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HISTÓRIA E DIREITO

Quilombolas, Congadas
e Cultura Afro-brasileira
no Alto Paranaíba - Minas Gerais

Jeremias Brasileiro & Vanilda Santos


HISTÓRIA E DIREITO
Quilombolas, Congadas
e Cultura Afro-brasileira
no Alto Paranaíba - Minas Gerais
Jeremias Brasileiro & Vanilda Santos

HISTÓRIA E DIREITO
Quilombolas, Congadas
e Cultura Afro-brasileira
no Alto Paranaíba - Minas Gerais
História e Direito: Quilombolas, Congadas e Cultura Afro-Brasileira no
Alto Paranaíba - Minas Gerais. BRASILEIRO, Jeremias; SANTOS, Vanilda
Honória dos. 1. ed. Vol. 1. – Editora: Subsolo. Uberlândia, 2018.

ISBN 978-85-69188-41-4

1. História e Direito. 1.2 Quilombolas. 1.3 Congadas. 1.4 Cultura Afro-Bra-


sileira. 1.5 Extensão e cultura. 1.6 Educação étnico-racial e identidades. 1.7
Saberes tradicionais.
2. BRASILEIRO, Jeremias, 1959; SANTOS, Vanilda Honória dos, 1973.

Imagem de Capa: Arquivo de Thiago Carvalho


Imagens do livro: AcervoDigital/JeremiasBrasileiro, 2018.
SUMÁRIO

Prefácio 07

Os direitos territoriais dos Remanescentes do Quilombo de Ambrósio: (re)existência, per-


manência e aspectos jurídicos 10
Vanilda Honória dos Santos

Quilombolas Congadeiros, Brasileiros das Gerais 32


Jeremias Brasileiro

Ambrósio seria um, ou Ambrósio seria muitos? Quilombos, Congadas e resistências 40


Jeremias Brasileiro

Representações, identidade e relações étnico-raciais 52


Ivete Batista da Silva Almeida

Saberes e fazeres das comunidades tradicionais, das famílias negras e quilombolas em


Minas Gerais 56
Jeremias Brasileiro & Vanilda Honória dos Santos

A Produção de Açafrão de alta qualidade e o quilombola artesão 57


Enilson Rodrigues da Silva

Raízes, ervas e folhas: usos e saberes das mulheres quilombolas do Alto Paranaíba em
Minas Gerais 62
Gasparina Pereira Gonçalves

Memória visual das atividades desenvolvidas durante os Seminários de Formação Cultu-


ral Afro-Brasileira História e Direito: Quilombolas, Congadas e Cultura Afro-Brasileira
no Alto Paranaíba, Minas Gerais 64
Anexos 76

Parecer Jurídico elaborado pelos membros do Projeto de Extensão Assessoria Jurídica


Étnico-Racial e Direito Antidiscriminatório, (ESAJUP/UFU), no âmbito do Escritório de
Assessoria Jurídica Popular da Universidade Federal de Uberlândia 77

Recomendações nº 5/2018 e nº 6/2018 do Ministério Público Federal, datadas de 18 de


setembro de 2018 81

Proposições resultantes do diálogo estabelecido durante a realização dos Seminários de


Formação Cultural Afro-brasileira 96

Ficha Técnica 98
PREFÁCIO

Este livro é resultado de um projeto apresentado ao edital Proexc - nº 03/2018


- Programa Institucional de Apoio à Cultura, da Universidade Federal de Uberlândia,
para ser desenvolvido no Campus de Patos de Minas, proposto pelo Professor Peterson
Elizandro Gandolfi (Campus Patos de Minas) e coordenado pelo Professor Jeremias
Brasileiro, com apoio técnico e teórico da Professora Vanilda Honória dos Santos.
A proposta sociocultural com viés acadêmico e popular objetivou enquanto
ação cultural e gestão pública, realizar seminários na área da cultura afro-brasileira, nas
dependências do Campus da Universidade Federal de Patos de Minas, com a participação
da comunidade universitária, incluindo estudantes, técnicos administrativos e os grupos
sociais, entre os quais especialmente, a comunidade congadeira e quilombola de Patos de
Minas e Serra do Salitre.
Os Seminários foram desenvolvidos com o intuito de possibilitar uma tomada
de consciência ainda maior aos atores sociais e à comunidade acadêmica participante, no
campo dos saberes e fazeres, das lutas e ações existentes nas comunidades quilombolas e
congadeiras. Buscando dessa forma, articular teoria e prática, com abordagens a respeito
da legislação sobre titulação de terras, sobre patrimônios culturais.
Foi realizado estágio em campo para discutir sobre reminiscências
arqueológicas de quilombos da região, resultando dessa forma, neste produto final,
que servirá de fundamentação e esclarecimento a um público mais amplo, sobre os
Quilombolas em Patos de Minas e Serra do Salitre, Minas Gerais, enquanto praticantes
de um cultura de existência e resistência.
Os projetos de extensão universitária são uma das ferramentas essenciais para
promover a aproximação entre o público acadêmico e os grupos sociais e culturais. No
caso das comunidades quilombolas e congadeiras, há décadas tem sido empreendida uma
luta desigual desses com o Estado para terem seus direitos culturais, sociais e territoriais,
reconhecidos e respeitados como territorialidades.
Importante destacar que a Universidade Federal de Uberlândia dentro de suas
possiblidades, tem buscado cumprir o papel social de estabelecer uma conexão entre o
saber acadêmico com as práticas populares. Essas ações ainda que profícuas, precisam
avançar em outros campos e Campus universitários, reconhecendo outras demandas e
interagindo com outros atores sociais, notadamente nessa proposta, os quilombolas e
congadeiros de Patos de Minas, Serra do Salitre e cidades circunvizinhas.
Na perspectiva de colaboração institucional da Universidade Federal de
Uberlândia com as necessidades emergentes dessas populações, ansiosas por um retorno

7
de formação cultural que possa também lhes contemplar, é que justificou-se a proposta
dos seminários de formação cultural, uma base/piloto que com certeza fará surgir
outras demandas na região do Alto Paranaíba, que ainda encontra-se em um patamar de
assistência cultural e jurídica bastante insuficientes.
Por esse viés é que propôs-se a execução dos seminários de formação cultural
afro-brasileira com foco nas comunidades quilombolas e das Congadas, abordagens que
estão na pauta das reivindicações constantes desses grupos sociais. A UFU exerce um
papel preponderante ao alinhavar suas políticas de incentivos, de tal modo que possam
contemplar os grupos sociais e culturais que não estão dentro desse lócus acadêmico.
Um projeto de extensão dessa envergadura contribui de forma relevante para
a socialização de saberes de ambos os participantes envolvidos com a temática proposta,
nesse sentido, os ganhos são consideráveis, da comunidade quilombola e congadeira,
do público acadêmico e da instituição Universidade Federal de Uberlândia/Campus
Patos de Minas. Essas três visões de mundos quando dialogam, ampliam sobremaneira
o capital intelectual e a responsabilidade com o bem comum da sociedade, de maneira
inquestionável.
Foi com a perspectiva de problematizar e refletir sobre as políticas públicas
direcionadas às comunidades quilombolas de Patos de Minas e Serra do Salitre, no alto
Paranaíba-MG, que os Seminários de Formação Cultural Afro-brasileira, com foco nos
grupos sociais congadeiros e quilombolas da respectiva região, pretenderam em uma
abordagem crítica, discutir essas questões que envolvem, sobretudo os direitos das
Comunidades Remanescentes do Quilombo do Ambrósio do Alto Paranaíba, Minas
Gerais, seus aspectos constitucionais e do direito internacional, bem como noções de
pertencimentos culturais tradicionais e as lutas de resistências dessas comunidades, tanto
em relação ao reconhecimento e valorização de suas práticas socioculturais, quanto de
socialização dos saberes a respeito de representações, identidades e relações étnico-
raciais.
O intuito dos seminários, que resultaram na publicação deste livro, foi o
de promover o diálogo e a interatividade da comunidade acadêmica com os grupos
sociais quilombolas e congadeiros do Alto Paranaíba, Minas Gerais; fortalecer as ações
empreendidas por essas comunidades quanto às demandas por regularização e titularização
de suas terras; construir um canal de comunicação permanente entre os órgãos públicos,
Universidade Federal de Uberlândia e as instituições representantes dos grupos sociais
quilombolas e congadeiros e por fim, oportunizar uma reflexão crítica a respeito das
demandas, das reivindicações e das legislações pertinentes a essas temáticas.
O primeiro seminário contou com a participação da Professora Dra. Ivete
Almeida do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, com o tema sobre
identidades e relações étnico-raciais e ainda com a Sra. Gasparina Pereira Gonçalves,

8
que compartilhou os saberes tradicionais sobre plantas medicinais. A comunicação
proferida pela professora Ivete Almeida estimula a refletir sobre a importância de se
promover uma educação antirracista, comprometida com a promoção da liberdade, da
igualdade e do respeito às culturas afro-brasileira e indígena. De igual modo, apregoa a
necessidade de uma educação que tenha como norte o respeito à pluralidade étnica e às
relações étnico-raciais, o que é fundamental para os povos quilombolas, considerando a
discriminação à qual estão sujeitos.
O segundo seminário teve a conferência da filósofa e Professora Ms. Vanilda
Honória dos Santos, pesquisadora em Direito Antidiscriminatório Direitos dos Povos
e Comunidades Tradicionais e História do Direito, que contribuiu com o tema sobre
Direitos das Comunidades Remanescentes do Quilombo do Ambrósio no Alto Paranaíba:
(re)existência e permanência, além da temática a respeito dos aspectos constitucionais e
de pluralismo jurídico. Também contribuiu com seus saberes sobre a produção de açafrão
artesanal, o Sr. Enilson Rodrigues, da Federação Nacional das Associações Quilombolas
(FENAQ).
O terceiro seminário contou com a conferência do Professor Jeremias
Brasileiro, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, discutindo a temática sobre Rei Ambrósio de Minas Gerais e o ofuscamento
da história e da memória de um líder quilombola, além das relações envolvendo, congadas,
quilombos e poder. Contou-se de igual modo, no encerramento desse seminário, com a
presença e apresentação do grupo de Hip Hop quilombola Consciência de Rua - Art’ dos
Guetos.
Como resultado das discussões desenvolvidas durante os seminários, foi
elaborada uma carta propositiva que foi entregue ao Poder Público local e ao Ministério
Público Federal, na qualidade de responsável por defender os direitos sociais e individuais
indisponíveis dos cidadãos, tutelados pela Constituição Federal de 1988.

Jeremias Brasileiro & Vanilda Santos


Organizadores

9
Os direitos territoriais dos Remanescentes
do Quilombo de Ambrósio: (re)existência,
permanência e aspectos jurídicos

Vanilda Honória dos Santos1

Eu existo porque alguém antes de nós resistiu.


Dona Dijé

É uma honra estar aqui hoje para proferir esta conferência, contribuir e
dialogar com a comunidade quilombola e congadeira do Alto Paranaíba em Minas Gerais,
sobretudo de Patos de Minas e Serra do Salitre, acerca dos direitos territoriais quilombolas
e dos mecanismos para sua efetivação.
O projeto de extensão Seminários de Formação Cultural Afro-Brasileira
História e Direito: Quilombolas, Congadas e Cultura Afro-Brasileira no Alto Paranaíba
- Minas Gerais tem como metodologia o trabalho interdisciplinar entre História e Direito,
atuando em conjunto com as comunidades, os atores sociais e protagonistas de suas
próprias histórias. Desse modo, os encontros foram organizados de forma a conferir
espaço tanto para o saber acadêmico, quanto para os saberes tradicionais e ancestrais das
comunidades.
Tal postura se deve, sobretudo, ao fato de que abordar a questão do território
é considerar as relações intersubjetivas que se estabelecem entre os sujeitos e o espaço,
e para além disso, os modos de criar, fazer e viver que nele se estabelecem ao longo
da história dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, especificamente os povos
quilombolas, do período escravista ao pós-Abolição. Este último período ainda é incerto
e é objeto de pesquisas atuais, adota-se aqui a perspectiva de que estamos no período pós-
Abolição, esta que foi incompleta, considerando que após 130 anos de ter sido abolido o
instituto da escravidão do ordenamento jurídico brasileiro, não foram tomadas as medidas
necessárias e suficientes de reparação, e para que ela fosse também abolida do mundo da
vida e das mentalidades.
1
Mestre e graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bacharelanda em Direito
pela UFU. Coordenadora discente do Projeto Assessoria Jurídica Étnico-Racial e Direito Antidiscriminatório
do Escritório de Assessoria Jurídica Popular da Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da UFU (ESAJUP/
FADIR/UFU). Membro do ORDO IURIS – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica UFU/CNPq.
Membro colaboradora da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil
– OAB/MG.

10
No intuito de propiciar o diálogo, esta exposição foi organizada a partir dos
seguintes tópicos: i) O quilombo na história: (re)existência e permanência; ii) Aspectos
constitucionais e de direito democrático: do reconhecimento à titulação; iii) A Convenção
169 da OIT e a efetivação dos direitos territoriais quilombolas; iv) O direito à reparação
por dano coletivo.

1 - O quilombo na história: (re)existência e permanência

Nesse primeiro momento serão abordadas a resistência e a permanência dos


povos quilombolas na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. O foco é o quilombo
na história sob a perspectiva do direito e o que é possível fazer nos tempos atuais para
tornar efetivos os direitos territoriais quilombolas. Esse intento exige também que seja
abordado o período pós-Abolição, quando ocorre o apagamento do ordenamento jurídico
e a invisibilização social dos quilombos. No segundo momento serão abordados os
aspectos constitucionais e do direito internacional dos povos e comunidades tradicionais,
e o modo como eles podem ser trabalhados em relação às lutas quilombolas.
Há mais de onze anos a questão dos direitos territoriais quilombolas começou
a ser discutida na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Desde então, o que tem
sido feito?
Iniciou-se essa discussão a partir da descoberta do Quilombo do Atalho
em Monte Carmelo, por meio das pesquisas do historiador Jeremias Brasileiro e do
interesse da TV Rural do estado de Santa Catarina, que à época esteve na comunidade
conhecendo sua história e entrevistando os moradores2. A Comunidade Remanescente
de Quilombo (CRQ) do Atalho possui uma situação bastante complexa, considerando
que até o momento não possuem sequer a certificação como remanescentes de quilombo
emitida pela Fundação Cultural Palmares. Essa realidade é resultado de um processo do
apagamento, de esquecimento e de invisibilização da resistência do povo quilombola e
do povo negro na região.
Há outras comunidades na região já certificadas pela Fundação Cultural
Palmares, cujo processo de identificação, delimitação, demarcação e titulação dos
territórios estão em andamento. A CRQ São Sebastião de Boassara, localizada em Patos
de Minas, em área rural, conseguiu a certificação em 2017, dando início ao processo de
regularização fundiária. A CRQ das famílias Teodoro de Oliveira e Ventura, cujos núcleos
estão nos municípios de Patos de Minas e Serra do Salitre, em áreas urbana e rural, está
com o processo mais avançado. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTDI) foi publicado pelo INCRA em 2017, contudo, o processo é demasiado complexo,

2
TV STA CATARINA. Canal Rural. TV de Santa Catarina em Visita ao Quilombo do Atalho na Cidade
de Monte Carmelo em Minas Gerais, em 22 de novembro de 2007. AcervoDigital/JeremiasBrasileiro, 2016.

11
uma vez que o histórico de negação do direito ao território da comunidade advém desde
o início do século XX, como consequência de esbulho, possíveis fraudes e violência
contra os quilombolas, descendentes da ex-escravizada Zeferina de Tal e herdeiros de
José da Silva Botelho.
A história ligada ao esquecimento, ao apagamento e à negação do direito à
terra aos ex-escravizados e seus descendentes, assim como dos povos indígenas, não
é unicamente a história de Minas Gerais, é a história do Brasil, e quiçá, a história das
Américas. Nesse sentido, vale destacar a importância das sociedades maroons, formadas
por africanos escravizados fugitivos e livres que resistiram à escravidão nas Américas3.
Objetiva-se com esse diálogo mostrar um pouco de como tal processo ocorreu,
principalmente no ordenamento jurídico brasileiro. Não é um ponto de vista unilateral,
mas uma intersecção entre a história e o direito, uma vez que um dos fundamentos para
esse processo de discriminação está na história do direito brasileiro.
Além disso, cabe mais uma vez, ressaltar que o intuito desse seminário
é de dialogar com as comunidades, para que se tenha elementos para ações que são
próprias dos direitos dessas comunidades, com objetivo de dar efetividade aos direitos
territoriais. Por isso, este texto é também parte de uma ação propositiva no sentido de
dar visibilidade de fato às lutas das comunidades citadas e cobrar ações efetivas dos
poderes públicos.
Nos séculos XVIII e XIX, o quilombo foi considerado o lugar onde se
reuniam os “negros fugidos”, aqueles que fugiam do sistema escravista. Alguns
historiadores e juristas4 da época afirmavam que os negros escravizados fugiam de toda
sorte de violações que sofriam de seus senhores, sem considerar que a formação dos
quilombos foi uma forma de resistência, uma alternativa ao sistema escravista ao ponto
de serem denominados de confederados. Nesse sentido, confederados são aqueles que
se associam e fazem a rebelião contra o Estado opressor, que querem fundar uma outra
forma de organização política, sendo, portanto, perigosos inimigos do Estado vigente,
no caso, a Coroa Portuguesa, e posteriormente, o Império do Brasil.
Em Minas Gerais, com o apagamento da história, só agora, essa discussão
está sendo retomada, com o protagonismo dos negros5. De certo modo, a história dos
Quilombos do Campo Grande, sempre esteve citada por vários autores, mas, qual
o foco que foi dado? Não se apresentou o Quilombo do Campo Grande ou Quilombo
de Ambrósio como uma confederação, enquanto o próprio Império português assim se

3
Veja-se: THOMPSON, Alvim, O. Flight to freedom: African runawys and maroons in the Americans.
Jamaica: University of the West Indies Press, 2006.
4
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Escravidão no Brasil: Ensaio Histórico-jurídico-social -
Parte 3 Africanos. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1867.
5
Veja-se: BRASILEIRO, Jeremias. Rei Ambrósio de Minas Gerais e o ofuscamento da história e da memória
de um líder quilombola. Temporalidades-Revista de História, v. 9, nº 3 (set/dez.2017), p. 59-72.

