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Mais tarde, a escritora e ensaísta chilena, radicada há dez anos nos Estados Unidos,
faria da enfermidade um de seus temas principais, como se vê em sua “trilogia
involuntária”, composta pelas novelas Fruta podrida (2007) e Sangue no olho (Cosac
Naify, 2015), protagonizadas por mulheres que dão destinos distintos a suas
doenças, e pelo ensaio Viajes virales, sobre o impacto da Aids na literatura.
Mas é com Contra os filhos: uma diatribe, ensaio de crítica cultural lançado
originalmente em 2014 na América Latina e na Espanha, e agora oportunamente
traduzido para o português, que Meruane se lança a uma análise cortante e cáustica,
sarcástica e ameaçadora sobre uma das patologias mais graves de nosso tempo: o
modelo de criação, baseado no excesso consumista, na multiplicação das exigências
e obrigações maternas e na falta de assistência estatal, que coloca o filho como
centro regular de todas as atividades, desejos e ansiedades do casal progenitor.
Clientela infantil
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Ela é contra essas mães que, para serem supermães, mães totais, em obediência a
todo tipo de exigência, renúncia e sacrifício, “jogaram a toalha”, abrindo mão de
todas as suas outras aspirações, ou aquelas que não renunciaram a nada, mas
fizeram multiplicar sobre si a exigência da performance permanente, nos âmbitos
público e privado, no limite do esgotamento e da exaustão. Enfim, ela se opõe a esse
“contragolpe” que está sendo lançado para atrair as mulheres de volta para casa,
depois de todas as suas conquistas históricas, e que atende pelo nome de... “filhos”.
Meruane — que defende muito bem sua opção de não ser mãe e se contrapõe à
imposição do “lugar de fala” que tem dominado os debates culturais hoje — faz da
distância uma possibilidade de ver as coisas de maneira crítica. Tal como as
protagonistas de suas novelas, ela precisa ver de longe para ver melhor, com a
coragem de quem tem sempre uma malinha pronta na porta de saída.
Lente de aumento
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Afinal, se o matrimônio não é mais um contrato de propriedade, e ter filhos, apesar
da pressão social, não é mais um destino compulsório, por que as mulheres —
esclarecidas, cultas, urbanas — continuariam desejando essa experiência e
projetando nela uma forma, talvez a mais forte, de realização? Não seria muito
redutor encarar a maternidade como uma “via-crúcis” marcada unicamente por
exaustão, culpa, autoexigência, solidão, sacrifício, renúncia, ansiedade e depressão?
Serão mesmo os filhos os responsáveis por esse empurrão das mulheres de volta
para o lar, um retrocesso depois da histórica conquista do espaço público?
Mas, ainda que defenda que se a “máquina de fazer filhos” obedece a interesses
reprodutores do Estado, cabendo a ele garantir condições para que as mulheres
possam criá-los, em nenhum momento Meruane menciona, por exemplo, a
necessidade de uma creche pública e universal (como se vê, ao menos ainda, em um
país como a França) como uma bandeira que deveria ser prioritária nos países
democráticos.
Só com o direito à creche, o retorno das mulheres ao espaço doméstico poderia ser
fruto de uma opção e não o resultado daquele cálculo perverso em que a mulher
sabe que, saindo para trabalhar, não ganhará o suficiente para pagar por berçários,
babás e escolinhas privadas. O papel da creche pública na França, como instância de
equiparação social e delegação parcial para o Estado, é mencionado no best-
seller Crianças francesas não fazem manha (Fontanar, 2013), no qual a jornalista
americana Pamela Druckerman faz uma diferenciação interessante entre os modos
norte-americano e francês de criação das crianças, marcados pela culpa e pelo
consumismo no caso dos pais americanos e pela ideia de limite e autonomia no caso
dos franceses. À luz de Contra os filhos, o livro de Druckerman poderia se
chamar Crianças francesas não tiranizam seus pais.
Contra os pais
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seus filhos se sintam desautorizados e deslegitimados, principalmente por
mulheres.
No Brasil, um pai que sai com seu bebê sozinho corre sérios riscos de ser atacado
por mães em tempo integral e de prontidão: ele, certamente um negligente, estará
deixando seu bebê com frio ou com calor, desprotegido ou muito exposto, apertado
no canguru ou com o pescoço frouxo.
O fato é que, enquanto não houver uma licença paternidade efetiva promovida pelo
Estado ou praticada por empresas privadas (qualquer pessoa que sobreviva ao
primeiro mês de vida de um recém-nascido sabe o quão ridículo são os cinco dias de
licença garantidos por lei), a criação de vínculo entre pais e filhos e o
comprometimento entre o casal estarão seriamente prejudicados, se não
inviabilizados. Se alguns pais, com direito a vinte dias de licença, muitas vezes não
fazem uso desse tempo, como informa Meruane com desdém, é porque, na ordem
do cálculo material, eles têm medo de pagar as consequências com seu próprio
emprego, na volta ao trabalho, como aliás já acontece com grande parte mulheres
em estatísticas estarrecedoras.
Podemos incluir nesse pacote (de fibras, é claro, recicláveis) a ideologia da livre
demanda; a cama compartilhada; a teoria do apego levada ao extremo; a perspectiva
do bebê como um “mamífero”, ou, para as mais modernas, como um “piercing” no
bico do peito da mãe; ou ainda, para as empreendedoras, como um cliente que
nascerá nas mãos de doulas-consultoras e estudará em escolas-parque-empresa,
destinadas a formar membros de uma elite transnacional hiperconectada e
descontraída.
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demonstrar em décadas é que os anticorpos presentes no leite humano são os que
protegem as crianças da indigestão” e que, portanto, “não está medicamente
justificada a extensão da lactação” é um grave equívoco.
Maternidade possível
Para não jogar fora o bebê com a água da bacia, o inspirado e absolutamente
necessário ensaio de Lina Meruane poderia ao final se abrir para outras perspectivas
que não aqueles discursos ameaçadores típicos de quem vê à distância de um
satélite.
A autora está coberta de razão quando diagnostica e denuncia que o império dos
filhos tiranos, nossos carcereiros e futuros patrões para os quais nem o céu é o
limite, será a nossa condenação. Mas seria preciso ainda acrescentar que cabe a nós,
mães e mulheres, experimentar e lutar por outro tipo de maternidade, cujo amor e
doação não sejam vividos solitariamente como renúncia, sacrifício, culpa e
autocobrança.
No lugar de uma “maternidade real”, muitas vezes queixosa, seria preciso pensar
numa “maternidade possível” — no dizer da psicanalista Vera Iaconelli — como
abertura à contingência e à alteridade de um filho, sempre um outro, cujo amor
gratuito e gratificante, lúdico e radicalmente transformador, pode também
estabelecer vínculos coletivos e ser, justamente, um antídoto aos cálculos privados
de nosso tempo.