Endividamento, crise
econémica e a tendéncia
de queda na taxa de
lucro — uma perspectiva
temporal
Andrew J. Kliman*
Resumo
Este artigo mostra que o crescimento inadequado de valor novo é 0 determinante
crucial das diversas formas de crise — superprodugio, crise de endividamento e defla-
gao de débitos, instabilidade financeira e crise fiscal do Estado. Confronta-se, pois, a
teoria de Marx, segundo a qual a taxa de crescimento do valor é determinada pela taxa
de crescimento do emprego, a teoria marxista dominante, segundo a qual a lucrativida-
de ¢, implicitamente, a taxa de crescimento do valor sao determinadas principalmente
pelo crescimento da produtividade, Argumenta-se que a primeira teoria ¢ bem mais ade-
quada para dar conta de diversos e importantes fenémenos macroeconémicos.
Palavras chave: endividamento, crise econémica, Marx, lucratividade € valor.
Apés 0 recente sucesso do Brasil em obter crédito novo, o financista George
Soros ¢ Michel Camdessus, do Fundo Monetério Internacional, declararam que
nao hé risco de uma crise global. O que eles quiseram dizer é que mais uma vez
o mundo conseguiu se salvar dos fluxos de capital. Mesmo que isto se mostre
verdadeiro, centenas de milhdes de pessoas no leste da Asia, na Russia, no Bra-
sil e onde mais os efeitos tenham se produzido, continuam a ser afetadas grave-
mente pelos resultados da crise. O fim da crise significa apenas que crise per-
manente nfo existe no capitalismo. Ou melhor, que o sistema vai cambaleando
de uma crise a outra. O proprio Soros esté aguardando a préxima.
* Assistant Professor, Economics. Department of Social Sciences. Pace University. Pleasantvi
NY 10570 USA. Andrew_Kliman@msn.com. akliman@pace.edu
486 REVISTA Soc. bras. Economia Politica, Rio de Janeiro, n* 6, p. 48-73, junho 2000O problema fundamental é 0 antagonismo entre dois aspectos do proces-
so de produg&o que caracteriza 0 modo de produgio capitalista — a produgao
de valores de uso (bens ¢ servigos) ¢ a produgao de valor. Por um lado, “ele
tende em diregao ao desenvolvimento absoluto da forgas produtivas (...) enquan-
to, por outro lado, seu objetivo é manter 0 valor do capital existente e valoriz4-
lo (expandir seu valor) 0 maximo possivel” (MARX, 1981b, p. 357-58). Como
a produtividade cresce, o valor das mercadorias cai. Esta incapacidade do valor
de se auto-expandir suficientemente leva a quedas abruptas na produgio de
valores de uso, justamente porque esta e a produgio de valor nao sao senio
aspectos diferentes de um mesmo processo de produgao.
A ultima crise tem sido vista como uma crise de superprodugao. ou como,
uma crise de insuficiéncia de demanda e de endividamento. Assim, minhas prin-
cipais questdes so: 1) O que determina o crescimento da demanda? 2) O que
determina o volume sustentvel de endividamento?
O primeiro objetivo deste artigo é mostrar que o ponto chave para se re-
solver ambas as questdes ¢ 0 mesmo: o crescimento de valor novo. Mais do que
um apéndice “metafisico” sem qualquer influéncia nas rela¢des reais — como
€ 0 status ao qual as teorias atemporais 0 reduzem — a taxa de auto-expansao
do valor ao longo do tempo é um determinante crucial da dinamica do capita-
lismo. Ela tem uma influéncia decisiva na taxa de lucro, a qual afeta a demanda
por investimento e, por conseguinte, a demanda total. O crescimento excessivo
do endividamento deve ser definido em relagao a taxa de crescimento do valor,
uma vez que esta tiltima determina 0 volume de endividamento possivel.
