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1. Em todos os países do common law, tal como ocorre entre nós, a função dos
órgãos jurisdicionais de primeira instância é aplicar normas e resolver controvér-
sias. 2 Mas nos Estados Unidos e na Inglaterra a teoria jurídica admite que os Tri-
bunais dotados de competência recursal cumpram, ordinariamente, duas funções
distintas: (a) julguem e, se isso for necessário, (b) criem normas gerais e dotadas de
abstração, i.e., passíveis de sucessivas aplicações a todos, sempre que se repitam
hipóteses similares às dos fatos principais da causa. 3
Essa missão normativa foi focalizada por John W. Salmond em uma passagem
clássica:
uÉ bem verdade que, em geral, o dever das cortes é jus dicere e não jus
dare; entretanto, de fato e de direito, elas realmente possuem estas duas
funções. Os precedentes criativos são o resultado do exercício intencional,
I Promotor de Justiça em São Paulo. Doutor em Direito Processual Civil pela USP.
2 Geralmente se diz que esta função é a única. Cf.. p. ex .• Ana Laura Magaloni Kerpel. EI precedente
constitucional en el sistema judicial norteamericano. Madrid: McGraw-Hill. 2001. p. 40-41; Paul D. Car-
rington. Daniel J. Meador e Maurice Rosenberg. ]ustice on Appeal. St. Paul: West. 1976. p. 3. Para uma
análise um pouco distinta. que identifica já na primeira instância a função de produzir antecipadamen-
te normas. com o exercício moderado de alguma predição. em auxílio à função normativa das Cortes
superiores e desde que isso não implique a desconsideração de precedentes vinculantes. cf. Evan H.
Caminker. Precedent and Prediction: the Forward-Looking Aspects of Inferior Court Decisionmaking.
Texas Law Review. v. 73. nº 1. novo 1974. p. 1-82.
l Para Mauro Cappelletti. a produção judicial de normas é um aspecto inevitável de qualquer tipo de
julgamento. que atinge seu grau máximo no controle jurisdicional das leis. Cf. I..:attività e i poteri dei
giudice costituzionale in rapporte con iI loro fine generico: natura tendenzialmente discrezionale
dei prowedimento di attuazione della norma costituzionale. Scritti giuridici in memoria di Piero Calaman-
drei. V. m. Padova: Cedam. 1958. p. 83-164.
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4 No original: "While it is quite true that the duty of the couns is in general jus dicere and not jus
dare, nevenheless they do in fact and in law possess both these functions. Creative precedents are the
outcome of the intentional exerci se by the couns of their privilege of developing the law at the same
time that they administer it" (The Theory of Judicial Precedents. The Law Quarterly Review, v. 16, nO
LXIY, oct. 1900, p. 379); cf., no mesmo sentido, Edward Allan Famsworth, An introduction to the legal
system of the United States, 3. ed. New York: Oceana, 1996, p. 50-51; Gian Antonio Micheli, Contributo
alio studio della formazione giudiziale dei Diritto: "Case Law" e "Stare Decisis" (1938). Opere Minori
di Diritto Processuale Civile, v. 1, Milano: Giuffrê, 1982, p. 3-79.
s Cf. Oliver P. Field, The effect of an unconstitutional statute (1935), Washington, BeardBooks, 1999,
p. 150 e ss. Contudo, a estabilidade não é um fim em si e deve ser objeto de uma ponderação com
outros valores, entre os quais a necessid:ide de manter o sistema flexível para as mudanças sociais e
econômicas. Cf. Roscoe Pound, What of stare decisis? Fordham Law Review, v. X, nº I, 1941. p. 1-13.
6 Cf. Roben von Moschzisker, ResJudicata, Yale Law journal, v. 38,1928-1929, p. 299-334; Edward W.
Cleary, ResJudicata Reexarnined, Yale Law jouma!, v. 57, 1948, p. 339-350; Allan D. Vestal, PredusionIRes
Judicata Variables: Parties, In: Iowa Law Review, v. 50, 1964-1965, p. 27-76; e idem, PreclusionIResJudica-
ta Variables: Nature ofthe Controversy, Washington University Law Quarterly, April1965, nO 2, p. 158-192.
7 Michael Zander observa que a expressão mais exata é "stare rationibus decidendis". Cf. The Law-
Making Process, 4. ed., London, Butterwonhs, 1994, p. 190. A locução resumida "stare decisis" é deri-
vada da máxima latina "stare decisis et non quieta movere", que - segundo Edward D. Re - significa
"mantenha-se a decisão e não se disturbe o que foi decidido" (Cf. Stare Decisis, Trad. de Ellen Gracie
Northfleet, Revista de Informação Legislativa, ano 31, nO 122, maio/jul. 1994, p. 282). O sentido, de
acordo com a famosa definição de Henry Campbell Black, é este: "to adhere to precedents, and not to
unsettle things which are established" (em tradução livre: aderir aos precedentes e não alterar o que se
tomou assente). Cf. Black's Law Dictionary, 6. ed. St. Paul, Minn., West Publishing, 1990, p. 1406.
8 Cf., sobre esse uso arcaico, G. R. Dolezalek, "Stare Decisis": Persuasive Force of Precedent and Old Au-
thority (12" - 20" Century), Cape Town, University of Cape Town, 1989, p. 20, nO l.
9 Cf. James Hardisty, Reflections On Stare Decisis. Indiana Law journal, v. 55, nº I, p. 4l.
lO Para uma discussão aprofundada desse fundamento, cf. David Lyons, Formal Justice and Judicial
Precedent. In: Vanderbilt Law Review, v. 38, nO 3, April1985, p. 495-512; Theodore M. Benditt, The Rule
ofPrecedent. Laurence Goldstein (Org.). Precedent in Law, Oxford, Clarendon Press, 1987, p. 89-106; Neil
MacCormick, Why Cases Have Rationes and What These Are. In: Laurence Goldstein, ob. cit., p. 155-182.
II Cf. Jed I. Bergman, Putting Precedent in its Place: Stare Decisis and Federal Predictions of State
Law. Columbia Law Review, v. 96, 1996, p. 982.
