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Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.220/7120
Em Fuão (13), a cidade pode ser vista como espaços cujas bordas, ora permeadas,
ora entrelaçadas e ora fechadas, formariam um mundo de redes de esperrâncias,
palavra utilizada em seus estudos para designar o ato de “esperar na errância” e
de “errar na espera”, nominando o abraço simultâneo de situações de espera e
errância. A esperrância ilustra em sua dança os limites de uma situação em
intermitente deslocamento. Essa forma de pensar talvez fosse uma maneira de
resgatar o verdadeiro objetivo da arquitetura: o de acolher o ser humano – seus
diversos modus vivendi – enquanto pratica sua eterna espera pelo errante que
chega. Em todo espaço habitam a espera e a errância: enquanto uma está ativada, a
outra está no por vir, como se a esperrância fosse ativada no espaço deste
“pensar suspensivo” dos caminhos e pontes de união entre mundos da errância: nos
encontros em praças, mercados e parques da cidade, na conversa, no olhar, no
cheiro, no passo. Sua potência vive no encontro por vir.
Existe um mundo infindável de esperança dentro daquele que aguarda o errante, o
hóspede que chega propõe a quem espera o acolhimento do mundo que chega com ele.
O encontro de ambos faz nascer um terceiro mundo, que justifica o propósito do
encontro. A natureza do acolhimento desenvolve-se pela articulação ativa entre o
familiar e o estranho. Estes se permeiam, criando o espaço de passagem entre
o dentro e o fora dando sentido ao espaço de acolhimento que passa a existir.
No cenário da acolhida, a inversão de papéis é frequente: assim como em Derrida
(14) o hóspede torna-se hospedeiro, o que espera e o (in) esperado andam juntos,
acolhendo-se e criando, confundindo-se em papéis e espaços,
simultaneamente esperrando, se não se hostipitalizando. Toda condição humana
coexiste com seu binômio: enquanto o sujeito é hóspede, é hospedeiro. Nos lugares
de acolhimento, a impermanência rege a dança dos encontros e a inversão de
papéis, em um contínuo ir e vir.
A compreensão desse movimento faz entender a arquitetura da hospitalidade como o
vetor da criação de lugares de encontro para que o acolhimento ocorra juntando
singularidades, assim transpondo seus limites e permeabilidades. Sabe-se que a
formação do arquiteto o induz a projetar espaços com limites de permeabilidade
bem definidos. Do questionamento para tais definições, as nomenclaturas nascem
estabelecendo aberturas e fechamentos. Seria conveniente que as paredes que
ocultam e separam espaços fossem projetadas com possibilidade de mobilidades e
deslocamentos, para adequar o espaço à chegada dos movimentos do por vir.
No universo da cidade, a contextualização depende da natureza do espaço.
Convencionalmente, o arquiteto chama tais naturezas de privada, semipública,
semiprivada, pública e assim por diante, definindo o nível de permeabilidade que
é permitido nas suas bordas. Para Fuão (15) é nas bordas que se encontram as
potências espaciais de acolhimento. A costura de bordas acontece nas aberturas,
que são possibilidades de conexão e articulação do lugar de acolhida em si.
Independentemente do tamanho, a abertura sempre porta a potência da acolhida e
união entre espaços. Porém, em nome da paz (ou pax?), o significado de abrir e
acolher passa pelo respeito e tolerância às diferenças, enquanto diferenças.
