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O L H A R E S
(Página deixada propositadamente em branco)
H istória da U nificação E uropeia
EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensauc@ci.uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.com
DESENHO GRÁFICO
António Barros
PRÉ-IMPRESSÃO
Aldina Almeida Santos
António Resende
Imprensa da Universidade de Coimbra
INFOGRAFIA DA CAPA
Carlos Costa
Imprensa da Universidade de Coimbra
EXECUÇÃO GRÁFICA
Tipografia Lousanense
ISBN
................
DEPÓSITO LEGAL
978-989-26-0078-9
Prefácio.. ................................................................................................... 7
2. O espectáculo da política.................................................................... 41
Bibliografia............................................................................................... 443
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tro, poesia, música, vídeo ou cinema. Além disso, e talvez, confesso, antes
disso, porque a primeira palavra do livro seria então um termo estrangeiro:
o que se passou e passa na NYU é importante, cheio de consequências,
mas não arrastou uma mudança generalizada nem a criação de termos
equivalentes noutras línguas. Patrice Pavis (1996:337) fala da “ausência cruel”
de tradução de performance em francês, e o mesmo poderíamos dizer para
a nossa língua. “À falta de melhor”, desabafa Pavis (1996:337) a dada altu-
ra, vertemo-lo por “espectáculo”. Mas noutro ponto (1996:125) diz que
“a noção de espectáculo (spectaculum, o que é visível e speculum, o que
reenvia a uma imagem) e a de performance (acção consumada) pertencem
a dois universos epistemológicos incompatíveis, logo a dois olhares sobre
um mesmo objecto”…
Abrir com o conceito de “espectáculo” também seria, pois, limitativo.
É aliás um termo cujo carácter pejorativo já vem de Aristóteles e não pára
de crescer nos dias de hoje. Na Poética aristotélica (1450b), o espectáculo
é uma das seis partes da tragédia, mas, “embora de natureza a seduzir o
público, é tudo o que há de estrangeiro à arte e de menos próprio do poé
tico”. Perdurou pelos séculos a sua acepção de algo decorativo, exterior,
feito para divertir ou entreter (e é nesse sentido que hoje é muito usado
no debate político). Mesmo quando os clássicos não se lhe opunham, se-
paravam-no categoricamente do texto, em vez de os interligar. Foi por isso
que Antonin Artaud, que, como veremos nos capítulos 9 e 11, quis rein-
ventar o espectáculo, disse que, no sentido comum, “espectáculo” arrasta
tudo o que há de “pejorativo, acessório, efémero e exterior”. Além disso, a
definição de espectáculo, notam Greimas e Courtès (1979:393) “implica a
presença de um actante observador (o que exclui desta definição as ceri-
mónias, os rituais míticos, por exemplo, onde a presença do espectador
não é necessária)”. Pavis tem esperança numa nova disciplina, a “etnoce-
nologia”, neologismo criado por Jean-Marie Pradier em 1996: a qual, porém,
para evitar a deriva virtualmente infinita dos performance studies, incluiria
apenas os fenómenos ficcionais e com forma estética, o que é um campo
mais reduzido do que aquele que este livro pretende abordar.
Restaria ainda um conceito, “teatralidade”. Tem uma história específica:
emerge da Rússia pré-revolucionária de princípio do século XX , nas teorias
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1 . A RE P RE S EN TAÇ ÃO N A V IDA QU OT IDI A N A
Theatrum mundi, el gran teatro del mundo, all the world is a stage, todo
o mundo é um palco: qualquer destas fórmulas e o sucesso que têm
conhecido sugerem que há um amplo e benigno consenso sobre esta matéria.
Não creio que assim seja: existem duas linhas, duas linhagens. Aquela que
abordaremos durante dois capítulos valoriza, de facto, a mediação espec
tacular na comunicação; a outra, bem pelo contrário e bem repetidamente,
condena essa mediação e defende uma sociedade sem representação e sem
espectáculo, como veremos no terceiro capítulo. É um diferendo profundo,
que vem pelo menos da antiguidade grega até aos nossos dias. Depois de
o expor, falarei ainda, no quarto capítulo, daquilo que considero ser uma
falsa saída para tal dilema, e procurarei, apoiando-me em Shakespeare, dar
uma resposta mais interessante.
Partindo da primeira linhagem, começaremos por ver como a represen-
tação e o espectáculo são uma dimensão estruturante de toda a vida
quotidiana – e no próximo capítulo desenvolveremos um exemplo especí-
fico, na área da comunicação política. Usaremos os contributos que as
teorias da antropologia e da sociologia têm vindo a dar sobre este tema, e
que no campo interdisciplinar dos estudos em comunicação ganharão par-
ticular acuidade. 1
1 Não desenvolveremos aqui a perspectiva da vida como um jogo – esse jeu ou play que
em francês ou inglês recobre tanto um jogo de crianças como um jogo de futebol como uma
representação teatral. Muito tem sido escrito nesse ponto de vista, desde a brilhante obra
Homo Ludens, que o historiador holandês Johan Huizinga publicou em 1938, “não com o
objectivo de definir o lugar do jogo entre todas as outras manifestações de cultura, mas antes
de afirmar a que ponto a própria cultura tem a característica de jogo” (2003:prefácio). Sem
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Nas ciências sociais, desde pelo menos os anos 30 tem-se falado muito
em “actores” e “papéis”. Mas aquilo a que o antropólogo Clifford Geertz
(1926-2006) chama a “drama analogy” só mais recentemente se tornou, por
um lado sistemático (como analogia, não como metáfora incidental) e, por
outro, não pejorativo: “começou a ser aplicada menos no modo depreciativo
de máscaras e palhaçada, que tendia a caracterizar o seu uso generalizado,
e mais num modo construtivo, genuinamente dramatúrgico – making, not
faking, como o antropólogo Victor Turner (1920-1983) colocou a questão”
(Geertz 64). Há duas fontes bastante contraditórias, diz Geertz, para esta
analogia. Por um lado, a teoria dos rituais, que vem de Francis Fergusson,
T. S. Eliot, Antonin Artaud, encarando o drama como comunhão. Por outro
lado, o “dramatismo” para usarmos o termo do teórico da literatura e filó-
sofo americano Kenneth Burke (1897-1993), que vê o drama como acção
simbólica e persuasiva: uma linha que muitos autores desenvolveram,
inspirando-se em Burke, em Durkheim, em Ernst Cassirer, em Northrop
Frye, em Foucault, e de que o emblema maior se tornou a obra de Erving
Goffman (1922-1982), que neste capítulo amplamente estudaremos.
ignorar que a nossa época potenciou e assumiu em tantos aspectos a sua dimensão de jogo,
ou precisamente porque isso nos obrigaria a um desenvolvimento extensíssimo pela teoria
dos jogos (que se estende da matemática à cibernética, à economia, à ciência política, à
filosofia, ao jornalismo), consideramos essa perspectiva complementar mas não prioritária em
relação às que desenvolveremos, e achamos que enviesaria a comparação com o drama, que
só infantilmente pode ser conceptualizado (por muitos, infelizmente) como um jogo de
faz‑de‑conta.
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O cabelo penteado para a frente a cobrir a cabeça, aqui temos sem dúvida
o protótipo da máscara, tal como a encontramos em certos ritos. Um gesto
tão simples e tão cheio de sentido. O microcosmos bem organizado simbolizado
pelos olhos, nariz e boca e a sua ordem estabelecida dá lugar a um universo
desordenado; os instrumentos sociais da expressão dão lugar à Natureza
triunfante; (...) já não é um pai ou um parente, um concidadão ou um
estrangeiro, um senhor ou um servo; está livre para contactar com outros
poderes, outros mundos, os do amor e da morte. A diferença não é assim
tão grande entre esta máscara rudimentar e a máscara de veludo preto dos
nossos bailes de máscaras, que, para quem a usa e para quem brevemente
a encontra, simboliza aventura e a oportunidade de derrubar a ordem
quotidiana das coisas. (…)
A máscara desvia a comunicação da sua função humana, social e secular
para estabelecer contacto com um mundo sagrado. Por isso, a máscara não
fala, ou se fala usa a sua própria linguagem especial, que se opõe foneticamente
e semanticamente àquela que permite aos homens comunicarem entre si. (...)
Imbuída de vida pelo seu portador, a máscara traz o deus à terra, estabelece
a sua realidade, mistura-o com a sociedade dos homens; inversamente, ao
mascarar-se, o homem testemunha a sua própria existência social, manifesta-a,
classifica-a com a ajuda de símbolos. A máscara é ao mesmo tempo o homem
e outra coisa diferente do homem: é a mediadora por excelência entre a
sociedade, por um lado, e a Natureza, geralmente misturada com o Sobrenatural,
por outro. (Claude Lévi-Strauss 9)
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Não se pode dizer que os italianos cultos do século XVI fossem indiferentes
à questão da língua. A controvérsia sobre qual fosse a melhor forma de
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3 “Acting, not prostitution, is the oldest profession in the world”. Apud Schirmer (31).
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incontornável. (…) Sem dúvida, muitos ensaiam como irão lidar com os
familiares, e até o que serão as suas frases finais. Historicamente, os crimi-
nosos condenados à morte têm sido louvados pelo seu nobre porte no
patíbulo, e os prisioneiros têm receado quebrar ou perder o controlo dos
intestinos durante os julgamentos” (Combs e Mansfield XXIII ). Moribundo,
e como que a provar quanto encenara o seu domínio, o imperador romano
Augusto pronunciou a locução que, no teatro antigo, anunciava o fim da
representação: Acta est fabula.
O soldado que vai combater está sob pressão para ser conforme, para
mostrar as virtudes valorizadas pela organização: ser corajoso, agressivo,
mesmo heróico. Para a maior parte dos soldados, o medo é algo a ser supri-
mido dos colegas e dos superiores. Para evitar a despromoção (ou o pelotão
de fuzilamento), o soldado deve agir como se essas virtudes fossem uma
parte essencial do seu eu. (…) Se perde controlo da sua ‘face’, pode ser
sujeito a humilhação e punição. Mas se for bem sucedido, é socialmente
aceitável e assume os atributos que tanta dificuldade tinha em mostrar com
o seu medo interior. Por outras palavras, tornou-se a máscara que usava; o
seu ser, a sua identidade, é o que ele parece ser. (Combs e Mansfield XX)
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que ele é e nada mais do que isso. A existência tornar-se-ia intolerável para
alguns se qualquer contacto entre duas pessoas levasse à partilha de expe-
riências, preocupações e segredos pessoais” (1973:52-53).
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Mas voltemos ainda a Goffman, para quem o que é mais condenado são
as representações que ignoram os limites da condição do actor. Isso é en-
carado do ponto de vista do grupo de estatuto superior – que até pode
fingir outra condição mas não pode ser ameaçado pelo fingimento dos de
estatuto inferior. Chegamos assim à ligação de todas estas questões da re-
presentação quotidiana com a questão do poder (que Goffman define
weberianamente como a capacidade de o indivíduo dirigir a actividade de
outro indivíduo): “por uma representação entende-se a totalidade da acti-
vidade duma pessoa dada, numa ocasião dada, para influenciar duma
certa maneira um dos outros participantes.” É do interesse do actor “con-
trolar a conduta dos seus interlocutores e em particular a forma como eles
o tratam em resposta. Consegue-o em larga medida modificando a definição
da situação em que os seus parceiros surgem; e pode influenciar esta de-
finição exprimindo-se ele próprio de forma a impor-lhes o tipo de
impressão que os leva a agir de bom grado de acordo com o seu próprio
plano.” Repare-se que esse controlo se inicia logo ao nível da percepção:
“se encararmos a percepção como uma forma de contacto e de comunica-
ção, então ter o controlo daquilo que se percebe é ter o controlo do
contacto estabelecido, da mesma maneira que delimitando e regulando o
espectáculo se delimita e regula o contacto”. (1973:23,13,69)
Goffman dá exemplos: “as restrições trazidas ao contacto, o manter duma
distância social, fornecem um meio de engendrar e manter o medo no pú-
blico – um meio, como disse Kenneth Burke, de manter o público em
estado de mistificação relativamente ao actor”. Mas Goffman (ibid. 69) sabe
que o poder não se exerce apenas de cima para baixo: se cita Cooley
quando este diz que “os homens do mundo usam muito as boas maneiras
como um meio de disfarce pessoal que tem por fim, entre outros, conser-
var‑lhes uma espécie de ascendente sobre as pessoas simples”, logo
acrescenta que os “simples” também usam o medo, a distância social, os
interditos, como forma de protecção e ameaça em relação aos que os
dominam. Nisto podemos aproximá-lo da concepção que Foucault desen-
volveu de um poder que se exerce a todos os níveis da vida social; aliás,
os procedimentos de delimitação, rarefacção e interdição que Foucault (1971)
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mais secretas da alma humana. (...) Não posso deixar passar aqui em claro
a grande influência que um bom teatro fixo exerceria sobre o espírito da
nação (…) porque reúne em si todos os estados e classes e conhece o melhor
caminho para chegar à razão e ao coração. (…) Numa palavra, se chegássemos
a ter um teatro nacional – tornar-nos-íamos também uma nação. O que é que
unia tão firmemente a Grécia? (Friedrich Schiller in Barata 93-5)
Isto que Schiller escreveu no final do século XVIII foi na época um topos
muito repetido. Já Rousseau tinha reconhecido em 1758 que “o efeito geral
do espectáculo é reforçar o carácter nacional, aumentar as inclinações naturais
e fornecer uma nova energia a todas as paixões” (in Barata 89). Em 1773,
Louis-Sébastien Mercier (in Borie et al 224) argumenta no mesmo sentido:
“O meio mais activo e mais pronto de armar invencivelmente as forças da
razão humana e de lançar de repente sobre um povo uma grande massa de
luzes seria, seguramente, o teatro (…). É aí que o pensamento majestoso de
um só homem iria inflamar todas as almas com uma comoção eléctrica: é
aí, enfim, que a legislação reencontraria menos obstáculos e operaria as
maiores coisas sem esforço e sem violência.” No século XIX, Victor Hugo virá
reavivar a mesma ideia: o teatro pode levar o povo a conceber-se como
identidade nacional, nomeadamente através da representação da História e
da sua evolução. Também Hegel escreve, em 1832 (in ibid. 334), com argu-
mentos históricos: “em várias épocas a poesia dramática foi igualmente
utilizada para abrir caminho a ideias novas, à política, à moral, à poesia, à
religião. Aristófanes, nas suas primeiras comédias empreende uma viva po-
lémica contra a nova situação política de Atenas e a guerra do Peloponeso”.