12
referiu à Confederação do Campo Grande6. Desse modo, a Coroa assumia que o quilombo
era uma forma de organização social e política com todas as estruturas e condições de
substituir o Estado. Trata-se de uma história muito rica, que em muito foi pormenorizada
ou negada.
Foi preciso focar na tônica do “negro fugido”, que fugia para evitar o
sofrimento da escravidão, conforme fora descrito por juristas e historiadores da época.
O fato é que durante os períodos imperial e colonial, o quilombo foi instituído como
lugar de “negros fugidos” que se juntavam, sendo a reunião de três ou cinco negros,
a depender da região. Diante do risco de rebelião constante, emerge a chamada “onda
negra, medo branco” do século XIX7. Essa onda de medo tem relação com o receio de
que nos quilombos se formassem novas culturas de resistência, como foi Palmares, os
Quilombos do Campo Grande e São Domingos, o atual Haiti.
Abordar tal temática na história do direito é de fundamental importância,
porque até recentemente não se verificava interesse por essas questões no mundo jurídico.
O direito brasileiro é arraigado às suas bases positivistas, baseando-se, sobretudo na lei,
desconsiderando em grande medida o contexto histórico, social e político, e o que esse
contexto tem a ver com as normas jurídicas que regulam a vida das pessoas. Da mesma
forma, pouca atenção é dada à relação de pertencimento que as pessoas têm com os seus
modos de viver, de saber e de se sentir parte de seus mundos a partir de suas próprias
experiências.
A necessidade de apagamento dessa história, que os quilombolas conhecem
muito bem, encontra muitas resistências em seus próprios protagonistas a partir da
oralidade, pois seus pais e avós contaram e eles continuam a contar, é intergeracional.
No contexto do século XIX, foi promulgado o Código Criminal de 18308, o
primeiro Código Penal brasileiro, inspirado, direta ou indiretamente, por outras leis que
haviam sido criadas em outros países, como o Code Noir (Código Negro) francês9.
Assim, as penas, as restrições e proibições das práticas culturais e religiosas,
e de tudo que dizia respeito aos negros escravizados ou libertos, foi tornado crime ou
teve a prática limitada ou vigada. No caso em destaque sobre a questão quilombola,
foi instituído o crime de insurreição10, criado para punir, prevenir e servir de exemplo
6
CARTA DA CÂMARA DE TAMANDUÁ À RAINHA MARIA Iª. ACERCA DE LIMITES DE MINAS
GERAIS COM GOIÁS (1798), publicada na Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1897; e outras cartas
disponíveis no Arquivo Público Mineiro sobre o Quilombo do Ambrósio. Transcrição de Tarcísio José Mar-
tins, em 2017.
7
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites –
século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
8
BRASIL. Código Criminal de 1830.
9
DANTAS, Monica Duarte. Dos statutes ao Código brasileiro de 1830: o levante de escravos como crime de
insurreição. Revista IHGB, V. 452, jul/set. 2011, p. 273-309.
10
CAPITULO IV. INSURREIÇÃO. Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou

13
contra aqueles que se rebelassem para o Império português, que em sua maioria eram
os considerados “negros fugidos”. Tratava-se de uma ameaça tão intensa que motivou a
criação do dispositivo penal da insurreição. Quando se afirma que alguém está em prática
de insurreição, não é apenas um escravo a fugir porque está com medo do castigo do seu
senhor, é na realidade, alguém muito consciente e potente que se rebelava e ameaçava de
fato a instituição estatal.
A história quilombola no Brasil foi identificada com muita ênfase como a
história do Quilombo de Palmares e de seu líder Zumbi, mas essa é uma história de todos
os quilombos do Brasil, e não só de Palmares, como ficou conhecida. Destaca-se ainda
no Código Criminal de 1830, a pena de morte para aqueles que cometessem o crime de
insurreição, segundo o qual os líderes deveriam ser condenados à pena de morte ou à
prisão perpétua. Dependendo da participação, a pena seria a morte, para as prisões dos
navios durante quinze anos e aos de menor participação penas de açoites11. A importância
dada à punição da resistência dos escravizados revoltosos revela o quão importante e
temeroso era a figura do quilombola na história do Brasil.
Outro estatuto jurídico relevante na história dos povos negros e quilombolas na
luta pelo direito à terra e defesa de seus territórios é a Lei de Terras de 1850. Até o advento
dessa lei, a ideia de propriedade privada no Brasil não estava consolidada e disseminada. As
terras eram doadas em regimes de sesmarias e a partir de 1850 ficam proibidas as cessões
de terras devolutas por outra forma ou título que não fosse através da compra, da aquisição.
Ou seja, para ser proprietário de terras no Brasil passa-se a exigir que seja por meio de
compras. Surge a questão: Quem em 1850 podia adquirir terras? No caso dos negros,
estavam escravizados, os libertos em condições precárias, ainda que houvessem aqueles
que burlavam o sistema, abriam algumas brechas, mas esses eram as exceções das exceções.
A regra geral das leis e das políticas que foram implementadas à época foi
de que pobres, negros escravizados, libertos e indígenas não tivessem nem a posse nem
a propriedade da terra. Essa lógica acarretou os grandes deslocamentos populacionais, a
migração para as cidades, os “sem terras” e expulsos dos lugares que habitavam. A opção
de destino era ir para as grandes cidades que já se formavam, o que será mais intenso no
período pós-Abolição.

mais escravos para haverem a liberdade por meio da força. Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo;
de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos mais - açoutes. Art. 114. Se os cabeças da
insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças,
quando são escravos. Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas,
munições, ou outros meios para o mesmo fim. Penas - de prisão com trabalho por vinte annos no gráo ma-
ximo; por doze no médio; e por oito no mínimo”.
11
ANDRADE, Marcos Ferreira de. A pena de morte e as insurreições escravas no império do brasil: a
revolta de carrancas e a origem da lei de 10 de junho de 1835. 2014. Disponível em: http://diamantina.
cedeplar.ufmg.br/2014/site/arquivos/a-pena-de-morte-e-as-insurreicoes-escravas-no-imperio-do-brasil.
pdf. Acesso em: 09/04/2017.

14
E aí a questão da história quilombola, sobretudo no pós-Abolição: se não é
possível comprar a terra, não tem a posse, não é possível permanecer na terra, quilombolas
e indígenas não teriam de maneira alguma os documentos de posse e propriedade.
Deveriam procurar os cartórios? Os cartórios foram criados para legitimar quais direitos
de posse e propriedade? Suspeita-se que em grande medida, consolidaram o direito de
propriedade privada unicamente dos senhores.
A ideia liberal de propriedade privada havia sido recém importada da Europa
e implantada no Brasil. Comprar terras ou ter as documentações de posse de terras não foi
acessível para os ex-escravizados e seus descendentes. Muitos daqueles que conseguiram
superar as dificuldades e adquirir terras regularizadas ou receberam como legado em
testamento sofreram esbulho e expulsão de suas terras. Por exemplo, o caso da Família
Teodoro em Capinópolis, em que um ex-escravizado adquiriu as terras em 1891, conforme
escritura que consta em cartório, e até os dias de hoje, século XXI, os descendentes não
estão na posse das terras, ocupadas por uma usina de cana de açúcar12.

1.1 - Pós-Abolição – apagamento e esquecimento

Do ponto de vista do ordenamento jurídico, a partir de 13 de maio de 1888,


todos os ex-escravizados passam a ser considerados cidadãos, a gozar de seus direitos
plenos, devendo ser tratados como iguais perante a lei. No entanto, o que se nota é a
invisibilização e exclusão desses personagens, desses atores sociais, e inclusive, dos
quilombos, que deixam de existir enquanto visibilidade de luta.
Os quilombos passam a ser considerados unicamente como lugares de negros
fugidos do passado, que ocuparam terras do Estado. A história da maior parte das cidades
brasileiras, principalmente do interior, é contada a partir de 1888, o passado ou parte dele
deve ser esquecido, apagado da memória e da historiografia oficial. Tem-se aí um tema
interessante para pesquisa no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba em Minas Gerais. Uma
pesquisa mais acurada certamente demonstrará que a maioria das cidades são emancipadas
nos finais do século XIX e início do século XX, escapando da responsabilidade de
reconhecer suas fundações escravocratas.
Essa é a história de muitas cidades no Brasil. Uberlândia no Triângulo Mineiro
é um exemplo desse fato. A cidade foi emancipada em 1888 da cidade de Uberaba, quando
era distrito denominado São Pedro do Uberabinha. A partir de 1888 começa a existir
juridicamente como um município independente, sendo que a história antes de 1888, não

12
SANTOS, Vanilda Honória dos. Espacio geográfico y la construcción de espacios jurídicos en comunida-
des remanentes de quilombos: lugares (in)visibles. VIII Jornadas de Jóvenes Investigadores em Historia
del Derecho. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Edución – Universidad Nacional de La Plata,
Buenos Aires, 2016, p. 176-199.

15
se conta ou não há interesse em contar, a depender de quem conta e registra. Promover o
esquecimento do passado tem consequências sérias no presente, por exemplo, as diversas
discriminações que violam a dignidade e os direitos da população.
Qual intencionalidade poderia estar por detrás dessa opção? Talvez de que
nenhuma cidade tivesse que assumir a responsabilidade pelo sistema escravista. O
discurso que prevalece nesse contexto é de que todos são livres, é preciso fortalecer a
ideia de progresso, de desenvolvimento e esquecer que as consequências da escravidão
estão vivas nos cotidianos dessas cidades.
Por um lado, o termo Abolição faz muito mais sentido por enfatizar a conquista
da Lei Áurea, de abolir o instituto jurídico da escravidão. Por outro lado, estimula a
reflexão sobre o que isso significou na realidade dos negros, isto é, fazendo alusão à obra
de Eric Fonner sobre a emancipação nos EUA, aos ex-escravizados e seus descendentes
foi dado nada além da liberdade13. Do ponto de vista filosófico, a liberdade é muito mais
do que o direito de ir e vir. Há outras condições necessárias para que se possa ser livre,
dentre as quais se destacam a garantia da dignidade humana e do mínimo existencial.
Muitos vão conseguir romper com a lógica estrutural do abandono que levaria
à uma total desagregação das redes de solidariedade e das famílias, defendida por alguns
pesquisadores da Abolição. Há outra vertente de historiadores que defende que as famílias
negras resistiram e resistem frente às dificuldades, rompem com essa lógica e mantêm-se
unidas.
Além disso, muitas crianças eram levadas às fazendas para servirem como
mão de obra. A continuidade da escravidão disfarçada com nova roupagem, pois os pais
iam embora para as cidades, e muitas vezes não tinham como levar essas crianças de
colo, que ficavam nas fazendas até aproximadamente os dezoito anos de idade. Caso
não permanecessem durante a idade adulta, iam embora sem receber nenhum tipo de
indenização, ou seja, não tinham direitos. De outro lado, muitos ao completar dezessete,
dezoito anos, casavam, constituíam famílias, e por isso a resistência negra continuava.
Tudo isso interfere na questão da identidade, da resistência, na forma de organização, pois
havia uma luta que era pela sobrevivência orgânica em primeiro lugar, pois foi negada a
dignidade a esses ex-escravizados e a seus filhos, logo após a Abolição.
Dito isso, outra questão a ser considerada se trata do fato de que nas primeiras
décadas do século XX emergem no Brasil as ideias eugênicas embasadas no racismo
científico, sobretudo a partir de 1911, quando acontece o Congresso Universal das Raças,
em Londres14. É muito importante saber o que estava acontecendo naquela época que
interferiu para que se tenha o cenário de discriminação do presente, sempre atualizado.

13
FONER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Tradução de Luiz Paulo Rouanet.
Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988.
SANTOS, R.V.; SOUZA, V.S. O Congresso Universal das Raças, 1911: contextos, temas e debates. Bol.
14

Mus. Para Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 7, n. 3, p. 745-760, set-dez, 2012.

16
Os antropólogos e médicos João Baptista e Lacerda e Edgard Roquette-Pinto, enviados
pelo governo brasileiro para representar o Brasil no Congresso, defenderam a tese de que
a população negra brasileira seria extinta em cem anos, ou seja, em 2011 não existira mais
vestígios de negros no Brasil. Isso aconteceria, no entender desses antropólogos, devido
a miscigenação, na qual a “raça negra”, considerada inferior, iria desaparecer, condenada
que estava a ser exterminada. Nesse sentido, ter-se-ia em 2011, uma população branca e
superior.
Essa teoria norteou as políticas públicas brasileiras da primeira metade do
século XX, com consequências nefastas no tempo presente, e no caso aqui em foco, a
discriminação contra as populações negras quilombolas. Trata-se da ciência que justificava
toda essa superioridade racial branca ao ponto de constar na Constituição de 1934 o dever
do Estado de fomentar a educação eugênica, cujo objetivo no fundo foi o branqueamento
da população15.

1.2 - A luta dos movimentos negros: A Constituinte de 1986-1987

Diante dos silenciamentos, dos apagamentos e tentativas de extermínio da


população negra16 por meio da ciência, se a escravidão deixa de existir no ordenamento
jurídico, deixa de existir também a preocupação com as consequências pós-Abolição e
com as questões dos quilombos. Se não há mais “negros fugidos” da escravidão, não
existem mais quilombos.
Os debates que ocorreram no século XX promovidos pelos movimentos
negros pelos direitos e dignidade das pessoas negras, levam essas demandas à Constituinte
de 1986-1987, participando efetivamente do processo de construção da Constituição de
1988. Embora haja questionamentos sobre a denominada Constituição Cidadã, de fato
houve uma participação social muito relevante, sobretudo no tocante aos movimentos
negros nacionais17.
A Constituinte teve uma pauta muito extensa a respeito dos direitos dos
negros, especificamente em relação às comunidades quilombolas, o debate foi intenso,
uma vez que a noção de quilombo só vai reaparecer na cena pública política e jurídica
com a Constituinte. Dentre as várias propostas, destaca-se o conceito de quilombo e
de como reconhecer os direitos quilombolas à luz da nova Constituição. As propostas

15
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: http://
www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publicacaoori-
ginal-1-pl.html. Acesso em: 29/09/2018.
16
NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. Rio
de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1978.
17
CONVENÇÃO NACIONAL DO NEGRO PELA CONSTITUINTE. Brasília-DF, 26 e 27 de agosto de
1986.

17
utilizavam as terminologias comunidades negras, remanescentes dos antigos quilombos
e antigos quilombos18.
Essas três terminologias são fundamentais para a compreensão do que
aconteceu. O termo antigos quilombos representa exatamente a noção vigente no
período escravista expressa nas Ordenações Filipinas e no Código Criminal de 1830,
que considerava lugar de negros fugidos. Por que da importância em falar sobre a
questão? Porque ainda hoje, a maior parte das pessoas entende quilombo unicamente
como esse lugar isolado no qual os escravizados se refugiavam. Se não há mais “negros
fugidos”, pois não se vive mais no regime da escravidão, quilombolas seriam somente
os descendentes desses fugitivos. Os sujeitos que pleiteiam a identidade quilombola
teriam assim que provar que seus ascendentes literalmente fugiram do cativeiro e
foram viver nos quilombos. Essa seria a única forma de serem reconhecidos como
quilombolas.
A terminologia remanescentes dos antigos quilombos é a categoria jurídica
adotada no texto constitucional. São os descendentes que permanecem, descendentes
dos quilombolas que habitavam os quilombos do período escravista. É preciso
compreender que quilombos não se trata somente dos espaços que se originaram com os
“negros fugidos”, e sim de formações sociais que se transformam ao longo do tempo. O
ordenamento jurídico em 1988, admitiu a terminologia remanescentes de quilombos a
partir de muitos debates.
As discussões envolviam a concepção de comunidades negras, mas quando se
fala em comunidades negras em um país no qual há uma diversidade da população negra,
trata-se de um problema sério. O termo comunidades negras era e ainda é um termo
amplo, pois incluem as comunidades rurais, mas sobretudo as comunidades urbanas,
formadas a partir do sistema escravista e da diáspora do período pós-Abolição.
Desse modo, caso o termo tivesse sido adotado no texto constitucional, tanto
o cenário de discussões que ocorreram sobre a abrangência do termo remanescentes de
quilombos quanto o de aplicação das políticas públicas que visam dar efetividade ao
direito territorial quilombola seria outro. Dito de outro modo, as comunidades negras
urbanas não teriam sido por tanto tempo excluídas do exercício do direito constitucional ao
território, e de igual modo teriam mais instrumentos para lutar contra a descaracterização
e “expulsão” de seus territórios e a destruição de suas memórias, histórias e expressões
culturais. Não foi possível manter o termo comunidades negras, ao mesmo tempo houve
um avanço quando o Constituinte reconheceu a existência dos quilombos.

18
CIRILO, Júlio César Ferreira Cirilo. Palestra proferida durante o evento Quilombos: Triângulo Mineiro
e Alto Paranaíba, realizado no dia 19 de outubro de 2017, pelo Projeto Assessoria Jurídica Étnico-Racial e
Direito Antidiscriminatório do Escritório de Assessoria Jurídica Popular da Faculdade de Direito Prof. Jacy
de Assis da Universidade Federal de Uberlândia.

