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Fabio Roberto D’Avila

(Organizador)

Direito Penal e Política


Criminal no Terceiro Milênio:
Perspectivas e Tendências
D IR E IT O PEN AL E PO L ÍT IC A C R IM IN A L NO
T E R C E IR O M IL Ê N IO
PERSPECTIVAS E TENDÊNCIAS
Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul

C h an ce ler
D om D adeus G rings
R eito r
Jo a q u im C lotet
V ic e -R e ito r
E vilázio Teixeira

C o n selh o Editorial
A n a M aria Lisboa de Mello
A rm a n d o Luiz Bortolini
Bettina Steren dos S antos
E duardo C a m po s Pellanda
E laine T urk Faria
Érico Joã o H am m es
G ilb erto K elle r de A nd rad e
H elenita R osa Franco
Jan e Rita C a etan o da Silveira
Je rô n im o C a rlos S antos Braga
Jorg e C am pos da C osta
Jorg e Luis N icolas A u d y - P resid en te
J u ra n d ir M alerba
Lauro K op pe r Filho
Luciano K lockner
M arília C osta M orosini
N uncia M aria S. de C onstantino
R enato T etelbom Stein
Ruth M aria C hittó G au er

E D IP U C R S
Je rô n im o C a rlos S antos Braga - D iretor
Jorg e C am pos da C osta - E d ito r-C h e fe
FABIO ROBERTO D’AVILA
Organizador

DIREITO Pe n a l E POLÍTICA Cr im in a l NO
TERCEIRO Mil ê n io
PERsPECTivAs E TENDÊNCIAS

Atas do Congresso Internacional -


Direito Penal e Política Criminal no Terceiro Milênio
Humboldt-Kolleg in Strafrecht
VIII Congresso Transdisciplinar de Estudos Criminais,
8 e 9 de junho de 2009.

ediPUCRS
Porto Alegre, 2011
© EDIPUCRS, 2011

CAPA Rodrigo Valls

REVISÃO DE TEXTO Maria Luiza Bertoldi Bordignon

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Gabriela Viale Pereira e Rodrigo Valls

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfco

ediPUC
EDIPUCRS - Editora Universitária da PUCRS
Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
Caixa Postal 1429 - CEP 90619-900
Porto Alegre - RS - Brasil
Fone/fax: (51) 3320 3711
e-mail: edipucrs@pucrs.br - www.pucrs.br/edipucrs.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C749d Congresso Internacional em Direito Penal (2009 : Porto Alegre, RS)


Direito penal e política crim inal no terceiro milênio : perspectivas
e tendências [recurso eletrônico] / Congresso Internacional em
Direito Penal, 8. Congresso Transdisciplinar de Estudos Crim inais ;
org. Fabio Roberto D'Avila. - Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011.
196 p.

Eventos realizados na Pontifícia Universidade Católica do Rio


Grande do Sul, nos dias 8 a 9 de junho de 2009.
Evento conhecido como: Hum boldt-Kolleg 2009
Modo de acesso: www.<http://www .pucrs.br/orgaos/edipucrs/>
ISBN: 978-85-397-0099-8

1. Direito Penal - Eventos. I. Congresso Transdisciplinar de


Estudos Crim inais (8. : 2009 : Porto Alegre, RS). II. D'Avila, Fabio
Roberto. III. Título.
CDD 341.5

Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução to ta l ou parcial, por qualquer m eio ou processo, especialm ente por sistemas gráficos,
m icrofílm icos, fotográficos, reporgráficos, fonográficos, videográficos. Vedada a m em orização e/ou a recuperação to ta l ou parcial, bem co m o a inclusão de
qu a lq ue r parte desta obra em qu a lq u e r sistema de processam ento de dados. Essas proibições aplicam -se tam bém às características gráficas da obra e à sua
editoração. A violação dos dire itos autorais é punível com o crim e (art. 184 e parágrafos, do C ódigo Penal), com pena de prisão e m ulta, co n ju n ta m e n te com
busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos direitos Autorais).
S UMÁRIO

A presentação.................................................................................................................9
Fabio Roberto D ’Avila
PUCRS, Porto Alegre

O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado. Babelou esperanto


universal?..................................................................................................................... 11
José de Faria Costa
Universidade de Coimbra, Portugal

O Nervo Exposto ......................................................................................................25


Ricardo Timm de Souza
PUCRS, Porto Alegre

Intimidade e privacidade diante dos novos meios de persecução p e n a l........... 33


Julio Maier
Tribunal Superior de Justiça da Argentina

Laicidade e direito p e n a l..........................................................................................41


Silvia Larizza
Universidade de Pavia, Itália

O populismo penal. Realidade transitória ou definitiva? ..................................58


Carlos Alberto Elbert
Universidade Nacional de Buenos Aires, Argentina

Tempos m odernos. O rtodoxia e heterodoxia no direito p e n a l .....................68


Thomas Rotsch
Universidade de Augsburg, Alemanha

As garantias fundamentais em matéria penal. Entre a constituição e a convenção


europeia dos direitos do homem ........................................................................... 82
Vittorio Manes
Universidade de Salento, Itália

Limites à liberdade de expressão ....................................................................... 119


Miguel Reale Júnior
USP, São Paulo
A política criminal dos tratados internacionais 145
Jean Pierre Matus Acuna
Universidade de Talca, Chile

O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais da comunidade internacional ...167


Daniel R. Pastor
Universidade de Buenos Aires, Argentina

Aspectos problemáticos da decisão de confirmação de cargos da Corte Penal


Internacional no caso B e m b a .............................................................................. 181
Kai Ambos
Universidade de Gottingen, Alemanha
Ata s d o C o n g re s s o In te r n a c io n a l,
Dir e ito Pe n al e P o l í t i c a Crim in a l n o T e r c e ir o M ilê n io
P e r s p e c tiv a e T e n d ê n c ia s

Humboldt-Kolleg in Strafrecht
VIII Congresso Transdisciplinar de Estudos Criminais
8 e 9 de Junho de 2009, PUCRS, Porto Alegre

Coordenador Geral: Prof. Doutor Fabio Roberto D ’Avila (PUCRS).

Comissão de Coordenação: Prof. D outor Kai Ambos (Univ. de Gottingen/


Alemanha); Prof. D outor M arcelo Neves (USP); Dr. Pedro Abramovay
(M inistério da Justiça).

Comissão de Organização: Prof1. Doutora Ruth Gauer (PUCRS); Prof.


Doutor Emil Sobottka (PUCRS); Prof. Doutor Giovani Saavedra (PUCRS);
Dra. Carolina H aber (Ministério da Justiça); M elissa Lippert (PUCRS); Uriel
Moller (PUCRS-Univ. Hamburg/Alemanha).

Financiamento: Fundação Alexander von Humboldt (AvH-Alemanha), Conse­


lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Ministério
da Justiça do Brasil.

Promoção: Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais (Mestrado e


Doutorado) da PUCRS, Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC).

Apoio: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

7
Trad u ção e R e v is ã o

Pablo Rodrigo Alflen da Silva.


Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Advogado Criminal.

Cleopas Isaias Santos


Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Escola Superior
do Ministério Público do Maranhão e da Academia Integrada de Segu­
rança Pública do Estado do MA; Delegado de Polícia.

Renata Jardim da Cunha Rieger


Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Direito
Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC; Professora da Faculda­
de Dom Bosco de Porto Alegre e da Especialização em Direito Penal e
Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público;
Advogada Criminal.

Filipe de Mattos Dall’Agnol


Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Direito
Penal Económico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra; Especialista em Direito Penal Empresarial pela PUCRS;
Advogado Criminal.

Stephan Doering Darcie


Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS; Especializando em Di­
reito Penal Económico e Europeu pela Faculdade de Direito da Univer­
sidade de Coimbra; Advogado criminal.

Raquel Lima Scalcon


Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS; Graduada em Direito
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Assistente de
Desembargador junto ao TRF da 4a Região, com atuação em matéria penal.

Carolina Hess Almaleh


Bacharelanda em Direito pela PUCRS.

8
Ap r e se n ta çã o

Prof. Doutor Fabio Roberto D ’A vila


PUCRS, Porto Alegre

A presente obra corresponde à reunião dos contributos científicos oportu-


nizados pelo congresso internacional Direito Penal e Política Criminal no Terceiro
Milênio. Perspectivas e Tendências, realizado na Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS), dias 8 e 9 de junho de 2009. Encontro que foi
promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e
pelo Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), com apoio do Institu­
to Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e financiamento da Fundação Ale-
xander von Humboldt (AvH), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí­
fico e Tecnológico (CNPq) e do Ministério da Justiça do Brasil.
A ideia inicial de realizar-se no Brasil um encontro internacional de gran­
des proporções, marcado principalmente pela excelência de seus participantes,
é resultado da aproximação científica entre Brasil e Alemanha ao longo do ano
2008, nomeadamente entre o CNPq e a renomada fundação alemã Alexander-
von-Humboldt Stiftung (AvH), a partir da identificação de interesses comuns em
prol do desenvolvimento das ciências. Percebia-se, desde então, a necessidade
de intensificar o diálogo cientificamente comprometido e o intercâmbio interna­
cional de experiências, mediante medidas concretas de cooperação.
Coube a nós, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da
PUCRS e do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC), a gratifi-
cante tarefa de desenvolver um projeto capaz de contribuir a tais aspirações. O
objetivo consistia em reunir, em um espaço físico propenso ao diálogo, pesquisa­
dores de reconhecida excelência internacional, capazes de representar, de forma
plural, o estado da arte do pensamento penal ocidental contemporâneo. E, para
tanto, fizeram-se presentes em Porto Alegre, por meios de alguns de seus mais
destacados expoentes, países como Argentina, Chile, Itália e Portugal, para além,
obviamente, da Alemanha e do Brasil.
O tem a escolhido, por sua vez, dado a singularidade do evento e o par­
ticular momento histórico, buscou atender à necessidade de reflexão acerca das
intensas transformações que vem sofrendo as ciências penais na aurora desse
terceiro milênio, em decorrência direta de um a sociedade de novas característi­
cas. Tema cujo enfrentamento não poderia descurar de dimensões de análise que
são essenciais para a sua própria percepção enquanto problema científico. Daí a
preocupação em contemplar desde estudos sobre a (re)fundação filosófica do di­
reito penal, até reflexões de cunho acentudamente crimológico, político-criminal
e dogmático-penal, passando pelos importantes movimentos de constitucionali-
zação e internacionalização do direito penal.

9
Fabio Roberto D ’Avila.

Tratou-se, como se vê, de um projeto ambicioso. Porém, por mérito da­


queles que aqui estiveram, de grande êxito. O que se vivenciou naquele memo­
rável mês de junho esteve para além de mais um congresso de direito penal;
viveram-se dias de verdadeira celebração.
E isso não apenas por ter permitido um a singular conjugação de esfor­
ços internacionais em prol do desenvolvimento de um já há muito necessário
espaço de diálogo acadêmico-científico verdadeiramente comum, desprovido
de fronteiras e de nacionalidades, em que, diante da prem ência de soluções a
desafios que nos tocam como um só povo, a diferença só se faz possível como
elemento de união. Mas também porque estiveram aqui reunidas algumas das
mais importantes e tradicionais universidades da Europa e da Am érica Latina,
que, através de seus professores, carregam o legado humanitário de séculos de
incansável dedicação por um a sociedade mais tolerante, por um direito penal
menos autoritário e liberticida, por um direito penal que, antes de qualquer coi­
sa, se constrói e se legitim a como espaço de liberdades e de reconhecimento.
Por isso, conquanto o espírito do nosso tempo, fustigado por um recor­
rente pessimismo, seja, muitas vezes, desolador, encontros como este sempre
nos permitirão acreditar no espaço acadêmico como um lugar de resistência dos
ideais de liberdade e tolerância, em um projeto que nos une enquanto homens
sem cor, credo ou nacionalidade, um projeto que queremos cada vez mais nosso.
É isso que aqui se celebra. E é isso que agora se leva ao leitor, por meio
da publicação de suas atas. A união de esforços, de cultura, de experiência por
um mundo, para muitos, utópico. Mas que, para todos que aqui estiveram, e para
tantos outros que conosco comungam esses ideais, já existe desde o primeiro que
por ele se levantou, e se renova, por inteiro, a cada passo dado.
Gostaria, por isso, muito sinceramente, de agradecer a todos os colegas
que, com seus escritos, contribuíram para a conclusão dessa obra, aos colegas e
alunos que participaram da organização do evento, em especial a Melissa Lippert e
a Uriel Moller, cujo apoio pessoal e logístico foi fundamental para a sua realização.
Mas também aos colegas e alunos que se dedicaram à tradução e revisão dos arti­
gos em língua estrangeira, muito particularmente ao mestrando Stephan Doering
Darcie, a quem devo todo o apoio final na revisão dos textos e organização da obra.
Um agradecimento especial devo ainda à Fundação Alexander von
Humboldt, ao CNPq e ao Ministério da Justiça do Brasil cujo financiamento e
apoio tornaram possível os presentes estudos.

Porto Alegre, Verão de 2011.

10
O Dir e ito Pe n a l, a L in g u a g e m e o M u n d o Glo .
b a liz a d o
Ba b e l ou Es p e r a n to Un i v e r s a l ?

Prof. Doutor José de Faria Costa


Universidade de Coimbra, Portugal

1. U m a n a rra tiv a in tro d u tó ria

O direito, o direito penal, não é uma narrativa1 mas mostra-se também


através dela. Por isso, queiramo-lo ou não, a narrativa é um dos vectores fun­
damentais para se perceber, compreender, analisar, criticar e estudar o direito2.
Mais ainda. A narrativa do direito, a narrativa jurídica3 abre-se em três grandes

1 Entendamo-nos. Temos por “narrativa” a exposição ou ilustração de um facto ou de uma série de factos,
mais ou menos encadeados, que se leva a cabo por palavras ou imagens. É evidente que o que conta na nar­
rativa do direito são as palavras. É a linguagem. Talvez melhor: o que conta no mundo da juridicidade é a
palavra enquanto significante e significado. Por exemplo: quando no crime de homicídio se diz “aquele que
matar outra pessoa será punido com a pena Y” o que se está a fazer, entre outras coisas e desde logo, é a narrar
uma situação hipotética — “matar uma outra pessoa”, um encadeamento de factos, pois — a que se atribui
uma consequência. Neste caso simples e paradigmático, o direito, o direito penal, não só descreve, narra, uma
conexão de factos, através da modalidade de hipótese, de um tempo hipotético e futuro, mas narra um outro
facto “será punido com a pena y”. Em verdadeiro rigor, quer a descrição da situação hipotética, quer o que
se lhe segue se tal acontecer mais não é do que pura narrativa. Narrativa vista no primeiro segmento como
hipótese e no segundo elemento como consequência. Dir-se-á: certo, mas a análise que se fez teve que ver com
uma específica dimensão do direito. Teve que ver com a lei. Neste caso particular com a definição legal de um
tipo legal de crime. Tudo indubitavelmente correcto. Só que isso não invalida minimamente o que se acaba de
reflectir. Sobretudo se se tiver em linha de conta que o princípio da legalidade é uma expressão fundamental
do direito penal moderno — o tipo legal de crime é a ratio relevans — ou, como defendemos, do direito penal
pós-moderno ou do direito penal tardo-moderno, conceito ou expressão, este último, aliás, que preferimos
(sobre a pós-modernidade ou a tardo-modernidade veja-se o que se escreve na nota 6).
2 Não só o direito, é evidente. Por exemplo, também a filosofia. A um tal ponto que Lyotard afirma, sem rebuço
e de forma peremptória, que a “filosofia é literatura” e o “filósofo não é mais do que um escritor falhado, mais
falhado”, valha a verdade, “do que o próprio escritor”, veja-se Lyotard, Jean-François, «La scrittura riflessiva»,
in: Filosofia ’94 (a cura de Gianni Vattimo), Roma-Bari: Laterza, p. 102.
3 Normalmente associa-se a narrativa quase de modo exclusivo à literatura. Todavia, sabe-se, hoje, que as coisas
não são assim. Basta pensar na história. Saber que se assume, de tantos lados, como uma narrativa. Porém o que
é, deveras, interessante pode detectar-se no entrecruzar da narrativa literária com a própria linguagem jurídica,
enquanto narrativa. Expliquemo-nos. Estamos a querer dar um exemplo em que a linguagem jurídica ou, se se
quiser, a conceptologia jurídica vai servir de matéria à própria narrativa literária. Mas não de uma maneira assép­
tica. Não. A matéria jurídica a ser trabalhada para se tornar, por exemplo, figura de estilo (ironia). Peguemos, pois,
em uma ilustração do grande Camilo Castelo Branco. Em certo passo do romance “O bem e o mal” a personagem
central, Casimiro Bettancourt, ao ser detido nada diz, fica em silêncio, ao que lhe é retorquido que o silêncio cor­
responde a uma confissão do delito. Ora, é aqui que Camilo põe na boca de Casimiro esta extraordinária frase, de
uma frescura e de uma actualidade inexcedíveis: “É o anexim ‘quem cala consente ’arvorado em axiomajurídico.
Boa hermenêutica” (cf. Camilo C astelo Branco, O bem e o mal, 10a edição, conforme a 3a, última revista pelo
autor, mas impressa na ortografia oficial, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1940, p. 162, itálico nosso).
Analisar este excerto seria interessantíssimo mas, aqui, deslocado. Fiquemo-nos por duas ideias. A primeira é a
de que a hermenêutica como método interpretativo para o direito era coisa conhecida já no séc. XIX que se não
cingia, por isso, à mera exegese literária. Segundo, ressalta claro que para Camilo quem nada diz nada diz. Isto é,
não afirma nem infirma. Donde desse omittere nada se poder concluir. Mais. Pode mesmo postular-se, aqui, um
embrião do direito ao silêncio, hoje tão importante e fundamental no actual direito processual penal democrático

11
José de Faria Costa.

segmentos ou, se se quiser, em três grandes territórios narrativos: o legislativo, o


jurisprudencial e o doutrinal4. É nosso propósito levar a cabo algumas reflexões
tempestivas sobre o direito penal dentro de um horizonte crítico onde impere o
sentido da narratologia5 como “instrumento débil”, mas instrumento de qualquer
maneira, para se compreender o direito e muito particularmente o direito penal.
Mas o que é que nos leva a dizer que a narratologia é um “instrumento débil”?
Fácil é de ver que se emprega aqui uma analogia. Em vez da noção de
“pensamento débil” que tanto caracteriza este nosso tempo - a que alguns cha­
mam de pós-modernidade6 - emprega-se o conceito de “instrumento débil”, que­
rendo com isso significar que os meios de análise são também eles susceptíveis
de serem postos em causa e que, para além de tudo, pode operar-se uma certa
intermutação entre eles sem que o que se pretende alcançar não venha a sofrer
danos de maior (ou pelo menos é essa a convicção de que se parte). Por outras
palavras ainda e talvez de maneira mais incisiva: enquanto o método experimen­
tal é, por exemplo, para as ciências empíricas o “único” que legitima a cientifi-
cidade dessa prática ordinária de um saber rigoroso e se assume, nesta lógica,

e liberal. Se o pensamento jurídico nacional estivesse por vezes mais atento ao pensamento português e menos
subserviente a outras ordens jurídicas muito beneficiaria. Para além de que, outrossim, se enriqueceria se perce­
besse que o direito pode, hoje como ontem, ser fertilizado por outros saberes, por outras linguagens que exprimem
outras tantas narrativas.
4 Aquilo que a doutrina narra pode ser visto de duas maneiras bem precisas. Há uma narrativa sobre a própria
lei. Um discurso jurídico sobre a própria lei. Sobre a sua compreensão. Sobre o seu sentido. Sobre a sua legiti­
midade. Entre tantos outros pontos. É este, digamos, o campo primeiro ou o pórtico por onde entra a narrativa
doutrinal nas coisas do direito. Uma reflexão, por conseguinte, que trabalha com o texto-norma e a norma-texto
(veja-se o que se diz, a propósito destes conceitos, na nota 13). Todavia, a doutrina enquanto reflexão, crítica ou
não, sobre o direito pode ir mais além ou mais fundo. Pode mesmo distanciar-se da lei e propor, novos modelos
jurídicos, novas narrativas no que toca a futuras leis. Deste modo, enquanto olhamos para aquele primeiro
momento não temos dúvidas em afirmar que ali radica uma verdadeira e própria narrativa que se, desenvolve,
alias, no mesmo patamar das narrativas legais e jurisprudenciais. Todavia, quando valoramos o segundo as­
pecto da reflexão doutrinal parece-nos que, então, se está defronte a uma metanarrativa. O que é, como todos
sabemos, coisa bastante diferente. O que, contudo, lhe não diminui a importância.
5 Narratologia vai, neste contexto, empregue enquanto procura de um entendimento - em um sentido episte-
mológico - para as estruturas narrativas do direito. Por outras palavras e de forma interrogativa: o que é que,
por exemplo, diferencia a estrutura narrativa de um texto legislativo, de uma sentença ou de trabalho doutrinal?
Sim. Qual a diferença específica entre estes campos ou territórios narrativos?
6 Continuamos a pensar aquilo que aquilo que, em outro lugar e há pouco tempo, escrevemos merece, porque
adequado, também aqui ser referido. Assim, “um dos nomes que alguns utilizam para dar serventia de qualifica­
ção ao nosso tempo é “tardo-moderno”. Outros enfileiram - aliás, a mais normal e também a mais difusa - pela
expressão “pós-moderno”. Sem se querer dar demasiada importância aos nomes, pois estes são isso e só isso, no­
mes, e não querendo reinventar qualquer sopro teórico para o rejuvenescimento do nominalismo, sempre se pode­
rá afirmar que nos parece ser mais consistente, neste contexto e para este efeito, o prefixo “tardo” do que o prefixo
“pós”. Pensamos que a nossa época só cronologicamente é que vem depois da modernidade. E isso é pouco para
a definir. Somos pós-modernos, pois somos, da mesma forma que os renascentistas eram pós-medievais, mas que
se saiba nunca ninguém quis definir o tempo renascentista como pós-medieval. Somos antes, por conseguinte,
muito mais tardo-modernos do que pós-modernos, porquanto o que se está a viver é ainda uma modernidade que
se mostra como tardia ou eventualmente já em ocaso mas, de qualquer maneira, ainda modernidade”, «Bioética
e direito penal (reflexões possíveis em tempos de incerteza)», estudo que está em vias de publicação no livro de
Homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra a Jorge de Figueiredo Dias.

12
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

como um “instrumento forte” a narratologia, como meio de aproximação a um


saber que vive, ele próprio, da própria narrativa, não pode deixar de ser olhada
como “instrumento débil”. N a verdade, se Wittgenstein podia dizer no Tractatus
Logico-Philosophicus que “os limites da minha linguagem significa os limites do
meu m undo”7 quer isso “significar”, precisamente pela linguagem, que o mundo
- e por isso também o direito - só se pode perceber pela linguagem. Que o di­
reito só se pode entender pela linguagem ou, como defendemos, que o direito se
mostra, por sobre tudo, pela linguagem e que, nos limites da sua expressão, está
circunscrito precisamente àquilo que a linguagem permita. Por outras palavras
ainda: não podemos construir ou sequer pensar um direito - isto é, um a ordem8
jurídica - que não arranque da linguagem, de uma qualquer linguagem. Se bem
que se possa conceber que o direito, enquanto ideia regulativa de dimensão on-
to-antropológica, é uma das criações humanas que mais violenta a linguagem e
que, por isso mesmo, com ela se não pode identificar completamente, é possível.
Todavia, o facto é bem mais complexo. Porquê? Porque os desafios que a realida­
de põe ao humano9 e, por conseguinte, ao direito são outras tantas arremetidas à
cidadela da linguagem. Porém, o humano, a criação humana, o direito, enquanto
violenta e ataca a linguagem fá-lo sempre - e aqui entra o inescapável paradoxo
que tudo ilumina e tudo obscura - através, precisamente, da linguagem. Lingua­
gem que está lá antes de nós estarmos. Cidadela que estará depois de nós já não
estarmos. O que faz dela, o que faz de nós, porque sem ela também não somos,
seres de linguagem de raiz onto-antropológica. Mas uma coisa se quer tornar
límpida e clara: o direito não se esgota na linguagem, tal como o pensamento se
não esgota naquela mesma linguagem. Razão tem, pois, Ellis quando, apesar de
reconhecer que o pensamento está para lá da linguagem, não deixa, todavia, de
declarar que “fo r human being the most important means o f their knowing the

7 Utilizamos a boa tradução para língua portuguesa de M. S. Lourenço, publicada com a chancela da fundação
Calouste Gulbenkian (W ittgenstein, Ludwig, Tratado Lógico-filosófico —Investigações Filosóficas, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian), 5.6 (p. 114).
8 O direito é uma ordem (ordo est relatio) não é um sistema. Porquê? Porque o sistema pressupõe um conjunto
de proposições em que o léxico e a sintaxe se fixam, se cristalizam, de modo não equívoco. Os elementos são
definidos por uma função. Peguemos em um exemplo. Olhemos para o número zero. Assim, no sistema deci­
mal - e aqui, sim, faz todo o sentido falar em sistema - o zero vale sempre e sempre o mesmo conforme o seu
lugar funcional. Assim, se associado a um número deixa este inalterado desde que estejamos a trabalhar com
a adição ou com a subtracção (7+0=7; 7-0=7). Mas já reduz qualquer número a zero, a si próprio, desde que a
função seja a multiplicação (7x 0=0). Sobre este ponto veja-se Lyotard, ob. cit. [nota 2], p. 99. Em abono da
verdade poder-se-á dizer que o direito trabalha também com elementos que são tendencialmente não equívocos
e, nesta perspectiva, aproxima-se da noção de sistema. Que elementos são esses? Falamos, evidentemente, das
“regras”. Porém, mesmo neste domínio, nunca será demais salientar que um espaço mínimo de interpretação de
“equivocidade” se pode detectar neste preciso território do direito. Donde, com propriedade e sentido se pode
continuar a afirmar que o direito é refractário a uma noção de sistema e deve antes ser visto como “ordem”.
9 Aqui gostaríamos de salientar que o humano que pressupomos encerra - e de que maneira - o pensamento
humano. Sobre as relações entre linguagem e pensamento veja-se, por todos, E llis, John M., Language, thou-
ght, and logic, Evanston: Northwestern University Press, 1993.

13
José de Faria Costa.

world is through language”10. A linguagem é, por conseguinte, o mais importante


dos meios para, nós humanos, percebermos o mundo. Mas não é o único meio,
o único instrumento. Nesta óptica, continua a fazer todo o sentido qualificarmos
a linguagem, que é sempre narrativa, como um “instrumento débil” - porque
não único - para nos “mostrar” o direito que, por seu turno, é também feito de
linguagem. E este paradoxo só aparentemente é um “círculo vicioso”, antes se
mostrando como um “círculo virtuoso” . N a verdade, perceber que o direito é
um “quid specificum” que se mostra pela linguagem, com diferentes narrativas,
é assumir a perenidade do transitório11. É ter consciência crítica de que o direito
é sempre um pedaço de história que se faz e se compreende precisamente com
aquilo de que ele também é feito, com linguagem. É reconhecer que a norma se
mostra, em primeiro lugar12, como texto-norma e só depois podemos desvelar a
norma-texto13. Aqui, como em todas as outras coisas, o ser mais fundo oculta-se,
esconde-se. Compete ao intérprete, ao jurista, escavar e procurar o sentido últi­
mo que pode não ser sempre susceptível de entrar no reino do dizível, se bem que
se deva, até ao infinito, fazer um esforço para que tal não aconteça. Para que não
restem dúvidas: no mundo do direito tudo tem de ser racionalizável através da
linguagem que se estrutura em diferentes narrativas. Porém, no limite, no limite
da procura do “justo”, admitimos o não lugar, o não tempo, a utopia, a ucronia
e, desse modo, o indizível14. Ainda assim esse limite não é uma pura inutilidade
10 E llis, John M., ob. cit., [nota 9], p. 65.
11 O tempo que vivemos, o tempo que faz a temporalidade, é o caldo cultural, social e espiritual do qual nin­
guém escapa. E o nosso tempo, bem ou mal, está marcado pela qualificação pós-modernidade ou tardo-moder-
nidade. Perceber as características deste hoje, deste caos que é o hoje, mesmo de um ponto de vista jurídico, é
uma das tarefas primeiras de qualquer jurista. Há no tempo que passa qualquer coisa de efémero, de transitório,
de fugaz, de difuso que se torna muito difícil “agarrar”. Todavia, sempre o que passa, o que flui esteve presente
no direito. Mesmo quando o absoluto era o mais absoluto e imutável se percebia que não podia escapar ao devir
do humano. Ao devir da história. Agora, parece que o nosso tempo, o tempo que ajuda a construir o direito dos
dias de hoje, quer ir no sentido precisamente contrário. Quer ir na absolutização do transitório e do efémero.
Pensamos que, deste jeito, se está a cometer idêntico erro. Só que, ora, de sinal contrário. Nós somos trânsito,
o direito é trânsito, mas somos de igual modo constância, o direito é também feito de invariância. Quando
Heraclito compreendia o mundo através da celebrada expressão “panta rei” parecia antecipar os tempos da
contemporaneidade. Porém, é bom lembrar que este fluir, este escorrer, se é um horizonte que jamais deve­
mos atirar para o sótão das coisas esquecidas, é também verdade, pelo menos a nossos olhos, que ele só tem
sentido, enquanto horizonte de compreensão do mundo, se se não fossilizar no próprio absoluto do transitório.
E tudo o que se acaba de ponderar vale para o direito e, de modo muito particular, para o direito penal. Seria
absolutamente caótico e desagregador conceber um direito penal que mergulhasse as suas raízes no efémero
e no transitório. As portas para a arbitrariedade ficariam escancaradas e os valores da certeza e da segurança
ficariam esfacelados. Um direito penal fluido, aquoso ou, no limite, gasoso seria um retrocesso civilizacional.
Pode acontecer. Pode. Mas se todos estivermos atentos podemos evitar um tal desastre.
12 Pelo menos e de forma absolutamente segura a partir da “modernidade”.
13 Sobre os conceitos de texto-norma e norma-texto vejam-se as nossas “Lições” Noções Fundamentais de
Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis), Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 142 e s.
14 O indizível é o maior dos paradoxos quando estudamos a linguagem. Na verdade, se assumimos, como nós
assumimos, que há pensamento para lá do dizível é também verdade que esse mesmo indizível, nem que seja para
lhe atribuirmos um mero significante, só pode ser comunicado - ser comunicado, isto é, ser “tornado comum”
- através da própria linguagem que se tem, nesta lógica, como não limite. E é este o paradoxo. O território do

14
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

assume-se como um axioma15. Uma premissa que não depende de nada. Que
vale por si e em si. E que tem uma função redutora de autolimitação. Qual? Há
limites16 para dizer o direito.
Com este fecho, dir-se-á, pouco se avança. Todavia, como sabemos, o
avançar que, aqui, se convoca não se prende com a clássica compreensão de um
avançar rectilíneo e sempre ascendente, mas antes com um entendimento de um
“avançar” que opere, ele próprio, em espiral hermenêutica. O que é que isto, po­
rém, quer significar? Em termos muito simples mas, de igual modo, rigorosos:
quer dizer que a reflexão levada a cabo densifica a inteligência dos problemas e
se, por vezes, aparentemente, não a torna mais clara, nem por isso a deixa menos
inteligível ou racionalizável. Mais ainda. A própria ideia de limite é, ela mesma,
expressão de qualquer coisa que dá sentido ao próprio direito. A criação jurídica,
com o grau de variação que todos conhecemos, não pode ser entendida como uma
narrativa puramente ficcional. Ela é uma narrativa limitada por uma infinidade de
fronteiras. É, pois, este o sentido do limite que aqui queremos exprimir. Uma no­
ção, uma categoria do pensamento que é ínsita à própria ideia de direito enquanto
narrativa e mesmo enquanto “ordem”.

2. O territó rio n a rra tiv o da lei

Não tem os a m enor dúvida em afirmar, como já atrás o fizemos, que


o direito se faz por m eio de três grandes narrações. A narração da lei, da
jurisprudência e da doutrina. Indubitavelm ente. Todavia, sobretudo para nós
penalistas é indesm entível que o território narrativo da lei assume um a im ­
portância que nem ao mais desatento pode passar despercebida. De sorte que,
neste contexto, vamos centrar, por sobre tudo, a nossa atenção na textura
norm ativa e narrativa da lei.

silêncio absoluto - isto é, o território da ausência total de linguagem - só pode ser sinalizado, como se vê, pela
própria linguagem. Mas continuemos um pouco mais. Com efeito, se se pode pensar para lá da linguagem, como
o fazemos? Que formas superiores de relacionação utilizamos? E se pensamos para lá da linguagem e temos ex­
periências outras que a linguagem não comporta, então, parece que as não podemos comunicar, não as podemos
transmitir, porque não há linguagem para uma tal realidade. Porém, se assim é como sei o que estou a viver ou a
pensar? É uma experiência individual sem referentes, logo só “minha”. Imperscrutavelmente “minha”.
15 É óbvio que não vamos dar uma noção axiomática de axioma. Vamos antes dar um exemplo de axioma
no campo do direito penal. Assim, poder-se-á dizer que se pode descortinar um axioma penal na seguinte
especificidade do princípio da contradição aristotélica: nada pode ser, simultaneamente, lícito e ilícito. Isto é:
avançamos com uma noção rigorosa de axioma e não empregamos aquela, porventura também legítima mas
mais porosa, que Camilo empregou no exemplo já aqui por nós explicitado; veja-se o que se disse na nota 3.
16 O problema dos limites põe-se, nos tempos que correm, de uma forma extremamente aguda. E não só no
campo do direito. Na verdade, uma das mais desafiadoras e intrigantes perguntas é feita pela própria ciência.
Vale por dizer: a ciência terá limites? A este propósito é de estimulante leitura o conjunto de conferências que,
sob a égide da Fundação Calouste Gulbenkian e com a coordenação de George Steiner, a própria Fundação
Gulbenkian publicou (A ciência terá limites?, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/ Gradiva, 2008).

15
José de Faria Costa.

Já deixámos sugerido - talvez mais do que sugerido17 - que o direito pe­


nal, sobretudo naquilo que exprime o princípio da legalidade, enquanto princípio
da tipicidade, se mostra como narrativa de factos hipotéticos. Esta é um a forma
de fazer aparecer o direito penal18 que centra toda a sua narrativa em três cânones
muito precisos e bem delimitados: lei certa, precisa e anterior. O figurino para se
atribuir legitimidade à narrativa que vai servir de base a uma qualquer punição
penalmente relevante não fica ao livre alvedrio de quem quer que seja. A lei
constitucional encarrega-se de atribuir certos papéis, de definir, à partida, as en­
tradas e as saídas de cena dos personagens. Assim, o texto constitucional - nos-
so19, mas em outras constituições o mesmo se passa - impõe que a narração de
factos futuros, logo factos hipotéticos, que mereçam proibição penal só podem
ser descritos através de lei certa, precisa e anterior. Esta não é, por conseguinte,
uma qualquer narração. Não é pura ficção20. É antes um entrelaçar de conceitos -
e não só - que se mostram como factos hipotéticos e que a comunidade jurídica
considera que a sua prática é merecedora de uma consequência que, na circuns­
tância, adquire a dimensão conceitual de pena criminal.
Todavia, como se sabe, longe vai a ingenuidade - associada a um certo
“romantismo positivista”21 - dos primitivos iluministas que pensavam ser possível
17 Veja-se o que escrevemos na nota 1.
18 Como é bom de ver, vamos centrar toda a nossa atenção na narrativa que o tipo legal de crime encerra.
É óbvio que, deste jeito, vamos surpreender tão só uma parte do direito penal. Contudo, consideramos que o
tipo legal de crime é, bem vistas as coisas, o alfa e o ómega desta nossa matriz de direito penal. Por isso não é
descabido dar-lhe o protagonismo que lhe estamos a atribuir.
19 Veja-se a al. c) do art. 165° da nossa Lei Fundamental.
20 Precisemos. A narração de factos hipotéticos, isto é, a narração de factos que podem acontecer no futuro tem
segmentos ficcionais. Qual a razão, pois, que impõe que escrevamos «não é pura ficção»? É simples. Quando o
tipo legal de crime narra no texto-norma factos, é evidente que narra factos futuros mas ainda e sempre factos
que o próprio tipo legal expressa no texto-norma que vão, mais cedo ou mais tarde, sempre acontecer. A narra­
ção hipotética de factos que o tipo legal de crime contempla assume um carácter de indubitável previsibilidade.
Deste modo, por exemplo, os factos narrados em “Alice no país das maravilhas” são factos hipotéticos, só que
inverossímeis, pura fantasia. O que se não passa, bom é de ver, com os factos narrados no tipo legal de crime.
Acresce que a narração destes factos encerra uma outra característica: uma abertura infinita a todos os factos
futuros que se enquadrem na narração hipotética. Assim, se Leocádia matar Genoveva daqui a dois anos é
aquele texto-norma que vai servir de ponto referencial para se encontrar a norma-texto e a consequente pena.
Porém, se Zebedão matar Abraão daqui a dez anos é ainda aquele preciso texto-norma, no pressuposto de que
ainda está em vigor, que desempenhará a função jurídico-penal de espoletar a procura da conexa norma-texto.
Em síntese: a narração hipotética não é pura ficção no sentido de inverossimilhança ou de impossibilidade do
acontecer, é antes necessidade do acontecer que se abre a infinitos aconteceres. Mais. É impossível conceber a
narração hipotética de factos para um só caso. A narração seria, neste caso, inconstitucional, porquanto violaria
o princípio da universalidade e mostrar-se-ia, para além disso, inconstitucional por violação do princípio da
necessidade (art. 18° da Constituição da República Portuguesa).
21 Esta expressão - “romantismo positivista” - que assumimos deliberadamente pode parecer paradoxal ou
até encerrar, em si mesma, uma dose de nonsense. Com efeito, o romantismo, enquanto exaltação de um “eu”
descomprometido e tendencialmente livre até ao delírio é, em uma primeira análise, o que há de menos com-
paginável com a leitura mais imediata da pauta reguladora do chamado positivismo, sobretudo quando este se
afirma como manifestação da mais pura objectividade. Assim, nada de mais contraditório. A única coisa que
parece unir o romantismo e o positivismo será, talvez, o arco temporal que os cobre. Mas será só isso? Julga­
mos, fundadamente, que não. Na verdade, o positivismo, sobretudo aquele que se quis mais duro, descarnado

16
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

definir a realidade só através de factos. Que acreditavam que se podia narrar fac­
tos, da vida comum, de maneira não equívoca. Hoje há uma consciência firme e
desperta para o insensato e para o prejudicial que uma tal finalidade poderia trazer
para a defesa da segurança e da certeza22 no campo do direito penal. De sorte que a
definição dos factos, dos comportamentos no tipo legal de crime, se faça cada vez
mais por meio daquilo que hoje se qualifica de open textures23 e que na linguagem
“técnica” ou dogmática do direito penal se identificam como “tipos abertos”24, de­
finição dos tipos legais de crime através da técnica dos exemplos padrão25 ou, no
limite, como “normas penais em branco”26. Ora, o grande problema está em tentar
perceber o ponto de equilíbrio entre a fluidez total do “texto incriminador” e a
rigidez, querida e assumida, de uma tentativa de procurar a descrição factual não
equívoca27. Bem sabemos que esse ponto de equilíbrio tem muito de horizonte ina­
tingível e que se apresenta, por sobre tudo, com lei da boa razão. Bem sabemos que
ele jamais é atingível. Bem sabemos que as circunstâncias concretas da história
só mostram desvios, que a realidade dura e crua é um amontoado de inescapáveis
mutilações ao desejo de se encontrar um fio que una e separe mas que seja, simul­
taneamente, harmónico. Mas o que se mostra paradoxal é a emergência de dois
grandes vectores que se apresentam, em si mesmos, de maneira contraditória. De
um lado, temos um caudal cada vez mais intenso de determinações comunitárias
que fazem com que as legislações dos países comunitários entrem no frenesim de
alterações constantes, criando uma instabilidade para lá do razoável, dando uma
tónica de Babel, mas, por outro lado, tudo isso é feito em nome de uma certa
uniformização, em nome de uma determinada homogeneização, em nome de um
“esperanto universal”28. No enquadramento destas ideias é importante perceber
e aparentemente mais objectivo outra coisa não foi do que uma narrativa científica baseada no “eu” racional,
poderoso e omnipotente. A razão que cobria o positivismo - e que fazia ciência experimental - só se percebia
no “eu”, impávido, solene, sem sentimentos, sem emoções. Aí residia o seu território. Mas esse mesmo “eu”
também tinha sentimentos, emoções, olhava para o passado, era “Sturm und Drang”. De sorte que se possa
afirmar a existência de um romantismo positivista. Qual, por conseguinte, o “trait d’union”? Fácil é de ver
que ele está nesse elemento único, polissémico, maleável mas também irredutível que é o “eu”. Se visto só e
absolutamente racional leva-nos ao positivismo exangue. Se olhado só e absolutamente emotivo conduz-nos
ao romantismo evanescente.
22 Segurança e certeza, conceitos também eles sujeitos ao enriquecimento da história mas de igual passo à sua
erosão e, por consequência, ao seu enfraquecimento.
23 Sobre o que se deve entender por open textures veja-se, entre outros, Papaux, Alain, «Introduction à la
philosophie du 'droit en situation’», Bruylant/L.G.D.J/Schulthess, 2006, p.191 e s.
24 Veja-se o art. 150° do CP.
25 Veja-se o art. 132° do CP.
26 Veja-se o art. 152°-B do CP
27 Repare-se que temos o cuidado de empregara expressão“não equívoca”enão oconceito muito mais
cortante e delimitador de fronteiras de “inequívoco”. Com efeito, procurar o“nãoequívoco” é aceitar ou ter
presente que uma franja de equivocidade estará sempre presente na interpretação jurídica, como em qualquer
outra interpretação. É de sua natureza. O “inequívoco” joga e trabalha na axiomática dos sistemas fechados. E,
já o vimos mas não nos devemos cansar de o repetir, o direito é uma ordem e não um sistema. E se a ordem é
relação (veja-se nota 8) isso implica, bom é de ver, abertura e nunca fechamento ou clausura.
28 A utilização desta imagem, que vai ser glosada em vários momentos, não é mais do que isso. Uma imagem

17
José de Faria Costa.

e clarificar alguns pontos. Em primeiro lugar, urge salientar que o princípio da


legalidade aponta, indesmentivelmente, para uma certa rigidez narrativa, de certa
maneira sinaliza os pródromos de um incipiente “esperanto universal”. Com efei­
to, quando o legislador, qualquer legislador, assume que tem de narrar a descrição
de factos futuros através - mas cingido - do princípio da legalidade é óbvio que a
narrativa tem de ser muito parecida - e é isso mesmo que se deseja - ou semelhante
independentemente da língua em que se escreva. O que conta, neste contexto, são
as estruturas narrativas. As texturas narrativas que, olhadas pela força centrípeta
do tipo legal de crime, se devem ver não como open textures mas bem ao contrário
como close textures. Ora, se as coisas se abrem a esta análise não podemos deixar
de observar que, então, o tipo legal de crime - em uma compreensão liberal, a que
defendemos, diga-se de passagem e em abono da verdade - exige uma narrativa
modelada em um “esperanto universal”. Ora, não é isto que nos preocupa en­
quanto penalistas, porquanto uma tal forma de ver as coisas nada mais é do que a
reafirmação da ideia forte de certeza na aplicação do direito penal. O que nos faz
subir os patamares de vigilância crítica prende-se com uma outra realidade bem
mais complexa e talvez menos perceptível. Falamos não da “forma” mas antes e
sobretudo dos “conteúdos”. O que nos preocupa é a redução dos conteúdos a um
só modelo, a um só modo de expressão. Concretizemos o que está, nestas últimas
considerações, em discussão.
Temos por marco civilizacional, já o vimos, que a narrativa, quando se
trata da definição do tipo legal de crime, se restrinja a um enquadramento for­
temente limitativo. Isso, a nossos olhos, é bom mesmo em um a comunidade de
tonalidade “tardo-moderna”. E é bom não por qualquer qualidade intrínseca da
narrativa certa e precisa com que o tipo legal de crime deve aparecer ao comum
dos cidadãos mas antes porque, desse jeito, se defende a liberdade. Neste sentido
aquela narração é, a todas as luzes, meramente instrumental. O que conta é o va­
lor final. E o direito penal, por estranho que pareça, é uma “ordem de liberdade” .
Por outro lado, quando estamos a trabalhar com práticas narrativas que
podem ter consequências limitadoras da liberdade29 é absolutamente im pres­
cindível que tudo fique ou reste do modo mais não equívoco possível. O tipo
legal de crime narra, descreve, comportamentos que o legislador considera
com sentido metafórico. Não acarreta, bom é de ver, qualquer juízo de valor sobre o esperanto como língua
“artificial” tendencialmente universal.
29 Temos de ter particular atenção com tudo aquilo que dizemos. É absolutamente necessário jamais esquecer,
por um minuto sequer, que o direito penal não é uma narrativa ficcional no sentido de narrativa de fantasia.
De uma narrativa que fala de factos que nunca virão a acontecer. O direito penal não se pode confundir com a
narrativa de “Alice no país das maravilhas”. Nada disso. Trata-se de uma narrativa que narra factos e narra a
consequência desses mesmos factos. Que tem, por isso, consequências fortes no real verdadeiro. Dizer que se
quem praticar um crime de homicídio sofre uma pena de prisão de tantos anos não é uma fantasia. É uma narra­
ção que determina, no futuro, para quem estiver sob a alçada daqueles factos, uma privação da sua liberdade. É
uma narração que antecipa o futuro e molda esse mesmo futuro. Logo, uma narração que mais do que narração
se deve afirmar como marcação. Marca, define, aquilo que vai acontecer no futuro.

18
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

como penalmente reprováveis por isso os descreve dizendo que, quem, no fu­
turo, os vier a praticar sofre um a sanção, um a pena criminal. Ora, se se podem
encontrar invariáveis na descrição de certas condutas penalmente relevantes -
v. g. matar, roubar, injuriar, ofender no corpo terceiros, m olestar sexualmente
terceiros contra sua expressa vontade, atentar contra a ordem estabelecida, etc.,
etc. - é indubitável que a ideosincrasia de que cada povo ou comunidade nacio­
nal importará variações, não só na definição dos comportamentos que levam
àquelas acções, agora sumariamente descritas, mas também e sobretudo na­
quilo que se refere na multiplicidade de condutas outras ligadas àqueles tipos
m atriciais. Expliquem o-nos. Todos os códigos penais consideram crime a
conduta daquele que dolosam ente provoca a m orte de outrem. Por certo. Mas
há já um a infinidade de diferenças quando olham os para os hom icídios pri­
vilegiados ou para os hom icídios qualificados. Como, é evidente, a narrativa
sancionatória é o m ais colorida e variegada possível. Pode ir, infelizmente,
da pena de m orte ou da prisão perpétua até a uma pena de prisão com limite
m áximo, em princípio, de 25 anos (isto já no crime de hom icídio qualificado,
art. 132°, n° 1 do CP). Ora, é precisam ente neste aspecto das coisas que a
introdução de um “esperanto universal” se m ostraria nefasta. Aqui, na defi­
nição das condutas proibidas e não propriam ente na narração dessas mesmas
condutas, é que se deve reivindicar a “babel” e não o conteúdo único, o es-
peranto universal do pensam ento único. A contam inação viciosa que parece
invadir a definição das condutas proibidas, por força de um a cada vez mais
forte im portância de alguns sujeitos internacionais30 - de form a m uito breve,
os sujeitos internacionais como fonte incrim inadora - , é motivo de preocu­
pação. Um direito penal liberal deve continuar a reivindicar um a narrativa
com uma tonalidade de “esperanto universal” quanto ao “modo de escrever”
o direito penal mas não pode deixar, com igual força, de defender a “B abel”
para a definição narrativa dos conteúdos. Para a definição narrativa dos com ­
portam entos proibidos. A afirmação de um “esperanto universal”, quanto a
este últim o aspecto das coisas, mais não é do que o afloramento daquilo que
D ahrendorf certeiram ente apelida como um m ovim ento de anti-ilum inism o31.
Mas não só quanto a este aspecto das coisas deve haver “babel” . Deve ha­
ver diferenciação. Deve haver diversidade. Também quando olham os para as
m olduras penais abstractas.
N a verdade, não corresponde ao sentido mais profundo de cada com u­
nidade ver as condutas penalmente proibidas serem punidas de m aneira idên­
tica ou até uniforme quando cotejadas com outras comunidades mesmo que
da sua família. Para além de que como se chegaria à escolha da medida penal

30 Pense-se, por exemplo, nas Directivas e nas Decisões-Quadro no âmbito do direito comunitário.
31 Dahrendorf, Ralf, Erasmiani (Gli intelletuali alia prova dei totalitarismo, Roma-Bari: Laterza, 2007, p. 209.

19
José de Faria Costa.

abstracta justa? Perante várias molduras penais abstractas, todas atinentes ao


mesmo comportamento proibido mas resultantes de várias legislações, qual é a
que seria dominante? Expliquemo-nos um pouco melhor.
O homicídio qualificado, por exemplo, na Alemanha e na Itália é punido
com pena de prisão perpétua. Em Portugal, a lei penal prevê uma pena de prisão
até 25 anos e no Brasil, para nos referirmos aos nossos anfitriões, é o homicídio
qualificado punido com pena de prisão até trinta anos (§ 2° do art. 121 do CPB
- Código Penal Brasileiro). Perante esta variedade de consequências não é, pois,
possível nem desejável que se determine - vá-se lá saber com que critério é que
se poderia chegar a uma tal determinação - a moldura penal abstracta justa para
a punição do crime de homicídio qualificado. A força da identidade de cada uma
daquelas ordens jurídicas exige que nos afastemos do “esperanto universal” e
aceitemos a diversidade babélica.
Por outro lado e continuando a perscrutar modelos de narração das con-
sequências punitivas, é bom não esquecer que em muitas ordens jurídicas a pu­
nição do concurso de infracções se faz por puro modelo aditivo enquanto em
ordens jurídico-penais, muito embora da mesma família, se opera o chamado
cúmulo jurídico. E outros exemplos se poderiam facilmente trazer a debate. Sir­
va-nos só de ilustração o que se passa com as normas sobre a imprescritibilidade
de algumas infracções. Uma vez mais, ordenamentos jurídicos pertencentes a
uma mesma família apresentam soluções diferentes.
Mais um a vez se m ostra e bem, como as comunidades, com a sua auto­
nom ia e a sua identidade próprias, assumem modelos tão diferentes em um as­
pecto tão sensível da dogmática penal e da política criminal. Também por aqui
se deve continuar, em nosso juízo, a defender a “babel”, porquanto esta diver­
sidade é, entre outras coisas, a manifestação e a expressão de uma individuali­
dade e de um a identidade que se não devem sacrificar ao rasoiro devastador do
“esperanto universal”32. Defender o que se acaba de defender não é estultícia
do desencanto agónico do “eu” individual seco e mirrado que não olha para
o lado, que não olha para o “outro”, nem é a transferência ilegítima de uma
eventual compreensão do “ser” individual para o “ser” colectivo, mas antes a
afirmação de um a visão das coisas que assenta claramente no pressuposto de
que a liberdade, o ser individual que se autodeterm ina sempre na conjunção
com o “outro” que é também ele diferente, é a fonte e a foz dos rios que levam
à construção de sociedades mais justas e fraternas.

32 Aqui, como se sabe, “esperanto universal” vai empregue em um sentido metafórico de rasoiro de uma
só linguagem. É claro que uma só linguagem pode ter também um carácter salvífico e redentor é isso mes­
mo que se pode retirar do Pentecostes (AT 2, 1-13). A ideia de um retorno a uma só língua, a uma unidade
essencial é óbvio que é um ponto nevrálgico de todas as religiões monoteístas. Por outro lado, não deixa
de ser curioso que “Babel” nos aparece no Antigo Testamento e o “Pentecostes” precisamente no “Novo
Testamento” . Também aqui uma ruptura.

20
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

3. A luta por “B abel”

Como se sabe, no pensamento judaico-cristão, Babel ilustra ou quer ilus­


trar um momento de queda e de punição de um a certa soberba33. Porém, a essa
leitura pode bem contrapor-se, dentro de um horizonte de tonalidade laica, que
a pluralidade de línguas que a aí metaforicamente despontaram mais não quer
significar do que a afirmação da identidade de cada povo e por transferência ana­
lógica da identidade e da autonomia de cada um de nós, na pobreza consabida
de cada um e de que todos somos irremediavelmente seres finitos. E que essa
finitude se manifesta quando “eu” já não comunico, já não “falo”. Nesta pers­
pectiva, “Babel” não é a desordem, a incompreensão, a incomunicabilidade mas
antes a ordem partilhada, a compreensão limitada e a comunicabilidade possível.
Aprofundemos, no entanto, um pouco mais esta específica e particular questão.
Todos sabemos que se alguma coisa caracteriza este nosso tempo, este
tempo de tardo-modernidade, e as diferentes narrativas que o explicam e simul­
taneamente o formam é o facto simples de ele se m ostrar plural, multimodal
e, em certo sentido, mais do que variado até variegado a que se junta a quase
inexistência de fronteiras nos mais diferentes territórios. Tudo se parece juntar
a tudo e a tudo confundir-se. Ora, este traço de indefinição e de diversidade,
este ambiente de situação aquosa ou em alguns casos até gasosa, espalha-se por
todos os domínios do saber e dos comportamentos e de form a muito particu­
lar dentro daquilo que se chama pensamento “débil” . A fragilidade e a erosão
com que instituições sociais - pense-se, por exemplo, na ideia de casamento
ligada, multisecularmente, a união contratual de pessoas de sexo diferente,
pense-se, também, na fibrilhação conceitual que a ideia de vida humana e de
morte humana provocam nas fronteiras da moral e da religião - são vistas e
são sacudidas mostram que a hierarquia e a ordenação das coisas se não faz
mais por estruturas verticais mas antes e definitivamente no plano horizontal e
sempre apelando a uma inclinação de sobreposição de planos e de categorias.
Em termos simples mas não menos rigorosos: por todo o lado parece existir
e manifestar-se a “Babel”. Por outras palavras ainda: em todos os cantos da
nossa existência o local convoca o global, o ontem confunde-se com o amanhã
que é já presente, o universal parece só ter sentido se passear de mão dada com
o particular. Ora, se as coisas são desde jeito, que sentido tem falar-se em uma
luta por “Babel” no campo do direito e muito particularmente no território nar­
rativo do direito penal? Efectivamente, se tudo em nosso redor é “Babel”, logo
também no campo do direito penal será “Babel e, por isso mesmo, não haverá
razão para preocupações. Porém, será mesmo assim? De sorte que devamos
33 Para uma compreensão densa, diacrónica e profunda do que se significa Babel no seio da nossa civilização e
não só (também para o mundo islâmico) veja-se o trabalho de Zumthor, Paul, Babel ou o inacabamento (Uma
reflexão sobre o mito de Babel), Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998.

21
José de Faria Costa.

tornar a perguntar: tem sentido lutar por “Babel” ou isso não será antes uma
m era pergunta retórica? A resposta, em nosso juízo, outra não pode ser: tem
sentido e muito sentido. Tentemos discretear, pois, sobre a intencionalidade
de um tal sentido.
A aparente desordem que reina, sobretudo quando se olha e valora tão-só
o superficial da realidade, aquilo a que se poderia chamar a “espuma dos dias”34,
na tardo-modernidade não poderia subsistir por muito tempo se não tivesse qual­
quer coisa, por baixo, a agregá-la. E essa qualquer coisa existe. É um “quid
specificum” com que ninguém se preocupa porque perversamente o pensamento,
mesmo o mais fecundo, se assume como “débil”. E qual é ele? É um pensamento
que se quer assumir como único e ditar regras únicas não para aquilo que é super­
ficial e acessório mas antes para tudo aquilo que é definitivo e essencial. E por­
que o direito e muito particularmente o direito penal é um desses territórios que,
para quem estiver mais atento, se mostra como essencial, então, o pensamento
único com o sentido de “esperanto universal” quer se introduzir na compreensão
e realização do direito penal. Através de que forma? Através, não da ideia nobre
e absolutamente necessária à realização de qualquer sociedade como é a ideia de
segurança, mas antes por meio da bastardia que o securitarismo representa rela­
tivamente ao, já o vimos, valor da segurança liberalmente entendido.
O Estado tradicional, o Estado-nação, entrou em crise profunda. E com
a crise desse modelo de Estado entrou também em crise uma certa ideia liberal
de direito penal. Por todos os cantos se ouvem vozes a reclamar mais direito
penal, sobretudo através de neocriminalizações - tantas vezes com um valor
meramente simbólico, porquanto é difícil, quando não impossível, aí descobrir
a protecção de qualquer bem jurídico - , e ainda por meio da exasperação das
penas a que não falta também a ideia de uma clara diminuição das garantias
processuais. E quer isso tudo em cada um dos Estados. E porquê? Porque há
um inimigo comum. E qual é ele? O terrorismo. Um inimigo sem rosto que está
em todo o sítio e em lugar nenhum. E se esta é retórica política que se propala
não se pense que não há a dimensão estritamente jurídico-penal a tentar legi­
tim ar “cientificamente” um a tal m aneira de ver e interpretar estes tempos de
desconfiança e de medo de todos contra todos. O chamado direito “penal do
inim igo” é a tentativa de resposta um a tal exigência de securitarismo. Mas não
só, adiantemos desde já. Com efeito, olhando para o que se passa, em termos

34 Peguemos em um exemplo muito comezinho e sintomático. Olhemos para o fenómeno da moda. A moda,
dir-se-á, neste nosso tempo é plural, complexa, diversificada. Em termos simples: a moda é “Babel”. Mas
será mesmo assim? Cremos que não. A moda quer criar a ilusão de “Babel” mas, ao fim e ao cabo, tudo
depois se reduz ao “esperanto universal” que meia dúzia, uma clic, vem a definir como moda. E todos vão
comportar-se em função daqueles modelos, ter os mesmos hábitos, vestir-se de igual maneira em Nova York
ou em Moscovo, comer o mesmo em Porto Alegre ou em Milão. E vão fazê-lo com a convicção de que
estão a manifestar a sua liberdade de escolha e de opção. Um invisível “esperanto universal” liga a moda.
Ninguém o vê. Ninguém o quer ver, mas está lá.

22
O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado.

jurídico-penais, à nossa volta podemos com facilidade encontrar três grandes


pilares de “esperanto universal”35. Em primeiro lugar, o Tribunal Penal Inter­
nacional, depois, o mandado de detenção europeu e finalmente - se bem que
em um a outra dimensão completamente diferente mas a que a retórica argu-
m entativa dá precisamente campo para que tudo se recom ponha - a teorização
do chamado “direito penal do inim igo” . Analisemos mais profundamente o que
se acaba de reflectir por último para que não haja dúvidas sobre o que se quer
valorar e ainda sobre a própria valoração.
É evidente que a teorização do chamado direito penal do inimigo é a for­
ma mais radical e extrema de se perceber e tentar combater o terrorismo a que
se associa, em linha recta, a insegurança. E, é evidente também, que o Tribunal
Penal Internacional e o mandado de detenção europeu estão longe, muito longe,
de serem, uma primeira linha, da defesa de ideias que se compaginem com um
direito penal do inimigo. Esclarecido o que devia ser esclarecido urge, do mesmo
passo, tornar claro que, precisamente, o TPI e o mandado de detenção europeu se
mostram como segundas linhas das narrativas que defendem um certo “esperanto
universal” para atacar os crimes contra a humanidade, o terrorismo internacional e
a criminalidade altamente organizada. E em que é que se baseia a retórica da defesa
destes institutos? Se os crimes são contra a humanidade, se o terrorismo é global e
se também a criminalidade altamente organizada também se mostra global, então,
é manifesto, diz-se, que a resposta outra não pode ser senão a global e única, estan­
do, pois, justificado o “esperanto universal” das respostas jurídico-penais a tal ou
tais problemas. E aquela simetria impressiona a uma primeira vista. Sem dúvida.
Não tem os a menor dúvida em aceitar que muita coisa mudou no m un­
do e também na criminalidade. Da mesm a form a que quando se passou do
“ancien régime” para a Ilustração m uita coisa estava a m udar no mundo e no
direito penal. Não discutimos que alguma resposta unitária não possa deixar
de ser levada a cabo perante formas profundamente insidiosas e devastadoras
de terrorismo. Só que o problem a está no efeito de arrastamento ou de alastra­
mento. O problem a está na contaminação que medidas penais correctas para
situações de excepção possam implicar uma lassidão relativamente a outros
campos normativos. Um exemplo. Podemos aceitar que se faça, coercivamen-
te, o registo do DNA, relativamente a criminosos altamente perigosos, depois
do trânsito em julgado, mas já não aceitamos nem achamos que seja propor­
cionado que se o faça para os cidadãos comuns. Mais. E o que criticamos,
neste contexto, é a perversidade da argumentação securitária e de matriz de
“esperanto universal” que vem dizer que um tal rastreio universal a todos os
cidadãos tem como finalidade prim eira a possibilidade de se reconhecerem e
35 É óbvio que tudo isto tem um carácter meramente indicativo. Escolhemos estes três exemplos porque são
aqueles que, de certa forma, mais visibilidade trazem ao discurso e à narrativa ou narrativas ligadas ao direito
penal, compreendido no seu sentido mais lato.

23
José de Faria Costa.

identificarem os corpos em caso de catástrofes. É óbvio que não é isso que se


quer. No “sottofondo” está uma vocação securitária. A narrativa da benemerên-
cia a esconder um pensamento único e securitário.
Quando se joga com a segurança e de forma muito particular com derivas
securitárias o que temos de perguntar prende-se com as restrições à liberdade que
a exaltação daquele valor determina. Que a segurança é um valor jurídico todos o
afirmam e nós reafirmamos. Que a segurança faz parte de uma certa ideia de Direi­
to é, para nós, pedra de toque de toda a noção de comunidade jurídica. Que a se­
gurança representa simbolicamente um pilar para toda a narrativa jurídico-política
é, também para nós, um dado. Tudo isto temos por verdadeiro e indiscutível, o que
já nos parece falaz, frágil e inconsequente é elevar as coisas quase ao patamar do
absoluto, esmagando, de todo em todo, o valor da liberdade.
Liberdade que se deve refractar não na simples liberdade individual mas
antes e definitivamente também na liberdade de cada comunidade política poder
escolher, fora do “esperanto universal”, aquilo que considera mais adequado,
mais jurídico-penalmente adequando, a defender os seus legítimos interesses.
A narrativa, a que se alia uma semântica e uma gramática próprias, do terror e
do seu legítimo combate não pode servir de espelho para se fazerem constrições
insuportáveis à liberdade. Daí que a luta por “Babel”, enquanto direito que cada
comunidade deve ter a poder construir a sua própria ordem jurídico-penal, é um
combate que vale a pena ser vivido e que tem sentido.
À narrativa do “esperanto u n ive rsa l’ de cariz global devemos con­
trapor a força das várias narrativas que “Babel” possibilita. O belo, o justo e
o bom são “universais” . Mas só o são porque, sim ultaneam ente, incarnam na
força vivificante do concreto que é sempre particular, diferente, único. Neste
sentido todo o “universal” é Babel.

24
O Ne rv o Ex p o s to .
Po r um a Cr ític a da Id e ia de Ra z ã o Desd e a Ra c io n a lid a d e Étic a 1

Ricardo Timm de Souza


PUCRS, Brasil
Para o colega Salo de Carvalho.

1. Introdução

Toda filosofia, e isto bem sabem os filósofos de todas as eras, constitui-


se essencialmente em crítica da razão, ou seja, em cuidadoso processamento
crítico da(s) racionalidade(s) vigentes em uma determinada época, desde a per­
cepção qualificada e situada em um determinado locus cultural específico que,
não obstante, resgata arqueológica e genealogicamente o passado e abre efetivas
possibilidades compreensivas-propositivas ao futuro. E, em um tempo de abso­
luta urgência como o nosso, um tempo em crise ou em uma crise feita tempo,
absolutamente urgente é a retomada incisiva do cerne crítico da própria ideia de
crítica. Retomada que não pode ser - e assumimos a dimensão estritamente filo­
sófica da interpretação do que nos “dá o que pensar”, ou seja, o real correlato de
nossa mobilização intelectual - senão crítica da(s) racionalidade(s) efetivamente
vigentes. Os tempos que correm exigem incisivamente uma crítica da Razão,
ou seja, uma crítica de suas razões - dos tempos - e dos argumentos que as
legitimam. Essa é, por excelência, a tarefa filosófica do presente, sem a qual a

1 Para que a quantidade de citações seja a mínima possível, e dado o caráter eminentemente sintético desse escri­
to, refira-se que as bases teórico-argumentativas do presente texto, às quais não faremos referência direta alguma,
se encontram principalmente em nossos livros Totalidade & Desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e
suas alternativas; Existência em Decisão - uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig; Sujeito, Ética
e História - Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental; Sentido e Alteridade —Dez ensaios
sobre o pensamento de Emmanuel Levinas; Metamorfose e extinção —sobre Kafka e a patologia do tempo; Ainda
além do medo —filosofia e antropologia do preconceito; Sobre a construção do sentido —o pensar e o agir entre
a vida e a filosofia; Responsabilidade Social — uma introdução à Ética Política para o Brasil do século XXI;
Ética como fundamento —uma introdução à ética contemporânea; As fontes do humanismo latino - A condição
humana no pensamento filosófico contemporâneo; Razões plurais —itinerários da racionalidade ética no século
XX; Sentidos do Infinito - A categoria de “Infinito ” nas origens da racionalidade ocidental, dos pré-socráticos
a Hegel; Em torno à Diferença —aventuras da Alteridade na complexidade da cultura contemporânea; Justiça
em seus termos — dignidade humana, dignidade do mundo; Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal;
bem como em nossos capítulos e artigos “Rosenzweig entre a História e o Tempo - sentido crítico de Hegel e o
Estado; “A vida opaca - meditações sobre a singularidade fracassada”; “Por uma estética antropológica desde a
ética da alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória ao ‘estado de exceção’ da excepcionalidade
do concreto”; “Fenomenologia e metafenomenologia: substituição e sentido - sobre o tema da ‘substituição’ no
pensamento ético de Levinas”; “O corpo do tempo - um exercício fenomenológico”; “O pensamento de Levinas e
a filosofia política: um estudo histórico-filosófico”, além de vários artigos e textos isolados inéditos. Para referên­
cias completas, cf. Referências Bibliográficas, ao fim do texto. Registre-se que este texto foi igualmente publicado
no livro digital GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e Sistemas Jurídico-penais Contemporâneos
II, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

25
Ricardo Timm de Souza.

tautologia ocupa indecorosamente todos os escaninhos do real - situação à qual


nenhum intelectual digno da tarefa que toma para si pode se curvar.
Há, pois, que proceder a uma renovada crítica da razão. Inúmeras se­
rão porventura as possibilidades que se abrem; a nossa possibilidade, aqui evi­
dentemente esboçada apenas in nuce e desde nossa posição singular e estilo de
leitura do que se dá ao levantamento daquilo que se tem oferecido ao nosso
discernimento ao longo dos últimos vinte anos, sintetiza-se da seguinte maneira:
penetramos inicialmente nas razões da razão vulgar; entendemos a necessidade
e artimanhas de um a razão ardilosa que a sustente e, por fim provisório, vimos
propor um a crítica da amálgama composta por estes dois modelos a partir da ra­
cionalidade ética - temporal - que se dirige ao núcleo da própria ideia de razão,
ou seja, a partir da racionalidade calibrada pelo Outro da razão.

2. P o r um a com preensão da razão vulgar

Nessa prisão ao ar livre em que o mundo está se


transformando, já nem importa mais o que depende do quê,
pois tudo se tornou uno. Todos os fenômenos enrijecem-se
em insígnias da dominação absoluta do que existe. Não há
mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas
somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua
duplicação e a mentira provocadora, que não pretende ser
acreditada, mas que pede o silêncio.

T. ADORNO2

A razão vulgar é, literalmente, a razão indiferente de cada dia, na qual to­


das as violências se combinam com a anestesia advinda da massa obtusa de aconte­
cimentos que se precipitam, dando à homogeneização violenta do real a aparência
de variedade infinita dos significantes, aparência que não é senão jogo infindo de
espelhos que se refletem mutuamente, mas que não são senão imagens autore-
plicantes - pois a alternativa verdadeira é sobremaneira rara, e não se encontra
incólume no espaço inóspito da totalização, da Totalidade fática. É a expressão
medíocre de um viver por inércia, um semiviver kafkiano, o pretenso “habitar”
um mundo sem realmente percebê-lo. Pela razão vulgar, transforma-se insignifi­
câncias em relevância, e se retira da relevância seu significado, sua singularidade,
inofensibilizando-a. Suporta-se o in-suportável. O mundo segue por esta via prin­
cipal; e, mesmo no mundo intelectual da análise, alternativas são, em princípio,
desconhecidas ou descartadas, as cores superabundantes, os sons onipresentes, que
ofuscam olhos e ouvidos, nada fazem senão reafirmar a vulgaridade homogênea do

2 Prismas- crítica cultural e sociedade, p. 14.

26
O nervo exposto.

indiferenciado, ou seja, do indiferente. As máquinas, em seu ressoar automatiza­


do, bem azeitado, mimetizam cérebros igualmente automatizados percorridos por
sangue suficiente apenas para mantê-los pulsando num arremedo de vida, cérebros
que não conseguem perceber senão a esfera parda, acrítica, da qual constituem o
centro geométrico - pois a razão vulgar aposta na geometria para se manter no
epicentro do status quo e do pretenso futuro fechado - espelhado - que é capaz de
conceber. As acelerações e desacelerações, as vertigens das promessas, seguem-se
umas às outras como um comboio infinito de peças confundíveis e intercambiáveis
entre si, nos trilhos estritos de um círculo fechado. É a razão idiota em sentido
etimológico; incapaz ao menos de criar um mundo paralelo para nele se refugiar
de seus pavores, preenche o mundo no qual se dá pela obliteração de tudo o que
poderia conduzir à hesitação, à diferença, à multiplicidade das origens e dos desti­
nos, fechando-se em si. É a razão pequeno-burguesa por excelência; tem pudores
de pensar além de seu lugar, pois aprendeu muito cedo que pensar é perigoso.
Mas é cheia de razões, embora seu objetivo único seja transformar qualidades em
quantidades, pois estas últimas são previsíveis e calculáveis. Sua indigência quase
a desculpa de sua cegueira; sua mediocridade é autocompreendida como sua maior
virtude. Cuida de não se expor ao tempo, pois tem, ainda que não intelectualmente,
a posse da caricatura da temporalidade; o mundo é uma grande oportunidade a ser
aproveitada, mas nada de excessivo deve exorbitar o proveito - prefere delegar
a outras razões o pensamento, enquanto pensa apenas a si mesma, sem pensar.
Ouve qualquer coisa como se fosse um argumento terminal, desde que não afete
seus instintos descerebrados; qualquer coluna de jornal ou opinião de bar tem todo
valor do mundo, se o mundo nada vale. Incapaz de sensibilidade e diferenciação,
embrutece o sensível e diferenciado com a força bruta; correrá a apoiar o que não
entende, ainda que soe estranho assim proceder, pois o que não entende é forte e
catalisa sua mediocridade: “a heroificação do indivíduo mediano faz parte do culto
do barato”3. Razão servil, a razão vulgar é o campo de concentração do pensamen­
to, onde são agrupados os estímulos incapazes de sobreviver à dinâmica feroz da
dialética dos interesses; seu único argumento é não ter argumento nenhum e disso
se orgulhar. Será racista, se a maioria o for; apoiará o populismo punitivo, pois
penderá sempre à obviedade; correrá a linchar alguém, se essa for a vontade da
massa; clamará por pena de morte, pois em nenhuma hipótese pretende compreen­
der o que está para além do mais raso dos discursos que se adereça com o lustro de
argumentos capciosos que não resistiriam a um grão de crítica, se ela ainda existis­
se no campo das possibilidades da vulgaridade. Pois a razão vulgar é a expressão
do humano feito massa, de-generado, qual lava indiferenciada, que se amolda sem
excessiva dificuldade ao formato daquilo que a possa conter e suportar e que logo
se empedra em sua própria intransparência.

3 ADORNO, T.; HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento, p. 146.

27
Ricardo Timm de Souza.

A razão vulgar é a razão hoje hegemônica; a legião dos indiferentes


constitui a espessura da indiferença que a tudo amortece, exceto a proliferação
de si mesma, ao estilo de certos fungos, que sufocam o que não são eles e se
afogam finalmente em sua tumidez indiferenciada, sem início nem fim, em um
espasmo abortado de vida. Na direção deste microuniverso pardacento são car­
readas paixões igualmente abortadas, todo tipo de ressentimento e covardia, todo
tipo de medo e preconceito. A combinação indigesta de todos estes elementos - a
racionalidade obtusa que é expressão da razão opaca - constitui o imaginário
social geral no qual todos estamos, de algum modo, mergulhados, e cujos reais
componentes cumpre elucidar.
Há, pois, em nome do discernimento mais elementar, de estabelecer uma
crítica filosófica da razão vulgar. Todavia, tal não é possível por si só; necessário
se faz examinar aquilo que se evidencia patente já a um primeiro exame: não
existe razão vulgar sem uma razão mais sofisticada, porém menos facilmente
perceptível, que a sustente, pelo mero fato de que a coesão extremamente precá­
ria da razão vulgar, sua volatilidade que flutua nos níveis mais rasos de qualquer
coisa que se assemelhe à mera ideia de consciência, não seria possível - pois se
dispersaria em sua fragmentação privada - sem algum tipo de alicerce mais sóli­
do, sem alguma estrutura de legitimação do obtuso que somente pode se prestar
a este serviço se, por sua vez, nada tiver de obtusa; a este contraponto especu­
lativo, esta outra razão não obtusa, inteligente, sutil, perspicaz na persecução de
seus interesses, denominamos no presente contexto - e sem prejuízo à consa­
grada expressão “razão instrumental”, porém ampliando-a - razão ardilosa. Há,
pois, que compreendê-la.

3. P o r um a com preensão da razão ardilosa

Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo


em uma contemplação autossuficiente, não será
capaz de enfrentar a reificação absoluta, que
pressupõe o progresso do espírito como um
de seus elementos, e que hoje se prepara
para absorvê-lo inteiramente.