A dimensão espectacular do poder, que nestes autores surge ainda como
mera possibilidade ou aspiração, podemos hoje vê-la como estrutural.
Recentemente, Alain Badiou fez desta questão um elemento central do seu
pensamento sobre o teatro:
O teatro está ligado ao Estado, ele é uma mediação pública entre o Estado
e o seu exterior: a multidão reunida. E como a circulação se faz nos dois
sentidos (do poder para a multidão e da multidão para o poder), o teatro é
absolutamente ambíguo. Ele é o ponto onde uma certa audácia do Estado
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o chefe do clã dos Moba não acedia ao seu cargo senão depois de um retiro
junto dos altares protectores. Aí, recebia consagração, formação e insígnias.
Tornava-se outro, sendo marcado fisicamente por uma mutilação sexual,
usando um nome novo, aprendendo um código de conduta específica que
o obrigava a não falar senão através de um intermediário. (…)
O soberano Yatenga, governante de um dos reinos Mossi do Burkina-Faso,
era, numa primeira fase, apenas o chefe de todos os chefes. Não podia ser
coroado rei senão depois de fazer um longo itinerário de iniciação, conduzido
através de uma parte do reino. A que alberga os lugares simbólica e
historicamente fortes. Durante o percurso, a pessoa real formava-se e o poder
real tornava-se mais preciso. O acto decisivo e final situava-se onde foi fixada
a primeira residência do fundador do Estado. O rei era aí “feito” definitivamente.
Era exposto a meio do dia sobre a “pedra do poder”, apresentado ao povo
sobre um cavalo garanhão que simbolizava o novo reino e vestido com
vestuário branco especial. O seu regresso era feito em triunfo, recebia todos
os sinais de submissão. O rei, no decorrer destas provas de formação,
“assimilava” o espaço e a história mossi. (Georges Balandier 32-33)
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Essa encenação do poder está sempre mais visível onde há uma lideran-
ça centralizada. Podemos por isso dar um grande salto no tempo, passando
mesmo por cima da Idade Média (à qual voltaremos no quinto capítulo).
Porque é na Renascença, diz ainda Balandier (35), que voltamos a encontrar
os exemplos mais espectaculares da “transposição dramática dos aconteci-
mentos históricos, da tradução simbólica das relações políticas e sociais, e
da espectacularização da ideologia.” Maquiavel (1469-1527) aconselha o
príncipe a “divertir e reter o povo em festas e jogos” e a “fingir e disfarçar”,
compondo para si mesmo uma personagem completamente diferente.
Todos vêem perfeitamente o que aparentas por fora, porém muito poucos
percebem o que vai por dentro; e esses poucos não se atrevem a contrariar
a opinião dos muitos, que têm por si a magestade do Estado que os apoia.
(...) Pois o vulgo só se pronuncia quanto àquilo que vê. (Maquiavel (apud
Schwartzenberg 6)
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analisou bem este fenómeno), as moedas e retratos de Luís XIV exibiam a
mesma face da monarquia independentemente do envelhecimento concre-
to do homem. E no momento da morte física de um rei, como a monarquia
continuava, gritava-se: “Morreu o rei. Viva o rei!”
Cerca de um século mais tarde, a Revolução Francesa, apesar de toda a
sua carga ideológica, ou por causa dela, não pôs de lado o espectáculo:
apenas o transformou. E não estamos apenas a falar no espectáculo dos
castigos e suplícios corporais, uma prática medieval actualizada com a gui-
lhotina para o povo testemunhar e celebrar a vitória sobre o acusado
(cf. Foucault, 1977). A revolução criou novos cultos cívicos e afectou-lhes
os ritos, os espaços e os suportes que antes eram católicos, com uma pro-
fusão de imagens a reproduzirem o imaginário revolucionário em estampas
e bandeiras e com Marat, depois de assassinado, a ocupar nalgumas igrejas
o lugar onde antes estivera Cristo. Mais do que isso, porém, usou novos
espaços e criou ritos com uma inédita dimensão de massas. Logo no pri-
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2 Cf. Ben-Amos, 1997:425-464. Ver, do mesmo autor, 2000, uma análise de casos entre 1789
e 1996. Uma excelente análise dos funerais do imperador Hirohito do Japão, em 1989, e da
sua transmissão televisiva pode ser encontrada em Mário Mesquita, 23-42.
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Muitos mais exemplos se encontram na obra O Estado Espectáculo, de
Roger-Gérard Schwartzenberg. Trata-se, é certo, de um livro que, além de
mal escrito e repetitivo, tem uma abordagem exaltada que corresponde a
um pensamento maquiavélico, moralista e terrorista, com pouca análise e
conclusões monolíticas (“evidentemente”, “não é mais do que”). A sua gran-
de virtude, além da muita informação que reúne sobre o tema e que vamos
amplamente utilizar, é ter sabido, nos anos 70, chamar a atenção para uma
área cada vez mais importante e em mutação, a do “Estado-espectáculo”
– conceito que é uma paráfrase da “sociedade espectáculo” de Guy Debord,
de que falaremos no próximo capítulo. Tal como em Debord, a própria
descrição que Schwartzenberg faz dos fenómenos não se separa de uma
condenação deles e da ideia de que será possível um Estado que não seja
espectáculo, ou mesmo que ele já existiu – por muitos que sejam os exem-
plos que ele próprio apresenta do espectáculo da política desde os gregos...
Feitas estas advertências, centremo-nos na ideia central deste autor: numa
época de esteticização difusa da sociedade e do Estado, “as nossas conjec-
turas já não têm como único objecto as relações do espectáculo e da
sociedade em geral. Como as que tecia Guy Debord em 1967. Agora, é a
superestrutura da sociedade, é o próprio Estado que se transforma em em-
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Uma parte importante dos novos modos de fazer política tem a ver com
as sondagens, também elas importadas do mundo empresarial. Em França,
o Instituto de Opinião Pública foi criado em 1938. Mas a primeira vez que,
numa eleição nacional, se recorreu a uma sondagem de opinião já tinha
ocorrido em 1936, nos Estados Unidos, e na década seguinte começaram a
ser usadas também a nível local. “As sondagens dissecam a anatomia da
circunscrição: idade, sexo, escolaridade, rendas dos eleitores; zonas de
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Roosevelt, que nos seus doze anos de mandato como presidente dos EUA
(1933-45) desenvolveu magistralmente o uso da rádio. “Aliás, mesmo antes
de chegar à Casa Branca, Roosevelt experimenta o rádio, como governador
de Nova Iorque. Reconhece nele, sem demora, um poderoso instrumento
para conquistar a opinião pública para a sua causa, pela possibilidade de
estabelecer com ela uma comunicação directa, de passar por cima da legis-
latura do Estado e da imprensa escrita, dominada pelos republicanos.
Sucedem-se por isso, desde o seu primeiro mandato de governador, as
famosas fireside chats, conversas à lareira, em tom simples e livre” (ibidem
176) – como, em Portugal, mas já na era da televisão, Marcelo Caetano,
mesmo controlando o parlamento e a imprensa, procurou também fazer nas
suas “conversas à lareira”. Roosevelt voltou à rádio na campanha para a
presidência, quando mais de metade dos diários e semanários se opunham
à sua candidatura. Enquanto presidente, fez 28 dessas conversas, cada uma
delas ouvida por 80 milhões de cidadãos e ajudando a fazer passar as suas
reformas, contra as quais o congresso lutava.
No fundo, a geração da segunda guerra mundial foi a mais radiofónica.
Mas algo teve de mudar com o advento do cinema sonoro e da televisão.
Quando esta se começou a expandir na Europa, Raymond Aron disse que
Hitler pertencia à era da rádio, mas que agora, com a televisão, tudo era
diferente, porque a imagem tornava a mentira mais difícil. Passado meio
século, sabemos como não acabou a “mentira em política”, para usar a
expressão de Hannah Arendt (1972): alterou-se, sim, o tipo de representa-
ção. Tal como o cinema sonoro e os grandes planos exigiram dos actores
menos teatralidade, menos expressionismo, menos ênfase, maior uso da
meia voz e do murmúrio, também em política a geração dos grandes dis-
cursos teatrais como os de Hitler ou De Gaulle é substituída por outra que,
como Giscard d’Estaing ou Marcelo Caetano, procura falar mais intimamen-
te, à beira da lareira. Um consultor de Kennedy opunha-se à passagem na
televisão dos discursos feitos para multidões, por o tom ficar excessivo. Isto
acompanha, nas democracias ocidentais, a passagem das técnicas duras de
propaganda, características dos anos 20 e 30, das ditaduras e das guerras,
para técnicas mais subtis de persuasão.
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poucos dias antes do primeiro debate nos Estados Unidos entre os candi-
datos James Carter e Gerald Ford, a grande antropóloga Margaret Mead
telefonou ao publicitário que acessorava Carter para reiterar o conselho:
“Style over substance! Style over substance!” Mais estilo que substância!
Por muita importância que tenham os debates entre candidatos nas
campanhas eleitorais, vale a pena lembrar outras formas de marketing elei-
toral desenvolvidas na segunda metade do século XX . Uma fórmula ainda
não usada em Portugal é a do “homem na arena”, assim qualificada por
Roger Ailes, produtor de televisão contratado por Nixon para a sua campa-
nha de 1968. O seu objectivo? Projectar a imagem de um “novo Nixon”,
natural, cordial, espontâneo mas perfeitamente senhor de si, objecto da
simpatia do público. O seu funcionamento? Dez emissões de uma hora, em
que Nixon era colocado de pé, numa pequena plataforma, a responder às
perguntas de oito interlocutores, sentados em semicírculo diante dele e
tomados como representativos do eleitorado americano (um negro, um
magistrado israelita, o presidente de uma associação de polacos e húngaros,
uma dona de casa suburbana, um homem de negócios, um fazendeiro, dois
jornalistas). Por trás dele, o público: cerca de 300 espectadores, cuidado-
samente seleccionados pela direcção local do partido Republicano. “O efeito
de arena – lembrando remotamente a posição do mártir na fossa dos
leões – mobiliza instintivamente a simpatia dos telespectadores por esse
homem sozinho, que os enfrenta de pé, cercado por forças hostis. Passando
bem depressa a aplaudir as respostas de Nixon, o público do estúdio trans-
mite a todos a impressão de que o candidato possui o encanto, a autoridade
e todas as qualidades exigidas de um presidente” (Schwartzenberg 193).
Note-se que, já em 1952, era a agência de publicidade BBDO quem
organizava a campanha televisiva de Nixon. E foi ela quem lhe criou a
confissão televisionada, formato que ainda hoje é tão usado mas que guar-
da a memória dessa alocução proferida por Nixon a 23 de Setembro de
1952, conhecida até hoje como The Checkers Speech. O então candidato à
vice-presidência, acusado de contar com apoios financeiros ocultos e de
desviar os fundos eleitorais para usá-los em seu próprio benefício, defen-
deu‑se confessando... pecadilhos menores. Passo a transcrever.
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canal, se trata muito brevemente vários temas, cada um com uma duração
que afinal por vezes se assemelha à dos spots.
Nos discursos de que se sabe irem aparecer extractos na televisão, por
trás dos oradores por vezes colocam-se cartazes que não conseguem ser
lidos pelo auditório a quem aparentemente estão a falar: é porque são
pensados para caberem no enquadramento televisivo, quando a cara do
orador surgir junto ao lema escolhido. George W. Bush rodeou-se de pessoas
dos canais de televisão, com experiência em iluminação, enquadramentos
e importância dos fundos. Num discurso de 2003 para promover o plano
económico, os assessores pediram às pessoas que estavam na multidão atrás
de Bush para tirarem as gravatas, de modo a parecerem-se mais com os
cidadãos que, segundo o discurso, iriam beneficiar com a redução de
impostos. Para anunciar o fim dos combates no Iraque, Bush discursou a
bordo do porta-aviões Abraham Lincoln, envergando um uniforme de piloto,
diante de uma tripulação coreografada e vestida com camisas de cores
combinadas: o discurso foi especificamente marcado para o que directores
de fotografia chamam a “hora mágica da luz”, que lançou um eflúvio dourado
sobre a cerimónia.
Nos comícios e na televisão, os candidatos surgem frequentemente
associados com outras vedetas. Desde logo, da política: mais uma vez, pode
referir-se Nixon, que utilizou na sua campanha de 1972 spots televisionados
que o mostravam junto a Brejnev ou Mao Tse Tung; Fernando Nogueira fez
o mesmo, em Portugal, quando procurou afirmar-se como sucessor credível
de Cavaco Silva. A celebridade de uma vedeta pode ajudar a da outra
(citem‑se os casamentos de Elizabeth Taylor com Mike Todd, Eddie Fischer
e Richard Burton, ou de Arthur Miller com Marilyn Monroe, ou de Manuel
Maria Carrilho com Bárbara Guimarães ou o namoro de Claudia Schiffer
com David Copperfield).
Há também a associação com vedetas do espectáculo, desde pelo menos
o tempo de Kennedy. E, mais ainda, tem havido transferências de figuras
do espectáculo ou do desporto para o mundo da política: a princípio re-
cebidas com algum escárnio, pelo menos por parte dos adversários (como
Reagan na campanha de 1966 para governador da Califórnia), depois triun-
fantes ou encaradas com crescente normalidade. Arnold Schwartzneger é
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O senhor Ford está a ter problemas com os seus joelhos, ambos operados
tempos atrás; compensa-os entretanto através de vigorosos exercícios físicos
quando se levanta às 5h30 da manhã e nada diariamente 400 metros na pis-
cina ao ar livre que mandou construir na Casa Branca. À noite, só se
levanta uma vez, para aliviar a bexiga, dorme bem, não teve reacções ner-
vosas depois das duas tentativas de assassinato de que foi vítima. Os seus
dentes estão manchados pela nicotina. Tem testículos normais e simétricos.
O presidente não mostra tendências depressivas. As suas fezes são escuras
e bem formadas.
Tal como Ford, muito outros políticos exibem a sua actividade despor-
tiva, que ajuda a projectar uma imagem dinâmica e de aptidão. Em Portugal,
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bolos políticos para além da queda de um chefe particular. Foi, nas palavras
de Duncan, um ‘momento de mistificação’ que não serviu apenas para
honrar o líder morto, mas também para reafirmar a continuação dos sím-
bolos políticos – que o navio iria continuar a navegar” (Combs e Mansfield
XXV ).