18
2 - Aspectos Constitucionais e direito democrático: do reconhecimento à titulação

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que inaugura o


período democrático no Brasil, a organização social quilombo passa a ser reconhecida no
ordenamento jurídico. Após cem anos de invisibilização e de apagamentos, é finalmente
reconhecida no âmbito da documentação pública e do direito. Contudo, as interpretações de
juristas a partir desse marco estarão em grande medida centradas no texto da Constituição,
uma vez que por um longo tempo não se considerou o contexto das lutas e resistências da
história quilombola no Brasil. É como se o direito tivesse surgido de forma independente
da atuação da sociedade civil. A figura do “legislador”, amplamente difundida entre os
juristas parece, neste caso, ter uma existência autônoma que transcende à realidade social.
Nesse sentido, é interessante mostrar o quanto foi e ainda é importante a
mobilização e participação social para que esse reconhecimento seja possível, e isso é o
que caracteriza como a construção do direito de forma democrática, e em alguma medida
de pluralismo social19. Há por esse viés, também o significado dessas resistências em
alguns autores que vão se debruçar sobre essa temática, cuja característica e brevidade
dessa contribuição não permite avançar.
Muitos políticos e lideranças atuantes durante a Constituinte e posteriormente
pela reivindicação da efetivação do direito constitucional ao território, tutelado pelo
art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)20, destacaram a
referência ao termo quilombismo, significando as lutas e resistências dos negros no Brasil
contra a discriminação e pela efetivação dos direitos à dignidade e à cidadania plena. A
abordagem de Abdias Nascimento sobre quilombismo contribui para a compreensão e
pesquisas sobre essa resistência, isto é, a luta quilombola é a referência para a luta do
povo negro brasileiro contra a discriminação e o extermínio21.
Quando se trata de interpretação do texto constitucional, inicialmente
o entendimento era de que remanescentes de quilombos, eram os quilombos rurais,
desconsiderando as comunidades negras urbanas, conforme discutido no tópico anterior.
Somente em 2007 que a Fundação Cultural Palmares publicou uma portaria22 que ampliou

19
WOLKMER, Antonio Carlos. Interpretação Constitucional, Pluralismo Jurídico e a questão quilombola.
Uma abordagem descolonial e intercultural do Decreto 4.887/2003 e da ADI 3239. In WOLKMER, Antonio
Carlos; FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza; Tarrega, Maria Cristina Vidotte Blanco. (Coordenadores).
Os direitos territoriais quilombolas: além do marco temporal. Goiânia: Ed. Da PUC Goiás, 2016, p. 31-
53.
20
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
21
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. 2. Ed., Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares/OR
Editor Produtor Editor, 2002.
22
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Brasília, DF. Portaria nº 98, de 26 novembro de 2007. Disponí-
vel em: http://www.palmares.gov.br/?p=2372. Acesso em: 29/09/2018.

19
o entendimento sobre essas comunidades remanescentes de quilombos, incluindo o
critério de auto atribuição, ou seja, é a pessoa que se auto declara ou não quilombola,
é a comunidade que vai dizer se é ou não é comunidade remanescente de quilombo.
A trajetória própria, quem deve contar são os quilombolas, dotados de territorialidades
especificas, não os pesquisadores, historiadores e antropólogos, embora o laudo técnico
deva ser chancelado por um profissional autorizado.
Os critérios para provar a identidade quilombola é auferido por meio do
Laudo Antropológico. Foram muitas as dificuldades até o julgamento da ADI 3239, que
questionava a constitucionalidade do Decreto 4887/2003, que regulamenta o processo de
reconhecimento, demarcação, titulação dos territórios quilombolas no Brasil. Passaram-
se 15 anos até que a constitucionalidade do Decreto fosse declarada pelo STF, o que
ocorreu somente em 08 de fevereiro de 201823, impedindo o avanço da efetivação dos
direitos territoriais quilombolas.
Outro debate importante que resultou em direitos e garantias constitucionais
foi sobre o reconhecimento do patrimônio cultural afro-brasileiro, a partir dos artigos
215 e 216 da Constituição Federal de 1988. Entende-se como patrimônio cultural os bens
materiais e imateriais, este último engloba todas as relações vividas pelos indivíduos
em seus territórios. O direito interno e o direito internacional admitem que os saberes
e os fazeres estão inseridos na vida dos povos tradicionais assim como a sua riqueza e
diversidade24. Essa é uma parte muito relevante e inerente à questão territorial quilombola
para se discutir, são as relações com o meio ambiente e o cultivo da terra, tanto que
quilombolas e indígenas são reconhecidos como protetores e garantidores do meio
ambiente.
Entende-se que há uma relação de vivência, de solidariedade, de cooperativismo
e de preservação que não é simplesmente usufruir-se dos meios naturais. Há por exemplo,
agricultura familiar e tradicional, incluindo as plantas medicinais e as formas de produzir,
tanto para a sua subsistência quanto para a sobrevivência das memórias e dos modos de
produção tradicionais; incluem-se também as formas de manifestação cultural e religiosa
afro-brasileiras como as congadas, que é uma das formas da presença e permanência da
ancestralidade impregnadas de natureza nesses lugares.
O quilombo ou as comunidades negras são a junção de tudo isso. Nesse sentido
é que se considera importantes essas interações, manifestações culturais, religiosas,
a relação com a profissão e uso da agricultura e do meio ambiente. De outro lado há

23
BRASIL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239. Supremo Tribunal Federal, 2003. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp. Acesso em abril de 2016.
24
UNESCO (2006). Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Cultu-
rais (2005). UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Dis-
ponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/international-instruments-clt/. Acesso em:
30/09/2018.

20
que se considerar que existem muitas comunidades quilombolas que não se identificam
com religiosidades afro-brasileiras, tornando-se ou sendo comunidades evangélicas, por
exemplo, o que é inerente às transformações.
É uma pluralidade de relações, de conhecimentos que só se apreende quando
se vai ao lugar em que os protagonistas estão, é com eles que se aprende. É importante
pontuar isso, pois muitas comunidades quilombolas podem não se sentir representadas,
caso se fale unicamente em religiões afro-brasileiras e de matriz africana. É uma
pluralidade de fatores quando se trata da questão quilombola.
O direito brasileiro desde os períodos colonial e escravista construiu toda a
base para que os quilombolas fossem criminalizados, portanto, é o direito brasileiro, numa
perspectiva democrática que deve somar todos os esforços para superar as consequências
desse processo atualizado no tempo presente. Com a Abolição, consolidou-se o
entendimento de que não havia mais problemas, apaga-se a existência dos quilombos,
pois falar sobre a questão poderia fomentar novas formas de revoltas. Silenciar e fazer
de conta que com a Abolição tudo estava resolvido foi uma estratégia para apagar o
protagonismo e as lutas das comunidades negras que permaneceram e se intensificaram
depois da Abolição.
É preciso abordar a conexão entre o direito e as relações raciais no Brasil
para uma interpretação constitucional que contemple de fato os valores democráticos de
liberdade e igualdade, assim como as políticas públicas que objetivam dar efetividade à
Constituição. Toda essa discussão resulta da luta dos movimentos negros, organizados
ou não, para que os direitos fundamentais da população negra fossem reconhecidos na
constituição de 1988 e pelas normas infraconstitucionais, como a Lei 10.639/0325 e o
Estatuto da Igualdade Racial26.
Com todas as transformações em relação ao conceito de quilombo, cumpre
ressaltar a questão do território, a relação intersubjetiva dos sujeitos com as tradições, os fazeres
e saberes, o meio ambiente, as manifestações culturais e religiosas, as relações comunitárias
e seus modos de viver e de criar. Tudo isso é denominado pelos povos de comunidades
tradicionais, como sendo território. A terra no sentido literal, é um dos componentes do
território. Os movimentos de lutas dos povos e comunidades tradicionais pelo direito à terra,
entre os quais se incluem os quilombolas, já assumem a importância do território, conforme
art. 13 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)27.

25
BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Institui o ensino de História e Cultura Africana e Afro-bra-
sileira em todos os níveis de ensino.
26
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. (2010). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em 24 de março de 2017.
27
1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância
especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras
ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particu-
larmente, os aspectos coletivos dessa relação.

21
Em 2007, foi instituída a política de desenvolvimento sustentável dos povos
quilombolas e comunidades tradicionais28, fazendo com que o Brasil tenha todo um
arcabouço normativo interno para dar efetividade aos direitos quilombolas, sobretudo os
territoriais. O obstáculo é dar efetividade, “fazer funcionar”.

3 - A Convenção 169 da OIT e a efetivação dos direitos territoriais quilombolas

Faz-se necessário abordar o documento internacional sobre os direitos dos


povos tradicionais, também reconhecidos como do direito internacional dos direitos
humanos, a Convenção 169 da OIT sobre os Povos Indígenas e Tribais, de 198929. Esse é
o tratado que versa sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais que devem ser
aplicados no Brasil, uma vez que foi ratificada pelo Estado brasileiro ao ser Promulgada
pelo Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, vindo a integrar o ordenamento jurídico
brasileiro.
Serão destacados alguns pontos fundamentais da Convenção 169, pois são
conhecimentos dos quais a comunidade precisa se apropriar para se instrumentalizar de
forma eficiente, e assim contribuir para dar efetividade aos seus direitos. A Convenção
pode ser aplicada nos casos que se referem às comunidades quilombolas que não
possuem a posse de suas terras, não ocupam os seus territórios, para que possam manter e
reproduzir os seus modos de vida, culturas e saberes tradicionais. É o caso da maior parte
dos remanescentes de quilombos no Brasil, e especificamente, de todos os remanescentes
do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba em Minas Gerais.
O artigo 14 da Convenção estabelece o dever dos Estados parte de adotar
medidas que garantam a efetividade dos direitos à propriedade coletiva ou territoriais30.

2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 [da Convenção] deverá incluir o conceito de territórios,
o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma
outra forma”.
28
BRASIL. Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Art. 3º, I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos
culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, so-
cial, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição; II – Territórios tradicionais: os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica
dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, obser-
vado no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que se dispõem o art. 231
da Constituição e o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.
29
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO-OIT (2011). Convenção nº 169 sobre Povos
Indígenas e Tribais. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf.
Acesso em março de 2016.
30
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos
interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar
as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

22
Aqueles que não ocupam o território por razões de expulsão, de esbulhos ou de fraudes
cartoriais devem ser reparados pelos danos existenciais e à propriedade coletiva sofridos
ao longo dos tempos. Segundo o artigo 16 da Convenção, os danos causados à comunidade
e a seus membros são passíveis de reparação31.
O artigo 1232 envolve a questão da autodefinição, autoidentificação ou
autodeclaração, pois quem diz que é quilombola, deve ser o próprio quilombola.
Percebe-se a partir dos processos e discussões que se desenvolvem na região que se
trata de um movimento complexo, de dizer quem é e quem não é quilombola, e o que
isso significa em relação aos direitos de propriedade privada e coletiva. A depender das
circunstâncias, pode-se não querer a autodeclaração, se a autodefinição como quilombola
puder impedir por exemplo, a venda do bem do qual tem-se até então, a propriedade
privada e a posse. Alguns chegam a argumentar que não querem o reconhecimento e
a titulação do Estado por esse motivo, considerando que irá restringir e não ampliar o
direito.
O Tratado versa sobre a salvaguarda do patrimônio cultural e imaterial dos
povos e comunidades tradicionais, que no caso da região do Alto Paranaíba, vem sendo
sistematicamente destruído. O artigo 4º da Convenção é dispositivo importante para
as comunidades quilombolas. Afirma-se que as medidas de salvaguarda não deverão
contrariar os desejos expressos pelos povos interessados33. Igualmente, há a necessidade
de garantir a participação das comunidades em políticas públicas que lhes dizem respeito,
conforme disposto nos artigos 6, 7 e 15 da Convenção34 e os princípios de eficácia,
eficiência, efetividade e controle social das políticas públicas. Surge a questão: As
comunidades participam de fato das decisões?
O fato de a comunidade necessariamente ter de ser consultada sob a
realização de qualquer empreendimento, de qualquer ação que vá afetar a sua realidade,

31
5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por qualquer perda ou
dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.
32
A autoidentificação como indígena e tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a defini-
ção dos grupos os quais se aplicam as disposições da presente Convenção.
33
1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as insti-
tuições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados. 2. Tais medidas especiais não deverão
ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados.
34
Art. 6 Garantir a participação ampla da comunidade nas decisões e em instituições e organismos res-
ponsáveis pelas políticas que lhe dizem respeito. Art. 7. 1. Os povos interessados deverão ter o direito de
escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que
ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou uti-
lizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico,
social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos
e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. Artigo 15. 1. Os
direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente
protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e
conservação dos recursos mencionados.

23
o seu território, chama-se de direito de consulta prévia e esclarecida35. Um importante
instrumento para dar efetividade ao direito de consulta prévia e esclarecida é a elaboração
pelas comunidades dos Protocolos Próprios de Consulta e Consentimento Livre Prévio e
Informado36. Tal instrumento começou a ser utilizado no Brasil apenas em 2014 e desde
então tem avançado. Recomenda-se que as comunidades que participam destes Seminários
discutam a respeito da importância do instrumento e, se assim o considerarem, promovam
a sua elaboração a partir de parcerias.
Esse protocolo nada mais é do que uma regulamentação interna, é uma
norma, uma constituição, são as regras internas da comunidade que vão dizer quem deve
ser consultado, como se toma as decisões na comunidade, quem pode falar em nome
da comunidade, e de que forma se toma as decisões na comunidade. Esse protocolo é
importante em decorrência do que historicamente se vive no Brasil. Toda vez que se inicia
o processo de elaboração e construção de um empreendimento, público ou privado, como
mineradoras, usinas e outros, do ponto de vista formal, existe a consulta. Contudo, ela
nem sempre ocorre de fato segundo os termos estabelecidos e de forma esclarecida.
Geralmente contrata-se um profissional técnico, antropólogos, arqueólogos,
entre outros. Dessa forma, laudos são produzidos, alguém assina as consultas e
autorizações, que muitas vezes são membros da própria comunidade. Há empreendimentos
que contratam antecipadamente líderes de comunidades que serão afetadas, para compor
seu quadro de funcionários, criando assim o sistema de cooptação que anula as lutas de
muitas comunidades tradicionais. Documentalmente, as empresas ficam respaldadas, o
setor público fica respaldado, pois, do ponto de vista formal, a comunidade autorizou.
A organização de muitas comunidades tem sido ampliada, justamente para
impedir que isso aconteça, ameaçando seus direitos. Elas querem ter direito de decidir
sobre o que vai atingir seus territórios, uma vez que afeta a vida, a saúde, o meio ambiente,

35
Art. 15.2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou
de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter pro-
cedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses
povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de
prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar
sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por
qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. Veja-se também: ROJAS GARZÓN, Bi-
viany. Direito à consulta e consentimento de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Biviany Rojas Garzón, Erika M. Yamada, Rodrigo Oliveira. São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica –
RCA; Washington DC: Due Processo f. Law Foundation, 2016.
36
Elaborar protocolos próprios de consulta implica em que cada povo indígena ou cada comunidade tra-
dicional e quilombola pense em como devem ser consultados pelo governo, levando em consideração suas
formas tradicionais de tomada de decisão, modos de construção de acordos internos, formas de se organizar
politicamente e de se representar perante a sociedade nacional e perante o Estado. Ao serem formalizados,
os protocolos são a definição explícita e pública de regras de representação, organização e acompanhamento
de processos de tomada de decisões de cada povo, evidenciando os jeitos considerados adequados de dia-
logar com o Estado.

24
a cultura e seus meios de subsistência. O protocolo é um instrumento jurídico que deve
ser respeitado. Quando se tem conhecimento sobre o assunto, quando a comunidade
se apresenta diante da Administração Pública e do próprio sistema de justiça com toda
documentação e esclarecidos sobre seus direitos, torna-se mais difícil a ocorrência de
violações. O acesso à justiça neste caso, é sem dúvida, ampliado.
Ainda segundo o artigo 7º onde reza que os governos devem “atuar, adotar
medidas de cooperação, com os povos interessados, para proteger e preservar os lugares
e meio ambiente dos territórios em que habitam37”, refere-se de igual modo aos impactos
ambientais, socioeconômicos, culturais, religiosos, as práticas de fazeres e saberes da
comunidade, que integram o conceito de território, conforme já abordado. Principalmente
nos pequenos municípios, são construídas industrias, cerâmicas, mineradoras e
empreendimentos imobiliários sem que seja feita as consultas prévias às comunidades
quilombolas e tradicionais que habitam a área ou o entorno dessas construções.
Advoga-se aqui nessa contribuição que as reivindicações dessas comunidades
devem estar fundamentadas naquilo que é possível fazer do ponto de vista jurídico do
direito internacional, da Convenção 169 da OIT, do sistema interamericano de Direitos
Humanos e do direito interno. As formas de atuar para dar efetividade aos direitos das
comunidades quilombolas no Brasil ganharam maior visibilidade só muito recentemente.
Percebeu-se que as instituições do sistema de justiça reconheciam ou consideravam
de menor relevância, priorizando em grande medida o direito à propriedade privada,
independentemente do modo como ela foi constituída.
Após o julgamento da ADI 3239, a Convenção 169 da OIT tende a se tornar
mais conhecida, considerando que foi referenciada nos votos, destacando sobretudo o
direito à propriedade coletiva e à reparação, o que já está bem fundamentado também na
jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos38.

