Sunteți pe pagina 1din 25

CULTO À IMAGEM :

OS SEGREDOS DO AMOR.

Por Lídia A. Rodrigues Silva Mello

RESUMO:
A partir da constatação de que o contemporâneo realizador chinês Wong Kar-Wai é
um formalista e cultua a imagem, propõe-se neste ensaio refletir a estética do seu
fazer cinematográfico, no filme 2046 – os segredos do amor (2046, China, 2004),
seus elementos formais, estéticos; sustentada sobretudo, pelos teóricos franceses
Gilles Deleuze e Jacques Aumont, e por outros teóricos do cinema.
Palavras-chave: Estética. Imagem. Culto. Arte. W.Kar-Wai.

Résumé
En partant de la constatation que le réalisateur chinois, il contemporain Wong Kar-
Wai, est un formaliste et fait culte à l`image, on propose dans cet article reflexir la
esthétique de sa façon de faire du cinema, dans son film 2046 – les secrets d`amour
(2046, Chine, 2004), des éléments formels, esthétiques. Basée sur les théories,
principalment, des auteurs français: Gilles Deleuze et Jacques Aumont, et par
d`autres théoriciens du cinéma.
Mots-Clès: Esthétiques. Image. Culte. Art. W.Kar-Wai.

Todos nós temos necessidade de um lugar onde


guardar, estocar e esconder lembranças,
pensamentos, impulsos, esperanças e sonhos.
São aspectos da nossa vida que não podemos
resolver e sobre os quais não podemos agir. (...)
Para alguns, este lugar é um espaço real; para
outros, um espaço mental e para um número
reduzido de pessoas não é nem um nem outro.

W.K.Wai
1. Palavras Primeiras

A proposta deste ensaio é voltar-se para uma reflexão estética dos elementos
visuais utilizados por Wong Kar-Wai1 no seu filme 2046 - os segredos do amor.
Partindo da mirada de que esse diretor faz um cinema que cultua à imagem, pretendo
investigar como ele cria, recria e exercita o formalismo.
Jacques Aumont2, afirma que “a forma é a estrutura dos elementos visuais que
compõem um objeto visível” (1993, p.274). O teórico argumenta que a teoria da
Gestalt3 define “a forma como esquema de relações invariantes entre certos elementos
(1993, p.68)’. Ou seja, no caso do cinema é a maneira de como se estrutura e dispõe
as partes do todo (os elementos de determinada imagem) e o modo pelo qual
construímos o campo visual (objeto-espaço-tempo) e pelo qual se revela a nossa
percepção daquilo que vemos na tela, no quadro fílmico. Como instrumento para
identificar as escolhas estéticas e desvelar a expressividade cinematográfica de Wong
Kar-Wai, assim como para estabelecer um diálogo com seu cinema, selecionei,
principalmente os autores Jacques Aumont e Gilles Deleuze4; e ainda Christian Metz5,
Francis Vanoye6 e Anne Goliot-Lété7, dentre outros teóricos do cinema.
Com esses autores, espero encontrar sustentação teórica para minhas intuições,
reflexões e interpretações.
1
Designer que trabalhou com publicidade, roteirista e cineasta reconhecido no campo do cinema,
nascido em Shanghai, China, na Ásia, em 1958, viveu maior parte da sua vida em Hong Kong
atualmente vive nos U.S.A.
2
Nasceu na França em 1942, é ainda professor atuante em Paris, e teórico de análise fílmica e estética
do cinema, tem como principais obras: A imagem (1993), A estética do cinema (1994) e O olho
interminável-cinema e pintura (2004).

3
A Gestalt (palavra alemã, que significa dar forma) ou teoria da forma, surgiu no início do século XX.
A Escola da Gestalt, como ficou conhecida, desenvolveu uma teoria da percepção com base em um
rigoroso método experimental, que possibilitou a compreensão da maneira como se ordenam ou se
estruturam, no nosso cérebro, as formas que percebemos.
4
Um dos mais importantes filósofos do séc. XX foi professor, teorizou também sobre o cinema e outras
artes. Nasceu na França em 1925 e faleceu em 1992. Tem como principais obras cinematográficas: A
imagem-movimento (1985) e A imagem-tempo (1990).
5
, teórico da semiologia e psicanálise do cinema, foi professor em Paris. Nasceu na França em 1931 e
faleceu em 1993. Suas principais obras são: A significação no cinema (1968), Linguagem e cinema
(1971) e O significante imaginário (1977).
6
É professor emérito de estudos cinematográficos da Universidade Paris X, Nanterre. Suas principais
obras traduzidas para o português são: Usos da linguagem – Problemas e técnicas na produção oral e
escrita (1979) e Ensaio sobre análise fílmica (1994), em colaboração com a autora Anne Goliot-Lété.
7
Conferencista e pesquisadora da Universidade Paris VII, Denis Diderot.
2
O termo estética, conforme Aumont (1993, p.302), “O termo Estética, forjado
na metade do século XVIII, a partir da raiz grega aesthesis, sensação, sentimento, a
palavra designou primeiro, com precisão, o estudo das sensações e dos sentimentos
produzidos pela obra de arte”.
A palavra estética, aos poucos, passou a abranger toda reflexão que tem por
objeto as artes em geral ou uma arte específica. Engloba o estudo dos objetos
artísticos e os efeitos que provocam no observador, abrangendo os valores artísticos, a
percepção e a questão do gosto. Contemporaneamente, sob uma perspectiva
fenomenológica (de um conjunto de fenômenos), não existe mais a idéia de um único
valor estético, a partir do qual julgamos todas as obras de arte. Cada objeto artístico
estabelece sua própria beleza, ou seja, o tipo de valor pelo qual será julgado. Os
objetos artísticos são belos porque são autênticos, segundo seus modos de serem
singulares, e carregam significados que só podem ser percebidos por meio da
experiência estética.