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sociam outros fins políticos: (1) tornar os julgamentos racionais e previsíveis; (2)
proteger a confiança que as decisões anteriores tenham gerado, inclusive quanto
à imparcialidade do sistema judiciário; (3) permitir que os Tribunais focalizem,
gradualmente, questões novas. 12
A doutrina opera em duas dimensões: (a) a horizontal e (b) a vertical.B A
primeira significa a obrigatoriedade de um precedente para a corte que o criou. A
segunda exprime a força obrigatória para os Tribunais de menor hierarquia. 14
12 Cf., inclusive para indicação de outros fins, Lief H. Carter e Thomas F. Burke, Reason in Law, 6. ed.
New York, Longman, 2002, p. 29-30; Henry Campbell Black, The principie of stare decisis, The Ameri-
ean Law Register, v. 34, 1886, p. 745-757; Henry Campbell Black, The doctrine of stare decisis. The Bar,
v. 23, 1916, p. 312-317; Henry M. Hart Jr. e Albert M. Sacks, The legal process: basie problems in the making
and applieation of law, ed. revista por William N. Eskridge Jr. e Philip P. Frickey, Westbury, Foundation,
1994, p. 568-70; Lewis E Powell Jr., Stare decisis and judicial sei f restraint, Washington and Lew Law
Review, v. 47, nº 2,1990, p. 281-290; Henry Paul Monaghan, Stare decisis and constitutional adjudica-
tion, Columbia Law Review, v. 88, 1988, p. 723-773.
13 Enrique Alonso Garcia nega essa dimensão vertical, dizendo que o princípio do stare decisis implica
apenas que um Tribunal deve seguir o seu próprio precedente em um caso análogo: a vinculação dos
tribunais inferiores seria mera derivação da hierarquia judicial (cf. La interpretación de la Constitución,
Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1984, p. 165-166). Essa restrição também é feita por
outros escritores (cf., p. ex., Oliver P. Field, The effeet of an uneonstitutional statute, cit., p. 163), mas
quase todos não a acolhem. Cf., p. ex., Aulis Aamio, On the Predictability of Judicial Decisions. In:
Matti Hyvarinen e Kauko Pietilã (Org.). The Institutes We Live By, Research Institute for Social Sciences,
University ofTampere, 1997, p. 208; James Hardisty, Reflections On Stare Decisis, Indiana Law Joumal,
v. 55, nº 1, p. 46-47; LiefH. Carter e Thomas F. Burke, ob. cit., p. 29; Lewis A. Kornhauser, Adjudica-
tion by a resource-constrained team: hierarchy and precedent in a judicial system, Southem Califomia
Law Review, v. 68, 1994-1995, p. 1608-1624.
14 Cf., para uma comparação entre a concepção inglesa e a norte-americana, Arthur L. Goodhart, Case
Law in England and America, ComeU Law Quarterly, v. Xv. nº 2, Feb. 1930, p. 173-193.
15 Cf. Blaustein e Field, Overruling Opinions in the Supreme Court, Miehigan Law Review, v. 57, 1958,
p. 151.
16 Cf., para uma proposta de maior rigidez em todos os precedentes que não versem sobre a Consti-
tuição, Lawrence C. Marshall, "Let Congress do it": the case for an absolute rule of statutory stare
decisis, Miehigan Law Review, v. 88, 1989-1990, p. 177-238. Essa idéia foi combatida por William Es-
kridge, The case of the amorous defendant: criticizing absolute stare decisis for statutory cases, Miehi-
gan Law Review, v. 88, 1989-1990, p. 2450-2466, e houve réplica: Lawrence Marshall, Contempt of
Congress: a reply to the critics of an absolute rule of statutory stare decisis, Miehigan Law Review, v. 88,
1989-1990, p. 2467-2479.
17 Cf., para uma análise histórica dessa distinção e para o seu aprofundamento, Thomas R. Lee, Stare
decisis in historical perspective: from the founding era to the Rehnquist Court, Vanderbilt Law Review,
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"A liberdade que a Corte tem para abandonar sua prévia leitura da
Constituição é um reconhecimento da primazia do documento. Concedido
à Corte o direito e o dever de interpretá-lo, não lhe foi dado o dever ou a
oportunidade para reescrever suas palavras. Pode decidir casos com base
em sua interpretação das palavras, mas se a análise do raciocínio por exem-
plos tem algum significado, é o de que uma corte posterior pode aceitar o
resultado naqueles casos, mas justificá-los com uma diferente teoria. E o
valor da atividade de uma corte, em contraste com a atuação de uma As-
sembléia Constituinte ou de uma legislatura, é que os assuntos são consi-
derados passo a passo. "22
v. 52, 1999, p. 703 e ss; Caleb Nelson, Stare decisis and demonstrably erroneous precedents, Virginia
Law Review, v. 87,2001, p. 1-84.
18 Cf. P. S. Atiyah e Robert S. Summers, Fonn and substance in Anglo-American law: a comparative study of
legal reasoning, legal theory, and legal institutions, Oxford-New York, Oxford-Clarendon, 1987, p. 118-133;
Karl Nickerson L1ewellyn, The bramble bush: on our law and its study, 2. ed. New York, Oceana, 1991, p.
156-159; Raimo Siltala, A theory of precedent: from analytical positivism to a post-analytical philosophy of Iaw,
Oxford - Portland, Hart, 2000, p. 123-126.
19 Cf. Jed I. Bergman, ob. cit., p. 983, nota 74; Lewis A. Kornhauser, ob. cit., p. 1609 e 1628; Ugo
Mattei, Precedente Giudiziario eStare Decisis, Digesto del/e Discipline Privatistiche, Sezione Civile, XIV,
Torino, UTET, 1996, nº 3, p. 149; Ana Laura Magaloni KerpeI. ob. cit., Madrid: McGraw HiII, 2001,
p.41-42.
20 Cf., a propósito, o voto dissidente do Justice Brandeis em Burnet v. Coronado Oil & Gás Co.,
285 U.S. 393, 406-8 (19832); também: E. A1lan Farnsworth, ob. cit., p. 57; Edward Corwin, Judicial
Review in Action, University of Ptnnsylvania Law Review, v. 74, 1925-1926, p. 650; Edward H. Levi, An
Introduction to Legal Reasoning, The University ofChicago Law Review, v. 15, nº 3, Spring 1948, p. 541-
543; William Douglas, Stare Decisis, Columbia Law Review, v. 49, 1949, p. 735-758; Note, Constitu-
tional Stare Decisis, Harvard Law Review, v. 103, 1989-1990, p. 1344-1362.
li Cf. A defense of stare decisis, The Hastings Law Journal, v. lO, 1958-1959, p. 283-289.