Tudo isto configura uma personalização do poder político, que em geral
a comunicação social não deixa de incrementar, para tornar mais palpáveis
os acontecimentos. Pierre Lazareff (apud Schwartzenberg 164), durante
muito tempo redactor-chefe do France-Soir, recomendava: “explicar as ideias
pelos factos e os factos pelos homens”. E repetia diariamente aos seus co-
laboradores: “Contem histórias, façam os homens viver!” O grande público
interessa-se mais por um lead que diga “Obama telefonou a Cavaco” do
que “Os Estados Unidos enviaram uma mensagem ao presidente português”.
E a personalização da política traz para primeiro plano a produção de sinais
e índices de apresentação de si, que sempre damos e que os outros sempre
decifram (como vimos em Goffman).
Essa imagem é uma reprodução mais ou menos fiel de quem se apre-
senta. É o conjunto de traços que se preferiu exibir à observação pública,
uma selecção, uma recomposição, uma maqueta. Se pensarmos no concei-
to de duplo corpo do rei, custa-nos menos a compreender que se construa
a figura oficial com alguma autonomia em relação à figura real. Mussolini
dizia: há que “fazer da própria vida a sua obra-prima”. De Gaulle (apud
Schwartzenberg 133) deixou escrito nas suas memórias: “Os maiores medem
cuidadosamente as suas intervenções. Fazem delas uma arte”. Já muito an-
tes, César e Napoleão escreveram para impor ao futuro a sua própria visão
da sua personagem, recompondo-a.
Uma vez fixada uma imagem, há que evitar as rupturas súbitas, de modo
que muitos dirigentes podem ficar, como De Gaulle, prisioneiros da sua
própria coerência; mas são mais numerosos os casos de uma mudança re-
pentina que destrói a figura em que se acreditava e não dá tempo de
acreditar na que passa a apresentar-se – como dizem os publicitários, é
mais fácil criar uma imagem de marca do que trocar de imagem.
Repare-se, no entanto, que pode haver personalização do poder político
como forma de dar um rosto a um programa (por exemplo, Roosevelt e o
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3 . S U S P EI TA S S O B RE O E S P EC TÁC U LO
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“Se algum dos que não é suposto mentirem for apanhado a fazê-lo, deve-
rá ser severamente punido: põe em risco, de modo subversivo a segurança
da cidade, como o tripulante incauto poderá provocar o naufrágio do navio.”
É por isso que Platão se opõe a todos os eventuais concorrentes do filóso-
fo: não apenas aos poetas, mas também a retóricos, a sofistas, a todos os
relativistas e subjectivistas, a todos os que saturam de mimese a polis des-
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que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora
que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância
da verdade. (…)
Contudo não é essa a maior acusação que fazemos à poesia: mas o dano
que ela pode causar até às pessoas honestas, com excepção de um escassíssimo
número, isso é que é o grande perigo. (…) Ouve e repara. Os melhores de
entre nós, quando escutam Homero ou qualquer poeta trágico a imitar um
herói que está aflito e se espraia numa extensa tirada cheia de gemidos, ou
os que cantam e batem no peito, sabem que gostamos disso, e que nos
entregamos a eles, e os seguimos, sofrendo com eles, e com toda a seriedade
elogiamos o poeta, como sendo bom, por nos ter provocado até ao máximo
essas disposições. (…)
Mas quando sobrevém a qualquer um de nós um luto pessoal, reparaste
que nos gabamos do contrário, se formos capazes de nos mantermos tranquilos
e de sermos fortes, entendendo que esta atitude é característica de um homem,
ao passo que aquela, que há pouco louvámos, o é de uma mulher? (…)
Se pensares que a parte da alma que há pouco contínhamos pela força,
nos desgostos pessoais, que tem sede de lágrimas e de gemidos em abundância
até se saciar, porque a sua natureza é tal que a leva a ter esses desejos, é,
nessas alturas, a parte a que os poetas dão satisfação e regozijo. Ao passo
que a parte de nós que é a melhor por natureza, por não estar suficientemente
educada pela razão e pelo hábito, abranda a vigilância dessa parte às
lamentações, a pretexto de que está a contemplar males alheios. (Platão 605
b, c, d, e, 606 a)
Encontrámos já, nesta matriz platónica, muitos dos elementos que recor-
rerão até hoje. A preocupação que subjaz é o receio de abrir fissuras na
consciência totalmente adequada a si mesma, identificada com a Razão,
receio tanto maior quanto se considera que, mesmo dentro de cada um,
existem duas almas, e uma delas é irracional. Ora, para Platão, “por onde
a razão, como uma brisa, nos levar, é por aí que devemos ir”. Toda a sua
obra é uma persistente arquitectura da supremacia da Razão. Ele teme os
nossos raciocínios se mergulhados no mundo sensível, meras sombras da
Razão com maiúscula. Teme que essa alma racional fraqueje e chore: “se o
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coliseu de Roma (inaugurado em 86 d. C.), introduziu a novidade da cor-
tina de boca de cena (que já aparece referida em 56 a. C.). Vale a pena
descrever um pouco a diversidade dos espectáculos romanos (cf. Vasques,
2003 e Carvalho), para melhor compreender a rejeição que provocaram.
Representavam-se tragédias e comédias, mas também dois outros géneros
novos. Um foi a chamada comédia atelana, porque, embora próxima de
certos divertimentos tradicionais latinos com fantasias e máscaras alegres
(as Saturas), foram actores vindos da cidade de Atela que a trouxeram para
Roma, de onde se difundiu: em vez de se basear num texto, desenvolvia
situações improvisadas com base em intrigas preordenadas e em quatro
figuras tipo fortemente caracterizados pelas máscaras e pelo comportamen-
to, sendo por isso considerada como a antecessora da Commedia dell’Arte.
O outro foi a pantomima, inspirada ou na Grécia ou na farsa popular rús-
tica, em que os actores já não usavam máscara nem, inicialmente, diziam
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Acreditais igualmente que Deus pode acarinhar o actor, que tão cuidado-
samente rapa a barba desfigurando, por essa infidelidade, a face que lhe foi
dada? (…) Pensais ainda que o uso das máscaras seja aprovado por Deus?
Pergunto-vos. Se ele proíbe toda a espécie de simulacros, quanto mais não
proibirá que se desfigure a sua imagem? Não, não: o autor da verdade não
poderia aprovar nada de falso. Se ele condena todas as espécies de hipocri-
sia, perdoaria a um actor, que imita a sua voz, a sua idade, o seu sexo? Que
finge estar apaixonado, ou estar encolerizado? Que chora lágrimas falsas, e
emite falsos suspiros?
E não faltam aí documentos provados acerca daqueles que o demo arpoou
nos espectáculos públicos e se afastaram de Deus. Pois ninguém pode servir
a dois senhores. Que tem a ver a luz com as trevas? Que tem a vida a ver
com a morte? (Tertuliano, in Barata 55-59 e Borie et al 41-45)
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São as cortes, onde o peso da riqueza económica se faz sentir, que fo-
mentam a arte do espectáculo, protegendo os que nele trabalham, quer a
nível teórico, quer a nível prático. A Lisboa das descobertas assiste ao flo-
rescimento do teatro vicentino, à teorização de António Ferreira e Sá de
Miranda; Veneza vê Ruzante, polemiza pela pena de Bembo; Florença tem
nos Medicis os protectores de uma plêiade de grandes escritores; Siena,
Ferrara assistem ao nascimento das primeiras companhias e academias,
exemplos que muitos irão beber na origem, transplantando-os para os seus
respectivos países; a nível cénico, triunfa a cena à italiana.
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lhe pagam desigualmente. Cada vez mais a sua arte caminha para a
comercialização, sujeita às leis da oferta e da procura. A Commedia dell’Arte
virá assinalar o primado do actor, de todas as suas virtualidades, o histrionismo,
perante uma sociedade que já compreendia o teatro como passatempo pago;
e porque passatempo, o mais apreciado não era o valor ideológico ou literário
do texto, mas sim os “acidentes” e a forma como os actores os resolvem.
( José Oliveira Barata 33-4)
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pode ter da fertilidade da linguagem, das suas figuras, das suas metáforas,
da sua ironia (dissimulatio). Há mentiras que prefiguram uma verdade, há
ilusões que são condutoras de realidades. Para os rigoristas, este universo
de mediações, em que o teatro está em casa e com ele a humanidade, é
evidentemente a abominação da desolação. (Marc Fumaroli 33,36-37)
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1 Curiosamente, quase nunca em França reflectem sobre o efeito que os homens, no palco
ou no público, poderiam ter sobre as mulheres espectadoras, como vimos acontecer com
Glaffo na antiga Roma; embora em Inglaterra, no fim do século XVI, o receio das representações
que já não se realizavam em casas particulares mas sim em recintos públicos, levasse certos
panfletos (como The School of Abuse, de 1579, por Stephen Gosson), a exortar a mulher a não
ir ao teatro, onde poderia ser objecto e até sujeito de contemplação e desejo. É Maria Helena
Serôdio (27-28) quem cita este panfleto, a partir dos estudos de Jean E. Howard.
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um coração caloroso, uma alma sensível para uma profissão tão bela.” No
mesmo sentido, em 1773, Louis-Sébastien Mercier (ibid. 224-5) estende a
crítica à própria figura do dramaturgo: ele deveria ser “o cantor da vir-
tude, o grande flagelador do vício, o homem do universo”, mas, “em vez
de se mostrar legislador, com esse orgulho legítimo adequado ao seu esta-
tuto, obedeceu vaidosamente ao gosto frívolo e mesquinho dos aristocratas
do seu século; depois incensou as loucuras agradáveis e perigosas de alguns
dos seus compatriotas; (…) tanto atraindo paixões nocivas com o pretexto
de as pintar, esqueceu que espalhava o contágio do exemplo ao mesmo
tempo que louvava a fidelidade do seu pincel.”
Não chega que o povo tenha pão e viva da sua condição. É preciso que
viva agradavelmente: a fim de que cumpra melhor os seus deveres, que se
atormente menos para deles sair, e que a ordem pública esteja melhor
estabelecida. (…) Quereis então tornar um povo activo e laborioso? Dai-lhe
festas, oferecei-lhe divertimentos que lhe façam amar o seu estado e o impeçam
de invejar outro mais doce. Alguns dias assim perdidos valorizarão mais todos
os outros. Presidi aos seus prazeres para os tornar honestos: é a verdadeira
maneira de animar os seus trabalhos. (…)
2Curiosamente, numa querela setecentista sobre a ópera, Rousseau, que também foi
compositor, defendeu a ópera italiana, mais emotiva, contra a francesa, mais espectacular.
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Temos já várias dessas festas públicas; tenhamos mais ainda. (…) Mas não
adoptemos esses espectáculos exclusivos que tristemente encerram um
pequeno número de pessoas num antro obscuro; que as mantêm temerosas
e imóveis no silêncio e na inacção; que não oferecem aos olhos mais que
tabiques, pontas de ferro, soldados, imagens aflitivas da servidão e da
desigualdade. Não, povos felizes, estas não são as vossas festas! É ao ar livre,
é debaixo do céu que é preciso reunir-vos e entregar-vos ao doce sentimento
da vossa felicidade.
Que os vossos prazeres não sejam efeminados nem mercenários, que nada
do que cheire a constrangimento e interesse os envenene, que sejam livres
e generosos como vós, que o sol ilumine os vossos espectáculos inocentes;
vós próprios vos transformareis num espectáculo, o mais digno que ele pos-
sa alumiar.
Mas quais serão enfim os assuntos destes espectáculos? O que se mostrará
aí? Nada, se quiserem. (…) Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada
de flores, reuni o povo em torno dela e tereis aí uma festa. Fazei melhor
ainda: dai os espectadores em espectáculo, tornai-os a eles próprios actores
(…). Não tenho necessidade de os enviar para os jogos dos gregos antigos:
existem outros mais modernos. (…) Temos revistas todos os anos; prémios
públicos, reis do arcabuz, do canhão, da navegação (…). E porque, seguindo
o modelos dos prémios militares, não fundaríamos outros prémios para a
ginástica, para a luta, a corrida, o disco, para diversos exercícios do corpo?
Porque não animaríamos os nossos barqueiros para competições sobre o
lago? ( Jean-Jacques Rousseau, in Borie et al 192-193)
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roco mediterrânico, temos razões para suspeitar de uma crítica que recusa a
mediação, como momento de divisão, de separação.” Daqui resulta, continua
Miranda, “a sensação de que Debord se deixa apanhar pela patologia apoca-
líptica, denunciando incansavelmente tudo e todos, levando-o a recusar a
negatividade, a divisão, a separação, em suma, a finitude do homem moder-
no. (...) Ele que recorria a procedimentos de negação que foram dos mais
radicais deste século, ao mesmo tempo recusa-os na teoria, sacrificando-os a
uma história da reconciliação final, da comunidade humana realizada e ‘sem
história’.” E repare-se que temos ainda mais razões para suspeitar dessa teoria
do espectáculo como negação da vida, devido ao próprio diagnóstico que
Debord faz de uma sociedade em que já tudo seria dado em espectáculo, não
havendo por isso uma vida exterior a ele.
Mas a ideia de Debord é ao mesmo tempo que as mediações espectacu-
lares nos estariam a afastar da vida. Repare-se que esta ideia já aparece, por
exemplo, no final da secção “Do prazer dramático” das Confissões de Santo
Agostinho (70): “Tal era a minha vida! Mas isto, meu Deus, podia chamar‑se
vida?” E reaparece desde então em vários autores. Vimos como Robert
Schwartzenberg veio aplicar o conceito debordiano da “sociedade do espectá
culo” a uma área específica mas decisiva da contemporaneidade, a que chama
“O Estado espectáculo”. E Giorgio Agamben, em A Comunidade que Vem (de
novo o tema da comunidade, como se viéssemos de uma comunidade, quan-
do sempre vivemos em sociedade) radicaliza a posição de Debord, porque
identifica o espectáculo com a perda da linguagem e, portanto, da política
humana: a era do espectáculo é a “do niilismo consumado”, embora se
possa procurar uma acção positiva no seio da nova situação.
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As artes a dois tempos (teatro de texto, música e dança com partitura) recuam
diante dos primeiros impulsos, o talento de execução empalidece diante do
génio da improvisação. (...)
Não ao desfasamento, à descolagem simbólica, sim à fatia de vida.