Com relação ao conceito de estética do cinema, Aumont (1995, p.15), “A


estética abrange a reflexão sobre os fenômenos de significação considerados como
fenômenos artísticos. A estética do cinema é, portanto, o estudo do cinema como arte,
o estudo dos filmes como mensagens artísticas”.
Considero que o cinema enquanto arte proporciona prazer ao espectador e ao
realizador, na leitura e construção das imagens. Os aspectos acima estão intrínsecos
no cinema desse realizador, sobretudo do filme em estudo, 2046.
Sobre o conceito de análise fílmica, no livro Ensaio sobre análise fílmica,
Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994, p.52), relatam que: Analisar, descrever um
filme, contá-lo, já é interpretá-lo, pois isso é, de certo modo, um processo de
reconstrução audiovisual. Todavia, os autores, falam das necessidades de estabelecer
limites à interpretação do analista. A interpretação semântica está ligada aos processos
pelos quais o leitor/espectador confere sentido ao que lê ou vê e ouve. A interpretação
crítica já remete à atitude do analista que pesquisa como e por que, na esfera de sua
organização estrutural, o texto (literário ou fílmico) produz sentido (1994, p.52). Metz
(1980, p.85) traz outra definição: “o que se denomina estudo dos filmes (...) trata-se
de análises nas quais o filme não é considerado simplesmente como um exemplo ou
3
amostra (...) mas como uma totalidade singular examinada enquanto tal (...)”.
A partir desses conceitos, inicio a reflexão, por acreditar que é um caminho
para construir ou desconstruir um filme, um produto, por assim dizer, audiovisual,
pensando a visualização, compreensão e interpretação da imagem, dos valores formais
de 2046. Esta opção não é uma fórmula específica, pronta, e nem é subjetiva, pois
como diz Vanoye (1994), a análise fílmica depende da atitude do analista, de como ele
estrutura, organiza, interpreta o texto fílmico e dá sentido ao mesmo. Eu diria
também, que depende dos elementos que o filme nos oferece e das particularidades do
cinema que faz o realizador Kar-Wai, que desvendarei ao longo deste exercício
teórico. A intenção não é, a de esgotar esse assunto, mas criar trajetos possíveis de
serem trilhados.

1.1 SOBRE O FILME E SEU ENREDO

Perguntado numa entrevista8 sobre o que era o seu filme 2046 os segredos do
amor, Kar-Wai respondeu: “O filme é sobre promessa. Em 1997, o governo da China
prometeu 50 anos de mudanças. Eu pensei que deveria fazer um filme sobre
promessas. O filme se passa em 2046, é um filme futurístico, mas não de ficção
científica”. Num outro momento de sua fala o diretor relata também, que é um filme
sobre o amor, sobre homens e mulheres à procura de amor.
Não obstante a origem do realizador seja oriental, seu cinema é bastante
ocidentalizado. Quanto ao título do filme, é uma referência que o diretor faz ao ano de
2046, ano em que Hong Kong (antiga colônia inglesa e a cidade em que foi filmada a
maioria das cenas de seus filmes) perderá sua autonomia político-cultural e passará a
fazer parte definitivamente da administração econômico-política e cultural chinesa
(esse é um elemento, extra-diegético - fora da narrativa).
Kar-Wai dirigiu dez longas metragens desde 1989 até 2007, são eles: Conflito
mortal (1988), Dias selvagens (1991), Cinzas do tempo (1994), Amores Expressos
(1994), Anjos caídos (1995), Felizes Juntos (1997), Amor à flor da pele (2000), 2046
- os segredos do amor (2004), Eros (2004) e Um beijo roubado (2007). Somente o
8
Concedida ao IndieWire e publicada no site Zeta Filmes em 2008, está disponível em
http://cinefabico.wordpress.com/2010/04/14/entrevista-com-wong-kar-wai/, acesso em 20/05/2013.

4
último não foi filmado em Hong Kong (ver mais detalhes sobre o histórico da sua
filmografia em anexo). Ao ambientar praticamente toda sua cinematografia em Hong
Kong, se ampara em vestígios da memória e na nostalgia dessa metrópole que, para
ele, já não existe mais.
Além da direção, produção, e com roteiro próprio, Kar-Wai, constroi o enredo
de 2046 com as histórias de amor (de nomadismo afetivo) e a trajetória do escritor
Chow Mo-Wan – o protagonista (Tony Leung Chiu Wan), ele retorna a Hong Kong
para escrever o romance 2046 e se hospeda num hotel. Ele assume a personalidade de
um conquistador, de um “Dom Juan”, e inicia uma série de relações amorosas com
quatro diferentes belas mulheres: as atrizes Carina Lau (como as prostitutas
Lulu/Mimi - a prostituta mais velha), Ziyi Zhang (como Bai - a prostituta jovem),
Gong Li (como Su Li Zhen – a jogadora de cartas), e Faye Wong (como a filha do
dono do hotel), por quem Chow se apaixona (mas esse amor não se realiza). Todas
vivem e se hospedam no quarto 2046, em frente ao seu.

Fotos do protagonista do filme (Chow) e suas diferentes mulheres

Atormentado pelas lembranças dos anos que passou em Singapura, Chow


escreve um livro de ficção, chamado 2046 (no qual relaciona fatos de sua própria de
vida). Escreve uma história sobre passageiros de um trem que fazem uma viagem que
parece sem fim (viagem a qual não se sabe de fato se alguém retornou), rumo a um
destino misterioso (2046), onde esperam reencontrar suas memórias perdidas. Não é
por acaso, que na frase escolhida para a epígrafe, o realizador nos diz que todos nós
buscamos um lugar onde guardar e esconder lembranças, pensamentos, esperanças e
sonhos. Eis aqui temas tratados no seu filme, rememorações tipicamente proustianas,

5
de um tempo que já se foi, de um “tempo perdido”.

1.2 REFLETINDO O FILME

Pensar, analisar um filme, segundo Vanoye e Goliot-Lété (1994, p.15), é


“decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar (...) e denominar
materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela
totalidade. Parte-se (...) do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de
elementos distintos do próprio filme”. Completa os autores: “Analisar um filme não é
mais vê-lo, é revê-lo e, mais ainda, examiná-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra
atitude com relação ao objeto-filme, que, aliás, pode trazer prazeres específicos:
desmontar um filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme
for realmente rico, usufruí-lo melhor. A análise de um filme (...) faz com que se
descubram detalhes do tratamento da imagem (...) que aumentam o prazer a cada vez
que se revê a obra” (1994, p.12
A trama do filme é articulada entre a memória (por meio da voz off, cuja fonte
não é vista) do narrador-personagem principal, o escritor Chow/Tony Leung, e a
história de ficção do romance que ele está escrevendo. A voz off indica os fatos, é um
fio condutor que nos leva ao passado ou ao futuro, abrindo assim uma dupla
perspectiva temporal - e as imagens vêm ilustrar e elucidar seu papel evocativo, de
causar impressão no espectador.
No início, na abertura e no final do filme é possível visualizar imagens em
forma de círculo, o espectador é apresentado a uma série de espirais, narrativas de
memória, com ruptura dos planos retomados da narrativa e estranhas transformações
dos personagens; vemos, portanto uma câmera que entra num buraco escuro, focando
um estranho objeto arredondado, uma espécie de olho que vai apresentar, situar o
espectador, e desvelar o universo e a memória de 2046.