Infelizmente, as lições espaciais do século 20 não foram suficientes para
convencer os servidores do mercado imobiliário das qualidades segregacionistas
dos espaços urbanos fechados: condomínios fechados por muros e núcleos urbanos
que se fecham em si, ignorando a malha urbana do entorno, são arquiteturas que
negam passagem ao por vir. Cercam-se de muros, câmeras e guaritas. Dessa maneira,
a revisão das regras de hospitalidade passa a ser controlada não pelos moradores,
mas pelos mercenários da indústria do medo: enquanto garantem a venda de falsas
sensações de segurança fomentam a hostilidade para com o Outro “violando o
inviolável”. Derrida (16) comenta que, quando um poder sente-se no direito de
utilizar dispositivos de controle para vigiar um espaço a ponto de deixar seus
dados disponíveis ou mesmo vender suas informações a quem interessa, todo o
pensamento ético em relação à privacidade de seus habitantes está em
deslocamento. As tecnologias de controle, a internet e todos os dispositivos de
comunicação virtual possuem em si o poder de violar e controlar a privacidade dos
seres, a ponto de serem sentidas como ameaças ao direito de “sentir-se em casa”
nas suas diferentes dimensões. Evidentemente, reações em nível privatizante para
com estranhos em relação à casa se transformam facilmente em reações extremistas.
O constante conluio entre a hospitalidade incondicional, o poder e a
hospitalidade no sentido corrente faz parte dos ajustes deste acordo a
necessidade de escolher a quem dar hospitalidade: por esse conflito existir nas
diferentes culturas e dimensões de nosso tempo-espaço torna-se impossível
encontrar em nossa civilização a primeira, assim como não há hospitalidade sem
finitude: infelizmente, a soberania sobre um espaço só pode ser exercida quando
se pratica a exclusão e a violência.
Integrar a trama urbana existente com a projetada, abrir e dar passagem aos
espaços da cidade e suas arquiteturas é potencializar os encontros possíveis e a
alteridade. O acolhimento entre diferentes desloca as relações espaciais urbanas
para o plano ético: desconstrói pré-conceitos abrindo novas possibilidades de
reconhecimento, tolerância e coexistência.
Armário Aéreo
Foto Celma Paese
notas
1
Este artigo foi desenvolvido pela autora a partir do capítulo “Acolher” de sua Tese de
Doutorado intitulada Contramapas do Acolhimento (PROPAR-UFRGS 2016).
2
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a
falar da Hospitalidade. São Paulo, Escuta, 2003, p. 23.
3
SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Desconstrução e arquitetura uma abordagem a partir de
Jacques Derrida. Rio de Janeiro, UAPE, 2009, p.153.
4
DERRIDA, Jacques. La Diferencia/ [Différance]. Conferência pronunciada na Sociedade
Francesa de Filosofia em 27 de janeiro de 1968. Disponível
in <http://www.amsafe.org.ar/formacion/images/2013-
CursoDirectores/Eje4/Jacques%20Derrida%20-%20La%20Diferencia.pdf>.
5
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p.
29-57
6
SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Op. cit., p. 153.
7
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Op. cit., p.129.
8
SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Op. cit., p. 140-141.
9
SOLIS, Dirce Eleonora Nigro. Op. cit., p. 150.
10
Derrida comenta que a destituição ocorre quando o sujeito mergulha no movimento da
implacável lei da hospitalidade: O hospedeiro, que se acredita proprietário do lugar,
é na verdade um hóspede recebido em sua própria casa e, até mesmo, em sua própria
terra. Estamos de passagem como hóspedes, residentes provisórios neste e noutros
mundos: no papel de host, o hospedeiro é um guest. A habitação, assim como a cidade e
a terra de asilo, em sua essência é sem essência. Nota da autora a partir de: DERRIDA,
Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 58.
11
FUÃO, Fernando. As formas do acolhimento na arquitetura. In SOLIS, Dirce Eleonora
Nigro; FUÃO, Fernando Freitas (Orgs.), Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro, EdUERJ
2015, p. 62-63.
12
FUÃO, Fernando. Op. cit.
13
FUÃO, Fernando. Op. cit., p. 65-66.
14
“O hospedeiro torna-se hóspede do hóspede. O hóspede (guest) torna-se hospedeiro
(host) do hospedeiro (host)”. DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Op. cit., p.
109.
15
FUÃO, Fernando. Op.cit.
16
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Op. cit., p. 45, 47 e 49.
sobre a autora