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Referenciação – sobre coisas ditas e não-ditas

Mônica Magalhães Cavalcante

Este livro é uma homenagem a Ingedore Koch e a Luiz Antônio


Marcuschi – dois nomes, duas certezas. E é também um ponto
de sutura. Por ele, fala o grupo Protexto, especialmente meus
alunos e ex-alunos que, encontrando-se na referenciação,
começam a se fazer referência no país.

Apresentação

Eis aqui um trabalho artesanal de catar pedaços e de embuti-los numa dada


disposição de cores e enigmas, para comporem o mosaico do que se tem avançado nos
estudos sobre referenciação.
O que se entende hoje por referenciação começou quando, bem longe daqui, na
Suíça, em 1994, Lorenza Mondada propôs tratar da descrição de processos discursivos
que se verificam na introdução de um objeto, nos ajustes que ele sofre quando vai
participando da configuração complexa de um texto e na passagem de um objeto a
outro. Falava-se, assim, não de referentes como entidades da realidade externa do
mundo, mas objetos de discurso, aqueles que emergem da elaboração discursiva de um
saber compartilhado. Tais objetos de discurso intervêm nas formas estruturantes de um
texto e são, ao mesmo tempo, em alguma medida, por elas condicionadas. Como dizia
Mondada, as categorias cognitivas e o modo como se organizam ancoram nas formas
lingüísticas, que nunca se desvinculam de sua ação social.
Na mesma época, e numa convergência de pensamento, Apothéloz, em 1995,
também falava de objetos de discurso como construtos culturais cuja representação na
memória discursiva dos interlocutores era alimentada pela própria atividade lingüística.
Fenômenos lingüísticos pontuais envolvendo esse pressuposto antropológico do
referente vêm sendo analisados, desde aí, também por outros pesquisadores, como
Charolles, Schnedecker, Reichler-Béguelin, Berrendonner, e uma gama de seguidores.
Muitos deles nos foram apresentados, aqui no Brasil, por Ingedore Koch e por
Luiz Antônio Marcuschi, sempre ocupados em nos pôr a par das inovações saídas da
lata agorinha mesmo. Dessa bagagem, proliferaram inúmeras dissertações e teses país
afora, e se constituíram vários grupos de estudo que se debruçaram sobre as intricadas
questões de gêneros do discurso e de referenciação. Um deles é o grupo
interinstitucional de pesquisa Protexto, sediado na Universidade Federal do Ceará, que,
desde 2001, vem desenvolvendo trabalhos atinentes, sobretudo, a texto, discurso,
sociocognitivismo, gêneros e referenciação.
Este livro é um dos resultados deste percurso, uma atividade de bricolagem das
pesquisas sobre referenciação, mas não exatamente um ponto de chegada; é, antes, um
intervalo de pensamento, ou um impasse.
Dividi a obra em quatro partes, mantendo, mais ou menos, a uniformidade dos
livros que compõem esta Coletânea. Na primeira seção, intitulada O que se dizia sobre
a coisa, destinada à perspectiva histórica, invoquei algumas palavras dos filósofos que
abordaram a relação entre a linguagem e as coisas do mundo, aquilo a que ora tratavam
como referência, ora como denotação. Salientei, nesse início, com enorme brevidade, a
evolução do conceito de referente e de sua posterior relação com a noção de signo
lingüístico. Em seguida, esclareço que não é esta definição de referente, como
correspondente externo do mundo para as palavras, que constitui o objeto de estudo
deste livro.
A segunda parte, prevista para conter a descrição do tema na perspectiva atual,
teve que ser cindida em duas (segunda e terceira seções), para expressar o ponto de vista
que tece o fio argumentativo subjacente às caracterizações dos processos referenciais.
Foi uma maneira de demonstrar, com um ato, que as análises empreendidas nos estudos
sobre referenciação podem ser agrupadas em duas grandes tendências. Uma que toma
como critério princeps a menção da expressão referencial para opor processos de
introdução de referentes a processos de manutenção anafórica. Outra que prescinde
desse critério e defende o objeto de discurso como uma construção cognitivo-discursiva
que, mesmo quando não se explicita no cotexto por meio de uma expressão lingüística,
constitui ainda um dos processos referenciais. É nesta vertente que se inserem as
pesquisas mais recentes do grupo Protexto, de que nascem todas as reflexões aqui
elaboradas.
A quarta parte ultrapassa a constatação óbvia de que o estudo da referenciação
pode ser proveitosamente aplicada à sala de aula dos diferentes níveis de ensino. Nesta
seção, enfatizo, a partir de propostas defendidas em teses e dissertações, as funções
discursivas que os processos de referenciação podem desempenhar em gêneros do
discurso variados. Optei por indicar alguns caminhos de utilização do referencial teórico
discutido nas aulas de compreensão e produção de texto. Digo “alguns” porque há
muito ainda a ser explorado em termos de referenciação, mesmo sem apelar para o uso
de termos técnicos e sem entrar nos meandros das dificuldades classificatórias. Estão
postas algumas sugestões de atividades que podem ser adaptadas para o ensino de
língua portuguesa em todos os graus. São um gatilho, uma provocação - ou talvez
apenas um pedido.

Mônica Magalhães Cavalcante


PARTE I – O que se dizia sobre a coisa

Mas o que é mesmo referente?

A primeira pergunta que assoma à cabeça de quem deseja conhecer a


referenciação talvez seja o que é referente. Temos que começar dizendo que referentes
são entidades que construímos mentalmente quando enunciamos um texto. São
realidades abstratas, portanto, imateriais. Referentes não são significados, embora não
seja possível falar de referência sem recorrer aos traços de significação, que nos
informam do que estamos tratando, para que serve, quando empregamos etc. Referentes
também não são formas, embora, em geral, se realizem por expressões referenciais. Se
repetimos um dito popular, muito comum nos dias de hoje: “A informática chegou para
resolver problemas que antes não existiam”, vemos emergirem desse texto dois
referentes, isto é, duas entidades, dois objetos de discurso - o primeiro diz respeito à
informática; o segundo, aos problemas que advieram com ela. Escusado dizer que só
representamos cognitivamente essas entidades se sabemos o significado das expressões
referenciais que as manifestam nesse enunciado: “a informática” e “problemas que
antes não existiam”. O modo como aquele que enuncia (o enunciador) e seus possíveis
interlocutores (ou co-enunciadores) constroem a representação desses referentes em
suas mentes nunca é o mesmo em qualquer situação efetiva de comunicação.
O ato de referir é sempre uma ação conjunta. Para a Lingüística do Texto, hoje,
fazemos referência a algo quando nos reportamos a pessoas, animais, objetos,
sentimentos, idéias, emoções, qualquer coisa, enfim, que se torne essência, que se
substantive quando falamos ou quando escrevemos. É na interação, mediada pelo outro,
e na integração de nossas práticas de linguagem com nossas vivências sócio-culturais
que construímos uma representação – sempre instável – dessas entidades a que se
denominam referentes. E é por seu caráter substantivo que os referentes são nomeados
por sintagmas nominais (incluindo aí os pronomes substantivos), como o livro, o
reconhecimento, a violência, ele, esta dúvida, nossos pequenos dramas etc. - são as
chamadas expressões referenciais, que também podem ser sintagmas adverbiais, como
aqui, hoje, assim, dentre outras. Participar dessa dinamicidade de contínua
remodulação de referentes é pôr a referência em ação, é tecer a referenciação - condição
fundamental para que, nas práticas comunicativas, os participantes (re)construam a
coerência do texto.
Que relação tem a referenciação com a coerência de um texto?

A coerência é a unidade de sentidos que cada um elabora de um determinado


texto, de acordo com seus conhecimentos lingüísticos, textuais, com seus saberes
específicos que compartilha com os co-enunciadores e seus conhecimentos de mundo.
Quando, por exemplo, recebemos via e-mail, uma lista de provérbios parodiados
e lemos algo do tipo: “A união faz o açúcar”, precisamos resgatar, em nossos
conhecimentos de mundo dentro de nossa cultura, o provérbio do qual este se origina,
que é “A união faz a força”. No instante em que notamos a substituição do referente de
“a força” pela entidade expressa por “o açúcar”, retornamos ao início do texto e
entendemos que a expressão referencial “a união”, na verdade, está disfarçando o
substantivo próprio União, empresa fabricante de açúcar. Nesse momento, o referente
de “a união” se recategoriza, quer dizer, se transforma, e todas as pistas expressas no
cotexto (isto é, na superfície do texto) e inferidas de nossos conhecimentos partilhados
se articulam, tornam-se coesas, e nos ajudam a compor a coerência desse texto
humorístico, que dialoga com outro texto, num processo de intertextualidade.
O texto é algo que se abstrai da relação entre autor, sentido/referência e leitor
num dado contexto sociocultural, por isso não o encaramos como uma materialidade,
como elementos que se organizam numa superfície material suportada pelo discurso. O
texto está inevitavelmente atrelado a uma enunciação discursiva. Como diz Ciulla e
Silva (2008, p.13), “para a dimensão discursiva que estamos delineando aqui, os
falantes, os objetos, os interesses e as circunstâncias histórico-sociais não apenas
contam, mas devem ser vistos em conjunto, ao lado da situação imediata em que os
falantes estão envolvidos no momento da interação; e o texto, portanto, deve ser visto
como emergente da dimensão discursiva”.
Partimos, assim, de uma noção de texto como fenômeno comunicativo, o que
supõe uma visão de coerência/coesão e de textualidade que não depende exclusivamente
de propriedades inerentes à organização dos elementos no cotexto, mas, sim, de um
contexto sociocultural mais amplo, o que inclui uma série de atividades interpretativas
dos co-enunciadores. Por isso, concordamos com Hanks (2008) quando diz que há
textos que podem falhar em ter uma unidade temática, estilística ou outros tipos de
unidade, mas nem isso não os impede de ser um “texto”. O autor assume a posição de
que também as propriedades formais e funcionais de signos complexos possam auxiliar
no estabelecimento da textualidade e a sua coerência.

No texto abaixo, os diversos pares de diálogos, apenas somados uns aos outros,
poderiam parecer desconexos, não-coesos, porque misturam temáticas completamente
distintas, ou porque constituem uma sucessão de perguntas variadas com respostas
prontas:

( ) TROCADILHOS

O que é um macaco com uma pasta de executivo em cima de uma árvore?


R: Um mico-empresário.
O que dá o cruzamento de pão, queijo e um macaco?
R: Um X-panzé.
O que o tomate foi fazer no banco?
R: Tirar um extrato.
O que a galinha foi fazer na igreja?
R: Assistir à Missa do Galo.
Por que a mulher do Hulk largou dele?
R: Porque ela queria um homem mais maduro.
(...) (piadas divulgadas pela internet)

Mas o tópico geral, declarado no título “trocadilhos”, une a todos eles e prepara o
leitor para o que se pode esperar do conteúdo: jogos de palavras, não-informativos, com
o propósito de divertir. Esse pressuposto é indispensável à coesão entre os trocadilhos,
de modo a ligar coerentemente os conteúdos díspares num conjunto com o mesmo
objetivo lúdico. A disposição das frases no cotexto, o conhecimento que se tem do
gênero trocadilho, a veiculação pela internet para inúmeras pessoas a um só tempo, os
recursos estilísticos de descontruir e reconstruir vocábulos, ressignificando-os, todos
esses fatores, aliados à prática social de divulgar textos humorísticos pelo meio digital,
estabelecem a textualidade e favorecem a construção da coerência pelos participantes da
comunicação.
É, pois, dentro de uma enunciação mais ampla, incluindo a dimensão discursiva,
que situamos nosso ponto de vista sobre a referenciação: dentro de um conceito mais
estendido de enunciação, que, como dizem Charaudeau e Maingueneau (2004), pertence
a um nível global, pensado em termos de cena de enunciação, de situação de
comunicação, de gênero de discurso” (p. 195).
Retornando às origens: quem já estudou o fenômeno da referência?

Investigar como as expressões nomeiam as entidades é uma preocupação muito


antiga, que, por um longo tempo, ocupou a mente dos filósofos da linguagem e dos
lógicos, bem antes de interessar aos lingüistas. Como mostra Araújo (2004), já os
estóicos, no século I a.C. (e, antes deles, Platão e Aristóteles), ao refletirem sobre as
questões da linguagem, distinguiam entre expressão, conteúdo e referente. Pensava-se,
então, que o referente era “a coisa”, que subsistia exteriormente ao texto materializado.
A referência era a relação que se estabelecia entre “a linguagem (um dizer) e uma
exterioridade (um não-dizer)” (CARDOSO, 2003, p.1).
Falar de “referência” era, então, tratar de uma relação entre palavras isoladas e os
objetos do mundo real que elas podiam etiquetar. Uma palavra como peixes
simbolizaria os peixes que existissem na realidade, na exterioridade do que estava dito
no texto.
Diremos que essa “exterioridade” não era a mesma para todos os pensadores no
decurso do tempo. Para os estóicos, o referente podia ser uma entidade física, uma ação,
um pensamento – era um dado sensível, aquilo que, sendo percebido pela experiência,
alcançava um significado e se exprimia por palavras, registrando-se na memória.
Muitos anos mais tarde, comenta Araújo (2004), também Santo Agostinho (354-
430) defenderia que não poderia haver significado se não houvesse referente. Assim, o
conhecimento dos conteúdos não adviria das palavras, das expressões, mas do próprio
fato de elas remeterem à coisa. “A palavra, que, antes do aprendizado, era som, torna-se
sinal, não pelo fato de se aprender o seu significado, e sim pelo fato de se aprender a
que ela se refere, sua denotação” (ARAÚJO, 2004, p.22). O que se concebia, pois, como
referente – devemos notar – já resvalava para outra noção, a de objeto denotado1 , ou,
em outros termos, a noção de referência já se confundia com a de denotação. Basta ler a
citação abaixo, de Chierchia (2003, p.36), para constatar esse conflito conceitual e,
conseqüentemente, terminológico:

Tradicionalmente, tende-se a distinguir a referência ou denotação de um


signo, e o seu significado ou sentido. Diz-se que uma expressão denota ou
se refere à sua referência, mas “exprime” o seu sentido. Por referência (ou
denotação), entende-se geralmente aquilo a que um signo se refere no
contexto de emissão. Categorias de expressões diferentes têm referências

“Denotação de uma unidade léxica é constituída pela extensão do conceito que expressa o seu
significado. Por exemplo, sendo o signo cadeira uma associação do conceito ‘móvel de quatro pés, com
assento e encosto’ e da imagem acústica [kadeyra], a denotação será: a,b, c... n são cadeiras.” (DUBOIS
et al., 1993)
de tipos diferentes. Um nome próprio, por exemplo, se refere a um
indivíduo. Um nome comum, por sua vez, parece se referir a uma classe
de indivíduos: o nome comum cavalo se refere à classe dos cavalos
[grifos nossos].

Confundia-se, portanto, referência com denotação, como se fossem termos


intersubstituíveis. Mas é necessário que não as confundamos.

Referência vs. denotação

A denotação diz respeito, na verdade, a um tipo de significado descritivo; é a


relação virtual, estocada na nossa memória coletiva, entre a palavra e o conjunto dos
membros de uma classe que ela representa (LYONS, 1977). Eis por que é possível dizer
que o nome cavalo denota a classe de indivíduos que podem ser designados como tal.
Quando tratamos da denotação de uma palavra como cavalo, ocorre-nos a idéia de uma
série de animais, mais ou menos semelhantes, que poderíamos chamar assim.
Já a referência costuma estar associada ao uso que os sujeitos podem fazer das
expressões referenciais em enunciados efetivos, em contextos particulares, para se
reportarem a entidades. Não poderíamos falar de referência considerando apenas a
palavra fora de contexto, em estado de dicionário, mas poderíamos, sim, tratar de
denotação. Não se pode afirmar que um dado nome “se refere” a uma classe de
indivíduos, pois só se identifica o referente correspondente a um nome quando se
analisa o enunciado e o contexto de uso em que esse nome foi empregado. Se, numa
situação real de comunicação, alguém enuncia O capitão comprou um belo cavalo, aí
sim, podemos afirmar que, dentro desse contexto de uso, alguns referentes foram
criados, como o de capitão e de cavalo, nomeados, respectivamente, pelas expressões
referenciais “o capitão” e “um belo cavalo”, que passam a representar as entidades
instituídas dentro dessa interação. A denotação, tal como foi conceituada, pertence,
pois, ao âmbito do sistema, ao passo que a referência só se efetiva no uso.

Aprofundando... (para pôr num quadro à parte)

As discussões em torno da tríade linguagem-pensamento-realidade (que, por


vezes, se estendeu a outros conceitos, como significante-significado-referente) nem
sempre discerniram com clareza a diferença entre objeto denotado e referente.
A questão da realidade, ou do que são as entidades do mundo real, foi o que
mais instigou o pensamento filosófico na Grécia Antiga, numa tentativa primeira de
contrapor a verdade ao mito, ao fictício, ao imaginário. Para Martins (2004, p.447), a
passagem do pensamento mítico ao racional “se associa crucialmente a uma insatisfação
quanto a uma certa forma de explicar as coisas, e à determinação de parâmetros para o
que seriam explicações mais adequadas – explicações racionais e verdadeiras”. Essa
busca de explicação do real, ou das coisas do mundo, e de sua relação com a linguagem
logo se polarizou em duas grandes visões: uma mais relativista, influenciada pelo
pensamento dos sofistas; outra mais essencialista, defendida por Platão e Aristóteles.
Assim, quando se perguntava se as coisas do mundo tinham uma essência
própria e permanente, sofistas, como Protágoras, respondiam que não, que tudo se
relativizava a partir das experiências humanas, já que “o homem era a medida de todas
as coisas”. Por outro lado, Platão e, depois, Aristóteles (guardadas as diferenças2),
respondiam que sim, que a realidade era independente da mente do homem que a
pensava:

O legado filosófico mais recorrentemente atribuído aos sofistas é


aquele do relativismo – a já aludida tese radical da impossibilidade de
estabelecerem-se verdades universalmente válidas, autônomas com relação
às circunstâncias concretas, contingentes e variáveis da experiência
humana. O homem ser assim a única medida das coisas o impediria de ter
sobre as coisas uma medida única – excluiria de forma irreversível a
possibilidade de uma apreensão final e verdadeira da realidade tal como
ela é em si mesma. (MARTINS, 2004, p. 450)

Para a tradição do platonismo, as coisas – aí incluindo as idéias – existiriam por


si mesmas; seriam essências, formas que existem universalmente, fora dos objetos e dos
homens. Contraditando os sofistas, Platão propõe a repartição em dois mundos: um
mundo sensível e um mundo inteligível. Foi o raciocínio que o filósofo encontrou para
livrar do mundo inteligível, do intelecto, tudo o que fosse variável, mutável, instável,

2
Uma tese também não-relativista é defendida pela tradição; muda, todavia, a noção do que são os
universais. Como bem diferencia Araújo (2004, p.23): “Os universais são, na tradição do platonismo,
entidade com realidade ontológica independente da mente que os pensa, representam a verdadeira
realidade. Já a tradição aristotélica é seguida pelos conceptualistas (...). Os universais são abstrações
mentais, conceitos abstratos acerca das coisas individuais e concretas. Para os nominalistas, os universais
não ‘existem’, são nomes que sequer precisam de entidades abstratas para contê-los.(...) Para Occam
(1300-1349), os universais estão na mente não enquanto substâncias, e sim enquanto formas. O
nominalismo lançou profundas raízes na história do pensamento ocidental. A moderna filosofia da
linguagem tem em Quine um dos principais defensores do nominalismo, para quem os conceitos referem
não pela relação com as coisas, mas devido a certas relações que as classes estabelecem”.
imperfeito ou fictício, pois essas coisas pertenceriam ao mundo do sensível, das
aparências, tão fortemente defendidas pelos sofistas.
Qual o papel da linguagem (e dos significados) dentro das idéias de Platão? De
acordo com Martins (2004), para Platão também a linguagem exige que se pense a
verdade (o real) como tendo existência própria, independente. “O que parece se impor
nessa forma platônica de pensar a linguagem é, em suma, que se compreenda o sentido
de um enunciado como a parcela da realidade, o estado de coisas, que ele, por si mesmo
e de forma objetiva, se destina a descrever” (MARTINS, 2004, p.458). A função da
linguagem seria descrever e representar o real, informar sobre as entidades, mas não as
coisas aparentes e instáveis e sim, a essência das coisas, num plano virtual das idéias.
Assim, as palavras de uma língua - não importa qual língua seja - devem representar
“entidades extralingüísticas universais, autônomas e transcendentes” (MARTINS, 2004,
p. 461) .
Contrapondo-se a essa orientação realista da significação, os sofistas diriam que
os sentidos da linguagem deveriam incluir a subjetividade de quem os diz, seus
propósitos enunciativos, suas experiências de vida dentro de uma determinada cultura e
de uma dada circunstância histórica.
A visão realista (e essencialista) de Platão se prolongou, em alguns aspectos, no
ponto de vista de Aristóteles, sobretudo quanto ao princípio de que as formas
(essências) do sentido na linguagem são universais, exteriores aos indivíduos e
autônomas em relação a eles, e quanto à idéia de que a linguagem representa
objetivamente diferentes realidades subjetivas.
Mas, enquanto que, para Platão, as entidades (podemos dizer: os objetos
denotados) eram abstrações universais e eternas, para Aristóteles eram as próprias
coisas da realidade, as quais afetavam o espírito de modo semelhante (universal) para
todas as pessoas. A linguagem era constituída de símbolos que representavam essas
afecções da alma ante o real. A linguagem correspondia, assim, à capacidade racional
do homem. Comparando os dois filósofos, Martins comenta:

...assim como Platão, Aristóteles reconhece na racionalidade a condição


nuclear de funcionamento da linguagem. As palavras teriam para ele,
assim como para Platão, o propósito fundamental de representar
objetivamente nominata extralingüísticos – essências universais e
autônomas. A divergência básica entre os dois pensadores estaria no lócus
dessas essências: na alma, para Aristóteles; no real, para Platão.
(MARTINS, 2004, p. 469)
Em ambos os casos, porém, o que era entendido como “real”, como coisas
extralingüísticas, se afasta muito do que, na Lingüística do Texto, hoje, é concebido
como referente. Estas breves explicações são apenas para constatar que a visão de
referência com que estamos lidando, aqui, se alinha muito mais a uma perspectiva
relativista do que essencialista da linguagem e da verdade. Assumimos, com Mondada
(1994; ver ainda Apothéloz e Reichler-Béguelin, 1995; Mondada e Dubois, 1995), que
os segmentos da realidade são construtos culturais, razão por que são tomados como
objetos de discurso, isto é, são entidades do discurso, representações alimentadas pela
atividade lingüística (APOTHÉLOZ e REICHLER-BÉGUELIN, 1995, p.239), que
sofrem transformações na memória discursiva dos interlocutores ao longo da
enunciação. Essa concepção se apóia numa filosofia de tendência pragmática, fundada
principalmente em Rorty, mas também baseada em alguns pressupostos de Habermas.
A concepção também se fundamenta, em parte, em pressupostos
fenomenológicos de Kant, para quem só se pode fazer referência aos fenômenos na
medida em que constituem experiência humana possível. A realidade em si mesma
escapa a qualquer possibilidade de referência. Como conclui Rodrigues (2001, p. 63-4):
“Não devemos, portanto, confundir referente com realidade. Por referente entendemos
aquilo a que nos referimos quando falamos, uma construção do discurso (...). O
referente é, por conseguinte, uma realidade do discurso ou uma construção da
linguagem”.

Por uma visão não-referencialista da linguagem

Assim como Mondada e Dubois (1995), defendemos que nem os elementos do


discurso nem as entidades do mundo têm uma segmentação já pronta, dada a priori; os
referentes, ou objetos de discurso, são categorias cognitivo-discursivas e apresentam
uma instabilidade inerente a eles. Para as autoras, até mesmo o que é habitualmente
considerado como um ponto estável de referência para as categorias “pode ser
'decategorizado', tornado instável, evoluir sob o efeito de uma mudança de contexto ou
de ponto de vista” (MONDADA e DUBOIS, 2003, p.26-7).
As possíveis alterações de foco, a cada instante da comunicação, levam
constantemente a uma concorrência entre as categorias, conduzindo, naturalmente, a
incertezas e indecisões. As autoras demonstram como as mesmas entidades podem ser
compreendidas e imaginadas de maneiras distintas e, conseqüentemente, serem também
nomeadas de modos diferentes. Relatam que, em suas pesquisas, entrevistaram vários
especialistas sobre doenças de plantas e demonstraram como os mesmos objetos não
foram focalizados e retratados de igual maneira. Enquanto os agricultores se referiam
aos estados da doença em evolução, os biólogos se referiam aos nomes da doença e às
propriedades perceptivas das plantas vistas como sintomas. E contam ainda como, por
decisões político-econômicas, numa reunião em 1991, a cenoura foi categorizada como
fruta, e não como raiz ou legume, para que Portugal pudesse vender suas compotas de
cenoura sem desrespeitar a lei:

Nosso argumento consiste em dizer que a "estabilidade" resulta, de


fato, de um ponto de vista realista que relaciona as categorias às
propriedades do mundo - como se a objetividade do mundo produzisse a
estabilidade das categorias - no lugar de relacioná-las aos discursos sócio-
históricos e aos procedimentos culturalmente ancorados. Se, ao contrário,
adotarmos este segundo ponto de vista, não será surpresa ler que a cenoura é
transformada de raiz ou de legume em fruta por decisão da Comunidade
Européia em janeiro de 1991. Tal decisão foi tomada para permitir a
Portugal exportar sua compota de cenouras respeitando a definição
categorial legal ou jurídica de compota, que é uma conserva de mistura
açucarada de frutas (Pelt, 1994, p.45). Assim, a administração pode impor
uma transformação categorial, mesmo que o conhecimento científico
continue a considerar a cenoura como uma raiz e as práticas alimentares,
como um legume. (MONDADA e DUBOIS, 2003, p.27).

Uma forte evidência dessa negociação no modo de conceber e de denominar os


referentes é a atitude de refletir sobre o próprio dizer ao selecionar as expressões
referenciais de acordo com a audiência, com os propósitos comunicativos, com o contexto
imediato etc. Essa negociação repercute nas não-coincidências do dizer (AUTHIER-
REVUZ, 1998) e na estratégias usadas para marcá-las, isto é, repercute na escolha de
pistas que assinalam vozes diferentes, pontos de vista distintos num mesmo enunciado.
Para ilustração, atente-se para o emprego das aspas em “sistema” no exemplo seguinte,
extraído de Costa (2007, p. 161); trata-se de um e-mail para uma lista de discussão.
Observe-se como o enunciador se volta para a expressão referencial que vai empregar e se
vale das aspas como que para questionar o que alguns outros pontos de vista entendem
por sistema:

( ) From: E F [mailto:elir@ims.uerj.br]
Sent: Tuesday, May 18, 2004 1:13 PM
To: A. S. CVL@yahoogroups.com
Subject: Re: [CVL] Ainda o racismo
A,
Estamos todos sem a resposta, pois a resposta está em construção. O "sistema"
(entendido aqui como "o governo") criou as cotas (e criará sempre) sem uma discussão
maior, pois está "cumprindo" seu papel em querer manter o status quo, ou baixar o nível
desse status quo para maior conveniência. Poder é poder. A minha proposta é
exatamente esta: se o discurso sobre as cotas começou mal, então vamos endireitá-lo.
Assim, a resposta virá, mesmo que não seja a que gostaríamos que fosse. A circulação
da discussão tem certamente um poder transformador. (COSTA, 2007, p.161).

Como explica Fonseca (2007), essas aspas de “questionamento ofensivo”


apresentam-se como uma reação ofensiva a uma situação, da qual o enunciador se
defende.
A negociação da referência, e dos sentidos, também pode ser percebida nas
reformulações, nas paráfrases e nas correções, em constantes tentativas de ajuste nas
designações, que parecem nunca chegar ao melhor termo.

Como diz o poeta:

Lutar com palavras


é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.(...) Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.(...).
(Lutador - Poesia Contemplada, de Carlos Drummond de Andrade
Dizer algo e nomear os referentes envolve, assim, um contínuo processo de
desestabilização do que poderia parecer comum ou inquestionável para qualquer pessoa.
Eis por que os participantes da enunciação cooperam para que, em alguma medida, os
sentidos e a referência se estabilizem o suficiente para que os propósitos da comunicação
sejam alcançados.
Outra evidência da instabilidade dos modos de nomear os referentes é que ela tem
sido usada como efeito de humor, como no texto seguinte:

O amor

"O amor não é algo que o faz sair do chão e o transporta para lugares que você nunca
viu. O nome disso é avião. O amor é outra coisa." (..)
"O amor não é uma coisa que te faz perder a respiração e a fala. O nome disso é
bronquite asmática. O amor é outra coisa."
"O amor não é uma coisa que chega de repente e o transforma em refém. Isso se
chama seqüestrador. O amor é outra coisa."
(...) "O amor não é uma coisa que desapareceu e que, se encontrado, poderia mudar o
que está diante de você. Isso se chama controle remoto da TV. O amor é outra coisa."
(piadas divulgadas pela internet).

Por isso, conclui Araújo:

Falar sobre algo depende de inúmeros fatores que vão da designação,


passando pela significação, descrição, situação, intenção e que dependem,
em última análise, do contexto do discurso; a discussão não pode ser
simplificada por um apelo à busca semântica de uma teoria sobre o que as
pessoas estão “realmente falando”, que não leva a nada, pois é impossível
chegar a saber sobre o que estão falando de fato. Entram aí, como bem
viu Davidson, fatores históricos, antropológicos, biológicos, psicológicos.
Pretender que a teoria da referência possa elucidar a relação entre a
linguagem e a realidade é pretender que haja uma espécie de conexão
mágica entre palavras e coisas, entre a referência e o que está sendo
referido. (ARAÚJO, 2004, p.96).

Retornemos ao percurso histórico da noção de referência. Da reflexão sobre as


aproximações entre linguagem, pensamento e realidade, foi apenas um passo – mas um
passo importantíssimo em direção à lógica - para filósofos e pensadores em geral se
perguntarem sobre como a referência às coisas se organizaria na forma de sentenças,
contendo um conteúdo proposicional. Já não se falava somente de representação da
realidade denotada por expressões, mas, sim, de proposição, uma formulação do tipo
algo é isso, como, por exemplo: O homem é mortal. As expressões denotadoras, como o
homem, só teriam significação se se reportassem a um estado de coisas por meio de uma
proposição, do tipo é mortal, tem cirrose, corre muito etc. Afirmava-se, desse modo,
que o pensamento só seria apreensível por meio de uma proposição.
Começou-se a questionar se alguma sentença faria sentido se não houvesse uma
pressuposição de existência da entidade da qual se diz alguma coisa, ou seja, do objeto
denotado (“referido”) a respeito do qual se predica algo. Para os filósofos, era possível
haver sentido, mesmo que não houvesse denotação, isto é, ainda que não existissem
entidades no mundo real a que a expressão correspondesse, por isso propunham que
sentido e denotação fossem noções apartadas. A denotação (por vezes, também
chamada de “referência”) passou a operar, para filósofos da linguagem, como Frege
([1892]1971), como um valor de verdade. Quando, numa sentença, a entidade denotada
tivesse, de fato, existência no mundo real, poderia ser atribuído à sua proposição o valor
de verdadeiro ou falso.
Na sentença “Ulisses desembarcou em Ítaca”, as expressões empregadas fariam
sentido, mas não teriam denotação, porque a entidade denotada, Ulisses, não teria valor
de verdade, já que se trata de uma entidade fictícia. Se não existia no mundo real, então
a proposição em que se formalizava não poderia ser nem verdadeira nem falsa.
Alguns princípios sustentados por Frege foram, em seguida, severamente
criticados por Russell, em 1905, um dos fundadores da filosofia analítica, em seu
tratado sobre a classe das expressões denotadoras, as chamadas “descrições (expressões)
definidas ou indefinidas”. Para Russel, ao contrário do que dizia Frege, uma proposição
declarativa tinha que ter valor de verdade, independentemente do fato de ter existência
no mundo real. Dizia Russell que, havendo duas proposições, uma afirmativa e outra
negativa, uma das duas tinha que ser verdadeira e a outra, falsa; e que dois sentidos
seriam equivalentes se, substituindo-se uma entidade pela outra, o valor de verdade não
se alterasse. Por exemplo:

( ) “Ulisses desembarcou em Ítaca.” = O mítico herói grego desembarcou em


Ítaca.