Fotos da abertura do filme


2046 é o número que vimos na porta do quarto de Hotel, usado para os
6
encontros furtivos de amor, do casal de protagonistas do filme anterior de Kar-Wai,
Amor à flor da pele, (China, 2000) numa cena quase na metade do filme, e também é
o número do quarto do Hotel em que Chow encontra com suas mulheres de 2046; e
ainda o lugar de destino do trem - a cidade futurística, o nome do romance que Chow
escreve. Outra referência utilizada pelo diretor em Amor à flor da pele é a cena (quase
no fim do filme) em que o protagonista Chow (de mesmo nome/personagem também
em 2046) conta para um outro personagem num restaurante: “antigamente, quando
uma pessoa tinha um segredo, subia uma montanha procurava uma árvore, abria um
buraco nela e sussurrava o segredo dentro do buraco; e depois o cobria com lama, e lá
ficava o segredo pra sempre”. Esse diálogo também ouvimos por meio de um
narrador, no início e em outros momentos do filme 2046.
O filme 2046 tem um narrador que nos conta em 1ª pessoa uma história da
qual ele também participa (como personagem) e tem uma relação íntima com os
outros elementos da narrativa. Sua maneira de narrar é fortemente marcada por
características subjetivas, emocionais, pela linguagem do corpo, do gesto, do tempo e
do personagem como ser de linguagem. Em 2046, a proximidade com o mundo
narrado revela fatos e situações que um narrador de fora não poderia conhecer - ao
mesmo tempo essa mesma proximidade faz que a narrativa seja parcial e impregnada
pelo ponto de vista do narrador.
Wong Kar-Wai em várias situações do filme deixa o espectador em situações
de voyeurismo. Podemos ver abaixo um exemplo em que Chow (o protagonista) está
no seu quarto, no hotel e age como um “voyeur”, espreitando a filha do dono do hotel;
recurso, porém, que acaba funcionando como um dispositivo.

Fotos exemplo de voyerismo

De acordo com Aumont (1993, p. 175), “dispositivo é o que regula a relação


do espectador com a obra, é suporte da imagem, de ampliação visual para o
espectador”. Nessa vocação de voyeur do personagem Chow, Kar-Wai nos fornece
uma metáfora do escritor (com suas histórias ficcionais relacionadas à suas
experiências pessoais). Essa relação de voyeurismo (categoria de interpretação
7
aplicada ao filme) entre essa personagem e Chow cria instabilidade de ponto de vista:
inicialmente fica claro que Chow é o voyeur, mas em seguida vimos a moça olhando
como se tivesse observando-o; então a câmera se movimenta e nos mostra imagens
desse jogo indireto de espreita. Nosso assunto aqui é a análise da forma, mas é
importante falar do narrador e do voyeurismo para fazer uma melhor abordagem sobre
o filme.
Em 2046 se configura um desenvolvimento narrativo não-linear, o diretor
constrói uma narrativa que passa de um personagem a outro e com repetição de
algumas situações de seus filmes anteriores. Por exemplo, na cena (quase no término
do filme) em que Chow (o protagonista) está com a jogadora de cartas, (a última
mulher com a qual ele se relaciona) e rememora a perda de Su Li-Zhen (perda que
ocorreu em outro momento de sua vida, mas no filme Amor à flor da pele, 2000,
também de Kar-Wai). Outra questão no filme é a forte relação entre o sonoro e o
visual e o intenso aproveitamento narrativo da trilha sonora, que em 2046 funciona
como uma narrativa paralela guiada pelo narrador - mas não nos deteremos também à
questão sonora, pois nosso objeto de estudo é a imagem e não o áudio ou outras
questões fílmicas.

1.3 A IMAGEM, O TEMPO E O ESPAÇO FÍLMICOS

No cinema moderno, cinema do qual faz parte Kar-Wai, a estética da imagem


visual ganha um novo caráter: suas qualidades pictóricas e esculturais (...) adquire
uma nova estética, torna-se legível (...) e revela espaços vazios, lacunares ou
desconectados, imagens fragmentadas (Deleuze, 1985, p.292-293).
Por cultuar a imagem Kar-Wai, pode ser considerado, portanto, um cineasta da
imagem. Como classificou Bazin (1935, p.67), existe no cinema duas grandes
tendências opostas: os diretores que acreditam na imagem e os que acreditam na
realidade. Continua Bazin, por imagem “entendo de modo bem geral tudo aquilo que
a representação na tela pode acrescentar à coisa representada”. Outra definição
encontra-se em Deleuze (1990, p.153), “A imagem não tem como caracteres
primeiros, o espaço e o movimento, mas a topologia e o tempo”.
Kar-Wai trabalha a imagem (com relação à duração dos planos) com uma forte
8
ligação com o tempo; ela ora precisa ser alongada, contraída, dilatada, estendida,
enfim; como dizia o cineasta russo Andrei Tarkovski, trabalhar a imagem é como
esculpir o tempo. Deleuze (1990, p. 56), citando Tarkovski, diz que para este
realizador “o essencial é a maneira como o tempo flui no plano”. Poder-se-ia dizer o
mesmo em relação à Kar-Wai.
Quanto ao espaço em 2046, é quase sempre comprimido, quase claustrofóbico,
mas não constrói obstáculos, e visualmente essa questão nos é demonstrada por Kar-
Wai ao excluir do centro das imagens um ponto de equilíbrio, jogando para as
extremidades ou para fora a ênfase visual.

1.4 COMPOSIÇÃO E ENQUADRAMENTOS

A composição das imagens e os enquadramentos de 2046 (e ainda a direção de


arte: cor, luz, figurino e cenário etc., feita por -Alfred Yau Wai Ming - mesmo diretor
de arte de todos os filmes de Kar-Wai - exceto o último, Um beijo roubado, 2007), são
as questões que nos instigam a fazer a análise do filme e que instauram uma forte
estetização (embelezamento) da imagem. Utilizamos aqui as definições de
composição, de Betton:
A arte da composição consiste essencialmente em organizar e arranjar da
melhor maneira possível todos elementos do principal aos secundários, a
fim de obter um equilíbrio harmonioso do conjunto, ou um efeito
psicológico ou dramático. (1987, p.51).

E Aumont:

A arte de compor foi por muito tempo à arte de dispor convenientemente as


figuras no quadro (personagens, objetos, cenários) e somente à medida que
a pintura se afastou da imitação é que foi englobada a disposição dos
elementos plásticos, valores, cores, linhas e superfícies. (1993, p.270).