22 No original: "The freedom which the Court has to abandon its prior reading of the Constitution
is a recognition of primacy of the documento Granted the right and the duty of the Court to interpret
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the document, it has not been given the duty or the opportunity to rewrite the words. It can decide
cases on the basis of its interpretation of the words, but if the analysis or reasoning by example means
anything, it means that a later court can accept the results in those cases but justificy them on a
different theory. And the value of the court action as opposed to action by a constitutional convention
or a legislature is that the matter can be taken one step at a time." Cf. The Nature ofJudicial Reason-
ing, The University of Chicago Law Review, v. 32, nº 3, Spring 1965, p. 404.
23Cf. Michael Zander, ob. cit., p. 199-204; John Chipman Gray, Judicial precedents: a short study in
ComparativeJurisprudence, Harvard Law Review, v. 9,1895-1896, p. 35-41.
24 Cf. Jed L Bergman, ob. cit., p. 983; Evan H. Caminker, Why Must Inferior Courts Obey Superior
Court Precedents? Stanford Law Review, v. 46, 1993-1994, p. 820, nº 9; Evan H. Caminker, Precedent
and Prediction: the Forward-Looking Aspects of Inferior Court Decisionmaking, Texas Law Review, v.
73, nº I, novo 1974, p. 71-72; Stanford Levinson, On Positivism and Potted Plants: "Inferior" Judges
aild the Task of Cor.stitutional Interpretation. Conn. L. Rev., v. 25, 1993, p. 845.
25 Cf. Note, Stare decisis in lower Courts: predicting the demise of Supreme Court precedent,
Washington Law Review, V. 60, 1984, p. 97; Ugo Mattei, Stare decisis: il valore dei precedente giudiziario negli
Stati Uniti d'America, Milano, Giuffre, 1988, p. 295-309.
26 Para o aprofundamento dessa discussão, cf. Note, Stare decisis and the lower courts: two recent
cases. Columbia Law Review, v. 59, 1959, p. 504-516; Note, Lower court disavowal of Supreme Court
precedent. Vírginia Law Review, V. 60,1974, p. 494-539; Note, The Attitude oflower courts to changing
precedents. Yale Law Journal, V. 50, 1940-1941, p. 1448-1459; David C. Bratz, Stare decisis in lower
courts: predicting the demise of Supreme Court precedent, Washington Law Review, V. 60, 1984-1985,
p.87-100.
27 No original: "If a precedent of this Court has direct application in a case, yet appears to rest on
reasons rejected in some other lines of decisions, the Court of Appeals should follow the case which
directly controls, leaving to this Court the prerogative of overruling its own decisions." Cf. Evan H.
Caminker, Precedent and Prediction: the Forward-Looking Aspects of Inferior Court Decisionmaking,
Texas Law Review, v. 73, nº 1, Nov. 1974, p. 20.
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2. Quando seja abstraído dos fatos que foram julgados e enunciado em termos
gerais, o fundamento de uma sentença é utilizável em casos futuros. 28 Na técnica
em apreço (que é bastante complexa),29 ele é convertido em uma norma e sua força
obrigatória depende (a) da efetiva necessidade de empregá-lo para o julgamento,30
(b) da corte em que se originou o precedente e (c) de sua pertinência e relevância
para a nova causa.
Para a construção de sua moderna teoria dos precedentes, os ingleses levaram
ao paroxismo a máxima Res judicata pro veritate accipitur, isto é, aquela antiga pre-
missa segundo a qual as decisões judiciais são corretas e proferidas com uma vo-
cação para a permanência. A fórmula clássica - que sintetiza a eliminação judicial
dos conflitos - nascera como um expediente técnico de proteção à autoridade de
uma sentença e para impedir que a alegação de erros pudesse provocar um novo
julgamento. Limitada às partes, ao pedido e à causa de pedir, confere estabilidade,
apenas, à parte dispositiva de uma sentença. Estendida aos respectivos fundamen-
tos, faz com que uma questão jurídica tenha, no caso presente em que é suscitada,
a mesma resposta que já recebeu em um caso anterior.
Desse modo:
28 Uma questão do caso concreto somente interessa à formação de precedentes se for suscetível de
um tratamento in abstracto, pois só assim poderá dar origem a uma regra passível de futuras aplicações.
Por exemplo, se o réu praticou ou não a conduta que lhe foi atribuída, é mera questão do caso concre-
to; a qualificação juridica que sua conduta receba é uma questão que comporta abstração e, como tal,
idônea para originar um precedente. Por outro lado, toda interpretação de um enunciado normativo é
necessariamente tão geral quanto este e, por isso, sempre gera precedentes. Cf. John W. Salmond, ob.
cit., p. 387-388.
29 Segundo Ana Laura Magaloni Kerpel, "formular uma regra geral, aplicável a um litígio similar,
implica dotar de certa generalidade os fatos que deram origem à disputa" (cf. ob. cit., p. 83). Essa
operação consiste, pois, em selecionar os fatos relevantes e convertê-los em uma hipótese abstrata e
geral. Cf. autora e ob. cit., p. 84; Frederick F. Schaeur, Playing by the rules: a philosophical examinarion of
rule-based decision-making in law and in life, Oxford-New York, Clarendon, p. 183; A. Simpson, The ratio
decidendi of a case and the doctrine ofbinding precedent, p. 156-159.
30 O fundamento dessa teoria, segundo John P. Dawson, é este: "O discernimento e a autoridade dos
juízes derivam de sua necessidade de se concentrar nos casos particulares que são apresentados para
sua decisão." No original: "The insight and authority of judges derive from their need to concentrate
on the particular cases that are presented for their decision." Cf. The Oracles of the Law. Ann Arbor: The
University of Michigan Law School, 1968, p. 504.
