao sexo do objeto amoroso.”
- “uma medida muito considerável de homossexualismo latente ou inconsciente pode ser detectada
em todas as pessoas normais”.
204 FREUD, Sigmund. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. In Edição
Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

166
jovem com a família, até que abruptamente ele afirma que “em ambos os
sexos o grau de hermafroditismo físico é, em grande parte, independente
do hermafroditismo psíquico”205. Freud se afasta da consideração da
206

homossexualidade a partir de uma análise fisiológica e expõe seu anti-


fisiologismo interpretativo. Vejamos como isto acontece, no exato momento
em que ele descreve os caracteres da jovem:
“A jovem bela e bem-feita tinha, de fato, a figura alta do pai e suas
feições eram mais agudas do que suaves e feminis, traços que
podiam ser vistos como indicadores de masculinidade física.
Alguns de seus atributos intelectuais também podiam estar
vinculados à masculinidade, como, por exemplo, sua acuidade
de compreensão e sua lúcida objetividade, na medida em que
não se achava dominada por sua paixão.” Então, adverte: “Mas
essas distinções são antes convencionais que científicas”206. 207

Lá nos últimos parágrafos deste primeiro bloco de seu texto, ele


advertirá mais uma vez contra qualquer espécie de unilateralismo na
interpretação analítica do homossexualismo:
A literatura do homossexualismo em geral deixa de distinguir
claramente entre as questões da escolha do objeto, por um lado,
e das características sexuais e da atitude sexual do sujeito, pelo
outro, como se a resposta à primeira necessariamente envolvesse
as respostas às últimas. A experiência, contudo, demonstra o
contrário: um homem com características predominantemente
masculinas e também masculino em sua vida erótica pode
ainda ser invertido com respeito ao seu objeto, amando apenas
homens, em vez de mulheres. Um homem em cujo caráter
os atributos femininos obviamente predominam, que possa,
na verdade, comportar-se no amor como uma mulher, dele
se poderia esperar, com essa atitude feminina, que escolhesse
um homem como objeto amoroso; não obstante, pode ser
heterossexual e não mostrar, com respeito a seu objeto, mais
inversão do que um homem médio normal. O mesmo procede,
quanto às mulheres; também aqui o caráter sexual mental e a
escolha de objeto não coincidem necessariamente207. 208

E no encerramento do bloco apontará para aquilo que ele chama de


“uma questão de três conjuntos de características”:
O mistério do homossexualismo, portanto, não é de maneira
alguma tão simples quanto comumente se retrata nas exposições
populares: ‘uma mente feminina, fadada assim a amar um
homem, mas infelizmente ligada a um corpo masculino; uma
mente masculina, irresistivelmente atraída pelas mulheres,
205 Ibidem.
206 Ibidem.
207 Ibidem.

167
mas, ai dela, aprisionada em um corpo feminino’. Trata-se, em
seu lugar, de uma questão de três conjuntos de características,
a saber: caracteres sexuais físicos (hermafroditismo físico;
caracteres sexuais mentais (atitude masculina ou feminina e tipo
de escolha de objeto208.
209


De maneira geral, em todo o segundo e terceiro blocos do texto,
Freud dedicar-se-á à descrição da vida da jovem em família e as possíveis
relações estabelecidas com a sua homossexualidade – leia-se Complexo de
Édipo: e busca confirmar seus argumentos interpretativos relacionando-os
à sua situação difícil com a mãe: “A análise da jovem revelou, sem sombra
de dúvida, que a amada era uma substituta de sua mãe”; e acerca da sua
intolerância com o pai:
Ademais, essa inabilidade absolutamente não era intencional.
Era notável, também, que ambos os genitores se comportavam
como se entendessem a psicologia secreta da filha. A mãe era
tolerante, como se apreciasse a ‘retirada’ da filha como um
favor feito a ela; o pai se enfurecia, como se compreendesse a
vingança deliberada dirigida contra ele209.
210

2 NÃO AOS DETERMINISMOS


Fizemos as exposições anteriores com o intuito de descrever o
itinerário feito por Freud em seu texto. Todavia, o mais notável – nos blocos
II e III do texto – de sua reflexão para a nossa investigação aparece ainda no
bloco II, outra vez de maneira abrupta, quando ele se ocupa em estabelecer
as ligações na vida familiar da jovem, advertindo o leitor para que não se
considere esta interpretação como determinismo: “É bem sabido que a
análise de homossexuais masculinos em numerosos casos revelou a mesma
combinação, o que deveria nos alertar contra formarmos uma concepção
demasiado simples da natureza e gênese da inversão e mantermos em mente
a bissexualidade universal dos seres humanos”210. Trata-se de mais uma
211

oscilação?
Outrossim, a nossa percepção indica que na démarche reflexiva e
discursiva de Freud como que explodem outros indicativos que o remetem
à tese da bissexualidade originária, mas ele não as aprofunda. Não podemos
indicar o porquê – por ora – destes recuos. Então, ele retorna à investigação
das ligações familiares. Todavia, este método interpretativo é restrito.
Mesmo Freud o admite. Senão vejamos, quando ele diz:
Mas, se avançarmos de maneira inversa, isto é, se partirmos

208 Ibidem.
209 Ibidem.
210 Ibidem.

168
das premissas inferidas da análise e tentarmos segui-las até o
resultado final, então não mais teremos a impressão de uma
seqüência [sic] inevitável de eventos que não poderiam ter
sido determinados de outra forma. Observamos, a seguir, que
poderia ter havido outro resultado e que poderíamos ter sido
capazes de compreendê-lo e explicá-lo. A síntese, portanto,
não é tão satisfatória quanto a análise; noutras palavras, de um
conhecimento das premissas não poderíamos ter previsto a
natureza do resultado.211
212

Assim sendo, Freud considera que a interpretação analítica tem força


quando consideramos as situações correlacionadas de maneira analítica,
considerando que se estabelecem relações necessariamente causais entre
elas. Ora, hoje, já compreendemos que mesmo com um grau de exatidão
grande, não são interpretações exatas, são sempre interpretações passíveis
de ampliações ou reduções e que não se aplicam a todos os casos, mesmo
que apresentem similaridades evidentes; e acerca deste ponto mesmo
Freud assim entendia: “Não sustentaremos, portanto, que toda jovem que
experimenta um desapontamento, como esse do anseio de amor, que brota
da atitude de Édipo na puberdade, necessariamente cairá, por causa disso,
vítima do homossexualismo”212. 213

Dirigindo-nos agora para a finalização da reflexão acerca do


primeiro ponto de nosso exercício filosófico, o qual pretendeu evidenciar
a concepção freudiana acerca da originalidade do bissexualismo – para daí
argumentarmos que o ser homossexual ou heterossexual são constitutivos
de cada ser, não constituindo desvio ou inversão – indicaremos mais alguns
momentos em que Freud oscila em seu discurso. Questionamos, então, ao
que parece a questão da homossexualidade não estava tão resolvida para
Freud, enquanto terapeuta da transição do século XIX para o XX. Ou será
que estava, mas ele não se sentia motivado a propor sua tese e enfrentar mais
uma vez a sociedade vitoriana europeia, que já o havia rechaçado quando de
sua exposição acerca da sexualidade infantil?
Há várias menções no texto em que Freud categoriza os indivíduos
homossexuais como anormais e os heterossexuais como normais, todavia,
seu discurso em sentido geral aponta num sentido diverso, ou seja, de não
compreender tais orientações como patológicas ou não; entre estas menções
separamos um exemplar de cada:
Estou ciente da importância que se prende à primeira das
perguntas, contudo não se deve exagerá-la e permitir-lhe que
obscureça o fato de características secundárias esporádicas do
sexo oposto amiúde estarem presentes em indivíduos normais
[grifo nosso], e de características físicas bem acentuadas do

211 Ibidem.
212 Ibidem.

169
sexo oposto poderem existir em pessoas cuja escolha de objeto
não experimentou mudança no sentido da inversão.213 214

Todavia... “(...) uma medida muito considerável de homossexualismo


latente ou inconsciente pode ser detectada em todas [grifo nosso] as pessoas
normais.” (Ibidem)
Outrossim, após várias oscilações, Freud afirma:
A psicanálise possui uma base comum com a biologia, ao
pressupor uma bissexualidade original [grifo nosso] nos seres
humanos (tal como nos animais), todavia, ele afirma que a ela
se resguarda o papel de entender que mecanismos psíquicos
contribuem para que se dê a escolha do objeto.214
215

Se assim for compreendido, como bissexualidade original, a


homossexualidade perde a conotação corriqueira de mera questão de
escolha e se desvencilha do fisiologismo; outrossim, enfraquece a tese de
um determinismo psicanalítico em considerá-lo como mera inversão ou
mera fixação num objeto.
Vimos na abertura para compreender que há uma pluralidade de
conjuntos de características proposta por Freud, a possibilidade de incluir-
se a discussão acerca da originalidade do homossexualismo. Freud percebia
bem mais profundamente esta questão e acusa seus contemporâneos de
não considerar tal fenômeno com a abrangência devida. Ele chega a utilizar
a expressão “A literatura tendenciosa obscureceu nossa visão dessa inter-
relação”215 denunciando o equívoco em se considerar apenas um conjunto
216

de características na interpretação analítica do homossexualismo.


Essa denúncia, válida para os tempos de Freud, continua válida até
hoje, sobretudo entre os psicanalistas, os quais não raramente, assumem
posicionamentos tão preconceituosos quanto o mais iletrado dos seres
humanos.

3 DESPRECONCEITUALIZANDO
Com esta denúncia abrimos as discussões para a crítica psicanalítica
feita por Graciela Barbero em seu livro intitulado Homossexualidade e
perversão na psicanálise: uma resposta aos Gay & Lesbian Studies.
A pouco nos inquietávamos sobre a postura de Freud enquanto
intelectual em seu tempo histórico. Neste sentido, sentimo-nos à vontade
213 Ibidem.
214 Ibidem.
215 Ibidem.

170
para notificar a sua dificuldade de discutir o tema do homossexualismo,
compreendendo que “Todo conhecimento sofre as limitações de sua época
histórica; os conflitos da sociedade representam-se nas disciplinas científicas;
as ideologias estão no cerne da própria construção da realidade.”216 Barbero se
217

aproveita desta afirmação de Slavoj Zizek, em sua obra Um mapa da ideologia,


para lançar as bases de seu discurso. E amplia revelando que “esta função
ideológica dissemina-se como conhecimento científico desinteressado; o
poder circula por meio de significantes articulados às diferenças sexuais;
repercutindo nos diferentes graus de resistência e oposição às práticas não-
heterossexuais”.
Ela propõe uma revisão quer do posicionamento do campo do
conhecimento denominado “psicanálise” quer daqueles que o compõem,
“os psicanalistas”. Alertando para o fato de que “a psicanálise tem que levar
em conta a nova ordem social, para não pensar conservadoramente numa
desordem na sociedade heteronormada”.
Em síntese, a autora defende a despatologização moral das práticas
sexuais, bem como, a equalização com as práticas heterossexuais e
compreende que a revisão desta posição científica ocorre também como
revisão política, entendida como campo em que se desenvolvem as relações
de poder: “Alocar os conflitos da sexualidade no âmbito dos conflitos de
poder entre os grupos sociais; isso cobra negociações políticas!!!”217 218

Neste sentido, cabe a divulgação dos grupos de iniciativa civil, os


quais convocam a sociedade para o debate e para a reformulação conceitual
dos padrões de convivência social, pressionando, outrossim, o Estado e a
Ciência Jurídica (como veremos adiante) a se repensarem: “Os grupos
militantes aderiram a uma identidade para combater o qualificativo de
perverso”218 [inclusive na psicanálise]. Em síntese, sua discussão propõe um
219

reordenamento social”.
Barbero cumprindo com a sua contribuição convoca a psicanálise a
uma revisão e para começar propõe a reflexão da relação homossexualidade
(entre outras práticas não convencionais) e a perversão.
Partindo desta inquietante questão, Barbero se projetou em uma
pesquisa, cuja convergência de compreensões levou-a aos “Gay & Lesbian
Studies” – que são um conjunto de textos de várias áreas produzidos
com o fim de questionar os gêneros como criação cultural e tudo que daí
deriva. Movimento nas universidades norte-americanas na década de 80,
tais pesquisas questionavam as teses da naturalidade e essencialidade”219. 220

A tese inicial de Barbero mostra-se simples, “O próprio mundo social está


216 BARBERO, G. H. Homossexualidade e Perversão na Psicanálise: uma resposta aos Gay&
Lesbian Studies. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p. 14.
217 Ibidem, p. 14.
218 Ibidem, p. 19.
219 Ibidem, p. 41.

171
a mostrar novas formas culturais”220. Então, porque negar-se a entender
221

que novas situações históricas geram novas compreensões intelectuais e


científicas.
Neste viés politizado, não raramente, ela faz uma convocatória aos
movimentos emancipacionistas que reivindicam espaço na sociedade a
se manterem firmes no pleito, posto que é a partir daí que se processam
os movimentos de mudança, que podem levar às transformações sociais.
Ademais, contando com a capacidade de se atualizar dos conhecimentos
humanos, tal transformação poder alcançar os pensamentos e os discursos
dos intelectuais e cientistas.
Seguindo na demonstração da visão preconceituosa no mundo
intelectual, a autora expõe alguns argumentos bastante pertinentes para
evidenciar a carga pejorativa que se imprime à homossexualidade. Na
literatura psicanalítica a homossexualidade é associada à perversão (mas
não em Freud que considera inversão; atente-se para o fato de que apesar
de Freud oscilar em identificar ou não a homossexualidade com patologia,
considerando-a como “fixação”, ele não a considera como perturbadora do
resto da estruturação psíquica do sujeito); afirma Barbero: “A literatura sobre
homossexualidade na psicanálise atual não diferencia homossexualidade e
perversão, quase sinônimas”221. A mesma denúncia fizera Freud acerca da
222

literatura científica de sua época.


Atente-se para o fato de que a discussão é bem mais ampla do que uma
mera conceituação. E mais problemático ainda, porque tal conceituação
é feita desde um ponto de vista andro e heterocentrista, bem como,
heteronormativista? “O que faz com estes conceitos não se separem? Porque
a homossexualidade é tida como no comparativo com a heterossexualidade.
Porque a relação entre duas mulheres é uma das fantasias do imaginário
erótico da sexualidade moderna?”222 Ora, desde a arte até o senso comum,
223

a intimidade feminina é tolerável na modernidade. Qual o estatuto desta


tolerância?

4 DISCURSO PSICANALÍTICO E A NOVA EROTOLOGIA


Barbero toma Jean Allouch como base para ensejar esta outra etapa
de sua reflexão, a qual considera a psicanálise entendida como erotologia e
não como disciplina normativa. Jean Allouch partindo dos Seminários 10 e
13 de Jacques Lacan propõe pensar a homossexualidade e as outras formas
de erotismo como variações da normalidade possível. Atente-se para o fato
que o Seminário 13 é aquele em que Lacan reforma a castração, daí em
diante falo será tido como conceito e não como órgão peniano, “pensar o
220 Ibidem, p. 15.
221 Ibidem, p. 21.
222 Ibidem, p. 22.

172
falo como função!!!”223 224

Mais uma vez chamamos atenção para a interdisciplinaridade, para


analisarmos a seguinte fala da autora: “Verificamos a existência de uma
nova erótica que, entre outras, oferecerá novas e diferentes formas de
subjetivação social”224. Posto que a verificação de uma nova erótica é um
225

legado obtido pela observação das novas entidades sociais, das novas
tribos (no dizer de Michel Maffesolli), dos novos sujeitos jurídicos, isto é,
da pluralidade antropológica em que se insere o ser humano no alvorecer
do século XXI. Desse modo, diversos homens e mulheres protestam contra
os determinismos, as disciplinas e as sanções impostas aos inconformados
com o padrão. Acerca do que não é possível não mencionarmos que para
Foucault ser gay não era apenas um posicionamento corpóreo e sexual,
antes era um ato político, um comprometimento mesmo com a construção
de uma existência, individual, mas também coletiva, a vida como obra de
arte, ser em construção:
A sexualidade é algo que nós mesmos criamos – ela é nossa
própria criação, bem mais do que a descoberta de um aspecto
de nosso desejo. Devemos compreender que com nossos
desejos, através deles, instauram-se novas formas de relações,
novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não
é uma fatalidade; é uma possibilidade de se alcançar uma vida
criativa. Nós devemos antes criar um modo de vida gay. Um
devir gay225.
226

Antônio Carlos Wolkmer, em seu livro, Introdução ao Pensamento


Jurídico Crítico, discute a relação entre psicanálise e direito e afirma:

Como qualquer formação social, os novos sujeitos coletivos


(associações, conselhos, organizações não-governamentais,
etc, constituídos por desempregados, negros, mulheres,
homossexuais, idosos, etc.) não deixam de comportar uma
referência ao inconsciente. De outro modo, a emergência
dos sujeitos coletivos agentes desejantes, conscientes de suas
carências e com capacidade de auto-organização na luta por
direitos, definem o projeto emancipatório de mudança do
imaginário coletivo.”226
227

Ora, mesmo a ciência jurídica, considerada uma das áreas do


conhecimento humano que avança a passos lentos (e, por conseguinte, os
223 BARBERO, G.
H. Op. cit., p. 28.
224 Idem, p. 35.
225 FOUCAULT, M. Sexo, poder e indivíduo. 2. ed. Florianópolis: Nefelibata, 2004, p. 27-28.
226 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 122.