Os elementos plásticos da imagem (representativos ou não) são os que a


caracterizam como conjunto de formas visuais e que permitem constituir
essas formas: a superfície da imagem, e sua organização, o que se chama
tradicionalmente de composição, isto é, as relações geométricas mais ou
menos regulares entre as diferentes partes dessa superfície; a gama de
valores, ligada à maior ou menor luminosidade de cada região da imagem -
e o contraste global ao qual essa gama da origem; a gama de cores e suas
relações de contraste; os elementos gráficos simples, especialmente
importantes em toda imagem "abstrata"; a matéria da própria imagem, na
medida em que proporciona a percepção, por exemplo, sob as espécies da
"pincelada" na pintura ou do grão da película fotográfica etc. São esses

9
elementos que fazem à imagem e com os quais o espectador se defronta.
(Aumont, 1993, p.136)

Diante desses conceitos é possível dizer que a composição do quadro fílmico


em 2046 revela signos e tendências da estética do diretor, dentre outros fatores que
falaremos no decorrer desse exercício teórico. De acordo com Deleuze, (1990, p. 44):
“o signo é uma imagem que vale por outra imagem, seu objeto, e a função do signo
em relação à imagem, parece ser cognitiva, pois acrescenta novos conhecimentos em
função do interpretante”.
A escolha de Kar-Wai, dos elementos visuais que compõem a tela de 2046, foi
inspirada em várias linguagens artísticas (retomaremos e exemplificaremos mais a
frente), e ao optar por elementos artísticos para compor suas imagens, Kar-Wai visa
também impressionar os sentidos do observador, aguçar a percepção e sensibilidade
plástica, produzir efeitos visuais, através da luz e do acentuado contraste das cores
(que permite exprimir os sentimentos do personagem e comover intensamente o
espectador). Esses recursos objetivam intensificar a sensação de profundidade - por
meio de cores quentes, da gradação da claridade, das penumbras que envolvem áreas
de luminosidade mais intensa, ou seja, do modo singular o qual faz uso da luz e das
cores, para dirigir a atenção do espectador. Tudo isso podemos perceber na textura da
tela, na superfície de 2046.
Kar-Wai, ao escolher os enquadramentos do seu poema visual 2046, faz sua
opção estética referenciado nesses elementos citados, e num cuidadoso trabalho de
selecionar os signos visuais e equilibrar a tela. Para Deleuze (1990, p. 153), a tela é a
membrana onde se afrontam imediatamente e diretamente, o passado e o futuro, o
interior e o exterior, sem distância designável, independentemente de qualquer ponto
fixo. Sobre o enquadramento vejamos aqui a definição que utilizamos:

O enquadramento é, pois, a atividade da moldura, sua mobilidade


potencial, o deslize indeterminável da janela à qual a moldura equivale em
todos os modos da imagem representativa baseados numa referência.
(Aumont, 1993, p.153).

Quanto aos modos de enquadrar e os elementos da forma visual, utilizados no


filme comecemos com o enquadramento fechado, usado em grande parte de 2046,

10
seguido de movimentos de câmera (recurso que confunde a geografia espacial da
cena) e é escolhido por Kar-Wai, para mostrar primeiro o espaço, para depois
descrevê-lo lentamente, por exemplo, à medida que sublinha os gestos dos
personagens com movimentos de câmera lenta. A descrição do que foi filmado é
mostrado por partes, como se a câmera prolongasse seu tempo, adaptando o cenário a
uma dimensão de espaço distorcido e atemporal, o que pode ser visto na cena no
início do filme, em que Chow (ainda em Singapura) e Su Li-Zhen estão a decidir seus
destinos num bar.
Aumont (1993, p. 154) nos fala de outros tipos de enquadramento que gostaria
de citar: “O superenquadramento (o quadro dentro do quadro, criação de centros
visuais) e reenquadramento (movimento do quadro que prioriza um
sujeito/personagem)”. Técnicas que Kar-Wai também utiliza muito em 2046, através
de espelhos, janelas, paredes, portas, cortinas etc. Ilustro abaixo como exemplo a cena
em que Chow está jantando num restaurante com a filha do dono do hotel.

Fotos exemplo de enquadramento


E ainda Kar-Wai faz uso do desenquadramento, como uma marca de seu
estilo, de compor a imagem. Aumont (1993) citando Pascal Bonitzer (1977), define
“desenquadramento” como um enquadramento desviante, marcado como tal e que
procura distinguir o enquadramento da equivalência automática do olhar. E, pois um
descentramento, esvaziamento, deslocamento das zonas significantes (em 2046 são os
personagens) para as bordas da imagem através de movimentos de câmera, para
estabelecer uma forte relação entre o personagem e o lugar, o que introduz uma forte
tensão visual em que o espectador tem tendência, quase automática, a reocupar esse
centro vazio. Apoiando-se nas variações do enquadramento Kar-Wai propõe no filme
poucos enquadramentos simétricos. Um exemplo é o plano, o insert que enquadra o
número 2046 na porta do hotel.
O diretor cria campos vazios e ângulos insólitos, “isolando” corpos
fragmentados ou às vezes inteiros em planos abertos, com uma excentricidade dos
11
pontos de vistas que ora destaca ou ora “expulsa” os corpos para fora do quadro. Os
personagens são raramente centralizados no quadro, ficam desenquadrados ocupando
apenas um canto da imagem (são mostrados como seres a contemplar, seres de
imagens, ícones).
Kar-Wai mostra, por exemplo, um encontro de seus personagens dentro do
trem numa cena de olhares cruzados, a câmera os enquadra em planos fechados, e
nessa composição do quadro há uma vacuidade entre os atores e o limite/bordas do
quadro (tipo de composição, de efeito comum em lay-outs de publicidade).
A iluminação, quase sempre difusa em 2046, cria atmosferas, designa zonas
significantes através das variações do brilho e contraste, uma luz que envolve
personagens e objetos, une-os ou os afasta, que causa impressão de profundidade
emocional e produz, sobretudo efeitos sobre a sensibilidade, percepção do espectador.
Aumont (1993, p.287), nos diz que: “no cinema, ainda mais do que na pintura, o estilo
da luz rege a expressividade da imagem (por que se trata de uma imagem-luz, de uma
imagem em que a luz está não só representada, mas presente)”. O cineasta utiliza, por
exemplo, a luz de forma particular nos planos/contra-planos, no lugar de tratá-los
como planos complementares, ele usa a luz para enquadrar um personagem
preenchendo o quadro com um espaço escuro, depois enquadra o outro personagem, e
por fim os dois juntos, mas com a luz interceptando o face-a-face dos atores sugerindo
manter uma certa distância entre eles. É o que podemos visualizar no exemplo abaixo,
numa cena do trem entre Tak e Wang (os andróides).