4 - O direito à reparação por dano coletivo

A reparação pode ser material e simbólica. No que se refere à reparação da


escravidão39, entre outras possibilidades, pode ser materializada a partir da criação de
espaços de memória para que a memória, a verdade e a justiça históricas de fato sejam uma
realidade. Ações de reparação podem ser verificadas em casos de restituição, restauração

37
2. onde reza que os governos devem “atuar, adotar medidas de cooperação, com os povos interessados,
para proteger e preservar os lugares e meio ambiente dos territórios em que habitam
38
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso da Comunidade Mayagna
(Suma) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Sentença de 31 de agosto de 2001.
39
Sobre reparação da escravidão veja-se: NUNES, Diego; SANTOS, Vanilda Honória dos. A Comissão
Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil: considerações sobre a Reparação. In: História do
Direito. Coordenadores: Gustavo Siqueira Silveira, Antônio Carlos Wolkmer, Zelia Luiza Pierdoná. Floria-
nópolis: CONPEDI, 2015, p. 46-66.

25
de direitos usurpados (ações afirmativas, titulação e demarcação de terras quilombolas);
compensação por danos morais ou materiais; reconhecimento da importância histórica na
construção da nação e das raízes epistemológicas africana, afro-brasileira e indígena; e o
combate às consequências psicológicas do racismo.
Quando qualquer ação do estado ou da iniciativa privada afeta a comunidade,
observa-se o denominado “dano existencial coletivo” ou “dano à personalidade coletiva”,
quando interfere danosamente na vida coletiva das comunidades40. Tal fato é passível
de indenização, conforme as normas do direito interno brasileiro, especificamente
o Código Civil brasileiro de 2002, em seus artigos 178, 186, 187 e 927. Embora os
dispositivos versem sobre o dano existencial individual, no tocante aos direitos dos povos
e comunidades tradicionais, a interpretação possível e mais justa deve ser extensiva, pois
os danos são causados à toda coletividade.
Ocorreram no Brasil, durante todo o século XX, fraudes cartoriais que
impediram que comunidades quilombolas pudessem ter a posse de seus territórios. E
assim, houve igualmente o prejuízo ao exercício do direito à propriedade, às formas de
conservar e repassar os saberes, as tradições, manifestações e expressões para as futuras
gerações, sejam eles de natureza rural, religiosa, cientifica, cultural, artesanal e medicinal.
Esse processo causou danos irreparáveis ainda presentes na realidade dos membros dessas
comunidades, cabendo, portanto, reparação.
Contudo, a reparação aos povos e comunidades tradicionais ainda não é
realidade no Brasil, sobretudo para os quilombolas. Já se encontra de forma mais evidente
no direito internacional em relação aos povos indígenas, jurisprudência no sistema
interamericano de direitos humanos, conforme já mencionado.
E quando as pessoas não têm como ocupar o território? Este o caso de
várias comunidades na região do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba. O artigo 16
da Convenção 16941 esclarece as condições passíveis de reparação às comunidades,
sobretudo quando não podem retornar às suas terras devido às intervenções no território.
As comunidades prejudicadas devem ser indenizadas, reparadas por isso. A maioria dos
juristas e advogados, interpretam toda essa problemática a luz unicamente do Código
Civil de forma isolada, sem diálogo das fontes, para tratar de ações de mais de cem anos,
muitos chegam a alegar a prescrição ou decadência.

SILVA, Rodrigo de Medeiros. Dano existencial coletivo às comunidades tradicionais, com ênfase nas co-
40

munidades quilombolas e indígenas. Porto Alegre: Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais, 2017.
41 4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na ausência de tais acor-
dos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível,
terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam an-
teriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando
os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser
concedida com as garantias apropriadas. 5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e
reassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.

26
Do ponto de vista do direito dos povos de comunidades tradicionais, os
direitos não se prescrevem, trata-se de direito violado em condições alheias ao seu
controle e resistência legal. Boa parte não tem como provar documentalmente as fraudes,
esbulhos e a expulsão de seus territórios. O Ministro Luiz Roberto Barroso em seu
voto no julgamento da ADI 3239, em 08 de fevereiro de 2018, chama a atenção para a
necessidade de indenização às comunidades que perderam suas terras. O Ministro Ricardo
Lewandowski acrescenta que deve ser considerada a impossibilidade de as comunidades
provarem a expulsão, o esbulho e o desapossamento42.

Considerações Finais

Em suma, a existência, a permanência e a resistência dos povos quilombolas


contra o apagamento e o esquecimento se materializam na luta pela efetivação dos direitos
territoriais. Nos casos em que não houver a possibilidade de restituição dos territórios,
será possível a reparação, mesmo que limitada, pois aspectos de ancestralidade não se
recuperam, e existem instrumentos jurídicos para torná-la uma realidade. É preciso que
as comunidades se apropriem deles, que tenham conhecimento e busquem os meios de
aplicá-los através de parcerias jurídicas, se for o caso, ampliando sobremaneira a garantia
da efetividade dos direitos territoriais, do acesso à justiça e do controle das políticas
públicas para os povos quilombolas.

42 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3239. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/


verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=369187. Acesso em: 29/09/2018.

27
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31
Quilombolas Congadeiros,
Brasileiros das Gerais

Jeremias Brasileiro1

Foi um tempo muito difícil, custoso demais! Meu avô trabalhava na roça
e minha avó mexia com um quintal do tamanho de uma chácara. Ali, naquele quintal,
minha avó plantava de tudo! Goiaba, fruto do campo, mangava, gabiroba, jambo, tudo
encontrava lá! E ali minha mãe fazia polvilho de araruta2, três qualidades de araruta!
Ainda moçinha, ela pelejava, arrumava e dava conta daquilo. Araruta era um tipo de
planta que era usada para fazer polvilho, o melhor polvilho era o de araruta, até hoje! Um
polvilho que brilha! Uma beleza!. Minha mãe deixava a farinha secar e aproveitava para
fazer bolinhos de araruta, colocava na frigideira e todo mundo comia, fazia ainda mingau
e todo mundo procurava o polvilho! Só que tinha uma qualidade de araruta que era muita
difícil de fazer farinha, tinha de lavar quatro, cinco vezes para ela poder clarear.
A casinha onde mãe morava era de capim, de pau a pique, ela barreava quando
chovia, ela aproveitava a água, fazia o barro e cobria os buracos, aterrava a casa, que naquele
tempo não tinha piso, nada disso! Aí ela amassava barro, aterrava o chão da casa. Meu avô
ficava na roça, minha avó cuidando de mãe e irmãos, fazendo mãe ir à escola, mas às vezes
minha mãe não ia, pois, ela ia para roça ajudar meu pai. Carne era muito difícil, tinha, mas
era muito difícil. Havia um pilão, um pilão baixinho, minha avó virava o pilão, colocava
uma toalha em cima e ali estava então a pequena mesa de jejum de minha mãe. Quando
acabava de jejuar, avó rezava e oferecia o que tinha na mesinha para os filhos comer.
São essas um pouco das minhas memórias a partir das lembranças de minha
mãe com seus atuais 96 anos de histórias. Sem memórias, o passado se transforma um
vácuo e o presente se torna um caos.

1 É história oral sim, os papel o cartório queimou

Grande parte do que poderia ser encontrado em registros cartoriais sobre as


famílias negras do Alto Paranaíba e suas relações de descendências com ex-escravizados

1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia, autor de diversos livros e artigos,
pesquisador da cultura afro-brasileira, trabalha com uma perspectiva de descolonização de pensamento
ocidental, através de uma epistemologia congadeira de ancestralidade e descendência africana. É Presidente
da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba - Minas Gerais.
2
Um tipo de erva que possui um caule subterrâneo do qual se extrai uma farinha branca que é muito nutri-
tiva, sendo uma das bases alimentares das famílias mais pobres na época, década de 1920.

32
e quilombolas dessa região, notadamente Ibiá, Serra do Salitre, Rio Paranaíba e Carmo do
Paranaíba, simplesmente desapareceram em uma série de incêndios que coincidentemente
atingiu alguns cartórios dessas cidades, principalmente de Carmo do Paranaíba e Rio
Paranaíba. Incêndios em cartórios poderiam significar não apenas a queima de registros de
nascimentos, mas também de outros tipos de documentos que envolvessem propriedades
de terras.
Por isso, é sempre mais difícil para as famílias negras, buscarem e ter acesso
às suas histórias, aos seus antepassados, aos seus ancestrais. Por vezes, isso leva uma vida
inteira e é recompensador, quando se depara com alguns indícios, vestígios, possibilidades,
de existir uma conexão entre presente e passado, entre uma família congadeira e uma
resistência quilombola, entre saberes de agora, que só podem ter se originado nos tempos
dos avós, dos bisavós, tataravós. Essa é, um pouco de nossa história, a história de muitos
de nós, que é narrada por Maria Terezinha, a guardiã dessa vivência que sobreviveu por
meio da oralidade.
Eu nasci em 1943, mas até hoje me lembro de muita coisa, desde meu tempo
de criança que morava na zona rural de Rio Paranaíba. Minha bisavó, Dona Antônia,
foi criada com uma senhora que era como contavam, uma empregada de Dona Beja em
Araxá, minha bisavó ganhou dessa senhora, chamada de Dona Ana, um pedaço de terra.
Tinha um córrego que separava as terras, córrego de “Donanas” [Dona Ana], suas terras
eram mais abaixo, no meio era do padrinho Silvério, e de outro lado, em um morro, tinha
umas terras onde minha vó ficou morando e lá criou todos os seus filhos.
Era meu pai, Jeronimo Brasileiro, o tio João Brasileiro, José Brasileiro que
foi um dos formadores e deu continuidade aos congados no Rio Paranaíba, Francisco
Brasileiro, que era também o responsável pela festa da Congada em Serra do Salitre,
depois foram saindo, indo embora, cada um indo para um lado. João Brasileiro foi para
Uberlândia, o Zé Brasileiro foi para Araxá, o Chico Brasileiro para Uberaba, o Tio
Cirino foi depois para Cuiabá, no Mato Grosso. Minha avó só teve filhos homens. Lá
era uma colônia, era o Antonio Chato [Antonio Borges]; tio Joaquim; tia Marciana;
filhos de Dona Antônia, mãe de minha avó, Brazilina; e a madrinha Narcisia, que
era sobrinha de minha avó. Todo mundo ficou agrupado lá na zona rural, na fazenda
“Donanas”.
Minha bisavô Dona Antônia que ganhou as terras dessa mulher lá de Araxá,
empregada de Dona Beja, a bisavó Antônia nasceu na região de Araxá e Ibiá, naqueles
cerradões de lá, perto do tempo da escravidão, ou escravidão ainda, não dá para saber
direito, essa Dona Ana tinha ganhado muitas terras na região de Rio Paranaíba, Serra do
Salitre, essas terras faziam divisa com outro lugar chamado de Lambari, onde nossos pais
trabalharam, em uma condição assim, quase que do tipo de escravos, era o serviço que
havia, eles tinham então de aceitar.

33
Comer, era o que tinha, arroz, feijão, canjiquinha, não tinha acesso a muita
coisa, pegava era essas coisas para comer. Mas é por isso que ainda tem famílias
esparramadas alí por Patos de Minas, Ibiá, Araxá, tem no Capão da Paia, lá era lugar de
negros, grandes famílias negras que também eram lá de tempos de quilombos, mas agora
mudaram o nome para Comunidade de São Pedro. Se achar a certidão de nascimento de
minha avó Brazilina, certamente pode até achar o nome completo da bisavô Antônia, daí
daria talvez para chegar mais longe nessa história. É que quando a gente ia querer saber
dessas coisas, falavam para nós que tinha pegado fogo nos cartórios, que os papel com
esses registros o cartório queimou, ou seja, era muita coincidência, os cartórios pegarem
fogo em determinada época.
É uma história muito rica, a Dona Praxedes que todo mundo chamava de
Dona Precheba, morava no grotão, no distrito de Chaves, em Rio Paranaíba, a Dona
Praxedes, mãe de Sr. Aristeu que era Rei Pérpetuo da Festa do Rosário, era tia de minha
mãe, ou seja, a Festa da Congada está ligada a nossa família há mais de cem anos, pois
Dona Praxedes faleceu com 120 anos, e isso, há mais de quarenta anos atrás, lá nos inicios
dos anos setenta [década de 1970].
Eles não tinham definição para colocar nomes nas famílias, era chico Picapau,
Tõe Chato, Tereza e Borges, Brasileiros, as vezes sobrenomes de fazendeiros, Geraldo do
Celestino, mas Geraldo era filho de Tia Abadia, irmã de minha mãe, acontece que a vida
toda, desde menino, morou nessa fazenda do Celestino, então era Geraldo do celestino.
Também era comum os pais chamarem os fazendeiros para batizar os filhos.
O que Maria Terezinha relata, é de como se constituiu a família dos Brasileiros
na região do Alto Paranaíba, em Minas Gerais. Uma história que só mais recentemente
começa a ganhar força em decorrência de nossos estudos acadêmicos e de igual modo,
pelo interesse que muitas outras famílias possuem em saber de suas histórias, inclusive
aquelas que tem fortes ligações com um passado quilombola na região e que também por
diversos motivos, começam a se auto reconhecerem enquanto famílias remanescentes de
quilombos.
A família de Jerônimo Brasileiro, João Brasileiro, Francisco Brasileiro, José
Brasileiro e Ovídio Jerônimo, tem um histórico de tradição congadeira em Araxá, Serra
do Salitre e Rio Paranaíba, pois, as Congadas que hoje ainda resistem nessas cidades, tem
muito a ver com a lutas desses personagens lá no passado, como é possível perceber-se a
partir de imagens que retratam a década de 1930 em Serra do Salitre e na cidade de Araxá,
e década de 1970 em Rio Paranaíba.
O surgimento do Reinado do Rosário em São Francisco das Chagas
do Campo Grande - atual Rio Paranaíba cidade de Minas Gerais - vem desde o
ano de 1757 e é possível ter-se essa constatação a partir do botânico, naturalista
e viajante Francês, Auguste de Saint-Hilaire, ao passar por essa localidade

34
no respectivo ano e verificar no vilarejo, choças habitadas por negros, que
descalços, sem camisas e a vestir calças de algodão, usando chapéus na cabeça
e rosários presos aos pescoços, ofereceram através de uma jovem mulher negra,
uma imagem talhada em madeira de São Benedito, o protetor das congadas e
padroeiro dos negros3.
Em 1763, a população aproximava-se de 1500 pessoas. Esse aumento
constante era causa do fluxo migratório, oriundo do Sul de Minas, e, é nesse ano
que terminam a construção da Capela do Rosário, no entanto; só em 1844, oitenta
e um anos depois, é concluída a Igreja Matriz, ficando a do Rosário destinada às
atividades religiosas dos negros escravizados, livres ou fugidos, geralmente do Sul
de Minas.
Por volta de 1853, surge oficialmente documentos a respeito de
escravizados chamados de trabalhadores, que já estavam na região desde 1628,
a maioria registrada como garimpeiros. "Havia uma fábrica de ferro, pertencente
ao Capitão Francisco Mendes de Carvalho com 4 escravos para os trabalhos4". A
destruição de documentos - do Município de Rio Paranaíba - existentes no Cartório
de Carmo do Paranaíba, pode ter comprometido para sempre, a história dos
escravizados em garimpos e fazendas do então arraial de São Francisco das Chagas
do Campo Grande; oficialmente reconhecido com o nome de Rio Paranahyba no
ano de 1924.
No ano de 1847, já existia evidências concretas da festa do rosário. Eram
grupos pequenos, constituídos de oito a doze dançadores, tendo como instrumentos
principais, os tambores, reco-reco e pandeiros para os Congos e as caixas, conta de
lágrimas e sementes dentro de pequeníssimas cabaças amarradas acima dos tornozelos
ou servindo às mãos como chocalhos agitados pelos moçambiqueiros, ou, os tamborins
confeccionados pelos catopês ou catupé do Capão da Paia, como dizia Ovídio Jerônimo.
Quirino, ex-escravo do Barão de São Francisco, mesmo em estado de saúde
paupérrima devido à velhice, tentava acompanhar a Festa do Rosário que possuía como
festeira oficial, Dona Albina Maria de MeIo, filha de Manoel Joaquim Cabral de MeIo. Os
festejos no arraial duravam dias, os maçarandás (mastros) eram erguidos em um domingo
e o seu descimento só ocorria no domingo próximo após uma semana de intensos festejos
realizadas no terreno em declive frente à Igrejinha do Rosário. Nesses grupos quase
que africanizados, não havia nenhum dançador branco e mesmo assim, a única devoção
permitida aos congadeiros através de seus batuques, era de entrega total a Nossa Senhora
do Rosário.

3
Cf. MARTINS, Tarcísio José. Quilombo do Campo Grande: a história de Minas roubada do povo. São
Paulo: Gazeta Maçônica, 1995, p. 151.
4
VARGAS, José Resende. Rio Paranaíba: História e Estórias de São Francisco das Chagas de Campo Gran-
de. Impresso Gráfica/Editora Ltda., 1995, p. 31-34.