31 Isso foi bem destacado por Emilio Betti: quem participou do processo pôde influir nas premissas
lógicas da decisão; para terceiros - que não tiveram essa oportunidade - elas são juridicamente irrele-
vantes, mesmo porque a missão do juiz, quando deva decidir acerca da procedência do pedido, "não é
a de aplicar a lei substancial como norma geral e abstrata, nem de aplicá-Ia, por meio de precedentes
interpretativos, como norma regulamentar comum a todas as relações similares à litigiosa, que por-
ventura existam na realidade, ou com eficácia vinculante também quanto a outras relações que sejam
de algum modo contíguas à relação litigiosa". Mas, em nota de rodapé, o autor fazia essa ressalva: "Isso
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poderia acontecer em uma jurisdição de mero direito objetivo, como nos parece que a Magistratura
do trabalho exerce nas controvérsias concernentes à aplicação do regulamento coletivo do trabalho,
fazendo deste uma interpretação autêntica. Assim aconteceria praticamente também em um sistema de
direito costumeiro que transferisse ao juiz a criação do direito por meio de uma rede de precedentes
judiciais rigidamente observados, como na 'judge made law'." Cf. Diritto Processuale Civile Italiano, 2. ed.
Roma: Foro Italiano, 1936, p. 606.
32 No original: "The growth of case law involves the gradual elimination of that judicial Iiberty to
which it owes its origino In any system in which precedents are authorative the courts are engaged in
forging fetters for their own feet." Cf. John W. Salmond, ob. cit., p. 386.
33 A vinculação da Câmara dos Lordes aos próprios precedentes era uma forte tendência - expressa,
p. ex., em Beamish V. Beamish (1861) -, mas essa questão só foi decidida no caso London Tramways V.
London County Council (1898). Cf. Henry M. Hart Jr. e Albert M. Sacks, ob. cit., Westbury, Foundation,
1994, p. 572-576. Sobre essa autodeclaração de infalibilidade da Câmara dos Lordes, cf. John P. Daw-
son, ob. cit., p. 90-94.
34 Em 26 de julho de 1966, o então Lord Chancellor (Lord Gardiner) anunciou, no famoso Practice
Statement, que doravante a Câmara dos Lordes passaria a desconsiderar seus precedentes quando lhe
parecesse correto fazê-lo. Ressalvou, entretanto, que, normalmente, continuariam a ser tratados como
obrigatórios e que teria em conta, especialmente, os riscos da eliminação retroativa de precedentes em
determinadas matérias, nas quais a proteção da confiança e a necessidade de certeza se destacam. Trans-
postas para nossas categorias jurídicas, tais matérias dizem respeito às obrigações, aos direitos reais, ao
direito tributário e ao direito penal. C( Michael Zander, ob. cit., p. 191-193; Rupert Cross and J. W. Har-
ris, Precedent in English Law, 4. ed. Oxford: Clarendon, 1991, p. 104-108. Sobre a importância histórica
dessa declaração, pronunciada fora de qualquer julgamento, cf. John P. Dawson, ob. cit., p. 94.
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2.1 Reduzida à sua expressão mais simples, a teoria é esta: (a) todo caso
foi decidido segundo uma razão jurídica (ratio deddendi), (b) pertinente aos fatos
essenciais da causa e (c) que poderá adquirir força vinculante em situações simila-
res, (d) conforme a posição ocupada na hierarquia judicial tanto pelo tribunal em
que houve o julgamento como pela corte onde é invocado.
Por isso, um aspecto fundamental na atividade dos práticos consiste em ve-
rificar se uma proposição jurídica abstrata,35 presente em uma decisão, realmente
integra sua ratio deddendi. 36 Esta nunca é a decisão do caso concreto, mas uma
"regra geral sem a qual [... ] teria sido decidido diferentemente" .37 Logo, qualquer
raciocínio judicial que seja estranho àquele núcleo do julgamento é, por definição,
um mero dictum ou obiter dictum,38 apto eventualmente a persuadir39 e na prática
dotado de enorme influência, mas incapaz, por si, de obrigar quem quer que seja. 40
Existem muitas definições de ratio deddendi ou do seu termo sinônimo - hol-
ding (que é empregado nos Estados Unidos)Y Segundo uma fórmula muito difun-
dida, "a doutrina de um caso é uma proposição jurídica geral da qual, em conexão
com as circunstâncias do caso, a decisão logicamente resulta, e sobre a qual a
Corte baseou sua decisão, quer o tenha declarado, quer não" Y
Essa definição dá o devido destaque a alguns aspectos fundamentais:
3S Ou uma série de proposições jurídicas com essas características. Cf. H C Black, Law ofJudicial Pre-
cedent, St. Paul, 1912, p. 40. Quando a decisão se funda em mais de uma, todas vinculam. Cf. Michael
Zander, ob. cit., p. 263.
36 Cf. John P. Dawson, ob. cit., p. 95.
37 Cf. Eugene Wambaugh, The Study of Cases: a Course of Instruction in Reading, Stating Reported Cases,
Composing Head-Notes and Briefs, Criticizing and Comparing Authorities, and Compiling Digests, Boston:
Litde, Brown and Company, 1894, p. 43.
38 A rigor, trata-se de duas espécies: dieta ou judicial dieta são os raciocínios judiciais desenvolvidos
em tomo de uma questão do caso, embora desnecessários para resolvê-los; obiter dieta, os que não te-
nham peninência com o caso. Atualmente, a segunda expressão abrange os dois sentidos. Cf. Michael
Zander, ob. cit., p. 262.
39 Uma eficácia do mesmo tipo - embora de menor grau - pode resultar das obras doutrinárias. Cf. John
W Salmond, The Theory ofJudicial Precedents, Law Quarterly Review, v. 16, 1900, nota I, p. 380.
40 Michael Zander enfatiza: "The most carefully considered and deliberate statement of law by ali five
Law Lords which is dictum cannot bind even the lowliest judge in the land. Technically he is free to
go his own way. In practive, of course, weighty obiter pronouncements from higher couns are likely
to be followed and will cenainly be given the greatest attention, but in strictest theory they are not
binding" (cf. ob. cit., p. 262-263).
41 Cf. Edward Allan Famswonh, ob. cit., p. 54, nota 15; Ugo Mattei, Precedente Giudiziario eStare De-
cisis, ob. cit., nº 8, p. 155; Ana Laura Magaloni Kerpel, ob. cit., p. 8I.