Fotos exemplo de iluminação

O formato widescreen/panorâmico/tela larga (1:2, 35), em geral usado para


filmar grandes paisagens, a natureza, grandes planos abertos, em 2046 é usado por
Kar-Wai para filmar em locações que em sua maior parte são fechadas e pequenas.
Nos anos 70 esse formato foi muito usado pelo cineasta italiano Sergio Leone e
12
outros, e recentemente Kar-Wai retoma seu valor, ainda que filmando pela primeira
vez em scope e em locações minúsculas; dá uma materialidade própria, mas
comprime, e achata a perspectiva. Com a fotografia scope (feita por Christopher
Doyle, Lai Yiu-Fai e Kwan Pung-Leung), usada para ampliar o horizonte da visão
periférica e de profundidade, escolhida por Wong Kar-Wai com a intenção de
emocionar, causar uma experiência sensorial no espectador; e para chamar sua
atenção para a textura da imagem. Esse tipo de fotografia scope deixa escuros os
cantos da tela e parte do espaço da cena, esse formato é fundamentalmente
assimétrico e portador de tensões.
Outra questão desse formato é a verticalidade contradizendo a horizontalidade
do cinemascope, e para acentuar essa verticalidade, o diretor recorre à oposição entre
a superfície e a profundidade de campo, um dos lados da tela resta nítido e o outro
desfocado (flou).
Aumont (1993, p.277), diz que: “é expressiva a obra cuja forma é expressiva”
e “que induz certo estado emocional em seu destinatário”, e ainda “que é expressivo
aquilo que exprime um sujeito, em geral o sujeito criador”, e diríamos que isso pode
ser visto em kar-Wai através do uso das cores. As cores muitas vezes saturadas, em
2046 exploradas pelo diretor em suas tonalidades quentes (vermelho e laranja) e frias,
(verde e azul) com fortes contrastes tanto no cenário quanto no figurino, visa o
contraponto com o conteúdo dramático das imagens, atribui à imagem uma espécie de
pictorialidade. Imprime sentimentos, causa emoções, participa do clima afetivo e
sensorial dos personagens, sugerindo associações que confirmam as significações
formais construídas pelo diretor, e expressando sua subjetividade e a dos personagens.
O quadro visual de 2046 criado por Kar-Wai se apóia em fortes dominantes na
luz e nas cores, em cores que invadem o campo fílmico e jogam umas com as outras.
Um exemplo está nas cores complementares usadas nas imagens que representam o
romance fictício que Chow está escrevendo, como na cena do trem em que estão uma
moça andróide e o personagem Tak (ver fotos logo abaixo), em que a cor vermelha
evoca frio e a voz off explica que lá não existe aquecedor. Porém, a cor verde (fria) do
plano seguinte é associada à sensação de aquecimento. A riqueza vem, portanto, da
fusão/dissociação desses tons complementares, embora opostos. Essas cores não têm
funções simbólicas, mas provocam sensações imediatas sugeridas através dessa
13
fusão/dissociação entre elas.

Fotos exemplo do uso das cores

O figurino “anos 60”, feito por William Chang (que fez também a montagem
do filme), objetiva exaltar a beleza e elegância, sobretudo, das mulheres de 2046, uma
beleza ideal, um efeito estético que pretende quase esculturá-las - exemplo ilustrado
abaixo num momento em que a jovem prostituta está sozinha no seu quarto do hotel e
em outro momento em que ela está com Chow, também no quarto do hotel (o corpo
da moça parece uma escultura).

Fotos exemplo do figurino


Kar-Wai cria este tipo de imagens numa composição quase publicitária, que
nos mostra uma beleza quase inatingível, nos alimentando o desejo e a sedução. O
figurino é escolhido de forma harmoniosa, mesmo nas cenas em que é futurista/pós-
moderno, e esse cuidado Kar-Wai tem em todos seus filmes.
O cenário do filme - se não levarmos em conta o espaço fictício do romance
2046 (nessas cenas o cenário é futurista e “publicitário”) e as cenas de memória-
flashbacks, podemos dizer que é composto basicamente de três peças: os quartos, o
corredor e a escada do hotel. Os cenários nos são descritos quase sempre em pedaços
e em sua maioria em planos fechados, nos quais aprisionam os desejos dos
personagens. São compostos também por pontos de fuga do olhar, através de cortinas,
escadas, paredes, muros e dos vãos das portas, prolongando ou distorcendo o espaço.
14
Um exemplo é a cena em que a filha do dono do hotel “se despede” do seu namorado
japonês, os vemos confinados por paredes e portas que vão distorcendo nossa visão do
ambiente.
Sobre o plano/contra-plano – close. Em uma cena no início do filme (ilustrado
por algumas imagens a seguir), Kar-Wai filma Chow (o protagonista) com a prostituta
mais velha (Lulu). Eles estão conversando em pé, se reconhecendo, faz-se um
primeiro plano do rosto dele, depois um contra-plano mostrando a tela dividindo o
rosto dela com uma cortina vermelha, (trazendo-lhe a memória recordações), para
depois, novamente mostrar o rosto dele onde já vemos parte das costas dela, e em
seguida mostra outros planos e contra-planos deles.

Fotos exemplo de plano/contra-plano


Nessa cena pode-se dizer que a câmera assume a posição de espectador,
observador; além de revelar a expressão psicológica da prostituta Lulu e salientar uma
lembrança de sua vida passada (de algo, porém que não se consumou, aliás, como
todas as histórias de amor desse filme). O uso de closes no filme resulta na opção do
diretor na exploração de superfícies e texturas de objetos e de detalhes das pessoas,
para criar uma relação intimista com o espectador.
Outra questão percebida, os quartos do hotel não têm janelas, não têm vistas,
logo os planos são sem perspectivas e sem linhas de fuga, são planos com forte
compressão causados por ambientes escuros.
Outro recurso já comentado anteriormente e muito usado em 2046 em várias
cenas do filme é a oposição entre a superfície e a profundidade de campo - enquadra-
se o primeiro plano nítido e o fundo desfocado (em flou). Por exemplo, na cena
ilustrada abaixo pelas fotos, em que vemos a prostituta mais nova, uma das mulheres
de Chow, ao telefone (no corredor/recepção do hotel) com todo quadro do primeiro
plano nítido e o fundo desfocado, nos colocando numa relação íntima com a
personagem.

15
Fotos exemplo do recurso: oposição entre a superfície e profundidade de campo

E ainda os ângulos e movimentos de câmera usados em 2046 são justificados


pelo diretor através da configuração do cenário, da iluminação, do desejo de mostrar
fenômenos afetivos e suscitar sentimentos, um bom exemplo, podemos ver quando
Kar-Wai faz um plongée a 90° (a câmera enquadra do alto para baixo) numa cena de
sexo entre a prostituta mais jovem e Chow. A câmera de movimenta lentamente, mas
não leva os personagens ao centro do quadro, ela os deixa nas bordas do quadro,
dentro do último plano dessa seqüência a câmera desloca-se então sobre os corpos e
começa a rodeá-los para capturar um pouco de espaço em torno.
Esses movimentos de câmera não têm no filme função de abrir o espaço, de
quebrar ou de dividir o campo - mas ao contrário: de costurar, de fechá-lo, de impedir
fugas.
A câmera lenta, outro recurso às vezes usado no filme, com forte efeito
estilístico, dá ritmo à imagem; quase como uma certa “musicalidade visual”,
determinando sua temporalidade e espaço, expressando o sentido, o momento que o
personagem está vivenciando; e proporciona uma experiência visual ao espectador. As
câmeras lentas usadas no filme parecem querer libertar os personagens da narrativa e
entregá-los à iconicidade (vemos exemplos disso tanto no início quanto no final, nas
cenas entre Chow e a jogadora de cartas).
O uso do travelling. Normalmente usado para descrever e/ou acompanhar uma
ação ou personagem, que pode ser vertical ou horizontal; é utilizado por Kar-Wai no
início do filme (travellings verticais acelerados), ao mostrar cenas da cidade e sua
arquitetura, para criar ritmo e dinamização do espaço.
Comentando o flashback, recurso que encontra razão na bifurcação do tempo
em que já passou e do momento presente. Quando vemos em 2046 alternâncias de
imagens entre esses tempos, isso provoca um recuo na consciência do espectador,
acompanhada de reações afetivas, como a nostalgia e lembranças expressas. Vemos
um exemplo disso na cena no início do filme, em que o protagonista revê a mulher

