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Juan Esteves

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

03 Notas 38 Homenagem
Um ano de morte de Orides
Fontela, poeta do silêncio e da
indagação do ser

04 Entrevista
Ernesto Sábato fala sobre
sua pequena mas densa obra 45 Criação
“O beijo da locomotiva”,
e de sua atividade política Ernesto Sábato conto de Roberto de Sousa
Causo

10 Rumos Literatura e 19 Gaveta de Guardados


Crítica Conto inédito do escritor e
tradutor Ivo Barroso
48 Memória em Revista
Edição de novembro de 1933
Eugênio Bucci discute as
da revista O Malho
implicações éticas da crítica
televisiva
22 Entre Livros
Divulgação João Alexandre Barbosa
lê Mitologia da saudade de
49 Capa/Dossiê
A obra fundadora da
Eduardo Lourenço psicanálise faz cem anos e
reafirma a importância de
Freud para o século XX
26 Vive la France!
Escritores falam de sua
relação pessoal com a
literatura francesa
64 Do Leitor
Cartas, fax e e-mails
dos leitores de CULT

30 Evento
Reprodução
Porto Alegre sedia a
Feira do Livro e a Bienal
O escritor alemão Günter Grass de Artes do Mercosul

14 Prêmio Nobel 32 Turismo Literário


A Turim de Italo Calvino e
O escritor alemão Günter
Grass leva a mais importante dos “cavaleiros da távola
premiação de literatura oval”

37 Na Ponta da Língua
18 Leituras CULT
Os melhores lançamentos de
O professor Pasquale Cipro
Neto discute ambigüidades
livros do mercado editorial recônditas Sigmund Freud por volta de 1906

outubro/99 - CULT 1
Diretor-presidente
Paulo Lemos
Diretora executiva
Silvana De Angelo
Vice-presidente de negócios
Idelcio Donizete Patricio
Diretor de marketing
Robison Bernardes

REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA


NÚMERO 28 - NOVEMBRO DE 1999

Editor e jornalista responsável


Manuel da Costa Pinto – MTB 27445
Editor-assistente
Bruno Zeni
Arte
Tatiana Paula P. Barboza
Almir Roberto
Diagramação
Rogério Richard
Adriano Montanholi
Yuri Fernandes
Revisão
Claudia Blanco Padovani
Luciana Cristina de Oliveira
Colunistas
Cláudio Giordano
João Alexandre Barbosa
Pasquale Cipro Neto
Colaboradores
Adolfo Montejo Navas, Alberto Azcárate, Ana Paula
Soares, Angel Bojadsen, Bernardo Carvalho, Claudia
Cavalcanti, Contador Borges, Eugênio Bucci,
Gilberto Figueiredo Martins, Ivan Marques, Ivo
Barroso, Marcelo Coelho, Marcio Mariguela,
Milton Hatoum, Nelson Ascher, Roberto Causo,
AO L E I TOR
Ronan Prigent.
Capa B r u n o Z e n i
Sigmund Freud, em 1929, em foto de Max
Halberstadt
Produção editorial
Lilian Brazão
Produção gráfica
José Vicente De Angelo
Fotolitos
Unigraph
Circulação e assinaturas
Rosangela Santorsola Arias (gerente)
Angela Regina Strutsel Lemme
Departamento comercial
Alexandre Costa
Valéria Silva
Rio de Janeiro:
Milla de Souza (Triunvirato Comunicação,
rua México, 31-D, Gr. 1.403 A, CEP 20031-144,
tel. 021/533-3121 – 524-0366, e-mail:
triunvirato@openlink.com.br)
Distribuição em bancas
FERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/A Rua
Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJ CEP
20563-900- Tel./fax 021/575-7766/6363
e-mail: contfc@chinaglia.com.br
Distribuidor exclusivo para todo o Brasil.
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Tel. 0800 177899
Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande
do Norte e Sergipe: 081/428-9701; Amazonas: 092/
800-8030 e 622-8095; Rio de Janeiro: 021/9613-
7067; Mato Grosso do Sul: 067/787-3685 e 921-
3234; Pará: 091/246-1961, 226-5866 e 981-3081;
Paraná e Santa Catarina: 041/352-6444; Rio Grande
do Sul: 051/222-3649
Departamento financeiro
Regiane Mandarino
ISSN 1414-7076
CULT – Revista Brasileira de
Literatura é uma publicação mensal da
Lemos Editorial & Gráficos Ltda. –
Rua Rui Barbosa, 70, São Paulo, SP,
CEP 01326-010
tel./fax: 011/251-4300
e-mail: lemospl@netpoint.com.br

2 CULT - abril/99
CU L T
on line
CULT na Internet
A versão eletrônica da revista CULT já
pode ser acessada na Internet. O site
João Cabral
Acaba de sair no México, Poesía y
composicón, de João Cabral de Melo Neto,
www.lemos.com.br/cult apresenta os pela editora da Universidad Iberoame-
www.lemos.com.br/cult
textos da mais recente edição da CULT e ricana. O livro reúne ensaios do poeta
os destaques das edições anteriores a partir sobre arte e literatura, como “Conside-
do número 23 (Lygia Fagundes Telles). raciones sobre el poeta dormindo”, “Joan
Além disso, os inúmeros textos recebidos Miró”, “De la función moderna de la
pela revista destinados à seção “Criação” poesía” e “Poesía y composicón: La
estão sendo aos poucos publicados na inspiración y el trabajo en el arte”. A obra
página eletrônica. Em alguns meses, sai pela coleção Poesía y Poética, vinculada
todos os contos e poemas poderão ser à revista de mesmo nome. O e-mail da
lidos na íntegra na CULT on line. Os revista é juan.alcantara@uia.mx. A
textos para essa seção podem ser enviados morte de João Cabral de Melo Neto –
diretamente ao site via e-mail. maior poeta brasileiro ao lado de
Drummond –, no dia 9 de outubro
Poetas na biblioteca
último, ocorreu durante o fechamento
O poeta Frederico Barbosa é o convidado deste número. A CULT prepara um
de novembro do projeto “Poetas na especial sobre João Cabral para as
Biblioteca”, do Memorial da América próximas edições.
Latina. Autor de Rarefato (Iluminuras) e
Raduan Nassar
Nada feito nada (Perspectiva), Barbosa fará
N O T A S

uma leitura de seus poemas e apresentará A revista literária inglesa Ambit publica
parte de sua produção inédita. O crítico em sua mais recente edição, a de número
José de Paula Ramos Jr. comenta a obra 157, a primeira tradução de obras do
do poeta. A leitura acontece no dia 24 de escritor brasileiro Raduan Nassar em
novembro e tem entrada franca. Também língua inglesa. São dois contos, “Today
no Memorial, a exposição “Os almana- before dawn” (“Hoje de madrugada”) e
ques populares: da Europa às Américas” “The withered womb” (“O ventre seco”),
pode ser vista até o dia 13 deste mês. O escritos em 1970, anteriores, portanto, a
Memorial fica na av. Auro Soares de Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera
Moura Andrade, 664, São Paulo. Infor- (1978). O trabalho de tradução é da
mações pelos tels.: 11/3823-9831 ou brasileira residente em Londres Monica
3823-9653. Almeida e da inglesa Kate Pemberton.
O endereço eletrônico da revista é
Paul Zumthor
www.ambit.co.uk
Será lançado no dia 4 de novembro
Zum zum zum
Oralidade em tempo e espaço: Colóquio Paul
Zumthor (Educ/Fapesp), organizado por O quarto número da revista Zum zum zum
Reprodução
Jerusa Pires Ferreira. O livro reúne os comemora um ano de publicação inde-
textos apresentados em colóquio reali- pendente, trazendo o debate “O samba
zado na PUC-SP em agosto de 1997. Os em questão”, que reuniu os compositores
artigos abordam a importância da obra Nelson Sargento, Luis Carlos da Vila,
do historiador medievalista Paul Osvaldo Pereira, Eduardo Gallotti e
Zumthor, autor de Introdução à poesia oral Josemar Monteiro para uma conversa
(Hucitec/Educ) e Tradição e esquecimento sobre a atual música popular brasileira.
(Hucitec), na preservação da cultura e A revista traz também um ensaio fotográ-
da tradição oral. Entre os autores que fico de André Vilaron e textos de Guilher-
participam do livro estão Leyla Perrone- me Zarvos, Bianca Ramoneda e Nadan
Moisés, Luiz Costa Lima, Lorenzo Guerra, entre outros. O endereço da Zum
Mammì, Sérgio Medeiros, Maria zum zum é Rua Almirante Alexandrino,
Antonieta Antonacci, Ludmila de Lima 306/109, 20241-260, Rio de Janeiro, RJ.
O medievalista Paul Zumthor Brandão e Philadelpho Menezes. E-mail: nadan@uol.com.br

ASSINATURAS
DISQUE CULT 0800.177899
CULT março/99 - 3
entrevista
Juan Esteves

ERNESTO
SÁBATO

4 CULT - novembro/99
Vivendo um exílio de décadas, que já parece
mítico, num subúrbio próximo de Buenos Aires,
mas bem longe dos cenáculos literários, o mais
veterano romancista argentino, Ernesto
Sábato, 88 anos, observa o decorrer do
mundo com sua permanente consciência
crítica e a mesma vocação humanista
desenvolvida tanto em seus diversos ensaios
como em toda sua novelística. A novela “O
túnel” e seus dois romances essenciais, Sobre
heróis e tumbas e Abaddon, o exterminador,
são chamados de “totais” por sua própria
aspiração reflexiva e sua multiplicidade de
recursos, por não querer descartar nada,
nem sensações nem sentimentos. Uma breve
mas densa obra narrativa, agitada por
correntezas profundas, que já deixou suas
marcas literárias pela força espiritual de sua
vigília e de suas sombras, sempre inspiradas
na mais pura estirpe da literatura russa. Todo
um ofício de trevas cheio de iluminações, de
revelações tiradas da mais próxima
cotidianidade, recentemente se deu a
conhecer na Espanha: um fragmento, salvo
do fogo, de um romance abandonado, A fonte
muda, de 1930. Nesta entrevista, Sábato
explica por que costuma queimar suas obras
e diz que a literatura o impediu de morrer de
tristeza, como atualmente o salvam as longas
horas que passa em seu estúdio de pintura.
.
Adolfo Montejo Navas
Alberto Azcárate
novembro/99 - CULT 5
CULT O senhor deixou a ciência pela literatura; em outras e à noite reunia-me com os surrealistas, como uma decente
palavras, trocou as certezas pelas incertezas. Por quê? dona de casa que à noite se prostitui. Já tinha começado a crise
Ernesto Sábato A decisão de deixar a ciência foi motivo que me retiraria de forma definitiva da ciência. Em meu último
de grandes angústias. Depois de fazer meu doutorado em ciências livro Antes do fim contei isso detalhadamente. Muita gente
físico-matemáticas, Houssay, prêmio Nobel de Medicina, me continua me perguntando como, depois de ter feito um
concedeu a bolsa para ir trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. doutorado em ciências, pude escrever ficções tão demenciais
Isso foi no ano 1938. Mas quando presenciei o alvoroço com que como o “Informe sobre cegos”. Mas tem sido próprio de meu
os cientistas festejavam a divisão do átomo de urânio, compreendi espírito o movimento pendular entre a luz e as trevas, o apolíneo
que estávamos no começo do fim. Cientistas de renome mundial e o dionisíaco, e é bom lembrar que aconteceu a muitos outros
ficaram chateados com meu afastamento, acusaram-me de ter traído o mesmo, por exemplo, a Lautreamont. “Ó, matemáticas
a ciência, e o próprio doutor Houssay deixou de me cumprimentar severas!”, diz um de seus cantos. Acho que se se pensa bem não
para sempre. Em “Homens e engrenagens” expus as razões há motivo de assombro. Cada um procura o que não tem, e num
filosóficas e existenciais de minha decisão e o perigo que corria o momento da minha vida, as matemáticas proporcionavam-me
planeta nas mãos dos cientificistas. De forma brutal temos um refúgio para o caos imenso de minha adolescência.
aprendido agora o que tais fetichistas do progresso não conseguiam CULT O senhor, como Juan Rulfo, ganhou prestígio literário
perceber: os avanços da ciência são alheios aos valores que regem o com poucas obras; uma vez que toda sua produção literária se
espírito humano. Pela sua própria condição, a ciência é amoral. O reduz a três romances essenciais. Isso é o que foi salvo dessas
estado atual do planeta corrobora o que eu tinha dito há quase 50 queimas a que tem recorrido em várias ocasiões. A que se deve
anos. Por todos estes motivos deixei a ciência, porque sempre tive essa escassez de obras e essa purificação?
como preocupação o destino do ser humano, sua precária condição
E.S. Como vocês bem indicam, tenho queimado a maior parte
de carne e osso.
de minha obra. Com o tempo, cheguei a saber que no bairro me
CULT O contato com o surrealismo em Paris parece que o chamavam o “incendiário”. Numa pequena fogueira que
move da harmonia platônica da ciência para o existencialismo preparava no jardim, queimava pela tarde o que tinha escrito
do demasiado humano. O senhor pode falar deste processo tão pela manhã. Sempre tive grandes dúvidas sobre o valor de tudo
particular? o que fiz. Matilde sofreu muito por isso, e foi ela quem resgatou
E.S. Foi um período muito complexo. Durante a manhã, os originais de Heróis e tumbas, que estavam prontos para ir para
trabalhava no laboratório, fazendo investigações com raios gama, o fogo. Sempre acreditei que, se alguém escreve um livro que

6 CULT - novembro/99
resista ao tempo, pode se dar por satisfeito. Não gosto nada de Sobre heróis e tumbas, Kafka também está presente? Que podem
dessa classe de literatura que se faz para ganhar dinheiro, como ser os cegos como metáfora?
se se estivesse imprimindo dinheiro. Acredito que as grandes E.S. Muitos me perguntaram o que quis dizer no “Infor-
verdades foram ditas por aqueles que escreveram como único me...”. Tampouco eu sei, foi assim que saiu. Para mim tam-
meio de suportar a existência. Essa classe de escritores não tem bém foi uma surpresa a força com que essa idéia se arraigou
tempo para jogos de palavras nem bizantinismos, são as em mim, e o mais engraçado é que viajei até à Patagônia,
testemunhas insubornáveis de seu tempo. num ambiente belo e sereno, para escrever finalmente sobre
CULT O senhor escreve para suportar a existência, como um mundo obscuro e subterrâneo. Encerrado numa cabana,
pensava também Balzac. Mas, ao mesmo tempo, declara não em frente à grandeza de um lago cristalino, escrevi prati-
recomendar seus livros a ninguém, nem a seus próprios filhos. camente de uma tirada só a primeira versão do “Informe...”.
Por quê? Como se explica esta aparente contradição? Algumas pessoas têm encontrado a influência de Dante. É
provável.
E.S. Como disse a pouco, considero a literatura e a grande arte
em geral as ajudas para levar melhor a existência. Em meu caso, CULT Quais são seus outros companheiros de viagem
a literatura impediu que morresse de tristeza, como atualmente literária?
me salvam as longas horas que passo em meu estúdio de pintura. E.S. Acho que no coração convergem os acontecimentos que
Mas não é de todo correto que eu impeça meus filhos de lerem mais marcaram nossa vida, que, de uma forma ou de outra, nele
minha obra. No geral, não a recomendo aos adolescentes, já que deixaram suas marcas, suas lembranças. É por isso que nas coisas
sei muito bem que nela tenho descarregado em grande parte os escritas e no que atualmente pinto, posso dizer que estão presentes
terríveis demônios de meu inconsciente. Porém, é comum que as não só Kafka ou Dante, como também os grandes escritores
cartas mais comoventes e autênticas sejam de jovens que se têm russos, como Dostoiévski, Tchekov, Gógol, e também o mundo
sentido sacudidos pelos meus romances, por neles terem crepuscular dos românticos alemães, a pintura obscura de Goya,
encontrado também uma luz tênue, uma esperança. Com certeza a solidão de Van Gogh, a melancolia das trompas do concerto
porque eu, na mesma idade que eles, também fui um adolescente de Brahms, assim como a música de Beethoven, Bach e
angustiado pelas grandes interrogações da existência, e isso é Schumann. E tantos, tantos outros que me têm ajudado a
algo que se reflete nos personagens de meus romances. continuar vivo aos 88 anos.
CULT Kafka é reconhecida referência de José Saramago em CULT Que estatuto o senhor concede à atividade artística na
seu romance Ensaio sobre a cegueira. No “Informe sobre cegos”, época pós-moderna?

novembro/99 - CULT 7
E.S. O fetichismo que anteriormente se tinha com a ciência e capacidade de assombrar-nos, mãe de toda sabedoria, e a isso
o progresso tem passado atualmente para a arte, reduzida a mero tem contribuído um ensino mecânico e mecanizador”. Sempre
espetáculo. Acho deplorável a frivolidade que impera em nosso preocupou-lhe a educação?
tempo, a exacerbação pelo público, pela notoriedade e pelo E.S. A Argentina teve um nível tão elevado em cultura e
reconhecimento. Nada disso tem a ver com a arte que, geral- educação que nos anos 20 fomos a sexta ou a sétima potência do
mente, nasce no meio de grandes tensões e solidões. Estou con- mundo. Até onde caímos! Aquele grau de excelência foi obra de
vencido absolutamente de que uma das mais nobres virtudes da intelectuais que no século passado assentaram as bases duma
arte é sua capacidade salvadora, porque nos permite reunir nossa educação livre e gratuita. Agora, a universidade pública e a
dor com a dor das outras pessoas. Porém não devemos confundir educação em todos os seus níveis estão em crise, e se pretende
uma grande criação com os simples entretenimentos, como essa incentivar um ensino para meninos endinheirados. Detesto essa
musique de table que dominava os salões franceses do século classe de privilégios que aumentará mais ainda a fresta entre
XVIII, onde o engenho substituía ao gênio e a gravidade era ricos e pobres. Não se pode privar a um povo de seu direito à
ridicularizada por esses senhores que tomavam tudo à chacota. educação, dessa comunidade básica que é a escola e a
CULT Como foi sua relação com Borges? universidade, onde os jovens vão maturando suas utopias.
E.S. Na década de 40 eu formava parte do comitê de Considero fundamental a resistência que intenta levar a cabo
colaboradores da revista Sur, uma publicação de grande prestígio toda a sociedade para impedir que isso aconteça, como foi
fundada por Victoria Ocampo. Naqueles encontros começou quando pretenderam reduzir o orçamento universitário.
minha amizade com Borges. Lembro as intermináveis CULT Como cidadão ilustre, o senhor presidiu a “Comissão
conversações sobre Heráclito, os números transfinitos, Sábato” e assumiu a responsabilidade de revelar o horror de uma
Nietzsche e o eterno retorno. Numa ocasião, estando em seu verdade que, até aquele momento, a sociedade civil parecia não ter
apartamento da rua Maipú, ríamos de tal jeito que uma vizinha clara noção. Que balanço histórico tem do “Nunca mais” (protesto
se debruça da janela a gritar para que nos calássemos. contra a tortura no regime militar argentino), desse período negro?
Infelizmente certas discrepâncias políticas acabaram por nos E.S. No dia em que entregamos o informe da comissão, a
distanciar. Mas sempre mantive o respeito e a admiração por Praça de Maio encontrava-se cheia de jovens, homens, mulheres,
Borges, um dos grandes escritores de todos os tempos. mães com seus meninos no colo, que dessa maneira davam seu
CULT “A gente vive cercada pelo fantástico e até pelo apoio num momento tão importante para a Argentina.
inverossímil, mas não nos assombra porque nos têm retirado a Infelizmente as leis de Obediência Devida e depois os indultos

8 CULT - novembro/99
do presidente Menem apagaram aquele ato histórico no qual se pessimismo, mas considero que não é só irresponsável, senão
tinha conseguido fazer justiça, prender os culpados que até hipócrita e egoísta, manter cegamente o otimismo ante as
ensangüentaram a pátria. Contudo, aquele acontecimento serviu coisas que estão acontecendo.
para que os argentinos não voltassem a permitir mais que um CULT O senhor coloca sempre o homem como medida de
grupo de indivíduos se coloque acima do valor da vida. Foi todas as coisas. Que esperanças têm suas memórias, Antes do
causa de uma grande descrença ver como os criminosos mais fim, e que esperanças tem Sábato na mudança de século?
notáveis voltavam a passear pelas ruas quando muitos pais ainda
E.S. Acredito que a esperança renasce sempre da desesperação. E
não sabiam qual tinha sido o destino de seus filhos, desaparecidos
quando vejo esses milhares de seres humanos que sobrevivem
por defender nobres ideais. Quantos jovens foram seqüestrados heroicamente na miséria, a tantos que dão seu tempo e até suas
simplesmente por trabalhar de maneira solidária nas “vilas- próprias vidas em tarefas solidárias, então se tem a esperança de
misérias”! Cristo teria feito o mesmo se tivesse vivido na que sejam eles os que mostrem a maneira de re-humanizar a história.
Argentina da década de 70. Porém, hoje a gente segue lutando, Não podemos esperar esta mudança por parte dos políticos. A
se manifesta democraticamente nas praças, nas universidades, grande maioria está ocupada em cuidar e ampliar seus grandes
recusando os atos de corrupção e impunidade de que desfrutam negócios. Eu sempre tive esperança nos jovens, pois são eles que
os poderosos. Nos últimos anos houve um grande podem gerar uma grande mudança. Por isso, dedico-lhes minhas
amadurecimento da consciência política do povo, que exige o últimas palavras em Antes do fim. Tenho certa fé demencial que
respeito aos seus direitos e o cuidado das instituições quero transmitir-lhes, porque penso que somente o que pode salvar-
democráticas. nos é isto: retornar a lutar, voltados para os nobres valores e ideais.
CULT Tem-lhe causado surpresa uma guerra quase Acho que a solidariedade será a única fonte que poderá resgatar a
“medieval” como a da ex-Iugoslávia? humanidade. Acredito no dever de assumir a dor do outro como se
fosse a minha própria. E nesse gesto recuperaremos um sentido
E.S. Estou muito espantado com os tempos que correm. O que nos colocará por cima da fatalidade.
conflito recente de Kosovo questiona seriamente a possibilidade
de entrar num milênio mais humano. A contaminação do Adolfo Montejo Navas
poeta e crítico espanhol, colaborador do El Mundo,
planeta, o elevado consumo da droga, a falta de projetos nos autor de Inscripciones (Coda, Madri, 1999)

jovens, o desprezo pela velhice e por tudo o que requer respeito e tradutor de Álvaro de Campos, Armando Freitas Filho
e Sebastião Uchôa Leite
e cuidado demonstra que a história se abisma para um futuro Alberto Azcárate
incerto e crepuscular. Com freqüência me acusam por meu roteirista e escritor argentino

novembro/99 - CULT 9
Eugênio Bucci
CULT
A crítica de televisão
Há alguns anos, uma equipe de A vida moderna é feita de relâmpagos no centistas, como ensina Arlindo Machado
pesquisadores da Emporium Brasilis – cérebro e de rufos de febre no sangue. O livro em A ilusão especular. (...)
Memória e Produção Cultural, coorde- está morrendo, justamente porque pouca gente Curiosamente, ou ironicamente, uma
nada por Vladimir Sacchetta, vem traba- pode consagrar um dia todo, ou ainda uma das mistificações mais reiteradas é
lhando num levantamento da história das hora toda, à leitura de cem páginas impressas exatamente aquela que já aparece no nosso
revistas no Brasil. Numa de suas incur- sobre o mesmo assunto. Talvez o jornal do cronista. Ela consiste em pensar o jorna-
sões a publicações do início do século, os futuro – para atender à pressa, à ansiedade, à lismo audiovisual como um instrumento
pesquisadores encontraram, na revista exigência furiosa de informações completas, prático, uma ferramenta moderna para
Kosmos (nº 1, janeiro de 1904), uma crô- instantâneas e multiplicadas – seja um jornal economizar tempo e aplacar as distâncias,
nica do poeta Olavo Bilac que parece falado e ilustrado com projeções anima- uma ferramenta que tem a forma de uma
uma breve e despretensiosa profecia. tográficas, dando, a um só tempo, a impressão janela para o mundo, transparente e
Vamos ao que diz Olavo Bilac: auditiva e visual dos acontecimentos, dos desas- neutra. Destaco das palavras de Bilac uma
Justamente agora, nos últimos dias de tres, das catástrofes, das festas, de todas as cenas idéia que percorreu todo o século XX na
1903, dois físicos franceses, Gaumont e alegres ou tristes, sérias ou fúteis, desta inter- forma de um senso comum: “para atender
Decaux, acabam de achar uma engenhosa minável e complicada comédia que vivemos à pressa e à exigência furiosa de informa-
combinação do fonógrafo e do cinematógrafo – a representar no imenso tablado do planeta. ções completas e instantâneas” o jornal é
o cronófono –, que talvez ainda venha a Sem usar o nome televisão, o poeta “falado e ilustrado com projeções anima-
revolucionar a indústria da imprensa diária está descrevendo um mundo integrado tográficas”. É o telejornal, melhor di-
e periódica. Diante do aparelho, uma pessoa por ela, o que soa como profecia. Mas zendo. Segundo esse senso comum, de
pronuncia um discurso: o cronófono recebe e não é. O nascimento da televisão, não nos Bilac até nossos dias, a virtude da TV é
guarda esse discurso e, daí a pouco, não esqueçamos, menos que surpreender o proporcionar novos campos de visão,
somente repete todas as suas frases, como público como um rádio que vinha com abrindo horizontes ao vivo, janelas –
reproduz, sobre uma tela branca, a figura do imagens em movimento, veio dar conse- retomo o termo de Bilac – “instantâneas”
orador, a sua fisionomia, os seus gestos, a qüência a um modo de olhar que já estava para o que ele chamou de “imenso tablado
expressão da sua face, a mobilidade dos seus pronto ou, no mínimo, bem esboçado pela do planeta”. Ainda hoje, a televisão
olhos e dos seus lábios. Talvez o jornal do futuro sociedade em que Bilac viveu. O surgi- muitas vezes é pensada assim. O que me
seja uma aplicação dessa descoberta... A mento da fotografia também pode ser impressiona nessa antiga crônica é menos
atividade humana aumenta, numa progressão entendido assim: ele transformou num o que ela tem de premonitório e mais o
pasmosa. Já os homens de hoje são forçados a procedimento mecânico o método artís- que ela ainda tem de atual. É como se a
pensar e executar, em um minuto, o que seus tico que já havia sido inteiramente defi- tecnologia a tivesse confirmado para
avós pensavam e executavam em uma hora. nido pelo olhar dos pintores renas- transformá-la em idéias congeladas.