T. ADORNO4

A razão ardilosa cerca-se a priori de cuidados e credibilidades; procura,


antes de mais nada, não chocar, pois qualquer choque é perigoso. Imbuída da difí­
cil tarefa de sustentar a violência e vulgaridade do mundo, essa massa volátil e es-
pasmódica, ao estilo de um exoesqueleto altamente cerebral, é e tem de se mostrar

4 Prismas- crítica cultural e sociedade, p. 26.

28
O nervo exposto.

inteligente; o meio-tom intelectual é seu registro, pois não pode mostrar a que veio,
mas apenas o que transparece em sua retórica de intenções. Sua violência é adoci­
cada; justifica o injustificável, legitima o ilegitimável a partir da seiva argumenta-
tiva que destila desde a profundidade de seus interesses estratégicos; ao organizar
os meios disponíveis com relação à meta de atingir determinados fins, exerce de
modo extremamente organizado a violência instrumental, pois enuncia o álibi per­
feito para dispensar a moral em nome da técnica5. A razão ardilosa, contraponto
exato da razão vulgar e, simultaneamente, sua outra face, sabe exatamente em que
consiste e a que veio; mas sua subsistência depende de sua simultânea habilidade
em escamotear tanto suas razões reais quanto suas reais finalidades, ou seja, em
escamotear a realidade, aquilo que dá o que pensar: a quantificação violenta do
mundo e a anulação do tempo, ou seja, a redução do outro ao mesmo. Dá conta do
que lhe perguntam, mas apenas disso; oferece conforto a quem navega nos mares
tempestuosos da existência; demarca desde sempre seu âmbito de validade, desti­
lando algo que se costuma interpretar como modéstia e prudência e que a torna tão
atrativa para espíritos inteligentemente medianos; estranha as coisas nuas, pois re-
projeta no mundo, de modo altamente elaborado e formalizado, o que dele recebe:
as tensões e forças brutas do existir e do pensar sem limites. Seduz pela razoabili-
dade e equilíbrio de seus sábios enunciados - e essa é sua primeira e maior habi­
lidade, a da hipocrisia - em um mundo no qual a própria ideia de razoabilidade e
equilíbrio é indecente. Dá a aparência de ser destilada por um cérebro sem corpo,
como se o pensar viesse antes do existir, ou seja, como se alguém pudesse pensar
ou enunciar algo sem cérebro - utiliza-se, porém, de tais argúcias e manipulação de
fragilidades, que qualquer choque, absurdo ou contradição são tolerados, porque
previamente, sutilmente, inteligentemente, descarnados.
A razão ardilosa apresenta todas as razões possíveis para que a vulgari­
dade da razão vulgar permaneça opacamente em seu preciso lugar; seu arsenal
de ferramentas destinadas a esterilizar o novo é enorme, pois disso depende seu
sucesso. Jogo de poder, finge-se de oferta de conciliação; estratégia de violência,
mimetiza-se de sutileza intelectual; recurso de cooptação, estende seus tentá­
culos a cada escaninho do ainda-não, para que nada de novo sobreviva. Finge
mortificar-se com os horrores do mundo, quando significa a possibilidade mais
profunda de morte da reatividade criativa a esses horrores.

5 “O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios ins­
trumentais e racionais e, assim, dissociados da avaliação moral dos fins... todas as burocracias são boas nesse
tipo de operação dissociativa. Pode-se mesmo dizer que dele provém a essência da estrutura e do processo bu­
rocráticos e, com ela, o segredo desse tremendo crescimento potencial mobilizador e coordenador da raciona­
lidade e eficiência de ação, alcançados pela civilização moderna graças ao desenvolvimento da administração
burocrática. A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo
burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho (enquanto adicional à - e em
suas consequências distinta da - linear graduação do poder e subordinação); e o segundo é a substituição da
responsabilidade moral pela técnica”. BAUMAN, Z., Modernidade e holocausto, p. 122.

29
Ricardo Timm de Souza.

Este é o modelo de razão hegemônico nas altas esferas do pensamento


bem-comportado. Sua violência e efetividade esterilizante é inversamente pro­
porcional à sua apreensibilidade por um espírito imaturo ou pouco curtido pelo
real. Segue seu compasso de morte, que toma, a cada momento, a aparência -
embora modesta - de vida do espírito.
Interregno - quando a razão vulgar encontra a razão ardilosa: o conluio
da indecência num exemplo de Kafka

O senhor se comporta pior que uma criança. O que quer,


afinal? Quer acabar logo com seu longo e maldito proces­
so discutindo conosco, guardas, sobre identidade e ordem
de detenção? Somos funcionários subalternos que mal co­
nhecem um documento de identidade e que não têm outra
coisa a ver com seu caso a não ser vigiá-lo dez horas por
dia, sendo pagos para isso. É tudo o que somos, mas a
despeito disso somos capazes de perceber que as altas au­
toridades a cujo serviço estamos, antes de determinarem
uma detenção como esta, se informam com muita precisão
sobre os motivos dela e sobre a pessoa do detido. Aqui
não há erro. Nossas autoridades, até onde as conheço, e só
conheço seus níveis mais baixos, não buscam a culpa na
população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela
culpa e precisam nos enviar - a nós, guardas. Esta é a lei.
Onde haveria erros?

Franz KAFKA. O processo. p. 12.

4. P o r um a crítica da razão im oral a p a rtir da crítica da ideia de razão: da


razão instrum en tal à racionalidade ética

O que nós recusamos não é sem valor nem sem


importância. É por causa disso que a recusa é necessária.
Há uma razão que nós não aceitamos mais, há uma
aparência de sabedoria que nos causa horror, há uma oferta
de acordo e de conciliação que nós não entendemos. Uma
ruptura se produziu. Fomos lançados a esta franqueza que
não mais tolera a cumplicidade.

Maurice BLANCHOT6

6 Em ‘Le Refus’(“Le 14 juillet” n. 2, Paris, outubro de 1958, cit. por Herbert MARCUSE. A ideologia da
sociedade industrial. p. 234).

30
O nervo exposto.

Proclamando a identidade da dominação e da razão, as


doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que
as doutrinas dos lacaios morais da burguesia.

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. 7

Com preender que a tentativa desesperada de transform ar a tem pora-


lidade num a abstração é a m aior de todas as quim eras - como diria Rosen-
zweig, “ninguém nunca assinou um tratado de paz antes de travada a guerra”
- é a possibilidade prim eira de evasão do alcance paralisante da poderosa
M edusa imoral em que se constitui a com binação m aciça entre razão vulgar
e razão ardilosa que consum a o “estado de exceção em que vivem os” . É por
isso que o tem po - o fogo que consome, rápida ou lentam ente, o estatuído
do m undo - é o ponto de fuga de qualquer “aparência de sabedoria que nos
causa horror, [...] oferta de acordo e de conciliação que nós não entendem os” .
A tem poralidade do pensam ento opõe-se ao m undo paralelo no qual o tempo
não tem lugar; toda crítica da razão, hoje, necessita iniciar por um a crítica
da própria ideia de razão, a partir da racionalidade precária que não dá a si
m esm a um nom e, mas que perdura naquilo que sustenta a vida: a esperança
para além do presente, a superação daquilo pelo que toda a vida, em todas
as suas formas - ainda as irracionais - anseia inelutavelm ente: a superação
da injustiça. O que somos, na últim a das análises e na últim a das vontades,
senão a ansiedade por justiça, a loucura p ela ju stiç a , como diria Derrida,
que transform a nossa existência em algo mais que um a fórmula, e supera,
por sua pertinácia e tensa perduração, qualquer oferta de conciliação que se
detenha antes que este m omento seja atingido, ou, o que dá no mesmo, que
não suporta nenhum tipo de insinuação de que este m omento j á houvesse
sido atingido, ou seja, qualquer oferta da M edusa racional, filha paralisante
do incestuoso coito entre a razão vulgar e a razão ardilosa?

“Só há uma expressão para a verdade: o pensamento que


nega a injustiça.”
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M.8

Assim, a crítica da ideia de razão nada tem de irracional; é simples­


mente o fruto eticamente racional do choque que a Alteridade significa. O de-
sentranhamento que o estranhamento do mundo significa ao pensamento leva
à estranha combinação de categorias que permite a louca ousadia que a “louca
obsessão” pela justiça - que a indomesticável repugnância pela injustiça - exige
7 Dialética do Esclarecimento, p.112.
8 Dialética do Esclarecimento, p. 204.

31
Ricardo Timm de Souza.

e propõe: a combinação inusitada de categorias morais, advindas da sensibi­


lidade ética, com categorias intelectuais, advindas da penetração estritamente
racional na carapaça do óbvio e do desnudamento dos verdadeiros alicerces
que sustentam o moralmente insustentável. Essa é, então, a expressão para a
verdade além da m era ideia de verdade: “o pensamento que nega a injustiça”, o
que significa a árdua passagem da razão vulgar-ardilosa - da razão instrumen­
tal - à racionalidade ética.

32
In tim id a d e e P r i v a c id a d e D i a n t e d o s N o v o s M e io s
de Pe rse c u ç ã o Pe n a l1

Julio M aier
Tribunal Superior de Justiça da Argentina

Creio que o melhor método para esclarecer incógnitas intelectuais é, à


maneira socrática, o das perguntas, preparadas certamente segundo um fio con­
dutor, e respostas, que nos vão aproximando da solução. De acordo com esse
método, a primeira pergunta pode ser formulada da seguinte maneira:

1. A intimidade ou a privacidade foram ou são bens ou interesses jurídicos


reconhecidos pelo Direito positivo?

A prim eira pergunta deve ter um a resposta afirmativa. Certamente,


desde que o Estado de Direito se impôs - aquele Estado-nação reformado re­
sultante da reação ilustrada - as leis fundamentais e suas regulamentações fi­
xaram âmbitos que os funcionários estatais e os particulares devem respeitar
e não podem invadi-lo sem o consentimento do titular. Este âmbito privado
estava determinado, no século XIX, pelo domicílio de cada pessoa e pelos
papéis privados (documentos, correspondência) sob sua guarda, pois não se
conhecia outra forma de invadir a intimidade ou a privacidade além daquela
consistente em ingressar, sem autorização, no domicílio ou apreender os pa­
péis de outro. No século XX, por outro lado, popularizou-se a comunicação
telefônica e, deste modo, teve-se que dispor de um a considerável ampliação do
âmbito protegido, âmbito por certo imaterial, consistente nas comunicações ou
conversações telefônicas. Já no fim do século XX e no século XXI, conhecem-
se outras maneiras de ocupar espaços dignos de proteção e, assim, pretende-se
estender o âmbito de privacidade ou de intimidade, por exemplo, ao telégrafo,
ao correio eletrônico e a outras formas de arquivar documentos ou representa­
ções intelectuais de ideias ou comunicações. Desta forma, pode-se dizer, sem
receio de errar, que a proteção do íntimo ou do privado sempre existiu, desde a
existência do Estado liberal, pois se considera imanente a ele, mas também que
a definição de seu âmbito ou do espaço no qual esse interesse opera depende
das formas de afetação possíveis em cada tempo e lugar. Pode-se observar,
portanto, que tinha razão Soler quando criticava a Declaração Universal de
Direitos Humanos, lançando mão do princípio nullum crimem, por não haver
ajustado seu texto às novas formas de ingerência.

1 Título original: "Intimidad y Privacidad delante de los nuevos medios de Persecución P enal" Tradução de
Cleopas Isaías Santos e revisão de Stephan Doering Darcie. Revisão final do português de Raquel Lima Scalcon.

33
Julio Maier.

2. São esses bens jurídicos invulneráveis p a ra o E stado de D ireito?

A segunda pergunta, por outro lado, merece uma resposta negativa, em


princípio. Como regra, esses âmbitos não eram invulneráveis. A lei, inclusive a
fundamental (as constituições e, agora, as declarações ou convenções de direitos
humanos), ao mesmo tempo em que consagrava a garantia individual e determina­
va sua proteção - inclusive penal - , indicava as ocasiões em que, por exceção, o
âmbito protegido podia ser objeto de ingerências, sob certas condições. Assim, nas
distintas épocas, previu-se quando e sob que condições se podia proceder à invasão
de domicílio e à apreensão de papéis privados, ou quando e sob que condições se
podia intervir nas comunicações telegráficas, radiais ou telefônicas, quando e sob
que condições se pode ingressar agora no correio ou arquivo eletrônico de outro,
por óbvio, sem autorização expressa ou tácita de seu titular. A ideia que subjaz a
esta realidade jurídica se vincula com o princípio de que os direitos não são absolu­
tos, mas limitados pelas leis que regulamentam seu exercício, leis que, no entanto,
sob o pretexto de regulamentar, não podem alterar sua essência básica.

3. Q uais são as condições do ato de ingerência?

Todo ato de ingerência é um ato coativo, porque reside na substituição


da vontade do portador do direito pela força pública. Como todo ato coativo,
necessita de um a autorização legal - nulla coactio sine lege praevia - que, em
abstrato, fixe as condições sob as quais o Estado - isto é, o funcionário com ­
petente que o representa - pode operar essa substituição ou, o que é o mesmo,
pode usar a força pública. Conforme os contextos de aplicação - por exemplo:
encarceramento de incapazes com perigo para si mesmos ou terceiros no direi­
to privado, obtenção de indícios com fins de comparação no direito processual
probatório, medidas cautelares judiciais, invasão de domicílio, etc. - as condi­
ções materiais variam. No direito penal, geralmente, exige-se a verificação da
absoluta necessidade da medida para cumprir os fins do procedimento judicial
no qual se levará a cabo a ingerência. Assim, para condenar à pena privativa
de liberdade, exige-se a certeza acerca da imputação; para privar previamente
a liberdade, exige-se não apenas a verificação de um a grande probabilidade de
acerto na imputação penal, mas - em regra - certa gravidade da infração e a
constatação da existência de um perigo de que algum dos fins do procedimento
penal se frustre (por exemplo: pela fuga do imputado ou pela obstrução da ave­
riguação da verdade); para invadir um domicílio ou interceptar uma conversa
telefônica, precisa-se acumular elementos que permitam afirmar certo grau de
probabilidade acerca da existência de um fato punível e da possibilidade de
incorporar prova sobre ele ou descobrir ou apreender o autor ou partícipe.

34
Intimidade e privacidade diante dos novos meios.

É mais universal, por outro lado, a condição formal. Que eu saiba, por
razões constitucionais, a ingerência depende um ato de autorização concreto, para
cuja emissão quase sempre é competente um tribunal, um juiz, quem deve veri­
ficar a existência das exigências materiais que condicionam a utilização da força
em substituição da vontade do portador do direito violado. Existem, no entanto,
exceções a esta regra. A exceção mais notável depende da necessidade: nos casos
de urgência, quando a medida deixaria de ter sentido se não se opera de imediato,
ela pode ser levada a cabo sem a autorização judicial, porém, nesse caso, a medi­
da será submetida ao controle judicial posterior, que não apenas tem por objeto
decidir acerca da regularidade da ingerência, isto é, da existência ou inexistência
de uma infração às regras facultativas por parte do funcionário que a realiza, res­
ponsável por ela, mas que, além disso, possibilita o exame da necessidade ou da
urgência. O controle determina o valor do resultado ao qual se chegou através
da ingerência, parte do grande capítulo acerca das proibições probatórias. Nestes
casos, para justificar o ato, o autor da medida não só deve demonstrar a existência
das condições materiais da medida, como também deve tornar certa a razão de
urgência que determinou a omissão de pedir a autorização prévia. Algumas dessas
razões de necessidade estão expressamente indicadas na lei que regulamenta a in­
gerência, por exemplo, para o ingresso em um domicílio, sem autorização; para o
pedido público de socorro de alguém, em seu interior; para o refugio do imputado,
perseguido pela polícia, em um domicílio determinado; para uma catástrofe, inclu­
sive provocada, que ponha em perigo a vida ou a integridade física de alguém, etc.

4. Deve existir um âm bito comunicacional intangível (totalm ente inviolável)?

Esta pergunta é daquelas traçoeiras, pois se volta sobre uma afirmação


precedente e procedente de um a resposta anterior. O progresso técnico-científico
e o engenho humano postos a serviço da averiguação da verdade lograram certos
mecanismos de ingerência - as escutas mediante microfones ocultos, inclusive
à distância ou através dos muros; o chamado agente infiltrado ou o provocador;
o entrecruzamento de dados sensíveis, aportados por um a pessoa com outro fim,
inclusive em diversas oportunidades, como métodos mais conhecidos - , m eca­
nismos ou técnicas antes nem sequer imaginados. Para inibir tais mecanismos,
tem-se, em regra, valorado negativamente a ingerência sob o fundamento de
haver uma lesão à intimidade ou à privacidade. Entretanto, este é um argumento
difícil de impor, pois, como se viu, os dois referidos âmbitos, se realmente po­
dem se distinguir, apenas precisam de um a autorização, primeiro geral da lei, e a
seguir operada por um juiz no caso concreto.
Em verdade, os casos mais claros que provocam a repulsa do conheci­
mento obtido para o procedimento judicial por intermédio desses métodos, em

35
Julio Maier.

especial, para o processo penal, são aqueles nos quais a utilização de meios tec­
nológicos atuais ou mecanismos engenhosos permitem obter, por via oblíqua, a
palavra do imputado ou a daqueles personagens da história processual que estão
autorizados ou obrigados a não falar ou a não se pronunciar sobre o tem a objeto
do procedimento. Assim, o escutar a comunicação do imputado com sua esposa,
em seu domicílio ou na rua, ou a comunicação do advogado do imputado, a do
médico que o atendeu ou de um parente protegido por seu direito de silenciar
sobre a imputação; ou o enganar esse mesmo imputado com nossa amizade, para
que nos conte aquilo que não nos contaria se soubesse tratar-se de uma repre­
sentação, são casos genéricos que repugnam nossa ideia de encontrar a verdade
por métodos corretos, isto é, mediante o respeito a regras fundamentais que eli­
minam mecanismos ocultos enganosos. Todos esses casos parecem revelar-nos
que eliminamos a tortura ou o tormento pela injúria física que eles representam e
pelo seu significado histórico, mas seguimos apreciando outros meios de obter a
confissão, ocultos ou enganosos para quem possui certos direitos ou obrigações,
talvez menos cruéis fisicamente, porém igualmente ilegítimos intelectualmente,
se pensamos no aforismo nemo tenetur se ipsum accusare e lhe atribuímos valor
de princípio básico; em nosso idioma, “ninguém está obrigado a autoincriminar-
se”, a confessar ser autor de uma imputação dirigida contra ele ou a revelar ele­
mentos de prova que lhe causem prejuízo. Uma extensão desse princípio é, pre­
cisamente, o fundamento que governa a obrigação de uns e a faculdade de outros
de negar seu testemunho. Em poucas palavras, parece que substituímos a tortura
ou o tormento físico ou psíquico por técnicas desenvolvidas para obter o mesmo
resultado contra a vontade do portador do dever ou do direito a não informar.
Segundo se observa, não existe, nesses casos, lesão à intimidade ou à pri­
vacidade, ao menos em um primeiro plano ou em todos os casos, pois podemos
imaginar, sem grande esforço, casos nos quais isso não ocorre ou, se se prefere,
contar com autorizações legislativas gerais e judiciais para o caso: pense-se em
microfones ocultos instalados no domicílio do imputado - ou de uma das pessoas
obrigadas ou facultadas a silenciar - , por ordem judicial, talvez um desdobra­
mento da invasão de domicílio sem violência. De acordo com minha opinião,
lesiona-se aqui algo próprio da dignidade humana, o exercer livremente o direito
à autodeterminação quando a Lei Fundamental ou a lei comum nos concede a úl­
tim a decisão de calar ou falar. Conforme já disse de forma mais extensa em outra
ocasião, permitir, nestes casos, o recurso a surpreender a quem tem o direito ou
o dever de calar constitui uma hipocrisia, hipocrisia expressa regularmente em
uma lei, quando a autorização legal existe. Se essa hipocrisia triunfa sobre o di­
reito a não declarar contra si mesmo, no caso do imputado, sobre o dever de calar
que governa a conduta de certas pessoas de acordo com o vínculo particular com
o portador da garantia do segredo ou da reserva, ou sobre a faculdade de negar o

36
Intimidade e privacidade diante dos novos meios.

testemunho de certos parentes ou pessoas próximas, seria conveniente que a ad­


vertência contida universalmente em todas as leis processuais fosse também algo
maior que sua exposição frente ao tribunal do processo: o juiz deveria advertir o
imputado ou sua esposa, por exemplo, que têm o direito de abster-se de declarar
no processo e frente a ele, porém indicar-lhes que, se isso acontece, ele possui
ainda tais e quais faculdades, métodos a dispor para conseguir suas versões, de
modo que, se resolvem calar, lhes convém calar em todo lugar e com qualquer
pessoa, isto é, silenciar para sempre, emudecer.
A pergunta, então, obtém uma resposta afirmativa: existem âmbitos
comunicacionais intangíveis, absolutamente invioláveis, nos quais os diferen­
tes atores, portadores de um direito ou de um a obrigação de reserva, decidem
acerca da necessidade de comunicar-se e sobre as pessoas as quais deve al­
cançar essa comunicação, sem que o procedimento judicial, com sua meta de
averiguar a verdade, justifique um a ingerência neles. A surpresa e o engano são
métodos ilegítimos nesse âmbito.

5. e s te argum ento alcança, além das comunicações intelectuais, po r signos


ou idiom as, tam bém outras averiguações?

Uma boa parte da doutrina e, especialmente, da doutrina constitucional,


proibiu, sem a anuência do imputado, certas averiguações cujo objeto esteja cons­
tituído por seu corpo ou para cuja realização se precise de sua colaboração a fim de
obter o conhecimento buscado. Eu, em momento anterior, sintetizei a maior parte
destas intervenções sob o nome que lhe concede nossa lei processual penal: inspeção
corporal, com a explicação de que se trata da (inspeção corporal) interna, por oposi­
ção àquela mais conhecida pelas leis processuais, a intervenção pessoal ou inspeção
corporal externa. A título de exemplo, para que compreendam o ponto, trata-se de
coleta de impressões digitais, mostras de sangue, de saliva, de cabelo ou de pele -
geralmente pequenas intervenções - ou, mais severamente, de projéteis ou objetos
que carrega dentro do seu corpo o mesmo imputado ou aquele em relação a quem
se pretende provar algo que pode prejudicá-lo, sempre com fins de comparação para
estabelecer a autoria de um fato ou sua participação nele. Algo similar ocorre com
aquelas ações probatórias que, já não por uma regra jurídica, mas por uma razão de
fato, precisam da colaboração de quem, dito sinteticamente, é investigado. Como
exemplo: reconhecimentos de alguma pessoa segundo as regras processuais, mate­
rial escrito por alguém com fins de comparação caligráfica. Em todos esses casos,
se quem é investigado não presta voluntariamente sua aquiescência, não colabora
livremente com a investigação, a única maneira de prosseguir em busca do conhe­
cimento que se necessita consiste na utilização de métodos alternativos, generica­
mente coativos. Assim, por exemplo, a negação do imputado a integrar um grupo de

37
Julio Maier.

pessoas para fins de reconhecimento indica a possibilidade do reconhecimento con­


tra sua oposição, mediante fotografias, inclusive obtidas coativamente; a negação
para a extração de sangue ou de pele, o corte de cabelo ou as impressões digitais,
enfim, para uma operação cirúrgica, com fins de comparação relativos a uma perícia,
apenas é possível de substituir por uma ação coativa que realize a operação apoiada
na força física. Esta ação coativa é aquela que alguma doutrina não tolera por cons­
truir uma lesão do nemo tenetur, prejudicar-se a si mesmo, resultado sobre o qual o
portador da garantia teria o domínio total e exclusivo.
Isso me parece um grande erro conceitual. Aqui não entra em jogo o prin­
cípio citado, antecipado pela abolição da tortura com fins processuais de averigua­
ção da verdade, pois ele só representa a impossibilidade jurídica absoluta de obter
informação pela via da palavra ou por outra via análoga de comunicação intelec­
tual, isto é, a impossibilidade do emprego de um método coativo que obrigue a
informar desse modo - declarar - contra si mesmo. Somente nessa oportunidade
nos referimos à pessoa como sujeito de um procedimento, e, como tal, amparado
pela garantia. Por outro lado, quando a pessoa - seu corpo - é objeto da investi­
gação, o fato de que o rastro ou as impressões daquele que se necessita investigar
estejam em seu corpo, internamente, não representa, por si mesmo, um obstáculo
jurídico para a investigação. No entanto, como já antecipamos, a licitude do em­
prego da força em substituição da vontade de quem é investigado depende de dois
fatores básicos já estudados: em primeiro lugar, de uma autorização legal para o
uso da força (coação), no sentido indicado, com descrição abstrata do ato coativo
autorizado legalmente (nulla coactio sine lege praevia) e, em segundo lugar, de
uma decisão judicial que conceda concretamente a autorização no caso, após a
verificação dos limites legais que permitem agir dessa maneira. Ambas exigências
emergem da concepção mais clássica do Estado de Direito.
Ademais disso, entretanto, as leis ou um a interpretação sistemática do
ordenamento jurídico fornecem distintos critérios que condicionam, também, a
admissibilidade da medida na qual consiste a ingerência. A primeira regra obriga
a eleger, entre várias intervenções igualmente eficientes para alcançar a finalida­
de buscada, a menos grave ou danosa. Neste sentido, por exemplo, a apreensão
de elementos de asseio dental do portador da garantia no lugar da utilização da
força para a extração de saliva ou sangue, na prova de DNA, ainda que a inge­
rência seja de menor calibre. De acordo com isso, resulta também necessário
suprir a intervenção do imputado na reconstrução do fato com a participação
de outra pessoa que cumpra as ordens do tribunal quando o imputado não pre­
tende colaborar com ela, ou buscar caligrafia já escrita por ele quando se nega
a escrever um texto citado (corpo de escritura), ação inclusive necessária pela
impossibilidade de obter a escrita normal sem sua colaboração voluntária. Uma
segunda regra obriga a prescindir da utilização da força pública para suprir a

38
Intimidade e privacidade diante dos novos meios.

carência de consentimento por parte do ofendido quando sua aplicação põe em


risco sua vida ou - com alguma gravidade - sua saúde. Exemplo: cirurgia torá-
xica para extrair um projétil do corpo da vítima em face da intromissão, à base
de uma ferida provocada pelo disparo de arma de fogo, com a finalidade de
comparação por peritos, projétil cuja trajetória ou localização torna perigosa a
cirurgia. Todo o contrário significa, como regra, segundo conhecimento comum
e notório, a extração mínima de sangue, de cabelo ou de pele, ou a coleta de im ­
pressões digitais com fins de comparação por peritos. Vigora aqui o princípio da
proporcionalidade, onde o outro termo da ponderação resulta ser a necessidade
de averiguar a verdade quando estão em litígio diversas instituições jurídicas que
partem do conhecimento real de verificações de fato, como, por exemplo, as de­
cisões acerca da paternidade ou maternidade biológicas, e, fundamentalmente, a
atuação do direito penal. Conforme esse parâmetro, são discutíveis e discutidos,
por outro lado, os argumentos que defendem que a aplicação da força atentam
contra noções básicas de dignidade humana, como, por exemplo, a ingestão for­
çada de vomitivos ou purgantes utilizados para que uma pessoa que nega sua co­
laboração expulse de seu corpo, como excrementos, substâncias que se suspeita
que ingeriu previamente.
Segundo se observa, para o Estado de Direito não se trata aqui de uma
proibição absoluta, como aquela relativa ao emprego da tortura ou outros meios
coativos para obrigar outrem a declarar contra si mesmo, mas tão só de uma
proibição relativa do uso de certos métodos para suprir a falta de colaboração do
agravado por uma medida cujo parâmetro é a sua proporcionalidade em relação
à finalidade judicial de averiguar a verdade.

6. Quem pode ser agravado ou p o rta d o r da g a ra n tia e quem pode ordenar


a ingerência?

Apenas duas perguntas para terminar, que responderei de forma breve


para não ocupar o tempo destinado ao debate. Se nosso foco principal aponta
em direção ao procedimento penal, o imputado é quem pode exercer seu direito
de não colaborar com a medida. Da mesma maneira, em direito privado, aquele
que é demandado ou reconvido. Porém, como já advertimos, todo ordenamento
jurídico menciona outras pessoas como depositárias do dever de reserva ou da
faculdade de negar o testemunho para a averiguação da verdade, extensão subje­
tiva do princípio nemo tenetur que não repousa em ajuizar-se a si mesmo. A essas
pessoas se deve estender não apenas o dever dos funcionários da persecução
penal de adverti-las sobre suas obrigações ou direitos, para que ajam em confor­
midade com eles ou exerçam suas faculdades, mas, também, todas as consequ-
ências e limitações fixadas durante o transcurso da expressão de minha opinião.

39
Julio Maier.

A últim a pergunta tem resposta regular no direito positivo interno.


Como dissemos, por regra, é necessária um a ordem judicial para habilitar a
ingerência, tal como sucede com a invasão de domicílio ou a interceptação de
conversas telefônicas. Porém, o direito positivo reconhece, por uma parte, ex­
ceções nas quais a necessidade e, especialmente, a urgência da m edida habili­
tam funcionários distintos dos judiciais ou judiciais, mas sem a imparcialidade
frente ao caso que caracteriza os juízes e tribunais, e em ocasiões autorizam
até as pessoas em geral, a procederem sem ordem judicial. Exemplo disso são
as autorizações de invasão de domicílio sem ordem por razões de necessidade
(pedido de auxílio do interior da moradia, incêndio ou outra catástrofe que põe
em perigo a vida dos ocupantes, refúgio do imputado que está sendo persegui­
do pela polícia, etc.) ou as autorizações de outras medidas sem a ordem judicial
regular, quando a demora em sua execução põe em risco a perda do elemento
de prova. Por óbvio, estes casos estão submetidos ao controle ex p o st por parte
da autoridade que, em tese, seria competente para em itir a ordem judicial e, em
relação a eles, o funcionário que emitiu o controle ex ante deverá cumprir com
a verificação das exigências para a autorização judicial da medida, ação que
deveria cumprir previamente para obter a ordem, e da demonstração da neces­
sidade ou da urgência que justificaram a dispensa dessa autorização prévia. Por
óbvio, o fracasso em uma ou outra comprovação conduz ao fracasso jurídico
da medida, qualquer que tenha sido seu resultado.
Por último, vários ordenamentos jurídicos positivos ordenam certas in­
tervenções menores, que atualmente não significam maior risco, segundo o es­
tado científico e cultural comum, à decisão da mesma polícia ou do Ministério
Público, como sucede com a extração de um a pequena mostra de sangue, de
cabelo ou de pele.
Se me perguntarem pelo erro principal das legislações ibero-am eri­
canas, deveria dizer que o fundam ental reside em carecer de regras m últiplas
e claras que detalhem tanto as intervenções autorizadas quanto o ato coativo
a ser desenvolvido, com seus lim ites, erro que as coloca quase sempre em
confronto com o princípio nulla coactio sine lege praevia.

40
L a ic id a d e e Dir e ito Pe n a l1

P rof1. Silvia Larizza


Universidade de Pávia, Itália

1. Considerações introdutórias

Escolhi por enfrentar o tem a da laicidade em direito penal por uma


razão objetiva: examinando a produção legislativa em m atéria penal, pode-se
verificar que, algumas vezes, o legislador tem utilizado este direito para finali­
dades distantes da tradicional tarefa de tutela de bens jurídicos2. As inclinações
a um direito penal que, com o uso da sanção, tende a educar moralmente; que
aponta à afirmação de valores éticos; que, com inclinação paternalística, quer
substituir à pessoa para a persecução de seu próprio interesse; que quer impor
uma própria visão religiosa da vida e da morte; que, através da tutela, tende a
dar vigor e força a sentimentos difusos3 - também não prejudiciais - , entre os
quais, sobretudo, de insegurança, são encontrados em normas penais já pro­
mulgadas ou em vias de promulgação.
O tradicional paradigm a afirmado amplamente nos anos 70 do século
passado, de um direito penal estabelecido na proteção de bens jurídicos das
agressões mais graves4, da sua utilização como ultima ratio, de sua ancoragem,
tanto na parte dispositiva, quanto na parte sancionatória, aos cânones insupe­
ráveis de um direito penal do fato, baseado em parâmetros exclusivamente
objetivos, resulta erodido, de m aneira circunscrita e, por enquanto, não alar­
mante, em um a produção legislativa que está ultrapassando os limites da estrita
necessidade. M oralismo jurídico e paternalismo entram em campo e põem-se
como ulteriores critérios de legitimação da sanção penal5.
Previsível o resultado: vacilaram as barreiras garantistas reservadas ao
direito penal, como a liberdade do direito penal, ou seja, atenua-se a exigência
1 Título original “L aicità e diritto penale” . Tradução de Filipe de Mattos Dall’Agnol e revisão de Stephan
Doering Darcie. Revisão final do português de Raquel Lima Scalcon.
2 Sobre o bem jurídico como critério e limite da atividade de criminalização, cfr., de forma profunda, MARI-
NUCCI- DOLCINI. Corso di diritto penale. 3a ed., Milano, Giuffré, 2001, p. 434 e ss.
3 Acerca desta temática, cfr. DONINI, “D anno” e “offesa” nella c.d. tutela penale dei sentimenti. Note su
morale e sicurezza come bene giuridici, a margine delia categoria deli' “offense” di Joel Feinberg, in Riv.
it.dir.proc.pen., 2008, p. 1.546 e ss.
4 MARINUCCI. Politica crim inale e riform a del diritto penale, in Jus, 1974, p. 482, ressalta: “Em um
Estado como o nosso, moderno e secularizado, no qual todo o poder estatal emana do povo soberano, e que
não pode, portanto, perseguir através da pena finalidades transcendentes ou éticas... o direito penal pode ser
construído somente como instrumento de tutela de bens jurídicos”.
5 Não por acaso estas noções, objeto de aprofundamento doutrinário, constam, frequentemente, nos títulos
de alguns artigos de doutrina: conforme ROMANO, Danno a se stessi, paternalism o legale e lim iti del di­
ritto penale, in Riv. it. dir. proc. pen., 2008, p. 984; CADOPI, Liberalism o, paternalism o e diritto penale,
in Aa. Vv., Sulla legittim azione del d iritto penale. C ulture europeo-continentale e angloam ericana a
confronto, (orgs.) Giovanni Fiandaca e Giovanni Francolini, Torino, Giappichelli, 2008, p. 83 e ss.

41
Silvia Larizza.

de assegurar amplos espaços de liberdade imunes da coerção, de reservar a


pena às ofensas mais graves, que produzam dano; e, na mesma medida, como
a liberdade no direito penal, ou seja, desbota a visão do direito penal como
magna charta do réu que, através de normas redigidas em forma clara, precisa,
taxativa, constrói um divisor entre aquilo que é lícito e aquilo que não é lícito,
incriminando somente comportamentos que ofendam bens jurídicos, que se
exteriorizam e que, por isso, possam ser provados em juízo enquanto modifica­
ções das situações sobre as quais incidem.
Esboçado a largos traços o horizonte heterogêneo que se apresenta,
algo deve ser, desde logo, sublinhado: este excesso de produção legislativa em
m atéria penal, este exorbitar do próprio campo, dirigindo-se sobre os incertos,
problemáticos e escorregadios caminhos da moral, da religião, da segurança
- aquela, porém, pauta, de todos os dias - agravará, por certo, a já difícil situa­
ção da justiça penal, representando custos em termos de efetividade. Já hoje o
sistema não consegue conter a m assa de criminalidade que se vislumbra coti-
dianamente; o recrudescimento do sistema, decorrente do uso desembaraçado
da sanção penal, tornará ainda mais precária e incerta a sua resposta sanciona-
tória, afigurando-se ainda mais ineficaz6.
M as, evidentem ente, os novos em preendedores da m oralidade, os
novos porta-bandeiras da segurança, os novos cruzados não estão nem um
pouco interessados na efetividade da norm a. Para estes, m ais im portante é
que a norm a tenha absorvido as suas escolhas m orais, as suas visões de m un­
do: se, posteriorm ente, a norm a funcionar ou não, se for efetiva ou não, são
questões secundárias.
Eis, portanto, repropostos os traços da legislação simbólica onde o
pensar sobre a viabilidade e eficácia de um a norma não é relevante7. Disto
deriva uma utilização do direito penal distante daquela tradicional de tutela
de bens jurídicos, legítima na medida em que seja verificada a idoneidade da
sanção à finalidade de sua proteção8, à luz, portanto, dos resultados alcançados.
O direito penal, no momento em que se afasta do tradicional objetivo que cir­
cunscreve o seu âmbito de ação, objetivando a busca de finalidades diversas,

6 Sobre este ponto, de forma contundente, MARINUCCI, II sistem a sancionatorio tr a collasso e pros-
pettive di riform a, in A tti dei convegni lincei, Le risposte penali a ll’illegalità, Roma, 1999, p. 45 e ss.
7 Sobre a legislação simbólica, ou seja, sobre aquelas leis que já, a priori, não visam a regular fenômenos sociais,
mas sim a transmitir mensagens, também morais, cfr. PULITANÒ, Politica criminale, in Aa. Vv., Diritto penale
in transformazione, (orgs.) Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, Milano, Giuffré, 1985, p. 18, segundo o qual “as
finalidades de tal modo perseguidas podem ser as mais diversas, da autorrepresentação propagandística dos gru­
pos políticos, à oportunidade de dar um sinal em situações de particular tensão (por exemplo, as que sucedem aos
graves atentados terroristas) até a afirmações categóricas de imperativos de consciência”; e, por último, BONINI,
Quali spazi p er una funzione simbólica del diritto penale?, in Ind. pen., 2003, p. 491 e ss.
8 VON LISZT. l a teoria dello scopo nel diritto penale. (org.) Alessandro Alberto Calvi, Milano, Giuffré,
1962, p. 32: “A pena vem posta a serviço da tutela dos bens jurídicos”.

42
Laicidade e direito penal.

não resulta mais limitado9. E, também, a categoria conceitual de bem jurídico


entra em crise, não logrando mais impor limites à atividade do legislador.
O fim desta intervenção é, portanto, aquele de evidenciar os âmbitos
mais expostos a risco ao afastar-se, o legislador, do singelo princípio enuncia­
do por Beccaria há mais de 250 anos: a pena justa é a pena necessária10.
Evidentemente, para enfrentar tal matéria, é necessário esclarecer o que
se entende atualmente por laicidade11, realizando, em seguida, um reconheci­
mento das suas possíveis implicações capazes de orientar e, sobretudo, de condi­
cionar a atividade do legislador no âmbito penal.

2. L aicidade como princípio suprem o do ordenam ento

Diga-se, desde logo, que o princípio da laicidade não é expressamente


contemplado na Constituição italiana, mas se extrai, implicitamente, desta12. É
como um quid não escrito, encontrado, por outro lado, em toda norma constitucio­
nal: em outros termos, é a inspiração de fundo, o fio vermelho que cruza em um
todo homogêneo e, sobretudo, em uma leitura unívoca das normas do texto consti­
tucional. Do princípio da igualdade e do reconhecimento dos direitos de liberdade
de cada um - pilares fundantes do texto constitucional - floresce uma visão neces­
sariamente pluralística do nosso contexto político-institucional e social.
A laicidade se pode apanhar: na proteção das minorias, em razão da qual
a norma penal não pode ser instrumento de tutela de uma concepção moral, ainda
que majoritária13; na garantia do direito à diversidade; na administração da justiça
9 “A ideia de finalidade postula, porém, a adequação do meio ao fim e a máxima parcimônia na sua aplicação. Esta
exigência possui particular valia no que concerne à pena, sendo esta, de fato, uma arma de dois gumes: tutela de bens
jurídicos atuando através da lesão dos mesmos”: nestes termos, o já pouco escutado (pelo nosso legislador). VON
LISZT. l a teoria dello scopo nel diritto penale, cit., p. 46.
10 Na concepção de Beccaria, a pena reputa-se justa somente se necessária, vale a dizer, se exclusivamente
utilizada à salvaguarda das condições essenciais do viver civil. Pode-se dizer que isto seja uma espécie de leit
motiv que percorre inteiramente o “livrinho”; veja-se, em particular, BECCARIA, Dei delitti e delle pene,
organizado por Franco Venturini, Torino, 1970, § II, § XLVII, respectivamente a pág. 12 e pág. 104, ou, na
tradução portuguesa organizada por José de Faria Costa, BECCARIA, Dos delitos e das penas, 3a ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, respectivamente as págs. 64 e 162.
11 Segundo STELLA, la ic ità dello stato: fede e diritto penale, in Diritto penale in transformazione, cit., p.
309, trata-se de uma “locução com a qual, no âmbito penal, quer-se unicamente indicar que a construção jurídico-
penal estadual é uma construção temporal, constituída por seus próprios princípios, com autônomo respeito a
qualquer fé, religiosa ou não, e, por isso, também à fé cristã”. Cfr., também, CANESTRARI, la ic ità e diritto
penale nelle democrazie constitucionali, in stu d i in onore di Giorgio Marinucci, (orgs.) Emilio Dolcini e
Carlo Enrico Paliero, I, Milano, Giuffré, 2006, p. 139 e ss. PULITANO, la ic ità e diritto penale, in Riv. it. dir.
proc. pen., 2006, p. 55 e ss. “Por ‘direito penal laico’, entendo um direito penal composto por regras próprias,
não impostas externamente, por fins, valores ou interesses também estranhos: em particular, um direito penal que
se abstenha de qualquer premissa religiosa ou metafísica: assim, por último, DOLCINI, la ic ità , ‘sana laicità’ e
diritto penale. l a chiesa cattolica m aestra (anche) di laicità?, in Riv. it. dir. proc. pen., 2009, p. 1.017.
12 CANESTRARI. la ic ità e diritto penale nelle democrazie constituzionali, cit., p. 166, vislumbra na laici-
dade, mais do que um princípio, um caráter do nosso ordenamento.
13 Diversamente, as minorias seriam constrangidas a não seguir determinadas posições de valor, também quan­

43
Silvia Larizza.

em nome do povo italiano e não de princípios transcendentes14, visto que a sobe­


rania pertence ao povo15. Laicidade significa, também, igualdade de todos, a pres­
cindir da diversidade de todos; manifesta-se na possibilidade de exercer a própria
fé religiosa, qualquer que esta seja16, de manifestar o próprio pensamento livre­
mente17, de associar-se livremente18, isto é, manifesta-se no direito de se tratar sem
que venha imposto contra a vontade do sujeito algum tratamento médico19. Estes
princípios, que expressam o caráter laico de um ordenamento, são também aque­
les que o caracterizam como democrático20, constituindo um binômio incindível21.
“Democracia pluralista e laicidade do Estado constituem um binômio indissolúvel,
no sentido, ao menos, de que a primeira não pode existir no contexto de um Estado
confessional”22. Pode-se, ainda, corroborar o quanto restou dito afirmando que não
há laicidade sem democracia e não há democracia sem laicidade23.
Adentrando no âmbito penal, algumas normas presentes na Constituição
falam a favor de uma configuração do ilícito penal puramente laica.
Pode-se iniciar pelo art. 2° da Constituição, que reconhece e garante os
direitos invioláveis da pessoa: entre estes, para exemplificar, o direito de au­
todeterminação, o direito de expressar-se em relação às próprias inclinações,
contanto que do exercício desse direito não sobrevenha dano a alguém. Ade­
mais, a mesma configuração de um fato como ilícito repousa sobre princípios
lato sensu de laicidade: o art. 25, § 2°, da Constituição, exigindo o cometimento
de um fato e a concretização decorrente de uma intenção criminosa, proibindo

do daquelas não derivam nenhuma consequência socialmente danosa.


14 Art. 1°, parágrafo 2°, da Constituição.
15 ROXIN, Sul rapporto tra diritto e m orale nella riform a penale tedesca, in Arch. pen., 1981, p. 33,
destaca: “Se se parte do pressuposto de que o poder do Estado encontra a sua origem próxima dos particulares
cidadãos e que os representantes do Estado recebem a sua investidura do povo somente com a finalidade de
assegurar a pacífica convivência dos cidadãos, a livre expressão das suas personalidades, bem como de garantir
as suas incolumidades, disso decorre que o direito penal possa ter somente a função de proteger e favorecer a
liberdade individual, e não aquela de impor um determinado sistema moral”.
16 Art. 19 da Constituição.
17 Art. 21 daConstituição.
18 Art. 18 da Constituição.
19 Art. 32, parágrafo 2°, da Constituição.
20 Sobre uma presumida conexão entre a democracia como forma de governo e uma atitude de base eticamente
relativística, cfr. ZIPF, Politica criminale, tradução italiana organizada por Adriano Bazzoni, Milano, Giuffré,
1985, p. 85, segundo a qual “... a democracia é a forma de governo que mais facilmente se pode conciliar com
um princípio pluralístico, assim como, inversamente, os sistemas totalitários tenderão sempre em direção a uma
única religião e uma única ideologia, porquanto tal solução garante um decisivo efeito estabilizante do sistema”.
21 “Democracia pluralista e laicidade do Estado constituem um binômio indissolúvel, no sentido, ao menos,
de que a primeira não pode existir no contexto de um Estado confessional”: assim, MORMANDO, I delitti
contro il sentim ento religioso e contro la pietà dei defunti, in T rattato di diritto penale. Parte speciale,
(orgs.) Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, Vol. V, Padova, Cedam, 2005, pp. 103-104.
22 Nestes termos, MORMANDO, Religione, laicità, tolleran za e d iritto penale, in Riv. it. dir. proc. pen.,
2005, p. 651.
23 Sobre a relação entre princípio de laicidade e forma democrática do Estado, cfr. PULITANO, Laicità e
diritto penale, cit., p. 56 e ss.

44
Laicidade e direito penal.

que se sujeitem à pena os pensamentos e as intenções, evitando que o cidadão


possa ser perseguido pelo que pensa e deseja. Podem-se incriminar tão somente
comportamentos que tenham sido exteriorizados e que tenham causado dano:
pune-se pelas modificações que o homem traz ao mundo exterior, não por um
agir imoral e reprovável24. Isto significa que apenas se pode ser punido em vir­
tude do cometimento de um fato e não por um modo de ser, por uma conduta de
vida, pela assunção de um comportamento imoral. Além disso, o princípio da
personalidade da responsabilidade penal, contemplado no art. 27, parágrafo 1°,
da Constituição, exige que o fato cometido seja sustentado pela culpabilidade
do agente, isto é, que se trate de um fato que possa ser censurado. As hipóteses
de responsabilidade objetiva - registre-se25 - , negando a autonomia do indiví­
duo, contrastando com este princípio constitucional, respondendo a um a visão
instrumental da pessoa.
Se, no âmbito dos preceitos primários, os conteúdos devem ser “laicos”,
igualmente tais características devem acompanhar a pena, a qual deve despir-se
da função de emenda moral para perseguir um fim todo social, laico por excelên­
cia. A função reeducativa da pena, imposta pelo nosso sistema, no art. 27, § 3°,
da Constituição, vai compreendida como oferta de ajuda ao condenado na busca
pela reaquisição dos valores violados: trata-se, observe-se, de uma oferta, não
de uma imposição26. A execução da pena estaria privada de toda legitimação se
tentasse modificar coativamente o condenado. O progressivo abandono da con­
cepção da pena como retributiva27, ou seja, desprovida de finalidades, baseada na
máxima punitur quia peccatum est, em um fundamento ético absoluto, em prol
de uma concepção preventiva sinaliza, seguramente, a passagem fundamental
para um direito penal orientado a um objetivo e desprendido de dogmas absolu­
tos, de uma concepção da pena exclusivamente como um castigo.
O princípio da laicidade possui algumas importantes repercussões tam ­
bém do ponto de vista processual, sendo posto em crise através da criação de
normas indeterminadas28, que utilizam conceitos ambíguos, não unívocos, que
24 Difusamente, MARINUCCI-DOLCINI, c o rso di diritto penale, cit, p. 450 e ss.
25 BARBERA, il cam ino della laicitá, § 6° c., acessível, no “Paper del Forum”, no site www.forumcons-
tituzionale.it.
26 Fundamentalmente, DOLCINI, l a comm isurazione della pena, Padova, Cedam, 1979, p. 174 e ss.; DOL-
CINI, l a “rieducazione del condannato” tra m ito e realtà, in Riv. it. dir. proc. pen., 1979, p. 474, observa:
“A adesão do condenado aos valores protetivos do ordenamento pode tão somente representar um efeito aces­
sório e eventual da execução da pena: não pode, ao contrário, integrar-lhe a finalidade essencial”.
27 Sobre a incompatibilidade da concepção retributiva da pena com os cânones de um direito penal laico, cfr.,
recentemente, DOLCINI, la ic ità , ‘sana laicità’ e diritto penale. l a chiesa cattolica m aestra (anche) di
laicità?, cit., p. 1.022; o autor sublinha como a pena não pode encontrar o próprio fundamento na realização
de uma ideia transcendente de justiça.
28 Sobre a relação que permeia entre o princípio da laicidade e determinação da norma penal no âmbito dos
delitos contra a religião, cfr. MORMANDO, i delitti contro il sentim ento religioso e contro la pietà dei
defunti, cit., p. 147 e ss. O autor nota (p. 114, nota 25) que “o direito penal afastou-se da repressão do pecado
quando entrou no caminho dos fatos suscetíveis de percepção sensorial, restituindo à moral e à religião a

45
Silvia Larizza.

preveem fatos que não se podem provar. Para que se possa construir um a nor­
ma penal, é necessária a existência de um corpus: o fato do crime deve poder
ser provado29. Aquilo que nenhum juiz pode provar não pode ser objeto de in-
criminação30. De fato, o princípio da legalidade e determinação do fato típico
resultaria em mero flatus vocis se, apesar de descrito, não fosse ele passível de
acertamento, não refletisse uma fenomenologia empiricamente verificável pelo
julgador com base em máximas de experiência ou em leis científicas31. A propó­
sito, observa-se autorizadamente: “Uma norma apresenta deficit de determinação
quando descreve situações não correspondentes à realidade, não verificadas na
realidade empírica e, por isso, não suscetíveis de acertamento e de prova pro­
cessual com os instrumentos fornecidos pela ciência e pela experiência”32. O
abandono do ponto de vista teológico na construção das normas (a eliminação
de tipos penais como a heresia, o crimen magiae33) tem, seguramente, conduzido
a uma melhor individualização do dano exterior objetivo34 e “à emersão de um
significado de valor-desvalor todo laico-secular, integralmente e exclusivamente
‘terreno’, de muitos aspectos da realidade social”35.
O legislador é, portanto, vinculado às ações externamente reconhecí­
veis, não podendo submeter à sanção penal um fato que não seja externamente
reconhecível e cuja subsistência não possa ser provada em concreto36.
Além disso, sempre do ponto de vista processual, o princípio da laici-
dade exprime-se, também, no brocardo nemo tenetur se detegere31. A prova do
repressão do “desejo”.
29 Desenvolve de maneira bastante aprofundada este aspecto GALGANI, Dal corpus delicti al Tatbestand. Lc
origini della tipicità penale, Milano, Giuffré, 1997, passim; sobre a não verificabilidade e inconsistência dos
crimes tais quais a magia negra e a heresia, retomando as observações críticas de Thomasius, cfr. ROMANO,
secolarizzazione, diritto penale m oderno e sistema dei reati, in Riv. it. dir. proc. pen., 1981, pp. 489-490.
30 Esta asserção de Paul Johan Anselm von Feuerbach vem aprofundada em COCCO, Può constituire reato
la detenzione di pornografia m inorile?, in Riv. it. dir. proc. pen., 2006, p. 863 e ss.
31 Em tal sentido, MARINUCCI-DOLCINI, c o rso de diritto penale, cit., p. 163 e ss.
32 MARINUCCI-DOLCINI, c o rso di diritto penale, cit., p. 163.
33 “Pode-se, por acaso, punir a magia, um fato que, mesmo que fosse real e possível, seria, porém, im­
possível mostrar o corpus delicti?”: esta interrogação formulada por Paul Johan Anselm von Feuerbach é
retomado por MARINUCCI, Fatto e scrim inanti. Note dom m atiche e político crim inali, in Rev. it. dir
proc. pen., p. 1.210, nota 85.
34 Princípio já expresso de maneira incisiva por BECCARIA, Dei delitti e delle pene, § VII, cit., p. 22, para
quem “... a única e verdadeira medida dos delitos é o dano cometido à nação”, e, com isto, contestando a opi­
nião que julgava “que a gravidade do pecado coubesse na medida dos delitos”.
35 Nestes termos, ROMANO, secularizzazione, d iritto penale m oderno e sistem a dei reati, cit, p. 497.
36 A base empírica e criminológica dos fatos típicos estaria reclamando, além do princípio da legalidade e
do princípio da razoabilidade, também o abrigo de motivação dos provimentos jurisdicionais (art. 111, pará­
grafo 1°, Constituição): MARINUCCI, Fatto e scrim inanti. n o te dom matiche e politico criminali, cit., p.
1.210, observa: “Ainda que o art. 111, parágrafo 1°, pudesse atuar como parâmetro no sentido de que ‘todos
os provimentos jurisdicionais devem ser motivados’, parece próprio que não possam sê-lo os provimentos de
condenação por fatos típicos que, embora nitidamente descritos pelo legislador, nenhum juiz esteja em posição
de provar, e em seguida de motivar na sentença como concretamente acontecem, ao menos”.
37 Sobre este princípio processual em relação, sobretudo, à sua conotação de garantia, cfr. GREVI, Nemo
tenetur se detegere: interrogatório dell’im putato e diritto al silenzio nel processo penale italiano,

46
Laicidade e direito penal.

fato e da relação entre este e o autor deve ser integralmente a cargo da acusação,
tarefa essa não eludível através de mecanismos coercitivos de colaboração do
réu: deve o aparato público encarregar-se do ônus da procura da prova e não o
réu, sob a ameaça da sanção, a ter de confessar a própria ausência de fidelidade
ao ordenamento jurídico38. A acusação tem o dever de provar, sob um plano
objetivo, a imputabilidade ao réu do ilícito, descrito nas suas características de
materialidade, ofensividade e culpabilidade.

3. L aicidade e configuração do ilícito penal

É importante, neste ponto, acenar, brevemente, para a acepção de laici-


dade que se pode extrair das sentenças da Corte constitucional39.
Para a Corte constitucional, o princípio da laicidade é um princípio
supremo do ordenamento jurídico, o qual impõe ao Estado uma atitude de
“equidistância e imparcialidade” nos confrontos de religiões, de ideologias, de
filosofias e de ideias, bem como de qualquer “opção pessoal” referente à esfera
da fé, das culturas e das tradições40. Trata-se de um princípio que caracteriza
“em sentido pluralístico a forma de nosso Estado, no qual se deve conviver em
igualdade de liberdade, fé, cultura e tradições diversas41 (sentença n° 440 de
1995)” . A igualdade de liberdade, reconhecida a todos, garante e dá direito de
cidadania à diversidade de cada um de nós até o limite em que da expressão
desta diversidade não resulte dano.
A noção de laicidade elaborada pela Corte constitucional, ainda que expres­
sa essencialmente através da menção ao direito de professar livremente a própria
fé religiosa - relacionado, por conseguinte, a um âmbito circunscrito aos delitos
contra a religião - , constitui um princípio supremo do ordenamento, destinado a
repercutir também em outros terrenos e a informar a atividade legislativa.
Apreendido o significado constitucionalmente relevante de laicidade,
é mais simples confrontá-lo com alguns setores particularmente problem á­
ticos da produção legislativa em m atéria penal. No atual momento, o prin­
cípio da laicidade, princípio supremo do ordenamento, parece não consti­
tuir mais um lim ite42. Mas, precisamente porque a sua violação tem efeitos
Milano, Giuffré, 1972, passim .
38 Nestes termos, ainda, CANESTRARI, Laicità e diritto penale nelle democrazie constituzionali cit., p. 145.
39 Para um amplo panorama das decisões constitucionais mais significativas que, a partir do fim dos anos
oitenta do século passado, inspiradas pelas questões de legitimidade relativas à tutela do sentimento religioso,
elaboraram o princípio da laicidade, incidindo sobre aqueles institutos que tendiam a assegurar uma posição de
privilégio à igreja católica, cfr. BARBERA, Il camino delia laicità, § 7° c., cit. Sobre o ponto, cfr. PULITANO,
Laicità e diritto penale, cit., p. 55 e ss.
40 Trata-se de Corte constitucional, sentença de 13 de novembro de 2000, n. 508, in Cass. pen., 2001, p. 802.
41 Corte constitucional, sentença de 18 de outubro de 1995, n. 140, in Giur. cost., 1995, p. 4.517.
42 Observa FIANDACA, Considerazioni intorno a bioética e diritto penale, tr a laicità e ‘postsecolaris-
m o’, in Rev. it. dir. proc. pen., 2007, p. 549, que, no atual momento, encontram-se tendências de convergência

47
Silvia Larizza.

extensivos, enfraquecendo as barreiras garantistas do direito penal liberal,


se pode constatar que lá onde se verifica um a laicidade “débil” não apenas
este princípio é posto em crise pela norma penal, mas também as mesmas
características e os mesmos princípios fundamentais de direito penal. Para
esclarecer: a lesão de tal princípio não se exaure em si mesma, mas traz
um vulnus aos outros princípios como aqueles da determinação do tipo pe­
nal, da materialidade, da necessária lesividade do fato em relação ao bem
que se intenciona tutelar.
M as, antes de endereçar, por certo a traços largos, a atenção sobre algu­
mas situações que despertaram perplexidade, em relação às quais o legislador
ou o reformador m anifestou orientações seguramente pouco laicas, julgo útil,
preliminarmente, acenar, brevemente, para o tipo de relações que devem per­
m ear entre direito penal e m oral43.

4. so b re as relações entre direito penal e m oral

O direito penal, em um Estado democrático como o nosso, cuja cri-


minalização de um comportamento humano é subordinada a um a valoração
rigorosa acerca da «danosidade social» e ofensividade do mesmo, não pode
reprimir a imoralidade em si: vale dizer, a sanção penal não pode ser posta a
serviço de preceitos éticos ou m orais44.
É este um princípio hoje amplamente e quase pacificamente acolhido
nos ordenamentos penais contemporâneos. Mas o processo de laicização (ou
secularização) do direito, e do ramo penal mais especificamente, vem sendo
longo e difícil, e, ainda hoje, não pode julgar-se concluído; em alguns m om en­
tos, de fato, se assiste a tem íveis recuos.
Ao final de 1.600, podia-se encontrar uma estreita coincidência entre
aquilo que o Estado reprimia e a “regra” moral ou religiosa 45: o direito penal
era o instrumento mais eficaz para afirmar concepções morais, religiosas e trans­
cendentes, e eram severamente punidos fenômenos como a heresia, a magia,
a feitiçaria. Mas, através do aporte dos pensadores iluministas, opera-se uma
mudança de ideias sobre qual deve ser o bem tutelado pelo direito penal: “não

no sentido de promover um processo de reeticização do direito penal.


43 Sobre o tipo de relações que, abstratamente, possam permear entre direito penal e moral, cfr. ROXIN, sul
rapporto tra diritto e m orale nella riform a penale tedesca, cit., p. 24 e ss.
44 FIANDACA. Problem atica dell’osceno e tutela del buon costume, Padova, 1984, p. 99 e ss., observa: «a
punição da mera imoralidade contrasta (por outro lado) com o conjunto dos princípios materiais que concor­
rem para formar o conceito de Estado prefigurado na Constituição» (vêm reclamados o princípio da tutela da
dignidade humana e o princípio da soberania popular).
45 TARELLO. Storia della cultura giuridica m oderna, vol. I, Assolutismo e codificazione del diritto, Bo-
logna, Il Mulino, 1976, p. 384; STELLA, la ic ità dello stato: fede e diritto penale, in Diritto penale in
transformazione, Milano, 1985, p. 309.

48
Laicidade e direito penal.

mais a fé religiosa, a Igreja, a salvação das almas, mas o poder soberano e o bom
funcionamento da administração e das finanças”, devendo responder “o direito
penal ao útil à sociedade mundana e não ao justo religioso”46.
A afirmação da categoria conceitual de bem jurídico, com o objetivo
primário de pôr um vínculo racional à atividade de criminalização do legisla­
dor, mais tarde, deu o empurrão decisivo em direção à laicização do direito pe­
nal: se, de fato, o direito penal e as sanções que o distingue servem para prestar
tutela, na via imediata, a bens jurídicos (essenciais), e, assim, na via mediata,
às condições fundamentais do viver civil, agora não podem ser incriminados
e constituir crime - estando, por consequência, fora do direito penal - , todos
aqueles comportamentos que, embora imorais, não resultem idôneos a produ­
zir um dano exterior de relevo social47.
É o nosso contexto constitucional a im por esta solução declarando,
no art. 13°, parágrafo 1°, da Constituição, inviolável a liberdade pessoal: a
pena de prisão, que constitui a mais grave lesão à liberdade pessoal, poderá
ser utilizada somente para responder às ofensas daqueles bens jurídicos de
fundam ental e induvidosa im portância; e tais não podem ser os valores m o­
rais. De fato, em um Estado laico, dem ocrático, pluralista, não existe um a
única concepção moral, mas diversas concepções; disso decorre que o E s­
tado não pode impor, com o uso da força, um a particular concepção m oral,
ainda que m ajoritária48. O ordenam ento, tal qual delineado pela C onstitui­
ção republicana de 1948, não pode, portanto, através do instrum ento penal,
cuja perversidade é induvidosa, perseguir finalidades transcendentes e im por
um a dada concepção m oral, ética ou religiosa, reprim indo com portam entos
imorais que não traduzam ofensa a bens jurídicos, mas é obrigado a deixar
espaços imunes à crim inalização e a pôr-se em um a posição de equidistância
no que diz respeito aos diferentes pontos de vista.
Em síntese: não é dever do Estado erigir-se a tutor da moralidade; não
é dever do direito penal prom over a afirmação de um a particular concepção
ética utilizando, para isso, a sanção penal. Este dever deve estar fora daqueles
próprios de um Estado laico, secularizado, democrático49. A moral é algo pouco

46 Nestes termos, TARELLO, sto ria della cultura giuridica m oderna, cit., p. 387.
47 De qualquer forma, não é e não pode ser preventivamente excluído que comportamentos (também) imorais
venham a ser perseguidos pelo direito penal; mas o serão somente quando, e nos limites em que atentem contra
a pacífica convivência na sociedade.
48 Observa FARIA COSTA, Ler Beccaria hoje, in BECCARIA, Dos delitos e das penas, cit., p. 20: “ [...] o
Estado não pode arrogar-se a finalidade de reprimir comportamentos imorais. Na verdade, não existindo uma
concepção moral única - as sociedades atuais são transversalmente plurais e hipercomplexas - mas diversas
formas de estar moralmente no ‘mundo’, fácil é de ver que esta fragmentaridade torne impossível que o legis­
lador dê preferência, tutelando com arma da pena, a uma particular concepção que não é patrimônio de todos”.
49 ZIPF. Politica crim inale, cit., pp. 84-85, fala na existência, no direito penal, de um princípio pluralístico
(ou de tolerância). Este opera nos confrontos do legislador «impossibilita(ndo) que se sirva do direito penal
como uma arma na disputa entre ideologias rivais e não oportuniza(ndo) que normas penais venham empre­

49
Silvia Larizza.

compreensível, algo em contínua evolução, que segue as transformações da


sociedade, que se deve deixar livre para se desenvolver, se se intenciona as­
segurar o progresso da sociedade. A repressão de comportamentos que não se
adéquem a particulares diretivas éticas, próprias do momento, não deve ser
realizada, porque, sendo o caso, poderá ser suficiente a sanção social.

5. Os delitos co n tra a religião

A nossa Constituição traçou, seguramente, as coordenadas fundam en­


tais de um Estado laico e secularizado, apresentando princípios próprios e tran­
sitórios, e que é plenamente ciente de possuir um fundamento e algumas finali­
dades que são, precisamente, expressão desta sua autonomia. A independência
do poder político não implica, necessariamente, um a atitude de exclusão das
confissões religiosas. O Estado laico não é portador de um a ideologia irreligio­
sa50; ao contrário, ele admite todas as concepções religiosas, colocadas sobre
um plano de igual liberdade51. E a nossa Constituição consagra os princípios
de um Estado laico, já que a realização do princípio da igualdade é o poder
cultivar qualquer fé religiosa52.
A tutela penal da religião representa um terreno particularmente problemá­
tico em consideração também ao fato de que, no código de 1930, se oferecia uma
tutela reforçada à religião católica, elevada à classe de “religião do Estado”. Esta
matéria, que sofria a influência da particular ideologia do tempo, foi profundamente
modificada pelas numerosas intervenções da Corte constitucional que, inicialmente,
com hesitação, e, depois, com pontual adesão ao preceito constitucional da igualdade
entre as religiões conexa à liberdade de professá-las, redesenhou-a com uma sistema-
tização muito distinta da configuração originária do código penal de 193053.
O problema que surgiu em tal matéria e que foi solucionado pela Corte
constitucional concernia à possibilidade de oferecer uma tutela privilegiada à reli­
gião católica, enquanto “religião do Estado”54. Em um primeiro momento, a Corte
gadas na defesa de determinadas opiniões religiosas ou ideológicas, ao menos entre os limites nos quais não
venham a ser prejudicados importantes valores da comunidade. Por isso, o direito penal, no campo da reli­
gião, da moral e da ética, segundo a concepção moderna do Estado, não serve à salvaguarda das singulares
opiniões religiosas ou ideológicas... mas sim favorece a paz religiosa no interior da comunidade jurídica, paz
que pode ser perturbada por determinadas formas de conflitualidade religiosa ou ideológica», prevenindo «o
perigo de contínuas colisões entre os valores».
50 Conforme destaca FIANDACA, Laicità del diritto penale e secolarizzazione dei beni tutelati, in Studi in
memoria di Pietro Nuvolone, organizado por Mario Pisani, vol. I, Milano, Giuffré, 1991, p. 169.
51 Cfr. art. 8°, Constituição.
52 Para uma aprofundada análise dos delitos contra a religião, cfr. MORMANDO, I delitti contro il sentim en­
to religioso e contro lá pietà dei defunti, cit., passim.
53 Conforme destaca MORMANDO, I delitti contro il sentimento religioso e contro la pietà dei defunti,
cit., p. 45 e ss.
54 Sobre esta primeira posição da Corte constitucional, cfr. MORMANDO, I delitti contro il sentimento
religioso e contro la pietà dei defunti, cit., p. 111 e ss.

50
Laicidade e direito penal.

justificou o diverso tratamento penal reservado à religião católica sob o fundamen­


to do maior número de adeptos da crença católica e da amplitude das reações so­
ciais que surgiriam como resultado das ofensas, especificando, por outro lado, que
a maior tutela penal prevista para as ofensas ao culto católico não dizia respeito
ao “livre exercício dos cultos e a liberdade das várias crenças”55. Em um segundo
momento, todavia, a Corte voltou atrás de sua própria decisão, declarando incons­
titucional a norma que atribuía à religião católica uma “especial” proteção, “não
podendo o dado quantitativo transformar-se em dado qualitativo de maior tutela”.
Ao juízo da Corte, portanto, do princípio da liberdade de professar qualquer reli­
gião deriva que esta liberdade deve ser acompanhada de igual tutela56.
A igual liberdade - destaca-se57 - acarreta na intolerância, se não for igual
também a tutela. Liberdade é igual liberdade. Igual liberdade significa igualdade
da liberdade da lei e igualdade da liberdade na lei58.
O trabalho de adequação empreendido pela Corte constitucional conduziu,
ademais, a uma releitura do bem jurídico como categoria não mais identificada na
religião, como conjunto de dogmas, de ritos, e tampouco no sentimento religioso.
Que, posteriormente, tal sentimento possa elevar-se a um legítimo objeto de tutela, é
uma questão ainda a se verificar59.

6. A disciplina penal da pedopornografia

A disciplina penal da pedopornografia reclamou sobre si a atenção da co­


munidade científica, na medida em que o espírito que informou este texto norma-
tivo60 - em algumas de suas normas - sinaliza um significativo distanciamento
do paradigma habitual de um direito penal do fato, que pune pelas modificações
que o agente traz com o seu comportamento ao mundo exterior, cujo parâmetro
de referência essencial e insuperável é o critério da danosidade social.
Há algum tempo tem-se registrado na sociedade, como já assinalado, algu­
mas inclinações tendentes a uma reeticização do direito penal61; no caso em exame,
esta tendência inseriu-se em uma estratégia de combate na luta para um fenômeno

55 Trata-se de: Corte constitucional, sentença de 30 de novembro de 1957, n. 125, in Foro italiano, 1957, I, c.
1913; no mérito, BARBERA, il camino della laicità, cit., § 7° c.
56 Corte constitucional, sentença de 20 de novembro de 2000, n. 508, in Giur. cost., 2001, p. 335.
57 MORMANDO, i delitti contro il sentim ento religioso e contro la pietà dei defunti, cit., p. 119.
58 Conforme destaca MORMANDO, i delitti contro il sentim ento religioso e contro la pietà dei
defunti, cit., p. 114 e ss.
59 MORMANDO. i delitti contro il sentim ento religioso e contro la pietà dei defunti, cit., p. 92, duvida que
nos confrontos dos valores religiosos se possa verificar uma obrigação de tutela.
60 A lei de 03 de agosto de 1998, n. 269 e, sucessivamente, a lei de 06 de fevereiro de 2006, n. 38, disciplina­
ram a matéria, inserindo no código penal os arts. 600-bis, 600-ter, 600-quater, 600-quater.1, 600-quinquies,
600-sexies, 600-septies.
61 FIANDACA, c o n sid era zio n i in to rn o a bioetica e d iritto penale, tr a laicità e ‘p o stsecolarism o’,
cit., p. 546 e ss.

51
Silvia Larizza.

complexo de diferentes aspectos: estão juntas, assim, ao lado de tipos penais in­
criminadores que afetem, efetivamente, o direito do menor a um desenvolvimento
sadio, fisiológico da sua sexualidade (prostituição de menores)62, outras hipóteses
incriminadoras que se movem em uma órbita de tutela muito antecipada do mesmo
bem jurídico, tanto antecipada que, como no delito de mera detenção de material
pornográfico63, ainda que virtual64, é difícil encontrar uma concreta capacidade
ofensiva da conduta em relação ao bem protegido.
A tutela, portanto, oferecida por este texto normativo à integridade do
menor, do ponto de vista sexual, revela-se bastante ampla e, ao mesmo tempo,
pouco circunscrita, pretendendo tutelar não somente verdadeiras e efetivas le­
sões, mas também tudo aquilo que possa submetê-lo a um perigo mais ou menos
direto, mais ou menos distante.
No regramento sobre pedopornografia podem-se, assim, encontrar, ao
lado dos tipos penais de lesão - sagrados - , como aqueles que incriminam a
prostituição infantil ou a utilização dos menores para fins pornográficos, outros
tipos penais que punem o consumidor de produtos pedopornográficos. No delito
de detenção de material pedopornográfico se percebe um a tutela muito indireta
da liberdade sexual do menor, não se verificando um nexo de causalidade estreito
entre a conduta do sujeito e o evento danoso ou perigoso que se quer esconjurar
com a incriminação. Isto significa que será extremamente problemático verificar
que a conduta é causal em relação à exposição a perigo ou lesão do bem jurídico
ou, ainda, dito em outros termos, que a colocação em perigo ou lesão do bem é
estritamente reconduzível àquela conduta.
A incriminação construída pelo legislador bem se enquadra, também,
naquela linha de pensamento de direito penal da segurança, que desloca o foco
da incriminação do dano ao perigo e, por vezes, ao perigo de um perigo65.
Evidente a consequência: antecipando de m aneira tão significativa o lim iar da
relevância penal é inevitável que o tipo penal se colore de significados que ex­
primem um juízo em termos morais de “consumidor” de material pedoporno-
gráfico. O objeto da tutela penal desbota e perde-se nas incriminações relativas
à detenção de material pedopornográfico: da punição dos fatos concretamente
lesivos de bens passa-se, sub-repticiamente, à punição dos autores66. Pune-se
62 Cfr. art. 600-bis, C.P
63 Cfr. art. 600-quater.
64 Cfr. art. 600-quater.1.
65 DONINI, sicurezza e diritto penale, in Cass. pen., 2008, p. 3.558, fala de “ânsia preventiva” que desloca
o acento das incriminações “do evento ao perigo, dos atos preparatórios aos ajustes, da culpa ao risco, do bem
a proteger ao desvalor da ação, até a ética dos sócios, do fato ofensivo aos autores perigosos”.
66 Um resvalar em direção a um direito penal do autor encontra-se, também, em outros setores e, mais em
particular, em relação ao fenômeno social da imigração clandestina. A orientação do legislador, que se observa
neste momento na Itália, parece ser a de resolver fenômenos sociais com o uso da sanção penal. Considera-se
que prever para todos os delitos a agravante da clandestinidade (art. 61, n. 11 bis, C.P.), ou fazer introduzir o
crime de imigração clandestina (art. 10-bis D.lgs. 286/1998) poderia tranqüilizar a coletividade, insinuando o

52
Laicidade e direito penal.

o pedófilo, combate-se o pedófilo67. O Estado estigmatiza a imoralidade na


ausência de um nexo estreito entre o comportamento imoral e a lesão do bem
equilíbrio fisiopsíquico do menor.
O resvalar de um direito penal do fato a um direito penal do autor é
seguido pelo trabalho da reforma da matéria realizado pelo legislador de 2006,
que acabou introduzindo o delito de pornografia virtual68, onde, como bem dei­
xa a entender a rubrica da norma, o objeto da tutela não é um menor de carne
e osso: eliminando o requisito de que as imagens sejam obtidas da exploração
sexual dos menores, acentuou-se o moralismo do tipo penal69; neste tipo penal
não há dano, não há moléstia, não há, tampouco, um delito pressuposto, mas
somente a tentativa de educar à moralidade através do direito penal70.
Pode-se perguntar, em tal ponto, se os sentimentos difusos, o desgosto
que cada um de nós pode provar por certos atos, atitudes, comportamentos
podem ser postos na base da previsão de sanções penais71 ou, dito em outros
termos, se as reações emotivas que certos fenômenos desencadeiam atestam,
sem necessidade alguma de verificação, que está em jogo a dignidade do ho­
mem, de modo a justificar a criação de proibições penalmente sancionáveis.
Este tipo de reações de desgosto que seguramente se colhe no seio da
sociedade por si só, na ausência de dano, não pode autorizar e legitim ar a cria­
ção de um preceito penal72, tanto mais que a reprovação, que se expressa nos
confrontos de um ato, traduzir-se-á, inevitavelmente, na estigmatização dos
autores daquele ato percebido como repugnante.

incorreto convencimento que a utilização da sanção penal estancaria os fluxos migratórios.


67 CADOPPI, L’assenza delle cause di non punibilità m ette a rischio le buone intenzioni, in Guida al
diritto, 2006, n. 9, p. 40, releva: “Nunca se esteve tão perto da repressão do nu pensamento ruim, violando
patentemente um cânone da ciência penal, que ao menos nos tempos de Ulpiano caracterizava o direito penal:
cogitationis poenam nemo patitur”
68 Recolocando tal norma ao direito penal do tipo de autor, FLORA, Verso u n diritto penale del tipo
d’autore?, in Rev. it. proc. pen., 2008, pp. 568-569, que quer atingir um tipo de autor “pedófilo” inofensivo,
incriminando um vício, não um comportamento socialmente danoso.
69 Conforme destaca DONINI, “Danno” e “offesa” nela c. d. tutela penale dei sentimenti. Note su morale e sicure-
zza come beni giuridici, a margine della categoria deli “offense” di Joel Feinberg, cit., p. 1.579.
70 Nestes termos, DONINI, “Danno ” e “offesa” nela c.d. tutela penale dei sentimenti. Note su morale e scure-
zza come beni giuridici, a margine della categoria deli “offense” di Joel Feinberg, cit., p. 1.579.
71 Criticando estes sentimentos, os quais, no atual período, estão desembocando em normas irracionais e
simbólicas, FIANDACA, C onsiderazioni intorno a bioética e diritto penale, tr a laicità e postsecolaris-
mo, cit., p. 546 e ss.
72 A resposta bem articulada a esta interrogação se pode encontrar em DONINI, “D anno” e “offesa” nela
c.d. tutela penale dei sentimenti. Note su morale e sicurezza come beni giuridici, a margine della categoria
dell “offense” di Joel Feinberg, cit., p. 1.546 e ss.: “A razão pela qual não é possível a tutela direta e exclu­
siva, como objeto jurídico, dos sentimentos, tampouco dos sentimentos “morais”, constitui-se pelo fato de
que esses não são um objeto “jurídico”, e não podem sê-lo por carência de taxatividade. É de fato necessário
que o substrato humano fundamental no qual se substancia as ofensas e que toca diretamente à esfera emo­
tiva e moral das pessoas ancore-se a uma realidade socionormativa mais compreensível e gerenciável [...]” .