173
ordenamentos jurídicos) já percebe a necessidade de repensar-se a partir
das novas organizações sociais. Veja-se que inclusive o Direito de Família,
uma das joias preciosas do ordenamento jurídico de um país, tem aberto a
discussão acerca da união e adoção em famílias homoparentais:

Homossexualidade e adoção aquece o debate e propõe uma


discussão sobre família e homossexualidade, levantando
importantes questões - a orientação sexual do pai ou da mãe
é pertinente para a discussão da parentalidade? Em que a
homossexualidade ou a heterossexualidade dos pais interfere
na relação de pais e filhos? Que desdobramentos sobre a vida
afetiva, conjugal, sexual ou profissional dos filhos pode ter o
desejo dos pais pelo mesmo sexo ou pelo oposto? Adaptação
da tese de doutorado de Anna Paula Uziel, mais do que o
relato de uma excelente pesquisa, o livro abre inúmeras pistas
de investigação no que diz respeito ao que são e virão a ser as
famílias do século XXI, certamente não mais centradas nos
modelos exclusivamente heterossexuais.”(Mesma coisa da nota
anterior: formatação para fonte e recuo específicos.)

É nesta circunstância que se põe a proposta de Graciela, qual seja, “a


pretensão de uma teorização psicanalítica científica e não ideológica ou
preconceituosa dos novos fenômenos sexuais”.227 Veja-se que Wolkmer fala
228

em “sujeitos coletivos agentes desejantes” e Graciela reflete que abordar


a questão das novas eróticas não se restringe a mero levantamento do
que existe, mas partir daí para entender e implementar o movimento de
mudança que se espera possa ser acompanhado pela psicanálise: “Não se
trata de fazer uma listagem da “diversidade”, mas compreender as relações
entre desejo e gozo, entre necessidade e possibilidades, de satisfação
pessoal e realização social que se revelam nestas novas configurações
sexuais e sociais”228. E neste sentido, emerge outra problemática a qual se
229

configura nestas novas estruturações sociais, questionando o que já se tinha


solidificado na sociedade, inclusive sob o argumento da natureza (que o
diga os jusnaturalismos).
Quanto ao argumento da naturalidade indo de encontro às novas
configurações eróticas, lembramos o exposto acima quando mostramos a
concepção freudiana de homossexualidade e a relação com o argumento
fisiológico. Ela foi rechaçada por Freud, quando expurgou considerações
de caráter meramente fisiologistas, em consideração a um conjunto de
características. Graciela ratifica afirmando: “Freud mostrou a separação
entre o biológico e o subjetivo nas escolhas sexuais, negou outrossim, uma
naturalidade desejante segundo a anatomia; não separando, ligando os
comportamentos normais e neuróticos”229. 230

227 BARBERO, Graciela Haydée. Op. cit., p. 39.


228 Ibidem, p. 36.
229 Ibidem, p. 38.

174
Atualmente, os avanços da genética e da ciência da reprodução
têm corroborado proficuamente para este debate: “As novas técnicas
reprodutivas quebram o paradigma do naturalmente determinada, dando
lugar à complementaridade da reprodução humana”230. E se observarmos,
231

mesmo que superficialmente a história da ciência e do direito, notificaremos


que algo considerado anti-natural e anti-ético, algum tempo depois não se
discutia mais nestes parâmetros (inseminação artificial, doação de órgão).
Quem pode garantir que não é este o caminho que está seguindo a clonagem
e a cibernética aplicada á medicina?
Barbero nos informa ainda que “até 1973, a Associação Americana
de Psiquiatria considerava a homossexualidade como um distúrbio mental.
A partir dessa data, passou a considerá-la como um reflexo das realidades
sociais e políticas”. E ainda: “desde 1993, A Organização Mundial de Saúde
retirou o termo “homossexualismo” do Catálogo Internacional de Doenças,
o que o Conselho Federal de Medicina já tinha reconhecido desde 1985”. E
finalmente, que “em dezembro de 1998 a Associação Americana de Psiquiatria
(APA) se posicionou contra as “terapias de cura” - como são chamadas as
terapias destinadas a ‘reverter’ homossexuais em heterossexuais”231. Tantos
232

anos foram necessários para oficializar esta tese que Freud defendera em seu
texto, como já citamos acima.
Cabe, portanto, à psicanálise e àqueles que a constituem em
construções teóricas e práticas definir qual será o posicionamento, não
somente frente ao fenômeno do homossexualismo, como também das
novas formas de erotismo da sociedade contemporânea. Assumir um
discurso sintonizado com outros campos do conhecimento humano e
com a démarche social-histórica do ser humano hodierno, ou manter-
se obtusamente sobre estruturas heteronormativas e preconceituosas.
Repetindo as lições de medicina de Caelius Aurelianus, considerado, depois
de Galeno, o médico mais proeminente da antiguidade, e que apregoava
contra o uso indiscriminado da música contra a loucura, no século V, da
Antiga Roma, e que classificou a passividade masculina e a inversão de
papéis sexuais como perturbação mental:Ecce quesita!!!

À GUISA DE CONCLUSÃO
Após a proposição desta reflexão acerca das novas incursões em que a
psicanálise precisa disponibilizar-se a fazer, resta-nos a compreensão de que
nesta proposta mais do que denunciar a carga preconceituosa que embase
a teoria e a prática de muitos psicanalistas, pretende-se apontar para as
novas configurações sociais do mundo contemporâneo. Em síntese, trazer a
psicanálise do status de disciplina normativa para o de uma nova erotologia.
230 Ibidem, p. 36.
231 Ibidem, p. 105.

175
Entendendo que é um trabalho multidisciplinar. Aqui já nos ocupamos de
mostrar a quantas anda esta atividade em outras áreas.
Neste sentido, para finalizar selecionamos um texto de data milenar,
escrito por Platão, e que enseja a discussão acerca do amor. Na démarche
do diálogo é colocada a temática do amor homossexual e assim o que
vemos descortinar-se é uma reflexão tomada desde o ponto de vista de uma
bissexualidade originária. Mesmo que se tratando de uma narrativa mediada
pelo argumento mitológico, entendemos em sua intra-textualidade a tese
de uma bissexualidade originária. Ao que parece é necessária uma volta
aos clássicos para quebrarmos preconceitos hodiernos. Platão escreve n’O
Banquete que Aristófanes falando a Erixímaco afirma que os homens não se
dão conta nenhuma do poder do amor e se habilita, portanto, a instruir os
presentes ao banquete sobre o poder do amor,assim declarando:
É mister começardes por aprender o que é a natureza humana e as
mudanças por que passou. Outrora, realmente, nossa constituição não
era a mesma de hoje, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos da
espécie humana eram três, não dois como hoje, masculino e feminino;
havia ainda um terceiro que participava de ambos aqueles; o homem
conservou-se até hoje, embora o sexo mesmo tenha desaparecido; existia,
naquele tempo, um que era o andrógino; participava, assim, no aspecto
como no nome, de ambos os sexos, macho e fêmea; hoje não existe senão
como um nome insultuoso. Em segundo lugar, a figura de cada homem
estava inteira, sendo as costas redondas e as costelas em círculos; tinham
quatro mãos, e pernas em número igual ao das mãos; sobre o pescoço
bem redondo, dois rostos, em tudo iguais, mas o crânio, sobre os dois
rostos colocados um ao contrário do outro, era um só; as orelhas, quatro;
duas as pudendas e tudo o mais dobrado como daí se pode imaginar. Não
só caminhava ereto, como presentemente, no sentido que quisesse, como
também, toda vez que se lança numa carreira veloz, girava as pernas
em círculo e as reconduzia à vertical, como quem vira cambota; como
então eram oito os membros em que se apoiava, avançava rapidamente
rodando.

A razão de serem então os sexos em número de três e assim formados


é que o masculino era primitivamente um rebento do Sol; o feminino,
um da Terra e o comum-de-dois, um da Lua, porquanto também a Lua é
comum-de-dois. Eram circulares, não só na figura como na locomoção,
justamente por serem semelhantes a seus progenitores.

Eram, por conseguinte, dotados duma força e duma robustez formidáveis,


inflados dum orgulho imenso; atreveram-se contra os deuses e também a
eles se aplica o que diz Homero de Efialtes e Oto, o terem empreendido a
escalado do céu para medir-se com os deuses.

Ora, Zeus e os outros deuses puseram em deliberação o que lhes cumpria


fazer e viram-se embaraçados; matá-los, fulminá-los com um raio, como
aos gigantes e extinguir a espécie, não era possível; extintas ficar-lhes-
iam as honras prestadas pelos homens, bem como os templos; tampouco
podiam tolerar a sua insolência.

176
Depois de muito excogitar, Zeus disse:

Acho que descobri um jeito de existir a Humanidade, mas deixar de


insubordinações: enfraquece-la. Por ora – disse – vou cortar cada um
deles em dois; serão, ao mesmo tempo, mais fracos e mais proveitosos
para nós, por aumentarem de número. Tão de andar eretos, sobre duas
pernas; mas, se ainda acharem de ser arrogantes e não quiserem sossegar
– disse – tornarei a cortá-los em dois, de sorte que caminhem com uma
perna só, aos pulinhos.

Dito isto, fendeu os homens em dois, como quem talhas as sorvas para
fazer conserva ou como quem corta os ovos com fios de cabelo. De cada
um dos que fendia, mandava Apolo virar a cara e a metade do pescoço
para o lado do corte, para que o homem contemplando o seu talho, tivesse
melhor comportamento; quanto ao resto, mandava-o medicar.

Apolo ia virando as caras e, arrepanhando de toda parte a pele sobre


a hoje chamada barriga, como quem fecha uma sacola, deixava uma
abertura só que amarrava no meio da barriga; é o que se chama umbigo.
Ia aplainando a maior parte das dobras restantes, que eram muitas, e
modelava o peito, manejando um instrumento mais ou menos como o
dos sapateiros que alisam na forma as rugas do couro; deixou, porém,
umas poucas, as situadas em torno da barriga mesma e do umbigo, para
memória da passada mudança.

Ora, fendido o físico em dois, cada metade sentia saudade da outra e


juntavam-se; envolvendo-se com os braços e enlaçados uns nos outros,
no desejo de unificar-se, iam morrendo da inanição e da completa
desídia, por não se disporem a fazer nada um sem o outro. Toda vez que
morria uma das metades e sobrava a outra, a restante buscava uma nova
e se lhe enlaçava, quer topasse a metade duma, quando inteira, mulher
(isto é, do que hoje chamamos mulher), quer dum homem; e dessa forma
se iam acabando.

Condoído, Zeus atinou com um novo artifício; passou-lhes as pudendas


para o lado da frente – pois, até então, traziam-nas do lado externo,
gerando e reproduzindo-se, não uns nos outros, mas na terra, como as
cigarras. Passou-lhas, pois, assim para a frente, fazendo-os gerar por
intermédio delas um no outro, o macho na fêmea.

A intenção era esta; se, naquela juntada, um macho encontrasse uma


fêmea, ocorria geração e a espécie se conservava; ao mesmo tempo, ainda
que se encontrassem macho com macho, da união resultaria ao menos
a satisfação e, aquietados, se entregariam ao trabalho, cuidariam dos
outros interesses da vida. Data de tão longe, na espécie humana, o amor
recíproco, o restaurador do físico primitivo, que procura de dois compor
um e curar a natureza do homem.

Cada um de nós, portanto, é uma meia-senha humana, um ser fendido,


como os solhos, um feito em dois, cada qual sempre em demanda da
meia-senha correspondente. Todos os varões, pois, que são segmento do
comum-de-dois, então chamado andrógino, são mulherengos e a maioria
dos adúlteros deriva daquele sexo, e todas as mulheres caída por homens
e adúlteras procedem daquele sexo. Porém, todas as mulheres que são
segmento de fêmea, não dão a mínima atenção aos varões; ao contrário,

177
são mais voltadas para as mulheres, e daquele sexo é que procedem as
lésbicas. Por fim, todos quantos são segmento de macho procuram o
macho e, enquanto estão na infância, fatias que são de macho, gostam de
homens, comprazem-se em deitar-se e enlaçar-se com homens. São eles
os meninos e rapazes mais perfeitos, por serem, por natureza, os mais
viris; há quem os acoime de desavergonhados, mas é falso; não fazem isso
por sem-vergonhice, mas por arrojo, coragem, virilidade, pela atração do
que lhes é semelhante. [grifo nosso]

REFERÊNCIAS
BARBERO, G. H. Homossexualidade e Perversão na Psicanálise: uma
resposta aos Gay & Lesbian Studies. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. 19. ed. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2009.
__________. Sexo, poder e indivíduo. 2. ed. Florianópolis: Nefelibata,
2004.
FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher.
In Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
Maffesoli M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas
sociedades de assas. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MOTT, L. O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da inquisição.
Campinas-SP: Papirus, 2000.
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Cultrix, 1999.
WOLKMER, A. C. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2002.

178
“TUDO QUE É HUMANO CARECE DE FIRMEZA”

Ronaldo Luiz Silva do Nascimento232 233

O Banquete, texto de Platão que é segundo W. Jaeger (1995, p. 724)


“Uma das maiores obras poéticas da literatura universal”, permite esboçar
um quadro do desafio que é o empenho humano em se orientar ao dar por si
como um animal senciente entregue à própria sorte. Como escreveu Ortega
y Gasset “nossa vida vive sempre de uma interpretação do Universo” (1989,
p. 70). Seja como indivíduo e as inquietações e incertezas intransferíveis de
sua vida pessoal ou no convívio em que se acresce a isso as contradições e seus
conflitos, a temporalidades dos acordos, o ser humano está sempre forjando
respostas para o porquê de sua condição finita criando expedientes para a
falibilidade de suas ações, transitando por crises entre certezas e incertezas.
Enfim, estamos sempre obrigando o mundo a falar o que dissemos dele.
Mas se somos animais tristes em consequência dessa autoconsciência
que nos é própria e que não nos deixa esquecer nossa condição mortal
e histórica, somos também aqueles capazes de, nas palavras de Hannahh
Arendt (1988, p. 225), “iniciar um novo mundo com aqueles que são por
nascimento e por natureza novos”.Nossa responsabilidade intermediadora
em proteger o desenvolvimento das novas gerações permite a elas a
reinterpretação do universo humano sem que com isso desconsiderem o
mundo como um bem comum.
No Banquete, reunidos em torno do tema do deus Eros, o amor – já
presente na vida filosófica da Grécia em Parmênides e Empédocles, como
catalizador da ordem cósmica (Cf. Jaeger, p. 729-730) –, são proferidos
cinco discursos com o intuito de homenagear e descrever esse deus. Em
seu discurso, Sócrates relata como foi iniciado nos mistérios de Eros pela
sacerdotisa Diotima. O filósofo explica que todos nós somos fecundos,
seja pela paternidade ou maternidade seja por realizações ou criações
intelectuais. No primeiro caso, chegado o tempo, a “força fecunda” do corpo
nos faz padecer da “loucura amorosa” que nos leva à procriação sexual e
a dedicação à criação dos filhos; submetemo-nos a caprichos e perigos
“pela concepção e pela geração” (206 c) através das quais nos perpetuamos
como seres finitos. Já a fecundidade intelectual refere-se aos “fecundos
na alma” capazes de criar feitos e obras que impressionam a memória das
gerações, “pela imortalidade do mérito e pela fama gloriosa” (208 d). Os
gênios humanos se sacrificam por suas criações pelas quais querem também
contornar a finitude humana continuando vivos na memórias dos que
232 Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Pará (1997) e mestrado em
FILOSOFIA pela Universidade Federal do Pará (2014). Atualmente é professor do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará e professor ad4 - efetivo - Secretaria de Educação do
Estado do Pará. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Epistemologia

179
nasceram depois.
Apesar da ciosidade com que em ambos os casos o ser humano se
dedica a cuidar de sua cria, anulando seus interesses mais imediatos como
indivíduos, revelando a força amorosa pela qual é possuído, é fácil deduzir
que para Platão, um filósofo com grande interesse pela política, a fecundidade
da alma, a principio, é não só mais gratificante como mais decisiva. A alma
fecunda dotada de sabedoria e orientando-se com “prudência e justiça” é
capaz de criar leis que estabelecem a melhor forma de organizar a política,
“o governo da cidade e a organização da família” (209 a-b). Criação digna
de maior apreço é de quem for capaz de promover com seu engenho a
perenidade da boa ordem da polis, a política, assim tornando a concepção e
a geração dos filhos uma tarefa mais fácil de ser bem sucedida.
Uma ideia comum no Banquete e que reaparece no discurso de
Sócrates é a de que o amor só é fecundo pelo e no Belo, mas se contrapondo
aos outros discursos que atribuíam ao amor a beleza, ele afirma que o amor
não é belo e sim carente do belo e por isso o deseja e busca. Sabe-se que
feio, Sócrates ao caracterizar o amor como carente do belo e ainda como
não sendo um deus e nem muito menos um simples ser humano, procurava
valorizar a figura do filósofo: este não possui a sabedoria (o belo), mas a
deseja e a busca ciente de que nunca a possuirá como os deuses, nem a
desconsidera como os homens ignorantes233. 234

O belo é no discurso de Sócrates um duplo da sabedoria almejada pelo


filósofo e sua conquista é apresentada por ele através de uma ascese a qual
vai da adoração da aparência dos belos corpos e belas ações, que por sua vez
auxiliaram na passagem para a compreensão do belo da ordem inteligível
do mundo, que por fim nos deve remeter à contemplação do inteligível que
origina e sustenta o cosmo, como bem observa Cornford (2001, p. 60). “Em
grego, ‘cosmo’ significa beleza e também ordem”.
Só assim deve alguém entrar ou ser levado pelo caminho do
amor, portanto das belezas particulares para subir até aquela
outra beleza, e servindo-se das primeiras como degraus: de um
belo corpo passará para dois; de dois, para todos os corpos belos,
e depois dos corpos belos para as belas ações, das belas ações
para os belos conhecimentos, até que dos belos conhecimentos
alcance aquele conhecimento que outra coisa não é se não o
próprio conhecimento do Belo, para terminar por contemplar
o Belo em si mesmo. Só nesta altura da existência [...] e mais
em parte alguma, é que para o homem vale a pena viver, na
contemplação da beleza em si mesma (211 b,c,d).