Assim, operando-se a substituição, o sentido permaneceria o mesmo, pois o valor


de verdade é o mesmo, malgrado o fato de se tratar de uma entidade fictícia.
Russell tentou dar um tratamento lógico às proposições contendo descrições
definidas, propondo para elas uma representação quantificacional, com um pressuposto
de existência e unicidade. Algo assim como: “existe um ser, e somente um, que...”. Era
uma maneira de levar a denotação (“referência”) para dentro do sentido, tornando-a
ainda mais semântica, ainda mais independente das coisas do mundo real, num
movimento de total semantização, de abstratização do “referente”.
O movimento contrário – ou seja, de pragmatização da referência – só principiaria
por volta de 1950, quando Strawson contestaria as idéias de Russell, alegando que as
condições de existência e unicidade eram necessárias, mas não suficientes, para tornar
uma proposição verdadeira. Strawson argumentava que não se poderia assegurar que
uma expressão estivesse se referindo a uma mesma e única entidade, isto é, não era
possível comprovar que a forma gramatical de uma expressão, por si só, tal como “o
mítico herói grego”, fosse usada para se referir a um mesmo e único objeto, pois uma
coisa era o significado da expressão numa sentença; outra era o uso que fazíamos dela
num enunciado.
Poderíamos, por exemplo, empregar uma expressão de igual significado, mas que
se reportasse a entidades distintas, como em:

( ) O funcionário da empresa atravessou a rua.


O funcionário da empresa está em casa.

Conclusão:
Significado e referente não são a mesma coisa.
Sentença e enunciado também não são a mesma coisa.
O significado e a função sintática de um termo comporiam a sentença; o emprego
real da expressão constituiria o enunciado. Olhar para os significados dos vocábulos,
para as funções morfológicas, morfossintáticas e sintáticas, para a organização
estrutural da oração, por exemplo, era ocupar-se do estudo da sentença. Examinar todas
essas relações formais e funcionais considerando o uso era preocupar-se com o
enunciado, contemplando, assim, aspectos pragmáticos.

A separação entre os termos sentença e enunciado ganhou enorme destaque na


Lingüística, sobretudo para demarcar fronteiras entre correntes formalistas (que elegem
como objeto de estudo a sentença) e funcionalistas (que lidam com enunciados). Foi um
primeiro salto para a Pragmática. As orações (sentenças) teriam significado, mas a
verdade e a falsidade só poderiam ser atribuídas a usos particulares (em enunciados),
tendo em conta as circunstâncias de emprego. Assim, Strawson sugeria que a referência
não era uma propriedade das orações (sentenças), mas dos enunciados, pois só podemos
nos referir quando usamos enunciados. Com isso, agora era possível afirmar que a
noção de referência pertencia ao âmbito pragmático e só se aplicaria ao uso.

Uso referencial vs. uso atributivo

Foi com o filósofo Donnellan, porém, que se chegou a uma distinção que havia
sido negligenciada pelas propostas anteriores e que influenciaria todo o pensamento da
Teoria dos Atos de Fala, permanecendo como um pressuposto para vários estudos
lingüísticos ainda hoje: a diferença entre função atributiva e função referencial.
Tratando, especificamente, de descrições definidas, Donnellan alertou para o perigo de
se confundirem dois empregos – para ele, excludentes – dessas expressões definidas: o
uso atributivo e o uso referencial. Haveria uso referencial quando a descrição definida
nos permitisse selecionar (identificar) algo ou alguém. Era exatamente o que Strawson
tratava como referência. Já o uso atributivo não teria por função identificar um objeto,
mas predicar sobre ele, dar-lhe um atributo.
Chierchia (2003, p. 243-4) explica a oposição entre uso atributivo e uso referencial
simulando uma situação em que um homem chamado Léo se encontra numa festa,
tomando uma bebida parecida com martíni. Imagine-se, diz o autor, que Hugo,
acenando com a cabeça na direção de Léo, diz a Lea: “O homem que está bebendo
martíni é louco”. Na verdade, o homem (Léo) num cantinho da festa nem estava
bebendo martíni, mas água, e Lea sabia disso, porém entendeu, assim mesmo, que Hugo
se referia a Léo. Este seria um uso referencial da descrição definida “o homem que está
bebendo martini”, pois foi empregada para levar o ouvinte a identificar o referente Léo
nessa situação.
O uso atributivo se contrapõe a este porque não é utilizado para orientar o
interlocutor a reconhecer uma determinada entidade, mas para apresentar algum atributo
desse referente. Para ilustrar o contraste entre as duas situações, Chierchia imagina uma
outra circunstância em que um dos participantes presentes a uma festa descobriu que
alguém, movido por um sentimento de vingança, trocara todos os martínis por veneno,
com exceção do próprio copo dele. Se enunciarmos a mesma frase “O homem que está
bebendo martíni é louco”, a descrição definida já terá sido utilizada com outro
propósito, que não o de dar pistas para a identificação do referente. Aqui, o objetivo é
expressar que o único homem que estiver bebendo martíni (quem quer que ele seja) só
pode ser louco, para estar querendo envenenar todo mundo; a intenção, portanto, é
atribuir predicados a esse referente já instituído.
Pensemos em mais este exemplo: A política protecionista do atual governo é
prejudicial à população. Com a descrição definida “a política protecionista do atual
governo”, não se tem a intenção de exigir que o leitor identifique o referente aí expresso
(pois já se supõe que ele seja conhecido, dado, porque o referente de “a política do
governo atual” já faz parte do conhecimento compartilhado entre os membros de nossa
comunidade). Assim, o objetivo de nomear a expressão dessa maneira não é de levar o
leitor a reconhecer, em meio a outros, esse referente, que já se supõe conhecido, mas,
sim, tachá-lo de “protecionista”, para atribuir-lhe o predicado “prejudicial à população”.
Por isso se enquadraria entre os casos que Donnellan teria provavelmente classificado
como um uso atributivo.
Se se dissesse, por outro lado, O atual governo do Brasil tem uma política
demagógica, o propósito seria, com a descrição definida “o atual governo do Brasil”,
conduzir o interlocutor a identificar, dentre os referentes possíveis, o governo do Brasil,
não de outro país, e no momento atual, não em outra época. Neste caso, haveria um uso
referencial da expressão.

Por que os filósofos da linguagem queriam contrapor os usos referenciais aos


usos atributivos? Porque era uma maneira convincente de demonstrar que o
significado gramatical (e literal) de uma sentença podia não coincidir com a intenção de
descrição que o falante tinha em mente num enunciado real.

Como bem explica Araújo (2004), a idéia de que a referência só pode ser realizada
em enunciados, bem como a distinção entre uso referencial e atributivo, passaram a ser
sustentadas, depois, dentro da Teoria dos Atos de Fala, que instaurou definitivamente os
estudos da Pragmática na Lingüística.

Aprofundando (pôr em caixa separada)


O filósofo da linguagem John Austin, com quem teve início a Teoria dos Atos de
Fala, postulava que a verdade dependeria diretamente da situação extralingüística, dos
usos em situações particulares, por isso não poderia estar presa a uma noção de natureza
gramatical.
Austin não aceitava o fato de as sentenças serem analisadas dicotomicamente,
sempre como verdadeiras ou como falsas; dizia que poderiam existir outras
caracterizações intermediárias, dependendo das diferentes funções dos enunciados. Ser
verdadeiro ou falso não era uma propriedade da oração (ou seja, da sentença), mas do
enunciado, por isso ele reafirmava a separação entre estes dois conceitos: sentença e
enunciado. Para ele, o que decidiria se um enunciado era verdadeiro seria apenas sua
correspondência com os fatos, isto é, com as coisas do mundo real. Os enunciados se
ajustariam aos fatos da realidade, daí por que Austin preferia tratar da noção de
condições de adequação de um enunciado a situações particulares de uso.

De todo esse percurso que vimos fazendo, é importante guardar que a noção de
referente de que trata a Lingüística do Texto hoje, como um objeto criado no e pelo
discurso, não é a mesma de que se falava na filosofia da linguagem, como uma entidade
correspondente às coisas do mundo. Mostraremos, a seguir, como a separação entre uso
referencial e atributivo chegou à Lingüística de um jeito diferente: com uma associação
a fatores estruturais.

Uma concepção estrita de uso referencial

A diferença entre uso atributivo e uso referencial entrou nos estudos lingüísticos
quase sempre relacionada a estruturas gramaticais. A função atributiva, opondo-se à
função referencial, costuma estar atrelada, em descrições de direção funcionalista, à
estrutura argumental dos predicados, quer dizer, à relação entre um verbo ou nome
predicador e os elementos nominais exigidos ou não por eles.
Observemos no trecho de um conto, abaixo, como os termos grifados podem
apresentar um uso atributivo:

( ) Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a


esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela
escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o
cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu
a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que
devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha
apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar.
Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos,
Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. (conto Dario, de
Dalton Trevisan)

Do ponto de vista semântico-sintático, esses termos não ocupam o espaço de um


argumento de um determinado predicado, isto é, não são exigidos por um predicado, por
isso não cumpririam função referencial; além disso, semanticamente, acrescentam
atributos, não denotam entidades. Já outros termos teriam uso referencial, pois, em
sentenças factuais, estariam vinculados a argumentos de um verbo ou de um nome. É o
caso, no conto acima, de expressões de uso referencial, como “Dario”, “o passo”, “a
parede de uma casa”, que preenchem obrigatoriamente posições sintáticas requeridas,
respectivamente, pelos verbos vir, diminuir, encostar-se:
Quem vinha? - “Dario vinha...”;
Diminuiu o quê? - “diminuiu o passo”;
Encostando-se a quê? - “encostando-se à parede de uma casa”.
Os objetos de discurso sofrem, nessa visão funcionalista, condicionamentos de
ordem semântica e sintática, conquanto sejam sempre vinculados ao uso de expressões
referenciais em enunciados. Saber a que proposição corresponde o enunciado em que as
expressões referenciais foram empregadas é, para essa perspectiva teórica, de
fundamental importância.

Aprofundando (pôr em caixa separada)

Em Neves (2006, p. 75), embora encontremos o reconhecimento de que a noção


de referenciação de que fala a autora envolve interação e intenção, também
encontramos, por outro lado, a afirmação de que os referentes, ou “objetos de discurso”,
são “entidades que constituem termos de predicações”. O universo construído no
discurso, ainda que tome como ponto de partida as intenções e propósitos
argumentativos do falante, depende, pois, de escolhas semânticas, como o tipo modal de
proposição e o valor aspectual dos tempos verbais. Desse modo, enunciados que, aqui
nesta obra, serão considerados como apresentando usos referenciais podem ser tratados
como não-referenciais, dentro do ponto de vista funcionalista. A título de ilustração,
atentemos para os exemplos que Neves menciona como não-referenciais (“um retrato
interessante” e “um único livro...”), ao apresentar o pensamento da linha funcionalista
givoniana:
Já na base dessa escolha está a possibilidade que existe, nas línguas
naturais, de se construírem proposições de dois grandes tipos modais, o
factual e o não-factual.
Como indica Givón (1984, pp.391-392), no tipo factual (em que os
argumentos são referenciais),ou há pressuposição, como em
. Sorridente e calmo, L.S. afirma que lamenta ter causado
problemas à mãe na escola. (FSP).
ou há asserção real, como em
. No caminho, Zaidman viu um carro da Rota. (FSP). (...)
No tipo não-factual (em que argumentos podem não ser
referenciais), ou há asserção irreal, como em
. Bem, quem tiver tal interesse vai ver um retrato interessante de
um dia-a-dia bem ordinário. (FSP).
ou há asserção negativa, como em
. Até aquela data Winter não vira um único livro impresso na
Província. (TV). (NEVES, 2006, p. 80).

A autora demonstra, ainda, como os tipos modais de proposição, quando ligados a


categorias gramaticais, como o valor aspecto-temporal dos tempos verbais, por
exemplo, podem também determinar se um argumento é ou não referencial. E
exemplifica com o comportamento do futuro e do habitual, definido e indefinido, no
enunciado: “D’Ávila vai comprar um modem para enviar pela linha telefônica todas as
informações digitais que compõem uma imagem. (VEJ).” (cf. NEVES, 2006, p.81). De
acordo com Neves, haveria repercussões no caráter referencial ou não da expressão em
negrito, dependendo da interpretação de definitude ou de indefinitude, como, por
exemplo, se a expressão fosse o modem: “No primeiro caso – indefinido – há um
modem que ou é referencial de expressão indefinida (sabe-se qual é) ou é não-
referencial (é um qualquer), e no segundo caso – definido – há um modem que é
referencial (sabe-se qual é)” (NEVES, 2006, p.81).

Como vemos, a noção de referenciação e de objetos de discurso que estamos


adotando aqui, sendo inteiramente pragmático-discursiva, não coincide de todo com
essas mesmas noções utilizadas em análises funcionalistas, em que a caracterização da
referência criada no discurso está condicionada ao mundo de eventos e estados nele
construído.
Em outros estudos de base funcionalista, também permanece esse pressuposto de
condicionamento entre formas lingüísticas e funções discursivas. Investiga-se, por
exemplo, ainda hoje, o status informacional das expressões, ou seja, a relação entre
informações novas ou velhas (dadas) e a forma de manifestação das expressões
referenciais (se são realizadas por sintagmas nominais definidos ou indefinidos, se por
pronomes etc.), e ainda a função sintática que essas expressões preenchem (sujeito ou
objeto direto, por exemplo).
Em análises dessa natureza, diz-se que as expressões referenciais não ocorrem em
certas posições sintáticas de modo aleatório. Uma expressão referencial exerceria a
função sintática de sujeito, por exemplo, e não de objeto direto, porque teria status de
informação velha, dada, como no excerto abaixo:

( ) Um homem, seu cavalo e seu cão caminhavam por uma estrada.


Depois de muito caminhar, o homem se deu conta de que ele, o cavalo e o cachorro
haviam morrido num acidente. Às vezes os mortos levam algum tempo para se dar
conta de sua nova condição... (...) (conto de auto-ajuda veiculado pela internet)

Note-se que os referentes dos sujeitos gramaticais, já tendo sido mencionados e


sendo, portanto, conhecidos, são realizados por expressões definidas. Em vista desse
fato, funcionalistas como Prince constatam: “os sujeitos tendem a ser definidos e a
representar informação velha” (PRINCE, 1992, p. 296).
Embora reconheçamos a pertinência dessa observação de que há um inter-
relacionamento pragmático e sintático influenciando o modo como a expressão
referencial deve ser designada, entendemos que há múltiplos fatores concorrentes para
essas escolhas das formas referenciais e que não se pode afirmar qual deles é mais
determinante que os demais de maneira sistemática em todos os casos.
Assim sendo, diferentemente desses posicionamentos, não estamos, aqui, ligando
os usos referenciais e atributivos a posições argumentais de um predicado, nem a
funções sintáticas e a formas morfossintáticas das expressões. Da mesma maneira, não
condicionamos a ocorrência dos processos referenciais ao emprego de expressões
referenciais. Assumimos a mesma concepção de Apothéloz (2001, p.31) de que o
referente, a que denomina de objeto de discurso, não precisa, necessariamente, estar
representado por uma expressão referencial, já que se trata de uma construção
discursiva:

É importante notar que os referentes, que são conseqüência desse


processo, são, nesta perspectiva, ficções semióticas, e não exatamente
realia que preexistem à interação. Seguindo os trabalhos de Grize (1982,
1996), eu os nomearei de “objetos de discurso”. Teremos oportunidade de
ver que um objeto de discurso pode ser uma instância referencialmente
subdeterminada e efêmera.
Na perspectiva em que me situo, a referência não é, de modo
algum, ligada a marcadores lingüísticos particulares, nem notadamente
àquilo que se convencionou chamar de “expressões referenciais”.
(tradução nossa)

Construir um referente não requer, para nós, que ele seja explicitado por uma
expressão referencial; assim como colaborar para o acréscimo de predicativos a um
objeto de discurso não exige que, para isso, se tenha necessariamente um predicado, ou
uma função sintática que cumpra uma função atributiva predeterminada. Não falaremos,
pois, de usos considerados como referenciais ou como atributivos tendo em vista a
descrição estrutural do enunciado em que se inserem. É bastante freqüente – e
esperável, diríamos – encontrarmos sobrepostas as duas operações: de referência e de
acréscimo de atributos, condição essencial para que se processe a progressão referencial
(e temática), que dá unidade de coerência a um texto. Eis por que, em muitos casos,
Schwarz (2000) fala de “tematização remática”, sempre que constata essa duplicidade
de funções.
Algumas evidências interessantes desses usos se verificam em certos empregos de
expressões indefinidas, como bem demonstrou Cunha Lima (2004). Koch (2002a),
retomando Schwarz (2000), analisa algumas situações de uso da expressão indefinida,
em que referência e atributo se amalgamam numa tematização remática, e conclui essa
duplicidade provavelmente se explica pelo fato de as expressões referenciais nominais,
em geral, exercem, simultaneamente, duas funções cognitivo-discursivas, pois reativam
referentes já presentes na memória discursiva e introduzem novas predicações a respeito
deles (KOCH, 2002b, p.3).
A autora comenta o seguinte exemplo de Schwarz, em que a expressão anafórica
exerce muito mais a função de focalizar um atributo do que de identificar um referente
dentro da cadeia coesiva do texto:
( ) A velha senhora desaba sobre a cadeira da cozinha. E quando sua amiga
chega, não encontra a avozinha, mas um montinho de infelicidade, uma coisinha
danificada e confusa. (adaptado de Schwarz, 2000, p.59).

Koch (2002b, p.121) seqüencia esse raciocínio discutindo o termo grifado no


exemplo abaixo, cujo estatuto anafórico foi questionado por Rodolfo Ilari, o qual se
pergunta: a expressão em destaque não seria uma simples ocorrência de predicação, de
uso atributivo, e não de referência?

(7) “A repressão policial na cracolândia, reduto de traficantes e dependentes de


crack no centro de São Paulo divide opiniões. De um lado, especialistas no tratamento
de dependentes condenam a estratégia do governo para expulsar os viciados da região.
De outro, comerciantes locais aplaudem a iniciativa. / Para o psiquiatra Auro Lescher,
coordenador do Projeto Quixote, criado pela Escola Paulista de Medicina para atender
crianças e adolescentes que vivem nas ruas, a ação da polícia é apenas uma maneira "de
varrer a sujeira para debaixo do tapete". / "Estão tratando uma questão social como se
fosse uma questão urbanística e financeira. Enquanto adotarem medidas repressivas
estarão perpetuando um grave problema", diz. (FSP "Especialistas criticam ação do
governo" FSP 3/9/2000 - extraído de um corpus de anáforas da imprensa brasileira,
coletado por R. Ilari).

De acordo com Koch, Ilari questiona se, para que expressões como “um grave
problema” sejam classificadas como anafóricas, bastaria argumentar, por exemplo, que
o indefinido um poderia ser permutado pelo demonstrativo esse – esse grave problema -
, sem que isso acarretasse alterações ao processo; ou que a expressão poderia ser
retomada no cotexto subseqüente por o problema, esse problema etc., formando, assim,
uma cadeia coesiva, que asseguraria a natureza referencial. Em outros termos, “um
grave problema” teria uso referencial anafórico porque poderia ser substituído e
retomado depois por “o problema, esse problema”.
Não pensamos que o cerne da questão de se tratar ou não de um uso referencial
anafórico resida na forma de manifestação do referente, mas o fato de a entidade poder
ser retomada no texto posteriormente nos parece um argumento forte para o caráter
referencial dessa expressão indefinida. Não se trata simplesmente de recorrer à
substituição do artigo indefinido pelo demonstrativo, pois não é a expressão em si, e
suas restrições formais, que vai determinar o aparecimento de um objeto de discurso. O
referente atinente a “uma questão social” já vinha sendo, na verdade, introduzido aos
poucos, e a ele foram sendo acrescidas outras nuances que permitiram ao enunciador
homologá-lo como “um grave problema”.
Koch defende que se verifica, neste caso, uma transformação – chama-se
recategorização – do referente de “uma questão social” em um grave problema, que
expressa o ponto de vista do enunciador sobre o objeto construído. Este pensamento
converge para as observações que temos feito até agora sobre o processo contínuo de
reconstrução da referência. Como bem observa Koch:
A opção pelo indefinido deve, pois, ter uma razão de ser: talvez o
enunciador tenha preferido a expressão indefinida para enfatizar a sua
avaliação de que a forma como a questão social está sendo tratada pelas
autoridades constitui um grave problema que poderá se perpetuar. O
emprego de esse grave problema parece pressupor que os co-
enunciadores já partilhavam a idéia de que o problema existia. (KOCH,
2002b, p.125)
Não importa, portanto, que dadas expressões se encontrem em posições sintáticas
predicativas, pois

ao optar pelo uso de frases nominais, o enunciador não quis apenas


atribuir predicações, mas sim construir seus objetos-de-discurso por meio
de descritores lexicais nominais – o que é, inclusive, retoricamente muito
mais ágil e mais forte. São ‘flashes’ que nos permitem compor na
memória os objetos descritos. (...) cada um desses descritores nominais
pode ser atribuído a uma voz diferente. (KOCH, p.123)

Com todas essas ponderações, não queremos, todavia, negar que os referentes,
ou objetos de discurso, sejam mais apropriadamente manifestados por certas formas que
a língua disponibiliza, como os sintagmas nominais (SN) definidos, indefinidos e
demonstrativos, como os pronomes e os nomes próprios, pois, como o admite Charolles:
Os nomes próprios, os SN definidos, demonstrativos, indefinidos e
os pronomes não esgotam o estoque de expressões referenciais que o
francês põe à disposição dos locutores, mas estas formas muito utilizadas,
às quais é necessário notadamente acrescentar os possessivos e os SN sem
determinantes, permitem responder a uma gama ampla de situações e de
intenções comunicativas. Eles oferecem aos sujeitos que as utilizam a
possibilidade de explorar e de acrescentar dimensões do contexto que são
bem mais sutis do que possamos imaginar. Essas dimensões incluem
traços materiais e psíquicos que preexistem à comunicação, como a
presença ou não de referentes no contexto de enunciação, mas também,
em certo sentido sobretudo, os traços imateriais como a atenção que os
interlocutores podem já ter dado ou não ao referente visado, a
representação que eles podem ter deles, as intenções referenciais que
podem se atribuir mutuamente etc. (CHAROLLES, 2002, p. 241-2).

Apenas rejeitamos a idéia de que tais formas, e as funções sintáticas que elas possam
preencher dentro de proposições, sejam obrigatoriamente referenciais ou não-
referenciais, independentemente de seus usos. Os processos referenciais resultam, a
nosso ver, de uma conjunção de vários fatores, que não dependem exclusivamente de
imposições de ordem gramatical. Em consonância com Apothéloz (2001), diremos que
construir um referente envolve um processo cognitivo e social de interação e de
atenção. De interação porque, como mostramos acima, só se pode tratar de referência
dentro de situações efetivas de comunicação, não importa que não sejam interações
face-a-face. De atenção conjunta porque os participantes da comunicação se voltam, por
meios diversos, lingüísticos e não-lingüísticos, gestuais ou não, para cada entidade que
estiverem focalizando durante essa interação.

É como sintetiza Ciulla e Silva (2008): elaborar e reelaborar referentes requer a


consideração de elementos lingüísticos, de pistas extralingüísticas e, necessariamente,
de muitas inferências, para que os participantes da interação achem que estão atentando
para a mesma entidade, mesmo que esse referente não seja precisamente o mesmo para
a mente dos interlocutores, pois haverá sempre um viés de diferença no modo como
cada um concebe e percebe as coisas.

Pensamos que, na verdade, os elementos lingüísticos estão imersos,


assim como todos os outros elementos da situação extralingüística, no que
poderíamos chamar de entorno discursivo. Por isso, a referência é um
processo em que não se pode separar completamente o que é lingüístico
do que não é. O que podemos é inferir, a partir do texto, quais objetos
estão sendo referidos, de que maneira, por quem, com quais intenções,
etc. num cálculo que pode ser ajustado, conforme nos empenhamos na
compreensão e de acordo com as outras pistas que nos vão sendo
fornecidas à medida que o discurso se desenvolve. O fato de que as
inferências que são autorizadas pelos elementos materiais do texto são
essenciais para completar-lhes o sentido é uma evidência de que essas
inferências fazem parte do próprio processo lingüístico. (CIULLA e
SILVA, 2008, p. 17)

Este pensamento está em harmonia com as idéias de Ariel (1996), como explica
Costa (2007), para quem as expressões referenciais constituem apenas instruções ao
destinatário de como este deve recuperar da memória parte de uma determinada
informação. Elas indicam quão acessível está esse pedaço de informação no discurso.
Além de exercerem essa função de orientar o co-enunciador, elas ainda contribuem para
a identificação do referente de outro modo: pelo próprio conteúdo informacional que
comportam, geralmente.
Não existe uma associação previamente determinada entre as formas de
expressões referenciais e os “lugares” de onde provém a base de conhecimentos
relevantes para a identificação dos referentes. Conforme explica Ariel, não se deve
supor que os nomes próprios, por exemplo, sejam as formas mais apropriadas para a
recuperação de informações enciclopédicas, ou que os demonstrativos sejam os mais
indicados para a identificação de objetos salientes no ambiente físico, nem que os
pronomes pessoais só remetam a algo presente no contexto lingüístico precedente.

Conclusão:
Não se pode, a priori, estabelecer uma relação fixa entre formas de expressão
referencial e tipos de campos de onde se origina a informação que elas veiculam.
Os enunciadores não instruem os co-enunciadores a recuperarem os referentes
pela alusão à sua origem “geográfica”, mas sim, pela “sinalização”, também através das
expressões referenciais (mas não somente por meio disso), de como esses referentes
podem estar mais, ou menos, acessíveis para eles.
PARTE II – O que dizemos hoje sobre o referente

Há tipos distintos de processos referenciais que ajudam os participantes da


interação a construírem sua própria coerência dos textos que recebem ou que produzem.
Para nós, todo processo referencial é viabilizado por um dispositivo remissivo, uma
propriedade de apontar para um dado objeto reconhecível a partir de pistas muito
diversificadas. Podemos dizer, com Lyons (1977), que todo processo referencial
envolve um componente “dêitico”, já que aponta para pistas vindas do espaço e do
tempo real em que se situam os enunciadores, do cotexto, da memória compartilhada,
das supostas intenções enunciativas de cada um e do contexto sócio-histórico do
momento, todas colaborando, ao mesmo tempo, para que os referentes se configurem na
mente dos participantes da enunciação.
Divisamos, nos trabalhos da linha de referenciação, duas maneiras de abordar os
objetos de discurso dentro de um texto; este capítulo discute um pouco cada uma delas.
Uma prioriza a manifestação das expressões referenciais no cotexto para descrever
diferentes tipos de processos de introdução, de anáfora e de dêixis. Outra não considera
como critério primário de distinção a explicitação das expressões referenciais, mas sim,
a construção sócio-cognitivo-discursiva desse objeto de discurso. Embora, em ambas as
abordagens dos fenômenos referenciais, se busque analisar o modo como a
representação mental do objeto de discurso vai se configurando, não somente a partir
dos indícios fornecidos pelo cotexto, mas também a partir de todos os outros dados do
entorno sócio-cultural e situacional dos enunciadores e co-enunciadores, a prioridade
dada à menção das expressões referenciais, na primeira visão, termina sendo decisiva
para a separação entre estratégias de introdução, de anáfora e de dêixis.

Referenciação atrelada à menção de expressões referenciais

Dentro da primeira perspectiva, pela qual se pautam inúmeros trabalhos (como os


de Koch, Marcuschi, Cavalcante e muitos outros), os processos referenciais se dividem
em duas possibilidades. Se as entidades são introduzidas no texto pela primeira vez, isto
é, se elas ainda não foram citadas antes no texto, então estamos diante de ocorrências de
introdução referencial. Se os referentes já foram de algum modo evocados por pistas
explícitas no cotexto, então estamos em presença de continuidades referenciais, isto é,
de anáforas.

Processos referenciais atrelados à menção


Introdução Referencial Anáfora (continuidade referencial)

Vejamos, no seguinte exemplo, como as expressões “o sujeito” e “o padre”


introduzem novos referentes no texto, citando-os pela primeira vez:

( ) “O sujeito chega para o padre e pergunta:


- Padre, o senhor acha correto alguém lucrar com o erro dos outros?
- É claro que não, meu filho!
- Então me devolve a grana que eu te paguei para fazer o meu casamento.
(piada, As melhores piadas de casseta e planeta, v.4)

Para esta primeira concepção, dizer que os referentes de “o sujeito” e de “o padre”


foram introduzidos no universo do discurso depende diretamente do fato de eles
aparecerem formalmente no cotexto. São tomadas como introduções referenciais porque
não se leva em conta o que vem após elas, mas o fato de nada remeter a elas antes.
Por outro lado, diz-se que, para haver anáfora, é necessário que as expressões
referenciais anafóricas ancorem em pistas do cotexto, que podem apontar para trás, ou
para a frente, ou até para ambas as direções. Note-se como “o garoto”, do exemplo ( ),
reapresenta o referente já mencionados antes, fazendo uma remissão retrospectiva a
Joãozinho:

( ) A professora tenta ensinar matemática para o Joãozinho.