16
que ele crê ser Su Li-Zhen, sua antiga amada (lamentando tê-la perdido). Porém, Su
Li-Zhen foi sua paixão no filme Amor à flor da pele, e não em 2046.
Kar-Wai na entrevista, dada por ele ao site já citado nesse ensaio, declara que
o cinema permite jogar com o tempo: passado, presente e futuro, e ele faz, a meu ver,
bom proveito desse recurso em seus filmes. Vejamos um conceito que tem a ver com
esse assunto: as “imagens-lembrança”, conceito criado por Bergson e citado por
Deleuze, a relação da imagem atual com a imagem-lembrança cria um circuito
fechado que vai do presente ao passado, mas que depois nos traz de volta ao presente
(Deleuze, Apud Bergson, 1990, p.63). Essa relação elaborada através do flashback em
2046 ilustra bem esse isso, através das “imagens-lembrança” dos personagens.

2. A MISE-EN-SCÈNE DE WONG KAR-WAI

Antes de abordar a mise-en scène, é preciso de citar em particular algumas


influências artísticas e estéticas de Kar-Wai, apenas para situar o leitor das suas
origens, digamos assim, do cinema desse realizador. Desde os primeiros filmes de
Wong Kar-Wai a crítica internacional identificou uma filiação do diretor à Nouvelle
Vague francesa9, em razão da escolha em comum de captar a energia urbana dos
ambientes das metrópoles, como fazia, por exemplo, o realizador Jean Luc Godard. E
desde Amor à flor da pele (2000), se tornou claro que a referência dele é, sobretudo,
ao formalismo do cineasta francês Alain Resnais (dos primeiros filmes). Em 2046
novamente a influência de Godard é forte na parte futurista do filme de Kar-Wai
(pode-se dizer, em relação a seu filme Alphaville). Nos dois filmes, o mundo futurista
é representado mais pela luz e pelos efeitos criados pela luminosidade do que pelo
cenário em si, através de uma representação minimalista. Também em ambos filmes o
tempo é representado por meio de um longo corredor, com portas a serem abertas,
com trajetos a serem feitos e com zonas/áreas a atravessar. Kar-Wai, ainda, inspira-se
na proposta de Godard de causar rupturas na narrativa e de “pictorializar o cinema, do
9
Referenciado movimento cinematográfico surgido na França nos anos 60, que trouxe muitas
inovações, instaurou o cinema moderno. A teoria autoral-cinema de autor é “seu grande pilar”, seus
principais expoentes são Jean Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Alain
Renais e Eric Rohmer. A Nouvelle Vague francesa influenciou e desencadeou de certa forma os
cinemas novos de várias partes do mundo, inclusive do Brasil.

17
enquadramento como um gesto criador” (Aumont, 2004, p.224).
O cineasta chinês tem outras influências: como o uso expressivo da cor do
cineasta japonês Yasujiro Ozu10. Também se inspira, ao construir a temática de 2046
na impossibilidade do amor, no desencanto existencial e na melancolia fílmica do
cineasta italiano Michelangelo Antonioni (conhecido como cineasta da
incomunicabilidade). Antonioni, muito cuidadoso com a beleza visual de suas
imagens, inovou muito o cinema italiano. Fez filmes dos anos 50 até recentemente,
pouco antes de falecer, em julho 2008.
Vamos a questão da mise-en-scène. Com origem no teatro, esse termo
significa encenação, a forma de dispor a entrada e saída dos personagens no espaço do
quadro, de organizar e equilibrar os objetos, a escolha dos movimentos de câmera e
enquadramentos, ou seja, os meios pelos quais um cineasta imprime sua “marca”, sua
singularidade, o estilo de seus filmes.
Há em 2046 uma coerência de estilo de Kar-Wai, vista já anteriormente em
outros de seus filmes: Amores expressos e Amor à flor da pele, como a duração dos
planos alongada, efeitos de câmera lenta (que magnificam e solenizam os gestos e os
trajetos dos personagens) e o uso lacunar do plano (que enquadra o/s personagem/ns
deixando espaços vazios dentro do quadro). O valor do plano para Kar-Wai nunca é
somente um sintagma11 (Metz, 2006, p.147), que se junta a outros planos no
desenvolvimento da narrativa, é também um fluxo de outras imagens, de lembranças,
do que já se passou em outros filmes seus, é um eco que se repercute dentro do tempo
de 2046, do tempo infinito e rico de seu cinema. Wong Kar-Wai constrói muito de
seus filmes jogando com efeitos de oposição, com os planos largos, e na gestualidade
dos corpos, dos personagens, ou seja, na montagem. A importância do estatuto do
plano para Kar-Wai pode ser visto, por exemplo, na cena descrita abaixo. Na
separação entre Chow e jogadora de cartas, no final do filme, vimos eles se
despedindo, ele parte em direção à direita, ela fica e começa a chorar apoiada contra o
muro, com a face em parte escondida como numa cumplicidade instintiva com a
superfície do muro, onde ali encontra a sustentação que lhe falta. Vemos de novo a
imagem de Chow indo embora pela direita; e ela pela esquerda. A posição e direção
dos gestos e dos olhares dos atores são pensados para dar sentido à separação, são
focados separadamente nos rostos; e em câmera lenta. Esse plano faz eco a outros
18
planos de 2046, criando assim e completando a atmosfera da cena da separação do
casal.

Fotos que ilustram a importância do estatuto do plano para Kar-wai

O diretor recorre também ao raccord de olhar, veja exemplo abaixo, primeiro


os dois atores são enquadrados juntos ela está feliz, a jovem prostituta, revela sua
paixão por Chow, ele a esnoba, e nesse mesmo instante ele passa a repelí-la
ironicamente. Em seguida são enquadrados num campo/contra-campo olhando para o
mesmo lado – enquadramento que jamais daria a impressão de um contato visual
olhando separadamente.