233 “Sócrates é Eros: privado da sabedoria, de beleza, do bem, deseja, ama a sabedoria, a beleza,
o bem”. Cf. P. Hadot. O que é filosofia antiga? Págs. 69 a 85. Segundo esse mesmo autor “Esse
é o sentido do Banquete de Platão. O dialogo está construído de maneira que faz adivinhara a
identidade entre a figura de Eros e a figura de Sócrates”, cf. A figura de Sócrates, in Exercícios
Espirituais e Filosofia Antiga, págs. 91 a 127. Ver Bibliografia.

180
Na culminância dessa ascese caberia uma terceira forma de
fecundidade a qual garantiria a perpetuidade acessível ao filósofo ou a quem
se dedicar à filosofia. O filósofo reconhece comparativamente dar-se tanto
na perpetuação biológica quanto na criação intelectual a sina do ser humano
pela busca da felicidade que nos é possível pela aproximação de nossa vida
finita, precária e falha da perfeição perene da ordem geradora do cosmo
que “promove a passagem do não-ser para a existência” (205 b-c). Somos
capazes de um simulacro da criação divina pela descendência biológica e
pelas lembranças memoráveis que feitos e obras dão aos espíritos que as
criaram. Mas o filósofo, sabedor disso por ter ascendido à contemplação da
sabedoria que gesta a bela harmonia do todo do ser, mesmo ciente de que
jamais terá tal sabedoria é capaz de fazer de sua própria vida um simulacro
pretensioso dela. Como afirma P. Hadot (2014, p. 313), a “dimensão cósmica
é essencial à figura do sábio antigo”.
É dimensionando nossa atenção, pela prática da filosofia, para a nossa
condição na ordem do todo cósmico que poderemos ser capazes de gerar
uma vida fecunda por certa conduta em acordo com a harmonia que o
ordena. Tal conduta nos aproximaria, nós seres falhos e finitos, ainda que
minimamente, da perfeição e perenidade da criação do todo da qual fazemos
parte, essa é a suprema felicidade que nos é acessível. Essa é a criação do
filósofo, pouco afeito às preocupações e expedientes com os quais a maioria
quer alcançar a perpetuidade individual. Ele mostra com sua conduta
filosófica o quão fecunda é sua sabedoria, que não tendo a perfeição da
ordem e harmonia divina remete maximamente a ela.
Para Platão, essa vida filosófica não caminhava apenas em direção
do aperfeiçoamento moral do individuo pelo qual ele deveria intentar
conhecer o melhor de si, defendida pelo próprio Sócrates, e nem objetivava
a preparação para a imersão no todo divino da criação no pós-morte
pitagórico (Cf. Cornford, 2001, págs. 57-58) A conduta filosófica, sendo o
rebento da contemplação do filósofo na ordem do cosmo, é uma prática
símile finita dos atributos da perfeição criadora do todo.
“é sempiterna, não conhece nascimento nem morte, não
aumenta nem diminui” (211 a).

“existe em si e por si mesma e é eterna una consigo mesma”


(211 b).

“simples, pura e sem mistura” (211 e).

A conduta autossuficiente do Sócrates platônico é exemplar: na calma


temeridade com que ele é descrito no enfrentamento ou na retirada do
campo de batalha, ou quando não se abalando pelo vinho ou pelo assédio de
Alcebíades, na serenidade e coerência consigo com que encara sua sentença

181
de morte dada pelo Estado, ela é o paradigma da educação do homem grego
(Jager, 1995, p. 747). Platão atribui o essencial da virtude do governante a
essa autossuficiência ou domínio de si socrática, com a sabedoria filosófica
que a sustem. Para a boa política os governantes deveriam aprender filosofia
ou os filósofos precisariam ser os detentores do poder político.
Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar
o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de
começarem seriamente a filosofar, por algum favor divino, os
dirigentes da cidade. (Carta VII b)

Entendemos, porém, que não é apenas por ensinar com palavras


e conduta filosófica a sobriedade, a temperança e a justiça que quem
governar deverá leva em consideração a filosofia. Sendo a autossuficiência
proporcionada pela vida filosófica, a simulação da harmonia do cosmo, a
filosofia daria a capacidade ao governante de criar as leis e a constituição
mais justas para ordenar bem e sempiternamente a vida na cidade. Projetar-
se-ia, então, na cidade, a ordem gestora e perene da harmonia do cosmo,
capaz de resistir ao assédio dissoluto dos excessos da carne e do egoísmo
humano e de dirimir os conflitos inerentes ao convívio políticos.
Contudo, sabemos pelo próprio Platão (Carta VII) que sua experiência
pessoal com a política foi frustrante e mesmo desastrosa. Ele relata que
quando era jovem pensava entrar para a política e já nesse período frustrou-
se com dois acontecimentos envolvendo Sócrates: instaurada uma ditadura
em Atenas da qual participaram alguns amigos e parentes de Platão, os
ditadores na tentativa de comprometer Sócrates com seu governo tentaram
obrigá-lo a executar um cidadão, ordem que Sócrates recusou-se a obedecer;
depois, por volta dos vinte e oito anos, acompanhou o julgamento injusto de
Sócrates por alguns cidadãos que foram vítimas do mesmo governo tirano
ao qual Sócrates recusara participação. Já maduro, Platão viaja até Siracusa
para ao lado de seu amigo e discípulo Dião materializarem seu projeto de
um governante filósofo, educando Dionísio, sobrinho de Dião e tirano de
Siracusa, para a vida filosófica. O resultado foi desastroso, Dião foi expulso
e posteriormente morto acusado de manipular a sobrinho visando ao poder
e Sócrates mantido cativo por um longo tempo.
Platão afirma que em política “nada é possível fazer sem amigos e
colaboradores de confiança” (Carta VII. 325 d) e Dionísio parecia o exemplo
negativo pela desconfiança que tinha por todos próximos a ele. Segundo
Platão, a insociabilidade do pai de Dionísio foi marcante na criação do
filho: incapaz, por exemplo, de cultivar amizades e confiar em pessoas para
compartilhar o poder das varias cidades conquistadas por ele na Sicília,
governou-as de maneira tirânica. Esse “pai o privara da sociabilidade que a
educação proporciona e da que advém das boas relações de família” (Carta

182
VII. 323 a). Para Platão a disposição natural da maioria dos homens para a
filosofia ou não é boa o suficiente ou está corrompida. É possível pensar que
o pai de Dionísio perpetuou em seu filho seja pela herança biológica ou pelo
exemplo moral a sua arrogância exacerbada e isso tenha colocado por terra
o projeto platônico do filósofo governante.
Talvez tenha faltado a Dionísio ou a Platão a participação do que
Ortega y Gasset chamou de “geração decisiva”. A vida humana está longe
de se resumir ao determinismo dos nossos condicionantes biológicos
e culturais, nosso ser está por se definido essencialmente. Ao nascermos
encontramos estabelecido um repertorio de crenças políticas, religiosas,
científicas, artísticas, por exemplo, com as quais damos definições a essa
carência de ser e pelas quais temos a visão de mundo de nossa época. Elas
são expedientes que os seres humanos criam para os problemas com os quais
o entorno do mundo natural e do convívio nos afronta, são as convicções de
uma geração. Todavia, essas convicções ou visão de mundo não respondem
convincentemente a todas as inquietações desse ser inconcluso que é o ser
do homem; insuficiência das respostas e inquietações que podem se agravar
por se acumularem ao longo da história com o suceder das gerações.
Nesse contexto, cada geração imprime, ao longo do tempo, pequenas
e grandes variações ou mudanças na visão de mundo que herdam por não
encontrar nela completa satisfação para o seu anseio por compreender a si,
ou melhor, definir seu ser imerso no entorno em que se encontram vivendo
suas vidas. As gerações são formadas por pessoas coetâneas que comungam
de parte da visão de mundo que herdaram ao mesmo tempo em que se
assemelham pela insatisfação com relação a essa herança e a mudanças que
causam a ela. Nesse sentido, as gerações podem ser “de ampla uniformidade
[ou] de heterogeneidade e dispersão” (Ortega y Gasset. P.48) com relação
ao que pensavam e viviam as gerações anteriores. Isso faz do ser humano
um forjador paradoxal de horizontes de mundo, estando constantemente
assumindo e modificando antigas crenças ou forjando novas para dar
fisionomia ao seu ser. Assim, cada geração modifica a fisionomia que até
então se tinha dado à vida humana, ao seu ser.
o homem para viver necessita, queira ou não, pensar, formar
convicções – ou o que é o mesmo, que viver é reagir a
insegurança radical construindo a segurança de um mundo;
em outras palavras, crendo que o mundo é deste ou de outros
modo, para em vista disso dirigir nossa vida, viver. (Ortega y
Gasset. P. 41)

Segundo Ortega y Gasset, entre 1550 e 1650 ocorreu uma sequência


de “gerações decisivas na evolução do pensamento europeu” (Ortega y
Gasset. P.67). Entre esses cem anos Copérnico, Descartes, Giordano Bruno,
Montaigne, Hobbes, Bacon, Galileu e outros operaram uma verdadeira

183
mudança de mundo. Suas ideias não se restringiram a retificar as crenças
vigentes e sim realizaram a transformação da visão de mundo do homem
europeu e que marcou o período moderno ocidental. Em alguns casos
dialogando entre si, inquietados por questões comuns e insatisfeitos com as
respostas dadas a elas pela tradição, ou desconhecendo o trabalho paralelos
que os outros realizavam, esses pensadores forjaram alguns traços do mundo
que ainda é em grande parte o nosso.
Mas o que leva ao surgimento ou quais as condições necessárias para
o aparecimento dessas gerações decisivas de homens fecundos na alma,
Ortega y Gasset explica menos que Platão. Segundo ele, de tempos em
tempos as mudanças históricas, nas quais “o sistema de convicções de ontem
sucede outros hoje – com continuidade, sem salto” (Ortega y Gasset. P. 80),
convulsionam-se em uma verdadeira crise de ideias e valores: as crenças ou
convicções que até então lhes garantiam a ancoragem de sua carência de ser
perdem seu poder de convencimento. Essa situação de crise é insuportável
para o animal que somos, cujo ser é constitutivamente carente de um projeto
vital definido, “a existência humana tem horror ao vazio” (Ortega y Gasset.
P. 82). Agoniado nesse vazio, sedo ou tarde o ser humano cria expedientes
para recobrir esse vazio com alguma nova crença.
Talvez tenha faltado a Platão coetâneos os quais não fossem seus
discípulos e que, no entanto, de alguma maneira com fecundidade de alma
dessem origem a empreendimentos e ideias que compartilhassem com
Platão a vontade de instaurar uma ordem política baseada na sabedoria
filosófica. A Dionísio, por sua vez, talvez tenha faltado a figura humana capaz
de intermediar sua chegada ao mundo, permitindo-lhe o amadurecimento
das qualidades e talentos que só ele poderia trazer ao mundo.
Hannah Arendt escrevendo sobre a perda de legitimidade da autoridade
que distingue o período moderno, define as crises como situações em que
as crenças em comum perdem sua capacidade de convencimento ao afirmar
que “perdemos as respostas nas quais nos apoiávamos de ordinário sem
querer perceber que originariamente elas constituíam respostas a questões”
(Arendt. 1988, p. 223). Sendo as ações humanas e seus frutos marcados
incontornavelmente pelo fato da natalidade, de que em cada nascimento
humano está em jogo a continuidade e a ruptura com a ordem vigente,
de que cada criança tem o potencial tanto de se integrar ao mundo que
a recebe quanto de trazer consigo a capacidade de transformar, criar,
estabelecer o que até então não havia sido relevante, pode-se deduzir que
os empreendimentos humanos trazem consigo a impredizibilidade do seu
destino. Nesse contexto, seria possível a ocorrência de uma constelação de
certo número de nascimento para os quais as respostas dadas merecessem
desconsideração ou fosse alvo de um escrutínio crítico completo.

184
Arendt compreende que junto com a família a educação formal exerce
um papel mediador entre as gerações. Tanto para o professor como para a
família, a criança e o jovem é um ser humano em formação sobre o qual não
deve recair dogmaticamente o mundo estabelecido e nem por isso esperar
dele por si só a tarefa de recriar um mundo melhor. Na modernidade
ocorre o processo no qual permanece pouco distinta a esfera do publico
e do privado, que se dá entre outros motivos pela mercantilização da
dinâmica social. Arendt não tratou detidamente da busca insidiosa da
mídia por informações da privacidade de nossas vidas e a concomitante
manipulação mercadológica de nossa intimidade, mas reconheceu na
crise provocada pela perda de legitimidade da autoridade em todas as
esferas no período moderno o espaço aperto para isso: a mercantilização
comum à esfera publica alcança à esfera do privado através da propaganda
de consumo e com isso crianças e jovens, que deveriam estar protegidos
durante seu amadurecimento pelo ambiente familiar no qual encontram a
primeira acolhida e integração ao mundo, são bajulados lhes atribuindo um
suposto universo que lhes seria próprio e do qual qualquer gerência dos
mais antigos é, se não desnecessária, inoportuna, visto que o jovem já teria
autonomia para fazer as próprias escolhas. Falsa autonomia em que o desejo
e o imaginário tocados pelas imagens e sons da propaganda condicionam a
escolha ou liberdade ao poder de consumo e às situações compulsivas que
ele promove.
Dos educadores e da família se espera que sejam facilitadores ausentes
desse universo infantil e teen das novas gerações. No caso especifico do
educador, a autoridade que lhes deveria ser atribuída pela competência
na matéria de sua formação é desprestigiada, principalmente se se trata de
assuntos pouco práticos ou de ensino e aprendizado nada prático.
Como dissemos acima, para Arendt toda nossa ação de longo prazo
está contingenciada pelo fato da natalidade humana. Novas pessoas chegam
ao mundo e agem conformadas ou passivamente ao que lhes é apresentado
sobre ele. A ação educadora não se isenta dessa contingência: a criança
chega ao mundo que lhe é estranho e em processo de amadurecimento, o
que implica que a mediação educadora e decisiva para a sociedade:
a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de
destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o
mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e
destruído pelo assedio do novo que irrompe sobre ele a cada
nova geração (ARENDT. 1988, p. 235).

Para Arendt, o professor ou professora precisariam se posicionar entre


a nova geração com seu potencial transformador de mundo e o próprio
mundo, sendo capazes de apresentar o mundo como um bem comum, nisso

185
deve repousar sua autoridade. Porém, a crise de autoridade que marca o
período moderno tem o duplo significado de não apenas não se reconhecer
a legitimidade de uma autoridade como a própria pessoa encarregada
de exercê-la se desincumbe de assumir a responsabilidade. Quanto à
responsabilidade dos adultos sobre o abandono das novas gerações Arendt
é enfática: “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode
significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade
pelo mundo ao qual trouxeram as crianças” (ARENDT. 1988, p. 240).
É nesse contesto que crianças e jovens ainda amadurecendo para
alcançar a autonomia em sociedade são expostas à escolha em que as
opções já estão marcadas pelo consumismo o qual premedita um alegado
mundo que lhes seria próprio através de bens e imagens. Nele são isolados
do compartilhamento do mundo adulto pelo qual podem amadurecer para
assumirem responsabilidades coletivas, além de se subestimar com isso a
capacidade de cada geração de renovar o mundo como um bem comum a
partir do que trazem para ele como singularmente sua contribuição. Nesse
quadro, crianças e jovens não encontram as condições nas quais podem
desenvolver “suas qualidades e talentos pessoais” os quais fazem de todo
indivíduo humano um ser que jamais existiu e cuja existência renova o
encantamento pela vida.
Certamente por motivos diferentes há uma grande possibilidade
de nos assemelharmos ao pai de Dionísio. Padecemos da dificuldade em
compartilhar o mundo que acreditamos ter conquistado ou de crermos ser
nosso, exclusivo, a parte que dele nos cabe como latifúndio, ensinando isso
às novas gerações isolando-os em mundos etários infantis e teens, depois as
abandonando no mundo e o mundo a elas como pessoas com dificuldades
de reconhecê-lo e de com ele lidar com o que devemos compartilhar.
Para finalizar. Alega-se como prova irrefutável do fracasso do
comunismo teórico marxista a experiência do chamado comunismo real
a qual marcou a história do mundo contemporâneo. De fato, nunca houve
uma experiência real do ideal de governo pensada por Platão, no que pese
as críticas de Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (Cf. p. 100-101)
ao projeto platônico de uma sociedade governada por mentes filosóficas nos
moldes de sua filosofia, como paradigma de um governo fechado, totalitário
pela intransigência das condições de sua possibilidade, do qual poderia se
remontar às experiências históricas de governos que alegaram ter a solução
verdadeira e definitiva para os males das contingências humanas e que
por isso se arrogaram a sanção de tudo poder fazer para isso, inclusive as
experiências do comunismo real.
Considerando as reiteradas afirmações de Platão de que a violência
deve ser sempre evitada da vida coletiva, da política, de que “devemos
considerar menor mal ser vítima de grandes crimes ou grandes injustiças,

186
do que cometê-los” (Carta VII, 335 a-b), não seriamos autores sendo vitimas
desse abandono do mundo como bem comum? Não acreditando que uma
geração decisiva surgirá para dissolver essa condição, é bom pensar que
melhor do que sermos vítimas culpadas e sermos responsáveis como Platão,
Ortega y Gasset, Arendt e outros em pensar o problema como condição
para a solução. A atitude de Platão é o anacronismo de Heidegger, de alegar
querendo nos fazer acreditar que algumas pessoas em especial, e não todas,
tem acesso privilegiado a compreensão de nossa condição e as respostas
verdadeiras a seus problemas e por isso devemos nos deixar tutelar por elas.
Como nos aconselhou Kant, ousemos pensar!

BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannahh. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, ed. Perspectiva,
1988.
CORNFORD, F. M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo, ed. Martins
Fontes, 2011.
HADOT, Pierre. O Que é Filosofia Antiga? São Paulo, ed. Loyola, 1999.
_______. Exercícios Espirituais e filosofia Antiga. São Paulo, ed. É
realizações, 2014.
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo, ed.
Martins Fontes, 1995.
ORTEGA Y GASSET, José. Em torno a Galileu. Petrópolis Rio de Janeiro,
ed. Vozes, 1989.
PLATÃO. O Banquete. Belém, ed. UFPA, 1980. (Col. Diálogos Vol. IV)
_______. Carta VII. Belém, ed. UFPA, 1975. (Col. Diálogos Vol. V)
POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e seus Inimigos (Tomo I). Belo
Horizonte, ed. Itatiaia, 1998.

187
“PROMESSAS DE UM NOVO MUNDO”: CINEMA, HISTÓRIA E
DIREITOS HUMANOS

Natália Conceição Silva Barros234 235

Amanda Alves Miranda Cavalcanti235 236

“Se discordas de mim, tu me enriqueces.”

Dom Hélder Câmara

O presente capítulo analisa o “Cine-Debate Direitos Humanos”, projeto


de intervenção didática que foi desenvolvido nas aulas de História, em turmas
do Ensino Fundamental e Ensino Médio, de uma escola pública federal
localizada em Pernambuco. A intenção do texto é socializar a experiência
de inserção de temas no campo dos Direitos Humanos no currículo escolar,
contribuir com subsídios para as práticas docentes e adensar as reflexões
neste campo epistêmico.
As sessões de filmes foram planejadas e executadas por estudantes
da disciplina Prática de Ensino de História I e II e teve como público-alvo
crianças e adolescentes do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de
Pernambuco. A ação também contribuiu na perspectiva de uma formação
docente comprometida com os desafios contemporâneos os quais afligem
as escolas e, de modo geral, a sociedade, confrontando-os com conteúdos
fora dos específicos da disciplina escolar. Por meio das ações do Cine-
Debate e das pesquisas desenvolvidas pelos docentes e licenciandos, foi
criado, consolidado e sistematizado no colégio um espaço interdisciplinar
234 Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco- UFPE (2012). Liderou o
Grupo Interdisciplinar do Tempo Presente-CNPq (2013-2014) e Coordenou o Projeto de Extensão
Ciranda Filosófica da Universidade Federal de Pernambuco. Foi professora do Colégio de Aplicação
da UFPE. Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco (2007). Possui graduação em História pela mesma Universidade (2003).
Coordenou a Especialização em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco. Entre
2007 e 2009 atuou como vice-coordenadora das Licenciaturas Diversas do Centro de Educação
da UFPE. Foi vice-líder do Grupo de Pesquisas e Estudos em Gênero - NUPEGE -UFRPE e
integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente - GTEMP da Universidade Federal de Sergipe.
Tem experiência em Pesquisa e Ensino de História, com ênfase em História das Mulheres e do
Corpo, História e Teoria da Arte e Metodologia do Ensino de História, atuando principalmente
nos seguintes temas: gênero, história das mulheres , cultura no Recife dos anos vinte, ensino de
história e Direitos Humanos. Desenvolveu pesquisa de doutorado sobre Joaquim Inojosa e os usos
da memória do modernismo. De 2008 a 2011 atuou como Coordenadora de Difusão Cultural da
Diretoria de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco-FUNDAJ. Atualmente é professora do IFPA,
Campus Belém.

235 Possui graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Fez pesquisa
para a Fundação Joaquim Nabuco contando com uma bolsa de pesquisa PIBIC-CNPq. Atualmente
é mestranda pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Tem experiência na
área de História, com ênfase em História dos Intelectuais.

188
de reflexão e debate onde os direitos humanos se encontram na expressão
cinematográfica e contribuem na formação dos/as futuros/as professores/
as.
Importa ressaltar que os filmes produzem sentidos sobre o passado
histórico e sobre o presente, daí sua relevância para os historiadores e
professores que devem investigar os projetos ideológicos e os contextos com
os quais a obra dialoga e necessariamente trava contato (Napolitano,2005).
O uso do cinema como instrumento norteador para o debate sobre os
direitos humanos nos leva a destacar a forte presença e a importância da
imagem e do visual na contemporaneidade.
Nesse sentido, o uso do recurso cinematográfico pode tanto dialogar
com este processo quanto problematizá-lo. A escola, utilizando-se deste
recurso, surge como um espaço de destaque capaz tanto de problematizar a
cultura audiovisual quanto de, a partir dela, propor debates sobre os direitos
humanos. O texto procura descrever as possibilidades e desafios dos docentes
da disciplina de História em garantir a educação em Direitos Humanos
em contexto educacional formal e sua inserção de forma transversal no
currículo da disciplina História. Nossa experiência, ancorada em teóricos
que se debruçam sobre o tema e na própria legislação em vigor no nosso
país, compreende a educação como um instrumento privilegiado da difusão
e aplicação destes direitos e estende sua importância ao mundo da escola.
O projeto Cine-Debate Direitos Humanos almejou, de modo geral, a
viabilização e sistematização de intervenções educativas interdisciplinares
em defesa e promoção dos direitos humanos através de debates instigados
pela via cinematográfica. Consequentemente, a proposta constituiu-
se como um prolongamento de ações previstas no Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos (PNDEH), assim como dos temas
transversais estabelecidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
do MEC e encontrados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB). Além da sustentação no aparato legislativo, é interessante lembrar
a possibilidade de a Educação em Direitos Humanos ser um alicerce para
a construção de uma mentalidade coletiva voltada para o exercício da
solidariedade, do respeito às diferenças e da tolerância, uma vez que aspira
à difusão e disseminação de conhecimentos que combatam o preconceito,
a discriminação e a violência e promovam valores como liberdade e justiça.
Pensar com o cinema é pensar simultaneamente. Quem sabe relacionar-
se com ele não possa incitar uma melhor adaptação ao caráter simultâneo
da vida, da sociedade e da cultura, inerente ao processo histórico? Nesse
sentido, o uso do recurso cinematográfico pode, tanto dialogar com este
processo, quanto problematizá-lo. A escola, empregando e sistematizando
este recurso, emerge tanto como um laboratório de pesquisa, quanto como
espaço de destaque capaz tanto de problematizar a cultura audiovisual,

189
quanto de, a partir dela, propor debates sobre diversas temáticas, inclusive
sobre a que focamos: a dos direitos humanos.
Como leitura/registro de uma época, uma obra cinematográfica deve
ser lida de forma cautelosa e crítica, permitindo desvendar a realidade nos
seus aspectos menos perceptíveis. Didaticamente, através de uma dinâmica
entre narração e imagem, os filmes apresentam diferentes conceitos e
visões de mundo, possibilitando aos alunos cotejarem, relacionarem
e articularem as ideias transmitidas oral e visualmente. Como lembra
Selva Guimarães Fonseca, “faz-se necessário ressaltar a importância do
filme como instrumento questionador do conhecimento, dos conceitos
construídos historicamente e que são muitas vezes transmitidos de forma
acrítica, deslocados da realidade objetiva” (FONSECA, 2009,164). Nesse
sentido, a ideia de trabalhar no projeto de intervenção com as interfaces
entre História, Cinema e Direitos Humanos na Educação Básica almejou
incentivar atividades já em curso no CAP-UFPE que fomentavam o respeito
às diferenças.
A metodologia empregada foi a do cinema-debate. O primeiro passo
após a escolha da abordagem foi a reunião de estagiários e supervisora para
elencar possíveis filmes a serem debatidos.A escolha do filme-documentário
Promessas de um novo mundo (“Promises”, Israel, 2001) ocorreu não apenas
pelo fato de o filme estar intrinsecamente relacionado com a questão dos
Direitos Humanos, mas em função de outras variáveis. Uma delas foi pensada
no decorrer das primeiras reuniões da equipe de trabalho: a ideia de pensar
filmes que além de envolverem a questão central do projeto – a relação entre
Cinema, História e Direitos Humanos – dialogassem, direta ou indireta,
com os conteúdos curriculares da disciplina de História previstos para o
público - alvo236. Este, por sua vez, acabou se restringindo apenas às turmas
237

envolvidas na regência, os sétimos anos A e B do Ensino Fundamental e


não da maneira desejada – sobretudo, pelas barreiras administrativas, como
a de conciliar o projeto com a apertada agenda escolar do CAP-UFPE,
os choques de horários e os imprevistos; e políticas, como as limitações
impostas pelo tradicional currículo da disciplina de História para o Ensino
Básico, com seus conteúdos compartimentados e dentro do convencionado
“currículo comum” e que, portanto, não podem ser “defasados”/ “atrasados”
por projetos.
No tangente especificamente à execução das atividades do projeto,
tivemos um primeiro momento no qual se apresentou a ideia central
236 O filme, “Promessas de um novo mundo” dialogou com uma série de conteúdos programáticos
trabalhados pela professora e pelos estagiários. Durante o primeiro bimestre, abordamos o tema
“Mundos além da Europa” e a partir deste foi trabalhados conteúdos relacionados à história,
cultura e costumes do mundo Islã. Já durante o segundo bimestre os estagiários trabalharam com
o tema da “Idade Média”, e os conteúdos abordados foram: “As Cruzadas” e outros conteúdos que
envolvem este movimento. Além disso, uma das aulas foi dedicada também à Jerusalém como
lugar sagrado e disputado, esta aula foi dada no 7º ano B e teve como título: “Jerusalém, cidade
sagrada e disputa por três grandes religiões”.

190
para as turmas, buscando instigá-los e seduzi-los a se envolverem com a
proposta. Em seguida, uma breve sinopse do filme-documentário a ser
trabalhado. Este, de modo geral, retrata o cotidiano de sete crianças (entre
palestinas e israelenses) da cidade de Jerusalém que, apesar de morarem na
mesma cidade, vivem em mundos completamente distintos, separadas por
obstáculos das mais variadas ordens, desde a político-econômica e militar à
física, emocional e religiosa – obstáculos historicamente construídos ainda
tão arraigados nas mentalidades de palestinos e israelenses. O documentário
explora a natureza desses limites e conta a história de algumas crianças as
quais ousaram cruzar esta linha e conhecer seus vizinhos; traz a denúncia de
como se dá a construção da mentalidade das crianças, a elaboração de um
imaginário acerca do conflito, como elas são induzidas desde muito novas –
levando em conta que seus discursos parecem já estar bastante cristalizados
– a defenderem suas verdades absolutas e a ver o outro lado como inferior
e inimigo.
Por meio dessa breve apresentação da temática e do enredo,
destacamos mais um dos elementos que nos levaram à escolha do filme:
com exceção do diretor, as principais personagens são crianças da mesma
faixa etária dos alunos envolvidos na atividade. Esta simples percepção foi
um dos trunfos da nossa escolha: os alunos logo se identificaram, mesmo
se tratando de crianças inseridas num cenário cultural bastante diferente do
deles, pois antes de serem palestinas ou israelenses, as personagens as quais
protagonizaram o emocionante encontro eram, assim como os alunos,
crianças. Esta aproximação atuou no sentido dos estudantes se deslocarem
do seu lugar comum para de certa forma perceber que, infelizmente, não
existe uma infância ideal, mas várias infâncias reais.
O contato diário com a ameaça da guerra, o medo constante e as
intransigências mútuas entre judeus e palestinos, ao mesmo tempo em que
surpreendeu e chocou alguns alunos, pareceu algo “natural” a outros, talvez
uma tentativa de aparentar maturidade ou o que seria algo mais problemático,
pode fazer parte de um triste e perigoso processo de naturalização da
violência e da intolerância. Este fato ocorreu entre alguns alunos do 7º ano B
e chocou tanto alguns colegas de turma quanto os estagiários e a professora
supervisora. O debate foi intenso e nos levou a uma reflexão sobre a questão
do sectarismo cultural.
Quanto às etapas da execução do projeto, as atividades com as turmas
demandaram quatro encontros – equivalentes a 6 horas/aula – em cada turma
do 7º ano (A e B). Como foi dito, inicialmente, o filme foi apresentado aos
alunos do 7º ano pela professora regente e pelos estagiários, que elaboraram
um material didático contendo uma pequena sinopse do filme a ser exibido.
Após este primeiro momento, foi dedicada outra aula para a exibição do
filme, sendo este assistido em sala de aula, tanto no 7º ano A quanto no
B e que, por motivos de contratempos no ambiente escolar, demandou

191
dois encontros, sendo apresentado de forma fragmentada. É importante
ressaltar os limites dos projetos de intervenção didática nas escolas básicas,
cotidianamente pressionadas pelo limitado tempo didático das disciplinas,
por programas com uma carga muitas vezes excessivas de conteúdos e
atravessadas pela burocracia escolar, muitas vezes mera resistência ao novo
no ambiente educativo formal.
Após a exibição, foi proposto um debate em sala de aula acerca das
problemáticas do filme, cujas primeiras questões instigadas pelos alunos
permearam os temas da intolerância religiosa e das esperanças em um
futuro melhor, ou seja, discutiram quais seriam as “promessas para o novo
mundo”. É interessante destacar que eles se mostraram muito preocupados
com os relatos das crianças sobre religião e “guerras santas”, pois perceberam
que estas haviam incorporado os discursos extremistas proferidos pelos
familiares e até mesmo pela escola. Os alunos também demonstraram muita
preocupação ao alegarem, muito conscientemente, que a influência dos mais
velhos na formação da mentalidade daquelas crianças acaba interferindo na
possibilidade de um mundo mais tolerante.
Porém, foi destacado nas discussões com as duas turmas que, mesmo
sendo influenciadas por pessoas as quais legitimam o ódio entre as religiões,
as crianças apresentam maior abertura ao contato com “o outro”, com o
“inimigo”, pois buscam quebrar as barreiras separadoras invisíveis. Para
tratar disso, os alunos ressaltaram as últimas cenas do filme - quando as
crianças muçulmanas e judias, separadas por suas crenças, são convencidas
pelo diretor do documentário a se encontrarem por um dia – e declaram
que são as crianças (e acabam se incluindo neste termo) o futuro do mundo
e se elas não repensarem sobre as práticas fundamentalistas presentes nos
discursos religiosos dos mais velhos o conflito nunca terá um fim.
Outro comentário feito durante o debate foi com relação aos
estereótipos criados pelos ocidentais acerca dos palestinos – sendo
apresentados nas redes de televisão como “terroristas” e “homens-bomba”.
As turmas, a partir desta discussão, chegaram à conclusão que, através
deste documentário, passaram a enxergar os muçulmanos como um grupo
heterogêneo, múltiplo e diversificado, os quais podem interpretar a vida e o
mundo de formas variadas, não sendo a religião o único aspecto limitador
de seus pontos de vista. Foi destacada ainda a problemática das terríveis
guerras políticas e religiosas pela disputa por Jerusalém – sempre perpassada
por conflitos desastrosos entre as três grandes religiões monoteístas (o
cristianismo, o judaísmo e o islamismo). É interessante declarar que essa
questão foi encarada de forma diferente pelas turmas do 7º ano.
Para o 7º ano B as guerras de intolerância contra tudo que é “diferente”
foram percebidas como algo corriqueiro e naturalizado que, segundo eles,
está muito presente no mundo midiático contemporâneo e já não é mais

192
motivo de muito espanto e perplexidade. Essa naturalização da violência
na mentalidade de crianças e adolescentes é muito preocupante e causou
entre os estagiários e a professora certa indignação, principalmente quando
um dos alunos declarou que está acostumado a tantas violências e que já
não mais se choca com atitudes desumanas de intolerância. Já no 7º ano
A o debate tomou outro rumo, pois os alunos se mostraram preocupados
com o futuro dessas guerras no Oriente, ressaltando a transplantação da
intolerância religiosa dos adultos para as crianças (lembrando dos meninos
que incorporam o discurso ultra ortodoxo). Além disso, também fazem
apelos para o fim dos conflitos, imbuídos de um sentimento de esperança
e desejosos para que a intransigência, de todas as formas possíveis, um dia
chegue ao fim. No entanto, mesmo as turmas tendo opiniões diferenciadas
acerca da mesma temática, é válido revelar também que suas opiniões
convergem quando afirmam, de forma conclusiva, que o filme é uma
verdadeira “lição de moral”237, isto é, um aprendizado que levarão para o
238

resto de suas vidas.