- Se eu te der quatro chocolates hoje e mais três amanhã, você vai ficar com...
com... com...?
E o garoto:
- Contente! (piada, Coleção 50 Piadas – Matemática, de Donaldo Buchweitz)

O referente de “o Joãozinho”, uma introdução referencial, é retomado a partir da


expressão anafórica “o garoto”. Diz-se, neste caso, que se deu uma ocorrência de
correferencialidade, porque o mesmo objeto de discurso previamente introduzido foi
completamente recuperado pelo anafórico “o garoto”.
Em contraste com isso, as expressões anafóricas correferenciais sublinhadas a
seguir fazem uma remissão prospectiva ao mesmo referente – diz-se que são remissões
catafóricas, antecipando o que vai ser dito do referente:

( ) CERVEJA
Motivo de polêmica
A Schincariol lança neste mês no Nordeste a lata de Nova Schin com uma tampa
protetora de alumínio. A solução, que outras empresas já usam, é motivo de uma
pequena guerra no setor: o sindicato que reúne a Ambev e a Femsa fez campanha
publicitária contra. Alegou que esse tipo de embalagem não protege contra a formação
de bactérias. Uma liminar na Justiça proibiu a campanha.
(nota – revista Veja, 07/05/2008)

Vejamos como, na reportagem abaixo, os referentes vão sendo mantidos,


formando cadeias coesivas de correferencialidade:

( ) A energia do Shiatsu
Há séculos que os japoneses recorrem aos benefícios dessa massagem, que usa a
pressão (atsu) dos dedos (shi) para aliviar tensões e dores de cabeça. Segundo o
terapeuta Kioshi Kikuto, do Rio de Janeiro, a técnica chegou aqui com os imigrantes
japoneses, que aplicavam a massagem entre si para amenizar as dores causadas pelo
trabalho na lavoura. Nesses 100 anos, o shiatsu sofreu algumas adaptações: “No Japão,
a pressão dos dedos é maior e mais pontual; aqui é comum associar técnicas de
alongamento e relaxamento na mesma sessão”, diz Carla Godinho, professora de
terapias corporais do Senac de Fortaleza. Para ter certeza de que a massagem foi bem-
feita, Kioshi ensina: “A primeira sensação é de dor, seguida por um enorme conforto.
Desconfie se sentir apenas uma coisa ou outra”. (revista Cláudia, maio de 2008)

Comecemos com o referente de shiatsu: ele é retomado correferencialmente logo


no início do texto e já recebe uma nova configuração, pois é recategorizado pela
expressão anafórica “dessa massagem”. A estratégia é proposital, já que fornece ao co-
enunciador a informação, que ele pode desconhecer, de que o shiatsu se define como
um tipo de massagem. Assim, a referência, pelo emprego de uma paráfrase definicional
(KOCH, 2004), não apenas continua, mas ainda progride e colabora fundamentalmente
também para o tema que está sendo desenvolvido.
O referente já transformado é ainda recuperado pelo relativo “que”, por repetições
(“a massagem”, “o shiatsu”) e, adiante, é novamente recategorizado como “a técnica”.
São situações de anáfora correferencial, em que o mesmo referente é ora simplesmente
mantido, ora alterado em proporções variadas.
Contudo, não se deve concluir que a progressão referencial se efetive somente
através das estratégias de correferencialidade. O processo de continuidade anafórica e
de progressão da referência por meio de acréscimos também pode ser realizado pela
menção de expressões que, embora não representem o mesmo referente citado, estão de
algum modo ligadas a outras âncoras lingüísticas do cotexto e operam uma espécie de
referência indireta, que nem por isso deixa de ser anafórica. Conforme comenta Koch:

As anáforas indiretas, por seu turno, caracterizam-se pelo fato de


não existir no cotexto um antecedente explícito, mas sim um elemento de
relação (por vezes uma estrutura complexa), que se pode denominar
âncora (cf. Schwarz 2000) e que é decisivo para a interpretação; ou seja,
trata-se de formas nominais que se encontram em dependência
interpretativa de determinadas expressões da estrutura textual em
desenvolvimento, o que permite que seus referentes sejam ativados por
meio de processos cognitivos inferenciais que mobilizam conhecimentos
dos mais diversos tipos armazenados na memória dos interlocutores.
(KOCH, 2002a, p.1)

É o que acontece já na relação entre a âncora do título “A energia shiatsu” e “os


japoneses”. A origem do nome shiatsu é um dado que favorece uma associação com o
referente de “os japoneses”. Não se trata do mesmo referente, é claro, mas de um
processo inferencial, cognitivo, em que certos indícios contextuais provocam o
surgimento de um dado referente sem que isso cause estranheza ao co-enunciador,
produzindo o que Marcuschi (2005) chama de “universo referencial emergente”. Trata-
se de uma relação anafórica que não se realiza diretamente entre a primeira expressão
que introduz o referente e a outra que o retoma, mas de uma outra relação, designada na
literatura como anáfora indireta. É o que percebemos também na associação automática
que fazemos, por exemplo, entre a massagem e “o terapeuta Kioshi Kikuto”, “a pressão
dos dedos”, “tensões e dores de cabeça”, “terapias corporais”, dentre outros marcados
no texto, que se amarram dentro do texto porque os participantes da comunicação
acreditam em noções compartilhadas. Conhecimentos culturais (ou mais particulares,
dependendo do gênero e da situação enunciativa) vão sendo acionados e novas
associações vão sendo elaboradas, sem que se possa predeterminar exatamente que pista
foi mais determinante do que outra determinou uma ligação.
Chamamos a atenção, mais uma vez, para a importância dada, dentro desta
perspectiva, à menção tanto das expressões anafóricas quanto das âncoras, ainda que se
admita que o fenômeno só surte efeito por causa da ativação de processos cognitivos
complexos mobilizando conhecimentos diversificados na memória discursiva dos
participantes da enunciação.
Os elos referenciais vão se entrelaçando nas representações mentais que os
falantes vão elaborando no universo do discurso, compondo verdadeiras cadeias
anafóricas. Essa tessitura de elos interligados, coesos, que não se costuram
exclusivamente pelo que está explícito no cotexto, senão também pelo que se encontra
implícito na memória discursiva e que se descobre por inferências, é a condição básica
para que uma unidade de coerência se forme na mente de enunciadores e co-
enunciadores.
Poderíamos resumir esses dois grandes processos referenciais, fundamentados
nesse critério menção no cotexto, dizendo assim: há duas funções gerais das expressões
referenciais:

1) Introduzir formalmente um novo referente no universo discursivo


2) Promover, por meio de expressões referenciais, a continuidade de
referentes já estabelecidos no universo discursivo.

Essas duas funções autorizam a separação entre os dois tipos de processo: as


introduções e as anáforas, conforme mostramos acima. Dentro do segundo grupo, das
anáforas, há dois subgrupos: as anáforas com manutenção do mesmo referente e as sem
retomada do mesmo referente. Veja-se a síntese no quadro abaixo:

Processos referenciais atrelados à menção


Introdução Referencial Anáfora (continuidade referencial)

Anáforas Anáforas indiretas


Diretas (Correferenciais) (Não-correferenciais)

O aparecimento das expressões do primeiro grupo, isto é, das introduções


referenciais, não está atrelado a nenhum elemento do cotexto anterior ou da situação
imediata de comunicação. Examinemos o termo grifado a seguir:
( ) “O Prefeito foi visitar o hospício da cidade. Chegando na biblioteca, percebe
que tem um louco, de cabeça para baixo, pendurado no teto. Preocupado, comenta com
o diretor do hospício:
- O que é que esse louco está fazendo aí no teto?
- Ele pensa que é um lustre.
- Mas é muito perigoso, ele pode cair e se machucar.
- Por que vocês não o tiram do teto?
- Mas e, à noite, como é que a gente vai fazer para ler no escuro?”
(piada, Coleção 50 piadas – loucos, de Donaldo Buchweitz).

Já as expressões do segundo grupo, isto é, as que a literatura tem sempre


consagrado como anafóricas, são responsáveis pela continuidade referencial e exigem a
consideração de um termo-âncora formalmente dito no cotexto.

Recapitulando
Continuidade não significa obrigatoriamente manutenção de um mesmo referente.
Quando o mesmo referente é retomado, dizemos que a anáfora é correferencial. Mas
nem toda continuidade, ou seja, nem toda anáfora, é correferencial, porque nem todas
retomam o mesmo objeto de discurso. Quando acontece de não haver
correferencialidade, a continuidade se estabelece por uma espécie de associação que os
participantes da enunciação elaboram por inferência.

No exemplo acima, são anafóricas diretas (correferenciais) as expressões “esse


louco” e “ele”, que recuperam a mesma entidade, “um louco”, previamente mencionada.
Por outro lado, são anafóricas indiretas, dentre outras, as expressões:
- “a biblioteca”, ligada por uma relação metonímica de parte-todo a “o hospício da
cidade”;
- “o diretor”, “um louco”, também associadas a “o hospício da cidade”, mas por
uma relação funcional (KLEIBER, 2001): o diretor e o louco são agentes que atuam
dentro de um hospício.
Nestes últimos casos, temos anáforas indiretas, caracterizadas pela menção de um
novo referente relacionado a outro, distinto, e já citado anteriormente, ou relacionado a
alguma outra pista formal do texto, como um verbo, por exemplo. Essa possível
associação entre as duas formas, a qual o enunciador espera que o co-enunciador
reconheça, permite apresentar o anafórico indireto como se já fosse conhecido, dado,
velho. Repare-se no exemplo seguinte:
( ) “Um advogado morre e pede, em seu testamento, que cada um de seus três
sócios jogue 50 reais dentro de seu túmulo na hora do enterro. O primeiro pensa muito,
tira uma nota de 50 reais da carteira e a joga na cova. O segundo reluta bastante, mas
também joga uma nota de 50 reais. O terceiro recolhe as duas notas de 50 e joga um
cheque de 150 reais na cova. (piada, Coleção 50 piadas – profissões, de Donaldo
Buchweitz).

Como anafóricos diretos, correferenciais, podemos ter, dentre outros, “o


primeiro”, “o segundo” e “o terceiro”, com relação a “cada um de seus três sócios”.
Como anafóricos indiretos, podemos citar, além de outros, “um cheque de 150 reais”.
Note-se que anáforas indiretas, como as que se instauram a partir da relação entre, por
exemplo, “o enterro” e “morre”, constituem um processo de referenciação que se dá
pelo que inferimos, dentro de nossa cultura, da cena de morte seguida de enterro. A
menção nova, portanto, do referente de “o enterro” já se estabelece por dedução a partir
de pelo menos uma menção velha, como “morre”.
Alguns estudiosos pleiteiam, ainda, uma subdivisão dentro das anáforas
indiretas. Os estudos convergem para duas abordagens do fenômeno: uma estreita, que
se apóia em restrições léxico-estereotípicas; outra ampla, que diz não limitar-se a tais
restrições. Esse duplo olhar para as relações anafóricas indiretas redundou em decisões
classificatórias distintas. Certos autores preferiram restringir o fenômeno às ligações
fundadas, em princípio, em associações que seriam, supostamente, apenas semântico-
lexicais, deixando à margem as situações que requeressem outros tipos de inferência – é
o caso de Kleiber (2001). Outros autores, como Schwarz (2000), por exemplo, optaram
por propor duas classes de referência indireta:

- as anáforas associativas - seriam “conceitualmente baseadas”;


- as anáforas inferenciais - seriam “inferencialmente baseadas”; englobariam
muitos outros casos em que a recuperação do referente indireto exigisse
percepções da situação enunciativa, informações do conhecimento culturalmente
compartilhado, dados fornecidos pelo próprio desenvolvimento textual e
argumentativo etc.

Outros autores, ainda, como Apothéloz e Reichler-Béguelin (1999), decidiram-


se por não distinguir as anáforas indiretas, reunindo-as todas num só conjunto de
“anáforas associativas”, sob a alegação de que não importa a origem da âncora em que
se apóia o anafórico indireto, nem importa a forma como ele se manifesta (se como
sintagma nominal definido, demonstrativo, possessivo; se como pronome pessoal), pois
o que vale é o mecanismo inferencial envolvido no processo – este é também nosso
posicionamento neste livro.

Aprofundando (para pôr numa caixa à parte)

Aqueles que concordam em falar de anáfora associativa stricto sensu vêem-na


como um tipo de referência indireta que “repousa sobre um elo convencional, pré-
inscrito no léxico, que liga de modo necessário – e, mais freqüentemente de modo
estereotípico – o sintagma nominal fonte e o sintagma nominal anafórico” (KLEIBER,
1994, p.93). Para Kleiber, uma anáfora associativa consiste na introdução (leia-se:
menção) de um referente novo, manifestada por uma expressão nominal definida, que se
reporta a uma outra entidade mencionada antes no cotexto. As duas expressões, isto é, a
anafórica associativa e a antecedente, estariam associadas por relações convencionais
estabelecidas entre os nomes (lexemas) que as constituem.
Ponderemos sobre a restrição formal que tal definição impõe: ela isola das
anáforas associativas todas as ocorrências de referência indireta realizadas por
sintagmas nominais demonstrativos, possessivos, bem como as manifestadas por
pronomes pessoais. Todos esses casos que não se encaixam nas conexões léxico-
estereotípicas propostas pelo autor são relegados a situações de anáforas inferenciais, ou
de algum tipo de referência indireta que nem chegaria a constituir anáfora, e não são
descritos por ele. Desse modo, exemplos como “a pedra”, abaixo, não configurariam
anáforas associativas, mas fenômenos outros de “referenciação indireta”; não se
submeteriam a um exame detido, pois seria difícil justificar uma relação lexical
necessária e regular entre “a pedra” e “lá embaixo”, ou “tomba”:

( ) que será
que tem lá embaixo
que a pedra tomba
tão fácil? (La vie en close, de Paulo Leminski)

Para compreender em que consistem as relações lexicalmente convencionadas,


consideremos os exemplos analisados por Kleiber, que as subdivide em quatro espécies:
meronímicas, locativas, actanciais e funcionais.
a) Anáforas associativas meronímicas

As anáforas associativas meronímicas se instancializam quando o nome nuclear do


anafórico associativo é semanticamente marcado pelo traço “parte de”. Haveria entre as
duas entidades que essas expressões representam uma dependência ontológica
particular, em que o referente do anafórico seria uma parte constitutiva do referente de
seu antecedente. Exemplos representativos de anáfora associativa meronímica podem
ser extraídos de Schwarz (2000), como nas seguintes ocorrências, que adaptamos:
( ) Não pegue a xícara amarela. A asa está quebrada.
( ) O carro está acabado. A direção está totalmente torta.
( ) Pegue esta panela aqui. O aço agüenta mais.
( ) O bonito vaso da tia Erna é frágil. A porcelana é muito fina.

b) As anáforas associativas locativas

Kleiber observa que as entidades dos anafóricos associativos meronímicos não são
referencialmente autônomas, como “asa” e “xícara”; “direção” e “carro”; “aço” e
“panela”; “porcelana” e “vaso”. Os segundos referentes são, com efeito, partes
constitutivas de suas fontes. Ao contrário disso, os anafóricos associativos locativos têm
independência referencial, porque sua existência não se prende à existência da outra
entidade. O exemplo prototípico, para o autor, seria este:

( ) “Entramos num vilarejo. A igreja estava situada no alto.” (KLEIBER, 2001,


p.263)

Aqui, embora permaneça um vínculo entre a parte e o todo, verifica-se um


condicionamento de localização espacial ou temporal das partes, como no exemplo a
seguir, em que o referente de “a geladeira” pertence ao de “uma cozinha”:

( ) “Entramos numa cozinha. A geladeira estava aberta.” (KLEIBER, 2001, p.278)

Kleiber explica que, se entre igreja e vilarejo, e entre geladeira e cozinha, há


autonomia dos componentes em relação ao todo, o mesmo não se pode dizer da ligação
entre direção e carro, aço e panela, porcelana e vaso.
É importante constatar que aquilo que se concebe, nessas definições, como sendo
“novo” significa o que, até o momento de sua ocorrência, não tinha sido mencionado e
que, em conseqüência da não-menção, não tinha sido “introduzido no modelo de
discurso”. Também vale apontar que, como assevera Neves (2006), dentro desta visão,
o que distingue a anáfora associativa de outras referências indiretas é a genericidade que
a caracteriza, ou seja, seria o fato de a associação já estar prevista em scripts e frames
na mente dos interlocutores.
Todavia, na perspectiva que assumimos neste trabalho, as anáforas indiretas em
geral não estão subordinadas ao condicionamento formal das expressões nominais
definidas: elas podem se manifestar também por outros sintagmas nominais e
pronominais. Nem podemos afirmar que a relação entre o primeiro referente
mencionado e o anafórico associativo só dependa de conhecimentos muito gerais e que
independa de informações culturais outras, ou de dados contextuais específicos
partilhados entre os interlocutores.

c) As anáforas associativas funcionais

Ao contrário das anáforas associativas meronímicas, que podem conservar uma


noção de distributividade, as funcionais não podem – alega Kleiber. Assim, se uma
associação meronímica como “o tronco – as árvores” permite a interpretação
distributiva de que há tantos troncos quantas árvores há, uma associação funcional como
“o autor – as obras” não admite essa distributividade, pois não se pode dizer “há tantas
obras quantos autores há”. Esse condicionamento semântico distinguiria as funcionais
das meronímicas.
Os anafóricos funcionais apareceriam tipicamente em associações como “obra –
autor”, “clube – presidente”, “carro – motorista” etc., em que o anafórico desempenha
alguma função com relação a seu referente-fonte, a sua âncora. Outra restrição
semântica que os tipificaria é que eles não se sujeitam a uma prova estrutural com o
verbo ter, que confirma o traço de pertença, como acontece numa estrutura meronímica.
Não se poderia dizer, por exemplo, que “? Esse clube tem o presidente doente / ? O
carro tem o motorista levemente embriagado / ? esse livro tem autor inglês”’
(KLEIBER, 2001, p.349), ao passo que seria perfeitamente possível afirmar, numa
associação meronímica: “o carro tem a direção torta”; “a xícara tem asa” etc. As
restrições ditadas pelo autor, como vemos, são todas de ordem semântico-estrutural, o
que limita demais os pressupostos que admitimos neste estudo.

d) Anáforas associativas actanciais

Para definir as anáforas associativas actanciais, o critério a que recorre Kleiber é


de outra natureza semântica, diferente das noções partitivas anteriores: agora é
necessário que o referente do anafórico corresponda a um dos argumentos (actantes)
de um predicado introduzido no cotexto precedente. O elemento que serve de âncora,
ou fonte, para o anafórico associativo é, desse modo, um predicado, não uma outra
entidade. O relacionamento não se dá entre duas entidades, mas entre um
acontecimento e as entidades implicadas nesse evento, como em “Houve um
assassinato. O assassino foi rapidamente preso.” (KLEIBER, 2001, p. 324). O
predicado seria “foi preso”; a ele, correspondem os argumentos (casas vazias, lugares
vazios). Esta peculiaridade distingue completamente as actanciais das outras três, que
se instauram a partir da associação entre duas entidades, não entre entidades e
predicações.
O fato de o anafórico associativo actancial vir representado por uma expressão
nominal definida adviria, portanto, do esquema predicativo, e o critério de
identificação deste subtipo é de natureza semântico-sintática. No quadro valencial, o
predicado implica um conjunto de argumentos, e constitui a âncora que ampara a
interpretação da anáfora associativa. Como resume Kleiber (2001, p.324), “a anáfora
associativa actancial vem, em suma, apenas saturar um lugar argumentativo junto do
predicado antecedente”. Exemplo do autor:

( ) “A operação se passou bem. O operado e o cirurgião até mesmo brincaram


juntos.” (KLEIBER, 2001, p.324).

Observe-se que, por esse viés, o referente da expressão sublinhada só se


recuperaria pela identificação da relação de dependência valencial entre o predicado
“operação” e os argumentos operado e cirurgião.

Cumpre reforçar que as relações anafóricas indiretas, de caráter mais


“inferencial”, segundo Kleiber (2001), isto é, que não forem consideradas como
derivando de amarrações léxico-estereotípicas, ficam expurgadas do que se concebe
como anáfora associativa em sentido estrito. Estariam excluídos todos os tipos
inferenciais que exigem, segundo Marcuschi (2005), estratégias cognitivas fundadas em
conhecimentos conceituais mais ou menos já estabelecidos em modelos mentais, e em
conhecimentos de mundo.
Esses anafóricos indiretos mais inferenciais se estabelecem a partir de graus
diferentes de inferência. Reconhecendo isso, Marcuschi (2005) propõe subdividir as
anáforas indiretas inferenciais em duas variedades – mas, evidentemente, haveria
muitos outros tipos; propor uma tipologia aberta desses anafóricos é algo que ainda está
por ser feito:
a) tipos mais especificamente vinculados ao modelo de mundo textual presente no
co(n)texto), como no exemplo:

( ) “Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias.
Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam
que o barco não estava lá.” (MARCUSCHI, 2005, p.53)

b) tipos mais ligados a processos inferenciais gerais, que dependem de


informações culturais mais amplas, como o conhecimento de que, em nossa cultura, o
casamento heterossexual envolve dois parceiros. Esse dado favorece, como no exemplo
abaixo, a pergunta pelo par masculino que vai casar com Maria:

( ) “A: Maria pretende casar no final do ano


B: e o que é que ele faz?” (MARCUSCHI, 2005, p.67)

O ponto de vista que sustentamos aqui é de que, malgrado as inegáveis


associações de natureza meronímica, locativa, funcional e actantcial (e até outras não
cogitadas por Kleiber, 2001), todas as anáforas são, na realidade, inferenciais, e nada
assegura que, cognitivamente, a ativação do anafórico indireto seja engatilhada somente
pelos condicionamentos semânticos descritos pelo autor. Ademais, contraditório seria,
ante os posicionamentos de que partimos, aceitar o pressuposto de que um referente
seria acessível, cognitivamente, apenas por uma associação totalmente estabilizada na
língua, e dada a priori. Mesmo o que se supõe estável, porque compõe nossos
conhecimentos lingüísticos, passa a se ressignificar e a se reconstruir referencialmente
nas práticas discursivas.
2.1.1 O caso especial das anáforas encapsuladoras

Existe um processo referencial que, dentro da perspectiva que dá primazia a


menções no cotexto, tem sido tratado como um tipo peculiar de anáfora indireta,
porque não retoma nenhum objeto de discurso, pontualmente, mas se prende a
conteúdos espalhados pelo contexto.

Vejamos as ocorrências de anafóricos encapsuladores sublinhadas no texto


abaixo:

( ) Auto-retrato
Luiz Paulo Kowalski
Em dezembro de 2005, aos 48 anos, o cirurgião Luiz Paulo Kowalski, do Hospital
do Câncer, em São Paulo, um dos maiores especialistas em tumores de cabeça e de
pescoço do país, descobriu por acaso um nódulo na parótida direita, uma das
glândulas produtoras de saliva. A cirurgia para a retirada do tumor deixou o médico
com parte do rosto paralisada. A experiência de enfrentar como paciente uma
enfermidade na qual é especialista fez com Kowalski mudasse radicalmente sua postura
perante os doentes. “Minha doença me fez um médico melhor”, disse ele à repórter
Adriana Dias Lopes.
Qual foi a principal lição que o senhor tirou de sua experiência?
Ganhei uma obsessão: ser absolutamente honesto com o paciente. Ou seja, não me
limito mais a fazer um relato sobre a doença e seu prognóstico. O que isso significa? Se
o doente corre o risco de ficar com paralisia facial depois de uma cirurgia, não digo
apenas que ele poderá ter dificuldade para comer, como fazia antes. “Dificuldade para
comer” é muito mais do que isso. O paciente não conseguirá segurar o alimento com os
dentes. A comida vai ficar presa entre a gengiva e o lábio sem que ele perceba. Para o
médico, essas situações tendem a ser banais. Mas não para o doente. Minha doença me
fez um médico melhor. Aprendi a falar a linguagem do paciente.
Na prática, o que o paciente ganha com isso?
Segurança e tranqüilidade. Faço de tudo para que o paciente não seja pego de
surpresa. Claro que nem todo paciente quer saber de tudo – e eu percebo e respeito esse
limite. Mas, para a maioria, falar a verdade é sinal de respeito. Certa vez, uma vítima
de câncer na língua me perguntou se, depois da retirada do tumor, poderíamos fazer a
reconstituição do órgão. Antes eu teria dito simplesmente que sim. De fato, fazemos a
reconstituição – mas não aquela imaginada pelo paciente. A sensibilidade da língua, por
exemplo, jamais é recuperada. Hoje gasto o tempo que for necessário para informar o
doente. Minhas consultas têm espera média de duas horas. E ninguém reclama.
(...)
O senhor ficou um ano com paralisia facial e até hoje tem algumas seqüelas.
Como foi sua recuperação?
Uma semana depois da cirurgia eu já estava trabalhando. Fiz um ano de
sessões diárias de fisioterapia. Foi muito difícil. O que ajudou na minha recuperação
foi o apoio da minha mulher e das minhas filhas. Senti na pele como é importante o
conforto das pessoas queridas. Hoje, quando entro num quarto e encontro meu
paciente rodeado por parentes e amigos, acho ótimo. Passei a tolerar mais as visitas.
(entrevista - Veja, 06/02/2008).

Nesta entrevista, identificamos, com relativa facilidade, que “uma obsessão”


antecipa e resume o conteúdo proposicional da oração que a segue: “ser absolutamente
honesto com o paciente”. Na análise em que a referenciação está vinculada ao emprego
de expressões referenciais, não é possível afirmar que a expressão encapsuladora “uma
obsessão” remeta a uma outra expressão específica do cotexto, ou seja, a uma âncora
pontual, a que se reporta. Diz-se, então, que há uma recuperação difusa de informações
e que este é o traço mais típico das anáforas encapsuladoras; é o que lhes confere o
caráter de anáfora também indireta: ser não-correferencial e ter um poder de resumir
informações do cotextuais e contextuais.
As demais expressões sublinhadas no exemplo da entrevista remetem a conteúdos
ainda mais difusos, quanto mais genéricas elas forem: a expressão com um nome geral
“essas situações” e o demonstrativo neutro isso não apenas encapsulam informações do
cotexto, como requerem do leitor uma série de outros conhecimentos de mundo, de
situações e vivências cotidianas, ou seja, requerem também dados contextuais. Declarar,
por exemplo, que “Dificuldade para comer é muito mais do que isso” é não somente
resumir, com o “isso”, o que foi dito antes, como também subsumir o que será
explicado logo em seguida e ainda apelar para a sensibilidade do leitor em imaginar
todo o constrangimento que o ser humano tem que suportar diante de tal quadro clínico.
A par dos anafóricos indiretos, também os encapsuladores não são correferenciais
e se instauram pela menção a um objeto de discurso ainda não citado no cotexto, daí por
que se identificam com os casos de anáfora indireta. A diferença crucial entre estes
encapsuladores e os anafóricos indiretos propriamente ditos é que resumem,
“encapsulam”, conteúdos proposicionais inteiros, precedentes e/ou conseqüentes. Além
disso, os encapsuladores não remeteriam a âncoras bem pontuais, bem específicas, do
cotexto, mas a informações ali dispersas.

CONCLUSÃO
Dentro desta visão de referenciação associada à menção de expressões
referenciais, toda anáfora indireta deve apoiar-se em âncoras do cotexto, o que não
exclui a possibilidade de remeterem, simultaneamente, a elementos da situação
extralingüística e do conhecimento compartilhado. E, desse modo, toda anáfora
encapsuladora é uma espécie de anáfora indireta, por também introduzir e
mencionar no cotexto uma expressão referencial nova, apresentada como se fosse
dada, por resumir conteúdos explicitados (mas também implicitados) em porções
cotextuais anteriores e/ou posteriores.

Eis alguns outros exemplos de anáfora encapsuladora, grifados no texto seguinte:

( ) APRENDENDO A DIZER NÃO


Além das dificuldades que aparecem ao tentarmos conciliar a sobrecarga dos
afazeres de tudo aquilo que nos pedem e a que não tivemos coragem de dizer não,
corremos o risco também de nos frustrarmos ou deprimirmos diante da sensação de
estarem se aproveitando de nós. Outras vezes não conseguimos dizer não por temermos
que, se recusarmos um pedido de alguém, essa pessoa vai deixar de gostar da gente, ou
por temermos que o outro tenha alguma atitude agressiva. Na realidade esses temores de
que pensem algo pejorativo a nosso respeito, só por recusamos alguma coisa, é um
sentimento que nasce primeiro dentro de nós mesmos e, em seguida, acabamos
projetando nos outros como se deles se originasse. Indiretamente é um indício de
insegurança ou, pior, de auto-estima baixa. Dizer sempre sim, por qualquer motivo que
seja, pode trazer outros tipos de problemas. Concordar só para ter a imagem pessoal
melhor aceitável e depois descobrir que não podemos cumprir o prometido costuma ser
muito pior que dizer um não decidido e educado logo de início. Concordar com tudo e
perceber depois que estamos tendo de fazer alguma coisa completamente contrária à
nossa vontade pode gerar conflitos e conseqüências emocionais muito danosas.
Ainda há o risco de fazermos alguma coisa contrariados e, portanto, muito mal
feita. Sem dúvida, isso não vai melhorar nossa reputação e nem tampouco agradar os
demais, como pretendíamos.
Estando nossa auto-estima satisfatória, teremos consciência de que os outros,
principalmente aqueles que convivem conosco, já têm razões de sobra para nos julgar
positivamente, para reconhecerem nossa competência, capacidade e nossos valores,
independentemente de nossa pretensa servidão incondicional. Aliás, é bom que a
opinião dos outros sobre nossa pessoa tenha outras razões de admiração além da simples
servidão. Todo mundo tem uma certa necessidade der ser amado e admirado, mas essa
necessidade é tão mais presente quanto mais dúvidas temos de estarmos, de fato, sendo
amados e admirados. Ora, essas dúvidas surgem em pessoas inseguras e com algum
prejuízo da auto-estima. (crônica de auto-ajuda, de Geraldo J. Ballone -, divulgada na
internet).

Vale observar, como se tem feito na literatura sobre o assunto (ver, por exemplo,
KOCH, 2002a), que as anáforas encapsuladoras – mas não somente elas, entendamos –
costumam ser exploradas para auxiliar na atribuição/homologação de um ponto de vista,
por isso podem contribuir para a transmissão de impressões avaliativas e para a
condução argumentativa do texto. É o que salienta Conte (1996, p.1), num dos estudos
pioneiros sobre o assunto:
O encapsulamento anafórico é um recurso coesivo pelo qual um
sintagma nominal funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção
precedente do texto. O sintagma nominal anafórico é construído com um
nome geral como núcleo lexical e tem uma clara preferência pela
determinação demonstrativa. Pelo encapsulamento anafórico, um novo
referente discursivo é criado sob a base de uma informação velha; ele se
torna o argumento de predicações posteriores. Como um recurso de
integração semântica, os sintagmas nominais encapsuladores rotulam
porções textuais precedentes; aparecem como pontos nodais no texto.
Quando o núcleo do sintagma nominal anafórico é axiológico, o
encapsulamento anafórico pode ser um poderoso meio de manipulação do
leitor. Finalmente, o encapsulamento anafórico pode também resultar na
categorização e na hipostasiação (“hypostasis”) de atos de fala e de
funções argumentativas no discurso.

O uso das anáforas indiretas encapsuladoras como estratégias argumentativas,


numa atitude metadiscursiva, pode ser observado no exemplo acima. Com o emprego de
“esses temores...”, “nossa pretensa servidão incondicional”, os adjetivos usados e o
valor axiológico do substantivo “temores” ajudam a ratificar a tese que o enunciador
tenta defender na crônica acima. Além disso, de maneira indireta, a expressão “outros
tipos de problemas” também categoriza como “problema” o fato de a pessoa não
conseguir dizer não a nada.

Inserir link com texto para aprofundamento.