42 Cf. Eugene Wambaugh, ob. cit., p. 29.
43 É muito expressiva esta passagem de Salmond: "A decisão concreta é vinculante entre as panes,
somente a sua abstrata ratio decidendi é que tem força obrigatória para todo mundo." No original: "The
concrete decision is binding between the panies to it, but it is the abstract ratio decidendi which alone
has the force oflaw as regards the world at large." Cf. ob. cit., p. 387.
194 Revista de Direito Administrativo
44 Cf. Arthur L. Goodhart, Determining the Ratio Decidendi of a Case, Ya/e Law]ouma/, v. XL, nº 2,
Dec. 1930, p. 164-168.
4S Em tom enfático, Salmond advertiu: "A prerrogativa dos juízes não é criar o direito formulando-o e
declarando-o - isto pertence à legislatura -, mas criar o direito aplicando-o. A declaração judicial, de-
sacompanhada de uma aplicação judicial, não tem autoridade." No original: "The prerogative ofjudges
is not to make law by formulating and declaring it - this pertains to the legislature - but to make law
by applying it. Judicial declaration, unaccompanied by judicial application, is of no authority." Cf. ob.
cit., p. 388-389.
46 Cf. Edward H. Levi, The Nature of Judicial Reasoning, The University Df Chicago Law Review, v. 32,
nº 3, Spring 1965, p. 399.
47 Arthur L. Goodhart dá alguns exemplos que se tornaram célebres no direito inglês. Cf. Determi-
ning the Ratio Decidendi of a Case, Ya/e Law]ouma/, v. XL, n· 2, Dec. 1930, p. 162-163.
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48 Cf. Edward H. Levi, The Nature of Judicial Reasoning, The University of Chicago Law Review, v. 32,
nO 3, Spring 1965, p. 400.
49 Cf. Edward H. Levi, An Introduction to Legal Reasoning, The University of Chicago Law Review, v.
15, nO 3, Spring 1948, p. 503.
5(l Cf. Carleton Kemp Allen, Precedent and Logic, The Law Quarterly Review, v. 41, 1925, p. 334;
Edward H. Levi, An lntroduction to Legal Reasoning, The University of Chicago Law Review, v. 15, nO 3,
Spring 1948, p. 502.
SI Há muitas maneiras de realizá-lo e essa técnica - que antecipa a eliminação do precedente - tende
a ser prontamente empregada quando ele tem contra si a communis opinio doctorum. Cf. Carleton Kemp
Allen, Precedent and Logic, The Law Quarterly Review, v. 41, 1925, p. 334.
52 "A descoberta da semelhança ou diferença" - como observou Edward H. Levi - "é o passo principal
[ ... ] e a função de cada juiz." O comentário está nesta passagem: "The finding of similarity or differ-
ence is the key step in the legal processo The determination of similarity or difference is the function
of each judge." Cf. An lntroduction to Legal Reasoning, The University of Chicago Law Review, v. 15, nO
3, Spring 1948, p. 502.
S3 OU, quando - em comparação com o atual - o caso anterior pareça um "case in ali four" ou "case
in paint".
196 RevISta de Direito Administrativo
54 Ou seja. todos os que interpretam e aplicam profissionalmente o Direito. Cf. John Henry Merry-
man, Common Law: paesi di - IH) Diritto degli Stati Uniti d'America, Enciclopedia Giuridica, v. 7, Roma,
Istituto della Enciclopedia Italiana, 1988, p. 1-8.
ss Cf. Richard A. Posner, The Meaning ofJudicial Self-Restraint. Indiana Law joumal, v. 59, nº I, 1983.
p.I-6.
S6 Cf. Lawrence Meir Friedman, A History of American Law, New York: Simon and Schuster. 1973;
John Henry Merryman, Common Law: paesi di - I1I) Diritto degli Stati Uni ti d'America, ob. cit.; Julius
Stone, The Province and Function of Law, Sydney: Associated General Pub., 1946, p. 391 ss; Giovanni
Tarello, li realismo giuridico americano, Milano: Giuffre, 1962.
57 Esta questão foi amplamente debatida no caso Planned Parenthood of $outheastem Pennsylvania v.
Casey (1992), no qual a Suprema Corte - com uma nova maioria, bem mais conservadora - teve a
oportunidade de eliminar um critério muito polêmico, relativo ao direito ao aborto (o célebre Roe v.
Wade. decidido 19 anos antes). Três juízes - Sandra Day O'Connor, Anthony M. Kennedye David H.
~--------------------------------
BtIB5
Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos 197
3.1 Assim como ocorre no nível federal, cada Estado tem sua própria Consti-
tuição e seus próprios sistemas judiciários. Os dois sistemas - o federal e os esta-
duais - coexistem, cada qual operando no âmbito das respectivas competências. A
estrutura judiciária se articula do mesmo modo em ambos: há um primeiro grau
de jurisdição, constituído pelas cortes de primeira instância (trial courts, normal-
mente com uma composição monocrática); um segundo grau, constituído pelas
courts of appeai e um órgão de vértice (ou supreme court).
Não há uma estrutura separada de órgãos jurisdicionais especialmente com-
petentes para todas as questões de natureza administrativa e constitucional. As
cortes de primeiro grau, no exercício de sua jurisdição ordinária, julgam essas
matérias, salvo quando tenham sido atribuídas a jurisdições especiais. 59 Também
as decisões destas se sujeitam aos mesmos meios de impugnação, perante os mes-
mos juízes de segundo grau.
Contra as decisões das appellate courts somente são interponíveis recursos
sobre questões de direito 60 e há uma crescente tendência, por parte das cortes
supremas estaduais, a admiti-los somente quando os casos tenham suficiente im-
portância pública ou jurídica a ponto de merecer novas considerações. As partes
insatisfeitas com as decisões proferidas pelas cortes estaduais podem apresentar
um recurso (petition) à Suprema Corte Federal para a concessão de um writ of
certiorari, tendente ao reexame do julgamento. Dos inúmeros recursos interpos-
tos, a Suprema Corte só acolhe uma parte mínima e é esse writ of certiorari que
constitui o principal meio para que ela controle a constitucionalidade dos atos
normativos estatais.