Após os debates sobre o filme, foi proposta aos alunos a execução de
uma atividade elaborada pelos estagiários e pela professora, sendo esta uma
ficha analítica com algumas perguntas para que eles pudessem fazer uma
análise mais minuciosa do documentário, baseados nas discussões em sala
de aula e em suas opiniões acerca dos assuntos discutidos. Essa produção
escrita, de análise do filme, foi muito importante para que eles, após os
debates que serviram para a maturação das suas opiniões, refletissem sobre
a problemática da intolerância religiosa, legitimada pelas práticas políticas,
que, através de inúmeras guerras, violam os direitos humanos.
Consideramos que essa experiência didática é interessante, pois
faz da sala de aula um laboratório de pesquisa, estimulando os alunos a
refletirem sobre as problemáticas do mundo contemporâneo – vinculadas,
principalmente, à violação dos direitos humanos, questão de muita
relevância hoje em dia – instigando-os a aguçarem sua sensibilidade, para
desnaturalizar querelas como a violência e a intolerância, além de estimular
a capacidade de argumentação e a elaboração de opiniões consistentes acerca
de temas polêmicos. A exposição, o debate e a análise do filme “Promessas
de um Novo Mundo” introduziram os alunos do 7º ano do Colégio de
Aplicação na temática dos Direitos Humanos, abordagem interdisciplinar
a qual sugere reflexões muito contemporâneas aos alunos do ensino básico.
Por ter sido uma atividade conjunta entre supervisora e licenciandos,
acredita-se que dessa forma foi possível contribuir com a formação de
educadores capazes de reconhecer, identificar e submeter à reflexão crítica
temas urgentes a serem debatidos e enfrentados pelos jovens, inseridos na
sociedade contemporânea repleta de contradições e vilipêndios de direitos

237 O termo “lição de moral” foi afirmado por algum dos alunos em uma atividade proposta pelos
estagiários e pela professora supervisora.

193
fundamentais.

1 “PROMESSAS DE UM NOVO MUNDO”: SINOPSE


“Promessas de um novo mundo” segue a jornada de um dos cineastas,
o israelense-americano B. Z. Goldberg, que viaja a um campo de refugiados
palestinos e a um assentamento israelense na Cisjordânia (margem ocidental
do rio Jordão), além dos mais conhecidos bairros de Jerusalém, onde
conhece sete crianças, entre palestinas e israelenses238. O documentário 239

retrata a história destas sete crianças em Jerusalém, que, apesar de morarem


no mesmo lugar, vivem em mundos completamente distintos, separadas
por obstáculos das mais variadas ordens, desde a político-econômica à
física, emocional e religiosa – obstáculos historicamente construídos ainda
tão arraigados no imaginário social de palestinos e israelenses e, diga-se
de passagem, não apenas destes, como nos lembra o “Orientalismo” do
renomado escritor Edward Said. Com idades entre 8 e 13 anos, raramente as
crianças falam por si mesmas e estão isoladas pelo medo. O documentário
explora a natureza desses limites e conta a história de algumas crianças
que ousaram cruzar esta linha e conhecer seus vizinhos. Ao desvelar suas
histórias, o filme – que não se concentra em eventos políticos – oferece uma
nova e emocionante perspectiva sobre o conflito no Oriente Médio. Melhor
filme na escolha do público no Festival Internacional de Roterdã de 2001
(um caso inédito, já que o filme ainda não tinha distribuição na Europa),
“Promises” (traduzido no Brasil como “Promessas de um novo mundo”)
– um filme de Justine Shapiro, B.Z. Goldberg e co-diretor e editor Carlos
Bolado – foi filmado entre 1995-200.
Tempo de duração: 106 minutos. Idioma: árabe, hebraico e inglês.
Diálogo com legendas em português.

FICHA ANALÍTICA
1) Inseridas em uma guerra secular, as crianças do filme são reprodutoras
do que é ensinado na escola e por suas famílias. O que dizem as
crianças ultra ortodoxas sobre seus “inimigos”?
2) Escreva um texto sobre a influência da religião em todas as instâncias
da vida de um indivíduo, utilizando como exemplo as crianças do
238 As sete crianças em destaque de “Promises” foram filmadas ao longo de quatro anos, quando
tinham entre nove e treze anos de idade. São elas: Yarko e Daniel, gêmeos e israelenses seculares,
vivendo em Jerusalém; Faraj, garoto palestino refugiado no Campo de Refugiados de Deheishe,
na Cisjordânia (West Bank); Sanabel, garota palestina refugiada no Campo de Refugiados de
Deheishe, na Cisjordânia (West Bank); Shlomo, garoto judeu ultra ortodoxo, vivendo num bairro
judeu na cidade velha de Jerusalém; Mahmoud, garoto palestino vivendo em Jerusalém Oriental;
Moishe e irmã Raheli vivem no assentamento de Beit El, na Cisjordânia.

194
documentário.
3) Como foi trabalhado em sala e percebido no documentário, não se
pode falar na homogeneidade dos grupos muçulmanos ou judeus.
Fale um pouco sobre essa diversidade de opiniões, utilizando como
exemplo os meninos do filme.
4) Percebendo o momento do encontro entre os gêmeos e as crianças
árabes, nota-se que eles deixaram de lado os embates políticos e suas
mágoas para brincar uns com os outros. Faça uma análise sobre esse
momento do filme.

REFERÊNCIAS
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todos. Vol. II. Rio de Janeiro,2012.
Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional
de Educação em Direitos Humanos. Secretaria Especial dos Direitos
Humanos / Presidência da República. Ministério da Educação. Ministério
da Justiça. UNESCO, 2007.
CANDAU, Vera (org.) Educação em Direitos Humanos e formação de
professores (as). São Paulo: Cortez, 2013.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. Ed.
Papirus Editora. 9 ed. São Paulo: 2009.
MARINHO, Genilson. Educar em Direitos Humanos e formar para
cidadania no Ensino Fundamental. São Paulo: Cortez, 2012.
SILVA, Ainda Maria Monteiro; TAVARES, Celma (Orgs.) Políticas e
Fundamentos da Educação em Direitos Humanos. São Paulo: Cortez,
2010.
Site da Secretaria Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.sdh.gov.
br/>. Acesso em: 18/09/2013.
Site do Programa Cine-Educação. Disponível em: <http://cineedu.com.
br/>. Acesso em: 18/09/2013.

195
FILOSOFIA E TRABALHO: UMA REFLEXÃO NO LIMIAR DA
SOBREVIVÊNCIA E DA LIBERDADE

Haroldo de Vasconcelos Bentes239 240

1 INTRODUÇÃO

O trabalho é a atividade pela qual a


natureza é transformada mediante o esforço
coletivo para arar a terra, colher seus frutos,
domesticar animais, modificar paisagens
e construir cidades. Do trabalho surgem
instituições como a família, o Estado, a
escola; obras de pensamento como o mito,
a ciência, a arte, a filosofia (ARANHA;
MARTINS, 2013, p. 54).

No que se refere à política educacional, como uma das políticas


públicas do Estado brasileiro, as ações precisam atender às necessidades
educacionais de forma contextualizada com as outras esferas de participação
dos sujeitos que aprendem, objetivando a participação na vida pública
(societal) e privada (ética) como estratégias políticas pela/para construção
da cidadania coletiva e a efetivação de um projeto de desenvolvimento de
nação (BENTES, 2009).
Nesse sentido, muitas estratégias educacionais devem ser (re)
construídas, principalmente, pelos canais da democracia, buscando ampliar
“[...] a participação dos envolvidos nas esferas das decisões, do planejamento
e da execução de políticas educacionais [...]” (HÖFLING, 2001, p. 39).
Como enfatiza Ricardo (2005, p. 9-10) “Há necessidade de repensar
as estruturas escolares para atender aos anseios de quem nelas buscam a
preparação para as incertezas e ansiedades que o panorama contemporâneo
aponta”.

2. A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇAO INTEGRAL NO ENSINO


MÉDIO INTEGRADO

Se a educação básica é o processo pelo qual as pessoas têm acesso


aos conhecimentos e à cultura da sociedade em que vivem, por outro lado,
239 Professor de Filosofia no IFPA Campus Belém. Bacharelando em Direito (FABEL), Doutor em
Educação Brasileira (UFC).

196
pela formação específica, que em nosso sistema educacional se nomeou
como “educação ou formação profissional”, as pessoas se apropriam
de conhecimentos relacionados mais imediatamente com o mundo da
produção (RAMOS, 2005, p. 108). Nesta conjuntura – o que é o trabalho
como meio de sobrevivência e como condição de liberdade?
Ante essa questão, Karl Marx240 (1818-1883) reforça que o trabalho
241

como condição de liberdade tem nas forças da Natureza e do Homem um


processo de transformação, por meio do qual o homem modifica a natureza
para atender às suas necessidades. Mas, ao mesmo tempo, a natureza
modificada humaniza o homem ao transformá-lo em sujeito de criação
(trabalho), na condição de sujeito de cultura (recriação).Na fronteira dessa
questão, a formação integral na perspectiva de potencializar a formação
cidadã, de forma imbricada com a preparação à vida socialmente produtiva,
é o centro da discussão que segue.

3 O TRABALHO COMO CONDIÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA E DE


LIBERDADE HUMANA

O conceito de trabalho como uma atividade que altera o estado material


das coisas existentes e que pela ação humana as transforma em objetos
úteis pode ser considerado como resultante da intervenção do homem na
natureza. Esse processo é concebido como resultado da idealização da mente
homo sapiens, a qual podemos denominar de trabalhador (BRAVERMAN,
1987).
Além desse conceito genérico, o trabalho pode ainda ser analisado
enquanto uma categoria ontológica e assim encarado como produção
cultural, ou seja, como resultado das representações humanas mediadas pela
linguagem, pela subjetividade e pela capacidade racional de criar e recriar
a sua própria realidade, a partir da acumulação do progresso da cultural
material (BRAVERMAN, 1987; SAVIANI, 1989).
Ainda podemos refletir sobre a concepção de trabalho, como “força
de trabalho” e, por esse viés, caracteriza-se como o recurso exclusivo da
humanidade para enfrentar a natureza.Nesse contexto, é importante
diferenciar duas categorias sociais de análise que são fundamentais à
compreensão da realidade subjacente ao mundo do trabalho na perspectiva
do modelo de produção capitalista vigente: o conceito de divisão social do
trabalho como o sistema complexo de todas as formas úteis diferentes de
trabalho; e o de divisão de trabalho entre trabalhadores, que se dá num
ambiente parcial de produção, cujo resultado é uma produção coletiva
realizada por trabalhadores atuando de forma individualizada, a qual
podemos denominar de mercadorias.
240 Marxismo, doutrina econômica e filosófica iniciada por Karl Marx e Friedrich Engels, que
tem como fundamento o materialismo histórico e dialético (ARANHA; MARTINS, 2013, p. 382).

197
A partir dessas premissas, apresenta-se a divisão social e técnica do
trabalho como consequência de um modelo de produção (capitalista), no
qual prevalece uma estratificação determinada por interesses definidos e
contratuais na relação de assalariamento.Assim, uma classe é detentora do
capital e dos meios de produção e a outra é possuidora apenas da força de
trabalho, que se torna a fonte geradora de mercadorias e da riqueza.
Essa relação contratual selada pela compra da força de trabalho cria no
sistema de produção capitalista a superação da identidade do trabalhador,
enquanto proprietário da sua própria produção, ou seja, o resultado da sua
ação não contempla o seu esforço físico e criativo. Ele não é mais dono de si
mesmo na estrutura produtiva agora parcializada.
Dessa forma, as transformações no mundo do trabalho desencadeiam
dilemas humanos no âmbito da sobrevivência e das condições de liberdade:
novas formas de sociabilidade, de intervenções educativas, no sentido mais
amplo possível (função da ideologia, alienação, desigualdades de toda
ordem) e nas práticas comportamentais.
A atividade laboral é desvinculada da identidade do trabalhador. Essa
fragmentação do “ser” trabalhador pelo viés da atividade produtiva aliena o
sujeito produtivo da obra produzida, pois a obra produzida tem um preço
que não equivale às condições de produção: o trabalhador não detém o
processo “inteiro” de produção e a obra não lhe pertence materialmente e
nem como vontade de liberdade (opção de comprá-la, de fazer o que quiser
– alienação). A teoria do valor241 não condiz com a sua condição potencial
242

de sujeito autônomo.
Além disso, a produção caminha ao processo de automação da
produção, o que configura um processo crescente de independência do
capital, que agora não é mais situado, é volátil. O trabalhador perde cada
vez mais espaço no mercado de trabalho e em decorrência dessa situação é
lançado à condição de desempregado (BENTES, 2009 e 2013).
O emprego no cenário automatizado impõe como exigência um perfil
novo de trabalhador, que pela lógica do capital em estágio de reprodução,
mediado pelo discurso ideológico, por sinal muito eficiente, embute na
divisão social do trabalho a ideia de que para estar incluído no mundo do
trabalho, e não no mercado de trabalho, o sujeito tem que dominar novos
conhecimentos e enquadrar-se num perfil polivalente e, portanto, flexível às
necessidades da produção em larga escala em tempos de globalização.
Dessa forma, a divisão do trabalho, amplia a sua esfera pela
internacionalização do trabalho. As “competências” exigidas do trabalhador
241 Segundo essa teoria, o valor económico de uma mercadoria é determinado pela quantidade de
trabalho que, em média, é necessário para a produzir, incluindo aí todo o trabalho anterior (para
produzir suas as matérias primas, máquinas, etc.). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki - acesso
26/02/2009, 10h

198
são as condições atuais para estar no mercado de trabalho e a taxonomia
também muda: agora não é mais emprego, é empregabilidade (OLIVEIRA,
2003) a condição para sobreviver com “dignidade”. A ideologia política
chamada neoliberalismo faz muito bem essa articulação para o capital em
expansão.
A produção burguesa não tem vistas à coletividade trabalhadora.
Agora, a tecnologia é o instrumento de medida da produção. Portanto,
a riqueza é o resultado do processo tecnológico, a força do trabalhador é
vista como valor agregado, o trabalhador deixa de ser o ator principal e
passa a fazer papel de coadjuvante, isso na perspectiva dos defensores do
fim da centralidade do trabalho, como Adam Schaff e André Gorz (APUD.
ANTUNES, 2001 e PRIEB, 2000).
Como consequência dessa nova forma de produção, os níveis de
desemprego aumentam assim como aumenta a riqueza nas mãos de poucos
(desigualdades extremas, alta concentração de rendas e capitais nas mãos
de poucos), nas asas das competências (OLIVEIRA, 2006) polivalentes
conduzidas por uma estrutura produtiva autônoma (leis do mercado)
mediada por trabalhadores “competentes”, guiados pelas sutilezas do
neoliberalismo (ANDERSON, 1996) pautado na concorrência “salutar”,
sem a intervenção do aparelho estatal, que deve ater-se apenas à regulação
das relações jurídicas, ou seja, advogar a legalidade do desenvolvimento
do capital globalizante. Desta maneira, o Estado se fragiliza na sua função
premente de gerador, equalizador do Bem Comum, da Justiça Social.
Nesse contexto de precariedade, o trabalho perde a sua condição
ontológica de “capacidade de sobrevivência da espécie” e assume o papel
de regulador das oportunidades de mercado. A empregabilidade é a nova
metodologia de acesso e de “sucesso” na vida. O trabalho visto a partir deste
ângulo perde a sua centralidade, enquanto forma humana produtiva e pré-
requisito à cidadania coletiva, de sobrevivência digna e de pressuposto da
liberdade de ser livre para fazer escolhas.
A partir dessa análise unilateral e caótica da categoria trabalho, a
expectativa de sobrevivência seria humanamente impossível e a liberdade
uma utopia.Diante dessa realidade, tornam-se imprescindíveis, a priori,
algumas reflexões no contexto da Filosofia na Educação Básica e Profissional,
modalidade integrada, que contemple a existência humana nas múltiplas
formas de expressão, seja social, ética, política e cultural. De maneira que não
limite essas formas de existir ao restrito segmento da produção econômica,
ou seja, do sistema produtivo.
- Qual é o papel da escola nesse cenário atual?
- Qual concepção de homem e de trabalho deve nortear a ação
educadora?

199
- Que sujeito ela deve formar?
- Qual o princípio que deve guiar as intervenções educativas do professor
no papel de mediador/problematizador/orientador no processo ensino-
aprendizagem dos alunos ao lidar com indivíduos/trabalhadores em
potencial à construção de uma nova cidadania e, que ao mesmo tempo,
saiba se situar/articular na estrutura produtiva social, política e cultural,
almejando um sujeito pleno biopsicossocial/espiritual?
Muitas dessas respostas são discutidas na proposta do Ensino Médio
Integrado (Decreto 5.1.54/2004), a qual sinaliza com uma possibilidade
de avanço e alternativa de superação do paradigma atual.Entretanto, essa
bandeira deve ser defendida não apenas pela Filosofia, sobretudo, como
Política Pública do Estado brasileiro, por uma nova práxis pedagógica
e cidadã. Compromisso este que deve estar alicerçado na construção e
implementação contínua da Escola pública de Qualidade, nas dimensões
pedagógicas, políticas, éticas e culturais, necessariamente imbricadas com
as questões macropolíticas, forjadas na estrutura estatal, nas trincheiras
polarizantes das classes sociais, no espectro da sociedade civil e na
participação ético-comunitária dos sujeitos sociais, na mais ampla acepção
da Soberania do Estado brasileiro e da Sociedade Civil.
Nesse contexto, é importante destacar algumas premissas básicas
necessárias à construção de um projeto pedagógico-político mais autêntico
e que, de fato, se proponha a incrementar novas “formas de educações”
(PRETTO e PINTO, 2006) à convivência e produção/criação humana, no
limiar da Educação enquanto uma política pública emancipatória que vise
em última instância “[...] qualidade política na população, ao propiciar
o saber pensar, a autonomia, a aprendizagem e o conhecimento de teor
reconstrutivo político” (DEMO, 2006, p. 93).
No âmbito da Escola pública, como parte dos agentes institucionais
(Constituição Federal, 1988, “Art. 227. É dever da família, da sociedade
e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação[...]” E
deste princípio constitucional dialoga-se com Spagnol (2013, p. 117) para
apresentar uma das diretrizes centrais da instituição escolar pública, que
deve ser de: “educar para a cidadania, de forma permanente, continuada e
global, a partir de Valores Humanos, visando atingir mentes e os corações,
através da igualdade entre educadores e educandos”.
Daí, não é possível aceitar que a escola pública seja utilizada com
reprodutora do sistema de desigualdades sociopolíticas e utilizada
estrategicamente como ambiente seletivo à formação para o mercado de
trabalho, aplicando a lógica dos que têm e dos que não têm oportunidades
de trabalho e vida digna.