O fenômeno do encapsulamento ganhou destaque com o estudo precursor de


Francis (1994) sobre um processo de “atribuição de títulos resumidos a segmentos
textuais”. A esse processo, a autora chamava de rotulação (“labelling”), que, segundo
Francis, se realizava por meio de expressões nominais selecionadas pelo enunciador
para conectar e organizar o discurso. A autora se deteve no exame dessas expressões
anafóricas encapsuladoras que apresentavam um significado inerentemente genérico.
Por causa do caráter inespecífico dos nomes rotuladores, era possível abarcar extensões
variadas de discurso e condensá-las em denominações adequadas a propósitos especiais
do falante. Sobretudo quando portam um valor metalingüístico, os rótulos operam como
“estágios de um argumento desenvolvido dentro e através do próprio discurso, à medida
que o escritor apresenta e avalia suas proposições e as de outras fontes” (FRANCIS,
1994, p.83). Fornecem, desse modo, instruções sobre como o destinatário deve
interpretar a unidade semântica encapsulada, traçando uma espécie de roteiro para o
entrelaçamento das idéias conduzidas no texto.
É preciso entender que nem todos os anafóricos encapsuladores equivalem ao que
Francis toma como rótulos, senão apenas os que se manifestam por sintagmas nominais
plenos – seriam, portanto, um tipo de encapsulador. Francis concebeu os rótulos como
um recurso coesivo constituído de elementos nominais cujo significado inespecífico só
poderia ser precisado dentro do discurso. O fenômeno estaria, pois, condicionado a dois
traços singulares: um diz respeito à natureza lexical desse modo de referenciar; outro
tem relação com a sua natureza semântico-textual. Desse modo, além de terem a
propriedade de resumir porções do texto, os rótulos teriam que manifestar-se,
necessariamente, por sintagmas nominais plenos; do contrário não seriam rótulos, mas
somente anáforas pronominais que encapsulariam conteúdos, como isso, nada disso,
tudo isso etc.
Não estamos particularizando aqui, no entanto, os rótulos dentro da classe maior
de anafóricos encapsuladores – todas as formas serão consideradas por nós como
encapsulamento, desde que cumpram, no mínimo, a função discursiva de resumir
conteúdos proposicionais. Primeiro, por considerarmos igualmente importante a função
argumentativa dos encapsuladores pronominais no discurso; segundo, por não
aceitarmos o pressuposto de que as formas dos rótulos determinam, previamente, como
os argumentos devem ser interpretados. Esse pressuposto também não parece estar em
Francis, para quem a seleção de um nome particular como um rótulo para a proposição
de alguém não reflete, necessariamente, sua intenção original, mas não deixa de ser um
indício do modo pelo qual o enunciador escolhe interpretar um conteúdo.
Por isso, assim como a autora, não descuramos a relevância dos traços semânticos
dos sintagmas rotuladores para a (re)construção da coerência argumentativa dos
discursos a cada enunciação, mas ressaltamos a dificuldade de agrupar e categorizar as
infinitas possibilidades de nomeação de argumentos nas várias situações específicas de
uso, recorrendo apenas a um critério semântico-lexical.
Francis descreve quatro tipos de nomes que podem compor o uso de rótulos como
estratégias metadiscursivas, aquelas pelas quais o enunciador reflete sobre seu próprio
dizer e escolhe seus modos de expressão; são eles: nomes ilocucionários, nomes de
atividades linguageiras, nomes de processos mentais e nomes de texto.
Os nomes ilocucionários representariam atos de comunicação, exemplificados
pela autora como:
acusação, admissão, aviso, afronta, alegação, anúncio, resposta,
apelo, argumento, asserção, encargo, reivindicação, comentário, queixa,
cumprimento, conclusão, opinião, crítica, decisão, (nível de) negação,
descoberta, desculpa, explanação, indicação, objeção, observação,
promessa, predição, projeção, proposta, proposição, protesto, confiança
renovada, reconhecimento, recomendação, rejeição, observação,
lembrança, resposta, relatório, pedido, revelação, declaração, sugestão,
aviso (2003, p. 204)

Os nomes de atividades linguageiras seriam similares aos nomes ilocucionários,


mas, diferentemente destes, não teriam verbos cognatos correspondentes. Os
ilocucionários devem, em princípio, revelar a intenção comunicativa do enunciador,
dizendo da força ilocucionária de sua fala. Os de atividades linguageiras parecem
nomear tipos de ato de fala: promessa, defesa, julgamento etc. A lista de exemplos da
autora é a seguinte – note-se como se aproximam da listagem anterior:

consideração, ambigüidade, comparação, consenso, contraste,


controvérsia, critério, debate, defesa, definição, descrição, detalhe,
diagnóstico, disputa, distinção, conversa fiada, equação, exemplo,
fórmula, ilustração, ocorrência, linguagem, mensagem, mito, bobagem,
comprovação (linha de) raciocínio, referência, discussão, história,
sumário, conto, conversa, tema, julgamento, colocação, (estilo de) escrita
(2003, p.206).

Os nomes de processo mental, ao contrário dos anteriores, que representavam atos


de fala, constituem nomes de estado e de processo cognitivo – mais uma vez, concorre
para tal distinção um critério semântico, agora com relação ao tipo de predicado. A
autora menciona os seguintes exemplos:

análise, atribuição, suposição, atitude, crença, conceito, convicção,


doutrina, dúvida, descoberta, hipótese, idéia, insight, interpretação,
conhecimento, noção falsa, noção, opinião, filosofia, posição, princípios,
fundamento lógico, leitura, suspeita, teoria, modo de pensar, pensamento,
(ponto de) vista (2003, p.208)

Por fim, os nomes de texto são os que exercem função mais prototipicamente
metalingüística, como a autora define:

São nomes que se referem à estrutura textual formal do discurso. Não há


nenhuma interpretação envolvida: simplesmente rotulam extensões do
discurso precedente, cujos limites precisos eles definem.
Nomes nucleares deste tipo encontrados nos dados são frase, pergunta
(ortograficamente assinalada), sentença e palavras, que, de acordo com
Leech (1983:314), estão no “modo sintático da metalinguagem” em
oposição ao modo semântico. Também incluem nomes como excerto,
página, parágrafo, passagem, citação, seção, termo e terminologia, que,
similarmente, referem-se às estruturas formais, embora não sejam
unidades sintáticas. (2003, p.210).
Os sintagmas contendo esses rótulos foram também descritos como um fenômeno
de dêixis textual (algumas vezes, pouco apropriadamente traduzida como “dêixis
discursiva”, como em CAVALCANTE, 2000). A convergência entre as duas
caracterizações, uma do ponto de vista anafórico e outra do ponto de vista dêitico, é
justamente o encapsulamento de proposições. Mas, enquanto as anáforas
encapsuladoras são descritas apenas em função da recuperação difusa de porções
textuais, os dêiticos textuais têm em conta não simplesmente o caráter resumitivo, como
também a presença de um elemento dêitico nas expressões, que assinala o ponto de
origem do enunciador, indicando onde terminou sua última fala dentro do cotexto.
Lyons (1977) já alertava para a situação de dêixis textual como um fenômeno
freqüentemente confundido com a anáfora, em virtude de não se levar em consideração
que há diferença entre entidades lingüísticas e não-lingüísticas, isto é, entre referentes
que se aplicam a sentenças-texto e referentes que correspondem a qualquer outra
entidade. A distinção recorre, no fundo, à separação entre menção e uso,
respectivamente. Leia-se o comentário do autor sobre um exemplo prototípico:

Isto pode ser exemplificado por meio do seguinte texto: (X diz) Eu nunca
o tinha visto antes (e Y responde) Isso é uma mentira. É claro que 'isso'
não se refere nem à sentença-texto enunciada por X nem ao referente de
qualquer expressão nela. Alguns filósofos podem dizer que se refere à
proposição expressa pela sentença enunciada por X; outros, que se refere
ao ato de enunciação, ou ato de fala (cf. 16.1), realizado por X. Todavia,
sob qualquer dessas análises da referência de 'isso', sua função parece cair
em algum lugar entre a anáfora e a dêixis, e partilhar das características de
ambas. (LYONS, 1977, p.668)

Voltaremos a essa discussão logo a seguir. Por ora, é importante ter em mente que
nosso foco de atenção recairá não sobre aspectos da estrutura formal das expressões
anafóricas encapsuladoras, dêiticas e não-dêiticas, mas sobre as funções discursivas
desse processo de referenciação indireta.
Algumas dessas funções são intrínsecas ao fenômeno; a mais saliente delas,
porque responde pela própria definição do processo, é a resumitiva. Do ponto de vista
dos arranjos na tessitura textual, os encapsuladores desempenham uma função
eminentemente coesiva. Do ponto de vista cognitivo e discursivo, podemos dizer que
têm a função de ativar referentes novos, explicitando-os pela primeira vez (ver, sobre
isso, KOCH, 2004), mas ao mesmo tempo reativando informações já dadas no próprio
cotexto. É importante observar que dizer que os encapsuladores ativam referentes novos
é estar completamente de acordo com a perspectiva que privilegia a menção de
expressões referenciais, pois, na verdade, quando uma expressão anafórica encapsula
um conteúdo, ele está diluído no contexto e, portanto, não deveria mais ser considerado
um “referente novo”.
Além das funções citadas acima, os encapsuladores resumem estágios de
argumentos, “à medida que o escritor apresenta e avalia suas próprias proposições e as
de outras fontes” (cf. FRANCIS, 2003, p.191).
Koch (2004) reforça essa idéia observando que eles ajudam na organização
macrotextual, porque, além de indicarem o fechamento de uma porção textual,
funcionam como sinalizadores argumentativos, conduzindo o co-enunciador para o
estágio seguinte. Assim, podemos agora dizer que os encapsuladores exercem também
um papel de organizadores de tópicos discursivos, porque se mostram um recurso
valioso para a introdução, mudança ou desvio de tópico, assim como para a ligação
entre tópicos e subtópicos. Constituem, portanto, um dos mecanismos lingüísticos de
estruturação tópica.
Segundo Jubran (2006), duas grandes propriedades particularizam um tópico
discursivo: a centração (pois um conjunto de detalhes e comentários converge para um
assunto proeminente) e a organicidade (pois há relações de interdependência entre os
assuntos, tanto num plano hierárquico de superordenação e subordenação, quanto num
plano linear de ligações intertópicas). Note-se que a noção de tópico discursivo, em si
mesma, está intrinsecamente relacionada à de referenciação. Como bem observou
Pinheiro (2003, p.161), as anáforas encapsuladoras são fundamentais para a
continuidade e para a progressão tópica:

Nesse processo de atribuição de referentes, um conjunto de informações


difundidas no cotexto anterior é erigido em referentes, que não apresentam,
no universo discursivo, antecedentes pontualmente delimitáveis. Esse tipo
de elaboração referencial, também ancorada no processo interacional, atua
como mecanismo de articulação tópica, estabelecendo seqüenciação e
mudança. Ao atribuir a um conjunto de informações o estatuto de referente,
o produtor do texto deixa transparecer seu ponto de vista em relação a essas
informações. Esse é um dos aspectos interacionais vinculados à conferição
de estatuto de referente a um conjunto de informações difundidas no cotexto
como mecanismo de articulação tópica. Ao sumarizar todo o conteúdo de
tópico através de uma forma referencial, o produtor do texto pode realçar
uma parte desse conteúdo, avaliando-a.

Citamos um exemplo para se perceba como as anáforas encapsuladoras


seqüenciam e organizam os argumentos dentro de um texto:
( ) NOTA DE PATRÍCIA PILLAR À IMPRENSA SOBRE O CÂNCER

Eu tive uma forma rara de câncer de mama, que está no exterior da mama. No
mamilo ou auréola, surge como um vermelhão que depois se torna uma lesão com
bordas com crostas. Eu nunca teria suspeitado que seria um câncer de mama, mas era...
Meu mamilo nunca pareceu diferente para mim, mas o vermelhão incomodou, por
isso eu fui ao consultório do meu médico. Às vezes coçava e doía, mas outras vezes
não atrapalhava. Era só feio e incômodo, e não desaparecia com todos os cremes
prescritos pelo dermatologista, como a dermatite nos olhos que tive antes disso. Aí fui
ao consultório para ser examinada. Eles pareciam um pouco preocupados, mas não me
avisaram que poderia ser câncer. Agora suspeito que não há muitas mulheres por aí que
saibam que uma lesão ou vermelhidão no mamilo ou auréola pode ser câncer de mama.

Estes são os sintomas:


O meu começou como uma simples pápula (espinha) na auréola. Um dos maiores
problemas com a Doença de Paget do mamilo é que os sintomas parecem inofensivos.
Pensa-se freqüentemente que é uma inflamação ou infecção de pele, levando a
indesejáveis adiamentos na detenção e tratamento. Os sintomas incluem:
a) Uma persistente vermelhidão e crostas no seu mamilo levando-a a coçar e
provocar queimação (como falei, o meu não coçou ou ardeu, mas tive uma crosta na
borda externa de um dos lados).
b) Uma dor no seu mamilo que não diminui (a minha era na área da auréola com
uma área grossa e esbranquiçada no centro de meu mamilo).
c) Geralmente só um mamilo é afetado.
Como é o diagnóstico:
Seu médico fará exame físico e pedirá mamografia bilateral imediatamente.
Apesar de a vermelhidão, inchaço e crosta parecerem dermatite, inflamação da pele),
seu médico deve suspeitar de câncer se a lesão for em apenas uma mama. Seu médico
deverá pedir uma biópsia em sua lesão para confirmar o que está acontecendo. Eles
tirarão uma amostra do seu tecido mamário naquela área para testar um câncer. Se o
câncer for só no mamilo e não na mama, seu médico pode encomendar retirar só o
mamilo e o tecido ao redor, ou sugerir radioterapia. Se o meu médico tivesse cuidado do
meu rapidamente ao invés de ir tratando como dermatite, talvez pudessem ter salvado
minha mama, e a doença não teria ido para meus nódulos linfáticos.
NOTA: Esta mensagem deve ser levada a sério e repassada para tantas amigas
quanto possível. Pode salvar a vida de alguém. Meu câncer de mama se espalhou e
metastatizou para meus ossos, isso depois de receber megadoses de quimioterapia, 28
tratamentos de radioterapia e tomar Tomoxipan. Talvez, se eu soubesse dessa doença
anteriormente, ela não tivesse se espalhado. Tentei relatar o meu caso em um programa
de TV, mas não houve interesse sobre esse tema. Por favor, atendam a este pedido:
ENVIE ESTA MENSAGEM A TODAS AS MULHERES COM QUEM VOCÊ
SE PREOCUPA. E PARA OS HOMENS QUE VOCÊ CONHECE E QUE AMAM AS
MULHERES QUE EXISTEM EM SUAS VIDAS, PARA QUE POSSAM TAMBÉM
AJUDÁ-LAS NO COMBATE CONTRA O CÂNCER. (depoimento – texto divulgado
pela internet).
Note-se que, primeiro, são apresentados os sintomas; depois, o diagnóstico; em
seguida, faz-se a referência ao próprio texto da mensagem; depois, a referência ao teor
do relato, ao pedido de divulgação, dentre outros. Assim, os processos referenciais estão
estreitamente relacionados aos subtópicos e aos modos como o enunciador escolhe
ordená-los no cotexto.
Neste ponto do estudo, já podemos ampliar o quadro-síntese dos processos
referenciais, acrescentando, agora, os encapsuladores:

Processos referenciais atrelados à menção


Introdução Referencial Anáfora (continuidade referencial)
Anáforas diretas Anáforas indiretas
(Correferenciais) (Não-correferenciais)
AI Anáforas
(propriamente encapsuladoras
ditas)

Convém frisar que o fenômeno da recategorização, nesta perspectiva de menção


das expressões referenciais, costuma ser descrito como uma possibilidade a mais para as
retomadas anafóricas correferenciais. Considera-se que só pode ser recategorizado um
referente que já foi anteriormente categorizado, o que, nessa visão, costuma estar
associado à expressão referencial introduzida no texto. Sucessivas recategorizações
podem acontecer com as anáforas diretas ao longo do desenvolvimento textual-
discursivo, como no exemplo seguinte:

( ) Marina e a estética ambiental


A saída da ministra Marina Silva do governo Lula é plena de significados. A
começar pela antinomia dos signos que se cruzam em torno de seu perfil. Mesmo com o
título de “mãe do PAS”, o Plano Amazônia Sustentável, atribuído a ela pelo presidente
da República, a ex-empregada doméstica do Acre, nossa maior propagandista no mapa
mundial do meio ambiente, não conseguiu segurar a barra. Era precária a base para sua
sustentação, conceito pelo qual tanto lutou. Não que lhe faltasse força para enfrentar os
dissabores de uma guerra no seio da administração e que exibe, de um lado, os
desenvolvimentistas e, de outro, o batalhão ambientalista. Afinal, quem resistiu à
hepatite, a metais pesados dos rios do garimpo e a opositores que procuraram minar sua
ação no Ministério do Meio Ambiente (MMA) reúne condições para continuar a luta.
Marina deixa a cena por ter concluído que sua presença no governo perdera o sentido.
Restava-lhe um trato com a consciência, arrumar a mala da crença e enrolar a bandeira
verde amazônica para estendê-la em outra freguesia, no Senado Federal, onde a sua
expressão rica de referências a biomas poderá ser bem acolhida.
A saída da ministra sinaliza ainda a vitória da companheira que se esforça para
associar o nome ao conceito de progresso: Dilma Rousseff, a “mãe do PAC”, o
Programa de Aceleração do Crescimento. A ministra-chefe da Casa Civil encarna o
pragmatismo de uma gestão que decidiu levar a cabo - a ferro e fogo - programas que
batem de lado na cara da “mãe ecológica”: transgênicos, implantação de Angra 3,
transposição das águas do São Francisco e usinas hidrelétricas do Rio Madeira, entre
outras ações. A dose extra de óleo de rícino que o companheiro Lula quis empurrar
garganta abaixo de Marina Silva pode até ter sido a designação do polêmico ministro de
Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, para o papel de “pai” do PAS. Mas a decisão
da ministra foi o ponto final de uma reflexão amadurecida sob irrefutável diagnóstico: o
governo optou por colocar o mastro do crescimento na frente da bandeira ecológica. (...)
O figurino caboclo de Marina Silva, uma dos sete ocupantes de Ministério que até
a semana passada permaneciam na foto do primeiro ciclo do governo, era a fiança de
que o País levaria a sério a política ambiental. Ademais, associava-se ainda a ação da
ministra a Chico Mendes, com quem fundou a Central Única dos Trabalhadores, no
Acre. Tudo isso desaparece. (…)
Esse é o preço do progresso. Um preço que a humanidade (e o Brasil) tem de
pagar. Matreiro, Lula promete que nada vai mudar. Bulhufas. A não ser que recite o
mesmo código do coronel Marcondes Alves de Souza, eleito em 1912 governador do
Espírito Santo. Ao subir a bela escadaria do palácio, viu as helênicas esculturas de
mármore, ligando a cidade baixa à cidade alta. Enfurecido, ordenou ao secretário de
obras: “Mande tirar essas estátuas sem-vergonha de mulheres nuas.” Pasmo, o secretário
retrucou: “Governador, vamos tirar a estética da escadaria.” Ainda mais bravo, o
coronel fulminou: “E quem mandou tirar a estética, imbecil? Retire as estátuas e deixe a
estética.”
A retirada da estátua da ministra Marina do jardim não deixa margem a dúvidas:
vai embora também a estética ambiental do governo. (artigo de opinião, de Gaudêncio
Torquato, disponível em http://arquivoetc.blogspot.com/2008/05)

É interessante acompanhar, nesse artigo de opinião, como o referente de Marina,


instituído já no título, evolui gradativamente sob o comando da tese que o texto
defende: com o pedido de demissão de Marina Silva, a “estética ambiental do governo”
vai por água abaixo. A primeira recategorização abre o texto: a descrição definida “a
ministra Marina Silva”. Ela evoca muitos significados, a começar pela informação ao
leitor do cargo que Marina ocupava, a importância que ela exercia à frente dos projetos
de preservação ambiental. O enunciador arquiteta seus argumentos jogando, primeiro,
com a imagem que se construiu em torno do perfil de Marina. E é por isso que, para
enaltecer essa imagem, ele lança mão de duas anáforas indiretas essenciais: o título de
“mãe do PAS”, no início do texto, e “a estátua da ministra Marina” ao final, ícone da
estética ambiental do governo.
Da recategorização pelo papel de ministra, o enunciador passa a outra: a de pessoa
humana sofrida, de batalhadora incansável, afeita às agruras da vida. Assim, o objeto de
discurso Marina é refocalizado como “a ex-empregada doméstica do Acre”, acrescida
da predicação “quem resistiu à hepatite, a metais pesados dos rios do garimpo e a
opositores que procuraram minar sua ação no Ministério do Meio Ambiente (MMA)”.
Enfatizando a grande luta da ministra pelas causas ambientais, o enunciador
emprega, então, nova recategorização dentro de uma estrutura apositiva: “nossa maior
propagandista no mapa mundial do meio ambiente”. O co-enunciador poderá, assim,
compartilhar com ele essa dura constatação: a saída da ministra representa uma mácula
na imagem do governo e só reflete a vitória da desculpa do desenvolvimento econômico
sobre a batalha da preservação do meio ambiente. Não é à toa que a expressão
recategorizadora “a mãe do PAC” é aplicada a Dilma Rousseff, opondo-se a outra
recategorização, desta vez aplicada a Marina Silva: a de “mãe ecológica”, numa perfeita
metaforização do embate político posto em cena.
Desse modo, aspectos distintos do referente Marina vão sendo contrapostos e
sobrepostos, dependendo da faceta que o enunciador pretende ressaltar a cada ponto da
argumentação.
Todos estes casos representam recategorizações de um mesmo fenômeno
referencial: são todas anáforas (diretas) correferenciais recategorizadoras. Dentro da
perspectiva que dá prioridade à menção das expressões referenciais, as recategorizações
só se efetivam com o uso da expressão referencial. Todavia, dentro da perspectiva que
estamos assumindo nesta obra, a recategorização é o fenômeno cognitivo-discursivo que
corresponde à evolução natural que todo referente sofre ao longo do desenvolvimento
do texto; ele se dá abstratamente, na mente dos interlocutores, podendo ou não realizar-
se no cotexto por meio de termos anafóricos. Para essa evolução, concorrem não
somente as expressões referenciais que manifestam explicitamente as transformações do
objeto de discurso, mas também um conjunto de pistas contextuais que, acionando
informações sócio-historicamente compartilhadas, ajudam os participantes da
enunciação a (re)construírem a referência.
No poema abaixo, por exemplo, o referente de “tua partida” nem chega a se
explicitar por meio de uma expressão referencial, no entanto ele “se diz” abertamente
por outros recursos textuais:
( ) A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,


tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida em geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,


de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.


Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste. (poema - Carlos Drummond de Andrade, do
livro Farewell.)

O objeto de discurso “a partida da amada” vai sendo recategorizado, mesmo sem


ser nomeado, como um acontecimento que provocou mais do que saudade, pois acabou
na dor e na mágoa, que a recategorizaram como uma culpa, da qual o destinatário deve
se sentir ainda acusado: “Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade
e da natureza, nem nos deixaste sequer o direito de indagar por que o fizeste, por que te
foste”. Não se pode precisar, pelos indícios contextuais, o que foi exatamente essa
entidade “partida”: uma separação, uma morte, a morte natural, o suicídio? Cada um
categorizará o referente à sua medida. Sabê-lo não é o mais relevante para a construção
final dos sentidos e da referência. O que sobressai são os efeitos da ausência, pelo
modo, para o enunciador, inesperado e imprevisto como se deu a “partida”.
A recategorização é, assim, sob o ponto de vista desta obra, um processo que pode
perpassar todos os demais, por isso não a inserimos como nenhum tipo específico de
anáfora.

2.1.2 O processo referencial da dêixis


Paralelamente aos casos de introdução referencial e de anáfora, existe um outro
fenômeno, como já anunciamos acima, que pode ocorrer ou independendo desses dois,
ou se sobrepondo a eles: é a chamada dêixis, normalmente classificada e descrita a partir
da menção de elementos dêiticos.
Desde Bühler ([1934]1982), tem-se chamado atenção para certas expressões
referenciais cujo significado completo depende de aspectos da situação enunciativa.
Para construir o referente dessas expressões, seria preciso analisá-las como que dentro
de um outro campo, um campo dêitico, pois elas exigiriam o conhecimento do lugar ou
do tempo em que se encontra o enunciador.
Palavras como eu, você, aqui, ali, hoje, ontem, aquilo etc. mudam de referente em
função da perspectiva que o falante toma no ato da enunciação. Usamos essas formas
dêiticas corriqueiramente, como, por exemplo, em recados do Orkut:

D.:
Aqui estou eu novamente... Eu não a esqueço nunca, DOIDA GENIAL!!!
Adooooooooooooro você!!! Um beijão...
Saudade das suas aulas maravilhosas e de você, é claro!
Responder

O enunciador se coloca, dessa maneira, como o lugar de origem do sistema


dêitico, estabelecendo-se como um ponto de referência para as coordenadas de espaço e
tempo do contexto enunciativo imediato. O dêitico “aqui” representa o momento e o
local em que o enunciador “D.”, expresso por outro dêitico: “eu”, emite seu ato de fala,
dirigindo-se à pessoa com quem dialoga: “você”. Quando mudam as circunstâncias,
alterando-se os participantes da comunicação e o tempo/espaço em que se situam,
modificam-se os referentes dessas formas dêiticas. Por isso, Lahud observa:

As circunstâncias discursivas tornam-se uma parte da expressão do


sentido completo (...). O conhecimento das circunstâncias que
acompanham as palavras torna-se, então, uma condição necessária para a
“exata compreensão” do pensamento expresso por um enunciado
contendo dêiticos. (LAHUD, 1979, p.67-8)

Lahud se apóia na noção de enunciação como entorno comunicativo, inspirada em


Benveniste (1988). Em concordância com ele, o autor também distingue as noções de
pessoa (representando os participantes da enunciação, os interlocutores, aqueles que
“falam” na comunicação) e de não-pessoa (representando os não-participantes do ato
comunicativo). Benveniste relacionou a categoria de pessoa às formas gramaticais eu-
tu/você, que a língua disponibiliza para manifestá-las. Foi a partir da noção de pessoa
que o autor propôs uma separação entre pronomes dêiticos, aqueles que realmente eram
indicadores de subjetividade, e os pronomes anafóricos, aqueles que representavam a
não-pessoa (os pronomes de terceira “pessoa”: “ele”), como não-participantes da
enunciação. Assim, o autor terminou por entrelaçar duas distinções: a de dêiticos vs.
anafóricos e a de pessoa (eu/tu) vs. não-pessoa (ele) – os pronomes dêiticos
manifestariam a categoria de pessoa, ao passo que os anafóricos realizariam a não-
pessoa.
Convenhamos, pois, que a divisão entre dêixis e anáfora, em sua gênese, já estava
vinculada ao correlato formal dos pronomes dêiticos e dos pronomes anafóricos,
quando mencionados no cotexto. Evidentemente, a descrição desses dois processos
referenciais, hoje, ganhou contornos muito maiores e mais complexos.
Também havemos de convir que a concepção de subjetividade sustentada por
Benveniste se atinha a uma perspectiva de enunciação diferente da que estamos
pressupondo neste livro. Para Benveniste, o fenômeno do subjetivismo se restringia à
maneira como as diferentes línguas codificavam as atitudes e crenças do falante na
situação comunicativa (enunciação imediata). Para nós, existem, na verdade, ligações
intersubjetivas entre os usos da língua e as ações do enunciador e dos possíveis co-
enunciadores em seu contexto sócio-histórico (trata-se de enunciação numa concepção
discursiva mais ampla).
A idéia de que compete à dêixis promover o elo entre o enunciado e a enunciação
sobreviveu, no entanto, a todas as tentativas de definir este processo referencial ao longo
dos anos. A classificação tradicional dos dêiticos se funda nos próprios sujeitos do ato
comunicativo e na localização espacial e temporal em que eles se posicionam na
enunciação stricto sensu. As formas dêiticas, quando mencionadas, fazem, então,
referência à situação em que o enunciado é produzido, ou seja: às coordenadas de pessoa,
tempo e lugar, que definem, respectivamente, as dêixis pessoal, temporal e espacial.
Fillmore (1971) acrescentou, a esses três tipos clássicos, as dêixis textual, que já
anteriormente mencionamos, e a dêixis social.

a) Os dêiticos pessoais
São os que identificam os interlocutores na situação de comunicação, como, por
exemplo, os pronomes pessoais (manifestos ou elípticos) e os possessivos no poema-
canção a seguir:
( ) A dor a mais
(Vinicius de Moraes)

A dor a mais
Foi só muito amor
Muito amor demais
Foi tanta a paixão
Que o meu coração, amor,
Nem soube mais
ø Inventei a dor
E como ela nos doeu

Ah, que solidão buscar perdão


No corpo teu
Tanto tempo faz
ø Tens um outro amor, eu sei
Mas nunca ø terás
A dor a mais
Como eu te dei
Porque a dor a mais
Só na paixão
Com que eu te amei.

Os pessoais são os dêiticos por excelência, porque remetem diretamente aos sujeitos
da enunciação, o que se reflete na concordância verbal, de primeira e segunda pessoas
gramaticais. Outras formas dêiticas não-pessoais, como a dos pronomes demonstrativos e
advérbios, apenas pressupõem os interlocutores em seu posicionamento espacial e
temporal (por isso recebem as flexões de terceira pessoa gramatical).

b) Os dêiticos sociais
Também se definem diretamente a partir do centro dêitico do falante, mas
representam formas que codificam relacionamentos sociais, mantidos pelos participantes
da conversação (FILLMORE, 1971). Toda interação é regida por regras, baseadas em
comportamentos mais ou menos ritualizados. As relações em sociedade (e não a interação
lingüística em si mesma), ao condicionar a escolha dos níveis de maior ou menor
formalidade, findam por determinar a seleção de títulos honoríficos e de outras expressões
de intimidade ou de polidez. Dependo do grau de intimidade, dos propósitos
comunicativos, bem como de outros aspectos contextuais, os participantes do ato de
comunicação podem ser mais ou menos polidos (ver, sobre isso, LEECH, 1983). Veja-se,
por exemplo, como essa proximidade/distanciamento é dosada pelos dêiticos sociais no
contexto seguinte de um conto:

( ) Ismênia, moça donzela


(Dalton Trevisan - Quem tem medo de vampiro?)

Saudações.

Dr. Antônio, desculpe a ousadia de escrever, ontem fiquei arrependida de não


confessar a paixão que sinto, porque tive vergonha, vejo que o senhor é casado e pai de
tanto filho, acho que isso não tem importância, a gente sabe de muita dona casada
gostando de outro, quanto mais eu que sou moça donzela, a diferença é que não sou
correspondida.
Venha na mesma hora, espero no portão e mamãe não vê. Se o doutor não vier é
sinal que não tem a mínima simpatia.
Sem mais, sua criada obrigada,
Ismênia.

P.S. Desculpe os erros que estou um pouco nervosa.

*
Querido Antônio.
Eu escrevo este bilhete, não posso suportar este amor. Olha, Antônio, de hoje em
diante farei os teus desejos. Só se você me estimar como tua amante, não me deixe
faltar nada e nunca me abandone.
Te espero às três horas, no lugar de sempre. Não quebro o juramento que fiz,
mas você não sei, Antônio.
Sempre fiel,
Ismênia.

P.S. De há muito pedi o teu retrato, não serei merecedora? Sofrendo do


estômago tudo por causa do nosso amor. Mande um dinheirinho pelo menino para
comprar remédio. Sonhei a noite toda que me traías e não me querias mais, será?

*
Estimado Antônio.
Saudações.
Esta carta será a última que minha mão te escreve. Ontem choveu teve desculpa,
hoje uma bonita noite, esperei até às nove horas, você não veio e sei que sou
desprezada.
Ou por que a velha não saiu da sala? Ela pode ficar lá na cozinha. Não se faça de
rogado, Antônio. Que horror; depois de combinado você se arrepender; venha sim?
A que há de ser tua,
Ismênia.
P.S. Peço um dinheirinho pelo menino, estou apurada para pagar uma conta e a
pessoa esperando aqui.
(...)