10 CULT - novembro/99
Evelson de Freitas/Folha Imagem

No quarto ensaio da série Rumos


Literatura e Crítica, o jornalista
Eugênio Bucci atribui à TV a
condição de novo espaço público
e mostra que a crítica de televisão
lida mais com um fato social do
que com estética, encarando a
idéia da crítica televisiva como
uma crítica do poder

Ainda hoje a televisão é debatida objetividade neutra fosse possível. O mesmo ocultamento. Eu poderia chamá-
segundo uma concepção que a reduz a uma discurso jornalístico, agora como antes, lo de um ocultamento ideológico, o que
transportadora de conteúdos, uma passa- muitas vezes se vê erguido sobre uma ele efetivamente é. Mas hesito. A dis-
gem entre um emissor e um receptor. Mais ilusão: descrever a realidade sem nela cussão sobre ideologia caiu um pouco em
ou menos como um envelope, um carteiro, interferir. Foi assim que encontrou na tela desuso, e isso me traria o risco de fazer
ou um fio de telefone. O maior problema da TV o novo palco para fincar sua parecer démodé um tema não apenas atual,
dessa concepção é que ela ajuda a esconder autoridade. mas urgente. Então, penso que posso
a função fundante dos chamados meios de Isso se dá, ou melhor, isso só pode se nomeá-lo, a esse ocultamento, de um
comunicação contemporâneos, sobretudo dar pelo ocultamento. Diante da tela, o procedimento típico das representações
dos meios eletrônicos: a de constituir e que o telespectador enxerga não é a pró- imaginárias – e assim eu estaria invo-
conformar o espaço público. Esse oculta- pria tela, nem o discurso que encadeia as cando alguns termos um pouco menos
mento já é bastante reforçado pelo próprio imagens e as palavras numa narrativa fora de moda. O fenômeno de que falo,
discurso jornalístico – aquele mesmo que ininterrupta, mas a paisagem que se lhe entretanto, de um modo ou de outro,
Bilac enaltece para vislumbrar o que seria apresenta do outro lado da janela eletrô- continuaria o mesmo. E, quanto à ideolo-
o “jornal do futuro”. Como nos tempos de nica. O “meio”, a “ferramenta de comu- gia, falaremos sobre ela um pouco adiante.
Bilac, o jornalismo ainda se apresenta, nicar”, simula sua própria transparência Por ora, afirmo o seguinte: A televisão
predominantemente, como um discurso simulando sua desintegração no espaço. não mostra lugares, não traz lugares de
positivista. Para mim, que sou um jornalista Como o próprio discurso que se pretende longe para muito perto – a televisão é um
profissional, a constatação não deixa de ser neutro, isento e distanciado, a tela apa- lugar em si. Do mesmo modo, ela não
embaraçosa. Mas é inevitável notar que, rentemente não tem parte com a realidade supera os abismos de tempo entre os
talvez, o discurso jornalístico seja hoje um que retrata nem com aquele que para ela continentes com suas transmissões na
dos poucos redutos do positivismo, num volta os olhos. A tela, como o discurso velocidade da luz: ela encerra um outro
tempo em que até mesmo o discurso das jornalístico, retira dessa isenção a sua tempo.
ciências exatas já aceita mergulhar na legitimidade e a sua força. Por isso, am- •
inexatidão do caos ou na incerteza das bos ocultam sua própria condição. O lugar da TV, ou melhor, a TV como
probabilidades quânticas. O jornalismo Uma abordagem crítica da TV que lugar, nada mais é senão o novo espaço
resiste como um campo discursivo que não problematize o paradigma da tele- público, ou uma esfera pública expandida.
ainda carrega a pretensão de, no interior visão como um simples “meio”, ou que (...) O exemplo brasileiro é um dos mais
do relato que propõe, conter, sistematizar aceite a televisão como veículo trans- indicados do mundo para quem quer
e representar de modo inteiramente neutro portador de mensagens entre emissor e observar os detalhes de como se dá a
a objetividade dos fatos. Como se essa receptor, acaba caindo na armadilha desse expansão da esfera pública e, mais ainda,

novembro/99 - CULT 11
Reprodução Kiko Ferrite

O poeta Olavo Bilac e a


psicóloga Maria Rita Kehl

como se dá a sua constituição em novas audiovisual: o que não aparece na TV que misturam notícias e emoções folheti-
bases. Às vezes tenho a sensação de que, não acontece de fato. nescas e ofertas eróticas, o fluxo dos
se tirássemos a TV de dentro do Brasil, o (...) significantes na televisão apresenta inú-
Brasil desapareceria. A televisão se • meras semelhanças com o fluxo sem fim
tornou, a partir da década de 60, o supor- Agora, o tempo da TV. É uma nova dos significantes que deslizam soltos pelo
te do discurso, ou dos discursos, que iden- dimensão de tempo. Se esse espaço não é inconsciente. Nessa perspectiva, eu
tificam o Brasil para o Brasil. Ela une e mais o lugar histórico, nem identitário, afirmo que o tempo da TV é o tempo do
iguala, no plano do imaginário, um país nem relacional, o tempo também deixa inconsciente. Se a alguns essa proposta
cuja realidade é constituída de contrastes, de ser um tempo cronológico. Observem soa abusada demais, ou infundada de-
conflitos e contradições violentas. Isso já que, vendo TV, temos a sensação de que mais, eu busco socorro outra vez no tema
foi bem descrito por Maria Rita Kehl em tudo ali é um gerúndio interminável e, da ideologia segundo uma acepção
seu ensaio “Eu vi um Brasil na TV”, outra vez, totalizante, ainda que dissimu- bastante precisa.
publicado em 1986 (em Um país no ar, de lando essa sua condição. Os eventos se Refiro-me ao conceito de “ideologia
Alcir Henrique da Costa, Inimá Simões sucedem não propriamente numa suces- em geral”, proposto por Althusser. (...) A
e Maria Rita Kehl, editora Brasiliense/ são, mas num acontecendo, num se contribuição mais fecunda de Althusser
Funarte). (...) sucedendo, na permanência de um, repito, para o que aqui lhes apresento é a defi-
Ponto de fuga para todos os olhos, gerúndio que não tem começo nem fim. nição de “ideologia em geral”:
aura luminescente que nos olha sem Esses fluxos em gerúndio prometem o Eu posso apresentar o projeto de uma
cessar, o lugar da TV é ubíquo. Mais: é torpor ou o gozo e, em seu jorro ininter- teoria da ideologia em geral e se esta
totalizante, ainda que se apresente rupto, proporcionam efetivamente um teoria é um dos elementos do qual
multifacetado, fragmentário e até varia- gozo estranho e, ao mesmo tempo, fami- dependem as teorias das ideologias, isto
do. Não admite nada que fora dele se liar. O tempo da TV é um tempo sem implica uma proposição aparentemente
manifeste. O que não é difícil de ex- passado, sem futuro. O passado, quando paradoxal que enunciarei nos seguintes
plicar. Ao brocardo jurídico dos antigos emerge, emerge como presente. O futuro, termos: a ideologia não tem história. (...)
romanos, quod non est in acti non est in quando vem à tela a pretexto de uma Por um lado, acredito poder sustentar que
mundo (“o que não está nos autos não previsão qualquer, põe-se como um ato as ideologias têm uma história sua
está no mundo”), que obriga o juiz a que está acontecendo naquele instante (embora seja ela, em última instância,
ater-se aos fatos descritos no processo exato. determinada pela luta de classes); e, por
para fundamentar sua sentença – e que, Aos olhos de um telespectador alea- outro lado, acredito poder sustentar ao
também, assegura o registro no sim- tório, que despreocupadamente muda os mesmo tempo que a ideologia em geral
bólico como pré-requisito para que se canais, as dezenas de canais, que salta de não tem história, não em um sentido
dê por existente um dado qualquer do um para o outro, ou mesmo daquele negativo (o de que sua história está fora
real, ou seja, o real só é admitido en- telespectador que se submete às seqüên- dela), mas em um sentido totalmente
quanto argumento a partir de sua absor- cias anárquicas entre comerciais, progra- positivo.
ção pelo simbólico –, segue-se uma mas de entretenimento, que se expõe Eu diria, fornecendo uma referência
outra lei, a lei da nossa era, a era do passivo às programações entrecortadas teórica retomando o exemplo do sonho,

12 CULT - novembro/99
Rumos Literatura e Crítica é constituído por uma série de conferências, oficinas e grupos de discussão, fazendo
parte do projeto Rumos – um programa de ações permanentes do Itaú Cultural, com objetivo de promover a
renovação da produção artística e estimular valores emergentes em diversas vertentes da atividade criativa. Rumos
Literatura e Crítica é uma iniciativa voltada especificamente para a discussão do papel da crítica de arte e cultura
no Brasil, com ênfase naquela veiculada pela imprensa, incentivando jovens para a iniciação à crítica. As con-
ferências compõem os módulos O Estado da Crítica (com Jacques Leenhardt e Gerd Bornheim) e Visões Críticas
(com Benedito Nunes, Marcelo Coelho, Eugênio Bucci e Lucia Santaella). Versão sintetizada de cada uma das seis
conferências está sendo publicada mensalmente na CULT desde julho passado. Os textos na íntegra terão publi-
cação especial do Itaú Cultural, que poderá ser solicitada pelo e-mail educar@itaucultural.org.br. Já as oficinas
foram agrupadas no módulo Iniciação à Crítica e aconteceram no mês de julho, dando origem a grupos de discussão
que vão se reunir até outubro. Rumos Literatura e Crítica tem consultoria da professora Maria Helena Martins.
Informações no Itaú Cultural (Av. Paulista, 149, São Paulo, CEP 01311-000, e-mail: instituto@itaucultural.org.br,
site na Internet: www.itaucultural.org.br, tel. 0XX11/238-1700, fax 238-1720).

desta vez na concepção freudiana, que mos daí um outro pilar da natureza da acabam por fazer dos meios de comunicação
nossa proposição “a ideologia não tem televisão contemporânea: os programas uma importante instituição que ‘leva a
história” pode e deve (e de uma forma de ficção cada vez mais buscam sustentar- pensar’, que ‘educa’.” (Comunicação e
que nada tem de arbitrária, mas que é pelo se em argumentos de realidade (tanto linguagem: Discursos e ciência, Mo-
contrário teoricamente necessária, pois que, no Brasil, a telenovela é tanto mais derna). A comunicação engloba as esferas
há um vínculo orgânico entre as duas presente quanto mais consegue propor institucionais anteriores, e disso ainda mal
proposições) ser diretamente relacionada uma síntese do imaginário nacional); nos demos conta. Jesús Martín-Barbero,
à proposição de Freud de que o incons- quanto aos programas de telejornalismo, porém, já anotou:
ciente é eterno, isto é, não tem história. estes precisam se adequar a uma narrativa O que está mudando não se situa no
Basta examinarmos o andamento dos mais ou menos melodramática (o anda- âmbito da política, mas no da cultura, e
clipes e dos comerciais na TV, as cenas mento dos telejornais buscam capturar o não entendida aristocraticamente, mas
românticas das telenovelas e dos filmes, telespectador pelo desejo e pela emoção). como ‘os códigos de conduta de um grupo
basta que observemos a avalanche de Ou seja, ficção e realidade se invertem ou um povo’. É todo o processo de socia-
imagens que soterram os sujeitos a um na (estética da) nova ordem. lização que está se transformando pela
tempo dispersos e compactados num só A crítica de televisão não pode se raiz ao trocar o lugar de onde se mudam
espaço que teremos a melhor tradução acomodar à crítica de obras isoladas no os estilos de vida. (...) Nem a família, nem
do que intuiu Althusser. Como nos interior da programação, por mais que a escola – os velhos redutos da ideologia
sonhos, como na ideologia em geral, admitamos a existência de gêneros no – são já o espaço-chave da socialização...
como no inconsciente, o passado e o futu- interior da TV (a título de exemplo, a (...) O que implica que a verdadeira
ro deságuam um no outro; não há come- telenovela pode ser entendida como um crítica social tem mudado também de
ços encadeados a meios e fins; as narra- dos gêneros possíveis). Acima dos gêne- ‘lugar’: já não é a crítica política, mas a
tivas lógicas se dissolvem numa pasta que, ros, a crítica de televisão é a crítica de um crítica cultural. (Dos meios às media-
não obstante, tem um sentido profundo: novo patamar das relações sociais e das ções: comunicação, cultura e hegemonia,
o sentido de integrar pelo olhar. O relações ideológicas entre os sujeitos, e Editora UFRJ).
sentido não apenas ideológico, mas só a partir daí ela ganha seu sentido A crítica de televisão não lida (ape-
videológico. É a (v)ideologia que “inter- político – o que mais me interessa. nas) com a estética. Ela não tem por obje-
pela os indivíduos enquanto sujeitos”.(...) Nesse quadro, o campo da comunicação, to uma arte, mas um fato social como a
• equipada com o aparato da tecnologia (tecno- própria língua (ou como a linguagem).
Vamos registrar o seguinte dado: a videologia) se apossa do núcleo da esfera global. Portanto, deve declarar que, discutindo a
esfera pública da sociedade de consumo, O campo da comunicação, como o define cultura, está discutindo a sociedade e seus
a sociedade em que vivemos, tem a sua Maria Aparecida Baccega, pode ser visto sujeitos. A crítica de televisão, hoje, é
esfera pública privatizada, na qual como o campo em que opera a crítica de uma crítica do poder.
atributos da cidadania se convertem em televisão, um ramo da crítica cultural. “A
bens de consumo e na qual a lógica do comunicação exerce hoje o papel central para Eugênio Bucci
espetáculo absorve e comanda a organiza- onde convergem os conflitos que, ali traba- Jornalista e crítico de TV, diretor de redação da revista
Quatro Rodas e secretário editorial da Editora Abril, autor de
ção e a disposição dos conteúdos. Tira- lhados, ‘espetacularizados’, ressignificados etc., Brasil em tempo de TV (Boitempo)

novembro/99 - CULT 13
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Prêmio Nobel ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Humanista

Fotos/Reprodução

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14 CULT - novembro/99 Claudia Cavalcanti ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○


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por vocação
Nobel concedido a Günter Grass premia o escritor alemão de maior

repercussão na segunda metade do século e chama a atenção

para a produção poética e de artista plástico do autor de O tambor

Ainda bem que existe o Prêmio alemão é o escritor de maior repercussão


Nobel de Literatura, ao qual todos já dentro e fora de seu país nesta segunda
estamos acostumados e não saberíamos metade do século; ele vive em Lübeck
viver sem comentá-lo todos os anos. com a segunda mulher, mas mantém casas
Diferentemente da Academia Brasileira na Dinamarca e em Portugal; tem oito
de Letras, que de vez em quando elege filhos e vários netos e confessa possuir
imortais como Ivo Pitanguy, que pou- “leves traços patriarcais”; gosta de
quíssimo têm a enriquecer a literatura, o cozinhar, especialmente peixes – ao vapor,
Nobel nunca escorrega nesse ponto, em- grelhados, assados; também gosta de
bora às vezes o escolhido seja um desco- comprar copos antigos para beber a sua
nhecido no mundo ocidental ou um escri- aguardente e afirma ser este seu único
tor que a maioria esclarecida pensa não consumo extravagante, ele que, desde O
combinar com o prêmio, como há dois tambor, vive de literatura; por isso mesmo
anos o italiano Dario Fo. E também há não precisa de muito dinheiro e costuma
os eternos candidatos, entre os quais o instituir prêmios literários, dar bolsas ou
alemão Günter Grass, finalmente agra- fazer doações quando surge um excedente
ciado com o Nobel de Literatura no final no caixa; assim, dos US$ 960 mil que
de setembro último. ganhará em dezembro na Suécia, metade
Grass esperou 40 anos pelo prêmio, vai para os netos e a outra metade para
desde que publicou o estrondoso sucesso organizações que combatem o neo-
O tambor (Die Blechtrommel), de longe o nazismo; no dia 30 de setembro, quando
seu melhor livro, que a partir de 1959 soube do prêmio, o escritor tinha hora
vendeu quatro milhões de exemplares em Uma avalanche de informações marcada no dentista. Manteve a consulta.
todo o mundo e foi transformado em filme chega aos leitores desde quando foi Não seria preciso dizer que, segundo
por Volker Schlöndorff, em 1979, ano em divulgado o prêmio: Günter Grass, 72 a academia sueca, Grass recebeu o prêmio
que ganhou o Oscar de Melhor Produção anos completados em outubro, se pelo conjunto da obra e pela sua
Estrangeira, deixando o romance ainda declarou “surpreso” com a premiação, dedicação às causas humanistas. Nada
mais popular. além de sentir “alegria e orgulho”; o mais verdadeiro. Primeiro, porque todo

novembro/99 - CULT 15
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ano é assim mesmo. Segundo, porque,


desde que ficou conhecido, o alemão de
Gdansk é um incansável político diletante
(mas quase profissional). Depois de
escrever a famosa trilogia composta por
O tambor, Gato e rato (Katz und Maus, de
61) e Anos de cão (Hundejahre, de 63), o
mais conhecido intelectual social-demo-
crata da Alemanha passou a escrever
discursos políticos para o então chanceler
Willi Brandt e quase estragou a carreira
literária, antes caracterizada por uma
narrativa complexa, rica, original e mar-
cada pela ironia, algo que em nada com-
binava com o gênero de texto ao qual pas-
sara a dedicar-se (embora se afirme que
seus discursos eram infinitamente me-
lhores do que se fossem escritos por um
profissional da política).
Os ecos dessa prática, nada salutar
para um escritor, foram notados recen-
temente, quando publicou o romance Um
campo vasto (Ein weites Feld, de 95), acerto
de contas com a reunificação alemã.
Grass ambientou o gordo romance em
Berlim, cidade-palco de décadas de
profundas transformações no nada pacato
cotidiano dos cidadãos alemães deste
final de século. Antes da queda do muro,
Grass já alertava para os perigos da
O escritor em seu ateliê de Berlim, em 1972 reunificação e pregava a existência
pacífica de dois estados alemães. Foi
muito criticado na época, mas hoje não
faltam protestos contra a queda do muro
e até conclamações à volta dele. Um campo
vasto, mesmo sendo um livro politica-
mente correto sob esse ponto de vista,
irritou de vez a crítica e ofendeu os com-
patriotas alemães. Marcel Reich-
Ranicki, o mais conhecido e contro-
vertido crítico literário do país, apareceu
na revista Der Spiegel rasgando em dois o
livro de Grass; chamaram-no de traidor
da pátria.
À esquerda, capa da edição de 1962 Guardadas as devidas proporções,
de O tambor, e à direita, capa de
Gato e rato, ambas de Günter Grass também escrevi uma resenha desfavorável

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16 CULT - novembro/99
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ao livro no ano passado, quando ele foi Nos vários livros de arte que publicou,
publicado aqui – editado pela Record –
com tradução de Lya Luft. Eu chamava
Grass de traidor, não da pátria, mas da
literatura, por ter escrito um romance
Grass fez questão de incluir poemas
conceitualmente ligados a esboços de
desenhos que inspirariam um romance,
por exemplo, até chegar à ilustração da
poemas
de Günter Grass

enfadonho, chato, nada comparável ao capa do mesmo, invariavelmente de sua Tradução de Claudia Cavalcanti

que ele já produzira. Mantenho a minha autoria, desde O tambor até Um campo
opinião. Se fosse um ensaio sobre a década vasto. Depois da aridez deste último,
de 90 na Alemanha, o hoje Nobel certa- dedicou-se a aquarelas de cores fortes
mente teria escrito algo estupendo e con- com poemas nelas inscritos, cujo
tundente (como de resto são os seus en- conjunto chamou Alguns achados para não Alguns achados para não leitores
saios), mas como ficção Um campo vasto leitores. Este parece-me um quesito pouco
não funciona. explorado do conjunto da obra de Grass, Tudo o que além das letras
Claro que entre a trilogia já citada e o em dias em que tanto se fala dele. Se chega aos olhos como reflexão:
último romance não estão apenas prática houvesse um Nobel de Artes Plásticas, essa coisa aí,
e discursos políticos. Nesse hiato, Günter ele certamente ganharia por Alguns
unhas falhas ou migalhas
Grass escreveu bons livros, como anestesia achados..., e não pelos esboços de O
local (örtlich betäubt, de 69), O linguado tambor. Como ganhou o de literatura, deixadas por uma borracha.
(Der Butt, de 77) e A ratazana (Die Rättin, sem dúvida foi graças a O tambor, e não
de 86), entre outros, mas especialmente a Um campo vasto. A tendência talvez seja
O encontro em Telgte (Das Treffen in Telgte, a de o artista suplantar o escritor, como Antiações
de 79), uma breve e bela narrativa aconteceu com Dürrenmatt, que, já
ambientada no século XVII que enfatiza consagrado, praticamente deixou de es-
seu gosto pelos escritores barrocos de seu crever para pintar. Eu me repito a contragosto,
país, uma influência no mínimo inco- Além disso, é estranho que também disse o papagaio: eu
mum na Alemanha de Goethe e Schiller. não se tenha falado muito da importância, me repito a contragosto.
Sem dúvida, nos últimos 40 anos o ainda hoje, de um prêmio desse porte ir
mais novo premiado de Estocolmo sem- para a Alemanha (o último foi concedido Deus é comprovável,
pre esteve em evidência, seja pela sua obra a Heinrich Böll, em 72). Trata-se de um
ficcional, seja pela sua atuação política país com um mercado editorial organi-
disse o padre, subiu na bicicleta
de amplo espectro (chegando ao ponto zado e rico (que valoriza seus autores e e apresentou a prova.
de auto-exilar-se na Índia em 1985), mas tem livros impecavelmente traduzidos e
mesmo depois deste mais recente prêmio revisados, aberto a nomes internacionais), A tinta traz a culpa,
pouco se falou de sua obra poética e sua com gente que cultiva a leitura, que sedia disse o juiz,
formação como artista plástico. Este a maior feira de livros do mundo, que tem
e assinou.
último aspecto me parece imprescindível, ótimos escritores com larga tradição de
pois antes do escritor já existia o escultor atuação política e formação de opinião.
com diploma na academia de Düsseldorf, Por outro lado, é um país constantemente Minha cabeça dói,
que mais tarde se tornaria o desenhista, o presente – quase sempre de forma disse eu,
pintor, o gravurista, o ilustrador, o capista. negativa – no debate político mundial. e tirei os sapatos.
Os poemas, sucintos e expressivos, se Não por acaso, o ganhador do Nobel
bem que longe de geniais, curiosamente dedicou metade de seu prêmio ao
quase sempre se conectam a desenhos combate do neonazismo. Mas, germani-
ou pinturas, e estes com freqüência vão camente, não desmarcou o dentista.
desencadear um projeto mais amplo na Claudia Cavalcanti
ficção. crítica literária e tradutora

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novembro/99 - CULT 17
ROMANCE
: Mundos de vidro Sem pretensões de verossimilhança histórica, o romance do escritor italiano Alessandro
: Alessandro Baricco Baricco ambienta-se numa cidade imaginária do século XVIII, onde mito e realidade se
: Elia Ferreira Edel confundem e todos os acontecimentos se relacionam à chegada da estrada de ferro – que nunca
: Editora Rocco acontece. Com frases cadenciadas que lembram uma locomotiva, parágrafos sem fins próprios,
: 226 págs. eternos recomeços e uma pluralidade de destinos cruzados de personagens passionais e expressivos,
: R$ 25,00 reflete sobre questões existenciais do homem, como o destino e a morte.

Esta nova edição de Conto, de Tchekov, traduzida e organizada por Boris Schnaiderman, é uma
CONTOS

: A dama do cachorrinho e
outros contos versão refeita do volume inicial de 1959. A obra contém, também de sua autoria, uma nota
: Antón Pavlovitch Tchekov biográfica, além de um posfácio, que trata brevemente do “não–desfecho” na obra de Tchekov, e
: Boris Schnaiderman de um apêndice, que traz informações suplementares sobre os contos, com citações de estudiosos
: Editora 34 e autores como Tolstói, Górki e Otto Maria Carpeaux. As histórias retratam o cotidiano da
: 368 págs. : R$ 29,00 Rússia, despidas de acessórios, porém densas de significado, num tom mais sugestivo que afirmativo.

: Aula de canto e outros contos Com este volume, a Editora Revan completa a obra de Katherine Mansfield no Brasil,
: Katherine Mansfield composta de quatro coletâneas de contos – Felicidade, A festa, Je ne parle pas français e Numa pensão
: Julieta Cupertino alem㠖 além de Diário e cartas, todos traduzidos por Julieta Cupertino. A escritora neozelandesa
: Editora Revan que cresceu e viveu na Inglaterra tem como marca registrada revelar o caráter de seus personagens,
: 240 págs. buscando e expondo sua alma, sua relação com o mundo e seus dramas existenciais por meio de
: R$ 24,00 acontecimentos sem importância, de gestos e vivências simples do cotidiano.

Crítico literário e diretor de um centro de pesquisas sociológicas na França, Tzvetan Todorov


MEMÓRIA

: O homem desenraizado
: Tzvetan Todorov é autor de várias obras sobre literatura e sociedade. Nascido na Bulgária totalitarista e vivendo na
: Christina Cabo França, além de anualmente ir aos Estados Unidos para exercer sua profissão, Todorov revela em
: Editora Record O homem desenraizado uma vida interior constituída de duas culturas. O livro, narrado em primeira
: 252 págs. pessoa, aborda o processo de transculturação e divide-se em três partes, relacionadas aos três países,
: R$ 25,00 tratando de temas como cultura, vida cotidiana, humanidades e regimes políticos e suas implicações.

: O espelho do mar seguido A Editora Iluminuras reúne nesta obra dois textos de caráter autobiográfico do polonês Joseph
de Um registro pessoal Conrad, considerado grande renovador do romance de língua inglesa do início do século XX. Em O
: Joseph Conrad espelho do mar, ora descritivo, ora introspectivo, o autor revela suas vivências na marinha inglesa e suas
: Celso M. Paciornik convicções sobre vida, natureza e sociedade, sendo tanto narrador e espectador quanto protagonista.
: Iluminuras Em Um registro pessoal, relata seus antecedentes familiares e nacionais, o exílio e a atividade literária.
: 284 págs. : R$ 29,00 Além disso, há um enriquecedor apêndice em que Conrad discorre sobre a condição da arte.

André Koch Torres Assis é professor do Instituto de Física da Unicamp e inaugura, com seu
CIÊNCIAS

: Uma nova Física


: André Koch Torres Assis livro Uma nova Física, a coleção Big Bang da Editora Perspectiva. Após uma apresentação da
: Editora Perspectiva mecânica newtoniana e das teorias de Eisntein, Assis propõe um novo paradigma para a Física,
: 176 págs. chamada Mecânica Relacional, que relativiza conceitos de distância, velocidade e aceleração e
: R$ 22,00 baseia-se na lei de Weber para a gravitação e nas teorias de Leibniz, Berkeley e Ernst Mach.
Estudo altamente informativo escrito em linguagem direta e acessível ao público leigo.