53
Silvia Larizza.

7. a procriação m edicam ente assistida

Uma orientação impregnada de conotações éticas se vislumbra, de lege


data, no que diz respeito ao início da vida, na lei sobre procriação medicamente
assistida73, onde já o termo da intitulação legislativa “procriação” reclama resso­
nância de sacralidade74.
A prevalente preocupação do legislador parece ter sido aquela de tutelar
o mais possivelmente o embrião75, a prescindir de seu estado de desenvolvimen­
to, razão esta que levou a proibir qualquer atividades idônea a pôr em risco o
potencial desenvolvimento.
Pontos críticos de tal lei e manifestamente programáticos dela são a
proibição de fecundação heteróloga, a proibição de diagnóstico pré-implante e
a proibição de criar um número de embriões superior ao estritamente necessário
para um único e contemporâneo implante e, de qualquer maneira, não superior
a três, ainda que em detrimento da tutela da saúde da m ãe76. Verossimilmente, o
legislador, no forjar o tecido desta lei, cedeu a instâncias provenientes das altas
esferas católicas, e esta cessão tem trazido à luz, desde logo, aspectos de con­
traste da normativa com alguns princípios constitucionais. Também neste caso,
é o Estado a ditar as regras, substituindo-se à decisão do casal, e, também, ao
saber científico do médico.
A inconstitucionalidade de tal normativa foi, recentemente, estigmatiza­
da pela Corte constitucional77.
A previsão da criação de um número de embriões não superior a três - afir­
ma a Corte constitucional - , «na ausência de todas as considerações das condições
subjetivas da norma que, de vez em vez, se submete ao procedimento de procria-
ção medicamente assistida», põe-se em contraste com o art. 3° da Constituição
«sob o duplo perfil do princípio da razoabilidade e aquele da igualdade, enquanto o
legislador reserva o mesmo tratamento a situações diferentes». Segundo o juiz das
leis, ademais, a previsão legislativa era para censurar enquanto não reconhecia ao
73 Trata-se da lei de 19 de fevereiro de 2004, n. 40: para um exame fortemente crítico, DOLCINI, Embrione,
pre-em brione, ootide: nodi interpretativi nella disciplina della procreazione m edicalm ente assistita (leg-
ge 19 febbraio 2004, n. 40), in Rev. it. dir. proc. pen., 2004, p. 440 e ss.
74 RISICATO, Dal «diritto di vivere» al «diritto di m orire». Riflessioni sul ruolo della laicità nell’esperienza
penalistica, Torino, Giappichelli, 2008, p. 09, faz notar como o legislador de 2004 teria preferido utilizar o
termo teológico “procriação” ao invés de termos científicos como “reprodução” e “fecundação”.
75 DOLCINI, Fecundazione assistita e diritto penale, Milano, Giuffré, 2008, p. 44. Nesta lei, de maneira
apodítica, se reconhece ao embrião o status de ser humano.
76 No conflito entre a saúde da mãe e a expectativa de vida do embrião vale o quanto afirmado pela Corte cons­
titucional, na sentença n. 27, de 1975: “não existe equivalência entre o direito não somente à vida, mas também
à saúde própria de quem é já pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa deve ainda tornar-se”.
77 Corte constitucional, sentença de 8 de maio de 2009, n. 151, in Rev. it. dir. proc. pen., 2009, p. 928: a respeito,
veja-se DOLCINI, em brione nel num ero “strettam ente necessario” : il bisturi della Corte constituzionale
sulla lege n. 40 del 2004, ivi, p. 950 e ss.; CASABURI, Il restyling giurisprudenziale della lege n. 40 del 2004
sulla procreazione medicalmente assistita, in Giur. mer., 2009, p. 3.002.

54
Laicidade e direito penal.

médico «a possibilidade de uma valoração, com fundamento em um mais atualiza­


do e creditado conhecimento técnico-científico, do singular caso submetido a trata­
mento, com a conseqüente individualização, vez que outra, do limite numérico de
embriões a implantar, julgado idôneo a assegurar uma séria tentativa de procriação
assistida, reduzindo ao mínimo as hipóteses de risco à saúde da mulher e do feto».
As conclusões alcançadas pela Corte, além de introduzirem uma derroga ao princí­
pio geral de proibição de crioconservação, do parágrafo 1° do artigo 14, levaram à
declaração de inconstitucionalidade também do parágrafo 3°, na parte em que não
prevê que a transferência de embriões, a realizar-se somente quando possível, deve
ser efetuada sem prejuízo da saúde da mulher.
Não obstante a sentença da Corte constitucional haver sido asperamente
atacada e se tenha tentado restringir o alcance inovador78, uma coisa emerge com
clareza: é a nossa estruturação constitucional um limite ao recurso à sanção penal
somente para comportamentos que causem dano a outros. Um direito secularizado,
laico que é aquele que não aponta à afirmação de valores absolutos, mas sim recorre
à sanção penal depois de haver efetuado uma análise de custos-benefícios entre o
custo do sofrimento ligado à execução da sanção penal e o custo social derivado da
falta de reação contra a violação. A procriação assistida não coloca um problema de
vítima, na medida em que não nos encontrarmos perante uma vida socialmente re­
levante, razão pela qual a intervenção da reação punitiva não é posta à tutela de uma
objetividade jurídica de relevo significativo.

8. As decisões de fim da vida

Uma outra vertente interessada em um a atuação de signo paternalista é


aquela das decisões de fim da vida. Faltando, até agora, na Itália um a disciplina
sobre esta matéria, os casos concretos que são apresentados alimentaram um
intenso debate que não deu, porém, um a resposta unívoca à interrogação cru­
cial e decisiva: que liberdade teria o doente de deixar-se morrer?. No entanto,
uma prim eira resposta já se pode encontrar a nível constitucional: o já citado
art. 32, parágrafo 2°, da Constituição dispõe: “Ninguém pode ser obrigado a
um determinado tratamento médico se não por disposição de lei. A lei não
pode, em nenhum caso, violar os limites impostos ao respeito da pessoa hum a­
na” . Esta importante disposição prescreve a proibição de tratamentos médicos
coativos tolhendo o direito da pessoa de refutar ou interromper as terapias
médicas. Atribui-se valor ao princípio de autodeterminação responsável. Entre
o dever do médico de salvaguardar a vida do doente e a vontade do doente
incurável, m anifestada de m aneira unívoca, de refutar qualquer terapia médica
ou, também, do mero sustento vital, deve prevalecer a vontade do doente.

78 DOLCINI. em b rio n i nel num ero “strettam ente necessario”, cit., p. 959.

55
Silvia Larizza.

Mas se a decisão deste caso é, por assim dizer, dada a partir um a leitura
da norma constitucional, mais difícil é encontrar um a solução nos casos - fre-
quentes - de doentes terminais não mais capazes de autodeterminação. Em linha
teórica, negar a estes doentes o direito de pedir a interrupção dos tratamentos
de sustento vital significa trazer um vulnus ao princípio da igualdade na medida
em que se diferencia a sua posição àquela do paciente que, sendo plenamente
capazes de se autodeterminar, recusa cuidados médicos que são indispensáveis.
Está-se discutindo no Parlamento um projeto de lei sobre “decisões de
fim da vida” (testamento biológico), que parece exprimir uma orientação de sig­
no paternalista79, prevendo, no art. 1°, quais os princípios inspiradores do regu­
lamento, tais como o da tutela da inviolabilidade e da indisponibilidade da vida
humana, também na fase terminal da existência e nas hipóteses nas quais a pes­
soa não se encontra mais em grau de entender e de querer, até a morte verificada
nos modos da lei. Não me alongo sobre disciplina projetada, mas, sintetizando
ao máximo, está prevista a possibilidade de escrever um a declaração antecipada
ao tratamento (art. 3°), na qual a pessoa exprime as suas vontades em caso de
eventual perda futura da própria capacidade de entender e de querer; é, por outro
lado, prevista a possibilidade de nominar alguém de confiança (art. 6°), que de­
verá tornar-se intérprete destas vontades.
N a declaração antecipada de tratamento é consentido que o sujeito expri-
ma uma renúncia a tratamentos julgados desproporcionais ou experimentais. Não
é consentida a inserção de disposições que integrem os tipos penais de homicídio
(art. 575), de homicídio consentido (art. 579), de instigação e auxílio ao suicídio
(art. 580, c.p.); assim como é vedado dar disposições acerca da interrupção da
alimentação e da hidratação que são consideradas formas de sustento vital e fisio-
logicamente finalizadas a aliviar os sofrimentos, razão pela qual não podem ser
objeto de decisões antecipadas (art. 3°). Mas a peculiaridade destas declarações
antecipadas é que não são vinculantes para o médico, ao qual não está capacitado a
agir de modo contrastante com as suas convicções científicas e deontológicas (art.
7°); em conclusão, o quanto escrito no testamento biológico não possui qualquer
valor vinculante para o médico.
Esboçado o quadro de referência projetado, afloram dúvidas de consti-
tucionalidade da norma que proíbe que se exprima antecipadamente a própria
vontade de não ser submetido à alimentação e hidratação artificial. Uma tal
previsão, de fato, instituindo um tratam ento obrigatório, contrasta, inexoravel­
mente, com o art. 32, parágrafo 2° da Constituição, e com o mesmo princípio
de respeito à pessoa humana que se coloca como limite inverificável à mesma
discricionariedade legislativa e que não pode não contem plar entre os seus

79 Trata-se do projeto de lei n. 2.350: “Disposições em matéria de aliança terapêutica, de consentimento infor­
mado e de declarações antecipadas de tratamento”.

56
Laicidade e direito penal.

conteúdos mínimos o respeito pela dignidade de toda pessoa e do conceito que


esta tinha da própria dignidade80.
Não obstante que o art. 32, parágrafo 2°, da Constituição, preveja o di­
reito de refutar tratamentos médicos obrigatórios, a nível projetável emerge a
figura de um Estado que se substitui ao sujeito, tomando decisões no interesse do
mesmo sujeito. O sujeito é colocado, assim, sob proteção por parte de um Estado
que decidirá por ele, perseguindo o seu (presumido) bem e interesse. A morte
se reapropia de características de sacralidade, pelas quais as decisões do mérito
dessa não pertencem mais ao singular, mas sim ao Estado.

80 Em nível constitucional, o direito à recusa dos tratamentos médicos faz parte dos direitos invioláveis da
pessoa, expresso no art. 2° da Constituição, e se conecta estreitamente ao princípio de liberdade de se autode-
terminar, reconhecido ao indivíduo pelo art. 13, da Constituição.

57
o P o p u lis m o Pen a l: R e a lid a d e Tr a n s it ó r ia ou De fin itiv a ?1

Carlos Alberto Elbert


Universidade Nacional de Buenos Aires, Argentina

1. As leis de m ercado e a exclusão social

Após o triunfo do capitalismo na Guerra Fria, o seu modelo econômi­


co expandiu-se em tempo recorde, estabelecendo uma competência econômica
sem limites, dominada por violentos fluxos financeiros de origem lícita e ilícita,
os quais sobrepujaram as legislações antimonopólicas prévias. As concentrações
financeiras privadas resultantes possuem, hoje, maior volume do que as economias
de centenas de Estados nacionais.
O efeito social deste modelo foi pavoroso, pois substituiu um a era de
estabilidade laboral por desocupação em massa, empregos precários e enfra­
quecimento dos direitos dos trabalhadores. Milhões de pessoas ficaram aban­
donadas a sua sorte, formando uma m assa de “supérfluos”, que futuramente
apenas poderão obter trabalho precário ou informal. Essa é, por certo, um a in­
segurança existencial, que afeta todos os aspectos da vida privada e social2, e,
como resultado, a porcentagem de pessoas que participam, realmente, da vida
econômica, social e cultural do planeta, em condições qualitativas próprias
deste século, é cada vez mais exígua3.
À frente destes sistemas de exclusão do trabalho e dos serviços en­
contra-se um segmento social quantitativam ente menor, que impõe ao resto
da sociedade seus padrões m orais, culturais, políticos e econôm icos, estabe­
lecendo sua própria lógica da realidade, projetando-a nas leis e usos cultu­
rais. Este processo se desenvolve de form a não sentida, especialm ente atra­
vés dos meios de comunicação.
A pretensão de m anter os nichos de privilégio dos super-ricos e
superprivilegiados em meio a um m ar de m iséria, exclusão e violência, é uma
utopia m aior do que qualquer outra j á conhecida, e se trata de um a u to p ia
negativa, indiferente em relação à sorte do planeta e de seus habitantes. Os
poderosos dançam no convés do Titanic, enquanto os passageiros de terceira
classe são adorm ecidos pelo ópio televisivo e audiovisual. Os privilegiados
pela concentração de riqueza pretendem desfrutar de seus benefícios de m a­
neira idílica e hedonista em seus iates, campos de golfe e bairros fechados,
1 Título original: “ El populismo penal; iRealidad transitória o definitiva?”. Tradução e revisão de Stephan
Doering Darcie. Revisão final do português de Raquel Lima Scalcon.
2 Ver: RIFKIN, Jeremy. “El fin del trabajo. nuevas tecnologias contra puestos de trabajo: el nacimiento
de una nueva era”. Paidós, Buenos Aires, 1997.
3 Ver: ELBERT, Carlos. “crim inología latin o am eric an a ” . Editorial Universidad, Buenos Aires, 1999, parte
segunda, capítulo III: Nuestra realidad material.

58
O populismo penal: realidade transitória ou definitiva?

desligando-se da degradação social que se m ultiplica a seus arredores; con­


sideram que seus privilégios são equiparáveis a um direito divino que lhes
haveria sido concedido por razões de inteligência, capacidade profissional ou
algumas outras virtudes que se autoatribuem . É fácil supor, assim, o tipo de
políticas de contenção que estas m inorias tendem a propiciar: as de m áxim a
neutralização e rigor possível para com aqueles que perturbam a calm a de seu
paraíso consumista.
Estas observações antecipam minha convicção de que toda tentativa de
interpretar a insegurança ou as políticas criminais sem uma prévia análise socio-
econômica, capaz de avaliar a equidade das filosofias a partir das quais se geram
as normas e suas finalidades, resultará incompleta ou equivocada.

2. O ocaso da autoridade e a legitim ação do clam or popular

A im potência atual dos Poderes públicos resulta de um complexo


processo de corrupções, m entiras eleitorais, impunidades e esvaziam ento da
política, e desem bocou em reclam os m ediante protestos populares espontâ­
neos, com m aior ou m enor violência, para interpelar publicam ente os funcio­
nários. N a Argentina, o desprezo pelas autoridades causou a crise de 2001;
desde então, instaurou-se o desconhecim ento de sua legitim idade e o direito
de com peli-las, m ediante exigências perem ptórias, a tom ar certas decisões.
Por sua vez, os adm inistradores de um Estado débil e questionado, sabedo­
res de sua incapacidade em satisfazer os reclam os urgentes da população,
desenvolveram a tática de aderir simples e ingenuam ente a ela (ou sim ular
fazê-lo), desviando a atenção para bodes expiatórios, para exibir um a suposta
“com preensão e solidariedade para com o sentir cidadão” . Isto é, nitidam en­
te, o que ocorreu no caso dos fam iliares das vitim as do incêndio da discoteca
“Crom anón”, na Argentina4.
Lamentavelmente, a m aioria destas operações de autolegitimação dos
governos, mediante solidariedades repentinas e medidas improvisadas, suce­
deram dentro do campo da política criminal. Estes fenômenos, ocorridos em
plena decadência dos valores humanísticos e solidários de algumas décadas,
dão lugar ao “senso comum ” e seus reclamos extravagantes, irracionais e cru­
éis para derrotar o m al absoluto, que se concentraria nos crimes contra bens
e pessoas. Este processo de ação e reação foi chamado por algum autor como
“populismo penal”5 e está acontecendo em todo o mundo. Vejamos, com algum
detimento, os mecanismos que alimentam tal fenômeno.

4 ELBERT, Carlos y otros. “Inseguridad, víctimas y victimarios, A rgentina 2001/2007” . Editorial B. de F.,
Montevideo- Buenos Aires, 2007, capítulo V.
5 PRATT, John. “ Penal Populism ” . Londres y Nueva York: Routledge, 2007.

59
Carlos Alberto Elbert.

3. A insegurança como tem or do delito

As profundas mudanças sociais e culturais já assinaladas desencadearam


o que hoje se denomina “sociedade de risco” ou “culturas de risco”6. Por certo,
contra muitos destes perigos, como os desastres naturais, guerras ou acidentes de
todo tipo, não existe possibilidade de cobertura total. Não obstante, a demanda
geral de segurança frente à delinquência crê ser possível alcançar um “perfeito
grau” de proteção contra essa. Assim, os teóricos norteamericanos da tolerância
zero afirmavam “poder ganhar a guerra contra o delito” com o mesmo entusias­
mo que Lombroso prometia a cura médica do delinquente patológico.
N a realidade, o clamor contra a insegurança parcializa o conceito, ocul­
tando uma boa parte dos fenômenos que implica. O uso unilateral da “insegu­
rança” consagrou o sentimento geral de que o único fator que impede de viver
normalmente são os delinquentes, esquecendo a destruição das redes sociais, a
decadência das classes médias, o relaxamento dos vínculos solidários, familia­
res, sociais, políticos e sindicais, o caos cultural, etc. Casualmente, estas circuns­
tâncias contribuem em medida substancial para o aumento real e psicológico da
vulnerabilidade, solidão e desamparo de milhões de pessoas. Nestas condições,
a hipótese do estranho que vem a agredir torna-se um pesadelo reforçado. A
insegurança frente ao delito possui uma natureza essencialmente psicológica,
interior aos indivíduos, muitas vezes sem confirmação estatística.
Deve-se reconhecer, por certo, que a vitimização de membros de classes
médias e altas cresceu, e que alguns casos - como o dos sequestros extorsivos -
geraram um alarme compreensível entre os setores sociais favorecidos, radicados
em locais com os melhores níveis de proteção privada. Isso explica a descomunal
repercussão midiática que alcançam os roubos em bairros ricos, em que pese sua
escassa representatividade estatística, devido à insegurança psicológica que desperta
nas classes altas. O certo é que, ante o aumento do risco delitivo (seja este imaginá­
rio, real ou exagerado) os níveis de tolerância diminuíram, instaurando um temor
difuso em relação aos estranhos e diferentes; em especial, em relação aos portadores
de estereótipos de aparência ou raciais. Em meio ao anonimato das grandes cidades,
os reflexos de desconfiança chegam ao paroxismo, procurando impedir a circulação
de indesejáveis ou presumidos ladrões. De outro lado, pode-se verificar (também
a nível internacional) um crescimento das denúncias e taxas de delitos registrados
contra todos os setores sociais, predominantemente em matéria de delitos contra a
propriedade e contra as pessoas, com maior emprego de armas e de violência7.

6 Ulrich Beck quem estabeleceu o conceito, em seu livro “Risikogesellschaft. A u f dem Weg in eine andere
M oderne”. (Sociedad de riesgo, hacia una nueva modernidad). Frankfurt a. M., Editorial Suhrkamp Verlag,
1986 y Paidós, Barcelona 1998. Ver também ALLER, Germán. “ co-responsabilidad social, sociedad del
riesgo y Derecho penal del enemigo” . Carlos Álvarez Editor: Montevideo, 2006.
7 Ver estatísticas e gráficos em: CIAFARDINI, Mariano. “Delito urbano en la A rgentina” . Ariel, Buenos

60
O populismo penal: realidade transitória ou definitiva?

A possibilidade potencial de ser vítima de um roubo (por possuir bens


caros, como automóveis, eletrodomésticos, cartões de crédito, etc.) consagrou o
temor do delito como o medo específico das classes integradas, refletindo-se mui­
tas vezes, inclusive, nos setores excluídos. Por sua vez, os meios de comunicação
exacerbam esses sentimentos, propalando constantemente que a segurança das
posses e da vida de todos está em perigo, difundindo hora a hora a lista de delitos
impactantes praticados. Canalizam-se, assim, através do temor para com os outros,
numerosas insatisfações coletivas, resumindo-as em uma só, obsessiva, que resulta
em projeções vingativas e histéricas, dispostas a aplaudir qualquer excesso, justifi­
cando-o através da insuportável condição de cordeiros indefesos, a quem o Estado
não oferece proteção8. Entretanto, não deixa de ser paradoxal que os promotores
entusiastas da demolição neoliberal do Estado e suas empresas, sejam aqueles que
agora reivindicam, desesperados, um Estado forte que lhes dê proteção oficial.
Por sua tematização intensa e permanente, o “fator insegurança” tornou-
se prioridade nas discussões dos candidatos a cargos públicos, monopolizando
as promessas eleitorais e o discurso de certos comunicadores com forte presença
nos meios de comunicação. Tão grande é o medo do delito que, em algumas
pesquisas de opinião, uma porcentagem elevada de cidadãos das classes médias
privilegia a segurança em comparação à liberdade ou à democracia9.

4. A m odernidade co n tra o senso comum

As mudanças sociais fizeram com que a riqueza seja considerada hoje


quase um valor supremo, a única via rápida para alcançar um a vida agradável,
hedonista e superficial. Este estilo de vida prático e pouco propenso ao sacrifí­
cio (light) generalizou uma convicção simplista, segundo a qual os problemas
sociais devem ser resolvidos rápida e pragmaticamente para que “deixem de
perturbar” o substancial, ou seja, a economia e o prazer. Pretende-se que as m u­
danças necessárias ocorram como por meio de um controle remoto, substituindo
automaticamente a realidade desagradável por programas mais divertidos.
Uma das razões do êxito do discurso peremptório dos setores integra­
dos com o poder reside na aptidão para apresentar suas aflições como proble­
mas com uns ao conjunto da sociedade, como se todos padecessem de iguais
limitações. Nessa ilusão de pertença genérica se instalam vários setores de
classe média, que se identificam com o tem or dos mais ricos. O fenômeno
Blumberg foi, na Argentina, um exemplo notável da capacidade dos setores

Aires, 2006, capítulo III, e SAÍN, Marcelo. “Política, policía y delito” . Capital Intelectual, Buenos Aires,
2004, capítulo V.
8 Ver “Inseguridad víctim asy...” Obra citada.
9 A análise mais completa e clara destes fenômenos nas sociedades de primeiro mundo pode ser ampliada em:
GARLAND, David, “La cultura del control” . Gedisa, Barcelona, 2005.

61
Carlos Alberto Elbert.

empresariais e midiáticos, para construir um protótipo próprio de pai e vítima


“decente”, elevando-o à categoria messiânica de opositor supraconstitucional
e de vingador eficiente e prático10. Tão eficaz foi a pressão instrumentada pelos
meios de comunicação através de Blumberg, que este personagem sem prepa­
ração se deu ao luxo de intimar os três Poderes do Estado, obtendo em tempo
recorde aberrações como o Plano Nacional de Segurança e diversas leis repres­
sivas, sancionadas de pronto pelo Congresso, a seu gosto e paladar.
Em outro trabalho documentei em detalhes o modo através do qual certos
setores manipularam as reivindicações de 2004-2005 na Argentina, instaurando
o “populismo penal”, desencadeado pelo dramatismo de casos que tornaram per­
meável a sociedade - emocionalmente - para as campanhas de Lei e Ordem11.
O populismo penal é uma atitude radicalmente pragmática ante os pro­
blemas político-criminais, os quais concebe como fáceis de resolver, mediante
uma rígida vontade repressiva. Esses ímpetos enfurecidos afastam-se dos princí­
pios constitucionais interpretando as garantias processuais como “concessões”,
para que os delinquentes obtenham impunidade. Assim, instalou-se, como dado
de senso comum do imaginário social, que os juristas (em especial os teóricos do
direito penal e os juízes) são pessoas deslumbradas pela teoria, que “não compre­
endem o sofrimento cotidiano das pessoas simples” . Segundo essa visão, a ética
humanista não deveria contar na luta contra um inimigo perverso, que ameaça a
tranquilidade pública. Estes pressupostos levam a identificar o delito como um
estado de guerra, no qual os valores de sobrevivência justificam excessos como
os que se infligem ao inimigo em qualquer situação bélica.
A força dos reclamos por mais e mais duro controle social foi capaz de
causar um retrocesso, inclusive em alguns teóricos do direito, que jogueteiam
com a teoria do Direito Penal do Inimigo. Esta resposta de setores ilustrados,
dramaticamente vinculada à ideologia nazista, tende a satisfazer - a partir do
campo acadêmico - o clamor popular, mediante construções jurídicas abstratas,
que justifiquem os “efeitos colaterais” da “guerra contra o crime”12.
O certo é que, na teoria e na prática, o populismo penal está ganhando
amplamente a batalha contra os defensores do Estado de Direito. Suas con­
quistas foram o constante endurecimento das leis processuais, a introdução de
agravantes nos tipos penais, a permanente criação de novos delitos e qualifica-
doras, a superlotação dos presídios, os esforços para copiar recursos do arsenal
estadounidense (tolerância zero, “lei dos três golpes”, estigmatização pública

10 Ver “Inseguridad víctim asy...”. Obra citada, capítulos II, III e IV.
11 Ver “Inseguridad víctimas y...”. Obra citada, capítulo III.
12 Ver ZAFFARONI. “La globalización y las actuales orientaciones....” artigo citado, Pág. 203; JAKOBS,
Günther. Cancio Meliá, Manuel, “Derecho penal del enemigo”. Hammurabi, Buenos Aires, 2005; GERMÁN,
Aller. “co-responsabilidad.... ”obra citada, e “Derecho penal del enemigo”, dois tomos, coordenados por Manuel
Cancio Meliá e Carlos Gómez-Jara Diez, Editorial B. de F., Buenos Aires-Montevideo, 2006.

62
O populismo penal: realidade transitória ou definitiva?

de delinquentes sexuais), a complacência para com a tortura, a concessão de


m aior discricionariedade à polícia, a estigmatização dos juízes “garantistas”,
etc. Este conjunto de vigor legislativo representa um a contínua deterioração
dos princípios do direito penal liberal. A “obra populista” conseguiu, ademais,
ridicularizar, através dos meios de comunicação, grandes teóricos especialis­
tas, desbancando-os através de personagens de passado obscuro e “formadores
de opinião”, que contam com popularidade e difusão massiva. Em qualquer
programa, de rádio ou de televisão, os verdadeiros especialistas em política
criminal são agredidos, provocados inoportunamente, forçados a replicar em
segundos, interrompidos por interlocutores inesperados e submetidos a arti­
fícios diversos, até o ponto de aparentarem ser, ao público, tontos desprepa­
rados, os quais são facilmente expostos ao ridículo por seus entrevistadores,
provando a facilidade de eliminar o delito sem a necessidade de conhecimentos
complexos e tampouco de tanto apego às leis.
Em suma, a ideologia do populism o penal está solidamente instalada
na Argentina, especialm ente no senso comum, nos meios de comunicação,
nos dirigentes políticos e, inclusive, em vastos setores acadêm icos. Como
pode ocorrer isso, após longas décadas de pacífica aceitação das regras de
um direito penal m oderno? Entendo que o terreno propício foi abandonado
pelas drásticas m udanças nas condições de existência e nos valores culturais
de nossa sociedade. A ideologia populista nasce da piora generalizada da
qualidade de vida, da crise de legitim idade das autoridades e da necessidade
dessas de fugir para a frente, apelando para m edidas inconstitucionais para
capitalizar os reclam os diretos13.

5. A s transform ações culturais e o populism o penal da sociedade

A m udança global desmantelou em pouco tempo os valores e padrões


precedentes de comportamento social e interpretação da realidade. Como con-
sequência, um a anom ia massiva alterou as regras de jogo estabelecidas pela
Modernidade durante tanto tempo. O enfraquecimento dos vínculos solidá­
rios embaçou a identidade das classes sociais e desacreditou todas as classes
de autoridades representativas, impotentes para solucionar os desafios deste
novo cenário. Hoje, a m aioria sente a insignificância do subsistir em um siste­
m a anônimo e indiferente, no qual o único reconhecimento é a autosatisfação.
Também se pode advertir para a deterioração cultural que afeta a maioria da
sociedade, e a gestação de um imaginário atravessado por fatores irracionais,
que perturbam a memória histórica , mesclando dados diversos, combinando-os
em um discurso errático, contraditório e antidemocrático. Ocorre que estamos

13 Ver “Inseguridad víctimasy... “Obra citada, pág. 131.

63
Carlos Alberto Elbert.

diante do homem global, que deixou de ser cidadão, e hoje apenas possui re­
levância mediante o seu poder aquisitivo, sua capacidade de consumo e, even­
tualmente, seu protagonismo público. O contexto do homem global possui um
devir caótico, sem valores gerais, referências culturais fixas, nem recursos afe­
tivos que o orientem. Confunde o uso do celular com a comunicação humana
e seus conhecimentos precedentes resultam obsoletos e inaplicáveis para com ­
preender sua crise de identidade14.
Um dado fundamental neste ponto é o esgotamento do Estado como ins­
tituição “fornecedora de sentido” aos fatos sociais, destruindo as subjetividades
que aquelas instituições estabeleciam. Dito em linguagem jurídica, os indivíduos
já não se sentem parte das operações institucionais de que antes participavam.
O grave é que esta crise não consiste na passagem de um modelo
esgotado a um outro superador. Pelo contrário, a crise global oferece um
devir errático, sem regras fixas nem m odelos substitutivos; há um a totalidade
descom posta, um processo de desintegração social, sem que se vislum bre
nenhum a form a de recom posição razoavelm ente previsível15.
Em consequência, nós investigadores devemos interpretar um homem
cético, frustrado e perplexo, com escassa ou nula tolerância para com os demais,
que não entende os parâmetros que regulam o devir de sua existência, em rela­
ção à qual, não obstante, se resigna sem convicções, como uma fatalidade. De
nossa parte, nós, teóricos, devemos admitir que, pertencendo ao mundo integra­
do, tendemos a conservar valores próximos às raízes teóricas nas quais fomos
formados, enquanto que os excluídos (a maioria) perdem e esquecem suas raízes
culturais. Este é o abismo que media entre protagonistas sociais reciprocamente
alienados, que vivem em universos culturais contíguos, porém incompatíveis. A
distância social é rígida e não se vale de argumentos, mas sim de imagens, que
exibem o outro como um marciano.
De outro lado, a grande maioria das pessoas estão submetidas ao que
Sartori chama de um processo de estupidização global, promovido essencial­
mente desde a televisão, que substituiu o ato de pensar pelo de ver, removendo
qualquer parâmetro cultural precedente, apagando os limites entre o verdadeiro
e o falso, o ético e o imoral; mas, fundamentalmente, entre o real e o virtual,
mediante um constante consumo de passatempos16.
O primeiro problem a que temos pela frente consiste, assim - nada m e­
nos - em inventar um a lógica capaz de atribuir sentido a estas manifestações
sociais. Tudo indica, desde logo, que a ideia de contrato social deveria ser

14 Autores varios (Grupo Doce): “Del fragmento a la situación” (Notas sobre la subjetividad contemporânea),
Gráfica México, Buenos Aires, 2001, e a minha conferência “Hacia una nueva política criminal ”, no “VEncuentro
argentino de Profesores de Derecho Penal y Jornadas argentinas de Derecho P enal”, Tucumán, Outubro de 2005.
15 LEWKOWICZ, Ignacio. “Pensar sin Estado” . Paidós, Buenos Aires, 2004.
16 SARTORI, Giovanni. “Hom o videns. La sociedad teledirigida” . Taurus, Buenos Aires, 1998.

64
O populismo penal: realidade transitória ou definitiva?

substituída por algo muito mais flexível e amorfo, ou, se preferirem, “líquido”,
capaz de reunir-nos na diversidade fragmentada e hostil de hoje17.

6. o fracasso do discurso penal liberal

A racionalidade Moderna desembocou em um espaço aberto, de “regras


flexíveis”18, onde os Mercados aplicam a lei da selva. Há autores, como Haber-
mas e Giddens, que defendem hoje a possibilidade de recuperar o ideário da
Modernidade, atualizando-o para colocá-lo a serviço da mudança social. E eu
acrescento que o desafio consiste em imaginar o novo pacto social que torne isso
possível, em meio às exclusões do presente e do sistema econômico que as gera.
Neste momento, o estado das coisas implantado pelo populismo penal reduz as
conquistas teóricas do Iluminismo à categoria do decorativo. Por isso, considero
adequado falar de um a Modernidade posterior, que já não consegue adaptar seu
discurso nem seu repertório de recursos institucionais às mudanças e discursos
em voga, imunes a todo argumento que pretenda limitar os impulsos punitivos
fulminantes e ilimitados que exige a sociedade.
No campo acadêmico e teórico do direito penal, observo, com temor,
um a paralisia que impede a reelaboração do sistema conforme as mudanças
da realidade, com poucas exceções. Além disso, todas as declarações públicas
de decanos, professores e tratadistas, “em defesa do direito penal liberal e dos
princípios que os sustentam”, não produzem efeito algum na sociedade e nem
nos poderes Públicos. No âmbito acadêmico predomina, assim, a tendência
ingênua, conformista, de reafirmar entre pares, colegas e amigos os velhos
juram entos de fidelidade às normas, porém sem promover elos de comunica­
ção eficazes e ativos com a comunidade real de hoje. Deveria partir-se de uma
autocrítica, já que não é possível que todos estejam equivocados, exceto nós.
Depois, o principal objetivo deveria ser o cultural, tratando de obter mudanças
na percepção social de nossos cidadãos. Por ora, pareceria que nosso esfor­
ço se lim itaria a assegurar que, das classes das faculdades formem-se alguns
poucos jovens convencidos de nossa crença, para que a reproduzam no futuro.
Penso que tal esforço é insuficiente. Nossa decisão de reivindicar “um retorno
a um a proteção vigorosa às garantias do direito penal liberal” soa comovedora
e gratificante, porém não se estudam os caminhos práticos para alcançar esse
objetivo, enquanto o discurso da intolerância continua a se expandir.

17 Em sua obra citada “l a razón ausente”, (apêndice), Julio Virgolini propõe, a fim de restituir legitimidade
ao poder político, a incorporação de “hándicaps de ciudadanía” (indicadores do grau de exclusão) para especi­
ficar o grau de privação de cidadania. Faz isso em referência à responsabilidade penal, porém não deixa de ser
uma ideia interessante, para imaginar novos modelos de pacto social.
18 A este estado das coisas havia se antecipado Groucho Marx, quando disse: “Estos son mis principios, pero si no
les gustan, tengo otros”

65
Carlos Alberto Elbert.

Por mais doloroso que seja reconhecê-lo, chegaremos a situações ainda


mais absurdas do que as já vividas. Vale a pena perguntar-se, então: Como rom­
per o isolamento insular do discurso garantista? A intelectualidade progressista
do campo do direito penal parte de um a análise da realidade sociopolítica atual
ou simplesmente de um estado de indignação moral frente aos extremistas que
dirigem a política criminal? Quais deveriam ser os objetivos imediatos a abor­
dar? Tratarei de responder no parágrafo seguinte.

7. É possível n eu tralizar o populism o penal?

Chegado ao ponto final, apresento a pergunta chave. Seguramente todos


os leitores gostariam de obter a resposta, se possível afirmativa. Lamentavelmen­
te, tal resposta não existe, e, para completar, depende de um universo de fatores
que devem ser investigados em profundidade, tarefa que não se encontra nem
medianamente realizada.
Os indicadores da criminalidade revelam dados alarmantes, não apenas
pelo aumento dos delitos convencionais, mas também pelo aumento das m o­
dalidades de grande magnitude, como o tráfico de drogas, armas, pessoas e a
lavagem de dinheiro, para citar os mais notáveis. Tudo isso indica que estamos
frente a uma piora global do panorama delitivo, que evidencia a ligação entre a
deterioração social e seus efeitos degradantes. A falta de expectativas e chances
de milhões de pessoas transformou-as em “mão de obra desocupada”, da qual se
nutrem as organizações delitivas de toda classe. Mas, além disso, a globalização
gerou um fenômeno ainda mais complexo do que uma mera sofisticação da cri­
minalidade comum, porque diversas atividades que antes foram delitos contra a
economia nacional passaram a ser condutas lícitas na economia mundial. A m ag­
nitude crescente do delito econômico tende a tomar conta da economia mundial
e a corrupção convencional fica ofuscada pela macroeconômica, sem que exista
um poder regulador capaz de controlar a massa de transações nebulosas em mo-
vimento19. Hoje se sustenta, por exemplo, que os valores que o negócio da droga
faz circular ocupam o segundo lugar no mundo, atrás dos lucros gerados pela
comercialização de petróleo.
E se o mundo dos grandes negócios e o do poder são governados sem
valores, por que haveria de ser governado conforme os nossos valores o mundo
dos excluídos?
Temos o dever moral de conceber um novo Pacto Social, mas que inclua
verdadeiramente os seus aderentes, respeitando diferenças, porém, especialmen­
te, tornando possível que todos possam levar uma vida basicamente satisfeita. É

19 ZAFFARONI, Eugenio: “l a globalización y las actuales orientaciones de la política crim inal”, no livro
“E n torno de la cuestiónpenal ”, Editorial B. de F., Buenos Aires, 2005, obra citada, pág. 190 e s.s.

66
O populismo penal: realidade transitória ou definitiva?

o momento de deixar de lado as utopias nunca realizadas do Iluminismo, como a


de que “todos os cidadãos são iguais perante a lei”, e partir de uma aceitação re­
alista dos abismos de modelos sociais em que os benefícios e o progresso apenas
podem ser desfrutados por uma minoria ínfima.
Também é preciso admitir que as hierarquias culturais do século XX
estão obsoletas e haverá que iniciar um paciente resgate dos valores positivos da
história da humanidade para adequá-los ao momento atual.
Recordemos, por último, que, ironicamente, a cultura pós-moderna
compartilha com o direito penal liberal um princípio básico, qual seja, o do livre
arbítrio : cada um é responsável exclusivo por seus atos e fracassos. Com esse
argumento, o sistema econômico justifica a exclusão social e os penalistas as
condenações de ladrões de galinhas, regra que deixa a salvo os delinquentes fi­
nanceiros, justificados por “emergências econômicas” . As sociedades globais do
capitalismo selvagem não são justas nem igualitárias, e isso não pode senão afe­
tar o direito penal e os sistemas de controle. Em razão disso, o populismo penal
colocou de lado o direito penal liberal em benefício dos interesses dominantes,
que mais se preocupam com o êxito de seus negócios do que com a equidade das
divisões. Será preciso estudar detidamente a essência das reivindicações de Lei
e Ordem para procurar respostas penais eficazes, que não impliquem retroceder
teoricamente ao medievo ou ao nacional-socialismo.
A tarefa cultural compreende, em suma, não apenas a busca de meios
idôneos para fazer a sociedade compreender a importância de muitos valores no­
táveis da Modernidade, mas também a reformulação do sistema penal a partir do
plano da realidade ao qual será destinado. Existe, ao menos, uma circunstância
favorável: o populismo penal é um a miragem que perde força à medida que se re­
pete, e termina sendo, indefectivelmente, o modelo de controle que os poderosos
impõem aos excluídos20. É o controle social do status-quo, e, em algum ponto,
a sociedade deixará de crer que o aumento das penas traz consigo a segurança.
Nesse momento, os penalistas e criminólogos devem estar preparados para uma
grande batalha cultural, que deve partir de uma nova concepção do Pacto Social.
É preciso, em síntese, romper o limite das ilustres proclamações ins­
titucionais e do trabalho nas Comissões de Reforma, como se as melhoras
técnico-legais fossem o único caminho a transitar. Deverá se produzir ideias
eficientes e inovadoras que permitam o resgate das conquistas humanistas mais
importantes, porém acompanhadas do que hoje carecem, e que tiveram ao m o­
mento de serem consagradas: a confiança da sociedade, entendida não como
abstração funcional, mas como convergência para um a distribuição mais justa
dos bens e males que devemos compartilhar como comunidade.

20 AGAMBEN, Giorgio. “Estado de excepción”, Adriana Hidalgo Editora, Buenos Aires, 2005, capítulo 1, pág.23.

67
T em pos M o d e r n o s: o r to d o x ia e H e te r o d o x ia no Dir e ito Pe n a l1

Prof. Dr. Thomas Rotsch,


Universidade de Augsburg

1. Introdução

O direito, sobretudo o direito penal, é um companheiro do espírito do


nosso tempo.2 Tempos “modernos” exigem um a ordem jurídica moderna. Em
consequência disso, também no direito penal - já há anos e, na verdade, frequen­
temente em tons alarmantes - evoca-se o “moderno”: o direito penal “moderno”
está em todas as bocas. Assim, recentemente, na Conferência de Direito Penal
em Hamburgo, Andreas Hoyer mais um a vez interligou “o aumento do risco e
o desenvolvimento tecnológico”, e o tema principal de sua conferência também
enfatizou a evidente necessidade de um a orientação em tempos de insegurança.
Espero, com a m inha exposição, poder dar uma modesta contribuição
a respeito. Nesse sentido, pretendo analisar, primeiramente, o desenvolvimento
do direito penal na atualidade (logo em seguida, infra II.), para, por conseguinte,
apresentar as perspectivas e tendências do, no melhor sentido da palavra, direito
penal “moderno” no terceiro milênio (infra III.). A exposição encerrará com um
breve resumo e um panorama (infra IV.).

2. Tem pos m o d e rn o s, d ire ito p e n a l m o d e rn o - u m a a p ro x im a ç ã o

A atual situação do direito penal é consequência de sua banal relação


de acessoriedade com o mundo real: em uma sociedade altamente complexa, o
direito, por sua vez, torna-se altamente complexo. Em uma sociedade que não
encontra mais tempo para assegurar os seus próprios valores, o direito se conver­
te em fator de insegurança.
Com efeito, há m uito se tem realizado um a divisão do direito penal,
cujas consequências não devem ser subestimadas. A seguir procurarei escla­
recer estes fenôm enos, de form a exem plificativa (infra 1.), antes de discutir a
m udança de paradigm a que, com isso, im plica na - conscientem ente selecio­
nada - divisão jurídica do direito penal econômico (infra 2.). N a sequência
devem ser exam inadas detalhadam ente, por exemplo, as causas e consequên-
cias, as possibilidades e os perigos deste desenvolvim ento, com o divisionis-
mo no direito pen a l (infra 3).

1 Título original: “M oderne Zeiten: Orthodoxie und Heterodoxie im Strafrecht”. Tradução e revisão de
Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Revisão final do português de Raquel Lima Scalcon.
2 Sobre o conceito de espírito do tempo, compare, mais recentemente, Rotsch, ZIS 2008, 1 (7).

68
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

3. A divisão do direito penal - exem plificação da dialética do direito penal

Em um trabalho publicado no ano de 2007, eu já havia m encionado


um a “diversificação” da dogm ática penal alem ã.3 Essa dissolução e desa­
gregação das tradicionais estruturas dogmáticas têm como m otivo, entre
outros, a divisão do direito penal. Com isso, a desagregação progressiva do
direito penal em acessoriedade à “hipertrofia do ser” considera-se elem en­
to heterógeno singular.4 Com um olhar mais m inucioso pode-se facilmente
descobrir algum as das tendências de divisionism o. Elas vão além do direito
penal alem ão e traçam um desenvolvim ento geral - internacional. Aliás, sem
seguir um a ordem m ais aprofundada pode-se m encionar, por exemplo, as
seguintes divisões do direito penal:

3.1. a dialética do direito penal do inim igo e do cidadão

Um exemplo discutido atualmente e extremamente controvertido é a


separação efetuada, pelo menos conceitualmente, por Jakobs, entre um direi­
to penal do inimigo e um direito penal do cidadão.5 Por trás desta distinção,
considerada por muitos como perigosa, encontra-se, em todo caso, uma ideia
que é ratificável. Talvez novas situações de ameaça - como, por exemplo, o
atentado terrorista perpetrado por um autor suicida e insuscetível de qualquer
reação - exijam novos e diferentes tipos de reações jurídico-penais. Se isto
deve implicar na supressão ao autor do atentado terrorista, das garantias de um
ordenamento processual penal liberal-democrático é um a outra questão. Mas o
certo é que a discussão acerca de um direito penal do cidadão, por um lado, e
de um direito penal do inimigo, por outro, constitui um exemplo paradigmático
da tendência ao divisionismo do direito penal.

3.2. A dialética do “direito penal europeu” e nacional

H á até poucos anos na Europa nós podíam os nos lim itar - tanto na
pesquisa quanto na doutrina - em bora de modo consciente, à ocupação com o
nosso próprio ordenam ento jurídico-penal nacional. Estes tem pos acabaram.
N a Europa, o “direito penal europeu” existente obteve um significado essen­
cialmente dram ático.6 Todavia, para a integração europeia do direito penal na
3 Rotsch, ZIS 2007, 260.
4 Compare, com detalhes, Rotsch, ZIS 2007, 260 (265).
5 Compare, por exemplo, Jakobs, ZStW 97 (1985), 751; o mesmo, in: Eser/Hassemer/Burkhardt (Hrsg.), Die
deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende, 2000, p. 47 e ss.; o mesmo, HRRS 2004, 88; o
mesmo, HRRS 2006, 289; Bung, HRRS 2006, 63; Demetrio Crespo, ZIS 2006, 413 (dt.), 428 (span.); Sinn, ZIS
2006, 107; Paeffgen, Amelung-FS, 2009, p. 81.
6 Compare Satzger, Internationales und Europaisches Strafrecht, 2009, cujo tratado recentemente alcan­

69
Thomas Rotsch.

direção de um a unificação europeia plena, faltou estabelecer um fundam ento


comum, uniform e e consistente. O Corpus Juris, na concepção de Florenz7,
lim ita-se a norm atizar as “regras penais para a proteção dos interesses fi­
nanceiros da União Europeia” . Além de um a regulam entação altamente ru­
dim entar de um direito penal (meram ente) econôm ico europeu realizou-se
um a padronização tão só reflexiva de um a Parte G eral.8 Em preendim entos
científicos como aqueles de Tiedemann9 e Schünem ann10 - com todo o seu
m érito - continuam sendo rudim entares.
Sobre o sentido e as possibilidades de se elaborar um código penal
(modelo) europeu único, é algo que se pode discutir.11 Mas quanto a isso só é
certo que nenhum código penal nacional existente é capaz de proporcionar a
base para tal código penal europeu.12Ao entrar em vigência, o tratado de Lisboa
exerce, de forma decisiva, uma influência direta da União Europeia sobre o di­
reito penal nacional dos Estados. Tal caminho o direito penal europeu também
seguirá: surgirá um ordenamento paralelo que seguirá as suas próprias regras.13

3.3. A dialética do direito penal nacional e internacional

O desenvolvimento no direito penal internacional é conhecido: há até


poucas décadas atrás considerado plenamente impossível, com o TPI em Haia
e o estabelecimento de uma Corte Penal Internacional permanente, o direito pe­
nal internacional desenvolveu-se com extrema velocidade em uma divisão au­
tônoma do direito penal. Todavia sucumbe a tentativa de querer compreender
as regras do Estatuto de Roma isoladamente diante do pano de fundo da dog­
mática jurídico-penal nacional, isso na verdade rapidamente fracassará. Assim,
por exemplo, a definição de dolo do art. 30 do Estatuto de Roma diante do pano
de fundo da dogmática alemã do dolo é simplesmente incompreensível.14 E no
art.25 do Estatuto de Roma, trata-se, de fato, de um sistema diferenciado de

çou a terceira edição.


7 Delmas-Marty/Vervaele (Hrsg.), La mise en oeuvre du Corpus Juris dans les Etats Membres (2000), Band I.
8 Para uma crítica, compare Rotsch, Eckert-GS, 714.
9 Tiedemann, in: Kreuzer/Scheuing/Sieber (Hrsg.), Die Europaisierung der mitgliedstaatlichen Rechtsordnungen
in der Europaischen Union, 1997, 134; o mesmo, in: Eser (Hrsg.), Festschrift für Haruo Nishihara zum 70. Ge-
burtstag, 1998, 496; o mesmo, Eser (Hrsg.), Wirtschaftsstrafrecht in der Europaischen Union, Rechtsdogmatik
- Rechtsvergleich - Rechtspolitik, Freiburg-Symposium, 2002, 3.
10 Schünemann, in: Eser (Hrsg.), Ein Gesamtkonzept für die europaische Strafrechtspflege, 2006.
11 Compare, por um lado, Sieber, ZStW 103 (1991), 957; o mesmo, JZ 1997, 369; o mesmo, Geerds-FS, S 1995,
p. 113; o mesmo, ZStW 121 (2009), 1; Rotsch, Eckert-GS, 2008, 711; por outro lado, Rosenau, ZIS 2008, 9.
12 Sieber, JZ 1997, 379. Igualmente Rotsch, Eckert-GS, p. 723.
13 Compare, por exemplo, as novas diretrizes sobre o direito penal ambiental, ABl.EU Nr. L v. 6.12.2008, S.
28; sobre isso Zimmermann, ZRP 2009, 74. A interpretação do tipo penal de fraude orientada pelo exemplo do
consumidor sensato e informado no plano europeu também corresponde à dogmática alemã do delito de fraude,
compare Satzger, Internationales und Europaisches Strafrecht, 3. Aufl. 2009, § 8 n. de margem 113.
14 Compare Satzger, Internationales und Europaisches Strafrecht, § 14 n. de margem. 21 e ss.

70
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

formas de participação que, por lembrar, de forma surpreendente, o regulamento


do §25 do Código Penal alemão, ainda não obteve acordo.15
O fato de que estes desenvolvimentos não podem ser deixados de lado
no âmbito do direito nacional, é algo evidente. Por outro lado, em outros âmbi­
tos eles estão em uma relação de tensão menos reduzida que com a dogmática
do direito penal nacional. E também eles são paradigmáticos no divisionismo
do direito penal.

3.4. A dialética do direito penal nuclear e do direito penal econômico

Particularmente claro é o divisionismo do direito penal no âmbito do


direito penal econômico. Deixemos de lado as dificuldades de determinação con-
ceitual acerca do que seja direito penal econômico.16 Deve-se considerar a seguir
o direito penal econômico tão só no sentido de um a punibilidade no marco da
criminalidade econômica, suscetível de pena privativa de liberdade ou multa.
aa) Com isso, partindo-se da responsabilidade penal individual originá­
ria, deve-se distinguir: naturalmente há casos nos quais também pode ser atri­
buída a responsabilidade individual de forma simples por uma conduta penal e
economicamente relevante - e com base na dogmática tradicional. Aquele que,
em um caso de eliminação não autorizada de resíduos, “abre o registro”, pode
ser punido, sem maiores problemas, como autor direto de poluição das águas em
conformidade com o § 324, alínea 1 e § 25, alínea 1, 1 do Código Penal alemão.
Porém, estes casos não estão nem no alvo do público nem no foco das autori­
dades de persecução penal. Estas estão muito mais interessadas em poder pedir
contas ao “verdadeiro responsável” . Nas instituições financeiras é o superior, o
membro da direção ou do conselho de fiscalização. Esta atribuição jurídica e po­
lítico-social de responsabilidade é uma particularidade da Compliance17NT1 ex­
cessiva como meio de evitar a responsabilização no direito penal econômico.18 O
colaborador individual da empresa, para o bem desta, tem que agir conforme ao
direito. Para o proprietário da empresa se trata também da subscrição da própria
responsabilidade penal. Por conseguinte, a punibilidade de um depende da boa

15 Compare a respeito disso, principalmente, Rotsch, „Einheitstaterschaft“ statt Tatherrschaft, 2009, Kapitel
1, § 2 (p. 131 e ss.).
16 Quanto a isso, compare Tiedemann, Wirtschaftsstrafrecht, Einführung und Allgemeiner Teil, 2. Aufl. 2007,
§ 1 I. (p. 19 e ss.).
17 NT1 O conceito de Compliance é utilizado pelo autor para caracterizar a questão acerca dos riscos que sur­
gem para a empresa e seus órgãos em razão da inobservância das regras penais pelos integrantes da empresa no
que diz respeito a sua atuação profissional e quais medidas são necessárias e suficientes para reagir, de forma
eficaz, contra estes riscos, compare o site do Center for Criminal Compliance, dirigido pelo autor, citado infra
à nota de rodapé 17.
18 Sobre o conceito de Compliance compare Rotsch, Samson-FS, 2010, 141. Na Universidade de Augsburg
surgiu, no marco do projeto científico de Compliance, o primeiro Center for Criminal Compliance (CCC) na­
cional, cujo fundador e diretor é o autor: www.jura.uni-augsburg.de/ccc.

71
Thomas Rotsch.

conduta do outro - um a circunstância absolutamente digna de nota. O fato de


que isso implica em uma surpreendente mudança de perspectivas - da imputação
bottom up para um modo de observar top down19 - é notório.
Todavia, a responsabilidade do proprietário da empresa agora é caracteri­
zada por um plexo de diferentes regras legais a ser descoberto um a um pela juris­
prudência por um outro aspecto, cujos diferentes parâmetros de responsabilização
produzem um alto grau de insegurança na fundamentação da responsabilidade penal
do proprietário da empresa, porque a sua relação com outros não está esclarecida:
(1) No BGHSt 37, 106 - a decisão do famoso caso “Lederspray”-
o BGH transferiu para o direito penal, principalmente em casos de crise, o
princípio jurídico-social da competência e da responsabildiade geral do diri­
gente de empresa.20 Além de toda a crítica autorizada a esta construção deve-
se considerar que com isso foi encontrado um instrumento pragmaticamente
manejável para a fundamentação da responsabilidade penal do proprietário da
empresa. O fato de que se trata de um a atribuição puramente normativa da
responsabilidade é algo igualmente evidente.
(2) No BGHSt 40, 218 - a não m enos fam osa decisão dos “disparos
no m uro” - o BGH, por conseguinte, embasou a responsabilidade do superior
(militar) em um a nova form a de autoria m ediata.21 Ele transferiu - sob intensa
crítica da m aioria da doutrina22 - o “dom ínio da organização”23 aos dirigentes
da instituição financeira24 - assim como nós sabemos hoje do já originaria-
mente proposto25 e hoje tam bém , do ponto de vista prático, frequente26 âm bi­
to de aplicação da figura jurídica.27
(3) Particularmente duvidosa é, também, a questão acerca de um a res­
ponsabilidade por omissão do proprietário da empresa.28 Como a este não se
pode censurar um a conduta própria e originariamente direta, mas sim atribuir a
falta de uma conduta de seu colaborador,29 deve-se responder a questão acerca
de até que ponto se pode atribuir ao superior, ao membro da direção ou ao

19 Hassemer, Produktverantwortung im modernen Strafrecht, 2. Aufl. 1996, p. 61 e s.; Rotsch (Fn. 26), p.
162. A responsabilização do Managements significa uma mudança de punibilidade do partícipe para o autor,
compare também Hauschka (Fn. 2), § 1 n. de margem 21.
20 BGHSt 37, 106 (114).
21 BGHSt 40, 218 (232 e ss.).
22 Rotsch, NStZ 1998, 491; o mesmo, NStZ 2005, 16; Roxin, Taterschaft und Tatherrschaft, 8. Aufl. 2006, p.
715 e ss. com várias outras indicações.
23 Citado de acordo com Roxin, compare o mesmo, GA 1963, 193.
24 BGH JR 2004, 245 com comentários de Rotsch, 248.
25 Compare Nack, GA 2006, 342.
26 Para outras decisões, compare Rotsch, ZIS 2007, 262.
27 No entanto, no direito penal internacional, a figura do domínio da organização encontra ampla aplicação,
inclusive, no âmbito de aplicação originariamente pretendido por Roxin dos aparatos organizados injustos,
compare recentemente a decisão do caso “Fujimori”, ZIS 2009, 658.
28 Compare recentemente Otto, Schroeder-FS., S. 339 com outras indicações.
29 Veja acima no próprio texto.

72
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

membro do conselho de fiscalização medidas de sancionamento, controle, ins­


peção e organização, omissivas.30 Em qual relação estes princípios de respon­
sabilização se encontram uns com os outros, é algo completamente obscuro.
bb) M as, inclusive, no tocante à construção e interpretação dos tipos
penais econômicos pode-se verificar um desenvolvim ento que leva à uma
dissipação da dogmática:
(1) Os motivos do legislador na criação do tipo penal de fraude por
subvenção (§ 264 do StGB) já são conhecidos (dificuldades probatórias no
marco do § 263 do dStGB)31, do mesmo modo os meios com os quais ele quer
promover um a persecução eficaz à criminalidade econômica. Por isso, não se
deve discutir aqui se o combate às espécies de condutas arriscadas, no campo
da punibilidade tradicional, no marco do § 263 StGB, ainda é político-criminal-
mente conveniente pelos elementos considerados necessários ao tipo32. Sobre
isso se fala muito. Mas, em todo caso, tal modificação m osaica da dogmática
tradicional do direito penal causa um divisionismo no direito penal: o frauda-
dor comum somente se torna punível, de acordo com o § 263 do StGB, quando
ele produz o resultado típico por meio da indução em erro quanto ao resultado
intermediário e a disposição do patrimônio - dano patrimonial à vítima. O m o­
derno autor de crimes econômicos, diferentemente, sujeita-se à punibilidade
pela fraude por subvenção, conforme o § 264 do StGB, somente quando ele
fornece declarações incompletas ou incorretas sobre fatos caracterizados como
subvenções graves. Aqui devem ser traçados limites convincentes sob o ponto
de vista dogmático, mas não são fáceis de se ver.
(2) Na chamada decisão do caso “Hoyzer”33, no escândalo do juiz arbitral,
o BGH, com o chamado “prejuízo por quota”, simplesmente transportou um con­
ceito do direito de insolvência ao direito penal34 e, com isso, procurou fundamentar
no marco de uma fraude por aceitação a ocorrência de um perigo de dano.35 Em
uma recente decisão de 18.2.2009, a seguir a decisão do caso Siemens36, o BGH
pareceu novamente querer abandonar de vez o conceito de perigo de dano.37
(3) O reverso desta ampliação da responsabilidade sobre a equiparação
entre perigo (concreto) para o bem jurídico (patrimônio) e o resultado típico
manifesta-se na decisão do caso “Kanther” .38 H á casos nos quais, apesar da ocor­
30 De acordo com a opinião predominante a extensão dos deveres cresce com a dimensão do estabelecimento,
compare, por exemplo, OLG Düsseldorf wistra 1991, 389. Com isso, agravam-se as exigências sobre as medi­
das para evitar a responsabilidade penal com a aceitação da possibilidade de condução do risco.
31 Compare, de forma concisa Fischer, StGB, § 264 n. de margem 2.
32 No âmbito do § 264 do StGB, como se sabe, não é mais exigida a ocorrência de um dano ao patrimônio.
33 BGH NJW 2007, 782.
34 Compare Kroth, in: Braun (Hrsg.), Kommentar zur InsO, § 92 n. de margem 8.
35 Sobre o diversificado potencial da decisão, compare Rotsch, ZIS 2008, 1 (3 e s.).
36 BGHSt 52, 323; Brüning/Wimmer, ZJS 2009, 94.
37 BGHSt 53, 199 com comentários de Ransiek/Reichling, ZIS 2009, 315.
38 BGH wistra 2007, 136, Sobre isso Ransiek, NJW 2007, 1727.

73
Thomas Rotsch.

rência de um perigo de dano, a punição pelo delito consumado não parece in­
dicada, e no conhecimento dos fatos os juizes esforçam-se agora por corrigir
o adiantamento da punibilidade, alcançado há décadas pela jurisprudência por
meio de uma interpretação extensiva do tipo objetivo com uma interpretação
restritiva dos pressupostos do tipo subjetivo.
No entanto, agora já não é mais suficiente a existência de dolo em
relação aos elem entos do tipo objetivo dados faticam ente; exige-se, inclu­
sive, que o dolo do autor - como que se projetando sobre o tipo objetivo in
concreto - se refira não pura e sim plesm ente ao perigo para o patrim ônio,
senão tam bém à realização decisiva do dano.39 Porém, é algo significativo
e inclusive agrava nosso fenôm eno o fato de que o BGH, na decisão aci­
m a m encionada, de 18.2.200940, realizou um a volta atrás - na verdade, sem
observar realizações dogmáticas.

3.5. A dialética do direito penal m oderno e do direito penal tradicional

N a literatura jurídico-penal alem ã utiliza-se com frequência o termo


“m oderno” direito penal, quando se quer fazer m enção aos perigos que sur­
gem, para muitos, com a m udança de paradigm a, de instrum ento de repressão
estatal ao injusto com etido a um instrum ento preventivo de evitação dos ris-
cos.41 Esta perversão do direito penal em um direito penal do risco descreve
a decom posição das garantias de um direito penal liberal-dem ocrático em
face de um “m oderno” direito penal no pior sentido da palavra. Os fenôm e­
nos descritos são, de sua parte, exemplos particularm ente proem inentes deste
divisionism o penal.

3.6. Conclusão

Estes poucos exemplos devem ser suficientes para dem onstrar o de­
senvolvim ento no “m oderno direito penal” . Que este desenvolvim ento ocor­
re, dificilmente pode-se negar e inclusive, por óbvio, ele não é negado por
ninguém. Um a outra questão é o que se considera por este desenvolvim en­
to. Mas tam bém quando, em princípio, se está afirmativamente diante dele,
deve-se reconhecer que com ele surge um a m udança de paradigm a no direito
penal. Quem quiser efetivam ente com bater a crim inalidade, deve ter presente
esta m udança de paradigma.

39 BGH wistra 2007, 136 (142).


40 Veja a n. de rodapé 33.
41 Compare apenas Hassemer, JuS 1987, 257; o mesmo, ZRP 1992, 378; o mesmo, Produktverantwortung im
modernen Strafrecht, 1994.

74
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

4. A m udança de parad ig m a no direito penal econômico

Nós dissemos acim a que42 é trivial que o direito siga a realidade. N a


Compliance, como meio de evitar a responsabilidade no direito penal econô­
mico, modifica-se esta perspectiva: aqui o direito não segue mais a realidade,
senão a precede. Se a Compliance no direito penal deve ser um meio eficaz
para evitar a responsabilidade no direito penal econômico, então somente po­
dem ser encontradas medidas eficazes para o reconhecimento dos riscos e para
o evitar de sua realização, quando se estiver consciente das modificações dog­
máticas que contenham o risco excessivamente elevado de responsabilização
do autor normal. E isto deve ser tentado como um a prim eira diretriz.

4.1. o conceito de domínio

N a dogm ática tradicional do direito penal, o conceito de “dom ínio”


exerce um papel proem inente. Assim, no sentido do § 25 StGB, autor deve
ser aquele que tem o “domínio do fato”, e tam bém o autor da om issão - uma
vez que ele se tornou punível devido ao desvio om issivo do resultado típico
- deve possuir de form a absolutam ente evidente o domínio sobre a possibi­
lidade de desviar este resultado. Se se deve persistir no conceito de domínio
ou considerar digno de m érito o conceito de “poder”43, é algo que aqui não
nos interessa. Este, em todo caso, parece ser o critério para fundam entação
da responsabilidade penal.
Porém, atualm ente, no direito penal econômico, este conceito de res­
ponsabilidade penal está com pletam ente diluído: tradicionalm ente, domina-
se o conflito, quando muito, se o dom ínio do fato puder ser fundam entado
faticam ente ou norm ativam ente44. A verificação da responsabilidade no di­
reito penal econôm ico desde o princípio só se pode efetuar com métodos
norm ativos. Quem pretende punir o “verdadeiro responsável” - o autor de
escritório ou, no direito penal econômico, o proprietário do negócio - deve
levar em conta a atividade fá tic a considerada decisiva e nada m ais.45 Assim,
tanto o BGH como a literatura predom inante, estão de acordo em imputar
normativam ente a responsabilidade. Se a com petência e a responsabilidade
geral do diretor da instituição ou o “dom ínio da organização” do chefe da
em presa são confirmados, não faz nenhum a diferença no que diz respeito a
42 Acima, sob II.
43 Compare a respeito disso Sinn, Straffreistellung aufgrund von Drittverhalten, 2007, p. 147, que, com ra­
zão, refere-se ao conceito roxiniano de domínio do fato com o conceito de poder. Manfred Heinrich fala de
„detentor da decisão“, o que, no caso, não quer dizer nada diferente, compare o mesmo, Rechtsgutszugriff und
Entscheidungstragerschaft, 2002.
44 Compare Grasnick, in Duttge u.a. (Hrsg.), Gedachtnisschrift für Ellen Schlüchter, 2002, p. 803.
45 O mesmo vale também no direito penal internacional.

75
Thomas Rotsch.

isso. O fim da imputação da responsabilidade penal é sempre o responsável


encontrado, não o verdadeiro responsável.
Este procedimento tem efeitos significativos: via de regra ele conduz a
uma reprodução da responsabilidade.46 É da natureza da coisa que a responsabi­
lidade se multiplique nas grandes empresas. Com isso, as estruturas dogmáticas
até então consideradas corretas fracassam com relação aos papéis individuais
dos participantes uns com os outros. Uma rede completa de “senhores da orga­
nização”; cada diretor da instituição, cada membro da direção47 ou do conselho
de fiscalização pode - cumulativamente - ser considerado responsável. Por con­
seguinte, nega-se o princípio da responsabilidade penal: a responsabilidade de
um não mais obsta a do outro. Isso não deve ser considerado como incorreto;
assim como no marco da Compliance, como meio de evitar a responsabilidade
no direito penal econômico, o conhecimento destas circunstâncias representa um
pressuposto necessário da deliberação efetiva da Compliance, portanto esta frag­
mentação da dogmática acentua o divisionismo do direito penal.

4.2. O conceito de ação

No combate à criminalidade econômica via regra está em jogo a pu­


nição de uma omissão: um a lesão aos deveres de fiscalização, organização,
informação e vigilância frequentemente ocorre porque não são cumpridos de
m aneira suficiente. Com isso, se a omissão se converte em categoria primária
da responsabilidade penal, colocam-se no direito penal econômico questões
absolutamente novas sobre o conteúdo do conceito de ação e sobre a relação
entre o fazer e o omitir. Por conseguinte, no âmbito tradicional do direito penal
nuclear, já se tem negado, com bons motivos, que o fazer positivo seja a forma
tradicional de conduta hum ana48 e valorativamente suceda à om issão49. Para o
âmbito do direito penal econômico todos os conhecimentos penosamente obti­
dos nos últimos séculos perdem o valor.

4.3. o conceito de crim e

Isto vale também para o conceito de crime. Com a construção do dolo de


dano no caso de perigo meramente objetivo apresentada pelo BGH no caso “Kan-
ther” - mas legalmente não normativizada - admite-se uma incongruência entre
46 Compare por exemplo Otto, Schroeder-FS., S. 346, que na verdade reconhece isso, mas não proble-
matiza a questão.
47 Compare, por exemplo, a regra do § 77, al. 1, frase 1 da AktG, que com sua indicação de competência social
apresenta o fundamento para a reprodução da responsabilidade penal.
48 Sobre o conceito negativo de ação, compare, fundamentalmente, Herzberg, Die Unterlassung im Strafrecht
und das Garantenprinzip, 1972.
49 Compare Mitsch, in: Baumann/Weber/Mitsch, AT, 11. Aufl. 2003, § 15 n. margem 25 e ss.

76
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

tipo objetivo e subjetivo? Isso se restringe ao âmbito do direito penal econômio,


ou, em geral, pode-se restringi-la a este âmbito? E o atual recuo do BGH50 consiste
efetivamente na despedida definitiva da limitação da responsabilidade?
Também nas chamadas “condutas neutras” - no caso, parte-se, via de
regra, mas não só, de tipos penais econômicos e fiscais - vozes proeminentes
consideram correta uma exclusão da punibilidade em virtude de contribuições
conforme o § 27 StGB, quando o potencial partícipe atuou realmente com dolo
eventual.51 Que esta forma de dolo de qualquer sorte é suficiente para a funda­
mentação da responsabilização penal, na qual isso, diferentemente, não é exigido
legalmente, é algo que não necessita de maior ênfase. Considera-se correta esta
fundamentação - inclusive, por quase todos considerada correta52 - da impuni-
bilidade do potencial partícipe, que vale também para aqueles que emprestam
um machado ao vizinho, depois que de ter sido testemunha de intensa discussão
desencadeada entre este e sua esposa, inclusive, com ameaças de morte?

4.4. A m otivação a ltru ístic a do m oderno a u to r no direito p en al econôm ico

Na literatura jurídico-penal alemã aponta-se, com razão, o fato de que a


moderna criminalidade econômica é caracterizada por um novo tipo de delito mo­
tivado altruisticamente.53 Enquanto o autor do fato, na concepção tradicional, quer
beneficiar a si mesmo ou, pelo menos, a um familiar mais próximo, e, portanto,
atua de forma interesseira ou egoística, em muitos casos da moderna criminalida­
de empresarial, isto é, absolutamente diferente. Surge, com isso, um novo tipo de
delito que é caracterizado pelo fato de que o autor não mais quer enriquecer ou
beneficiar a si mesmo ou a uma pessoa que lhe é mais próxima, senão pelo fato
de que ele aspira a vantagem decorrente da conduta que lhe está diante dos olhos,
especificamente para a empresa5 O abuso de confiança renunciado em face da
motivação egoística, o delito de fraude cortada, como a já mencionada fraude por
subvenção, e também, desde 1998, os delitos patrimoniais pela aceitação da inten­
ção de dedicar a terceiro, são caracterizados como exemplos disso.
A existência de um novo tipo de delito significa, por muitas razões,
um a m udança de paradigma no direito penal: para uns, ela implica um a m o­
dificação no papel da vítima. Não mais a empresa, senão o terceiro anônimo é
o fim do ataque delitivo. Com isso, a direção da empresa que está no foco do
interesse público e da persecução penal.55 Para outros, do cometimento altru-
50 Veja acima, a nota de rodapé 34.
51 BGHSt 46, 107 (112); Roxin, in: Leipziger Kommentar, § 27 Rn. 21; Kudlich, Die Unterstützung fremder
Straftaten, 2004, p. 534.
52 Compare sobre esta discussão Rotsch, Jura 2004, 14.
53 Samson/Langrock, DB 2007, 1684.
54 Samson/Langrock, DB 2007, 1684.
55 Samson/Langrock, DB 2007, 1685.

77
Thomas Rotsch.

ístico do delito, que se caracteriza pelo cometimento de um delito em favor da


empresa, resulta a possibilidade de imposição da disposição do § 73 do StGB
e a aplicação de um a pena de multa, conforme o § 30 da OWiG, um a am eaça à
plena existência da empresa.56 Tal efeito reflexivo da responsabilidade penal é
totalmente desconhecido do direito penal tradicional.

4.5. A relativização do princípio da certeza da lei penal no direito penal


econôm ico

Já no tradicional direito penal nuclear o princípio da certeza da lei pe­


nal, ancorado constitucionalmente no Art. 103, alínea 2 da GG vai se degene­
rando em uma “utopia do Estado de Direito” .57 Para o direito penal econômico,
com seus tipos penais “flexíveis” e diversas leis penais em branco, isto vigora
de um a forma muito particular. No entanto, se no direito penal econômico se
considera a imputação puramente normativa da responsabilidade como indis­
pensável, então é evidente que o princípio da certeza - do mesmo modo como
ocorre no direito penal internacional58 - deve ser relativizado. N a literatura
já existem diretrizes quanto a isso,59 e elas devem ser fecundas para o futuro
do direito penal econômico, no entanto, também aqui se deve ter em vista as
consequências: tal compreensão leva a um significado divergente do princípio
constitucional da certeza em diferentes âmbitos do direito.60

4.6. conclusão

O divisionismo do direito penal leva a um a dialética. E por meio da


dialética do direito penal nuclear e do direito penal econômico procurou-se
ilustrar, por exemplo, a m udança de paradigma que exsurge. Ela permite veri­
ficar, sem grandes dificuldades, a dialética do direito penal também em outros
âmbitos. Mas antes de querermos nos ocupar com a questão acerca do que sig­
nifica o processo por mim descrito de divisionismo e de m udança de paradigma
apresentada no direito penal econômico para o direito penal e para a política
criminal no terceiro milênio, deve-se dar uma olhada nas causas e consequên-
cias, possibilidades e perigos de tal sistema.

56 Samson/Langrock, DB 2007, 1685.


57 Schmidhãuser, in: Selmer (Hrsg.), Gedachtnisschrift für Wolfgang Martens, 1987, p. 231 (241). Compare
também Schünemann, Nulla poena sine lege?, 1978, p. 4. Veja, em resumo, Rotsch, ZJS 2008, 132.
58 Compare Satzger (nota 29), § 14 n. de margem. 9 e ss. (13).
59 Veja, por exemplo, Schmidhãuser (nota 61), p. 231 (238 e s.).
60 O Tribunal Constitucional Federal observou isso também no âmbito do direito penal econômico, onde se
estabelecem maiores exigências ao destinatários da norma, que o princípio da certeza, portanto, relativiza.

78
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

5. Divisionism o no direito penal - causas e consequências, possibilidades


e perigos

5.1. C ausas e consequências

A crescente fragm entação do direito tem, naturalm ente, seu funda­


m ento prim eiro na diversificação progressiva da sociedade. É de se supor que
em um a estrutura social heterogênea altamente com plexa e diferenciada haja
um a hipertrofia no sistem a acessório do direito.61 E não se pode negar que o
direito, em m uitos setores, agora já não é m ais capaz de cum prir sua função
como elem ento de ordenação e condução.
Este desenvolvimento é acentuado por déficits de comunicação entre
o legislador, a ciência e a práxis.62 Se a ciência do direito penal notoriamente
obtém cada vez menos êxito em transpor seus conhecimentos de forma compre­
ensível e útil à práxis, então ela falha em relação ao seu mais nobre fim e perma­
nece “alheia ao mundo e à vida” e “não pode ser uma teoria do direito”.63 E desse
modo ela contribui com a atual situação do nosso sistema jurídico-penal.
As razões mais profundas para este fenômeno são das mais diversas
espécies. Todas elas têm a ver com a situação atual das ciências do espírito,
as quais eu mencionei de modo provocativo no título desta exposição, como
ortodoxia e heterodoxia. Trata-se da espécie e da form a como hoje a carreira é
produzida nas faculdades na Alemanha, do aumento de um a imensa quantidade
de publicações e da obrigação para o jovem cientista de m aior originalidade
possível em suas publicações, que parece ser necessária para ser aproveitada
de modo geral no trabalho científico, porém não tem mais nada a ver com a
nobre pretensão da ciência de encontrar a “verdade” .
Disso segue o mais alto grau de insegurança da ciência. Por conseguinte,
a insegurança jurídica não é apenas o resultado de uma jurisprudência oposi­
tora, senão encontra seu ponto de partida na diversidade de teorias científicas
sutilmente elaboradas, altamente controversas e muitas vezes detalhadamente
distinguíveis apenas pelos especialistas.
Além disso, no “m oderno” direito penal, a discussão científica é ca­
racterizada por m eio de um fenôm eno que, em proporções cada vez m aiores,
parte não mais da reação ao passado, senão da realização do futuro,64 e, por­
tanto, o direito penal se degenera em um instrum ento de m anobra e domínio
dos riscos. Com isso, nós nos vemos confrontados com a dificuldade de ter

61 Sobre a hipertrofia do direito, compare minha contribuição de mesmo nome in ZIS 2008, 1. Diferentemente
Puppe, ZIS 2008, 67.
62 Sobre a relação entre ciência penal e a práxis, compare, de forma introdutória, Rotsch, ZIS 2008, 1.
63 Zaczyk (nota 8), p. 41.
64 Hassemer, Produktverantwortung im modernen Strafrecht, 1994, p. 9 e ss.

79
Thomas Rotsch.

que solucionar problem as cada vez m ais complexos em um período de tempo


cada vez menor. Isto tem repercussão direta sobre a qualidade da ciência, que
não mais encontra tempo para se afirmar.
E tudo isto, na verdade, também representa um aspecto do divisionismo
do direito penal.