Nos Estados Unidos todos os juízes - estaduais e federais, em qualquer grau
de jurisdição - têm o dever de examinar e decidir todas as questões pertinentes
à Constituição Federal, que as partes suscitem no curso de um processo. Uma
conseqüência dessa atividade é a "constitucionalização" do direito norte-ameri-
Souter - disseram que, se a questão tivesse surgido pela primeira vez, não teriam reconhecido o direito
em apreço, mas que, considerados os valores envolvidos e o interesse na estabilidade social, não se
justificava a eliminação da regra. Cf., sobre este caso, Adele Anzon, 11 vaiare dei precedente nel giudizio
sul/e leggi, Milano: Giuffrê, 1995, p. 47-53.
58 Cf. John Henry Merryman, Common Law: paesi di - I1I) Diritto degli Stati Uniti d'America, ob.
cit., nº 4, p. 2.
59 Cf. Henry J. Abraham, The judicial process, 7. ed., New York e Oxford, Oxford University, 1998,
p.164-168.
60 Cf. Henry J. Abraham, ob. cit., p. 157.
198 Revista de Direito Administrativo
cano. O direito processual penal, p. ex., tornou-se em larga medida uma matéria
especial do direito constitucional, pois é integrado por um conjunto de regras
jurisprudenciais extraídas da interpretação da garantia constitucional de um pro-
cesso justo (due process of law), 61 do privilégio contra a auto-incriminação (privilege
against selfincrimination), 62 da proteção contra buscas e apreensões arbitrárias,63
do direito a um julgamento célere e público,64 da presença do júri,65 do direito à
confrontação com as testemunhas,66 da proibição de infligir penas cruéis ou ex-
traordinárias etc. 67
Regras jurisprudenciais também produziram uma sensível mudança na di-
visão territorial do poder. A estrutura federal dos Estados Unidos reflete uma
origem genuinamente plural. Ao constitUÍ-lo, os vários Estados da União, sen-
do soberanos nos respectivos territórios, delegaram ao governo federal alguns de
seus poderes (principalmente, o de impor tributos, de emitir moeda, de declarar a
guerra, de celebrar tratados internacionais, de disciplinar o comércio entre eles e
com o exterior, de legislar sobre marcas e patentes, falências, direitos autorais),
reservando para si todas as outras funções de governo. Entretanto, a partir dos
anos 30 e 40 do século 20, com o apoio da Suprema Corte (que a princípio resisti-
ra),68 houve uma enorme expansão dos poderes federais, por interpretação amplia-
tiva dos spending power e commerce power (art. lº, seção 8, nº 3, da Constituição).69
Neste caso, destinaram-se à criação de um "mercado comum" e à definição das
condições para uma concorrência efetiva, isto é, foram concebidas para eliminar
todas as barreiras à livre circulação das mercadorias e ao exercício do comércio em
61 Cf. Edward S. Corwin, The doctrine of Due Process of Law before the Civil War, Harvard Law
Review, v. 24, 1910, p. 366-385 (primeira parte) e 460-479 (segunda parte); Leonard G. Ratner, The
Function of the Due Process Clause, University of Pennsylvania Law Review, v. 116, 1968, p. 1048-1116.
62 Cf. Akhil Reed Amar e Renée B. Lethow, Fifth Amendment First Principies: the Self-Incrimination
Clause, Michigan Law Review, v. 93,1994-1995, p. 857-928; os principais precedentes são indicados por
Jethro K. Lieberman, A practical companion to the Constitution, Berkeley-Los Angeles-London: University
of California, 1999, verbete self-incrimination, p. 453-455.
63 Cf. Akhil Reed Amar, The Bill of Rights as a Constitution, Yale Law Joumal, v. 100, 1991, p. 1175-
1181; os precedentes são indicados por Jethro K. Lieberman, ob. cit., verbete search and seizure e diver-
sas especificações que o seguem, p. 442-449.
64 Cf. Jethro K. Lieberman, ob. cit., verbetes prejudicial publicity; trial, faimess; trial, speedy e trial, public,
p. 364-365 e 515-518, com extensa indicação dos principais precedentes.
65 Cf. Akhil Reed Amar, The Bill of Rights ... , ob. cit., p. 1182-1199; uma clássica exposição das ori-
gens dessa instituição: James B. Thayer, The Jury and its Development, Harvard Law Review, v. 5, nO 6,
Jan. 1892, p. 249-273 (primeira parte), nO 7, Feb. 1892, p. 295-319 (segunda parte) e nO 7, Mar. 1892,
p. 357-388 (terceira parte); quanto aos precedentes, Jethro K. Lieberman, ob. cit., verbetes jury and
jurors, impartiality of e trial by jury, p. 270-271 e 518-519.
66 Cf., para os precedentes, Jethro K. Lieberman, ob. cit., verbete confrontation with witnesses, p. 113-114.
67 Cf., para uma indicação dos precedentes, Jethro K. Lieberman, ob. cit., verbetes death penalty;
punishment, criminal and civil e punishment, cruel and unusual, p. 137-138 e 401-403.
68 Cf. United States v. Butler, 297 U. S. 1 (1936).
69 Cf. Stevard Machine Co. v. Davis, 301 U.S. 548 (1937); United States v. Darby, 312 U. S. 100 (1941);
Katzenbach v. McClung, 379 U.S. 294 (1964).
~--------------------------------- Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos 199
todo O território nacional, bem como para garantir a livre competição, inclusive
com o combate aos monopólios.
70 A distinção entre questões de fato e questões de direito, tradicionalmente útil para a demarcação
da competência do júri, sempre foi cercada de sutilezas e sua aplicação nesse campo nunca foi abso-
luta. Cf. James B. Thayer, Law and Fact in Jury Trials, Harvard Law Review, v. 4, nº 4, Nov. 1890, p.
147-150.
71 Cf., sobre a organização judiciária none-americana, Henry J. Abraham, The Judicial Process, ob. cit.,
especialmente p. 42-51 e 54 ss.