35
A Igreja Católica proibia qualquer outro tipo de religiosidade e até mesmo os
protestantes eram vítimas, sofriam perseguições quando tentavam instalar-se no arraial.
Por isso, os negros que evitavam adorar Nossa Senhora, sendo livres ou escravos, eram
obrigados pelos donos de garimpos e fazendeiros, a usarem o crucifixo cristão.
Entretanto, mesmo com esse rígido aparato opressor, havia o Sineiro do
Rosário que ao anunciar nascimentos, mortes ou festas, intercalava entre essas badaladas
notícias de fugas, roubo de diamantes e reuniões clandestinas. O dicanza (reco-reco),
espécie de bambu dentado e usado em grupos de Congo tinha origem africana e Sô
Joaquim (Zé Mingau) cuja avó fora uma índia, era um participante ativo dos festejos
negros ocorridos na Vila; Maria Joaquina, esposa de Sô Joaquim, bisavós matemos de
Jeremias Brasileiro, juntamente com Francisco Mendes da Silva e Maria Conceição de
Jesus - avós matemos; João Jerônimo da Silva - assassinado com tiro de espingarda ao
abrir uma porteira, por causa de demanda envolvendo porcos que estavam destruindo sua
plantação de mandiocas - e Brazilina Maria de Jesus – avós paternos - sempre viviam em
sintonia com as atividades congadeiras em São Francisco das Chagas.
É sintomático que a historicidade dessa região e a sua relação com
a Congada, a luta quilombola e a escravidão, bem como da presença efetiva de
escravizados que não só contribuíram com sua mão de obra para o desenvolvimento
econômico como fizeram com que suas formas de ver o mundo através da religiões, se
fizessem presente através das manifestações em louvor a Nossa Senhora do Rosário.
Em Araxá, por exemplo, a considerar-se “o total de escravos, sem distinção de sexo,
as listas nominativas de 1831-32 apontavam 36,1% dos cativos como de origem
africana. Nos inventários, para a primeira metade do século XIX, verifica-se em
1826-1829 e 1836-1839, a proporção de escravos de origem africana relativamente
próxima a encontrada na lista de 1831-32, 32% e 35,4%, respectivamente5”.
Por isso é fundamental ressaltar a importância histórica dessas famílias
negras remanescentes dos quilombos, das congadas, dos saberes, viveres e fazeres
através das religiosidades, na arte das benzições, das rezas, das curas, das tradições
religiosas de matriz africana e afro-brasileiras de muitos descendentes de ex-
escravizados que resistiram e continuaram resistindo na região do Alto Paranaíba,
constituindo inclusive, comunidades rurais habitadas por negros livres e outras
por escravizados que se organizavam para viver em liberdade, a ocupar terras
onde se concentravam mananciais de água, propícias para plantações de gêneros
alimentícios de primeira necessidade e ao mesmo tempo, de difícil localização e
acesso, como poder verificar-se-á no texto a seguir, cuja abordagem é o Quilombo
de Ambrósio.

5
REIS, Déborah Oliveira Martins dos. Características Demográficas dos Escravos em ARAXÁ (MG),
1816-1888. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH/USP. 2011.

36
Imagem 01 - Dir./esq: o 5º em pé é João Brasileiro; o 8º é Francisco Brasileiro; o 13º é
José Brasileiro de Araxá; todos, irmãos de Ovídio Jerônimo e de Jerônimo Brasileiro, que
sempre foi responsável pela Igreja do Rosário de Rio Paranaíba. A imagem é do ano de
1931, em Serra do Salitre, Alto Paranaíba, Minas Gerais. AcervoDigital/JeremiasBrasi-
leiro, 2017.

Imagem 02 - Grupo de Congado de José Brasileiro, em princípios da década de 1940, na


cidade de Araxá. AcervoDigital/JeremiasBrasileiro, 2017.

37
Imagem 03 - Festa do Rosário de Rio Paranaíba no início da década de 1970. Atrás do
maçarandás e de quepe branco, está Ovídio Jerônimo, um dos levantadores do Catupé
Capão da Paia, organizador de festas em Serra do Salitre e Rio Paranaíba. AcervoDigital/
JeremiasBrasileiro, 2017.

38
Imagem 04 - Dona Neuza Maria Aparecida, capitã de grupo de Congado em Serra do
Salitre, quilombola remanescente do quilombo da Família Teodoro de Oliveira e Ventura.
Fonte: Neuza Aparecida, 2015. AcervoDigital/JeremiasBrasileiro, 2017.

39
Ambrósio seria um, ou Ambrósio seria muitos?
Quilombos, Congadas e resistências.

Jeremias Brasileiro1

Os quilombos estão diretamente ligados ao período escravocrata no Brasil,


e em Minas Gerais, ainda há pouca produção historiográfica sobre as suas existências,
motivo do desinteresse acadêmico pelo assunto que atravessou as décadas, sendo que
o interesse inclusive dos folcloristas de época estavam voltados principalmente, para as
manifestações culturais e religiosas, como no caso das Congadas, por exemplo. No início
do século XVIII, já se identificava-se manifestações da cultura religiosa da Congada2 em
Minas Gerais por meio de registros de viajantes europeus, folcloristas, padres e leigos
católicos.
Contudo é possível considerar que esses rituais existisse muito antes das
primeiras anotações desses observadores europeus e naturalmente, para a época, apesar
de evidenciar visões importantes, estavam impregnadas de preconceitos, em que negros
livres ou escravizados eram destituídos de suas dignidades humanas, vistos como
exemplares exóticos, alegres, farristas, malandros, pouco afeitos ao trabalho.
Durante séculos foi construído esse ideário sobre a indolência do negro,
pejoratividades essas fundamentadas com estórias que justificavam as “razões” pelas quais
os negros eram seres inferiores, despreocupados, festivos, sem compromissos maiores
com a vida. A dinâmica dessas agressividades seria fazer com que o negro reagisse ao
“estágio de preguiça”, no entanto, todo esse arcabouço de negatividades contribuía para
a fundamentação de uma visão racista e preconceituosa em relação aos escravizados, que
quanto menos estima possuíssem, menos problemas causariam aos escravocratas.

1 - Quilombos, poder e resistência

Um dos acontecimentos interessantes que contradizem essa “passividade do


negro” diante das adversidades da vida, está nas diversas rebeliões que os próprios faziam

1
Doutorando em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia, autor de diversos livros e artigos,
pesquisador da cultura afro-brasileira, trabalha com uma perspectiva de descolonização de pensamento
ocidental, através de uma epistemologia congadeira de ancestralidade e descendência africana. É Presidente
da Irmandade do Reinado do Rosário de Rio Paranaíba - Minas Gerais.
2
Utiliza-se o termo Congado como referencial de organização cotidiana. Muitos autores preferem adotar
a expressão Congada, principalmente quando trabalham com rituais, danças, festas, procissões e desfiles.
Vários, porém, usam Congada a partir dos estudos de Mario de Andrade (1982), que utilizava para esses fins
e outros, a nomenclatura “Danças Dramáticas”.

40
por todas as regiões do Brasil Colônia. Em Minas Gerais, onde as irmandades do rosário3
se vinculavam ou estavam em conformidade com a igreja – também por uma questão de
sobrevivência – e que, por fé, devoção, submetiam-se aos ritos cristãos, contrariamente,
isso não impedia a organização de possíveis insurreições. Em um relato registrado à época,
percebe-se nitidamente que os negros, reunidos nessas irmandades, buscavam alternativas
de liberdades que muitas das veze terminavam em insucessos, mas buscavam:

No ano de 1719, D. Pedro de Almeida comunicava alarmado, o plano de levante


geral dos negros. Alguns dias antes da semana santa, devido a discussões
sobre a nação de que deveria sair o rei, quebrou-se o segredo, na comarca do
Rio das Mortes (Sabará). Mandou então o Governador o Tenente – General
João Ferreira Tavares à Comarca do Rio das Mortes, onde foram presos os
reis Angola e Mina e cabos e oficiais já nomeados para a dita sublevação.
Poderia D. Pedro de Almeida ter ficado alarmado com a eleição de reis e
rainhas de verdade? É possível. Mas, sua comunicação ao monarca referia-se
a documentos e provas da tentativa de levante e acrescentava que não era a
primeira sublevação que os negros intentavam4.

Esse relato é resultante de uma tentativa de rebelião que os negros da


irmandade do rosário pretendiam desencadear por ocasião das comemorações da semana
santa, quando os rebelados, aproveitariam a ausência das famílias que estariam nas
igrejas, para saquearem suas casas, levando alimentos e principalmente armas, matando
os brancos que porventura reagissem. Desse modo, tomariam o poder local na Comarca
do Rio das Mortes, transformando-a em uma região quilombola, como tantas outras já
existentes e que causavam transtornos constantes aos representantes da coroa portuguesa.
Ao que parece, de acordo com o relato, a rebelião não obteve sucesso em
decorrência das desavenças internas entre as nações de “Angola” e “Mina”, a respeito de
quem deveria ser eleito Rei Congo e Rainha Conga no ano de 1719. Isso teria feito com
que os derrotados, não satisfeitos com o resultado, quebrassem o segredo e delatassem
a sublevação que seria deflagrada na semana santa daquele ano. É pertinente assim,
o entendimento de que a Congada em Minas Gerais, a partir da utilização dos termos
congos e reisados, tenha tido o seu início nos anos de 1700, quando já eram identificados
“batuques de negros” na cidade de Ouro Preto e que junto a essa conjuntura, negros
congadeiros igualmente rebelavam-se e não conformavam-se com as suas existências de
cristãos escravizados.

3
Cf.: BRASILEIRO, Jeremias. Irmandades de Nossa Senhora do Rosário: reflexões a respeito de suas for-
mações complexas. In: O ressoar dos tambores do Congado - entre a tradição e a contemporaneidade:
cotidiano, memórias, disputas. (1955 - 2011), p. 57-68. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2012.
4
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte: (S.ED.) 1972,
p. 155-157.

41
Rei Ambrósio, surge nas discussões e debates como sendo de dois lugares,
de vários lugares, na tradição oral. É aquele agricultor que existiu e resistiu como um
guerreiro das armas, como um chefe das lutas quilombolas a enfrentar várias batalhas
em diversas povoações sob a identidade de Quilombo do Campo Grande. Portanto, não
se trata de um mito e sim de um líder quilombola, uma noção que poderia muito bem ser
atribuída ao Rei Ambrósio5. Naturalmente que os mitos são interessantes e contribuem
às vezes para a constituição de identidades de um povo, principalmente quando surgem
a partir da criação orgânica, tradicional das comunidades a lutar por seus territórios
quilombolas que naturalmente interessavam aos fazendeiros, ao estado, por se tratar de
terras férteis.
Terra e ouro, duas motivações centrais que justificavam o aniquilamento de
povoações que abrigavam negros livres e brancos pobres e não somente escravos fugidos
sediados em regiões denominadas de quilombos. Mais que a construção literária de um
mito, de um herói que representasse a “virtuose” sob os desígnios de uma cultura ocidental
e racista de época, essas representações contribuíam para o paulatino desaparecimento de
povoações quilombolas, para no lugar dessas, ocuparem os territórios, os fazendeiros
oriundos do poder político da coroa portuguesa e de suas ramificações no interior de
Minas Gerais, sem considerar quaisquer tipo de posse anterior, pois os negros fugidos
quando se embrenhavam nas matas, tornavam-se em desbravadores que utilizavam as
terras para agricultura de subsistência, sem esquecer, que nesses lugares encontravam
pedras preciosas, diamantes, ouro e sobretudo, enormes reservas de mananciais de água.
Procede portanto das artimanhas jurídicas do Estado a destinação de poder para
destruir povoações quilombolas a muitas pessoas brancas possuidoras de bens materiais,
incluindo armas. Esse pressuposto, sustentado por leis e decretos6, possivelmente fez
com que aqueles detentores do poderio econômico à época aproveitassem-se dessas
circunstâncias para apropriarem-se por meio da violência das armas ou de arcabouços
jurídicos, de expressivas extensões de terras, dentre as quais já habitavam negros e
brancos pobres em muitas dessas regiões que vieram a ser posteriormente consideradas

5
Conforme vários estudos, o Quilombo do Ambrósio ou Campo Grande envolvia uma extensa região que
poderiam ser denominadas de “comarcas quilombolas” que se iniciavam à margem direita do Rio Grande e
norte de São José e São João Del Rei, entre os rios Pará e Paraopeba chegando-se até a atual região de Ibiá/
Serra da Saudade e Medeiros, sendo que as lutas quilombolas se originaram a partir da destruição de povo-
ados de negros livres ocorridas em 1746, principalmente, conforme cita Martins (1995).
6
Na tentativa de impedir que muitas vilas se tornassem povoados sob a direção de pretos livres, surgiam ale-
gações como a da câmara de São João Del Rei em 1795 sobre a possibilidade do distrito ou vila de Campanha
vir a se tornar povoado: “ não deve ser atendido tanto o seu número quanto sua qualidade: os moradores
daquele lugar são a maior parte mulatos, escravos e mestiços, e Sua Majestade recomenda nas suas leis que
se elejam para juízes e vereadores homens de nascimento, conceito”. (Revista do Arquivo Publico Mineiro,
ano I, fase 3ª, p. 461). MARTINS, Tarcisio José. Quilombo do Campo Grande: a história de Minas roubada
do povo. São Paulo: Gazeta Maçônica, 1995, p. 156.

42
sesmarias7. A Sesmaria era uma forma de concessão que a administração colonial
portuguesa propiciava aos colonos que se dispusessem-se a transladar-se e permanecer
nas colônias com o objetivo de promover a sua ocupação e a possível produtividade das
mesmas. Essas concessões implicavam no pagamento de dízimos às ordens religiosas e
de estarem sujeitas a outras condições8.
Nesse contexto é interessante pensar sobre a concepção de Quilombo de
forma sumariada9. Quilombo na atualidade possui no mínimo duas concepções: o urbano
e o rural. Por quilombo rural compreende-se aquele em que as comunidades vivenciam
práticas sociais e culturais vinculadas a um espaço geográfico que lhes permita manter
tradições oriundas de seus antepassados. Desse modo, os remanescentes ocupam espaços
onde a comunidade tem acesso a rios, lagos, terras férteis para plantio e agricultura de
subsistência, principalmente, ou para a comercialização dos mesmos, bem como de
outras atividades artesanais e de gêneros alimentícios diversificados. Tem desde a época
do escravismo uma concepção de organização política própria.
No que concerne ao Quilombo Urbano, é aquele em que verifica-se em
um determinado período histórico uma expressiva presença de pessoas negras que se
autodenominam atualmente descendentes de quilombolas. São esses, remanescentes dos
antigos quilombos ou de povoados similares, que por circunstâncias diversas tiveram
de deslocar-se de seus lugares e procurar outras regiões ou que tornaram-se vítimas
das especulações imobiliárias, ajuntando-se dessa forma, em bairros periféricos que são
denominados de quilombos urbanos, lugares em que presencia-se uma forte presença de
pessoas negras. Quando pensa-se sobre a questão de quilombos e povoados, nota-se que
as terras poderiam ser em um primeiro momento usurpadas de quem nelas já habitavam,
ou seja, os indígenas e os negros livres ou escravizados quilombolas e dos próprios
brancos pobres que embreavam-se pelo interior dos sertões de minas. Os que resistiam
em seus quilombos ou povoados, negros livres ou escravizados, eram aniquilados se
fossem pegos.

7
Tarcísio Martins observa que entre os chamados quilombos, nem todos eram de escravos fugidos, que
muitos desses “quilombos” descobertos que também se tornaram em sesmarias possuíam na realidade, po-
voados habitados por pretos livres, sendo que os povoados que se submeteram aos oficializadores de vilas,
sobreviveram e deram origem a muitas das cidades de Minas Gerais, enquanto que aqueles que resistiam
eram considerados quilombos, justificando dessa forma, a sua destruição.
8
O TREM DA HISTÓRIA. Boletim Informativo do Departamento de Patrimônio Histórico da Funda-
ção Cultural Calmon Barreto de Araxá. Julho/Dez. 1996. Nº 21. Ano 06. Araxá: FCCB, 1996, p. 06.
9
Sobre Quilombos ver: ANDRADE, M.P. Terra de Índio: terra de uso comum e resistência camponesa. São
Paulo: FFLCH. Tese de doutorado, 1990; BANDEIRA, M. L Território Negro em Espaço Branco. Estudo
antropológico de Vila Bela. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1988; CARNEIRO, E.: O Quilombo dos Palma-
res. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1958; GUSMÃO, N.M. Os Direitos dos Remanescentes de Quilombos.
Cultura Vozes, nº 6. São Paulo: Vozes, nov/dez de 1995; MOURA, M. M. Os Deserdados da Terra. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998; SILVA, L.O. Terras Devolutas e Latifúndio - Efeitos da lei de 1850. Campi-
nas: Unicamp, 1996.

43
Quem detém a posse da terra, é dono do ouro, de diamantes, de chão fértil
para a agricultura e a pecuária extensiva, e, um dos episódios obscuros de Minas Gerais
que referem-se aos quilombos propriamente dito, está justamente na identificação de
seus “heróis” como gente subversiva que mesmo na historiografia surgem sem nome
próprio, lideres anônimos como rei Ambrósio, sem nome, sem sobrenome, somente o Pai
Ambrósio, o Rei Ambrósio. É essa a memória de um líder que mesmo reconhecido como
guerreiro, ficou apagada da história e que só a tradição oral, a partir de sua recorrência ao
passado, tenta trazer luminosidade, uma vez que aos que construíram o tempo da memória
passada, não interessavam divulgar a figura de um líder que poderia posteriormente
tornar-se mártir de um povo oprimido.
Por isso, ser dono da terra e do ouro era não permitir que muitas extensões
de terras pudessem vir a tornar-se propriedade material de negros livres ou de escravos
fugidos. Desse modo a justificativa de aniquilamento dessas povoações recorrendo-
se ao fato de que onde houvesse negros formando povoados, estaria na realidade uma
comunidade de quilombolas, de revoltosos, que precisavam ser destruídos. Vejamos um
depoimento de um líder quilombola que atualmente luta pelo reconhecimento de uma
propriedade na região do Quilombo de Ambrósio atacado em 1759, sendo esse, um dos
remanescentes desses seus antepassados, o Sr. José Ventura da família dos Venturas e
Oliveiras situada no município de Serra do Salitre em Minas Gerais:

A gente precisa contar que quilombo é lugar de família, de resistência de um


povo oprimido e não de gente assassina, aliás, o assassino é o Estado e aqueles
que são seus protegidos, digo isso porque gente de minha família já foi morta
por lutar por nossas terras que foram frutos de doação, mas sempre achavam
melhor tratar nosso povo como escravos fugidos que deviam ser mortos em
seus povoados, mesmo que fossem lugares de gente livre, que produzia na
terra para sobreviver. Nós agora temos condições de contar a nossa história
sem deixar que tirem o brilho da luta de nossos ancestrais de guerreiros
quilombolas, de gente capaz, quiseram, nos tirar da história do Brasil, mas
somos os quilombos da beira do Rio Paranaíba que a maioria dos historiadores
esconderam10.