O conto acima é montado como uma seqüência de cartas que a personagem Ismênia
escreve a Antônio, seu amante. No trecho que recortamos, percebe-se perfeitamente o
abrandamento do grau de formalidade entre os dois à medida que se infere que eles vão se
tornando íntimos. Na primeira carta, Ismênia trata Antônio por “doutor” e por “senhor”,
preservando sua face positiva ao dirigir-se a ele com deferência. Na segunda, após
tornarem-se amantes, o tratamento muda radicalmente para “querido”, “tu”, “você” etc.
Da terceira em diante, as relações se estremecem, e Ismênia já emprega um tratamento
que expressa não apenas respeito, mas, principalmente, o distanciamento afetivo, ao
chamá-lo de “estimado Antônio”.
Em qualquer interação, de acordo com Brown e Levinson (1987), cada pessoa
possui duas “faces” (GOFFMAN, 1998), uma positiva e outra negativa, que compõem as
imagens dos participantes da enunciação. Em sua teoria da polidez, Brown e Levinson
demonstram como os interactantes se valem de estratégias para apresentar e manter uma
imagem valorizante de si mesmos (face positiva) e, ao mesmo tempo, procuram ocultar o
que lhes é mais íntimo (face negativa), dependendo do grau maior de formalidade que
exista entre os enunciadores.
Como observa Kerbrat-Orecchioni ([1996]2006), para ser polido, ou seja, para não
cometer um ato ameaçador para o destinatário, é preciso recorrer a alguns procedimentos
que Brown e Levinson chamam de “suavizadores”. Um desses procedimentos é o uso
adequado de dêiticos sociais em determinadas situações. O emprego de senhor(a), no
lugar de você, por exemplo, pode atenuar uma indelicadeza e, ao mesmo tempo, indicar
reverência. Já em outras circunstâncias, pode-se usar você ou tu, como um modo de se
revelar próximo, amigo, ou de ser solidário com o interlocutor, dentre outras
possibilidades. Os dêiticos sociais podem representar, portanto, uma marca de polidez
lingüística.

c) Os dêiticos de tempo
São os que situam o ponto de origem do falante (e seu interlocutor) no momento
em que a mensagem é enunciada. Assim, nem toda expressão que indique tempo é
necessariamente dêitica: somente se, a fim de o referente temporal ser identificado, for
preciso conhecer o tempo em que se encontra o falante. Examinemos as expressões
sublinhadas no texto abaixo, para constatar que nem todas formalizam ocorrências de
dêixis temporal:

( ) É preciso salvar vidas


A pesquisadora explica por que é urgente que o STF libere as pesquisas com
células-tronco embrionárias.
A bióloga Mayana Zatz é uma das maiores especialistas em células-tronco do
país, com quase 300 trabalhos científicos publicados. Nascida em Israel, mora no Brasil
desde os 7 anos. Atualmente, ela é pró-reitora de pesquisa e coordenadora do Centro de
Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Mayana estuda há mais de
trinta anos terapias para doenças neuromusculares, razão pela qual se tornou uma das
maiores defensoras, no país, das pesquisas com células-tronco embrionárias, as únicas
capazes de se converter em qualquer um dos 216 tipos de célula do corpo humano.
Desde 2005, quando o Congresso aprovou a lei brasileira de biossegurança – que
autoriza o uso em pesquisas de embriões congelados há mais de três anos – Mayana
luta para que a lei entre em vigor. Isso porque, naquele mesmo ano, a Procuradoria-
Geral da República entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei. Desde
então, os estudos com células-tronco embrionárias estão parados no Brasil. Na semana
que vem, o Supremo Tribunal Federal dará sua palavra final sobre o uso dos embriões.
(...) (Entrevista: Mayana Zatz ????)

Se refletirmos sobre as expressões do texto sublinhadas abaixo, concluiremos que


nenhuma delas requer o conhecimento do tempo de origem do enunciador da entrevista:
- “Nascida em Israel, mora no Brasil desde os 7 anos”,
- “Desde 2005, quando o Congresso aprovou a lei brasileira de biossegurança –
que autoriza o uso em pesquisas de embriões congelados há mais de três anos –
Mayana luta para que a lei entre em vigor.,
“Desde os 7 anos” toma como ponto de referência a idade da pesquisadora,
independentemente do momento da entrevista; trata-se de uma remissão aos 7 anos da
bióloga já referida, por isso o emprego aqui é somente anafórico. Com relação a “desde
2005”, o raciocínio é semelhante, já que o referencial para a expressão é o tempo
cronológico geral.
No que respeita a “há mais de três anos”, a origem da contagem é qualquer
momento em que os embriões tiverem sido armazenados – não importa o tempo a partir
do qual o enunciador está falando; o uso, portanto, não é dêitico.
Assim também podemos deduzir do uso da expressão “desde então”, que retoma,
anaforicamente, e não deiticamente, o ano de 2005, quando a Procuradoria-Geral da
República entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei. Nenhuma dessas
expressões temporais cumpre, pois, função dêitica.
Algo diferente se passa, porém, com outras expressões grifadas no exemplo. O
referente de “atualmente” e de “na semana que vem”, por exemplo, só podem ser
recuperados se o co-enunciador souber do momento em que o texto da entrevista foi
enunciado.
Já a expressão “naquele mesmo ano” é um caso híbrido de processo anafórico e
dêitico, de vez que remete, anaforicamente, ao ano de 2005, já introduzido no texto,
mas, por outro lado, ao usar o demonstrativo aquele, supõe-se, deiticamente, a
localização temporal do enunciador num presente distante do ano de 2005. Se o
enunciador se situasse no ano de 2005, certamente ele não empregaria “naquele mesmo
ano”.

d) Os dêiticos de espaço
São definidos mais ou menos como os dêiticos de tempo, pois só serão tomados
como dêiticos espaciais os elementos que pressupuserem o lugar em que se situa o
falante, e seu interlocutor, no ato comunicativo. Desse modo, nem todas as expressões
que denotam lugar são necessariamente dêiticos de espaço, como podemos entender a
partir do exemplo seguinte:

( ) Respostas cretinas para perguntas idiotas

Mulher entrando em uma agropecuária:


- Tem veneno pra rato?
-Tem! Vai levar? - pergunta o balconista.
- Não, vou trazer os ratos pra comerem aqui!!!

No restaurante, o rapaz apanhando o talão de cheques e uma caneta.


- Vai pagar com cheque?
- Não, vou fazer um poema pra você nesta folhinha.

No andar térreo:
- Sobe?
- Não, esse elevador aqui anda de lado.

Pescador com vara de pescar na mão, linha na água, sentado.


- Aqui dá peixe?
- Não, dá tatu, quati, camundongo... Peixe costuma dar lá no
mato... (piadas divulgadas na internet – com adaptações)

Examinando com atenção as expressões grifadas no exemplo, verificaremos que


só constituem casos de dêixis espacial as ocorrências de “aqui”, “nesta folhinha” e “lá
no mato”, pois somente elas não dispensam o conhecimento do local onde se localizam
os participantes do ato comunicativo, além de se referirem a um lugar, é claro. Os
enunciadores que dizem “aqui”, por exemplo, remetem a um espaço próximo do
ambiente em que eles se situam na enunciação. A desconsideração dessa informação do
ponto de origem compromete a recuperação do referente. Estas são manifestações
genuínas de dêixis de lugar.
Outras expressões, como “no andar térreo” e “no restaurante”, ainda que remetam
a lugares, não representam instâncias de dêixis espacial, pois independem da
pressuposição da posição dos enunciadores, para terem seus referentes reconstruídos
pelos co-enunciadores. Trata-se simplesmente de introduções referenciais.
Algo peculiar se dá, no entanto, com “esse elevador aqui”. Não se trata de
nenhuma dêixis, quer seja pessoal, temporal, espacial, social ou textual, já que não se
refere a uma pessoa do discurso, nem ao tempo ou ao espaço da situação comunicativa,
nem a um objeto localizável na organização da superfície do texto. “Esse elevador
aqui”, por exemplo, não remete a um referente espacial, mas a uma entidade que só
pode ser identificada pelo interlocutor se estiver monitorando o lugar em que se passa a
enunciação imediata. Daí por que o elemento dêitico esse aqui é usado para indicar ao
participante da comunicação que a entidade referida está próxima do falante na situação
em que se encontram.
É curioso que na literatura sobre dêixis não haja uma denominação singular para
essa espécie de uso dêitico. Embora apontem para a não-pessoa (para empregar os
termos de Benveniste), essas expressões são situadas pelo enunciador dentro de um
espaço dêitico só reconhecível a partir do ponto de referência dos interlocutores. É o
que encontramos com o uso da expressão “aquela mulher do balcão tomando whisky
sozinha”.

( ) Diálogos no casamento

Marido e mulher estão tomando cerveja num barzinho. Ele vira pra ela e diz:
- Você está vendo aquela mulher lá no balcão tomando whisky sozinha? Pois
eu me separei dela faz sete anos! Depois disso, ela nunca mais parou de beber.
A mulher responde:
- Não diga bobagens. Ninguém consegue comemorar durante tanto tempo assim!
(piada divulgada na internet)
Dessa forma, dêiticos como “aquela mulher lá no balcão...” não se enquadram
nem na dêixis espacial, porque o objeto de discurso a que se reportam não é um lugar,
nem na dêixis pessoal, porque não representam uma pessoa do discurso. Os estudos
sobre o assunto ainda não destinaram a esses casos uma denominação específica.
Pode acontecer, ainda, que alguns referentes semelhantes a esses sejam situados a
partir da última elocução do enunciador no espaço dêitico do próprio texto, o que se
verifica quando do uso de expressões como a palavra anterior, o pronome abaixo etc.
Este emprego muitas vezes acumula uma função anafórica, quando também remete a
objetos de discurso já introduzidos textualmente, como em:

( ) ...terminam por não se fixar nem de um lado nem de outro do quadro abaixo,
conforme quer indicar a linha pontilhada. (artigo acadêmico ????)

Note-se que o ponto de referência para a recuperação do objeto designado é a


última enunciação do falante dentro do campo dêitico representado pela linearidade do
texto: “o quadro abaixo” é algum lugar posterior ao instante em que o falante enunciou
essa frase, e é por esta razão que pode ser considerado um dêitico. Ao mesmo tempo, se
o quadro a que o enunciador se reporta é mencionado no texto, então a expressão
também deve ser tomada como anafórica. Como mostraremos em seguida, exemplos
assim, que apontam deiticamente para o espaço do texto e, concomitantemente,
retomam um referente citado no cotexto serão classificados aqui como dêiticos textuais.

e) Os dêiticos textuais

São os que se orientam pela posição do último enunciado no cotexto, como


dissemos acima. Podem indicar um referente pontual, preciso, que está representado no
cotexto por uma expressão referencial, como:

( ) Palas e poses

RIO DE JANEIRO - Lidas assim, nuas, sem outros balangandãs verbais que
ajudem a lhes emprestar sentido, as palavras acima parecem agora foragidas do teatro
grego ou de um poema medieval. Mas não - são palavrinhas bem nossas, de uso
corriqueiro até outro dia, e que ameaçam se evaporar da língua porque as pessoas
começaram a deturpar o jeito de escrevê-las.
Pala, por exemplo. É um enfeite de vestido feminino, uma dobra perto da gola,
algo assim. Ou aquela parte do boné, também chamada aba, que os meninos usam ao
contrário, para evitar que a nuca tome sol. Ou a venda preta dos piratas. Enfim, pala é
um ornamento, uma coisa meio secundária, um quase nada. Daí o vulgo ter inventado,
em tempos idos, a expressão "dar uma pala" - ou seja, resumir, adiantar o assunto, dar
apenas uma pista do que se vai dizer. Por extensão, chegou-se a "dar uma palinha", que
significa ser ainda mais sucinto.
Mas, ultimamente, por ignorância da língua, pela pouca intimidade com a gíria ou
pelo crescente desprestígio das palas, as pessoas começaram a escrever "dar uma
palhinha", pensando estar dizendo "dar uma palinha". Não faz sentido e, questionadas
sobre o porquê da palhinha, não saberão responder. (...)
(artigo de opinião, de Ruy Castro, Folha de S.Paulo – 13/03/07)

Em ocorrências como “as palavras acima”, a dêixis textual se soma à anáfora


correferencial, indicando o local da linearidade do texto em que os referentes podem ser
identificados por sua menção: as palavras palas e poses.
Diferentemente dos tipos de dêixis já abordados aqui, a dêixis textual toma como
ponto de origem da enunciação a organização das palavras no espaço do cotexto, daí por
que o autor emprega “as palavras acima”, numa referência ao que veio antes da última
fala do enunciador.
Não somente os advérbios podem desempenhar esse papel de organizador textual,
mas também os demonstrativos, especificamente o par contrastivo este/esse. Vejamos as
duas possibilidades no texto de uma página do site de busca do Google:

( ) ver o poema
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Cabe observar que já se neutralizou, mesmo em textos formais, a tradicional


oposição entre os demonstrativos este (de remissão catafórica, prospectiva) e esse (de
remissão retrospectiva): toma-se, hoje, um pelo outro, quase que indistintamente, na
maioria dos casos. Confiram-se os exemplos a seguir, ambos escritos em registro
formal, em que, transgredindo as normas gramaticais, emprega-se o este para remissões
para trás e esse para remissões para frente:
( ) As novas tecnologias e as redes de comunicação já ocasionaram uma
verdadeira revolução em algumas atividades humanas no Brasil: na ciência, na
economia, na política, não cabendo à educação (ao social) ficar à margem deste
processo. (projeto de dissertação ???)
( ) Esse é o mote para que a lenda dos argonautas seja resgatada: Medéia recorda
a época em que conheceu Jasão, quando este chegava à Cólquida para obter o velocino
de ouro. (projeto de tese, de Tércia Montenegro)

Os demonstrativos este/esse servem, assim, a uma função de ordenação de


referentes mencionados no cotexto, ao mesmo tempo em que imprimem a eles maior
saliência discursiva. Com efeito, os objetos de discurso realizados por expressões
contendo dêiticos textuais ganham maior ênfase e, conseqüentemente, chamam mais a
atenção do interlocutor. Esse valor expressivo da dêixis textual determina, muitas vezes,
a escolha do pronome este, em vez de esse, sempre que o enunciador deseja trazer para
perto de si, de seus afetos, de seus sentimentos, ou de sua presença física, o objeto de
discurso a que se refere.
A par da função de refocalizar referentes por meio do uso do pronome de primeira
pessoa este, existe ainda a função de desambiguar, viabilizada pelo emprego do
contraste entre este e aquele, que, de acordo com as normas gramaticais, marca os
valores de proximidade e distância, respectivamente. Só raramente, porém, e na
modalidade escrita formal, se utilizam em português as duas formas contrastivas
este/aquele ao mesmo tempo. É mais comum encontrarmos somente o emprego de este,
sob a pressuposição do contraste com aquele, para desmanchar uma possível
duplicidade de interpretação referencial, como se vê em:

( ) Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a
nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa
sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ido na véspera consultar uma
cartomante. (conto - Machado de Assis)

De maneira geral, importa constatar que os dêiticos textuais desempenham, como


vemos, o que Ehlich (1982) denomina de procedimento dêitico, um modo de chamar a
atenção do interlocutor para o que está sendo expresso, empregando um elemento
reconhecido no sistema da língua como tendo a função de indicar, de apontar para.

Um dos principais meios de focalizar a atenção do ouvinte é o


procedimento dêitico. Ele opera sobre a base de uma orientação prévia
comum a falante e ouvinte. Por meio das expressões dêiticas, o falante
traz o ouvinte para o foco de algum elemento específico, diretamente
acessível, fazendo uso do espaço do ato de fala. (EHLICH, 1982, p.325)
O autor contrasta, em termos de funcionamento pragmático-discursivo das
expressões referenciais, os usos anafóricos e dêiticos. Enquanto o emprego de um
dêitico provoca uma alteração no foco de atenção dos interlocutores, o emprego de um
anafórico simplesmente mantém a atenção sobre o referente que já foi introduzido no
discurso: “O procedimento anafórico é um instrumento lingüístico usado para que o
ouvinte continue a manter um foco previamente estabelecido sobre um item específico
para o qual ele orientou sua atenção antes” (EHLICH, 1982, p.330).
Essa diferença fica bastante clara quando, na dêixis textual, percebemos a
presença de um demonstrativo, ou de um advérbio, por exemplo, dentro de um caso de
anáfora correferencial. Observe-se o anafórico grifado no pensamento a seguir:

( ) “Os vocábulos de mais difícil definição são os monossílabos: bem e mal.”


(pensamento, de Marquês de Marica)

Do ponto de vista pragmático-discursivo, a expressão anafórica “os


monossílabos” apenas dá continuidade referencial a uma entidade relacionada a “os
vocábulos” e a “bem e mal”. Se o enunciador tivesse escolhido dizer “estes
monossílabos”, ou “os seguintes monossílabos”, o efeito sobre a atenção do interlocutor
teria sido outro. Entre os dois procedimentos, existe uma diferença funcional, que
reflete o empenho do interlocutor em compreender o enunciador: por um lado, o dêitico
orienta o receptor a alterar o foco de atenção; por outro, o anafórico o instrui a manter a
focalização, pela continuidade referencial.
Esta é a razão por que muitas anáforas correferenciais recategorizadoras são
também dêiticos textuais, pois costumam acrescentar ao objeto de discurso retomado
algum ponto de vista para o qual o enunciador quer que se atente. Note-se, no exemplo
seguinte, o uso de dêiticos textuais que são também anafóricos correferenciais
recategorizadores, conduzindo o desenvolvimento argumentativo do texto:

( ) O desenvolvimento tecnológico tem feito com que sobrevivam pessoas com


doenças e malformações que espontaneamente seriam eliminadas pela natureza. O
estado não está aparelhado para atender a essa legião de dependentes da tecnologia para
continuar vivos. A sobrecarga nos serviços de fonoaudiologia, fisioterapia, hemodiálise
cria filas intermináveis. Quanto menor o peso dos prematuros que salvamos, maior
carga financeira entregamos à família e ao estado. Há necessidade de uma discussão
ampla dos aspectos legais e éticos relativos aos procedimentos nas UTIs, prolongando a
sobrevivência de pacientes terminais ou com mínima chance de qualidade de vida
razoável. Os interesses, nessas terapias de alto custo, passam pelos setores financeiros
das instituições e longe da ética.
Rui Tavares Costa
Médico pediatra
Brasília, DF.
(carta do leitor - revista Veja, 21/05/2008)

CONCLUSÃO
Os dêiticos textuais indicam os segmentos, locais/momentos do próprio texto em
que são utilizadas as expressões a que se referem. Diferentemente dos demais tipos de
dêixis, que apontam para o entorno enunciativo situacional, o ponto de referência é o
lugar e o momento do texto onde aparece a expressão mencionada. E é por retomarem
outros referentes já mencionados no cotexto, que eles apresentam, antes de tudo, um
caráter anafórico. São sempre, portanto, formas híbridas, pois se comportam,
simultaneamente, como dêiticos e como anafóricos.

Todos os dêiticos textuais discutidos até agora cumpriam a função de anafóricos


correferenciais, mas é possível que também acumulem a função de anafóricos indiretos
e de encapsuladores, como nas expressões sublinhadas no editorial abaixo:

( ) Impossível virar a pagina e seguir vivendo como se nada tivesse


acontecido.
(Este editorial está sendo escrito logo após a reconstituição do crime feita por
peritos no apartamento de Alexandre Nardoni. e Anna Carolina Jatobá.)

Impossível não externar o profundo sentimento de horror que assola meus


sentidos. Não é apenas Isabella Nardoni, são os Joãos, Marias, Josés e tantos outros que
estão esparramados pelo mundo sofrendo todo e qualquer tipo de violência, o
surpreendente para toda minha ingenuidade ou a minha falta de coragem para ver o que
acontece ao meu redor é que esta violência vem dos próprios pais, da própria família!
Passamos uma boa parte de nossas vidas fingindo que não vemos, ignorando os
gritos sufocados de socorro, usamos as tintas do arco-íris para colorir nossa omissão, e
quando acontece a morte prematura de uma criança como Isabella, somos obrigados a
descortinar nossa visão e nos posicionarmos diante de tal atrocidade.
A espécie Homo Sapiens está tão carente de amor, de esperança, de generosidade,
de moral, que o mundo se tornou triste demais ante este quadro assustador de violência
não só com Isabella, mas com tantos outros casos que não são divulgados pela imprensa
de forma tão veemente. Afinal que tipo de homem, se realmente for o pai, é este que
encobre ou assassina a própria filha? É um monstro???? Um psicopata???? Um
egocêntrico???? E sua companheira, também se for responsabilizada pelo crime, é feita
de que material? O instinto materno está e/ou ficou adormecido?????
Afinal que sentimento move um ser humano que não respeita a vida?
Será que não é o momento de resgatarmos o verdadeiro sentido de solidariedade?
Será que o ser humano está tão despido de crenças, que somente seus interesses egoístas
devem ser satisfeitos a qualquer preço?
Eu estava torcendo muito para que os indícios e a polícia estivessem erradas, para
ser sincera ainda torço, porque não consigo admitir a degradação do ser humano, porque
meus parâmetros de vida foram terrivelmente abalados ante tal quadro sinistro de frieza,
de calculismo e engodos.
(...)
(editorial, de Álida. Disponível em
http://www.jornaldamulher.org/editorial/editorial.htm)

Esses dêiticos textuais/ anáforas encapsuladoras localizam no cotexto, desse


modo, porções do discurso em andamento. Em grande parte das ocorrências, tais
dêiticos não retomam um objeto específico mencionado, uma ou mais vezes, mas
remetem a conteúdos inteiros diluídos no texto. Por este motivo, são, a um só tempo,
anáforas encapsuladoras e dêixis textual, considerando-se os critérios distintos que
definem uma e outra classificação.
Note-se como, no exemplo, esse tipo de dêixis textual vai incorporando
informações e pontos de vista sobre a violência, a qual se recategoriza ao longo do
desenvolvimento argumentativo, passando de uma violência geral para um quadro
sinistro de frieza e de calculismo, referente ao caso específico do assassinato da menina
Isabella, ocorrido em 29/03/2008, em São Paulo.
Tais expressões cumprem a função de organizadores textuais, porque portam uma
sinalização dêitica, aumentando o foco de atenção sobre o referente e a eficácia da
argumentação que se desenvolve.

f) Os dêiticos da memória

Fala-se, ainda, de um outro tipo de dêixis, aquela em que, através do uso dêitico de
algum elemento do cotexto, se convida o co-enunciador a buscar, nos arquivos de sua
memória, um conhecimento partilhado sobre um referente não mencionado no cotexto.
Apothéloz (1995) acentua a importância do emprego do demonstrativo nesses casos,
indicando ao co-enunciador uma referência in absentia, porque não nomeada no texto,
nem presente na situação enunciativa imediata. É como se o demonstrativo fornecesse
uma indicação lingüística de que o campo dêitico saliente (porém não o único) para a
localização do referente mencionado fosse o campo da memória, não apenas o da situação
comunicativa, nem o do cotexto. Um exemplo bem prototípico seria este:
( ) “Sabe aquele desejo incontrolável de ter alguma coisa que não dá para
esperar até o mês que vem? O Sudameris sabe.” (anúncio publicitário, veiculado em
revistas, como a Veja)

Repare-se na deiticidade do demonstrativo aquele, em “aquele desejo incontrolável


de...”. Ao mesmo tempo em que convoca o interlocutor a recuperar alguma lembrança em
que sentiu uma grande vontade de obter algo, situando esse referente em sua memória,
também demarca a posição de origem do enunciador no tempo/espaço da enunciação. Se
o enunciador optou por empregar aquele, no lugar de esse, é porque quis produzir um
efeito estilístico de distanciamento com relação ao tempo em que o enunciado foi
proferido.
Um uso similar se encontra no dêitico memorial grifado no poema abaixo:

( ) Bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,


aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,


maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,


problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos para passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas (poema - Paulo Leminsky)

Usar aquele é tornar manifesto que está se reportando a um desejo que não está
sendo experienciado no momento da comunicação e é, simultaneamente, solicitar que ele
seja reconstruído na memória compartilhada. A carga de significado do demonstrativo
aquele é responsável por esse duplo apelo: na memória e no tempo.
O efeito de distanciamento no tempo real da enunciação imediata não seria possível
se, no exemplo, o demonstrativo empregado fosse esse.
O importante é reter, neste momento, que, independentemente desse efeito de
aproximação ou de distanciamento do falante em relação ao objeto de discurso, ambas as
formas demonstrativas, esse ou aquele (e variantes), são credenciadas pelo sistema da
língua portuguesa para denunciar ao interlocutor que o referente mencionado está
radicado no campo dêitico da memória, e não citado em outra parte do cotexto (está in
absentia), nem indicado na circunstância comunicativa imediata. Leia-se Apothéloz sobre
isso:

Concordamos em descrever este tipo de demonstrativo dizendo que


ele consiste em evocar um referente cuja evidência é tal, para o locutor,
que ele equivale a um referente que acabou de ser evocado no próprio
texto. A designação de dêixis de memória se deve a Fraser; Joly (1980).
Fala-se, às vezes, também de dêixis enfática (Lyons, Kuno), de dêixis
emotiva (R. Lakoff), ou ainda de pensamento indicial (Kleiber). Tantas
denominações levam em conta o fato de este emprego da referência
demonstrativa se acompanhar, às vezes, de um efeito de sentido particular:
ele dá ao destinatário a impressão de ter um acesso imediato ao estado
cognitivo no qual se acha um terceiro, quer este último seja o enunciador,
quer seja uma pessoa explicitamente evocada. (APOTHÉLOZ, 2003, p.
70).

As funções que os dêiticos exercem no discurso vêm, desse modo, se somar – mais
que isso: se integrar – às demais funções anafóricas, acumulando, por vezes, certos efeitos
de expressividade, de emotividade, de (des)comprometimento, dentre outras motivações
estilísticas e/ou modalizadoras do discurso.
PARTE III – O que poderia ser dito sobre a referência

A co-construção dos objetos de discurso e a (não-)menção de expressões


referenciais

Segundo Apothéloz (2001), o objeto de discurso emerge do modo como os


participantes ajustam suas ações na enunciação. É a partir dessas ações que eles
conferem sentido a cada evento de fala. Por isso – defende o autor - é importante
considerar a referência, essencialmente, como um processo de atenção e de interação.
Dentro desta abordagem, que vamos assumir nesta obra, mas que não se distancia
muito da anterior, os processos referenciais não precisam, necessariamente, estar
associados à menção de expressões referenciais para serem introduzidos no universo de
discurso criado a partir do texto. Mas, assim como na perspectiva correlacionada à
menção no cotexto, o objeto de discurso vai sofrendo transformações/ alterações
progressivas a partir da ação dos interlocutores ao se referirem a ele.
Mesmo quando os referentes são introduzidos no texto por expressões
referenciais, estão respaldados por um contrato tácito de co-participação do destinatário,
que aceita responder em alguma medida à atividade que lhe é solicitada. Há uma
pressuposição pragmática de que o co-enunciador sabe do que se trata, e de que, ainda
que não o saiba exatamente, alguns indícios contextuais o levarão a reconstruir o objeto
discursivo, mesmo que vagamente. Por isso, para nós, toda entidade referida é
construída sob a pressuposição de que de algum modo vai se tornar acessível na
interação.
A noção de acessibilidade de um referente, como reconhece Ariel (2001), é
extremamente complexa, pois envolve diferentes fatores ligados à saliência de uma
determinada entidade no discurso; dentre eles, estariam a distância entre o antecedente e
a anáfora; a quantidade de possíveis antecedentes em competição; o fato de o
antecedente representar o tópico do momento de fala; e o fato de o antecedente se
inserir no mesmo frame que o anafórico.
Falaremos, porém, de uma acessibilidade em sentido ainda mais amplo, na medida
em que estamos desvinculando a instauração de um referente de sua realização no
cotexto. Não estamos, pois, tratando apenas de como as expressões referenciais são
selecionadas para representar que entidades em dado contexto, mas sim, de como os
referentes, mesmo quando nem foram ainda designados no cotexto, já podem estar
acessíveis no mundo do discurso, até irem, aos poucos, se estabilizando e, em seguida,
se desestabilizando, num jogo de co-construção que só chega ao seu termo quando os
participantes se dão por satisfeitos com algum tipo de consenso para cada circunstância.
Na piada abaixo, por exemplo, o referente de “entrevista de emprego” não é
denominado em momento algum do cotexto, todavia é possível, e fundamental para a
construção da coerência, admiti-lo como introduzido por uma série de fatores, todos
interligados:

( ) - Antes de começarmos, por favor, me diga uma coisa, o que o senhor fazia
no emprego anterior?
- Eu era funcionário público!
- OK! O senhor pode contar até dez?
- É claro! Dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, valete, dama, rei e
ás. (piada - 50 piadas, de Donaldo Buchweitz)

A fórmula de início da entrevista, “antes de começarmos”; a alusão a um


emprego anterior; a dêixis social, indicando a forma de tratamento respeitosa, tudo isso
se conjuga ao conhecimento comum que se adquiriu do ritual comunicativo de uma
entrevista de emprego e favorece a instauração da referência. Dizer em que momento
preciso do texto o objeto de discurso “entrevista” foi introduzido seria arriscado, porque
impreciso. Deveremos, então, ignorar o fato de ter havido essa introdução referencial,
simplesmente porque ela não foi explicitamente citada? Evidentemente que não.
Ademais, caberia indagar: para quê? Que relevância teria, para fins discursivos,
identificar em que momento do contexto o referente se instituiu, ou que formas
lingüísticas foram as responsáveis, ou as únicas responsáveis, pelo engatilhamento da
referência?
De igual maneira, os referentes dos personagens que falam na entrevista, e se
instituem no discurso por meio da dêixis pessoal eu/você, não são designados por uma
expressão que denote a imagem estereotípica com que o texto os apresenta. O
entrevistador assume uma imagem de si - dizemos um ethos - de representante da
empresa que, num contexto mais ou menos formal, avaliará os candidatos à vaga.
Nenhuma expressão referencial específica no cotexto informa isso. O entrevistado se
assume como tal e responde naturalmente ao que lhe é perguntado, descrevendo-se,
recategorizando-se e nomeando-se como ex-funcionário público. Mas a recategorização
maior, aquela que dispara o humor na piada, tem lugar quando o papel do entrevistador
passa por um realinhamento (um footing, nos termos de GOFFMAN, 1998), e ele
transgride suas formalidades para, indiretamente, de modo irônico, tachar o interlocutor
de preguiçoso, negligente com as atribuições de seu cargo anterior, pois insinua que o
rapaz ocupava seu tempo jogando baralho; o vício chegara a tal ponto que ele, agora, só
conseguia contar pela seqüência das cartas. Nenhuma expressão referencial expressa
essa recategorização, que é, sem dúvida, anafórica correferencial, porque o objeto de
discurso foi retomado e, desenhando-se por um novo contorno, transformou-se. Onde
começa a introdução referencial e onde principia a anáfora em situações assim?
O referente, ou objeto de discurso, é uma entidade que emerge da própria
interação e nem sempre se explicita por uma expressão referencial, quer se introduzindo
no discurso, quer apenas se mantendo nele sem muitas alterações, ou quer se mantendo,
mas se recategorizando. Não estamos negando, com esse pensamento, que, por outro
lado, existam mecanismos de estabilização da referência, nem que o uso de uma
expressão de introdução referencial ou de uma anáfora correferencial deva ser
subvalorizado na reconstrução da coerência de um texto. Pelo contrário: sabemos que,
no momento em que um referente é denominado por uma expressão referencial, sua
lexicalização já contribui para estabelecer uma categoria em que ele foi enquadrado
pelo enunciador (ver KOCH, 2002a), e este será sempre um fabuloso recurso utilizado
pelo falante para orientar o interlocutor quanto ao modo como se espera que ele desenhe
o quadro referencial, a partir dos pontos de vista conduzidos no texto. Como afirma
Costa, a materialidade do texto, na medida em que gera implicações de ordem
cognitiva, contribui para a estabilização da referência, pois passa a atuar como modelo
consensual: “Constituiriam ‘regras’, no sentido wittgensteiniano, ou a ‘base comum’
sobre a qual os falantes atuariam na coordenação de novas ações” (COSTA, 2007,
p.73).
No texto seguinte, por exemplo, é principalmente, mas não apenas, por meio de
formas lexicalizadas que se vai, aos poucos, esboçando, e se transformando, a figura de
um mendigo que perambulava pelas ruas de Fortaleza; e é também por meio da
expressão referencial “um negro alto, cabelos fartos, sujo, roupas em farrapos...” que a
entidade é, de fato, introduzida no mundo do discurso:

( ) Anjos das ruas


Ao contar uma história de solidariedade, o escritor Pedro Salgueiro abre o
questionamento: se uma pessoa de boa vontade consegue salvar uma vida, o que não
fariam os poderes estaduais, municipais e federais se tivessem um mínimo de boa
vontade?
Faz uns dez anos que perambula pelas ruas de nossa sonsa loirinha descabelada
pelo sol um negro alto, cabelos fartos, sujo, roupas em farrapos, às vezes vestidas sobre
outra já em tiras. Distingue-se pelo porte altivo, cabeça levantada e pelo quase silêncio
que o acompanha: poucos escutam as palavras que pronuncia baixinho, não raro
esbraveja com alguém imaginário ou faz estranhos cálculos matemáticos.
Não pede esmola, mas lhe dão dinheiro, roupa e comida; quase sempre redistribui
ou deposita as cédulas amassadas e rabiscadas com números em baixo de cones, desses
usados em sinalizações de trânsito, e de papelões de outros moradores de rua, nada
guarda para o dia seguinte. Come pouquíssimo e toma café e fuma em abundância (que
lhe dão sem ele ao menos pedir).
(...) Não se sabe onde dorme, como faz suas necessidades fisiológicas, muito
menos o que pensa e balbucia em quase preces noturnas. Cumpre há uma década o
mesmo ritual de sempre, dizem que ele faz as mesmas coisas, nas mesmíssimas horas
(até para atravessar as ruas é sempre em locais determinados), o exato itinerário, quer
faça chuva ou sol: o mesmo porte altivo, o olhar contemplativo de superioridade e paz.
Não se apressa nunca, nem altera o semblante; nem se importa se ao seu lado passa uma
bela jovem (que quase sempre aperta a bolsa e desce a calçada) ou um outro morador de
rua. (...)
Pois bem, acho que cumpriria este seu eterno ritual de perambular pelas calçadas,
de se esgueirar pelos becos, de se acocorar pelas calçadas, até o final dos tempos, não
fosse a alma enorme e boa do meu colega de repartição (e ex-baixista da banda de regue
Rebel Lions) Jânio Alcântara, que puxou conversa, com uma paciência de santo, com
nosso personagem: descobriu o nome de sua cidade natal - Paranapanema, São Paulo) e
o nome da mãe, Jandira Aparecida da Cruz (completo e com seu nome de solteira e de
casada).
O novo amigo foi a Internet pesquisar e conseguiu falar por telefone com a mãe,
uma senhora forte e saudável morando no interior de São Paulo; em poucos dias se
encontrava em nossa cidade a mãezona (que há dez anos não sabia o paradeiro do filho)
e a irmã mais nova, Sidelça, uma bela jovem parecidíssima com o nosso herói-de-rua.
Jânio não ficou por aí, conseguiu internamento e tratamento dignos para o agora ex-
morador das ruas sujas de nossa meretríssima loirinha descamisada pelo sol.
Moral de nosso conto de fada: se uma pessoa de boa vontade (com a ajuda de
outros anjos bons) consegue salvar uma vida, o que não fariam os poderes estaduais,
municipais e federais se tivessem um mínimo de boa vontade, competência e
solidariedade?
P.S.: Para não deixar o leitor curioso com o destino de Silvio Tadeu da Cruz, ele
está internado, limpo e bem vestido. A família o espera para levá-lo de volta, pois sua
avó de 99 anos de idade há dez anos não se cansa de perguntar toda noite por ele. Duas
de suas irmãs moram na Europa, os outros vivem bem em Paranapanema (SP). A mãe
diz que seu descontrole começou quando ele presenciou a morte, em acidente de
automóvel, do irmão de que mais gostava, depois agravado pela dificuldade em pagar a
faculdade de Engenharia que cursava já no 2º ano, após ser despedido do banco em que
trabalhava. Diz-me (agora sua belíssima irmã) que ele era o mais inteligente da família,
também o mais vaidoso... (artigo de opinião - Pedro Salgueiro
- especial para o jornal O POVO - 28/01/2008)

Fora a farta adjetivação, sempre eivada de conotação positiva, e a abundância de


predicados de ação, pelos quais o “negro alto...” vai sendo pintado no texto, cumpre
notar a influência das expressões referenciais “outro morador de rua”, “nosso
personagem”, “o nosso herói-de-rua”, “o agora ex-morador das ruas sujas de nossa
meretríssima loirinha descamisada pelo sol” e, finalmente, o nome próprio, a identidade,
a cidadania de Silvio Tadeu da Cruz, que, num crescendo, vão rectegorizando o
mendigo como um personagem de conto de fada, de final feliz.
A recategorização da própria crônica como um texto que contém um “conto de
fadas” é claramente confirmada pela expressão anafórica indireta: “Moral de nosso
conto de fada”. Além do mendigo transformado em “o nosso herói-de-rua”, sobressai
também do texto o herói maior, aquele que ocupa o lugar da fada, do “anjo bom” e que
o enunciador descreve já por meio da introdução referencial “a alma enorme e boa do
meu colega de repartição (e ex-baixista da banda de regue Rebel Lions) Jânio
Alcântara”.
Concebemos, assim, todas as estratégias de referenciação como um processo
sociocognitivo-discursivo, para o qual convergem condições contextuais diversas.
Como afirma Costa:
Pode-se dizer que a referenciação constitui uma espécie de
“jogo” que extrapola os limites sonoros ou gráficos do texto, isto é, que se
realiza na esfera das relações entre sujeitos historicamente situados. As
formas que os sujeitos escolhem para relacionar os referentes, que seriam
as peças do jogo, criam, em relação com os outros elementos do jogo, o
mundo do discurso, uma realidade “fabricada”, no dizer de Blikstein
(1983). (COSTA, 2007, p.66)

Indo na esteira de Blikstein, a autora defende que nossa percepção “filtra” a


realidade, a qual não pode ser acessada diretamente, a não ser através de “óculos
sociais”. A massa amorfa da realidade já é filtrada por nós através dos valores (positivos
ou negativos) do contexto. São esses valores ideológicos que criam os “estereótipos
perceptuais” e levam à configuração dos referentes, dos objetos de discurso. Para
Blikstein (1983), por outro lado, a língua exerce uma “função interpretante e modelante
na percepção/cognição e no pensamento” (p.79). Como bem observa Costa, ratificando
a pensamento da presente obra, são as práticas sociais de linguagem que criam imagens
e modelos convencionados, estereotipados. Esses estereótipos condicionam os próprios
usos da linguagem, que, por sua vez, também passam a condicionar as imagens
estereotípicas, à medida que se estabilizam certos modos de nomear as coisas. Essa
tensão entre práticas sociais e formas da língua nos impede de ver a realidade como algo
já dado e imutável. E “é ainda nessa tensão que surge o referente ou o ‘o real fabricado’.
E esse ‘real’, sendo algo que emerge da circularidade práxis – estereótipos – língua, tem
como marca a instabilidade”. (COSTA, 2007, p.69-71).

É uma concepção semelhante, em alguns aspectos, à que encontramos nos estudos


de Mondada, que advoga em favor de uma abordagem “construtivista” e “emergentista”
da referenciação, na qual tanto os objetos do saber quanto os objetos de discurso só se
completam interacionalmente, em atividades práticas. A autora também defende a tese
de que as atividades linguageiras são indissociáveis de seus contextos sociais, uma
concepção que “em vez de privilegiar uma visão substantiva e idealizada do saber,
apreende raciocínios práticos encarnados [corporificados]” (MONDADA, 2004, p.5).

Tais idéias, sustentadas nesta obra, também afluem para o pensamento de Ciulla
e Silva (2008), para quem o processo cognitivo da (re)categorização nunca se dissocia
da referenciação; os dois estão tão intimamente ligados que não se pode interpretar um
sem, necessariamente, recorrer ao outro. Para a autora, texto e discurso também estão
tão indissociavelmente imbricados que é impossível deixar de levar em conta os fatores
da dimensão discursiva na (re)construção dos fenômenos referenciais: “A questão
central, a nosso ver, é que os processos referenciais e as categorizações que são
promovidas na malha discursiva imbricam-se, de modo que não podemos interpretar
completamente um sem ver o outro” (CIULLA e SILVA, 2008, p.46).

CONCLUSÃO
Os significados das formas da língua constituem apenas um dos componentes
dos sentidos, ou da coerência, que os participantes da enunciação constroem em
cooperação. Eles servem de pistas, de indícios, de cadeias, de trilhas não somente para a
constante reelaboração dos sentidos, mas também para a progressão das referências de
um texto.

Este é também o pensamento de Leite, para o qual língua, discurso e práticas


sociais são igualmente indissociáveis. Inspirado na perspectiva da semiótica textual de
Eco (2000) e na semiótica literária, de Bertrand (2003), o autor assevera que “as
estruturas lingüísticas asseguram, para além do sistema lingüístico em si, as hipóteses e
inferências da leitura, bem como assumem o papel de refletir o conhecimento
sociocultural (enciclopédico) mobilizado pelo leitor nesse processo” (2007, p.118).
Enfatizando sobremaneira a importância dos indícios que a materialização do
cotexto disponibiliza ao interlocutor, Leite argumenta que as categorias que emergem
do discurso permitem a criação de uma nova configuração de sentido, ao mesmo tempo
em que reconstroem a própria realidade, negociada na interação entre leitor e texto.
Desse modo, o processo de interpretação de um texto, para o autor, seria, em si
mesmo, uma atividade sociocognitiva, que não consiste simplesmente “em localizar um
segmento lingüístico dentro do texto, mas ainda em identificar pistas lingüístico-textuais
que estabeleçam ligações com informações que se encontram na memória discursiva de
uma comunidade” (p.118).
Embora aplique sua proposta teórica à compreensão de processos metafóricos,
Leite sugere um procedimento de análise que se presta a explicar as etapas de qualquer
interpretação do texto/discurso. O interesse dessa explicação para nossos propósitos
reside no modo como o autor demonstra que a construção dos sentidos e da referência
ultrapassa os limites da expressão referencial, estendendo-se pelo tecido do texto, mas
integrando-se a múltiplos conhecimentos socioculturais.
Leite elege quatro fatores indispensáveis à interpretação de qualquer espécie de
texto: a cooperação do co-enunciador, a abdução, a seleção de propriedades
conceituais e as isotopias. Esses quatro dispositivos estariam interligados e
intercondicionados; não atuariam numa ordem fixa e imprimiriam à interpretação dos
sentidos e da referência (ou seja, à construção da coerência) um caráter sociocognitivo-
discursivo, em que “indivíduo e cultura se fundem em uma configuração semiótia, o
texto” (p.133).
O primeiro fator decisivo, apontado por Leite, para essa co-construção dos
sentidos e da referência é a cooperação dos participantes da enunciação. O autor
salienta que a noção de cooperação que adota não se equipara, de inteiro, ao Princípio
de Cooperação, de Grice, porque não contempla somente as comunicações que chegam
a um consenso. O princípio de cooperação não seria, para Leite, uma norma regendo as
relações de comunicação, mas, na esteira de Klinkenberg (2003, apud Leite, 2007),
seria uma tendência à relevância, a um ajuste entre os co-participantes no interior do
discurso. Reflita-se sobre o exemplo citado pelo autor (LEITE, 2007, p. 126):

( ) Labareda$
O coronel Duarte Frota esteve em Brasília, no último fim de semana,
representando os bombeiros do Ceará, em reunião com a Secretaria Nacional de
Segurança Pública. No encontro, o secretário NSP, Luiz Fernando Corrêa, após
um diagnóstico nacional das unidades militares, deu um bom presente. Liberou
mais de um milhão de reais para cada Estado e também para o Distrito Federal,
inserindo a corporação no Plano Nacional de Segurança Pública (Jornal Diário do
Nordeste, 19/01/2005).

Leite argumenta que o leitor se depara com a violação do código da língua já no


título do texto, quando um cifrão substitui o grafema [s], que representaria o morfema
de plural. O autor comenta que, diante dessa situação, o leitor “poderia julgar o título
como um erro ortográfico ou de digitação e desistir da interpretação (...). No entanto,
por intermédio da crença compartilhada, o leitor mantém a leitura do texto, com o
intuito de interpretá-lo”. O leitor, que estamos tratando como co-enunciador, age, assim,
de forma cooperativa, aventando outras possibilidades que justificariam essa escolha do
enunciador. É essa tentativa de ressignificar – e acrescentaríamos: de reconstruir os
objetos de discurso – que torna o leitor/ouvinte cooperativo e que também nos autoriza
a chamá-lo de co-enunciador.
O princípio de cooperação, assim redefinido, sustentaria o segundo dispositivo
proposto por Leite para a construção da interpretação, ou da coerência: a abdução.
Somente sendo cooperativo, o co-enunciador pode fazer abduções, a fim de “evitar
interpretações aberrantes, que extrapolem os limites da crença compartilhada com o
texto” (p. 129). A abdução constitui um método inferencial, probabilístico, que começa
com um momento heurístico de descoberta de hipóteses, de tentativas a partir de
intuições, de erros e acertos, que não obedecem a fórmulas e que permitem a
criatividade.
No texto acima, segundo Leite, a enciclopédia do leitor registra a associação entre
labareda$ e bombeiros dentro de uma mesma configuração de sentido, ou seja, de
domínio conceitual. Diríamos ainda: o conhecimento compartilhado dos participantes
também assegura a relação anafórica indireta entre o referente de bombeiros e seu
antecedente labareda$. Mas isso ainda é pouco para justificar o emprego do cifrão, e o
co-enunciador precisa, então, seguir outras pistas textuais para construir, por tentativas,
erros e acertos, uma interpretação adequada dos sentidos e da referência. O novo sentido
e o novo objeto de discurso recategorizando labaredas só se reconfiguram quando o co-
enunciador relaciona o cifrão de labareda$ à afirmação de que o Secretário Nacional de
Segurança Pública liberou mais de um milhão de reais para cada Estado e também para
o Distrito Federal. Do contrário, o texto seria lido em uma única isotopia.
Após essa fase exploratória, há, segundo Parret (1997), um momento icônico, de
tentativa de integração do novo à configuração textual, quando o interlocutor procura
normalizar sua interpretação.
Admitindo que nem os significados nem a referência se encontram previamente
estabelecidos, Leite argumenta que, na construção da interpretação, abre-se uma rede de
caminhos com semelhanças, homologias e traduções, todos dependentes dos desejos,
das crenças e dos saberes dos participantes do ato enunciativo. O terceiro dispositivo de
interpretação eleito por Leite é a seleção de propriedades semânticas. Por propriedades
semânticas (conceituais), não se deve entender, nesta perspectiva, os traços lexicais em
estado de dicionário, mas, sim, um sistema de pistas, de instruções que o texto fornece,
focalizando umas e desativando outras temporariamente, num processo pragmático-
discursivo contínuo.
Como explica o autor, “a significação lexical aparece apenas como uma
significação superficial, isolada, visto que somente a inserção em um contexto
discursivo é capaz de selecionar quais propriedades serão atualizadas no texto, dentre
outras virtualmente disponíveis” (p.158). Os sentidos e a referência são, assim,
negociados por sujeitos sociocognitivamente situados, que privilegiam, durante a
interação, determinadas propriedades conceituais em detrimento de outras (ou, nas
palavras do autor, “magnificam”, focalizam umas e “narcotizam”, desfocam outras),
avaliando-as e remodelando-as, reconfigurando-as, de acordo com suas práticas
socioculturais e discursivas.
A conseqüência imediata dessa seleção de traços de sentido e de referência é a
construção de cadeias isotópicas em todo processo de interpretação. Por isso, o quarto
dispositivo escolhido por Leite é justamente a isotopia, a redundância, a recorrência, a
reiteração de traços semânticos que, em conjunto, apontam ao co-enunciador um
direcionamento de “leitura”. O termo isotopia, na Lingüística, remonta à semântica
estrutural proposta por Greimas (1973), que definiu o processo como uma iteração de
semas (propriedades de significado) ao longo de uma cadeia sintagmática que
assegurariam a coesão textual. Mas, diferentemente do ponto de vista estruturalista, que
entendia a isotopia como um fenômeno advindo do próprio texto manifesto, na
semiótica do discurso, assumida por Leite, a isotopia é a redundância de um efeito de
sentido, que depende não somente da manifestação linear do texto, mas também, e
simultaneamente, da cooperação dos interlocutores, das abduções realizadas na
interação e da eleição negociada de traços de sentido e de referência.
Como ilustração, reproduzimos, abaixo, mais um exemplo analisado por Leite
(2008, p.181):

( ) Pôr-do-sol
O romance de Luana Piovani e Ricardinho Mansur — que começou cercado de
flashes há quase dois anos — terminou discretamente, sem alarde nem fotos, em
Paris. A decisão partiu do jogador de pólo, que foi até a França — onde a atriz
passa temporada de estudos — para finalizar a história. O motivo nenhum dos
dois comenta. De lá, Ricardinho seguiu para Aspen, nos Estados Unidos, para
esquiar com amigos. Já Luana preferiu ir até a Espanha... para dar aquela arejada
(ÉPOCA, 21/02/2005).

De acordo com Leite, quando o leitor se depara com o título, ele acessa, pelo
método abdutivo, uma espécie de imagem que o desloca para uma posição de quem
visualiza o pôr-do-sol: “Desse modo, na leitura do título, magnificam-se as propriedades
do universo conceitual de pôr-do-sol como, por exemplo, sol, horizonte, céu, redução
da luminosidade, término do dia, desaparecimento lento no horizonte, diminuição da
cor, dentre outras” (cf. p.181). Contudo, no decorrer do texto, a leitura (isotopia)
relacionada a pôr-do-sol é, aparentemente, quebrada, pois o texto aborda não a
paisagem de pôr-do-sol, mas, metaforicamente, o fim de um relacionamento amoroso de
Luana Piovani e Ricardinho Mansur.
Isso, a nosso ver, obriga o leitor a recategorizar, por meio da abdução, o referente
de pôr-do-sol como fim de um processo e, como diz o autor, “a redimensionar a
interpretação com o propósito de identificar uma isotopia na qual o título deve manter
alguma relação com o restante do texto” (p.181). Leia-se o restante da análise do autor:

Lidas, agora, sob uma isotopia metafórica, essas expressões magnificam


algumas propriedades do campo figural de pôr-do-sol – como, por
exemplo, redução da luminosidade, término do dia, desaparecimento lento
no horizonte e diminuição da cor. Vemos, por conseguinte, a semelhança
entre o final do dia (o pôr-do-sol) e o fim de um relacionamento amoroso.
Cumpre dizer, no entanto, que a metaforização não confere ao texto
somente a mera semelhança conceitual entre o pôr-do-sol e o fim de um
romance. Além disso, imprime implicitamente no texto opiniões e
julgamentos do leitor sobre um acontecimento do mundo das celebridades
do meio artístico. Daí ser possível atribuir valores discursivos ao começo
do relacionamento de duas celebridades do mundo televisivo – um
acontecimento social importante, valorizado pela mídia e coberto de
flashes – e o nascer do sol – cheio de brilho e luminosidade –, bem como
ao término dessa relação amorosa – sem destaque da mídia, feito com
discrição – e o “pôr-do-sol” – término do dia, redução da luminosidade e
da cor etc. O sentido revelado nesse processo reflete, assim, a
mobilização por parte do leitor de saberes socioculturais na interpretação,
alcançados a partir do encadeamento dos objetos de discurso, cujo papel é
enriquecer e investir de valores e estereótipos socioculturais as
propriedades conceituais desses objetos. (LEITE, 2008, p.181-2)

As reflexões de Leite nos levam à ponderação de que, se, por um lado, a


construção do referente não está vinculada ao uso de uma expressão referencial que o
represente no cotexto, por outro não se pode negligenciar o emprego da expressão
referencial, quando ele ocorre efetivamente. As expressões referenciais, sem dúvida
alguma, servem como trilhas às quais o co-enunciador se aferra para, em cooperação
com o enunciador, ir elaborando, por tentativas de inferências, numa abdução contínua,
seus caminhos interpretativos, suas cadeias isotópicas, das quais fazem parte,
necessariamente, a nosso ver, os objetos de discurso.
Por esse viés de análise, considerando a multiplicidade de
intercondicionamentos para a construção e recategorização dos referentes, os limites
entre o que a literatura toma por introdução referencial, anáfora direta, anáfora indireta e
dêixis se fluidificam em certos casos.
Costa (2007) demonstra como algumas ocorrências classificadas na literatura
como introduções referenciais poderiam perfeitamente ser tomadas como anáforas
indiretas, por exemplo, já que muitos condicionamentos contextuais entram em jogo na
criação do referente. A autora discute como a expressão referencial grifada na piada
abaixo pode ser considerada, como tem sido comumente, uma introdução referencial,
sob a justificativa de que “a entidade foi mencionada pela primeira vez no texto”:

( ) Joãozinho
A professora de matemática pergunta ao Joãozinho:
- Joãozinho, tem três passarinhos no galho de uma árvore. Você pega sua
espingardinha e mata um. Quantos ficam no galho?
- Nenhum, professora - responde ele.
- Como, Joãozinho? Pense bem...Você tem 3 passarinhos, mata um. Quantos
sobram? - Nenhum, professora. Quando eu acertar o primeiro, os outros dois saem
voando e não sobra nenhum no galho.
- Bem, Joãozinho, a resposta não foi correta, mas eu gosto muito do seu jeito de
pensar.
Assim, diz o Joãozinho:
- Professora, eu também tenho uma perguntinha. Ali no banco do jardim estão
sentadas três moças. Uma está comendo um sorvete, a outra está chupando um sorvete e
a outra está mordendo um sorvete. Qual delas é casada? A professora, muito
constrangida e vermelha, pensa um pouco e responde:
- Bem, acho que é a que está chupando o sorvete.
E o Joãozinho:
- Errado, professora, é a que está com aliança no dedo, mas eu gosto muito da sua
maneira de pensar... (piada veiculada pela internet)
Costa argumenta que, sabendo o leitor que se trata do gênero piada, e de piada de
Joãozinho, como bem explicita o título, logo se cria na mente dos interlocutores “a
imagem do menino levado, safado, inteligente, que tem sempre uma resposta afiada
para tudo. A cena que se desenha, a partir desse título, pressupõe as expectativas do
leitor quanto ao desenrolar da piada” (p.163). Em vista disso, nada mais natural que o
enunciador inicie a narrativa com a expressão definida, apresentada como dada, “a
professora de matemática”, sinalizando para o leitor que o objeto de discurso lhe é
conhecido, assim como a cena prototípica do diálogo entre Joãozinho e a professora.
Caberia, pois, falar de introdução referencial neste caso, uma vez que o referente, na
verdade, já começou a ser instituído a partir de outros caminhos, como o gênero
discursivo em que se enquadra o texto, a pista fundamental do título e a cena de sala de
aula, própria das piadas de Joãozinho? Em que momento o objeto de discurso foi de fato
introduzido? Impossível precisar, e desnecessário perscrutar.
Por outro, há de se convir que alguns objetos de discurso são de fato introduzidos
por expressões referenciais, como é o caso de “três passarinhos”, no exemplo em tela. A
forma como esse referente é apresentado - meio indefinida, porque sem uma marca de
definitude, como um artigo definido, por exemplo: os três passarinhos - confirma para o
leitor o estatuto de novo que ele assume no texto e sugere que ele deve apelar para seus
conhecimentos enciclopédicos primeiro para identificar a entidade referida.
O fato é que, de modo geral, existem indícios no contexto como um todo para o
reconhecimento do referente como algo relacionado a outras fontes; é essa ligação entre
as fontes (também chamadas âncoras, ou gatilhos, ou antecedentes) e os referentes
mencionados pela primeira vez que funda os processos anafóricos; no decorrer do texto,
as anáforas vão também se apoiando em outras e em trilhas diversificadas, compondo a
tessitura textual. Toda a continuidade e a progressão referencial se organizam dessa
maneira, e não poderia ser de outra forma, pelo bem da articulação das informações na
construção da coerência.
O modo como o enunciador nomeia os objetos de discurso também não depende
exclusivamente do fato de eles estarem sendo mencionados no cotexto pela primeira
vez, mas do grau de saliência que eles possam ter a cada momento da enunciação, além
dos propósitos argumentativos pretendidos, do contexto sócio-histórico envolvido, das
restrições da situação comunicativa imediata, entre outras determinações da ordem do
inconsciente, como veremos adiante. Se olharmos para as estratégias de referenciação
mais como um processamento cognitivo, poderemos dizer, com Costa (2007, p.159), na
esteira de Ariel (2001), que “qualquer dado nos diversos níveis do universo
textual/discursivo pode atuar em conjunto com outros para condicionar o falante a
selecionar, entre as inúmeras formas possíveis, uma determinada expressão em lugar de
outras”. E, sob tal pressuposto, os limites que isolam os processos anafóricos dos
processos dêiticos, assim como os liames entre as introduções referenciais e as anáforas
indiretas, por exemplo, nem sempre podem ficar bem definidos. Por essa perspectiva,
separar precisamente o que é textual do que é extratextual seria até contraditório. Por
outro lado, distinguir anáfora direta de anáfora indireta, pela simples alegação de que a
direta exige menos capacidade inferencial, seria uma atitude reducionista.
Ponderemos, por exemplo, sobre a diferença entre introdução referencial e anáfora
indireta. De acordo com Koch (2004, p.253), nas anáforas indiretas, um objeto de
discurso também é introduzido no cotexto - entenda-se: mencionado em primeira mão -,
mas “sob o modo do dado, em virtude de algum tipo de relação com elementos
presentes no cotexto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabelecida por
associação e/ou inferenciação”.
O primeiro aspecto a se notar, nessa definição, é que a introdução de referente, de
que fala Koch, no que tange às anáforas indiretas, não é a mesma que se descreve nas
chamadas introduções referenciais. A noção de introdução referencial tem sido sempre
vinculada à idéia de menção primeira no cotexto; já a concepção de anáfora indireta tem
sido descrita a partir de uma explicação de ordem cognitiva: ela se dá por uma
inferência ativada a partir de pelo menos uma âncora no cotexto.
Assim, no exemplo seguinte, a primeira expressão grifada (“numa galeria de
arte”) constitui uma introdução referencial, ao passo que “as pessoas”, “o quadro”, “a
tela” são instâncias de anáfora indireta, porque todos esses objetos de discurso foram
acionados quando se instaurou no discurso o esquema mental relacionado a uma galeria
de arte.

( ) “Imagine-se numa galeria de arte observando as pessoas olharem os


quadros. Dificilmente você verá alguém com a face colada na tela. Desapego é
simplesmente dar um passo para trás e observar. Mas, como isso não é ensinado por
nossos pais e professores, passamos por apertos quando ficamos muito perto da tela da
vida. Mestres nunca se aproximam demais das situações, mas também nunca viram as
costas para elas. Mestres nunca consomem as emoções e humores dos outros, mas
nunca negam sua validade." (crônica de auto-ajuda, de Mike George, divulgado na
internet).
Neste caso, a introdução do referente no universo do discurso criado pelo texto é
marcada prototipicamente pelo artigo indefinido uma (“uma galeria de arte”), o que
pode não acontecer em todas as ocorrências em que se explicita um objeto de discurso
no cotexto pela primeira vez. Como explica Hawkins (1977), de modo geral, mas não
sempre, quando se introduz um referente por meio da expressão indefinida, dá-se ao
interlocutor uma indicação de que um objeto deve ser buscado em sua bagagem de
memória; o uso subseqüente de uma expressão definida indica, então, para ele que deve
pinçar o objeto em seu estoque de memória. Assim, no texto acima, o referente da
expressão sublinhada poderia ser tipicamente retomado como “a galeria”, em seguida.
Mas as opções de introdução e de retomada de referentes são muito mais
diversificadas do que nesta situação prototípica. Pode ocorrer, por exemplo, que um
objeto já dado e já mencionado seja reapresentado, como mostra Cunha Lima (2006),
sob a forma do novo, ou seja, sob a forma de uma descrição indefinida (uma expressão
com artigo indefinido). No exemplo abaixo, o referente é introduzido no próprio título
não por uma expressão indefinida, e é retomado por uma anáfora recategorizadora no
início do texto, mas não explicitado por uma expressão definida, como seria de se
esperar:

( ) A orquestra odiosa
(Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis)

É uma orquestra desarmônica por excelência. O maestro faz o possível para lançar
a discórdia entre os instrumentos, e extrai disso um belo efeito. A trompa e o fagote não
se cumprimentam, e ambos vivem de implicância com o oboé, que por sua vez trata o
clarinete com soberano desdém. A flauta doce desmente seu nome, recusando o diálogo
com o corne inglês. E os violinos planejam seqüestrar o contrabaixo. Trompas e
timbales têm ar feroz. O mais, nessa mesma linha de agressividade.
Como pode uma orquestra assim povoada de desavenças alcançar tamanho êxito
em suas audições? O público ouve-a em religioso silêncio. Sucedem-se as tournées
pelos Estados, e há convites do exterior, que ainda não puderam ser atendidos.
Devo afirmar, a bem da verdade, que a execução dos concertos é impecável, e
como cada instrumento deseja não apenas suplantar, como até expulsar os demais do
conjunto, há competição acirrada em torno de quem é capaz de tocar melhor. O rancor
conduz a resultados sublimes, que a crítica não sabe como explicar. A orquestra apura
cada vez mais suas ambições, e teme-se que no auge de seu esplendor ocorra um
assassinato nas cordas.