200
Sair dessa lógica é um compromisso que deve ser enfrentado pela
Família dos alunos, pela Escola pública, pela Sociedade Civil e pelo Estado
Democrático de Diretos no limiar de uma Política Pública de Educação, à
(ao):
 Construção democrática pela/para cidadania e formação Profissional
no nível médio – formação integral;
 o trabalho como princípio ontológico da constituição humana e da
sociabilidade ética e solidária;
 compreensão/consubstanciação das categorias Trabalho e Educação
como convergentes e complementares;
 o processo educacional como critério de inclusão e cidadania coletiva;
 educação de qualidade à universalização de direitos, que não fique
restrita a critério de acesso ao mercado de trabalho.
Nessa mesma direção estão as reflexões de Carvalho (2003, p. 130) sobre
a possibilidade da pedagogia do trabalho ser concretizada na concepção de
escola unitária. Em suas palavras:
A escola unitária é aquela que integra em sua organização
a educação infantil, o ensino fundamental e médio, neste
incluído a educação profissional e é, a única, capaz de viabilizar
a formação integral e politécnica do trabalhador.

Portanto, uma escola que contemple a existência humana nas múltiplas


formas de expressão, seja social, ética, política e cultural, e que não limite
essas formas de existir, ao restrito segmento da produção econômica, ou
seja, do sistema produtivo.
A partir dessa premissa, o processo de Iniciação Científica dos alunos
na última fase da Educação Básica – o Ensino Médio Integrado torna-se
uma intervenção necessária e estratégica na direção do desenvolvimento
das capacidades e habilidades intelectuais, imaginativas daqueles, no terreno
da autonomia, das relações interpessoais e na expressão dos seus valores
internos e externos, via processos de comunicabilidade, nas dimensões
individuais (morais) e coletivas (éticas) da cidadania.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Às perguntas iniciais (quais concepções de homem e de trabalho devem
nortear a ação educadora? Qual é o papel da escola nesse cenário atual? Que
sujeito ela deve formar? Qual o princípio que deve guiar as intervenções

201
educativas do professor...?) seguem algumas possibilidades de diálogos.
As políticas públicas devem convergir na direção de espaços
emancipatórios que favoreçam a convivência democrática das diferentes
populações e ao exercício da liberdade de expressão nas dimensões da
crítica e da autocrítica, no sentido da reconstrução política dos sujeitos que
aprendem na convivência social.
No âmbito da escola pública, a questão do acesso e manutenção dos
direitos constitucionais e da criação de espaços pedagógicos de vivências
das diferenças, de maneira democrática e ética: educação permanente,
continuada e global, sem descaracterizar os traços culturais locais e sem
esvaziar o princípio da igualdade entre educadores e educandos, enquanto
aprendizes contumazes.
Quanto às intervenções educativas, trabalhos docente e pedagógico,
devem priorizar a existência humana, nas múltiplas formas de expressão,
seja social, ética, política e cultural, para além da reprodução do sistema
econômico, regido pela lógica funcional do mercado de trabalho.
Em termos de enfrentamento dessa situação alienante, a metodologia
de Iniciação Científica dos alunos do Ensino Médio Integrado se torna uma
intervenção necessária e estratégica, na direção do desenvolvimento das
capacidades e habilidades intelectuais, imaginativas, criativas de educadores
e educandos, nas dimensões da autonomia, das relações interpessoais
e na expressão dos seus valores internos e externos via processos de
comunicabilidade, esferas individuais (morais) e coletivas (éticas) da
cidadania.
Com relação à questão problema o que é o trabalho como meio de
sobrevivência e, como condição de liberdade?, há respostas potenciais no
limiar da divisória de um sistema de produção capitalista que se mostra
e se metamorfoseia em ciclos de reprodução de capitais, ora locais, ora
globais, e na emergência gritante de desigualdades sociais nas asas de altas
concentrações de rendas, nas mãos de poucos, para os quais tudo parece ser
possível e contável (monetário).

REFERÊNCIAS
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204
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA, PERPECTIVAS DA POLÍTICA EDUCACIONAL E
AS DIFICULDADES ENCONTRADAS NO PROCESSO ENSINO
APRENDIZAGEM

Fábia Nazaré Santos Grelo da Silva242 243

1. BREVE HISTÓRICO
A dignidade da pessoa humana, constitui um dos princípios mais
importantes, dos direitos humanos, porque garante valores intrínsecos ao
homem, assim como os direitos e garantias individuais e para a área
de educação, os direitos humanos é de primordial relevância, porque
conscientiza o professor e o aluno, como cidadão de seu direitos, o autor
Benevides , especifica:
O que significa dizer que queremos trabalhar com educação
em direitos humanos?A educação em direitos humanos é
essencialmente a formação de uma cultura de respeito a
dignidade humana mediante a promoção e a vivência dos
valores de liberdade, da justiça, da igualdade,da solidariedade,da
cooperação,da tolerância e da paz.Portanto, a formação dessa
cultura significa, influenciar, compartilhar e consolidar
mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos
que decorrem,todos, daqueles valores essenciais citados - os
quais deve se transformar em prática (BENEVIDES, 2003,
p.310).

Para melhor compreensão cabe citar o processo de evolução


histórica da educação,pois é importante “...compreender a “escola que
somos”, sobretudo procurando captar os processos históricos que vão
produzindo a escola e nos produzindo dentro dela, sem dicotomias e
dualismos separatistas (LINHARES,1999,p.124).
O ser humano vive em constante transformação,assim como os
setores da sociedade e com o desenvolvimento tecnológico e a quebra das
barreiras de informações “A instabilidade é a marca de nossos dias e com
ela,a incerteza, a insegurança,... (ALONSO, 1999, p.9) que sucederam à
chamada modernidade e, por isso mesmo, dita “pós-modernidade” ,
Hargreaves, também cita esse processo em comentários:

242 Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia, com Monografia de
Tema:Responsabilidade Civil decorrente de acidente de trabalho, Pós-graduada, na Faculdade
Mauricio de Nassau no curso de especialização de Direito Processual: civil, constitucional, penal
e trabalhista, com trabalho de conclusão:Danos Morais:a determinabilidade do pedido e sua
quantificação no processo; bacharel em Administração pela Universidade da Amazônia; Pós-
graduando em Docência do Ensino Superior, pela Faculdade Mauricio de Nassau e Professora nas
Disciplinas de Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos Humanos, no Centro Educacional
Glautier.E- mail:fabiagrelo@yahoo.com.br.

205
A maioria dos autores coloca as origens da condição pós-
moderna por volta dos anos 60. Pós-modernidade é uma
condição na qual a vida política,econômica, organizacional
e até mesmo a pessoal passam a ser organizadas em torno
de princípios muito diferentes daqueles da modernidade.
Filosófica e ideologicamente, os avanços nas tecnologias ao
lado do alargamento e rapidez na divulgação da informação
fazem com que se rompam antigas certezas ideológicas e
as pessoas descubram que existem outras formas de viver
(ibidem).

Vale Citar, que alguns autores não aceitam o termo pós-


modernidade, pois “o argumento clássico anti-pós-modernista diz que
traços que definiram a suposta nova época encontram-se na realidade,
presentes na modernidade” (VILLA,2002.p. 19), mas o fato é que a
evolução aconteceu e todos concordam que vivemos num período de
transição.
No caso da educação foi bem diferente pois não acompanhou a
referida mudança, caminha a passos largos e lentos, por este motivo vem
enfrentando total desrespeito com escolas sem estrutura, professores mal
remunerados, violência em sala de aula, dentre outros problemas que
afetam a dignidade do professor.
Importante citar que o processo de politização da democracia
acompanhou o da educação, pois a necessidade de formar cidadãos
conscientes da questão política , impulsionaram maior incentivo a educação
básica, no final dos anos 70 para 80, portanto é correto concluir que:
A ampliação e difusão do conhecimento acerca da situação
da educação formal brasileira simultaneamente ao processo
de luta em favor da democracia, que conduziu o país às
eleições diretas para governadores em 1982, subsidiou o
paulatino reconhecimento da educação como direito social
básico (WEBER, 2003, p. 12-13).

Foi uma excelente iniciativa o reconhecimento da educação como


direito social, pois até então não era direcionado políticas publicas e
instituições responsáveis em cuidar exclusivamente desta setor, no entanto,
mesmo com esta inovação não houve grandes avanços, mas pequenas
conquistas, como veremos em seguida.

2. POLÍTICAS EDUCAIONAIS E AS DIFICULDADES


Com o breve histórico em relação a evolução da educação,
mencionado anteriormente, observamos que o desenvolvimento educacional
acompanhou o processo de democratização do Brasil, dai começamos a
entender alguns aspectos negligenciais da evolução educacional, pois o

206
importante seria formar cidadão com o mínimo de conhecimento para que
tivessem condições de pelo menos votar, o que na verdade seria de ter
indivíduos formadores de opinião e de reflexão sobre variáveis temáticas.
Cabe informar, segundo Weber, “... três diretrizes de política
educacional voltadas para a educação básica, que estarão presentes na
Constituição Federal e nas Constituições Estaduais...,...e LDB...” :
A primeira diretriz concerne à universalização do acesso ao
ensino de qualidade.Com ênfase inicial, no começo dos anos
1980, na Educação Fundamental, estendida, a partir de
meados dos anos 1990, para o Ensino Médio, essa diretriz vem
orientando a formulação de políticas e estratégias de ação....

[...] A segunda diretriz - dignificação do trabalho docente


ou valorização do magistério - consubstancia-se, entre
outras políticas, na reorganização das condições de trabalho
do professorado, no estabelecimento de planos de cargos
e carreiras, no incentivo a formação continuada, além da
formulação de orientações para que a sua formação inicial
passe a ser feita prioritariamente em nível superior, conforme
proposta capitaneada pela instância federal.

A terceira diretriz refere-se à democratização da gestão


educacional e da gestão escolar.Ela engloba a adoção de
formas de participação da sociedade civil e da comunidade
escolar tanto na definição de prioridades, quanto na gestão
administrativo-financeira de assuntos educacionais de
assuntos educacionais e escolares, no seu acompanhamento e
implementação por intermédio de inúmeros conselhos.Em
nível federal abrange a criação de mecanismos de subvinculação
de recursos financeiros destinados à educação, de avaliação
periódica tais como o Saeb e o Enem, e o aperfeiçoamento do
Censo Escolar (WEBER, 2003, p.13-14)

A primeira diretriz deveria ser um dos passos fundamentais para


o avanço do desenvolvimento educacional,mas esbarrou nos entraves de
órgãos mal administrados e verbas insuficientes, “... até 1992, muitos
estados e inúmeros municípios mostravam-se proativos na formulação e
implementação de suas políticas educacionais, ao contrário do MEC, cuja
a gestão ....” (ibidem,p. 16), estava baseada na instabilidade de ministros.
Depois deste ano, o MEC finalmente assume o controle como
coordenador da “...política nacional de educação quando lidera a formulação
do Plano Decenal de Educação para Todos -1993-2002-, abrindo um
amplo debate que congregou o conjunto das instancias governamentais e
a sociedade civil organizada” (ibidem,p. 16).
E desde então o MEC é a principal instituição, que organiza e
formula programas de acesso a educação, bolsas, incentivos, projetos e

207
políticas públicas, com o objetivo de pelo menos diminuir a desigualdade
social e promover um processo de educação inclusiva.
A terceira diretriz, trouxe uma importante oportunidade para a
sociedade, de participar neste processo educacional, através de associações,
ONGS e outros grupos, na cobrança de medidas efetivas para o bom
desempenho educacional.Pois segundo Linhares:
É possível, em geral, que estejamos, mais interessados em
exteriorizar nosso problemas, limitando-nos a apontar os
culpados fora da escola do que em proceder a análises que -
mostrem - a nós mesmos- de que maneira vimos participando
dessa lógica de guerra que desvaloriza algumas culturas,
emudecendo, seletivamente, suas vozes (LINHARES, 2002, p.
124)

Desta forma, a tendência é de culpar um terceiro pela desvalorização


da educação, mas até que ponto participamos deste processo ou pelo
menos aceitamos a estrutura vigente, pois a formação do homem e sua
vivência ao longo de sua vida reflete na maneira de agir em sociedade,
então conscientes do papel de cada um, que seja feito a diferença em sua
comunidade, associação, escola, turma, nem que seja a transformação de
um núcleo pequeno, já é o bastante para formar cidadãos éticos.
A segunda e ultima diretriz, tema principal deste artigo, refere-se a
formação e dignificação do trabalho docente, as dificuldades são diversas,
vamos contar os méritos,foi feito programas de incentivo pelo governo
federal de formação de professores em nível superior;de aperfeiçoamento,
através de ensino a distância EAD, apoiado por instituições de ensino como
exemplo o de Educação em Direitos Humanos, promovido pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, que incentivam os
alunos/professores, que tem acesso a tecnologia até nos municípios mais
distantes da capital, em ter acesso a uma educação continuada, no horário
que for possível, dentre outros.
Desta forma, o professor é responsável pela formação da sociedade,
“Portanto a formação de professores desenvolve-se num contexto de
coletividade” (NÓVOA, 1991, apud, VEIGA, p.17) e precisa de um
incentivo maior diante dos problemas e fatores negativos enfrentados
pelos professores que são maiores do que os benefícios.

3 FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA
Considerando o docente como agente de transformação educacional,
a relação docente e discente,as perspectivas quanto a política educacional

208
ao longo da história e a vigente, já explicitadas, o maior desafio do professor
são as encontradas quanto ao processo ensino aprendizagem, que chegam
a ultrapassar valores íntimos do ser humano, que é sua dignidade.
A Constituição Federal, em seu art,1º, III, “defende como direito
fundamental a dignidade da pessoa”, constante também na Declaração
Internacional dos Direitos Humanos, artigo 1: “Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.
Como falar em tratamento com dignidade se as condições ambientais
das escolas, a remuneração, os direitos, a violência fazem parte da rotina
dos professores em especial na rede Estadual, é uma situação complexa.
Nas considerações de Fleuri, em seu texto sobre a “Igualdade,
diversidade e diferença”:
A luta contra os estereótipos e os processos discriminatórios,
assim como a defesa da igualdade de oportunidades e o respeitos
às diferenças não é um movimento simples, pois os mesmos
argumentos desenvolvidos para defender relações mais justas,
dependendo do contexto e do jogo político em que se inserem,
podem ser ressignificadas para legitimar processos de sujeição
e exclusão (FLEURI,2006, p. 499)

A desigualdade é um fator recorrente no Brasil e o professor até


chegar a sua formação como docente passa por uma serie de problemas
e até discriminação em ter escolhido esse curso, geralmente manifestam
a idéia de que não é futuro, em virtude da má remuneração, das horas
necessárias de dedicação, dos conflitos internos nas escolas, muitos desistem
antes de sua formação e alguns já chegam sem estimulo profissionalmente.
Assim, Oliveira cita em seu livro Cartografias Ribeirinhas, que:
A representação social é entendida por Moscovici, 1978,
apud OLIVEIRA (2002,p.19), como um <corpus organizado
de conhecimentos e uma das atividades psíquicas graças
às quais os homens tornam inteligível a realidade física e
social>Representações sociais que <circulam, cruzam-se e se
cristalizam incessantemente, através de uma fala, um gesto,um
encontro,em nosso universo cotidiano> (OLIVEIRA,2008,p.65)

Esse comportamento é reflexo do que já foi exposto, os direitos


humanos estão atrelados ao ser humano, mesmo que ele não tenha
aprendido seu conceito, pois “mais do que seres “morais” ou “racionais”, nós
somo seres aprendentes” (BRANDÃO, 2002,p.25) e quando esses direitos
são violados o descontentamento é maior do que o profissionalismo.
Segundo Selma Guarrido, já faz 20 anos que perdura a discussão

209
“sobre a formação de pedagogos e professores, a partir da crítica da
legislação vigente e da realidade constatada nas instituições formadoras”
(GUARRIDO, 2006, p. 11). Porém nada é feito para que essa situação
mude e cada vez mais o professor luta para “garantir as condições de
sobrevivência não pode separa-se do realizar os sentidos e valores pelos
quais se vive, sob pena de o trabalho, a profissão, converter-se em forma
de alienação pessoal e social (MARQUES,2000,p.57)”.
Na obra que versa sobre “Formação de Professores” constituído
de diversos autores (Orientado por Ana Gracinda Queluz e organizado
por Myrtes Alonso), é definido a prática pedagógica e a formação de
professores para um novo modelo educacional, trazendo reflexões quanto
a prática pedagógica, sobre os desafios e perspectivas da escola pública,
assim como elucidando sobre a participação da sociedade como agente de
reconstrução do processo ensino aprendizagem.
Assim sendo, para que a situação seja amenizada e o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana tenha seu devido cumprimento, cabe
unir esforços de todos os órgãos competentes, sejam eles em âmbito
Nacional,como o Ministério da Educação - MEC e em nível regional,
as Secretarias de Estado de Educação e outros, para disponibilizarem
políticas de combate a crise educacional, e porque não incluir a sociedade
nesse processo de valorização do profissional de educação tão duramente
criticado, principalmente nas instituições públicas.
Cabe não apenas, um discurso utópico, mas que evidencie propostas
e medidas reais para o melhor desempenho do docente, em “transformar o
ensino, mudar a escola, conseguir que os professores mudem sua maneira
de trabalhar com os alunos, tudo isso se encontra na base das inúmeras
propostas reformadoras do ensino...” (ALONSO, 1999, p.13), mas que não
passam do papel, “devido ao fato de que a educação esteve sempre atrelada
a modelos organizacionais ultrapassados e totalmente inadequados a
realização de seus objetivos” (Ibidem, p.14).
Portanto, é evidente que danos são causados na relação de trabalho
professor- aluno-Estado, que afetam a dignidade da pessoa humana e
conduz a possíveis conseqüências para o educador e aluno, os incentivos e
medidas adotadas para melhoria de ensino são válidas, mas a desvalorização
existente ultrapassa esses benefícios e leva o ensino a um estágio de crise,
preconceitos e falta de incentivo.