A família continua em luta, os remanescentes dos Venturas e Oliveiras, buscam


por todos os meios legais a posse de suas terras herdadas por seus antepassados, herança
real testamentada em cartório por um fazendeiro, a uma filha de ex-escrava. Por isso,
discussão como essa – referente especificamente a esse quilombo – que ora abordamos,
só no século XXI adentra no espaço acadêmico, visto que a realidade do Quilombo dos
Venturas e Oliveiras permanece ausente das Academias do Triângulo Mineiro, Alto

10
VENTURA, José. Coordenador da Central das lideranças Quilombos do Triângulo Mineiro e Alto Para-
naíba - MG. Depoimento obtido em 29/07/2011.

44
Paranaíba e não tem-se notícias de estudos sobre o mesmo em Minas Gerais ou noutras
instituições de ensino do país11.
De acordo com José Antônio Ventura, embora a família possua documentos e
inventário que comprovem a titularidade da área em nome deles, muitos já foram expulsos
das terras, sendo que entre os anos de 1930 e 1942, 10 familiares foram supostamente
desaparecidos, justamente quando estavam perto de conseguirem comprovar a posse da
terra. Quem viajava nunca mais voltava”, comenta.
Além disso, “quando alguém consegue chegar ao cartório para ver os
documentos, o cartório se recusa a entregá-los”, completa. Outro problema enfrentado
à época, é que um antigo espaço destinado ao cemitério da família foi derrubado pela
prefeitura e conforme relata José Ventura, “as ossadas de seus familiares foram sendo
jogadas fora, sem cuidado algum12”. O desprezo aos restos mortais pode ser caracterizado
como uma das outras formas de intimidação para que as famílias resistentes desistam de
retornar às terras em que seus pais, avós, viveram e sobreviveram após o abolicionismo.
As atividades desenvolvidas pelos quilombolas nessa região envolviam toda
uma rede de possibilidades que facilitavam a sobrevivência da comunidade como, por
exemplo, a questão da caça, da coleta, da produção de alimentos como milho, “favas”
e outros gêneros alimentícios, além da criação de gado, da mineração, do contrabando
e assaltos a tropas do governo e de fazendeiros. No caso do Quilombo de Ambrósio,
seus criadores utilizaram para a sua localização, vários elementos que lhes possibilitavam
resistência, fugas e sobrevivências cotidianas, conforme nota-se no depoimento de um
morador de Ibiá e do movimento negro da cidade:

o quilombo de Ambrósio é um símbolo de resistência para que a gente passe


aos futuros filhos, porque sem algo concreto, não entra na mente deles, então
a gente tem de ter algo concreto, para que eles vejam. Foram vários ataques,
foi necessário um especialista em quilombos para vir a região, que se não
me engano foi Bartolomeu Bueno Prado, aqui era uma espécie de capital da
Confederação dos Quilombos, onde que Ambrósio era o líder, então ele fazia a
união desse pessoal, então o conhecimento que a gente tem dele é de um líder
de uma comunidade que souberam escolher a região13.

Lugares baixos poucos visíveis que lhes propiciavam a defesa de seus


territórios, maiores proximidades com rios e córregos que contribuíam não só para a
pesca como também para a manutenção da comunidade, área de caça próximas às matas

11
Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=2482. Acesso em novembro de 2011.
12
José Antonio Ventura. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=2482. Acesso em novembro de
2011.
13
SILVA, Cleto Mário da. Presidente do Movimento Negro de Ibiá-MG. Depoimento. Programa Triângulo
das Gerais, 20/11/2011. Arquivo em mídia som, color, legendado, tempo: 12’ (NTSC). Realização: CLOSE,
Uberlândia, 2011.

45
que circundavam as diversas nascentes de água, regiões de terras férteis para a produção
de alimentos e lugares próximos às áreas de minerações, fatores esses que ajudavam os
guerreiros quilombolas na prática de contrabando e de assaltos a tropas de comerciantes
ou mesmo a viajantes14. Cleto Mário emociona-se ao falar de um passado que sobrevive
com poucos vestígios arqueológicos

Quando a gente entra aqui [no quilombo], a gente arrepia de saber que existiu
uma pessoa que lutou, que deu a vida, tipo o Ambrósio, que deu a vida para
a liberdade das pessoas, isso aí não tem explicação de dizer o que você sente.
Quando havia diligências, se fosse de comerciantes, eles comercializavam os
produtos que eles possuíam, e se fosse diligências de corruptos, que na época
existiam, roubando o ouro da corte, eles assaltavam, os quilombolas eram
muito bem informados, porque não foram só escravos que vieram para cá,
vieram muita gente quando souberam o movimento de ouro, de agricultura,
que vieram por conta própria, infiltravam-se no meio dos escravos e iam para
os quilombos15.

É preciso considerar por quais razões esses conhecimentos foram ignorados


e a relação com “quilombos” fora dos estudos acadêmicos, principalmente em Minas
Gerais, tenha sido desconsiderada. Consideramos que a difusão da figura de um líder
quilombola seria mais perigosa do que a de um Rei do Congo inserido no contexto do
trabalho e não da revolta.
De outro lado o interesse da sociedade escravocrata e seus adeptos em
não propagar por meio de estudos mais abrangentes a existência de um quilombo tão
estruturado e forte no Estado; que resistia à opressão meio século depois de ser destruído,
o conhecido Quilombo de Zumbi dos Palmares. Por isso, quanto menos fosse conhecida
as demais rebeliões quilombolas Brasil afora, mais fácil poderia ser destruir no início
essas revoltas no interior de Minas Gerais.

2 - Um líder quilombola ou vários líderes com nomes idênticos em guerras constantes?

Ambrósio era um agricultor, possuidor de terras ocupadas por vários núcleos


familiares de negros livres e que teve suas terras invadidas, tomadas pela força das
armas como se as mesmas fossem de quilombolas fugidos, amotinados, escravizados. O
agricultor que transforma-se em “guerrilheiro” e depois considerado Rei Ambrósio, não

14
CARDOSO, Juliana de Souza; GUIMARAES, Carlos Magno. Arqueologia de Quilombos: arquitetura,
alimentação e arte. Documentos diversos e dossiê de tombamento do Quilombo do Ambrósio. Prefeitura
Municipal de Ibiá/ Instituto do patrimônio Histórico e artístico nacional/IPHAN, Brasília, 1998.
15
SILVA, Cleto Mário da. Presidente do Movimento Negro de Ibiá-MG. Depoimento. Programa Triângulo
das Gerais, 20/11/2011. Arquivo em mídia, som, color, legendado, tempo: 12’ (NTSC), N. 499/2012. Reali-
zação: CLOSE, Uberlândia, 2011.

46
possui biografia a não ser aquela construída pela tradição oral que perdeu-se ao “longo
das ventanias das memórias dispersadas” por uma ausência sistemática de negação
historiográfica de um líder quilombola, que se alçado à condição de “herói” influenciaria
centenas de comunidades quilombolas e povoados habitados por negros livres a
continuarem resistindo em seus territórios que foram em muitos casos posteriormente
transformados em terras devolutas do Estado, ocupadas por fazendeiros, políticos,
comerciantes, militares e a própria Igreja católica.16
Várias batalhas foram travadas contra os negros quilombolas que
encontravam-se principalmente em terras que o governo da capitania desejava ocupar,
por isso, as frequentes concessões de sesmarias aos fazendeiros que podiam ser nomeados
para investir e destruir quilombos, sendo que um dos núcleos mais resistentes ocupavam
uma faixa que envolvia as serras da Marcela, da saudade, o campo Grande e a Serra da
Canastra, tendo sido o Quilombo de Ambrósio derrotado por três vezes, pois ressurgia
em outros lugares17. Portanto, as lutas quilombolas pela posse de terras e de povoados
habitados por populações não escravizadas e que ocupavam várias extensões de terras
agricultáveis eram constantes.
Em meados do século XVIII, Ambrósio ao fugir do pagamento de Imposto de
Capitação que vigorou em Minas Gerais, estabeleceu-se como muitos outros negros na
região onde atualmente se encontram os municípios de Aguanil, Campo Belo e cristais,
formando ali o que se denomina como a primeira povoação quilombola de Rei Ambrósio18.
Eis que a indagação é por qual razão ofuscar a existência de um líder quilombola em uma
das regiões mais violentas do país no tocante à destruição de povoações de negros livres?
Temor de que as gerações seguintes soubessem que havia muitos negros livres, donos de
algumas porções de terras e que se transformaram em agregados de fazendeiros ou foram
obrigados a sair de suas terras por causa de assassinatos? Recuperar Ambrósio é refletir
sobre o processo de luta de libertação, de já libertos desejarem viver e constituir suas
visões de mundos.
Reconstituir a figura emblemática de Rei Ambrósio não é simplesmente forjar
um “herói” e oferecê-lo ao povo negro quilombista em especial. Discutir a existência e
paralelamente o ofuscamento de Ambrósio, permite pensar um contexto mais amplo sobre

16
As concessões de sesmarias, por exemplo, implicavam também no pagamento de dízimos às ordens re-
ligiosas, além de estarem sujeitas a outras condições. O TREM DA HISTÓRIA. Boletim Informativo do
Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Cultural Calmon Barreto de Araxá. Julho/Dez.
1996. Nº 21. Ano 06. Araxá: FCCB, 1996, p. 06.
17
Sobre a porquê de doação de sesmarias como forma de ocupação de terras em que se localizavam essas
povoações quilombolas, cf., a “guerra contra os quilombos”. LOURENÇO, Luis Augusto Bustamante. A Oes-
te das Minas: escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista/Triângulo Mineiro (1750-1861).
Uberlândia: Divisão Gráfica da Universidade Federal de Uberlândia, 2002, p. 73-75.
LIMA, Maria Salomé Reis Alves de. Festa cultural: o reinado em Aguanil, Campo Belo e Cristais - a força
18

da tradição, a história de um povo. Campo Belo: Grafisa, 2010.

47
as dinâmicas de resistências das povoações quilombolas e de negros livres nos sertões das
Minas Gerais, demonstrando os seus vários meios de lidar contra um sistema opressor
do qual não se submetiam como vítimas escravas que não se rebelavam, tornando-se
em vitimizados históricos do escravismo, como em larga escala muitos estudos tentaram
demonstrar.
O debate proposto é no sentido de reconhecimento dos homens e mulheres
sob a liderança de Ambrósio, que questionaram por meio do uso da revolta armada, a
situação de exclusão, exploração e aniquilamento de agentes históricos, negros livres que
procuravam sobreviver utilizando suas técnicas de resistências e outras formas como caça
e pesca, criação de animais e exploração de pequenas jazidas em locais de mineração;
sendo que esse desconhecimento, esse ofuscamento de Rei Ambrósio faz com que se
negue às povoações negras o direito a sua própria história.
Evidente que aos poucos uma nova historiografia está sendo construída e isso
tem muito a ver com a presença de novos sujeitos nos espaços acadêmicos, vários desses
com ligações diretas com as lutas quilombolas e as histórias ocultadas desse povo pela
historiografia tradicional. O revisionismo do ponto de vista de outros olhares é salutar,
amplia o debate e anuncia um novo tempo de estudos problematizadores por aqueles
que outrora foram só objetos de pesquisa de academias. E é essa inversão dos lugares
que igualmente incomoda os tradicionalistas que pensam ser o lugar de fala, o espaço do
subjetivismo e não do intelectual.
Ser estudado por aqueles que se julgam os únicos detentores de discursos não
parece ser incomum, é naturalizado essa fala de autoridade, o questionamento surge é no
momento oportuno quando sujeitos provenientes desses lugares pesquisados, tornam-se
autores de suas próprias vozes e de igual modo de suas comunidades. O desvelamento que
tem-se buscado sobre a importância histórica do Quilombo de Ambrósio e de seu líder
quilombola maior em Minas Gerais, é sobretudo a partir de fontes já escritas, entretanto,
muitas dessas, ofuscantes da historicidade ambrosiana nos campos grandes do Triângulo
Mineiro e Alto Paranaíba.
Revelá-lo, trazê-lo à luz é redescobrir em larga medida os modos de
apropriações, explorações, de terras já ocupadas e habitadas por negros livres e brancos
pobres nessas regiões. Quem produziu e reproduziu ao longo do tempo a história dos
dominantes alicerçados, infiltrados e controladores do Estado, da Igreja e da política,
certamente que sintam-se incomodados com essa presença no âmbito da pesquisa
acadêmica, de indivíduos que procuram reabrir esses conhecimentos latifundiados há
vários séculos, por uma elite intelectual pensante e determinadora das histórias e dos
modos de se contar essas histórias. Histórias que continuam em ação, pois a tradição
oral também coloca Ambrósio em muitos lugares, reivindica-o como sendo de Cristais,
como sendo de Ibiá, como aquele que passou por muitos lugares, essa é a temática de

48
uma pesquisa em andamento, a luta pela memória de Ambrósio como de pertencimento a
determinado lugar, a determinada região, por isso a questão: o nome, Ambrósio era um,
ou, Ambrósio poderia ser nome de muitos?

49
REFERÊNCIAS

José Antonio Ventura. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=2482. Acesso em


novembro de 2011.

O TREM DA HISTÓRIA. Boletim Informativo do Departamento de Patrimônio


Histórico da Fundação Cultural Calmon Barreto de Araxá. Julho/Dez. 1996. Nº 21.
Ano 06. Araxá: FCCB, 1996, p. 06.

SILVA, Cleto Mário da. Presidente do Movimento Negro de Ibiá-MG. Depoimento.


Programa Triângulo das Gerais, 20/11/2011. Arquivo em mídia, som, color, legendado,
tempo: 12’ (NTSC), N. 499/2012. Realização: CLOSE, Uberlândia, 2011.

VENTURA, José. Coordenador da Central das lideranças Quilombos do Triângulo Minei-


ro e Alto Paranaíba - MG. Depoimento obtido em 29/07/2011.

Bibliografia

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Paulo: FFLCH. Tese de doutorado, 1990.

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Vila Bela. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1988.

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zonte: (S.ED.) 1972.

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de suas formações complexas. In: O ressoar dos tambores do Congado - entre a tra-
dição e a contemporaneidade: cotidiano, memórias, disputas. (1955 - 2011), p. 57-68.
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2012, 196f.

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50
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livres numa fronteira oitocentista/Triângulo Mineiro (1750-1861). Uberlândia: Divisão
Gráfica da Universidade Federal de Uberlândia, 2002.

MARTINS, Tarcisio José. Quilombo do Campo Grande: a história de Minas roubada do


povo. São Paulo: Gazeta Maçônica, 1995.

MOURA, M. M. Os Deserdados da Terra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998; SIL-


VA, L.O. Terras Devolutas e Latifúndio - Efeitos da lei de 1850. Campinas: Unicamp,
1996.

51
Representações, identidade
e relações étnico-raciais.

Ivete Batista da Silva Almeida1

Nesta comunicação, meu objetivo será fazer algumas colocações sobre um


tema que me é muito caro, e com o qual eu tenho uma longa história: a formação continuada
para as relações étnico-raciais. A formação continuada, nos diversos documentos e textos
que encontramos na página do Ministério da Educação é definida como ação de apoio à
formação inicial.
Isso ocorre, não porque a formação inicial seja insuficiente ou incompleta,
mas porque a sociedade está sempre em constante transformação, novas realidades se
apresentam diante do professor, novas demandas e novas possibilidades e além do novo,
velhos problemas também se agravam, ou mesmo velhos problemas encontram novas
possibilidades de solução.
E é nesse campo, o da possibilidade de enfrentarmos velhos problemas
mediante novas posturas, que a formação continuada para as relações étnico raciais se
enquadra. A desigualdade em nossa sociedade não é novidade, nem um fato criado nos dias
de hoje; da mesma forma, a existência e a insistência da mentalidade racista em diferentes
setores de nossa sociedade também não é fato novo; todavia, ações contemporâneas
colocaram a escola diante de uma possibilidade de ação.
A lei 10639/03 e sua complementar 11645/2008, que tratam da inserção nos
currículos de escolas públicas e particulares da história e cultura africana e indígena,
trouxeram para os professores da educação básica e também para os do ensino superior o
desafio de realizarmos, de fato, uma educação inclusiva, no que tange à questão étnico-racial.
O próprio termo étnico-racial, fora frequentemente questionado, uma vez que o
conceito de raça esteja em desuso; contudo, o que justifica a manutenção da referência à raça,
no termo étnico-racial, é justamente a compreensão de que não há somente uma invisibilidade
e um preconceito que rondam os elementos étnico-culturais das tradições brasileiras de
matriz africana, mas há sobretudo o preconceito que acompanha os indivíduos que possuem
as marcas da ascendência africana registradas na pele, no cabelo, no traços fenotípicos.
No enfrentamento desse desafio, que não é novo, mas que se institucionaliza
como estratégia de superação a partir de 2003, os professores da educação básica, tiveram
como apoio o Programa de Formação Continuada Para As Relações Étnico-Raciais,
1
Professora Adjunta do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia; Coordenadora do
Grupo “Estudos Negros” – Grupo de Pesquisa em História e Cultura visual das sociedades de matriz africa-
na e indígena. Membro da Coordenação de Educação Básica e Técnica do NEAB/UFU