: Velho Mundo desce aos Apesar de a época da Revolução de 1848 apresentar escassez de registros literários, Dolf Oehler
ENSAIO

Infernos revela sua importância por ser esse o único momento em que história e literatura se imbricam e em
: Dolf Oehler que burguesia e povo se harmonizam. Numa análise inovadora, o autor revisa a leitura feita das
: José Marcos Macedo obras de Baudelaire, Flaubert e Heine e resgata escritores menos conhecidos, além de examinar as
: Companhia das Letras relações entre o massacre e o nascimento da modernidade na literatura, abordando tópicos como
: 432 págs. : R$ 35,00 o voltar-se sobre si mesmo, a melancolia e o rigorismo estético e intelectual difundidos nos textos.

: Antitratado de cenografia Atualmente encenando e ambientando diversos tipos de espetáculo teatral, o italiano Gianni
TEATRO

– Variações sobre o Ratto, após fundar o Piccolo Teatro de Milão, veio para o Brasil onde ajudou a consolidar, como
mesmo tema encenador, o moderno teatro brasileiro, além de ter dirigido para teatros como o TBC e o Maria
: Gianni Ratto Della Costa. Em Antitratado de cenografia, o autor, numa linguagem simples, aborda aspectos
: Editora Senac históricos e estéticos do espaço cênico defendendo-o como elemento de atuação sensorial versus o
: 192 págs. : R$ 35,00 mero decorativismo, abrangendo também a crise do cenário devido a sua abolição do espetáculo.

: A arte de descrever – A A coleção Texto e Arte, que objetiva editar obras que unam escrita e imagem, lança este novo título
ARTE

: arte holandesa no século XVII de autoria de Svetlana Alpers, professora de História da Arte na Universidade da Califórnia, que se
: Svetlana Alpers destina a possibilitar a apreciação e o entendimento da arte holandesa no século XVII. Constatando
: Antonio de Pádua Danesi que a imagem era fortemente vinculada à sociedade holandesa, a autora discorre sobre características
: Edusp da arte pictórica tais como a inexistência de um observador, o contraste de escalas e a ausência de
: 432 págs. : R$ 60,00 molduras prévias, demonstrando que não há imitação do real, mas descrição do que se vê.

: Título : Autor : Tradutor : Editora : Número de páginas : Preço

18 CULT - novembro/99
Roteiro turístico

Trash picture (1968),


de Walker Evans

“Roteiro turístico”, conto escrito entre 1970 e 1971, é a

primeira peça narrativa a ser publicada pelo poeta e

tradutor Ivo Barroso. Autor dos livros de poemas Nau dos

náufragos (1981) e Visitações de Alcipe (1992), publicados

em Portugal, lançará em breve o volume A caça espiritual,

que reúne os dois títulos anteiros anteriores e textos ainda

inéditos. Ivo Barroso é também autor do ensaio literário

“O Corvo” e suas traduções (Lacerda Editores) e tradutor da

obra completa de Rimbaud, publicada pela Topbooks, e


Ivo
Barroso
dos volumes Os Sonetos de Shakespeare (Nova Fronteira) e

Os gatos, de T.S. Eliot (Nórdica) – entre outros. agosto/99 - CULT 19


E m Bangkok (ou Nova York, não sei) há uma rua a um canto, ocorre às vezes que os clientes do
chamada Sharkanda, que significa Esgoto. Quando um restaurante à direita se divertem mais que os do lado
mendigo é apanhado esmolando pela cidade ou um esquerdo. Além disso, a preguiça e a debilidade tornam
bêbado caído nas ruas centrais, a polícia o carrega para os miseráveis quase imóveis. Com poucas migalhas se
lá. Um guarda, junto ao portão de arame farpado à satisfazem; comem e se acocoram para dormir, ou, o
entrada da rua, impede os párias de fugir. O que é pior, se escondem embaixo de folhas de jornal
confinamento dura em geral até a morte por inanição para evitar a luz dos fortes holofotes que ambos os
ou extermínio. restaurantes despejam sobre eles. Daí o acordo tácito
Se os segregados gritam, durante o dia, os moradores entre as duas casas: os clientes não podem mais atirar
dos sobrados que dão para a viela atiram sobre eles diretamente à rua os restos de seus pratos. A comida,
garrafas vazias ou baldes de água quente. À noite, os que passou a ser lançada, consistia de pequenas
mais recalcitrantes são calados a pauladas, pois a almôndegas que continham ou não fortes doses
população obreira do bairro precisa de repouso para o purgativas ou veneno. Os mendigos apanhavam as bolas
trabalho da manhã. e as cheiravam antes de comê-las; mas nem pelo odor
Por alguns dólares os turistas podem se divertir com esse nem pelo gosto era possível distinguir as que tinham
curioso espetáculo: montes de lixo humano que se das que não tinham veneno. Com a mortandade diária
movem e uivam. É cobrada uma taxa especial a quem os restaurantes prosperaram. Mas um pequeno grupo
quiser fotografar. Se durante a visita os mendigos ficam conseguiu sobreviver, fazendo a seleção alimentar por
parados e a cena se torna monótona, o guarda do portão um critério extra-sensorial. Os espertalhões perceberam
permite aos meninos das vizinhanças entrar em bando que o restaurante mais afastado de onde estavam tendia
pelo beco desferindo pontapés nos corpos caídos. As a atirar uma quantidade maior de almôndegas puras para
vítimas já quase não ligam aos chutes nem reagem ao atraí-los em sua direção. O que gerou uma espécie de
mijo quente que as crianças lhes acertam nos ouvidos. dança, para cá e para lá, pouco interessante para os
Alguns sangram e cantam quando os meninos os clientes de ambos os restaurantes, que preferiam como
golpeiam com latas vazias de leite em pó amarradas a dantes ver os mendigos se estrebuchando ou se esvaindo
um fio de barbante, gritando: Canta! Canta! Os turistas em fezes quando tentavam comer. Surgiu assim um novo
sorriem ao guarda e dão pequenas gorjetas às crianças. problema para os pobres proprietários dos restaurantes:
Os que vêm do interior ou de outros países para como os mendigos comem pouco, estava se tornando
conhecer a cidade e podem ficar mais tempo preferem impossível abrir a casa para duas refeições diárias. Se
almoçar num dos restaurantes que funcionam nos conseguiam engolir algumas bolas inócuas na hora do
sobrados com varandas abertas sobre o beco. A princípio almoço, não tinham fome por ocasião do jantar e
costumavam jogar comida lá de cima para ver como os ficavam rindo-se do esforço dos garçons para atraí-los.
mendigos reagiam. O garçom explicava que não se Claro, os clientes se retraíam: não haviam ido lá para ver
devia jogar muita, pois o objetivo não era alimentar os mendigos sorridentes. Alguns fregueses saíam contrafeitos
pobres, mas vê-los disputar as migalhas. Nessas ou frustrados, prometiam vir para o jantar ou o almoço
disputas, na ferocidade dos avanços e dos repelões, não do dia seguinte, mas não voltavam mais. Daí terem os
raro morria algum. Na manhã seguinte, o lixeiro levava donos recorrido experimentalmente ao regime do jejum
o cadáver para jogar no rio. Nas poucas noites frias, absoluto: nenhuma comida em hora alguma, com ou sem
era possível cremá-los em fogueiras feitas de cavacos, purgantes e venenos. Mas com a fome, o grupo tendeu a
restos de caixas, jornais e outras matérias combustíveis encolher-se ainda mais, a permanecer abúlico, e cada
que os vizinhos piedosos jogavam das janelas. manhã os lixeiros tinham mais trabalho – só que o trabalho
Os dois restaurantes, situados um de cada lado da ruela, dos lixeiros não interessava a ninguém. Além disso,
sempre empenhados em animar a vida do bairro, arriscava-se a uma dizimação improdutiva da mão-de-
buscam atrair novas levas de turistas para comer e obra integrante do espetáculo.
desfrutar o espetáculo. Mas há problemas a contornar. Surgiu a idéia brilhante de pendurar-se os alimentos em
Como a tendência dos mendigos é a de se aglomerarem longas varas de pescar, sobre a rua, fora do alcance

20 CULT - agosto/99
novembro/99
das mãos. Iscavam-nas com algumas almôndegas puras o fel de suas próprias entranhas, os ratos também sofre-
e boas, a recender ainda fumegantes e tiradas direta- ram com isso. Eles que vinham, os de pêlo gasto e cur-
mente dos pratos dos clientes para afastar qualquer dúvi- tido, já agora acompanhados de outros mais espertos e
da por parte dos mendigos. A princípio deu certo. O claros, que corriam sem temor pelo centro da rua – os
espetáculo voltou à animação dos primeiros dias: a ratos passaram a guinchar em plena caça e a morrer às
massa informe movia-se, quase ficava em pé. Os recém- dezenas, à entrada dos esgotos, sob o efeito do tóxico.
recolhidos, novatos com algumas semanas ainda de Os que restaram esconderam-se em galerias mais
vida, conseguiam mesmo pular na tentativa de alcançar profundas, passaram tempos sem aparecer. Quando
as iscas. Alguns se aproveitavam dos corpos dos compa- voltaram à superfície, estava em plena moda a prática
nheiros caídos para subir-lhes por cima. do jejum absoluto e, logo depois, a das iscas suspensas
Mas a alegria do público foi logo esmorecendo. Quando por varas. As ratazanas vasculhavam os cantos, risca-
um deles, no extremo do sacrifício de arrimar à almôn- vam os muros, roíam as varandas e fugiam famintas.
dega, chegava próximo da isca, os gritos de advertência Depois que os andrajosos exauriram o que lhes restava
dos espectadores faziam com que os garçons levantassem de engenho nas grotescas tentativas de alcançar os
as varas, criando a sensação de uma pescaria às avessas, caniços, e a prática das varas foi abolida, os ratos volta-
que consistia em evitar que o peixe ferrasse o anzol. ram ao desespero da fome, em declarada guerra. Come-
Enquanto isto, os garçons do lado oposto baixavam seus çaram a farejar as sombras, o fétido dos corpos caídos
caniços para atrair os peixes famintos, e como a distância que tresandavam a excremento, e corriam por entre
entre uma varanda e outra era muito reduzida, os os molambos molhados, roendo os restos de merda das
oponentes passaram a esgrimir-se com as varas numa roupas. Uma noite, alguém, insone, que veio com um
tentativa de evitar que o adversário facilitasse a pesca pau aplacar os gemidos dos mendigos, viu a faina dos
dos mendigos. A prática foi abolida no dia em que, entre ratos, e, como as idéias nascem de acasos, a solução
urros, ameaças e impropérios, as iscas de carne se fez.
tombaram no beco em razão da contenda. Os miseráveis Os restaurantes mandaram armar grandes gaiolas de
apossaram-se delas e foram comê-las tranqüilos em seus tela de arame para as quais atraem os ratos com torres-
cantos, divertindo-se com a disputa dos garçons. Houve mos e raspas. Com pouco, fazem várias criações em
protestos gerais, alguns clientes saíram reclamando. seu interior e, defronte às varandas, ali onde antes pen-
Outros chegaram a falar em devolução do dinheiro. diam as varas, vêem-se agora gaiolas suspensas. Há
A solução do impasse pendia dos mais antigos habitantes um cuidadoso revezamento delas, e a que pende a cada
do bairro: os ratos. Mas não se mostrou evidente no dia encerra ratos que estão com três dias de regime.
primeiro instante. Aconteceu por acaso. Eles apareciam Quando se aproxima a hora do espetáculo, a fome dos
apenas à noite, rondavam por baixo das varandas bichos é tamanha que seus guinchos vão se ritmando,
quando as luzes dos restaurantes se apagavam; era-lhes cada vez mais agudos, e os focinhos sangram de gana
fácil farejar as últimas migalhas que os mendigos esgueirando-se entre as grades.
enjeitavam; quando até mesmo essas rações come- Tudo o que os garçons têm a fazer agora é atirar sobre o
çaram a rarear, os animais subiam ao longo das paredes grupo um bocado de molho e puxar o cordel que abre a
de palha, alcançavam as varandas, raspavam do chão ratoeira em cima. Os ratos caem das jaulas aos saltos e
das salas suspensas os salpicos de sopa. Depois, avançam atraídos pelo cheiro do molho. O grupo,
saciados, desciam, voltando céleres aos esgotos. atacado, se acovarda e esperneia, e o espetáculo atinge
Quando se instituiu o uso das bolas purgativas, com seu auge quando os bichos famintos arrancam primeiro
pouco os ratões proliferaram, grande era a sobra que os os lábios e os lóbulos. E depois, quando as crianças
mendigos deixavam receando a escolha. Os ratos entram armadas de porretes e começam a matar sobre
devoravam todas as almôndegas aparentemente sem os corpos dos mortos os ratos já fartos.
sofrer efeitos secundários. Mas quando os garçons Por uma questão de ordem, ajustou-se que um dos
começaram a carregar nas doses para ver os mendigos restaurantes só funciona para o almoço e o outro, para
gemendo e defecando em público, revolvendo-se sobre o jantar.

agosto/99 - CULT 21
novembro/99
Bernardo Ajzenberg/Folha Imagem

um ensaísmo
inteligente

joão alexandre barbosa O ensaísta Eduardo Lourenço

Mitologia da saudade, livro do ensaísta Eduardo Lourenço, detém-se em


autores como Fernando Pessoa, Almeida Garrett, Luis de Camões e na história
portuguesa para encontrar na “voz sem verbo” da saudade a vivência universal
pela qual sentimos ao mesmo tempo nossa fugacidade e nossa eternidade

N ão sei se o leitor já leu algum


dos ensaios de Eduardo Lourenço,
doutrinal de autores portugueses. E isto
porque há muito pouco, ou quase nada,
mais concretamente, seja em obras, seja
em ideologias específicas, aquele tema
certamente um dos maiores ensaístas de doutrinal em sua prosa ensaística e, na central, como está em “Clarimundo:
escrevendo em língua portuguesa nos dias verdade, o que dela ressalta é uma enorme Simbologia imperial e saudade”,
atuais. Se não, e se tiver interesse por uma e bela liberdade em ir acentuando “Sebastianismo: imagens e miragens” e
prosa admirável em que a literatura e a aspectos gerais e particulares de obras, “Romantismo, Camões e saudade”;
cultura são pensadas e discutidas numa autores e temas literários e culturais, tudo finalmente, a releitura de Fernando
trama de grande intensidade, é possível sempre articulado por pontos de vista Pessoa, em dois ensaios que retomam o
agora começar a conhecê-la pela leitura críticos adequados e por uma variada (e poeta a partir do tema central da obra:
do pequeno livro (pouco mais de cento e discreta, como deve ser) erudição. E esta “Tempo e melancolia em Fernando
cinqüenta páginas) editado no Brasil pela articulação, que parece quase sempre Pessoa” e “Dois príncipes da melancolia:
Companhia das Letras, o seu primeiro qualificar o labor crítico, é bem evidente Fernando Pessoa e Luís da Baviera”.
livro publicado por aqui: Mitologia da em Mitologia da saudade, a partir mesmo Quanto ao ensaio final do livro,
saudade. da organização do livro. São oito concisos “Portugal como destino”, é uma espécie
Autor de uma obra vasta, em que textos (que vão de quatro a dez páginas) de diacronização daqueles cortes
sobressaem os volumes a que deu o título seguidos de um ensaio mais longo, de sincrônicos da primeira parte, em que a
de Heterodoxia I e II, o estudo sobre pouco mais de sessenta páginas, intitulado História de Portugal é repassada, desde
Fernando Pessoa, Pessoa Revisitado, as Portugal como destino. as suas origens até a Revolução de 1974 e
reflexões que estão em Tempo e poesia ou o Naquela primeira parte – a dos oito depois, sob a discussão cerrada das
volume complementar a este de agora, textos –, creio haver uma estrutura transformações que foram sendo operadas
Labirinto da saudade, Eduardo Lourenço, tripartida: na primeira, estão três ensaios pelo próprio dinamismo da cultura e da
de certa forma, parece negar aquela que discutem o tema da saudade e da leitura que sobre ela se fez, incluindo-se,
tradição do ensaísmo português a que melancolia articulado à grande questão no quadro amplo das modificações, as
Antonio Sérgio, outro grande ensaísta, do tempo, “Tempo português”, “Melan- releituras do tema da saudade e da
chamou de prosa doutrinal na preciosa colia e saudade” e “Da saudade como melancolia que foram realizadas pelas
antologia que, anos atrás, organizou, melancolia feliz”; na segunda, três ensaios sucessivas gerações de intelectuais
prefaciou e anotou sob o título de Prosa que ampliam e, ao mesmo tempo, situam portugueses. Uma notável demonstração

22 CULT - novembro/99
de como o texto de caráter histórico, sem de tristeza e de amargura, a sua coroa de

João Leite
perda de sua fluidez narrativa, é bruma. É a lembrança da casa abandonada,
intensificado pela irrigação resultante das esse gosto de mel e de lágrimas, que a palavra-
interseções de elementos sincrônicos e mito dos portugueses sugere. Mas não é nesse
diacrônicos bem articulados. Mas não se destino que devemos colher a origem, a
chegou a ela – notável demonstração – sem essência do sentimento que a si mesmo se
antes passar pelo estágio fundamental de plasma na palavra, no pensamento, da
rigor crítico e conceitual com que, no saudade.
primeiro conjunto de ensaios, é proposta Onde colhê-la? A resposta de
a discussão do tema central da obra. Eduardo Lourenço é de uma precisão e
Assim, já no primeiro ensaio, co- de uma beleza (porque precisa) sem-par:
lhendo teoricamente aquilo que resulta A saudade, a nostalgia ou a melancolia
da experiência histórica portuguesa, isto são modalidades, modulações da nossa relação
é, de uma duplicidade de olhar e de olhar- de seres de memória e sensibilidade com o
se que, pelo menos desde Camões, faz Tempo. Ou antes, com a temporalidade, aquilo Contrariamente à lenda, o povo português,
com que em Portugal viva-se “por dentro” que, a exemplo de Georges Poulet, designarei ferido como tantos outros, por tragédias reais
numa espécie de isolamento sublimado, e “por de “tempo humano”. Isso significa que essa na sua vida coletiva, não é um povo trágico.
fora” como o exemplo dos povos de vocação temporalidade é diversa daquela outra, Está aquém ou além da tragédia. A sua
universal, indo a ponto de dispersar o seu corpo abstratamente universal, que atribuímos ao maneira espontânea de se voltar para o passado
e a sua alma pelo mundo inteiro, como ele tempo como sucessão irreversível. Só esse em geral, e para o seu em particular, não é
mesmo afirma, Eduardo Lourenço “tempo humano”, jogo da memória e nostálgica e ainda menos melancólica. É
estabelece as trilhas em que persegue as constitutivo dela, permite a inversão, a simplesmente saudosa, enraizada com uma
aproximações e as definições de seu tema. suspensão ficcional do tempo irreversível, fonte tal intensidade no que ama, quer dizer, no que
Referindo-se ao povo português, diz a de uma emoção a nenhuma outra comparável. é, que um olhar para o passado no que isso
certa altura: Nela e por meio dela sentimos ao mesmo tempo supõe de verdadeiro afastamento de si, uma
Um tal povo, tão à vontade no mundo a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse adesão efetiva ao presente como sua condição,
como se estivesse em casa, na verdade, não título, a nostalgia, a melancolia, a própria é mais da ordem do sonho que do real.
conhece fronteiras, porque não tem exterior. saudade, reivindicada pelos portugueses como Os dois ensaios seguintes tratam de
Como se fosse, sozinho, uma ilha. Mundo onde, um estado intraduzível e singular, são abordar mais detida e historicamente as
d. Sebastião de si mesmo, esperasse um regresso sentimentos ou vivências universais. Da distinções perseguidas e assentadas neste
sempre diferido, sonhando com a sua vida universalidade do “tempo humano” preci- primeiro.
passada. (…) Evocando admiravelmente a samente. É o conteúdo, a cor desse tempo, a Deste modo, em “Melancolia e sau-
saudade, na medida em que pode ser evocada, diversidade do jogo que a memória desenha dade”, com breves referências a Teixeira
d. Francisco Manuel de Mello supôs, primeiro na sua leitura do passado, o que distingue a de Pascoaes, “a quem se deve, sob o nome
do que ninguém, que Portugal se tornara esse nostalgia da melancolia e estas duas da de saudade”, segundo as palavras de
povo de uma nostalgia sem verdadeiro objeto saudade. Eduardo Lourenço, “a versão mais
devido ao seu destino de povo marítimo, Destas três modalidades, dirá Eduar- paradoxal de melancolia”, e a Fernando
viajante, separado de si mesmo pelas águas do do Lourenço na conclusão deste primeiro Pessoa, em que esta não se distingue
mar e do tempo. Sem dúvida que o nosso destino ensaio, é a saudade que marcará a claramente da nostalgia, a matéria
de errância conferiu a essa nostalgia, a esse maneira de Portugal olhar para o seu pas- principal do ensaio, se matéria for o nome
afastamento doloroso de nós mesmos, o seu peso sado, arrematando: mais adequado para um gênero tão

novembro/99 - CULT 23
esgarçado, é a reflexão sobre a melancolia feliz”, trata-se de sugerir que, embora do jovem João de Barros sob o signo do
esboçada no século XV por d. Duarte, no desistindo de uma definição da saudade, tema da saudade, o segundo, “Sebastia-
ensaio “Do nojo, pesar, desprazer, de tal maneira o sentimento foi mitificado nismo: imagens e miragens”, um prefácio
aborrecimento e saudade”, que faz parte como brasão da sensibilidade portuguesa, é rico de sugestões para o tecido complexo
da obra Leal conselheiro e que, diga-se de possível encontrar o sentido da saudade das experiências messiânicas como
passagem, o leitor pode ler na antologia sobretudo em sua expressão poética. Diz vinculado ao tema do livro), é o terceiro,
organizada por Antonio Sérgio já Eduardo Lourenço: “O ‘sentido’ está “Romantismo, Camões e saudade”, que,
mencionada. incluído na própria manifestação, e, se sem dúvida, merece um destaque especial,
Exaltada por Eduardo Lourenço escutarmos a voz sem verbo que na sau- na medida em que, sobretudo através do
como “uma espécie de ‘anatomia da dade aflora, esse silêncio original acaba poema “Camões”, de Garrett, aponta para
melancolia’” (uma alusão ao célebre livro por se fazer ouvir.” as transformações do mito da saudade
de Robert Burton de 1621), é nesta obra E os exemplos que ele oferece são os como simultâneas às releituras que foram
que, segundo ele, “a propósito da melan- de Almeida Garrett, através dos famosos feitas do grande poema camoneano, o
colia ou doutros estados de alma compa- versos principal elemento de incorporação e de
ráveis ou ligados à sua manifestação, que gosto amargo de infelizes, veiculação do próprio mito na cultura de
d. Duarte elabora a primeira meditação delicioso pungir de acerbo espinho, Portugal.
conhecida sobre a Saudade”. O funda- em que, se não se define a saudade, Daí para a tentativa de reescritura
mental, entretanto, é que, na obra do triste ela está no que há de contraditório nos pelo Pessoa de Mensagem ou de sua ante-
e melancólico monarca, “a saudade é des- sentimentos, e de Teixeira de Pascoaes rior problematização pela Geração de 70,
crita, com perfeita precisão, como uma através do título de sua obra, Regresso ao com destaque a Antero de Quental, Eça
aflição da alma entre a tristeza, o nojo e o Paraíso, em que “esse ‘regresso’ é obra da de Queirós e Oliveira Martins.
prazer. Por outras palavras, inspira umas saudade, que subtrai a nostalgia ao senti- Mas, sem deixar de passar pela
vezes mais tristeza que prazer, outras mais mento da pura perda ou ausência, con- tradução melancólica de Fernando Pes-
prazer que tristeza”. fiando-lhe a missão de transmudar a perda soa que está nos dois últimos ensaios, já
Estava, deste modo, aberto o ca- em vitória do sonho”. se está no umbral do texto com que o livro
minho para que a saudade fosse pensada, Dos três capítulos seguintes (o pri- se encerra: a riquíssima dramaturgia cultu-
ou sentida, seria melhor, em dois tempos, meiro, “Clarimundo: simbologia impe- ral portuguesa que é “Portugal como des-
um ligado ao passado, o outro ao futuro, rial e saudade”, um notável exame da obra tino”.
transformando-a, sobretudo a partir da
Juan Esteves

Renascença, num sentimento avassalador, João Alexandre Barbosa é um dos maiores críticos

tal como é apontado por Eduardo Lou- literários do país, autor de A metáfora crítica e As ilusões

renço nas obras de Bernardim Ribeiro e da modernidade (pela editora Perspectiva), A imitação

Camões, sem esquecer a contribuição de da forma e Opus 60 (Livraria Duas Cidades), A leitura do

d. Francisco Manuel de Mello o qual, intervalo (Iluminuras) e A biblioteca imaginária (Ateliê

segundo o ensaísta, “traçou o retrato Editorial). Professor de teoria literária e literatura compara-
dessa nova saudade que é ao mesmo da, foi presidente da Edusp, diretor da Faculdade de
tempo desejo de eternidade e nostalgia Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Pró-reitor de Cultura
eterna”. da USP. João Alexandre Barbosa assina mensalmente esta
Nas duas breves páginas seguintes, seção da CULT, cujo título foi extraído de sua mais recente
que é disto que é feito o capítulo intitu- antologia de ensaios, publicada pela Ateliê Editorial.
lado “Da saudade como melancolia

24 CULT - novembro/99
Ronan Prigent

Viva a Literatura

Francesa!
Leia a seguir trecho dos depoimentos que os escritores Bernardo
Carvalho, Marcelo Coelho, Milton Hatoum, Angel Bojadsen e Nelson
Ascher proferiram durante o evento promovido pela revista CULT, pela
Fnac e pelo Consulado Geral da França em São Paulo dentro da série
Vive la France!, em que personalidades da vida cultural brasileira falam
de suas experiências em relação à cultura francesa

Cada um de nós sabe a importância Desejamos evitar tanto quanto pos- ratura Francesa!”, atestam que a imagem
dos momentos em que, geralmente de sível a cilada da complacência, da poli- de nosso país é mais ambígua do que
modo inesperado, nos flagramos dizendo dez, da moderação; desejamos suscitar estaríamos tentados a pensar escutando
“aquilo que somos”. o improviso, pedindo aos nossos convi- apenas os franceses.
Cada um de nós sabe que esta objeti- dados intervenções informais, sem o É uma França ora desejada (Milton
vação no Outro, tornada dimensão espe- apoio de textos pré-redigidos. Hatoum), ora negligenciada (Angel Bo-
cular, é essencial para nossa definição e Que não nos enganemos sobre o títu- jadsen), ora perdida para a literatura (Ber-
que não poderia ser exclusivamente o pro- lo deste ciclo, que nada tem de triunfalista: nardo Carvalho), ora a garantia de per-
duto da vontade, da inteligência aplicada “viva a França” se a França é de fato um petuação da própria literatura (Marcelo
à introspecção. modelo, se vemos na Liberdade guiando o Coelho), ora amiga, sensual, afetuosa
Todo o sentido de Vive la France! está povo, do quadro de Delacroix, uma (Milton Hatoum), ora formalista, edificante,
em oferecer a ocasião para nossa cultura academia devota; mas “viva a França” exigente (Nelson Ascher), ora rica da sua
de se observar – de noite em noite e de também, por que não?, se a França é o própria expressão (Marcelo Coelho), ora rica
tema em tema – no olhar daqueles para avesso disso, se a Liberdade guiando o povo da hospitalidade que sempre soube oferecer
quem a França é estrangeira, para quem a do quadro é a sombria guerreira que tam- às expressões vindas do exterior (Bernardo
França é outrem, para quem a França, bém não deixamos de ver. Carvalho), como veremos a seguir.
numa palavra, “se aprende”. Todo o sen- Nos dois casos, a França faz falar, faz
tido de Vive la France! está precisamente pensar, faz criar e faz viver. Ronan Prigent
adido de cooperação universitária do Consulado Geral da
em oferecer a ocasião a nossa cultura de As páginas consagradas pela CULT França em São Paulo, é doutor em literatura e romancista,
escutar “aquilo que somos”. à primeira noite do ciclo, “Viva a Lite- assinando seus livros sob o pseudônimo de Emmanuel Tugny

26 CULT - novembro/99
Bernardo Carvalho
Arte e loucura na filosofia francesa
Evelson de Freitas/Folha Imagem

Eu tenho uma tendência a me interessar mais pela literatura contemporânea do que pelos clássicos.
Isso pode ser considerado uma falha, mas se trata de um interesse natural que acabou me direcionando,
no caso da literatura francesa, menos para a literatura propriamente dita do que para os filósofos, que
li com o olhar de quem está procurando literatura. O que mais me marcou na literatura francesa
acabou sendo a leitura de autores como Foucault e Deleuze, e não os clássicos (Madame Bovary, de
Flaubert, por exemplo, é um livro que eu li na adolescência, numa hora errada, e que acabei odiando).
Li esses filósofos como se estivesse lendo romances policiais ou de mistério; tive uma espécie de êxtase
ao ler Mil platôs, de Deleuze e Guattari, menos por estar entendendo o que eles estavam falando do que
por achar que ali estava acontecendo algo extraordinário, o fato de alguém dentro da academia, na
França, poder escrever coisas libertárias. O que mais me atraiu nesses autores foi o elogio de tudo o que
aparentemente é visto como defeito pela linguagem dominante (caso, por exemplo, do elogio da
gagueira como forma de linguagem desviante feito por Deleuze e Guattari). A forma como eles
associavam loucura e arte, dando uma positividade à loucura, serviu como um estalo para minha própria literatura. Em todos os
meus livros os narradores são loucos e essa é a única possibilidade narrativa que eu conheço. O que me fascina é essa mistura dos
limites do objetivo e do subjetivo. Eu descobri essa ligação da loucura com a arte quando assisti O gabinete do Dr. Caligari, de
Robert Wiene, e isso depois seria confirmado com Deleuze, com Foucault e com Carl Dreyer – um cineasta dinamarquês que
descobri na França. Os dois escritores que mais me marcaram, Peter Handke e Thomas Bernhard, são austríacos – mas também
os descobri na França (pois o Bernhard foi traduzido lá nos anos 60, enquanto nos EUA, por exemplo, ele só começaria a ser
traduzido nos anos 80). Isso acontece porque França é um terreno fértil para a cultura e de certa forma eu devo mais a ela aquilo
que descobri de literatura não-francesa do que de literatura francesa.