Encenação mas de uma recusa de encenar. Apoteose de “uma cultura que é
a vida”, segundo o voto exacto de Artaud, curiosamente transformado – sem
a participação cósmica nem o rigor pessoal – no politicamente correcto das
sociedades do lucro. (Régis Debray 8)
Repare-se como, em todo este contexto bem visível a partir dos anos 60,
a condenação das mediações espectaculares ressurge com uma conotação
oposta à dos rigoristas cristãos ou mesmo de Rousseau: não por excesso de
carne e de paixão, mas por demasiada distância em relação à carne e à paixão.
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O fluxo televisual dá-se como a própria vida e não como uma representação
da vida: como uma amostra do mundo tomada em directo e não como uma
transposição, um discurso sobre o mundo. (...) A videosfera nascida em 1968
coloca-se sob o signo do circuito curto. Promete o abreviado, o directo, a
máxima transitividade. (..)
As metáforas omnipresentes da carícia e do surf introduzem à nova
sociedade do contacto, ao mesmo tempo dura e descontraída, que relega a
‘sociedade do espectáculo’, com tudo o que ela exigia de composição e de
convenção, para um passado enfático, quase monárquico. A democracia do
momento: viver em contacto directo um universo com acesso directo (...)
Já nada escapa à grande viragem em que se deixaria de estar diante para
estar dentro. (...) E o ‘todos para o palco, todos actores!’ já não é uma nostalgia
de quem faz os seus passeios solitários com falta de calor humano [Rousseau],
mas o sucesso contabilizável e palpável de um sistema tecnológico em plena
expansão, a ligação generalizada, que nos faz enfim tocar com os dedos
(push the button) a trilogia idílica Imediaticidade-Proximidade-Simplicidade.
(Régis Debray 7, 8, 12)
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significa não que não tenha havido representação mas simplesmente que
os participantes não se deram conta de que havia uma representação”.
Se negarmos a representação, em vez de a manipularmos, a maior parte de
nós fica à mercê dela, sem grande possibilidade de regresso à coisa repre-
sentada, muito mais do que quando essa representação era marcada e
sinalizada – quando o mascarado usava (punha e tirava) a máscara. Por isso
“não devemos surpreendermo-nos por ver que, nas sociedades que adop-
taram sistemas de estatutos não igualitários e orientações religiosas
pronunciadas, os indivíduos tomam por vezes o conjunto do drama social
menos a sério do que nós e transgridem as barreiras sociais através de
signos rápidos que dão ao homem escondido por trás da máscara mais
importância do que nós julgaríamos permitido” (ibid. 231). Lévi-Strauss (12)
argumenta no mesmo sentido: “apesar de as suas funções serem quase
opostas, as máscaras não são menos indispensáveis ao grupo do que as
palavras. Uma sociedade que acredita que dispensou as máscaras só pode
ser uma sociedade em que as máscaras, mais poderosas do que alguma vez
o foram antes, vão por sua vez estar mascaradas para melhor enganarem
os homens.”
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4 . O S U J EI TO E A RE P RE S EN TAÇ ÃO
1. All the world is a stage. Repare-se como Shakespeare diz que todo o
mundo é um palco. A questão que muitas vezes se põe, e que, como já
veremos, Shakespeare não deixa de levantar, é se não haverá um resto que
não é representado nem representável e se não residirá nesse resto o mais
importante das nossas vidas. É como se o reconhecimento que até aqui
fizemos, com maior ou menor dificuldade, da dimensão estruturante da
representação, depois conhecesse uma dobra que se recusa a aceitar que
todos os outros, ou todo o eu, representam: uma vontade de encontrar
terra firme no oceano infinito dos espelhos. Álvaro de Campos desabafa
assim em dois poemas (67,296):
perder essas qualidades sem me perder a mim mesmo. Onde reside esse
eu, se não é no corpo, nem na alma?... Nunca pois amamos alguém, mas
apenas qualidades.”
Por isso, enquanto os ritos de passagem podem ser importantes ao fa-
zerem uma pessoa sentir-se integrada, ainda que seja pelas qualidades (de
idade ou de profissão, por exemplo), podem também, se forem ritos de
despedida, atirar brutalmente o indivíduo, de repente liberto da sua situa-
ção social, para um isolamento angustiante.
Outros casos onde sobressai como ferida a dualidade entre o que é
representado e algo que se supõe ser mais fundo ou mais importante en-
contram-se frequentemente nos doentes mentais. “O doente mental não fica
satisfeito com parecer ‘normal’, ele luta para ser ‘normal’. Paradoxalmente,
isto significa, em parte, que ele quer ‘parecer normal’ a si próprio. Lutar
por ‘parecer normal’ aos outros – ‘montando um show de normalidade’
interfere com este objectivo. (…) [O actor] é obrigado a ser o que proclama,
e os doentes mentais sugerem que estes constrangimentos operam ‘dentro’
do indivíduo tanto como ‘sobre’ ele. De facto, a sua necessidade de acre-
ditar nele próprio é até maior do que a sua necessidade de estar certo de
que os outros mantêm uma certa visão dele. Ele está agarrado a uma ética,
e viola essa ética na medida em que está on.” (Messinger 75-76, 81-82)
E os serviços da medicina (por vezes também os da psicologia) aí estão
para “tratar” quem não queira pertencer exclusivamente à personagem que
lhe pertence, quem não se encontre na situação em que se encontra.
Já um sujeito normal, segundo Lacan, é essencialmente alguém que se
coloca na posição de não levar a sério a maior parte do seu discurso interior.
Mesmo assim, mesmo nos casos ditos normais, “em certas circunstâncias na
vida de todos os dias o actor torna-se, ou é levado a tornar-se, consciente
de uma real ou potencial discrepância entre os seus eus ‘real’ e ‘projectado’,
entre o seu ‘eu’ e a sua ‘personagem’. Pode saudar essa discrepância que
sente com alegria ou com ansiedade; presumivelmente, costuma encontrar-
se algures entre estes dois pólos afectivos.” (Messinger 74)
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cioso, silenciado, em que cada vez mais só a uns poucos (os políticos, as
celebridades da televisão ou do espectáculo) é reconhecido o direito a
terem uma representação pública e a figura do “espectador” surge cada vez
mais como um ser passivo, mero observador afundado na sua interioridade
(e os estudos em comunicação não têm parado de mostrar como face à
exibição diária de catástrofes e múltiplas violências nos tornamos especta-
dores mais passivos, que vêem mas não respondem, percebem mas não
agem, conhecem mas não têm responsabilidade.) Sennett (338-339) não
considera que apenas entendemos as instituições e acontecimentos em
termos de exibição de personalidade, porque “obviamente não é assim”:
“Entendemos que o poder é uma questão de interesses nacionais e inter-
nacionais, o jogo de classes e grupos étnicos, o conflito de regiões ou
religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento.”
Podemos ver neste diagnóstico de Sennett, feito em 1974, algo do que
discutimos na lição anterior a respeito de certa ideologia da imediaticidade
que grassa no final dos anos 60. “O localismo e a autonomia local”, diz
Sennett (339), “estão a tornar-se credos políticos generalizados, como se,
quanto mais íntima a escala, mais significado humano tivesse a experiência
das relações de poder – e isto mesmo quando as estruturas de poder reais
se transformam cada vez mais num sistema internacional. A comunidade
torna-se uma grande arma contra a sociedade, cujo grande vício é agora
considerado a sua impessoalidade. Mas a comunidade de poder não pode
passar de uma ilusão numa sociedade como a do ocidente industrial.”
Quando Max Weber (1983) analisava preocupadamente a burocracia como
fenómeno inerente à sociedade capitalista, não deixava de reconhecer que
é preferível, para quem concorre a um lugar, que a escolha seja mediada
por procedimentos burocráticos em vez de ser escolhida imediatamente a
pessoa que for mais familiar…
Sennett (338) procede à análise e denúncia desta ideologia da proximi-
dade: a intimidade localiza a experiência humana no que está próximo, “de
modo que o que está perto das circunstâncias imediatas da vida é o mais
importante”; “as pessoas procuram ou pressionam as outras para despirem
as barreiras dos costumes, maneiras e gestos que se põem no caminho da
franqueza e da abertura comum. A expectativa é de que, quando as relações
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Seja, porém, na rede, por carta ou face a face, quem sabe dizer, em
qualquer momento das suas palavras, pensamentos, actos e omissões, se
está a ser completamente sincero? E, se nunca podemos dizer se somos
completamente sinceros, nem destrinçar o quanto de verdade e o quanto
de fingimento existe no que fazemos, então talvez fosse melhor considerar
a sinceridade uma categoria numenal e deixá-la fora da discussão. No en-
tanto, a presença dominante da psicologização de que fala Sennett, e o
consequente encarniçamento com que tantos vêm defender o princípio da
sinceridade contra a “encenação”, obrigam a carrear vários argumentos que
mostrem como a questão do sujeito e da sua imaginada transparência são
hoje pensados com muita complexidade
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no nosso ‘foro interno’ (que é sem dúvida um mito) uma representação que
nos oferecemos a nós mesmos?” Como se vê deslumbrantemente no caso
de Fernando Pessoa, que, intuindo que nunca temos acesso ao “eu” como
sujeito total (apenas de enunciação), precisou de se desdobrar em perso-
nagens para se conhecer e existir. Ou em Mário de Sá-Carneiro, juntando
ao eu a correlação do outro: “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou qual-
quer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para
o Outro.” É também através do outro, do que ele pensa de mim e de como
ele se relaciona comigo, que eu me vou conhecendo. O dramaturgo italia-
no Luigi Pirandello publicou entre 1918 e 1935 uma série de peças sob o
colectivo e significativo título Máscaras Nuas, em que o eu é constituído
por facetas mutantes que escondem um abismo e só existe na relação com
os outros, podendo duas personagens ter noções contraditórias sobre uma
terceira. O que requer justamente uma abordagem comunicacional, desde
que não seja pelos esquemas mais primitivos das teorias da comunicação
(com emissor e receptor cartesianamente claros e distintos).
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mas sempre interlocução a mais de dois, por causa do Outro que existe em
mim sempre que falo e que existe no outro sempre que ele me escuta”. Donde:
1 + 1 = 3. Do lado do emissor, Jakobson não considera o factor que pode
desencadear o processo de comunicação. Para Lacan, se o sujeito fala, se ele
se dirige a um receptor, é porque não encontra em si o significante capaz
de dar sentido à sua própria fala, e o procura no outro, para que o outro,
que também o não possui, lho conceda: amar é dar o que se não tem. Mas,
nesta solicitação, eu não me dirijo ao outro, sujeito precário, como eu
desamparado, mas ao Outro do outro que, no meu desamparo, nele suponho.
(Eduardo Prado Coelho 459,461)
De facto, mais ainda do que Freud já fizera, Lacan veio mostrar a opaci-
dade do sujeito. Onde antes projectávamos um sujeito uno e soberano da
representação, passamos a ver um sujeito muito pouco “sujeito”: instável, sem
completa consciência do que diz e do que faz, como já o mostrara Nietzsche;
cindido, em múltiplos conflitos, com uma subjectividade que se constrói, como
processo, no domínio do irrepresentável. Lacan (159-160) reage contra o fac-
to de, a partir do cogito cartesiano, ter havido “a acentuação enganadora da
transparência do Eu em prejuízo da opacidade do significante que o determi-
na”: não existe “uma forma justa de responder à pergunta ‘Quem fala?’
quando se trata do sujeito do inconsciente. Porque essa resposta não poderia
vir dele, se ele não sabe o que diz, nem mesmo sabe que fala, como nos
ensina toda a experiência da análise. Por isso o lugar do inter-dito, que é o
intra-dito de um entre-dois-sujeitos, é esse mesmo onde se divide a transpa-
rência do sujeito clássico para passar aos efeitos do fading que especificam
o sujeito freudiano.”
Procurando afastar-se das noções lógica, gramatical, psicológica ou
transcendental, Lacan defende que “o ‘eu’ é um fenómeno da Linguagem, uma
‘aparição’ sua e não o seu centro ou orgão de apropriação.” A verdade é ‘dita’
pelo conjunto dos fenómenos culturais, permanecendo os participantes neles
fora dela. Como acrescenta Julia Kristeva (passim 82-112), ao reconhecermos
a presença incontornável da linguagem e a sua intertextualidade, colocamo
‑nos num inter-dito, que é um intra-dito entre sujeitos: passamos da transparência
cartesiana à opacidade freudiana, e da noção de “pessoa sujeito” a uma outra,
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O sujeito e a representação
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D rama e C omunicação
“O homem é menos ele quando fala na sua pessoa. Dêem-lhe uma más-
cara e ele dirá a verdade”, afirma no mesmo sentido Oscar Wilde. Ou, na
fórmula mais complexa mas por isso mesmo insuperável de Pessoa: “O poe-
ta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor
/ A dor que deveras sente.”
Ainda hoje se associa muitas vezes a poesia lírica à maior expressão de
um sujeito dito “verdadeiro”, apesar das posições de Pessoa sobre o fingi-
mento, ou das de Eliot sobre a impessoalidade da arte, ou do tão célebre
verso de Rimbaud “Je est un autre”. Ou seja, na lírica a busca desse além
da aparência e da realidade reverte frequentemente para os abismos do eu.
Creio ser na ficção, enquanto criação de seres (personagens, lugares, situa
ções, acções) imaginários, ou de mesclas de seres imaginários com seres
reais, em todo o caso directa ou indirectamente pertinentes para nós, que
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O sujeito e a representação
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O sujeito e a representação
Ou seja, Hamlet reconhece que há coisas que podem ser fingidas por
sinais como o luto, as lágrimas e os suspiros, mas, pelo menos nele, Hamlet,
que, apesar de continuar a vestir-se de preto e a mostrar sinais de dor, se
recusa a dar importância a esse jogo, há alguma coisa que não entra no
jogo da representação. Sintoma evidente de que já se destaca uma noção
de pessoa, presente também na recomendação de Polónio ao filho, to thine
own self be true. Vários autores têm mostrado como o indivíduo renascentista
já não se quer agrilhoado à condição feudal de nascença e desenvolve uma
noção de carácter não herdado mas escolhido e construído por si próprio.
Sem chegar ainda à plena subjectividade, que só surgirá com o romantismo,
Hamlet aponta já para uma demanda de interioridade e profundidade:
“o que está em mim excede o gesto”.
Repare-se como este é o único verso afirmativo depois de tantas negações.
