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PERFORMANCES CULTURAIS:
O OLHO PELO QUAL ENXERGAMOS
A NÓS MESMOS*
DOI 10.18224/frag.v28i3.6628
O
presente artigo resulta de reflexões desenvolvidas nas disciplinas “Teorias e Práticas
da Performance” e “Cultura, Arte e Estética” oferecidas pelo Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Universidade Federal
de Goiás (UFG), ministradas pelos respectivos professores Dr. Robson Corrêa de Camargo
e Dr. Márcio Penna Corte Real.
Pretende-se debater aqui sobre o conceito de performances culturais, assinalando a
cultura como um ato reflexivo sobre as próprias práticas sociais e culturais. As performances
atribuem aos indivíduos um duplo posicionamento de plateia e, ao mesmo tempo, de atores,
pois, quando as pessoas produzem eventos performáticos, deixam descobertas as estruturas da
sociedade que estão em movimento, revelando o quanto os processos sociais são dinâmicos
e instáveis. Ler a cultura enquanto performance cultural é entendê-la como representação
PERFORMATIVIDADE REFLEXIVA
O termo “Performances Culturais” foi cunhado por Milton Singer em 1955. Sin-
ger, em seu trabalho de campo na Índia, observou que as unidades de pensamento não são
unidades de observação. O autor encontrou em seu caminho dados da experiência, deno-
minados por ele de unidades de observação cujas metodologias formuladas até então pelas
ciências sociais e antropologia não poderiam dar conta da complexidade destes fenômenos
encontrados em campo. Neste contexto, as performances culturais foram tomadas como ob-
jeto de análise das Estruturas de Tradições da Índia e como perspectiva metodológica para
analisar as unidades de observação levantadas em campo.
As Performances Culturais incluem aquilo que nós ocidentais frequentemente de-
nominamos de, “por exemplo, peças, concertos e leituras. Mas eles (os orientais) incluem
também orações, leituras rituais e declamações, ritos e cerimônias, festivais, celebrações e
todas aquelas coisas que nós frequentemente classificamos sob o ponto de vista da religião e
rituais em vez do cultural e artístico” (SINGER, 1972, p. 71)1.
O estudo das performances analisa as interligações entre as esferas tomadas de
modo binário dentro de um contínuo cultural, como, por exemplo, a cidade e o campo, o
popular e o erudito, as pequenas e grandes tradições etc, revelando as relações de interdepen-
dência instauradas entre estas esferas.
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Victor Turner (1988) propõe que os gêneros performativos (alguns foram citados
acima) não são simplesmente expressões ou reflexos do sistema social ou cultural ou apenas catego-
rias e variantes de códigos de relacionamentos, mas um movimento reflexivo e recíproco, isto
quer dizer: as performances culturais podem ser tomadas como pontos de reflexão e crítica,
ou seja, é a maneira como as sociedades interpretam, ressignificam, e integram-se a sua pró-
pria cultura e produzem História.
Turner (1988) afirma que as performances podem ser compreendidas como even-
tos que não são organizados, tais como o fluxo da vida cotidiana, eles estão integrados à vida
cotidiana, mas não seguem a mesma dinâmica e, por isso, não podem ser encarados como
reproduções imagéticas da realidade.
As performances são eventos descontínuos realizados em intervalos de tempos de-
terminados e espaços separados das experiências diárias, mas fazem parte da própria vida
social (TURNER, 1988). Quando uma pessoa testemunha ou participa de uma performan-
ce, ela se envolve num ato reflexivo de sua própria cultura, ou seja, elas estão atribuindo
significado a suas próprias práticas como membros de determinada comunidade. Por isso, é
possível afirmar que as performances culturais são os “olhos” pelos quais a cultura enxerga a
si mesma e vai se ressignificando pelas casualidades emergentes no contexto social dentro do
qual é produzida.
Por isso, o caráter reflexivo das performances não pode ser entendido como um
simples reflexo, ou mesmo uma resposta automática a estímulos externos, mas uma atividade
inventiva, que agrega seus fragmentos para manter, nem sempre coerentes, mas coesos, os
elementos que constituem a cultura. Reflexivo não pode ser entendido como duplicação da
realidade, um realismo cultural, mas uma ação de moldar a matéria da cultura dentro dos
processos sociais.
A cultura é reflexiva porque no seio dela podemos perceber as tensões e os processos
de dominação estabelecidos na sua formação. Marx e Engels (1974) assinalam que “a classe
que dispõe de meios materiais, dispõe ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual,
de maneira que, em médias, as ideias daqueles a quem são recusados os meios de produção
intelectual estão desde logo submetidos a essa classe dominante” (MARX; ENGELS, 1974,
p. 22).