72 90 delas estão distribuídas pelos 50 Estados; as demais estão no distrito de Colúmbia, em Pono
Rico e nos territórios federais: Guam, Ilhas Virgens Americanas (Virgin Islands) e Ilhas Marianas do
None (Nonhern Marianas Islands). Ao todo, são integradas por cerca de 600 juízes. Esses dados fo-
ram extraídos de Tyll Van Geel, Understanding Supreme Court Opinions, 2. ed., N.Y., Longman, 1997, p. 7,
e Henry J. Abraham, ob. cit., p. 172-178.
200 Revista de Direito Administrativo
que haja interesse federal (nelas, a maior parte das ações é proposta, a
prova, produzida, e o primeiro julgamento, realizado);
c) 13 cortes de apelação (U.S. eourts of appeal), i. e., os órgãos de segunda
instância, cuja competência, limitada territorialmente, também é cumu-
lativa (i. e., para causas cíveis e criminais);73
d) a Suprema Corte dos Estados Unidos (United States Supreme Court), com-
posta por nove Ministros (um dos quais, seu Presidente) e doravante
designada simplesmente como Suprema Corte.
73 A competência é vinculada a determinado território. Para esse fim, foram criados 12 circuitos,
cada qual com uma Corte de Apelação. O 13 2 circuito (Federal Circuit) é constituído por 3 cortes
federais especializadas. Esses tribunais reúnem, ao todo, cerca de 160 juízes.
74 Questões de direito federal ou direito constitucional federal também podem ser suscitadas no
sistema judiciário de cada Estado. A solução que se der a elas é passível de reexame pela Suprema
Corte dos Estados Unidos. Cf. Walter F. Murphy, James E. Fleming e Sotirios A. Barber, American
ConstitutionalInterpretation, 2. ed., New York, Foundation Press, 1995, Appendice A, When May a Liti-
gant lnvoke "the Constitution"?, p. 1403-1412.
7S Cf., sobre o conceito de advisory opinions, a negação dessa competência à Suprema Corte pelos cons-
tituintes, os precedentes em que a matéria foi examinada e hipóteses em que tal função foi atribuída ao
Judiciário, Quincy Wright, Advisory Opinions. Encyclopaedia of the Social Sciences, v. 1, New York: Mac-
Millan, 1935, p. 475-480. Para um minucioso estudo sobre a experiência de cinco Estados na aplicação
desse instituto (Colorado, Maine, Massachusetts, New Hampshire e South Dakota), cf. Oliver P. Field,
The Advisory Opinion - An Analysis, Indiana Law Journal, v. 24, 1949, p. 203-231.
~------------------------------------ Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos 20 I
Além disso, ao justificar o critério com o qual decidiu, o Tribunal age como
um educador, paulatinamente transmitindo à sociedade o sentido dos valores con-
sagrados na Constituição e ilustrando o significado prático que assumem em de-
terminados contextos, especialmente nas situações de conflito.
Portanto, esse alto Tribunal (a) julga, fixando critérios uniformes para todo o
Poder Judiciário; (b) modera o exercício dos poderes políticos; e (c) realiza uma
função pedagógica, em permanente diálogo com a opinião pública. Em outros
termos, atua como (1) um Tribunal supremo; (2) um árbitro de conflitos no âm-
bito da Federação e um supervisor de políticas públicas (policy maker); e (3) um
professor. 79
Mas, segundo a interpretação da Suprema Corte, a Constituição Federal foi
estruturada unicamente como um limite para a atuação do Estado e nela não há
uma garantia de padrões mínimos de segurança e bem-estar para os indivíduos
(Cf. DeShaney v. Winnebago County Department of Social Services [1989] e National
Collegiate Athletic Association v. Tarkanian [1988]). Por isso, não regula simples re-
lações entre particulares e, conseqüentemente, toda controvérsia constitucional
sempre diz respeito ao que o Governo (ou, mais exatamente, quem age por ele ou
sob sua influência) fez ou exige que um particular faça. Em suma: para que surja
uma verdadeira controvérsia constitucional, passível de reexame pela Suprema
Corte, é indispensável que o conflito diga respeito a um comportamento do pró-
prio Estado ou que, tendo sido praticado por particulares, seja atribuível de algum
76 Sobre a supremacia judicial na interpretação da Constituição, Cf. Walter F. Murphy, James E. Fle-
ming e Sotirios A. Barber, ob. cit., Parte I1I, Who May Authoritative/y Interpret the Constitution, p. 262 ss
e 345 ss.
77 Bem observam Walter F. Murphy, ]ames E. Fleming e Sotirios A. Barber: "Como em teologia, músi-
ca e literatura, a interpretação constitucional freqüentemente requer criatividade." Cf., inclusive para
as referências à vastíssima literatura, ob. cit., p. 5.
78 Cf. Maria A. Ahumada Ruiz: Boerne v. City Flores: citação do precedente ...
79 Cf. Ralph Lerner, The Supreme Coun as Republican Schoolmaster. In: Kennit L. Hall (Org.). The Su-
preme Court in American Society: Equa/justice Under Law (a Reader), New York, Garland, 2001, p. 235 ss.
202 Revista de Direito Administrativo
3.5 Nos Estados Unidos, a vinculação aos precedentes não é imposta por
lei 81 e a Constituição não faz qualquer referência textual a esse fenômeno. Con-
tudo, alguns autores argumentam que o art. m, ao estruturar o Poder Judiciário,
pressupôs sua produção. Seria, pois, um postulado inerente à Constituiçã082 e
insuscetível de ser afastado por lei. 83
Antes de ser promulgada a Constituição dos Estados Unidos, alguns Tribu-
nais (como os da Virgínia e da Carolina do Norte) já haviam negado aplicação a
leis, considerando-as contrárias às respectivas Constituições. 84 Essa possibilidade
era admitida por boa parte dos constituintes 85 e alguns deles viam com entusias-
mo o reconhecimento, aos juízes,86 dessa competência que, no século XX, passaria
a ser conhecida como judicial reviewY
Foi nesse clima que Marshall pôde dizer, em nome da Suprema Corte, que há
muito tempo era pacífico (long and well established) que um Tribunal tinha o poder
80 No contexto norte-americano, essa expressão abrange os três Poderes. Também podem ser inse-
ridas na categoria da state action as condutas dos eleitores e do particular que exerça um poder estatal
ou em cuja atividade haja vínculos significativos com o Estado, a ponto de sua conduta ser imputável
a este. A doutrina em apreço, contudo, é bastante complexa, está repleta de algumas incoerências e
não será possível nem é necessário examiná-Ia profundamente aqui. Um excelente resumo, com indi-
cação dos precedentes, foi feito por Jethro K. Lieberman. Cf. State Action, A practical companion to the
Constitution: how the Supreme Court has ruled on issues from abortion to zoning, Berkeley-London, Univer-
sity of California, 1999, p. 477-479. Ver, também, Mary Cornelia Aldis Porter, State Action, In: Kermit
L. Hall (Org.). The Oxford companion to the Supreme Court of the United States, New York, Oxford, 1992,
p.822-823.