5.2. Possibilidades e perigos

Os perigos de tal sistema foram recordados e eles são evidentes. Quan­


do o direito não se “aprim ora”65, senão se espedaça, o direito penal se torna
qualquer coisa, pois assim a dogmática do direito penal não procura formular
diretrizes para a busca de decisões. O fato de que este perigo há m uito tem se
manifestado nos mais diversos âmbitos, é algo que nos é demonstrado, por
exemplo, pela flexibilidade com a qual o BGH tem procurado fundamentar
discretamente a responsabilidade individual em m atéria de autoria no âmbito
da criminalidade empresarial.66
As possibilidades que esta situação do direito penal aqui descrita acolhe,
consistem no fato de que já é tempo de nos despedirmos da tradicional ideia de
um direito penal nuclear homogêneo, que estaria na posição de poder solucionar
de forma ampla e satisfatória os fenômenos da moderna criminalidade.
Com isso, nós nos encontramos diante da tentativa de descrever uma
solução para esta situação conflituosa:

6. D ireito P en al e P olítica C rim in al no te rc e iro m ilênio -P e rsp e c tiv a s


e ten dências

N a dogmática, a situação atual é caracterizada por um desenvolvimento


que ocorre no direito penal direcionado à internacionalização, ao divisionismo
e à heterogenização dos sistemas penais nacionais. Este desenvolvimento que
é direcionado a um a hipertrofia do direito, a meu ver, pode-se cruzar somente
com duas medidas: por um lado, deve-se refletir sobre quais âmbitos do direito
faz sentido a padronização permanente do conteúdo da lei extraído do direito
penal nuclear. Por um lado, deve-se refletir sobre quais âmbitos jurídicos faz
sentido a padronização de um a lei independente, apartada do núcleo do direito
penal. Por exemplo: em virtude do processo de globalização, a atividade eco­
nôm ica encontra um crescimento de proporção mundial. Dificilmente se pode
pensar em um outro âmbito do direito, no qual a regulação internacional, pelo
menos dos mais importantes tipos penais, em um estatuto normativo único seja

65 Assim Schünemann, in Roxin-FS, p. 2.


66 Compare, com detalhes Rotsch, “Einheitstaterschaft” statt Tatherrschaft, 2009, S. 371 s.

80
Tempos modernos: ortodoxia e heterodoxia no direito penal.

tão necessária quanto no âmbito do direito penal econômico. O fato de que tal
empreendimento pode ser coroado de êxito e - como ocorre frequentemente
- , sem levar em conta as dificuldades práticas e financeiras, não pode ser eli­
minado da mesa, mostra-nos o direito penal internacional, no qual, com a rati­
ficação do Estatuto de Rom a por uma variedade de Estados de todo o mundo,
elaborou-se um a codificação homogênea.
Com isso, os diversos problemas não devem ser negados. Quem, por
exemplo, considera necessária a criação de regras processuais especiais para
“inimigos” da sociedade, deve também se perguntar, como se pode chegar à
imputação de um a culpa no processo por meio de uma ou de outra regra. Quem
pretende permitir o acordo no processo penal somente em processos relativos a
crimes econômicos de grande proporção ou, por exemplo, quer utilizar o manda­
to de certeza da lei penal no direito penal econômico somente de forma restrita,
deve - em primeiro lugar - definir o âmbito do direito penal econômico.
Os problemas são quase imprevisíveis, fechar os olhos diante deles e su­
portar passivamente o divisionismo no direito penal, na verdade, é a pior solução.

7. R esultado e P an o ram a

A realidade hipercomplexa leva a um direito hipercomplexo. O esfa­


celamento do direito penal é expressão deste desenvolvimento. Ele leva a um
divisionismo do direito penal. Além disso, trata-se de um desenvolvimento in­
ternacional geral, que inclusive somente pode se dar com uma cooperação inter­
nacional. E será um a tarefa do futuro, combater o divisionismo no direito penal
por meio da criação comum de regras internacionais harmônicas, onde isso for
promissor. O Direito Penal Econômico me parece ser um destes âmbitos.
Nós vivemos em tempos modernos, é tempo de leis modernas!

81
A s G a r a n t ia s F u n d a m e n t a is e m M a t é r ia P e n a l , E n t r e a
C o n s t it u iç ã o e a C o n v e n ç ã o E u r o p e ia d e D ir e it o s d o H o m e m 1

Vittorio M anes
Universidade de Salento, Itália

[...] non esiste un’opposizione fra il tradizionale e il nuovo,


tra l’ordine e l ’avventura, [...] la tradizione è fatta di una
trama secolare di avventure
(J.L. Borges, Il manoscritto di Brodie, in Id., Tutte le opere,
vol. II, Milano, 2000, p. 415)

1. A Convenção europeia dos direitos do hom em como últim a etap a da


abordagem constitucional em m atéria penal.

Por um longo tempo, o “garantismo penal” procurou e encontrou, com


alternado sucesso, o próprio ponto de referência em cada carta constitucional dos
mais diversos países (ora no Grundgesetz ou na Constituição italiana, ora também
na mais recente Constituição brasileira de 1988): de fato, as cartas fundamentais
representaram o enaltecimento da ideia lisztiana do código penal “Magna Charta
do réu”, sendo vistas como as mais elevadas “barreiras da política criminal”, ultra­
passadas somente ao preço de uma ruptura do pacto fundamental sobre a liberdade
dos cidadãos que a própria Constituição representa (segundo um axioma do consti-
tucionalismo moderno, que, na perspectiva de Estado de direito, reconhece o mapa
dos limites da democracia majoritária, os vínculos que o legislador deve sempre
respeitar, sobretudo, ao regular as relações autoridade/ liberdade).
Além dos trajetos constitucionais, em suma, abriam-se somente os per­
cursos - tão sedutores quanto enganadores - endereçados ao direito natural, às
“normas de civilidade” (Kulturnomen), ou à Natur der Sache; todos territórios
aos quais as pompas do juspositivismo progressivamente bloquearam o acesso.
Assim, também para os penalistas, o vértice da iconografia piramidal que,
na manualística mais difundida, descreve ainda a hierarquia das “fontes do di­
reito”- celebrando o sucesso do Stufenbau de Kelsen e Merkl - sempre foi a lei
fundamental nacional: à própria Grundnorm doméstica era necessário estar atento,
ora para pesquisar o nível de máxima cotação das garantias penais (o nullum cri-
men sine lege em todas as suas diversas articulações); ora para encontrar o mapa
dos direitos ou das liberdades fundamentais que o direito penal não podia lesar
(os Abwherrechte típicos das constituições liberais: liberdade de manifestação de

1 Título original: “Le garanzie fondamentali in m ateria penale, tra Costituzione e Convenzione europea
dei diritti delTuomo”. Tradução de Renata Jardim da Cunha Rieger e Filipe de Mattos Dall’Agnol e revisão de
Stephan Doering Darcie. Revisão final do português de Raquel Lima Scalcon.

82
As garantias fundamentais em matéria penal.

pensamento, de prática religiosa, de associação, de reunião, etc); e, até mesmo,


para individualizar os bens, valores, interesses dignos de proteção penal, nos posi­
cionamentos mais dados ao princípio da extrema ratio.
Hoje, o “garantismo penal” enfrenta um novo, imponente, protagonista
de vértice: a Convenção Europeia de Direitos do Homem (CEDH), um pacto em
muitos aspectos diverso e mais inflexível que os normais tratados internacionais2,
o qual está se impondo - além dos códigos e além das cartas constitucionais
nacionais - como “terceiro nível de legalidade” para os 47 países do Conselho
da Europa (uma área bem mais vasta e heterogênea do que aquela recortada
dos 27 estados membros da União Europeia), como ulterior e máximo nível
de “sacralização das garantias”, que não constitui simplesmente reflexo ou o
reverberar de um a ordem superior, mas um depósito de valor sedimentado e
compartilhado em um longo percurso de civilização, um denominador cons­
titucional comum cujo “núcleo duro” já foi subtraído da disponibilidade dos
Estados individualmente considerados.
De fato, os legisladores dos países - um pouco como Ulisses de frente à
sereia3 - aceitaram amarrar-se a vínculos que os subtraiam da irracionalidade das
mais diversas tentações político-criminais e das mais variadas emergências que,
sempre mais, o direito penal é chamado a enfrentar; aceitaram submeter-se a um
direito mais alto e compartilhado para reafirmarem-se como “Estados de Direito”.
A enteléquia típica dos institutos jurídicos fez com que este texto nor­
mativo - no curso destes mais de cinquenta anos que transcorreram desde a

2 Sobre o ponto, cf. V. Zagrebelsky, La convenzione europea dei d iritti dell’uomo e il principio di legalità
nella m ateria penale, em ius17@unibo.it, n. 1/2009, 57 ss., que assinala ao menos três traços distintivos da
CEDH em relação aos “normais” tratados internacionais, ou seja, as peculiaridades de conteúdo (a tutela dos
direitos fundamentais e a subjacente vocação universal); a estrutura objetiva do sistema de tutela (que não
prevê o princípio da reciprocidade, típico dos tratados internacionais comuns, segundo o qual o Estado Parte
tem que respeitar o tratado sob a condição e até quando as outras partes contratantes observem as previsões; o
peculiar contexto institucional, que compreende tanto um órgão jurisdicional, a Corte Europeia, a quem com­
pete estabelecer se houve violação da Convenção, tanto um órgão politico, o Comitê dos Ministros, que tem a
tarefa de verificar se os Estados obedecem à obrigação de executar a sentença da Corte.
Paraum quadro introdutório, conferir M. De Salvia, L a convenzione europea dei d iritti dell’uomo: procedure
e contenuti, Napoli, 1999; S. Bartole-B. Conforti-B. Raimondi, a cura di, com m entario alla convenzione
europea per la tutela dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali, Padova, 2001; A. Bultrini, c o rte
europea dei d iritti dell’uomo, in Dig./pubbl., Aggiornamento, Torino, 2000; por último, a síntese eficaz de A.
Saccucci, c o rte europea dei diritti dell’uomo, in Dizionario di diritto pubblico, diretto da S. Cassese, vol.
II, Milano, 2006, 1594 ss.; sobre as relações entre o sistema convencional e o direito penal, cf., no contexto
italiano, a ampla reconstrução de E. Nicosia, convenzione europea dei diritti dell’uomo e diritto penale,
Torino, 2006, a qual se remete pela rica documentação jurisprudecial; também, A. Esposito, Il diritto penale
‘flessibile’. Q uando i diritti um ani incontrano i sistemi penali, Torino, 2008; no contexto alemão, K. Am­
bos, Internationales Strafrecht, 2. Auflage, München, 2008, 352 ss; B. Hecker, Europãisches Strafrecht, 2.
Auflage, Berlin-Heidelberg-New York, 2007, 81 ss.; H. Satzger, Internationales undEuropãisches Strafrecht,
2. Auflage, Baden-Baden, 2008, 169 ss.
3 Referência ao mito de Ulisses e as sereias - ao qual é dedicado o ensaio de Elstner, Ulisse e le sirene.
indagini sulla razionalità e l’irrazionalità (1979), Bologna, 1983 - como metáfora do constitucionalismo
moderno cf. Vogliotti, T ra fatto e diritto. Q ltre la m odernità giuridica, 210 ss.

83
Vittorio Manes.

sua adoção - desenvolvesse um movimento autônomo, concretizando progres­


sivamente um a origem tão repleta de destino: enquanto perdurou a ausência
de um Tratado Constitucional da União (que de fato aderiu à CEDH com o
Tratado de Lisboa), a Convenção Europeia afirmou-se como um a costela da
“constituição” no seu significado mais íntimo (aquele de Verfassung, mais que
de “Constitution”)4, e, de fato, foi reconhecida como “instrument constitution-
nel de l ’ordre juridique européen”5, quase fazendo contraponto a “nouvel ordre
juridique” edificada pelo direito comunitário6; e estabeleceu-se como “objec-
tive Wertordnung” e como “sistema objetivo de tutela” que obriga os Estados
contraentes, sem vínculo de reciprocidade, a predispor medidas que impeçam
um a lesão aos Grundrechte na m esm a dispostos, seja essa derivada dos Esta­
dos mesmos, seja essa de origem privada7.
A CEDH representa, pois, um a versão da M agna Charta do réu que
oferece um a koinè dos direitos hum anos com vocação (tendencialm ente) uni­
versal; um a “carta”, todavia, singularm ente “hipertextual”, porque o catá­
logo dos direitos dispostos na Convenção - mais essencial e “desnudo” na
sua form ulação - deve ser lido à luz da riquíssim a jurisprudência da Corte
de Estrasburgo, um juiz ad h o c 8 que, de vez em vez, esculpe e aprofunda
os singulares direitos nela reconhecidos, intervindo com decisões que têm
o mesmo grau de vinculação que a Convenção, de vez em vez, nos diversos
contextos e que - como se verá - no seu valor de precedente são assegurados
por grau relevante de estabilidade.
Assim, depois de uma longa fase na qual foram indagadas as mais di­
versas perspectivas e ângulos da “europeização do direito e da ciência penal”
- autêntico Leitmotiv na pesquisa dos penalistas europeus, especialmente desta
última geração9 - jurisdição de Estrasburgo, no espaço geográfico e jurídico vas­
4 Cf. O. Brunner, Il concetto m oderno di costituzione e la storia costituzionale del medioevo, em Id., Per
una nuova storia costituzionale e sociale, Milano, 1970, 1 ss., 7 ss.; cf. a respeito P. Grossi, L’ordine giuri-
dico medievale, Bari 2004, 35 n. 20.
5 Assim - quase fazendo contraponto à reconhecida constituição de um novo ordenamento jurídico diferente daque­
le dos Estados membros e à obra do direito comunitário - por exemplo, sentença de 23 de Março de 1995 (Grande
chambre), Loizidou c. Turchia, em Revue générale de droit international public, 1998, 123 ss., com nota de C.
Jonathan, L’affaire Loizidou devant la C our européenne des droits de l’homme. Quelques observations.
6 É a histórica afirmação da Corte de Justiça da União Europeia no caso Van Gend & Loos (CGCE, 5 febbraio
1963, C-26/62): “[...] il faut conclure de cet état de choses que la Communauté constitue un nouvel ordre juri­
dique de droit International, au profit duquel les États ont limité, bien que dans des domaines restreints, leurs
droits souverains, et dont les sujets sont non seulement les États membres mais également leur resortissants [...] ”
7 Sobre o problema da chamada mittelbare Drittwirkung da Convençao, cf. infra, § 7.3, nt. 114.
8 A Corte não é órgão do Conselho da Europa, mas da Convenção: cf. ainda H. Satzger, Internationales und
europaisches Strafrecht, 3. Aufl., Baden-Baden, 2008, § 10, Rdn. 5, 82.
9 Limitando-nos às citações essenciais e aos trabalhos mais recentes, veja-se quanto ao contexto italiano: A. Bernar-
di, L’europeizzazione del diritto e della scienza penale, Torino, 2004; R. Sicurella, Diritto penale e competenze
delTUnione europea, Milano, 2005; C. Sotis, Il diritto senza codice. Uno studio sul sistema penale europeo
vigente, Milano, 2007; AA.VV., L’interpretazione conforme al diritto comunitario in m ateria penale, a cura di
F. Sgubbi-V. Manes, Bononia University Press, Bologna, 2006; AA.VV., Lezioni di diritto penale europeo, a cura

84
As garantias fundamentais em matéria penal.

tíssimo do Conselho da Europa, aspira agora a oferecer-se como um observató­


rio privilegiado da harmonização dos direitos fundamentais e como laboratório
experimental para a “europeização das garantias em matéria penal”: uma obra de
densa tessitura de potencialidade prescritiva na qual participam, em realidade,
muitos outros protagonistas - tanto os tribunais constitucionais nacionais, quan­
to a própria Corte de Justiça da União europeia - , em uma perspectiva “multiní-
vel” (multilevel constitucionalism/Mehrebenesystem) que se nutre e ao mesmo
tempo alimenta as “tradições constitucionais comuns” (dos países membros da
União europeia: art. 6 TUE), seu autêntico elemento de contraponto10.
Justamente estas “tradições constitucionais” são expostas a uma circu­
lação conceitual feita de imitações recíprocas e hibridizações entre os diversos
“guardiões” que participam da suas definições; e se a fabricação pode aparecer
- apesar de sua temporalidade secular - ainda bruta, esta ambiciona enriquecer a
tecelagem do ius commune europeu11, ou do “patrimônio constitucional” comum12,
oferecendo um “bloc de supraconstitutionnalité”13 que será o playing field level de
cada manifestação - doméstica ou compartilhada - do “poder punitivo”14.

2. O sistema da Convenção pela perspectiva do O rdenam ento Italiano

Por esta perspectiva, o ponto de observação do jurista italiano aparece


particularmente fecundo, por diversos motivos.
Antes de tudo, por razões que foram alhures analisadas15 e que têm um
fundamento tanto histórico quanto técnico-jurídico, a abordagem constitucional
di G. Grasso-R. Sicurella, Milano, 2007; AA.VV, Per un rilancio del progetto europeo. Esigenze di tutela degli
interessi comunitari e nuove strategie di integrazione penale, ancora a cura di G. Grasso-R. Sicurella, Milano,
2009; G. De Vero-G. Panebianco, Delitti e pene nella giurisprudenza delle corti europee, Torino, 2007; também,
cf. ainda ensaios publicados em S. Canestrari-L. Foffani, Il diritto penale nella prospettiva europea, Milano, 2005,
325 ss.; no contexto da literatura alemã, cf., entre outros: K. Ambos, Internationales Strafrecht, cit., 412 ss.; B. He-
cker, Europaisches Strafrecht, cit., 119 ss.; H. Satzger, Internationales und europaisches Strafrecht, cit., 83 ss..
10 Poiares Maduro, C ontrapunctual law: E urope’s constitutional pluralism in action, em N. Walker (a cura
di), Sovereignity in transition, Oxford, Hart, 2003, 501 ss.
11 Fundamentais sobre este ponto, as páginas I. Pernice, Multilevel constitutionalism in the European Union, in
EuropeanLawReview, 2002, pp. 501 ss.; e, no panorama da doutrina italiana, G. Silvestri, Verso uno ius commune
europeo dei diritti fondam entali em Quaderni costituzionali, 2006, 7 ss.
12 A. Pizzorusso, Il patriom onio costituzionale europeo, Bologna, 2002.
13 M. De Salvia, La Convenzione europea dei diritti dell’uomo a cinquant’anni dalla sua firma: speranza
e perseveranza, in Riv. int. dir. uomo, 2000, 414 ss., 415.
14 A referência, não apenas lexical, é à monografia de G. Vassalli, La potestà punitiva, 1942, onde o estudo
foi destinado a traçar uma topografia dos limites (formais e substanciais; temporais e espaciais; legislativos
e aplicativos, etc.) ao ius puniendi (espécie de derivação constitucional, no homônimo termo utilizado na
Enciclopedia del diritto, del 1985).
15 Em particular, cf. M. Donini, Ragioni e lim iti della fondazione del diritto penale sulla C arta costitu-
zionale. L’insegnam ento dell’esperienza italiana, in Foro it., 2001, V, 29 ss.; mais recentemente, Id, Prin-
cipi costituzionali e sistema penale. Modello e program m a, em curso de publicação em ius17@unibo.it, n.
2/2009; também, cf. V. Manes, Il principio di offensività nel diritto penale. Canone di politica criminale,
criterio ermeneutico, param etro di ragionevolezza, Torino, 2005.

85
Vittorio Manes.

se inscreve - por assim dizer - no aparato genético da ciência penalística italiana,


representando um “método” transversal a todas as escolas, que, com os anos,
tiveram resultados particularmente fecundos, havendo não apenas permitido a
“coabitação” entre um código autoritário (o código Rocco, de 1930, ainda vigen­
te) e a constituição democrática de 1948, mas, também, consentido em desen­
volver, de um modo particularmente refinado, os postulados e os corolários do
direito penal constitucional, esculpindo os traços - como se costuma dizer - “do
semblante constitucional do ilícito penal.”
Aliás: a tematização constitucional orientada pelo ilícito penal mostrou-
se um autêntico mos italicus, também pela originalidade da perspectiva inau­
gurada por Franco Bricola16, levada adiante com fervor e tenacidade por uma
excelente geração de penalistas, certamente não apenas da “escola bolonhesa”.
Diferentemente do ocorrido em outros contextos, viu-se a Constituição
não apenas como um m apa dos limites que o direito penal não pode transpor,
mas, também, como a prancha de valores que dão fundam ento à teoria consti­
tucional orientada para o bem jurídico17, que tinha na tese dos bens de relevo
constitucional como único objeto legítimo de proteção penal um dos seus co­
rolários fundamentais, em um posicionamento claramente voltado ao rigor dos
princípios de subsidiariedade e de extrema ratio da intervenção penal18.
Em segundo lugar, porque se é verdade que entre a Constituição italiana
e a Convenção europeia há grande harmonia19, afigura-se, na realidade, já supe­
rada a convicção - talvez um pouco chauvinista - de que a Constituição italiana
oferece sempre garantias mais delineadas do que aquelas reconhecidas na CEDH
e pouco a pouco alimentadas - como também se dirá - das preciosas e constantes
concretizações da jurisprudência de Estrasburgo20.
Tal convicção, por m uito tem po, pôs em segundo plano a jurisdição
da CEDH, tam bém por força do papel subsidiário21 a essa atribuído no que
16 A referência é ao célebre artigo de F. Bricola, Teoria generale del reato (1973), em Id., S critti di
d iritto penale, a cura di S. Canestrari-A. Melchionda, vol I, tomo I, Milão, 1997, 794 ss. (e já em Noviss.
Dig. it., XIX, Torino, 1973, 3 ss.)
17 Cf., querendo, V. Manes, D er B eitrag d e r italieniscen S trafrech t z u r R echtsgutslehre, em ZStW,
114 (2002), 720 ss.
18 Sem aqui poder dar conta das diversas críticas endereçadas à teoria dos “bens de relevo constitucional” como
legítimo objeto de tutela penal (mas sobre o ponto, querendo, cf. ainda V. Manes, Il principio di offensività, cit.,
64 ss., 129 ss.), limitamo-nos a indicar que, ainda hoje, a Corte Constitucional italiana, em algumas decisões fo­
cando o problema da legitimação do direito penal, demonstra traçar a rota utilizando a orientação constitucional:
emblemática, neste ponto, a recente sentença n. 394/2006 em tema de controle de constitucionalidade das normais
penais favoráveis (a sentença é encontrada em www.giurcost.org e é publicada, por exemplo, em Diritto e giusti-
zia, n. 46/2006, 34 ss., com nota de V. Manes, Norme penali di favore, no della consulta).
19 V. Zagrebelsky, c o rte , convenzione europea dei diritti dell’uomo e sistema europeo di protezione dei
d iritti fondamentali, in Foro.it., V, 2006, 353 ss.
20 Este entendimento emerge repetidamente na jurisprudência da Corte constitucional: vejam-se, entre outras,
as decisões n. 399/1998 e n. 388/1999.
21 Do “princípio da subsidiariedade (Subsidiaritãtsprinzip) informa-se, em geral, todo o sistema convencio­
nal: ele, antes de tudo, pressupõe - do ponto de vista processual - o prévio exaurimento das vias de recurso

86
As garantias fundamentais em matéria penal.

diz respeito aos m ecanism os internos destinados à garantia dos direitos re­
conhecidos na Convenção: mas a Corte europeia já am adureceu, em diversas
direções, com passos significativos e/ou decisivas m udanças de perspectiva
que agora devem ser necessariam ente levadas em consideração - como se
acenará - no ordenam ento dom éstico22; recordando-se que a contribuição
oferecida pelo sistem a da Convenção se liga às garantias dom ésticas (Guns-
tigkeitsprinzip), elevando-lhes o standard ou amplificando-lhes o alcance,
mas não podendo nunca com prim ir o seu espectro de tutela (“lim itando-as”
ou “prejudicando-as” : art. 54 CEDH).
Enfim, e sobretudo porque a Convenção europeia recentem ente ad­
quiriu no ordenam ento interno italiano - como já em outros contextos - uma
posição de prim eiríssim o plano, em virtude de duas conhecidas decisões da
Corte Constitucional.
N a realidade, até não muito tempo atrás, a Convenção europeia e, sobre­
tudo, as decisões nas quais a Corte de Estrasburgo reconhece ou nega a lesão ao
direito fundamental reclamada singularmente pelo cidadão de um dos países do
Conselho da Europa, resultaram pouco ou nada incisivas, suscetíveis, no m áxi­
mo, de conduzir a um equo indennizzo e a sancionar, assim, a responsabilidade
política pela violação imputada a cada Estado, mas sem poder reparar a viola­
ção do direito individual através de uma repristinação ou de uma restituito in
integrum da situação de lesão (salvo os remédios felizmente cogitados pouco a
pouco pela Corte de Cassação, quase pela via “tópica”).
Hoje, as decisões da Corte Constitucional nn. 348 e 349/200723 atri­
buíram à Convenção e à jurisprudência do CEDH um papel imediatamente

interno para que possa ser recebido o recurso individual com o qual se lamenta a lesão de um dos direitos
reconhecidos em sede convencional (sobre recurso individual e seu aprimoramento segundo a reforma do
protocolo n. 11 adotado em 11 de maio de 1994, cf., em síntese, A. Saccucci, voce C orte europea dei d iritti
dell’uomo, cit., 1595 s.); também, o sistema é dominado pelo “princípio da vantajosidade” (Günstigkeits-
prizip), segundo o qual as garantias convencionais fixam um “standard” mínimo (Mindeststandard), que
não pode limitar eventual melhor standard estabelecido em sede nacional. De resto, a dimensão subsidiária
é confirmada pela self-restraint que caracteriza a intervenção da Corte, cuja presença só em 5% dos recusos
resulta um acertamento da violação lamentada pelo recorrente.
Sobreas relações entre Corte europeia e Corte constitucional também do ponto de vista da intervenção subsidiária
reconhecida à primeira, cf. ainda V. Zagrebelsky, Corte, Convenzione europea dei diritti dell’uomo e siste­
m a europeo di protezione dei diritti fondamentali, cit., 357.
22 Para uma instrutiva revisão, veja-se E. Nicosia, Convenzione europea dei diritti dell’uomo e diritto penale,
cit., passim; ainda, F. Viganò, Diritto penale sostanziale e Convenzione europea dei diritti dell’uomo, cit., 46
ss., e Id., Il diritto sostanziale italiano davanti ai giudici della CEDU, Giur. merito, suppl. n. 12/2008, 81 ss.;
ainda no contexto de um mais amplo estudo, G. De Vero, La giurisprudenza della Corte di Strasburgo, em G.
De Vero-G.Panebianco, Delitti e pene nella giurisprudenza delle corti europee, Torino, 2007, 11 ss.
23 As sentenças n. 348 e 349 de 2007 foram publicadas em Giur. cost., 2007, 3475 ss., com notas de C. Pinelli,
A. Moscarini, M. Cartabia, A. Guazzarotti, V. Sciarabba; também, D. Tega, Le sentenze della C orte costitu­
zionale nn. 348 e 349 del 2007: la CEDU da fonte ordianria a fonte “sub-costituzionale” del diritto, in Quad.
cost., 2008; G. Abbadessa, Il nuovo rango sub-costituzionale della CEDU: riflessi sul diritto e sul processo
penale domestico, in ius17@unibo.it, n. 2/2008, 399 ss.

87
Vittorio Manes.

vinculante para o ordenamento italiano, abrindo ao catálogo dos direitos e das


liberdades de m atriz europeia um a janela de acesso bem mais ampla do que
aquela que, no máximo, admitia o seu englobamento ab intrinseco através da
“cláusula aberta” do art. 2 Const.: alçando-lhe a categoria de “parâmetro in­
terposto de legitimidade constitucional” (pelo trâm ite do art. 117 da Const.),
estabeleceu-se um preciso grau de vinculação hierárquica para o legislador
e, ainda antes, para o juiz nacional, de tal modo que o ordenamento interno é
obrigado a adequar-se através dos instrumentos típicos da “interpretação ade-
quadora” (e/ou conforme a Convenção e a jurisprudência de Estrasburgo), até
o limite da ilegitimidade constitucional da eventual disciplina contrastante que
não seja suscetível de adequação por via herm enêutica24.
Com uma “revolução” há muito tempo esperada - e antecipada, ain­
da que sob forma diversa, que para alguns remonta a procedimentos da Corte
Constitucional, repentinamente diminuídos pela sucessiva jurisprudência25 - , as
normas da Convenção e as decisões da Corte europeia - mesmo consideradas
excêntricas no que diz respeito às “cláusulas de adequação” dos arts. 10 e 11 da
Const. e, portanto, não assimiláveis pelo direito comunitário, com a consequente
incapacidade de fomentar “efeitos diretos”, como a desconsideração “difusa” da
norma interna contrastante a cargo juízes comuns26 - foram finalmente reconhe­
cidos como “parâmetros interpostos de legitimidade constitucional” (através da
“colocação mediana” que assegurou a tais particulares instrumentos de direito
internacional pactuados mediante o art. 117 da Const., capaz, portanto, de confe­
rir à CEDH classe sub-constitucional).27
24 Cf., em particular, Corte cost., n. 349/2007, § 6.2.
25 Referência à célebre sentença n. 10/1993, com a qual à CEDH foi reconhecida natureza de “fonte atípica
reforçada”, reconhecendo também as relativas normas como insuscetíveis de ab-rogação ou de modificação por
parte de disposição de lei ordinária.
26 Segundo o paradigma inaugurado pela Corte de Justiça com o célebre arret Simmenthal, recebido - ainda
que com certa “cautela” - pela Corte Constitucional a partir da sentença Granital, n. 170/1984. Sobre o cor­
reto posicionamento seguido pelo Conselho nas decisões 348 e 349 de 2007, no que se refere à impraticabili­
dade de uma desconsideração difusa nas hipóteses de contrastre entre lei ordinária e CEDH, de modo amplo,
ver M. Cartabia. “Le Sentenze “Gemelle”: Diritti, Fondamenti, Fonti, Giudici.” Em Giur. Cost. 2007, 3566
e ss., que sublinha como “as afirmações da Corte não mortificam a obra dos juízes ordinários, tanto menos
os marginalizam no sistema ‘multinível’ da tutela dos direitos fundamentais. A Corte visa a, sobretudo, pre­
cisar o papel deles, reconduzindo-os ao âmbito da interpretação adequadora, pondo em evidência que eles
não estão nem sozinhos, nem abandonados a si mesmos no desenvolvimento da tarefa de tutela dos direitos.
Eles são mais que tudo parte de uma complexa rede jurisdicional da qual fazem parte também as Cortes
Constitucionais e as Cortes Europeias [...]”.
27 Como ressalta D. Tega, “Le Sentenze della Corte Costituzionale nn. 348 e 349 del 2007,” cit., “ter a Corte Cons­
titucional, ainda mais uma vez, sentido necessidade de negar a ligação entre CEDH e arts. 10 e 11 da Constituição,
e nao ter nem ao menos levado em consideração o art. 2, demonstra claramente que não desejou afastar-se do po­
sicionamento tradicional do Conselho nessa matéria. A CEDH reentra, portanto, mais naturalmente no âmbito do
art. 117, I, interpretado como uma disposição capaz de reconhecer força passiva superior àquela das leis ordinárias,
mas não de elevar a grau de fonte constitucional do ponto de vista do lado ativo [...]. Assim, onde, em um juízo de
constitucionalidade, esteja em jogo também uma norma da CEDH, a avaliação da Corte deve ser cindida em três
momentos: é necessário antes de tudo que as normas da CEDH, interpretadas pela Corte de Estrasburgo, sejam sem­

88
As garantias fundamentais em matéria penal.

Deste modo, a jurisdição de Estrasburgo - até agora relegada à zona


de sombra das “fontes-fato” 28 - obteve um a sensível promoção, adquirindo a
posição de parâmetro de validação dos “standard” de garantias reconhecidas
no ordenamento penal doméstico e o reconhecimento de uma peculiar força de
resistência às leis “ordinárias”.
Com isso, em particular, a atual ordem italiana mostra reconhecer à CEDH
um papel de indubitável privilégio e uma posição mais elevada e formalizada do
que aquela que lhe foi reconhecida em outros ordenamentos, onde uma vinculação
de facto, no plano interpretativo, não corresponde - como na Alemanha - a uma
hierarquização capaz de assegurar “justiciabilidade” ante o inadimplemento das
obrigações convencionadas29.
Portanto, as garantias da CEDH e, sobretudo, as decisões da Corte de
Estrasburgo impõem-se agora como pontos de referência obrigatórios para o
juiz (ou para o jurista) dom éstico, que deve ativar cada possível contorção in-
terpretativa para adequar o que dita a disciplina interna às obrigações conven­
cionais30, devendo, vice-versa, denunciar a ilegitim idade constitucional da

pre submetidas a uma verficação de compatibilidade com todo o texto constitucional; tal controle deve inspirar-se
também no critério de razoável ponderação entre o vínculo derivado, em particular, da jurisprudência de Estrasburgo
e da tutela dos interesses constitucionamente protegidos, contida em outros artigos da Constituição; nesse ponto,
pode-se proceder com a verficação da legitimidade da norma censurada em relação à norma interposta”.
28 Veja-se, por exemplo, mesmo que em sentido crítico, R. Bin, Il sistema delle fonti. Una introduzione, em www.
forumcostituzionale.it (e agora em Scritti in onore di M. Floridia), 12 do texto datilografado.
29 No ordenamento alemão, em síntese, a Convenção Europeia - ratificada com o Gesetz über die Konvention
zum Schutze der menschenrechte und Grundfreiheiten de 7 de agosto de 1952 -reconhece-se não ainda um nível
constitucional (Verfassungsrang), mas apenas de lei ordinária (einfaches Gesetz), embora com força qualificada:
cfr. em particular, BverfG, 14 de outubro de 2004, no caso 1481/94, em Intíis, n. 1/2005-2006, 43 ss., com nota
de R. Conti e E. Faletti, decisões representativas de uma orientação na qual o tribunal constitucional - ainda que
conferindo à Convenção, efetivamente, nível de lei ordinária - foi aos poucos afirmando que, do princípio de
“Estado de Direito”, descende a necessidade que as normas constitucionais concernentes a direitos fundamentais
(Grundrechte) e princípios fundamentais (rechtsstaatlichen Grundsãtzen) sejam interpretados à luz das garantias
da CEDH e das decisões da Corte de Estrasburgo (e também o Bundeverwalungsgericht e o Bundesgerichtshof
reconhecem, de resto, “uma obrigação de atenção para uma consolidade prática interpretativa” da Corte europeia:
cfr., também para referência, B. Hecker, Europãisches Strafrecht, cit., 92).
Sobre o ponto, cfr., ainda, H. Satzger, Der Einfluss der EMRK a u f das deutsche Straf- und Strafprozessrecht, 2,
que, por um lado, assinala que à Convençao - também por força da genérica Võlkerrechtsfreundlichkeit des
Grundgesetzes - se reconhece então um “efeito de irradiação” (Ausstrahlungswirkung) capaz seja de influen­
ciar as leis sucessivas, inibindo o princípio lex posterior derogat legi priori, seja de radicar a mencionada obri­
gação de “interpretação convencionalmente conforme” do mesmo Grundgesetz; de outro, todavia, o mesmo
autor aponta que “isso [...] não significa que uma Verfassungsbeschwerde possa ser sustentada com base na
mera violação das garantias da CEDH”, embora se possa reclamar de uma lesão aos direitos fundamentais à luz
do Rechtsstaatsprinzip, resultam violadas as obrigações de uma konventionskonformer Auslegung.
Éapenas o caso de sublinhar, além disso, como a presença de um mecanismo de recurso individual no orde­
namento alemão (a Verfassungsbeschwerde) - presente também em outros contextos (é o caso do recurso de
amparo na Espanha), e ausente, por exemplo, no sistema italiano de justiça constitucional - torna ainda mais
“subsidiário” in the facts o mecanismo de tutela assegurado pelo sistema convencional.
30 Cfr., a esse respeito, também G. Abbadessa, Il nuovo rango (sub-)costituzionale delia convenzione eu­
ropea di salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondam entali; riflessi sul diritto e sul processo
penale domestico, in ius17@unibo.it, n. 2/2008, 399 ss.

89
Vittorio Manes.

norm a contrastante apenas onde esta redução herm enêutica não seja passível
de ser percorrida (especialmente quando conduz a resultados incom patíveis
com a littera legis, ou seja, quando desatende a um encouraçado e indomável
“direito vivente”), visto que - é afirmação constante da Corte Constitucional
- um a norm a pode ser julgada constitucionalm ente ilegítim a não porque é
possível dar-lhe um a interpretação constitucionalm ente errônea, mas porque
é im possível dar-lhe um a leitura constitucionalm ente compatível.
Além do juízo de legitimidade constitucional, neste novo cenário, um dos
problemas mais espinhosos diz com o mecanismo de “cumprimento” das decisões
da Corte EDH nestes âmbitos, porque cada violação pressupõe um remédio de todo
peculiar; se, em particular, o problema da adequação também da jurisdição interna
à legalidade processual das várias declinações do fa ir process (art. 6 da CEDH)
mostra-se inadiável - como se sabe, também no ordenamento italiano, discute-se a
oportunidade de introduzir uma específica causa de “revisão”, estendendo os casos
taxativamente elencados no art. 630 c.p.p. 31 - , as alternativas para a satisfação
equitativa e os caminhos para uma restitutio in integrum são, em muitos casos,
todas verificadas também em relação ao caso concreto; é um espaço livre de direito
que muitas vezes representa um truque para anular violações reconhecidas32.
O que é certo, em todo caso, é o reconhecimento, pela Corte Constitu­
cional italiana (como também por outros tribunais constitucionais), de um papel
inovador e vinculante à CEDH, o qual remete os direitos humanos a uma nova
multilateralidade, na qual a Corte de Estrasburgo se transforma de postuladora
em interlocutora privilegiada.
Além disso, só o tempo dirá se são fundados os temores de quem prefi-
gura, de um lado, o risco de uma possível marginalização dos tribunais constitu-
cionais33, e, de outro, aquele de uma paralela superexposição da Corte europeia
ou mesmo dos próprios direitos reconhecidos e afirmados: com a dúplice ulterior
perspectiva de uma possível “relativização” ou “mcdonaldização dos direitos hu­
manos” (entendida como “perda de identidade e de dignidade cultural”)34 de um

31 A mesma disposição do art. 630 c.p.p. - na parte na qual não se contempla entre os casos de revisão as hipóte­
ses nas quais uma sentença da Corte europeia dos direitos do homem “tenha verificado um vício fundamental no
processo anterior” e, portanto, uma violação da garantia do justo processo (art. 6 CEDH) - esteve no centro de uma
questão de legitimidade constitucional, depois rejeitada pela Corte Constitucional com a sentença n. 128 de 2008.
32 Cfr. agora a sentença do Juiz para as investigações preliminares de Bari, 26 de outubro de 2009, que rejeitou o
pedido de revogação do confisco de bens em relação ao caso de “Punta Perotti”, desconsiderando a violação ao art.
7 CEDU, reconhecida na sentença SudFondi c. Italia: infra, § 5.2.2. e nt. 91.
33 Cfr, sobre o ponto, V. Zagrebelsky, Corte, Convenzione europea dei d iritti dell’uomo e sistema europeo
di protezione dei diritti fondamentali, em Foro.it., V, 2006, 353 ss.
34 Cfr. sobre o ponto, D. Zolo, Fondam entalism o um anitario, ensaio conclusivo em M. Ignatieff, Una ra-
gionevole apologia dei diritti um ani, Princeton University Press, 2001, trad. it., Milano, 2003, 140, segundo o
qual “quanto mais o predicado ‘fundamental’ se estende, incluindo uma quantidade crescente de direitos diver­
sos, mais aumentam os riscos de uma colisão entre o caráter fundamental dos direitos e a necessidade de relati-
vizá-los ou condicioná-los a outros direitos concorrentes”, pois, “se tudo é fundamental, nada é fundamental”.

90
As garantias fundamentais em matéria penal.

lado, ou, de outro lado, de um “fundamentalismo dos direitos humanos” em de­


trimento da “margem de discricionariedade” dos parlamentos nacionais35. Neste
último ponto de vista, em particular, a erosão da marge national d ’appreciation
(ou a sua “despolitização”) será diretamente proporcional ao risco de atrito com
os mesmos tribunais constitucionais: o cenário de um possível “conflito entre
vínculos de fidelidade constitucional” (infra, §7.3) - isto é, entre Constituição e
CEDH - alem disso, vê-se já no nosso contexto se é verdade que a Corte Cons­
titucional italiana impôs, de qualquer modo, - como nec plus ultra de adequação
aos princípios da convenção - uma “razoável ponderação entre o vínculo de­
rivado das obrigações internacionais [...] e a tutela dos interesses constitucio­
nalmente protegidos [...] da Constituição”36, e que - vice-versa - já assinalou a
jurisprudência da Corte EDH que reconheceu a Convenção como “instrumento
da ordem pública europeia” e, “implicitamente, mas necessariamente, fundado
em um a espécie de supraconstitucionalidade da Convenção”37.
De qualquer maneira, a impressão é que se ingressou em uma nova
tem porada para o garantismo penal: uma tram a toda por escrever, na qual o
ator principal - a Corte europeia, precisamente - vê nos juízes domésticos
(e, mais genericamente, nos operadores do direito nacional) não mais os lí­
deres, mas sim os coprotagonistas, chamados a dar - em virtude do princípio
da subsidiariedade - o primeiro impulso no mecanismo de reconhecimento e
afirmação das garantias, sendo inclusive colocados em “posições m elhores”
para apreciar eventuais violações38.
A isso corresponde, portanto, uma inversão gestáltica da imposição tra­
dicional que quer a produção do direito estalinista, positivista, monológica e de­
clinada segundo a modalidade top-down, porque o delineamento dos direitos hu­
manos mostra-se sempre mais desterritorializado, policêntrico e reticular: parte
da base da pirâmide das fontes, e não de um ato de “concessão” do absolutismo
estatal; procede segundo a modalidade bottom-up e é confiado, em grande parte,

35 Basta pensar nas críticas sofridas pelas recentes decisões da Corte EDH, de 3 de novembro de 2009, Laut-
si c. Italia, quando os juízes condenaram a Itália por violação do art. 2 do Protocolo n.1 (sobre o direito à
educação), juntamente com o art. 9 da Convençao (“liberdade de pensamento, de consciência e de religião”),
em relação à exposição de um crucifixo na sala de aula de uma escola fundamental (cfr., ad es., V. Mancuso,
Q uanto vale quel simbolo, em LaRepubblica, 5 de novembro de 2009, 35; B. Forte, Ferita p er la convivenza
civile, em Il sole 24 Ore, 5 de novembro de 2009, 18; para um outro posicionamento, todavia, cfr. S. Rodotà,
La battaglia su un simbolo, La Repubblica, 4 de novembro de 2009, p. 32).
36 Cfr. em particular a sentença n. 348/2007, § 4.7
37 Assim, com autoridade, já J. P. Costa, Il ragionamento giuridico della C orte europea dei diritti delTuomo,
em Riv. int. dir. uomo, 2000, 434 ss., 437, no qual - em referência à cidtada sentença da corte EDH 23 de março
de 1995, Loizidou c. Turchia (retro, n. 4) - afirma que “nenhuma norma, nem mesmo constitucional, pode impedir
a obrigação de qualquer Estado de respeitar a Convenção.”
38 “Estando em contato direto e constante com as forças ativas dos respectivos países, as autoridades estatais
se acham em melhor posição com relação aos juízes internacionais para se pronunciar sobre o conteúdo exato
das exigências de tutela e oportunidade na adoção de restrições ou sanções” : Corte EDH, 7 de decembro de
1976, Handyside c. Regno Unito (§ 48).

91
Vittorio Manes.

ao “protagonismo positivo” dos juízes - os terminais mais próximos, de resto,


do tecido conjuntivo da sociedade civil - e a sua capacidade “universalizante” 39.

3. O papel cardeal da C orte europeia: a “ concretude” das decisões e a “his-


toricidade” dos direitos hum anos.

No centro deste sistema de “tutela judicial” dos direitos humanos, o pa­


pel principal é, naturalmente, desempenhado pela Corte europeia e por um fluxo
jurisprudencial sempre mais abundante e sempre capaz de renovar-se, em um
processo de constante comunicação e de autêntica cross-fertilization40 aberto
ao confronto, por vezes “agonístico”, com a Corte de Justiça CE - interlocutor
necessário quando a lesão sofrida deriva da aplicação do direito comunitário,
ainda que em um contexto que goza do privilégio da “presunção de respeito à
Convenção”41 - e com os próprios tribunais constitucionais nacionais (embora
não raramente são reclamadas também decisões das Cortes Superiores).
A respeito, é notório que a jurisprudência de Estrasburgo se inscreve
em um sistem a de ju d icia l law-m aking que reconhece autoridade aos pró­
prios precedentes e que, todavia, não exclui evoluções jurisprudenciais: a re­
gra do stare decisis pode ser derrogada ou “de baixo para cim a” - m ediante a
técnica de distinguishing, que perm ite considerar o caso objeto da pronúncia,
abrindo um overruling - ou, mais raram ente, “de cim a para baixo”, em ergin­
39 Cfr. J. Allard-A. Garapon, Les juges dans la mondialisation. La nouvelle révolution du droit, Paris, seuil,
2005, p. 84 ; sobre aquele trecho, cfr. também M. Delmas Marty, Mondializzazione e ascesa al potere dei giudici,
in AA.VV, Il tramonto della modernità giuridica, org. M. Vogliotti, cit., 127 ss.
Além disso, o “protagonismo positivo” dos juízes no modelo adversary - como sendo aquele recepcionado,
embora não sem incoerências, pelo sistema processual italiano - pode se valer da dialogicidade e da fecundi-
dade argumentativa do confronto entre as partes (pois a decisão judicial, não só com referência à averiguação
dos fatos, é êxito de uma colaboração entre os sujeitos), segundo uma perspectiva que pareceria uma ulterior
confirmação do valor e das funções “políticas” do contraditório (com uma acentuação - neste caso - de note
positivas): vejam-se, ainda que em orientaçao diversa, os apontamentos de R. Orlandi, Trasform azione dello
Stato e crisi della giustizia penale, em AA.VV., Il tram onto della m odernità giuridica. Un percorso inter-
disciplinare, a cura di M. Vogliotti, Torino, 2008, cit. 235 ss., 245 ss.
40 Além disso, as convergências entre a Corte EDH e Corte de Justiça - como já foi há tempo observado (B.
Conforti, Note sui rap p o rti tra diritto com unitario e diritto europeo dei diritti fondamentali, in Riv. int.
Dir. uomo, 2000, 423 ss.) são frequentemente mais aparentes que reais, tendo em vista que a segunda registra,
muitas vezes, uma postura conservadora e protecionista a respeito da legitimidade dos atos comunitários, e,
portanto, do processo de integração comunitária [negando, portanto, o contraste com os direitos fundamentais
de vez em vez em relevo: cfr., sobre o ponto, também o observado em V. Manes, I rap p o rti tra diritto comu­
nitario e diritto nazionale nello specchio della giurisprudenza della C orte di giustizia: approdi recenti
e nuovi orizzonti, em F. Sgubbi-V. Manes (a cura di), L ’interpretazione conforme al diritto comunitario in
materia penale, Bologna, 2006, 9 ss., 23 ss.].
41 Cf., por exemplo, a decisão de 30 de junho de 2005, “Bosphorus Airways ” c. Irlanda (Grande chambre), na qual
a Corte EDH, em uma questão na qual a Corte EU se pronunciou sobre o recurso prejudicial, decidiu que o sistema
jurídico da União oferece uma “garantia equivalente” de proteção dos direitos do homem, extraindo a conclusão de
que, salvo manifestas insuficências que surjam em um caso específico, deve-se presumir que um Estado respeita as
exigências da Convenção, quando não faz mais que dar execução às obrigações jurídicas resultantes da adesão à
União (cf., sobre o ponto, V. Zagrebelsky, La prevista adesione delTUnione europea dei diritti dell’uomo, cit., 4).

92
As garantias fundamentais em matéria penal.

do um novo “consenso europeu” sobre o princípio em exame que legitim a


um a inversão de rota42.
É notório também que a Convenção - como já se assinalou - impõe aos
Estados o dever de conformarem-se com as decisões da Corte: isso implica um
vínculo direto aos Estados quanto às “controvérsias nas quais são parte” (art. 46
da CEDH), que se traduz na obrigação de pagar uma indenização ou de predispor
medidas de restitutio in integrum; mas implica um vínculo indireto a todos os
outros Estados, porque a Corte enuncia erga omnes a interpretação das disposi­
ções da Convenção43, traçando a linha a ser seguida para evitar de incorrer em
futuras possíveis violações, mediante pronunciamentos de que se deve, portanto,
reconhecer - como se disse eficazmente - a “autorité de chose interpreté”AA.
Todavia, um tal sistema tem conotações de todo peculiares que devem
ser atentamente consideradas para avaliar a transponibilidade dos princípios afir­
mados no ordenamento interno.
Não se refere apenas à circunstância de que - aqui, como alhures - a
estrutura do raciocínio jurídico manifesta um distanciamento da estrutura hipo-
tática emblematizada do modelo silogístico e tende a seguir formas paratáticas,
declinadas em esquemas como a ponderação dos interesses ou o teste de propor­
cionalidade (isto é, as formas típicas de um “direito por princípios”45).
Não se refere apenas ao fato de que a Corte de Estrasburgo segue uma
abordagem que procura no método distintamente argumentativo e “orientado
ao consenso” - bem mais que na posição institucional revestida - o meio para
afirmar a própria judicial acconuntability e, em definitivo, a própria legiti-
macy46: a única abordagem, de resto, capaz de gerir o pluralismo que nasce do
confronto de 47 sistemas profundamente diversos do ponto de vista histórico,
jurídico, ordenamental, cultural; e de abrir-se à consideração daquela “margem
nacional de apreciação”, que permitiu gradualmente adaptar o ius commune às

42 Um exemplo emblemático é a importante decisão da Corte, de 17 de setembro de 2009, Scoppola c. Italia,


que, como se dirá (infra, § 4), afirmou pela primeira vez a relevância convencional, no contexto do art. 7
CEDH, do princípio da aplicação retroativa da lex mitio .
43 Assim, ainda, V. Zagrebelsky, La convenzione europea dei diritti dell’uomo, cit., 58; note-se, todavia, que a
tese “pluralista” sustenta que as sentenças da Corte tenham eficácia direta e exclusiva e que vinculem, também, Es­
tados terceiros, já que é a jurisprudência europeia que irá concretizar e “renovar” os conteúdos da Convenção: sobre
o ponto, cf. A. Esposito, Il diritto penale “flessibile”, cit., 114 ss.
44 G. Canivet, Les influences croisées entre juridictions nationales et internationales: éloge de la ‘benévo-
lence'des juges, in Revue de science criminelle et de droitpènal comparé, 2005, 799.
45 Sobre o ponto, cf. as reflexões de M. Vogliotti, Introduzione a AA.VV., Il tram onto della m odernità
giuridica, cit., 1 ss., 18, que reconhece um “sinal evidente - também neste caso - do retorno do saber jurí­
dico no curso da razão prática”.
46 É um método que parece preestabelecido também pela Corte de Justiça da União Europeia, que sublinha estes
aspectos à luz de um instrutivo afresco de comparação entre a Corte de Cassação Francesa, a Suprema Corte
Americana e a Corte de Luxemburgo, M. Lasser, Judicial Deliberations. A com parative Analysis of Transpar-
ency and Legitimacy, Oxford University press, 2004 [sobre este, veja-se a análise di U. Mattei, W hat do we
lack? Mitchel Lasser, “Judicial Deiberations” : Book Review, in Global Jurist, vol. 7, Iss. 2 (Topics), Article 3].

93
Vittorio Manes.

especificidades domésticas, de “conjugar o universalismo dos direitos hum a­


nos com o relativismo das tradições nacionais”47, dosando as soluções com o
m edidor da razão, e com um a “transparência argum entativa” assegurada tam ­
bém por mecanismos como a dissenting opinion.
Isso se refere, sobretudo, ao fato de que as decisões da Corte de Estras­
burgo - também as sentenças “de princípio” da Grande chambre, “definitivas”
por expressa previsão convencional (art. 44 co. 1°) - são decisivamente polari­
zadas sobre o caso concreto, bem mais do que sobre a norma-princípio da qual
se faz aplicação (e muito menos sobre direito nacional subjacente ao thema
decidendum, que resta todo confiado aos juízes nacionais, enquanto “jurisdic-
tions m ieuxplacèes”): além disso, “é afirmação constantemente repetida pela
Corte Europeia que a Convenção não se ocupa dos direitos abstratos, mas da
concretização dos direitos de titularidade de cada indivíduo, pelo simples fato
de achar-se na jurisdição de um estado europeu” (art. 1 da CEDH)48.
O caso está no centro, portanto; e o caso é o lugar onde fato e direito
se entrelaçam 49, em um a forma híbrida que somente com m uita cautela permite
destilar o princípio para aplicá-lo a um a outra, a um a diversa “fattispecie” (no
significado etimológico de “species fa c ti”).
Com efeito, o estilo argumentativo e a “concretude” do juízo recordam
mais a “jurisprudência dos interesses” que não a Begriffsjurisprudenz, sendo aber­
tos e sensíveis às soluções do problema mais do que ao sistema e à sua orga-
nicidade; e o mesmo raciocínio da Corte - ao seu atento conhecedor - parece
não “dogmático” e nem “sistemático”, mas sim insculpido em um “sincretismo
pragmático”50. Se é assim, antes de poder fazer aplicações de uma ratio decidendi
(ou de um obiter dictum) de uma decisão (especialmente se pronunciadas em face
de outro Estado51), é necessário ter muito “respeito” ao contexto no qual se inscre­
ve e, sobretudo, à sua especificidade, às razões e às contingências que determina­
ram aquela solução, aquela particular escolha na ponderação dos interesses confli­
tantes; verificar atentamente a analogia entre o caso decidido em sede europeia e o
caso doméstico, antes de poder “importar” o princípio afirmado em Estrasburgo52.

47 Segundo a famosa posição de M. Delmas Marty e J. F. Coste, Les droits de l’hom me: logiques non
standard, in Le Genre Humain, 1998, 136: a margem de apreciação identifica “o direito de cada estado de
invocar as peculiaridades do próprio sistema jurídico para justificar certo desperdício das prescrições da
convenção” (a tese foi recentemente objeto de reflexões de F. Tulkens-L. Donnay, L a teoria del m argine
nazionale di apprezzam ento e la C orte europea dei d iritti delTuomo: paravento giuridico o criterio
interpretativo indispensabile?, em ius17@unibo.it, n. 2/2008, 419 ss., à qual se remete também para um
balanço total sobre o conceito).
48 Assim, V. Zagrebelsky, Corte, Convenzione europea dei diritti dell’uomo e sistema europeo di prote-
zione dei diritti fondamentali, cit., 356; ainda, Id., La Convenzione europea dei diritti delTuomo, cit., 59.
49 Cf. ainda M. Vogliotti, T ra fatto e diritto, cit., passim.
50 J. P. Costa, Il ragionam ento giuridico della C orte europea dei d iritti dell’uomo, cit., 440.
51 Cfr. M. Cartabia, Le sentenze “ gemelle”, cit., 3573.
52 Além disso, a própria Corte Constitucional, recentemente, em referência à possibilidade de utilização do prin­

94
As garantias fundamentais em matéria penal.

Somente a título exemplificativo: seria um pouco arbitrário inferir de


decisões como Craxi c. Italia53 o Von Hannover c. Germania54 um princípio
“abstrato” com base no qual o “direito ao respeito à vida privada e familiar”
(art. 8 CEDH) deve ser reconhecido sempre como prevalente sobre o “direito de
informação”, reconhecido pela refração da “liberdade de expressão” (art. 10); e
talvez acreditar que esta ponderação seja sucessivamente invertida a favor da “li­
berdade de informação” em decisões como Dupuis c. Francia55, Riolo c. Italia56,
cípio afirmado na decisão Sud Fondi c. Italia, ressaltou a importância de observar com atenção a analogia entre o
caso específico objeto de uma decisão da Corte de Estrasburgo e o caso no qual o juiz interno é chamado a julgar;
qual pressuposto necessário que justifica a extrapolação de um princípio afirmado em sede europeia e aplicação
no juízo doméstico (Corte cost., n. 239/2009).
53 Corte EDH, 17 de julho de 2003, Craxi c. Italia. Em 1995, diversas interceptações telefônicas privadas do
recorrente são publicadas nos maiores jornais de circulação nacional. O recorrente lamenta a violação do direito
à privacidade e, depois do desfecho negativo da causa judiciária interna, recorre à Corte europeia. O juiz de
Estrasburgo acolhe as queixas destacando a falta de um dos requisitos que legitimam a derroga ao artigo 8, ou
seja, aquele da “previsão legal”, não entendendo necessário para tanto realizar uma avaliação da existência de um
interesse legítimo e da proporção com o interesse público. Na visão da Corte, em particular, a lei italiana obrigava
a convocação das partes em audiência, na qual seriam canceladas todos os registros inúteis para a justiça (restava,
portanto, errônea a avaliação do juiz italiano que havia entendido que tal garantia era aplicável somente às inter-
ceptações de ambiente e não às interceptações telefônicas). Em suma, a inobservância de uma fase processual, que
teria garantido a tutela à privacidade, caracteriza a violação por parte do Estado Italiano.
54 Corte EDH, 24 de junho de 2004, Von Hannover c. Germania. Nos anos 90, diversos jornais alemães
publicam as fotos da vida privada da Carolina de Mônaco, que se dirige às autoridades judiciárias para pedir
tutela do próprio direito de privacidade. A questão chega até ao Bundesverfassungsgericht que, porém, rejeita
quase que integralmente os pedidos. A recorrente vai à Corte europeia lamentando a ausência da tutela no
ordenamento alemão (com base na vasta disciplina francesa, onde a lei impedia a publicação das fotos). A
Corte reconhece, no âmbito do direito à privacidade, a existência de obrigação positiva de tutela por parte dos
Estados e ressalta a sua inexistência no caso concreto, diante de um balanço entre os arts. 8 e 10 CEDH, com
prevalência do primeiro, em particular em razão do fato de que a recorrente não desempenhava nenhum cargo
oficial no ordenamento monegasco que legitimasse a publicação de notícias privadas, sendo que a publicação
tinha, em realidade, somente a função de satisfazer a curiosidade da opinião pública, e não de informar as
pessoas sobre questões de interesse geral.
55 Corte EDH, 7 de junho de 2007, Dupuis e altri c. Francia. Em 1993, por ocasião de um escândalo sobre
interceptações efetuadas pelo governo francês, é publicado um livro com os nomes das pessoas envolvidas
no caso; o então diretor de gabinete ingressa com ação contra os autores e redatores da obra, os quais aca­
bam sendo condenados por difamação. No recurso à Corte, faz-se valer a violação do direito de liberdade
de imprensa garantido pelo art. 10 CEDH. A Corte, por entender subsistente a previsão legal e o legítimo
propósito, reconhece violação da Convenção, não tendo sido respeitado corretamente o terceiro, e último, re­
quisito da “necessidade de intervenção em uma sociedade democrática” (um requisito que representa a sede
típica do equilíbrio entre interesses públicos e privados, e que resulta, com frequência, determinado pelas
soluções relativas ao direito previsto no art. 8 CEDH). Em particular, os fatos relatados eram de interesse da
sociedade civil e, por tal motivo, devia garantir-se a livre informação, desconsiderando-se a existência de
crime de difamação, também pelo fato de que as informações já eram, em grande parte, de domínio público.
Enfim, também o rigor sancionatório, à luz do princípio da proporcionabilidade de intervenção e de uma
avaliação do caso concreto, vem considerado excessivo.
56 Corte EDH, 17 de julho de 2008, Riolo c. Italia. Em consequências do estudo da tragédia de Capaci*, o jor­
nal Narcomafie publica um artigo tripundiando a escolha do presidente da província em habilitar-se como parte
civil, considerando as más companhias que o mesmo frequentava (particularmente, seu irmão). Condenado por
difamação, o autor recorre à Corte europeia. O juiz de Estrasburgo destaca a violação do art. 10 CEDU (não
subsistência do requisito-limite da necessidade da medida adotada, por aplicação do parágrafo 2° do art. 10
CEDH, e ainda tendo em vista a severidade da pena aplicada). No entendimento da Corte, o político desempe­
nhava uma função pública e encontrava-se em situação que justificava a ridicularização por parte da imprensa,

95
Vittorio Manes.

Kydonis c. Grécia51, ou Porubova c. Russia58, terminando por inferir-se que os


direitos personalíssimos (honra e reputação) violados, se referentes a “pessoas
politicamente expostas”, são sempre destinados a sucumbir perante o interesse
público à informação (interesse alegadamente reconhecido como “necessidade
em um a sociedade democrática”).
M as, cada decisão, resolvendo de m aneiras diversas o paralelogram a
de forças contrapostas subjacentes aos direitos em jogo, sanciona a prevalên­
cia ora de um e ora de outro, segundo as particularidades do caso concreto;
sempre pela perspectiva de aferir, no caso singular, a violação (ou não) da
garantia da convenção por parte do Estado contratante e, portanto, a proce­
dência ou não daquele recurso individual.
Além disso, os direitos hum anos são “direitos históricos, nascidos em
precisos contextos e circunstâncias, em meio a reivindicações e lutas para
realizá-los, efeito ao m esm o tem po de um desenvolvim ento do pensam ento e
da realidade social”59, e é um processo lento aquele que - m ovendo a partir
da experiência da injustiça60, e perpetrando-lhe a mem ória61 - conduz do
reconhecim ento dos direitos do “cidadão de um singular Estado” - e, quanto
ao que aqui interessa, do acolhim ento de um único recurso individual - ao
reconhecim ento dos direitos do “cidadão do m undo”62.

sobretudo em relação ao altíssimo interesse público pelo caso. Além disto, admitindo o tom irreverente da
publicação, destaca-se que os dados dos fatos narrados não foram colocados em discussão.
57 Corte EDH, 2 de abril de 2009, Kydonis c. Grecia. Um jornal helênico reproduz, em um artigo, a carta de um
vizinho de um representante político com conteúdo difamatório em relação a este. Por tal motivo, o primeiro é
condenado à pena privativa de liberdade. A Corte europeia entende que a sentença constituiu violação ao art. 10
CEDH, não sendo a intervenção necessária em uma sociedade democrática (art. 10, parágrafo 2° CEDH). De um
lado vem detectada a subsistência de um interesse público, tendo em vista a posição do sujeito difamado dentro
da sociedade. De outro lado, afirma-se que a privação da liberdade, em geral, nunca é proporcional no confronto à
tutela da liberdade de imprensa, salvo em caso de violação de um dos direitos fundamentais da pessoa, ou de inci­
tação ao ódio e à violência (além disso - por reconhecer a Corte o limite do próprio horizonte cognitivo - parece
desempenhar um papel importante, no juízo, a afirmação da plausabilidade dos fatos relatados).
58 Corte EDH, 8 de outubro de 2009, Porubova c. Russia, que reconheceu a violação da liberdade de expressão
em relação ao caso de uma jornalista russa condenada por difamação, por ter publicado um artigo afirmando
que o governador regional tinha subtraído fundos públicos em favor de um alto funcionário, ressaltando a
existência de uma relação homossexual entre os dois; e onde afirma, em particular, que as restrições à liberdade
reconhecidas pelo art. 10 CEDH podem ser admitidas somente na presença de “motivos muito fortes”, os quais
devem ser demonstrados ao juiz nacional.
59 Assim, na esteira da célebre reflexão de N. Bobbio (Introduzione, in Id., L ’età dei diritti, Torino, 1997,
pp. XI-XII), M. Flores, Storia dei diritti um ani, Bologna, 2008, 13; sobre “historicidade, cf. sobretudo, M.
Ignatieff, Una ragionevole apologia dei diritti um ani, cit., 57 ss.; sobre o ponto, veja-se, também, D. Zolo,
Fondam entalism o um anitario, cit., 139.
60 Recentemente, A. Dershowitz, Rights from wrongs. Una teoria laica delle origini dei diritti, Basic Book
2004, trad. it., Torino 2004, XVII.
61 Como foi escrito, “ [...] a linguagem dos direitos humanos é intimamente conexa com a memória do mal” :
S. Veca, La priorità del m ale e l’offerta filosofica, Milano, 2005, 15.
62 Remete-se, por último, às ricas observações introdutivas di G. Mannozzi, Pena e trattam ento tra conven­
zione europea e diritto interno, em curso de publicação em AA.VV, La convenzione europea dei diritti
dell’uomo nell’ordinam ento penale italiano, a cura di V. Manes-V. Zagrebelsky.

96
As garantias fundamentais em matéria penal.

4. A legalidade penal e as u lterio res g a ra n tia s “ d estiladas” do a rt. 7 da


CED H : as recentes decisões da C orte em m a té ria de culpa e retro ativ id ad e
da lex m itior e a progressão ao m axim um sta n d a rd .

Estes esclarecimentos traçam um contexto que não muda quando a


atenção se volta para as garantias penais, que foram paulatinamente extraídas
a partir do “texto escasso” do art. 7°, CEDH (“Nenhum a pena sem lei”): um
princípio que, junto aos direitos sancionados nos arts. 2° (“Direito à vida”),
3° (“Proibição da tortura”) e 4°, par. 1° (“Proibição da escravidão”), se insere
naquele Kernbereich que, no sistema convencional, não admite nenhuma exce­
ção [nem em caso de guerra [...] ou de outro perigo público que ameace a vida
da nação” : art. 15, parágrafo 2°, CEDH], e que como tal é, afinal, considerado,
sendo reconhecido o nullum crimen sine lege - são palavras da mesm a Corte
- “an essential elem ent o f the rule o f Law ”, de m aneira a ocupar “a prominent
place in the Convention system o f protection”63.
Com isto, todavia, não se pretende desvalorizar o significado “de princí­
pio” de alguns pareceres - também recentes - que justamente em matéria penal
conduziram a Corte europeia a reconhecer “cidadania convencional” a algumas
garantias que antes ficaram em segundo plano na sua jurisprudência (ou foram
apreciadas através do prisma de outras garantias: no ponto, infra, § 8.1), e depois
foram valorizadas, talvez registrando um “novo” consenso europeu sobre o perfil
específico por vezes objeto de consideração, segundo uma direção que - não di­
ferentemente do que é possível registrar na jurisprudência da Corte de Justiça 64-
parece privilegiar a avaliação do maximun standard (ou seja, o nível de garantia
qualitativamente mais alto, reconhecido somente em um dos Países membros),
mais do que a “orientação prevalente” ou a better law (ou seja, o nível de garan­
tia quantitativamente mais difundido nos diversos países).
Por um lado, pode-se pensar na decisão Sud Fondi c. Itália65, na qual
pela primeira vez veio à tona - mesmo que de maneira discreta - o reconheci­
mento do princípio da culpabilidade como alternativa ao princípio da legalidade
reconhecido pelo art. 7°, CEDH; por outro, na recentíssima decisão Scoppola c.
Itália, na qual pela primeira vez se reconheceu o princípio da aplicação retroati­
va da pena mais leve como outra projeção do nullum crimen sine lege, aceitando,

63 Liivik c. Estônia, 25 de junho de 2009, § 92.


64 A respeito, V. Manes, I rap p o rti tr a diritto com unitario e diritto penale nello specchio della giurispru-
denza della C orte di giustizia: approdi recenti e nuovi orizzonti, in AA.VV., L ’interpretazione conforme al
diritto comunitario, cit.
65 Corte europeia de Direitos Humanos, 20 janeiro de 2009, Sud Fondi c. Italia, in Cass. pen., 2009, pp.
3180 e ss., com comentários de A. Balsamo-C. Parasporo, La C orte europea e la confisca contro la
lottizzazione abusiva: nuovi scenari e problemi aperti; e in Dir. pen. proc., 2010, com comentários de F.
Mazzacuva, Un “h a rd case” davanti alla C orte europea: argom enti e principi nella sentenza su Punta
Perotti (em vias de publicação).

97
Vittorio Manes.

assim, uma orientação já consolidada no interior da jurisprudência da Corte de


justiça da Comunidade europeia66.
Trata-se de decisões evidentemente importantes, que sancionam um
indiscutível “incremento das garantias”, inserindo-as nas “tradições constitu­
cionais comuns” dos Estados membros e que prometem efeitos certos em cada
contexto doméstico; mas que permanecem, todavia, ainda vinculadas à sua
historicidade e à concretude da situação que as gerou e indicam uma direção,
ao invés de um destino alcançado.
Assim, quando na decisão Sud Fondi c. Itália afirma-se que o princípio
da legalidade impõe que um tipo específico de confisco que tenha características
intrinsecamente punitivas nunca possa prescindir - como qualquer sanção penal
- de uma verificação da responsabilidade que compreenda o seu aspecto psicoló­
gico [embora na sua forma mínima de um “lien de nature intellectuelle (conscien-
ce e volonté) ”], certamente se oferece ao “princípio da culpabilidade” um novo
enquadramento perspectivo, coerente com as instâncias do conhecimento do co­
mando legal, relacionadas ao art. 7°, CEDH (infra, § 5), e um fundamento que no
contexto italiano - por exemplo - provém tradicionalmente de uma leitura sis­
temática do princípio da personalidade da responsabilidade penal e do princípio
da reeducação67, e que, ao invés, no ordenamento alemão, com muito mais força
expressiva, tende agora a radicar no mesmo princípio da “dignidade humana”68,
delineando-se também sensíveis efeitos naqueles ordenamentos nos quais uma
consolidada jurisprudência69, ou talvez a própria lei, permitem ordenar tais hipóte­
ses de confisco, mesmo que somente na base da averiguação da “materialidade do
ilícito” ou da antijuridicidade do fato (Rechtswidrigkeit)10, prescindindo, portanto,
66 CGCE, Grande seção, 3 de maio de 2005, Proc. C-387/02, C-391/02 e C-403/02, Berlusconi e outros, in
Cassazionepenale, 2005, pp. 2764 e ss. (com comentários de G. Insolera-V. Manes, La sentenza della Corte
di Giustizia sul “falso in bilancio” : un epilogo deludente?), onde se afirma - pela primeira vez naquela sede
- que “o princípio de aplicação retroativa da pena mais amena faz parte das tradições constitucionais comuns
dos Estados Membros (ponto n. 68) e que “disto deriva que tal princípio deve ser considerado como parte in­
tegrante dos princípios gerais de direito comunitário que o juiz nacional deve observar quando aplica o direito
nacional adotado para atuar no ordenamento comunitário [...]” (ponto n. 69).
67 Por todos, F. Bricola, Teoria generale del reato, cit.
68 Segundo o Bundesverfassungsgericht, como revelado na última decisão BverfG 30.6.2009 (c.d. Lissabon-
Urteil), § 364, “o direito penal se baseia no princípio da culpabilidade, que pressupõe a autorresponsabilidade
(Eigenverantwortung) do homem, que determina o seu próprio agir, e que pode decidir por força de seu livre
arbítrio (Willensfreiheit) entre o lícito e o ilícito. Na base da tutela da dignidade humana, põe-se a ideia do ser
humano como ser espiritual-moral (geistig-sittlichen Wesen), que por isso é levado a determinar-se e a projetar-
se em liberdade [...]. No campo penal, o art. 1° Abs. 1 GG determina a concessão da essência da pena e a rela­
ção entre a culpabilidade e a punição. [...]. Il principio in base al quale ogni pena presuppone la colpevolezza,
ha perciò il suo fondamento nella garanzia della dignità umana di cui a ll’art. 1, co. 1, GG” (grifos nossos).
69 Assim, entende a Corte de Cassação Italiana, com uma orientação consolidada, por exemplo, no re­
ferente às hipóteses especiais de confisco c.d. urbanística previsto no art. 44, parágrafo 2°, do d.p.r.
380/2001 (cfr. infra, § 5.2.2).
70 Assim, expressamente, o § 73 do StGB, que entre os pressupostos do confisco prevê a mera “comissão de um fato
antijurídico” (rechtswidrige Tat), segundo a definição ofertada pela norma definitória do § 11 (n. 5). O fato antijurí-
dico deve somente ser descrito no caput da imputação e verificado pelo juiz do fato (Tatrichter): sobre esse ponto,

98
As garantias fundamentais em matéria penal.

de uma verificação sobre a responsabilidade do autor, garantido pelo respeito ao con­


traditório71. Todavia, a “historicidade” do contexto em que surgiu aquela decisão72
não parece permitir uma generalização com base na qual - por exemplo - a sanção
ablativa não possa ser sentenciada em caso de prescrição intercorrente; nem, mais
genericamente, parece permitir considerar que aquele pronunciamento seja uma in­
versão em relação às decisões anteriores com as quais o Tribunal aceitou, por parte
dos Estados contraentes, a previsão de hipótese de responsabilidade objetiva73.
De forma análoga, afirmar a relação do art. 7°, CEDH também com o
princípio de retroatividade da lex mitior - até agora expressamente reconhecido
somente pelo Pacto internacional dos direitos civis e políticos (art. 15) e pela Car­
ta dos direitos fundamentais da União Europeia (art. 49) - marca certamente mais
um avanço em direção a uma progressão garantista que, por exemplo, no ordena­
mento italiano, já o reconheceu também em nível constitucional como derivação
do princípio da igualdade (art. 3°, Constituição)74: mas esta afirmativa, para além
da sua futura consolidação75, nada diz ainda - por exemplo - sobre os limites do
julgado previstos como impedimento à operacionalidade da lex mitior no art. 2°
do Código Penal; nem sobre os equilíbrios aos quais este mesmo princípio poderá
ser exposto76, em âmbito convencional e naquele interno; e tampouco se aquelas
“legitimas exceções em nível constitucional” que, de acordo com a jurisprudência
constitucional italiana, poderão ser aplicadas ao princípio a nível nacional para dar
espaço “a interesses de análoga importância” 11, poderão ser compatíveis com a nova
sinteticamente, K. Lackner-K. Kuhl, Strafgesetzbuch mitErlãuterung, 23. Auflage, München, 1999, § 73, Rn. 2.
71 Cfr., nesse ponto, V. Manes, Nessuna interpretazione conforme al diritto com unitario con effetti in
m alam partem , em curso de publicação, em Cass. pen., 2010.
72 Tratava-se de um processo culminado em uma absolvição por carência de elemento psicológico e, portanto,
em uma absolvição com a fórmula “porque o fato não constituiu crime”.
73 Cfr. a sentença de 7 de outubro de 1988, caso Salabiaku v. França.
74 Cfr., sobre a última, as sentenças da Corte Constitucional n. 393 e n. 394, de 2006 (a primeira em Dir.
e giustizia, n. 45/2006, com comentários de P. Ferrua, e em Dir. pen. proc., n. 2/2007, pp. 194 e ss., com
comentários de D. Pulitanò; a segunda em Dir. e giustizia, n. 46/2006, pp. 28 e ss., com notas de V. Manes).
Em síntese, os argumentos que consentiram com uma cotação do princípio da lex mitior (reconhecido ex­
pressamente somente no art. 2° do Código Penal italiano) em nível constitucional, no contexto do princípio
da igualdade, baseiam-se no fato de que tal instância reclama a extensão de tratamento a favor de condutas
que - uma vez mudado o entendimento legislativo sobre o objetivo desvalor - conservam uma diferença
marginalizada à subjetiva desobediência ou infidelidade à lei demonstrada pelo autor que tenha cometido o
fato proibido vigente (ou vigente a lei mais severa); nesta perspectiva, o princípio da aplicabilidade retroati­
va da lex mitior seria uma ulterior confirmação da compreensão objetivista do ilícito penal no ordenamento
italiano, do qual também o princípio de igualdade seria garante.
75 Cético a respeito, v.g., G. De Amicis, Il principio di legalità nella g iurisprudenza delle c o r t i eu-
ropee, in I quaderni europei, outubro de 2009, 8 (em www.lex.unict.it/cde/quadernieuropei), relevando
como a presença de uma opinião discordante sobre a correção da recondução do princípio da lex mitior
no âmbito de aplicação do art. 7° “induz inevitavelmente a prudentes avaliações prognósticas na ordem
de consolidação deste novo endereço [...]”.
76 Busca-se, em síntese, prospectar a problemática destas ponderações em uma escala de “multiplos níveis”,
já em outro trabalho: L’applicazione retroattiva delia pena piu mite; prove di dialogo “multilevel”, in Qua­
derni costituzionali, n. 2/2007, pp. 374 e ss., pp. 376 e ss.
77 Neste sentido, vê-se a sentença da Corte Constitucional n. 393/2006, que aponta a afirmação da possibilida­

99
Vittorio Manes.

avaliação europeia e, em caso negativo, se e como a incompatibilidade eventualmen­


te identificada em Estrasburgo será aceita em Roma pelo Tribunal Constitucional78.
Também neste caso, portanto, a “concretude” do julgamento da Corte - e as
peculiaridades do caso “Scoppola” - deverão ser consideradas.