Fotos exemplo de raccord de olhar


Para isso, Kar-Wai utiliza a posição do quadro panorâmico e a diferença entre
extremidades de quadro dos personagens para "preencher" e justificar visualmente o
contato de olhos dos personagens. Um olho no olho, porém que pode se dar
espacialmente pela construção na montagem dos planos, mas que passa a não existir
mais sentimentalmente.

3. AS DIFERENTES LINGUAGENS UTILIZADAS POR KAR-WAI

Para construir seu estilo, Kar-Wai se ancora também no hibridismo, em


diferentes linguagens, seja do cinema, da fotografia, da literatura, do vídeo-clipe
(cortes rápidos), da publicidade (características: atemporalidade, efeitos antirrealistas,
emotivos e sedutores) e do futurismo (que pretende que a inscrição do tempo na
imagem seja interpretada como um valor pictórico, como uma pintura; o que podemos
inclusive visualizar na estética de néon das cenas no trem). Kar-Wai nos traz uma

19
nova reconfiguração espaço-temporal da narrativa em 2046. Obtida por meio da
“imagem-tempo direta” que possibilita ao espectador uma dimensão proustiana,
dimensão na qual objetos e personagens ocupam no tempo um lugar incomensurável
ao que tem no espaço (Deleuze, 1985, p.53). No cinema moderno, completa Deleuze:
“a imagem-tempo tornou-se direta tanto quanto o tempo descobriu novos aspectos por
essência e não por acidente, quanto à montagem ganhou novo sentido” (1985, p.322).
Nesse sentido, Kar-Wai nos traz uma configuração do cinema contemporâneo,
ou, se quiserem, pós-moderno, com uma poesia imagética, uma poesia do detalhe,
podemos, portanto, perceber através do que vemos na tela de 2046 e do que
descrevemos nessa análise, uma configuração rica em elementos artísticos, de
vanguarda - numa tentativa de criar novos significados da imagem.
Em sua busca constante em valorizar a forma, Kar-Wai usa, como já citei,
elementos da arte pictórica (cores fortes, nuances, contrastes) visando melhor
trabalhar a plasticidade e causar mais emoção com suas imagens - dessa maneira, “o
fílmico quis absorver também o pictórico” (Aumont, 2004, p.168). O diretor
potencializa, todos esses recursos visuais, a direção de arte, para narrar histórias de
amor em 2046 (que nunca se concretizam, que não avançam); que ecoam na
sensualidade dos movimentos dos personagens e nos movimentos e ângulos de
câmera, que operam no filme uma temporalização da imagem.
De acordo com Aumont (1993, p.160) “as imagens temporalizadas se
modificam ao longo do tempo, pelo efeito do dispositivo que as produz e apresenta”.
Um exemplo de temporalização da imagem pode ser visualizado abaixo na cena em
que a filha do dono do hotel está fumando e é prolongado, alongado o tempo do
levantar do seu cigarro; cortando posteriormente para um rápido desvio de olhar do
protagonista-Chow, que a observava.

Fotos exemplo de temporalização da imagem

20
A narrativa de 2046 é reforçada por uma imagem diacrônica, como diz Metz
(2006), uma imagem que transita em vários tempos: passado, presente e futuro. E pela
concepção espacial representada no filme de forma fragmentada, como numa
memória afetiva (como relatos de um diário), e em ambientes internos de dimensões
limitadas. Ambientes – espaços, os quais se desenrolam as cenas em que nos são
apresentadas e concluídas no filme, na reflexão dessa obra de arte: 2046 - os
segredos do amor.
O diretor faz, portanto, uso de diversos recursos para criar impacto visual do
filme, chamando com isso a atenção para a superfície da tela, o que também se
confirma pela sua escolha do formato scope para fortalecer a narrativa intimista do
filme. O trabalho plástico como já foi caracterizado, os elementos visuais da
composição imagética e sua significação no filme em questão cultuam a imagem, e
mesmo assim não é excessivo nem redundante, porque não se submete apenas à
narrativa e nem é apenas decorativo.
Além do seu desejo em exprimir o belo, a estética de Kar-Wai provém de um
pensamento sensorial que quer comunicar seus sentimentos e dos seus personagens
através das imagens. Como diz Aumont no livro O olho interminável (2004, p.172),
“só um cinema não narrativo, uma cinetização da pintura pode ter por categorias
formais, valores puramente plásticos, tais como a pintura os conhece”.
E Kar-Wai pertence a esse cinema citado por Aumont, que valoriza a forma,
pertence a um regime estético pós-moderno, e isso podemos ver nas composições e na
forma que ele cria seus filmes. Sua preocupação não é de retransmitir uma conjuntura
existente como no cinema clássico (em que a linearidade da narrativa se destaca e que
a importância desse tipo de cinema está na história) ou de uma escola específica, mas
de recriar o cinema a partir de outras artes e da sua própria; de criar o seu sistema, sua
estética. O cinema de Kar-Wai prima pela forma como domínio vivo, pelo culto dos
valores plásticos. Ele não está dentro da lógica da representação canônica (que só
pode existir em virtude de convenções, regras dadas), mas da sensação e de uma
possibilidade de criar, inovar. Tornar visível essa diferença, que traz a sua
expressividade cinematográfica. É afirmar que o cinema ainda não deu tudo, que não
pode partir somente de convenções e que pode sempre dar mais.
21
Aumont (1993) citando Gombrich (1974) nos diz que a expressividade da obra
de arte não pode estar contida na obra como dado e que está principalmente
extrínseca. Diante disso, percebe-se que Kar-Wai busca expressar em 2046,
significados que estão não só dentro do filme em si, mas entremeado por outras
influências culturais, artísticas, estéticas, por sinal bem equilibradas.