Por isso Terry Eagleton (171) pôde argumentar que “o sentido do eu único
de Hamlet mais não é do que a negação de tudo”. Como nota Wilhelm
Meister (Goethe Livro IV 319), “é em vão que seu tio o quer encorajar,
mostrar-lhe a sua situação sob um outro ponto de vista; o sentimento do
seu nada nunca o abandona”. O príncipe do reino podre, como outras
figuras de malcontent da tragédia jacobita, revela e produz um descentramento
que não tem ainda, nem terá talvez depois, mais do que o vazio a ocupar
o lugar dessa subjectividade. 2
2 Vários séculos mais tarde, Álvaro de Campos escreve de um modo que nos faz lembrar
esta problemática, no poema “Tabacaria”: “Como os que invocam espíritos invocam espíritos/
invoco a mim mesmo e não encontro nada.”
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D rama e C omunicação
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que há uma ausência de centro, uma disseminação, em que Hamlet deseja
e recusa as várias posições do sujeito que lhe são propostas, em que quem
agora vigia é depois vigiado, em que há uma constante “reversibilidade de
sentidos entre verdade e mentira, autenticidade e afectação” (Serôdio 180),
“dúzias de confrontações com retratos, imagens e espelhos” (Frye, 1986:93).
E se Hamlet tem sido chamada a Esfinge ou a Mona Lisa do teatro, melhor
seria chamar-lhe, pelo seu poliedrismo, a Demoiselle d’Avignon.
Mesmo alguém tão infinitamente perceptivo como Hamlet acaba por aceitar
(é certo que com tristeza e claustrofobia) que ser humano é ser finito, é ser
em certo sentido um prisioneiro (Frye, 1986:98). Stanley Cavell vê a evolução
de Hamlet, dividido entre to be or not to be, como um trabalho progressivo de
aprendizagem do luto por parte de alguém que quer viver e provar que existe,
e para isso tem de abandonar passo a passo o cepticismo ligado ao infinito,
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D rama e C omunicação
ao vazio, à negação do valor do mundo: porque, diz Cavell (187), to be, “existir,
é tomar nas mãos a sua existência, passá-la ao acto, como se a base da
existência humana fosse o teatro” – mesmo que algures guardemos, como
Hamlet, a sensação de que se é estranho a essa finita e melodramática condição
humana3.
“Não conheço o parece”, nem as vestes rituais, nem a máscara da dor,
nem todos os sinais que podem ser representados e fingidos. Isto diz Hamlet
na segunda cena da peça. Com o tempo, porém, o que faz ele? Representa
e faz representar. Começa a tomar atitudes estranhas, an antic disposition,
de modo que nem Ofélia, nem Polónio, nem a mãe, nem porventura ele
próprio, sabem já onde estão as fronteiras entre o fingidor e o fingimento,
entre a razão e a loucura. O que pretende com essa afectação? Desmascarar
as falsidades e venalidades de personagens como Polónio, Rosencrantz,
Guildenstern e sobretudo o rei e a rainha, se as tiverem. E para levar a
cabo o que o seu próprio fantasma lhe pede, acaba por aderir à teatralida-
de, tornando-se dramaturgo e encenador de uma pequena peça. Hamlet
conhece o poder da exteriorização teatral, de colocar o homem a ver de
fora os seus próprios actos (e, ao contrário de Platão ou Rousseau, não
teme que esse espectador se comova, antes, como Aristóteles, valoriza esse
efeito): “Ouvi contar / Que certos criminosos, assistindo a uma peça, /
Foram de tal forma, e até ao fundo da alma, atingidos pela arte da cena /
Que logo confessaram seus maus actos” (Acto II, cena 2). E decide fazer o
mesmo para, estudando a reacção de Cláudio, ficar finalmente a saber se
foi ou não o tio quem assassinou o pai. O drama torna-se o seu pharmakon,
o seu contra-veneno. Eis uma grande evolução, para quem tinha começado
por declarar que nem sequer conhecia os “parece”, os fingimentos, e afinal
só consegue o que quer por meio do teatro: “The play’s the thing”, diz na
frase que encerra o 2º acto.
3 Tão estranho permanece Robert Walser a este processo que rejeita claramente Hamlet:
“Vemos justamente graças a Hamlet que o amadurecimento é uma obrigação, por isso uma
coisa completamente indesejável. Para nós, que vivemos, é antes uma imaturidade bem gentil,
alegre, que devemos desejar. (…) Na vida, a sabedoria suprema é a alegria de viver, a de
existir aqui em baixo, isto é, tanto quanto possível, ficar imaturo.” Ver “Ensaio sobre Hamlet”,
de 1926, em Walser, p. 74.
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O sujeito e a representação
No fim dessa peça, Hamlet fica a saber o que quer e parece até sentir
algum desprezo pelas personagens mais simples e unidimensionais, como
Laertes. Se quisermos usar os termos da psicologia, ele passou do quadro
do play-action ao do play-acting, da acção à actuação: tal como as crianças,
que vão aprendendo que não lhes basta querer uma coisa ou berrar por
ela, e que terão melhores resultados se desenvolverem estratégias comuni-
cacionais para a conseguirem.
Se afinal não podemos recusar o parecer e se os nossos objectivos só
podem ser realizados através de uma deliberada estratégia perspectivista
de representação e encenação, quer dizer que há uma dimensão dramática
fundamental na nossa existência em sociedade, na comunicação. Podemos
com a evolução de Hamlet perceber que a identidade de alguém não é
aquilo que escapa ao jogo da representação, mas, pelo contrário, que a
identidade, pelo menos a identidade social (mas haverá outra?) só começa
a existir quando alguém se situa nesse jogo. Hamlet só depois da represen-
tação, e até da peça, é que começa a saber quem é e quem os outros são.
A máscara, persona, é constitutiva da pessoa, da identidade, muito embora
hoje tenhamos sempre tendência a falar dela, com alguma facilidade, no
sentido pejorativo.
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O sujeito e a representação
Gloucester, aquele que o matou, e que ali mesmo lhe declara o seu amor.
Ana chama-lhe fingidor, dissembler, mas o caso é que, ao longo desta genial
cena, a rainha, e o espectador com ela, acabam por começar a acreditar nas
palavras e gestos do assassino, e por desculpar o acto em nome da paixão.
É só no fim da cena que, em monólogo, Gloucester se auto-desmascara, fala
da sua aparência dissimulada, revelando-se ele próprio surpreendido com o
resultado da sua brilhante performance: conseguiu conquistá-la sozinho, no
próprio momento do funeral do marido dela, diante do próprio corpo que
esfaqueou, tal como lhe assassinou o sogro! Ele, que ainda por cima é coxo
e corcunda e não faz tenção de a manter por muito tempo?
Significa isto que ele é cínico? Gloucester conclui o contrário: antes é
que andava enganado sobre a sua pessoa (I do mistake my person all this
while). Ele não duvida da representação face aos resultados que teve, du-
vida é daquela “pessoa que antes pensava ser”. É que a representação tem
efeitos, e muito concretos: Gloucester há-de chegar a rei, e passar a achar
que é essa a sua mais evidente e inatingível identidade – tal como o alferes
do conto de Machado de Assis trocou de bom grado as suas dúvidas exis-
tenciais pela sua espelhada imagem de farda.
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D rama e C omunicação
Essa genial cena de Ricardo III acaba com o Duque a pedir ao sol que
brilhe para que ele possa ver a sua sombra quando passa. Mantenhamos
ainda a dúvida do início desta lição: será que podemos mesmo abrir mão,
sem mais, de alguma distinção entre o ser e a sua representada projecção?
Entre o I e o Me, para usarmos os termos dos interaccionistas, isto é, entre o
meu íntimo e o papel social que desempenho? Ou, para usar os termos de
Paul Ricoeur, entre a parte de mim que é sólida e constante, o idem, e aque-
la parte que se vai transformando no contacto com o outro, o ipse? Mas se o
próprio Hamlet já tinha, no século XVI, tantas dúvidas sobre a sua solidez, se
já Iago, no início de Othello, exclamava “I am not what I am”, como podemos
nós agarrar-nos a tal ideia, depois de vermos Fernando Pessoa encontrar a
sua identidade no desdobramento, depois de lermos Joyce oscilar sem defi-
nição nem marcas entre o seu discurso e o das personagens, depois da
crítica do sujeito por parte da psicanálise, da filosofia da linguagem, da her-
menêutica, do estruturalismo, do desconstrutivismo, e quando os mesmos já
nos fizeram compreender que a linguagem também não é um instrumento
dócil, depois de a modernidade tardia se ter definido como época de simu-
lacros... Nós, que vivemos numa época que Gilles Lipovetski bem definiu
como “sismográfica”, em que o idem, a parte sólida, é cada vez menor porque
se tende a mudar constantemente de casa, de profissão, de parceiro, de hob-
bies... Já numa das suas primeiras peças, Man ist Man (de 1926), Brecht
mostra, segundo o comentário de Benjamin (1987:86), que “um homem é um
homem, um estivador é um mercenário. Ele convive com a sua natureza de
mercenário, do mesmo modo que convivera com a sua natureza de estiva-
dor. Um homem é um homem: não se trata de fidelidade à sua própria
essência, e sim da disposição constante para receber uma nova essência.”
Agamben (2010:68) considera que é ainda a culpa oriunda da ética as-
cética dos estóicos, “porque fundada numa cisão (entre o indivíduo e a sua
máscara, entre a pessoa ética e a jurídica)” que, por reacção (num tempo
em que a identidade é cada vez mais sem pessoa, fundada em processos
biométricos ou biológicos, impressões digitais ou ADN), faz actualmente
surgir “a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita das
máscaras. No momento em que prega o indivíduo a uma identidade pura-
mente biológica e associal, promete-lhe que o deixará assumir na Internet
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O sujeito e a representação
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D rama e C omunicação
PEER GYNT: Ah! Velho louco, com a cabeça sempre cheia de fantasias!
Tu não és imperador nenhum, és só uma cebola! E eu agora vou descascar
‑te, querido Peer! Não te serve de nada chorar nem suplicar. (Pega numa
cebola e descasca-a capa por capa.)
Aqui vai a capa de fora, toda rota: é o homem naufragado, agarrado aos
destroços do barco.
Esta capa é o passageiro – está miserável e gasta, mas conserva ainda um
leve sabor a Peer Gynt.
Esta que está por baixo é o eu do explorador de minas de ouro; já não
tem sumo nenhum, se é que alguma vez o teve.
Esta capa grossa, com a camada ressequida, é o caçador de peles da baía
do Hudson.
A que vem a seguir parece uma coroa – não, muito obrigado! Vamos
deitá-la fora sem mais explicações.
Esta é o arqueólogo, pequena mas vigorosa.
E esta, fresca e suculenta, é o profeta. Como dizem as escrituras, ele
tresanda tanto a mentiras que enche de lágrimas os olhos das boas pessoas.
Esta capa que se enrola sobre si, muito delicada, é o grande senhor que
leva uma vida de luxo e prazer.
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D rama e C omunicação
A que vem a seguir parece doente. Tem estrias pretas; o preto pode
significar escravos e missionários.
(Tira várias capas de uma vez.)
Mas as capas nunca mais acabam! Quando é que o coração aparece?
(Desfaz a cebola em pedaços.)
Não, ele não aparece! Chega-se ao interior mais interior do centro e não
há nada, só capas – capas pequenas, cada vez mais pequenas. A natureza é
muito engraçada!
(Atira fora o resto.)
Acabaram-se as meditações! Quem anda mergulhado em pensamentos
profundos, tropeça com facilidade.
Desse perigo posso eu rir-me à vontade, porque já estou de gatas no
chão. (Henrik Ibsen 4)
Sabemos assim, cenicamente, que não há uma identidade última que pos-
sa dizer a verdade sobre as outras. Samuel Beckett avisou: arrancadas todas
as máscaras, por trás estaria o vazio ou a morte. A cebola não tem caroço,
apenas capas. No jogo tenso, dramático, entre a representação e a realidade
que a excede e lhe resiste, a verdade será sempre procurada mas sempre
existirá apenas, parcialmente, pluralmente, como ideal a regular as múltiplas
posições do grande teatro do mundo, ou do mundo como teatro. A busca de
uma subjectividade que é da ordem do fantasma cresceu nos últimos séculos
mas essa subjectividade é menos real do que as máscaras que assumimos.
Isto não significa que devamos abandonar uma busca que, em termos de
crescimento pessoal, nos pode levar cada vez mais longe, além das represen-
tações superficiais e estereotipadas. O valor de Peer Gynt é justamente ter até
ao fim procurado ir mais fundo no conhecimento do mundo e de si próprio.
Mas quanto melhor conhecermos e assumirmos as máscaras maior liberdade
e profundidade poderemos ter nessa subjectiva demanda.
É essa, ou pode ser essa, a importância de assumirmos e pensarmos o
espectáculo, o theatron, o dar a ver. Temos de recuperar para a teoria da
4 Usámos a versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos para o espectáculo de
2002. Não publicada.
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O sujeito e a representação
comunicação este programa: theatrum mundi, el gran teatro del mundo, all
the world is a stage. Felizmente que a representação nos pode dar, como deu
a Hamlet, perspectiva e clarividência. Ao mesmo tempo que a análise drama-
túrgica permite estar atento às máscaras e encenações que sem ela poderiam
passar despercebidas e mais perigosamente eficazes, a arte do drama profis-
sional surge como um território onde pode haver espaço e tempo físicos para
o risco do desnudamento, para ir descascando as várias máscaras e para lhes
ir dando, não um caroço, mas uma encarnação possível. Porque assistir silen-
cioso às máscaras estereotipadas das vedetas da política ou da televisão é
menos interessante do que assistir, e mesmo participar, nesse acto vertigino-
so em que os profissionais do espectáculo, que mais devem saber das
máscaras, aceitam (quando aceitam) brincar com elas e tirá-las, com uma
atracção pelo perspectivismo e uma vulnerabilidade a que os outros não se
sujeitam. Nesse sentido, o drama é ou pode ser o sal da terra, em vez do mel:
pode ser a representação menos convencional, a palavra, o silêncio ou o
gesto mais vitais, aquele sal reconhecido tardiamente, como revelação e cas-
tigo, na Guardadora de Patos, aliás Cordélia.