5. O âm bito de aplicação das garantias penais: a equiparação do “direito


jurisprudencial” à “lei” e o conceito de “m atéria penal”.

Além destes esclarecimentos, na perspectiva exclusivamente penal, o


“incremento das garantias” - também nas direções específicas recém menciona­
das - pode ser compreendido por inteiro somente inserindo-as no sistema com
outras notas distintivas da legalidade convencional, pouco a pouco afinadas à
jurisprudência de Estrasburgo e mostrando, desde já, como o resultado é uma
significativa extensão do respectivo âmbito de aplicação (Schutzbereich) em um
quadro global que se mostra hoje muito rico de conexões e de novidades para o
jurista italiano que o veja somente do observatório do direito penal substancial.
A contribuição da novidade provém, por vezes, da “fusão de horizontes” en­
tre o universo da civil law e aquele da common law, com a consequente adaptação do
nullum crimen em relação às fontes; por vezes, da abordagem necessariamente an-
tiformalística do Tribunal, sempre inspirada pela necessidade de encontrar soluções
adaptáveis às 47 realidades em que está operando, com a adaptação necessária do
conceito de pena de acordo com critérios que antepõem a “substância” à “forma”79.

5.1. A legalidade do direito jurisprudencial, dos m ala in se aos m ala quia


prohibita.

A “fusão de horizontes” entre os universos da civil law e da common law


é perceptível imediatamente pelo modo de expor o problema da legalidade penal,

de de impor derrogas legítimas à operatatividade da lex mitior “quando embasadas de justificações razoáveis”;
e a mesma Corte revisou - por exemplo - derrogas legítimas na sentença n. 394/2006, que estabeleceu a não
operatividade da lex mitior no condizente a uma disciplina penal ilegítima; diversamente, é excluída a razoabi-
lidade da derroga na mais recente sentença n. 215/2008 (em Giur. cost. 2008, 2399 ss., com comentários de M.
Gambardella, R etroattività delle legge penale favorevole e bilanciam ento degli interessi costituzionali).
78 Sobre diverso plano de relatos com o direito comunitário, é oportuno notar, no que diz respeito, que as
eventuais dissimetrias entre as dimensões comunitária do princípio e aquela interna sempre devem resolver-se
no senso da prevalência da interpretação da Corte de Justiça da Comunidade europeia sobre aquela datada da
Corte Constitucional, segundo princípio afirmado pela própria Corte de Luxemburgo em matéria de princípio
da igualdade (a consequência, portanto, é a obrigação de não aplicação, por parte do juiz natural, da norma
interna contrastante com a interpretação europeia: CGCE, 7 de setembro de 2006, C-81/05).
79 Cfr., por todos, A. Bernardi, Art. 7 “ Nessuna pena senza legge”, in S. Bartole-B. Conforti-G. Raimondi,
Com m entario alla Convenzione europea p e r la tutela dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali,
Padova, 2001, pp. 249 e ss., pp. 259 e ss.; E. Nicosia, Convenzione europea dei diritti dell’uomo e diritto
penale, Torino, 2006, pp. 56 e ss.; F. Viganò, Diritto penale sostanziale e Convenzione europea dei diritti
dell’uomo, cit., pp. 42 e ss., pp. 52 e ss..

100
As garantias fundamentais em matéria penal.

que na jurisprudência do Tribunal transita pela equiparação fundamental - no plano


das fontes - entre lei (statutory law) e jurisprudência (judicial law). Resulta que, do
“princípio da legalidade” (art. 7°, CEDH), são valorizados os conteúdos “básicos” e
“anacrônicos”, ou seja, a acessibilidade e a previsibilidade (accessability/predictabi-
lity) do comando legal e disso deriva que também na hipótese em que a norma seja
de derivação jurisprudencial isto deva ser foreseeable e predictable, ou seja, deva
respeitar alguns critérios em que as exigências de certeza legal se compenetram com
as exigências de culpabilidade/conhecibilidade por parte dos associados.
Assim, quanto aos corolários do nullum crimen e ao âmbito de apli­
cação destes, é afirmação consolidada que a garantia da irretroatividade se
aplica tam bém ao direito jurisprudencial e, em particular, tanto à “nova inter­
pretação” jurisprudencial sobre uma legislação “obscura”, quanto à m udan­
ça jurisprudencial desfavorável e im previsível (o assim chamado overruling
com efeitos in malam partem ), porque ambas as hipóteses podem ser com pa­
radas à introdução de um novo preceito normativo.
Esta extensão reflete, por outro lado, uma orientação consolidada, pelo me­
nos na afirmação do princípio; mas a novidade é que, recentemente, por um lado, à
enunciação do princípio seguem sentenças que reconhecem a violação da garantia
(art. 7°)80, e, por outro, que o princípio encontrou aplicação também em setores es­
pecializados do Nebensstrafrecht, e, particularmente, em matérias construídas sobre
uma destacada “acessoriedade administrativa” (Verwaltungsaksessorietat) do pre­
ceito penal, como no caso Pessino c. França81; matérias caracterizadas por um in­
discutível índice de artificialidade (mala quia prohibita) e profundamente distantes,
portanto, do caso de marital rape (violência sexual entre cônjuges), em que pela
primeira vez foi afirmada a irretroatividade do overruling imprevisível (naquele caso
não reconhecendo, entretanto, a violação do art. 7°, CEDH, diante da presumida pre­
visibilidade da mudança devida à evolução da consciência social)82.
80 Cfr. a já citada sentença de 25 de junho de 2009, Liivik v. Estônia, em curso de publicação em ius17@
unibo.it, n. 2/2009, com comentários de G. Abbadessa, Una nuova violazione dell’art. 7 C edu: la sentenza
Liivik c. Estonia e i significati della legalità penale convenzionale. O evento é motivado por uma decisão
de condenação na qual o elemento de “dano” previsto como requisito constitutivo do crime de “misuse o f
official position” (uma espécie de improbidade administrativa), em um complexo evento de privatizações,
foi considerado integrado tendo em vista a causação de um “significant moral damage to he interests o f the
State”, com uma leitura extensiva do ditado normativo que - no parecer da Corte - o recorrente “could not
reasonably foresee”; assim, a mesma norma - nas suas possibilidades interpretativas e aplicativas - resultou
contaminada, implicando “o uso de noções tão amplas e de critérios totalmente vagos” a não resultar “da
qualidade requerida pela Convenção em termos de clareza e de previsibilidade dos seus efeitos” (§ 101).
81 CEDH, 10 de outubro de 2006, Pessino v. França, no mérito de uma questão concernente à incerteza interpre-
tativa (e jurisprudencial) de um ilícito-típico penal no setor urbanístico, onde a Corte afirmou que, “na falta de uma
interpretação jurisprudencial acessível e razoavelmente previsível, as exigências do art. 7° não podem ser considera­
das respeitadas [...]”. É assim reconhecida a violação do art. 7° da CEDH, visto que o recorrente, nem com o auxílio
de consultorias legais teria podido perceber a ilicitude penal do próprio agir. E também é de se notar que - segundo
consta - trata-se da primeira vez em que é reconhecida a violação, mesmo que o princípio já viesse sendo afirmado,
porém negando-se sempre em concreto a violação, considerando a reconhecida previsibilidade do overruling.
82 O referência é acerca da célebre sentença da CEDH, de 22 de novembro de 1995, .W. e C.R. v. Reino Unido,

101
Vittorio Manes.

Isto parece testemunhar um efeito de propagação do espírito da Common


Law - e da exigência de “previsibilidade social” a este condicionada - muito
além do âmbito das Kulturnormen. Aliás, a conclusão parece justamente esta:
onde não existem “normas de cultura” que possam orientar a “previsibilidade
social”, a mudança jurisprudencial é indiciada de imprevisibilidade e entra em
colisão com a garantia do nullum crimen83.
É apenas o caso de evidenciar as consequências que a importação de um
princípio similar implicaria no contexto italiano, que desconhece o sistema do pre­
cedente vinculador e que enfrenta diariamente aplicações pouco ou nada previsí­
veis, ou seja, conflitos jurisprudenciais sincrônicos e diacrônicos (basta pensar à
questão da cultivação doméstica de maconha, antes considerada sempre penalmen­
te relevante, depois considerada compatível com a finalidade de uso exclusivamen­
te pessoal e, por fim, novamente considerada sempre excluída do campo de causa
do art. 73, parágrafo 1° bis do d.p.r. n. 309/1990 de acordo com a decisão rigorosa
das Seções Unidas)84; e onde - diga-se de passagem - as mudanças jurispruden-
ciais podem ter importância, ao estado, somente dentro dos espaços limitados do
erro inevitável de direito (ex art. 5° do Código Penal, de acordo com o andamento
marcado pela Corte const. n. 364/1988), hipótese (apenas) escusável, todavia de
raríssima aplicação na jurisprudência da Corte de Cassação85.
Poderia ser formulada como hipótese a solução do prospective overruling,
com base a uma solução que encontra “precedente” importante em uma decisão
recente do Tribunal de Cassação francês86; mas, persistindo uma jurisprudência
irregular determinada pelos defeitos congênitos do texto normativo (uso de ele­
mentos descritivos indeterminados; utilização de critérios interpretativos vagos),
não se exclui que o reconhecimento de uma “violação estrutural” similar por parte
do Tribunal de Estrasburgo possa servir de estímulo para um pronunciamento pela
na qual se apontou que a evolução jurisprudencial foi considerada “uma etapa razoavelmente previsível” (§ 43),
julgando a causa de não punibilidade a favor do marido - afirmada de uma jurisprudência muito anterior - sobre­
tudo anacrônica, e superada pela mudança da consciência social.
83 Cfr., neste ponto, as análogas observações de G. A bbadessa, U na nuova violazione dell’art. 7 c e d u , cit.
84 Cass. SS.UU., 24 de abril - 10 de julho de 2008, n. 28605 e n. 28606, rel. Fiale, que afirmou o princípio
segundo o qual “constitui conduta penalmente relevante qualquer atividade não autorizada de cultivo de
plantas das quais são extraídas substâncias entorpecentes, bem como quando seja realizada para destinação
do produto ao uso pessoal”.
85 Os perfis problemáticos da questão são analisados, dentre outros, por S. R iondato, R etro attiv ità del
m utam ento penale giurisprudenziale sfavorevole tr a legalità e ragionevolezza, in AA.VV., D iritto e
clinica p e r l ’analisi della decisione del caso, Atas do seminário internacional, Padova, 27-28 de janeiro
de 1999, Padova, 2000.
86 Tribunal de Cassação francês, Ass. plén., 21 de dezembro de 2006, in Dalloz, 2007, pp. 835 e ss.,
com comentários de P. Morvan, Le sacre du revirem ent pro sp ectif s u r l ’autel de l ’équitable, ao qual
- mudando a própria orientação precedente - estendeu o princípio da irretroatividade ao precedente des­
favorável, em um caso onde a “nova” jurisprudência acabou desatendendo a anterior orientação da Corte
de Apelação, abreviando os términos das prescrições em tema de ação de ressarcimento dos danos à pre­
sunção de inocência atraves da imprensa (art. 65, parágrafo 1, l. 21 de julho de 1881). O referido é também
citado em V. Z agrebelsky, L a convenzione europea, cit., 73, n. 66.

102
As garantias fundamentais em matéria penal.

Corte constitucional, como se sabe muito relutante em utilizar o princípio da taxa-


tividade (art. 25, parágrafo 2°, Constituição) em caráter demonstrativo.

5.2. A reserva da harm onização das garantias: o conceito de “m atéria penal”.

Outra preciosa contribuição reside na abordagem antiformalista do Tri­


bunal Europeu, e tem relação com as diferentes declinações garantistas extraí-
veis do art. 7°, CEDH, também para os ilícitos form alm ente diferentes do ilícito
penal, mas com conteúdos a ele semelhantes.
Uma orientação consolidada da definição do conceito de “matiére pe-
nale” (mencionada explicitamente somente para fixar o âmbito de operaciona-
lidade do fa ir process no art. 6°, CEDH, mas a qual se refere para estabelecer
também o perímetro de aplicação das garantias do nullum crimen, ex art. 7°,
CEDH) costuma, de fato, afirmar que as garantias penais aplicam-se para além
dos rótulos formais, e expressa claramente a abordagem pragm ática do Tri­
bunal europeu87: tendo que se deparar - como se mencionou - com 47 países
com tradições culturais, jurídicas e lexicais diferentes, o Tribunal convida a ir
“behind the appearances”, a superar a barreira formal para ir à substância das
coisas, verificando se um a determinada infraction ou um a determinada sanção
(talvez classificada como “adm inistrativa” pelo ordenamento de referência)
tem, ao invés, características que resultam substancialmente ou intrinsecamen-
te punitivas, semelhantes, portanto, à sanção (e/ou ao ilícito penal).
Esta abordagem, certam ente distante dos postulados m ais ortodoxos
da lógica form al, fez da “faiblesse conceptuelle” das noções de m atéria penal
um ponto forte, obtendo um extraordinário e versátil instrum ento de harm o­
nização indireta88 que tende a reforçar as garantias substanciais e procedi­
m entais nos ordenam entos dos Estados contraentes, e percorrendo, assim,
um a direção sim étrica e oposta em relação à harm onização repressiva ali­
m entada pelo direito com unitário89.
Diferentes são os critérios por meio dos quais deve ser conduzida a
avaliação de conteúdo, por vezes divididos em outros sub-critérios: a qualifi­
cação das infrações no direito interno (que, porém, “possui só um valor formal
e relativo”), a natureza da m esm a (caráter da norma transgredida; gravidade da
transgressão), a gravidade (detentiva/não detentiva) e a finalidade (preventiva/
repressiva) da sanção (ameaçada/cominatória/executada) e os procedimentos
87 A abordagem substancialística da CEDH é confirmada, e aprofundada em diversos aspectos, na recente
sentença n. 4 de outubro de 2007, Anghel c. Romênia, in LP, 2007, pp. 631 e ss.
88 Sobre o ponto, cfr. AA.VV., La « m atière pénale » comme flou du droit pénal, a cura del G roupe de
recherche droits de l’hom me et logiques juridiques (dirigido por M. Delmas Marty), in Revue de science
criminelle et droit pénal comparé, 1987, pp. 819 e ss.
89 Cfr., sobre isto, a grande obra de A. Bernardi, L’armonizzazione delle sanzioni in Europa: linee ricostruttive,
in AA.VV., Per un rilancio delprogetto europeo, organizado por G. Grasso-R. Sicurella, Milano, 2009, pp. 381 e ss.

103
Vittorio Manes.

relacionados à sua aplicação e execução (jurisdição, autoridade destinada a


aplicação; natureza do procedimento)90.
Para ficarmos no contexto italiano, é preciso dizer que esta abordagem
“flo u ” já obteve os primeiros importantes resultados em relação ao confisco, ins­
tituto desde sempre dividido entre as medidas de segurança, a área das sanções
especificamente administrativas, e o perímetro das reais penas (patrimoniais),
com um a consequente diferente intensidade do respectivo estatuto garantista.

5.2.1. A primeira importante aplicação registrou-se no setor do “con­


fisco por equivalente” (ou de valor, value confiscation), ou seja, de um tipo de
confisco cujos requisitos estruturais lembram muito mais aqueles de uma pena
patrimonial autônoma que não aqueles de características paradigmáticas disci­
plinadas pelo art. 240 do Código Penal, embora as pertinazes tentativas da juris­
prudência de enganchá-la a este último estatuto disciplinar.
Em especial, por causa da extensão legislativa do “confisco de valores”
aos crimes tributários (extensão prevista com a lei n. 244/2007, em particular o
art. 1°, parágrafo 143, que estendia o confisco de valores introduzido com o art.
322 do Código Penal e da lei n. 300/2000 aos crimes pelos quais previstos no
decreto lei n. 74/2000), tratava-se de verificar a disciplina intertemporal aplicá­
vel, isto é, se fosse para se reconduzir ao princípio do codicismo do tempus regit
actum (art. 200, Código Penal), ou seja, ao princípio oposto da irretroatividade
(art. 25, Constituição; 7°, CEDH). Uma questão diretamente conectada à nature­
za jurídica que se reconhece na hipótese do confisco em análise.
A este respeito, o juiz para as investigações preliminares de Trento chegou
até a levantar a questão de ilegitimidade constitucional do art. 1°, parágrafo 143,
norma que previa a extensão da mencionada forma de confisco sem especificar a
irretroatividade: enquanto isso, todavia, a Corte de Cassação resolveu em nível
interpretativo a questão, reconhecendo a natureza substancialmente penal deste
tipo de confisco e, consequentemente, aplicando o respectivo estatuto garantista91.
90 O paradigma é oferecido pela decisão da CEDH, de 8 de junho de 1976, Engel c. Países Baixos, poste­
riormente aprofundada na CEDH, no caso de 21 de fevereiro de 1984, Oztürk c. República Federal Alemã (in
RIDPP, 1985, pp. 894 e ss., com comentários de C. E. Paliero, ‘M ateria penale’ e illecito am m inistrativo
secondo la c o rte europea dei d iritti dell’uomo: una questione ‘classica' e una svolta radicale) para posterior
aprofundamento, cfr. AA.VV., La « m atière pénale » comme flou du droit pénal, cit.; em outro, A. Bernardi,
Art. 7 “ Nessuna pena senza legge”, cit.
91 Corte de Cassação, Seção III, 24 de setembro de 2008, n. 39172, Canisto, in Cass. pen., n. 9/2009, pp. 3417 e
ss., com comentários de F. Mazzacuva, Confisca per equivalente come sanzione penale: verso un nuovo statuto
garantistico (por outro lado, a Corte Constitucional, com o decreto n. 97/2009, declarou a manifesta improce-
dência ante a possibilidade de interpretação conforme). Nota-se que a obtenção do fato equivale ao confisco “os
traços característicos de uma verdadeira e própria sanção” era, então, patrocinada - além da Corte Constitucional
- desde a Cassação, na sua mais notável composição (SS.UU., 27 de março de 2008, n. 26654, Fisia Italimpianti
Spa e outros, e SS.UU., 10 de julho de 2008, P.M. in proc. De Maio, in Guida dir., n. 44/2008, pp. 72 e ss., e, do
último, SS. UU., 6 de outubro de 2009, rel. Fiale, em curso de publicação, em Cass. pen., n. 1/2010, com notas de
V. Manes, Nessuna interpretazione conforme al diritto com unitario con effetti in m alam partem). Em um

104
As garantias fundamentais em matéria penal.

5.2.2. Outra aplicação muito importante - objeto do já mencionado


pronunciamento do Tribunal Europeu Sud Fondi c. Itália - houve em relação aos
acontecimentos do conjunto habitacional conhecido pelo nome de “Punta Perot-
ti”, originados pelo crime de loteamento clandestino, com consequente aplicação
da hipótese especial de confisco, conhecida como “confisco urbanístico”92.
Particularmente, esta hipótese peculiar de confisco especial, prevista de
acordo com o art. 44, parágrafo 2°, do d.p.r. n. 380/2001 e aplicável em caso de
loteamento abusivo (embora permanentemente considerada de natureza “admi­
nistrativa” por parte da dura jurisprudência da Corte de Cassação), foi justam en­
te considerada como medida intrinsecamente penal, com consequente extensão
das garantias convencionais deduzidas do art. 7°, CEDH, entre as quais, ao lado
das diferentes e tradicionais projeções do nullum crimen sine lege, pela primeira
vez foi concedido espaço também ao princípio da culpabilidade.
Em outras palavras, a sentença Sud fondi c. Itália, reconhecendo a na­
tureza penal ao “confisco urbanístico”, parece ter reconhecido a insuficiência da
verificação da mera “materialidade do ilícito” (como ao invés quer a orientação
do Supremo) e, vice-versa, a necessidade de verificar o coeficiente de culpabi­

evento análogo, uma recente decisão da Corte de Cassação adotou a mesma solução referindo-se à hipótese de
confisco por equivalência prevista na disciplina jurídico-penal do crime transnacional.
92 A sociedade Sud Fondi (com outra sociedade), proprietária de uma propriedade na costa de Punta Perotti (Bari),
estava autorizada a construir um complexo multifuncional (o “ecomonstro” da orla marítima barese, sucessivamente
demolido) com base no plano regulador, no plano de loteamento e na permissão de construir, todos os atos admi­
nistrativos que resultaram - em um segundo momento - ilegítimos; o procedimento penal por loteamento abusivo
terminou com a absolvição “porque o fato não constituía crime” pela falta do elemento subjetivo, dando causa a erro
inevitável sobre direito extrapenal (julgando integrante o preceito: art. 5° do Código Penal italiano); mas o Tribunal
de Bari aplicou o confisco urbanístico previsto no art. 44, parágrafo 2°, dpr. n. 380/2001, julgando suficiente aos
fins da aplicação a mera verificação “objetiva” da integração do tipo de crime; os recorrentes, dirigindo-se à Corte
Europeia dos Direitos do Homem, lamentavam a violação do princípio da legalidade, entendendo que fora aplicada
uma sanção penal segundo leis que não eram previsíveis e acessíveis (violação do art. 7° da CEDH).
Já na decisão da CEDH sobre recebimento de recurso (da Segunda Seção, 30 de agosto de 2007,
Sud Fondi srl e a. c. Itália), reconheceu-se a natureza substancialmente penal do confisco previsto no art. 44 do
d.p.r. n. 380/2001, em razão da estreita conexão com o ilícito penal que a funda, do tipo de autoridade decisora
(o juiz penal), de conteúdo destacadamente punitivo da medida (pela presença de objetivos preventivos), e
também da colocação sistemática da medida no d.p.r. de 2001 (sobre a rubrica de “sanções penais”).
Na decisão definitiva da Segunda Seção (20 de janeiro de 2009, Sud Fondi srl e a. c. Itália), a
Corte europeia reconheceu a violação do art. 7°, rejeitando os argumentos defensivos do Governo italiano,
que sustentava que como a aplicação do confisco urbanístico era de todo previsível, simplesmente seguindo
a verificação objetiva do tipo de crime e não a condenação, que, no caso concreto, não haveria a necessidade
de intervenção, não sendo acessíveis e previsíveis as normas que haveriam fundado a responsabilidade penal.
A Corte, recordando-se de haver já reconhecido, em sede de recebimento, a natureza penal do confisco urba­
nístico, além disso afirmou - aqui é o verdadeiro novum da decisão - que o princípio da legalidade assume
particular significado e intensidade somente se considerado conjuntamente com a presença de certo coeficiente
de culpabilidade e, portanto, de repreensibilidade, embora o art. 7° não estatua expressamente tal corolário. Em
outras palavras, à luz da CEDH, evidencia-se a ilegitimidade da possibilidade de se seguir uma sanção penal a
partir de um fato que as mesmas jurisdições nacionais tenham reconhecido como inculpáveis.
A respeito, por uma reconstrução a partir de ângulo diverso, cfr. G. Tucci, Ascesa e caduta della
confisca “urbanistica”, in AA.VV., Occupazione usurpativa e confische tra Roma e Strasburgo, Atas da
Convenção Nacional , organizado por G. Tucci, Bari, Cacucci, 2009, pp. 61 e ss.

105
Vittorio Manes.

lidade do autor, tendo expressamente afirmado - pela primeira vez - que “la
logique de lapeine et de lapunition [...] vont dans le sens d ’une interprétation
de l ’article 7 qui exige, pour punir, un lien de nature intellectuel (coscience e
volonté) permettant de déceler un élément de responsabilité dans la conduite de
l ’auteur materiel de l ’infraction”, elemento que parece surgir como justificativa
mínima de qualquer reação punitiva.

6. A s u lteriores p rojeções garan tistas extraíveis da C ED H : em particular,


a “P roib ição da to r tu ra ” e dos tratam en tos d esu m an os e degrad an tes
(art. 3 C E D H ).

Retomando o assunto, há, logicam ente, m uitas outras refrações subs­


tanciais que emanam tam bém dos princípios da CEDH não diretam ente desti­
nados à legalidade penal ou à pena, e propagam -se (ou podem ser difundidas)
por toda a sua geografia punitiva, investindo tam bém - por exemplo - nos
territórios dogm áticos da m edição da pena e do sentencing no sentido lato,
até o segmento da execução da pena.
Analisando somente este último âmbito, um a decisão que, de alguma
maneira, representa um ponto de chegada de um a abundante elaboração juris-
prudencial e que promete consequências importantes é aquela relativa ao caso
Saadi c. Itália, onde o Tribunal vetou a expulsão por motivos de segurança
nacional de um cidadão não comunitário já condenado pelas autoridades do
País de destino (onde, portanto, a pena de detenção deveria ter sido aplicada),
com base na verificada violação, naquele país, da proibição prevista no art. 3°,
CEDH (“Ninguém pode ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos
desumanos ou degradantes”)93.
O pronunciamento - que desenvolve uma orientação já anteriormente
aplicada94 - merece ser sinalizada por diferentes motivos.
Antes de tudo, porque antepõe (o sacrifício potencial de) um a garan­
tia fundam ental do individuo à proteção de um valor - a segurança nacio­
nal, precisam ente, - que, em algumas reconstituições, alm eja, cada vez mais,
afirmar-se como um direito de igual nível (ou seja, autêntico Grundrecht95),
reconhecendo, assim, ao art. 3°, CEDH, um conteúdo essencial (um Wesen-
gehalt) não suscetível aos ponderações (Abwagungsfest) e im perm eável às
“margens nacionais de apreciação” .
93 CEDH, 28 de fevereiro de 2008, Saadi c. Itália (Grande Chambre), com a qual a Corte, em aplicação do
procedimento de urgência previsto no art. 39 do regulamento, decidiu, depois de haver solicitado a suspensão,
sua expulsão do Ministério dos Interiores por motivos de segurança nacional (em aplicação do Decreto-lei n.
144 de 27 de julho de 2005, contendo medidas urgentes para o combate ao terrorismo internacional, convertido
depois na lei n. 155, de 2005) nos confrontos do recorrente já condenado pela autoridade do país de destinação.
94 Cfr., em particular, CEDH, 7 de julho de 1989, Soering c. Reino Unido.
95 A respeito, veja-se, em particular, J. Isensee, Das G rundrecht auf Sicherheit, Berlin-New York, 1983.

106
As garantias fundamentais em matéria penal.

Em segundo lugar, porque - admitindo uma “avaliação de fato” adequa­


da à “concretude” do próprio juízo - reconhece o valor de fonte confiável para a
demonstração da transgressão da proibição prevista no art. 3° mesmo com sim­
ples documentação de associações não governamentais em defesa dos direitos
humanos, como os reports de Amnesty International, ou de Human rights watch,
que comprovem as mencionadas violações.
Enfim, porque nas suas afirmações de princípio parece que se presta a
ser exposta em diversos contextos, intracom unitários ou tam bém tipicam ente
nacionais - se pense à destinação de um preso a um instituto penitenciário,
ou à transferência de um preso de um a penitenciária a outra96, podendo até
ser capaz de inibir o m andado de prisão internacional emitido em um País
signatário, caso o interessado se encontre em um terceiro País onde a execu­
ção da m edida cautelar pessoal - nas demoras do procedim ento de extradi­
ção ativa - o coloque em risco de tratam entos desumanos ou degradantes97.
Neste último caso, por outro lado, surgiria um conflito delicado entre um
direito fundam ental (aquele garantido pelo art. 3°, CEDH) e o interesse pú­
blico à aplicação penal, que poderia prevalecer somente se assegurado por
um a cobertura constitucional capaz de reverter o grau subconstitucional da
CEDH (segundo uma tese, que parece surgir tam bém na sentença do Tribunal
constitucional n. 26/2007 sobre a lei Pecorella, a alegação seria oferecida
pelo art. 112, Const.)98.
É somente um exemplo, todavia99; não menos importantes se mostram
as decisões que pouco a pouco conduziram a duração da pena de detenção à
96 Façamos nossos, neste ponto, os destaques apontados por G. Abbadessa e M. Caianiello, Convenzione
europea, sentenza Saadi, prerogative statuali in am bito punitivo, in ius17@unibo.it, n. 1/2009, pp. 129 e
ss., 130, segundo os quais, por outro lado, “ [...] a primeira questão levantada pela sentença em comento diz
respeito ao destino do art. 3° do citado decreto-lei n. 144 de 2005. Não parece, de fato, que aqui existam mar­
gens para uma interpretação conforme o art. 3° da CEDH, assim como lido da jurisprudência saudita, salvo se
se considerar que o exercício de poder de expulsão é previsto no decreto como facultativo: em outras palavras,
o Prefeito, caso se julgue vinculado ao art. 3° da CEDH, deveria abster-se de ordenar a expulsão por motivos de
segurança nacional todas as vezes que o país de destinação não tivesse meios de garantir adequados standards
de tutela dos direitos fundamentais em jogo. Mais provável uma intervenção convencionalmente conforme do
tribunal administrativo regional em sede de recurso contra o decreto de expulsão. Todavia, não parecem ser tão
remotas nem as hipóteses de incidente de constitucionalidade, que indubitavelmente darão lugar a um novo e
interessante episódio de diálogo entre as Cortes”.
97 E as hipóteses simétricas em relação ao caso Saadi c. Itália, pela qual sempre poderá se hipotetizar, antes de
mais nada, o remédio de anulação da norma dispositiva da medida cautelar pessoal pronunciada pelo juiz de re-
exame sobre a base do art. 277 do Código de Processo Penal (“Salvaguarda dos direitos da pessoa submetida a
medidas cautelares”) interpretado conforme ao art. 3° da CEDH: neste sentido, G. Abbadessa e M. Caianiello,
Convenzione europea, sentenza Saadi, prerogative statuali in am bito punitivo, cit., p. 131.
98 Cfr. ainda G. Abbadessa e M. C aianiello, Convenzione europea, cit., p. 131, assinalando, a respeito, como “a
questão verá provavelmente prevalecer a exigência estadual. De outra parte, a Corte constitucional já mostrou sua
propensão pela satisfação dos interesses públicos análogos quando não idênticos [ . ] na oportunidade em que deci­
diu em matéria de rito dos não localizados (sent. n. 117 de 2007)”.
99 Para uma melhor análise, com amplas referências jurisprudenciais, remete-se ao recente contributo de G.
M annozzi, Pena e trattam ento tra Convenzione europea e diritto interno, cit., espec. pp. 31 e ss. da obra.

107
Vittorio Manes.

presença do princípio da proporção (mesmo sem negar a aceitação da pena de


prisão perpétua, mas somente o seu conceito absoluto100), ou que determinaram
os limites de aceitação do regime de isolamento ou do modelo italiano do as­
sim chamado “cárcere duro” (art. 41-bis ord. pen.)101, ou seja, aquilo que, por
fim, foi duramente criticado, sempre considerando a proibição de tratamentos
desumanos e que degradam a superlotação carcerária102, pondo em evidência
uma clara violação estrutural do sistema italiano que deveria introduzir uma
resposta institucional inadiável.

7. D as garan tias para o réu à tu tela das vítim as: a C on ven ção europeia
com o fu n d a m en to, e não m ais com o m ero lim ite, do direito penal.

Por outro lado, se é verdade que a direção de sentido fundam ental


para a qual parece ser orientada a Convenção segue um vetor garantista, de
extensão das garantias penais, isso não significa que corresponda sempre
100 Em outros termos, a violação do art. 3°, CEDH vem de fato a coincidir com a negação da esperança de
uma libertação antecipada, pelo trâmite de qualquer benefício penitenciário: cfr., por exemplo, CEDH, 2 de
abril 2006, Léger c. França, onde se afirma o princípio (já consolidado) na base do qual “ [...] I t ’s enoughfor
the purposes o f Article 3 that a life sentence is de jure and de facto reducible” (sobre este ponto cfr. ainda G.
Mannozzi, Pena e trattamento, cit., pp. 41 e ss. da obra).
101 Ao menos naquilo que se refere ao respeito à vida privada (art. 8°, CEDH), visto que o contraste com o art.
3°, CEDH, esteve até hoje excluído: cfr. CEDH, 15 de janeiro de 2008, Bagarella c. Itália; 24 de janeiro 2008, Di
Giacomo c. Itália; 27 de março de 2008, Guidi c. Itália, e, por último, 20 de janeiro de 2009, Zara c. Itália [in DPP.
n. 372009, 390] concernentes às restrições sofridas, no caso específico, seja nas limitações às visitas dos familiares,
seja nas violações do direito ao respeito da correspondência privada. Ao examinar o recurso, a Corte concentrou-se
particularmente sobre a violação do direito à correspondência privada, tutelado pelo art. 8°, parágrafo 2°, CEDH; a
ingerência por parte de terceiros no interior de tal direito resulta legítima, segundo a Corte, tão somente se prevista na
lei, visando à obtenção de um objetivo legítimo, e se necessária em uma sociedade democrática, não sendo suficiente
a simples previsão de uma lei no ordenamento interno. Na realidade, releva também a qualidade da lei por si só,
além do fato de que seja acessível ao interessado, ou seja, que isso resulte empregado nas condições de possuir todas
as informações suficientes - no âmbito da causa - sobre normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto. Sobre estas
bases, os juízes europeus observaram que a legislação italiana não prevê uma suficiente base legal para o controle
da correspondência e, por consequência, decidiram à unanimidade pela violação do art. 8° da CEDH, pelo fato de
a Itália não ter respeitado o direito do recorrente ao respeito à correspondência privada. Ao mesmo tempo, declarou
inadmissível o restante do recurso; a Corte também afirmou que, por haver o Estado consentido com tal violação, se
constituía, desde logo, uma evidente satisfação do dano moral do recorrente.
Sobre o tema, cfr. E. Nicosia, Il c.d. 41bis è una form a di to rtu ra o trattam ento crudele, inum ano o degra­
dante?, in RIDPP, 2009, pp. 1240 e ss., com base em uma decisão do juiz federal de Los Angeles que - propria­
mente para tutelar os direitos fundamentais claramente prejudicados pelo rigor do regime carcerário do 41-bis
(especialmente no que se refere às limitações concernentes ao período que os detentos tem a disposição para
sair das celas (“l ’ora d ’aria”), os contatos com os outros detentos, os encontros com os familiares e o controle
da correspondência), já apontado como tratamento cruel, desumano ou degradante - bloqueou a expulsão para
a Itália de um condenado pertencente a uma família mafiosa (decisão depois superada por sucessivo pronun­
ciamento da autoridade judiciária estatunidense, que acabou por decidir pela expulsão do detento em questão,
abrindo o caminho para a sua volta à Itália).
102 CEDH, 16 de julho de 2009, Sulejmanovic c. Itália, que reconheceu a violação do art. 3° em relação à
execução da pena contra um detento que, durante a reclusão no cárcere de Rebibbia, tinha à disposição uma
superfície média de 2,70 metros quadrados; sobre o tema, G. Abbadessa, C orte europea e carceri italiane:
una violazione strutturale d e ll’art. 3 della Convenzione, in Quaderni costituzionali, 2010.

108
As garantias fundamentais em matéria penal.

a um a ideia de limite de intervenção penal; não somente para o réu, mas


tam bém para a vítim a são reconhecidas as instâncias de tutela, em particular
quando estão em causa interesses e valores muito pessoais que foram lesados
e que não tenham recebido um a real tutela (especialm ente a nível judiciário)
em um Estado membro.

7.1. A s in stâ n c ia s de tu te la ex tra ív eis do d ireito à v id a (art. 2°, c E D H ).

A este respeito é emblemática a elaboração do Tribunal sobre (as reclama­


ções focadas nas presumidas carências de tutela do) direito à vida (art. 2°, CEDH),
reconhecida cada vez mais como referência para medir a real tutela jurisdicional nos
contextos separados, e para fazer emergir hipóteses de carência de tutela dos interes­
ses em causa (vida ou integridade física), não somente diante de graves hipóteses de
uso mortal da força pública ou de violência sexual, mas também nos casos de culpa
médica103, e inclusive no âmbito da problemática do início104 e do fim da vida105.
Além do caso específico, pode-se observar como - neste ponto de vista
- o Tribunal de Estrasburgo se aproxima às experiências jurisdicionais que, na

103 Cfr., a respeito, CEDH, 9 de abril de 2009, Rozakis, Silih c. Eslovênia, in Dir. pen. proc., n. 6/2009, p. 790.
104 Cfr. CEDH, 8 de julho de 2004, Vo c. França, onde a Corte - chamada a avaliar se a ausência de disposi­
ções penais no direito interno para reprimir a supressão involuntária de um feto constituiria inadimplemento
da obrigação do Estado de tutelar através de leis o direito à vida de qualquer pessoa - acabou por negar a
violação, afirmando que “o momento inicial de tutela do direito à vida depende das margens de apreciação de
cada singular Estado”; teve-se, em particular, registrado a ausência de um “consenso a nível europeu acerca da
definição científica e jurídica do momento inicial da vida humana” (§ 82).
105 Basta aqui referir-se ao recurso apresentado por várias associações e depois julgado como não recebível
(ou seja, recurso que não pôde ser analisado por parte da autoridade administrativa porque não possuía os
devidos requisitos formais), relativamente ao caso Englaro (CEDH, 16 de dezembro de 2008, Ada Rossi c.
Itália), em relação à presumível violação do “direito à vida” (art. 2°, CEDH) e da “proibição da tortura” (art.
3°, CEDH). O recurso nasce do fato de que o âmbito de tutela do direito à vida abrange de modo indiscutível
qualquer ser humano, da vida (discute-se, ademais, sobre a tutela dada ao nascituro em relação à interrupção
voluntária da gravidez, e à relativa prevenção e repressão: uma interpretação extensiva poderia, de fato, con­
trastar com uma disciplina nacional “não intervencionista”, ou “liberal”) à morte (clinicamente certa), portanto
também o caso de estado vegetativo permanente no qual - como é conhecido - versava Eluana Englaro.
Na decisão, a Corte - referindo-se à impugnação das recorrentes pessoas físicas, pretensamente “vítimas
potenciais” de uma possível violação da CEDH - sublinhou, de um lado, que “os artigos 2° e 3° da Convenção
protegem certos aspectos da integridade física e fazem surgir as obrigações positivas para as partes contratantes”,
e que “a imposição de um tratamento médico sem a concordância do paciente se este é adulto e de mente sã, ou
daquele de seu tutor se é incapaz juridicamente, configura-se como uma lesão à integridade física do interessado que
pode pôr em jogo eventualmente os direitos protetivos das disposições invocadas pelos recorrentes”; mas também
sublinhou que “a corte de apelação de Milão não impôs, com a sua decisão de 25 de junho de 2008, uma qualquer
ordem de interromper a alimentação e hidratação artificial de E.E., mas declarou legítimo o pedido de autorização
apresentado pelo pai da jovem mulher”, excluindo, assim, que os mesmos poderiam “pretender-se vítimas” com base
em uma jurisprudência que limita estes casos às hipóteses em que se possam produzir “índices razoáveis e convin­
centes da probabilidade de realização de uma violação que o concerne pessoalmente”, sendo insuficientes “simples
suspeitas ou conjecturas”, concluindo, portanto, que “os recorrentes pessoas físicas não podem, conseqüentemente,
julgarem-se vítimas de uma ausência do Estado [ . ] na proteção dos seus direitos garantidos pelos artigos 2° e 3° da
Convenção” (também no caso dos recorrentes pessoas jurídicas foi negado que esses pudessem lamentar a violação,
e também a situação de vítimas, não sendo elas “diretamente tocadas” à “mesure litigieuse”).

109
Vittorio Manes.

proteção dos direitos humanos, focaram mais a tutela dos direitos da vítima que
os direitos (e as garantias) do réu, utilizando o critério da proibição de “proteção
deficiente” (Untermafiverbot): uma abordagem que teve desenvolvimentos signi­
ficativos - como se sabe - na elaboração do Tribunal interamericano dos direi­
tos humanos (em relação aos direitos reconhecidos na respectiva Convenção)106,
inclusive considerando incompatíveis com a substância de algumas convenções
internacionais as medidas de anistia com as quais se pretendeu “superar” as dra­
máticas experiências na Argentina, Chile e Uruguai107.

7.2. O brigações convencionais da tutela penal?

Mais especificamente, a obrigação da tutela do direito à vida apresenta


uma vertente substancial (volet matériel), que consiste na falta de aplicação das
obrigações de tutela do bem-vida, e uma vertente procedimental (volet procé-
dural), que consiste em eventuais carências procedimentais relativas ao proce­
dimento judiciário nacional destinado a verificar as responsabilidades no caso,
exatamente, de tal bem resultar lesado108; e de acordo com o primeiro perfil, pode
ser transformado também em peculiares vínculos de penalização p o r parte do
legislador nacional, relativos seja à extensão de algumas espécies, seja - sime­

106 Cfr., neste ponto, por exemplo, L. Feldens, A Constitução penal. A dupla face da proporcionalidade no con­
trole das norm as penais, Porto Alegre, 2005, pp. 155 e ss., pp. 191 e ss. Somente a título de exemplo, conforme a
recente sentença de 4 de julho de 2006, Ximenes Lopes vs. Brasil, relativo à violação por parte do Brasil do direito à
vida e à integridade pessoal, do direito à tutela judiciária e do direito a garantias judiciais, em relação a um episódio
de morte - depois de três dias de internamento - de pessoa possuidora de incapacidades mentais e objeto de trata­
mento psiquiátrico (em um Centro privado, mas que operava no contexto do “Sistema Único de Saúde” brasileiro).
107 A mesma Suprema Corte da Argentina - como lembra M. Delmas M arty, Mondializzazione, cit., pp. 131
e ss. - aplicando a casos de desaparecimentos forçados e de tortura o raciocínio da Corte interamericana dos
direitos do homem, chegou a anular as leis nacionais de “auto anistia”, julgando contrariamente aos direitos das
vítimas a um justo processo; com a consequência de que mais de mil processos foram realizados ou revisados
(sobre o ponto, C. A. Bakker, A Full Stop to Amnesty in A rgentina: the Simon Case, in Journal o f Interna­
tional Criminal Justice, n. 3/2005, pp. 1106 e ss.).
108 Um exemplo de violação do art. 2° no seu volet procedimental é dado pela recente decisão da CEDH, de 25
de agosto de 2009, Giuliani e Gaggio c. Itália, concernente ao uso letal da força pública em ocasião de manifes­
tações contra o G8 de Gênova, que conduziu à morte de Carlo Giuliani. No particular, a lesão do direito à vida
foi lamentada na sua vertente substancial (considerando uma insubsistência do requisito da necessidade de sua
lesão, exigida de acordo com o art. 2°, parágrafo 2°) ante sua vertente procedimental, pela carência de medidas
aptas a garantir a correta verificação dos fatos sobre o plano procedimental: depois, duas impugnações, uma
substancial, a outra procedimental: a Corte rejeitou a primeira, entendendo que - concordando com o entendido
pelo juiz de Gênova - não houve desproporção no uso da força, e tampouco lesão concernente às obrigações
positivas de proteção da vida; afirmou, ao contrário, que houve uma lesão do direito no seu conteúdo de garan­
tia procedimental, relevando carências no procedimento judiciário de verificação dos fatos, em particular nos
concernentes à considerada “superficialidade” no cumprimento da autópsia (os peritos não tinham recuperado
o fragmento de projétil que o scanner tinha posto em evidência, a partir do qual se teria podido verificar se
houve impacto com um corpo que houvesse desviado a trajetória, cravando-se na testa da vítima), o incinera-
mento inoportuno do cadáver, o término muito breve concedido aos recorrentes para intervir nas operações de
anistia (cfr. a síntese da decisão definitiva ofertada por G. Abbadessa, in ius17@unibo.it, n. 2/2009, em curso
de publicação; para uma mais ampla reflexão, cfr. f. Viganò, Il diritto penale sostanziale, cit. pp. 93 e ss.).

110
As garantias fundamentais em matéria penal.

tricamente - à extensão de algumas motivações de justificação (emblemática a


jurisprudência sobre o uso da força pública).
Assim, se, em geral, a jurisprudência de Estrasburgo parece aceitar uma
“margem de apreciação” na escolha do instrumento de tutela real (civil, adminis­
trativa, penal), em diferentes (graves) hipóteses derivam da Convenção europeia
compromissos positivos de criminalização de alguns comportamentos que por vá­
rios motivos permaneceram impunes, ou por carência de uma específica disciplina
punitiva, ou por uma excessiva amplitude de uma disciplina descriminalizante.
Em outras palavras, a Convenção apresenta-se como o últim o teatro
da (periódica) retom ada da teoria das “obrigações da tutela penal”109, teoria
que - como se sabe - retom a princípios superiores em um a perspectiva de
fundam entação das escolhas de incrim inação (como se sabe, na versão tradi­
cional, atuava-se sobre os princípios constitucionais, aceitando que poderiam
derivar deles indicações vinculantes a propósito das escolhas de penalização,
os assim chamados Ponalisierungsverfassungsgebote)110.

7.3. O juiz interno perante o conflito entre vínculos de fidelidade, entre


co n stitu içã o e cE D H .

Por esta perspectiva, a comparação com a Convenção europeia e as


obrigações que dela surgem se m anifesta em toda a sua problemática, em par­
ticular pensando nos possíveis erros de interpretação que determinadas instân­
cias de tutela podem fomentar até no juiz nacional, colocado entre a obrigação
de interpretação segundo a CEDH e a obrigação de respeitar os limites a esta
impostos pela Constituição, especialmente o princípio da legalidade em matéria
penal (art. 25, parágrafo 2°, Const.).
É suficiente, aqui, o exemplo da leitura interpretativa que um a conside­
ração atenta do direito à vida pode impor em relação à atual disciplina italiana de
algumas descriminantes, como o uso legítimo das armas (art. 53, Código Penal),
ou seja, a legítima defesa (art. 52, Código Penal, como modificado pela lei n.
59/2006), que podem ter profundamente alterada a própria fisionomia sob o pon­
to de vista de uma hermenêutica de orientação convencional, divergindo, porém,
com os imperativos derivantes do princípio da legalidade em matéria penal.
Quanto à legítima defesa, no caso em que a reação defensiva se originar
de uma agressão cometida na própria moradia ou “em outro lugar de domicílio
109 Ainda atuais, sobre o tema, as relexões de D. Pulitanò, Obblighi costituzionali di tutela penale?, in RI-
DPP, 1983, pp. 493 e ss.; por outro lado, a problemática é já analisada com relação às obrigações de adequação
impostos pela normativa da Comunidade Europeia (cfr. C. Sotis, Obblighi com unitari di tutela e opzione
penale: una dialettica perpetua?, in RIDPP, 2002, pp. 171 e ss.).
110 Sobre os vínculos de penalização deduzidos da CEDH, cfr, v.g., f. Viganò, D iritto penale sostanziale e
convenzione europea dei diritti dell’uomo, cit., pp. 42 e ss., pp. 60 e ss.; amplius Id., Il diritto penale sos-
tanziale, cit., pp. 89 e ss.

111
Vittorio Manes.

privado” (art. 614, Código Penal), o parágrafo 2° do art. 52 do Código Penal


prevê uma declarada presunção de proporção mesmo onde se sacrificam bens
pessoais (e até a própria vida) do agressor, se a defesa é ativada com o objetivo
de defender “os bens próprios ou dos outros, quando não existe desistência e
existe perigo de agressão” [(letra b)]. Mostra-se evidente como tal disposição
não reflete a hierarquização que pode ser deduzida da jurisprudência europeia111
(e nem, para dizer a verdade, aquela oferecida pela Constituição italiana112), de
acordo com a qual o direito à vida (e a relativa agressão) não pode nunca ser
colocado na balança com os direitos patrimoniais (ou com as relativas agres­
sões), diante do que se questiona se uma leitura “convencionalmente orientada”
pode comprimir o âmbito de aplicação da descriminante em questão, estendendo
em correspondência a eventual incriminação para as lesões ou homicídio (art.
582/575 do Código Penal) cometido com danos pelo agressor, ou se uma leitura
deste tipo é vedada em respeito ao princípio da legalidade em matéria penal.
E o mesmo pode-se dizer com referência a uma possível - e já avançada
na doutrina113 - adição em fase de interpretação do requisito não escrito da pro­
porção na descriminante do art. 53 do Código Penal (“Uso legítimo das armas”),
requisito que seguramente restabeleceria um equilíbrio mais atento às instâncias
de tutela da “vítima”.
Em síntese, e como se pode ver, o problema da margem de interpretação,
em hipóteses deste tipo, fica entre um “conflito entre obrigações de fidelidade”,
convencionadas, por um lado, e constitucionais, pelo outro.
Além disso, nos ordenamentos que não contemplam expressamente o
requisito da “proporção” dentro da legítima defesa - é o caso do § 32 StGB,
que requer somente que a defesa legítima/Notwehr seja necessáriaJerfordelich
(semelhante ao código francês ou austríaco)114 - fez-se, recentemente, referência
111 A respeito do item, difundidamente, F. C onsorte, La presunzione di proporzione in una prospettiva
internazionale: spunti interpretativi, em Cass. pen., 2006, pp. 2653 e ss.
112 A respeito do item, sobretudo E. Dolcini, La riform a della legittim a difesa: leggi “sacrosante” e sacro
valore della vita umana”, em Dir. pen. proc., n. 4/2006, 431 subs., 433, retomando também a posição da Corte
constitucional, que, na sentença na qual declarou a ilegitimidade constitucional da conversão da pena pecuni­
ária em detenção, originalmente prevista no art. 136 do Código Penal, justificou a própria decisão com base
no fato de que “a translação da pena dos bens para a pessoa do condenado insolvente” contrasta “claramente
com os valores constitucionais”.
113 Neste sentido, sobretudo f. Viganò, Il d iritto penale sostanziale italiano d a v an ti ai giudici della
CEDU, cit., pp. 99 e ss., p. 101 suc., transferindo - quanto aos conteúdos dos requisitos da proporção (e
da necessidade, requisito expressamente previsto na estrutura da descriminalizante em questão) - para a
jurisprudência da CEDH e aos parágrafos. 5°, 9° e 10° dos Basic Principles ONU de 1990, onde a própria
corte frequentemente se refere.
114 Diversamente, o art. 15 do Código Penal suíço, na disciplina da legítima defesa eximente/recht/ertigen-
de Notwehr, requer somente que a conduta de rechaça da agressão injusta - a defesa - seja realizada “de
forma adequada às circunstâncias”, e isto deixa entender que, na hermenêutica, devem existir os requisitos
de subsidiariedade e proporcionalidade - também entre bens - no sentido estrito; superando esta relação
de proporcionalidade, considerando a disciplina prevista no ordenamento suíço, aplicar-se-á, se for o caso,
somente a legitima defesa exculpante/entschuldbare Notwehr, que se escusável - nos casos taxativos de

112
As garantias fundamentais em matéria penal.

ao próprio art. 2°, CEDH, para evitar o correto equilíbrio entre ofensa e defesa,
mesmo problematizando posteriormente a perspectiva considerando a (discuti­
da) eficiência das normas convencionadas em relação a terceiros (assim chama­
do Drittwirkung)115 e, isto é, em relação a um a violação realizada não por um
Estado contraente, mas por um único. E mesmo quem supera o problema da
assim chamada Drittwirkung, expõe um contraste entre a interpretação segundo
a CEDH e o princípio de legalidade (em especial, o Bestimmtheitsgrundsatz do
art. 103 II Grundgesetz)116; o que deixa transparecer pelo menos a dúvida no que
tange a competir à Corte Constitucional - ao invés do juiz, em sede interpretati-
va117 - a tarefa de intervir para restaurar o equilíbrio devido.

8. P rin cíp io s tr a d icio n a is, n ovos p ercu rso s a rg u m en ta tiv o s, fu tu ras


p o n d er a çõ es .

A riqueza de argumentação da jurisprudência europeia oferece uma


oportunidade para algumas considerações mais amplas.
Em primeiro lugar, a “fusão dos horizontes” entre o universo da com-
mon law e da civil law, a necessidade de perm itir a coabitação de princípios e
categorias dogmáticas diferentes, conduz a Corte a estudar - poderíamos dizer:
inventar - novos topoi de argumentação que, às vezes, são utilizados como su­
cedâneos ou substitutos dos princípios que não surgem (ou não surgem ainda)
do perfil formal das garantias CEDH: pense-se nas já mencionadas considera­
ções sobre a culpabilidade desenvolvidas com base no princípio da legalidade
(art. 7°) na sentença Sud Fondi c. Itália, ou seja, sobre o uso da “inocência

excitação ou “perplexidade ” /Bestürzung/saississement pode excluir a pena (caso contrário poderá aparecer
somente como uma circunstância atenuante).
115 Tendencialmente, seríamos levados a negar um vinculo em relação a terceiros, sendo a CEDH um tratado
de direito internacional (e, de fato, no contexto da literatura alemã, a herrschende Meinung nega vínculos
inclusive em relação às problemáticas específicas abertas pelo § 32 StGB); outros, entretanto, afirmam a assim
chamada Drittwirkung considerando a Convenção como consitutional insturment: assim, por exemplo, H.
satzger, Der Einfluss der E M RK a u f das deutsche Straf- und Strafprozessrecht —Grundlagen und wichtige
Einzelprobleme, em Jura, 2009, em via de publicação, 8 subs. do texto.
116 Ainda conforme H. satzger, D er Einfluss der E M RK a u f das deutsche S traf - und Strafprozessrecht,
cit., 9, que contorna o problema evidenciando como a convenção define uma obrigação de tutela somente em
relação a causações propositais da morte (intentionally/intentionellment), o que torna dificilmente aplicável,
mesmo somente a título de interpretação, a disposição do art. 2°, CEDH em caso de agressão patrimonial,
porque aqui, geralmente, a reação é acompanhada no máximo pela dolus eventualis de homicídio, mas é dire­
cionada a evitar a lesão patrimonial.
117 Este é o percurso indicado em relação ao art. 53 do Código Penal, por F. V iganò, Il diritto penale sos-
tanziale italiano davanti ai giudici della CEDU, cit., 99 ss., que, todavia, invoca a intervenção da corte
constitucional em relação a outras hipóteses de normas descriminalizantes especiais (por ex. em matéria de
contrabando) “que atribuem a alguns oficiais públicos e militares a possibilidade de utilizar uma força letal em
circunstâncias certamente não cobertas pelas exceções do direito à vida sancionadas pelo art. 2°, par. 2°, CEDH,
assim interpretadas pela pertinente jurisprudência de Estrasburgo” (§ 6.3; mas conforme. também Id., Diritto
penale sostanziale e Convenzione europea dei diritti delTuomo, cit., pp. 66 e ss.).

113
Vittorio Manes.

presum ida” (art. 6°, par. 2°, CEDH) como meio de instâncias tradicionalm en­
te reconduzidas - no contexto italiano - ao princípio da culpabilidade, espe­
cialmente para avaliar a legitimidade de perigos presumidos, como aquelas
condicionadas por alguns comportamentos de m era detenção ou “de posse” .
E este último, em nossa opinião, representa um perfil a ser analisado, porque
parece oferecer novas perspectivas de enquadramento para compreender a di­
reção do sentido e as possíveis conclusões a que pode chegar a arquitetura de
argumentação das “tradições constitucionais comuns” e/ou alguns princípios
fundamentais da União europeia (decididamente influenciados - isto foi ace­
nado - pela CEDH, devido à referência expressa do art. 6°, TUE).
Em segundo lugar, adim ensão que recém foi apresentadacolocaráopena-
lista (e a própria Corte Constitucional) perante novos e delicados equilíbrios:de-
poisdaexplosãodoscontrolesdalegitim idade,quenocontextoitalianoprovocou
um a escalada tanto a nível processual, como substancial, com prom etendo o
Conselho em avaliações rápidas (é suficiente pensar nas exceções ao prin­
cípio da retroatividade da lex m itior m encionadas e tam bém apoiadas pela
Corte Constitucional italiana118), será necessário, agora, determ inar quais
interesses/valores constitucionais são realmente capazes de superar as pre­
tensões garantistas alim entadas pela CEDH, fornecendo um conteúdo mais
específico (e, principalm ente, mais convincente) para as já m encionadas afir­
m ações das sentenças n. 348 e n. 349 de 2007, onde se lim itou a atribuir à
Convenção - várias vezes já m encionado - um grau sub-constitucional, esta­
belecendo um a hierarquia entre os “vínculos de fidelidade” que parecem re­
querer os vínculos da Convenção sempre subordinados ao cum prim ento dos
vínculos constitucionais (não somente em relação - repare-se - aos princí­
pios supremos, ou seja, aos assim chamados contra-lim ites que representam
a últim a barreira do direito com unitário, mas em relação a todos os princípios
constitucionais, porque o regime jurídico destinado às normas com unitárias
- o evidencia a Corte Constitucional - não pode ser estendido às norm as da
Convenção119); sobretudo, será necessário estabelecer quem, entre a Corte
Constitucional e a Corte Europeia, será o guardião da m argem de aprecia­
ção nacional, com o poder de “decidir por últim o” . Se é bem verdade que,
até agora, atribuiu-se às jurisdições nacionais - “considerada a sua m aior
aproxim ação às circunstâncias reais” - é tam bém verdade que a Corte euro-
peia reivindicou para si espaços de controle cada vez m aiores120, abrangendo
118 Vejam-se, em particular, as sentenças da Corte constitucional n. 393/2006, n. 394/2006 e n. 215/2008.
119 Corte const., n. 348/2007, § 3.3. e 3.4.
120 Ainda conforme F. Tulkens-L. D onnay, La teoria del m argine nazionale di apprezzam ento e la c o rte
europea dei diritti dell’uomo, cit., p. 420 suc., onde se retoma a ascensão de uma noção nascida originaria-
mente pela aplicação do art. 15, CEDH, sucessivamente estendida aos direitos “relativos” (aqueles que podem
em alguns casos sofrer restrições), e que aos poucos encontrou espaço em relação à maior parte dos direitos
garantidos pela Convenção.

114
As garantias fundamentais em matéria penal.

também as “questões sociais” e os contextos das instâncias culturais, éticas e


religiosas121, e que a progressiva força vinculante atribuída à CEDH em cada
contexto parece representar cenários onde os diálogos com os tribunais cons­
titucionais tornarão esses últim os garantidores dos interesses e das tradições
nacionais m ais que im pulsionadores das “tradições com uns” .
A propósito, o exemplo apresentado antes, em relação ao caso Saadi
c. Itália - o conflito potencial entre a proibição dos tratamentos desumanos e
degradantes e o interesse público para a aplicação penal - é somente um dos
muitos casos onde os direitos fundamentais podem deixar margem a avaliações
“utilitaristas” e somente um dos possíveis conflitos que podem se apresen­
tar também na administração diária da penalidade, embora em um contexto
- como aquele do art. 3°, CEDH - parcialmente imune da aplicação da teoria
da margem nacional de apreciação122; e o “novo” princípio da retroatividade
da lex mitior aponta problemas semelhantes, se for considerado que apenas no
âmbito da Convenção é reconduzido a uma garantia, como no art. 7°, CEDH,
não suscetível a exceções (art. 15, CEDH), enquanto que a nível nacional -
como foi referido - admite, ao contrário, “exceções racionais”.

9. R u m o a um co sm o p o litism o dos d ireito s h u m an os tam b ém em


m a téria p en a l?

Definitivamente, como se vê, na Europa, ninguém mais pode se limitar


a cultiver son jardin; nenhum juiz - e, mais genericamente, nenhum operador
jurídico - poderá mais esconder-se atrás de um evasivo “greca non leguntur”
- como aqueles escrivães provinciais que conheciam somente o latim e podiam
encobrir com simples “omissis” os passos que lhes resultavam ilegíveis - , nem
poderá considerar a jurisprudência europeia como uma simples lex alii loci a ser
citada somente para dar autoridade à própria argumentação123, no momento em
que se ouve “en quête de réassurance juridique”124.
De fato, as leis aplicáveis em Roma, Berlim, M adri ou Londres (mas
até em A ncara e M oscou) não são m ais somente aquelas da pòlis, apresenta­
das pelas assem bleias nacionais; e até os lim ites do poder punitivo - sejam
121 Um exemplo disto é a já celebre decisão sobre crucifixo, ou seja, a já citada sentença da CEDH, 3 de no­
vembro de 2009, Lautsi c. Itália; inversamente, na conhecida sentença sobre a proibição de usar o véu islâmico
na universidade, a Corte - “levando em conta a margem de apreciação dos Estados” - considerou que, no caso
concreto, a contestada ingerência do Estado foi justificada e proporcional em relação à finalidade estabelecida
(CEDH, 11 de novembro de 2005, Leyla Shalin c. Turquia).
122 F. Tulkens-L. D onnay, L a teoria del m argine nazionale di apprezzam ento, cit., pp. 426 e ss.
123 De acordo com a praxe dos Grandes Tribunais do Antigo regime, citando o direito estrangeiro como doctrina
magistralis e de acordo com a medida adotada do responsum prudentium: a este respeito, G. G orla, Il ricorso
alla legge di un “luogo vicino” nell’ambito del diritto comune europeo, em Foro it., 1973, V, cc. 89 ss.
124 J. A llard-A. G arapon, Les juges dans la m ondialisation. L a nouvelle devolution du droit, Paris,
Seuil, 2005, pp. 18 e ss.

115
Vittorio Manes.

estes refrações da E tat de droit, do Rechtsstaat, do Estado de direito ou da


Rule o f Law em m atéria penal - não são mais somente aqueles traçados nas
cartas constitucionais nacionais, mas vão se uniform izando em “tradições
constitucionais com uns” dirigidas do alto: e, em posição de superioridade
- como se viu - , a Corte de Estrasburgo está assegurando um “progresso”
na justiciabilidade dos direitos e um aumento do rigor dos lim ites que estes
colocam às escolhas punitivas, mesmo preenchendo os espaços de justiciabi-
lidade deixados em branco pelas Cortes (mais do que pelos papéis) constitu­
cionais de cada país.
Mas nesta sua obra - foi mencionado mais vezes - a Corte europeia não
está sozinha: através de um percurso irregular, intermitente e, muitas vezes,
aventuroso125, a tram a dos direitos fundamentais, também em m atéria penal,
é fruto de um diálogo cada vez mais intenso entre as cortes europeias (cada
vez mais a Corte de justiça da União europeia) e as cortes nacionais: a Corte de
Estrasburgo, assim como a Corte de Luxemburgo, dificilmente poderão ignorar
- somente para exemplificar - as pronúncias com as quais o Bundesverfassun-
gsgericht alemão reconheceu na dignidade hum ana (como “núcleo indisponí­
vel” do direito à vida) um limite insuperável às medidas de emergência (e à
“necessidade de Estado”) perante ataques terroristas126, ou estabeleceu víncu­
los precisos de proporcionalidade às medidas de prevenção lesivas de direitos
fundam entais127; ou aquela em que o Tribunal constitucional espanhol sancio­
nou a ilegitimidade da criminalização do “negacionism o” em contraste com a
liberdade de manifestação do pensam ento128; até a decisão com a qual a corte
125 De Gaay Fortman, ‘A dventurous’ judgem ents. A com parative exploration into hum an rights as a
m oral-political force in judicial law development, em Utrecht Law Review, n. 2/2006, pp. 22 e ss. (in www.
utrechtlawreview.org ).
126 A referência é à sentença de BverfG, 15 de fevereiro de 2006, que decretou a ilegitimidade da medida
da derrubada de um avião originariamente prevista no § 14, III par., Luftsichereitsgesetz, considerando-a
“não compatível com o direito à vida previsto pelo art. 2, II par., I período GG, em relação à garantia da
dignidade humana como no art. 1, I par. GG, na medida em que foram atacadas pessoas a bordo do avião,
não relacionadas ao fato”, porque “absolutamente proibido é [ . ] todo o tratamento da pessoa, por parte do
poder público, que fundamentalmente coloque em discussão a qualidade do sujeito, o seu status de sujeito
de direito [...], deixando de perceber a falta de respeito ao valor que compete a cada pessoa em virtude de
si mesma, em razão do seu ‘ser pessoa’ (Personsein)” [a sentença é publicada em Cass. pen., 2007, 774 ss.,
com notas de A. Nisco, Necessità, em ergenza e dignità um ana: note sul caso della legge tedesca sulla
sicurezza aerea (Luftsicherheitsgesetz)].
127 A referência é à decisão do Bundesverfassungsgericht, 4 de abril de 2006 (em JZ, n. 18/2006, com
nota de Volkmann), que declarou a ilegitimidade constitucional da Rasterfahndung (a aquisição por parte
da policia - também na ausência de um perigo real - de dados pessoais relativos a um número indeter­
minado de pessoas para cruzá-los com aqueles já de posse das autoridades para identificar grupos de
pessoas úteis para as investigações, com particular referência - depois de 2001 - ao fenômeno terrorista
internacional), em contraposição ao direito à privacidade (mais precisamente, com o reconhecido direito
de autodeterminação das próprias informações).
128 A referência é à sentença do Tribunal Constitucional espanhol n. 235 de 2007, que considerou a ne­
gação (mas não a justificativa) do holocausto uma conduta “penalmente inútil”, considerando ilegítima a
sua criminalização, porque comprime de modo injustificado a liberdade de manifestação do pensamento,

116
As garantias fundamentais em matéria penal.

constitucional russa129, superando as resistências obstinadas da Corte suprema


americana130, decidiu superar o fantasma da pena de morte, concordando com
um a escolha de civilidade que, no contexto da Convenção europeia, foi form al­
mente e definitivamente sancionada no Protocolo n. 13 de 2002131.
Aquilo que emerge, definitivamente, é um círculo virtuoso, que parece
colocar à disposição de todos os avanços que - na proteção dos direitos funda­
mentais - chegaram a um determinado contexto, alimentando uma upgraduation
no nível de proteção de cada direito ou de cada garantia que constituirá um ponto
de não retorno também para as gerações futuras: a única herança que - parafrase­
ando a Revolução francesa - não resulta nem absurda, nem tirânica.
Acima de tudo, é um círculo aberto: se a circulação dos modelos en­
tre as jurisdições constitucionais dos diversos países e a sua propensão ultra-
nacional são um dado já manifesto132 - principalmente na elaboração do We-
sengehalt dos direitos fundamentais, que parece atraída em um a dimensão de
“universalidade”133 - não é utopia pensar que a experiência europeia na trama

e de pesquisa histórica (sobre este item, de acordo as sintéticas observações de E. Fronza-V. Manes, Il
reato di negazionism o n ell’ordinam ento spagnolo: la sentenza del tribunal Constitucional n. 235 del
2007, in ius17@unibo.it, n. 2/2008, pp. 489 e ss.).
129 Cfr. a notícia, relatada na imprensa (La Repubblica, 20 de novembro de 2009), da decisão da Corte Constitu­
cional russa de inibir a pena de morte em todo o território russo, também depois do prazo (1 de janeiro de 2010)
da moratória de dez anos prevista por um decreto presidencial de Eltsin de 1999.
130 Por fim, a Suprema Corte dos Estados Unidos, de 16 de abril de 2008, Baze e altri c. Rees (em Foro
it., 2009, IV, pp. 482 e ss., com nota de P. Passaglia, La pena non condannata; la morte resta, in linea di
principio, una pena non crudele né inusuale), em decisão que - encerrando uma moratória que durou, de
fato, alguns meses - adere à tese da plena compatibilidade da pena de morte com a Constituição, embora
seguindo uma jurisprudência onde, com base no veto de “penas cruéis e incomuns” determinado na 8a
Emenda, afloram, paulatinamente, limites cada vez mais restritivos (subjetivos, objetivos, de procedimento
e execução) no uso da pena de morte (como, por ex., a decisão da Corte Suprema de 25 de junho de 2008,
c. 478 ss., com nota de I. Sigismondi, Pena di m orte: incrinature nella giurisprudenza delia Corte suprema
Usa?). Sobre o tema, também por uma comparação com a situação europeia, cfr. G. Marinucci, La pena di
m orte, in RIDPP, 2009, pp. 3 e ss.
131 Cfr., ainda, G. M arinucci, L a pena di m orte, cit., p. 5. Observe-se que a Grande Câmara, na sentença de
12 de março de 2003, Ocalan c. Turquia, já tinha chegado muito perto de reconhecer a ab-rogação de uma
norma da Convenção - o art. 2°, segunda parte, onde se admite, em determinadas condições, a pena de morte
em tempo de paz - por efeito de uma praxe estadual consolidada, reconhecendo que “On ne saurait exclure
que les États sont convenus, par leur pratique, d ’amender le recours à la peine de mort en temps de paix”.
132 Tanto que a comparação constitucional foi autorizada com autoridade como o “quinto método” de in­
terpretação constitucional: P. H àberle, R echtsvergleichung in K raftfeld des V erfassungsstates, Berlin,
1992, pp. 810 e ss.
133 Remete-se às preciosíssimas páginas de G. Zagrebelsky, c o r ti costituzionali e diritti universali, em Riv
trim. dir. pubbl., n. 2/2006, p. 297 ss.; o importante constitucionalista italiano citava precisamente o clamor pro­
vocado pela referência feita por um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos (juiz Breter, no caso Knight v
Florida, de 1999), além do Privy Council, justamente à Suprema Corte dos direitos humanos, e a uma decisão da
Suprema Corte do Zimbábue, que, depois de ter, por sua vez, consultado sentenças estrangeiras, havia determina­
do que a execução de uma sentença capital, após muito tempo da condenação, deveria ser considerada uma forma
de tortura, ou um tratamento desumano ou degradante (o mesmo A. sinalizava como a esta posição ‘universalista’,
o juiz Thomas, pela Corte, havia contraposto a tese ‘isolacionista’, escrevendo que justamente a citação da juris­
prudência estrangeira parecia a demonstração da inconsistência do direito constitucional nacional).

117
Vittorio Manes.

das garantias fundamentais em matéria penal, no futuro, possa ser exportada


também para além do oceano, alimentando uma competição positiva e, quiçá,
enriquecendo-se, por sua vez, pelas contribuições, cada vez mais preciosas, da
ciência penal dos países neolatinos134.

134 A importância da jurisprudência europeia, afinal, foi percebida também no contexto da literatura brasileira: vg.,
L. Feldens, Direitos fundamentais e direito penal, Porto Alegre, 2008, espec. p. 106 suc.

118
L im it e s à L ib e r d a d e de Ex pr essã o

M iguel Reale Júnior


USP, São Paulo

1. Introdução

O exame que me proponho a realizar cinge-se à análise de duas impor­


tantes decisões do Supremo Tribunal Federal no que respeita aos limites que
devam ser impostos à liberdade de expressão e de manifestação de pensamento
frente a outros valores constitucionais.
Neste rumo, objeto de ponderação serão os valores consagrados nas nor­
mas constitucionais que definem os fundamentos e os objetivos fundamentais da
República, os valores da dignidade humana e da igualdade, da honra e da inti­
midade que podem vir a ser colocados em perigo pela liberdade de manifestação
de pensamento e de expressão intelectual que, por sua vez, constituem, também,
pilastras sobre as quais se ergue o Estado Democrático1.
A questão da colisão de princípios constitucionais2, que prefiro denomi­
nar de colisão de valores, como honra, dignidade da pessoa humana e intimidade

1 Art. 1° A República constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:


III - a dignidade da pessoa humana.
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Art. 4° A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a inde­
nização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo
ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1° - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalís­
tica em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2° - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
2 SILVA, Luís Virgílio Afonso da, A constitucionalização do direito - os direitos fundamentais nas relações
entre particulares, São Paulo, tese de titularidade na Faculdade de Direito da USP, 2004, p. 38 e seguintes, bem
mostra que na Doutrina brasileira há, muitas vezes, a identidade entre princípios e valores fundamentais, quando
a seu ver, com razão, na linha do pensamento de Alexy, princípios constituem mandamentos de otimização, sen­
do um conceito que não faz referência à fundamentalidade da norma, mas tem estrutura de um mandamento de
otimização. Um princípio pode ser um mandamento nuclear do sistema, “mas pode também não o ser, já que uma
norma é um princípio em razão de sua estrutura normativa e não de sua fundamentalidade”

119
Miguel Reale Júnior.

em face da liberdade de manifestação de pensamento e de expressão, maximi­


zados no campo da liberdade de informação jornalística, é bastante aguda, em
especial no direito norte-americano em vista do constante da 1a Emenda3.
Esta matéria, em face do preceituado na Constituição brasileira, não fora
ainda detidamente enfrentada por nossa Corte Suprema, como o veio a ser nos
dois julgamentos que a seguir serão examinados.
Primeiramente, o Habeas Corpus n° 82.424 do Rio Grande do Sul, ti­
nha por eixo a questão do conceito de racismo, para saber se este termo era ou
não compreensivo da discriminação contra os judeus. Todavia, no julgamento
abordou-se, também, um a questão essencial: a discriminação em livro insere-se
no campo da liberdade de expressão intelectual do autor e do direito de edição de
obras ideologicamente comprometidas, mesmo que errôneas, ou o incitamento
ao ódio racial não poderia ter agasalho constitucional e tipifica prática delituosa4?
O segundo julgam ento, no qual se fará referência apenas aos votos
do Relator Carlos Ayres Brito e M arco Aurélio M ello, diz respeito à liber­
dade de expressão e de pensam ento frente a outros valores constitucionais,
no julgam ento de Arguição de Descum prim ento de Preceito Fundam ental na
qual se apreciava a constitucionalidade de norm as da Lei de Imprensa, edi­
tada durante a ditadura m ilitar, tendo o Supremo considerado por m aioria de
votos que toda a Lei, no seu conjunto, devia ser revogada por confrontar com
a Constituição de 1988.
Curiosamente, como se verá, os dois M inistros que deram m aior peso
à liberdade de expressão no caso do racismo, mesmo frente à hipótese de in­
citamento contra os judeus, ou contra o sionismo, como preferiu dizer Carlos
Ayres Brito, foram antagônicos no julgam ento acerca da inconstitucionalidade
da lei de imprensa, prevalecendo a visão radical de Carlos Ayres Brito em fa­
vor da superioridade da liberdade de expressão, para com voto vencedor levar
o Supremo a revogar a lei de imprensa.
Assim, prim eiram ente, cabe dar um a breve notícia dos fatos em ju l­
gamento no denominado “caso do racism o”, bem como do parecer que ofer­
tei para lastrear m anifestação de amicus curiae, do parecer de Celso Lafer,
do voto do relator vencido (Min. M oreira Alves) e do relator designado com
voto vencedor, M aurício Corrêa5.

3 Consta da primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América: “O Congresso não deve fazer
leis a respeito de se estabelecer uma religião, ou proibir o livre exercício das mesmas; ou diminuir a liberdade
de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedi­
dos ao governo para que sejam feitas reparações por ofensas”.
4 O art. 20 da Lei n° 7.716/95, à época dos fatos, tinha a redação dada pela Lei n° 8.081/90, do seguinte teor:
“Praticar, induzir ou incitar pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discri­
minação ou preconceito de raça, por religião, etnia, procedência nacional. Pena. Reclusão de dois a cinco anos”.
5 Em anexo, apresento trechos dos votos para melhor conhecimento da matéria que mobilizou o Supremo em 2003.