As demais expressões sublinhadas no texto se ligam, harmonicamente, ao


contexto de atuação de uma orquestra: o maestro, as audições, os concertos, além dos
instrumentos, homologados pela própria expressão “entre os instrumentos” e pela
citação detalhada de alguns deles, como trompa, fagote, flauta doce etc., todas
pertencentes ao mesmo campo conceitual, todas metonimicamente ligadas.
Cunha Lima (2006, p.76-7) analisa três circunstâncias que Schwarz identifica
como apresentando uma expressão nominal indefinida constituindo não uma introdução
referencial, mas uma retomada anafórica:

1. Quando a expressão tem valor partitivo:


(3.6) Um grupo de crianças alegres entrou na sala. Uma garotinha loira
veio em minha direção e entregou uma rosa. (Koch, 2002).
2. Quando a vagueza própria do indefinido é utilizada para criar um efeito
de suspense:
(3.7) O detetive fotografou o homem entrando em um motel com sua
amante.
No dia seguinte, mais um casamento se desfazia.
3. Quando a informação nova normalmente presente numa anáfora com
recategorização é mais fortemente focalizada que a seqüencialidade da
cadeia coesiva:
(3.8) A velha senhora desaba sobre a cadeira da cozinha. E quando sua
amiga chega, não encontra a avozinha, mas um montinho de
infelicidade, uma coisinha danificada e confusa. (Exemplo adaptado
de Swcharz, 2000 por Koch, 2002 – grifos nossos.)

Os três casos focalizados na citação acima, de fato, representam usos distintos do


artigo indefinido. Em “Um grupo de crianças alegres entrou na sala. Uma garotinha
loira veio em minha direção...”, a expressão anafórica correferencial retoma apenas uma
parte do antecedente “um grupo de crianças”, anteriormente estabelecido no cotexto.
Não se trata de uma transformação do referente, mas de uma retomada parcial de um
conjunto maior já introduzido no discurso.
Em “O detetive fotografou o homem entrando em um motel com sua amante. No
dia seguinte, mais um casamento se desfazia”, a relação é de anáfora indireta: o
referente relativo ao casamento desfeito, que não se expressa somente pela indefinitude
de “mais um casamento”, emerge da situação descrita em que um homem foi visto com
uma amante, o que, em nossa cultura, pode redundar em separação conjugal. O emprego
do indefinido não é atribuído, porém, somente a essa inferência da anáfora indireta, que
liga a infidelidade à separação, mas também a outra inferência: a de que este é mais um
caso, dentre muitos outros em nossa sociedade, de traição masculina que repercute em
divórcio. Com efeito, é a construção inteira, junto com nossos conhecimentos
compartilhados, e não apenas a expressão indefinida, que promove um efeito de
suspense, e isso é estilisticamente muito eficaz.
No que tange ao exemplo “A velha senhora desaba sobre a cadeira da cozinha. E,
quando sua amiga chega, não encontra a avozinha, mas um montinho de infelicidade,
uma coisinha danificada e confusa”, temos aqui um caso típico de anáfora
correferencial recategorizadora. Como desconhecemos o texto na íntegra, não podemos
afirmar se a expressão anafórica simplesmente confirma a recategorização que já vinha
sendo feita antes por outros indícios contextuais, ou se é a própria expressão que opera a
transformação do referente. O que importa é, no entanto, constatar que a construção
com um artigo indefinido e com a carga semântica avaliativa dos substantivos e
adjetivos é grandemente responsável pela recategorização da entidade refocalizada.
Cunha Lima observa que as situações caracterizadas acima se orientam ora por
critérios semânticos, como (1), ora por valores estilísticos, como (2), ora pelo
processamento cognitivo da informação, como (3). Consideramos, todavia, que todos
esses critérios atuam em conjunção em todos os casos e que não é possível precisar
onde começa e onde termina cada um desses aspectos.
Convém reter, neste momento, que nem o referente é introduzido no discurso
somente quando se manifesta explicitamente por uma expressão referencial, nem a
forma indefinida indica sempre a existência de uma introdução referencial.
A oposição entre anáfora (direta) correferencial e anáfora indireta também não se
fundamenta apenas pela consideração de uma maior capacidade inferencial requerida
pelas anáforas indiretas. Como diz Costa (2007), não existe um grau zero de inferência,
pois todos os atos referenciais envolvem algum nível de inferência, e mesmo as
anáforas correferenciais, na medida em que podem transformar o objeto de discurso,
não operam uma recuperação “direta”, sem apelo à memória compartilhada.
Ciulla e Silva (2008) também defende que as anáforas diretas, assim como as
indiretas, são igualmente configuradas como amálgamas cognitivos, na medida em que,
ao serem retomados, mesmo correferencialmente, os objetos de discurso vão sendo de
algum modo reapresentados, com pequenas, médias ou grandes alterações, a partir das
quais novas referências podem ser realizadas.
Por isso, como bem observa Ciulla e Silva, definir a anáfora correferencial como
aquela que retoma uma âncora pontual, um único antecedente no cotexto, é algo
facilmente questionável, pois, muitas vezes, há não apenas mais de uma âncora, como
também inúmeras outras pistas, que também concorrem para a construção da referência,
assim como acontece com as anáforas indiretas. Leia-se o exemplo da autora:
( ) “É como uma linha férrea desativada” – o médico lhe mostrava o raio X,
levantando a chapa contra a luz. Lá estava a coluna vertebral, na estrada
completa, com todos os seus ossinhos aparentemente em perfeito estado. Mas
agora não servia para mais nada, os membros paralisados (...)Agora observa
outra vez a chapa contra a luz. Uma linha férrea, sim. Sem ligações
nervosas, sem circuitos, o trenzinho parado não se sabe em que canto do
corpo, enferrujando. (...) O trem das onze chega logo. Sente um arrepio: a luz
do poste iluminou o rosto do homem, o mesmo que descia na estação, anos
atrás. Não podia imaginar que um dia estaria deitado na linha do trem, com o
menininho lhe ajeitando os membros (...) Afasta-se. Pensa em voltar rápido
para casa; a cadeira de rodas leve, ágil. Mas não resiste a um impulso: o de
ver os vagões correndo, correndo, atravessando a linha férrea e correndo,
correndo. (conto Linha Férrea - Tércia Montenegro,)

Ao longo da descrição, comenta Ciulla e Silva, a expressão anafórica


correferencial “linha férrea” se torna propositalmente ambígua e “pode tanto se referir à
coluna do velho, numa alusão macabra aos vagões atropelando o velho, como
simplesmente pode remeter ao trem percorrendo os trilhos. (...) De qualquer maneira,
não podemos descartar nem uma, nem outra interpretação” (cf. 2008, p. 52).
Com tais reflexões, podemos concluir, com a autora, que as anáforas diretas,
correferenciais, tanto quanto as indiretas, constituem núcleos, amálgamas cognitivos, a
partir dos quais é possível não só recuperar, como reformular e homologar novos
referentes ainda não explicitados no cotexto.
Além de poderem acrescentar um novo viés ao referente retomado, as anáforas
diretas (correferenciais) também podem recuperar o mesmo referente, mas sob um outro
ponto de vista, num espetacular jogo de vozes dentro do texto. A autora cita o exemplo
de um conto em que a entidade referida é claramente perspectivada pelo olhar do
personagem Belarmino:

( ) O ferro em brasa, que a própria mulher do filho trouxe da


trempe de tijolos na cozinha. O gemido, contorções do corpo. A
pele de fumo voltou a cobrir a ferida. Morreu três horas depois.
Longe os vizinhos. Légua e meia o mais próximo. Belarmino teve
de ir até lá (o cachorro enrolava-se no chão sob a tipóia do morto).
Trouxe outros seres em molambos e grunhidos. E a marcha fúnebre
– tipóia oscilante presa à estaca de sabiá – se fez em direção ao
distante arruado, onde havia a capela e o telheiro abatido do
mercado. No mais, a solidão da noite e dos seres. A viúva-menina,
sem lágrimas. Duro mundo, carente de umidades. Muitas lições de
renúncia. Tão trabalhados todos como a escarpa fendida e crestada
pelo tempo, por onde subiam bodes e cabras. (Moreira Campos, O
peregrino)
Ciulla e Silva (2008) demonstra como a voz, ou o ponto de vista, de Belarmino se
faz ouvir dentro da narrativa do conto, primeiro recategorizando a mulher enfocada
como “a própria mulher do filho”, quando ainda era vivo; depois, recategorizando-a
como “a viúva-menina”, quando ele passa a enxergá-la como não simplesmente como
uma viúva, mas como uma mulher disponível, a quem ele já começara a cobiçar. Não
apenas essas expressões, mas ainda a carga dêitica de “trouxe” fazem “com que o leitor
seja inserido na cena da narrativa, posicionando-se junto a Belarmino” (cf. p.38),
contribuindo, assim, para a recategorização. É, pois, a combinação das expressões
referenciais com outras pistas que “ajustam o foco do leitor”, o qual é levado a
compreender a alternância de pontos de vista, a polifonia, aqui essencial para completar
os sentidos do texto.
Outra classificação que se desestabiliza quando não se prioriza a realização da
expressão referencial é a das anáforas encapsuladoras, que, sempre definidas como
tendo a propriedade de resumir porções do cotexto, podem, na verdade, remeter a
informações não explicitadas, pondo, assim, em evidência aspectos cognitivo-
discursivos do fenômeno referencial.
Costa (2007) se pergunta que conteúdo é realmente “resumido” nas anáforas
encapsuladoras. A literatura sobre o assunto tem postulado, como mostramos na
abordagem que prioriza a menção, que os anafóricos encapsuladores resumem, por meio
de uma expressão, conteúdos proposicionais postos no cotexto. Mas o fato é que tais
anáforas encapsuladoras, com ou sem dêitico textual, remetem, em geral, a outras mais
informações não presentes no cotexto, incluindo-se aí pressupostos, subentendidos e
outros conteúdos presentes na memória discursiva dos participantes da enunciação.
Tomando como exemplos as mensagens trocadas numa lista de discussão, Costa
(2007) sugere a existência de uma espécie de “encapsulamento intertextual”, quando,
por exemplo, os participantes de uma lista usam como tópico de seu comentário um
argumento usado em um e-mail anterior::
( ) From: "A S" <as@terra.com.br
>
To: <CVL@yahoogroups.com
>Sent: Tuesday, May 18, 2004 11:01 AMSubject: [CVL] Re: o assunto das
cotas!!!!!!!!!!

Não se poderia dizê-lo melhor!


A. S.

Atente-se para o pronome “lo”, comumente considerado como anafórico


correferencial. Veja-se que, nesta ocorrência, a forma lo foge a esse padrão de uso, pois
encapsula um conjunto de informações veiculadas numa mensagem anterior, as quais,
portanto, não fazem parte do cotexto deste e-mail. Como podemos, então, classificá-lo
como uma anáfora indireta encapsuladora, se não há nada no cotexto do e-mail que
esteja sendo resumido?
Pode-se argumentar que o texto da mensagem anterior fica automaticamente
anexado quando se clica no link Responder e que, assim sendo, o cotexto seria
constituído pelo conjunto dessas mensagens. Mas essa alternativa geraria um problema
adicional: afinal, quais os limites de um texto? E quais os limites do gênero e-mail no
ambiente de uma lista de discussão? Uma descrição de processos referenciais presa a
explicitações no cotexto não consegue apresentar respostas satisfatórias a essas
indagações.
Ademais, sabemos ser perfeitamente possível reportar-nos a informações que já
foram ditas em outros textos conhecidos pelos interlocutores, como se as
encapsulássemos. Isso pode ocorrer não somente em e-mails de lista de discussão, mas
também em e-mails pessoais, em bate-papos e em recados na internet, bem como
também em outras situações corriqueiras, principalmente na modalidade falada, nas
conversações face-a-face, nos telefonemas, nos torpedos enviados por celulares etc.
Em vista dessas constatações, Costa corrobora a asserção de Ariel de que mais
importante do que o lugar de onde provêm as informações do referente é quão saliente e
acessível esse referente se apresenta a cada momento da enunciação. O modo como o
enunciador nomeia os objetos de discurso está diretamente relacionado a esse ajuste ao
grau de saliência das entidades em cada etapa do texto, pelas suposições que faz quanto
à maneira como essa nomeação será recebida.
Segundo nos parece, o nível de saliência discursiva dos referentes,
muito embora haja outras motivações, revela-se fundamental para a
escolha das formas e, até mesmo, para o não-uso delas (cf. Apothéloz,
2001). Há uma integração intrincada entre as informações (ou entre as
impressões/percepções) que nos leva a ajustar as palavras a cada uso
particular que delas fazemos. Podemos dizer, lembrando a metáfora de
Maturana (2001), que o discurso funciona como uma rede de relações e
que, dentro dessa rede, as palavras são como nós. (COSTA, 2007, p. 167)

Outro processo referencial cuja caracterização se desestabiliza quando não


atrelado a menções no cotexto é o das anáforas recategorizadoras. Não vamos, nesta
perspectiva de análise, conceber este fenômeno tal como ele foi pioneiramente descrito
por Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995): como uma estratégia de designação, um
fenômeno descrito com um enfoque mais lexical. Por meio da recategorização lexical,
os enunciadores mobilizam diferentes formas de nomear os referentes de acordo com
seus propósitos comunicativos a cada momento da enunciação.

Corroboramos o pensamento de Lima (2008) quando comenta que a descrição de


Apothéloz e Reichler-Béguelin (2005) não se atém a aspectos cognitivos do fenômeno,
que precisam, necessariamente, ser considerados se tomarmos a recategorização como
um processo de construção sociocognitivo-discursiva. Como afirma a autora:
Pelo nosso entendimento, esse processo é muito mais amplo do que o
quadro que se apresenta na proposta de Apothéloz e Reichler-Béguelin
(1995). O próprio termo “recategorização lexical”, em certa maneira, já é
reducionista, no sentido de que aponta só para a dimensão lingüística do
processo. Nesses termos, pela concepção dos autores, seria impróprio,
então, pensar em ocorrências de recategorizações que se ancorassem em
referentes construídos fora da superfície textual. (...) Assim, pela sua
natureza cognitivo-discursiva, entendemos que o fenômeno da
recategorização precisa ser redimensionado. (...) (LIMA, 2008, p.18)

Desse modo, para Lima, assim como para nós, os limites do processo de
recategorização vão além da superfície textual e, portanto, não se prendem à menção de
uma âncora no cotexto. Conseqüentemente, o processo também não se vincula às
anáforas correferenciais: pode se dar com as anáforas indiretas, com as encapsuladoras e
até pode estar presente no que se tem concebido como introdução referencial pela
menção primeira da expressão no cotexto.
Embora a autora se ocupe primordialmente da estreita relação entre os processos
metafórico e metonímico nas recategorizações, alguns pressupostos por ela assumidos
convergem para a perspectiva que defendemos: a recategorização é um processo
cognitivo-referencial que pode se somar a qualquer fenômeno anafórico ou dêitico.
Demonstrando que freqüentemente a metáfora e a metonímia estão imbricadas
quando ocorrem nas recategorizações, Lima argumenta que os aspectos cognitivos
necessariamente são evocados na construção desse fenômeno. Reproduzimos, a seguir,
um dos exemplos estudados pela autora:

( ) E o velhote fica noivo de uma menina de dezessete anos. O casamento dos


dois vira o assunto do momento no bairro. Um parente próximo tenta dissuadi-
lo da idéia:
- Cai na real, Olegário! Não vai demorar um mês e essa garota vai começar a te
chifrar! Por que não arruma uma mulher mais madura, mais experiente, que
cuide bem de você?
- Nada disso, meu caro! Eu prefiro dividir um filé com os amigos do que comer
pelanca sozinho! (SARRUMOR, 1999, p. 138)

Lima identifica duas recategorizações na piada acima: a de garota sendo tomada


metaforicamente como filé e a de mulher madura sendo vista, também metaforicamente,
como pelanca. Mas, ao mesmo tempo, alega a autora, há ainda uma relação metonímica
de parte pelo todo, pela qual duas partes da peça de carne são destacadas, de acordo
com nossa cultura: o filé (de qualidade superior) e a pelanca (de pior qualidade). Leia-
se, sobre isso, o comentário da autora:
Essa relação metonímica, sem dúvida, integra as duas ocorrências do
processo de recategorização que servem de gatilho para o humor na piada.
É interessante perceber que a simples associação do corpo da mulher com
a carne bovina, nesse caso, não surtiria efeito cômico tão imediato como o
desencadeado pelo papel da metonímia na relação PARTE PELO TODO,
daí a necessidade de interação entre os dois processos. Ademais, não
podemos deixar de enfatizar a existência de um modelo cognitivo de
sexualidade (...). Nesse modelo machista, o corpo da mulher é associado à
comida, pronto para ser “devorado” pelo homem. O filé é a carne mais
macia e saborosa, por isso mesmo associada ao frescor da juventude da
mulher, enquanto que a pelanca, carne de pior qualidade, magra e
engelhada, é associada à mulher madura, menos valorizada em termos de
atrativos sexuais. Assim, dizer apenas que essas recategorizações são
construídas com o propósito de gerar a comicidade do texto parece muito
pouco. Não estamos negando ou diminuindo a relevância desse propósito
comunicativo, mas, de fato, ele resulta da soma dos elementos
lingüísticos e cognitivos que acabamos de descrever, embora de forma
sumária. (LIMA, 2008, p.25)

Chamamos a atenção para a indispensável consideração dos elementos de


natureza cognitiva e sociocultural para a interpretação dessas associações.
A integração entre as associações metafórica e metonímica foi também descrita,
mas dentro de uma perspectiva estilística, por Jaguaribe (2004). Dentre os exemplos
analisados pela autora, transcrevemos o poema Telegrama, de Carlos Drummond de
Andrade:
( ) TELEGRAMA

Emoção na cidade.
Chegou telegrama para Chico Brito.
Que notícia ruim,
que morte ou pesadelo
avança para Chico Brito no papel dobrado?
Nunca ninguém recebe telegrama
que não seja de má sorte. Para isso
foi inventado.
Lá vem o estafeta com rosto de Parca
trazendo na mão a dor de Chico Brito.
Não sopra a ninguém.
Compete a Chico
descolar as dobras
de seu infortúnio.
Telegrama telegrama telegrama
Em frente à casa de Chico o voejar múrmure
de negras hipóteses confabuladas.
O estafeta bate à porta.
Aparece Chico, varado de sofrimento prévio.
Não lê imediatamente.
Carece de um copo d’água
e de uma cadeira.
Pálido, crava os olhos
nas letras mortais.

Queira aceitar efusivos cumprimentos passagem data natalícia espero


merecer valioso apoio distinto correligionário minha reeleição
deputado federal quinto distrito cordial abraço Atanágoras Falcão.

Jaguaribe (2004) analisa como o referente de telegrama é retomado por meio de


anáforas indiretas que também recategorizam: “o papel dobrado”, “a dor de Chico
Brito”, “as dobras de seu infortúnio” e “as letras mortais”. As relações anafóricas
indiretas se configuram todas por associações ou puramente metonímicas, como em “o
papel dobrado”, em que o conteúdo do telegrama é representado pelo continente, numa
ligação entre suporte e gênero, ou numa mescla de metáfora e metonímia, como nas
outras três expressões. Retomar o referente telegrama como “a dor de Chico Brito” é
construir também uma representação metafórica do teor do telegrama, recuperado
metonimicamente como o suporte material do telegrama “trazido na mão”.
De igual maneira, a mistura de metáfora e de metonímia se faz ver em “as dobras
de seu infortúnio” e “as letras mortais”. É nas duas últimas recategorizações, as dobras
de seu infortúnio e (n)as letras mortais, que a autora admite uma mescla dos processos
metafórico e metonímico. Segundo Jaguaribe (2004, p. 8), “a expressão as dobras
mantém com papel uma relação entre a coisa e o seu formato; por outro lado, a reunião,
em um mesmo sintagma, de um elemento concreto (dobras) e um elemento abstrato
(infortúnio), faz com que se transfiram para o elemento abstrato semas do elemento
concreto, o que configura uma relação metafórica”. Assim também na metonímia “as
letras mortais”, pode-se tanto ver a focalização da parte pelo todo, na relação entre
letras e palavras/texto, quanto a enfatização de um elemento concreto, o significante das
letras, por meio de um abstrato, o significado do conteúdo ali expresso. Por outro lado,
observa a autora, verificamos aí também uma metáfora personificadora, uma
prosopopéia, em que “temos a transferência de uma faculdade humana (ou animal, num
sentido mais amplo) – a faculdade de matar – a uma entidade não humana, no caso,
letras. Atribui-se, assim, a uma entidade inanimada uma faculdade privativa dos seres
animados, o que intensifica a sensação de desastre iminente e irreversível”
(JAGUARIBE, 2004, p. 8-9).
A recategorização pode ser abordada, como vemos, não apenas sob o viés do
processamento cognitivo de como os conceitos são construídos na mente humana, mas
também sob o ponto de vista discursivo, ou para salientar traços de expressividade nos
arranjos estilísticos de um texto, ou para ressaltar a importância da transformação dos
referentes no desenvolvimento argumentativo do discurso.
Uma nova perspectiva de análise do fenômeno da recategorização tem sido
proposta por Brito (2008), mas não com a finalidade de descrever o papel
argumentativo das expressões recategorizadoras selecionadas ao nível da consciência.
Situando sua pesquisa na interface entre a Lingüística do Texto e a Psicanálise
lacaniana, a autora propõe que a recategorização possa também ser analisada não apenas
pelas funções argumentativas conscientemente ativadas pelo enunciador, mas que
também possa ser vista pelo que se expressa inconscientemente.
Segundo Brito (2008), se a seleção das formas de dizer atende, conscientemente, a
propósitos argumentativos do enunciador, por outro lado, ela pode revelar também
desejos do inconsciente do sujeito. Numa sessão de análise, durante o processo de
interpretação psicanalítica, explica a autora, o que se verifica é, na verdade, uma
transformação de sentidos e de referências, uma ressignificação e uma recategorização
daquilo que os significantes das expressões dizem à revelia da vontade do enunciador:
“na verdade, o discurso carrega com ele o peso do outro de nós mesmos, aquele que nós
ignoramos ou recusamos” (BRITO, 2008, p.57).
Brito chama a esse fenômeno da interpretação psicanalítica de recategorização
desejante, acrescentando que não se trata apenas, como já dissera Settineri (2001), de
uma ressignificação a posteriori, mas também de uma recategorização de referências a
partir das intervenções do psicanalista. Afinal, que faz o psicanalista senão provocar o
surgimento de um sentido novo, ou de vários, além do manifesto, que se apresentam em
um sonho, um ato falho, um lapso, ou, como sugere a autora, em uma parte qualquer do
discurso?
Este é um veio de pesquisa muito profícuo, que pode dar importantes
contribuições não somente para a Lingüística, como também para a Psicanálise. Mas
não há espaço nesta obra para alongarmos este assunto.
Encerraremos as reflexões que aqui deixamos com a sugestão de algumas
atividades de referenciação que podem auxiliar os professores de Língua Portuguesa e
de Lingüística nos diferentes graus de ensino.
PARTE IV – O que se poderia levar ao ensino

Inúmeros estudos em Lingüística do Texto, no Brasil, a partir dos trabalhos de


Koch e de Marcuschi, têm se voltado para a relevância do modo apropriado e eficaz de
designar os referentes como uma estratégia de persuasão. Este veio de pesquisa pode
contribuir bastante para a formação de professores de língua portuguesa que lidam com
o ensino de compreensão e produção de textos.
Nesta seção final da presente obra, apresentaremos algumas propostas de
abordagem dos fenômenos referenciais que podem ter aplicação direta ao ensino de
texto/discurso. As atividades que são sugeridas e comentadas resultaram de dissertações
já defendidas e publicadas pelo grupo de pesquisa Protexto, sediado na Universidade
Federal do Ceará.
Especificamente sobre as funções argumentativas de processos referenciais,
destacamos o estudo de Matos (2005), que, fundamentada, sobretudo, em Koch (2004),
propôs algumas funções discursivas das anáforas correferenciais recategorizadoras; e o
trabalho de Vasconcelos de Sá (2007), que estendeu as reflexões de Matos (2004) para a
análise das funções das anáforas encapsuladoras. Cremos que explorar, em sala de aula,
os papéis que os processos de referenciação desempenham na construção dos textos e
dos discursos é muito importante para o desenvolvimento das habilidades de leitura e de
produção textual, razão por que as atividades que estamos propondo se direcionam, ao
fim e ao cabo, para a melhoria no desempenho da (re)construção da coerência.
Matos (2004) distingue uma função recategorizadora avaliativa de outras que,
embora também sejam argumentativas, não exibem na própria expressão referencial um
indicador de avaliação. Admitimos que todo processo de referenciação exerce uma
função argumentativa, que, dentro do contexto em que é empregada, também tem
caráter avaliativo. Mas estamos nos atendo, agora, ao uso de certas expressões
referenciais que contêm algum elemento – um adjetivo, um substantivo, um pronome,
um advérbio – que, em conjunto com outras indicações contextuais, orientam o
direcionamento argumentativo dado pelo enunciador. Como explica a autora:
Semelhante à “argumentação” descrita por Apothéloz e Reichler-
Béguelin (1995), a função avaliativa representa o tipo de recategorização
que imprime valores axiológicos ao objeto discursivo. Em certa medida,
também associamos esta função ao que Koch (2004) denominou de
“orientação argumentativa”. Já a função tida como não-avaliativa não
apresenta tons valorativos. (MATOS, 2004, p.144).
Exemplos de expressões anafóricas recategorizadoras de caráter avaliativo podem
ser os seguintes, sublinhados abaixo:
( ) Com 41 anos de clínica, o médico psiquiatra Flávio Gikovate acompanhou os
fatos mais marcantes que mudaram a sexualidade no Brasil e no mundo. Por meio de
mais de 8.000 pessoas atendidas, assistiu ao impacto da chegada da pílula
anticoncepcional na década de 60 e a constituição das famílias contemporâneas, que
agregam pessoas vindas de casamentos do passado. Suas reflexões sobre o amor ao
longo de esse tempo foram condensadas no seu 26º livro, Uma História de Amor... com
Final Feliz. (...).
Veja - O senhor diria para a maioria das pessoas que o casamento pode não ser
uma boa decisão na vida?
Gikovate - Sim. As pessoas que estão casadas e são felizes são uma minoria. Com
base nos atendimentos que faço e nas pessoas que conheço, não passam de 5%. A
imensa maioria é a dos mal casados. São indivíduos que se envolveram em uma trama
nada evolutiva e pouco saudável. Vivem relacionamentos possessivos em que não há
confiança recíproca nem sinceridade. Por algum tempo depois do casamento,
consideram-se felizes e bem casados porque ganham filhos e se estabelecem
profissionalmente. Porém, lá entre sete e dez anos de casamento, eles terão de se
deparar com a realidade e tomar uma decisão drástica, que normalmente é a separação.
Veja - Ficar sozinho é melhor, então?
Gikovate - Há muitos solteiros felizes. Levam uma vida serena e sem conflitos.
Quando sentem uma sensação de desamparo, aquele "vazio no estômago" por estarem
sozinhos, resolvem a questão sem ajuda. Mantêm-se ocupados, cultivam bons amigos,
lêem um bom livro, vão ao cinema. Com um pouco de paciência e treino, driblam a
solidão e se dedicam às tarefas que mais gostam. Os solteiros que não estão bem são
geralmente os que ainda sonham com um amor romântico. Ainda possuem a idéia de
que uma pessoa precisa de outra para se completar. Pensam, como Vinicius de Moraes,
que "é impossível ser feliz sozinho". Isso caducou. Daí, vivem tristes e deprimidos.
Veja - Por que os casamentos acabam não dando certo?
Gikovate - Quase todos os casamentos hoje são assim: um é mais extrovertido,
estourado, de gênio forte. É vaidoso e precisa sempre de elogios. O outro é mais
discreto, mais manso, mais tolerante. Faz tudo para agradar o primeiro. Todo mundo
conhece pelo menos meia-dúzia de casais assim, entre um egoísta e um generoso. O
primeiro reclama muito e, assim, recebe muito mais do que dá. O segundo tem baixa
auto-estima e está sempre disposto a servir o outro. Muitos homens egoístas fazem
questão que a mulher generosa esteja do lado dele enquanto ele assiste na televisão os
seus programas preferidos. Mulheres egoístas não aceitam que seus esposos joguem
futebol. Consideram isso uma traição. De um jeito ou de outro, o generoso sempre
precisa fazer concessões para agradar o egoísta, ou não brigar com ele. Em nome do
amor, deixam sua individualidade em segundo plano. E a felicidade vai junto. O
casamento, então, começa a desmoronar. Para os meus pacientes, eu sempre digo: se
você tiver de escolher entre amor e individualidade, opte pelo segundo.
Veja - Viver sozinho não seria uma postura muito individualista?
Gikovate - Não há nada de errado em ser individualista. Muitos dos autores
contemporâneos têm uma postura crítica em relação a isso. Confundem individualismo
com egoísmo ou descaso pelos outros. São conceitos diferentes. Outros dizem que o
individualismo é liberal e até mesmo de direita. Eu não penso assim. O individualismo
corresponde a um crescimento emocional. Quando a pessoa se reconhece como uma
unidade, e não como uma metade desamparada, consegue estabelecer relações afetivas
de boa qualidade. (entrevista ????

Observe-se como o adjetivo grifado na anáfora encapsuladora “os fatos mais


marcantes que mudaram a sexualidade no Brasil e no mundo”, intensificado pelo
advérbio “mais, é fundamental para recategorizar o referente que nasce do período
seguinte: “Por meio de mais de 8.000 pessoas atendidas, assistiu ao impacto da chegada
da pílula anticoncepcional na década de 60 e a constituição das famílias
contemporâneas, que agregam pessoas vindas de casamentos do passado”. Por meio
desse recurso, que antecipa a transformação do referente, o entrevistador já começa a
apresentar o entrevistado como alguém que tem autoridade suficiente para sustentar o
posicionamento, ousado, sobre o individualismo nos relacionamentos entre casais.
Muitos outros indícios, fora as expressões referenciais recategorizadoras, contribuem,
obviamente, para as recategorizações em geral que se operam cognitivamente, com a
co-participação do enunciador e do co-enunciador.
Destaque-se, por exemplo, os adjetivos marcados em “relacionamentos
possessivos” e em “uma decisão drástica”, que definem exatamente o posicionamento
do enunciador frente ao que é dito, além de homologarem a transformação de cada
referente enfocado no texto. Por vezes, o próprio substantivo já comporta a carga
avaliativa, como em “aquele ‘vazio no estômago’”, recategorizando a sensação de
desamparo de que fala o entrevistado. Outras vezes, um pronome pode encapsular toda
a transformação que vem sendo descrita anteriormente e que será ainda mais reforçada
em seguida, como ocorre em: “meia-dúzia de casais assim, entre um egoísta e um
generoso”. Identificar tais elementos e explorá-los em sala de aula é condição
fundamental para levar o aluno a chegar ao cerne das questões tratadas em cada texto.
À função avaliativa, pode-se sobrepor a de glosa e ainda a estético-conotativa,
como descreve Matos (2004). Uma expressão referencial cumpre a função de glosa
quando adiciona ao texto uma explicação, um esclarecimento, um comentário. Bebendo
na mesma fonte de Koch (2004), Matos caracteriza três tipos de glosa: por definição,
por correção ou por especificação. Muitas delas se verificam em estruturas apositivas,
que constituem um contexto bastante favorável, mas não o único, para redefinições,
retificações e detalhamentos, como no seguinte exemplo:
( ) Qualquer droga fitoterápica, isto é, aquela manipulada da planta de origem
do medicamento desejado, com finalidade terapêutica e dentro dos padrões
farmacotécnicos internacionais, deverá seguir a seguinte norma:
- Seleção do material vegetal, raízes, cascas, folhas ou sementes.
- Limpeza e avaliação física do material vegetal colhido.
- Controle qualitativo e quantitativo da parte da planta a ser utilizada (...) (livro
Maconha – a droga polêmica, de Josias Cavalcante)

Algumas vezes, a glosa vem representada por um termo mais geral – dizemos: por
um hiperônimo -, que, mesmo sem um marcador do tipo “isto é”, define o referente
introduzido, como acontece com o exemplo mencionado por Matos (2004, p. 82):

( ) “O novo aliado dos cientistas para deter a leishmaniose visceral tem menos de
um milímetro de comprimento, mas é capaz de matar mosquitos que transmitem a
doença antes que eles se reproduzam.”