As ideias hegemônicas que circulam em um contexto cultural impõem-se como
grandes tradições, deixando à margem manifestações e produções culturais que viveram sob a
fronteira da escrita. Entretanto, os estudos das performances culturais permitem “repensar o
processo de formação de toda cultura que viveu e ainda vive sob o limiar da escrita” (BOSI,
1992, p.324). É preciso problematizar os binarismos e as barreiras instauradas pela domina-
ção de uma classe social sobre outra.
A reflexividade das performances é uma maneira de um sujeito representativo do
grupo ou o próprio grupo voltarem-se para seus próprios processos sociais. A performance
realiza um ato de “captação que faz dos dados objetivos da realidade, como dos laços que
prendam de um lado ao outro ou de um fato a outro, sendo naturalmente crítica, por isso,
reflexiva” (FREIRE, 1999, p.40). Nisso o ser humano projeta-se sobre sua própria realidade
como agente e espectador ao mesmo tempo.
Muitas performances marcam passagens, momentos de transporte, de atuação cole-
tiva. Performances podem colocar os participantes numa situação de liminaridade, pois, além
de serem desempenhadas em espaços específicos, muitas delas produzem espaços “ficcionais”
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onde as testemunhas e performers são inseridos. As performances podem ser caracterizadas
como situações de suspensão nas quais os seres humanos vivenciam, encenam, desempenham
seus mitos, suas crenças, seus valores culturais.
Por esta razão, as performances são movimentos progressivos que se voltam sobre
si mesmos, alterando seu desenvolvimento e colocando todas as coisas em um modo subjun-
tivo, que expressa desejo, hipótese, “em vez de declarar real, a liminaridade e os fenômenos
liminares, dissimulam todos os sistemas factuais e do senso comum em suas composições e
‘jogam’ com eles de uma maneira nunca encontradas na natureza ou na cultura, pelo menos
no nível ou na percepção direta” (TURNER, 1988, p. 25)2.
A espetacularidade pública dos gêneros performativos absorve os olhares das mas-
sas, incluindo-os, muitas vezes, na ação, não mais como simples espectadores, mas como co-
autores do evento - tomando como base lugares abertos no meio das cidades, como quadras,
praças ou em vilarejos.
As performances podem ser eventos que transformam e transportam pessoas de
uma estrutura a outra da vida social. Elas permitem uma partilha mútua de experiências en-
tre audiência e performers. Abrem-se para o envolvimento coletivo, para sociabilidades, para
a partilha de sensações e experiências estéticas. Há grandes gêneros, como carnaval, rituais,
teatro, espetáculos abrem-se para o imprevisto, para a sempre improvisação, um momento de
“subversão” da ordem cotidiana instaurada.
Antropologia Teatral é o estudo do comportamento cênico pré-expressivo sobre o qual estão basea-
dos diferentes gêneros, estilos, papeis e tradições pessoais e coletivas. No contexto da Antropologia
Teatral, a palavra ‘performer’ pode significar ‘ator ou dançarino’, ambos masculinos e femininos.
‘Teatro’ pode significar ‘teatro e dança’3 (BARBA, 2005, p. 9).
Não é que um performer deixa de ser ela ou ele mesmo quando ela ou ele se tornam outros – eus
múltiplos coexistindo em uma tensão dialética não resolvida. Assim como uma marionete não
deixa de ser ‘morto’ quando é animado, o performer não deixa de ser, em algum nível, seu eu
comum quando ele é possuído por um deus ou interpreta o papel de Ofélia (SCHECHNER,
2011, p. 215).
O discurso natural(izado), unificador, da “nação”, dos “povos” ou tradição “popular” autêntica, esses
mitos incrustrados da particularidade da cultura, não pode ser referências imediatas. A grande, em-
bora desestabilizadora, vantagem dessa posição é que ela nos torna progressivamente conscientes da
construção da cultura e da invenção da tradição (BHABHA, 2014, p. 277).
Manifestação cultural criada por afrodescendentes, o tambor de crioula é uma dança popular muito
conhecida e apreciada no Maranhão. Assemelha-se a outras danças como o samba de roda da Bahia,
o jongo do Sudeste ou o batuque paulista que se caracterizam pela umbigada ou punga, contato
frente a frente entre duas pessoas na dança. A palavra crioula relaciona-se com o papel da mulher, e
tambor deriva da importância básica deste instrumento musical na dança (FERRETTI, 2002, p. 2).
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum
de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa
arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético ela renova o passado,
refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente.
O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.
Abstract: the present paper intend to discuss about the concept of cultural performances, in order to
understand the culture how a place to reflection of the human practices. The performances positions
individuals who participate as much as spectators as agents of its owns social process, because, in
its reflexives movements, expose the structures of the society and of the culture. It is worth pointing
out the culture is in movement constant, it is dynamic and unstable, and not must to be viewed
as something fixed and immutable. This is the perspectives analyzed here, taking into account the
approach of the cultural performances as an interdisciplinary field.
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