120
Limites à liberdade de expressão.

2. R esum o do caso do racism o

O editor Siegfried Ellwanger publicou e escreveu livros que pregam a dis­


criminação racial, induzindo o ódio aos judeus e responsabilizando-os por todos os
males do mundo, incitando, dessa forma, à sua inferiorização e segregação.
Em diversas passagens dos livros m enciona-se a raça judáica, a incli­
nação racial dos judeus, inclinação parasitária que form a parte do caráter dos
judeus, tendências que se enraízam no sangue judeu. Além de se constituir
em violento ataque aos judeus, nos livros “Holocausto judeu ou alemão? Nos
bastidores da m entira”, obra de sua autoria, como o livro “Os conquistadores
do mundo: os verdadeiros crim inosos de guerra” - defende-se o regime na­
zista, pretendendo negar o holocausto, desfazendo a m em ória de Auschwitz
e transform ando os judeus nos verdadeiros culpados pela 2a grande guerra e
únicos beneficiários dela.
Absolvido em prim eira instância, por entender a m agistrada que os
textos não induziam ou incitavam à discriminação étnica do povo judeu, veio
a ser condenado em apelação. Entenderam os Desembargadores ter havido dis­
criminação racial, sendo “intenção única do apelado propagar um a realidade
alicerçada em ideologia que chega às raias do fanatism o”.
Im petrou-se, então, em favor do condenado, Habeas Corpus, no qual
não se contesta a configuração do crime de discrim inação contra a com uni­
dade judaica, mas sim que o povo judeu não constitui um a raça. Buscou-se o
reconhecim ento de que a expressão racismo, utilizada pela Constituição, ao
estatuir que a sua prática constitua crime im prescritível, lim ita-se à discrim i­
nação decorrente de raça, negra ou indígena, caracterizada por sinais físicos
ou biológicos. Desse m odo, o crime praticado não foi de racismo, mas sim de
discrim inação contra os judeus, não sendo, desta feita, im prescritível. Sendo
prescritível, estaria a pena prescrita.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua 5a Turma, sendo relator o
Min. Gilson Dipp, entendeu que “a condenação se deu por delito contra a
comunidade judáica, não se podendo abstrair o racismo de tal com porta­
m ento”. Engloba-se com a palavra racismo todos os tipos de discrim inação
ilegal, seja em relação à religião, nacionalidade ou regionalidade. Concedida
a ordem, contudo, em razão de considerar que não houve prática de racismo,
mas induzim ento ao racismo.
Em Habeas Corpus, substitutivo de recurso ordinário, veio o paciente
às barras do Supremo Tribunal Federal, alegando exatamente que o crime que
cometeu não se constitui como crime de racismo, mas de discriminação contra
os judeus, não sendo, portanto, imprescritível.

121
Miguel Reale Júnior.

3. c o n c e ito de racism o no Suprem o Tribunal Federal

O Relator do Habeas Corpus, Min. M oreira Alves, m anifestou-se


pela concessão da ordem ao entender que efetivam ente os judeus não consti­
tuem um a raça, o que se verifica em razão dos dados físicos ou constitucio­
nais, como cor da pele, formato dos olhos e textura do cabelo. Não sendo os
judeus um a raça, o crime praticado não se enquadraria como racismo, sen­
do, portanto, o delito praticado pelo paciente prescritível, havendo ocorrido
o prazo prescricional.

3.1. Os pareceres

Em parecer6, m anifestei-m e no sentido de que a expressão racismo


refere-se um tipo de com portam ento político e social de diminuição ou ex­
clusão de um determ inado grupo de pessoas, identificado não só por per­
tencerem a um a raça, o que se revela cientificam ente im possível fixar, mas
tendo em vista características culturais perm anentes. Trata-se antes de uma
form a de inferiorizar o outro, um a estrutura m ental que considera os outros
diversos, não se lhes atribuindo a possibilidade de estar “entre nós”, de gozar
dos mesmos direitos, o que constitui um a expulsão continuada do outro, uma
punição m aior do que a morte.
Há racismo, dizia no parecer, quando as diferenças etnoculturais são
consideradas imutáveis, indeléveis, atuando na prática das instituições com base
nestas diferenças, gerando a pretensão de supremacia permanente de um grupo
sobre outro, uma ordem racial.
Ponderava, então, ser o racismo antes um elemento justificante do inimi­
go que a sociedade necessita do que diferenças marcadas pela raça, pois não há
outras diferenças senão as impostas pelos próprios homens. Desse modo, lem­
brava a definição de Mancini para o qual racismo é toda a atitude defensiva ou
discriminatória em face de um a categoria de indivíduos classificada de acordo
com sua procedência territorial e a sua identidade étnica ou racial.
Esta afirmação encontra base na distinção feita por um dos maiores es­
tudiosos do fenômeno racista, Pierre-André Taguieff, que em entrevista sustenta
a diferença entre racialismo e racismo: o primeiro pensa o mundo em termos de
raça, enquanto o racismo, por sua vez, é uma teoria e prática política, um pro­
grama político que pretende alcançar um objetivo de exclusão e segregação7.

6 Nosso, Antisemitismo é racismo, publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, n°43, abril/junho
de 2003, p. 223/248.
7 Editorial e entrevista de Pierre-André Taguieff constantes da Revista L’Histoire, n° 214, outubro de 1997,
p. 3 e 34 e seguintes.

122
Limites à liberdade de expressão.

Celso Lafer, em substancioso parecer8, do qual apenas damos breve no­


tícia, trouxe contribuição em especial frente ao disposto nos documentos interna­
cionais, mormente a Convenção das Nações Unidas contra a discriminação racial.

Dizia Celso Lafer: O avanço do conhecimento e o desven­


dar do sequenciamento do genoma humano se incumbiram
de mostrar que não há fundamentação biológica em qual­
quer subdivisão racial da espécie humana e que os critérios
de diferenças visíveis, a começar pela cor da pele, são ape­
nas juízos de aparência. Neste sentido as ciências biológicas
são um elemento adicional para a afirmação do princípio da
igualdade e da não discriminação, que resultaram da positi-
vação do valor do ser humano.
As teorias racistas não têm fundamentação biológica.
Persistem, no entanto, como fenômeno social. É por essa
razão que é este fenômeno, e não a “raça”, o destinatário
jurídico da repressão prevista pelo art. 5.°, LXII, da Cons­
tituição, e da sua correspondente legislação infra-consti-
tucional. É precisamente porque a prática do racismo está
na cabeça das pessoas que o art. 20 da Lei 7.716/89, com
a redação dada pela Lei 8.081/90 e também sua evolução
legislativa, tipifica na estrutura do delito o praticar, indu­
zir ou incitar por publicações e pelos meios de comunica­
ção, a divulgação de teorias que discriminam grupos ou
pessoas, a elas atribuindo as características de “raças in­
feriores”. Esta divulgação é crime de prática de racismo.
O Direito Internacional Público é um elemento adicional a
confirmar que o crime cometido por Siegfried Ellwanger é
o da prática do racismo. Com efeito, a Convenção de 1965
qualifica, no seu art. 1, como discriminação racial, qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em
raça, cor, descendência ou origem nacional e estipula, no
seu art. 4, como delito, a difusão de ideias baseadas na su­
perioridade ou ódios raciais ou qualquer incitamento à dis­
criminação racial, tal como definido no art. 1°. A prática do
crime de racismo inclui, assim, o antissemitismo, que é um
fenômeno social, que independe de um inexistente e impre­
ciso conceito de raças.

8 LAFER, Celso, A internacionalização dos Direitos Hum anos - constituição, racismo e relações interna­
cionais, São Paulo, Manole, 2.005, p. 33 a 88.

123
Miguel Reale Júnior.

3.2. O voto do relator designado

O Min. Maurício Corrêa, em pedido de vista, proferiu voto no qual pon­


dera: Com efeito, a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo
político-social originado da intolerância dos homens.

A simples alusão à raça, considerada, como deve ser, uma


realidade sociopolítica, já exibe suficiente base jurídico-
constitucional para incluir o antissemitismo na extensão
de seu verdadeiro conceito. Nesse passo, a correta con­
clusão do parecer do Professor M iguel Reale Júnior, de
que o racismo é, antes de tudo, uma realidade social e po­
lítica, sem nenhuma referência à raça enquanto caracteri­
zação física ou biológica, como, aliás, as ciências sociais
hoje em dia indicam.

Mais adiante, aduz:

Por tudo o que já foi dito, permito-me arrematar que ra­


cismo, longe de basear-se no conceito simplista de raça,
reflete, na verdade, reprovável comportamento que de­
corre da convicção de que há hierarquia entre os grupos
humanos, suficiente para justificar atos de segregação,
inferiorização, e até de eliminação de pessoas.

4. A liberdade de expressão no caso do racism o

4.1. Os principais votos

Para analisar a posição do Supremo, inicialmente transcreverei parágra­


fos essenciais reveladores da posição assumida nos principais votos que aborda­
ram o problema dos limites da liberdade de expressão9, no caso do racismo, bem
como, ao depois, no item seguinte, o voto importante do Min. Carlos Ayres Brito,
na Arguição na qual se revogou a Lei de Imprensa.

4.1.1. O voto de Maurício Corrêa

M aurício Corrêa de form a lateral toca na questão da liberdade de


expressão, ao asseverar: “A previsão de liberdade de expressão não assegu­

9 Em anexo a transcrição de trechos dos principais votos. LAFER, Celso, (op. cit., p. 108 e seguintes) faz uma
análise e síntese breve dos votos de alguns ministros, dedicando, depois, maior exame ao voto absolutório do
Min. Carlos Ayres Brito.

124
Limites à liberdade de expressão.

ra o ‘direito à incitação ao racism o’. Em situações, como a presente, acaso


caracterizado o conflito, devem preponderar os direitos de toda a parcela da
sociedade atingida com a publicação para que a discrim inação com etida não
se apague da m em ória do povo” .

4.1.2. Observação do Min. Sepúlveda Pertence

O Ministro Sepúlveda Pertence, em aparte, suscitou a questão da possi­


bilidade de haver incitamento por meio de livro, manifestando sua preocupação
com a imposição de condenação por se ter escrito livros. A partir desta provo­
cação a matéria relativa à liberdade de expressão e de sua tutela pela não incri­
minação da publicação de livro em que se esposa opinião doutrinária ou uma
ideologia passou a ser, também, um tem a principal do julgamento.
Disse, então, Sepúlveda Pertence: “Creio que a beleza e a seriedade ex­
cepcional da discussão sobre o conceito de racismo estão deixando um pouco
na sobra um a outra discussão relevante: o livro como instrumento de um crime,
cujo verbo central é “incitar”. Fico muito preocupado com certas denúncias do
pós-64 neste País, da condenação de Caio Prado porque escreveu e da condena­
ção de outros porque tinham em suas residências livros de pregação marxista” .

4.1.3. Voto do Min. Celso de Mello

Em sua manifestação o Min. Celso de Mello foi explícito no sentido da


existência de limites à liberdade de expressão:

A proteção constitucional que assegura a liberdade de ex­


pressão do pensamento não pode compreender, em seu
âmbito de tutela, manifestações revestidas de ilicitude
penal. A liberdade de manifestação do pensamento, por
mais abrangente que deva ser o seu campo de incidência,
não constitui meio que possa legitimar a exteriorização
de propósitos criminosos, especia1mente quanto às ex­
pressões de ódio racial.
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou
garantias que se revistam de caráter absoluto, assim, ne­
nhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimen­
to da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e
garantias de terceiros.
Cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignida­
de pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à
liberdade de expressão, que não pode, e não deve ser exercida
com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas.

125
Miguel Reale Júnior.

Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre


princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo
Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam
ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determi­
nado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta,
qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada
a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a
utilização do método da ponderação de bens e interesses
não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos
direitos fundamentais.

4.1.4. Voto de Gilmar Mendes

A liberdade de expressão, em todas as suas formas, constitui pedra angu­


lar do próprio sistema democrático, razão pela qual, nas sociedades democráticas,
causa intensa preocupação o exercício de liberdade de expressão que venha a con­
sistir na incitação à discriminação racial.

Se a liberdade de expressão, incluindo a liberdade de im­


prensa, é fundamental para uma democracia, a igualdade
política é, consequentemente, também necessária, se uma
sociedade pretende ser democrática. Uma sociedade que
objetiva a democracia deve tanto proteger o direito de liber­
dade de expressão quanto o direito à não - discriminação.

Em frase precisa, o Min. Gilmar Mendes estabelecia uma premissa: “A


discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão
compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualda­
de”, adicionando a consideração de que “não se pode atribuir primazia absoluta
à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de
valores outros como os da igualdade e da dignidade humana” .
Considera, destarte, que para solução de conflitos entre direitos deve-
se levar em conta o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação
das máximas que integram o p rincípio da p rop orcionalidade ou postulado
da p rop orcionalidade, quais sejam: a adequação (aptidão para produzir o
resultado desejado), a necessidade (inevitabilidade de outro meio menos gra-
voso e igualmente eficaz) e a p rop orcionalidade em sentido estrito (relação
ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do
princípio contraposto).
Assim, finalizava o Min. Gilmar Mendes com a convicção de que a inten­
ção única do apelado é propagar uma realidade alicerçada em ideologia que chega
às raias do fanatismo, sem base histórica provadamente séria. Assim, considerou

126
Limites à liberdade de expressão.

ser evidente a adequação da condenação do paciente para se alcançar o fim al­


mejado, qual seja, a salvaguarda de uma sociedade pluralista, não havendo dúvida,
também, de que a decisão condenatória, tal como proferida, fosse necessária , pois
dificilmente vai se encontrar um meio menos gravoso. Por fim, a seu ver a decisão
condenatória atende, igualmente, ao requisito da proporcionalidade em sentido
estrito . Nesse plano, é necessário aferir a existência de proporção entre o objetivo
perseguido, qual seja a preservação dos valores inerentes a uma sociedade plura­
lista, da dignidade humana, e o ônus imposto à liberdade de expressão do paciente.
A liberdade não alcança a intolerância racial e o estimulo à violência,
pois, segundo Gilmar Mendes, há inúmeros outros bens jurídicos de base consti­
tucional que estariam sacrificados na hipótese de se dar uma amplitude intangí­
vel à liberdade de expressão.

4.1.5. Voto de Carlos Velloso

É induvidoso, segundo Carlos Velloso, que a Constituição brasileira con­


sagra a liberdade de expressão, que se consubstancia nas liberdades de manifes­
tação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica
e de comunicação e a liberdade de imprensa (C.F., art. 5°, IV e IX; art. 220).
Não é menos certo, entretanto, que não há direitos absolutos. Ora, não pode a
liberdade de expressão acobertar manifestações preconceituosas e que incitam a
prática de atos de hostilidade contra grupos humanos, em manifestações racistas.
A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana,
fundamento da República e do Estado Democrático de Direito.

4.1.6. Voto de Carlos Ayres Brito

O ministro manifesta tem or de ver privados de espaço de incidência os


dois estelares modelos de autonomia de vontade: a liberdade de expressão e a
liberdade de atividade artística, intelectual, científica, e de comunicação, inde­
pendentemente de censura ou licença.
Para o Min. Carlos Ayres Brito, “a liberdade de expressão é a maior ex­
pressão da liberdade”.
A seu ver são excludentes constitucionais da abusividade, a ser denomi­
nadas “excludentes da abusividade”, a crença religiosa, a convicção filosófica e
a convicção política.
A meu juízo, dizia o Min. Carlos Ayres Brito, o de que se pode acusar o
autor-paciente é de sobrepor a sua ideia fixa de revisão da História à neutralidade
que se exige de todo pesquisador.

127
Miguel Reale Júnior.

De forma incisiva, o Min. Carlos Ayres Brito afirmou, “Sucede que não
é crime tecer loas a uma ideologia”.
E continua:

Pode ser uma pena, uma lástima, uma desgraça que alguém
se deixe enganar pelo ouropel de certas ideologias, por cor­
responderem a um tipo de emoção política ou de filosofia
de Estado que enevoa os horizontes do livre pensar. Mas,
0 fato é que essa modalidade de convicção e consequente
militância tem a respaldá-la a própria Constituição Federal.

Apesar de ao depois votar como relator pela revogação da Lei de


Imprensa, o Min. Carlos Ayres Brito recorria a esta lei: “Esse respaldo jurídico
também decorre da ‘Lei de Imprensa’ (Lei n° 5.250, de 9 de fevereiro de 1967),
conforme a seguinte expressão vocabular:

Art. 27. Não constituem abusos no exercício da liberdade de


manifestação do pensamento e de informação:
1 - a opinião desfavorável da crítica literária, artística, cien­
tífica ou desportiva, salvo quando inequívoca a intenção de
injuriar ou difamar; [...]
IX - a exposição de doutrina ou ideia.

Diz o Min. Carlos Ayres Brito: “É uma obra de revisão histórica, ainda
que muito pouco atraente literariamente, e em parte quixotesca. E obra de quem
professa uma ideologia”.
Conclui, então, o Min. Carlos Ayres Brito:

O presente caso é de uso da liberdade de expressão para ci­


mentar uma convicção política. Ou uma convicção político-
ideológica, de especial proteção constitucional (nos termos
do inciso VIII do art. 5°).

4.1.7. Voto de Marco Aurélio Mello

Para o Min. Marco Aurélio Mello, os direitos fundamentais localizam-se


na estrutura de sustento e de eficácia do princípio democrático. Nesse contexto, o
específico direito fundamental da liberdade de expressão exerce um papel de ex­
trema relevância, insuplantável, em suas mais variadas facetas: direito de discur­
so, direito de opinião, direito de imprensa, direito à informação e a proibição da
censura. A seu ver é fácil perceber a importância do direito à liberdade de expres­
são se analisarmos as dimensões e finalidades substantivas que o caracterizam.

128
Limites à liberdade de expressão.

A principal delas, ressaltada pelos mais modernos constitucionalistas no mundo,


é o valor instrumental, já que funciona como uma proteção da autodeterminação
democrática da comunidade política e da preservação da soberania popular.
A garantia de uma esfera pública de debate sobre os mais diferentes
temas contribui para a concretização do princípio democrático e para o amadu­
recimento político e social de um país.
O argumento central de Mill é escancarar que não existe uma verdade abso­
luta que justifique as limitações à liberdade de expressão individual. Proteger a liber­
dade, para ele, não é somente se manifestar em favor da liberdade de consciência e de
expressão, mas principalmente lutar continuamente contra quem quiser restringi-la.
Os limites à liberdade de expressão, ao ver do Min. Marco Aurélio, ape­
nas podem incidir sobre “manifestação que seja exacerbadamente agressiva, fi­
sicamente contundente ou que exponha pessoas a situações de risco iminente”,
pois considera que apesar de ampla a liberdade de expressão não possui o mesmo
caráter absoluto, encontrando “limites nos demais direitos fundamentais, o que
pode ensejar um a colisão de princípios” .
Considera, então, dever-se resolver o choque de princípios a partir do
critério da ponderação dos valores em jogo que cumpre ser decidida com base
no caso concreto e nas circunstâncias da h ip ótese , para se avaliar qual o
direito deve ter primazia.
Dessa forma, assevera o Min. Marco Aurélio Mello que:

O confronto entre liberdade de expressão e proteção da


dignidade humana é de se realizar, não de forma abstrata,
mas diante da hipótese concreta, para se verificar se a
dignidade de determinada pessoa ou grupo está correndo
perigo, se essa ameaça é grave o suficiente a ponto de
limitar a liberdade de expressão.

Ao ver do Ministro, neste exame segundo as circunstâncias concretas,


há de se “atentar para a realidade brasileira, evitando-se que prevaleça solução
calcada na crença de que os judeus são um povo sofredor”. Assim, considera
importante visualizar a realidade brasileira.
Assim,

O confronto entre liberdade de expressão e proteção da


dignidade humana é de se realizar, não de forma abstrata,
mas diante da hipótese concreta, para se verificar se a dig­
nidade de determinada pessoa ou grupo está correndo pe­
rigo, se essa ameaça é grave o suficiente a ponto de limitar
a liberdade de expressão.

129
Miguel Reale Júnior.

Segundo o Ministro Marco Aurélio, “a defesa de uma ideologia não é crime


e o fato de escrever um livro, mesmo que outros concordem com as ideias expostas,
não haverá, por isso, uma revolução nacional”. Lembra, então, que o brasileiro mé­
dio não tem sequer o hábito de ler. Em um Estado Democrático de Direito, “só se
justifica a reprimenda quando a divulgação da ideia ocorra de maneira violenta ou
com mínimos riscos de se propagar”. A limitação estatal à liberdade de expressão,
ao ver do Ministro Marco Aurélio Mello, “é medida de máxima excepcionalidade,
cabível tão só diante de grave abuso no exercício da liberdade de pensamento”.
No entender do magistrado, não há perigo iminente de extermínio do
povo judeu, especialmente em um país que nunca cultivou quaisquer sentimen­
tos de repulsa a esse povo.
O livro do paciente, segundo o Min. Marco Aurélio Mello,

deixa claro que o autor tem uma ideia preconceituosa


acerca dos judeus, a ser combatida, mas não com a im-
putação de crime de racismo gravemente punido com a
cláusula de imprescritibilidade.

N a opinião do Ministro Marco Aurélio, seria mais facilmente defensável a


ideia de restringir a liberdade de expressão se a questão deste Habeas Corpus res­
valasse para os problemas cruciais enfrentados no Brasil, como, por exemplo,
o tem a da integração do negro, do índio ou do nordestino na sociedade.
Para o Ministro, no Brasil:

faltam pressupostos sociais e culturais para tornar livro de


cunho preconceituoso contra o povo judeu um verdadeiro
perigo atentatório à dignidade dessa comunidade. O mesmo
não pode ser dito, por exemplo, em países como a Alemanha.

Recorre, então, ao postulado da proporcionalidade:

Um livro, para transformar os pensamentos em realidade,


depende de quem o lê e o apreende, ou seja, depende de a
comunidade política ter, minimamente, tendência para acei­
tar aquelas ideias, ou seja, exista ambiente propício à pro­
liferação das posições defendidas. O livro só será perigoso
se houver ambiente propício para a recepção das ideias pro­
paladas. Só assim, pode-se falar em incitamento, o que não
se dá na sociedade brasileira cuja história revela que, em
nenhum momento de nosso passado, houve qualquer incli­
nação da sociedade brasileira a aceitar, de forma ostensiva e
relevante, ideias preconceituosas contra o povo judeu.

130
Limites à liberdade de expressão.

Por isso, assevera que a condenação, em vista da colisão entre liberdade


de manifestação do paciente e dignidade do povo judeu, não foi o meio mais
adequado, necessário e razoável.
Assim, em sua conclusão, o Min. Marco Aurélio Mello pondera:

A imprescritibilidade só pode incidir na prática da discrimi­


nação racista contra o negro, por ser medida excepcional no
sistema democrático. Destarte, o racismo contra os negros,
este sim previsto na Constituição, é tão somente uma das
formas de discriminação e, por ser a mais grave delas - tida
como enraizada na vida dos brasileiros - surge imprescritível.

Para o Ministro Marco Aurélio Mello, o editor e autor cometeu uma simples
discriminação contra o povo judeu, prevista, sem a causa da imprescritibilidade, no
inciso XLI do artigo 5° da Constituição, segundo o qual “a lei punirá qualquer discri­
minação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Considera, então, não
aplicável a imprescritibilidade, reconhecendo a prescrição da pena aplicada.

4.1.8. Voto confirmação de Celso de Mello

Após a manifestação do Min. Marco Aurélio Mello, o Min. Celso de


Mello, que já votara, volta a falar para confirmar seu voto e infirmar a orientação
fixada pelos Ministros Carlos Ayres Brito e Marco Aurélio.
Diz, então, o Min. Celso de Mello:

Direito à livre expressão do pensamento, contudo, não se re­


veste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza
ética e de caráter jurídico. Os abusos no exercício da liber­
dade de manifestação do pensamento, quando praticados,
legitimarão, sempre ‘a posteriori’, a reação estatal, expondo
aqueles que os praticarem a sanções jurídicas, de índole pe­
nal ou de caráter civil.
O estímulo à intolerância e ao ódio público pelos judeus
(como se registra no caso ora em exame), não merecem a
dignidade da proteção constitucional, pois a liberdade de
manifestação do pensamento, por mais abrangente, não
pode legitimar a exteriorização de propósitos criminosos,
especialmente quando as expressões de ódio racial - atin­
gem valores tutelados pela própria ordem constitucional.

Conclui, então, o Ministro Celso de Mello:

131
Miguel Reale Júnior.

Sobre a liberdade de manifestação de pensamento devem


incidir limitações de ordem jurídica, destinadas, de um
lado, a proteger a integridade do interesse social e, de ou­
tro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades,
em face de nítidos propósitos criminosos de estímulo à in­
tolerância e de incitação ao ódio racial.

5. Lim ites à liberdade de expressão

5. 1. As diversas posições

Feitas as necessárias transcrições dos votos, passo, então, a tecer consi­


derações críticas ao valioso material constante dos votos parcialmente transcri­
tos, pretendendo, de início, classificá-los da seguinte forma: (i) o entendimento
que dá prim azia ao valor da dignidade da pessoa humana e da igualdade, em
face do valor da liberdade de expressão, como limites imanentes; (ii) a apli­
cação do postulado da proporcionalidade em face das circunstâncias concretas
com conclusões contraditórias, pois decide em favor da condenação por ra­
cismo e outra considera não ter havido crime de racismo; (iii) o entendimento
que privilegia o exame das circunstâncias do caso concreto e, na hipótese, dá
prim azia à liberdade de expressão.

5.2. O reconhecim ento de sobreprincípios - lim ites im anentes

Segundo a com preensão da existência de lim ites im anentes10, no con­


junto dos valores constitucionais, procura-se estabelecer um a hierarquia m a­
terial, com a concepção, por exemplo, de sobreprincípios, na expressão de
Hum berto Ávila, como o da dignidade hum ana, que é de tal im portância “na
ordem constitucional que repercute até mesmo na atividade herm enêutica: a
10 Os limites imanentes apresentam-se, também, no campo dos direitos subjetivos, quando as normas se so­
brepõem. Segundo Martins Costa, Judith, Novas reflexões sobre o princípio da função social dos contratos:
Estudos do direito do consumidor, in Estudos de direito do consumidor, Coimbra, Centro de Direito do Con­
sumo, 2005, p.71. Segundo a A., no campo dos direitos subjetivos polariza-se a compreensão da existência
de limites internos e externos, posições que assim sintetiza: “Teoria interna: os direitos e respectivos limites
são imanentes a qualquer posição jurídica; o conteúdo definitivo de um direito é, precisamente, o conteúdo
que resulta dessa compreensão do direito ‘nascido’ com limites; logo, o âmbito de proteção de um direito é
o âmbito de garantia efetiva desse direito”. Aliás, é o que diz CANOTILHO, para o qual se deve distinguir
entre o âmbito de proteção e o âmbito efectivamente protegido, sendo que para a teoria interna os limites são
imanentes e o âmbito de proteção de um direito é o âmbito de garantia efectivo desse direito, enquanto para a
teoria externa os direitos e restrições são dimensões separadas e o “âmbito de proteção é mais extenso do que
a garantia efectiva” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Dogmática dos Direitos Fundamentais e Direito Privado, in
SARLET, Ingo. (org.) Constituição, Direitos Fundam entais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003, p. 347 e seguintes). No caso de colisão de princípios, como é a questão em exame, as normas
não se sobrepõe, tendo o mesmo objeto, por exemplo, a proibição do aborto e a permissão do aborto justificado:
as normas protegem valores diversos, sobre os quais recai uma ponderação.

132
Limites à liberdade de expressão.

interpretação de qualquer norm a deverá colocar o homem no centro de im ­


portância e de valoração11”
N a antinomia interna ou em abstrato tem-se a solução independente­
mente de se aplicar a um determinado caso concreto12, o que indica que não
se chega, efetivamente, a ter um a colisão, apenas admissível se considerar-se
encontrarem-se os valores ou princípios em situação de igualdade e o grau de
cumprimento de um princípio dependerá, então, das circunstâncias do caso con­
creto e dos princípios em confronto, a ser resolvido pelo processo de ponderação
que a seguir será examinado.
Haveria “valores elementares ” sem os quais a comunidade não pode sub­
sistir, e que não poderiam ser perturbados diante do exercício de um outro direito
fundamental, em face do qual a proteção constitucional não quer ir tão longe a
ponto de permitir que valores básicos comunitários viessem a ser atingidos pelo
exercício de um destes direitos fundamentais. Haveria, então, uma maior intensi­
dade valorativa de um núcleo fundamental que seria intocável13.
Como se ressalta, o “coração do direito”, que não pode ser afetado, con­
siste na dignidade da pessoa humana14, do homem concreto, que constitui, segundo
Vieira de Andrade, “a base dos direitos fundamentais e o princípio de sua unidade
material”, que por vezes tem sua projeção tão intensa que não pode se admitir
violação em nenhum caso, pois em qualquer caso o conteúdo essencial da digni­
dade humana será atingido. Nesta hipótese não haverá conflito de valores a serem
ponderados em face do caso concreto, mas limites imanentes.
Já a solução de conflitos pressupõe um a igualdade entre direitos ou
valores em jogo, que não pode ser resolvida por meio de um a preferência abs­
trata, pois a hierarquia só poderá ser estabelecida por via da consideração dos

11 ÁVILA, Humberto, Sistema constitucional tributário, São Paulo, Saraiva, 2a ed., 2006, p. 327. O Autor
menciona igualmente o Estado de Direito como outro sobreprincípio em especial em vista do direito de tributar,
submetido ao respeito à separação de poderes.
12 PRIETO SANCHIS, Luís, El juicio de ponderación constitucional, in Constituición: problemas filosófi­
cos, coordenação de Laporta, Francisco, Madrid, Centro de estúdios políticos y constitucionales, 2003, p. 225.
13 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Os direitos fundam entais n a constituição portuguesa de 1976, 2a
ed., Coimbra, Almedina, p. 286 e seguintes.
14 MARTINS-COSTA, Judith, Pessoa, personalidade, dignidade, (ensaio de um a qualificação) tese de
livre docência apresentada à Faculdade de Direito da USP em 2003, p. 155 bem ensina que deve-se ter um
conceito restrito de dignidade da pessoa humana, a constituir “a ultima ratio da argumentação, porque sua
função é a de vedar o que está no limite da inumanidade: a tortura, o genocídio, o racismo; as experiências
eugênicas; a superfluidade das pessoas; é a de oferecer um norte - e um limite - à pesquisa científica e
à tecnologia; situar no campo das ilicitudes as formas de degradação do ser humano ou de sua instru­
mentalização coibindo que o ser humano entre no domínio do fabricável...”. Vide, igualmente, COSTA,
Regina Helena Lobo, A dignidade h u m an a - teorias de prevenção geral positiva, São Paulo, RT, 2008,
p. 57, considera, de forma um pouco mais ampla, após estudo do conteúdo do princípio da dignidade da
pessoa humana nas Cortes Constitucionais da Alemanha, da Espanha e de Portugal, que o “princípio é de
ser utilizado em situações-limite, em que a vida, a integridade física ou psíquica, a liberdade, autonomia,
a igualdade ou o respeito e garantia a um mínimo de condições materiais tenham sido nuclearmente vio­
lados, dominando-se ou subjugando-se a pessoa”.

133
Miguel Reale Júnior.

casos concretos, procurando-se harm onizar direitos divergentes em vista das


circunstâncias específicas da questão real posta a exame15.
Pondera-se que se pode incorrer em uma “tirania do valor16” ao pretender-
se estabelecer em abstrato uma hierarquia, independente do caso concreto, pois se
deve partir de uma igualdade abstrata de valores e apenas diante das circunstâncias
específicas do fato em exame escolher qual valor deve ter, na hipótese, maior peso
diante dos perigos advindos aos valores em jogo, dada a situação concreta.
Se é certo que no sopesamento dos valores buscam-se, no caso concreto,
as razões suficientes 17 para a escolha, sempre angustiosa e fatalmente condicio­
nada por posições de ordem ideológica, por outro lado, pode-se colher na própria
Constituição uma indicação de quais são os valores mais ou menos essenciais18,
ou seja, que possuam maior intensidade. Não há duvida, contudo, de que qualquer
tentativa de hierarquização material de valores, a partir da própria Constituição,
não deixa de estar condicionada por uma perspectiva de cunho ideológico.
Sem dúvida, a meu ver, pode-se visualizar nos primeiros artigos da
Constituição, que estabelecem a forma de organização política do Estado e a
natureza de nossa sociedade política, determinar-se que a dignidade da pessoa
humana constitui um dos fundamentos da República. Logo a seguir, no art.3°, IV,
estabelece a Constituição que é objetivo fundam ental da República “promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”.
No caput do art. 5° da Constituição reafirma-se a igualdade de todos
independentemente de distinção de qualquer natureza. Assim, a igualdade de to­
dos, por possuírem o mesmo predicado de portadores da dignidade como pessoa
humana, consiste em pressuposto essencial à fruição dos demais direitos funda­
mentais e deflui claramente do texto constitucional. Por outro lado, a ofensa mais
grave à dignidade da pessoa humana, a destruir a igualdade da dignidade social
de todos, é a discriminação, muito especialmente em vista da raça em seu sentido
político-social, como antes referido.
Esta, a m eu ver, a posição assum ida por diversos M inistros do Su­
premo ao darem, de im ediato, sem recurso a exame mais detalhado dos fatos
em exame e sem recorrer, como cabe na colisão de princípios, ao crivo do
critério da proporcionalidade.
Veja-se, por exemplo, o teor do voto do Min. Celso de Mello:

15 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, op., cit., p. 312 e seguinte.


16 SAMPAIO, João Adércio Leite, p. 733.
17 D ’URSO, Flávia, Princípio constitucional d a proporcionalidade no processo penal, São Paulo,
Atlas, 2007, p. 65.
18 SAMPAIO, João Adércio Leite, p. 734. Para o A. é curioso notar que já se tenha, em parte, firmado no Supre­
mo, certa hierarquia entre os direitos constitucionais, o que a seu ver não constitui, no entanto, uma posição majo­
ritária, pois, a exemplo de outras Cortes constitucionais, não reconhece uma hierarquia de direitos pré-concebida.

134
Limites à liberdade de expressão.

Cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dig­


nidade pessoal dos seres humanos constituem limitações
externas à liberdade de expressão, que não pode, e não
deve ser exercida com o propósito subalterno de veicular
práticas criminosas.

E mais adiante:

A liberdade de manifestação do pensamento, por mais


abrangente que deva ser o seu campo de incidência, não
constitui meio que possa legitimar a exteriorização de
propósitos criminosos, especia1mente quando as expres­
sões de ódio racial.

Ou mais incisivamente ainda o voto do Ministro Carlos Velloso:

A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade


da pessoa humana, fundamento da República e do Estado
Democrático de Direito.

O Min. Maurício Corrêa refere à prevalência de proteção contra a discri­


minação em face do direito de liberdade de expressão:

Em situações como a presente, acaso caracterizado o confli­


to, devem preponderar os direitos de toda a parcela da so­
ciedade atingida com a publicação para que a discriminação
cometida não se apague da memória do povo.

Gilmar Mendes, cujo voto será apreciado em seguida acerca da aplica­


ção do postulado da proporcionalidade, não deixa de estabelecer também uma
hierarquia ao dizer:

A discriminação racial levada a efeito pelo exercício da


liberdade de expressão compromete um dos pilares do sis­
tema democrático, a própria ideia de igualdade, adicionan­
do a consideração de que “não se pode atribuir primazia
absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma so­
ciedade pluralista, em face de valores outros como os da
igualdade e da dignidade humana.

Percebe-se que decorrem estas posições dos ministros da ênfase dada


pela nossa Constituição a não discrim inação como um valor essencial, a cons­
tituir um núcleo fundamental, não apenas por estabelecer a dignidade da pessoa

135
Miguel Reale Júnior.

hum ana como fundamento da República, mas por instituir a não d iscrim in a­
ção como um dos seus objetivos fundamentais e por criminalizar, no texto das
garantias individuais, o racismo, atribuindo-lhe o caráter excepcional de ser
um crime imprescritível, a ser apenado com pena de reclusão.
Por que tornar imprescritível o crime de racismo e não atribuir essa condição
aos crimes de tortura e terrorismo? A razão não é outra senão a necessidade de que
fatos de discriminação não devem ser apagados da memória, tornando-se sempre
presente a punição, como exemplo de longa duração. Assim, em qualquer momento
há uma imperiosidade social a justificar a sua punição, mesmo quando as finalidades
da pena (retribuição, intimidação, reforço da validade da norma, correção do con­
denado) não mais justificarem a execução da pena, em face do tempo transcorrido.
Assim, mesmo diante da importância do direito fundamental da liber­
dade de expressão, consideram estes ministros que este encontra um limite na
proibição de sua utilização para propósitos de ódio racial.

5.3. Colisão de princípios e proporcionalidade

Alexy aponta que não pode ser mais estreita a conexão entre a teoria
dos princípios e a m áxima da proporcionalidade, com suas três máximas par­
ciais: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Consi­
dera, então, que se um direito fundamental entra em colisão com um princípio
oposto, para se chegar a um a decisão quanto à possibilidade jurídica de reali­
zação da norm a de direito fundamental é necessário um a ponderação19.
Demonstrada fica, portanto, a imprescindibilidade da ponderação em
caso de colisão entre princípios, que possuem peso20, de acordo com as circuns­
tâncias concretas de cada caso, mesmo porque, conforme explicita Humberto
Ávila, a aplicação de um princípio depende dos princípios que a ele se contra­
põem, sendo o conteúdo de um princípio apenas determinado diante dos fatos21.
Como se vê, exige-se uma ponderação de bens a se realizar pela atribui­
ção de pesos a elementos que se entrelaçam22, havendo para o intérprete um dever
19 ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, Madri, Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p.
111 e seguintes. No Direito brasileiro, examine-se o trabalho de MAGALHÃES, Mariângela Gomes, O princípio
da proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 171 e seguintes, para a qual uma “necessária
ponderação tem lugar no momento em que uma norma de direito fundamental entra em colisão com outra cujo man­
damento diga respeito a outro direito igualmente fundamental”. Quando colidem está ordenada uma ponderação.
20 DWORKIN, Ronald, Los derechos en serio, Barcelona, Ariel, 1989, p. 30, para o qual os princípios não são
aplicados segundo o critério do aü-or nothing, pois têm peso a se verificar em cada caso e um princípio pode ter
na hipótese maior peso que outro, o que não invalida o de menor peso relativo.
21 ÁVILA, Humberto, A distinção entre princípios e regras e redefinição do dever de proporcionalidade,
na Revista da Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, v.1, 1999, p. 86; no mesmo sentido MARTINS
COSTA, Judith, “M ercado e solidariedade social entre cosmos e táxis: boa fé nas relações de consumo”, na
coletânea Reconstrução do Direito Privado, org. Judith Martins Costa, São Paulo, RT, 2002, p. 642.
22 ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São Paulo,
Malheiros, 2003, p.120.

136
Limites à liberdade de expressão.

de proporcionalidade na aplicação dos princípios, um a ponderação de bens.


Esse exame do postulado da proporcionalidade, na expressão de Humberto Ávila,
é de ser realizado para verificar se: (i) é meio adequado minimamente ao fim a que
se destina; (ii) é necessário por não houver outros meios de igual eficácia; (iii) a
importância do fim justifica a intensidade do direito restringido23.
José Joaquim Gomes Canotilho24 entende que pelo princípio da pro­
porcionalidade em sentido estrito , examina-se “se o meio utilizado é ou não
desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de medida
ou desmedida para se alcançar um fim”.
A ponderação, como forma de resolver conflitos por meio da máxima
ou do postulado da proporcionalidade, não pode partir senão do caso concreto
em suas específicas circunstâncias, pois em abstrato, diz Luis Prieto Sanchis, é
impossível decidir por um a preferência, que irá prevalecer em um caso e não em
outro, no qual terá primazia o seu contrário. Por isso, fala em hierarquia móvel
como formulação de um enunciado referido ao caso concreto, sem se estabelecer
uma hierarquia de direitos a priori, mas de uma preferência relativa ao caso con­
creto, que não exclui um a solução diferente em outro caso25.
A ponderação se apresenta, portanto, como um instrum ento idôneo a
resolver um jogo entre princípios que em abstrato podem conviver, mas que
são potencialm ente contraditórios, como é exemplo, a liberdade de expressão
e a proteção à honra, a ser em devidam ente sopesados em cada caso.
Assim, conclui-se que “a ponderação conduz a uma exigência de ponde­
ração que implica em estabelecer uma ordem de preferência relativa ao caso con-
creto26”, sem se admitir a aplicação de uma ordem rigidamente hierarquizada, mas
reconhecendo-se que a solução dada pode, se reiterada, consistir em um modelo de
ponderação, criado a partir de casos concretos com vocação para a permanência.
Nesta tarefa do intérprete, especialmente do juiz, faz-se uma negociação
entre valores sem que, como se mencionou acima, se possa garantidamente fugir
de um subjetivismo, muitas vezes a partir de pressupostos ideológicos. O recurso
à ponderação, na hipótese de se reconhecer a ocorrência de um conflito de valores
constitucionais, se apresenta como a única alternativa possível, apesar de que não ser
“o manto da ponderação uma terapia segura que evite aberrações morais ou tontices
ou um decisionismo vazio de toda a ponderação27”.
23 ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São Paulo,
Malheiros, 2003, p.121.
24 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional, Coimbra, Almedina, 1996, 6a ed. p. 382 e
seguintes. No Direito brasileiro examine-se o trabalho de MAGALHÃES, Mariângela Gomes, O princípio
da proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 171 e seguintes, ressalta que a “necessária
ponderação tem lugar no momento em que uma norma de direito fundamental entra em colisão com outra cujo
fundamento entra em colisão que diga respeito a outro direito igualmente fundamental”.
25 PRIETO SANCHIS, Luis, op. cit., p. 232 e seguintes.
26 PRIETO SANCHIS, Luis, op. cit., p. 234 e seguintes.
27 PRIETO SANCHIS, Luis, op. cit., p. 245; RUBIO LLORENTE, Francisco, Derechos fundam entales

137
Miguel Reale Júnior.

Este subjetivismo verifica-se de forma clara na análise dos votos dos


Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio, ambos fundados na análise do caso
concreto, a partir da máxima da proporcionalidade em suas máximas parciais da
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

5.3.1. O voto do Min. Gilmar Mendes

Segundo o Ministro a intenção única do apelado consistia em propagar


uma ideologia que chega às raias do fanatismo, pelo que era evidente a adequação
da condenação do paciente para se alcançar a salvaguarda de uma sociedade
pluralista. Pela mesma razão a decisão condenatória fazia-se necessária , diante
da impossibilidade de se encontrar um meio menos gravoso, que não a punição
penal. Quanto ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito considera
proporcional ao fim de preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista,
da dignidade humana o ônus imposto à liberdade de expressão do paciente.

5.3.2. O voto do Min. Marco Aurélio Mello

Para o Min. Marco Aurélio Mello, “o confronto entre liberdade de expressão


e proteção da dignidade humana é de se realizar, não de forma abstrata, mas diante
da hipótese concreta, para se verificar se a dignidade de determinada pessoa ou grupo
está correndo perigo, se essa ameaça é grave o suficiente a ponto de limitar a liber­
dade de expressão”, o que, a seu ver, exige que se atente para a realidade brasileira
e em face desta perguntar se por meio do livro efetivamente instigou-se ao racismo.
Ao ver do magistrado, não há perigo iminente de extermínio do povo
judeu, especialmente em um país que nunca cultivou quaisquer sentimentos de
repulsa a esse povo.
Segundo o voto, um livro, para transformar os pensamentos em realida­
de, depende de quem o lê e o apreende, e nossa história revela que, em nenhum
momento de nosso passado, houve qualquer inclinação da sociedade brasileira
a aceitar, de forma ostensiva e relevante, ideias preconceituosas contra o povo
judeu, razão pela qual não há possibilidade de incitamento, ao contrário do que
acontece na Alemanha. Para o Ministro, a defesa de um a ideologia não é crime e
não haverá, por isso, uma revolução nacional.
Destarte, a seu pensar a condenação pela publicação dos livros contra
os judeus como crime imprescritível, em vista da colisão entre liberdade de

e princípios constitucionales, (doctrina ju risp ru d en cial), Barcelona, Ariel, 1995, p. 76, considera que
a função do intérprete constitucional alcança a máxima importância diante de uma colisão de direitos
fundamentais e se “vê obrigado, como diz o Superior Tribunal Constitucional, a ponderar bens e direitos
em função do fato em exame, para harmonizá-los se for possível ou em caso contrário estabelecendo as
condições e requisitos em que se pode admitir a prevalência de um deles”.

138
Limites à liberdade de expressão.

manifestação do paciente e dignidade do povo judeu, não foi o meio mais ade­
quado, necessário e razoável. Seria razoável se fosse um a discriminação contra
os negros, pois a imprescritibilidade só pode incidir na prática da discriminação
racista contra o negro, a forma mais grave de discriminação em nossa sociedade,
por ser medida excepcional no sistema democrático.

5.3.3. Comentários

Na perspectiva de Gilmar Mendes, basta o incitamento contra o povo


judeu para se violentar a igualdade da dignidade social de todos os homens, não
sendo necessário avaliar da potencialidade de se alcançar pelo incitamento ao re­
sultado de se promover atos contra os judeus, sendo, também, ignorada qualquer
indagação sobre a receptividade ao longo de nossa história de manifestações
relevantes antissemitas. Tomou-se o fato concreto, incitamento contra os judeus
constante claramente dos livros e indagou se a reprimenda penal mais severa,
com a cláusula de imprescritibilidade seria adequada, necessária e razoável, con­
cluindo positivamente em vista do fim da condenação ser adequado e necessário,
além de apropriado para a salvaguarda de um a sociedade pluralista.
Já o Min. Marco Aurélio desce ao detalhe de indagar se haveria poten­
cialidade de incitamento em livro em país no qual ninguém lê e no qual não há
tradição antijudaica.
Primeiramente, se é evidente que a discriminação contra os negros está,
por força do estigma da escravidão, emprenhada em nossa sociedade, presente
até hoje em nosso cotidiano, a história brasileira, desde a inquisição, no século
XVI, até recentemente mostra episódios de perseguição aos judeus28, que não
tornam indiferente a prática de instigação ao ódio ao povo judeu29.
28 Sobre a perseguição aos judeus, especialmente aos cristãos novos de m eados do século XVI a
m eados do século XVIII no Brasil, por meio dos visitadores e o envio de cristãos novos ao Santo Ofício
em Lisboa, onde centenas foram julgados e condenados à morte pela fogueira, veja-se CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci, O racismo na História do Brasil, mito e realidade, 8a ed., São Paulo, Ática, 2007;
NOVINSKY, Anita, Cristãos novos na Bahia, São Paulo, Ática, 1972; NOVINSKY, Anita, Marranos e
a inquisição: sobre a rota do ouro em Minas Gerais, in Inquisição, imigração e identidade - Os judeus
no Brasil (org. Kelia Grinberg), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005;VAINFAS, Ronaldo, Judeus
e conversos na Ibéria no século XV ; sefardismo, heresia, messianismo, in Inquisição, imigração e
identidade - Os judeus no Brasil (org. Kelia Grinberg), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005;
VAINFAS, Ronaldo e ASSIS, Ângelo A.F., A esnoga da Bahia ; cristãos novos e cripto judaísmo no
Brasil quinhentista, in Inquisição, imigração, e identidade - Os judeus no Brasil (org. Kelia Grinberg),
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005; DINES, Alberto, Os vínculos de fogo , São Paulo, Com­
panhia das Letras, 1992; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e Gorenstein, Lina, Ensaios sobre a intole­
rância - inquisição marranismo e antisemitismo, São Paulo, Humanitas, 2002.
29 Sobre episódios mais recentes pode-se ver os relatos de CARNEIRO, Maria Luiza Tucci, O racism o na
H istória do Brasil, mito e realidade, cit., p. 46, especialmente a questão do antissemitismo durante o Estado-
Novo de 1937 a 1945, bem como o trabalho, Im igrantes e refugiados judeus em tempos sombrios, in Inqui­
sição, imigração, e identidade - Os judeus no Brasil (org. Kelia Grinberg), Rio de Janeiro, Civilização Brasilei­
ra, 2005, p. 335; Recentemente, há poucos meses atrás, foi detectado mais um grupo de jovens nazistas no Rio

139
Miguel Reale Júnior.

De outra parte, o incitamento, o ato de incitar, não exige para sua confi­
guração a constatação de relevante probabilidade de construir pensamentos dis­
criminatórios. Tome-se como exemplo o constante do art. 286 do Código Penal,
do seguinte teor: “incitar, publicamente, a prática de crime” . Bem anota Nelson
Hungria ser irrelevante a consequência ulterior, desde que idônea ou plausivel-
mente idônea, “independentemente de que alguém se deixe ou não incitar30”.
Se em nossa sociedade a discriminação contra os negros é evidente­
mente mais forte e presente do que a existente contra os judeus, não torna
a discriminação que existiu ao longo do tempo, durante séculos e no século
passado, no Estado Novo, e mesmo recentemente, dado irrelevante, mesmo
porque a ideologia nazista continua a seduzir alguns fanáticos. De outra parte,
é indiferente a consecução do incitamento ao ódio racial pregado: o perigo de
ofensa ao valor da igualdade da dignidade social de todos é patente.
Por que, então, decisões tão díspares em matéria de confronto de valores
da liberdade de expressão e da proteção da dignidade da pessoa humana contra
a discriminação?
Como já acentuei, nem mesmo o estabelecimento de uma hierarquia de va­
lores constitucionais de maior e menor densidade, a partir do reconhecimento de
um núcleo essencial, deixa de deitar raízes em posições ideológicas ou de cunho
subjetivo, sendo o recurso aos critérios do postulado da proporcionalidade incapaz
de impedir soluções emocionais.
Parece-me que, primeiramente, o peso atribuído diferentemente pelos Mi­
nistros ao valor da liberdade de expressão ditou a solução da aplicação dos critérios
da proporcionalidade no caso concreto. Senão, veja-se:
O Min. Gilm ar M endes, ao m esm o tem po em que valoriza o direito
fundam ental da liberdade de expressão, como im portante dado da vida dem o­
crática, considera que a discrim inação racial levada a efeito pelo exercício da
liberdade de expressão comprom ete um dos pilares do sistem a dem ocrático,
a igualdade. Resta, então, neste voto, condicionada a análise do caso con­
creto segundo os ditames da proporcionalidade a um ajuizam ento de valores
prévio, que dirige a ponderação em favor da salvaguarda da dignidade do
pluralism o em detrim ento do exercício da liberdade de expressão do incita­
m ento à discrim inação racial.
Já o Min. Marco Aurélio começa seu voto fazendo fortes loas à liberda­
de de expressão, que reputa exercer um papel de extrema relevância, insuplan-

Grande do Sul, objeto, inclusive de investigação por comissão especial da Câmara dos Deputados, em face da
violência empregada pelo grupo. Os parlamentares federais estiveram em Porto Alegre em 14 de maio de 2009,
participando na Assembleia Legislativa de uma audiência pública. O jornal Correio do Povo já publicara em 29
de junho de 2008 matéria com levantamento de grupos neonazistas no Rio Grande do Sul. Entre 2000 e 2009
foram instaurados dez inquéritos policiais referentes à atividade de skinheads gaúchos.
30 HUNGRIA, Nelson, com entários ao código Penal, vol. IX, 2a ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 166.

140
Limites à liberdade de expressão.

tável, em suas mais variadas facetas: direito de discurso, direito de opinião,


direito de imprensa, direito à informação e a proibição da censura, como ins­
trumento de proteção da autodeterminação democrática da comunidade políti­
ca e da preservação da soberania popular.
Sendo assim, ao ver do Min. Marco Aurélio, apenas fatos gravíssimos po­
deriam impor a condição de se constituir como crime imprescritível uma manifes­
tação de pensamento de cunho discriminatório, que pode ser discriminação, mas
não é crime de racismo imprescritível, apenas configurável se houver discrimina­
ção contra negros que na vida brasileira sofreram agravos constantes. Percebe-se
o peso atribuído ao valor da liberdade de expressão, posto como um dos pilares da
vida democrática, enquanto Gilmar Mendes elegia o pluralismo social expresso no
tratamento de todos com igual dignidade social como o pilar da vida democrática.
Em suma, pode-se, desde já, inferir que a aplicação da m áxima da pro­
porcionalidade por via da análise das três máximas parciais, como diz Alexy,
são importantes para dirigir, circunscrever, orientar a explicação da escolha, no
caso concreto, acerca da prim azia de um direito fundamental sobre outro. Con­
tudo, o estudo da adequação da solução, da necessidade e da correspondência
justa ao fim almejado não são suficientes para dotar este juízo de ponderação
de objetividade, de certeza, pois, a cada intérprete um a p on d eração , segun­
do a sua própria percepção do peso que possuem cada direito fundamental e o
valor que o mesmo encerra.

6. Lim ites im anentes, novam ente

6.1. A liberdade de expressão segundo Ayres Brito

Para o Min. Carlos Ayres Brito, “a liberdade de expressão é a maior


expressão da liberdade”. Temeroso de ver privados de espaço de incidência os
dois estelares modelos de autonomia de vontade: a liberdade de expressão e a
liberdade de atividade intelectual, entendendo não ser crime tecer loas a uma
ideologia, razão pela qual visualiza na publicação de livros de ataque aos judeus
ou ao sionismo um mero “uso da liberdade de expressão para cimentar um a con­
vicção política”, com tentativa de rever errada, mas objetivamente a história31.
Mas, a supremacia da liberdade de expressão frente a qualquer outro
valor no mundo contemporâneo é firme convicção do Min. Carlos Ayres Brito,
31 LAFER, Celso, A internacionalização dos direitos humanos, cit., p. 117, desmonta a pretensa objetivida­
de alegada por Carlos Ayres Brito, especialmente ao negar o escritor o holocausto, lembrando o julgamento de
Roger Garaudy, pela Corte Europeia de Direitos Humanos de 24 de junho de 2003, com acórdão do seguinte
teor: “Não há dúvida de que contestar fatos históricos claramente estabelecidos como o Holocausto, do modo
como procede o requerente na sua obra, de forma alguma diz respeito a um trabalho de pesquisa histórica
relacionado com sua busca da verdade. O objetivo e a finalidade de um empreendimento desta natureza são
totalmente diferentes, pois na verdade se trata de reabilitar o regime nacional socialista”[ ...]

141
Miguel Reale Júnior.

posição esta já expressa no voto acim a referido, no caso do racismo, mas colhi­
da em sua integralidade no voto que proferiu na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental, na qual como relator, conduziu o Supremo Tribunal
a revogar a Lei de Imprensa.

6.2. A liberdade de expressão n a revogação da lei de im prensa

Neste julgamento, sobre a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, diz


o Min. Ayres Brito:

É definitiva lição da História que, em matéria de imprensa,


não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou
ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão
como jogo de aparência jurídica.
[...]
Consagrar a plenitude de uma liberdade tão intrinsecamente
luminosa que sempre compensa, de muito, de sobejo, inume-
ravelmente, as quedas de voltagem que lhe infligem profissio­
nais. [...] Numa democracia, o modo mais eficaz de se com­
bater os excessos de liberdade é com mais liberdade ainda.

Após profligar o direito de ampla liberdade por meio da imprensa, como


a forma mais elevada de promover os valores da democracia, Carlos Ayres Brito
conclui que a liberdade de imprensa e de expressão devem se sobrepor a outros
direitos fundamentais:

Não há como garantir a livre manifestação do pensa­


mento, tanto quanto o direito de expressão lato sensu
(abrangendo, então, por efeito do caput do art. 220 da
CF, a criação e a informação), senão em plenitude. Se­
não colocando em estado de momentânea paralisia a in­
violabilidade de certas categorias de direitos subjetivos
fundamentais, como, por exemplo, a intimidade, a vida
privada, a imagem e a honra de terceiros.

Assim, para o julgador, nessa toada de intelecção constitucional da m a­


téria, “quem q u er que seja pode dizer o que quer que seja” .
A seu ver são sobredireitos de personalidade os previstos nos incisos
IV e IX do art. 5° da Constituição e que passam a rec e b e r sobretutela em
d estacad o capítulo d a nossa Lei M aio r (C ap ítu lo V do T ítulo V III).

142
Limites à liberdade de expressão.

O Min. Ayres Brito reitera a prim azia ou precedência das liberdades


de pensam ento e de expressão sobre quaisquer outros direitos, a ponto de
concluir que sequer podem ser consideradas, a liberdade de pensamento e de
expressão, normas princípios, como mandatos de otimização, nos term os de
Alexy, pois tem posição superior, em um a hierarquia axiológica, primazia
político-filosófica. Argumenta, então, que nenhuma dessas liberdades se nos
apresenta como “mandado de otim ização”, pois não se cuida de realizá-las na
m aior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes,
“porque a p recedência con stitucional é daquelas que se im põe em tod a e
qualquer situação concreta” .

6.3. H ierarquia e liberdade de expressão

Não se trata, neste voto, de adm itir um a colisão de princípios consti­


tucionais, que pressupõe, como assinalei acim a, a igualdade entre os valores
em conflito, a ser resolvido pela ponderação dos mesmos a partir das m áxi­
mas da proporcionalidade.
Configura-se, no entendim ento de Ayres Brito, um a hierarquia prévia
de valores constitucionais, de lim ites imanentes, tal como expus com relação
à prim azia da dignidade da pessoa hum ana como coração do direito, seu nú­
cleo essencial, mas dando-se, contrariam ente, prim azia, posição hierárquica
superior, a priori, às liberdades de pensam ento e de expressão32.

7. co n clu sã o

O voto do Min. Carlos Ayres Brito, no julgamento que revogou a Lei de


Imprensa, deixou ainda mais patente a convicção de que, seja admitindo-se limites
imanentes, com uma hierarquia a priori de valores, seja exigindo-se a construção
de uma hierarquia móvel, válida para cada caso, com o conflito a ser superado
32 Ayres Brito conclui que diante do relevo do direito de liberdade de expressão, cuja precedência se
impõe em qualquer situação concreta, dever-se-ia considerar inconstitucional a Lei de Imprensa, como
estatuto que de forma orgânica limita o direito de informação jornalística, deixando-se ao leitor consciente
o papel de censor único. Foi um imenso engano como acentuei em artigo publicado no jornal Estado de
São Paulo de 06 de junho de 2009, p. 2, intitulado “eu não disse?” e no qual afirmei: A necessária proteção
da honra, contra indevida agressão por meio de imprensa, agora caberia ao disposto no Código Penal. A
maioria dos ministros não percebeu que, em pontos essenciais, o constante do Código Penal, na repressão
à calúnia, difamação e injúria, é muito mais grave do que na lei de imprensa. Curiosamente, o único voto
veementemente contrário à revogação da Lei de Imprensa como forma de proteção da liberdade de ex­
pressão e de comunicação foi o Min. Marco Aurélio Mello, que tão grandemente valoriza a liberdade de
expressão, como se vê de seu voto no caso do racismo, mas que bem vislumbrou o erro de se revogar uma
lei, que não é por ter sido editada na ditadura consistia em opressão aos meios de comunicação, pois muito
pelo contrário, em sua vigência nos últimos 20 anos, sob a égide da Constituição de 1988, jam ais, como
ressalta o Ministro em seu voto, houve qualquer limitação ao exercício do direito de informar, mesmo
frente à proteção à honra, quando a informação atendia ao interesse público.

143
Miguel Reale Júnior.

por via da aplicação do postulado da proporcionalidade, sempre se estará sujeito


à perspectiva subjetiva do intérprete, cuja escolha jamais esconderá, por mais ra­
cional e bem construída que seja a justificativa, o teor subjetivo da opção feita em
favor de um determinado valor em detrimento de outro.
N esta m atéria relativa à admissão ou não de lim ites à liberdade de
expressão, tão largamente discutida, especialm ente na Suprema Corte norte-
am ericana, a carga ideológica sempre se faz presente e posições ideológicas
se contrapõem . Ou se busca harm onizar a liberdade de expressão e a proteção
a outros direitos, em um a composição de interesses sujeita à analise de cada
caso concreto, ou se estabelecem sobredireitos: ora a dignidade da pessoa
humana, valor fonte de todos os direitos; ora a liberdade de expressão como
pilar da vida dem ocrática, sob o pressuposto de que só se defende a liberdade
com mais liberdade.
Não compartilho do sonho iluminista de que a liberdade de expressão,
como quer Ayres Brito, tenha um a p recedência constitucional que se im põe
em tod a e qualquer situação concreta, nem que a liberdade leve natural­
mente à responsabilidade33. A própria Constituição, em seu art. 220 estatui ser
plena a liberdade de expressão, observado o disposto na própria Constituição,
ou seja, a submete à composição ou à sujeição a outros valores, em especial, a
meu ver, à dignidade da pessoa humana, que constitui um valor fonte, nuclear,
cujo desrespeito impede a fruição de qualquer outro direito fundamental.
Este reconhecim ento da m aior intensidade valorativa da dignidade
da pessoa hum ana, contudo, não deve ser adm itida em term os absolutos, pois
é de se aceitar que em hipóteses excepcionais, de acordo com as específicas
circunstâncias do caso concreto, outro valor constitucional possa prevalecer.
No entanto, como regra geral, a dignidade da pessoa hum ana, a ser preserva­
da em sua dignidade social, igual para todos (direito a não discrim inação), e
em sua integridade física e psíquica34, devem prevalecer, mesmo diante da
liberdade de expressão, m algrado seja esta um a im portantes conquista sem a
qual não se corporifica o Estado Dem ocrático de Direito.

33 Era esta a mentalidade prevalecente na Faculdade de Direito à época de sua sede em Olinda, como assinala o
seu historiador, VEIGA, GLÁUCIO, (História das ideias da Faculdade de Direito do Recife, vol.V, Recife,
Gráfica editora do nordeste, 1988, p. 107 e seguintes): “Também no período-Olinda se mantém indiscutível
o dogma iluminista: o aperfeiçoamento intelectual conduzirá, fatalmente ao aperfeiçoamento ético”. E mais
adiante diz Glaucio Veiga que iam se cumulando otimismos para com Madame de Stael considerar-se que as
boas Constituições Políticas não seriam suficientes se não há clima de respeito e de culto absoluto à liberdade,
principalmente à liberdade de imprensa.
34 Adoto, de acordo com Judith Martins Costa, um conceito restrito de dignidade da pessoa humana, enquanto
ultima ratio, “a vedar o que está no limite da inumanidade”.

144
A P o l ít ic a C r im in a l dos T r a t a d o s I n t e r n a c io n a is * 1

Jean Pierre Matus A.


Universidade de Talca, Chile

1. Fenom enologia

Segundo as informações disponibilizadas pela Secretaria Geral das N a­


ções Unidas, atualizadas em 1° de março de 2006,2 os tratados e convenções re­
ferentes a “questões penais diversas” compreendem matérias tão variadas como
a antiga proibição da escravidão e tráfico de escravos;3 a tomada de reféns4 e a
contratação de mercenários;5 a prevenção e castigo dos delitos contra pessoas
internacionalmente protegidas;6 a repressão ao financiamento do terrorismo;7 a
criminalidade organizada transnacional e a prevenção, repressão e sanção do
tráfico de pessoas, o tráfico ilícito de migrantes e o tráfico ilícito de armas;8 a
corrupção 9 e o Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional.10A esses tratados
devem ser agregados os que as Nações Unidas qualificam como relativos aos
“direitos humanos”, particularmente os referentes ao genocídio,11 à tortura12 e
aos demais crimes internacionais;13 assim como a extensa lista dos relativos ao
1 Título original: “ La política crim inal de los T ratados Internacionales” . Tradução de Caroline Hess Al-
maleh. Revisão de Stephan Doering Darcie.
2 *Trabalho preparado como coinvestigador do projeto FONDECYT n°1060410, “Os novos desafios que as
novas estruturas sociais impõe ao direito penal”, abordados em nosso Centro de Estudos pelo Dr. Raul Cane-
vali. Uma versão preliminar do texto foi apresentada no Seminário de Política Criminal 2006, do novo Centro
de Estudos de Direito Penal, no dia 10 de novembro de 2006.
http://untreaty.un.org/English/TreatyEvent2006/All_treaties/spanish_2006.pdf, acesso em 02.10.2006.
3 Convenção sobre a Escravidão, Genebra, 1926, e seu Protocolo de 1953; e Convenção adicional sobre a
Abolição da Escravidão, o Tráfico de Escravos e as Instituições e Práticas Análogas a Escravidão, Genebra, 1956.
4 Convenção Internacional contra a Tomada de Reféns, Nova Iorque, 1979.
5 Convenção Internacional contra o Recrutamento, a Utilização, o Financiamento e o Treinamento de Mer­
cenários, Nova Iorque, 1989.
6 Convenção sobre a Prevenção e o Castigo dos Delitos contra Pessoas Internacionalmente Protegidas, in­
clusive os Agentes Diplomáticos, Nova Iorque, 1973; Convenção sobre a Segurança do Pessoal das Nações
Unidas e do Pessoal Associado, Nova Iorque, 1994, e seu Protocolo de 2005; e Acordo sobre os Privilégios e
Imunidades da Corte Penal Internacional, Nova Iorque, 2002.
7 Convênio Internacional para a Repressão dos Atentados Terroristas Cometidos com Bombas, Nova Iorque,
1997; Convênio Internacional para a Repressão do Financiamento do Terrorismo, Nova Iorque, 1999; Convênio
Internacional para a Repressão dos Atos de Terrorismo Nuclear, Nova Iorque, 2005.
8 Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, Nova Iorque, 2000, e
seus Protocolos para Prevenir, Reprimir e Sancionar o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crian­
ças; Contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Terra, Mar e Ar (ambos de 2000); e Contra a Fabricação e o
Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Peças, Componentes e Munições, Nova Iorque, 2001.
9 Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, Nova Iorque, 2003.
10 Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, Roma, 1998.
11 Convenção para a Prevenção e a Sanção do Delito de Genocídio, Nova Iorque, 1948.
12 Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Inumanas ou Degradantes, Nova Iorque,
1984, suas Emendas de 1992, e seu Protocolo Facultativo de 2002.
13 Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, Nova Ior­

145
Jean Pierre Matus A.

tráfico ilícito de entorpecentes,14 ao “tráfico de pessoas”,15 a repressão das “pu­


blicações obscenas”16 e dos atentados a navios17 e aeronaves.18 Também, devem
ser incorporados a essa lista os tratados setoriais que, eventualmente, contêm
disposições que obrigam a penalização, como acontece com certos tratados rela­
tivos ao meio ambiente 19 e a pornografia infantil.20
A extensão destas obrigações internacionais com relação ao direito pe­
nal pode ser medida com base na compilação de Bassiouni, que identificou no
direito convencional 260 tratados relativos ao direito penal, entre os quais 57
declaram um a conduta como um crime de transcendência internacional, 183
contêm a obrigação de processar ou punir um a conduta e 85 preveem expres­
samente a criminalização de um a conduta.21

1.1. Definições e características dos delitos de transcendência internacional

Werle denomina o conjunto de normas que derivam deste heterogênio


grupo de convenções e tratados, Direito dos “crimes de transcendência inter­
nacional” (international crimes), entre os quais caberia distinguir claramente
aqueles que podemos denominar “crimes de direito internacional” (crimes un-
der international law), que são penalizados diretamente pelo Direito Internacio­
nal e por organismos internacionais (como acontece tipicamente com os crimes
contra a humanidade e demais crimes internacionais reconhecidos no Estatuto
de Roma); do resto dos crimes de transcendência internacional, em relação aos

que, 1968; e Convenção Internacional sobre a Repressão e o Castigo do Crime de Apartheid, Nova Iorque, 1973.
14 Protocolos, Convênios e Acordos que emendam os Acordos, Convênios e Protocolos sobre Entorpecentes e
Ópio, Nova Iorque, 1946; Protocolo para Limitar e Regulamentar o Cultivo da Papoula e a Produção, o Comércio
Internacional, o Comércio Por Maior e o Uso do Ópio, Nova Iorque, 1953; Convenção Única sobre Entorpe­
centes, Nova Iorque, 1961, e seus Protocolos de 1972 e 1975; Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas, Viena,
1971; e Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias, Viena, 1988.
15 Convênio para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, Genebra, 1921, e seu Protocolo de 1947; Con­
vênio para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores de Idade, Genebra, 1933, e seu Protocolo de 1947; Acor­
do Internacional para Assegurar una Proteção Eficaz contra o Tráfico Criminal, denominado Tráfico de Brancas,
Paris, 1904, e seu Protocolo de 1949; Convênio Internacional para a Repressão do Tráfico de Brancas, Paris, 1910,
e seu Protocolo de 1949; e Convênio para a Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição
Ajena e seu Protocolo, Nova Iorque, 1950.
16 Acordo para a Repressão da Circulação de Publicações Obscenas, Paris, 1910, e seu Protocolo de
1949; e Convênio para a Repressão da Circulação e Tráfico de Publicações Obscenas, Genebra, 1923, e
seu Protocolo de 1947.
17 Convênio para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima, Roma, 1988.
18 Convênio Sobre as Infrações e Outros Atos Cometidos a Bordo das Aeronaves, Tókio, 1963; e Convenção
para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves, Haia, 1970.
19 Uma exposição da análise dos mesmos pode ser encontrada em MATUS, Jean Pierre (editor). Derecho
penal del m edio am biente. Santiago: Editorial Jurídica do Chile, 2004, 245 p., p. 17-52.
20 Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos das Crianças Relativos à Venda de Crianças, à Pros­
tituição Infantil e a Utilização de Crianças na Pornografia, Nova Iorque, 2002.
21 BASSIOUNI (editor). International c rim in a l Law. t. 1. 2a ed. 1999, citado por WERLE, Gerhard. T rata­
do de Derecho penal internacional. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2005 p. 93, cita 189.

146
A política criminal dos tratados internacionais.

quais o direito internacional imporia unicamente obrigações de implementação


da penalização de determinada conduta conforme o direito interno de cada Esta­
do, como acontece tipicamente com as convenções de Viena de 1998 e a de Pa-
lermo de 2000, contra o tráfico ilícito de entorpecentes e contra a criminalidade
organizada transnacional, respectivamente.22
Não pertencem a esses grupos de casos as normas do chamado “direito
penal supranacional”, centro de discussão na Europa a partir da recente sentença
do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 15 de setembro de 2005,
que reconheceu a competência da Comissão Europeia para impor aos estados
membros determinados tipos e sanções penais com relação à proteção do meio
ambiente, devido, basicamente, ao seu caráter regional, razão pela qual tampou­
co abordaremos seu tratamento nesse lugar.23
Uma característica do conjunto de convenções e tratados que regulam os
“crimes de transcendência internacional” que não constituem “crimes de direito
penal internacional”, nem são parte de um “direito penal supranacional”, é que,
em geral, suas normas não são “auto aplicáveis” (selfexecuting)24 mas sim obri­
gações internacionais de diferentes intensidades (segundo a classificação de Vi-
rally: “convites a observar comportamentos”, “obrigações de desenvolvimento
direcional”, “obrigações gerais não concretizadas” e “obrigações concretas”),25

22 WERLE, Tratado, p. 92 e seguintes.


23 Como referência recente, ver sobre o assunto, entre outros, na Espanha: ESTRADA C. Albert. “Vía libre al
Derecho penal europeo. Comentario a la Sentencia del TJCE de 13 de septiembre de 2005”. InDret. 2/2006, n°
341; y BLANCO LOZANO, Isidoro. “ El Derecho penal y el prim er pilar de la Unión Europea”. Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. 06-05, 2004. Na Alemanha, a acalorada discussão iniciada por
HEFENDELF, Roland. “ Europaischer Umweltschutz: Demokratiespritze für Europa oder Brüsseler Putsch”
Zeitschriftfür Internationale Strafrechtsdogmatik. 4/2006, p. 161-167; “Europaisches Strafrecht: bis wohin und
nicht weiter? ”. Zeitschrift fü r Internationale Strafrechtsdogmatik. 6/2006, p. 229-236; POHL, Tobias. “Verfas-
sungsvertrag durch Richterspruch. Die Entscheidung des EuGH zu Kompetenzen der Gemeinsschaft im
Umweltstrafrecht” . Zeitschrift fü r Internationale Strafrechtsdogmatik. 5/2006. p 213-221. Para uma visão mais
geral e imparcial do estado da questão, ver AMBOS, Kai. Internationales Strafrecht. München: C.H. Beck,
2006, 491 p., p.375-403. Sobre a evolução do Direito europeu na matéria antes da falha comentada, ver o pioneiro
trabalho de CARNEVALI, Raúl. Derecho penal y derecho sancionador de la Unión Europea. Granada: Co-
mares, 2001, 472 p., onde, conforme o estado da discussão, nesse momento, se afirmava a inconveniência de um
direto penal supranacional, preferindo favorecer um processo acelerado de harmonização e um emprego intensivo
do direito administrativo sancionador (p. 415-424).
24 A necessária distinção entre as normas de um tratado que seriam “autoexecutáveis” e aquelas que pela
linguagem empregada no tratado ou pela natureza das obrigações contraídas requerem de um ato do poder
legislativo de cada Estado-parte para ter aplicação direta nos tribunais internos foi desenvolvida principalmente
pela Corte Suprema dos Estados Unidos, em interpretação do art. 6°, inc. 2° de sua Constituição, segundo o
qual a “Constituição e as leis dos Estados Unidos que sejam instituídas em conformidade com ela, e todos os
tratados celebrados ou que se celebrem de baixo da autoridade dos Estados Unidos, serão a suprema lei do país
e os juízes de cada Estado estarão obrigados a observá-los”. Sobre o assunto, os precedentes onde se encon­
tram assentadas as bases desta doutrina que tem se mantido inalterada até hoje são Foster v. Neilson. 27 U.S.
253 (1829), y U.S. v. Percheman. 32 U.S. 51 (1833). Uma aplicação recente da mesma pode ser encontrada no
controvertido caso Hamdam v. Rumsfeld, Secretary o f Defense et al. 29.06.2006.
25 A determinação do conteúdo preciso de uma norma de direto internacional fica, portanto, entregue à interpre­
tação da linguagem empregada. Ver sobre o assunto: MATUS A., Jean Pierre; ORELLANA C., Marcos. “Acerca

147
Jean Pierre Matus A.

que, em todo caso, se encontram carentes de implementação por parte dos Esta­
dos signatários,26 conforme seu próprio sistema jurídico.27
Contudo, na atualidade, ditos tratados e convenções regularmente em ­
pregam mecanismos que vão além de entregar sua implementação à interpre­
tação que cada Estado faça de suas normas e à vigilância informal do conjunto
da comunidade internacional, recorrendo para isso a “técnicas organizadas” :28
de um a parte, mediante “técnicas convencionais”, obrigando que os Estados-
Partes informem periodicamente os avanços da m atéria a alguma autoridade
designada (Secretaria Geral, Conferência ou Assembleia das Partes, etc.) no
respectivo Tratado a fim de controlar sua implementação;29 e de outra, m edian­
te a “técnica institucional” de encomendar a um a organização internacional a
vigilância e verificação do cumprimento do tratado, com base em seus poderes
gerais, como acontece tipicam ente com o trabalho da UNODC para fornecer
assistência legal (incluindo a elaboração de legislações modelo e guias para
sua implementação), treinamento de legisladores, juízes e fiscais, e assessoria
técnica para facilitar a colaboração judicial (traduções, intermediações, etc.)
com o propósito de realizar os objetivos das principais convenções sobre cri­
mes de transcendência internacional.30
Portanto, a necessidade de ajustar nossa legislação aos requerimentos
que desta multiplicidade de tratados se originam, isto é, de implementar no direi­
to interno suas disposições, não está em discussão.
de la existencia de obligaciones internacionales de establecer delitos medioambientales, contempladas en los
tratados suscritos por la República de Chile”. Revista de Derecho y Jurisprudencia. t. XCVIII, n° 4, 2001, p.
93-113, p. 98-100, onde se encontram as referências aos tratadistas de direto internacional pertinentes.
26 Sobre a necessidade de “implementar” legislativamente as normas do Direto internacional penal em geral
(e, em particular, as do Estatuto de Roma), junto com uma descrição deles para fazê-lo, pode ser vista nos
textos de CÁRDENAS, Claudia. “ Los crím enes del E statuto de la C orte Penal Internacional en el derecho
chileno, necesidad de una im pelentación” . Polít. crim. n° 2, A1, 2006, p. 1-17, e NAVARRO D., Roberto.
“Los efectos en el sistema chileno de fuentes del Derecho penal de la incorporación de los tratados inter­
nacionales y del fenómeno de la globalización” . Ius et Praxis. Ano 10, n° 1, 2004, p. 77-111.
27 Para ilustrar este aspecto, tomemos como exemplo a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade
Transnacional (Convenção de Palermo de 2000, vigente desde 29 de setembro de 2003). Segundo as “Guias
Legislativas” preparadas pela UNODC, primeiro deve-se distinguir quando o tratado obriga determinantemen-
te, entrega alternativas de ações ou simplesmente faculta (insta) a adotar alguma medida; e, em segundo lugar,
se é necessário e como seria possível, de acordo com as regulamentações internas, modificar a legislação para
cumprir com os mínimos e, talvez, recorrer aos convites que faz a comunidade internacional (n° 8).
28 Em geral, sobre os procedimentos jurídicos para fazer cumprir as disposições dos tratados, veja-se CAM-
BACAU, Jean; SUR, Serge. Droit international public. Paris: Montchrestien, 1993, 821 p., p.165-216, e
sobre as “técnicas organizadas” de implementação, particularmente, as p. 204-207.
29 Pioneira, a Convenção Única de 1961 sobre Entorpecentes, que estabeleceu como órgãos internacionais de
fiscalização de sua implementação à Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social e à Junta In­
ternacional de Fiscalização de Entorpecentes, que existiam anteriormente. Nos tratados mais modernos se uti­
liza o registro da “Conferência de Partes” como autoridade encarregada de supervisionar sua implementação,
sob o controle indireto da Secretaria Geral (assim, os Convênios CITES e a Convenção contra a Criminalidade
Organizada Transnacional).
30 Ver a brouchure United Natios Office O n Drugs And Crime. Globalprogrammes. Update november 2003.
Em http://www.unodc.org/pdf/crime/publications/cicp_global_programmes.pdf [acesso em 14.12.2006].