Um exercício da desmistificação Marcelo Coelho


Evelson de Freitas/Folha Imagem

Eu me encontro numa posição antagônica em relação ao que Bernardo Carvalho disse. Minha
experiência com a literatura francesa retrocede quase 40 anos em relação a essa tradição de Deleuze,
Foucault e de autores como Sade, Artaud e Bataille – nos quais ele certamente estava pensando
também. Esses autores representam uma reação àquilo que, na tradição da literatura francesa, sempre
esteve identificado com a razão, com o Iluminismo. As pessoas sempre entenderam a França como o
país de Voltaire, de Rousseau, de Diderot – mas havia uma contra-corrente subterrânea que ganhou
prestígio a partir de 1968 e que, em continuidade com a “importação” de Poe por Baudelaire, expressava
uma necessidade de irracionalidade, de mistério, de perversão. Para mim foi bem o contrário. Quando
tinha uns treze anos, eu gostava de fazer palavras cruzadas e a editora que publicava esses passatempos
oferecia por reembolso postal pacotes mensais com seis ou sete livros que eram uma pechincha. Eu fiz
o pedido e passei a receber livros como as novelas e contos de Voltaire, a Viagem ao redor de meu quarto,
de Xavier de Maistre, ou O vermelho e o negro, de Stendhal. Esse livros, para quem estudava num
colégio de padres, tinham um efeito devastador, pela alegria que havia no exercício da pura razão, da desmistificação. As frases
iniciais do Cândido ou do Zadig, por exemplo, têm a suposta inocência, a pura casualidade de uma história que acontece num tempo
remoto – mas, ao mesmo tempo, Voltaire está sendo levemente irônico, combinando um certo bem-estar produzido pela narrativa
com a agudeza do espírito francês. Esse é o lado da razão na literatura francesa, o lado do desenho. Se pensarmos que existe uma
diferença entre pintura e desenho, Voltaire, Xavier de Maistre e Stendhal são desenhistas que exploram o puro acaso da narrativa,
sem a necessidade das cores. Ao mesmo tempo, há um outro lado da literatura francesa que é o da “pintura”, dos romances e
novelas do romantismo, Lamartine, Chateaubriand, Nerval. Assim como em Proust existe o lado de Swann e o lado de Guermantes,
talvez na literatura francesa exista o lado de Lamartine e o lado de Voltaire, ou o lado católico e o lado livre-pensador. Essas duas
coisas ficaram sempre presentes para mim. Posteriormente, as grandes descobertas seriam Verlaine e Rimbaud – além de Mallarmé,
que conheci na tradução de Augusto e Haroldo de Campos e que fazia da poesia uma coisa muito mais abstrata, complicada. E
depois, finalmente, vieram Proust e Montaigne. Há um momento em que a gente chega ao máximo do que entende por literatura
– e para mim foi o caso de Proust e de Montaigne, que, mais do que escritores, são companhias. Um ensaio de Montaigne, por
exemplo, é uma forma de amizade.

novembro/99 - CULT 27
O papagaio de Flaubert Milton Hatoum
Divulgação

O meu encontro com a língua francesa começou na infância, porque minha avó, que era libanesa,
rezava em francês – em parte por fervor religioso, em parte para provocar meu avô, que era muçulmano
e rezava em árabe. Na minha família, o francês entrou pela imigração libanesa. Minha avó estudou no
colégio das Bonnes Soeurs, em Beirute, e meu pai estudou no colégio de La Sagesse, também em Beirute,
e portanto ambos tiveram educação bilíngüe. Com o tempo, fui me familiarizando com a língua. No
início dos anos 60, Manaus e Belém mantinham uma certa tradição da cultura francesa, seja pela
urbanização, influenciada pelo plano de Haussman [que reurbanizou Paris no século XIX], seja pela presença
de famílias de artistas e comerciantes que foram morar em Manaus no início do século. A professora que
me ensinou francês traduzia contos e um deles, particularmente marcante para mim, foi Un coeur simple,
de Flaubert, que é uma obra-prima da literatura do Ocidente. E por que essa história escrita na Normandia
de 1876 teria sensibilizado um menino amazonense na Manaus de 1962? No conto, Flaubert narra a
história dramática de uma empregada doméstica chamada Félicité, que é explorada durante meio século
e que no fim, tomada por um delírio de êxtase religioso, acaba endeusando um papagaio (Loulou), transformado no Espírito Santo.
Curiosamente, esse papagaio é descrito como um “perroquet de race amazone”. Aí a identificação foi total! Afinal, aquela Félicité
(com seu nome irônico, contrastando com sua trajetória) era como as empregadas com as quais eu convivia em Manaus, era como as
índias exploradas do Amazonas. Havia esse drama humano que Flaubert soube universalizar – de modo que esse conto, narrado
oralmente por uma senhora francesa em Manaus, me despertou a curiosidade pela literatura francesa. Mas meu interesse pelo
Oriente passaria também pela perspectiva orientalista da literatura francesa, que veio do século XVIII, com as primeiras traduções
das Mil e uma noites, e do romantismo de Nerval (Viagem ao Oriente) e Chateaubriand, do próprio Flaubert – toda essa tradição
francesa de descoberta do outro que vem dos ensaios de Montaigne, pelas Cartas persas de Montesquieu e deságua na modernidade. Eu
me interesso muito pelo tom de confissão, pela memória fulgurante e inventiva dos narradores do romance francês. Proust e Céline,
dois dos grandes escritores deste século, são fiéis a essa tradição inesgotável. No Brasil, suponho que Pedro Nava não seja o último.
A literatura francesa é, enfim, uma imensa janela aberta para as outras culturas.

Uma aposta na nova geração Angel Bojadsen


Divulgação

Sim, temos feito bastantes traduções do francês. Não, não vendemos muitos títulos para a França.
Por ora convivo tant bien que mal com esta situação – é uma correlação de forças evidente. As editoras
francesas, mais do que os outros países das culturas digamos centrais, nos abordam e nos fazem chegar
material de divulgação da forma mais ampla e sistemática. E muitas vezes elas têm algum subsídio
para divulgar e até vender obras francesas no exterior. E se não bastasse, os serviços culurais franceses
ligados ao ministério das Relações Exteriores fazem um trabalho substancial aqui para a divulgação
do livro francês.
Paris ainda é conhecida como capital mundial das letras. Talvez o tenha sido algum dia, mas hoje
a coisa é mais relativizada. Publicam-se no Brasil atualmente cerca de 13 mil títulos traduzidos do
inglês por ano, contra 650 do francês, mais ou menos a mesma quantia do espanhol, na frente do
italiano e do alemão, na faixa de 150 títulos (dados da Fundação João Pinheiro, 1997). Portanto, o
francês tem hoje uma posição bastante secundária, e seriamente ameaçada pelo espanhol, em franco
crescimento.
Nossa contribuição é pequena, mas vem crescendo: temos cerca de 20 títulos traduzidos do francês. Aí entram alguns clássicos,
ensaios, Virilio, Baudrillard, Derrida, Lyotard e também um livro que teve surpreendente sucesso: Práticas da leitura, organizado
por Roger Chartier. No final deste ano sairá o livro de Philippe Sollers sobre Sade e preparamos também a formação de uma
coleção de autores franceses contemporâneos – uma tentativa de redenção da ficção francesa atual, que não tem andado tão bem
por aqui. Posso anunciar nomes nada conhecidos por essas bandas, como Virginie Despentes, Marie Ndiaye, Olivier Cadiot,
Hubert Lucot, que têm feito por lá tentativas de renovação da escrita literária com bastante sucesso. Veremos o que acontecerá
aqui.
Lendo os autores franceses da atualidade, em particular uma geração novamente mais dada a experimentações estéticas e
estilísticas, depois da insossa década de oitenta, percebe-se um formalismo mesmo nas experimentações. O resultado, porém, às
vezes soa falso..., ou pelo menos forçado. Quando Marie Ndiaye escreve um livro inteiro com uma única frase, por mais que seja
um admirável trabalho de ourives, quando Olivier Cadiot escreve um livro de bom tamanho que na verdade não é um livro,
quando Virginie Despentes inicia seu último romance com uma descrição enviesada, mas explícita, de uma cena de sexo, para não
falar do fulminante sucesso de público de Marie Darrieusseq, constata-se que os ataques ao bom-mocismo literário continuam
tão presentes quanto diversificados. O que não deixa de ser uma constatação de bom augúrio literário.

28 CULT - novembro/99
Milton Hatoum
Francofilias de um húngaro paulistano autor do romance Relato de um certo Oriente
(Companhia das Letras) – publicado na França pela editora
Claudia Guimarães/Folha Imagem

Seuil, com o título Récit d’un certain Orient – nasceu em


Nelson Ascher Manaus (AM) em 1952, fez pós-graduação na Sorbonne e
atualmente é professor de literatura francesa na Universidade
Federal do Amazonas

Minha relação com a literatura francesa está um pouco


Bernardo Carvalho
“mediatizada” pelas minhas origens húngaras. A Hungria autor dos romances Aberração, Onze, Os bêbados e os
é um país que até o fim da Segunda Guerra tinha uma sonâmbulos, Teatro e As iniciais (todos pela Companhia das
Letras), nasceu no Rio de Janeiro em 1960, é jornalista e
sociedade extremamente hierárquica e uma aristocracia colaborador da Folha de S.Paulo. Aberração e Os bêbados e

que não podia ser francófila (na medida em que a França


os sonâmbulos foram publicados na França
pela editora Rivages.
era o grande país republicano da Europa), nem germanófila
Nelson Ascher
(porque estava submetida à Áustria e, portanto, à cultura poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em São Paulo em
alemã) – mas que era anglófila. Em compensação, a 1958, é articulista da Folha de S.Paulo e autor dos livros de
poemas Ponta da língua (edição do autor), O sonho da razão
intelectualidade e a classe média eram extremamente e Algo de sol (Editora 34), da coletânea de ensaios Pomos
francófilas. A cultura francesa teve importância imensa na da discórdia (Editora 34) e do volume Poesia alheia
(Imago), com traduções de autores como Joachim Du Bellay,
formação do romance e da poesia modernas da Hungria. Todo escritor húngaro que Jules Laforgue, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry, Blaise

se prezasse via em Paris seu paraíso – tanto que até hoje há numa das salas do Café de Cendrars e Jean Tardieu, entre escritores de diversas
línguas e épocas.
Cluny uma foto de Endre Ady, o fundador da poesia húngara moderna. No que diz
respeito à poesia francesa, no fim dos anos 20 foi publicado na Hungria um livro com Marcelo Coelho
membro do Conselho Editorial do jornal Folha de S.
adaptações das baladas de François Villon (poeta francês do século XV que foi ladrão Paulo e professor de jornalismo cultural nas Faculdades

e assassino, e cujas baladas sintetizam todo o legado da poesia medieval) que virou Cásper Líbero, é formado em ciências sociais pela USP e
mestre em sociologia; autor de Noturno (Iluminuras),
um best-seller poético. Meus pais conheciam de cor essas adaptações, que eu ouvia em Jantando com Melvin (Imago) e Trivial variado (Revan)

húngaro. Meu conhecimento da língua ainda não era suficiente para apreciar Angel Bojadsen
totalmente as versões húngaras de Villon, nem meu francês dava para ir direto a ele; editor, poeta e tradutor, nasceu em São Paulo em 1956;

além disso, durante muito tempo eu compartilhei da desconfiança que nossa cultura
é autor do livro de poemas Metropolitanos, publicado pela
Massao Ohno, e tradutor de Duas Viagens de Hans Staden
mantém em relação à tradução de poesia, vista como algo menor, já que poesia seria (memórias de viagens), pela editora Terceiro Nome, Cool
Memories II, de Jean Baudrillard, e Julia Mann, uma vida
em última instância intraduzível. No entanto, meu primeiro encontro com um poema entre duas culturas (vários autores), entre outras obras

traduzido que me convenceu de que a poesia é traduzível foi a versão da “Balada dos publicadas pela Estação Liberdade,
editora da qual é diretor
enforcados”, de Villon, feita por Augusto de Campos – que está no final da edição do
ABC da literatura de Ezra Pound (Cultrix). Foi um dos primeiros poemas que eu
aprendi de cor, muito antes da “Canção do exílio” ou das duas primeiras estrofes de Ciclo inclui gastronomia
Os lusíadas. Quando comecei a traduzir poesia – e especificamente a poesia francesa e filosofia
–, esse foi um dos meus exemplos. Há porém um outro lado da minha relação com a O ciclo Vive la France! é uma
cultura francesa, que foi a leitura dos romances e da prosa francesa de clássicos como promoção conjunta da revista CULT,
Balzac, Stendhal e Flaubert. No começo de 1976, eu comecei a fazer faculdade de do Consulado Geral da França em São
medicina na USP, embora nunca tivesse tido o desejo de ser médico e vivesse indeciso Paulo e da Fnac – megalivraria onde
quanto a continuar ou não o curso. Nas férias de julho daquele ano, li o Père Goriot, de ocorrem mensalmente os encontros em
Balzac, e foi a conversa em que Vautrin convence Rastignac a abandonar o estudo de que personalidades brasileiras de diver-
direito, dizendo que ele deveria fazer o que realmente lhe interessava (uma das cenas sas áreas contam ao público suas expe-
mais bem acabadas da literatura), que me fez tomar a decisão de abandonar a faculdade riências em relação à cultura francesa.
de medicina... No que diz respeito especificamente à poesia francesa, meu primeiro O objetivo do ciclo é resgatar a rica his-
grande contato foi com o Mallarmé traduzido pelos irmãos Campos. Seria muita tória do intercâmbio Brasil-França.
pretensão dizer que Mallarmé me influenciou, mas digamos que eu tentei aprender Além da soirée “Viva a Literatura Fran-
com ele (se consegui ou não, não cabe a mim dizer), chegando a escrever um poema cesa!” (da qual transcrevemos alguns
em homenagem aos 150 anos de seu nascimento, que está em O sonho da razão: momentos nestas páginas), a Fnac se-
diou em outubro um encontro sobre a
Embora ao jogo adestre culinária francesa. Neste mês de
a língua que, selvagem, novembro acontece o encontro “Viva a
resolve-se em linguagem, Filosofia Francesa!” (a data e o nome
o indecifrável mestre gravada desde o início
na abóbada suprema, dos participantes não estavam definidos
em busca de um indício até o fechamento desta edição, mas
perscruta, além das extre- podem ser confirmados na Fnac: av.
midades, na voragem Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel.
de estrelas que interagem, do verbo que se queima
feito um minério físsil 11/867-0022). O ciclo Vive la France!
uma inscrição rupestre será retomado em janeiro de 2000.
na origem do poema.

novembro/99 - CULT 29
E v e n t o

Porto ibérico Da redação

A Feira do Livro de Porto Alegre e a Bienal de Artes Visuais do


Mercosul, que acontecem este mês, fazem da capital gaúcha ponto
de encontro entre Portugal, Espanha, Brasil e América Latina

D ois grandes eventos simultâneos Uma série de autores brasileiros tam- Bienal
reconfiguram a vida cultural da capital bém estará presente, entre eles Lygia A produção de arte contemporânea
gaúcha neste mês de novembro. A 45ª Fagundes Telles, Bárbara Heliodora, na América Latina é o corpus principal
edição da Feira do Livro de Porto Alegre, Ziraldo, Sinval Medina, José Castelo e da Bienal de Artes do Mercosul, que
que acontece de 29 de outubro a 15 de Mário Prata. propõe discutir a oposição regional/
novembro na praça da Alfândega, e a II O estande da França é um dos des- universal nas obras dos principais
Bienal de Artes Visuais do Mercosul, a taques da feira. A Aliança Francesa traz o artistas plásticos do continente.
partir do dia nove em diversos pontos da escritor Michel Houllebecq, que está A lista de artistas que terão obras
cidade, transformam Porto Alegre em um lançando seu mais recente livro, Partículas expostas é extensa. Entre os brasileiros
palco de discussão literária e eferves- elementares, com tradução do gaúcho estão Arthur Omar, Elaine Tedesco,
cência artística. Juremir Machado da Silva. Estão progra- Elida Tessler, Lúcia Koch, Maurício
A exemplo da Bienal do Rio de mados também debates sobre a nova Silva, Mauro Fuke, Nélson Félix,
Janeiro deste ano, a Feira do Livro dramaturgia francesa. Regina Silveira, Rodrigo de Haro,
homenageia Portugal, no embalo das Dos Estados Unidos, Michael Cunninghan Tunga e Walter Silveira. A delegação
comemorações de 500 anos do Brasil. vem lançar As horas, livro premiado com o argentina divide-se entre artistas
Um ciclo de palestras examina o signi- Pulitzer de ficção de 1999. O espanhol plásticos, como Ana Eckell, Daniel
ficado histórico da chegada dos portu- Antonio Soler estará autografando seu As García, Gustavo López Armentía,
gueses em território brasileiro. dançarinas mortas. Editoras locais preparam Mónica Girón, Patricia Landen, e
Além de escritores portugueses como lançamentos e noites de autógrafos. O fotógrafos como Adriana Lestido, Dino
Helder Macedo, Ernesto Melo e Castro, gaúcho Luís Augusto Fischer lança seu Bruzzone e Sara Facio. Bolívia, Paraguai,
Jorge Couto, Joaquim Romero de Dicionário de porto-alegrês, pela editora Artes Uruguai, Colômbia e Chile são os outros
Magalhães, Rui Rasquilho e Luis Felipe e Ofícios. países que terão artistas na Bienal.
de Castro Mendes, a feira tem como Comemoram-se ainda, por meio de As mostras acontecem em três espa-
convidados escritores de países africanos palestras e debates, o centenário de nasci- ços: o Margs (Museu de Artes do Rio
de língua portuguesa. O moçambicano mento de Jorge Luis Borges, com a pre- Grande do Sul), o Gasômetro e dois
Mia Couto, o angolano Pepetela e o sença de María Esther Vázquez, biógrafa armazéns do porto. O segmento “Inter-
caboverdiano Germano Almeida estarão do escritor, e os 50 anos da primeira edição venções Urbanas”, porém, extrapola os
em Porto Alegre para debater a diversidade de “O continente”, primeira parte de O limites de exposição tradicionais e pro-
da língua portuguesa neste fim de século. tempo e o vento, de Erico Verissimo. cura suportes inusitados de represen-

30 CULT - novembro/99
Divulgação Kiko Ferrite

45ª Feira do Livro de Porto


Alegre
De 29 de outubro a 15 de
novembro de 1999
Porto Alegre – praça da
Alfândega
•
II Bienal de Artes Visuais do
Mercosul
De 5 de novembro de 1999
a 9 de janeiro de 2000
Porto Alegre – em diversos
pontos da cidade
O escritor português Helder Macedo A romancista Lygia Fagundes Telles

tação. Dez instalações serão espalhadas


pela cidade, incorporando o rio Guaíba
como elemento de composição.
A série “Arte e tecnologia”, no ciber-
porto construído no Gasômetro, busca
discutir as conseqüências do uso da tecno-
Ao lado, sem título
logia como meio de produção artística, de Elaine Tedesco
e El centro,
as mudanças estéticas e de relação do do paraguaio
espectador com o objeto de arte. Osvaldo Salerno.
Abaixo, Destinos
Três exposições especiais aprofundam e Esta estrada que
escorre do peito,
o tema das relações entre o local e o inter- da gaúcha
nacional. A exposição de Julio le Parc, Elida Tessler

argentino radicado em Paris desde 1958,


terá 28 de suas obras, que utilizam recursos
de luz e ilusionismo. A sala especial do
gaúcho Iberê Camargo (1914-94), com
curadoria de Lisette Lagnado, reúne mais
de 20 óleos sobre tela e 100 trabalhos em
papel, como gravuras e desenhos. “Picasso,
cubistas e América Latina”, com curadoria
de Fábio Magalhães, explora as influên-
cias mútuas dos universos espanhol e
latino-americano. Além de Picasso, a sala
reúne obras de Léger, Braque, Diego
Rivera e Portinari, entre outros.
A programação da Bienal continua
até janeiro do ano que vem, promovendo
mostras de cerca de 150 artistas brasi-
leiros e sul-americanos.

novembro/99 - CULT 31
Reprodução

Cruzada à piemontesa
Ana Paula Soares

A nebulosa e cosmopolita Turim, que abrigou Italo

Calvino por 17 anos, mantém os traços de efervescência

literária, política e de convivência do escritor “com os


Patrocínio cultural
cavaleiros da távola oval” da editora Einaudi
32 CULT - novembro/99
Reprodução Divulgação

Na página oposta, vista da cidade de Turim,


circundada pelos Alpes piemonteses.
À esquerda, a via Po, e, acima,
o escritor Italo Calvino.