4. Palavras Findas

A idéia de construir, de escrever esse artigo partiu de uma reflexão que levasse
em conta a expressividade estética de Wong-Kar-Wai, do filme 2046, a partir dos
conceitos dos teóricos do cinema, que utilizamos ao longo dessa análise fílmico-
estética. Esperamos ter demonstrado o que propomos – investigar as escolhas estéticas
desse realizador chinês, e como ele transforma seu filme em vestígio do seu gesto, do
seu estilo, através dos elementos visuais e formais (tais como enquadramento,
composição, iluminação, fotografia, cenário, figurino etc.). E claro, como diz Vanoye
e Goliot-Lété (1994), a atitude, interpretação e produção de sentido fílmico depende
de cada analista. No cinema desse diretor a própria imagem já é uma narrativa em si, e
esse é um conceito que Deleuze defende no seu livro A Imagem-Tempo (1990).
Ao longo desse ensaio, pude perceber como o realizador Wong Kar-Wai cria o
universo estético do seu filme 2046, a bela história de amor dos personagens, seres
errantes, nômades, que alimentam em seus corações ideais de amor que talvez nem os
cabe, que alimentam lembranças afetivas infindas, de um tempo que já se foi e de
sentimentos que emergem irrompendo os limites do quadro fílmico. Diz Vanoye e
Goliot-Lété: “Analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história. E, se
considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das formas
fílmicas. Assim como os romances, as obras pictóricas ou musicais, os filmes
inscrevem-se em correntes, em tendências e até em escolas estéticas, ou nelas se
inspiram a posteriori” (1994, p.23).
O cinema desse realizador de Hong Kong, é um cinema de arte, seu estilo, é
permeado de referências estéticas, e estas referências estão agregadas à forma em que
ele constrói o filme 2046 – os segredos do amor.
Para findar, gostaria de trazer uma citação de Wong Kar-Wai em seu filme
22
2046: “Quando a peônia floresce, fica alta e então se vai, ela quer dizer sim ou não?”
Essa frase foi usada pelo diretor no final do filme (a peônia é uma flor delicada que
precisa de muito cuidado). Nesse sentido, Kar-Wai, um cineasta que prima e cultua a
imagem, dá sentido à beleza de suas imagens e compõe os quadros dos seus filmes a
partir do seu gosto pessoal, de suas referências artísticas, do seu encanto pelo estético.

REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993.

__________et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995.

__________O olho interminável, cinema e pintura. Cosac & Naify, 2004.

BAZIN, André. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BETTON, Gerard. Estética do cinema. Martins Fontes, 1987.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2006.

__________Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica Campinas:


Papirus, 1994.

Arte Barroca. Disponível em http://www.historiadaarte.com.br e acessado em


02/08/2008.

As fotos usadas no ensaio foram extraídas diretamente do filme.

ANEXO 1 – Ficha Técnica do Filme

23
Filme: 2046 – os segredos do amor - Título Original: 2046
Gênero: Romance, Duração: 127 minutos
Paises/Ano de Lançamento (China / Hong Kong / França/ Alemanha): 2004
Site Oficial: www.sonyclassics.com/2046
Estúdios: Columbia Pictures Corporation / Block 2 Pictures Inc. / Jet Tone Films /
Classic S.r.l. / China Film Co-Production Corporation / Fortissimo Film / France 3
Cinéma / Orly Films / Paradis Films / Shanghai Film Studios / Zweites Deutsches
Fernshen / arte France Cinéma
Distribuidores: 20th Century Fox / Buena Vista International / Sony Pictures Classics
Roteiro, Produção e Direção: Wong Kar-Wai.
Música: Peer Raben e Shigeru Umebayashi
Fotografia: Christopher Doyle, Lai Yiu-Fai e Kwan Pung-Leung
Desenho de Produção, Figurino e Edição/montagem: William Chang
Direção de Arte: Alfred Yau Wai Ming
Efeitos Especiais: BUF Compagnie
Elenco: Tony Leung Chiu Wai - Mo Wan Chow (protagonista), Gong Li (Su Li Zhen),
Kimura Takuya (Tak), Wong Faye (Wang Jing Wen), Zhang Ziyi (Bai Ling), Carina
Lau (Lulu / Mimi), Sum Wang (Sr. Wang), Siu Ping Lam (Ah Ping), Maggie Cheung,
Chang Chen.

ANEXO 2 – Orçamento e prêmios

Orçamento do filme: U$ 12 milhões


Prêmios: ganhou o Prêmio FIPRESCI (Federação Internacional da Imprensa
Cinematográfica) no Festival da cidade Valladolid na Espanha. E foi indicado a Palma
de Ouro no Festival de Cannes em 2004, embora não tenha ganhado.

ANEXO 3 - HISTÓRICO DA FILMOGRAFIA DO DIRETOR


Os filmes desse cultuado diretor oriental estão sendo, ainda que a passos lentos,
24
lançados em DVD no mercado brasileiro. Já chegou por aqui Conflito Mortal (1988)
-As tears go By, filme inspirado em Caminhos Perigosos (1973) de Martin Scorsese.
Esse foi o filme de estréia de Wong Kar-Wai como diretor de longas-metragens.
Outros filmes também lançados em DVD no Brasil ou disponíveis para importar:
Felizes Juntos, Dias selvagens, Amores expressos, Anjos caídos, Amor à flor da pele,
Eros, 2046 e Um beijo roubado.
Depois de Conflito Mortal, Kar-Wai reuniu alguns dos atores mais conhecidos de
Hong Kong, para fazer Dias Selvagens (1991).
Em 1994 fez o filme Cinzas do tempo (Ashes of time), melodrama sobre o tema das
artes marciais, que por sinal foi re-editado e será relançado em outubro desse ano,
2008. Ainda nesse mesmo ano de 1994, nos intervalos entre as filmagens de Cinzas
do tempo, Kar-Wai realizou Amores Expressos, grande sucesso internacional. Seu
primeiro filme distribuído nos cinemas americanos.
Em 1995, dirigiu outro grande sucesso internacional, Anjos Caídos.
Em 1997 dirigiu o polêmico Felizes Juntos (com música de Caetano Veloso na trilha)
que trata de relacionamento amoroso entre dois homens. Filme que premiou Wong
Kar-Wai como melhor diretor em Cannes (aliás primeiro chinês a ganhar tal prêmio).
Em 2000, realizou o filme Amor à flor da Pele, foi um enorme sucesso, com ele
tornou um cineasta muito cultuado por cinéfilos do mundo todo.
Escreveu outros roteiros e produziu muitos outros filmes, fora esses aqui citados (que
roteirizou e dirigiu ao mesmo tempo).
E ainda, fez e faz direção de comerciais (alguns de seus clientes: BMW, Philips,
Motorola, etc.), séries para TV e vídeo-clips, com destaque para “Six Days” que fez
em 2002 para o DJ Shadow. Além de realizar alguns filmes de curta-metragens.
Em 2004 dirigiu 2046 – os segredos do amor, para mim, sua obra-prima (filme
analisado nesse artigo). Nesse mesmo ano, realizou um episódio do longa Eros
(segmento The Hand), junto com os diretores Antonioni e Steven Soderbergh
mostrando uma visão do erotismo nos três continentes (asiático, europeu e
americano).
Em 2007, fez um episódio (I Travelled 9000 km To Give It To You") do longa francês,
Cada um com seu cinema (uma homenagem de 33 diretores do mundo inteiro ao
cinema).
Já instalado em Hollywood abriu o festival de Cannes edição 2008, com o filme Um
beijo roubado (My Blueberry Nights) que contou com elenco estrelar americano. Se
“rendendo” a indústria cinematográfica de Hollywood, começa de certo modo “se
afastar” de Hong Kong e a trabalhar menos com atores chineses. Seu filme atual, em
fase de pré-produção e que deve estrear em 2010, é The Lady From Shanghai, mas
sua trama ainda é misteriosa.

25

S-ar putea să vă placă și