148
A política criminal dos tratados internacionais.

A questão não é “se” isto é necessário, mas sim “como” fazê-lo dentro
do nosso Estado de Direito, tendo em vista que não apenas estamos diante de
obrigações internacionais que requerem implementação, mas que se deve ser
muito cuidadoso na hora de interpretar os instrumentos internacionais respecti­
vos, pois estas “obrigações” podem ser de intensidades muito distintas: apenas
em casos raros implica uma verdadeira obrigação modificar o direito interno
para dar-lhe cumprimento. As indicações gerais dos Guias Legislativos elabora­
dos pela UNODC para a implementação da Convenção contra a Criminalidade
Organizada Transnacional de 2000 são muito claras a este respeito:

8. Ao estabelecer suas prioridades, os legisladores nacionais


deverão ter presente que as disposições da Convenção e de
seus Protocolos não têm todas o mesmo grau de obrigação.
Em geral, as disposições podem agrupar-se nas três catego­
rias seguintes:

a) Medidas que são obrigatórias (já sendo absolutamente ou


quando se haja cumprido determinadas condições);
b) Medidas cuja aplicação os Estados Parte devem considerar
ou procurar;
c) Medidas que são facultativas.

E, quanto ao modo de fazer cumprir as obrigações de tipificação em particular,


se agrega:

13. Se recomenda que os legisladores verifiquem a coerência


com outros delitos, definições e usos legislativos antes de
empregar as formulações ou a terminologia da Convenção.
A Convenção foi escrita com fins gerais e se dirige aos go­
vernos nacionais. Por conseguinte, seu nível de abstração
é maior que o necessário para a legislação interna. Daí que
os legisladores devam ter cuidado de não incorporar lite­
ralmente partes do texto. Em lugar disso, se encoraja que
captem o espírito e significado dos diferentes artigos...

Insistindo depois que:

43. Os legisladores nacionais deveriam concentrar-se na subs­


tância e no espírito da Convenção, e não tentar traduzir
simplesmente seu texto ou incluí-lo literalmente em novas
leis ou emendas. A redação de leis sobre novos delitos e sua
aplicação - incluídos os meios jurídicos de defesa e demais
princípios jurídicos - ficam reservadas aos Estados-Partes

149
Jean Pierre Matus A.

[...]. Por conseguinte, os legisladores devem certificar-se


de que os novos artigos estejam em consonância com a
tradição jurídica, os princípios e as leis fundamentais do
próprio país. Assim se evitará o risco de conflitos e incerte­
zas acerca da interpretação das novas disposições por parte
dos tribunais ou dos juízes.

1.2. O bjeto de análise: os “seis program as globais” da UNO DC.

Suas características principais.

Pelas razões destacadas nas seções anteriores, nos concentraremos


neste ponto unicamente em descobrir os elementos comuns da regulamentação
dos demais “crimes de transcendência internacional” que têm alguma relevân­
cia para o Chile (por ser signatário dos tratados em pauta) e que interessam a
toda comunidade internacional,31 tomando como parâmetro os que a Oficina
das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (mais adiante UNODC), havia incor­
porado em 2003 a seus “seis programas globais”, a saber, os relativos a drogas,
crime organizado, tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, corrupção e terro­
rismo, e que hoje se encontram compreendidos dentro do Crime Programme.32
Tipicamente, em um Tratado que define delitos de transcendência
internacional, além das definições e dos aspectos técnicos relacionados à
ratificação e vigência, são estabelecidas algumas ou várias das seguintes
obrigações internacionais:
Em matéria penal, tais como:

31 Naturalmente, o Chile também é signatário de diversos tratados que se referem a temas similares, cele­
brados no marco da Organização dos Estados Americanos, cujo conteúdo e alcance não posso analisar neste
lugar, salvo para afirmar que, no essencial, as obrigações que eles contêm não diferem substancialmente das
compreendidas na regulamentação das Nações Unidas, ainda que sua intensidade seja menor. Os principais
tratados celebrados neste âmbito regional são: Convenção para Prevenir e Sancionar os Atos de Terrorismo
Configurados nos Delitos Contra as Pessoas e a Extorsão Conexa quando estes tenham Transcendência
Internacional, 1971 (assinada, mas não ratificada pelo Chile); Convenção Interamericana sobre Extradição,
1981 (assinada, mas não ratificada pelo Chile); Convenção Interamericana para Prevenir e Sancionar a Tor­
tura, 1985 (ratificada pelo Chile em 1988); Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria
Penal de 1992 e seu Protocolo de 1995 (ratificados pelo Chile em 2004); Convenção Interamericana sobre
Desaparecimento de Pessoas de 1994 (assinada, mas não ratificada pelo Chile); Convenção Interamericana
para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Para” de 1994
(ratificada pelo Chile em 1994); Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores de 1994
(não assinada pelo Chile); Convenção Interamericana contra a Corrupção de 1996 (ratificada pelo Chile
em 1998); Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições,
Explosivos e Outros Materiais Relacionados de 1997 (ratificada pelo Chile em 2003); e Convenção Intera-
mericana contra o Terrorismo (ratificada pelo Chile em 2004).
32 Ver a página da web desta seção: http://www.unodc.org/unodc/en/crime_cicp.html [acessada
em 14.12.2006].

150
A política criminal dos tratados internacionais.

• Que os Estados-Partes tipifiquem determinados delitos, mais ou menos de­


talhadamente descritos no tratado, os quais, sendo de caráter comum, podem
ter efeitos transnacionais impondo-lhe penas privativas de liberdade mais
ou menos graves;33
• Que os Estados-Partes imponham, também, o mais amplo confisco possível dos
bens produtos de ditos delitos e dos que os substituam;34
• Que os Estados-Partes estabeleçam medidas para tornar efetiva a responsabili­
dade das pessoas jurídicas por sua participação em ditos delitos;35 e
• Que os Estados-Partes adotem regras que favoreçam a delação premiada como
excludente de responsabilidade (“imunidade judicial”) ou atenuante.36
Em matéria processual penal:
• Que os Estados-Partes adotem certas medidas processuais que tornem efetiva
a perseguição e o castigo destes delitos no âmbito interno, incluindo a adoção
de técnicas de investigação especiais (entregas vigiadas, vigilância eletrônica,
agentes disfarçados) e medidas que protejam as vitimas e testemunhas;37
• Que os Estados-Partes adotem certas medidas processuais e administrativas que
os impeçam de converterem-se em ”paraísos” ou “refúgios” daqueles que come­
tem os delitos a que se refere, incluindo medidas de quebra do sigilo bancário 38,
colaboração com a administração da justiça dos outros Estados-Partes, o estabe­
lecimento de regras que permitam a jurisdição sobre territórios não submetidos
à de outros Estados39 e que impeçam a existência de fatos “sem jurisdição”,40 e
regulamentos específicos sobre os processos de extradição, para facilitá-los ou,
em caso que seja negada, permitir o ajuizamento no país requerido.41

2. Um esboço de sistem atização da parte geral dos delitos de transcendência


internacional.

Como destacamos no parágrafo anterior, em certo sentido, pertencem ao


direito internacional penal tanto os “crimes internacionais” (Direito Penal Inter­
nacional, Võlkerstrafrecht), atualmente regulados no Estatuto de Roma do Tri­
bunal Penal Internacional, quanto os “crimes de transcendência internacional”
que aqui estudamos. Por isso, adotaremos nesta exposição um método similar

33 Art. 36 da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961.


34 Art. 5 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias de 1988.
35 Art. 26 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003.
36 Art. 3.6 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias de 1988.
37 Arts. 20.1 e 24 da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000.
38 Art. 12.2 do Convênio Internacional para a Repressão do Financiamento do Terrorismo de 1999.
39 Art. 3.2 do Convênio Sobre as Infrações e Certos Outros Atos Cometidos a Bordo das Aeronaves de 1963.
40 Art. 4 da Convenção para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves de 1970.
41 Art. 36.2.a) iv) da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, emendada pelo protocolo de 1972.

151
Jean Pierre Matus A.

ao que Ambos emprega para o Direito Penal Internacional, isto é, um método


funcionalista, porém não no sentido radical, mas no de encontrar-se empirica-
mente orientado aos problemas, buscando determinar “a função e o papel que os
institutos jurídicos desempenham na resolução desses problemas”, para, deste
modo, conseguir construir um sistema livre dos conceitos sistemáticos de um
único ordenamento jurídico, requisito indispensável para a sistematização de um
direito aplicável ao conjunto de nações do mundo 42. O sistema que decorre desta
aproximação consiste em dividir os princípios gerais da responsabilidade das
particularidades da parte especial (na medida do possível, já que todo o direito
interno penal é, basicamente, parte especial, como ilustrativamente destacam os
títulos das convenções aplicáveis), e os primeiros, entre os pressupostos da res­
ponsabilidade individual e as regras relacionadas às defesas ou exim entes, sem
fazer distinção entre antijuridicidade e culpabilidade. Aqui serão referidos apenas
os aspectos da parte geral, já que o programa da parte especial do Direito Penal In­
ternacional apenas pode ser enunciado, como foi feito para descrever o fenômeno,
dada sua dimensão, impossível de abordar em um trabalho desta natureza.43

2.1. A R esponsabilidade Individual

2.1.1. Elementos Objetivos

No seu aspecto objetivo, os delitos de transcendência internacional


exigem a externalização de uma conduta humana, ainda que esta possa tomar
várias formas, segundo a m atéria de regulamentação: pode tratar-se de um ato
da fala (ex: o suborno de funcionário público: “a prom essa” e o “oferecim ento”

42 AMBOS, Kai. D er allgemeine Teil des V ólkerstrarechts. Ansatze einer Dogmatisierung. 2a ed. Berlin:
Duncker & Humblot, 2004, 1057 p., p. 44. Com um método similar FLETCHER, George. Conceptos Básicos
de Derecho Penal (trad. de Fco. Munoz Conde), Valencia 1997, tenta construir o que denomina uma “gramáti­
ca universal do Direito penal“ (p. 19), não sendo para ele causalidade o importante lugar que este autor ameri­
cano tem entre as citações de Ambos ao explicar o sentido da terminologia e conceitos do common law envol­
vidos nos problemas que estuda. Entre nós, pode ver-se uma tentativa similar na obra de POLITOFF, Sergio /
KOOPMANS, / RAMÍREZ, Ma Cecilia. “Chile”. Em: BANPLAIN, R. (Editor). International Encyclopaedia
of Laws. 2a ed. La Haya: Kluwer 1999, Suppl. 16 (July 1999), 248 p., onde se oferece uma sistematização do
direito penal pátrio de acordo com o entendimento do common law.
43 Um notável esforço e modelo de sistematização desta parte especial pode ser encontrado em QUINTANO
RIPOLLÉS, Tratado, t. I, p. 335-377, compreendendo-os, nos termos do autor, como “delitos de fonte interna­
cional em via acordada” vigentes em 1957: escravidão, tráfico de mulheres e crianças, publicações obscenas,
entorpecentes, danos em cabos submarinos e falsificação de moedas. Entre nós, podem ser vistas aproximações
parciais a cada classe de delito de transcendência internacional em MATUS/ORELLANA, “Obligaciones”; PAL­
MA, Carlos. “El derecho internacional del tráfico ilícito de estupefacientes y los problemas de territorialidad
y extraterritorialidadde las leypenal chilena”. Em: POLITOFF, Sergio; MATUS, Jean Pierre (coordenadores).
Lavado de dinero y tráfico ilícito de estupefacientes. Santiago: Lexis-Nexis,1999, 507 p., p. 265-460. Sobre o
conteúdo do terrorismo e a corrupção como delitos de transcendência internacional na atualidade, ver os textos de
conteúdos em LOSANO G., Mario; MUNOZ CONDE, Francisco (coordenadores). El derecho ante la globali-
zación y el terrorismo. Cedant ama togae. Valencia: Tirant Lo Blanch, 459 p.

152
A política criminal dos tratados internacionais.

de um beneficio indevido),44 de um a vinculação subjetiva com um objeto ilícito


(“a possessão” de entorpecentes para seu “consumo pessoal”),45 de um a ação
material, com ou sem resultado separável da mesma (falsificação de documen-
tos46, destruição de meios de transporte 47).
Adem ais, em geral, as decisões típicas que se propõem aos Estados-
Partes, baseados no interesse de não deixar “lacunas de punibilidade”, são
extremam ente detalhistas e fatigantes48, razão pela qual não parece de todo
aplicável o tem or de que em sua implem entação se lesione o princípio de
determ inação ou tipicidade49, mas sim o contrário: o m ais provável é que,
ao im plem entá-las em sistemas legalistas, o excessivo detalhe leve a deixar
lacunas de punibilidade.
Tratando-se de “omissões”, o risco identificado anteriormente é bem cla­
ro. Não existem, como regra geral, figuras de “omissão própria” nem regras que
expressamente permitam estender a responsabilidade pessoal direta por omissões
equivalentes às condutas descritas, como as do §13 do Código Penal Alemão50 ou
do art. 11 do Código Penal Espanhol.51 A questão permanecerá entregue à interpre­
tação que os Estados-Partes realizem conforme suas próprias regras de imputação,
com os eventuais problemas de dupla incriminação que isso levaria, salvo se, entre
ditas regras, se aceite a comissão por omissão sem disposição legal expressa,52
como ocorre entre nós.53 Nesta perspectiva, é possível minimizar o risco de
44 Art. 15. a) da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003.
45 Art. 3.2. da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas de 1988.
46 Art. 6. i) do Protocolo contra o tráfico ilícito de migrantes por terra, mar e ar, que complementa a Convenção
das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, de 2000.
47 Art. 3.1.a. Convenção para Reprimir os Atos Contra a Navegação Marítima,
48 Por todos, ver o Art. 3 da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Subs­
tâncias Psicotrópicas de 1988.
49 SILVA SÁNCHEZ, Jesús Ma. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política crim inal en las
sociedades postindustriales. 2a ed., revisada e ampliada. Madrid: Civitas 2001, 167 p., p. 100. Neste ponto,
o fundado temor de Silva Sánchez pode dirigir-se não a um futuro “direto penal da globalização”, se não ao
estado atual de relativização geral deste princípio na dogmática alemã, como se afirma (criticando-a) por SÜB,
Franck. “ El trato actual del m andato de determ inación”. En Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt;
Área de Derecho Penal de La Universidad Pompeu Fabra (editores). La insostenible situación del Derecho
penal. Granada: Comares 2000, 552 p., p. 223-247; e também, desde um ponto de vista mais discutível, por
NAUCKE, Wolfgang. “La progresiva pérdida de contenido del principio de legalidadpenal como consecuen-
cia de unpositivismo relativistaypolitizado”. Em INSTITUTO/ÁREA, La insostenible, p. 531-550.
50 Para uma descrição do estado atual da questão na Alemanha, ver STRATENWERTH, Günther. Derecho
penal. P arte General. 4a ed. totalmente reelaborada (2000). Trad. M. CANCIO y M. SANCINETTI. Buenos
Aires: Hammurabi, 2005, 568 p., p. 453-497
51 Por todos, para a situação posterior ao Código de 1995, ver GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. “El delito de
omisión impropia”. Revista de derecho penal y criminología. n° 4, 1999, p. 525-554.
52 Como fundamentava conceitualmente para Espanha, antes do Código de 1995, SILVA SÁNCHEZ, Jesús
Ma. El delito de omisión. Concepto y sistema. Barcelona: Bosch: 1986, 387 p., p. 158-162, sobre a base de
que em um mandato pode conter-se expressões formalmente proibitivas, sempre que a prescrição consista em
evitar a lesão de um bem jurídico.
53 CURY, Enrique. Derecho penal. 7a ed. Santiago: P. Universidad Católica de Chile, 2005, 812 p., p.673-679.

153
Jean Pierre Matus A.

“expansão” que destaca Silva Sánchez, no sentido de que o Direito Penal da glo­
balização poderia levar a estabelecer regras mais leves de imputação na omissão:54
estas serão, tal qual se passa com o princípio da legalidade, tão leves quanto seja a
dogmática de cada Estado Parte.55
Tampouco existem regras sobre imputação objetiva no sentido de vincu­
lar o nexo causal, pois, nesse ponto, a regulamentação dos crimes de transcen­
dência internacional vai além dos justificados temores manifestados por Silva
Sánchez. Simplesmente porque o baixo número de descrições típicas que forne­
cem como requisito a realização de um resultado é acompanhado de um requeri­
mento de punição, no mesmo nível de gravidade, dos atos de tentativa.56

2.1.2. Elementos Subjetivos

Desafiando a dogmática que afirma a inexistência de algo como o ele­


mento volitivo ou a intencionalidade na posição de requisito do dolo,57 os delitos
de transcendência internacional exigem a “intencionalidade” (willfully) em pra­
ticamente todas as figuras penais. Para que não restem dúvidas de que a inten­
cionalidade ou voluntariedade é algo diferente dos outros ânimos exigidos ou do
conhecimento de certos elementos do tipo, muitas figuras agregam também os
requisitos de atuar “com o propósito de” (traficar, por exemplo)58 e “o conheci­
mento de” (por exemplo, a origem ilícita de um objeto).59
Para compensar a alta exigência probatória que os elementos subjeti­
vos impõem, o Direito Internacional Penal costuma consagrar explicitamente
a regra de que “o conhecimento, a intenção ou a finalidade requeridos como

E seguindo as teses de Silva Sánchez, CARNEVALI, Raúl. “El delito de omisión. En particular, la comisión
por omisión.” Revista de Derecho de la Universidad Católica del Norte. n° 9, 2002, p. 69-82.
54 SILVA SÁNCHEZ, Expansión, p. 98.
55 De fato, a aceitação inveterada dos delitos de comissão por omissão pela doutrina de nosso âmbito cultural
não está isenta da crítica de frouxidão, no sentido de que ela importa em si mesma estender a incriminação a fatos
não contemplados na lei, crítica que leva a rechaçar sua admissibilidade ali onde não estiver estabelecida expres­
samente pela lei, como afirma, isoladamente, NOVOA MONREAL, Eduardo. Fundam entos de los delitos de
omisión. Buenos Aires: Depalma, 1983, 214 p., p. 189.
56 Assim, nos Arts. 1° e 2° da Convenção para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves de Haia,
1970, onde “os Estados Contratantes se obrigam a estabelecer para o delito penas severas” (art. 2°), definindo-
se que comete o mesmo toda pessoa que “a) Ilicitamente, mediante violência ou qualquer outra forma de inti­
midação, se apodere de tal aeronave, exerça o controle da mesma ou intente cometer tais atos”.
57 Em espanhol, o trabalho de RAGUÉS I VALLÉS, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. Bo­
gotá: Bosch y U. Externado, 2002, 566 p., é uma das melhores obras recentes que afirmam a tese puramente
cognitiva e normativa do dolo, excluindo toda remissão a elementos psicológicos. Pelo contrário, entre os
importantes autores que ainda mantém um conceito de dolo em que o elemento volitivo exerce um papel fun­
damental, pode-se mencionar ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 2a ed. t. I. München: C.H. Beck,
1994, 957 p., p. 347 e seguintes.
58 Art. 3° da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas de 1988.
59 Art. 6.1. a) i) da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000.

154
A política criminal dos tratados internacionais.

elementos dos delitos poderão ser extraídos das circunstâncias objetivas do


caso” .60 Note-se que, por “perm issiva” com a parte acusadora que pareça a
regra, ela impõe a prova efetiva dos ditos elementos, além da prova do ele­
mento objetivo do delito, em circunstâncias que nosso código vigente ainda
estabelece em seu texto (muito debatido, in clu sive ) uma presunção simples­
mente legal da voluntariedade (dolo nos termos da jurisprudência e doutrina
majoritárias), com a única prova da realização da conduta.61
Contra esses requisitos subjetivos, poder-se-ia afirmar que se trata de ex­
pressões sem conteúdo, já que refletiriam conceitos que não correspondem ao es­
tado atual da “ciência” penal. Mas, quando elas se apresentam na maior parte dos
fatos que se pede que se considerem delitos, têm um sentido bastante claro na
linguagem natural e nos documentos interpretativos.62 Desconhecê-las supõe uma
argumentação que deve superar o princípio do effet utile na interpretação dos trata­
dos, segundo o qual “o intérprete de um tratado não tem liberdade para adotar uma
leitura que tornem inúteis ou redundantes partes inteiras dos tratados”,63 e, tam­
bém, justificar por que, no momento de imputar subjetivamente o ato , se exigiriam,
dogmaticamente, menos elementos probatórios que os textos positivos, em vez de
desenvolver uma dogmática que dê sentido processual a essas exigências adicio­
nais no âmbito do subjetivo, tal como propõe Hassemer64. Novamente, parece aqui
que o temor de que a incorporação dos delitos de transcendência internacional ao
ordenamento interno importe que “a trabalhada distinção entre dolo eventual e
culpa consciente possa difundir-se”,65 reflete algo que, com independência da glo­
balização, já está acontecendo na dogmática continental de raiz alemã, como pode
ver-se na discussão que contra isso empreende Roxin.66

60 Art. 3.3. da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas de 1988.
61 Veja-se sobre o alcance da discussão KÜNSEMÜLLER, Carlos. C ulpabilidad y finalidad. Santiago:
Editorial Jurídica de Chile, 2001, 281 p., p. 250-269, onde as citações à doutrina majoritária se encontram
na p. 255, e sua posição pessoal (que por rechaçar a “presunção de dolo” estende o âmbito do art. 1° “à cul­
pabilidade” no “amplo” sentido de “atribuição”, ou, mais especificamente, de “pertencimento subjetivo” do
fato ao sujeito, em relação à sua capacidade genérica de ag ir conforme o direto”) na p. 263.
62 Assim, a respeito da norma citada na nota anterior, a G uia Legislativa preparada pela UNODC especifi­
ca: “ 100. No que diz respeito aos elementos de intencionalidade requeridos, a conversão ou a transferência
devem ser intencionais, o acusado deve ter conhecimento no momento da conversão ou da transferência de
que os bens são produto do delito e o ato ou os atos devem realizar-se com a finalidade já seja de ocultar ou
dissimular sua origem delitiva (por exemplo, ajudando a impedir seu descobrimento), seja a de ajudar a uma
pessoa a fugir da responsabilidade penal pelo delito que gerou o produto”.
63 Organización Mundial Del Comercio. Informe del Órgano de Apelación en el caso “Canadá - medidas que
afectan a la importación de lechey a las exportaciones deproductos lácteos. AB-1999-4”. En : http://www.wto.
org/spanish/tratop_s/dispu_s/repertory_s/i3_s.htm#I.3.7.4 [acesso em en 14.12.2006].
64 HASSEMER, Wienfried. “Los elementos característicos del dolo”. En: Persona, mundo y responsabli-
dad. Bogotá: Temis 1999, 167 p., p. 63-84.
65 SILVA SÁNCHEZ, Expansión, p. 98.
66 ROXIN, Claus. “A cerca de la norm ativización del dolus eventualis y la d octrina del peligro de dolo” .
En: La teoría del delito en la discusión actual. Trad. : M. ABANTO. Lima: Grijley 2006, 562 p., p.167-194.

155
Jean Pierre Matus A.

2.1.3. Responsabilidade das Pessoas Jurídicas

Não existe uma decisão consistente dos Estados para estabelecer a respon­
sabilidade penal da pessoa jurídica como tal, mas sim de estabelecer sua responsa­
bilidade, seja penal, civil ou administrativa, pelos delitos que cometam, sem preju­
ízo da responsabilidade que cabe às pessoas naturais que tenham cometido os de­
litos, e sempre procurando que as sanções impostas, em caso de não serem penais,
sejam “eficazes, proporcionais e dissuasivas, incluídas as sanções monetárias”.67
Como se pode verificar, trata-se de um a clara “fraude de etiquetas”,
ap aren tem en te para evitar conflitos com (a doutrina de) aqueles Estados
nos quais - por razões dogm áticas - se considera im possível estabelecer uma
“responsabilidade penal das pessoas jurídicas”, adm itindo-se unicam ente a
adm inistrativa ou civil.68
Em compensação, não se entregam outros requisitos para a verificação
da responsabilidade das pessoas jurídicas a não ser apenas a sua vinculação com
o fato de que tal responsabilidade deve provir de um delito cometido por pesso­
as naturais (independentemente responsáveis), sem sequer destacar qual o grau
de vinculação terão essas com aquelas, o que fica completamente entregue aos
“princípios jurídicos” de cada Estado-parte.69

2.2. Form as de intervenção punível e outras extensões da punibilidade

2.2.1. Intervenção Punível.

A prática do Direito Internacional desconhece, em geral, as distinções


entre formas de participação e de desenvolvimento do delito, more tedesco,10
e, em particular, na m aior parte dos delitos de transcendência internacional se
considera que cada pessoa denunciada pela participação na realização de um
fato descrito como delito tem um a responsabilidade penal independente dos
eventuais outros partícipes e, em principio, de um mesmo valor.71

67 Art. 10 da Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000.


68 Assim, todavia, na Espanha, MIR PUIG, Santiago. “Una tercera vía en m ateria de responsabilidad penal
de las personas jurídicas”. Revista eletrônica de ciencia Penal y Criminología, 06-01, 2004, afirma, referindo-se
às “consequências acessórias” do art. 129 do Código Penal espanhol de 1995: “não ha dúvida de que a vontade do
legislador expressa na lei foi a de adiantar-se ao perigo que podem representar as pessoas jurídicas e empresas utili­
zadas para a comissão de delitos, sem questionar o princípio de que o delito é unicamente um fato humano” (p. 3).
69 Para a discussão em nosso âmbito cultural, veja-se a recopilação de trabalhos de Jakobs, Silva Sánchez,
Seelman, S. Bacigalupo, Feijoo Sánchez, Gómez-Jara, Mazuelos e García Cavero, contidas no volume de
GARCÍA CAVERO, Percy (coordenador). La responsabilidad penal de las personas jurídicas, órganos y
representantes. Lima: Ara 2002, 502 p.
70 AMBOS, Volkerstrafrechts, p. 362.
71 Assim, o Art. 3.1. da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Subs­
tâncias Psicotrópicas de 1988 reúne em um mesmo nível de gravidade diversas condutas que poderiam ser

156
A política criminal dos tratados internacionais.

Contudo, enquanto o plano de “tipificar como delito” “qualquer forma


de participação, quer como cúmplice, colaborador ou instigador”, “toda tentativa
de cometer um delito” e “a preparação com vista a cometer um delito” se realize
conforme os “conceitos fundamentais” do “direito interno”,72 segue podendo-se
tentar um a dogmática diferenciadora, sem que com isso se deixem de cumprir
as obrigações internacionais.73 Lamentavelmente, os legisladores dos Estados
nos quais influi a dogmática alemã (como o Chile) frequentemente reduzem as
possibilidades de diferenciação, mediante a tipificação das diversas formas de
participação como delitos independentes.74

2.2.2. Penalidade, Concursos e Circunstâncias Modificadoras

a) Espécie e quantidade de pena


A exigência de que os delitos de transcendência internacional sejam cas­
tigados com “sanções que levem em conta a gravidade desses delitos”,75 isto é,
“com penas severas”76 “que levem em conta sua natureza grave”,77 cristalizou-se
na ideia de que tais sanções deveriam abranger, pelo menos, “a pena de prisão ou
outras formas de privação da liberdade, as sanções pecuniárias e o confisco”.78
Ademais, para o caso especial dos delitos de corrupção, existem na Convenção
respectivas indicações de penalidades especiais: a “inabilitação” para “exercer
cargos públicos” e “exercer cargos em uma empresa de propriedade total ou par­
cial do Estado”, “por um tempo determinado”.79
De outro lado, o art. 269 da Convenção contra a Criminalidade Orga­
nizada Transnacional de 2000 nos entrega uma guia indireta acerca da quantia

consideradas formas diferentes de participação, em uma interpretação do ponto de vista da dogmática alemã:
desde a realização do tráfico em si, até seu financiamento, o encobrimento, o “ajudar” a evitar as consequ-
ências jurídicas, “instigar” ou “induzir” “publicamente”, e em geral, “a participação na comissão de algum
dos delitos tipificados em conformidade com o disposto no presente artigo, a associação e a confabulação
para cometer-los, a tentativa de cometer-los, e a assistência, a incitação, a facilitação ou o assessoramento
em relação a sua comissão” (Art. 3.1.c). iv)).
72 Art. 27 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003.
73 Como o esforço que, para o caso espanhol faz FARALDO, Patricia. “ Form as de autoría y participación
en el E statuto de la c o rte Penal Internacional y su equivalencia en el Derecho penal espanol” . Revista de
Derecho penal y criminología. 2a época, n° 16, 2005, p. 29-78.
74 Ver a respeito nossa análise da atual Lei n° 20.000 sobre Tráfico Ilícito de Entorpecentes em POLITOFF,
Sergio; MATUS, Jean Pierre; RAMÍREZ, Ma Cecilia. Lecciones de Derecho penal chileno. P arte especial.
2a ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2005, 689 p., p.573-632.
75 Art. 30.1 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003.
76 Art. 2° da Convenção para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves de Haia de 1970.
77 Art. 2.2 da Convenção sobre a Prevenção e o Castigo dos Delitos contra Pessoas Internacionalmente Prote­
gidas, inclusive os Agentes Diplomáticos de 1973.
78 Art. 3.4.a) da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas de 1988.
79 Art. 30.7 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003. Note-se o indireto rechaço
as sanções “perpétuas” !

157
Jean Pierre Matus A.

apropriada das penas privativas de liberdade para esses delitos, ao incorporar


entre os delitos de transcendência internacional todo “delito grave”, isto é, toda
“conduta que constitua um delito punível com uma privação de liberdade m áxi­
ma de pelo menos 4 anos ou com uma pena mais grave”.80

b) Concursos
A questão concursal é evitada na m aior parte das Convenções aplicá­
veis, ainda que desde antigamente se considere que, no caso de que o delito
tenha efeitos transnacionais, ao menos deve considerar-se cometido um delito
em cada jurisdição onde a atividade criminal se desenvolveu 81. A razão desta
aparente omissão pode encontrar-se na pouca necessidade de um a regulação
deste aspecto, que depende das particulares regras de acumulação delitiva de
cada país e das faculdades que se outorgue aos tribunais pelo direito interno.
Aqui se demonstra, outra vez, que a regulamentação concursal não é consequ-
ência necessária do princípio da legalidade, mas apenas contingente, segundo
a regulamentação processual aplicável.82

c) Circunstâncias modificadoras
A respeito, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade
Organizada Transnacional de 2000 estabelece indiretamente em seus arts. 3
e 34, duas circunstâncias que podemos considerar “ agravan tes” aplicáveis a
toda classe de “delitos graves” : a) que o delito tenha efetivamente um “cará­
ter transnacional” e b) que o delito seja cometido por um “grupo organizado
delitivo” . Estas circunstâncias, que determinam a preocupação internacional
por essa classe de delitos e cuja existência é precisamente o objetivo contra o
qual se dirige a Convenção e seu âmbito de aplicação, não devem, no entanto,
segundo o art. 34 da própria Convenção, ser consideradas como “elementos
do delito” cuja penalização se ordena (lavagem de dinheiro, corrupção, obs­
trução da justiça, tráfico de pessoas, tráfico ilícito de migrantes e tráfico ilícito
de armas; exceto o delito de participação em grupos delitivos organizados,
mas nesse caso não deveria considerar como elemento do delito seu caráter
transnacional) para evitar que estas exigências tornem inoperantes as regras
de colaboração internacional baseadas no princípio da “dupla incriminação” .83
Não obstante isso, é evidente que a razão prática para não incluir tais
circunstâncias como “elementos dos delitos” não alcança a sua consideração
como agravante genérica (aplicáveis a todo “delito grave”, não apenas aos m en­
cionados expressamente na Convenção), dado que a repressão da criminalida­
80 Art. 2.b) da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000.
81 Art. 2.a).i da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961.
82 POLITOFF/MATUS/RAMÍREZ, P arte general, nota de rodapé 228 na p. 445 e seguinte.
83 UNODC, Guia Legislativa, p. 10 e seguinte.

158
A política criminal dos tratados internacionais.

de cometida com tais circunstâncias é precisamente o objetivo da Convenção,


tratando-se de circunstância que aumentou a gravidade dos delitos ao envolver
vários Estados e representar uma fonte de perigo objetivo para os bens jurídicos
em jogo,84 como especificamente se considera a “participação no delito de um
grupo delitivo organizado” na Convenção sobre Tráfico Ilícito de Entorpecentes
e Substâncias Psicotrópicas de 1988.85

2.3. Defesas

O princípio geral que vigora nesta matéria é que a determinação dos


“meios jurídicos de defesa aplicáveis ou demais princípios jurídicos que infor­
mam a legalidade de uma conduta fica reservada ao direito interno dos Estados-
parte e de que esses delitos devem ser perseguidos e sancionados em conformi­
dade com esse direito” .86
Dito isso, que outorga aos sistemas dogmáticos dominantes em cada
país uma relevância fundamental (através da expressão “princípio jurídico que
informa a legalidade de uma conduta”), cabe agregar que o Direito Interna­
cional Penal propõe um número limitado, mas importante, de regras que en­
frentam “pragm aticam ente” as vias de defesa. Estas regras buscam, ao mesmo
tempo, reduzir o efeito eximente de certas “defesas” tradicionalmente adm iti­
das e aumentar o âmbito de isenção discricionária quando ela seja útil para a
investigação desses delitos.

a) Questões de jurisdição
Essa classe de regras são, de longe, as mais antigas do ”Direito Inter­
nacional Penal” (incluídas até no nosso velho Código de Direito Internacional
Privado de 1928 ao estabelecer em seus arts. 307 e 308 o princípio da uni­
versalidade na perseguição dos delitos de tráfico de brancas, pirataria, tráfico
de negros e comércio de escravos, destruição de cabos submarinos “e os de­
mais delitos de mesm a índole contra o Direito Internacional”).87 A principal

84 Ideia que se encontra presente desde antigamente em delitos comuns, como na agravante específica do Art. 456
bis n° 3 de nosso Código penal, que agrava a responsabilidade penal na comissão do roubo ou furto por “dois ou
mais malfeitores” (POLITOFF/MATUS/RAMÍREZ, Parte especial, p. 395).
85 Artigo 3.5.a) da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas de 1988.
86 Art. 11.6 da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional de 2000.
87 A complexidade desta matéria, como já mencionamos, de antiga data, no âmbito da aplicação da lei no
espaço, pode ser observada no amplo tratamento que lhe outorga QUINTANO RIPOLLÉS, Antonio. Tratado
de derecho penal internacional e internacional penal. 2 t. Madrid: Instituto Francisco de Vitoria, 1957, t. II,
p. 401 p., p. 9-130; e na da cooperação internacional, em AA.VV. C urso de cooperación penal internacional.
Montevideo: Alvarez, 1994, 275 p. Para uma visão global destes assuntos no direito chileno, ver POLITOFF,
Sergio; MATUS, Jean Pierre; RAMÍREZ, Ma Cecilia. Lecciones de Derecho penal chileno. Parte general. 2a
ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2004, 613 p., p. 115-159.

159
Jean Pierre Matus A.

preocupação do Direito Internacional Penal nesse ponto é evitar que a defesa


de “falta de jurisdição” perm ita criar Estados “paraísos” para quem quer diri­
gir o cometimento de delitos em outros Estados. O princípio geral que vigora
nestas matérias é similar ao da “complementaridade” contido no Estatuto de
Roma, porém sem referência a um a competência residual de um organismo
internacional,88 mas entregando essa competência residual aos Estados. Assim,
as regras consolidadas desde a década de 60 estabelecem que, sem prejuízo
das regras de Direito Interno, os Estados-Partes deveriam declarar-se com ­
petentes para conhecer: a) dos delitos total ou parcialmente cometidos sobre
seu território ou em embarcações e aeronaves que circulam sob sua bandeira
(territorialidade);89 b) quando ditos delitos forem cometidos por ou afetarem
a seus cidadãos (personalidade);90 c) ou colocarem em perigo a segurança de
Estado (defesa);91 e d) em geral, sem por qualquer razão, o responsável se
encontrar em seu território e não puder ser extraditado ao Estado competente
segundo as regras anteriores (universalidade).92

b) Prescrição
Tratando-se de delitos de transcendência internacional, a obrigação que
possuem os Estados é de estabelecer “um prazo de prescrição amplo para iniciar
processos”, o qual “será maior quando o presumido delinquente haja evadido da
administração da justiça” 93.

c) Imunidades Pessoais e Atenuação da Pena por Colaborar com a Justiça


As convenções relativas aos delitos de transcendência internacional per­
mitem e instam os Estados-partes que tenham mecanismos discricionários de
término de processo e de apresentação de acusações (como acontece tipicamente
nos sistemas acusatórios), de modo a utilizá-los “para dar a máxima eficácia às
medidas de detenção e repressão destes delitos”.94 Trata-se, aqui, de favorecer a
“delação premiada”, incluindo a possibilidade de outorgar plena imunidade se,
com isso, se puder “prevenir” outros delitos.95

88 A respeito, ver CÁRDENAS, “Im plem entación”, p. 10.


89 Art. 2.a).iv) da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961.
90 Art. 4.b. do Convênio sobre as Infrações e certos outros atos cometidos a bordo das Aeronaves de 1963.
91 Art. 2.a).iv) da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961.
92 Art. 4.2 da Convenção para a Repressão do Apoderamento Ilícito de Aeronaves de Haia de 1970.
93 Art. 29 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003.
94 Art. 3.6. da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psico-
trópicas de 1988.
95 Art. 30.3. da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção de 2003. Um efeito indireto da possibilidade
de outorgar imunidades de jurisdição encontra-se na possibilidade de que aos agentes do Estado e inclusive a
particulares se lhes outorguem ditas imunidades para facilitar o descobrimento e prova de delitos cometidos por
terceiros, mediante a utilização de técnicas de investigação como a “entrega vigiada”, a “vigilância eletrônica”
e a realização de “operações encobertas”. A geral autorização que as Convenções outorgam para realizar este

160
A política criminal dos tratados internacionais.

A perplexidade que isto pode provocar em quem está acostumado com


a regra da legalidade estrita na persecução penal 96 não deve fazer-nos esquecer
que esta é uma das poucas vias por quais se pode tornar “efetiva a lei” sem ne­
cessidade de que todos os responsáveis dos delitos sejam submetidos à juízo e
à pena. Naturalmente, trata-se de um pensamento “pragmático”, mas que aqui
cumpre a dupla função de facilitar a perseguição dos delitos que efetivamente
são cometidos e de reduzir o número de pessoas submetidas à prisão por esses
delitos, finalidades similares às que, entre nós, se reconhecem para os institutos
processuais de “oportunidade” e “suspensão condicional do processo”.97 Como
em todo o resto do Direito Penal Internacional, os requisitos de legitimidade
destas imunidades ficam entregues ao direito interno.

d) Inimputabilidade e Imputabilidade Diminuída


Embora não exista uma regulamentação específica nesta matéria, a Con­
venção sobre Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988
oferece-nos os princípios gerais que poderiam reger a defesa por privação tempo­
ral da razão derivada do uso de drogas ou álcool e por imputabilidade diminuída
produto da toxicomania: não exime de responsabilidade penal nos casos “graves”
de tráfico, mas nos “leves” permite uma importante atenuação, e inclusive a subs­
tituição da condenação por tratamentos de reabilitação, substituição que sempre é
possível nos casos de possessão para o consumo (art. 3.4. b, c e d).
Quais casos devem ser considerados “graves” e quais devem ser consi­
derados “leves”, é algo que a Convenção não resolve diretamente, mas da siste­
mática dos artigos parece possível afirmar que os casos “leves” serão hipóteses
de tráfico, estando perto da posse para o próprio consumo, isto é, o que, entre
nós, se denomina agora de “microtráfico”,98 sempre que seus responsáveis o
sejam por estarem sob o efeito das drogas ou padecerem de um a toxicomania.

3. Justificativa e Crítica

Willian Clifford, Secretário Executivo do 4° Congresso das Nações Uni­


das sobre Prevenção dos Delitos e Tratamento do Delinquente, realizado em Kyo-
tipo de investigações, onde os investigados desconhecem que estão sendo objeto das mesmas e que dificilmente
alcançarão seus objetivos últimos, encontra-se limitada pelo princípio de que tais métodos só são admissíveis
“com o fim de descobrir os delitos” que já se estão cometendo (Art. 11 da Convenção das Nações Unidas contra
o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988) e não se eles não consistem em si mesmos
na indução ou facilitação de um delito que sem a intervenção estatal não se haveria de cometer.
96 Um exemplo espanhol de defesa deste princípio pode ver-se em ARMANTA DEU, Teresa. Principio acu-
satorio y Derecho penal. Barcelona: Bosch, 1995, 155 p., p. 37 e seguinte, onde se sustenta que “existe prati­
camente unanimidade na doutrina” acerca “da ausência de poder de disposição sobre o ius puniendi”.
97 HORVITZ L., Ma Inés; LÓPEZ M., Julián. Derecho procesal penal chileno. t. I. Santiago: Editorial Jurí­
dica de Chile, 2002, 638 p., p. 48-52 y 553.
98 POLITOFF/MATUS/RAMÍREZ, P arte Especial, p. 583-586.

161
Jean Pierre Matus A.

to (Japão) entre o dia 17 e o dia 26 de agosto de 1970, descrevia assim, nos traba­
lhos preparatórios do dito Congresso, o interesse das Nações Unidas no delito:

O problema do crime no mundo interessa às Nações U ni­


das por muitas razões. Evidentemente, está diretamente
vinculado ao objetivo principal da Organização de seus
Estados Membros: a paz mundial. Porque a paz é indi­
visível e não pode considerar-se independentemente da
ação recíproca dos povos, tanto na esfera interna, como
de um lado ou de outro das fronteiras. Cabe pensar que
media uma grande distância entre os crimes cometidos
por associações de delinquentes, os roubos a mão arma­
da, os abusos de confiança e a diplomacia internacional e
as negociações entre os membros do Conselho de Segu­
rança. No entanto, os assassinatos, a pirataria, os seques-
tros internacionais têm causado guerras. Hoje em dia, o
tráfico ilícito de entorpecentes, o contrabando de armas,
as exportações ilegais de ouro, o sequestro de diploma­
tas, o desvio de aeronaves e sua sabotagem e a proteção
concedida aos criminosos que fogem constituem causas
de tensão e conflitos internacionais... 99

Naturalmente, em um a época onde não se falava da “globalização”,


as palavras recém transcritas poderiam ter sido consideradas como um sim ­
ples discurso interessado. No entanto, elas parecem descrever eventos tão
recentes como os atentados do onze de setembro ou a invasão em 2006 do
Líbano por parte do exército de Israel. Neste contexto, é claro que o Direito
Penal Internacional como um todo (e não só o denominado “Direito Penal
da emergência”)100 não se encontra unicamente legitimado por sua função no
ordenamento estatal interno, qualquer que seja a que a atribua, mas por sua
eventual utilidade como instrumento para a conservação da “paz e segurança
m undial”,101 por meio não só da manutenção dos direitos humanos básicos,

99 ONU. C hronique mensuelle. Vol. VII, n° 5, 1970, p. 73. Citado por MARTÍ DE VESES, Ma. Del Carmen.
“El Derecho internacional público y el consumo y tráfico de drogas y estupefacientes”. Em: AUTORES
VARIOS. Delitos contra la Salud Pública. Tráfico ilegal de drogas tóxicas o estupefacientes. Valencia:
Universidade de Valencia, 1977, p. 257-295, p. 258.
100 Criticamente, ver a respeito BRANDARIZ G. José Ángel. “Intinerarios de evolución del sistema penal
como m ecanism o de control social en las sociedades contem porâneas” . Em: FARALDO C., Patricia (Di-
rectora). Nuevos retos del Derecho Penal en la era de la globalización. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2004, p.
15-64, especialmente p. 54-60. Também criticamente contra este conceito, aplicado precisamente aos delitos
terroristas, VILLEGAS, Myrna. “Los delitos de terrorism o en el Anteproyecto de Código Penal” . Polít.
crim. n° 2, A3, 2006, p. 1-31, p. 3.
101 As dificuldades de dotar de conteúdo esta expressão pode ser vista em COMBACAU/SUR, Droit Inter-
national, p. 619 e seguintes.

162
A política criminal dos tratados internacionais.

como acontece com as regras de Direito Internacional Privado,102 mas também


das mais simples regras comuns para a prevenção e controle dos delitos co­
muns que podem ter transcendência internacional.
M inha hipótese é que, além da existência de fortes interesses econô­
micos na origem destas regras,103 burocracias internacionais dependentes (por
exemplo, a UNODC e as múltiplas ON G ’s de proteção de “vítim as”) e “em ­
preendedores morais atípicos” interessados;104 as convenções que regulam os
delitos de transcendência internacional (sujeitas ao procedimento de ratifica­
ção e, portanto, alheias à crítica da falta de legitimidade democrática de que
são objeto organismos supranacionais como a Comissão Europeia 105) parecem
compreender um conjunto de fatos que, segundo cada um dos Estados-partes,
são merecedores de pena em seu próprio ordenamento interno com indepen­
dência de se são ou não cometidos “pelos poderosos” (o funcionário corrupto
que exige um a prestação miserável por um serviço essencial pode ser tão pou­
co “poderoso” como o “dealer” que distribui entorpecentes aos alunos de um
colégio ou o fanático que se sacrifica fazendo explodir um vagão de trem )106 e
até mesmo de seus potenciais efeitos transnacionais.
O anterior se reforça pelo fato de que boa parte destes “delitos de trans­
cendência internacional” não serão inovadores em modo algum, salvo em for­
mas completamente casuais de manifestação, derivadas dos avanços tecnoló­
gicos e das facilidades de comunicação e transporte: o assassinato de pessoas
por motivos políticos, a corrupção funcionária, as organizações criminais, o
tráfico ilícito de produtos nocivos para a saúde, a pirataria, as falsificações, a
corrupção de menores e o sequestro de pessoas, e, inclusive, a criminalidade
econômica, são todos fatos sancionados de um a forma ou outra em todos os
códigos do século X IX e ainda, entre nós, desde las Partidas.101
102 AMBOS, Võlkerstrafrecht, p. 66 e seguinte, seguindo a Hoffe e a Habermas, vê na proteção destes direitos
a função da “República mundial” em formação.
103 Como põe enfase, respeito às relativas a corrupção, ABANTO, Manuel. “ La lucha contra la corrupción
en u n m undo globalizado” . En LOSANO/MUNOZ CONDE, Globalización, p. 273-327, p. 313-322.
104 SILVA SÁNCHEZ, Expansión, p. 66-69, p. 81-102.
105 Ver nota de roda pé n° 22.
106 Por isso não é recepcionada, a este respeito, a tese de GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos p a ra la
lucha p or la m odernización y expansión del derecho penal y p a ra la crítica del discurso de la resistencia.
Valencia: Tirant Lo Blanch, 2003, p. 190, no sentido de que, se este Direito Penal Internacional integrasse o
que denomina “Direito penal moderno”, teria como finalidade a “criminalização fo rm a l. do sistema de ação
ético-socialmente reprovável das classes socialmente poderosas”. Esta ideia, que suporia uma assimilação do
Direito Penal Internacional a um tipo de movimento social democrático próprio da Europa continental, carece
de base empírica neste âmbito, onde confluem os mais diversos sistemas econômicos e sociais. A respeito, ver
as lúcidas críticas de PAREDES CASTANÓN, José M. “Recensión: GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos
p a ra la lucha por la m odernización y expansión del derecho penal y p a ra la crítica del discurso de la
resistenciai”. Polít. crim. n° 2, R7, p. 1-27, especialmente p. 20-24.
107 Para justificar esta afirmativa, convido o leitor a revisar sem preconceitos a primeira edição da obra de
PACHECO, Joaquín F. El código penal concordado y anotado. 3 t. Madrid: Imprenta Saunaque, 1848 (t. I,
551 p. e II, 532 p.) e 1949 (t. III, 503 p.), onde encontrará comentários do autor e referências a las Partidas e

163
Jean Pierre Matus A.

Portanto, se a crítica a este desenvolvimento do Direito Penal Interna­


cional dirige-se ao fato de que, de todas as maneiras, geraria um “Direito Penal
mais autoritário do que o normal, legitimando a criação a nível nacional de uma
legislação excepcional em matéria de terrorismo, luta contra a criminalidade
organizada, narcotráfico, imigração ilegal, etc., que não respeita as garantias e
os direitos fundamentais reconhecidos a nível constitucional e que constituem
as bases do Direito Penal do Estado de Direito”,108 é necessário admitir que ela
estaria, no máximo, justificada em relação a “como” cada Estado e sua própria
dogmática entendem atualmente a política criminal e as garantias pessoais,109
mas não a “se” os fatos nelas compreendidos são merecedores de uma sanção
penal mais ou menos uniforme no concerto das nações.
Mas com o anterior tam pouco se responde à pergunta de fundo, de se
são os delitos de transcendência internacional parte do Direito Penal M un­
dial, com partilhando um fundam ento comum com os “crim es internacio­
nais”, que justificaria o “se” de sua im posição através das fronteiras nacio­
nais m ediante diferentes formas de pressão (e ainda que não exista um órgão
“supranacional” para torná-las efetivas), form ando, deste modo, um novo
“Estado M undial” .110
outros códigos da época para os seguintes temas “modernos” : o assassinato de pessoas por motivos políticos (p.
108-109 e p. 125-139, t. II), a corrupção funcionária (p. 395-530, t. II), as organizações criminais (p. 253-265,
t. II), o tráfico ilícito de produtos nocivos para a saúde (p. 362-371, t. II), a pirataria (p. 112-117 t. II), as falsi­
ficações (p. 266-331, t. II), a corrupção de menores (p. 134-147, t. III), o sequestro de pessoas (p. 243-255, t.
III). Ali poderá observar que o castigo das formas preparatórias de comissão do delito e ainda da não denúncia
destes, assim como a assimilação da consumação à tentativa eram próprias dos delitos que afetavam a seguran­
ça do Estado, particularmente quando se tratava de atentados ao soberano; os comentários de Pacheco sobre a
estrutura geral dos delitos de corrupção funcionária: “sua matéria é extremamente extensa; seus preceitos, que
devem abarcá-la toda, não podem menos que correr uma imensa escala, desde o mais simples ao mais grave”
(p. 395, t. II); sobre a necessidade de castigar a falsificação de moedas estrangeiras, que “não é nunca uma ação
que pode praticar-se com bom fim” (p. 290, t. II); e sobre com relação à pirataria “todas as nações se acredi­
tam com direito para castigar este crime” (p. 115, t. II). Ademais, com relação ao tráfico de produtos nocivos
para a saúde, incluindo o ópio (p. 367, t. II), que hoje em dia cabe dentro das proibições do tráfico ilícito de
entorpecentes e substâncias psicotrópicas, a regulação vigente em 1848 castigava, de maneira similar à atual,
não só a venda sem a competente autorização dessas substâncias, senão também sua “elaboração”, “despacho”
e “comércio”; assim como o despacho e “fornecimento” autorizados, mas realizados “sem cumprir com as
formalidades prescritas nos respectivos regulamentos” (arts. 246 e 247 do Código Penal espanhol de 1848).
Finalmente, com relação à criminalidade econômica, basta esta citação de Pacheco para demonstrar o pouco
“moderna” que, em certo sentido, é sua repressão: “Uma carta falsa lida na Bolsa, uma aposta simulada que se
faça entrar ostensivamente para divulgar certa notícia, um anúncio hábil inserido em um periódico, podem, em
determinadas circunstâncias, causar um transtorno nos preços, que enriqueça e arruíne a mil pessoas. Nisto, há
delito real e verdadeiro. Por mais que poucas vezes possa alcançar o seu autor” (p. 387, t. III). O comentário
se refere ao art. 451 do Código espanhol de 1848, que castigava “aqueles que, espalhando falsos rumores ou
usando de qualquer outro artifício, conseguirem alterar os preços naturais que resultariam da livre concorrência
nas mercancias, ações, rendas públicas ou privadas, ou qualquer outra coisa que for objeto de contratação”.
108 MUNOZ CONDE, Francisco. El nuevo Derecho penal autoritario. En: LOSANO/MUNOZ CONDE,
Globalización, p. 161-183, p. 162.
109 Uma exposição crítica, denunciando o estado da questão na dogmática alemã pode ser encontrada em
HASSEMER, Wienfried. “Viejo y nuevo derecho penal”, en Persona, p. 15-37, especialmente p.19-29.
110 No térm ino que usa FERRERO, Agustín. “G obernabilidad y Derecho en el proceso de globalización”

164
A política criminal dos tratados internacionais.

Em primeiro lugar, a adoção voluntária de obrigações por parte de Es­


tados que logo referendam os tratados em questão de maneira democrática (em
nossa órbita ocidental), não deve deixar-se de lado como fonte de legitimidade
destas obrigações de penalização. Inclusive, o fato de que também aderiram a
estes tratados um não desprezível número de Estados de diferentes culturas ju ­
rídicas, não necessariamente democráticas, dá conta de que, para além destas
diferenças culturais, existe um consenso generalizado no sentido de que certos
fatos que devem ser castigados penalmente de maneira relativamente uniforme.
A este respeito, não devem esquecer que a existência de um conjunto de normas
penais uniformes, às quais se recorre em diversas jurisdições não submetidas
a um poder comum, não é um fenômeno novo (ainda que se possa ser frente
o arquétipo de “Estado Soberano”111): esta era a situação na Europa a respeito
de boa parte da lei romana antes da codificação,112 e também foi a das colônias
americanas imediatamente depois de sua independência da Espanha, nas quais
o Direito Penal de las Siete Partidas não se substituiu imediatamente, mas sim,
como no caso do Chile, várias décadas depois.113
Por outro lado, se compararmos o fundamento da penalização destes
crimes de transcendência internacional com o dos próprios “crimes internacio­
nais”, paradigmaticamente regulados no Estatuto da Corte Penal Internacio­
nal, as diferenças não são tão grandes como parecem em princípio. Assim, se,
segundo Hoffe, ao Direito Penal Internacional corresponderia eventualmente
à proteção da “liberdade frente à arbitrariedade e à violência, isto é, a proteção
do corpo, da vida e da liberdade”,114 a questão seria se encontram-se esses
bens jurídicos através das obrigações de penalização dos “delitos de transcen­
dência internacional” . E não parece muito discutível a afirmativa tratando-se
de terrorismo, tráfico de pessoas e criminalidade organizada, como o destaca
Quintero Olivares tratando-se dos delitos de corrupção de menores cometidos
pelos “turistas sexuais” europeus em países asiáticos.115 No caso da corrupção,

Em: LOSANO/MUNOZ CONDE, Globalización, p. 79-98.


111 Definido como aquele que tem a capacidade autônoma de produzir e aplicar o Direito, capacidades que já
se haviam perdido nos Estados nacionais atuais, segundo BERGALLI, Roberto. “Globalización y jurisdicción
penal: un desafío para la cultura jurídica moderna”. En GÓMEZ MÉNDEZ, Alfonso (editor). Sentido y conte-
nidos del sistema penal en la globalización. Bogotá: Ediciones Gustavo Ibánez, 2000, 454 p., p. 39-54, p. 44.
112 Assim, expressamente, BOCK, Dennis. “ Die erste E uropaisierung d e r Strafrechtsw issenchaft:
Das gemeine S tra frec h t a u f ro m ischrechtlicher G ru n d lag e” . Zeitschrift fü r Internationale Strafrechts­
dogmatik. 1/2006, p. 7-17.
113 Assim, pode-se observar que as várias citações feitas a las Partidas e a Novíssima Recopilación em uma “obra
aprovada pela Universidade”, já eram feitas no princípio da década de 1870: LIRA, José B. Prontuario de los
juicios o tratado de procedimeintos judiciales i administrativos con arreglo a la lejislación chilena. 2a ed.
Santiago: 1872, Imprenta Librería El Mercurio, 3 t., t. II, 529 p., p. 5-86.
114 HÕFFE, Otfried. G ibt es ein interkulturelles Strafrecht?. Frankfurt: 1999, citado por AMBOS, Volkers-
trafrecht, p. 66.
115 QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. “El derecho penal ante la globalización”. En: ZÚNIGA, Laura; MÉN-
DEZ, Cristina; DIEGO, Ma Rosario (coordenadoras). El derecho penal ante la globalización. Madrid: Colex,

165
Jean Pierre Matus A.

a vinculação é mais tênue. No entanto, não é difícil ver as limitações à vida,


liberdade e segurança pessoal junto com o favorecimento de arbitrariedades
que a corrupção traz consigo, especialmente quando esta se insere nos aparatos
judiciais e policiais.116

2002, 191 p., p. 11-26. O exemplo (p. 18, com extensa nota aclaratória, n° 2) provém da identificação que faz o
autor entre antijuridicidade material e a violação aos direitos humanos.
116 Contudo, é discutível se detrás desta pretensão de assegurar a liberdade, segurança e vida do maior número
de seres humanos não se encontra simplesmente um tipo de “arrogância ética, fundamentalista, ainda que pre­
tensiosamente civilizada e apresentando índices sociais de grande êxito”, como denuncia ADEODATO, Joao
M. “La pretensión de universalización del Derecho como am biente ético com ún”. En LOSANO/MUNOZ
CONDE, Globalización, p. 99-108, p. 108.

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O E statu to de R om a de 1998 e os valores penais
da com u n id ad e in tern a cio n a l1

Daniel R. Pastor
Universidade de Buenos Aires, Argentina

A minha exposição irá tratar dos valores penais que estariam plasmados
no Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional, isto é, dos valores penais da
comunidade internacional, se é que existem.
No Preâmbulo do Estatuto estão mencionados estes valores que eu
quero discutir com vocês. Para isso, vou utilizar um esquem a dialético refe­
rente aos modelos de sistema penal. Como prim eira parte da m inha exposição,
analisaremos dialeticamente um modelo penal teórico de o que é o sistema
penal em geral. N a segunda parte, com o mesmo método dialético, vamos ana­
lisar o sistema dos valores penais do Estatuto de Roma.
Em relação à dialética de valores do sistema penal visto em teoria, temos
algo que funciona como tese, que é o valor comum que possui o sistema puni­
tivo, o direito penal em geral, isto é, a ideia de que a sociedade deve trabalhar
com a coação que representa o sistema penal, a coação mais grave entre todas
as que dispõe o ordenamento jurídico, para tratar de impor ordem na sociedade,
para tratar de estabelecer a mensagem de que certos valores devem ser respei­
tados pela importância dos bens e interesses que estão por detrás deles. Há uma
coincidência básica no fato de que o direito penal é algo inevitável, mas que, por
sua vez, pode ser desafortunado, pode ser algo que nos traga muitos problemas,
ainda que um a sociedade não possa operar sem direito penal. Este seria um valor
que funciona como tese, a sociedade necessita da repressão penal.
A antítese seria outro valor que impõe o ordenamento jurídico, o valor
que diz que essa repressão penal não pode ser alcançada a qualquer preço, que há
certos direitos da pessoa que vem a ser investigada ou quiçá declarada culpada
de haver cometido um delito, que devem ser respeitados. Isto é o que, em geral,
Luigi Ferrajoli chama de sistema de garantias, o que Zaffaroni chama de direito
penal propriamente dito, o qual, frente ao que eu mencionei como tese - que para
Zaffaroni seria o poder penal - , trabalha como contenção do poder repressivo.
Com independência dos nomes que se use, a tese fala da necessidade de repres­
são e a antítese, de que não se pode reprimir de qualquer maneira, mas que se
deve respeitar a dignidade humana e os direitos fundamentais do acusado.
Assim, com base neste valor e neste contravalor, temos que chegar a uma
síntese (que é o que nos exige este método dialético de análise que estou empre­
gando). Qual seria essa síntese se estes valores entram em conflito? Eu creio que
1 Título original: “ El Estatuto de Roma de 1998 y los valores penales de la comunidad internacional” .
Tradução e revisão de Stephan Doering Darcie.

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Daniel R. Pastor.

a síntese indica que prevalece a função garantista, isto é, a função de limite, que já
está enunciada, de alguma maneira, na própria antítese. Se não se pode apenar a
qualquer preço, isso quer dizer que as exigências da cultura jurídica universal para
estabelecer limites ao direito penal prevalecem sobre as necessidades sociais de
controlar o crime, de proibi-lo e de reprimi-lo no caso de a proibição haver falhado.
Parece-me que esta decisão, esta preferência pelo que eu chamo de antítese, está
plasmada também no ordenamento jurídico. Podemos vê-lo, por exemplo, no âm­
bito do direito penal material, com o princípio nullum crimen, o que nós chamamos
princípio da legalidade material. Não toda ilicitude e nem toda imoralidade cons­
tituem um delito. Há uma seleção muito precisa, categórica, determinada, descrita
detalhadamente acerca de quais são as infrações penais, e as demais condutas não
entram no âmbito do penal; e também há muitas indicações processuais que nos
falam desta preferência que eu defendo como síntese do modelo penal teórico: a
presunção de inocência, por exemplo, uma categoria epistemológica. O processo
penal é precisamente um processo de conhecimento e a presunção de inocência é
uma falácia do ponto de vista epistemológico. Não obstante, trabalhamos com esse
princípio em matéria processual penal e não estamos dispostos a renunciar a ele,
o que significa uma preferência, um privilégio para o acusado. O mesmo sucede
com o ônus da prova. No direito privado em geral, aquele que alega um fato deve
comprová-lo, o ônus não pesa sempre sobre um sujeito processual determinado.
No entanto, no processo penal, o acusado tem o privilégio de não ter a obrigação de
provar, correspondendo ao acusador esse ônus. Parece-me que isto mostra também
a preferência de que estou falando. O fato de que o acusado tenha a última palavra,
ao final do juízo oral, ao final do debate, também nos mostra essa preferência.
Diferente seria em um processo de partes, no qual a última palavra pertence ao
ofendido porque é um sistema entendido mais como um processo civil ou de direi­
to privado. Aquele que levou o caso ao juízo, o acusador, o demandante, o ator, o
ofendido, é o que fala ao final: já que ele submeteu o caso ao juízo, que dê sua pa­
lavra ao final. Para nós, com nossa cultura, isso não seria aceitável e, precisamente
porque privilegiamos a figura da pessoa enfrentada no processo penal, damos a
última palavra ao imputado. Ademais, inclusive uma vez terminado o processo
e transitando em julgado a sentença, no nosso sistema a revisão da coisa julgada
apenas pode ser aceita em favor do condenado, isto é, apenas quem injustamente
foi condenado pode opor-se à coisa julgada e conseguir que a sentença seja anulada
se provar que foi incorreta. Não, assim, o acusador que consiga demonstrar, depois
da coisa julgada, que a sentença absolutória foi indevida. Parece-me que como
síntese do que quer este modelo de direito penal teórico há uma preferência pelo
que apresentei aqui como antítese.
Vamos passar agora à segunda parte da minha exposição, referente a
como funciona esta análise dialética dos valores penais no Estatuto de Roma.

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O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

Como vocês sabem, em 1998, uma conferência de Estados plenipotenciários


reuniram-se em Roma e, como resultado de um largo período de discussões,
aprovaram a criação de um sistema penal internacional (139 Estados firmaram o
tratado do qual até hoje já são 100 os Estados-partes). O que conhecemos como o
Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional é um tratado que criou um tribu­
nal, com suas distintas instalações para levar a cabo processos, uma promotoria,
um direito penal material, um direito processual penal, um direito da organização
judiciária e um direito da administração dessa jurisdição. Trata-se de um verda­
deiro poder penal internacional. Desde o ano 2002 já está em funcionamento e já
possui casos (quatro deles bastante avançados).
Para me referir aos valores penais do Estatuo vou citar o Preâmbulo, no
qual eles estão mencionados. Diz ali que:

Os Estados partes no presente Estatuto, conscientes de que


todos os povos estão unidos por estreitos laços e suas cul­
turas configuram um patrimônio comum e observando com
preocupação que este delicado mosaico pode romper-se a
qualquer momento, tendo presente que, neste século, mi­
lhões de crianças, mulheres e homens têm sido vítimas de
atrocidades que desafiam a imaginação e comovem profun­
damente a consciência da humanidade, reconhecendo que
estes graves crimes constituem uma ameaça para a paz,
segurança e bem-estar da humanidade, afirmando que os
crimes mais graves de transcendência para a comunidade
internacional em seu conjunto não devem ficar sem casti­
go e que, para tal fim, há que se adotar medidas em plano
nacional e intensificar a cooperação internacional para as­
segurar que sejam efetivamente submetidos à ação da jus­
tiça, decididos a colocar fim à impunidade dos autores des­
tes crimes e a contribuir assim para a prevenção de novos
crimes, recordando que é dever de todo Estado exercer sua
jurisdição penal contra os responsáveis por crimes interna­
cionais, reafirmando os Propósitos e Princípios da Carta das
Nações Unidas e, em particular, que os Estados se absterão
de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade
territorial ou a independência política de qualquer Estado ou
em qualquer outra forma incompatível com os propósitos
das Nações Unidas, destacando, neste contexto, que nada
do disposto no presente Estatuto deverá ser entendido no
sentido de que se autorize a um Estado Parte a intervir em
uma situação de conflito armado ou nos assuntos internos
de outro Estado, decididos, aos efeitos da consecução des­
tes fins e em interesse das gerações presentes e futuras, a

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Daniel R. Pastor.

estabelecer uma Corte Penal Internacional de caráter perma­


nente, independente e vinculada com o sistema das Nações
Unidas que tenha competência sobre os crimes mais graves
de transcendência para a comunidade internacional em seu
conjunto, destacando que a Corte Penal Internacional esta­
belecida em virtude do presente Estatuto será complementar
às jurisdições penais nacionais, decididos a garantir que a
justiça internacional seja respeitada e posta em prática de
forma duradoura, convencionaram o seguinte: ...omissis.

Aqui é onde se encontram form ulados, portanto, os valores penais


deste sistema.
Seguimos com a análise dialética e, aqui, a tese seria este sistema de
valores que consagra o Preâmbulo do Estatuto. Dividi em duas partes este sis­
tema de valores do Tratado de Roma. Por um lado, o que poderíamos chamar
de pontos de partida axiológicos e, em segundo lugar, os que seriam os valores
penais específicos, os valores penais propriamente ditos. Os pontos de partida
que funcionam como tese do Estatuto são: “Que todos os povos estão unidos
por estreitos laços”, que “suas culturas configuram um patrimônio comum”, que
as “atrocidades comovem a consciência da humanidade”, que essas atrocidades
“constituem uma ameaça para a paz, segurança e bem-estar da humanidade” e,
por último, que há que se “garantir a justiça internacional” . Neste esquema é
destacável o interesse pelo bem-estar da humanidade, que é um valor que não
aparece em outros tratados, não aparece especificamente dito nos grandes pactos
de direitos humanos, não aparece na Carta das Nações Unidas; sempre, do que
se tratava, era de preservar por meio do direito internacional a paz e a segurança
internacional. O Estatuto agrega a essa dupla já proverbial em direito interna­
cional, pela primeira vez, a referência ao bem-estar da humanidade, o que me
parece que é muito importante e vamos ver que consequências tiramos disso.
Estes seriam os pontos de partida valorativos.
Os valores penais propriamente ditos que menciona o preâmbulo do
Estatuto seriam: “Que os crimes mais graves de transcendência para a com u­
nidade internacional não devem ficar sem castigo”, que se deve “colocar fim à
impunidade dos autores destes crim es”, que dessa forma se conseguirá preve­
ni-los, que é dever de todo Estado legislar acerca destes crimes, persegui-los
e castigá-los, e que esta é a tarefa de subsidiariedade que o Estatuto impõe
aos estados parte. (Esta subsidiariedade é chamada no Estatuto de comple-
mentariedade. Isso é um erro. Em castelhano complementariedade quer dizer
outra coisa totalm ente distinta, complementar é algo que trabalha junto, que se
soma: aqui, na realidade, o que quer o Estatuto é um a exclusão. A Corte Penal
Internacional não atua no caso quando o faz o Estado nacional, que é o que

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O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

se espera que ocorra - hipótese em que ela controla o Estado, não investiga e
nem julga fatos puníveis, apenas observa como investiga e julga o Estado - ,
e unicamente se o Estado nacional não aplica sua jurisdição ou a aplica mal -
porque não pode ou não quer investigar e julgar - , intervém subsidiariamente
a Corte Penal Internacional, é dizer, a competência da Corte é latente, não
complementar, isso é um erro de tradução.)
Essas seriam as teses referentes ao modelo de direito penal do Esta­
tuto. Vamos ver agora a antítese, isto é, colocar um pouco em crise isto que
acabo de m encionar e compará-lo com o que era a antítese no modelo teórico
do sistema penal. Para isso, utilizo também o mesmo esquema da tese, é dizer,
divido entre valores que representam pontos de partida do sistema do Estatuto
e valores propriamente penais.
Em relação aos pontos de partida, o primeiro é que há uma comunidade
internacional. A mim parece que isso é um exagero e que se alguém observar a
forma em que está dividido o planeta entre algumas poucas nações ricamente
opulentas e um a maioria de nações e de povos absolutamente sumidos na m i­
séria, custa crer que possamos falar de uma comunidade internacional já neste
sentido, isto é, não apenas no sentido dos valores ou no sentido das culturas e da
diversidade cultural que existe, já que não há uma homogeneidade no bem-estar
que, como havíamos visto, era um dos valores que pretende defender o Estatuto.
Sobre isso, gostaria de citar algumas palavras de Luigi Ferrajoli:

Devemos nos perguntar se a aspiração à paz e à segurança


é realista em um mundo em que, por um lado, 800 milhões
de pessoas, isto é, um sexto da humanidade possui 83%, é
dizer, cinco sextos da renda mundial. Enquanto a desigual­
dade de riquezas entre países pobres e ricos jamais alcançou
formas tão escandalosas e visíveis, como na atual era dos
direitos. De uma relação de um para três no ano de 1820 e
de um para onze em 1913, as desigualdades caminham para
ser de um para cem em nossos dias.