N os últimos tempos, ele dizia ter Militante do Partido Comunista Ita- seguiu um emprego como vendedor de
esquecido as razões que o haviam levado liano, Calvino interessava-se pelo movi- livros e, a partir daí, foi muito rápida a
a escolher Turim para viver. A essência mento operário, tendo acompanhado de ascensão do autor de As cosmicômicas na
do fascínio de Italo Calvino (1923-1985) perto, como jornalista do L’Unità, as empresa. Em poucos meses, passou ao
pela capital do Piemonte no período pós- agitações, greves e ocupações da maior cargo de redator e, em seguida, a respon-
guerra precisa ser recuperada em decla- representante da indústria automobi- sável pela assessoria de imprensa.
rações mais antigas. lística da Itália – a Fábrica Italiana de Era perfeccionista e muito compe-
“Turim representava para mim – e na Automóveis de Turim. O assunto é o tema tente, redigindo esplêndidas apresen-
época realmente era – a cidade onde de seu romance I giovani del Po, escrito tações de obras e autores. Com menos de
movimento operário e movimento de em 1951. O livro, que nunca lhe agradou, 30 anos, integrava o quadro de colabo-
idéias contribuíam para a formação de permaneceu inédito por seis anos, sendo radores da editora, participando ativa-
um clima que parecia sintetizar o melhor então publicado, em capítulos, na revista mente das legendárias “reuniões de
de uma tradição e de uma perspectiva de Oficina. quarta-feira” promovidas pela Einaudi,
futuro”, fora a sua justificativa em uma A poucos quilômetros da Fiat, na sede com intervenções freqüentes e quase
entrevista de 1962. da Editora Einaudi, alguns dos mais ex- sempre decisivas.
A atrair o jovem ativista político pressivos nomes da intelectualidade ita- Na grande mesa da sala que dá para as
recém-saído das trincheiras da Resis- liana deste século – muitos deles perse- castanheiras da corso Re Umberto, Cal-
tência, depois de uma breve atuação guidos pelo regime fascista – discutiam e vino sentava-se, invariavelmente, à direita
como partigiano, havia uma cidade “séria, determinavam, através da escolha de títulos, de Giulio Einaudi. Em seguida vinham
mas triste”, que orbitava em torno de as tendências da literatura nacional. “Na veteranos como Norberto Bobbio, Felice
dois pólos opostos e antagônicos. Na via Biancamano se elaborava o projeto Balbo, Franco Venturi, Massimo Mila,
corso Marconi, a Fiat dominava a cul- cultural, confrontavam-se ideologias e Paolo Serini, Natalia Ginzburg e Cesare
tura material do país, suprindo as carên- caracteres, colocavam-se em jogo livros e Pavese.
cias sociais de uma Itália dilacerada pela a inteligência”, relata o jornalista Aldo A importância desses jornalistas, filó-
guerra com ofertas de emprego, assis- Cazzullo em I ragazzi di via Po – um relato sofos, historiadores e literatos que
tência médica, escola e comida, em troca histórico da Turim dos anos 50. Cazzullo definiu como “cavaleiros da
da lealdade de seus funcionários à sua Ao se instalar na cidade, em 1946, Cal- távola oval” pode ser medida pela polê-
ideologia conservadora, ligada à demo- vino procurou o capo Giulio Einaudi, que mica que se criará posteriormente em tor-
cracia cristã. conhecera um ano antes em Milão. Con- no da linha de atuação da editora. Para os

novembro/99 - CULT 33
Fotos: Reprodução/La Stampa

À esquerda, a piazza San Carlo, em foto da


década de 30. Acima, os partigiani
comemoram a liberação de Turim do
domínio nazi-fascista, em maio de 1945.

chamados “neoliberais”, o grupo teria então mestre e conselheiro Pavese. A obra des avenidas e alamedas, “para que nelas
imposto a marca da hegemonia marxista de estréia, inspirada em sua experiência o tráfego corra sem congestionamento
ao mercado editorial de elite do pós- na guerra partigiana, vendeu seis mil nem barulho”.
guerra, estreitado laços com o Partido exemplares, um relativo sucesso para a O quarto de aluguel – “um quarto
Comunista Italiano e negligenciado os época. qualquer, um pouco escuro (...), uma pia
escritores não-alinhados à visão engagée Embora tivesse encontrado em Turim com água corrente, sem instalação de
da literatura. o ambiente que procurava ao deixar a água quente” (...) – provavelmente se
O escritor Carlo Fruttero, ex-cola- pequena San Remo, onde havia sido assemelha àquele que o escritor dividiu
borador einaudiano, defende, em depoi- criado, a adaptação à vida cosmopolita foi com o amigo Renato Solmi no início de
mento a Aldo Cazzullo, a pluralidade da difícil para o escritor. “Tanto o mar contido sua carreira, na via San Quintino, 24. Ou
equipe: “A Einaudi proporcionou ao em um golfo quanto a vasta montanha me ao sótão sem aquecimento onde viveu até
público culto, hipnotizado pela autarquia pareciam aconchegantes e protetores. Sair o final dos anos 40.
cultural imposta pelo fascismo, a daquela concha foi para mim como repetir Na década de 50, já alojado em uma
literatura americana dos anos 30 (e mais o trauma do parto”, contará posterior- região mais nobre, na via Santa Giulia, às
tarde a da beat generation) e a escola das mente. margens do Pó, ele bem pode ter cami-
“Annales”, Musil, Brecht, o marxismo Suas primeiras impressões sobre uma nhado com suas não poucas namoradas
heterodoxo de Gramsci e Luckács, os Turim cinzenta, moralista e ordenada tal- pelas colinas, compartilhando o seu en-
novos romancistas italianos, de Beppe vez estivessem muito próximas daquelas cantamento com a vista dos Alpes, como
Fenoglio a Lalla Romano, de Elsa relatadas pelo protagonista anônimo do o protagonista de A nuvem de smog e sua
Morante a Carlo Cassola, de Anna conto A nuvem de smog, publicado pela amada Claudia. “Subíamos pela encosta
Maria Ortese a Primo Levi”. primeira vez em 1958. “Aquelas fachadas verdejante de colina que cinge a cidade
Com a morte de Cesare Pavese, no de casas escurecidas, aqueles vidros do lado do levante (...) Eu saltava para cá
verão de 1950, Calvino tornou-se um opacos, aqueles parapeitos em que não se e para lá, mostrando-lhe onde do céu
ponto de referência na editora, o homem podia encostar (...)”. O smog, resultado da emergia a crista esbranquiçada dos Alpes
de confiança de Einaudi. Em 1947, o poluição da cidade industrial misturada à (...) e do lado de cá o relevo movimentado
mais jovem dos “cavaleiros” havia sido freqüente neblina, é um dos aspectos mais e desigual da colina com aldeias e estradas
incentivado pelo capo a publicar seu pri- marcantes de Turim ainda hoje. Outra e rios, e embaixo a cidade...”
meiro romance, Il sentiero dei nidi di ragno, característica predominante são as contro- A choperia Urbano Rattazzi – “home-
mesmo diante do pouco entusiasmo do viali – ruas secundárias paralelas às gran- nagem” do Calvino comunista a um pri-

34 CULT - novembro/99
Fotos: Reprodução

Em sentido horário a partir do alto,


Cesare Pavese, Beppe Fenoglio, Italo
Calvino em sua mesa de trabalho na
editora Einaudi e o mesmo Calvino na
famosa távola oval da editora

meiro-ministro da direita histórica – é outro que Calvino soube da invasão da Hungria com muito atraso as coisas que, através
cenário do conto e sintetiza o estilo de muitos pelos soviéticos e decidiu abandonar o de outros canais, a sociedade manifesta, e
bares turinenses: “um local bom, um pouco Partido Comunista Italiano, em 1957. penso que freqüentemente a política
caro, freqüentado por um público não Os acontecimentos importantes eram execute operações abusivas e mistifica-
vulgar”, com garçons de jaqueta tirolesa e comemorados com jantares no Fontana doras.”
onde se pode jantar no balcão. dei Francesi, strada Pecetto, 123, no alto No início dos anos 60, após deixar o
Hoje predominantemente uma terra das colinas do Pó. O local ainda é ponto cargo de diretor da Einaudi, o escritor
de produção industrial, Turim não tem de encontro de escritores, artistas e jorna- passava longas temporadas em Paris –
tempo de cultuar seus cidadãos mais ilus- listas. O elegante Caffè Torino, na piazza onde conheceu sua mulher e teve uma filha
tres. Não há, por exemplo, identificação San Carlo, e o Fiorio, sob os pórticos da – e em Roma. Escreverá em 1963 um
dos endereços onde residiu Calvino, nem via Po, eram os preferidos de Calvino e último romance “engajado”, La giornata
são famosos os lugares que lhe agradavam. dos demais “cavaleiros”. d’uno scrutatore, uma reflexão sobre o
Talvez por isso a descoberta da cidade Os desentendimentos com a direção funcionamento da democracia, nascida
que abrigou o escritor por 17 anos e que do PCI e a consolidação da veia mais de sua experiência, dez anos antes, como
assistiu ao exórdio e à afirmação de sua espontânea de fabulador, em detrimento escrutinador encarregado de coletar votos
carreira literária torne-se mais instigante. da linha de nuances realistas, irão distan- em um hospital de inválidos em Turim.
Sem a contaminação da exploração ciar, aos poucos, Calvino de Turim. “A Na capital italiana, Calvino pôde con-
turística, os cafés e restaurantes mantêm partir de um certo momento, Roma e centrar-se exclusivamente em suas obras,
viva a memória do período em que Turim Milão passaram a ser mais interessantes abandonando em definitivo as funções de
era também uma efervescente fábrica de para ele em termos de vida cultural”, editor. “Dediquei mais tempo aos livros
idéias. afirma Luca Baranelli, autor de Album dos outros do que aos meus. Não me
No restaurante Pollastrini, na corso Calvino – a mais completa biografia arrependo. Minha idéia sempre foi de
Palestro, 2, é possível retroceder meio ilustrada do escritor. participar e construir um contexto cul-
século e enxergar nas mesas as acaloradas “Não que me interessasse menos pela tural que respondesse às exigências de
discussões dos “cavaleiros da távola política”, irá justificar o próprio Calvino. uma Itália moderna, onde a literatura
oval”, no intervalo entre o expediente na “Mas fui lentamente levado a contrapor constituísse uma força inovadora e o
Einaudi e a entrega do texto no jornal o meu juízo autônomo ao predomínio depósito das razões mais profundas.”
esquerdista L’Unità, com o qual muitos totalizador da razão ideológica e de par- Ana Paula Soares
colaboravam. Foi durante um almoço ali tido. Penso que hoje a política registre jornalista

novembro/99 - CULT 35
Laura Cardoso Pereira
AMBIGÜIDADES RECÔNDITAS
Pasquale Cipro Neto

Promessa é dívida. Na última edição assume valor de possessivo. Quando se cavalo correndo pela avenida”, quem
da CULT, deixei uma espécie de desafio diz “Fazia tempo que o menino não via o corria? Uma simples inversão pode
ao leitor: localizar uma passagem ambígua. pai”, é evidente que o pai em questão é o resolver o problema: “Correndo pela
Lá vai: “(...) o apelo era feito por atores que do menino. Em “o pai”, o artigo tem valor avenida, ele atropelou um cavalo”.
imitavam políticos expondo sua desfaçatez”. de possessivo. Às vezes, o gerúndio é criativa e inten-
A quem se refere o gerúndio “expondo”? E No caso da palavra “casa”, nem é cionalmente ambíguo, como nesta men-
o possessivo “sua”? A “atores” ou a necessário o artigo para indicar a idéia sagem publicitária de uma campanha de
“políticos”? Quem expunha sua desfaçatez? de posse. Subentende-se que a casa seja aviação: “Alguém quer ver você voando”.
Estamos diante de mais um dos do ser em questão: “Ele não dormirá em Já escrevi nesta revista sobre a
clássicos casos em que o contexto e o casa hoje”. Não é preciso empregar chatíssima moda do gerúndio (“O senhor
“conhecimento de mundo” talvez des- nenhum modificador para que fique claro poderia estar enviando um fax?”), decor-
façam a ambigüidade. Pelo teor do texto, de quem é a casa. rente, talvez, de uma tradução literal do
talvez fosse possível deduzir que políticos A língua é mesmo impressionante. inglês. Em Portugal, ocorre o contrário.
que expunham sua desfaçatez eram Com o pressuposto – nada neoliberal – O gerúndio inexiste. “Está cantando”
imitados por atores. Será? de que todos têm casa, torna-se inútil vira “Está a cantar”; “Estava dormindo”
Não é à toa que, na lingüístico-antro- especificar, nem mesmo com artigo, a vira “Estava a dormir”. Alguém me disse
pológica “Língua”, Caetano Veloso diz: idéia de posse: “Estou em casa”; “Passei que lá, quando as novelas brasileiras
“Ouçamos com atenção os deles e os delas a semana fora de casa”; “Se for conde- começaram a invadir a televisão, houve
da TV Globo”. Citando uma orientação nado, não poderá dormir em casa”. Des- até passeata contra o pobre gerúndio.
explícita do manual de telejornalismo da provida de artigo, a palavra “casa” tem Não é preciso exagerar. Nem tanto ao
Globo (evitar o uso de “seu” e “sua”, poten- dono certo. É por isso que não ocorre mar, nem tanto à terra.
cialmente ambíguos), Caetano se refere a acento indicador de crase na famosa frase Essa história de duplo sentido, de
uma das tantas armadilhas da língua: a do episódio bíblico do filho pródigo: “O ambigüidade – latente ou recôndita –,
duplicidade de sentido de construções das filho pródigo a casa torna”. O “a” é mera atiça minha vontade de pôr o dedo em
quais faça parte o possessivo “seu”. preposição, regida pelo verbo “tornar”. outra ferida. Veja esta frase de Machado
Às vezes, usar “dele” ou “dela” pode É hora de falar do gerúndio, a outra de Assis, citada pelo dicionário Aurélio:
resolver. Às vezes. Em “O guarda deteve armadilha presente no trecho da edição “Examinou as luvas, __________ a
o suspeito em sua casa”, por exemplo, não anterior. É comum, tanto no texto de gravata”. Você preencheria a lacuna com
resolve. Não é possível definir onde alunos como no de profissionais de várias “consertou” ou com “concertou”?
ocorreu a detenção. A troca de “sua” por áreas, o emprego exagerado do gerúndio: Machado escreveu “concertou”. O
“dele” ou “dela” resolveria o problema “Trabalhando durante o dia, estudando à dicionário ensina que “concertar”, entre
se um dos elementos da história fosse noite, dormindo pouco, comendo mal, outras coisas, é “pôr em boa ordem; dar
homem e o outro, mulher. ganhando salário baixo, disputando melhor disposição a; compor, ajustar,
Na verdade, nesse caso, o possessivo acirradamente um lugar...” Ufa! O pior endireitar”. Como diria Paulinho da
é um intruso. Se a frase fosse “O suspeito é que muitas vezes, depois da avalancha Viola, coisas da língua, minha nega.
foi detido em casa pelo guarda”, não de gerúndios, a oração principal simples- Até a próxima, um forte abraço.
haveria dúvida de que a casa em questão mente não aparece, ou seja, o pensamento Pasquale Cipro Neto
é do suspeito. Aqui, por sinal, cabe uma não se completa. professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

discussão interessante. É bom lembrar Outro problema do gerúndio é a apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TV
Cultura, autor da coluna Ao pé da letra, do Diário do Grande ABC
que, em português, muitas vezes o artigo ambigüidade. Em “Ele atropelou um e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

novembro/99 - CULT 37
Roberta Dabdab/Folha Imagem

O r i d e s
homenagem

A surpresa do ser
Contador Borges

S e a filosofia nunca soube ao certo o que é o ser (a metafísica ocidental só fez


ocultá-lo ainda mais), em Heidegger ele ressurge iluminado pela linguagem poética.
A poesia é a “casa do ser”; só através dela é possível “comemorá-lo” sem perdê-lo de
vista; só ela é capaz de evocá-lo em seu movimento fulgurante. O ser é uma surpresa
que os poemas ajudam a vislumbrar.
Seis séculos antes de Cristo, a filosofia nasce justamente em confronto com a
poesia (e seus mitos), que antes de emancipar-se como forma autônoma destinava-se
à revelação do sagrado.
A idéia heideggeriana de que a poesia nos lembra o ser encontra-se em sua “Carta
sobre o humanismo”, a qual se encerra com estas palavras: “na presente indigência do
mundo é necessário: menos filosofia e mais desvelo do pensar, menos literatura e mais
cultivo da letra”.
Orides Fontela provavelmente pensava nisso quando disse num depoimento:
“Nossa época é terrível, somos poetas em tempo de desgraça”.
Orides se foi. Já não presencia os infortúnios de nosso tempo nem deles participa,
mas sua poesia cristalina continua exercendo o “desvelo do pensar” e o “cultivo da
letra”, de que fala Heidegger, provocando o ser à luz da linguagem. Aliás, do que mais
se ocupam seus poemas?
Orides Fontela, como Paul Celan, é daqueles artífices que clareiam o ser ao mesmo
tempo em que propõem uma indagação essencial sobre o ser da própria poesia. Ler

38 CULT - novembro/99
A poesia de Orides Fontela, que morreu há um
ano, no dia 2 novembro, exerce o desvelo do
pensar e o cultivo da letra, clareia a tessitura da
existência e propõe uma indagação essencial
sobre o ser da própria poesia

sua obra é constatar que o ser em geral, A mão destrói-se vamente curta, mas exuberante, ressalta-
no sentido heideggeriano, questão sempre furtando-se se por uma dicção ao mesmo tempo
aberta, e o ser lucífugo da poesia têm à textura do ser singela e seca, de fatura concisa, em per-
idêntica irradiação. Ambos podem no- e do silêncio manente diálogo com o silêncio e com o
mear-se como aquilo que não se sabe ao branco da página. Seus falsos axiomas
certo o que é, mas que se deixa perceber Numa bela analogia, Roland Barthes parecem afirmar só para poder sugerir
no mesmo instante em que se furta como descreve a morte do sujeito na linguagem melhor deixando o sentido suspenso. O
pedra filosofal da leitura. “Natureza ama como uma aranha que se dissolvesse nas recorte dos poemas faz alastrar este efeito
ocultar-se”, conforme o célebre fragmen- secreções construtivas de sua teia. Esta no espaço branco e favorece as forças
to de Heráclito. sensação dolorosa de que o poeta morre obscuras do silêncio na extração de
Num poema lapidar de Alba, talvez um pouco em todo poema parece elementos singulares.
seu livro mais intenso e orgânico, Orides onipresente em Orides Fontela. Uma Tudo gira em torno de sua mitologia
descreve o ser da poesia consumando-se morte mínima, mas intensa que, no exem- pessoal de onde se desprendem “o ser, o
até a essência: plo acima, preserva o poema em sua “tex- silêncio, a palavra, o sangue...”. Note-se
tura” de ser e silêncio, como faz o útero que são elementos substanciais. Pode-se
A mão destrói imagens ao feto frágil. acrescer outros, seus derivados afetivos
descristaliza signos (pássaros, peixes, espelhos...), mas a indi-
O silêncio, que encerra a possi- cação de Orides deve bastar-nos como à
e a luz de novo bilidade do ser no poema, que é pro- rosa de seu poema “basta o ser profundo
desabitada priamente sua reserva de forma e sentido, em que descansa”. Tal elenco temático
pulsa serenamente seu manancial e sua origem, prevalece ao justifica-se porque “a poesia dita social
em frio ímpeto. sujeito que produz e esvanece nas não é um tema para proletárias autênticas,
palavras. Portanto, a força motriz que como eu”. Estamos diante de uma arte
Este ser que, renascendo, num frio promove a morte do poema é a mesma a que não se dobra às apropriações espúrias
pulsar de luz, poderá adquirir outros engendrar seu fluxo de permanência da ideologia, nem exibe no rosto seus
matizes (claros ou escuros, conforme a adversa. A todo gesto, o ser lírico subsiste rubores.
têmpera do poeta), mas sempre em em forma de surpresa: Na poesia de Orides as palavras se
processo de consumação sem trégua. Um relacionam numa espécie de atração fatal
poema nasce da transformação de si e – naufragada a forma – que alivia a inércia causada por seu
mesmo; em busca da forma essencial, o subsiste uma estrela desgaste inevitável na circulação geral dos
poeta vai destruindo e renovando as signos devido à função utilitária do
imagens. Não há criação sem destruição, sobre as águas. discurso. Tal poesia cumpre o mister
como no “arco e a lira” de Heráclito. Tal essencial de tonificar a linguagem tão bem
movimento também precipita a inevi- De Trevo, que reúne os quatro formulado por Mallarmé em “dar um
tável conseqüência de toda criação primeiros livros de Orides (Transposição, sentido mais puro às palavras da tribo”.
poética: a pequena morte do sujeito que Helianto, Alba e Rosácea), ao último, Teia, Sabe-se que no espaço poético as
escreve: o ser é o tema preferido. Obra relati- palavras assumem mais livres sua vocação

novembro/99 - CULT 39
semântica. Os signos se atraem preferen- que o movimento só se contém para não dando voz ao que de hábito não se
cialmente mais por afinidades musicais se esquecer do que realmente é. Con- exprime ou não possui vocação para
do que por meras exigências de sentido. tendo-se, se nega; é a única forma desse tanto.
Este resulta de sua diferença na leitura, gesto cumprir-se. Ele assim se afirma O silêncio, em Orides, pode estar
em meio à cintilação das imagens. As comungando de seu contrário e fluindo “cheio/de peixes/de irisados peixes/
palavras se valem de seu sentido de origem como linguagem aos olhos do leitor. Em úmidos”, assim como suas grandes
para despertar novos significados no suma: o poema traz em si mesmo as árvores, ânforas, “transbordam de
encontro amoroso com outras, mudando amarras e os dedos de seu desenlace cós- silêncio”. O silêncio pode ser tanto
de sentido e função. É como se, numa mico. o conteúdo como o continente.
teia, presa e aranha invertessem os papéis. Pouco importa. O silêncio é o que
Ou como se estes indivíduos passassem E quando fixamos traz ao olhar as entranhas do ser.
indiscriminadamente a fornecer um ao claros signos
outro veneno e nutrição orgânica, morte flui o silêncio. Jacente
e vida reciclada. uma atmosfera cerca
Nos poemas de Orides as palavras O silêncio. O que é num poema? Para de tal força o silêncio
funcionam generosamente como espe- que serve? O que nos reserva? “A poesia
lhos mútuos, “espelhos da essência”, evi- é ao mesmo tempo palavra e provocação como se jacente guardasse
denciando as formas que adquirem em silenciosa”, escreve René Char. Daí seu o gesto total do segredo.
imagens do movimento do ser na lin- mistério, seu fascínio.
guagem. O diálogo das palavras com o silêncio Uma “atmosfera” cerca o
Em “A estátua jacente”, tal dina- ativa os sentidos a seu processo de silêncio do ser porque, para revelá-
mismo, em seu íntimo impulso, livre e floração endógena. Ler é também ouvir lo, ainda que furtivamente, é preciso
cego, detém-se apenas para alimentar-se as palavras silenciosamente. A despeito antes protegê-lo nesse “gesto total
da “contenção pura” que define sua natu- de toda a tradição oral da poesia, dos aedos do segredo” e assim preservá-lo da
reza. Eis o delicado paradoxo: gregos ao Uivo de Ginsberg, a leitura ferocidade dos sentidos que poderão
silenciosa é a que parece melhor convir destruí-lo. O ser silente só se deixa
Contido para se prestar atenção a seu ser. O entender como um gesto de auto-
em seu livre abandono silêncio é o suporte imaterial da leitura. preservação (o instinto de sobre-
um dinamismo se alimenta Na modernidade, um poema começa vivência do poético) impulsionado
de sua contenção pura. quando a comunicação, a fala conven- de dentro de seu próprio segredo. É
cional e institucionalizada, é posta em o sinal vitorioso de que o ser da poesia
Recolhido em si mesmo, o movi- crise. Mas é mediante esta crise que a sobrevive, inclusive para nos ajudar
mento do ser vai de encontro a sua essên- linguagem renova suas formas. A função a surpreender o ser esquivo de todos
cia; aqui, como entre os gregos de Eléia, de um poema é fazer a palavra valer de nós.
o tempo é suspenso para que o pensa- outro modo, criando brechas para a epifania
mento, imobilizado, sofra a sensação do do ser. Sua motivação parece advir mais Contador Borges
eterno entre as coisas que encontram sua do silêncio que do discurso. Poesia é um poeta, autor de Angelolatria, tradutor de A filosofia
na alcova, do Marquês de Sade, e de O nu perdido, de
perfeição no repouso. Dir-se-ia, portanto, modo de dizer o silêncio (e o invisível), René Char, todos pela editora Iluminuras

40 CULT - novembro/99
Roberta Dabdab/Folha Imagem

home na g e m A fina teia de epifanias


criada por Orides Fontela
esmaece as atribulações de
sua biografia em benefício
de sua obra, abstrata,
descarnada e em constante
movimento de retorno
ao silêncio

Orides
Escuríssima água
Ivan Marques

P obre, mas poeta – pobre e poeta, diriam os mais irônicos –, Orides Fontela encarnou como poucos a pecha
de “inexplicável sobrevivência” que, desde a origem dos tempos modernos, ronda os seres devotados à poesia (no
seu caso, como se sabe, mais que à própria vida). Faz um ano que ela morreu, num sanatório em Campos do Jordão,
isolada em completo silêncio. Não chegou a ver a tradução dos seus poemas para o francês, que saiu logo depois
com o título Trèfle. Também não verá a louvável reedição (no primeiro semestre do próximo ano), pela Editora 34,
de seus livros há muito esgotados. Paciência, talvez dissesse. Importante é a obra ser divulgada. O resto são as
banais negativas de um ser – mais um – que atravessou a vida com “o saldo de Brás Cubas”.
Da tragédia pessoal de Orides, é possível que se apaguem pouco a pouco os vestígios. Interessará cada vez menos
o folclore de encrencas e frustrações que andou nutrindo apetites sórdidos na imprensa. Mas nunca deixará de
impressionar a disparidade entre a biografia e a obra, que de tão inesperada soa assim como uma espécie de milagre.
Extremos de concisão temperam (negam) o que na vida foi sempre paixão desmedida, miséria crua, dolorosa hybris.
Caótica, porém concisa. Estóica, mas também amarga, ressentida. Serena, e acima de tudo cruel. Coisas “mescladas
ao acaso” – como ensina Heráclito, na epígrafe de Rosácea – para compor “o mais belo universo”? Na teia de
paradoxos criada (vivida) por Orides, quase tudo é inexplicável.
Explicação já gasta é a idéia de que a arte é sempre pura e transcendente, ou não será arte. Segundo Croce,
o que importa não é a “dura matéria” de onde se arrancou a poesia, mas a intuição do artista convertida em
imagem. Assim pensava a nossa poeta desde os tempos de São João da Boa Vista, quando foi “descoberta” pelo
crítico e conterrâneo Davi Arrigucci Jr. (que incentivou sua mudança para São Paulo, salvando-a do pequeno
destino de “poeta municipal”). Em seu livro de estréia, Transposição (1969), Orides já manifestava a intenção de
fugir ao confessional, à primeira pessoa, aos limites do cotidiano e da poesia dita social ou “feminina”. Esta rota
de exclusões só podia dar numa obra radicalmente abstrata e descarnada, que foi acolhida com entusiasmo pelos

novembro/99 - CULT 41
O r i d
críticos, e não apenas por seu caráter escritos, eram enviados. Eis a ponta de mais essencial” que sustenta a poesia de
moderno de cosa mentale. O encanto um paradoxo: uma leitora de Mallarmé, Orides. O cotidiano mesquinho parece
vinha da condensação e da concretude com formação filosófica e notável rigor conter uma primeira lição de despoja-
dos símbolos. Símbolos (mitos) frescos construtivo, fazendo a defesa (romântica) mento, que reaparece em requintadas
e inspirados, não teóricos, mas fun- do “alumbramento”. Mas matemática, transposições. É como se vida e obra
damente vividos, e tudo afinado em po- segundo ela, era só a organização dos livros. espontaneamente (sem dor) se tocassem.
derosas articulações, como uma orques- Os poemas nasciam quase sempre ao acaso,
tra de pássaros (“poesia alada e cheia prontos, alheios à vontade do poeta. Ó vida, triste vida!

O r i d e s
de peso”, escreveu Antonio Candido).
A exclusão da biografia também está de
acordo com a famosa concepção empres-
tada de Heidegger (que a bebeu em Höl-
derlin), segundo a qual a poesia instaura o
ser, o real, a permanência. No caso de Ori-
Espontaneamente iam tecendo suas
epifanias, edificando a “terra estranha”.
Pós-simbolismo, modernismo, her-
metismo, poesia de vanguarda... Desse
amálgama é que Orides extraiu sua origi-
nalidade, a “solução pessoal” que os críti-
Se eu me chamasse Aparecida
dava na mesma.

