Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Os textos não são sequências ou somatórios de frases, mas constituem um todo de sentido,
estruturado de modo que as suas partes estejam umas em relação às outras e só assim possam ser
interpretadas. Os textos possuem marcas do contexto sócio-histórico em que foram produzidos, todos
são objetos históricos. Do ponto de vista da superfície textual, além dos enunciados postos, explícitos,
outros conteúdos podem ser inferidos a partir deles, informações implícitas marcadas ou não no
enunciado (pressupostos e subentendidos).
Ao tratar dos textos, nós o abordaremos sob dois aspectos: primeiramente atentaremos para os
recursos que empregam elementos de natureza linguística, da sua superfície, que são responsáveis pela
coerência e coesão textuais e, posteriormente, os elementos de natureza discursiva, enunciativa, que são
responsáveis por construir sua argumentatividade.
Todo texto tem mecanismos que constroem o encadeamento coerente e organizado de seu
conteúdo, recursos que permitem retomadas de elementos textuais já enunciados e outros que
possibilitam a sequenciação das ideias. Num texto, deve haver equilíbrio entre os conteúdos já ditos,
retomados e conteúdos novos, que fazem o texto progredir.
Uma das formas de construir a unidade semântica do texto e dar-lhe coesão e coerência é um
procedimento chamado de referenciação. Segundo Koch e Elias,
Esses referentes não devem ser entendidos como elementos linguísticos que espelham o mundo
diretamente, ou como etiquetas, mas sim como construções (e reconstruções), no próprio discurso, das
coisas do mundo, como são percebidas e vistas pelos falantes. As estratégias de referenciação incluem a
introdução de um objeto de discurso, sua manutenção ou retomada ou mesmo sua desfocalização, pela
introdução de um novo objeto de discurso que passa a ser o foco. Os textos abaixo, cartas de leitores
publicadas no jornal Folha de S. Paulo, em seção específica, servirão como exemplos de como se dá a
referenciação nos textos:
TEXTO I
CPI do Cachoeira
É claro que Márcio Thomaz Bastos, autor do artigo “Serei eu o juiz do meu cliente?”
(Tendências/Debates, 14/06), não deve ser o juiz de seus clientes. Ele é um advogado e tem o
dever de defendê-los, mas, no caso específico de Carlinhos Cachoeira, deveria ter ficado de
fora. Thomaz Bastos foi ministro da Justiça e comandou, de certa forma, a investigação sobre
Cachoeira realizada pela Polícia Federal.
MARIA S. GARCIA
(Curitiba, PR)
TEXTO II
Li com atenção o artigo “Serei eu o juiz do meu cliente?”, de Márcio Thomaz Bastos. O
insigne jurista adverte para o “apedrejamento moral, não presunção de inocência” de seu
cliente. Ouso discordar do ex-ministro da Justiça. Acho que a indignação dos brasileiros é
uma reação normal de cidadãos cansados do rodízio de pizzas servido pelo sistema
judiciário e político neste país de impunidade chamado Brasil. Acho, sinceramente, que o
nobre e competente jurista deveria escolher melhor seus clientes.
LUIZ CEZARE VIEIRA
(Florianópolis, SC)
(Painel do Leitor, Folha de S. Paulo,
09/06/12)
Tomemos os mesmos textos (I e II) para tratarmos de alguns dos recursos discursivos
empregados. A observação de seu emprego torna o produtor do texto mais consciente das
estratégias adequadas a seus propósitos argumentativos, fazendo seu leitor crer em seu dizer (ou
pelo menos considerá-lo como merecedor de atenção), aceitando seu ponto de vista como verídico
ou possível.
Um dos mecanismos discursivos a que devemos atentar é a escolha da projeção da
enunciação em primeira ou em terceira pessoa. Essa escolha cria um efeito de sentido de
subjetividade ou objetividade, respectivamente. No Texto I, o comentário é realizado sem que haja
marcas linguísticas da presença do enunciador e referências à situação de comunicação no texto, os
chamados dêiticos. O narrador optou pelo uso da terceira pessoa em todo o texto, diferentemente do
narrador do Texto II, que explicita a sua presença pela projeção de um eu que fala, expresso pela
marca de primeira pessoa nos verbos (li, ouso, acho). No primeiro texto, as afirmações tomam uma
feição de objetividade, de distanciamento, enquanto no segundo, o efeito de subjetividade é o que
prevalece. Neste último, a reiteração do verbo achar, que explicita a declaração subjetiva da crença
pessoal e de assunção das avaliações feitas. São duas formas de fazer crer, mas isso não significa
que no Texto I não haja marcas de subjetividade presentes.
Na carta de Maria S. Garcia (Texto I), outro recurso, a modalização, marca a presença da
enunciação no enunciado. A modalização é um mecanismo pelo qual um enunciado, dito modal,
sobredetermina outro enunciado, indicando o modo como ele deve ser tomado (como certo,
verdadeiro, obrigatório, necessário, possível, provável, crível, duvidoso, hipotético, etc.). Portanto,
indica o julgamento do enunciador em relação ao dito. No Texto I, a oração “É claro”, modaliza o
enunciado seguinte (“que Márcio Thomaz Bastos [...] não deve ser o juiz de seus clientes”),
tornando-o evidente, certo, verdadeiro. O uso do modo indicativo dos verbos ser e dever, nesse
mesmo enunciado, é outra marca da modalidade epistêmica (relativa ao saber e ao crer) da certeza.