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(Página deixada propositadamente em branco)
5 . A N T RO P O L O G I A DO E S P EC TÁC U LO
outra prática ainda mais extraordinária: além dos ex-votos em cera – pernas,
joelhos, braços, cabeças – que as pessoas que estiveram doentes promete-
ram oferecer à Virgem e que são comuns em muitas outras partes,
sobretudo do Norte do país, esta é uma procissão a quem alguém que es-
teja em risco de morrer, ou os familiares desse alguém, podem prometer
levar essa entidade mais abstracta que é a própria morte. Como pode ser
ela figurada? A pessoa que esteve à beira da morte e se salvou é deitada
num caixão, a cara é coberta com um pano e é carregada como morta pe-
los seus familiares, para depois como que ressuscitar frente à capela da
Senhora Aparecida. É justamente a essa parte da procissão, quando são
levados os caixões, que no ano em que foi feito o filme o padre decide
não se associar, para grande indignação do povo, como se vê e ouve no
filme, onde nortenhamente se discute se essa prática é ou não é católica.
O jovem padre é inflexível e só encabeça a procissão mais tarde, quando
saem os andores, rodeados de crianças vestidas de anjinhos e outras figuras
bíblicas. Aí temos um exemplo de um ritual parcialmente católico e par-
cialmente rejeitado pela igreja católica como pagão.
Por outro lado, podemos também pensar no carnaval, que ainda há
poucos anos estava tão presente em Portugal com as suas máscaras e jogos,
que nada tinha de religioso e era mesmo o reverso da religião estabelecida.
Em pesquisa que realizei sobre o Carnaval, no início dos anos 80, em pe-
quenas aldeias da Beira (Monteiro, 1984), deparei com actividades pagãs,
tradicionalmente ligadas ao final do Inverno, e constatei, com espanto, como
ainda nos anos 40 as autoridades religiosas tinham de fazer abundante
propaganda nas aldeias e nas próprias vilas, com folhetos a explicarem os
fundamentos e preceitos da Páscoa. As senhoras mais religiosas da Lousã
fechavam-se na igreja matriz durante o Carnaval, rezando contra aquelas
heresias e tentando introduzir, depois da Quaresma, a Páscoa, como uma
forma de expiar tais práticas pagãs. Sendo uma religião do pecado, a Igreja
católica tem uma grande capacidade de incorporar e digerir elementos que
lhe são exteriores: permite por exemplo que haja o Carnaval, com todos os
excessos de raiz pagã das festividades carnavalescas, e depois impõe uma
Quaresma purificadora e uma Páscoa redentora.
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Enquanto que nas festas “oficiais” era marcada a hierarquia, com a exposição
dos signos que assinalavam os diversos lugares ocupados – bandeiras, brasões,
vestuário, ornamentos – as festas populares, abalavam esta ordem e punham
o mundo às avessas: assim se pôde falar de um “realismo grotesco”, a propósito
desta cultura popular. Bakhtine mostra que o princípio do grotesco, cuja
implicação mina, por um riso radical, a seriedade hierárquica, tem algo a ver
com um certo uso do corpo. ( José Gil, 1980:63)
157
Francastel estudou as imensas festas de rua que eram organizadas, pro-
cissões com muitas estações (como ainda hoje a Via Sacra), cortejos com
máquinas complicadíssimas. E as entradas dos reis também davam lugar a
toda uma grande mise en scène de recepção ao monarca: “Maquiavel é
tanto quanto a Sacra Rappresentazione uma chave de explicação para a
Arte e o Teatro do Quattrocento” (ibid. 237).
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1 Oskar Kokoschka, o pintor cuja peça teatral de 1909, Assassino, a Esperança das Mulheres,
fazia parte de um programa com muitas semelhanças com o de Artaud, rejeitava no entanto
a fuga da “criatividade original” (ou baseada na tradição europeia) em direcção ao exotismo.
Cf. Christopher Innes (100-110).
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2 O próprio Artaud, aliás, chegou a dizer que “o importante é não crer que esta arte deva
permanecer sagrada, isto é, reservada”: muito embora requeira uma preparação, e portanto não
seja para qualquer um fazer, também não deve servir para distinguir ou isolar uns poucos.
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6 . U NIDA DE E P L U R A L IDA DE DO DR A M ÁT ICO
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U nidade e pluralidade do dramático
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D rama e C omunicação
dor: por isso tantos dos maiores poetas escreverem e escrevem, por
exemplo, sonetos, essa forma tão codificada. Igualmente significativo é o
facto de os próprios autores usarem frequentemente categorias genéricas
nos títulos ou subtítulos das suas obras: teatro, farsa, comédia, tragédia…
E assim como o criador sintoniza o seu trabalho em função de certos mo-
delos que já existem, também o receptor se sintoniza com as obras em
função de certos “horizontes de expectativa”, que em boa parte dizem res-
peito aos géneros e subgéneros (os teatros ingleses da época de Shakespeare
içavam até uma bandeira vermelha quando levavam à cena uma peça his-
tórica, uma preta quando era tragédia, uma branca se se tratava de farsa
ou peça-romance).
Mas o que se entende por género? A voz específica de um autor pode
ser reconhecida como um estilo; ele pode mesmo, em conjunto com outros,
formar uma corrente, uma escola, um movimento; mas tal não significa
necessariamente o reconhecimento de um género, porque esse movimento
pode não ter como característica distintiva propriedades discursivas mais
do que banais. Falamos em género quando a história dos eventos artísticos
leva a uma estabilização suficientemente coerente e estável da utilização
da linguagem para se cruzar com a poética geral. Esse cruzamento é que
pode, diz ainda Todorov (53), dar ao género “a honra de se tornar a per-
sonagem principal dos estudos literários”. No dizer de Henry James (apud
Todorov 48): “os géneros são a própria vida da literatura; reconhecê-los
inteiramente, ir até ao fim do sentido próprio de cada um, mergulhar pro-
fundamente na sua consistência – produz verdade e força”.
É para ir ao fundo das características do dramático e apenas para isso
que recorremos à questão dos géneros, tendo embora “consciência do ca-
rácter multívoco e até equívoco do termo” (Silva 385). Não vamos entrar
em questões infindáveis, que aliás, como lembra Aguiar e Silva (339), se
relacionam com problemas ontológicos e epistemológicos “da filosofia em
todas as épocas: a existência de universais e a sua natureza; a distinção e
a correlação categoriais entre o geral e o particular; a interacção de facto-
res lógico-invariantes nos processos de individuação; fundamentos e
critérios das operações classificativas, etc.” Evitamos a discussão sobre se
os géneros são categorias abstractas ou históricas. Embora saibamos que
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U nidade e pluralidade do dramático
2. É uso sábio começar por ver como a questão foi colocada pelos pen-
sadores gregos. Tanto Platão como Aristóteles propuseram diferentes
classificações alternativas, consoante os conteúdos, consoante as formas
métricas, mas, sobretudo, consoante aquilo que correspondia aos diferentes
modos da oralidade em que a literatura grega, toda ela, vivia. Se pensarmos
na experiência de ouvir um texto, compreendemos que é diferente uma só
175
D rama e C omunicação
pessoa falar sem mudar o timbre da voz (é o género a que Platão chama
expositivo ou narrativo), ou várias pessoas fingirem ter uma conversa entre
elas (no género dramático), ou ainda uma só pessoa falar mas periodicamen-
te mudar o timbre de voz para imitar outra pessoa (a epopeia, que já Platão
considerava um género misto, combina o narrativo e o dramático porque o
narrador dá por vezes a palavra às personagens, como podemos ver em
Homero, em Camões ou em tantos romances modernos).
Esta distinção essencial tem a ver com a situação de comunicação, com
aquilo a que a teoria dos géneros de Frye (1990) chama o “radical de
apresentação”. E basta-nos para iniciar a discussão do dramático, comparan
do-o com o narrativo, sem ter de aprofundar a questão da lírica, que foi
pensada por Aristóteles mas só foi individualizada e estudada como género
muito depois, no século XVI , e que tanta discussão tem gerado. A filósofa
Kate Hamburger, de quem trataremos um pouco mais adiante, provocou
em 1957 algum choque, porque, apesar de se inserir na teoria da literatura,
englobava tanto o dramático como o épico na mesma categoria da ficção,
entendida como criação de personagens, lugares, acções, presentes, passados
e futuros imaginários. Esta semelhança básica entre os dois, que tem aliás
permitido tantas adaptações de romances a peças e vice-versa, não impede
a autora de estudar como o mesmo material ficcional tem de se verter em
cada um dos géneros segundo regras próprias.
O essencial é perceber como a utilização da linguagem abre a possibi-
lidade da mentira e da invenção (pensemos na ambiguidade da raiz latina
fingere, moldar, criar figura a partir de molde, de onde derivam tanto fin-
gimento como ficção). A possibilidade da mentira está na natureza da
linguagem: é um espaço de liberdade para a criança e também para o
adulto. Se a sociedade faz as pessoas prometer e jurar é porque receia essa
mentira. Dito isto, é também essencial perceber como a ficcionalidade da
linguagem (seja na arte seja, por exemplo, nos discursos da publicidade, do
jornalismo, da pedagogia, do diário íntimo, embora cada um com a sua pró-
pria lógica de enunciação) pode ser desenvolvida em dois grandes géneros
ou modos: narrando os acontecimentos ou colocando pessoas de carne e
osso a mostrar esses acontecimentos (deixemos por agora de lado a hipóte-
se mista). A tradição anglo-saxónica (Henry James, por exemplo) tem
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U nidade e pluralidade do dramático
1 “A tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia (chega até a servir
‑se do metro épico), e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que
acrescentam a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência
representativa, quer na leitura, quer na cena; e também a vantagem que resulta de, adentro
de mais breves limites, perfeitamente realizar a imitação”. Poética, 1462b. No mesmo sentido
escreve Schiller em 1781: “descobriu-se que o método dramático por si mesmo, sem ter que
ver com a personificação teatral, tinha uma grande vantagem sobre todos os outros géneros
da poesia (…). Como de alguma maneira coloca sob os nossos olhos o mundo que ela nos
pinta, e que nos representa as paixões e os mais secretos movimentos do coração pelos
próprios discursos das personagens, é necessariamente superior em poder de efeito sobre a
poesia descritiva, da mesma maneira que a contemplação viva o é sobre o conhecimento
histórico. (…) Este grande privilégio do modo dramático, em, por assim dizer, surpreender a
alma nas suas operações mais misteriosas, está, absolutamente fora de questão no autor francês
[por comparação com o inglês]. (…) O génio próprio ao drama, que Shakespeare parece ter
tido em seu poder, como Próspero tinha Ariel, o verdadeiro espírito, digo, do género dramático,
cava mais profundamente a alma, mergulha no coração os traços mais acerados e instrui mais
vivamente que o romance ou a epopeia, e nem é preciso a representação sensível e real para
nos tornar particularmente recomendável esse género de poesia.” (Schiller, in Borie et al
229‑230)
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U nidade e pluralidade do dramático
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Em Praga, conheci um grande fotógrafo de teatro, Jaroslav Krej čí, que
me dizia: quando olhamos para uma boa fotografia de teatro (imaginemos,
de uma personagem a atirar uma cadeira pelo ar, ou simplesmente imóvel
numa cadeira), sentimos que se está a passar alguma coisa; e está a passar
‑se alguma coisa porque alguma coisa se passou antes; e depois disto vai
acontecer alguma coisa e nada vai ser como antigamente. Esta dinâmica
temporal é específica do dramático, como argumenta a filósofa Susanne
Langer (1980). Por vezes, o que distingue os grandes actores dos actores
médios é conseguirem, em cada momento, ter inscrito o que aconteceu
antes e o modo como vão terminar – o seu destino, se quisermos. (E uma
das dificuldades do teatro de vanguarda, como veremos no capítulo 9, é
precisamente como acentuar o presente e a novidade se o teatro se apro-
funda com a relação entre presente, passado e futuro.)
Por isso, diz Langer (323), conhecemos melhor os meandros do príncipe
Hamlet do que conhecemos a nossa própria vida: como princípio, meio e
fim, como unidade, como “forma que vai sendo preenchida” (conceito de
Charles Morgan que Langer elogia). É claro que também na nossa vida, se
for minimamente estruturada, temos um pouco essa sensação: se este livro
tiver alguma estrutura com princípio, meio e fim, faz sentir que em cada
182
U nidade e pluralidade do dramático
183
Mas, apesar dos argumentos de Langer (e de Kate Hamburger), creio que
a narrativa tem, de facto, mais relação com o passado: o simples facto de
haver um narrador empurra os acontecimentos para o pretérito, para um
antes do acto de os contar (até as histórias de antecipação e ficção cientí-
fica, como as de Ray Bradbury, são narradas no passado). Pelo contrário,
no drama absoluto, para além de o tempo da representação ser muito cur-
to para poder exprimir uma grande duração, não há narrador e assistirmos
ao que as personagens, fisicamente presentes, fazem e dizem diante de nós,
com um grande efeito de “aqui e agora”. Nesse sentido, Goethe (in Borie
et al 243) considera, na correspondência com Schiller, que a “principal
diferença consiste, então, em que o poeta épico representa os factos como
perfeitamente passados, e o poeta dramático como perfeitamente presentes.”
Pode objectar-se que não é óbvio que a temporalidade do drama seja
predominantemente o presente. De facto, quando as relações dos géneros
com o tempo começaram a ser sistematizadas (inicialmente por Humboldt
184
U nidade e pluralidade do dramático
185
D rama e C omunicação
Para operar saltos no tempo, o teatro pede por vezes ajuda ao espaço,
por exemplo mudando o cenário no intervalo entre os actos – e Lope de
Vega chega a defender que a representação de entremeses durante os in-
tervalos aumentará a noção de ter decorrido muito tempo quando se
retoma a peça. A própria ideia clássica da peça em três actos, tal como a
expressão aristotélica de procurar “o mais que é possível” caber dentro de
uma revolução do sol, ou a injunção de Corneille de “não ultrapassar de-
masiado as vinte e quatro horas”, ou a de Lope de Vega defendendo que
a acção “se passe no menos tempo que for possível (…), procurando, se
puder, em cada acto, não interromper o término do dia”, já são, com tantos
condicionais, o sintoma de uma dificuldade de cumprimento total da uni-
dade de tempo.
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U nidade e pluralidade do dramático
2 Como experiências limite para procurar escapar à unidade de acção citem-se algumas
obras futuristas. Em Simultaneità, de Marinetti, são postas em cena simultaneamente duas
acções completamente independentes, em lugares distintos. Outras vezes, os futuristas dão a
ideia de simultaneidade usando projecções para mostrar uma cena diferente da que ao mesmo
tempo decorre em cima do palco. Abolindo a unidade de acção, é muito provável que se
ponha em causa a unidade de lugar, e possivelmente também a de tempo: nas experiências
sintéticas de que falaremos no capítulo 9, os futuristas podem contar em poucos minutos meio
século de vida de um casal, como em Passatismo, de Corra e Settimelli. Cf. Coda, 1994.