Excluída por sua brutalidade – “Fatos


são palavras/ditas pelo mundo” –, a biogra-
fia não disputa espaço com a palavra
des, é mais exato falar em aproximação: cos admiraram. Só não havia espaço para poética, que se mantém pura, utópica. Mas
o cotidiano: a “primeira pessoa”. Inútil não deixaremos de notar a sombra dura dos
A um passo procurar. Pela leitura dos poemas, sabe- acontecimentos. Segundo Orides, o poema
do pássaro se apenas e a custo que a autora conhecia reflete a personalidade do poeta, e não sua
res filosofia, que admirava poetas como “triste vida”. Mas onde (sob quais embates)
piro. Drummond, que tinha sido a “herdeira” se formou o temperamento? Adorno ensina
de uns poucos utensílios domésticos: que toda recusa é condicionada e que a
Palavra arcaica e essencial – aurora do ferramentas, flautas, um lenço. Rápidos exclusão do mundo exterior é sempre uma
conhecimento em que tudo é eterno por- vislumbres, que aparecem só nos últimos forma de resistência. E se a disparidade – o
que pulsa pela primeira vez –, a poesia livros – Rosácea (1986) e Teia (1996) –, abismo que separa vida e obra – for pura
merecia de Orides o respeito oferecido às nos quais, segundo ela, houve realmente aparência? Para Davi Arrigucci Jr., uma das
coisas sagradas. Daí talvez a sua maneira o desejo de ser menos etérea, de baixar ao marcas fundamentais de Orides é a lucidez
particular de ler os poemas: a fala sempre chão. Um poema como “Herança” destrutiva e autodestrutiva. Algo que ele pô-
empostada, ritualizada, solene, como quem adquire peso e impacto justamente por de identificar desde a remota leitura de um
diz uma prece (na infância, já iniciada, ela sua raridade. Surpreende, mas está longe poema (o primeiro que o impressionou),
chegou a recitar do púlpito). Orides de ser extravagante ou desnecessário. publicado no jornal O Município, de São
concebia o poeta como uma espécie de Como notou Alcides Villaça, aquele João. O poema, que passou a fazer parte de
medium, ser inspirado a quem os poemas, já pobre inventário sugere a “economia do Helianto (1973), chama-se “Elegia”:

42 CULT - novembro/99
e s
Mas para que serve o pássaro? livros queimados ou abortados, como o A depuração (busca do essencial) é uma
Nós o contemplamos inerte. primeiro Rosácea, da década de 60. Os que batalha de Sísifo, um esforço nunca
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas. chegaram às livrarias terminam sempre da suficiente que, sem eliminar a esperança,
De que serve o pássaro se mesma maneira: com um poema sobre o sempre renova a frustração. Orides sabe que
desnaturado o possuímos? silêncio. Como se, após o sangue derra- a poesia está posta num limiar, espécie de
mado, fosse necessário ou desejável retor- fatalidade imitativa em que só a proximidade
O que era vôo e eis nar à branca ausência original. Idas e vin- (o símbolo) é possível. Nesta espera vive o
que é concreção letal e cor das: esquema de destruições. poeta – “atento a”, “a um passo de” –, de
paralisada, íris silente, nítido, O caráter lúdico da poesia, que está antemão sabendo que jamais alcançará a
o que era infinito e eis enfatizado em “Elegia”, também contém “vitalidade pura” do canto de um pássaro,
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico sua parte de destruição. A poesia nas como vemos no poema “Pouso”:
mãos de Orides é um jogo em que tudo
o que era pássaro e é se desdobra e despedaça, como se a Ó pássaro, em minha mão
o objeto: jogo sucessão das formas pudesse refletir a pousado
de uma inocência que multiplicidade do real – “Quebrar o será possível cantarmos
o contempla e revive brinquedo ainda/é mais brincar”, dizem em uníssono
– criança que tateia os versos de “Ludismo”. Formas que-
no pássaro um esquema bradas, tranças desfeitas, mundos rein- se és o raro pouso

O r i d
de distâncias – ventados... Impressiona a repetição dos do sentimento vivo
prefixos des e anti, sem falar na abun- e eu, pranto vertido
mas para que serve o pássaro? dante preposição sem, que confirma a na palavra?
atitude básica de despojamento. Virando
O pássaro não serve. Arrítmicas as coisas pelo avesso, surgem as paró- O que faz o símbolo? Apenas junta,
brandas asas repousam. dias. São os momentos em que a “pala- aproxima. Não chega a fundir palavra e
vra pensante” se torna usina de para- coisa. É presença e ao mesmo tempo
A morte ronda (alimenta) os poemas doxos, aporias, ironias. “Sempre é me- ausência – “esquema de distâncias” que
de Orides. Na vida, como sabemos, foi uma lhor/desfazer/que tecer”, diz a poeta em a modernidade sempre enfatizou. Na
obsessão implacável: álcool, depressão, “Axiomas”. De quebra, faz-se a expo- visão de Orides, o símbolo possui a
doenças, tentativas de suicídio – tudo sição (sempre cruel) das nossas carên- capacidade de ferir e paralisar. “Verbo
resultando no precoce falecimento, aos 58 cias, acompanhada às vezes de uma pala- fixado”, “concreção letal”, ele se opõe
anos. A tendência autodestrutiva também vra de consolo, que também pode ser violentamente ao movimento vivo, ao
está presente nos poemas esquecidos e nos vista como provocação. vôo do pássaro rumo ao infinito. A

novembro/99 - CULT 43
tradução simbólica é uma espécie de renascem os símbolos. É quando surge jamais tivessem existido, como imagina a
prisão (morte) súbita dada aos seres: um livro como Alba (1983), com sua poeta em “Anti-Gênesis”:
“toda palavra é crueldade”. Poesia como aposta demiúrgica nos poderes da poesia.
gesto de captura, que não elide nem Desfazer e tecer: permanente tensão. Abóbada par
disfarça o sangue: “a um passo do Ao meio-dia, a claridade da manhã se tida
pássaro”... inerte, “desnaturado”. Mas torna densa e impiedosa: “Meio-dia! os céus se rompem.
a poeta não abre mão deste “raro pouso” Meio-dia!/A vida é lúcida e impossível”. Terra solvida. Vida finda. O

O r i d e s
e o espera sedenta – como a aranha no Lucidez: percepção aguda e estéril, “cruel Sopro
centro da teia, ou a coruja que triunfa saber que despedaça o ser sabido”, reabsorve-se
em “pleno escuro”: momento de negatividade em que o
trabalho de Penélope se contém e reflui, e a escuríssima
Vôo onde ninguém mais – vivo em luz imitando a tessitura das Parcas. “Sempre é água
mínima melhor saber que não saber”, diz a poeta bebe
ouço o mínimo arfar – farejo o em outro axioma. E quem há pouco so- a
sangue nhava com a transcendência agora se con- luz.
e capturo tenta com sua margem precária (altiva) de
a presa consciência. “Geneticamente sou drum- Tocar no vazio, segundo Heidegger,
em pleno escuro. mondiana”, dizia Orides, revelando sua é o preço inevitável da reflexão sobre o
filiação à vertente mais cética da literatura ser. “Minha matéria é o nada”, escreveu
Desejar o pouso e a permanência brasileira. De Drummond, que é mestre Drummond... “Escuríssima água”,
quando tudo se move... Mas o símbolo de desenganos, ela terá herdado a aspiração acrescentou Orides, também empe-
está longe de petrificar. Idéia convertida pela nudez branca e indizível, “escultura nhada numa investigação que é a própria
em representação sensível (real), o de ar” que concretiza a impossibilidade busca da poesia. Com vigor, mas sem
símbolo é prisão, mas também vôo. Tem mesma do ser. De Manuel Bandeira, além alarde, ela jamais abandonou seu posto
natureza múltipla e problemática, avessa do despojamento, terá aprendido a lição “a um passo de”. Acima de todos os fra-
às frias (mortas) totalizações. Feita de de que a poesia (maculado vinho), não cassos, acreditou sempre que a poesia é
concreto e de volteios, mas sempre podendo dar água como a moça do inextinguível.
roubada ao silêncio, a poesia de Orides cântaro, deve ao menos nos preparar para
jamais deixará o intervalo entre o ser e o a morte (“que é o fim de todos os mila- Ivan Marques
não ser. Nas épocas de menor sofrimento, gres”). Talvez fosse preferível que as coisas jornalista e mestrando em literatura na USP

44 CULT - novembro/99
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
CONTO

O BEIJO DA LOCOMOTIVA○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Roberto de Sousa Causo

novembro/99 - CULT 45
H avia esse morro coroado por um caderno secreto com umas poucas tão longe de casa – e dos seus punhos.
uma paineira, rosada de dezembro a fotos de trens recortadas de revistas e Como poderia ir sozinho? Não. Pelo
abril, dando para a linha férrea. Era bilhetes usados que recolhia do chão menos não agora.
dali que ele via os trens passarem. Via sujo da estação. Em criança, não Aos dezessete seu sonho já não era
as composições de passageiros e de chegou realmente a viajar, mas o chefe mais se tornar um maquinista. Pensava
carga, silenciosas locomotivas elétricas da estação, que também não ficava muito sobre o poder que as locomotivas
ou barulhentas máquinas a diesel. O longe, deixava-o entrar e sair das representavam, engatadas em serpentes
morro baixo se dependurava sobre a composições quando havia tempo de vagões, como uma cabeça venenosa.
depressão em que corriam os trilhos, sobrando. Uma vez até o levou para Puxavam trens de passageiros rara-
tão perto que ele ouvia o zunido dos ver a locomotiva e falar com os mente lotados, velhos carros de carga
fios e a batida ritmada das rodas de aço maquinistas. Do chefe da estação ele que pareciam engradados compridos,
sobre os trilhos de ferro. Às vezes ouvia obteve o nome das máquinas: Alco tanques cheios de petróleo ou suco de
as vozes dos passageiros. Pensava neles. PAs, de frente aerodinâmica, gigantes laranja, contêiners pintados de ver-
Pensava em quem seriam, de onde pintadas de laranja e branco, com dois melho, vagões abertos carregados com
vinham, para onde iam. grandes faróis um sobre o outro, gado. Uma vez vira uma composição
Como era andar de trem? Tinha só lembrando o focinho de um animal, com quinze vagões de passageiros
seis anos. Não morava longe da linha, uma fera rugindo ao som dos seus cheios de soldados e vinte outros com
numa casa de fundos voltados para os motores de dezesseis cilindros. tanques e carros blindados. O chefe da
trilhos. Tinha outros sete irmãos e já Quando fez quinze, trabalhava já estação lhe contou que sem os trens
sabia que a vida em casa era mais dura há dois anos numa oficina mecânica, aqueles tanques nunca poderiam ir tão
do que deveria ser. O pai às vezes o mais próximo que conseguira chegar longe quanto o fim da linha, em Des-
chegava tão nervoso do trabalho que de motores, engrenagens e o cheiro de calvado. E eram as locomotivas que os
batia nos filhos e na mãe por qualquer óleo no aço, como sangue na carne. transportavam. Elas tinham esse poder.
coisa. Era melhor fugir. Ele fugia para Uma vez o chefe da estação lhe indicara Levar pessoas aos seus destinos.
o morro de onde podia ver os trens. as maneiras de se tornar um mecânico Transportar coisas até suas destinações.
Cresceu assim. Quando chegou aos de locomotivas, ou até mesmo – a Mas as locomotivas tinham outro
oito ou nove anos seu maior sonho era fantasia suprema – um maquinista. poder. Como seria ser atingido por
viajar em um deles. Escreveu redações Teria de viajar para São Paulo, é claro, uma delas? Ouvia dos homens da
sobre isso na escola, antes que o pai o mas seu pai nunca permitiria que um estação e dos vizinhos histórias de
arrancasse dela para trabalhar. Tinha dos filhos se metesse em qualquer coisa pessoas atropeladas na linha. Histórias

A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO – um espaço destinado a poemas, contos e textos literários
inéditos. Os originais – contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres – serão avaliados e selecionados
pela equipe da revista CULT. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefone
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CULT é R u a R u i B a r b o s a , 7 0 , S ã o Pa u l o , S P, C E P 0 1 3 2 6 - 0 1 0 , e - m a i l : l e m o s p l @ n e t p o i n t . c o m . b r

46 CULT - novembro/99
de bêbados e mendigos seguindo a terra, frustrada com o tombo. Não po- no piso estampado, um olho morto vol-
linha, caídos com as cabeças descan- dia ser detida, se estivesse nos trilhos. tado para ele, as pernas esticadas e uma
sando nos dormentes ou tentando Fora deles era um mamute abatido, asa aberta, como se fosse um lençol
ouvir a canção dos trilhos. Histórias mas enquanto rolasse entre faíscas sobre branco-acizentado que a rolinha esten-
de maridos traídos e mulheres descon- os trilhos nada poderia ficar em seu dera para sobre ele se deitar.
tentes procurando o beijo noturno da caminho. Quem tentasse seria esma- Quando o passarinho teria sido
locomotiva. gado por seu peso, mastigado pelas atropelado pela máquina? Em vôo, em
Pensava muito nisso, aos dezessete. rodas de aço, quicando entre a pedra algum lugar entre Descalvado e ali,
No beijo da locomotiva. britada e a barriga de ferro dos vagões atingida em pleno ar pelo monstro? Ou
Pensava nisso sob a sombra da até se transformar na matéria dissipada durante o próprio descarrilamento?
paineira, quando as diesels trovejavam em pedaços sangrentos, da qual fala- Quando a máquina abandonou os tri-
lá embaixo. Então passou a pensar vam os homens da estação e os vizinhos. lhos e o chão tremeu sob os seus dentes,
também enquanto sujava as mãos e o Ele sentiu um estranho aperto no a rolinha saltou da moita de colonhão
rosto de graxa da oficina mecânica, e peito, meio alegria boba, meio medo. onde se escondia e tentou voar para lon-
sempre quando o pai chegava do Eram esses pensamentos que o agita- ge, sendo apanhada no ar pelos lábios
serviço, seus olhos sombrios procu- vam. A mão tremia levemente, en- quentes e duros da máquina.
rando por faltas nos olhos medrosos dos quanto acariciava a locomotiva. Con- Deixou o local do acidente e vol-
filhos, por traições nos olhos cansados tornou-a. Viu que, ao contrário do que tou para o trabalho. Ao sair, no fim
da mulher. Era nisso que sonhava, aos ocorreria com suas vítimas, a loco- do expediente, já anoitecera. Ele po-
dezessete. motiva não perdera nenhum frag- rém não voltou direto para casa. Foi
Então houve aquele dia em que mento, ao descarrilar. Estava inteira, falar com o chefe da estação, que
uma diesel descarrilou não longe da viva, dormindo apenas. cumpria o turno da noite. O velho
estação. Ele abandonou a oficina para Alcançou uma reentrância na amigo estava cansado e atarefado
se unir aos curiosos que foram ver o máquina. Era um passadiço protegido com o descarrilamento, mas mesmo
grande monstro de metal tombado à por meia chapa de aço. Olhou para assim ele arrancou do homem a carta
beira dos trilhos. Tocou o focinho dentro, para o interior semi-oculto nas que levava consigo quando partiu no
empoeirado e ainda quente da fera. Viu sombras, e viu ali o corpo de uma primeiro trem para a capital, na ma-
que era tão pesada que cavara um sulco rolinha. nhã seguinte.
de um metro de profundidade no Uma rolinha de penas cinza-claras. Ele nunca mais sonhou com o beijo
chão, seus dentes mordendo fundo a Rolinha-de-asa-canela. Apenas jogada da locomotiva.

Roberto de Sousa Causo


nasceu em 1965 em São Bernardo do Campo (SP);
tem contos publicados no Brasil, no Canadá, na
China, na França, em Portugal e na República
Tcheca; seu primeiro livro, A dança das sombras, saiu
há pouco em Portugal pela Editorial Caminho

novembro/99 - CULT 47
O Malho, revista carioca da primeira metade deste século, em sua
edição de 16 de novembro de 1933 (Ano XXXII, nº 24),
comemorando o aniversário da proclamação da República,
estampou na abertura o texto aqui reproduzido de Medeiros e
Albuquerque, figura então expressiva de nossas letras.

48 CULT - novembro/99
Reprodução

Freud, Berlim, 1930

a interpretação dos sonhos


100 anos
novembro/99 - CULT 49
A peste onírica Márcio Mariguela

Fotos:Reprodução

O divã em que Freud costumava analisar seus pacientes

Há cem anos Sigmund Freud publicava


A interpretação dos sonhos, pedra angular
da nova hermenêutica que fez da psicanálise
uma disciplina que subverteu os fundamentos
da ciência e do pensamento ocidental

50 CULT - novembro/99
Freud, em 1906

I A exposição “Sigmund Freud: proposições da petição. No Brasil, a Tendo como objetivo “explorar o
Cultura e Conflito”, anunciada pela revista Isto É, na edição de 27/09/95, alcance da influência de Freud e do
Biblioteca do Congresso em Washington registrou o ocorrido com a matéria “Freud pensamento psicanalítico na cultura do
para dezembro de 1995, aconteceu so- está vivo”. século XX e como esse legado é con-
mente em outubro de 1998. Nela o pú- A suspensão da exposição gerou vários testado”, a mostra nos EUA apresentou
blico pôde ver manuscritos e objetos pes- protestos. No artigo “Freud pode ser um painel na entrada com a seguinte
soais do fundador da psicanálise. Durante sexualmente transmissível”, Elizabeth questão: “Ele foi um cientista, um escri-
dois anos, a polêmica exposição fez jus Roudinesco, historiadora da psicanálise, tor, um gênio ou uma fraude?” A contro-
ao nome. O conflito gerado aponta com registrou sua indignação: “Como uma vertida exposição está agendada para o
precisão os embates que atravessam a cul- instituição com tanto prestígio pôde ceder período de 26 de setembro a 28 de novem-
tura contemporânea desde a publicação à estupidez desses intelectuais tão des- bro do próximo ano no Museu de Arte
do livro A interpretação dos sonhos (Die norteados a ponto de renunciar ao exercício de São Paulo. O público brasileiro pode-
Traumdeutung) em novembro de 1899, que de seu direito mais fundamental: a liberdade rá ver o legado freudiano organizada em
teve a data de 1900 impressa na primeira de expressão? Esperemos que não se trate três grandes blocos: “Os Anos de Forma-
edição. O histórico desse livro é o mote de um sinal de déficit da democracia.” E, ção”, “O Indivíduo: Terapia e Teoria” e
para as comemorações do centenário da concluindo, sugeriu: “Que tal, para a “Do Indivíduo à Sociedade”. Consta que
criação da psicanálise, a arte da escuta, próxima exposição, a Biblioteca pensar em a grande atração do evento é o divã em
criada pelo médico vienense. tornar ‘sexualmente corretos’ os manus- que os pacientes relatavam suas vidas.
Conforme anunciado pela imprensa, critos de Freud depositados em seu acervo? Antes de publicar a Interpretação dos
a exposição foi suspensa por exigência po- Assim ela poderia mostrá-los abertamente, sonhos, considerada a pedra angular da
lítica, muito embora a coordenação do sem correr o risco de ofender o olhar da psicanálise, Freud escreveu diversos ar-
evento tenha alegado falta de verbas. Uma nova América puritana.” tigos, resenhas e verbetes para enciclo-
petição assinada por representantes da in- Na verdade, o cerne do conflito atua- pédia, demarcando seu campo de saber
telectualidade americana, dentre eles liza questões que certamente podem ser frente a polifonia científica de seu tempo.
cientistas, escritores e militantes da causa depreendidas do embate entre o processo Publicou, em 1891, um estudo Sobre a
politicamente correta, conseguiu impedir de criação e a expansão da psicanálise concepção das afasias, seu primeiro livro.
sua realização. Motivo: a psicanálise é pelo mundo afora. A polêmica gerada pela Traduziu as aulas de Jean-Martin Char-
uma fraude. Os signatários da petição exposição resgata o conflito entre o cam- cot e algumas proposições de Jonh Stuart
consideraram a prática psicanalítica frau- po de saber demarcado pelos escritos de Mill. Escreveu sobre a paralisia cerebral
dulenta porque, dentre outros motivos, Freud, a psicanálise, e aqueles constituí- infantil e um controvertido trabalho sobre
não leva em consideração os fundamentos dos pela neurofisiologia, pela psiquiatria o uso anestésico da cocaína. Manteve
bioquímicos do funcionamento mental. e recentemente por este imbróglio correspondência assídua com Wilhelm
Sobre a repercussão deste cenário na opi- chamado ‘neurociências’. O que há para Fliess, o parteiro da psicanálise, que foi
nião pública, a revista Time, na edição de ser comemorado no centenário da psica- o primeiro a receber um exemplar im-
29/11/93, publicou matéria de capa com nálise? Quais relevos serão desenhados presso do livro dos sonhos como presente
o título “Freud is dead”, antecipando as nos debates atuais sobre seus avatares? de aniversário.

novembro/99 - CULT 51
Fotos:Reprodução
Freud e Fliess, em 1895

Ferenczi e Freud, em 1917

Assinou com Josef Breuer, em abril manifestações de sofrimento psíquico? A literatura e me sinto como o diabinho
de 1895, a edição do livro Estudos sobre a dimensão psíquica dos humanos é celta: ‘Ah, como estou contente porque
histeria, onde pretendia sustentar a hi- redutível a explicações neurofisiológicas? ninguém sabe!’ Ninguém sequer suspeita
pótese de que a sexualidade desempenha A cartografia psíquica não seria antes uma de que o sonho não é nenhum absurdo, e
“um papel fundamental na patogênese da construção histórica, jogos de verdade, sim uma realização de desejo”. A elabo-
histeria, como fonte de traumas psí- relações simbólicas? ração do “livro dos sonhos” constitui-se a
quicos e como motivação para a ‘defesa’ Num de seus primeiros escritos, matriz da teoria psicanalítica sobre o
– isto é, para que as idéias sejam recal- Michel Foucault formulou duas questões funcionamento do aparelho psíquico. A
cadas da consciência” (Imago, Edição que merecem ser retomadas para avaliar tese de que o sonho realiza desejos permi-
Standard Brasileira II, p.33). Mas, o o cenário atual da psicanálise. Frente aos tiu a montagem dessa estrutura.
ponto de vista não pôde ser demonstrado, psicofármacos que inundam o mercado Uma citação de Virgílio (Eneida, livro
pois as observações de natureza marca- de medicamentos para o sofrimento VII) abre o livro como epígrafe para de-
damente sexual não foram publicadas por psíquico, sob que condições se pode falar monstrar o que está em jogo: “Se não pu-
decisão expressa dos autores. de doença no domínio psicológico? Que der dobrar os deuses de cima, comoverei
No prefácio à primeira edição dessa relações podem definir-se entre os fatos o Aqueronte.” Comentando a epígrafe
obra, fica estabelecido o campo da expe- da patologia mental e os da patologia com um tradutor, Freud explicita que a
riência clínica e os motivos que levaram orgânica? O autor sustenta que “a pato- dinâmica dos sonhos é agitar o submundo:
à decisão: “Nossa experiência provém da logia mental exige métodos de análise “O desejo rejeitado pelas instâncias psí-
clínica particular numa classe social culta diferentes dos da patologia orgânica, e que quicas superiores (o desejo recalcado no
e letrada, e o assunto com que lidamos é somente por um artifício de linguagem sonho) agita o submundo psíquico (o in-
muitas vezes aborda a vida e a história que se pode emprestar o mesmo sentido consciente) para se fazer escutar. O que
mais íntimas de nossos pacientes. Cons- às doenças do corpo e às doenças do você pode ver de prometéico nisso?”
tituiria grave quebra de confiança pu- espírito”. O que há de prometéico na criação de
blicar material dessa espécie, com o risco Freud? Na tragédia Prometeu acorrentado,
de os pacientes serem identificados e seus Ésquilo narra a punição de Júpiter ao titã
conhecidos ficarem a par de fatos con- II A primeira referência da intenção Prometeu por ter ele roubado uma
fiados apenas ao médico.” Entre os Es- de escrever o livro A interpretação dos sonhos fagulha do fogo dos deuses para presentear
tudos sobre a histeria e a Interpretação dos aparece na carta de 15/05/1897 que Freud os mortais. Numa bela passagem,
sonhos há um percurso constitutivo para a enviou a Fliess: “não importa onde come- Prometeu dialoga com o Coro a fim de
edificação dos alicerces da psicanálise. ce, estou sempre voltando às neuroses e dizer o motivo de sua punição: “Graças a
O fator sexual como agente etiológico ao aparelho psíquico. Com certeza, não é mim, os homens não mais desejam a
das psiconeuroses mantém-se como eixo por uma indiferença pessoal nem objetiva morte (...) Dei-lhes uma esperança
em torno do qual giram os registros da que não consigo fazer com que minha infinita no futuro (...) Sem raciocinar, os
prática clínica de Freud. pena escreva nada além disso. As coisas mortais agiam ao acaso, até o momento
A celeuma em torno do centenário estão fermentando, borbulhando dentro em que eu lhes chamei a atenção para o
da psicanálise escamoteia o problema en- de mim; só estou à espera de um novo nascimento e o ocaso dos astros. Inventei
frentado por Freud desde 1895: como ímpeto (...) estou novamente pensando no para eles a mais bela ciência, a dos núme-
diagnosticar e realizar um tratamento das livro sobre o sonho. Tenho examinado a ros; formei o sistema do alfabeto, e fixei a

52 CULT - novembro/99
Michel Foucault

Cronologia freudiana
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

6.maio.1856 Nasce
Sigismund Freud em
Freiberg, atual
Pribor, na Morávia,
região da ex-Tchecoslováquia, filho
de Jacob e Amalia Freud