Se isto estiver correto, ent4o uma questao adicional deve ser formulada: 0
que determina a taxa de crescimento do valor? Segundo a teoria de Marx, ela é
determinada pelo crescimento do emprego, ou mais precisamente, do trabalho
vivo extraido na produgao. O segundo objetivo deste artigo é argumentar que
esta teoria explica fenémenos importantes de modo mais convincente do que a
teoria dominante nos circulos marxistas, segundo a qual a taxa de lucro (e im-
plicitamente, a auto-expansio do valor) é determinada principalmente pela pro-
dutividade. O que deve ser explicado ¢ a co-existéncia dos seguintes fendme-
nos: (1) 0 crescimento extremamente lento, quando nao negativo, do emprego;
(2) 0 aumento da produtividade, incluindo-se ai a revolugao microeletrénica,
que impulsionou a Terceira Revolugao Industrial; (3) a tendéncia de queda dos
precos, recentemente intensificada; (4) o crescimento do peso dos endividamen-
tos privado e pitblico; ¢ (5) a crise econémica que aparece sob a forma de su-
perprodugio e crise de endividamento.
REVISTA Soc. bras. Economia Politica, Rio de Janeiro, n¥ 6, p. 48-73, junho 2000 +49Tautologias x Explicagao
Num trabalho recente ¢ polémico, Robert Brenner argumenta que “a na-
tureza competitiva, nao coordenada e nao planejada” (BRENNER, 1998, p. 8)
do capitalismo impele as empresas a competirem para se expandirem. Assim
elas se expandem sistematicamente mais rapido do que a demanda permitiria
no longo prazo — “nfio hé demanda suficiente para compatibilizar os custos
mais elevados das firmas com a manutencao das taxas de lucros precedentes”
(BRENNER, 1998, p. 25). O resultado é uma crise de excesso de capacidade e
superprodugao, isto é, produgao acima do nivel da demanda.
O defeito fundamental dessa interpretagao é que ela constitui de fato uma
tautologia e nao uma explicagao para a crise. Como apontou Marx: “E pura
tautologia afirmar que as crises so provocadas por falta de demanda efetiva ou
de consumo. (...) O fato de que as mercadorias so invendaveis nfo significa
sendo que nao se encontram compradores efetivos para elas.” (MARX, 198 1a,
p. 486). Atribuir a crise ao excesso de produgao em relagao & demanda ¢ sim-
plesmente reafirmar, em outras palavras, a existéncia da crise. Isto no explica
a causa da crise. Para tanto, precisariamos explicar por que o volume produzi-
do é excessivo, ou seja, por que a demanda é insuficiente para permitir a venda
do total produzido aos precos vigentes.
Brenner nao se esforga muito para fornecer esta resposta. Greider (1997),
outro recente advogado da tese de superprodugao, também falha neste ponto. A
tendéncia em transformar tautologias em explicagdes também pode ser obser-
vada nas tentativas em moda de atribuir a crise econémica na Asia a expansio
excessiva do crédito. Isto coloca a questéo nos mesmos moldes das teses de
superprodugio, O que o rapido refluxo de capital da regiao significa é justa-
mente que um fluxo precedente provou ser exagerado. O fendmeno é reafirma-
do, porém nfo é explicado.
Observagao similar pode ser feita com relagdo a “hipotese de instabilida-
de financeira” de Minsky (1982). Esta teoria, ao enfatizar o crescimento exces-
sivo do endividamento que ocorre em periodos normais — financiamentos
especulativos e do tipo Ponzi — oferece insights valiosos sobre as condigdes
que levam os choques a se transformarem em crises abertas que atingem toda a
economia. Contudo ela nao explica as causas desse crescimento excessivo do
endividamento (ou seja, nao explica com relagao a que ele se torna excessivo).
Assim como Brenner e Greider precisariam explicar por que a demanda nao
consegue acompanhar a producao, as interpretagdes sobre a crise que se baseiam
na questo financeira tém de explicar porque a capacidade da economia em
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