187
D rama e C omunicação
É falso que uma representação qualquer seja tomada pela realidade, que
uma fábula dramática qualquer, na sua materialização, tenha alguma vez sido
credível nem, por um único instante, acreditada. A objecção vinda da
impossibilidade de passar uma primeira hora em Alexandria e a segunda em
Roma supõe que, no início da peça, o espectador se imagine realmente em
Alexandria, e creia que, tendo ido ao teatro, fez a viagem até ao Egipto e
que está a viver no tempo de António e Cleópatra. Seguramente aquele que
imagina isto pode imaginar mais ainda. Aquele que num dado momento pode
tomar a cena pelo palácio dos Ptolomeus também pode, meia hora depois,
tomá-la pelo promontório do Áccio. A ilusão, se é admitida, não tem limites
188
U nidade e pluralidade do dramático
certos, (…) não há razão para que um espírito vogando assim no êxtase
consulte o relógio. (Samuel Johnson, in Borie et al 208-209)
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D rama e C omunicação
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U nidade e pluralidade do dramático
4. Apesar da lei das três unidades, creio ser enganador falar apenas da
unidade do drama contra a pluralidade da narração, porque uma das ca-
racterísticas fundamentais do dramático é o facto de pluralizar – não as
acções, mas os pontos de vista. Vale a pena desenvolver este aspecto fun-
damental, que pode ficar ocultado pelas regras composicionais das
unidades. Em 1852, o Vitoriano Dallas (cf. Segre 81), muito influenciado
pelos românticos alemães, elaborou um esquema em que a lírica represen-
taria a unidade de um ser que se exprime, o drama representaria a
pluralidade das várias personagens e a épica a totalidade (porque nos dá
essas personagens mais o narrador que as enquadra, decifra e comenta).
E juntou-lhe uma distinção pelo uso das pessoas verbais: a primeira pessoa
do singular para a lírica, a segunda do plural para o drama e a terceira
pessoa do singular para a épica (em 1935, Roman Jakobson, in ibidem: 81,
desenvolveu esta formulação gramatical, considerando que a primeira pes-
soa do presente é o ponto de partida e o fio condutor da poesia lírica, a
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D rama e C omunicação
192
U nidade e pluralidade do dramático
Assim, não há praxis que não provenha do pathos. Quem podemos ima-
ginar como autor da pura praxis, não motivada? Só Deus, diz Aristóteles.
Só Deus e Chuck Norris, acrescentaríamos nós (e os seus filmes são tão
desinteressantes justamente porque a única razão para as personagens da-
rem tiros e pontapés é… ser um filme de acção). Simetricamente, não há
emoção que não acabe por dar origem a uma acção: o luto, o medo, o
desejo, podem paralisar uma pessoa durante uns momentos ou umas horas,
mas, excepto em casos que consideramos patológicos, esse sentimento aca-
bará por se resolver numa acção. As palavras emoção e movimento têm
aliás a mesma raiz, como se percebe nos termos mover e comover, ou, em
inglês, motion e emotion.
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D rama e C omunicação
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U nidade e pluralidade do dramático
sujeito, tal como esta subjectividade que consegue ser representada na sua
realização e na sua validade objectiva, (…) fornecem a forma e o conteúdo
da poesia dramática enquanto acção”. Isto deve-se também a que o indivíduo
dramático não é redutível à sua conclusa autonomia; antes, encontra-se
envolvido em luta e oposição com outros.
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D rama e C omunicação
5. Estas ideias vão ser bem retomadas pela neo-hegeliana Kate Hamburger,
precisamente porque vai partir da materialidade associada a cada um des-
tes géneros – ou seja, no caso do drama, parte da sua realização física numa
cena. O drama, diz Hamburger, está sujeito às limitações físicas do palco,
onde não há ninguém a introduzir e a comentar as personagens e as acções:
são as personagens que se criam a si próprias. O que existe no palco é o
que elas disserem e fizerem. Hamburger insiste demasiado no “disserem”,
nos diálogos, como se no palco só houvesse diálogos e não movimentos
corporais; já vimos mesmo, com Goffmann, que há uma complementarida-
de entre palavras e gestos e que, embora o dramático seja classicamente o
território da palavra, há dramas modernos em que as personagens nem
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U nidade e pluralidade do dramático
sequer falam. As acções podem até alterar a imagem transmitida pelas pa-
lavras; as personagens por vezes são apanhadas em rupturas, como já vimos
em Goffman, ou no Tartufo de Molière ou nos filmes de Jacques Rivette; a
questão é que só sei isso quando alguma coisa de contraditório passar ao
domínio da percepção. Esta é a limitação, mas também a graça, do teatro
e da vida: estamos limitados àquilo que vemos e ouvimos. A questão fun-
damental aqui é que, seja por palavras, seja por acções, as personagens
têm de exteriorizar o que está dentro delas: de outro modo, não existem,
porque não há ninguém que conte os acontecimentos e sentimentos por
elas. São as personagens que se criam a si mesmas, ou umas às outras, pelo
que dizem e fazem.
Hamburger dá o exemplo de uma personagem da peça Tasso, de Goethe.
Hofmannsthal escreveu a Goethe dizendo que ele tinha criado uma extra-
ordinária princesa misteriosa, introvertida, mas “se viu obrigado a estragar
a figura mais linda, fazendo-a falar sobre si mesma e declamar, quando o
seu carácter teria exigido o silêncio.” O problema é que, se ela não se ex-
teriorizasse, não existia. Imaginemos que todas as personagens eram assim,
com uma grande vida interior mas sem a exteriorizarem: não existia drama.
Já no romance não é assim: podemos saber tudo o que vai dentro das ca-
beças e corações das personagens. Como já notava Schlegel (in Borie et al
260-261): “para preencher as lacunas que os diálogos deixarão na história,
o narrador retoma a palavra em seu próprio nome e, descreve todas as
circunstâncias que devem ser conhecidas. O poeta dramático é obrigado a
renunciar a este meio.” Por isso Thomas Mann, em Estudos sobre o Teatro,
de 1908, diz que o teatro é uma “arte de silhuetas”.
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D rama e C omunicação
Nesse sentido, Thomas Mann tem razão: o romance vai mais longe. No
drama, não podemos entrar na cabeça e no coração e no passado das
personagens quando elas se escondem ou retraem. De facto, quando leio um
romance posso ficar a saber muito mais sobre o interior das personagens.
Alguém está a olhar para mim: se fosse num romance, eu poderia de imediato
saber o que pensa ou sente, se o narrador o explicasse. Mas repare-se que
esta situação do drama é também a situação da vida quotidiana, em que
também não sabemos o que se está a passar na cabeça das pessoas: só sabemos
aquilo que elas manifestarem. Podemos, como diz Goffman, estar atentos a
eventuais desfasamentos entre o que dizem e fazem (está a mostrar-se muito
interessado, mas por algum descuido descubro que está a pensar noutra coisa).
Estamos porém limitados à exteriorização das subjectividades internas ou da
sua falsificação: se a pessoa exterioriza o interesse, concluo que está interessada.
É a limitação do drama e é a limitação da nossa vida quotidiana. Todos nós,
com certeza, gostaríamos de conhecer melhor os nossos pais: serão felizes?
Tê-lo-ão sido? O que sentem? Um romance poderia dizer-nos tudo: no drama,
como na chamada vida real, sei apenas o que o meu pai ou a minha mãe me
quiserem dizer, ou o que eles traduzirem nas suas acções e gestos; aquilo que
eles não exteriorizarem de alguma forma, eu não conheço, não existe para
mim. No drama, é a mesma coisa: só existe o que as personagens manifestarem
em palavras, em sons, em silêncios e em gestos ou movimentos.
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U nidade e pluralidade do dramático
3 Como Hamlet quando decide ser, e portanto passar do domínio infinito dos seus
pensamentos para o campo limitado da presença e da acção no palco do mundo, que por
sinal o leva ao palco propriamente dito.
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D rama e C omunicação
te da câmara, mas sim como modo de narrar, com soluções próprias que
foram sendo inventadas, incluindo os saltos no tempo (elipses, flashbacks),
a montagem paralela, a narração em off, e que o foram aproximando do
romance assimptoticamente, isto é, chegando cada vez mais perto mas sem
nunca alcançar a elasticidade temporal e espacial da narrativa escrita 4.
4 Devo várias destas reflexões ao seminário de Christian Metz “Théorie du film: l’énonciation
comparée”, que em 1990/91 frequentei em Paris III. Que eu saiba, o conteúdo dessas aulas
não foi publicado, devido à morte prematura do autor. Algumas podem, porém, ser encontradas
no livro L’énontiation impersonelle ou le site du film”.
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7 . DA CRI S E DO DR A M A E DA O B R A DE A R T E TOTA L
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Da crise do drama e da obra de arte total
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D rama e C omunicação
sado, mas o próprio passado: os ‘longos anos’ recordados sem cessar e ‘toda
esta vida desperdiçada, falhada’. Mas toda esta dimensão é inacessível ao
presente dramático. Pois apenas um elemento temporal pode ser tornado
presente no sentido de uma actualização dramática, e não o tempo em si
mesmo. E este tempo só pode, no drama, ser o objecto de uma narrativa”
(Szondi 26-27).
Daí a mestria que Ibsen tem de desenvolver para não pôr em causa a
forma dramática (a peça de 1867 Peer Gynt é uma excepção que confirma
a regra que depois sempre seguiu, porque nessa peça Ibsen põe em causa
as unidades de tempo e de lugar, seguindo as aventuras do protagonista
com uma extensão mais habitual no modo épico). Mestria redobrada, se
repararmos que, embora a temática de Ibsen “provenha inteiramente do
relacionamento interhumano, ela apenas se desenvolve, como seu reflexo,
na alma dos seres isolados e estranhos uns aos outros. (...) Os homens, em
Ibsen, só podem viver metidos dentro deles próprios e alimentando-se da
‘mentira da vida’” (ibid. 26). Mais uma vez, vemos como já não estamos no
domínio do drama clássico: em Édipo Rei, tantas vezes tomado como mo-
delo, a verdade é de natureza objectiva; em Ibsen, pelo contrário, toda a
verdade é interior, subjectiva. “Reconhecemos aqui a distância que, de for-
ma geral, afasta o mundo burguês da ruína trágica do herói. O trágico é-lhe
imanente, e não reside na morte, mas na vida” (ibid. 28).
Isolamento e passado é o que vamos encontrar também em Anton
Tchékhov (1860-1904), que lhes junta ainda o tempo do futuro utópico.
Continuemos com a argúcia de Szondi (28). “Nos dramas de Tchékhov, os
homens vivem sob o signo da renúncia. Renunciam sobretudo ao presente
e à comunicação, à felicidade do verdadeiro encontro. (...) A renúncia ao
presente, é a vida no passado e na utopia; a renúncia ao encontro, é a
solidão.” A peça As Três Irmãs, de 1900, mostra-nos as protagonistas a viver
em função do sonho de voltar a Moscovo, bem como os discursos de
Verchinine sobre a vida daí a duzentos ou trezentos ou mesmo mil anos.
É notável como os farrapos que constituem a matéria da peça lhe acabam
por dar uma notável coesão e eficácia. “Da mesma forma que os heróis dos
dramas Tchékhovianos persistem em viver uma vida mundana, apesar da
sua ausência psíquica, e que não retiram as últimas consequências da sua
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Da crise do drama e da obra de arte total
Mas mesmo o diálogo não tem peso, é como a pálida cor de base sobre
a qual se destacam, como manchas vivas, os monólogos arranjados em ré-
plicas onde se concentra o sentido do conjunto. (…) Não são monólogos no
sentido tradicional do termo. Não têm como fonte a situação, mas a temática.
O monólogo dramático, como mostrou G. Lukács, não formula nada que se
subtraia verdadeiramente à comunicação: “Hamlet esconde, por razões prá-
ticas, o seu estado de alma às pessoas da corte; talvez justamente porque
eles não compreenderiam muito bem que ele vai, e mesmo que ele deve
vingar o seu pai”. Em Tchékhov, tudo é diferente. As palavras são pronun-
ciadas bem no meio das pessoas e não no isolamento. Mas elas isolam
aquele que as pronuncia. Quase insensivelmente, o diálogo inconsistente
torna-se monólogo consistente. Não são monólogos isolados, integrados na
obra dialógica; seria mais verdadeiro dizer que a obra no seu conjunto se
afasta do drama para se tornar lírica. (Peter Szondi 31-32)
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Da crise do drama e da obra de arte total
O poeta imagina que a sua arte se eleva acima da do músico; este acreditaria
estar a rebaixar-se se consultasse o mestre de bailado; aquele não comunica
nunca com o desenhador; o pintor decorador não fala se não aos pintores
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D rama e C omunicação
Mas não foi Noverre quem mais marcou a posteridade. Foi Wagner. Ele
tentou de forma bastante sistemática levar mais longe um projecto de
Gesamtkunstwerk, obra de arte total. De algum modo, trata-se de uma nos-
talgia em relação ao antigo ritual: já não podendo as artes, como vimos no
capítulo 5, inscrever-se no ritual, podem pelo menos procurar inscrever-se
umas nas outras. O seu ensaio mais importante a este respeito intitula-se
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Da crise do drama e da obra de arte total
A obra de arte do futuro; vamos tratá-lo com pormenor por ser um texto
pouco citado e de grande relevância no panorama actual. Aí Wagner se
insurge contra a separação entre as várias artes. Só na associação, diz Wagner
(782), as artes, como as pessoas, encontram a liberdade: “só no Comunismo
é que o Egoísmo encontra a sua plena satisfação”.
Cada faculdade artística do homem tem os seus laços naturais, uma vez
que o homem não tem um único Sentido, mas diferentes Sentidos; enquanto
cada faculdade nasce do seu sentido especial e, dessa forma, cada faculdade
tem de encontrar os seus laços nos limites do seu sentido correlato. Mas as
fronteiras dos sentidos separados são também os seus pontos de junção e
de encontro, aqueles pontos onde eles se fundem uns com os outros e cada
um está de acordo com o outro; e exactamente o mesmo fazem as faculdades
que derivam de tocarem e concordarem umas com as outras. Por isso, os
seus limites são removidos por esse acordo; mas apenas aqueles que se amam
podem concordar, e “amar” significa: reconhecer o outro e ao mesmo tempo
conhecer-se a si mesmo. (Richard Wagner 781)
213
D rama e C omunicação
çar, que a poesia do seu tempo perdeu toda a força performativa: “em vez
de ao Ouvido, silenciosamente dirigida ao Olho; o esforço do poeta tornou
‑se um dialecto escrito – a respiração do poeta, o gatafunho do escrivão”
(782). Wagner lembra então aquela situação da mitologia em que o poeta,
com as suas palavras, conseguiu amansar as feras e conclui, com graça:
“as Líricas de Orfeu nunca teriam sido capazes de levar as bestas selvagens
ao silêncio e à plácida adoração, se o cantor lhes tivesse apenas dado uns
versos mudos e impressos para ler” (782-783).