1860 A família emigra para Viena

1873 Ingressa na Faculdade de


Medicina de Viena

1876-82 Trabalha no laboratório de


Ernst Brüke
memória, a mãe das ciências, a alma da preender as fobias, obsessões ou delírios, 1877 Publica os resultados de seus
vida.” ou fazer com que uma influência tera- estudos anatômicos e muda seu
O mito de Prometeu serviu como pêutica se faça sentir sobre eles” (p.29). primeiro nome para Sigmund
modelo interpretativo da racionalidade Ao final de seu percurso, chega à
ocidental. No século XVII, o filósofo seguinte conclusão: “Embora minha li- 1879 Freqüenta o curso de psiquiatria
inglês Francis Bacon caracterizou a nha de abordagem do tema dos sonhos de Theodor Meynert
ciência moderna como herdeira do feito tenha sido determinada por meu trabalho
de Prometeu e profetizou as grandes anterior sobre a psicologia das neuroses, 1881 Forma-se em medicina
conquistas que traria à humanidade. eu não tencionava servir-me desta como
1882 Conhece Martha Bernays.
Freud conhecia as dificuldades para base de referência na presente obra. Não
Deixa o laboratório de Ernst Brüke.
alinhar suas descobertas clínicas e suas obstante, sou constantemente levado a
deduções teóricas no campo das ciências fazê-lo, em vez de prosseguir, como 1884 Ocupa-se de estudos sobre a
naturais. O caráter prometéico de sua tese desejaria, na direção contrária, utilizando cocaína
sobre os sonhos bem o demonstram. os sonhos como meio de abordagem da
psicologia da neuroses. Estou ciente de 1885-86 Obtém uma bolsa de
todos os problemas em que meus leitores
III
estudos em Paris sob orientação de
Nas linhas iniciais do livro dos ficam assim envolvidos, mas não vejo Martin Charcot. Trava contato com
sonhos, Freud afirma que “a pesquisa meio de evitá-los” (ESB V, p.534). Como casos de neurose e com os efeitos da
psicológica mostra que o sonho é o pri- podemos depreender, o objetivo era hipnose.
meiro membro de uma classe de fenô- explicar os mecanismo de formação dos
1886 Casa-se com Martha Bernays
menos psíquicos anormais, da qual outros sintomas psiconeuróticos a partir da
membros, como as fobias histéricas, as psicologia dos processos oníricos. No 1887 É eleito membro da Sociedade
obsessões e os delírios, estão fadados, por entanto, ocorre o inverso: é a hipótese de Medicina de Viena. Nascimento
motivos práticos, a constituir um tema de etiológica de 1895 que elucida o processo de sua filha Mathilde. Começa a
interesse para os médicos” (ESB IV, p.29). de formação onírica. corresponder-se com Wilhelm Fliess.
Alinhando o sonho aos sintomas, Freud Com a publicação do “Fragmento da
estabeleceu a possibilidade de constituição análise de um caso de histeria” (o célebre 1888 Dá início ao tratamento de Frau
de um aparelho psíquico que funciona com caso Dora), Freud retoma a relação sonho Emmy von N. e aplica pela primeira
as mesmas características, quer estejamos e sintoma conduzindo-a para o cerne da vez os métodos de Josef Breuer
em estado de sono ou de vigília. prática clínica, de tal modo que o
1889 Nascimento de seu filho Martin
A analogia estabelecida entre o sonho aprofundamento nos problemas do sonho
e o sintoma atravessa a obra de ponta a é considerado um pré-requisito indis- 1891 Publica seu primeiro livro,
ponta. A intenção inicial era deslindar a pensável para a compreensão dos pro- Sobre a concepção das afasias.
estrutura das psiconeuroses através do pro- cessos psíquicos da histeria e das outras Nascimento de seu filho Olivier.
cesso de formação dos sonhos. Freud es- psiconeuroses. A análise do caso clínico
tava convencido: “quem quer que tenha é composta pela interpretação de dois 1892 Nascimento de seu filho Ernst.
falhado em explicar a origem das imagens sonhos, desse modo pode-se considerá- Desenvolve pesquisas sobre a
oníricas dificilmente poderá esperar com- lo uma continuação do livro dos sonhos. sexualidade e as neuroses.

novembro/99 - CULT 53
Fotos:Reprodução
Freud, em 1932

Após apresentar os aspectos temáticos Trata-se portanto de reconhecer que como um sintoma. Esse argumento é
que lhe interessavam na leitura dos os sonhos, os sintomas, os chistes e as decisivo para a montagem da estrutura
trabalhos bibliográficos que teorizavam parapraxias são produzidos por substi- do aparelho psíquico, pois a analogia
os sonhos, Freud inicia o capítulo II da tuição de desejos ali alojados. Isso por- sonho–sintoma tem implicações para
Interpretação dos sonhos, definindo dois que “interpretar um sonho implica atri- compreensão dos capítulos seguintes.
métodos existentes: o da interpretação buir a ele um sentido – isto é, substituí- Jacques Lacan capturou o problema
simbólica, “que considera o conteúdo do lo por algo que se ajuste à cadeia de nossos e no Seminário 2 – O eu na teoria de Freud e
sonho como um todo e procura substituí- atos mentais como um elo dotado de na técnica da psicanálise, ao comentar a
lo por outro conteúdo que seja inteligível validade e importância iguais ao restante passagem do Projeto de 1895 para a
e, em certos aspectos, análogo ao ori- (...) os sonhos se destinam a ocupar o Traumdeutung, afirmou que Freud “insiste
ginal”; e o da decifração, que “trata os so- lugar de algum outro processo de sobre o parentesco do sonho com o sin-
nhos como criptografia em que cada sig- pensamento, e que para chegar a esse toma neurótico, mas também sobre a di-
no pode ser traduzido por outro signo de sentido oculto temos de apenas desfazer ferença entre eles. O processo do sonho é
significado conhecido, de acordo com um corretamente a substituição.” (ESB IV, exemplar para entender o sintoma neu-
código fixo”. A escolha de Freud recai p.119). rótico, mas ele mantém uma diferença
sobre o método da decifração pois o con- Há, na afirmação de Freud, dois econômica absolutamente fundamental
sidera mais adequado para seus pro- procedimentos necessários na tarefa de entre sintoma e sonho. Em comum eles
pósitos terapêuticos em “deslindar certas interpretar sonhos: substituir o relato têm apenas uma gramática. Trata-se de
estruturas psicopatológicas”. verbal (conteúdo manifesto) por “algo uma metáfora, não tomem isto ao pé da
Como se vê, o propósito de Freud é que se ajuste à cadeia de nossos atos letra. Eles são tão diferentes quanto um
interpretar os sonhos por considerá-los mentais como um elo”, ou seja, apropriar- poema épico e uma obra sobre termo-
análogos aos sintomas diagnosticados nas se dos pensamentos oníricos latentes; dinâmica. O sonho permite apreender a
psiconeuroses. Entre os sonhos e os sin- segundo, trata-se de “desfazer correta- função simbólica que está em jogo e, a
tomas há em comum a mesma estrutura. mente a substituição”. Tal substituição só esse título, é capital para entender o sin-
Aqui apresenta-se uma condição inicial: é possível por admitir que o relato verbal toma. Mas um sintoma está sempre in-
se os sonhos realizam desejos, sendo eles já ocupa o lugar (por substituição, como serido num estado econômico global do
o primeiro termo de uma série de for- efeito de haver censura) dos pensamentos sujeito, enquanto o sonho é um estado
mações psíquicas anormais, aos demais oníricos. O que está em questão aqui é localizado no tempo, em condições exter-
elementos da série também deverá ser uma topografia na qual ocorrem desloca- nas particulares. O sonho é apenas uma
aplicada a assertiva. Ou seja, os sintomas mentos entre sistemas. parte da atividade do sujeito, enquanto o
também realizam desejos, uma vez que Para Freud, seus pacientes ensinaram- sintoma se esparrama em diversos setores.
foram alinhados ao mesmo conjunto que é lhe que “o sonho pode ser inserido na Os processos são mais análogos do que
a estrutura psíquica de sua produção. Esse cadeia psíquica a ser retrospectivamente idênticos” (p.158). O comentário de La-
argumento ressignifica as discussões atuais rastreada na memória a partir de uma can adverte para a analogia dos processos,
sobre o fim da psicanálise, tal como é idéia patológica”. Estava estabelecida ou seja, para aquilo que se inscreve no
anunciado pelos baluartes da cientificidade. assim a possibilidade de tratar o sonho sonho e no sintoma e, ao mesmo tempo,

54 CULT - novembro/99
Carl Gustav Jung ○
1893 Viaja a Berlim para encontro
com Fliess. Nasce sua filha Sophie.

julho.1895 Primeira interpretação de


um sonho seu (A injeção de Irma)

1895 Publica “Estudos sobre a


histeria”. Nascimento de sua filha
Anna.

setembro.1897 Escreve a Fliess


sobre o abandono da teoria da
sedução e da conclusão de que as
fantasias sexuais infantis originariam
as neuroses (início da sistematização
do complexo de Édipo)

1897-99 Submete-se a auto-análise.


Escreve A interpretação dos sonhos.
aponta para a diferença econômica essen- Freud apresenta aos leitores o tema
cial entre ambos. do conflito psíquico, demarcado pelas novembro.1899 Publicação de A
interpretação dos sonhos, datado de
É no capítulo IV que Freud introduz elaborações sobre o processo de trans-
1900
o problema da deformação para caracte- posição onírica. Há ainda um
rizar o processo de formação onírica. argumento importante: a distinção entre 1902 Fim da correspondência com
“Die Traumentstellung”, título do consciência e pensamento, fundamental Fliess, que seria retomada
capítulo, foi traduzido na Edição para apreender a distinção que faz entre esparsamente em 1904. Fundação da
Standard Brasileira por “A distorção nos conteúdo manifesto (relato verbal) e Sociedade Psicológica das Quartas-
sonhos”. Convém uma observação: na pensamento onírico latente. O processo feiras, em conjunto com Adler,
Edição Standard Brasileira ocorre uma primário de formação de uma Kahane, Restler e Stekel.
oscilação entre distorção e deformação representação ou idéia ocorre num lugar
para designar o trabalho do sonho. Na outro. A consciência é considerada um 1905 Publica “Três ensaios para uma
teoria sexual”, “Fragmento de uma
edição francesa de I. Meyerson, defor- “ato psíquico específico, distinto e
análise de histeria” (caso Dora) e “O
mação foi o termo escolhido. A palavra independente” do processo do pensar chiste e sua relação com o
deformação parece-me mais apropriada, representativo. Isto é, os elos da cadeia inconsciente”
pois implica em todos os casos de sua associativa dos pensamentos chegam
ocorrência, a existência de uma forma deformados na consciência pela ação da 1906 Começa a se corresponder com
prévia que sofreu efeitos de uma ação, segunda instância, que “não permite que Jung
alterando-a, deformando-a. passe coisa alguma sem exercer seus
Isso implica admitir de partida a direitos e fazer as modificações que jul- 1907 Jung funda a Sociedade Freud,
existência de “duas forças psíquicas (ou gue adequadas no pensamento que bus- em Zurique
podemos descrevê-las como correntes ou ca acesso à consciência”. Por isso, Freud
1907-08 Amizade com Eitingon,
sistemas); e que uma dessas forças cons- é obrigado a admitir que “nada pode
Jung, Abraham, Ferenczi, Ernest Jones
trói o desejo que é expresso pelo sonho, atingir a consciência a partir do e Rank
enquanto a outra exerce uma censura sobre primeiro sistema sem passar para a
esse desejo onírico e, pelo emprego dessa segunda instância” (ESB IV, p.159). abril.1908 Primeiro Congresso
censura, acarreta forçosamente uma Internacional de Psicanálise
[transposição] na expressão do desejo”
(ESB IV, p.159). Temos estabelecidos aqui IV O cenário da polêmica sobre a 1909 Recebe visita de Pfister. Viaja
os elementos necessários para articular a exposição norte-americana reveste-se de com Jung e Ferenczi aos Estados
montagem do aparelho psíquico: a força significação ao inseri-la no campo da Unidos, onde faz conferências na
produtora do desejo onírico, a primeira epistèmê fundada pela Traumdeutung. Clark University, reunidas em Cinco
lições sobre a psicanálise. Publica
instância; a força censurante, a segunda Apesar das várias edições que o livro
“O homem dos ratos” e “O pequeno
instância; e a consciência, considerada recebeu durante a vida de Freud – com Hans”.
como um órgão sensorial que recebe dados acréscimos significativos –, nos
surgidos em outros lugares. primeiros seis anos de publicação só

novembro/99 - CULT 55
Reprodução
1910 Segundo Congresso Internacional de
Psicanálise. Fundação da Associação
Psicanalítica Internacional, da qual Jung é
presidente. Freud escreve “Uma
recordação infantil de Leonardo” e
“Introdução ao narcisismo”.

1911 Apresenta “O caso Schreber”


no Congresso de Weimar

1912 Dirige a revista Imago. Trava


O estúdio de Freud em Londres amizade com Lou Andréas Salomé

1913 Rompimento com Jung.


Congresso de Munique. Publica
foram vendidos 351 exemplares. No ximação de uma região perigosa em “Totem e tabu”.
prefácio à oitava edição, publicada em absoluto, onde não só a interpretação vai
dezembro de 1929, Freud anotou a desaparecer como interpretação e pode 1915 Publica “Metapsicologia”
tradução da obra em francês, publicada chegar a significar inclusive a desa-
em 1926 na Coleção Bibliothèque de parição do próprio intérprete. A exis- 1917 Saem as “Conferências de
Philosophie Contemporaine, com o título tência, sempre aproximada do ponto introdução à psicanálise”
La science des rêves e afirmou que sua obra absoluto de interpretação, significaria ao
1918 Funda a Internationaler
é um documento histórico. mesmo tempo a existência de um ponto
psychoanalytischer Verlag, com
O conceito interpretação, escolhido de ruptura.” Desse modo, a criação de Ferenczi, Von Freund e Rank. Publica
por Freud como título de suas investi- uma nova hermenêutica possibilitou a “Homem dos Lobos”.
gações clínicas, demonstra o aspecto de emergência de uma distribuição dos sa-
fundação de uma nova discursividade. No beres que percorre o campo das ciências, 1920 Publica “Além do princípio do
Colóquio Nietzsche, realizado em subvertendo seus fundamentos primá- prazer”
Royaumont em 1964, Michel Foucault rios.
analisou as técnicas de interpretação O centenário do livro dos sonhos per- 1923 Escreve “O Ego e o Id”.
inauguradas por Freud, Nietzsche e mite resgatar os elementos fundantes de Descoberta do câncer na mandíbula.
Marx, afirmando que esses mestres da uma discursividade que se tornou
1926 Encontro com Einstein em
suspeita modificaram a natureza espe- critério para toda e qualquer enunciação
Berlim
cífica do símbolo e a forma geralmente sobre a dimensão psíquica dos animais
usada para interpretá-lo: teriam sus- falantes. Entrou para a história uma 1928 Publica “Dostoiévski e o
peitado que a linguagem quer dizer algo frase que Freud teria dito a Jung quando parricídio”
diferente do que diz e entreviram que há de sua visita à América do Norte em
linguagens dentro da linguagem. 1909: “Eles não sabem que estou 1930 “O mal-estar na civilização”.
Freud converteu a interpretação trazendo a peste.” A dimensão pestilenta Recebe o prêmio Goethe de
numa tarefa infinita, pois “se a inter- da psicanálise é motivo suficiente para Literatura, pela qualidade estilística
pretação não pode nunca acabar, isto ser injetada nas veias do moralismo de sua obra.
quer simplesmente significar que não há tacanho que assola nossos dias. Ao pôr
1931 Rompimento da amizade com
nada a interpretar. Não há nada abso- em cena a exigência ética fundamental
Ferenczi
lutamente primário a interpretar, porque do sujeito do inconsciente, a via aberta
no fundo tudo já é interpretação, cada por Freud permite resgatar a ruptura nas 1933 Os nazistas queimam suas
símbolo é em si mesmo não a coisa que fronteiras, cada vez mais estreitas, neste obras em Berlim
se oferece à interpretação, mas a inter- final de século, entre o normal e o
pretação de outros símbolos”. Eis aqui patológico. 1938 Publica “Nota sobre o anti-
a zona perigosa da interpretação: a desa- semitismo”. Invasão da Áustria pelos
parição do próprio intérprete. “É so- nazistas. Parte para Londres.
Márcio Mariguela
bretudo em Nietzsche e Freud, e em doutorando em filosofia pela Unicamp, professor
menor parte em Marx, onde se perfila de filosofia na Unimep, analista praticante, membro
1939 Morre no dia 23 de setembro
esta experiência tão importante a meu da Escola Lacaniana de Psicanálise de Campinas,
autor do livro Epistemologia da Psicologia (Unimep),
juízo para a hermenêutica moderna, de organizador da coletânea Foucault e a destruição

que quanto mais se avança na inter- das evidências (Unimep) e co-autor do livro
Ética e cidadania: Caminhos
pretação, quanto mais há uma apro- da filosofia (Papirus)

56 CULT - novembro/99
Reprodução
○ ○ ○
As pulsões da palavra
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

A associação entre técnica


psicanalítica e análise da
obra literária mostra que
o desejo constrói sentidos
na interação entre texto
e leitor, traçando paralelos
entre os os processos de
elaboração onírica
e poética Freud em seu estúdio de Londres, em 1938

Gilberto Figueiredo Martins

Para Suzete Rigo, cúmplice na análise de sonhos e dução criativa, sedutora e enigmática de como aliado um inconsciente que se ma-
vigílias. escritores em devaneio, justificava tal nifesta como linguagem. (Linguagem
subutilização, poupando-se de enfrentar, cifrada, de preferência, restando para ana-
Revisito o óbvio. Redigo, como como crítico, tamanha especificidade...
Mas, alguns de seus seguidores vêm, a
lisá-la o hermetismo inevitável de fórmu-
las, símbolos e conceitos acessíveis ape-
forma de pesquisar no já dito, uma chave
interpretativa para me aproximar de partir daí, arriscando-se mais, aplicando, nas aos “iniciados” ou “inspirados” imu-
possíveis entreditos. Isso porque se nada agenciando e operacionalizando concei- nes à crítica desqualificadora, esta sim
poderia parecer tão claro e natural como tos e estruturas afastados da esfera e do produto da inveja, desvio da psique facil-
a confluência entre produção/crítica campo de conhecimento nos quais foram mente verificável...).
literárias e teoria/prática psicanalíticas – formulados e desenvolvidos. Mas também vieram reais “contri-
ambas lendo o humano pelo exercício Personagens literárias passam a ser buições” dessa articulação entre discipli-
radical da Palavra –, poucos temas são tratadas como pessoas psicanalisadas, nas, da associação entre técnica psica-
tão polêmicos e têm sido merecedores de “seres de papel”; a moda – periodi- nalítica e procedimento analítico da obra
tão contundentes divergências no âmbito camente revisitada – da publicação de literária. Tomada como teoria exegética
da teoria literária. No mínimo, desde biografias (“autorizadas” ou não) quer e reconhecidos seus limites como método
Freud. reforçar e estreitar vínculos entre vida e adjuvante de investigação e desven-
O célebre vienense partiu não poucas obra, mal disfarçando uma curiosidade damento do literário, a psicanálise tem
vezes da literatura para justificar, ilustrar voyeurística travestida do interesse em ajudado a compreender, por exemplo,
e até mesmo construir conceitos de sua buscar, nos textos, manifestações “con- que, inscrito na e como “letra”, o desejo
teoria: o texto literário servia-lhe, assim, cretas” – e, portanto, “documentais” – de vincula-se a uma pluralidade de elemen-
como pretexto e suporte comprovativo complexos e neuroses de tal ou qual tos e gera ricos sentidos, aterrados, porém
para um exercício teórico magistral, mas escritor “desequilibrado”. Como conse- retomados e reconstruídos na interação
“paralelo” à obra de arte. No registro qüência, proliferam estudos críticos que entre o escrito e quem o lê. Personagens
particular da literatura, encontrava se querem verdadeiras e eficazes descrições são detidamente estudadas como impor-
antecipados e realizados alguns de seus clínicas de casos, atestando – com alarde – tantes elementos da cadeia simbólica da
temas mais caros. Foi assim com o Édipo paralelos entre motivações inconscientes, obra; mecanismos de fascinação e iden-
de Sófocles, com as tragédias de Shakes- atividade literária e fatos da vida. Daí não tificação – ativados conscientemente ou ○ ○

peare, os contos de fadas, lendas e mitos, falta muito para escritores serem taxados não – são arrolados como operantes no
a Gradiva de Jensen, O homem de areia de de “eminentemente psicológicos”, para renovado contrato entre produção e
Hoffmann, Os irmãos Karamasov, de excluir-se o trabalho como força estrutu- recepção; o leitor é destacado como sujei-
Dostoièvski... E, denegando seu talento radora da fatura literária e para a ins- to e objeto no processo de leitura, rele-
para interpretar e compreender a pro- piração – de resto impalpável – ganhar vando-se sua demanda de significação

novembro/99 - CULT 57
ArquivodoEstado/AcervoÚltimaHora Reprodução
Guimarães Rosa

Mário de Andrade

(ou “pulsão de saber”); a forma retoma gia e psicologia – têm servido para cons- e teoria literária para ressignificar aspec-
seu poder de despertar “afetos” e sím- truir verdadeiros retratos do país e de nossa tos de nossa poesia barroca e reinter-
bolos são revalorizados como signifi- peculiar sociabilidade. E aqui, a apro- pretar Graciliano Ramos (com destaque
cantes nos quais se ancoram camadas de ximação de Psicanálise e Teoria Literária para o romance Angústia – tudo indica
saberes e sentidos; reconhece-se na com- mostra-se particularmente rica. que parada obrigatória para quem se
posição da obra o conluio entre ordem e Nos últimos anos, alguns trabalhos aventura nas águas dessa vertente da
acaso; põe-se em relevo a autoria não ape- ilustram essa riqueza: a inspirada – e crítica, visto que livro lido também pelas
nas centrada na pessoa, mas também inspiradora – leitura que João Lafetá duas autoras aqui antes referidas). E,
como marca de emissão nas malhas do realizou da poesia de Mário de Andrade finalmente, Philippe Willemart tem
texto; o sentido é recompreendido como – e, por reflexo, da vida sociocultural da ampliado o alcance de tais estudos inter-
alteridade, construído sempre na articu- primeira metade do século – é hoje guia disciplinares, escavando a espessura dos
lação com o Outro; os processos de ela- indispensável para quem quer que pre- rascunhos e manuscritos literários, tra-
boração onírica (condensação, figurabili- tenda estudar qualquer faceta da extensa zendo à tona condensações e desloca-
dade e deslocamento) são postos em para- obra do escritor; Dante Moreira Leite – mentos, realizando um trabalho arqueo-
lelo com os processos de elaboração poé- ainda que numa vertente diversa – ilu- lógico na busca de rasuras, manchas, cor-
tica; sonhos, lapsos, associações e jogos mina mais discretamente aspectos da pro- tes, substituições e acréscimos a fim de
verbais são analisados se e somente se sa de Alencar e do século XIX; Adélia desvendar “a terceira dimensão da litera-
“fatores internos e singulares dos textos Bezerra de Meneses ajuda a explicar o tura”, a “memória da escritura”, o que se
escolhidos”... fascínio exercido pelas letras das canções revela aquém do princípio do escrever...
Aqui, seria abusar da disposição do de Chico Buarque (decodificando em Mas um estudo monográfico merece
leitor acrescentar a esta lista de ligeiras muitas delas seu “núcleo edipiano” e as destaque especial: o recém-publicado li-
obviedades uma relação da gama de diversificadas nuanças dos “liames inces- vro de Yudith Rosenbaum sobre Clarice
autores e títulos que se tornaram refe- tuosos da afetividade feminina”) e inter- Lispector: Metamorfoses do Mal (Edusp/
rência obrigatória na discussão e efeti- preta bachelardianamente a imaginação Fapesp). Nele, a autora elege como prin-
vação do liame entre literatura e psica- material do mestre João Cabral; Cleusa cipal tema para a abordagem da ficção de
nálise. Remeto apenas ao mais relido – Passos investiga obsessões nem tão miú- Clarice “a presença do sadismo, supos-
pela certeza do prazer lá prometido: aos das de Guimarães Rosa, Clarice Lis- tamente constitutivo da gênese do eu, exa-
textos do próprio Freud (antes do mais, pector e Dyonélio Machado, percebendo minado em suas várias manifestações co-
preciosidades de estilo), de Paul Ricoeur “alteridade e desejo” como “partes indes- mo força mobilizadora do enredo”. Ve-
e de Jean Bellemin-Nöel. trutíveis da organização interna do trabalho mos, então, se adensar, na seqüência dos
artístico”, deslindando o processo de “mas- capítulos, um exercício de crítica, presen-
caramento” e a “teatralização” como meca- ciando a tensão e a resistência que a obra
Um caso brasileiro nismos de reelaboração ou reinvenção de Clarice impõe a quem quer que se
É flagrante a carência, no Brasil, de textual e denunciando o “fascínio pelo aproxime dela com pressupostos teóricos
estudos de psicologia social. Curiosa- elemento obsedante” como suporte da re- cristalizados e certezas fixadas. E estes
mente, esforços bem sucedidos de críticos corrência de imagens e figuras do dis- os méritos maiores de Yudith: saber
literários – apropriando-se de procedi- curso. Mais recentemente, Samira Chalhub recuar, rever, retomar, domar e redire-
mentos e conceitos da história, sociolo- acrescentou a semiótica ao par psicanálise cionar o próprio desejo de abarcar o

58 CULT - novembro/99
Reprodução
Clarice Lispector
○ ○ ○
Para ler Freud
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

As obras completas de Sigmund Freud estão


publicadas no Brasil pela editora Imago,
reunidas em 24 volumes. A mesma editora
lançou, no ano passado, a versão em CD-
Rom das obras completas, que permite
consultas por tópicos e palavras-chaves
dos textos freudianos. As três melhores
biografias de Freud também foram
publicadas no país: A vida e a obra de
Sigmund Freud (Zahar), de Ernest Jones,
Freud, uma vida para o nosso tempo
(Companhia das Letras), de Peter Gay, e
Freud: Vida e agonia (Imago), de Max Schur.
Existem inúmeros estudos sobre psicanálise
que podemos apontar como chave de
acesso às teorias freudianas, entre eles As
idéias de Freud (Cultrix), de Richard
Wollheim, Introdução à psicanálise (Imago),
significado pleno, deixando a obra insti- – definitiva e prazerosa – do Outro; que de Charles Brenner, O prazer de ler Freud
tuir-se como diferença, propondo o diá- lê e grita a negatividade da condição do (Zahar), do psicanalista Juan-David Nasio,
logo quando se efetiva – dramaticamente escritor e do intelectual num país de e dois livros do brasileiro Renato Mezan,
inelutável – o silêncio. excluídos, de macabéas e olímpicos. Freud, pensador da cultura (Brasiliense) e
O tema do Mal vem sendo revisitado É claro que Yudith Rosenbaum tam- Freud: A trama dos conceitos (Perspectiva).
A edição comemorativa de A interpretação
pela crítica como faceta radical da pro- bém corre o risco de rastrear o óbvio
dos sonhos (Imago) encabeça a lista de
dução de Lispector. Destacam-se como quando aplica conceitos freudianos para novos lançamentos na área. A ela, juntam-
motivos em romances, contos e crônicas analisar o comportamento perverso e se lançamentos sobre Freud e sua obra que
curiosos crimes, inarredáveis culpas, irô- sádico de alguns personagens de contos e procuram desvendar o mito do fundador
nicos castigos. Os “tumultuosos emba- romances. No entanto, oferece momen- da psicanálise e os desafios de tradução e
tes entre desejo e lei”, a “perversão como tos iluminados de leitura e interpretação interpretação de seus escritos:
constituinte da personalidade”, a “inevi- quando, com o mesmo instrumental, se • Como Freud trabalhava – Relatos inéditos
tabilidade de a linguagem tocar a esfera propõe a desvendar semelhantes atitudes de pacientes (Companhia das Letras), de
das paixões tenebrosas”, as “ações e afetos e mecanismos na própria escritura, na Paul Roazen
rebeldes aos apelos civilizatórios”, está relação (ou, melhor seria, no embate) en- Descrição dos métodos e técnicas do Freud
terapeuta. Usa como fonte entrevistas com
tudo lá, na obra clariciana, concretizando tre autora e leitor, na manifestação estilís-
25 ex-pacientes de Freud.
uma espécie de exercício de escalas. Mas, tica do que denomina uma “escrita sádica” • Traduzindo Freud (Imago), org. de Darius
então, qual a contribuição desse novo ou “uma linguagem do sadismo”. Ironia Gray Ornston
livro? Por que destacá-lo aqui? e perversidade, grotesco e sublime, entre- Analisa os problemas enfrentados pelos
Porque Metamorfoses do Mal – embora ga e dominação, desejo e tortura, veneno tradutores de Freud para o francês, o inglês
não se proponha explicitamente a isto – e antídoto, estranho e familiar, epifania e e o espanhol.
• As palavras de Freud (Ática), de Paulo
oferece importantes pistas e argumentos destruição vão se articulando na consti- César de Souza
para que se efetive o salto, cada vez mais tuição de “um estilo sádico de narrar”. E Recenseamento do vocabulário freudiano
necessário e inadiável, da fortuna crítica nós, leitores, temos o prazer (sádico?) de a partir das edições inglesa e francesa,
sobre a produção da autora de origem acompanhar como a crítica reage às apontando caminhos para uma tradução
ucraniana, falecida em dezembro de provocações de Clarice, como “luta” com para o português.
• As guerras da memória – O legado de
1977: salto que romperia com uma reni- o texto respeitando-lhe a posição
Freud em xeque (Paz e Terra), de Frederick
tente obnubilação que parece impedir que soberana. Visualizamos um processo: o Crews
se leiam, em linhas e entrelinhas, indícios de como uma leitora lendo se lê e nos Reúne dois artigos, “O Freud
claros de uma escritura radicalmente (se) diz seu percurso. desconhecido” e “A vingança do
preocupada em desvendar componentes Um alívio. Se na obra de arte repousa reprimido”, publicados pelo autor em 1993
autoritários de nossa sociedade; que mesmo uma promessa de felicidade, na no suplemento New York Review of Books,
em que Crews faz acusações à obra e ao
denuncia – em fatos de enredo e dramas crítica talvez seja possível ainda caráter de Freud.
de linguagem – uma peculiar dificuldade vislumbrar promessas do novo. • Porque Freud errou (Record), de Richard
de se constituir como sujeito e de se fixar Webster
um ponto de vista; que dramatiza uma Gilberto Figueiredo Martins Estudo que aponta erros de diagnóstico de
sociabilidade construída e configurada doutorando em Literatura Brasileira na USP, autor da
dissertação de mestrado As vigas de um heroísmo vago – Três
Freud e critica procedimentos não-
científicos como a hipnose.
como luta de morte e desejo de exclusão estudos sobre “A maçã no escuro”, de Clarice Lispector

novembro/99 - CULT 59
Entrevista

Democracia e sintoma ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Manuel da Costa Pinto