Então, esta realidade confronta um pouco essa ideia da existência de


uma comunidade internacional. Inclusive se alguém quiser reduzi-la à existência
de meros valores penais, não temos uma sociedade homogênea, um a sociedade
igualitária, não existe um a democracia global, não há um governo mundial, não
há um a representação; ainda nas democracias débeis, alguém pode advertir for­
mas de representação, de participação, de paliativos, isto aqui nós não temos.
Por outro lado, o sistema penal internacional não trabalha com a categoria básica
para o modelo penal teórico e para os direitos penais nacionais de ser a última
ratio do sistema. Cada país, com suas limitações (Suécia o fará melhor talvez

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Daniel R. Pastor.

que a Itália, enquanto que a Itália o faz muito melhor que a Argentina), trata
de prevenir os crimes que possam ocorrer em seu território com algo mais do
que políticas penais. Não se contentam em dizer, por exemplo, “bem, proibimos
estes delitos, os delitos contra a propriedade, e tudo o que fazemos é isso, são
delitos e se alguém os comete trataremos de persegui-lo e castigá-lo”. Os Esta­
dos, pelo contrário, o que buscam é que ninguém caia na necessidade de talvez
ter que cometer esses delitos. Isso significa que os Estados, através de políticas
educacionais, de políticas sociais, de políticas de prevenção não penais, de po­
líticas econômicas, financeiras, na medida do possível e dentro das capacidades
que possui cada país, buscam por estes meios prevenir realmente os delitos, do
que se deve concluir que, se a Dinamarca possui uma baixa taxa de crimes,
isso não se deve ao fato de que possui um bom Código Penal, porque se fosse
assim nós poderíamos copiá-lo e teríamos resolvido o problema. Isso acontece
precisamente porque essas instâncias prévias não penais são as que previnem os
delitos, e não a legislação penal. Agora, no campo internacional, a única coisa
que oferece essa suposta comunidade internacional é direito penal, a única coisa
que oferece o mundo é o sistema penal do Estatuto ou dos Tribunais ad hoc, para
julgar crimes graves quando ocorrem. Antes, para preveni-los, o mundo oferece
pouco e nada. Por exemplo, não há algo parecido na Corte Penal Internacional
em matéria educacional; primeiro, para Haia (onde reside a mencionada Corte)
apenas se pode ir como imputado ou como vítima, não se pode ir para pedir
um seguro desemprego. Se alguém vai como argentino para a Holanda, Itália
ou Espanha pedir um seguro de desemprego lhe dizem: “não, veja, não somos
competentes. E mais: você não pode sequer pisar aqui neste território, pode fi­
car algumas semanas como turista, mas depois desapareça. Não apenas não lhe
daremos um seguro de desemprego, não apenas não lhe daremos educação e
nem saúde, como também não lhe permitiremos residir aqui. Aqui apenas se é
bem-vindo como imputado ou como vítima de um delito contra o direito interna­
cional, nada mais”. As organizações internacionais que existem com o objetivo
de ter alguma semelhança com o que, nos Estados nacionais, são estas institui­
ções dedicadas a buscar erradicar as causas pelas quais os crimes são cometidos
(apoios sociais, apoios financeiros, creditícios, etc.), existem mais para respaldar
as políticas comerciais dos países ricos, que são aqueles que as formaram e que
as mantêm, do que para ajudar a grande maioria de países pobres do mundo, que
é onde precisamente estes crimes são cometidos. Seria o caso do Banco M un­
dial e do Fundo Monetário Internacional, por exemplo. Vocês devem pensar nos
casos que estão em estudo pela Corte Penal Internacional, pela Procuradoria,
no momento, Uganda, Congo, República Centroafricana, Sudão, ou seja, temos
um Tribunal Penal Internacional para um a parcela da África, nem sequer para
todo o mundo, nem sequer para toda a África, e tudo o que se oferece a esses

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O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

países é agora, depois de os crimes já terem sido cometidos, poder julgá-los e


condená-los - talvez - em um tribunal em Haia. Enquanto que essas associa­
ções (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional), esses organismos, o que
buscam sempre é ativar as políticas comerciais dos países ricos e não dos países
pobres. Observem vocês que, por outro lado, o Banco Mundial sempre esteve
presidido por um norte-americano, e o Fundo Monetário Internacional sempre
por um europeu ou alguém da União Europeia, ou seja, nunca um africano ou um
latino-americano pôde estar em nenhum destes postos decisivos. O Tribunal Per­
manente dos Povos, que é sucessor dos Tribunais Russel, isto é, desses tribunais
que alguma vez se quis fazer para julgar crimes dos Estados poderosos frente à
irritação que provocava o fato de que os perdedores da Segunda Guerra foram
processados por seus crimes de agressão e de guerra e que, em contrapartida,
quando alguns dos vencedores - como os Estados Unidos - faziam o mesmo no
Vietnã, ninguém os julgava, ocupou-se do assunto. Estes “tribunais morais” sur­
giram sem nenhuma competência jurídica real e muito menos com poder algum
para executar suas decisões, porém funcionam ditando sentenças que possuem o
valor simbólico de condenar - também - estes fatos de agressão.
O Tribunal Permanente dos Povos considerou que a conduta do Fundo
Monetário Internacional, ao impor determinadas políticas econômicas que são
políticas de morte - segundo eles comprovaram - aos países endividados, de
alguma m aneira está cometendo crimes que estariam tipificados, por exemplo,
no Estatuto de Roma. No momento, a condenação é simbólica. Não creio que
isso possa avançar m uito mais. Não é realista pensar que alguém vá processar
os diretores do Fundo Monetário Internacional por este tipo de crimes. Creio
que é algo altamente exagerado, porém tal fato nos serve, sim, como exemplo
para nos darmos conta, de alguma maneira, de qual é o verdadeiro sistema
de valores desta suposta comunidade internacional. Como lhes dizia antes, há
uma assimetria entre o valor ou o respeito que possui a soberania nacional
nesta m atéria com o que é necessário criminalmente, até que a soberania de­
sapareça e haja uma ordem penal mundial em relação aos crimes previstos no
Estatuto de Roma. Não obstante, uma jurisdição para condenar estes crimes
exige homogeneidade para isso, é dizer, todos temos que ter o mesmo direito
penal que é o do Estatuto; todos os países têm que aplicá-lo subsidiariamente,
ainda que não exista o mesmo em relação às demais políticas que podem servir
para prevenir estes crimes. Neste último, sim, vigora a soberania, onde não
apenas não há ajuda, não há homogeneidade, como também sequer as pessoas
dos países desafortunados - como lhes dizia antes - podem ingressar nos paí­
ses ricos. Falta algo que é elem entar para que haja realmente um a comunidade
de valores e povos unidos por estreitos laços, que é o ser bem-vindo cada um
em outro país. Como se pode falar de estreitos laços, de um a cultura comum se

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Daniel R. Pastor.

ninguém pode ir viver na França ou em qualquer outro país opulento, porque


não o permitiriam? Não existe essa possibilidade. Não existe um a noção de
cidadania universal e realmente me parece muito difícil encarar um a defesa
dos direitos humanos no plano internacional se não existe previamente um
conceito de cidadão universal, de um cidadão que livremente possa residir ou
circular por qualquer país do mundo. Parece-me que esse é o direito humano
básico das pessoas e que se isso não é assim - e talvez seja bom que não seja
assim - , então não há sentido falar de comunidade internacional, há que deixar
de falar disso, de valores comuns e de povos unidos por estreitos laços e de
um a cultura que é patrimônio comum. M elhor não dizer nada e - sobretudo -
melhor não haver um Direito Penal Internacional. Isso é como antítese relativa
aos valores que constituem os pontos de partida do Estatuto.
Vejamos agora os valores penais propriamente ditos do Estatuto. Parece-
me que aqui também não podemos senão cair na crítica. Quero deixar claro que
sei que as coisas que digo podem ser polêmicas - provavelmente, inclusive, es­
tejam equivocadas. Compreendam-me no sentido de que lhes trago minha versão
do que estudei, porém estou aberto à discussão e a mudar de critério se vocês me
demonstrarem que realmente estou equivocado, como desconfio. Porém, seguin­
do essa linha, os valores penais propriamente ditos do Estatuto conduzem a algo
que denominei a ideologia da punição infinita, pois há uma valorização exage­
rada das vantagens do direito penal. O direito penal e a pena em si, ao invés de
serem vistos como algo desconfiável, inevitável, um mal necessário, são vistos
como algo maravilhoso. Ao invés de ver o direito penal como algo desafortuna­
do, que é o que nos ensina a lição da história, é visto, na realidade, como a oitava
maravilha do mundo, que se projeta como parte desta ideologia de fobia da im­
punidade. Diante da possibilidade de um crime - se um crime foi cometido - a
única saída é a pena, de nenhuma maneira esse crime pode ficar impune, ainda
quando em algumas ocasiões a impunidade talvez ofereça uma melhor solução
dos conflitos do que a própria punição. Por exemplo, pensem vocês nas saídas
que tiveram os distintos países que sofreram crimes graves de Estado, crimes que
hoje são considerados delitos contra o direito internacional. Pensem vocês, por
exemplo, na Segunda Guerra Mundial. Estes crimes sempre foram perseguidos.
Nuremberg, Tóquio e tudo o que veio depois, o julgamento de Eichmann em
Israel, os distintos julgamentos feitos na França, na Alemanha, na Itália e que
são levados a cabo até o dia de hoje (se algum criminoso da Segunda Guerra
Mundial que esteja prófugo, foragido ou clandestino é encontrado e submetido a
julgamento), mostram que sempre se teve uma política de perseguir estes crimes
sem nenhum tipo de regra de impunidade, nem anistia, nem prescrição - pelo
menos até o momento e com relação aos crimes mais graves. Não sei como será
o desdobramento dessa questão, porque isso é polêmico hoje em dia, já que se

174
O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

passaram 60 anos e restam poucos casos mais. Agora podemos pensar em outros
casos, como, por exemplo, nos casos da ditadura espanhola. Tais crimes nunca
foram perseguidos e se passaram 30 anos desde que a ditadura espanhola term i­
nou e até hoje não houve processo penal algum e não há nenhuma lei de anistia.
Existiu um acordo de forças políticas que, para privilegiar a estabilidade da de­
mocracia, entendeu que não se podia perseguir esses crimes, que a impunidade
era o custo para que, em 1975, a Espanha desembocasse em um a democracia e
não em uma guerra civil. Hoje, podemos ver o que é a Espanha, um a nação de
bem-estar, rica e opulenta, uma das potências do mundo, incorporada à União
Europeia, etc. Tudo isso é construído sobre uma base de impunidade que até
hoje não foi abalada. Não há nenhum caso de persecução destes crimes, não digo
que não possa ocorrer no futuro, isso não sei e a nós juristas não é dado fazer
profecias. Pensem no exemplo da África do Sul, é outro caso, parcialmente, de
impunidade e a África do Sul é uma das nações que melhor vão - sem dúvi­
da - na África. Ali sim ouve alguma discussão a respeito e houve uma decisão
formal para alguns a partir dos aportes que fizeram os próprios criminosos para
o esclarecimento do que havia sucedido. Para encontrar a verdade se chegou a
uma situação de impunidade parcial por via da anistia. Isso também permitiu
que, na África do Sul, exista hoje um a democracia que avança e um país que
vai obtendo bem-estar sobre a base dessa impunidade, ao invés de causar uma
catástrofe, um a guerra civil, que é onde se haveria chegado sem a anistia, por­
que não teria sido possível na África do Sul a democracia sem impunidade. A
ninguém ocorre dizer que essas normas de impunidade são contrárias ao direito
internacional, são nulas, são inválidas, são inconstitucionais, inexistentes, etc.
Como veem vocês, há distintos modelos.
Também está o modelo argentino, que é o mais peculiar e pitoresco de
todos os que eu mencionei. O modelo argentino consistiu em, visando à de­
m ocracia em 1983, perseguir os graves crimes cometidos pela ditadura, e isso
foi correto, fez-se isso se aplicando um direito penal normal, o direito penal
que havia e que havia sido violado pelos terroristas de Estado daquela época.
Foram levados a cabo julgam entos e houve condenações, porém, em algum
momento, por circunstâncias da pressão política, adotou-se um a orientação
de impunidade parcial. Já durante o governo de Alfonsín, nos anos oitenta,
foram aprovadas as conhecidas leis de ponto final e obediência devida. Logo
em seguida, passou-se ao indulto dos próprios condenados nos anos noventa
e durante a presidência de Carlos Menem. Creio que essa política de im puni­
dade foi naturalmente equivocada e contrária ao direito, mas o certo é que foi
adotada por um Parlamento democrático e que oportunamente foi ratificada
pela Corte Suprema de um a democracia, isto é, que ali term inou a discussão,
gostemos ou não do resultado. Poderia dizer, na m inha perspectiva, que neste

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Daniel R. Pastor.

momento, que era o momento em que havia que discutir a questão, perdeu-se
a discussão. Eu, pelo menos, senti que a havia perdido, porém aceitei havê-la
perdido democraticamente. Não obstante, o que ocorre com os argentinos? O
que sucedeu conosco, que tantos anos depois revogamos essa decisão? Agora
dizemos que essa impunidade não valia à época e nem atualmente, a deixamos
sem efeito, reabrimos as causas e voltamos a julgar ou começamos a julgar.
Pensem que isto não ocorreu em nenhum país. A Europa seguiu perseguindo
sempre os crimes do nazismo, nunca os anistiou, segue os perseguindo até
hoje. A Espanha nunca os perseguiu e a África do Sul os anistiou, parcial­
mente, porém ali permaneceu a anistia, ninguém a invalidou. Ou seja, o “os
perseguimos sempre” ou “não os perseguimos nunca” eram os modelos que
tínhamos até agora no mundo. Nós somos os únicos que temos o modelo per­
seguimos, deixamos de perseguir, quinze anos depois voltamos a perseguir e
convertemos estas questões quase em um jogo de loteria. Porque se agora a
Corte, em 2005, não tivesse dito o contrário ao que disse em 87, poderia dizer,
talvez, cinco anos depois e assim poderiam os acusadores seguir jogando para
ver se alguma outra m udança no panoram a político, na composição da Corte
Suprema, etc., poderia perm itir fazer cair as leis de impunidade que - insisto -
não eram leis de impunidade ditadas pelos próprios terroristas do Estado, mas
pela democracia que veio depois e que os perseguia. Para além do acerto ou do
erro, a coisa julgada tem um valor, como víamos, no modelo teórico do direito
penal. Portanto, todas estas fundamentações de direito internacional estão ins­
piradas em um a ideologia da punição infinita, de punir a qualquer preço, onde
não pode haver anistia, não pode haver indulto, não pode haver nenhum tipo
de perdão, não pode haver prescrição, nem nada que não seja a pena. A impres-
critibilidade é, sobretudo, algo bastante incompatível com a ideia do Estado de
Direito, de um Estado limitado. Como pode ser limitado o Estado se seu poder
penal é ilimitado no tempo? São questões que chocam muito com o sistema de
valores que, como havíamos visto, tinha a cultura penal como limite ao poder
punitivo, gostemos ou não gostemos; ou, talvez, sobretudo quando aqueles que
recebem os benefícios desse sistema constitucional de proteção do acusado são
aqueles a quem não gostamos ver também amparados pelo Direito, pois é fácil
que nós e nossos amigos reclamemos garantias jurídicas e que desprezemos
essa proteção se se trata de brindá-la a nossos rivais. Porém, a grandeza da
democracia e dos princípios está em que vigorem sempre, com independência
de quem seja o destinatário, seja amigo ou inimigo, e das apetências pessoais
que alguém possa ter, e de predileções, etc.
Por outro lado, estes valores que o Preâmbulo do Estatuto de Roma enun­
cia como da comunidade internacional, na realidade se poderia reputar que são de
muito pouca gente, porque do Estatuto de Roma fazem parte até hoje somente cem

176
O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

países. O número pode parecer importante e assim o apresentam os propagadores


das bondades do Estatuto (“um número considerável, importantíssimo de países,
já somos cem”), porém, em realidade, são países de alguma maneira relativamente
pouco importantes, porque se alguém prescinde dos países da União Europeia e
Canadá, que são - talvez sim - os únicos países poderosos que fazem parte do Es­
tatuto, todos os demais são Estados muito pequenos, muito débeis e praticamente
despovoados. Não fazem parte do Estatuto nenhum dos países importantes, em
matéria econômica, em número de população ou em possibilidade de cometer os
crimes do Estatuto, sobretudo o crime de agressão - ainda que, todavia, não esteja
tipificado expressamente - ou crimes de guerra, etc. Os Estados Unidos não fazem
parte do Estatuto, Rússia não faz parte do Estatuto, China não faz parte do Estatuto,
Japão não faz parte do Estatuto, índia não faz parte do Estatuto, os países árabes
não fazem parte do Estatuto. Portanto, creio que temos cerca de 80% da humani­
dade fora do Estatuto. São seus valores os valores da comunidade internacional
ou não? Porque se são os valores da comunidade internacional, ainda que 80% da
população mundial não os apoie, teremos um problema de legitimidade democráti­
ca. E isso sem contar sequer se é possível fundir, fusionar todos os valores. Parece
mais que se trata dos valores jurídicos do ocidente, que são os que prevalecem
no Estatuto - isto está muito claro. É uma imposição dos valores ocidentais, que
nós podemos compartilhar, mas que se vê que os árabes não os compartilham,
que na China não os compartilham, etc. Tampouco é questão do que se poderia
dizer “bom, são os governos que não os compartilham, porque as populações sim
os compartilham”. Isto é inadmissível, porque alguém também poderia contra-
argumentar que os cem países que fazem parte representam apenas a vontade dos
governos e que, na realidade, as populações desses cem países estão contra o Es­
tatuto. Portanto, não pode ser que, em um caso, a vontade dos governos expresse a
vontade de seus povos, quando fazem parte do Estatuto, e que, em relação aos que
não fazem parte, se trate da vontade dos governos e não dos povos.
Também é discutível, neste sentido, falar de valores comuns de uma
universalidade de países e culturas. Como lhes dizia, vejo nisto, acima de
tudo, uma imposição de valores. O que é que sucedeu? Vou chegando ao fi­
nal e ao meu ponto de fechamento, como síntese desta segunda explicação
dialética. O que sucedeu é que essa suposta comunidade internacional é, na
realidade, uma enteléquia. Não se sabe se esses tribunais internacionais são
impulsionados por alguns países ou por funcionários que conseguem partici­
par da elaboração desses tratados e que estão impulsionando um projeto tal­
vez mais para seu benefício do que para o da humanidade. Isto é um claro
problema de sociologia das burocracias que, por mais de dois motivos, não
posso abordar aqui. O que sucedeu é que essa “comunidade internacional”
aprendeu que os países funcionam com direito penal, isto que dizíamos que é

177
Daniel R. Pastor.

inevitável, que é parte de nossa cultura, de nossos valores proteger determina­


dos bens e regras com a ameaça de pena e o castigo do infrator. De modo que
viram isso e adotaram-no, como antes haviam adotado previamente o sistema
de limites. Os pactos de direitos humanos não são mais do que a internacionali­
zação de regras locais, de regras nacionais, como eram as Constituições. Isto é,
depois de que a ilustração, a partir dos movimentos racionalistas que chegam ao
domínio político, acaba com o Estado absolutista e instaura a República com o
Estado de Direito a partir da Revolução Francesa, esses direitos antes naturais
acabam sendo positivados, deixam de ser coisas que estavam na cabeça dos jus-
naturalistas e se transformam em direito positivo. Exemplo disso é claramente a
declaração da independência americana, que começa dizendo “Todos os homens
nascem livres e iguais...” Porém, já não sabemos mais se realmente nascemos
livres, parece bastante raro que sejamos, mas não importa. A igualdade “jurídica”
restou positivada e, a partir daí, se geraram todos os direitos constitucionais e,
como consequência, a suposta comunidade internacional tomou esses valores,
transformou as Constituições em tratados internacionais, regionais, que foram,
embora com o mesmo esquema, um a reprodução de Constituições.
Agora com este sistema penal internacional que temos de Nuremberg
em diante, e, sobretudo, com o Estatuto de Roma, o que se adota é o direito penal
dos Estados nacionais. Observa-se que o Estado nacional possui isto e a comuni­
dade internacional o tom a para si. Contudo, não respeita o sistema de limites. O
que no modelo teórico do direito penal era a tese está tomado, porém o sistema
de limites, que era a antítese, não, ainda que, como lhes disse, já o havia adotado
previamente a comunidade internacional, por meio dos grandes pactos de direi­
tos humanos. Não obstante, isto não sucede com o sistema penal do Estatuto de
Roma. Vocês podem ver, por exemplo, que dentro do sistema penal de um país,
se alguém é condenado em última instância e seus direitos foram violados ainda
lhe resta a oportunidade de recorrer a instâncias internacionais para obter uma
proteção ulterior dos direitos violados. N a Europa, pode-se acudir ao Tribunal
Europeu de Direitos Humanos; nós, no âmbito americano, podemos acudir à
Comissão e à Corte Interamericanas. Porém, se alguém é julgado pela comuni­
dade internacional, por um tribunal ad hoc ou pela Corte Penal Internacional,
não há aonde ir, uma vez que seja fixada a sentença; a comunidade internacional
não controla esse órgão penal internacional, apenas controla os órgãos penais
dos países. Há muitas razões formais que se podem exibir para dizer por que
isto é assim, para explicá-lo, porém, na realidade, do ponto de vista valorativo,
creio que é de todo modo um déficit insuperável. Algo estranho ocorre com isto.
Podem ver vocês que os próprios valores de proteção do acusado que declama
a comunidade internacional aqui não são respeitados. Pensem, por exemplo, no
caso dos tribunais ad hoc com esse princípio de todos os grandes pactos de direitos

178
O Estatuto de Roma de 1998 e os valores penais.

humanos que diz que “ninguém pode ser julgado por um tribunal que não seja es­
tabelecido antes pela lei”. Precisamente são tribunais ad hoc. Qualquer estudante,
em qualquer faculdade do mundo, quando cursa Direito Processual Penal se intera
claramente de que há uma regra de proteção das pessoas que diz que ninguém pode
ser julgado por uma comissão especial criada ex post facto para isso. Depois al­
guém vê tribunais ad hoc, criados ex post facto para isso e, bem, ali estão. A Corte
Penal Internacional - não posso me deter agora muito nisto - também possui mui­
tos déficits deste ponto de vista e um que lhes mencionava é o do controle externo.
A Corte pode fazer o que quiser porque depois não há um controle externo como
há em relação aos órgãos nacionais que aplicam penas.
O pior disto é que esse direito penal que se apodera do Estado e passa
à comunidade internacional é transformado, é reformado, no mau sentido da
expressão, pela “comunidade internacional”, porém depois volta ao Estado di­
retamente, porque a comunidade internacional o exige. “Vocês devem perseguir
estes crimes como eu persigo”, ou seja, com este direito penal com fobia da
impunidade, da ideologia da impunidade infinita, sem prescrição, sem anistia,
sem nenhuma outra forma de saída que não seja a pena e, em grande medida, a
pena a qualquer preço, algo que o Estado nacional não tinha, e o devolve para o
Estado nacional para que se ocupe destes crimes. Porém, pela autoridade moral
que possui essa suposta comunidade internacional e, por efeito de contágio, esse
direito penal de baixa qualidade em termos de proteção dos direitos do acusado,
passa rapidamente a crimes que não são contra o Direito Penal Internacional,
porque o poder penal é um só e questões que funcionam em um âmbito rapida­
mente se expandem a outro, sobretudo se se trata de reduzir direitos das pessoas
investigadas. Insisto, vejamos as lições da história, observem que isto sucede
inclusive no direito interno, que, um dia, por via de exceção, introduziu um or­
ganismo estranho - como o agente infiltrado - apenas para o âmbito do direito
penal de drogas. Como é algo que “está mal”, ele foi introduzido exclusivamente
para esse caso, porque se fosse algo que “está bem ”, funcionaria para todos os
delitos. Não obstante, estas instituições excepcionais rapidamente passam para
os demais delitos, apesar da regra que diz que não deveria ser assim. Quando
ocorre um atentado terrorista, começa-se a investigar quase que por direito na­
tural com agentes infiltrados, porque, se está previsto para drogas, como não vai
estar previsto para terrorismo, ainda que a lei não o diga? Portanto, o contágio da
derrogação dos direitos fundamentais é muito claro.
Qual é a síntese, agora que vimos esta análise crítica do que apresen­
tamos como tese em relação aos valores penais do Estatuto de Roma? Creio
que o poder penal internacional constitui um sistema punitivo que - como lhes
dizia - , a partir dos sistemas ocidentais e por meio de uma imposição de valo­
res penais ocidentais - e dos mais evoluídos - , sobe ao âmbito mundial desta

179
Daniel R. Pastor.

suposta comunidade internacional e dali baixa para ser aplicado inclusive em


países nos quais nem sequer existe a democracia ou nos quais esses valores não
vigem igualmente. Não obstante, a pretensão da comunidade internacional é que
isto vija para todos pelos estreitos laços, pelo patrimônio cultural comum, etc.
Portanto, esses valores baixam não apenas para os próprios países que possuem
este sistema - onde naturalmente não é esperável que se cometam crimes contra
o Direito Internacional (não creio que seja possível, por exemplo, que na Itália
se cometam estes crimes, ou no Canadá ou na Suécia, países que fazem parte
do Estatuto) - , mas também para os países nos quais eles não existem. Não se
promove, todavia, a instauração desses valores, apenas baixam os valores penais,
e não a implementação de condições econômicas e políticas que façam de um
sistema internacional um instrumento social plausível - também para o direito
interno dos demais países. Unicamente se aplica este sistema punitivo, criado
pela metrópole, aplica-se na metrópole e a partir da metrópole. Não digo que
isto seja uma sorte de neocolonialismo, creio que não se trata disso, de um neo-
colonialismo jurídico-penal. Não caio nesse exagero, apenas trato de chamar a
atenção acerca da probreza moral, axiológica, desta atitude das nações opulentas
que impulsionam o Direito Penal Internacional, que sustentam o sistema do Esta­
tuto e que o impõem como valor, como se frente a fatos gravíssimos e aberrantes
a resposta do mundo apenas pudesse ser penal para todas as calamidades que
ocorrem, especialmente no Terceiro Mundo e não nos países centrais.
Parece-me que assim entendido, poderia lhes dizer, como síntese desta
análise dialética, que o sistema do Estatuto poderia ser visto, na realidade, como
a última lição da hipocrisia ocidental. Muito obrigado por sua atenção.

180
A s p e c t o s P r o b l e m á t ic o s d a D e c is ã o d e C o n f ir m a ç ã o d e A c u s a ç õ e s
d a C o r t e P e n a l In t e r n a c io n a l n o C a s o B e m b a 1

Kai Am bos
Universidade de Gottingen, Alemanha

1. Introdução

A Corte Penal Internacional (daqui em diante: “CPI”) emitiu sua terceira


decisão2 de confirmação de acusações contra Jean-Pierre Benba Gombo3, ex-pre­
sidente do grupo rebelde M ouvement de Libération du Congo (MLC) e coman­
dante de sua ala militar, a Armée de Liberation du Congo (ALC)4. A decisão, em
princípio, deve ser considerada bem-vinda, já que consolida a jurisprudência da
CPI e gera novos pontos de discussão em questões importantes como, por exem­
plo, os crimes contra a humanidade (art. 7 do Estatuto da CPI5)6 e a responsabili­
dade do superior (art. 28)7. Para um observador externo, pode parecer que a Sala
tomou a decisão certa ao mudar, fundando-se na prova disponível (divulgada), a
acusação de coautoria, apresentada pela Promotoria (art. 25 (3) (a)), pela de res­
ponsabilidade do superior. Entretanto, existem alguns pontos técnico-jurídicos
muito específicos com respeito aos quais a Sala não analisou em profundidade,
ou incorreu em erros conceituais, ou tirou conclusões ilógicas. Estas questões
serão superficialmente analisadas aqui, não com espírito destrutivo, mas para
contribuir efetivamente com a melhora da futura jurisprudência.

1 Título original: “Aspectos Problem áticos de la decisión de confirmación de cargos de la C orte Penal
Internacional en el caso Bemba” . Tradução de Cleopas Isaías Santos. Revisão de Stephan Doering Darcie.
Tradução do inglês de Noelia Núnez, Buenos Aires, para o livro em homenagem a Eberhard Struensee (Maier/
Sancinetti/Schone, eds., Ad Hoc, Buenos Aires); originalmente publicado em Leiden Journal of International
Law, vol, 22 (2009) n° 4.
2 Sobre esta fase processual intermediária e suas funções, ver K. Ambos, Internationales Strafrecht (2° ed.,
2008), § 8, notas marginais (daqui em diante: “nm”) 23 e ss.; K. Ambos/D. Miller, Structure and function
of the confirm ation procedure before the ICC from a com parative perspective (2007), 7 International
Criminal Law Review 335.
3 Prosecutor vs. Jean-Pierre Bemba Gombo, ICC 01/05-01/08, Decision Pursuant to Article 61(7) (a) and (b) on
the Charges of the Prosecutor Against Jean-Pierre Bemba Gombo, 15 de junho de 2009 (Decisão em conformi­
dade com o disposto no artigo 61(7) (a) e (b) em relação às acusações contra Jean-Pierre Bemba Gombo, a partir de
agora: Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba).
4 A ALC ingressou na República Centroafricana (RCA) através da República Democrática do Congo
(RDC), aproximadamente em 26 de outubro de 2002, para apoiar o ex-presidente da República Centroafri-
cana, Ange-Félix Patassé, contra os grupos insurgentes e se retirou em 15 de março de 2003. Ver Decisão de
confirmação de acusações no caso Bem ba, supra, nota 2, parágs. 101,126; no que diz respeito à função de
Bemba no MLC, ver ibid., parág. 451 e ss.
5 As disposições sem indicação de fontes pertencem ao Estatuto (de Roma) da Corte Penal Internacional
(“Estatuto da CPI”).
6 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 71 e ss.
7 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 402 e ss.

181
Kai Ambos.

1.1. A Sala interpreta o termo “intencionalm ente” , no crim e contra a hum a­


nidade de tortura (art. 7 (2) (e)), como excludente do “conhecimento”, no sentido
do artigo 30 (3)8. Além disso, entende que resulta desnecessário demonstrar que
o autor era consciente da severidade do dano causado9. Considera que esta inter­
pretação “é coerente” com o parágrafo 4° da Introdução Geral aos “Elementos
dos Crimes”10, enquanto estabelece que, em relação aos “elementos que contém
juízos de valor”, não é necessário que o autor pessoalmente faça o respectivo ju ­
ízo de valor11. Com estas afirmações, a Sala, talvez inconscientemente, abre uma
caixa de Pandora. A primeira pergunta é o que quer dizer a Sala quando estabelece
que o termo “intencionalmente” exclui o conhecimento no sentido do artigo 30
(3). Entende o termo “intencionalmente” em um sentido puramente volitivo, ou
seja, como vontade, desejo ou propósito? Ou apenas pretende excluir a consciência
com respeito a uma circunstância requerida pela definição do crime? A primeira
interpretação colide com a segunda alínea do artigo 30 (2) (b), segundo a qual o
elemento subjetivo (“mental elem ent’ ou “intent”) também engloba a consciência
de que uma consequência “se produzirá no curso normal dos acontecimentos”. Se
a Sala tivesse desejado excluir o elemento cognitivo do dolo, teria que excluir não
só o 3° parágrafo, mas também a segunda alínea do 2° parágrafo (b) do artigo 30.
Além disso, a consciência com respeito a uma consequência, plasmada no 2° pará­
grafo (b), está contemplada da mesma forma também no 3° parágrafo, o que torna
ainda mais confusa a decisão da Sala, pois se tivesse desejado excluir unicamente
a consciência com respeito às circunstâncias, deveria ter dito expressamente. Se,
por outro lado, tivesse sido sua vontade excluir a consciência em geral (o aspecto
cognitivo do dolo), deveria ter excluído também a segunda alínea do 2° parágrafo
(b). De todo modo, as seguintes afirmações da Sala, com relação à ausência de
conhecimento sobre a severidade do dano, parecem indicar que o que realmente
queria era excluir o requisito de conhecimento sobre uma circunstância, in concre­
to, sobre a “severidade” como elemento (circunstância) normativo. Entretanto, a
referência aos “Elementos dos Crimes” neste ponto gera a impressão de que a Sala
confunde o requisito geral do conhecimento (elemento cognitivo do dolo) com o
problema específico do conhecimento em relação aos elementos normativos do
crime (denominados “elementos que requerem um juízo de valor” nos “Elementos
dos Crimes”). A Sala parece deixar passar despercebido que uma coisa é exigir,
como inter alia faz o artigo 30 (3), a consciência em relação às circunstâncias, e
outra, bastante diferente, é redefinir este requisito de consciência em relação aos
elementos normativos. Em outras palavras, o problema específico do conhecimen­

8 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 194.


9 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 194.
10 Informe da Comissão Preparatória da CPI, Ad., II Parte. Projeto de texto definitivo dos Elementos dos
Crimes, PCNICC/2000/1/Add. 2, 2 de novembro de 2000.
11 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 194.

182
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

to em relação a estes elementos não pode dar lugar à exclusão geral do requisito de
conhecimento em relação a todos os elementos (incluindo os descritivos).
E mais, se a Sala quis interpretar o termo “intencionalmente” em um
sentido puramente volitivo com base em seu significado literal, há de se dizer
que este significado é, no mínimo, ambíguo12. Ainda que o common law tradicio­
nal conheça delitos de intenção (specific intent crimes), exigindo um a especial
finalidade e um propósito, por exemplo, burglary13, os conceitos de “intent” ou
“intention” sempre foram entendidos tanto em sentido volitivo como cogniti-
vo14. O direito inglês moderno, todavia, inclui na definição da intenção, além do
propósito, “a previsão do virtualmente seguro” (“foresight o f virtual certainty”);
somente o significado central de “intent” ou “intention” está reservado ao dese­
jo, ao propósito, etc15. O Código Penal Modelo norte-americano, que em mui­
tos aspectos serviu de referência ao Estatuto da CPI, ainda que reconheça uma
diferença entre o “propósito” e o “conhecimento” (art. 2.02 (a)), também defi­
ne o primeiro em sentido cognitivo ao fazer referência ao “objeto consciente”
(“coscious o b ject’) da conduta e do resultado do autor16. Do mesmo modo, no
âmbito do civil law a distinção entre propósito e conhecimento, e, portanto, o sig­
nificado de “intention”, nem sempre esteve delimitado com precisão. No direito
francês, a expressão “intention crim inelle” nunca foi definida no Code Pénal.
N a doutrina, a “intention” é definida tanto em sentido volitivo17 como cogniti­
12 Para uma discussão sobre a “intenção de destruir” do crime de genocídio, ver K. Ambos, Some Prelim i-
n a ry Reflections on the Mens Rea R equirem ents of the C rim es of the IC C Status ando f the Elem ents
of Crimes, em L.C. Vohrah et. al. (eds.), M an's Inhumanity to Man. Essays in Honour o f Antonio Cassese
(2003), 11, p. 19 e ss.
13 G. Williams, Crim inal Law: The General Part (1961), p. 34. O delito de “burglary” refere-se, em sua
forma básica, à conduta de entrar ilegalmente em um edificio com a intenção de cometer um furto (cf. Sec. 9
do “Theft Act 1968”: “enters any building or part o f a building as a trespasser and with intent to commit any
such offence ...”, disponível em www.statutelaw.gov.uk - ressaltado pelo autor).
14 Ver G. Williams, The M ental E lem ent in C rim e (1965), p. 20 (“A intenção é um estado da consciência
que consiste no conhecimento de qualquer das circunstâncias requeridas, somado ao desejo de que o resul­
tado requerido se produza como consequência da conduta ou à previsão de que o resultado ocorrerá com
segurança”) ( “Intention is a state o f mind consisting ofknowledge o f any requisite circumstances plus desire
that any requisite result shall follow from one's conduct, or else o f foresight that the result will certainly
fo llo w ”). Ver também G.P. Fletcher, Rethinking Criminal Law (1978, reimpressão 2000), p. 440; M. Elewa
Badar, The m ental elem ent in the Rome Statute of the ICC: a commentary from a comparative criminal
law perspective (2008), 19 Criminal Law Forum (CLF), 473, p. 479.
15 A. Ashworth, Principles of C rim inal Law (6° ed., 2009), p. 170 e ss. (171); A.P. Simester/G.R. Sullivan,
C rim inal law: theory and doctrine (3° ed., 2007), p. 120 e ss. (121). No mesmo sentido, também I. Kugler,
D irect and oblique intention in the crim inal law (2002), p. 4 e ss.; distingue entre dolo direto de primeiro
grau e dolo direto de segundo grau.
16 A parte correspondente do artigo 2.02 (2) (a) enuncia: “Um indivíduo atua com o propósito de realizar um
elemento material de um delito quando: (i) se o elemento material contém a conduta realizada ou um resultado
dirigido à sua produção, é o objeto consciente do auto envolver-se em uma conduta dessa natureza ou produzir
dito resultado” ( “A person actspurposely with respect to a material element o f an offense when; (i) i f the ele­
ment involves the nature o f his conduct or a result thereof, it is his conscious object to engage in conduct o f that
nature or to cause such a result ...”) - ressaltado pelo autor-. Ver também Fletcher, supra nota 3, p. 440 e ss.
17 B. Bouloc, Droit pénal général et procédure pénale (16° ed., 2006), p. 238: “volonté tendue à dessein vers

183
Kai Ambos.

vo18. Sobre esta base, está traçada a distinção entre o dolus directus volitivo e o
dolus indirectus cognitivo19. No direito alemão e no espanhol, ainda que a tenta­
tiva volitiva do dolus directus de primeiro grau (“dolus specialis”, “intención”,
“Absicht”)20 pareça clara, não está livre de controvérsia21.

1.2. Similares inconsistências ou imprecisões conceituais podem ser encon­


tradas na análise que faz a Sala sobre o elemento subjetivo, de acordo com o arti­
go 3022. Em primeiro lugar, sua definição da mens rea como um “certo estado de
mente culpável” (“a certain state o f guilty m in d ’) ou “os elementos subjetivos”23
é puramente naturalista, pois limita a mens rea ao estado psicológico da m en­
te do autor ao momento do ato. Não parece haver lugar para considerações de
tipo normativas ligadas à censurabilidade (no sentido de Vorwerfbarkeit ou bla-
meworthiness) e, sobre esta base, à culpabilidade do autor (no sentido de Schuld
ou culpability) . De fato, mais adiante a Sala parece utilizar o termo “culpabilida­
de” em um sentido puramente psicológico-naturalista24. Portanto, daria a impres­
são de que a Sala desconhece a distinção teórica entre um conceito normativo e
um conceito psicológico da culpabilidade (“guilt”), que é tão essencial em uma
moderna e razoável (““ f a ir”) teoria do direito penal25. Em segundo lugar, a refe­
rência da Sala ao conceito de dolus, com relação ao artigo 3026, é, no mínimo,
desafortunada, um a vez que este conceito inclui, como acertadamente o adverte
a Sala21, o dolus eventualis, e este mesmo standard (junto com a recklessness e
outros standards mais inferiores) é, portanto, rechaçado28.

un but interdit par la loi pénale”(“vontade dirigida a realizar um ato proibido pela lei”).
18 Cf. Crim. 7 janvier 2003, Bull. n° 1: “la connaissance ou la conscience chez l ’agent q u ’il accomplit un acte
illicite” (“o conhecimento ou a consciência do agente de que comete um ato ilegal”). Ver também E. Garçon,
Code pénal annoté, art. 1, n° 77; R. Merle/A. Vitu, Traité de droit crim inal, vol. 1 (7° ed., 1997), n° 579.
19 J. Pradel, D roit pénal général (16° ed., 2006), p. 463; C. Hennau/J. Verhaegen, D roit pénal général (3°
ed., 2003), n° 350 e ss
20 C. Roxin, Strafrecht-Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre, Vol. 1 (4° ed., 2006), §
12, nm. 7 e ss.; S. Mir Puig, Derecho penal parte general (7° ed., 2006), p. 244, nm. 82-83.
21 Para uma parte da doutrina espanhola, a “intención” deve ser entendida como dolus em um sentido geral ou
como compreensiva de ambas as formas de dolus directus (desejo e conhecimento). Ver, por um lado, J. Cerezo
Mir, Curso de derecho penal espanol, parte general II. Teoríajurídica del delito (1998), p. 153, por outro, D.M.
Luzon Pena, Curso de derecho penal; parte general (2004), p. 416.
22 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 352 e ss.
23 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 351.
24 Ver, por exemplo, Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 368, onde se
equipara com o dolus.
25 Sobre esta importante distinção, ver G.P. Fletcher, The gram m ar of crim inal law (2007), p. 307 e ss., p.
319 e ss.; com relação ao direito penal internacional, ver K. Ambos, Rem arks on the G eneral P a rt of Inter­
national Crim inal Law (2006), 4 Journal o f International Criminal Justice (JICJ) 660, pp. 667-68; para uma
explicacão sobre a estrutura e teoria do delito, ver K. Ambos, Toward a universal system of crime; Comments
o f George Fletcher 's Grammar o f Criminal Law (2007), 28 Cardozo Law Review 2647, p. 2648 e ss.
26 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 357.
27 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 357.
28 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 360.

184
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

Com efeito, esta é a essência da análise da Sala em relação ao artigo 30.


Se bem me lembro, no resultado, com a exclusão do dolus eventualis (a diferença
da Sala de Questões Preliminares no casa Lubanga)29 e a recklessnes do artigo 30
- de fato, sustentei anteriormente que, no caso do dolus eventualis, o autor não é
consciente, como exige o art. 30 (2) (b), de que um a determinada consequência
ocorrerá no curso normal dos acontecimentos30 e que isso se assemelha, a fortio-
ri, muito mais com a recklessness, a qual também exige a consciência quanto ao
risco de uma consequência negativa31 - , estimo que alguns esclarecimentos são
necessários. Ainda que os travaux respaldem um enfoque restrictivo do artigo
3032, somente são “meios de interpretação complementares” (cfr. art. 32 da Con-
vencão de Viena sobre Direito dos Tratados) e, portanto, não prevalecem quando
a interpretação literal é clara ou diferente. Por sua vez, a interpretação literal se
baseia na compreensão do conceito de dolus eventualis. Com respeito a isto,
não se deve deixar passar despercebido o fato de que o standard “comumente
acordado” (“commonly agreea” ) ao qual se refere a Sala33 não é, em absolu­
to, o único. De fato, existem outras noções mais cognitivas do dolus eventualis
(que exigem consciência ou segurança em relação a uma consequência)34 e estas
também poderiam entrar no âmbito do artigo 30. Por este motivo, é uma petitio
principii que a Sala justifique sua leitura restritiva do artigo 30 com a regra da lex
stricta do artigo 22 (2)35, já que, ao invocar esta regra contra uma leitura ampla
do artigo 30, pressupõe o que deve ser demonstrado, é dizer, que o artigo 30 deve
ser entendido em um sentido restingido (e portanto: estrito).
Ao contrário, no caso da recklessness, em geral, há acordo em que esta se
localiza entre o dolus eventualis e a culpa consciente (bewufíte Fahrlüssigkeit)36:
em termos cognitivos, o autor que atua no sentido da recklessness possui, no
máximo, “consciência do risco”, a qual, por um lado, delimita claramente a re-

29 Ver Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, ICC-01/04-01/06, Decision on the confirm ation of charges, 29
de janeiro de 2007, parág. 349 e ss. (352) (Decisão de confirmação de acusações).
30 K. Ambos, General principles of crim inal law in the Rome Statute (1999), 10 CLF 1, pp. 21-22; id., supra
nota 11, pp. 20-1; id., Der Allgemeine Teil des Võlkerstrafrechts (2002/2004), p. 771; id., La parte general dei
derecho penal internacional (2005/2006), pp. 398-99; id., Internationales Strafrecht, supra nota 1, § 7, nm. 67,
com mais referências na nota 297. Para uma interpretação similar, ver Decisão de confirmação de acusações no
caso Bemba, supra nota 2, parág. 362 (a palavra “ocorrerá” lida junto com “no curso normal dos acontecimentos”
indica um standard próximo à segurança).
31 K. Ambos, G eneral principles, supra nota 29, p. 21; id., Allgemeiner Teil, supra nota 9, p. 771; id., Parte
general, supra nota 29, pp. 398-99.
32 Ver análise detalhada em: Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 364 e ss.
33 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 363.
34 Sobre a discussão na Noruega e Finlândia, ver a referência em K. Ambos, supra nota 11, pp. 20-21, incluída
a nota 37; também id., Allgemeiner Teil, supra nota 9, p. 771. Acerca das diferentes teorias do dolus eventualis,
ver Roxin, supra nota 9, § 12, nm. 35 e ss.
35 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 369.
36 Ver o trascendente artigo de T. Weigend, Zwischen Vorsatz und Fahrlüssigkeit (1981), 93 Zeitschrift fü r die
gesamte Strafrechtswissenschaft (ZStW), pp. 657, 673 e ss.

185
Kai Ambos.

cklessness da culpa37, mas, por outro, não deve ser confundida com o requisito
da consciência nas teorias cognitivas do dolus eventualis. Por este motivo, não
é correto que a Sala equipare a chamada recklessness subjetiva (Cunningham
recklessness do direito inglês)38 com o dolus eventualis39; ela pode estar mais
próxima deste que da culpa consciente, mas eles não podem ser colocadas no
mesmo patamar de igualdade.

1.3. A outra questão, talvez a mais importante da decisão, refere-se à forma


correta de responsabilidade que há de se aplicar. A substituição da acusação de
coautoria , apresentada pelo membro da Promotoria, pela de responsabilidade
do superior é convincente no resultado, mas sua argumentação não é comple­
tamente satisfatória. No que diz respeito à coautoria, a Sala segue a teoria do
“domínio do fato”40, mas depois, surpreendemente, somente se concentra nos
requisitos subjetivos e sustenta que, como no caso estes não se encontram satis­
feitos, não é necessário examinar os requisitos objetivos41. Tal prescindibilidade
da análise dos requisitos objetivos de uma forma de responsabilidade (ou, mu-
tatis mutandi, da definição do crime) só se justifica se os requisitos subjetivos,
sem qualquer dúvida, estiverem ausentes. Claramente, aqui este não é o caso;
de fato, como se verá adiante, os requisitos subjetivos da coautoria resultam
bastante controvertidos. A Sala distingue três requisitos subjetivos que devem
ser satisfeitos de maneira cumulativa, a saber, (i) a intenção e o conhecimento
do coautor em relação aos crimes cometidos, (ii) sua consciência e aceitação
em relação à realização dos elementos materiais mediante a execução do plano
comum e (iii) sua consciência em relação às circunstâncias de fato que requerem
o controle conjunto42. Ainda que o primeiro requisito não seja problemático -
claramente, o coautor, ao ser um autor, de acordo com o artigo 30, deve atuar
por si mesmo com intenção e conhecimento em relação aos crimes subjacentes
- , os outros dois requisitos merecem ser estudados com maior atenção. Enquan­
to que o segundo requisito - da mesma forma que o primeiro - deriva tanto da
37 Cfr. K. Ambos, Allgemeiner Teil, supra nota 9, pp. 700-01, com mais referências; también K. Ambos, Supe­
rio r responsibility, en A. Cassese/P. Gaeta/J. Jones (eds.), The Rome Statute of the International C rim inal
C o u rt: A Commentary, 3° vol. (2002), 823, pp. 867-68.
38 Para uma discussão mais ampla e outras referências, ver Weigend, supra nota 5, p. 674 e ss. (687); J. Wat-
zek, Rechtfertigung undEntschuldigung im englischen Strafrecht (1997), p. 46; American Law Institute, Model
Penal Code, vol. I (1985), p. 236 e ss.
39 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág 357, incluída a nota 448. A Sala,
neste ponto, só repete as imprecisões da jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para ex Yugoslavia,
ver referências ibid.
40 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 348. Com efeito, neste ponto a
Sala seguiu a Decisão de confirmação de acusações no caso Lubanga, supra nota 8, parág. 330 e ss. e Prose-
cutor v. Germain Katanga and Mathieu Ngudjolo/Chui, ICC-01/04-01/07, Decision on the confirm ation of
charges, 30 de setembro de 2008, parág. 480 e ss. (Decisão de confirmação de acusações).
41 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 350.
42 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 351.

186
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

decisão de confirmação de acusações do caso Lubanga, como da do caso Katan-


ga/Chui43, o terceiro é reconhecido inequivocamente em Lubanga44, mas não em
Katanga/Chui45. Nesta decisão, o referido requisito é analisado unicamente em
relação à coautoria p o r produto de outro, é dizer, em relação à autoria mediante
a comissão por meio de outra pessoa, tanto que a Sala de Questões Preliminares
I claramente o exclui da “simples coautoria”46. Este enfoque é correto, já que este
(terceiro) requisito exige muito do coautor, cuja forma de controle é estrutural­
mente diferente da do autor mediato: enquanto que o último exerce controle so­
bre os autores materiais e deve ser consciente de sua posição hierárquica, o co-
autor só exerce controle sobre o crime junto com outro(s) coautor(es). Portanto,
no primeiro caso existe uma relação vertical entre o autor mediato e o autor m a­
terial, enquanto que no último esta relação é horizontal. Pode haver uma combi­
nação no caso de um controle conjunto sobre os autores materiais, por exemplo,
uma relação horizontal-vertical mista quando dois ou mais superiores exercem o
controle conjunto dos autores materiais. Com efeito, este foi o caso na decisão de
Katanga/Chui (considerou-se que Katanga e Chui foram coautores por meio dos
autores materiais) e é também, estruturalmente, a situação em Bemba, desde que
seja possível considerar que Bemba e Patassé, como coautores, atuaram conjun­
tamente através de seus subordinados, como autores diretos47.
No caso, a Sala conclui que Bemba nem ao menos reúne o primeiro
requisito subjetivo, é dizer, que não era consciente de que os crimes seriam co-
metidos48. Ainda que esta pudesse ser a decisão correta em função do standard
probatório do artigo 61 (7) (“motivos fundados para acreditar”) e os fatos conhe­
cidos - com efeito, não foi apelada pelo membro da Promotoria49 - , ela é difícil
de compatibilizar com as conclusões posteriores da Sala em relação à responsa­
bilidade do superior, ou seja, que Bemba “sabia” ou inclusive “realmente sabia”
( “actually knew ”) que suas tropas estavam cometendo ou se propunham a co­
meter os respectivos crimes50. Alguém poderia se perguntar como é possível que
a mesma pessoa possa atuar, por um lado, sem conhecimento (como coautor) e,
43 Decisão de confirmação de acusações no caso Lubanga, supra nota 8, parágs. 349 e ss., 360 (ii); Decisão de
confirmação de acusações no caso Katanga, supra nota 9, parág. 533.
44 Decisão de confirmação de acusações no caso Lubanga, supra nota 28, parágs. 366-67.
45 Decisão de confirmação de acusações no caso Katanga, supra nota 39, parág. 534-35.
46 Decisão de confirmação de acusações no caso Katanga, supra nota 39, parág. 535 (“o último requisito
não se aplica...”).
47 A questão foi apresentada pela defesa, ver Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota
2, parág. 345 (“autor mediato”).
48 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 372, 400-01.
49 Ver Prosecutor vs. Jean-Pierre Bemba Gombo, ICC 01/05-01/08, Prosecution’s application for leave
to appeal the decision pursu an t to article 61(7)(a) and (b) on the charges against Jean-P ierre Bemba
Gombo, 22 de junho de 2009 (Solicitação de autorização para apelar a decisão de acordo com o disposto no
artigo 61(7) (a) e (b) em relação às acusações contra Jean-Pierre Bemba Gombo, apresentada pelo membro da
Promotoria, daqui em diante: Solicitação de autorização para apelar apresentada pelo membro da Promotoria).
50 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 478 e ss. (478, 489).

187
Kai Ambos.

por outro, com conhecimento (como superior) em relação aos mesmos crimes.
A Sala não ignora este impasse lógico, mas sua intenção de superá-lo, propondo
categorias de conhecimento diferentes para a coautoria e a responsabilidade do
superior, com base no argumento segundo o qual o elemento cognitivo, tal como
se define no artigo 30, só se aplica ao artigo 2551, é claramente incorreta e não
tem sustentação alguma, em nenhuma autoridade (judicial ou doutrinária). Com
efeito, o artigo 30 estabelece uma definição geral dos aspectos cognitivo e voli-
tivo do elemento subjetivo (“mental element”) que é aplicável a todos os crimes
do Estatuto da CPI “salvo disposição em contrário”, ou seja, salvo se estiver
prevista um a categoria diferente (inferior) (como, por exemplo, para o artigo 28
o standard “deveria ter tido conhecimento” - “should have known”)52. O fato de
que, em virtude do artigo 28, o aspecto subjetivo da responsabilidade do superior
seja distinto ao do artigo 25 (3), porquanto se refere aos crimes dos subordina­
dos (e não a seus próprios crimes)53, carece de transcendência neste ponto. Por
outro lado, as afirmações da Sala, neste contexto, de que no caso do artigo 28
o superior não participa do cometimento do delito54, são muito controvertidas e
pressupõe um a profunda análise da estrutura dogmática do artigo 28, o que não
foi realizado pela Sala55.
Ainda que o terceiro dos requisitos da Sala, como se explicou anterior­
mente, nem sequer encontre sustento inequívoco na própria jurisprudência da CPI
e pareça estabelecer um standard demasiado alto para a coautoria, o segundo re­
quisito - consciência e aceitação em relação à realização dos elementos materiais
mediante a execução do plano comum - , em verdade, é uma consequência da
combinação dos conteúdos objetivos-subjetivos requeridos pelo plano comum.
Ainda que a jurisprudência da CPI, até o momento, tenha dado a este requisi­
to um significado bastante objetivo56, claramente também possui uma tendência
subjetiva, desde que o plano comum unicamente constitua um a decisão potencial

51 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 479 (“distinção entre o co­
nhecimento requerido, de acordo com o artigo 30 (3) [é dizer, aplicável ao artigo 25] e o artigo 28 (a )...”).
52 Cfr. G. Werle/F. Jessberger, ‘Unless otherwise provided’; Article 30 o f the ICC Statute and the mental
element o f crimes under International criminal law (2005), 3 JICJ 35.
53 Cfr. Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 479: “De acordo com o dis­
posto no artigo 30 do Estatuto, a pessoa é consciente de que sua própria conduta produzirá um resultado [...]
entretanto este não é o caso do artigo 28, onde a pessoa não participa na prática do crime (é dizer, o crime não é um
resultado direito de sua própia conduta)” (“Under article 30 ofthe Statute the person is aware o f the occurrence o f
a result o f his own act [ . ] while this is not the case with article 28, where the person does not participate in the
commission o f the crime (i.e., the crime is not a direct result o f his own act”) - ressaltado pelo autor.
54 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 479 (ver supra nota 52).
55 A Sala se limita a uma breve e profunda afirmação no parág. 405. Para minha opinião, ver K. Ambos,
in: Cassese et al., supra nota 36, p. 850 e ss.; id., Allgemeiner Teil, supra nota 29, p. 666 e ss.; id., Parte
geral, supra nota 9, p. 295 e ss.
56 Ver Decisão de confirmação de acusações no caso Lubanga, supra nota 8, parág. 343 e ss. (ainda que se exija
consciência do risco de que, mediante a execução do plano se cometerá um crime); Decisão de confirmação de
acusações no caso Katanga, supra nota 39, parágs. 522-23 (estritamente objetivo).

188
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

dos coautores (Tatentschlufi) de cometer conjuntamente o crime. Esta decisão


somente se manifesta no mundo externo mediante a implementação do plano, é
dizer, a execução conjunta (funcional) do crime planejado. Antes desta execução
conjunta, que constitui, de fato, o segundo requisito (objetivo) da coautoria57, o
plano comum só pertence à esfera interna das pessoas e, portanto, constitui um es­
tágio prévio à lesão do bem jurídico (um delito incompleto no sentido da “inchoate
offence”), cuja punibilidade pressupõe uma codificação específica, por exemplo,
como a conspiração ou o acordo para cometer um crime (Verbrechensverabre-
dung, § 30 inc. 2, 3a alínea, do Strafgesetzburch alemão).

1.4. Em relação à responsabilidade do su perior , ainda que as considera­


ções da Sala, em geral, resultem convincentes, tenho duas pequenas objeções.
Em primeiro lugar, a Sala afirma convincentemente - em explícita contradição
com a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a ex Yugoslavia58
- que deve existir algum tipo de causalidade entre a falta de supervisão do
superior e os crimes subjacentes dos subordinados59. A Sala, no resultado, se­
gue a Risikoerhohungstheorie (“teoria do incremento do risco”, “Theory o f
risk aggravation or increase”, “Théorie du risqué aggravé”, a partir de agora:
“teoria do risco”), segundo a qual é suficiente que a falta de intervenção do
superior tenha incrementado o risco de que os subordinados cometam os cri-
m es60. A Sala chega a esta conclusão depois de reconhecer os problemas da
causalidade nos casos de omissão61. De fato, ao que tudo indica, vislumbra
na teoria do risco a solução - aparentemente lógica (“Portanto”, “[T]herefo-
re”) - a estes problemas. Além disso, parece ver a teoria do risco como algo
completamente diferente de um a teoria da causalidade62. Neste ponto, pos­
so estar realizando uma leitura equivocada das considerações da Sala, mas
creio que teria sido menos confuso se houvesse separado com mais clareza
suas (breves) considerações sobre a demonstração da causalidade nos ca­
sos de omissão da solução que finalmente adota. Dado que as omissões não

57 Ver Decisão de confirmação de acusações no caso Lubanga, supra nota 28, parág. 346 e ss. (“contribui­
ção essencial de cada um dos coautores”); Decisão de confirmação de acusações no caso Katanga, supra
nota 39, parág. 524 e ss.
58 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 423, com mais referências
na nota 550.
59 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 420 e ss. (423). Para uma regra
de direito consuetudinário neste sentido, ver o trabalho recente de G. Mettraux, The law of comm and respon-
sibility (2009), pp. 83 e ss. (87), 263.
60 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 425.
61 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 425 (“ ... o resultado de uma
omissão não pode ser determinado empiricamente com se g u ran ç a . não é apropriado para predizer exatamente
o que havia ocorrido s e . ”).
62 Antes de sua conclusão (“Portanto” - “[T]herefore”-), a Sala assinala que: “[N]ão há nexo causal direto que
necessite ser d e m o n stra d o .” (Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 425).

189
Kai Ambos.

podem originar “energia causal”, e, portanto, devem determinar-se a partir de


um conceito normativo (em vez de naturalístico) da causalidade63, não prede­
terminam o conceito de causalidade aplicado em últim a instância nestes casos.
Com efeito, é logicamente possível aplicar um exame estrito da conditio sine
qua non invertida ou o “but fo r test”; de fato, a Sala realiza este teste, mas pa­
rece considerá-lo inaplicável nestes casos64. Não obstante, em últim a instância,
é um a questão de política se alguém prefere a teoria do risco ou o teste da cau­
salidade mais estrito65. Em qualquer caso, a teoria do risco também constitui
um teste da causalidade, no sentido de que supõe que o incremento do risco foi,
ao menos, um a das causas do resultado lesivo66. No entanto, claramente é mais
simples demonstrar que uma determinada conduta - seja uma ação ou uma
omissão - aumentou o risco com vistas à produação de um resultado lesivo, do
que demonstrar que esse resultado foi causado diretamente por aquela.
M inha segunda inquietude refere-se à afirmação da Sala, por meio de
obiter, de que o criterio “tinha razões para sa b er” ( “had reason to kn o w ”)
plasmado nos Estatutos do Tribunal Penal Internacional para a ex Yugoslavia,
do Tribunal Penal Internacional para Ruanda e da Corte Especial para Serra
Leoa é diferente do standard “deveria ter tido conhecimento ” ( “should have
know n”) do artigo 2867. De fato, com bastante clareza se infere dos traveaux,
referidos às disposições sobre a responsabilidade de mando (desde o Protocolo
Adicional I de 1976 até as quatro Convenções de Genebra de 1949), que ambas
formaluções constituem essencialmente categorias de culpa68. Por exemplo,
o Informe do Secretario Geral da ONU sobre o estabelecimento do Tribunal
Penal Internacional para a ex Yugoslavia descreve o standard “tinha razões
para saber” como “imprudência crim inal”69 e o Código Penal Modelo norte-
americano se refere ao “deveria ter tido conhecimento” no marco da imprudên­
63 K. Ambos, in: Cassese et al., supra nota 6, p. 860.
64 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 425 (“. há de aplicar-se 'but for
test9, de forma que, se não tivesse sido porque o superior não cumpriu com seu dever de tomar todas as medidas
necessárias e razoáveis para prevenir os crimes, esses crimes não teriam sido cometidos por suas forças”).
65 Ver, por exemplo, sobre a “teoria da probabilidade” R. Arnold, in: O. Triffterer, C om m entary on the Rome
Statute of the ICC (2° ed., 2008), artigo 28, nm. 109; sobre uma “causalidade hipotética” estrita (hypothetische
Vermeidungskausalitãt) T. Weigend, § 4 Verantw ortlichkeit m ilitarischer Befehlshaber und anderer Vor-
gesetzter, en: W. Joecks/K. Miebach (eds.), Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band 6/2 Nebens-
trafrecht III/Volkerstrafgesetzbuch [VStGB] (2009), § 4 VStGB, nm. 53 (pp. 528- 29).
66 Ver o trabalho recente de Mettraux, supra nota 8, p. 87, define a causalidade como “um fator que contribui
significadamente - ainda que não seja necessariamente o único - . ”.
67 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 434.
68 Para uma discussão e mais referências, ver K. Ambos, in: Cassese et al., supra nota 6, p. 865 e ss. Para um
trabalho mais recente, ver Arnold, supra nota 64, nm. 97. Conclui que, “sem prejuízo de uma redação ligei­
ramente distinta, a fórmula aplicada segue sendo se um indivíduo com base na informação disponível tinha
razões para saber no sentido do Prot. Ad. I” ( “notwithstanding a slightly different wording, the applicable test
is still whether someone, on the basis o f the available information, had reason to know in the sense o f Add.Prot.
I ”) - o ressaltado pretence ao original.
69 S/RES 827 (1993), 25 de maio de 1993, reimpresso em 32 ILM 1203 (1993), parág. 56.

190
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

cia10. Se realmente se encontrasse um a diferença entre estas duas categorias,


considerando que o standard “deveria ter tido conhecimento” está “um passo
abaixo” do standard “tinha razões para saber”11, a CPI deveria fazer um a in­
terpretação restritiva para colocar o primeiro no mesmo patam ar do último12.

1.5. Em relação à prática de acum ulação de acusações 13, ou seja, a acusação


múltipla pela mesma conduta, a Sala só a considera possível, seguindo o teste de
Celibici do Tribunal Penal Internacional para a ex Yugoslavia,14 quando existem
“crimes diferentes”, isto é, se “cada um ” dos crimes em questão “requer ao me­
nos um elemento material adicional que não esteja contido no outro”15. Por sua
vez, nos termos da teoria do concurso de delitos (concursus delictorum76, con-
cours de qualifications/d’infractions, concurrence o f offences, Konkurrenzen)11
isto significa que a acumulação de acusações é admissível quando existe uma
“verdadeira” concorrência (concours idéal; concurso ideal, Idealkonkurrenz),

70 De acordo com o artigo 2.02 (2) (d) do Código Penal Modelo, uma pessoa atua imprudentemente “quando
devia ser consciente de um risco substancial e injustificável.” ( “when he should be aware o f a substantial
and unjustifiable risk...”).
71 Mettraux, supra nota 8, p. 210 (“goes one step below”).
72 Cfr. Mettraux, supra nota 58, p. 212; ver também Arnold, supra nota 67.
73 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 199 e ss.
74 Prosecutor v. Delalic et al., App. Judgment, 20 de fevereiro de 2001, Causa n° IT-96-21-A, parág. 412
(Sentença da Sala de Apelações), citada na Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, na nota 277.
Para uma análise da questão, ver A. Bogdan, Cum ulative charges, convictions and sentencing a t the Ad Hoc
International Tribunals for the Form er Yugoslavia and R w anda (2002), 3 Melbourne Journal o f Interna­
tional Law 1, p. 20 e ss.; N. Valabhji, Cum ulative convictions based on the same acts un d er the Statute of
the ICTY (2002), 10 Tulane Jo u rn al of International and C om parative Law 185, p. 191 e ss.; H. Azari, Le
critère Celebici du cum ul des déclarations de culpabilité en droit pénal international (2007), 1 Revue de
Science Criminelle et de droit penal comparé, 1, p. 4 y ss.
75 Prosecutor v. Delalic et al., supra nota 144, parág. 202. O mesmo teste, conhecido no common law como
‘test deBlockburgef (ver S. Walther, C um ulation of offences, in: A. Cassese et al., supra nota 6, 475, p. 490;
C.-F. Stuckenberg, Multiplicity of offences; concursus delictorum, in: H. Fischer/C. KreB/S.R. Lüder (eds.),
International and national prosecutions u n d e r international law (2001), 559, p. 581; Bogdan, supra nota
144, p. 12; Azari, supra nota 73; previamente havia sido aplicado pelo Tribunal Penal Internacional para a
ex Yugoslavia em Prosecutor v. Kupreskic, Trial Judgment, 14 de janeiro de 2000, IT-95-16-T, parág. 668 e
ss. (Decisão da Sala de Primera Instância) e pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda em Prosecutor v
Kayishema and Ruzindana, Trial Judgment, 21 de maio de 1999, ICTR 95-1-T, parág. 636 e ss. (Decisão da
Sala de Primera Instância), ver Walther, op. cit., p. 489 e ss.; Stuckenberg, op. cit., p. 579 e ss.; Bogdan, supra
nota 144, pp. 9 e ss., 17 e ss.; Valabhji, supra nota 144, pp. 188-89 e ss.; sobre a decisão da Sala de Apelações
no caso Kupreskic, ver: F.M. Palombino, Should genocide subsume crimes against hum anity, 3 JICJ 778
(2005); sobre a decisão no caso Kayishema/Ruzindana, ver K. Ambos/S. Wirth, Com m entary, em: A.Klip/G.
Sluiter (eds.), A nnotated leading cases of International C rim inal T ribunals, vol. 2, The International Cri­
minal Tribunal fo r Rwanda 1994-1999 (2001), p. 701 e ss.).
76 “Delictorum”, não “delictiorum” (genitivo plural de ‘delictum', lat. = delito) como incorretamente é citado em
Bogdan, supra nota 144, p. 1 e ss. (ademais, refere-se a “poene” em lugar de “poena”, p. 31).
77 Para a estrutura principal, ver Ambos/Wirth, supra nota 145, p. 701 e ss. Para uma extraordinária análise
estrutural e profunda, ver Stuckenberg, supra nota 145, p. 559 e ss.; sobre os diferentes tipos de concours,
desde uma perspectiva comparativa, ver I. Hünerbein, Straftatkonkurrenzen im Volkerstrafrecht (2005), p. 30
e ss. (alemão e common law); S. Walther, supra nota 145, p. 478 e ss. (perspectivas alemã e anglo-americana);
Azari, supra nota 73, p. 14 e ss. (Francia y EE.UU.).

191
Kai Ambos.

ou seja, uma situação onde a mesma conduta realiza vários delitos distintos78;
isto há de ser distinguido de um a “fusão” ou de um a aparente ou “falsa” con­
corrência (concours apparent; concurso aparente; Gesetzeskonkurrenz/-einheit)
onde um delito (o delito “menor”) está contido completamente no outro (o delito
“maior”), é dizer, está subsumido em um delito maior ou este delito “conso­
m e” o delito menor (consunção ou inclusão/especialidade)79. Este paralelismo
com a doutrina dos concours somente foi traçado implicitamente pela Sala, ao
considerar que a tortura (como crime contra a humanidade) e os ultrajes contra
a dignidade da pessoa (como crime de guerra) se encontram “completamente
subsumidos” na violação (como crime contra a humanidade)80, posto que este ato
requer, em comparação com a tortura, só um elemento adicional, a saber, o ato
de penetração81, e, em comparação com os ultrajes, “em essência os elementos
constitutivos da força ou coerção”82. Ainda que, em princípio, isto seja correto83,
a Sala teria sido mais clara se tivesse explicado que a teoria do concurso é a outra
cara da moeda da acumulação de acusações84. De qualquer modo, ainda que a
violação possa ser “a qualificação jurídica mais apropriada”85 nos casos de tortu­
ra em que existe um ato (adicional) de penetração, quando este elemento falta, o
membro da Promotoria deve imputar essas condutas como tortura86.
O enfoque restritivo da Sala sobre a acumulação de acusações há de
ser bem-vindo. A acumulação de acusações, que constitui um dos legados do
common Law, aplicado pelos Tribunais A d Hoc87, amplia desnecessariamente a
acusação da promotoria e gera um a situação complexa para a defesa. De fato, é
incompatível com as funções de informação e delimitação das regras para acusar

78 O concours idéal deve ser distinguido do - inaplicável aqui - concours réel (concurso real, Realkonkurrenz)
onde várias condutas independentes entre si se enquadram em (diferentes) tipos penais. Ver Ambos/Wirth,
supra nota 145, p. 703.
79 Para uma discussão conceitual profunda, ver Stuckenberg, supra nota 145, p. 586 e ss.; ver também Azari,
supra nota 73, p. 4, onde o teste Celibici se identifica com o princípio de “specialité réciproque”; sobre este
princípio, ver também Palombino, supra nota 145, p. 782 e ss.
80 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 205, 312.
81 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 204.
82 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 310.
83 Para um ponto de vista diferente (ainda que sem uma análise detalhada), ver Solicitação de autorização
para apelar apresentada pela Promotoria, supra nota, parágs. 16, 17 (em relação à violação e à tortura).
84 Sobre a interdependência, ver também Stuckenberg, supra nota 145, pp. 589-90, 594, 604 (589: “onde não
é possível aplicar condenações acumulativas, não tem sentido permitir a acumulação de acusações” “Where
cumulative convictions cannot be had, it makes no sense to allow cumulative charges”); Walther, supra nota
145, p. 493; Bogdan, supra nota 144, p. 3. A solicitação de autorização para apelar apresentada pelo membro da
Promotoria não analisa esta interdependência, supra nota, parág. 16, argumentando que a autoridade invocada
pela Sala de Questões Preliminares não proíbe a acumulação de acusações, mas de condenações.
85 Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 204.
86 Ver in casu Decisão de confirmação de acusações no caso Bemba, supra nota 2, parág. 206 e ss.
87 Sobre a origem do common law, ver Bogdan, supra nota 144, pp. 2-3, 31 (“o enfoque pragmático do common law
sobre a acumulação de acusações”). Vale a pena recordar que inclusive a Sala de Apelações no caso Celibici aprovou
a prática (cfr. Prosecutor v. Delalic et al., supra nota 144, parág. 400).

192
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

(“charging”)88, posto que implica uma “sobrecarga” imprecisa que torna difícil,
se não impossível, a preparação adequada do caso (qual?) para a defesa. Ain­
da que a acumulação de acusações possa considerar-se indispensável desde a
perspectiva da Promotoria, corre-se o risco de “perder” os crimes pelos que não
tenham acusado (adequadamente). Tal risco não existe se o juiz tem a última pa­
lavra sobre a qualificação jurídica “correta”, como, aliás, deve ser em um sistema
governado pelo princípio iura novit curia. Como se explicará no próximo tópico,
este é o caso do procedimento da CPI.

1.6. Em relação à mudança da forma de responsabilidade, surgem duas per­


guntas relacionadas com a autoridade em função do disposto no artigo 61 (7)
(c) (ii). Em primeiro lugar, tem a Sala de Questões Preliminares algum tipo de
atribuição para modificar proprio motu um a acusação apresentada pelo membro
da Promotoria? Em segundo lugar, e em caso afirmativo, essa atribuição pode
estender-se para além de uma mudança no crime, e também alcançar a forma de
responsabilidade? Desafortunadamente, a Sala passa ao largo destas perguntas
e modifica a forma de responsabilidade através de judicial fiat. É interessante
destacar que a Sala de Questões Preliminares III (cujos juízes, Trendafilova e
Kaul, também compuseram a Sala de Questões Preliminares II que decidiu em
Bemba), com acerto, reconheceu anteriormente que o artigo 61 (7) (c) (ii) - que
autoriza a Sala de Questões Preliminares unicamente a “pedir ao membro da
Promotoria que considere” a possibilidade de modificar uma acusação - “está
formulado de uma maneira que concede discricionariedade ao membro da Pro-
motoria para decidir se modifica ou não uma acusação relevante” (subparágrafo
(ii))89. Além disso, a Sala deixou claro que “não pretende afetar as funções do
membro da Promotoria no que diz respeito à formulação das acusações apropria­
das nem assessorar o membro da Promotoria sobre a melhor maneira de prepa­
rar o documento que contém as acusações”90. A inda que estas palavras sejam
claras, o que não resulta claro é se a Sala de Questões Prelim inares III se
refere exclusivam ente à base fática das acusações ou se tam bém se refere à
qualificação jurídica destes fatos. Se este último for o caso, não poderia ter
modificado a form a de responsabilidade com o fez na decisão sob análise.
Seria dem asiado form alista argum entar que a Sala, com efeito, não m odi­
ficou as acusações no sentido do artigo 61 (7) (c) (ii), mas que somente se
negou a confirmar (subparágrafo (b)) a acusação de coautoria, e, em segundo
lugar, confirmou a acusação de responsabilidade do superior (subparágrafo

88 Sobre estas funções, ver Walther, supra nota 74, pp. 477-78.
89 Prosecutor e Bemba, Decision adjourning the hearing pursuant to article 67 (7) (c) (ii) o f the Rome Statute,
3 de março de 2009, (ICC-01/05-01/08-388), parág. 38 (Decisão sobre o adiamento da audiência em conformi­
dade com o disposto no artigo 67 (7) (c) (ii) do Estatuto de Roma).
90 Ibid., parág. 39.

193
Kai Ambos.

(a)). Em últim a instância, com esta dupla operação a Sala m udou a form a de
responsabilidade, e, portanto, modificou a acusação respectiva.
De todo modo, a autoridade da Sala de Questões Preliminares, segundo o
disposto no artigo 61 (7), deve ser analisada desde a perspectiva da relação entre
o membro da Promotoria e as Salas, de acordo com o sistema processual da CPI.
Em outras oportunidades, sustentei que o princípio iura novit curia, plasmado
na norma 55 do Regulamento da Corte, que brinda a Sala de Primeira Instância
com uma ampla “competência para modificar”91 a qualificação jurídica durante a
fase do juízo, também deveria aplicar-se durante a etapa preliminar92. Os direitos
da defesa poderiam ser resguardados por uma nova disposição da regra 128 (4)
das Regras de Procedimento e Prova que garantisse à defesa uma modificação
adequada e a possibilidade de adiar a audiência com o fim de contar com tempo
suficiente para preparar o caso93. A alusão à “prova suficiente” em diversas partes
do parágrafo 7 não é contrária - à diferença da opinião do membro da Promoto-
ria94 - dessa competência judicial para modificar, já que aquela não se encontra
isolada e, portanto, há de ser lida junto com as referências aos “crimes imputa­
dos” e às “acusações” que abarcam os fatos (provas) e sua qualificação jurídica.
É evidente que a Sala de Questões Preliminares não pode valorar a prova em si
mesma ou in abstracto, mas unicamente com vistas a uma determinada qualifi­
cação jurídica (crimes, formas de responsabilidade). É mais, o subparágrafo (c)
(ii) do artigo 61 (7) relaciona a prova com “um crime distinto”.
Portanto, se se aceita esta competência judicial para modificar a qua­
lificação jurídica, a segunda pergunta - em relação ao seu alcance - deve ser
respondida a favor de um a ampla autoridade da Sala de Questões Preliminares.
Ainda que, um a vez mais, o texto da disposição (art. 61 (7) (ii): “crime dis­
tinto”) pareça requerer um a interpretação restritiva que exclua qualquer m o­
dificação que exceda uma m udança no crime respectivo e os travaux guardem
silêncio sobre o ponto95, uma interpretação sistemática e teleológica sugere um
enfoque mais amplo. Pois, se se sustenta que o princípio iura novit curiae e a
correspondente norma 55 também devem aplicar-se na etapa prévia ao juízo,
então deve seguir-se - de fato, a partir do texto mesmo da norm a 55 - que a Sala
de Questões Preliminares também pode modificar a qualificação jurídica em
relação à “form a de participação do acusado de acordo com os artigos 25 e 28” .

91 Ver C. Stahn, Modification of the legal characterization o f facts in the IC C system: A portrayal o f regu-
lation 55 (2005), 16 CLF 1, pp. 16-7. Sustenta que a Norma 55 apenas “cristaliza e aperfeiçoa” a competência
para modificar da Sala de Primera Instância que está “implantada” nos artigos 74 (2) y 64 (6) (f) do Estatuto e
pode inferir-se das faculdades implícitas da Sala.
92 Ambos/Miller, supra nota 1, pp. 359-60, com uma análise comparativa sobre a questão vinculada à facul­
dade judicial para modificar proprio motu as acusações, p. 348 e ss.
93 Para o texto completo desta nova regra, ver Ambos/Miller, supra nota 1, p. 360.
94 Autorização para apelar apresentada pelo membro da Promotoria, supra nota, parág. 14.
95 Cfr. C. Bassiouni, The legislative History o f the ICC, vol. 2 (2005), p. 440.

194
Aspectos problemáticos da decisão de confirmação.

É interessante destacar que a Sala de Questões Preliminares III já havia


adotado previamente o mesmo ponto de vista com o argumento de que a forma
de responsabilidade tem “um a influência sobre a estrutura do crim e” e que
ambos “se correlacionam entre si”96. No entanto, ainda que seja evidente que
existe una relação entre as formas de responsabilidade (como compreensivas
da “Parte Geral”) e os crimes (da “Parte Especial”) e que as primeiras não
podem ser interpretadas sem os segundos97, isto não permite necessariamente
estender um a norma de procedimento como a do artigo 61 (7) (ii) para além de
sua redação. Uma leitura tão ampla, em m inha opinião, só pode amparar-se em
um a interpretação do procedimento como a indicada previamente. Em última
instância, a questão repousa na aceitação do princípio iura novit curiae pela
CPI e isso deveria ter sido discutido pela Sala.

96 Prosecutor v. Bemba, Decisión sobre o ad ia m en to ., supra nota 88, parág. 26.


97 Cfr. K. Ambos, A llgem einer Teil, supra nota 29, p. 72. Esta relação foi analisada com bastante profun­
didade por M. Fincke, Das V erhaltnis des A llgem einen zum B esonderen Teil des S trafrechts (1975).

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