4. VIVÊNCIAS DE UM ENSINO A DISTÂNCIA

A diversidade das políticas educacionais e as legislações, serão a base


para evidenciar quais são os meios para aplicabilidade de medidas

210
que contribuem para a desmistificação da crise educacional, apresentando
sugestões quanto ao desenvolvimento de práticas pedagógicas que
dignifiquem o trabalho docente.
Um dos projetos de incentivo a formação docente e de difusão
sobre os direitos humanos é o curso de Educação em Direitos Humanos,
realizado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará,
como ensino a distância (EAD), importante instrumento de estudo, porque
disponibiliza ambiente virtual de interação, adequando-se ao tempo do
profissional.
Neste contexto trabalhando como Tutor/Professor, foi observado
a dificuldade ainda existente na condução do processo tecnológico pelos
alunos e professores, de forma conceitual:
O conceito usual com que definimos “tecnologias” refere-se às
ferramentas que auxiliam as pessoas a viverem melhor dentro
de um determinado contexto social e espaço-temporal.Assim,
as tecnologias acompanham a vida dos homens e dos grupos
sociais desde o inicio da civilização. (KENSKI, 2003, p.91).

Atualmente as informações estão perdendo sua utilidade em fração de


segundos e o que era importante como teoria ou pratica torna-se obsoleto
num mesmo dia e como acompanhar a velocidade do conhecimento
existente, pois o professor tem várias tarefas e funções a cumprir, nas
reflexões de Kenski:
Na nossa área específica de atuação - a educação -, como
profissionais que têm, a informação como matéria-prima,
vemos que não é possível competir individualmente ou
coletivamente com a oferta generalizada pelas mídias
produtos informacionais. O nosso saber tem limite e contexto,
a velocidade da nossa atualização é infinitamente menor...
Como profissionais provedores de informações atualizadas,
perdemos esse espaço.Não há como competir com a profusão
de dados -transformados em “mercadorias” sob a máscara de
“informações” - oferecidos por todos os lados, por todos os
tipos de suportes mediáticos, sejam eles impressos,audiovisuais
ou ligados às tecnologias digitais (KENSKI, 2003, p. 93).

Na análise da prática nos debates do fórum e outras atividades


realizadas com os alunos quanto a Educação dos Direitos Humanos, os
relatos são de que em sala de aula, a oportunidade de expor sobre o
tema é mínima, o que causa preocupação nos professores, no sentido de
que, a formação do aluno é a do cidadão, que possui direitos e deveres
e que deveriam constituir grade curricular para educar discentes com
conhecimentos de sua cidadania.Vale citar, alguns comentários dos

211
alunos e tutor nos debates do fórum em ambiente virtual do módulo 3, A
construção Histórica dos Direito Humanos, proposto pelo professor Breno
Alencar:
A escola é o espaço ideal para criarmos debates sobre direitos
humanos. Na sociedade atual nos deparamos com vários
exemplos diários de intolerância, de violação de direitos, e não
podemos nos conformar com isso enquanto cidadãos. E como
professores devemos envolver nossos alunos nesses debates para
que possam, desde cedo, ter a consciência do direito de cada um
e aprenderem a respeitar independente de cor, credo, sexo etc.
Não só isso: devemos formar cidadãos que possam contribuir com
atitudes para que possamos construir um mundo melhor e mais
justo ( Aluno)

De fato, a violação de direitos são vividos cotidianamente,


contudo, o que não é vivido é a prática de envolver nossos
alunos nos debates, como foi colocado. Vivemos em um
ambiente escolar muito diversificado, com um número muito
grande de homossexuais, de alunos com nome social, de alunos
em situação de risco, famílias que estão desestruturadas e que
abandonam a educação completa da criança e do adolescente
para a escola, dentre outras realidades.

E pouco se insere essas discussões ou projetos que possam


desenvolver de alguma forma uma conscientização desses
direitos no Projeto Político Pedagógico das Escolas, ou até fora
dele. E quando se trabalha, há um desprendimento entre a
ação e o conhecimento sobre o direito de fato, um exemplo disso
é se trabalhar as práticas racistas no Brasil e não se trabalhar
como a pessoa que sofre essa prática deve proceder em uma
situação como essa, as punições para tal prática. Outro exemplo
é a Lei 10.639/03, sobre o ensino da história e cultura afro-
brasileira e africana, ressaltando a importância da cultura
negra na formação da sociedade brasileira, que não é trabalhada
a sua importância em sala de aula, como uma conquista social
(Aluno)

... A educação em direitos humanos, ao longo de todo o


processo de redemocratização e de fortalecimento do regime
democrático, tem buscado contribuir para dar sustentação às
ações de promoção, proteção e defesa dos direitos humanos, e
de reparação das violações (BRASIL, 2006, p.26).

Entretanto, o modelo educacional decorrente dos valores


sociais não tem sido bem visto pela sociedade e por técnicos
que atuam no contexto educacional. A instituição escolar não
tem conseguido se transformar, ainda que seja um espaço
privilegiado para atuação e reflexão... (Capítulo III, Texto 1
As Diretrizes Curriculares para a formação docente- ambiente
virtual)

A violação dos Direitos Humanos é um realidade recorrente,


pois a cada minuto acontece violações com crianças, mulheres,

212
idosos, etc..., mas estas questões não são levantadas no ambiente
escolar.É de fundamental importância conscientizar o educador
e aluno, de todos os seus direitos existentes, para que se formem
cidadãos conscientes de seus atos (Tutor)

Concordo plenamente que Educação em Direitos Humanos


contribui no papel do educador e do aluno, e que a escola é
um excelente espaço para reflexão de assuntos referentes a esta
área. Porém, o que verificamos nas escolas é que os problemas
“burocráticos” estão tomando este espaço, fazendo com que os
momentos de reflexão se reduzam em projetos pedagógicos
não realizados, ou seja, ficam apenas no papel. Entendo que as
escolas sejam espaços acadêmicos de suma importância para as
reais mudanças sócio-culturais (Aluno)

Diante das transformações da sociedade contemporânea, temas


como diversidade, alteridade, Direitos Humanos, Liberdade de Expressão
passaram a ser discursos cotidianos que precisam ser adequadamente
compreendidos tanto por docentes quanto por discentes e devem estar
presentes nas discussões de formação inicial e continuada de professores
e técnicos das Escolas, sejam estas públicas ou particulares, uma vez que
a escola agrega uma diversidade crescente de alunos de diversas vertentes e
devem ser inclusos nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas e nos
Planos de Ensino dos Docentes, pois a responsabilidade pela formação de
cidadãos críticos, reflexivos e comprometidos com a transformação social
requer um trabalho conjunto entre escolas, com seu corpo de técnicos
que deverão dar suporte ao trabalho dos professores, com a produção de
material didático adequado a faixa etária e as necessidades formativas de
alunos de diversas camadas sociais e de diferentes contextos familiares.
O trabalho educacional requer planejamento, estudos contínuos,
investigação de quem são estes alunos, suas necessidades, dificuldades,
podendo ainda incluir a família e a participação da sociedade, com parcerias
entre as escolas e associações esportivas, culturais, diferentes congregações
religiosas, profissionais liberais que também podem contribuir com
atividades e propostas de temas diversos, a fim de que os jovens possam
relacionar os conteúdos curriculares com a realidade social e assim
combater atitudes discriminatórias, preconceituosas e a violência ainda
muito presente em seu cotidiano.
Temas diversificados precisam fazer parte de um currículo
diversificado e motivados aos jovens, com assuntos de interesse social como:
meio ambiente, saúde, direitos humanos, diversidade cultural, religiosa,
novas tecnologias, dentre outras.
Os docentes nesta perspectiva deverão participar ativamente de
momentos de discussão e planejamento contínuos bem como
propor mudanças em suas metodologias e práticas avaliativas, o
desafio está posto (Aluno)

213
A Educação deve transcender o currículo formal e suas exigências,
pois a formação global do aluno não perpassa apenas pelos aprendizado
de letras e raciocínios lógicos, o aluno deve estar preparado para ser um
cidadão, tendo conhecimento de temas de interesse social, como meio
ambiente, saúde, direitos humanos, diversidade cultural, religiosa, novas
tecnologias, dentre outros. Como essas mudanças curriculares ainda não
se concretizaram, cabe ao docente a responsabilidade de agregar esses temas
aos obrigatórios para que o aluno possa ter esse conhecimento macro em sua
formação.
Isto não quer dizer que a escola, enquanto instituição de ensino,
deve ficar parada e deixar tudo a cargo do professor. a Escola
deve participar também desse processo, agregando esses temas em
suas atividades, procurando desenvolvê-las diariamente (Aluno)

Caros colegas, suas opiniões são fundamentais. Em nosso país


falar em direitos humanos é algo recente e apesar deste tema
estar formalizados em diversas legislações como: Constituição
Federal/1988, LDB 9.394/96, logo após os parâmetros
curriculares nacionais/1997,Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, dentre outros percebemos que colocar em
prática é um pouco mais difícil. Pois ainda hoje algumas escolas
quando vão elaborar seu Projeto Político Pedagógico, deixam
de fora alguns atores sociais importante para a construção
do mesmo, negando assim o direito de “todos” participarem
deste momento ímpar. Assim, torna-se fundamental que a
conscientização em sua diversas formas seja urgente, para que,
possamos lidar com o direito à diferença. E trabalhar a com a
transversalidade deste tema dentro do ambiente escolar deve ser
colocado em prática diariamente (Aluno)

Só queria ressaltar que dentro deste contexto devemos ser


conscientes dos nossos deveres e ensinar os nossos alunos que eles
tem deveres além dos direitos (Aluno)

Os professores como já foi dito tem a preocupação de expor sobre os


direitos humanos, mas como não há nenhuma cobrança educacional sobre
o assunto só resta aos docentes conscientes das garantias fundamentais e
dos deveres, explicitar sobre o assunto, Benevides, expõe:
A educação em direitos humanos parte de três pontos essenciais:
primeiro, é uma educação de natureza permanente, continuada
e global;segundo, é uma educação necessariamente voltada
para a mudança; e terceiro, é uma inculcação de valores, para
atingir corações e mentes, e não apenas instrução, meramente
transmissora de conhecimentos.Acrescenta-se, ainda, de não
menos importância, que ou essa educação é compartilhada
por aqueles que estão envolvidos no processo educacional -
os educadores e os educandos - ou ela não será educação, e
muito menos educação em direitos humanos.Tais pontos são
premissas:a educação continuada, a educação para mudança

214
e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada
e de atingir tanto a razão como a emoção (BENEVIDES, 2003,
p. 309).

Esta experiência trouxe a confirmação que: a formação do docente


requer um esforço que ultrapassa o profissional educador, pois tem de
enfrentar as inovações tecnológicas,sem estrutura para acesso, dificuldade
também enfrentada por alguns alunos; além das vivências distintas
culturalmente, mas que convergem para um único ponto que é a do
conhecimento, com os saberes e experiências pessoais de cada indivíduo,
ressignificando o educar e aprender.

5. CONCLUSÃO
Promover a avaliação dos problemas enfrentados pelo professor, aliado
as vivências do aluno e interferências endógenas e exógenas do mundo
contemporâneo é uma fator de difícil análise, porque envolve uma série de
fatores estruturais, emocionais, políticos e de formação profissional.
Estabelecer uma relação entre as várias legislações e os princípios
que são decorrentes da política educacional e dos direitos humanos,
deveria ser a solução dos problemas, no entanto, não são levadas em
consideração pelos órgãos estaduais, que apenas aplicam programas de
desenvolvimento profissional para o educador, mas não estabelecem
condições concretas para sua efetivação.
Portanto, a prática docente, tornou-se alvo de críticas e discriminações
e combater a desvalorização do trabalho docente não será tarefa fácil, pois
as políticas publicas provavelmente não serão direcionadas especificamente
ao desenvolvimento do professor, em virtude de que o Estado não está
interessado em ter indivíduos esclarecidos de seus direitos.Porém, cada
individuo é responsável na tentativa de mudanças concretas seja ela
em sala de aula, ambiente virtual ou na sociedade, não basta apenas
reclamar sem propor sugestões que pelo menos amenize as desigualdades
encontradas em nosso país.

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Editora da UNESP,1998.

216
A INCLUSÃO DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL NA
EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Elaine Ribeiro Gomes243 244

I – Introdução: aspectos legais


A educação inclusiva é um tema bastante atual e vem ganhando
grande repercussão no contexto da política educacional do nosso país que,
inspirada na concepção de direitos humanos, busca mudanças significativas
no sistema educacional, ou seja, a garantia do direito de todos à educação,
ao acesso e à permanência e continuidade de estudos no ensino regular.
Durante um longo período, a educação das pessoas com deficiência
foi marcada pelo cuidado e assistencialismo, por meio de um atendimento
que levou a criação de instituições especializadas, escolas especiais e classes
especiais, caracterizando-se em um modelo de atendimento especializado
e segregado. Nas últimas décadas, em decorrência das novas demandas e
expectativas sociais, a educação especial vem sendo obrigada a redimensionar
o seu papel, atuando como suporte ao ensino regular, não mais como
substitutivo a ele, mas na forma de complementação e/ou suplementação
(BRASIL/MEC/SEESP, 2008).
Essas mudanças de concepções e atendimentos são reflexos das
políticas públicas estabelecidas, que são determinadas pela legislação vigente.
Assim, várias referências244, em âmbito federal, passaram a reafirmar que o
245

atendimento educacional especializado a pessoas com deficiência devem


ser realizados, preferencialmente, na rede regular de ensino, constituindo-
se em um sistema educacional inclusivo, em que todos os alunos com
deficiência teriam suas potencialidades desenvolvidas, em todas as etapas e
modalidades de ensino.
Conceber um sistema educacional inclusivo envolve aceitar e
reconhecer a diversidade, na perspectiva de reconhecimento das diferenças,
objetivando resgatar valores sociais voltados para a igualdade de direitos e
de oportunidades para todos. Além disso, precisa enfrentar e combater a
243 Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Especialista em Atendimento
Educacional Especializado – AEE, pela Universidade Federal do Ceará – UFC/UAB e em
Psicologia Educacional com ênfase em Psicopedagogia pela Universidade do Estado do Pará –
UEPA. Licenciada Plena em Pedagogia, pela Universidade do Estado do Pará – UEPA. Atualmente
é membro da Equipe Técnica de Educação Especial (Centro de Atendimento Educacional
Especializado Gabriel Lima Mendes) da Secretaria Municipal de Educação de Belém – PA e
Especialista em Educação pela Secretaria Estadual de Educação – PA.

244 Constituição Federal de 1988, Declaração de Salamanca/1994, LDB nº 9394/96, Política


Nacional de Educação Especial/1994, Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação
Básica/2001, Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/2008,
entre outros.

217
fragmentação interna existente e buscar formas diversificadas de articulação
com as demais políticas públicas, principalmente, de saúde, trabalho e
assistência social (CARVALHO, 2004).
Nesse contexto, as escolas regulares, além da obrigatoriedade da
matrícula na rede regular de ensino de todos os alunos, devem adotar uma
nova postura frente a esta realidade. Como afirma Carvalho (2004)
[...] a escola precisa ressignificar suas funções políticas, sociais
e pedagógicas, adequando seus espaços físicos, melhorando as
condições materiais de trabalho de todos os que nela atuam,
estimulando neles a motivação, a atualização dos conhecimentos,
a capacidade crítica e reflexiva, enfim, aprimorando suas ações
para garantir a aprendizagem e a participação de todos, em
busca de atender às necessidades de qualquer aprendiz, sem
discriminações (p. 67).