Mesmo que o leitor não soubesse que a leishmaniose visceral era uma doença, o
que, neste caso, seria pouco provável, dadas as inúmeras outras indicações que o texto
fornece, a expressão recategorizadora confirmaria essa informação, de forma precisa.
As tentativas de ajustar a forma de designação ao que se pretende caracterizar ocorrem
em diversos gêneros, mas são muito freqüentes em gêneros acadêmicos, como artigos
científicos, em verbetes de enciclopédia, em reportagens, em gêneros que lidam com
discurso didático, dentre outros. A relação estreita entre gêneros do discurso e processos
de referenciação ainda tem muito a dizer a pesquisadores do texto e do discurso, e a
professores de língua portuguesa. Atentemos para o trecho abaixo:

( ) Imaginemos que um usuário brasileiro qualquer se sinta aborrecido – para


não dizer ofendido – todas as vezes em que acessa a internet e se depara com práticas de
escrita digital que divergem da norma padrão da língua materna, a exemplo de registros
freqüentes de abreviações – você por vc, teclar/ tc, beleza/ blz –, banimento da
acentuação gráfica, repetição de vogais e modificações do registro gráfico padrão – oi/
oiêêêêêêêêê, aqui/ aki, não/ naum. (...)
Chamado de internetês, essa forma grafolingüística que se difundiu em gêneros
digitais, como chats, blogs e redes sociais, tem suscitado polêmica entre partidários e
avessos. (artigo acadêmico – Fabiana Komesu)

Valendo-se da anáfora correferencial recategorizadora grifada acima, a autora do


texto busca caracterizar o internetês de um modo que convirja para o ponto de vista a
ser sustentado no artigo. O internetês nem se configura como modalidade escrita, pelas
inúmeras marcas de oralidade ali encontradas, nem representa, evidentemente, a
modalidade falada, por isso a enunciadora ensaia uma melhor estrutura para defini-lo,
chamando-o de “forma grafolingüística”. Essas estratégias são recorrentes também em
situações enunciativas em que se deseja acrescentar um comentário esclarecedor para
um auditório que se supõe desconhecer certas informações a respeito do referente
enfocado, como se vê no texto abaixo:

( ) 21/06/2008 - 14h01
Justice empolga platéia do Sónar como Daft Punk genérico
ANTONIO FARINACI
Colaboração para o UOL, em Barcelona

Uma das atrações mais aguardadas da programação noturna de sexta-feira (20), no


Sónar, a dupla francesa Justice empolgou uma platéia de cerca de 6.000 pessoas
com um show com 60 minutos cravados, cheio de efeitos apoteóticos de luz e
som.
Os produtores franceses apresentaram músicas de seu único disco, de 2007,
conhecido como "Cross" (que não tem nome grafado na capa, apenas a imagem de
uma cruz), mas não deixaram de fora o estrondoso sucesso "Never Be Alone", de
2004, responsável pela fama do duo. (...) (Uol Música)

Como o texto se enquadra no gênero notícia, há um nítido esforço para fornecer


ao leitor as informações básicas sobre a entidade destacada desde o título: a dupla
Justice. O enunciador vê a necessidade de apresentar dados sobre o show do duo e de,
sutilmente, cientificar o leitor de que se trata de uma dupla francesa. A função
recategorizadora de glosa é, portanto, essencial para atingir essa meta.
Outra função discursiva das recategorizações, redimensionada por Matos (2004),
é aquela que Apothéloz e Reichler-Béguelin denominaram de estético-conotativa, que é
empregada quando o enunciador tenciona atribuir matizes conotativos ao referente, o
que pode redundar num arranjo estilístico eficaz, como no poema seguinte:

( ) Quem ama inventa

Quem ama inventa as coisas a que ama...


Talvez chegaste quando eu te sonhava.
Então de súbito acendeu-se a chama!
Era a brasa dormida que acordava...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreições...
Um ritmo divino? Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente,
Ou sozinhos, num ritmo tristonho...
Ó! meu pobre, meu grande amor distante,
Nem sabes tu o bem que faz à gente
Haver sonhado... e ter vivido o sonho!

(poema de Mário Quintana, do livro A cor do invisível)

O amor é, assim, recategorizado primeiro como “a chama”, sem nem mesmo ser
nomeado, ou “introduzido por menção” no texto. Sucessivas transformações, como “a
brasa dormida que acordava”, “um revôo sobre a ruinaria”, todas com acréscimos
conotativos, são realizadas ao longo do poema, mesmo quando o poeta não as nomeia
diretamente. Mergulhar, pacientemente, junto com os alunos, nesse mar de riquezas é
uma oportunidade a que o professor de língua portuguesa não deveria se furtar.

Exercícios sobre funções discursivas

Tomando por base o trabalho de Matos (2004), alguns exercícios serão sugeridos
a seguir.

Atividade 1
Solicite aos alunos que reconheçam no texto seguinte as expressões anafóricas
recategorizadoras que apresentam, explicitamente, como o enunciador avalia o referente
de Madre Teresa de Calcutá.

( ) Madre Teresa de Calcutá, um apostolado gigante


Será que as santas de antigamente eram diferentes das santas de agora? Podemos
entender mais sobre esse assunto repassando a história de Madre Teresa de Calcutá, de
sua vida e do que ditava a suas filhas, da Ordem das Missionárias da Caridade (...)
De onde veio essa mulher de alma tão generosa e abnegada? (...)
Agnes Bojakxiu, mundialmente reconhecida como Madre Teresa de Calcutá,
faleceu no dia 5 de setembro de 1997, menos de uma semana depois da morte da
princesa Diana, de Gales. Com a prática da caridade, a congregação, agora também
masculina, proliferou por todo o mundo. Quando a fundadora morreu, abrangia 124
países, contava com mais de 560 casas e cerca de 4200 religiosos (...)
Essa mulher, verdadeiramente santa, derrama sua alma nas palavras que escolhe
para falar da fé dos seres humanos (...) (livro Mulheres que mudaram o mundo, de
Chalita, Gabriel)
Em seguida, pergunte que relação eles percebem entre a anáfora correferencial
recategorizadora “a fundadora” e o título do texto. O que o enunciador quis salientar
quando selecionou tal expressão recategorizadora?
Por fim, discuta com a turma as pistas contextuais que colaboram para que o
leitor, em cooperação com o enunciador, construa uma imagem de santa para Madre
Teresa.

Atividade 2

Uma das tarefas mais produtivas de escrita, que podem ser aplicadas em aulas de
redação, é chamar a atenção do aluno para os variados modos de evitar repetições (que,
aliás, não são proibidas e podem constituir um eficaz recurso de linguagem) e de
selecionar adequadamente os modos de recategorizar os referentes por meio de glosas
para definir, especificar um referente, ou enquadrá-lo numa categoria mais geral.
Escolha, em alguns textos, ou nas próprias redações dos alunos, trechos em que
seja pertinente substituir as designações selecionadas por outras que surtam novos
efeitos de sentido, como nos trechos abaixo. A consulta a sites de busca, livros,
dicionários e revistas pode ser bastante útil para tais atividades.
Complete os espaços abaixo, estabelecendo designações alternativas para os
objetos discursivos sublinhados nos itens a seguir, atendendo ao que se pede:

a) Uma expressão nominal avaliativa:


O japonês tem hoje quase meio milhão de falantes no território brasileiro. Por
isso, ___(esse idioma difícil)__ é o segundo mais falado no Brasil.

b) Um hiperônimo que insira o objeto de discurso numa dada categoria:


As baratas são responsáveis por transmitirem mais de 60 tipos de parasitas e, além
disso, __(esses ortópteros onívoros, de corpo achatado e oval)___ainda são
demasiadamente adaptáveis, pois sobrevivem em qualquer ecossistema.

c) Uma expressão nominal cujo núcleo seja um nome que expresse relação
metonímica:
Um dos lugares mais bonitos do Brasil é o Rio de Janeiro. Porém, __(os morros
habitados por favelas)__ vêm enfrentando uma grave crise de violência e criminalidade
nos últimos anos.

Atividade 3

Antes de indicar para os alunos a leitura do texto abaixo, peça que tentem definir/
caracterizar alguns dos referentes expressos em caixa alta. Após a leitura e a discussão
do texto, solicite a recategorização dos referentes dados, de maneira a acrescentarem
matizes estilísticos. Sugira que as descrições mais criativas sejam divulgadas em algum
ambiente da web, ou no Orkut, ou no blog de alguns deles.

( ) Os Sentimentos
Mário Prata

SAUDADE é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de


novo e não consegue;
LEMBRANÇA é quando, mesmo sem autorização, seu pensamento reapresenta
um capítulo;
ANGÚSTIA é um nó muito apertado bem no meio do sossego;
PREOCUPAÇÃO é uma cola que não deixa o que ainda não aconteceu sair de
seu pensamento;
INDECISÃO é quando você sabe muito bem o que quer mas acha que devia
querer outra coisa;
CERTEZA é quando a idéia cansa de procurar e pára;
INTUIÇÃO é quando seu coração dá um pulinho no futuro e volta rápido;
PRESSENTIMENTO é quando passa em você o trailer de um filme que pode ser
que nem exista;
VERGONHA é um pano preto que você quer pra se cobrir naquela hora;
ANSIEDADE é quando sempre faltam muitos minutos para o que quer que seja;
INTERESSE é um ponto de exclamação ou de interrogação no final do
sentimento;
SENTIMENTO é a linguagem que o coração usa quando precisa mandar algum
recado;
RAIVA é quando o cachorro que mora em você mostra os dentes;
TRISTEZA é uma mão gigante que aperta seu coração;
FELICIDADE é um agora que não tem pressa nenhuma;
AMIZADE é quando você não faz questão de você e se empresta pros outros;
CULPA é quando você cisma que podia ter feito diferente, mas, geralmente, não
podia;
LUCIDEZ é um acesso de loucura ao contrário;
RAZÃO é quando o cuidado aproveita que a emoção está dormindo e assume o
mandato;
VONTADE é um desejo que cisma que você é a casa dele;
PAIXÃO é quando apesar da palavra 'perigo' o desejo chega e entra;
AMOR é quando a paixão não tem outro compromisso marcado.

Algumas funções discursivas ligadas às anáforas encapsuladoras, mas não


exclusivas delas, foram analisadas por Vasconcelos de Sá (2007). Tomando por apoio o
estudo de Carvalho (2005) e o de Pinheiro (2005), Vasconcelos de Sá ressalta o papel
dos encapsuladores como articuladores do tópico discursivo, ora mantendo o tópico
geral, ou um subtópico, ora guiando o co-enunciador na passagem de um subtópico a
outro.
É evidente que outras marcas assinalam também a transição de um subtópico a
outro, mas, sem dúvida, os processos referenciais (que não apenas o das anáforas
encapsuladoras) ajudam na fixação dessas relações tópicas. Observe-se como na
reportagem a seguir o encapsulador “essa menção” preserva o subtópico relativo ao
enaltecimento do trabalho da psicanalista com crianças:

( ) Melanie Klein (1882 - 1960), psicanalista austríaca, é referenciada como a


responsável por lançar as bases e desenvolver a técnica da análise de crianças. De fato,
essa menção não é equivocada, porém, não faz jus à sua obra.
Sua experiência com crianças possibilitou ampliar o campo da clínica
psicanalítica para áreas tidas, por Freud, como inacessíveis ao tratamento: pacientes
psicóticos, autistas e borderline. Mas a austríaca trouxe também um novo estilo de
trabalho para o atendimento de pacientes neuróticos adultos. Ou seja, todo o campo foi
transformado.
No livro "Folha Explica - Melanie Klein", da Publifolha, outros detalhes sobre a
vida e a produção científica da psicanalista são abordados. Os autores Luís Claudio
Figueiredo e Elisa Maria de Ulhôa Cintra, psicanalistas e professores acadêmicos,
expõem didaticamente as idéias kleinianas, salientando sua importância para o
movimento psicanalítico.

Veja-se também como, na seqüência do texto, abrindo o segundo parágrafo, uma


anáfora indireta, “sua experiência com crianças” também mantém o subtema tratado
antes, mas opera como trampolim para novas informações que serão acrescidas,
preparando o campo para a mudança de subtópico que principia com o marcador
discursivo mas. O novo subtópico se firma logo após, com outra anáfora indireta: “um
novo estilo de trabalho para o atendimento de pacientes neuróticos adultos”. Algo
semelhante se passa com outra anáfora indireta, esta mais ligada ao tópico central da
reportagem: “No livro "Folha Explica - Melanie Klein", da Publifolha”, que inaugura
outro subtópico (a abertura de um parágrafo só para isso é uma mera conseqüência
dessa transição).
Outra importante função discursiva apontada por Vasconcelos de Sá (2007) é a de
organização enumerativa. Cumprindo esse papel, as anáforas encapsuladoras permitem
uma redistribuição de subtópicos tratados em um texto. Exemplo citado pela autora (cf.
p.81):

( ) Na cristologia de Pedro, vemos a sua ênfase do senhorio de Cristo. A expiação


é pelo precioso sangue de Cristo, derramado na cruz do Calvário. É pela morte de Cristo
e o seu efeito expiatório que estamos salvos e livres do pecado. Para Pedro a Igreja é
agora o verdadeiro Israel de Deus. Sobre a vida cristã em Pedro existem duas ênfases. A
primeira é ser firme no sofrimento, confiando pacientemente em Deus. A segunda é o
bom comportamento que o crente deve ter no mundo. Aqui não é ser salvo pelas obras,
conforme o legalismo judaico, mas uma conduta justa e baseada no amor. (Are03 –
resenha de artigo-Protexto)

É interessante constatar, neste exemplo, que as duas anáforas encapsuladoras


enumeram aspectos de um outro encapsulamento: “duas ênfases”.

Atividade 4:
Apresente aos alunos as informações elencadas abaixo e, em seguida, peça que
elaborem um pequeno texto em que utilizem anáforas encapsuladoras com função de
organização enumerativa:
- A escrita tem duas funções principais.
- A função de armazenar permite a comunicação através do tempo e do espaço.
- A função de mudar a linguagem do domínio oral para o visual permite que as
palavras apareçam num contexto altamente "abstrato".
- Usamos a fala amplamente para estabelecer e manter relações humanas.
- Quando mantemos as relações humanas, fazemos um uso primariamente
interacional.
- Quando transferimos informações, fazemos um uso primariamente transacional.

Esta atividade pode ser realizada por toda a turma, ao mesmo tempo, se as
informações forem reproduzidas no quadro, e o professor, ou um dos alunos, for
redigindo o texto a partir das sugestões dos colegas. O professor pode, nesta tarefa de
(re)elaboração textual, chamar a atenção para os recursos de pontuação que podem ser
empregados numa organização enumerativa.

Exercícios sobre a construção dos referentes

Uma atividade, não de produção textual, mas de compreensão, que também pode
ser realizada em conjunto é a de identificação das pistas contextuais que levam à
recategorização do referente. As tarefas seguintes nos foram sugeridas por Ciulla e
Silva, apoiando-se nos pressupostos de sua tese (2008):

Atividade 5:

No trecho de texto abaixo, há várias referências ao objeto referido pela expressão


em grifo. De que modo são feitas essas referências e o que é acrescentado ou
modificado pelo processo referencial em que estão envolvidas? O professor deve levar
os alunos a atentarem não somente para as anáforas diretas recategorizadoras, mas para
qualquer outro indício contextual que conduza à construção das mudanças por que passa
a personagem retratada na Mona Lisa.

( ) Na semana passada, estudiosos alemães lançaram luz sobre um dos principais


mistérios da história da arte. Eles localizaram uma nova evidência documental sobre a
identidade da personagem retratada na Mona Lisa de Leonardo da Vinci – o quadro
mais famoso do mundo. Diante da escassez de referências, a questão sempre dividiu os
historiadores. A versão mais difundida é a de que a mulher de sorriso enigmático
retratada pelo mestre renascentista entre 1503 e 1506 seria Lisa Gherardini, esposa do
comerciante florentino Francesco del Giocondo. Ao longo dos séculos, contudo,
aventaram-se os nomes de outras damas como fonte de inspiração do pintor. Também se
defendeu que Mona Lisa na realidade seria um homem, uma figura feminina idealizada,
a mãe de Da Vinci ou até ele próprio. Há dois anos, ao se debruçar sobre um livro que
pertenceu a Agostino Vespucci – autoridade florentina que conhecia Da Vinci –, o
especialista Armin Schlechter localizou um forte indício de que a retratada é de fato
Lisa Gherardini. Em notas nas margens do livro, datadas de outubro de 1503, Vespucci
comparou Da Vinci a Apelles, um artista da Grécia antiga. Em seguida, registrou que o
pintor trabalhava em três telas naquele momento – uma delas, o retrato de Lisa
Gherardini. Esse relato é o elo mais antigo entre a modelo e a pintura. (reportagem -
Veja, edição 2044, 23/01/08, seção Arte.)

Exercício sobre marcas referenciais do jogo polifônico


Ciulla e Silva (2008) demonstra que os processos referenciais podem fornecer
marcas de discurso indireto livre, assinalando uma alternância de vozes dentro do texto.
No trecho abaixo, por exemplo, é possível perceber, por expressões referenciais e
também por outros expedientes, a inserção da voz da personagem dentro da fala do
narrador:

( ) - Agora sim! – disse baixinho, desembrulhando o tablete de chocolate. Meteu-


o inteiro na boca e tirou os caramelos do bolso para oferecê-los à mãe. Então viu: a mão
pequena e branca, muito branca, deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho
nos joelhos do homem que acabara de chegar.
O menino continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Por
que a mãe fazia aquilo?!... Ficou olhando sem nenhum pensamento, sem nenhum gesto.
Foi então que as mãos grandes e morenas do homem tomaram avidamente a mão
pequena e branca. Apertaram-na com tanta força que pareciam querer esmagá-la.
O menino estremeceu. Sentiu o coração bater descompassado, bater como só
batera naquele dia na fazenda, quando teve de correr como louco, perseguido de perto
por um touro. O susto ressecou-lhe a boca. O chocolate foi-se transformando numa
massa viscosa e amarga. Engoliu-o com esforço, como se fosse uma bola de papel.
(conto O menino, de Lygia Fagundes Telles)

Há que se notar que todo o conto é narrado sob a perspectiva do menino, embora a
narrativa seja de terceira pessoa. É sob a ótica desse personagem que os referentes do
conto vão se recategorizando, na mesma proporção em que o menino se encanta e se
desencanta com eles, como ocorre, por exemplo, com a imagem que ele tinha da mãe no
início da narrativa e, ao final, quando se decepciona com ela, por entender a traição ao
pai dele.
Momentos há, no conto, em que a voz do menino se faz escutar dentro da voz que
pertence ao narrador. Compare-se o jogo polifônico que há entre o instante em que o
menino enuncia “Agora sim!”, em discurso direto, e a fala do narrador, no segundo
parágrafo, entrecortada pela voz do personagem, em discurso indireto livre: “O menino
continuou olhando, imóvel. Pasmado. Por que a mãe fazia aquilo?! Por que a mãe fazia
aquilo?!...”. Que recursos marcam neste caso o discurso indireto livre? Um deles é, com
certeza, o tom da pergunta, exprimindo o espanto e o desapontamento do menino; outro
é o uso da expressão anafórica correferencal “a mãe”, como se fosse empregada pelo
próprio personagem; outro é, ainda, a escolha do dêitico “aquilo”, em vez de “isso”,
confirmando a voz do narrador, mas com o ponto de vista do menino, que se reflete na
carga pejorativa conferida a “aquilo”.
Estudar com os alunos a construção dos processos referenciais em gêneros do
discurso literário, fartamente exemplificados nos livros didáticos, pode tornar muito
interessantes as aulas de compreensão de texto, na medida em que o aluno é convidado
a penetrar no mundo ficcional e a deleitar-se com ele. A atividade abaixo nos foi
sugerida por Alena Ciulla e Silva.

Atividade 6:

Observe, no excerto a seguir, como os processos referenciais estão envolvidos na


identificação do discurso indireto livre e comente, particularmente, como podemos
entrever a voz da personagem Sinhá Vitória imiscuída na voz do narrador.

( ) A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em


vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras
supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos
beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. (...)
Então Fabiano resolveu matá-la. (...)
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que
adivinhavam desgraça (...) Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se:
naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as
pancadas surdas da vareta na bucha. Coitadinha da Baleia. (Graciliano Ramos, Vidas
Secas)

Um outro tipo de jogo polifônico pode ser identificado no uso de expressões


referenciais propositalmente repetidas e, muitas vezes, em expressões ambíguas, ou
vagas. Nem sempre, portanto, a repetição/redundância, a vagueza e a ambigüidade
atrapalham a captação dos sentidos de um discurso, como freqüentemente se ensina nas
aulas de redação. Em certos gêneros textuais, a ambigüidade referencial representa um
excelente recurso de produção do humor, por exemplo.

Atividade 7:

Leia para seus alunos as piadas abaixo e peça-lhes que identifiquem os dois
referentes a que as expressões grifadas remetem. Em seguida, pergunte que pistas
textuais auxiliam no reconhecimento de cada um deles:
– Joaquim, você gosta de mulher com muito peito?
- Não, pra mim dois bastam. (piada - As melhor piadas de Casseta e Planeta 4)
b) O menininho de cinco anos pede pra mãe:
- Mãe, me dá cinco reais.
- Claro que não, meu filho!
- Se você não me der cinco reais, eu conto pra senhora o que o papai disse pra
empregada quando a senhora foi fazer compras.
- A mãe arregalou os olhos e, intrigadíssima, morta de curiosidade, deu os cinco
reais pro menino.
- O que teu pai falou pra empregada?
- Ela disse: “Não esquece de passar a camisa branca, que amanhã vou precisar”.
(piada - As melhor piadas de Casseta e Planeta 4)

Agora, discuta com a turma os indícios contextuais que levam o leitor a


reconhecer no texto (a), dentro da voz do enunciador-humorista, a voz do discurso
preconceituoso contra os portugueses, que aposta no conhecimento cultural dos
brasileiros de construírem uma imagem negativa desse povo, como se todos fossem
parvos, tolos.
Pergunte, em seguida, sobre o que provoca o humor na piada (b): o que há na
vagueza da expressão referencial grifada que conduz a uma suposição errada da mãe do
menino? Como o conhecimento compartilhado do leitor coopera para a recuperação do
referente construído pela mãe para o que o pai disse para a empregada quando ela saiu?
Pode-se ouvir, nesta piada, a voz de um discurso machista?

Exercícios sobre o emprego (in)adequado das expressões referenciais

Como demonstrou Custódio Filho (2006), alguns usos referenciais costumam


sofrer restrições por parte dos corretores de redação. O autor discutiu algumas situações
em que os usos referenciais presentes em textos escritos de aprendizes são julgados
como inadequados, por ferirem a norma:

Nos textos escolares, é possível flagrar com mais freqüência a ocorrência


de expressões referenciais não-aceitas. Nestes textos, os produtores-
alunos, por ainda estarem aprendendo as características específicas de
textos da modalidade escrita (e dentro destas as características específicas
de cada gênero textual), ainda desconhecem muitas das restrições
envolvidas nesse tipo de interação. (CUSTÓDIO FILHO, 2006, p. 13)

O objetivo do autor é refletir sobre as razões pelas quais certas expressões


referenciais empregadas nas redações escolares são consideradas inadequadas pelos
professores. Para isso, Custódio Filho aponta alguns fatores que costumam ser alegados
pelos corretores de redação para tomarem certos usos referenciais como erro, mas, ao
mesmo tempo, o autor contra-argumenta com as possíveis explicações, à luz dos
pressupostos da referenciação, que poderiam permitir ou não os usos tidos como
inadequados.
A seqüência de atividades abaixo foi especialmente elaborada por Custódio Filho
para esta obra. O objetivo é refletir sobre a inadequação referencial presente em
produções textuais, levando em conta os aspectos cognitivos e pragmáticos da
construção referencial, confrontados com os aspectos normativos inerentes a qualquer
produção lingüística.

Atividade 8:

Freqüentemente, quando escrevemos textos, temos algumas dúvidas sobre o uso


adequado de algumas expressões. E muitas vezes nem chegamos a ter dúvidas, mas, ao
recebermos o texto corrigido, vemos marcados certos “erros” que não sabíamos ter
cometido.
Isso acontece, na grande maioria das vezes, porque as dúvidas e os supostos erros
têm uma razão para existir, em virtude de indicarem possibilidades que parecem
apropriadas para expressar os conteúdos pretendidos. Ou seja, a dúvida e o “erro”, por
algum motivo, “fazem sentido”.
Pensando nisso, procure responder aos itens a seguir.
a) Analise as expressões sublinhadas nos excertos a seguir: indicando: 1) o
suposto erro no uso da expressão (pense em termos de normas gramaticais e
recomendações normalmente feitas pelos professores e livros); 2) uma justificativa
plausível para o uso “inadequado” (pense que idéia se pretendeu transmitir e como a
expressão utilizada contribui para a transmissão de tal idéia).

(1) O dinheiro traz desenvolvimento para a nação. Felicidade para milhares de


famílias, porque eles não precisariam viver tão sacrificados.

Suposto erro: _______________________________


Justificativa: _______________________________

(2) Eu vejo essas reservas de vagas nas universidades para os estudantes de escola
estadual, como mais uma esmola disfarçada de interesse pelos menos favorecidos.
Suposto erro: _______________________________
Justificativa: _______________________________

b) Indique sua posição quanto aos usos sublinhados. Você os julgaria adequados
ou inadequados? Procure justificar seu julgamento. Caso considere algo inadequado,
proponha uma forma de correção, justificando por que sua sugestão seria adequada.
Para ajudar em sua reflexão, leia os dois excertos a seguir.

Em relação a (1):
(3) Pergunta – Por que seus livros não são lançados em Cuba?
Resposta – Uma editora grande aqui de Havana – e não vou dizer qual – leu
Trilogia Suja e O Rei de Havana e decidiu não publicar, alegando razões comerciais.
Mas na verdade fazem uma leitura muito política de meus livros. Isso me incomoda. O
pessoal de Miami também faz uma leitura política. É incrível o comentário que li no
Miami Herald. Eles não falam de literatura. Falam como se eu fosse um político. As
leituras dos dois lados me dão raiva, porque diminuem o valor do meu trabalho literário
e tentam me manipular. Por isso trato de me afastar o máximo possível da política.

(Veja, 16/5/2001, p.11. Retirado de MELO, C. L. M. T. S. Anáfora indireta


esquemática pronominal: uma anáfora coletiva genérica e coletiva restritiva. Recife,
143p. Dissertação: Mestrado em lingüística. UFPE, 2001.)

Em relação a (2):
(4) Na minha opinião, os autores das novelas televisivas têm o livre arbítrio de
mostrar para a classe média que, a seu ver, a família brasileira está inteiramente
desregrada; que as crianças devem se envolver com qualquer tipo de drama humano
para ir aprendendo a viver e a escolher, que o autor tem que saber a exata diferença
entre a pornografia e o erotismo, etc, etc, etc... O que me parece que esse autor não deva
ter é a liberdade de afrontar as regras de convivência de uma sociedade que, pelo menos
até agora, não está, em sua maioria, organizada como estão seus personagens; de mentir
afirmando que está em curso um movimento contra a participação de crianças na
história do teatro brasileiro, que certas ‘viagens’ em torno da alma humana são matérias
de divertissement etc, etc.(Ziraldo, excerto do artigo Pelo bom uso da liberdade.
Retirado da prova de vestibular da UECE – 2002.2.)
c) Levando em conta os procedimentos utilizados para responder aos dois itens
anteriores (percepção de uma suposta inadequação, tentativa de justificativa e
julgamento final), analise os excertos a seguir.

(5) [Introdução do texto:] Eu vejo essas reservas de vagas nas universidades para
os estudantes de escola estadual, como mais uma esmola disfarçada de interesse pelos
menos favorecidos.

(6) Na vida comum da maioria das pessoas a felicidade é sentida nos momentos
de conquista, mas principalmente nas realizações das coisas necessárias da rotina diária.
No planejamento de coisas simples, como: ir à praia, esperar o filho nascer, assitir ao
jogo de futebol do seu time, ler um livro de que você gosta várias vezes, e muitas outras
coisas que a vida construída por você oferece.

(7) O que deve haver é uma união do social, da escola e família, onde cada um vai
ter o seu papel complementar nessa educação...

(8) Em segundo, vão ser feitas campanhas de incentivo aos viciados a deixarem o
vício e documentários com depoimentos “chocantes” de pessoas que ficaram entre a
vida e a morte em conseqüência do mesmo.

(9) Para os pais, falar sobre sexo com seus filhos muitas vezes é complicado, mas
cabe a eles iniciar esse diálogo mostrando os riscos que eles correm e como podem se
prevenir.

Orientações para o professor:

Com esse exercício, pretende-se que o aluno desenvolva sua capacidade de refletir
sobre aspectos da produção textual (alheia e própria), ligados aos processos referenciais,
que normalmente geram dúvidas e cujas respostas, por parte dos professores, nem
sempre são as mais indicadas, em virtude de um tratamento reducionista dado às
estratégias de referenciação. A hipótese é a de que a reflexão sobre tais possibilidades
propicia o amadurecimento da competência comunicativa do aprendiz.
Os trechos selecionados apontam controvérsias quanto a sua “eficácia”. De um
lado, o processamento cognitivo impele para que as expressões sejam aceitas como
adequadas; de outro, a desobediência à norma respalda o argumento de que elas devem
ser consideradas inadequadas. Não se trata, nas análises em questão, de dizer que os
usos estão incorretos porque vão contra a gramática, bem como a reflexão não se
resume a dizer que os usos estão corretos porque revelam processos sócio-cognitivos
envolvidos no ato de referir.
A proposta é que o aluno perceba as diferentes possibilidades (mais ou menos
adequadas) e adquira a consciência de que, se há erro, este nunca é absoluto. O erro
decorre não da estrutura em si, mas da adequação da estrutura à situação de utilização
da linguagem. Em outras palavras, os parâmetros para o julgamento da adequação
devem ter como base os aspectos pragmáticos da enunciação. Por isso é que, no item
“b”, são apresentados dois excertos de textos produzidos por escritores proficientes os
quais circularam socialmente, para que os aprendizes possam redimensionar os
argumentos normalmente utilizados para se condenar as estratégias utilizadas em (1) e
(2), a saber: a retomada por pronome plural de um referente inicialmente introduzido
por uma expressão com valor de coletivo, em (1); a utilização da primeira pessoa do
singular para expressar opinião em textos de natureza predominantemente
argumentativa, em (2).
O professor deve, portanto, estimular a reflexão para a adequação das estruturas e
estratégias de acordo com a situação de comunicação (gênero textual, participantes,
conteúdo, intenções, ideologias etc.). É este o parâmetro que deve servir de julgamento
para os corretores, bem como é este um dos principais parâmetros que deve orientar a
elaboração de textos por parte do aprendiz.
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