O verbo dever é um elemento modal, que mostra, nesse caso, uma obrigação que modifica os
enunciados que determina (não ser juiz dos clientes, ter ficado de fora [da defesa de Cachoeira]).
Na oração “mas, no caso específico de Carlinhos Cachoeira, deveria ter ficado de fora”, o fato de o
verbo dever estar no futuro do pretérito indica uma hipótese (ou seja, a obrigação moral de o ex-
ministro ficar de fora no caso de Carlinhos Cachoeira é uma hipótese que não se realizou). Ao
modificar as afirmações feitas pela certeza, pela veridicidade, pela obrigação, pelo hipotético, o
enunciador vai direcionando o modo como o leitor deve tomá-las e compreendê-las.
Outro recurso para dar credibilidade ao texto e encaminhar o leitor para a aceitação de certos
valores é o emprego da intertextualidade, da citação. Nos dois textos que nos servem de ilustração,
a alusão a um texto escrito por Márcio Thomaz Bastos, com a citação do título e, no caso do Texto
I, a seção do jornal e data em que foi publicado, torna os comentários feitos credíveis, já que se
baseiam no próprio discurso do ex-ministro. A citação de uma expressão do próprio advogado,
marcada pelas aspas, cria o efeito de debate equilibrado e de consideração do ponto de vista
contrário, mostrando que os comentários são fruto de uma reflexão cuidadosa (“Li com atenção o
artigo...”), portanto, confiável.
Outra maneira de fazer crer nas considerações apresentadas nas duas cartas é construir a
qualificação do enunciador. Nas duas cartas, há informações que demonstram o conhecimento do
autor em relação à personalidade criticada. Ambos demonstram saber que Bastos já foi Ministro da
Justiça e comandou a investigação de Cachoeira, além de ter informações sobre as acusações que
pesam sobre este. Mostram-se, então, sujeitos atualizados em relação aos fatos concernentes à
política, cientes das obrigações relativas às ações jurídicas envolvidas no caso e leitores assíduos do
jornal. Essas qualificações autorizam-nos a dar sua opinião sobre as declarações de Bastos no artigo
citado e sobre seu comportamento ao aceitar defender Cachoeira. O uso da norma padrão é outro
recurso importante para qualificação do autor, nesse gênero de texto.
Nos textos, também está construída a imagem do destinatário das cartas, leitores do jornal.
São também sujeitos conhecedores das atualidades na política, de modo que possam inferir certas
informações que estão implícitas nos textos. Não há nenhuma descrição do “caso específico de
Carlinhos Cachoeira” (o Texto II nem faz menção ao nome do “cliente” do ex-ministro!), por
exemplo.
A previsão precisa e a inscrição no texto das qualificações do leitor (seus saberes, suas
crenças, seus pontos de vista, etc.) são fundamentais para que o texto seja compreensível e cumpra
sua função com eficácia. Do mesmo modo, a construção de uma imagem positiva do autor (dotado
de um saber sobre os assuntos de que trata e de um saber dizer, empregando recursos variados e
perspicazes de argumentação) é fundamental para a escrita de um bom texto. No Texto II, por
exemplo, a ironia é uma figura de linguagem que torna a crítica ao jurista mais mordaz e
interessante. Essa figura se explica por uma oposição entre o dito e o dizer, produzindo efeito
humorístico, geralmente. Na carta do leitor, as qualidades enunciadas sobre Bastos (insigne, nobre,
competente), em tom cerimonioso e respeitoso (o dito), opõem-se à intencionalidade de criticar
duramente o jurista (o seu dizer).
Outro recurso que se baseia na construção de uma imagem perspicaz do leitor é o emprego
de implícitos, especialmente o subentendido. No Texto II, o missivista insinua, por meio desse
implícito, que o advogado Thomaz Bastos pode ter informações privilegiadas sobre as acusações de
seu cliente ou até influência política na condução do processo, já que comandou a investigação
sobre ele feita pela Polícia Federal como então Ministro da Justiça. Essa insinuação não é assumida
claramente pelo enunciador, não está explicitada nos enunciados, mas seu conteúdo é deixado a
cargo do leitor, que deve ter a argúcia de apreendê-lo. Esse implícito, o subentendido, é uma forma
de dizer sem dizer, que apenas é inferido pelo contexto linguístico ou situacional, mas o autor pode
sempre negar que tenha dito o que disse.
Esses são alguns dos procedimentos discursivos e argumentativos que podem tornar os
textos mais bem escritos e adequados, fazendo com que os leitores assumam o ponto de vista do
autor e aceitem seus valores e proposições ou possibilitem reflexão e visão crítica, proporcionando
prazer na leitura.