52
programa esse formado por ações de extensão e também de especialização que ocorreram,
com financiamento do governo federal, via UAB, portanto num modelo de EAD, em
grande parte do território nacional.
As universidades federais e estaduais aderiram ao programa estendendo a
professores de todas as disciplinas a oportunidade – numericamente limitada – de participarem
desse debate, e desenvolveram metodologias e ferramentas para a abordagem do tema.
Durante as gestões do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e da presidenta
Dilma Roussef, os cursos permaneceram em funcionamento, com a formação de turmas
constantes, todavia, neste último ano, temos assistido à redução drástica da oferta dos
cursos de relações étnico raciais, pela UAB, bem como de outros cursos de formação
continuada, como o de atendimento especial, que também era oferecido em regime de
EAD, pela UAB.
Antes de começar a delinear quais são os possíveis procedimentos para a
mediação pedagógica das relações raciais no espaço escolar, vale a pena salientar que
todos os atores presentes neste espaço devem ser agentes de promoção de uma educação
antirracista e antidiscriminatória, não posicionaremos aqui o professor como único
responsável por intervir nestas relações, mas deve-se considerar que as especificidades de
sua formação o situa como um importante mediador.
De acordo com Nilma Lino Gomes em  Educação e diversidade cultural:
refletindo sobre as diferentes presenças na escola (2008), a escola é mais que um
espaço educacional formal, é um espaço sociocultural em que as diferentes presenças se
encontram. Os problemas de cunho social e racial existem dentro da escola e uma posição
deve ser assumida em forma de ação, que vá além de uma posição ideológica, mas que vá
de encontro ao comprometimento com o papel de educador.
Não se trata de tomarmos a escola a única responsável pela reconstrução dos
valores e comportamentos, mas é inegável que cabe à escola o compromisso de alimentar
um olhar capaz de perceber as diferenças presentes – sejam elas culturais, religiosas,
raciais ou de gênero - e cabe à escola, buscar subsídios para auxiliar na transformação do
cenário de invisibilidade, violência e preconceito ao qual diferentes pessoas se encontram.
Nas palavras de Eloisa da Silva Oliveira e Mírian Paura Grinspun em Princípios
e métodos de supervisão e orientação educacional. (OLIVEIRA e GRINSPUN, 2012,
p.8): “É necessário  então  repensar o papel dos profissionais da educação: eles não
podem atuar de forma neutra em uma sociedade conflituosa, nem podem permanecer
omissos, pois a realidade pede que se posicionem diante dos problemas sociais”.  Caso
contrário, estes estarão colaborando com a perpetuação das práticas reprodutoras, indo na
contramão de nossos ideais da profissão.
A minha experiência com cursos de formação de professores para as relações
étnico raciais, data do ano de 2003, quando da promulgação da lei. Nos anos que se

53
seguiram, trabalhando com os cursos de formação no interior dos estados de São Paulo e
Minas Gerais foi possível observar por um lado a superação lenta, e por outro, a insistente
permanência de algumas questões como a inclusão apenas pro forma dos conteúdos
ligados à educação para a igualdade racial, nos currículos tanto da educação básica quanto
de cursos de licenciatura e a presença de ações voltadas para a cultura brasileira de matriz
africana ocorrendo somente nas datas comemorativas como o dia da consciência negra,
da abolição da escravidão, ou dia da mulher negra – datas, que são importantes marcos
comemorativos, mas que não encerram em si, o significado de uma educação voltada para
a igualdade e para uma educação que deseja vencer o preconceito por meio do combate
à ignorância. Pois se é isso que pretendemos alcançar: uma educação elucidativa, que
elimine o desconhecimento e o estranhamento em relação ao outro, ações e comemorações
pontuais no calendário não são o suficiente.
As dissertações de mestrado mais recentes que abordam o tema indicam que
mesmo hoje, grande parte das licenciaturas não contempla uma educação para as relações
raciais. Do mesmo modo, apontam que os cursos de licenciatura, mesmo quinze anos
após a promulgação da lei 10.639/03, ainda não inseriram, de fato, as discussões previstas
na lei em seus currículos. Uma vez que, é importante lembrar, a formação para as relações
étnico- raciais não corresponde a um tema exclusivo do professor das séries iniciais ou do
professor de história, mas é uma questão a ser pensada por todas as licenciaturas.
Sem dúvida, o fundamento eurocêntrico da educação brasileira pode ser
entendido como o principal entrave para que a lei seja cumprida. Mas em se tratando
de obstáculos, o racismo, talvez, - ampliando a nossa visão - a permanência de uma
mentalidade colonizada, seja ponto central de nossos problemas, uma vez que lidamos
com o racismo de forma naturalizada.
Frases como: “conheço uma pessoa que venceu o racismo” ou “... conheço
uma pessoa negra que era pobre e venceu com o esforço próprio ...” são frequentes em
nossa sociedade. Elas atribuem a experiências pontuais de superação o status de soluções
para um problema que é estrutural, coletivo, que atinge não milhares, mas milhões de
brasileiros de ascendência negra.
Gostaria de ressaltar por fim, que, em meu entendimento, a educação e a
formação para a superação da ignorância quanto à nossa própria trajetória histórico-
política e cultural, são sem dúvida as grandes ferramentas para retirarmos o negro da
condição de excluído para a condição de cidadão.
Assim como retirarmos da cultura brasileira de matriz africana a aparência de
cultura de fora, estrangeira, pois ela não é. Falar de cultura brasileira de matriz africana
é falar sobre cultura brasileira, falar sobre o direito à igualdade à cidadania e ao respeito
para negros e para os indígenas é falar sobre os direitos ao respeito e à plena cidadania
para brasileiros.

54
REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento” In ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49),


2003. Disponível em <https://goo.gl/vh81Qr>. Acesso em 30 jul 2018.

COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mulherismo, Feminismo Negro e além


disso. Cadernos Pagu, n. 51, 2017. Disponível em https://goo.gl/7bYcqk. Acesso em 30
jul 2018.

DAVIS, Angela. Em Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016.

DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. Disponível em < https://goo.gl/zg1jkT>


Acesso em 30 jul 2018.

GOMES, Nilma Lino. “Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação bra-


sileira: desafios, políticas e práticas”. Anais do Congressos Ibero-Luso-Brasileiros de
Política e Administração da Educação. Portugal e Espanha, 2010. Disponível em www.
anpae.org.br/iberolusobrasileiro2010/cdrom/94.pdf. Acesso em 03 ago 2018.

OLIVEIRA, Eloiza; GRINSPUN, Mírian. Princípios e métodos de supervisão e orien-


tação educacional. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2009.

RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro, 2010, (Coleção
Retratos do Brasil Negro).

55
SABERES E FAZERES DAS COMUNIDADES
TRADICIONAIS, DAS FAMÍLIAS NEGRAS
E QUILOMBOL AS EM MINAS GERAIS

Com o intuito de materializar a proposta do Projeto, que além de ser


interdisciplinar, contempla a interconexão de saberes entre a comunidade e a academia,
contamos com as contribuições dos mestres da cultura popular e saberes tradicionais
Enilson Rodrigues e Dona Gasparina.
No tocante aos objetivos do projeto de discutir e promover ações que visem
a efetivação dos direitos territoriais quilombolas, é de suma relevância a compreensão
de que o território compreende as relações intersubjetivas dos sujeitos, os seus modos de
criar, fazer e viver com a terra e a natureza como um todo.
O mestre da cultura popular e portador de saberes tradicionais Enilson
Rodrigues, compartilhou os saberes sobre o modo de produção do açafrão que é cultivado
em parte do território da Comunidade Remanescente de Quilombo Teodoro de Oliveira
e Ventura, em Serra do Salitre. As técnicas de cultivo são transmitidas de geração a
geração.
Além de produzir açafrão utilizando técnicas tradicionais herdadas de seus
ancestrais, o mestre Enilson também é artesão e confecciona esculturas de “africanas”.
Ele utiliza na produção artesanal a argila da região, que está cada vez mais escassa devido
às chuvas químicas que ocorrem na região. Tais chuvas, segundo ele, são consequências
da implantação de indústrias e mineradoras que causam sérios danos ambientais,
comprometendo a continuidade da atividade que é responsável pelo sustento de muitas
famílias artesãs.
O depoimento da mestre da cultura popular e religiosa e portadora de
saberes tradicionais Dona Gasparina Pereira sobre as plantas medicinais teve ampla
relevância para os objetivos dos seminários. Os povos e comunidades tradicionais são
considerados os guardiões da natureza, incluindo a terra, pois extraem dela os recursos
para suas produções sem degradá-la, pelo contrário. Nesse sentido, a conservação da
tradição ancestral do cultivo de plantas medicinais está diretamente relacionada à noção
de território.
Em suma, “a vida de um quilombola” está em conexão com a existência e
permanência no território, portanto, a luta pelo território é a luta pelo direito de existir e
viver.

Jeremias Brasileiro & Vanilda Santos

56
A Produção de Açafrão de alta qualidade
e o quilombola artesão 1

Enilson Rodrigues da Silva2

Esse é o trabalho nosso, do quilombola na terra, a gente fala muito sobre as


questões de direitos, das lutas, mas ainda vigora muito que a cultura do negro é sambar,
dançar, comer. O negro também tem a sua história na terra, onde na verdade falta espaço
para ele produzir, para ele sobreviver. O nosso açafrão produzido na terra sem nenhum
tipo de química, é cicatrizante, é bom para a saúde, a gente planta e busca o açafrão é de
charrete, o pé de açafrão começa com suas folhas a amarelar no mês de abril, pegando
uma cor diferenciada, onde o verde vivo vai desaparecendo. No início de maio, as folhas
já estão bem mais amareladas, e já vai dando um sinal de dessecação dos gomos, ou seja,
a umidade começar a sair.
É preciso acompanhamento constante para não perder o tempo que é muito
curto entre o mês de junho a outubro para fazer a produção do açafrão. Se não começar
nesse tempo, não consegue fazer a colheita completa. Quando a dessecação das folhas
fica por completa, é o momento, ele já está no ponto da colheita, depois de uns oito a nove
dias já podem então entrar na terra. Tem de ser feito antes uma análise da umidade, para
saber com certeza o ponto da colheita, quanto mais seco, quanto mais amarelo estiver as
folhas, com as folhas bem secas, é que chega o ponto da colheita.

Imagens 1 e 2 - A folha verde viva


do açafrão começa a mudar de cor.
Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

1
Transcrição de audiovisual realizado por Jeremias Brasileiro.
2
Secretário da Federação Nacional das Associações Quilombolas e membro da Comunidade Quilombola
Teodoro de Oliveira e Ventura de Patos de Minas e Serra do Salitre. 01 de setembro de 2018

57
Começa então a análise da dessecação, se a umidade estiver abaixo de 9%, já
pode começar a arrancar o açafrão, cava a terra com enxadão, para retirar e não estragar,
depois retira a terra do açafrão, isso se for lavar no mesmo dia, se for deixar no chão, no
lugar, então deixa ensacado, mas ainda com a terra de proteção. Tem depois de fazer a
separação, tirar a semente para repor na terra, e o restante prepara-se para fazer a lavagem.
A gente chama de o “dedo de açafrão”, e o cará, o açafrão no seu modo ainda bruto.

Imagens 3 e 4 - Temperatura das folhagens próxima a 9%, é quase tem-


po da colheita do Açafrão

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

58
Imagens 4 e 5 – Processo de secamento da folhagem, hora de
arrancar o açafrão.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

Depois vai cortando tipo cenoura, em rodelinhas e coloca novamente para


secar. Nesse ponto final, precisa estar com umidade O%, caso contrário, não sai um
açafrão de alta qualidade, ele fica com uma cor branqueada, chamada de liga branca, a
maioria do açafrão que é comprado em supermercado, é de pouca qualidade porque não
dá esse tempo de sair a umidade. Ele é todo industrializado, chega in natura, passa pelos
tanques de lavagem, já cai direto no fatiador, do fatiador ele não é secado natural, ele
passa pelo secador artificial, assim ele cozinha, não seca.

59
Tem o açafrão de primeira e o de segunda linha, não é questão de impureza,
acontece que o de primeira qualidade, é mais velho e dá uma umidade de O,0%, já o de
segunda qualidade, dá uma umidade de O,2%, O,1%. A moagem desse açafrão, é feito
com a moenda no vácuo, nem a umidade do ar penetra nele, o recipiente de plástico
impede que também entre ciscos no momento da moagem, e assim que é moído, direto
é embalado para evitar contato com o ar do ambiente. Muita gente utiliza esse processo,
mas perde a qualidade é na hora de moer, porque usa o moedor para outras coisas, como
por exemplo, fica moendo milho pro gado, moendo cana para o gado comer, e depois usa
para moer açafrão, mesmo limpando, fica resíduos que acaba tirando a qualidade pura do
açafrão.
Leva então essa produção para a feira, a produção do quilombo, açafrão,
doces, remédios, pente de macaco, jatobá, e outras plantas medicinais, inclusive também
peças artesanais como as que podem ser vistas nas fotografias finais. O artesanato de
cerâmica, é produzido no intervalo, enquanto descansa da produção do açafrão, aproveita
então para trabalhar com o artesanato em cerâmica.
Também nesse intervalo, a gente vira artista e brinca de confeccionar e pintar
“as africanas”. Existe todo um processo, que hoje infelizmente, não está sendo possível
trabalhar com a argila, por causa das chuvas químicas que estão acabando com a argila.
Não é fácil dar liga, na queima, vem as rachaduras pois contem gotas dos ácidos vindo na
chuva, e com a chegada das grandes industrias, mineradoras, acontece a destruição dos
brejos, das margens, onde tem argila, tudo acaba ficando contaminado, a matéria prima
que é responsável pelo sustento de muitas famílias artesãs, está desaparecendo em razão
dessa poluição química. É assim que é a vida de um quilombola.

Imagem 6 - Terra já revolvida com


enxadão.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

Imagem 7 – Açafrão-da-terra já
colhido.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

60
Imagem 8 - processo de limpeza do
açafrão.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

Imagem 9 - Açafrão pronto para


secagem.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

Imagem 10 - Açafrão fatiado.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

Imagem 11 - Açafrão pronto para


consumo.

Fonte: Enilson Rodrigues, 2018

61
Raízes, er vas e folhas:
usos e saberes das mulheres quilombolas
do Alto Paranaíba em Minas Gerais.

Gasparina Pereira Gonçalves1

Cavalinha com caninha de macaco, limpa os rins, é diurética. A losa (losma)


é relaxante, coloca numa garrafa com água fria e vai tomando durante o dia; a babosa é
muito conhecida, serve para pomada, serve como supositório para hemorroidas, depois de
ser preparada, sabugueirinho é muito bom para fazer xarope; quando as pessoas sentiam
aquelas febres bravas lá na roça, para dar sarampo, com ele ainda recolhido, então era
fazer um chá de sabugueiro e dar a pessoa para ela beber, para jogar a infecção toda para
fora.
O chá de artimigio [Artemísio] já é bom para quem sente cólicas, para as
mulheres, as cólicas menstruais; já o hortelã, a Marcelinha, que está em extinção, é
também excelente como calmante, tira febre, ajuda na digestão de crianças; o manjericão,
usa-se também para fazer o xarope, o poejo, outra planta em extinção, serve como xarope,
principalmente para recém nascidos; alcânfora é para pomada, para escaldar pés, depois
de tomar banho, para tirar as dores; quando a pessoa está triste de amor, recomenda-se
tomar o patchouli, é um estimulante essa planta, a transagem é para muitos tipos de
infecção, principalmente de garganta.
Existem muitas plantas medicinais, com seus valores que precisamos conhecer
e respeitar, pois o que falta para nós, é a terra, é uma estufa, um laboratório, é o que
precisamos para trabalhar com as ervas, essas plantas, não deixar esse nosso saber acabar.
As pessoas pobres não aguentam farmácias, hospitais, e nós precisamos na verdade é de
apoio, para também fazer essas pomadas, esses xaropes, de modo adequado. Tudo isso
requer ciência, colher a erva, a hora de colher, como colher, como preparar, quando pode
ser usada, é tudo muito pensado, coisas que a gente aprende lá de trás com os mais velhos,
vós, bisavós, os antigos. Queremos batalhar por isso, seria um grande resgate dos nossos
antepassados e passar para novas gerações, mas para isso, precisamos de estrutura que
não temos, a começar pela terra.

1
Mestre quilombola da família Teodoro de Oliveira e Ventura, portadora dos saberes tradicionais das ervas
e plantas medicinais.

62
Fotografias 1 e 2 - Gasparina Pereira Gonçalves e as ciências do saber
popular que precisa ser valorizado, respeitado, apoiado na prática e não
só na teoria de pesquisa acadêmica.

Fonte: AcervoDigital/JeremiasBrasileiro

63
MEMÓRIA VISUAL DAS ATIVIDADES
DESENVOLVIDAS DURANTE OS SEMINÁRIOS
DE FORMAÇÃO CULTURAL AFRO-BRASILEIRA
HISTÓRIA E DIREITO: QUILOMBOLAS,
CONGADAS E CULTURA AFRO-BRASILEIRA
NO ALTO PARANAÍBA - MINAS GERAIS

Seminário de Abertura: Representações, identidade e relações étnico-raciais.


Professora Dra. Ivete Batista da Silva Almeida (UFU). Dia 25 de agosto de 2018. UFU -
Patos de Minas

Fotografia 1 - Mesa de abertura com o Coordenador Jeremias Brasileiro expli-


cando o projeto.

Fotografia 2 - Primeira da Esq. A con-


ferencista do Seminário de Abertura,
Professora Dra. Ivete Batista da Silva
Almeida. Dona Gasparina e Geraci,
mulheres quilombolas e de religião
afro-brasileira e de matriz africana em
Patos de Minas-MG.

64
Fotografia 3 – José Antonio Ventura. Família
Teodoro de Oliveira e Ventura e presidente da
FENAQ – Federação Nacional das Associações
Quilombolas

2º Seminário - Professora Vanilda Honória dos Santos.


1 - Os direitos das Comunidades Remanescentes do Quilombo do Ambrósio do Alto Pa-
ranaíba - MG: (re)existência e permanência;
2. Os direitos das Comunidades Remanescentes do Quilombo do Ambrósio do Alto Para-
naíba-MG: aspectos constitucionais e de pluralismo jurídico.