Em outras palavras, as escolas devem se adaptar às mais diversas


situações de acordo com as necessidades dos alunos inseridos nesses espaços
educacionais; devem reorganizar os currículos, a metodologia, as estratégias
de ensino e a avaliação, adotando práticas e ações diferenciadas que garantam
a inclusão educacional. Assim, torna-se necessário que os ambientes se
transformem, tanto no aspecto físico como na dinâmica do processo
ensino-aprendizagem para receber todas as pessoas indistintamente, com a
garantia de acesso e oportunidades, independentemente das características
individuais.
Na educação infantil não é diferente. As instituições de Educação
Infantil representam o primeiro local onde as crianças vivenciam situações
de inclusão. Sob este prisma, a educação infantil enfrenta hoje um grande
desafio: a inclusão de crianças com deficiência em creches e pré-escolas.
Não queremos dizer que somente agora essas crianças começaram a existir,
mas que a Constituição Federal Brasileira e a LDB (Lei 9394/96) trouxeram
a garantia do direito à educação a “todas” as crianças de 0 a 6 anos de idade
e que as crianças com deficiência devem frequentar, preferencialmente, a
rede regular de ensino.
Assim, esse artigo tem como finalidade fomentar reflexões e discussões
sobre a inclusão de crianças com deficiência visual, mais especificamente
retratando a questão da baixa visão nas instituições de educação infantil,
buscando entrelaçar concepções, saberes, práticas pedagógicas e
responsabilidades.
Portanto, esse estudo encontra a sua relevância no âmbito da
Educação Especial, pois trará reflexões sobre o processo de inclusão na
educação infantil, delineando estratégias pedagógicas que contribuam para
o acesso, a participação, o desenvolvimento e a aprendizagem da criança

218
com deficiência visual, bem como para o seu fazer educativo, possibilitando
ressignificar, ampliar e qualificar a atuação profissional do docente.

II – Desvelando a criança com deficiência visual: desafios à prática do


professor
Desde os primeiros meses de vida as crianças estabelecem uma
comunicação visual com o mundo exterior, pois são estimuladas a olhar para
tudo o que está à sua volta. A visão é a nossa principal experiência sensorial.
É por meio da visão que adquirimos mais da metade dos conhecimentos a
respeito do mundo em que vivemos. Assim, a visão desempenha um papel
fundamental na interação social, no desenvolvimento e na aprendizagem de
todos os indivíduos.
A deficiência visual refere-se à perda ou redução da capacidade visual
em ambos os olhos, de forma definitiva e irreversível, que não pode ser
corrigida com o uso de lentes, tratamento clínico ou cirúrgico (HONORA &
FRIZANCO, 2008). Em termos educacionais, a deficiência visual é definida
por González & Díaz (2007) como aquela que interfere na boa aquisição da
aprendizagem, ou seja, as crianças com essa deficiência precisam aprender a
utilizar e explorar todo o seu resíduo visual, assim como os outros sentidos.
Além disso, necessitam também de materiais e recursos específicos no seu
processo de desenvolvimento e aprendizagem.
A deficiência visual pode ser classificada em Baixa Visão, objeto de
estudo desse trabalho, e Cegueira. Para os autores Honora & Frizanco
(2008), Domingues (2010), Sá, Campos & Silva (2007), a baixa visão refere-
se a uma alteração significativa na capacidade (acuidade) funcional da
visão, acarretando dificuldade para enxergar (perto/longe), diminuição do
campo visual (área total da visão), alterações na identificação de contrastes,
na percepção da luz e de cores, limitando o desempenho visual na execução
de tarefas e na exploração do ambiente. A cegueira corresponde à perda
total da visão, que pode ser congênita ou hereditária (causadas por lesões ou
doenças que comprometem a função do globo ocular) e adventícia (perda
da visão ocorrida na infância, na adolescência, na fase adulta ou senil).
As principais causas da deficiência visual, de acordo com Honora
&Frizanco (2008) e Bruno (2006) são: Coriorretinite por Toxoplasmose
(adquirida na gestação), Catarata Congênita (adquirida por rubéola na
gestação ou hereditária), Retinopatia da Prematuridade (causada pela
imaturidade da retina em decorrência de parto prematuro ou excesso de
oxigênio na incubadora), Glaucoma Congênito (pode ser hereditário ou
causado por infecções), Albinismo (diminuição ou ausência de pigmentação
na íris), Retinose Pigmentar (degeneração progressiva da retina) e Atrofia
do Nervo Óptico (causado por hipoxia, anoxia ou infecções perinatais).

219
As crianças que já nascem sem a capacidade da visão apresentam
formas diferentes de conceber e de representar objetos e pessoas e terão
necessidades de aprendizagem diferentes; já as crianças que nascem com
o sentido da visão, perdendo-o mais tarde, conservam a memória visual,
guardam imagens, fatos, cores, luz, o que facilita e contribui para sua
readaptação. Portanto, em ambos os casos, as crianças devem e necessitam
ser estimuladas para que possam conhecer, interagir e explorar o seu meio
ambiente, ou seja, a se desenvolver como toda criança.
É importante ressaltar que as crianças com deficiência visual não
são diferentes das demais crianças, pois apresentam os mesmos desejos de
brincar, de passear, de interagir com seus pares, de fazer amigos; possuem as
mesmas necessidades de afeto, de cuidado, de atenção, de aprendizagem, de
sociabilidade e de segurança. No entanto, as crianças com deficiência visual,
por sua limitação sensorial, apresentam necessidades específicas; precisam
trilhar por caminhos e formas peculiares de aprendizagem e de assimilação
do real; possuem tempos e ritmos diferenciados, podendo necessitar de mais
tempo para aprender e construir conhecimentos. Mas uma coisa é certa:
essas crianças têm o mesmo direito de vivenciar experiências significativas
e prazerosas.
Por outro lado, o professor é constantemente e cotidianamente
desafiado em sua prática pedagógica a receber, acolher e desenvolver um
trabalho que possibilite a inclusão com qualidade dessas crianças em sala de
aula. Para isso, é necessário nos despirmos de todos os tipos de preconceitos,
resistências ou inseguranças. Acredito que a primeira barreira que precisa
ser superada para possibilitar a inclusão com qualidade dessas crianças no
contexto escolar é a barreira atitudinal, seja ela intencional ou involuntária.
Assim, o primeiro aspecto que precisa ser ressignificado pelos profissionais
do espaço educativo ao receber a criança público-alvo da educação especial
é a aceitação e a sensibilidade diante dessa nova situação, desse novo desafio.
Assim, para garantir a participação da criança com deficiência visual
em todas as atividades, o professor precisa conhecer sobre essa deficiência
e, principalmente, sobre a criança, seu contexto, sua história de vida.
Nesse sentido, é necessário que esse profissional busque ampliar os seus
conhecimentos, qualificar a sua formação e modificar o seu fazer educativo
para desenvolver estratégias e atividades pedagógicas que contemple todos os
alunos, independentemente de suas características individuais. Além disso,
é fundamental que o professor seja um pesquisador, esteja compromissado
em estudar, em ler e adquirir novos conhecimentos. É essencial que o
espaço educativo e o professor invistam em sua formação, ampliando suas
competências, sua prática pedagógica, sua história de vida, seu contexto
social, suas singularidades, a partir dos seus próprios referenciais, ou seja, de
sua experiência e de suas vivências, pois acredito que é necessário conhecer
para melhor intervir.

220
Portanto, a inclusão de crianças com deficiência visual no sistema
comum de ensino requer não apenas a aceitação da diversidade humana,
mas implica em transformação significativa de atitudes e posturas,
principalmente em relação à prática pedagógica, à modificação do sistema
de ensino e à organização das escolas para que se ajustem às especificidades
de todos os alunos.

III – A Importância da Estimulação na Educação Infantil: estratégias


pedagógicas e possibilidades de inclusão
A infância é um período especial do desenvolvimento humano,
uma vez que os cinco primeiros anos de vida são fundamentais para o
desenvolvimento biopsicossocial da criança. Lorenzato (2006) considera
que “[...] atualmente, a educação infantil deixou de ter um cunho apenas
assistencial e recreativo e assumiu um novo papel, muito mais importante
e amplo que o anterior; hoje, a educação infantil tem como finalidade o
desenvolvimento integral das crianças até seis anos de idade [...]” (p. 07).
É necessário, segundo Vygotsky (1991), possibilitar à criança momentos
de interação com outras crianças e adultos, pois é através desta interação
dialética que a mesma vai incorporando a cultura e atribuindo significado
às condutas e objetos culturais que se formaram ao longo da história, por
isso a importância de haver políticas públicas de qualidade voltadas para a
educação infantil.
Para Bruno (2006),
A educação de crianças em creche é fato recente na realidade
educacional brasileira, principalmente no que diz respeito a um
currículo que vai além da função social. A educação infantil tem
se tornado espaço e tempo de formação humana, de aquisição
de experiências significativas, construção da identidade, do
conhecimento e participação na vida cultural da comunidade
(p. 16).

Nesse sentido, a educação infantil cumpre um papel socioeducativo


próprio e indispensável ao desenvolvimento da criança, valorizando
as experiências e os conhecimentos que ela já possui, possibilitando-a
construir novos conhecimentos através da interação que estabelece com o
outro. Sendo assim, é dever dos Governos Federal, Estadual e Municipal
garantir o acesso e a permanência de todas as crianças de 0 a 5 anos em um
número cada vez maior de creches e pré-escolas.
Discutir a inclusão nada mais é do que fazer acontecer o que a lei
garante, segundo a qual todas as pessoas, inclusive as com deficiência,
devem usufruir do direito à educação e para isto as escolas e as unidades de

221
educação infantil devem se adaptar as mais diversas situações de acordo com
as necessidades dos alunos inseridos nesses espaços educacionais. Dessa
forma, entende-se que os ambientes se transformem, tanto no aspecto físico
como na dinâmica do processo ensino-aprendizagem para receber todas as
pessoas indistintamente.
Para se desenvolver um trabalho com qualidade e que garanta o acesso
e a participação de crianças com deficiência visual nos espaços educativos
é necessário, primeiramente, que o professor procure saber quando e como
a deficiência visual aconteceu; se a perda da visão foi súbita ou gradual.
Essas informações são importantes, pois fornecem pistas do conhecimento
de mundo que a criança com baixa visão se apropriou, bem como das
estratégias pedagógicas que podem ser utilizadas para o seu desenvolvimento
e aprendizagem. Além disso, o professor deve proporcionar a estimulação
visual dessa criança. O uso eficiente da visão é fundamental. Segundo
Domingues (2010),
O desempenho visual de uma pessoa com baixa visão pode ser
desenvolvido e ampliado de forma gradativa e constante, pois
a eficiência da visão melhora na medida de seu uso. A falta de
estimulação contribui para a perda da funcionalidade visual.
O professor é um dos principais mediadores quanto ao uso
eficiente do resíduo visual do aluno em diferentes atividades
(p. 10).

Nesse sentido, a criança com baixa visão tem a possibilidade de utilizar


o seu resíduo visual para realizar atividades escolares e não escolares. Na
exploração do resíduo visual, o aluno pode descobrir os benefícios e as
vantagens na execução de tarefas. Em relação às atividades escolares, o
professor deve ter cuidado com a preparação do material a ser utilizado
pelo aluno, como o tipo e o tamanho das letras, a distância do material a
ser visualizado, o contraste oferecido, a iluminação, bem como os materiais
didáticos e os recursos de acessibilidade, que são os auxílios ópticos e não
ópticos.
Para os autores Domingues (2010); Honora & Frizanco (2008), a
utilização de recursos ópticos (lentes, óculos especiais, lupas, telescópio)
são equipamentos ou instrumentos que ajudam a pessoa com baixa visão
a melhorar sua visão residual, geralmente pelo aumento da imagem,
qualificando o desempenho da visão. É importante ressaltar que os
recursos ou auxílios ópticos são utilizados mediante prescrição e orientação
oftalmológica. As escolhas e os níveis de adaptação de qualquer recurso
definem-se a partir da conciliação das necessidades específicas, que levam
em conta as diferenças individuais, faixa etária, preferências, interesses e
habilidades que vão determinar as modalidades de adaptações e as atividades
mais adequadas.

222
No entanto, a utilização desses recursos não descarta a necessidade
dos recursos não ópticos, como a adaptação de materiais e condições
ambientais, ou seja, o indivíduo que apresenta baixa visão, dificilmente
existirá um aparelho único que lhe proporcione uma visão normal em todas
as circunstâncias. Frequentemente, a combinação de diferentes auxílios
ópticos e não ópticos (mudanças relacionadas ao ambiente, ao mobiliário,
à iluminação, recursos para leitura e escrita, etc.), em diferentes situações,
resultará em uma melhor eficiência visual. Para exemplificar, alguns recursos
não ópticos podem ser usados de forma complementar ou não aos recursos
ópticos, como: caneta de ponta porosa; lápis de escrever 6B; suporte para
leitura; cadernos e papéis com pautas especiais; letras ampliadas e cores
contrastantes; controle da iluminação ambiental: aumentando-se ou
diminuindo-se focos luminosos para objetos, folhas de trabalho, textos, etc.;
guia de leitura; controle de reflexão: tiposcópios, visores; os softwares leitores
de tela, leitores de texto, ampliadores de tela, entre outros (DOMINGUES,
2010; HONORA & FRIZANCO, 2008).
Além da utilização desses recursos e materiais, na educação infantil,
é fundamental que o professor tenha sensibilidade e atenção para que
possa compreender as necessidades, desejos e emoções dessa criança, que
pode ser expressa por meio do corpo, do movimento, da necessidade de
afeto. A criança com baixa visão necessita de cuidado, de aconchego, de
toque, de referência corporal, de afeto; precisa ser respeitada e tratada
com naturalidade, para que possa sentir-se segura e aceita. Concordo com
Bruno (2006) quando afirma que “o respeito a essa forma diferente de ser, de
conhecer e a oportunidade oferecida de ampliar experiências, fazer trocas e
descobertas é que faz da creche um espaço de aprendizagem por excelência”
(p. 18).

IV – Tecendo Algumas Considerações


Como podemos observar, a criança com deficiência visual necessita
dos outros sentidos e de diferentes formas de mediação para construir uma
representação mental dos objetos, seres e de diversas situações do cotidiano.
Desde a educação infantil, a criança com deficiência visual necessita
vivenciar experiências concretas as quais possibilitem a construção de
conceitos utilizando os outros sentidos como: tato, audição, olfato e relatos
orais. É importante destacar que a deficiência visual não gera dificuldades
cognitivas ou de formação de conceitos. Tudo depende da história de
vida, das interações estabelecidas do sujeito com o meio e do seu contexto
sociocultural.
Assim, as crianças com deficiência visual têm o mesmo potencial
de desenvolvimento e de aprendizagem que as outras crianças. A
baixa visão e a cegueira não causam alterações/perdas cognitivas. As

223
dificuldades no processo ensino-aprendizagem, assim como na elaboração
e no desenvolvimento de conceitos, decorrem da falta de experiências
enriquecedoras que possibilitem a construção e o acesso ao significado
dos conceitos. Nesse contexto, as crianças com deficiência visual devem
ser igualmente estimuladas para poderem brincar, pular, dançar, cantar e
participar plenamente de todas as situações e dos movimentos próprios
da infância, pois têm as mesmas potencialidades de desenvolvimento e de
aprendizagem.
Um ambiente favorável à alfabetização deve provocar a exploração
dos sentidos remanescentes, especialmente o tato e a audição, já que não
apresentam as mesmas possibilidades de contato direto com a leitura e com
a escrita. Assim, a alfabetização não depende unicamente da integração dos
sentidos. Poder ver por si só não é condição suficiente para ler e escrever,
pois há crianças dotadas de visão que apresentam dificuldades/atrasos
no processo de alfabetização. Portanto, a habilidade para compreender,
interpretar e assimilar a informação será ampliada de acordo com a
pluralidade das experiências, a variedade e qualidade do material, a clareza,
a simplicidade e a forma como o comportamento exploratório é estimulado
e desenvolvido.
Além disso, o trabalho com a família precisa ser articulado e fortalecido,
pois os pais são fortes aliados na construção de uma escola inclusiva para
todos. Essa parceria é fundamental no processo de desenvolvimento e
aprendizagem de seus filhos. Os pais trazem informações valiosas sobre as
necessidades específicas das crianças, sua interação e comunicação, suas
habilidades, seus interesses, seus gostos, desejos, enfim, sua história de
vida. Essas informações vão colaborar na construção do planejamento e das
intervenções pedagógicas necessárias à participação e inclusão da criança
com deficiência visual no espaço educativo.
Portanto, trilhar no caminho de uma educação inclusiva pressupõe
uma revisão em nossa concepção de educação, de ensino, de aprendizagem
e de práticas pedagógicas realizadas na escola, em outras palavras, a oferta
de uma educação inclusiva de qualidade para todos os alunos necessita de
mudanças significativas na escola. A escola precisa se organizar, se preparar
e se adaptar a esta nova realidade, para poder compreender as necessidades
de aprendizagem específicas dos seus alunos. Sabemos que trilhar um
caminho na direção de uma educação inclusiva de qualidade é um grande
desafio, pois nos obriga a repensar a escola, sua política, sua cultura e suas
práticas pedagógicas.

224
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
Brasília: MEC/SEESP, 2008.
BRUNO, Marilda Moraes Garcia . Educação infantil: saberes e práticas da
inclusão: dificuldades de comunicação e sinalização: deficiência visual. 4.
ed. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Especial, 2006.
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Porto Alegre: Mediação, 2004.
DOMINGUES, Celma dos Anjos. Et all. A educação Especial na perspectiva
da inclusão escolar: os alunos com deficiência visual: baixa visão e cegueira.
Brasília: MEC/SEESP,(Fortaleza): Universidade Federal do Ceará, 2010.
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LORENZATO, Sérgio. Educação infantil e percepção matemática.
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Campolina. Atendimento Educacional Especializado: deficiência visual.
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