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Em Portugal, o mutualismo começou nos finais do século XVIII ou, na tese de Costa
Goodolphim, precisamente em 1807. Numa ou noutra hipótese, as nossas primeiras
associações de socorros mútuos adoptaram o nome de montepios. Sabemos infelizmente
demasiado pouco a respeito das nossas instituições e continua por fazer a história do
movimento mutualista entre nós. A escolha do nome de montepios não está sequer
suficientemente esclarecida. A palavra, cuja origem parece ter sido a expressão italiana
monte di pietá, designou no século XVI organismos que prosseguiam simultaneamente
fins de crédito e de entreajuda ou beneficência. Quando acabou o século XVIII ou
começou o século XIX, ela passou a designar as primeiras instituições que entre nós
correspondiam às friendly societies ou em França, às associations fraternelles ou
sociétés de secours mutuels. O termo montepio alternava na denominação das
instituições com outros termos ou expressões, como associação fraternal, associação
de socorros ou simplesmente associação.
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O movimento associativo manifestou-se entre nós sob diferentes formas. Houve, por um
lado, um associativismo que agrupava os operários e, por outro lado, um associativismo
burguês (e mais seguramente pequeno-burguês), que estava aberto a todas as classes.
Daí que tivessem sido criados montepios que eram associações operárias, a par de
outros que não tinham essa natureza. As associações operárias que restringiam a
admissão a determinada categoria profissional eram qualificadas, na linguagem do
tempo, como associações de classe. O associativismo patronal, que conheceu um
primeiro surto logo a seguir à dissolução dos grémios dos ofícios, não parece ter sido
sensível às preocupações mutualistas e distingue-se assim das características
dominantes no restante movimento associativo, incluindo o que chamámos aqui associa-
tivismo burguês.
Pelo menos até 1880 verificou-se uma influência relativamente importante dos modelos
das confrarias ou irmandades na criação das associações de socorros mútuos, quer se
tratasse de associações operárias, quer se tratasse de associações burguesas ou pequeno-
burguesas. As associações incluíam frequentemente nas suas denominações invocações
religiosas. Em certos casos, não há dúvida de que as associações resultaram da
transformação de confrarias ou irmandades e noutros casos parece ter havido conflitos
entre as novas associações e as confrarias ou irmandades anteriormente existentes. As
confrarias ou irmandades tinham sido, sob alguns aspectos, precursoras das associações
de socorros mútuos. De qualquer modo, esta conversão de instituições eclesiais em
instituições civis representa um processo de secularização, sobre o qual escasseiam
informações.
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Entre nós, o último episódio desta luta verificou-se com algum atraso. Em 1933, o
jornal O Século organizou uma semana de mutualismo e no ano seguinte realizou-se o
terceiro e último congresso da mutualidade. Estes sinais de vida do mutualismo
pretendiam deter a implementação dos esquemas de protecção obrigatória do que
começaria por ser a organização corporativa da previdência.
O novo regime jurídico das associações de socorros mútuos agora definido(1) pode
constituir um desafio ao espírito e à tradição mutualista. Através desse desafio iremos
verificar, após uma experiência de várias dezenas de anos de seguro social, o que no
mutualismo está vivo e o que nele terá morrido. Trata-se, sem dúvida, de um desafio à
nossa capacidade de iniciativa e de imaginação, mas, em qualquer caso, haverá que
discutir tão seriamente quanto possível o que deve caber ao Estado e o que pode caber
às organizações autónomas no domínio da protecção social.
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Este texto, da autoria de António da Silva Leal (1926-1988), foi extraído de um artigo
publicado no “Diário de Notícias”, em 20-01-1982.