81 Para Evan H. Caminker, nada impede que uma lei federal imponha essa obrigação a tribunais
federais. Cf. Why must inferior courts obey superior courts precedents? Stanford Law Review, v. 46,
1994, p. 838.
82Cf., p. ex., Michael C. Dorf, Dicta and Artic1e I1I, U. Pa. L. Rev., v. 142, 1994, p. 1997; Henry P.
Monaghan, Stare Decisis and Constitutional Adjudication, Columbia Law Review, v. 88, 1988, p. 754.
83 Opinião contrária, contudo, é sustentada por alguns autores, para os quais o Congresso tem am-
pla competência, em relação aos tribunais federais, para disciplinar a matéria por lei (cf. John Harri-
son, The power of the Congress over the rules of precedent, Duke Law joumal, v. 50, 2000-2001, p.
503-543), podendo até mesmo proibir a aplicação de precedentes constitucionais (cf., p. ex., Michael
Stokes Paulsen, Abrogating stare decisis by statute: may Congress remove the precedential effects of
Roe and Casey?, Yale Law joumal, v. 109,2000, p. 1535).
84 Cf. David E. Engdahl, John Marshall's 'Jeffersonian' Concept of Judicial Review, Duke Law joumal,
v.42, 1992-1993, p. 282-289.
85 Cf. William W. Van Alstyne, A Criticai Guide to Marbury v. Madison, Duke Law journal, v. 1, 1969,
p.38-45.
86 Cf. Raoul Berger, Congress v. the Supreme Court, Cambridge, Mass., Harvard University, 1969, p. 143.
87 Aparentemente, essa expressão foi empregada pela primeira vez por Edward S. Corwin: cf. The
Establishment of Judicial Review, Michigan Law Review, v. 9, nº 3, 1910-1911, p. 102-125 (primeira
parte) e idem, v. 9, nº 4, p. 283-326 (segunda parte). Nesse sentido, Cf. Robert Lowry Clinton, Marbury
v. Madison andjudicial review, Lawrence, Kan., University Press ofKansas, 1989, p. 7.
~--------------------------------- Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos 203
.. Cf. Henry J. Abraham, ob. cit., p. 206, 226 e 368; Arthur S. Miller, Constitutional Decisions as De
Facto Class Actions: a Comment on the Implications of Cooper v. Aaron, University of Detroit Joumal of
Urban Law, v. 58, nº 4, 1981, p. 573-586. Esse princípio foi reiterado diversas vezes: p. ex., Baker v. Carr,
369 U.S. 186 (1962); Powell v. McCormack, 395 U.s. 486 (1969) e Nixon, U.S. V., 418 U.S. 683 (1974).
95 No original: "We are not final because we are infallible, but we are infallible only because we are
final." Cf. Brown v. AlIen, 344 U.S. 443 (1953).
96 No original: "Whoever hath an absolute authority to interpret any written or spoken law, it is he
who is truly the lawgiver to ali intents and purposes, and not the person who first wrote them." Apud
~--------------------------------- Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos 20S
James B. Thayer, The origin and scope of the american doctrine of Constitutional Law, Harvard Law
Review, v. 7, 1893-1894, p. 152. Edward S. Corwin, judicial Review in Action, ob. cit., p. 656.
97 Cf. ]ethro K. Ueberman, A practical companion to the Constitution, Berkeley-Los Angeles-London:
University of Califomia, 1999, verbete judicial supremacy, p. 266.
98 No original: "Reasoning from the terms of the constitution, and the known principies of our
jurisprudence, the appropriate conc1usion is, that the judicial department of the United States is, in
the last resort, the final expositor of the constitution, as to ali questions of a judicial nature ... " Cf.
Commentaries on the Constitution ofthe United States, v. 1, Cambridge [Mass.], Brown, Shattuck, and co.,
1833, p. 360.
99 Cf. ob. cit., p. 266.
100 Cf. judicial Review in Action, ob. cit., p. 651-654; Idem, The DoctrÍne of judicial Review, Princeton,
Princeton University, 1914, p. 20-26 e 66-68.
101 Nas palavras desse autor, "the exc/usive power of interpreting the Constitution with finality". Cf.
judicial Review in Action, ob. cit., p. 654.
102 Cf. judicial Review in Action, ob. cit., p. 661.
206 Revista de Direito Administrativo
de posição, e serve, no mínimo, para que ela escolha, reafirme e exponha, racio-
nalmente, suas premissas.
Esta posição está em perfeita sintonia com a orientação que tem prevalecido
na Suprema Corte, presente, por exemplo, em voto proferido em 1947 por Felix
Frankfurter: '~té esta corte tem a última palavra apenas por algum tempo. Sen-
do composta por homens falíveis, pode errar. Mas a revisão dos seus erros deve
ocorrer por um método jurídico regular. A corte pode ser provocada a reconsiderar
suas decisões e, ao longo de sua história, isto tem sido feito com sucesso e fre-
qüentemente. Ou, o que esta corte considerou seu dever decidir pode ser modifi-
cado pela legislação, como freqüentemente foi, e, sendo o caso, por uma emenda
constitucional. "106
'06 No original: "Even this courr has the last say only for a time. Being composed of fallible men, it
may erro But revision of its errors must be by orderly process of law. The courr may be asked to recon-
sider its decisions, and this has been done successfully again and again throughout our history. Or,
what this courr has deemed its duty to decide may be changed by legislation; as it often has been, and,
on occasion, by constitutional amendment." Cf. United States v. United Mine Workers, 330 U.S. 258,
e Henry ]. Abraham, ob. cit., p. 368.