Leia a seguir uma entrevista com o psicanalista francês Marie-Jean Sauret


sobre o futuro da psicanálise e sobre as implicações éticas e políticas de um
saber que se recusa a transformar o ser humano em objeto de manipulação
da ciência e do mercado

O sujeito, tal como concebido pela enxergar no homem um “sujeito da falta”, contexto, a psicanálise poderia tornar-se
psicanálise, é o sujeito da democracia. É que nunca poderá ser reduzido a um também ela um objeto do mercado, um
essa a convicção de Marie-Jean Sauret, saber e que resiste a essa metamorfose do produto, um suplemento da alma que se
psicanalista francês que esteve no Brasil sujeito em objeto – metamorfose que pode vender – o que não é muito diferente
no último mês para uma série de con- mercantiliza o “gozo” e está no substrato daquilo que perfaz a eficácia dos
ferências a convite da Associação dos Fó- de flagelos sociais como a clonagem e o medicamentos.
runs do Campo Lacaniano. Professor de tráfico de órgãos (forma extrema de CULT Os medicamentos podem
Psicologia Clínica e Patológica da Uni- consumismo) ou como a maré montante erradicar a subjetividade e a autonomia
versidade de Toulouse-II, membro da do racismo (que, num contexto de crise da consciência?
Association des Forums du Champ La- econômica e desemprego, faz do “outro”, M.-J.S. Num plano prático, os
canien, autor de La psychanalyse (Éditions do “estrangeiro”, um “ladrão do gozo”). problemas dos quais se ocupa a
Milan; co-autoria de Christiane Alberti), Essa apologia de uma determinada forma psicanálise enfocam o sujeito em sua
Freud et l’inconscient (Éditions Milan), De de sujeito, portanto, faz da psicanálise “o forma de habitar o mundo; o sujeito sofre
l’infantile à la structure (Presse Univer- sintoma de uma certa qualidade dos laços em seu confronto com o mundo e com as
sitaire du Mirail) e Psychologie clinique – sociais”, cujas distorções o psicanalista pessoas, apresentando sintomas que não
Histoire et discours (Presse Universitaire pode assim detectar – conforme se vê na compreende. Nesse sentido, devemos
du Mirail), integrante da equipe de edi- perturbadora análise que Sauret faz dos considerar que os medicamentos podem
tores da revista Barca! – Poésie, Politique, assassinatos de crianças no Brasil. interromper a angústia, atenuando mani-
Psychanalyse, Sauret vê a psicanálise não • festações sintomáticas. O medicamento
apenas como um instrumento de cura, CULT Qual é o futuro da psicanálise certamente pode fazer isso. Mas a questão
mas também como o interpretante de um diante da atual manipulação da psique que se coloca é saber se, assim fazendo, o
contexto social e político que oferece aos pelos medicamentos psiquiátricos? sujeito não se priva dos meios que ele tem
indivíduos a ilusão do bem-estar (por Marie-Jean Sauret Não acredito que para interrogar sua relação com o mundo.
meio dos remédios psiquiátricos) e da os medicamentos enquanto tal sejam um Dentro dessa lógica, o medicamento é
satisfação dos desejos (por meio do canto obstáculo para a psicanálise. O que é um algo muito mais próximo de uma droga
de sereia do mercado), ao preço da elusão obstáculo para a psicanálise é, sobretudo, do que de um verdadeiro medicamento.
de sintomas que, revelando a cada sujeito o contexto que faz com que acreditemos Há aí uma questão de fundo. A psi-
seu vazio estrutural e sua singularidade, nos medicamentos como uma solução. canálise nasceu dentro de um deter-
poderiam ser uma forma de articulação A questão se coloca no plano dos tipos minado contexto e de uma determinada
ao outro e de estabelecimento de laços de laços sociais em que vivemos, relação com a ciência. Quando falo da
sociais democráticos. Na entrevista a dominados pela ciência e pelo mercado, ciência que engendrou a psicanálise,
seguir, Marie-Jean Sauret mostra como e que nos fazem acreditar que aquilo que estou falando da ciência moderna, isto é,
foi a partir de A interpretação dos sonhos nos falta poderá ser fabricado pela a ciência do seculo XVII, que, de um
(tema deste “Dossiê” da CULT) que ciência, que aquilo que nos falta poderá lado, descobre que o saber tem limites,
Freud e, na sua esteira, Lacan puderam ser comprado no mercado. Dentro desse que as coisas não são verdadeiras tão-

60 CULT - novembro/99
DominiqueFingermann

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

somente porque Aristóteles ou Sócrates falarem; Newton era um alquimista; hipnotizar e que, quando estavam
o disseram; e que, de outro lado, percebe quando se abria um animal ou quando se hipnotizados, eles não queriam obedecer
com Descartes que, se o saber não é certo, observava o vôo dos pássaros, tinha-se a tais ordens. E Freud considerou que eles
isso ocorre por causa do sujeito. A partir um oráculo. A ciência silenciou tudo isso, tinham razão, que o sujeito era aquele que
do momento em que colocamos a questão e a psiquiatria, mais especificamente, resistia ao médico, aquele que queria
“como posso estar certo disso?”, pas- percebe que de alguma forma o sujeito salvar sua própria palavra, aquele que
samos a não ter certeza de nada. Quando continuava a falar e tenta calá-lo fazendo continuava a falar contra a sugestão e
Descartes diz “eu penso e duvido”, isso dele um modelo médico. contra a hipnose. O gênio de Freud está
coloca o saber em desordem, mas ao CULT A psicanálise rejeita esse modelo no fato de ele ter deixado essa pessoa falar,
mesmo tempo é uma prova da existência de ciência? de ter considerado que ela o “ensina” a
do sujeito; portanto, torna-se necessário M.-J.S. É nesse contexto que aparece partir de seu sintoma, a partir daquilo que
fazer com que o sujeito saia do saber para Freud (embora ele seja muito anterior aos sofre. A partir daí, o sintoma muda
que o saber seja objetivo, generalizável e medicamentos usados pioneiramente em completamente de natureza. Na psiquia-
transmissível. Ao fazer essa operação, 1952 pelos psiquiatras Jean Delay e Pierre tria, na medicina, o sintoma é sinal de
portanto, ele isola o sujeito. Descartes nos Deniker no tratamento de perturbações uma doença, então dá-se um medica-
leva a esse paradoxo: é necessário um associadas, por exemplo, à esquizofrenia). mento para eliminá-lo. No campo da
sujeito para fazer a ciência, mas é preciso Freud surgiu quando se praticava o psicanálise, o sintoma é um enigma; nós
retirar o sujeito da ciência constituída. É método da hipnose e da sugestão no nos perguntamos “o que me acontece? o
sobre a base desse procedimento cien- tratamento de patologias mentais e que isso quer dizer?”, e então nos ende-
tífico que se desenvolvem, por exemplo, descobriu que os sintomas histéricos reçamos a alguém que é um suposto-
os modelos de explicação da medicina poderiam estar ligados a uma lembrança. saber e que não é nada além de um
orgânica. A partir daí, porém, aparece Trabalhando com Charcot, ele viu como suposto-saber. De todas as práticas, a
uma série de patologias que não se um paciente hipnotizado ao qual se dizia psicanálise é a única que dá a palavra ao
explicam pelo organismo e, nesse mo- “você está com calor, você vai abrir a sujeito.
mento, surge a idéia de associar os fatos janela quando o acordarmos” de fato CULT O analisado permanece sendo
de que (1) retiramos o sujeito da ciência acordava e abria a janela sem se lembrar um sujeito, e não um objeto do psicanalista?
e de que (2) existem patologias que dessa ordem – o que era a prova de que M.-J.S. De todos os objetos da ciência,
escapam à ciência, para pensar que se uma idéia inconsciente pode determinar o sujeito da análise é o único que continua
tratam de patologias do sujeito. É assim um comportamento consciente. Essa a falar após passar pela ciência. Todos os
que se inventam a psicopatologia e o que constatação orientou uma prática de outros são calados. Os animais não falam
chamaremos de psiquiatria, que vai sugestão em que se tentava hipnotizar os mais, os astros não falam mais – ou falam
conceber novamente o sujeito como um doentes para fazê-los encontrar em linguagem matemática, porque a
objeto. O grande triunfo da ciência é lembranças que pudessem explicar seus ciência descobre que, se queremos que a
fazer calar tudo aquilo que fala. Kepler sintomas. Mas Freud percebeu então que natureza responda sem nos atrapalhar, é
era um astrólogo que fazia os astros muitos doentes não queriam se deixar preciso lhe colocar questões em lin-

novembro/99 - CULT 61
Fotos:Reprodução
Freud, em 1920

Jacques Lacan

guagem matemática. Há uma psicologia com que você e eu não sejamos confun- também na Europa). Esse mercado é
que se obriga a tratar o sujeito como um díveis e que cada um seja um enigma para algo que vai contra o particular, pois os
objeto. Isso produz um saber sobre o si mesmo. Ele tem uma pequena idéia de sujeitos são homogeneizados, reduzidos
psiquismo, sobre o indivíduo concebido como é feito este enigma, o que permite a objetos, uniformizados. Podemos tomar
como um objeto, mas não um saber sobre colocar a questão dos laços sociais de uma isto também do ponto de vista daqueles
o sujeito. O saber produzido pela forma particular. Cada um de nós se que não têm acesso ao mercado, daqueles
psicanálise se interessa por aquilo que coloca a questão de como alojar num que sofrem esta falta de gozo – numa
ninguém pode fazer no nosso lugar, que é campo social aquilo que tem de mais lógica que permite dizer que se você não
falar. Na psicanálise, tomamos a língua e particular sem se dissolver nesse campo tem gozo é porque um outro roubou esse
a subvertemos, nós a transformamos, (adotando o conformismo ou o pensa- gozo. Na Europa, nos momentos de
inventamos uma outra língua. É preciso mento único, o prêt-à-porter), resistindo crise, isso permite identificar os estran-
distinguir o indivíduo (orgânico, bioló- a ele mas sem com isso fazer que esses geiros, por exemplo, como os ladrões do
gico, com determinações psíquicas) do laços sociais se estilhacem. O que a gozo. O racismo tem uma razão estru-
sujeito. O sujeito é o sujeito da palavra: é psicanálise freudiana descobre é que cada tural e podemos esperar hoje uma ascen-
o único objeto que pode colocar para si sujeito resolve seu problema com seu são do racismo – que é um correlato das
mesmo a questão que a ciência coloca a sintoma. O sintoma é um meio particular relações sociais capitalistas. Dentro deste
propósito dos objetos. Mas o sujeito não de se articular ao outro. A presença, a contexto, a psicanálise é um sinal de que
está senão representado nas palavras. existência da psicanálise é de alguma ainda é possível alojar o particular no
Quando nós falamos, o que encontramos forma a prova de que no meio social em mundo. Ela permite às pessoas escapar
nas palavras é que nós “faltamos” – e é que habitamos é possível alojar o nosso do capitalismo – não que necessaria-
isso que Freud chama de desejo. Dizer particular. Mas aí nós nos chocamos com mente se mude o sistema econômico, mas
que “eu falto” ou que “eu desejo” é a mes- a natureza das relações sociais contem- de forma que os objetos com os quais as
ma coisa: está ligado ao fato de falar e é porâneas, pois essas relações exploram o pessoas gozam não sejam um pedaço de-
incurável. Freud é o descobridor dessa fato de que nós somos desejantes para nos las mesmas, um complemento de ser que
estrutura do sujeito do desejo, do sujeito fazerem acreditar que a falta não é lhes falta.
da fala, do sujeito do ato – e, forçando estrutural, mas pode ser preenchida pelo CULT Como se dá, objetivamente, essa
um pouco, do sujeito da democracia. mercado. Isso paradoxalmente vai contra vivência “democrática” do gozo?
CULT Como vincular esse sujeito da os laços sociais, pois nos faz acreditar que M.-J.S. Isto coloca uma nova questão:
psicanálise à noção de democracia? podemos nos servir desses laços sem o que essas pessoas vão fazer com os seus
M.-J.S. O que é a psicanálise? Uma passar pelo outro. A psicanálise nos diz desejos, com suas particularidades? Hoje
cura. O neurótico, por exemplo, é um que o sintoma é uma forma de se articular eu visitei o Masp e vi na exposição
sujeito que apresenta sintomas e que se ao outro. O capitalismo nos diz que não “Picasso – Anos de Guerra 1937-1945”
pergunta quem ele é, e que vai descobrir, temos necessidade do outro, que podemos [até 11 de novembro] um painel com 32
ao final, que a razão de seu incômodo é nos servir e tomar o objeto que nos retratos de Dora Maar em que Picasso
que faz com que ele não tenha resposta convém. O capitalismo faz do indivíduo torce a imagem, deforma a representação
para a questão de quem ele é – pois esta um objeto do mercado – e neste contexto até provocar gritos de horror no público.
razão está ligada a sua estrutura como podemos compreender os casos de clona- Picasso encontrou uma forma astuciosa
sujeito. Ele pode descobrir aquilo que há gem, de tráfico de crianças e de órgãos de se desembaraçar da imagem preser-
nele de mais particular, aquilo que faz (que não existe apenas no Brasil, mas vando sua ossatura – e esse procedimento

62 CULT - novembro/99
Reprodução

Três retratos de Dora Maar, pintados por Pablo Picasso

é seu estilo, sua forma de alojar o mais ao Brasil. Quando falo das sociedades em para nos dizer ao final que o inconsciente
particular do que ele é, fazendo disso uma que a psicanálise é impossível, penso dos psicanalistas, à diferença do incons-
obra que não existia até então na cultura. essencialmente no nazismo e no ciente dos psicólogos (que já existiam), é
Picasso não fez análise, mas é desse sujeito stalinismo, mas também nos países em um inconsciente que jamais se tornará
que fala a psicanálise, desse sujeito capaz que o fundamentalismo religioso consciente, que o sujeito está apenas
de inventar uma solução para alojar no predomina (pois o fundamentalismo não representado na linguagem, que seu “ser
mundo aquilo que há de mais particular é a religião, mas uma religião a partir da de gozo” nunca encontrará palavras que
em si mesmo. Esta é a solução de Picasso ciência, um saber que vem preencher o o reduzam a um saber. O sujeito é um
– e alguém que pintasse hoje como vazio da ciência e que diz ao sujeito aquilo buraco, um vazio no saber. A descoberta
Picasso estaria apenas repetindo Picasso. que ele é). Esses países perseguem todos de Freud é que o recalque originário, que
A pintura deve ir contra a pintura, a poesia aqueles que falam: os poetas, os jorna- nunca é suprimido, é um vazio no saber e
deve ir contra a poesia. E a psicanálise, listas, mas também as mulheres (porque que o sujeito vai procurar preencher esse
que vai contra a língua comum, deve ir elas presentificam uma dimensão indige- vazio com representações que por sua vez
contra a própria psicanálise. Ela deve rível da sexualidade) e as crianças (por- serão também recalcadas. O recalque é
visar esse ponto de reinvenção. No mais que elas presentificam uma alteridade, de certa forma uma tentativa de cura e o
íntimo da experiência encontramos algo uma promessa de novos laços sociais). E, que conseguimos suprimir pela inter-
que a psicanálise mesma não pode digerir, nesse caso, eu penso no Brasil, porque pretação é esse recalque secundário.
que vai contra ela mesma. É o que há de existe aqui este problema do assassinato Freud dizia que o retorno do recalcado é
mais particular em cada sujeito. A das crianças que é um sintoma de algo a mesma coisa que o recalque. Para Freud,
psicanálise é a teoria que leva o sujeito que seria errado considerar simples- os sonhos e as associações feitas a partir
até o ponto em que ele pode dizer que a mente como um problema de ordem so- dos sonhos permitem a descoberta de um
psicanálise já não lhe responde. É esse cial ou econômica. Acho que é um sinto- desejo inconsciente que é expresso ao ser
buraco que a psicanálise sustenta dentro ma mais grave da degradação dos laços sonhado – mas que não é realizado. A
da sociedade. Os psicanalistas são o sociais. E eu falo no Brasil sem esquecer realização do sonho é o fato de ser sonha-
sintoma de uma certa qualidade dos laços que a França é o terceiro país do mundo do; o sonhador sonha a solução do que
sociais, pois enquanto esse sujeito da em número de suicídio de crianças. O ele é como sujeito. A interpretação nos
psicanálise existir potencialmente, ele suicídio é a primeira causa de morte de ensina sobre a posição do sujeito em rela-
existirá de alguma forma em algum lugar, crianças na França. ção à linguagem, em relação ao incons-
mesmo entre aqueles que não fazem CULT Qual é a sua leitura de A ciente, em relação a seu gozo. O termo
psicanálise. É por isso que Lacan disse interpretação dos sonhos de Freud? gozo foi um dos termos trazidos por Lacan
certa vez que a psicanálise é o pulmão M.-J.S. Por um lado, A interpretação dos para “freudianizar” o sujeito da falta. Nós
artificial do laço social contemporâneo – sonhos é o livro com o qual Freud nos chamamos de gozo a essa substância que
e por isso eu dizia que o sujeito da comunicou os fragmentos de sua própria o sujeito encontra somente em sua forma
psicanálise é o sujeito da democracia. análise com Fliess; por outro, Freud negativa, que lhe falta e causa o desejo.
Poderemos retomar isso e mostrar que a descobre ali algo que Lacan formulará O que chamamos de “ser do gozo” é uma
psicanálise é impossível nos países mais tarde: que o inconsciente é estru- falta, e no final da cura cada um pode ter
totalitários, pois nestes países vai se atacar turado como linguagem. O fascinante uma idéia do tipo de gozo com que
aquilo que representa a alteridade dentro nesse livro é que ele escreve quinhentas pensou sua estrutura, fabricou seus sinto-
dos laços sociais. Isto talvez diga respeito páginas sobre a interpretação dos sonhos mas e inventou sua soluções.

novembro/99 - CULT 63
Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP 01326-010). Mensagens
via fax podem ser transmitidas pelo tel. 011/251-4300 e, via correio eletrônico, para o e-mail “lemospl@netpoint.com.br”.
Os textos publicados nesta seção poderão ser resumidos ou publicados parcialmente, sem alteração de conteúdo.

de fornecer alternativas à história e ao


Errata quotidiano, a crítica literária perdeu o Criação
Por um erro de edição da CULT, o texto “O privilégio de instância de mediação entre Gostei da sinceridade e da lealdade com
surto da ficção e a capitulação da crítica”, os escritores e o público leitor. Essas que vocês lidam com a opinião do leitor,
do ensaísta português Abel Barros Baptista, transformações afectaram o panorama da pois funciona quase que como ombuds-
publicado no Dossiê da CULT 27, saiu com literatura portuguesa e afectam-no ainda. man como o que escreveu Regina L. Santos
os dois últimos parágrafos truncados. Além Aliás, que diabo! foi o mundo que mudou: a respeito do escritor Amador Ribeiro Neto,
disso, Abel Barros Baptista é diretor-adjunto e perante isso, os termos respeitosos ou as criticando e fazendo insinuações ao editor.
da revista portuguesa Colóquio-Letras e não celebrações levadas do orgulho nacional Não os conheço, por isso não comento;
diretor, como publicado. A diretora da valem pouco.” apenas a justiça com que a Revista teve ao
Colóquio é Joana Morais Varela. publicar dando-lhe, inclusive, maior
Leia a seguir o trecho correto do espaço que ao Editor.
Borges
texto do crítico. Renato Souza Ferraz
Escrevo mais uma vez para parabenizar a Maceió, AL
“Mas o episódio realmente significativo, e
equipe da CULT pelo excelente trabalho.
que aliás marca a viragem da euforia para
Dou destaque ao dossiê sobre o gênio
a disforia, ocorreu em 1989, quando da Lygia Fagundes Telles
argentino Jorge Luis Borges (CULT 25).
atribuição do prémio relativo a 1988. O
Informo que estive participando das home- Preparem-se para receber toneladas de cartas
júri, bem afinado pelo espírito eufórico do
nagens do centenário do escritor realizadas e e-mails parabenizando-os pela magnífica
tempo, fazendo praça de um preocupante
em Buenos Aires e fiz questão de levar edição CULT 23, que trouxe nossa admirável
antiintelectualismo, recusou o prémio a um
exemplares dessa revista para divulgação Lygia Fagundes Telles no centro da matéria.
dos romances mais extraordinários da
em alguns espaços culturais. Acompanhei a trajetória turbulenta e muito
literatura portuguesa recente, Missa in
Albis, de Maria Velho da Costa, para o André Poiato interessante da resenha do livro Ensaio de
conceder a Gente feliz com lágrimas, de São Paulo, SP ponto e veio-me uma frase de nosso
João de Melo, afinal um fruto cediço do contexto literário: “Há injustiças e
neo-realismo. Foi a consagração da desmandos tão flagrantes que carecem de
tendência regressiva. A capitulação da Drummond ser assoalhados perante a opinião com a
linguagem castigadora do doesto e do
crítica deu-se em espectáculo, e começou Meu pedido foi atendido (seção “Do sarcasmo.” (Padre Senna Freitas). De fato, as
a fazer-se visível o rol dos equívocos: os Leitor ”, CULT 23), e brilhantemente! situações se assemelham. A crítica ultrapassa
“termos respeitosos”, além de Drummond merece até mais outro “Dossiê” a análise do conjunto da obra literária, do
acriticamente cúmplices de um regresso a (CULT 26). Faltam ainda Leminski, Lorca e estilo e da linguagem, permeando pelos ecos
formas serôdias, implicavam de facto a o hai-kai do Japão aclimatado ao Brasil. Mas de erros ortográficos e supostas falhas
exclusão do romance problemático, crítico vamos sem pressa. Adorei também o painel gráficas. Tudo impregnado por desafetos
e experimental, capaz de interrogar o seu da crítica literária no Brasil com o Benedito pessoais mútuos. Com o caso encerrado,
estatuto como género e a sua função na Nunes e tudo sobre (e) a poesia de Horácio podemos emergir, contando agora com um
sociedade, ou seja, a crítica excluía a Costa. Toda a CULT está irrepreensível. material crítico digno de Júlio Ribeiro e do
crítica: em nome de uma literatura fácil e Emocionante, simplesmente emocionante Padre Senna Freitas. Assim como a deles, a
complacente, inconsciente de si própria, o Pasquale Cipro Neto comentando polêmica entre Lacerda e Giron nos mostra
animada pelos fumos precários das preo- “Quadrilha” e outras invenções do Drum- que o leitor é o único apto a julgar esses
cupações do momento, pela demagogia mond. casos, pois ele é quem de fato escolhe a
da missão e pela ilusão da representação Aclyse de Mattos qualidade do que lê.
sem mediações nem artifícios. A partir Rosana Rocha Siqueira
Cuiabá, MT
daqui, a unanimidade dos “termos respei-
Santos, SP
tosos” seria impossível, e da euforia caiu-
se na depressão melancólica que o Nobel Vocês da CULT estão fazendo a melhor
de Saramago veio interromper num mo- revista de literatura! Densa, moderna, Pedro Bial
mento fugaz. prática. Conteúdo e forma (ainda é preciso
fazer essa distinção?). A presença de Após inúmeras entrevistas oportunas, como
Mas nada disto foi causado por falta de
Drummond em “alguma poesia”, em toda as de Augusto de Campos, Antonio Negri,
talento, de inteligência, de competência ou
a poesia brasileira moderna e pós-moderna Dora Ferreira da Silva e Lygia Fagundes Telles,
sequer de comparência, pelo menos no
foi das coisas excelentes da CULT 26. Mas, a revista CULT foi infeliz ao entrevistar Pedro
que diz respeito aos críticos. Na verdade,
por favor, vamos pôr o preto no branco? Bial (edição de julho de 99). O universo
aqueles anos 80 foram antes anos de
Os fundos preto, cinza ou verde foram “a literário e cultural brasileiro é visto e diver-
inexorável mutação na instituição literária.
pedra no meio do caminho” para os meus sificado, podendo a revista prescindir de tal
A lógica industrial chegou ao mundo
editorial e literário, o sucesso de livraria olhos cataráticos. (Pensem neles.) Agrade- cometimento. Espero que possam manter
adquiriu um peso até aí desconhecido na cimentos muitos. sua excelência nas próximas edições.
edição e circulação das obras, o romance Ivanira Bohn Prado Marcelo Milan
encontrou concorrentes mais fortes na tarefa Rio Claro, SP por e-mail

64 CULT - novembro/99

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