Fotografia 4 - Conferência sendo ministrada por Vanilda


Honória Santos dos. Dia 01/09/ 2018.

65
Fotografia 5 - Parte do público presente durante o 2º seminário, comunidade
quilombola, acadêmicos e instituições públicas, com apoio do PET Gestão ali-
mentos coordenado pelo professor Peterson Gandolfi, proponente do projeto
juntamente com o professor Jeremias Brasileiro. 01a/09/2018.

Fotografias 6 e 7 - Con-
ferência sendo ministra-
da pela Professora Mes-
tre, Vanilda Honória dos
Santos.

66
3º Seminário - Professor Jeremias Brasileiro.
1 - Quilombos, Congadas e poder;
2 - Rei Ambrósio de Minas Gerais e o ofuscamento da história e da memória de um líder
quilombola.

Fotografia 8 - Conferência sendo ministrada por Jeremias


Brasileiro. 08/09/2018.

Fotografia 9 - Temas trabalhados na conferência ministrada por Jeremias Brasi-


leiro a partir de sua produção sobre a temática dos quilombos e das Congadas no
Alto Paranaíba - MG. 08/09/2018.

67
3º Seminário - Jeremias Brasileiro. Intersecção de saberes. Hip Hop e resistência.
1 - Quilombos, Congadas e poder;
2 - Rei Ambrósio de Minas Gerais e o ofuscamento da história e da memória de um líder
quilombola.

Fotografia 10 - Apresentação dos Rappers Walter Luiz Ventura e Wictor Luiz Ven-
tura, da comunidade quilombola Teodoro de Oliveira e Ventura. Grupo Consciên-
cia de Rua (Art’Dos Guetos). 08/09/2018.

Fotografia 11 - Apresentação dos Rappers Walter Luiz Ventura e Wictor Luiz Ven-
tura, comunidade quilombola Teodoro de Oliveira e Ventura. Grupo Consciência
de Rua (Art’Dos Guetos). 08/09/2018.

68
4º Seminário: Trabalho de campo com visita e debates sobre o sitio arqueológico da co-
munidade quilombola Teodoro Oliveira e Venturas, observando aspectos teóricos de leis
e a realidade na prática. Visita às cidades de Santana de Patos; Cruzeiro da Fortaleza e
Serra do Salitre. 15/09/2018

Fotografia 12 - Parte dos participantes do trabalho de campo do 4º Seminário.


Cidade de Cruzeiro da Fortaleza, Alto Paranaíba - MG, em 158/09/2018.

Fotografia 13 - Visita às ruínas de um casarão que pertenceu a um bispo que pos-


suía escravos, em Santana de Patos. O sitio arqueológico está abandonado, com
vias de extinção completa. 15/09/2018.

69
Fotografia 14 - Plano geral do abandono do sitio arqueológico em Santana de Pa-
tos. 15/09/2018

Fotografia 15 - Muro erguido no período da escravidão em risco de extinção por


falta de preservação, em Santana de Patos. O sitio arqueológico encontra-se sem
proteção. 15/09/2018.

70
Fotografia 16 - Muro de pedra erguido por escravos em Cruzeiro da Fortaleza,
também sofrendo um processo acelerado de deterioração, sem providências de
proteção pelo poder público. 15/09/2018

Fotografia 17 - Raiz de uma árvore que era centenária, revela o descaso com o
sitio arqueológico dos remanescentes de quilombo, Teodoro de Oliveira e Ventura
em Serra do Salitre - MG. 15/09/2018.

71
Fotografia 18 - O caminho da destruição passa por aqui, com a falta de preser-
vação do sitio arqueológico reconhecido pelo próprio IHAN, mas ignorado pelo
poder público e sociedade civil. 15/09/2018

Imagem x - O caminho da destruição se efetiva pela falta de planejamento de pro-


teção ao sitio arqueológico dos remanescentes de quilombo, Teodoro de Oliveira
e Ventura em Serra do Salitre – MG. Loteamento reconhecido pelo poder público
em área de preservação quilombola. 15/09/2018.

72
Fotografia 19 - A comunidade tenta reagir, resistir, diante a destruição e pressão
que sofrem, com a falta de apoio e também preservação do sitio arqueológico já
reconhecido pelo próprio IPHAN. 15/09/2018

Fotografia 20 - A luta e a resistência é permanente, nesse local, Sr. Lázaro e Dona


Neuza, remanescentes de quilombo e da família Teodoro de Oliveira e Ventura em
Serra do Salitre – MG, correm inclusive risco de desapropriação da terra em que
vivem desde que nasceram, terra de seus avós, bisavós, que foram herdadas, mas
que sofreram fraudes cartoriais. 15/09/2018.

73
5º Seminário: Encerramento dos Seminários de Formação Cultural Afro-Brasileira
História e Direito: Quilombolas, Congadas e Cultura Afro-Brasileira no Alto Paranaíba -
Minas Gerais, com ações propositivas possíveis de ser efetivadas pelos poderes públicos
na esfera municipal e federal, com a presença do Ministério Público Federal de Patos de
Minas. 22/09/2018

Fotografia 21 - Propostas para ser encaminhadas ao Ministério Público e Prefei-


turas da região, sobre a efetivação de políticas públicas reais em atendimento as
comunidades quilombolas. 22/09/2018

Fotografia 22 – Presença de autoridades da região, do advogado e historiador


Tarcísio José Martins, especialista em quilombos de Minas Gerais, especialmente
o Quilombo do Campo Grande ou Quilombo do Ambrósio, e de representante do
Ministério Público Federal em Patos de Minas. 2209/2018.

74
Fotografia 23 - Élida Abreu, Estudante de história, coord. Municipal do MNU,
membro do GT Estadual de Quilombos e Terreiro do MNU, Presidente da Asso-
ciação dos Remanescentes de Quilombo da Família Abreu (ARQA) e Secretária da
Assoc. Cultural Afro-Brasileira Vovó Ana (ASCAVA). 22/09/2018.

Fotografia 24 - Comunidade quilombola, da região e público acadêmico presente


no seminário de encerramento, inclusive remanescentes de quilombos da cidade
de Lagoa Formosa. 22/09/2018.

75
ANEXOS

Esta seção integra os seguintes anexos:


O Parecer Jurídico elaborado pelos membros do Projeto de Extensão Assessoria
Jurídica Étnico-Racial e Direito Antidiscriminatório desenvolvido no âmbito do Escritório
de Assessoria Jurídica Popular da Universidade Federal de Uberlândia (ESAJUP/UFU),
que dispõe sobre a possibilidade de propositura de ação judicial de reparação pelo dano
existencial coletivo causado à Comunidade Remanescente de Quilombo Teodoro de
Oliveira e Ventura pela negação do direito à propriedade coletiva do território tradicional.
A Recomendações nº 5/2018 e nº 6/2018 do Ministério Público Federal,
datadas de 18 de setembro de 2018, respectivamente ao proprietário da Fazenda Serrinha,
na qual está localizado o sítio arqueológico da comunidade, às empresas responsáveis
pelo empreendimento imobiliário que lá está sendo construído e à Prefeitura Municipal
de Serra do Salitre.
As referidas recomendações dispõem sobre a proteção e a salvaguarda do
patrimônio histórico e cultural nacional, especificamente os sítios arqueológicos em área
destinada à Comunidade Remanescente de Quilombo Teodoro de Oliveira e Ventura, que
vem sendo sistematicamente sofrendo depredação e destruição, por meio da implantação
de empreendimento imobiliário, conforme Laudo elaborado pelo IPHAN.
Por fim, as Proposições resultantes do diálogo estabelecido durante a realização
dos Seminários. O documento foi elaborado de forma conjunta com a participação dos
membros da comunidade tradicional e dos integrantes do projeto, torando efetiva a
interação entre universidade e comunidade de forma horizontal. O documento final foi
encaminhado ao Ministério Público Federal e ao Poder Público local, notadamente, a
Prefeitura Municipal de Patos de Minas e a Prefeitura Municipal de Serra do Salitre.

76
1 - Parecer Jurídico elaborado pelos membros do Projeto de Extensão Assessoria Jurí-
dica Étnico-Racial e Direito Antidiscriminatório desenvolvido no âmbito do Escritório
de Assessoria Jurídica Popular da Universidade Federal de Uberlândia (ESAJUP/UFU).
78
Santos, enviado ao Ouvidor da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Dr.
Humberto Adami Santos Júnior, em 29 de abril de 2011. O ofício encaminha cópia integral dos
processos de inventário de José da Silva Botelho e de Maria Theodora de Oliveira e a cópia da
certidão de nascimento de Anelzira. Segundo a cópia da certidão de Anelzira, esta teria nascido
em 19 de junho de 1920 e falecido em 20 de dezembro de 1945. Tal informação é inverídica, pois
Anelzira, mãe de José Antônio Ventura, faleceu em 06 de julho de 1983, conforme comprova
certidão em posse dos seus herdeiros.
c) Ofício nº 018/2013, protocolado pela ARQTOV à Procuradoria Geral da República, 6ª Câmara,
à Dra Gilda Carvalho, em 18 de julho de 2013. O assunto é o Processo Administrativo número
122006.000056/2009-38. Transcrevemos aqui o teor das solicitações:
“Solicitamos informações sobre o ofício enviado por Vossa Senhora ao Dr. Tarcísio Humberto
Parreiras Henriques Filho no processo administrativo número 122006.000056/2009-38. Confor-
me acertado na reunião com vossa senhoria no dia 01 de abril de 2013 que seria para cobrar a
realização dos acordos firmados com a Comunidade na audiência com Dr. Onésio Soares do
Amaral, mineradoras Vale e Galvani, que teve também presença do antropólogo João Batista de
Almeida Costa. Nessa audiência ficou acordado que seria feito uma complementação do Laudo
Antropológico”.
[...] “Valendo da ausência de Procuradores em Patos de Minas foram emitidas licenças ambien-
tais às mineradoras, violando a Convenção 169 da OIT, onde a Comunidade jamais foi ouvida e
descumprindo assim os acordos firmados na audiência realizada pelo MPF sob a coordenação do
Procurador Dr. Onésio Soares do Amaral e oficializada pelo seu substituto Dr. Ataides Ribeiro
Costa”.
d) Ofício nº 065/2018, protocolado em 11 de junho de 2018, junto à Fundação Cultural Palmares,
solicitando ações e providências sobre o pedido de formação do processo de regularização fun-
diária da ARQTOV, conforme solicitações anteriores. Em anexo contém um Dossiê contendo a
documentação referente ao processo. Inclui-se o relatório do cartório, a certidão cuja data teria sido
adulterada, documentação esta que, segundo o Sr. José Antônio Ventura, comprova o esbulho do
território tradicional da comunidade.
e) Em 01 de agosto de 2018, foi instaurado novo procedimento administrativo de acompanhamen-
to, pelo Ministério Público Federal – Procuradoria de Patos de Minas, cujo objetivo é acompanhar
o processo de formalização e regularização fundiária da Família Ventura. Decisão tomada após
análise dos documentos do Inquérito Civil nº 1.22.006.000071/2017-96 e após pedido de abertura
de processo administrativo protocolado no INCRA pela ARQTOV em 2013. Foi determinado o
prazo de um ano para conclusão do Procedimento Administrativo de Acompanhamento. Destaque
para o fato de que nada consta acerca da denúncia de esbulho e fraude cartorial.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: arts. 215, 216; art.
5, § 2º; Art. 68 ADCT; Código Civil Brasileiro/2002: arts. 11 a 21; 138;
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2 - Recomendações nº 5/2018 e nº 6/2018 do Ministério Público Federal, datadas de 18
de setembro de 2018, respectivamente ao proprietário da Fazenda Serrinha, na qual está
localizado o sítio arqueológico da comunidade, às empresas responsáveis pelo empreendi-
mento imobiliário que lá está sendo construído e à Prefeitura Municipal de Serra do Salitre.

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3 - Proposições resultantes do diálogo estabelecido durante a realização dos Seminários
de Formação Cultural Afro-Brasileira: Congadas e Quilombolas em Patos de Minas e
Serra do Salitre-MG. Edital PROEXC 003/2018 da Universidade Federal de Uberlândia.

Coordenação: Professor Peterson Gandolfi e Professor Jeremias Brasileiro

Proposições resultantes da realização dos seminários ocorridos nos dias 25 de agosto, 01,
08 e 15 do mês de setembro de 2018.

1. Considerando que o inventário de José da Silva Botelho deixou como herdeiros de suas
terras descendentes da ex-ecravizada Zeferina de Tal, os hoje reconhecidos membros da
Comunidade Remanescente de Quilombo Teodoro de Oliveira e Ventura;

2. Considerando que o Estado brasileiro não garantiu o direito de herdeiros da ex- escra-
vizada por não ter nunca titulado as terras que legitimamente lhes pertence;

3. Considerando a denúncia de produção de falsificação de documentos dos herdeiros do


legado de José da Silva Botelho e da ex-escravizada Zeferina de Tal;

4. Considerando a completa desproteção dos herdeiros diante da especulação imobiliária


que já se apropriou de grande parte das terras herdadas pelos descendentes de Zeferina de
Tal sem nenhuma proteção por parte dos poderes constituídos;

5. Considerando, a não investigação e responsabilização pelo esbulho e desapossamento


das terras herdadas e/ou território;

Diante do exposto, as pessoas herdeiras de José da Silva Botelho e de Zeferina de tal e da


Comunidade Remanescente de Quilombo Teodoro de Oliveira e Ventura vêm aos Poderes Pú-
blicos Federal, Estadual e Municipal dos municípios de Patos de Minas e Serra do Salitre e
ao Ministério Público Federal, reivindicar as seguintes medidas de reparação da escravidão:

1. Exigir a imediata regularização fundiária do Quilombo como reparação da violação do


direito de propriedade no processo de inventário e propriedade coletiva no processo de
regularização fundiária do território quilombola;

2. Pleitear a responsabilização do Cartório e de qualquer outra instituição ou pessoa envolvi-


da na violação dos direitos dos herdeiros declarados no testamento de José da Silva Botelho;

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3. Responsabilizar as empresas e instituições públicas por danos morais e materiais pro-
vocados pela apropriação e depredação do território tradicional da comunidade pelos
empreendimentos instalados sem consulta prévia livre e informada, conforme prevê a
Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, e integra o ordenamento jurídico brasileiro;

4. Criar Museu Quilombola e de reparação da escravidão da região do Alto Paranaíba;

5. Adotar política municipal de educação patrimonial com foco na memória, história e


cultura afro-brasileira;

6 - Apoio financeiro do MP por meio do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos e Coletivos
para a elaboração do Protocolo de Consulta Prévia Livre e Informada da Comunidade.

7. Tornar efetiva as ações de políticas públicas para a população quilombola, viabilizando


uma maior participação e controle social dos membros da comunidade;

Proposição de Valor-referência para pagamento de Pró-labore a mestres da Cultura po-


pular no Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro-MG.

Reconhecendo a importância dos mestres da cultura popular do Alto Paranaíba-MG e


também do Triângulo Mineiro, considera-se a partir dessa data, ano de 2018, que o valor
mínimo a ser pago pelo município e seus congêneres, quando da contratação por inexigi-
bilidade dos atores sociais incluídos nessa categoria, ou seja, congadeiros, foliões de reis,
catireiros, carnavalescos, produtores e protagonistas dos fazeres e saberes populares, e
outras denominações similares em Minas Gerais – será esse valor de pró-labore, a partir
de 01 salário mínimo em vigência.

Patos de Minas, 22 de setembro de 2018

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FICHA TÉCNICA

Valder Steffen Júnior


Reitor

Orlando César Mantese


Vice-Reitor

Alexandre Molina
Diretor de Cultura

Peterson Elizandro Gandolfi


Proponente do Projeto
Campus UFU Patos de Minas

Diretor de Administração
Matheus de Souza
Campus UFU Patos de Minas

Jeremias Brasileiro
Coordenador do Projeto
Campus UFU Patos de Minas

Vanilda Honória Santos


Apoio Técnico do Projeto
Campus UFU Patos de Minas

José Antonio Ventura


Apoio Administrativo do Projeto
Campus UFU Patos de Minas

Apoio de Infraestrutura: Alunos do PET – Engenharia de Alimentos – (Campus de Patos


de Minas): Ana Caroline Alves; Cleiver Júnio Martins Costa; Eva Larissa de Andrade Ba-
tista; Leticia Raphaela Gonçalves Lacerda; Letícia Silva Caixeta; Lorranne Marins Gon-
çalves; Ludmilla Janne Carvalho Ferreira; Mariana Martins Ferreira; Mikaela Serafim
Miranda; Tullia Midori Sebastiani; Victor Santos Bertolani; Vitória Demétrio Moraes.
A proposta deste livro resulta das atividades desenvolvi-
das durante os “Seminários de Formação Cultural Afro-brasilei-
ra: Congadas e Quilombolas em Patos de Minas e Serra do Sali-
tre – Minas Gerais”, realizado no ano de 2018, na Universidade
Federal de Uberlândia, Campus de Patos de Minas.
Objetiva-se estabelecer um diálogo entre História e Di-
reito para a compreensão do processo histórico que envolve a
permanência, a resistência e a luta por direitos dos povos qui-
lombolas na região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba des-
de o século XVIII, a partir de seus modos de criar, fazer e viver
da cultura afro-brasileira, como por exemplo, as Congadas. Essa
iniciativa tem como foco fortalecer a luta pelos direitos dos qui-
lombolas em Minas Gerais, sobretudo os direitos territoriais e
culturais, que são frequentemente ameaçados, seja pelo apaga-
mento e invisibilização, seja pela negação do direito à reparação
histórica. Do mesmo modo, destaca a necessidade de se consi-
derar as dimensões do direito que admitem o pluralismo jurídi-
co como norte para a criação de políticas públicas de efetivação
dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, com ênfase
nas realidades locais.

Jeremias Brasileiro & Vanilda Santos


Organizadores

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