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Da crise do drama e da obra de arte total
Onde a Poesia de bom grado reinaria sozinha, como na Peça falada, levou
a Música como sua criada, para a sua própria conveniência; como, por
exemplo, para entreter o público nos intervalos, ou mesmo para realçar o
efeito de certas transacções mudas, como a irrupção de um ladrão sorrateiro,
e assuntos dessa natureza! A Dança fez a mesma coisa. (…) Mas a Música
rematou finalmente toda esta arrogância empolada, com a sua desavergonhada
insolência na Ópera. (…) A Ópera, como aparente ponto de união das três
artes relacionadas, tornou-se no ponto de encontro dos maiores esforços de
busca interior destas irmãs. (…) Mas na medida em que a Poesia e a Dança
foram obrigadas a ser simples escravas da Música, nasceu entre as suas fileiras
egoístas um crescente espírito de rebelião contra a irmã dominadora. As artes
da Dança e da Poesia tinham tomado uma posse pessoal do Drama à sua
maneira: a Peça espectacular e o Ballet pantomímico eram os dois territórios
entre os quais a Ópera agora distribuía as suas tropas.
Assim a Ópera torna-se o compacto mútuo do egoísmo das três artes. (…)
Os cantores estarão expressamente proibidos de se entregarem a qualquer
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D rama e C omunicação
Não é, pois, a continuação dessa ópera que este enorme autor de ópe-
ras (que ele não vê como óperas, mas como obras, totais) quer fazer, mas
sim a criação de um outro tipo de obra: Gesamt, que significa conjunta.
Para lhe dar consistência teórica, vai fundar-se em duas ideias, a de fisica-
lidade e a de Povo (Volk), que ambas vão levar à supremacia da ideia de
drama. “O Poeta primeiro torna-se Homem através da sua tradução para o
corpo e sangue do Performer”: como na sua peculiar leitura do mito de
Orfeu, só é possível mudar “de ‘querer’ para ‘poder’” pelo “Querer do poe
ta que desce para o Poder do actor” (788). “Assim, a arte Poética não pode
de todo criar a obra de arte genuína – e esta só o é na medida em que é
trazida à manifestação física directa – sem aquelas artes às quais o espec-
táculo físico pertence directamente. O pensamento, esse mero fantasma da
realidade, não tem forma por si; e apenas quando retraça a estrada na qual
veio à luz pode atingir perceptibilidade artística. Na arte Poética, o objec-
tivo de toda a Arte chega primeiro à consciência: mas as outras artes
contêm nelas a Necessidade inconsciente que cria este objectivo” (782).
Ou seja, a manifestação física dá força às palavras, como no exemplo
de Orfeu, mas também as faz viver em zonas mais fundas da Necessidade
não consciente. “Nem foi o verdadeiro Épico-do-Povo, de nenhuma forma,
um mero poema recitado: as canções de Homero (…) tinham florescido no
meio do Povo, prolongadas pela voz e pelo gesto, como uma obra de arte
realizada pelo corpo.” Representaram um estádio intermédio entre a Lírica
e a Tragédia, e com esta a Obra de Arte do Povo entrou na arena pública
da vida política; e “só floresceu enquanto foi inspirada pelo espírito do
povo”, popular, comunitário (783). Neste aspecto, o ideário de Wagner é
profundamente romântico: também Victor Hugo (cf. Borie et al 300-303),
por exemplo, traçara uma evolução começando na ode, passando pela
epopeia e terminando no drama, capaz de conduzir um povo a conceber-se
como unidade nacional.
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ilustre entre os mestres”, que se correspondeu com ele e sobre ele escreveu
um decisivo artigo em 1861 – e em geral nos simbolistas. Mas, segundo
Marcella Lista (2006:7-12), com os simbolistas a ideia da obra de arte total
é substituída pela de sinestesia (por exemplo, uma “audição colorida”, um
tema que a ciência do século XIX vinha estudando e era muito usado pelas
artes experimentais e pelos movimentos ocultistas) e pela ideia de “corres-
pondências”, como união dos sentidos que podem ser relacionados através
dos símbolos. Baudelaire afirma várias vezes nesses anos 50 a sua crença
na “analogia universal, ou aquilo a que uma religião mística chama a cor-
respondência”, e que magnificamente fixou em 1857 no célebre poema
“Correspondances”:
Então, diz Lista (11), “[se] os sentidos correspondem uns aos outros na
caixa de ressonância que é a experiência sensorial humana, cada arte, por
si mesma, pode fazer apelo a esse diálogo interno da sensibilidade, a fim
de despertar a humanidade integral das origens.” Por exemplo, aos dezoito
anos, Paul Fort (1872-1960), a quem Verlaine chamará “Príncipe dos poetas”,
faz no virar do século, sob influência directa das “Correspondências”
baudelairianas, um espectáculo a partir do Cântico dos Cânticos de Salomão,
em torno de quatro elementos: palavra, música, cor e perfume; os
projectores de luz mudavam de cor a cada cena, tentando acompanhar o
ritmo das paixões; dos camarotes superiores, maquinistas de cena lançavam
perfumes sobre a plateia por meio de vaporizadores (cf. Vasques, 2008a:
182- 183).
No resto deste capítulo iremos centrar-nos em alguns teorizadores das
artes cénicas, seguidores de Wagner, que desenvolvem até hoje uma
determinada alternativa ao realismo, procurando uma poética própria do
palco, independente do texto literário ou mesmo auto-suficiente. Veremos
que nesses seguidores os elementos plásticos virão a encontrar uma
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tinha concretizado essa forma musicalmente – mas não tinha sabido realizá
‑la nem na escrita (veja-se a acção “exclusivamente interior” de Tristão, diz
Appia, apud Liébert 80) nem cenicamente: “não soube harmonizar a forma
representativa (a encenação) com a forma dramática que utilizava.”
Tomando o projecto de Wagner no ponto em que este o deixou incom-
pleto, Appia vai então pesquisar os modos de articular a música, as artes
visuais e o texto. A ideia de fusão das artes, em que Appia temia o caos,
é substituída pela da hierarquia das artes. A sua interessante teorização
sobre o palco como ponto de encontro entre o espaço e o tempo vai pri-
vilegiar, como ponto fulcral que articula esses dois planos, o trabalho do
actor (mais um eco de Wagner, que vimos dizer: “Quem será o Poeta? in-
discutivelmente o performer”).
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Note-se ainda que Appia revolucionou a iluminação no teatro – algo só
possível a partir da iluminação eléctrica. Com Appia, a luz ganhou uma
importância inédita como modo de estruturar a cenografia, e a sombra foi
considerada por ele tão importante como a luz para a relação do actor com
o espaço (e neste aspecto sente-se a presença do simbolismo). Nos mesmos
anos, a bailarina americana Loïe Fuller (oriunda do circo e do music-hall),
realizava em Paris experiências inovadoras de coreografia e iluminação
(colaborou com a cientista francesa Marie Curie e registou muitas patentes),
com a luminescência aplicada aos cenários e figurinos e com o uso de
enormes véus sustentados por paus. Algo que, no Instituto Jaques-Lacroze
e muito na concepção de Appia, a bailarina e coreógrafa Mary Wigman
desenvolverá, usando o figurino como “elementos plástico capaz de fazer
a dança e o corpo do bailarino sugerirem uma estatuária que se movimen-
ta no espaço” (ibid.:89).
Dentro dessa mesma visão, e nos mesmos primeiros vinte efervescentes
anos do século XX, destaca-se igualmente o inglês Gordon Craig (1872-1966),
filho de uma actriz e de um arquitecto e cenógrafo. Com notável talento
literário, Craig foi grande divulgador das novas ideias, as suas e muitas de
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Em 1923, Craig traça uma evolução do teatro do ponto de vista do es-
paço cénico, dividindo-o em cinco fases: a cena de pedra, na Grécia; a
igreja-teatro, na Idade Média; os tablados da commedia dell’arte; a pers-
pectiva; e finalmente, o “teatro do futuro” em que a cenografia reintroduz
a arquitectura no teatro. Chega a afirmar (apud Meyerhold, 1973:150) que
“O teatro tem tão pouca necessidade de um encenador que não seja cenó-
grafo, mesmo que tenha uma formação muito desenvolvida, como o
hospital não tem necessidade de um carrasco!” A escola que Craig fundou
em Florença em 1913 destinava-se sobretudo a cenógrafos, e entre muitas
disciplinas não havia propriamente formação de actor (embora houvesse
educação vocal, dicção e ginástica), porque Craig achava que a interpreta-
ção não se ensinava.
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A supermarioneta não rivalizará com a vida, mas irá além dela; não figurará
o corpo de carne e osso, mas o corpo em estado de êxtase, e enquanto
emanar dela um espírito vivo, revestir-se-á de uma beleza de morte. Essa
palavra morte vem naturalmente ao bico da pena por aproximação com a
palavra vida que os realistas reclamam constantemente. (Gordon Craig, in
Barata 117-119)
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início, mais decorativas nos últimos anos). Partindo dos seus próprios de-
senhos (ou, mais raramente, de fotografias), trabalhando constantemente
as desproporções, Bob Wilson cuida cada elemento visual, porque “muitas
vezes, no teatro, o que vemos impede-nos de ouvir” – tal como o que ou-
vimos nos impede de ver. Utiliza muitos ecrãs móveis, como Craig
imaginava, embora com mais influência da projecção cinematográfica. E cui-
da sobremaneira a iluminação, porventura a área em que foi mais inovador:
“talvez o elemento mais importante do teatro seja a luz, porque é aquilo
que nos faz ver e ouvir”.
Sublinhe-se que Wilson recolheu num aspecto a lição de Artaud e de
Brecht, e também do desconstrucionismo pós-estruturalista, para propor às
várias artes uma totalidade federativa, anti-wagneriana, não fusional, em
que se aproveita e tira partido do contraste entre elas, em que nenhuma
ilustra outra, em que o sentido, ou antes, os sentidos, vêm precisamente
do seu entrechoque e da dissonância. Consegue assim ir gerando, como
Brecht, a surpresa e o assombro: mas não para conseguir uma tomada de
posição crítica e política, antes para nos instalar numa espécie de sonho
acordado, talvez a beleza de morte de que falava Craig, em que, conforme
bem comenta Herbert Blau (1992:153), “apesar de todos os corpos em mo-
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vimento, há uma espécie de presença incorpórea. Pode bem ser isso que,
como no fetiche, o torna sedutor.” Conta-se que Aragon, tendo assistido a
Deafman’s Glance, desabafou que o sonho surrealista tinha finalmente en-
contrado realização cénica.
Uma última referência, a Pina Bausch: estudou dança nos Estados Unidos
e do modernismo que ali dominava a linguagem da dança reteve justamen-
te a ideia de promover o encontro entre as artes; mas não reteve a
abstracção geométrica desse modernismo, e o “teatro-dança” que fundou
centrou-se na figura humana, no quotidiano e na emoção (mais próximo,
portanto, da tradição expressionista alemã). O seu trabalho é a prova que
o projecto de cruzamento entre as artes não tem de se limitar a uma con-
cepção plástica ou arquitectural, como aquela a que atrás demos especial
ênfase, nem ao tratamento do performer como uma marioneta. Mas falare-
mos desse outro caminho no último capítulo.
Aquilo a que veremos Lehmann chamar o “teatro pósdramático”, e em
que engloba tanto Bob Wilson como Pina Bausch, apresenta-se quase sem-
pre como ponto de encontro das artes, obrigando a novas formas de
percepção: “não é surpreendente que com esta forma de teatro, os adeptos
de outras disciplinas (artes plásticas, dança, música) estejam frequentemen-
te mais à vontade do que os espectadores incondicionais do teatro
narrativo literário” (41).
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8 . A RI S TÓT E L E S E B REC H T
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Em 1809, Benjamin Constant (in ibid. 279-280) leva mais longe e com mais
claras implicações estas ideias de que “a paixão e o carácter são acessórios:
a acção da sociedade é o principal”. E logo a seguir, Constant toca no pon-
to que fará a grande viragem: “O espectador deve saber qual é o estado da
sociedade em si mesma independentemente do herói.”
Independentemente do herói! Compreende-se como esta viragem altera a
essência do drama clássico, em que tudo o que existia no palco dependia da
subjectividade das personagens. Tão funda é essa ruptura que não espanta
que o drama do século XIX, mesmo quando desenvolvia as condições sociais
das personagens (e apesar daquela afirmação solta de Constant), não se atre-
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Veremos daí a pouco que recursos técnicos Brecht vai utilizar. Mas ain-
da que não existissem projecções e motores ou Brecht não os usasse,
poderia haver teatro épico: pensemos em recursos tão antigos no teatro
como o prólogo ou o narrador (abolidos no Renascimento), que já por si
fazem com que as personagens não preencham completamente a represen-
tação e que, ao enquadrá-las, mostram que estão em representação2. Brecht
recupera esta figura do narrador, que a partir do século XVI fora afastada
do drama clássico e romântico (com algumas excepções nos dramas histó-
ricos). Com Brecht, voltam pois a existir em palco, lado a lado com os
elementos subjectivos, elementos objectivos que não provêm das persona-
gens. Não se pense, porém, que essa objectividade significa uma verdade
única. Pelo contrário, os elementos objectivos são introduzidos para acres-
centar elementos estranhos às personagens, que obrigam a problematizar.
Brecht não tem receio de exteriorização que o theatron implica, ele quer
mesmo que o espectador e até as personagens se vejam a si próprias como
que de fora. Daí o tão falado conceito de distanciação (ou Verfremdungseffekt)
brechtiano, do qual também aqui se impõe fazer uma pequena genealogia.
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que se fizesse exactamente o contrário, para ver se não seria ainda melhor.
Benjamin (1987:84) escreveu, com graça, que Brecht se “relaciona com a sua
história como o professor de ballet com sua aluna. A sua primeira preocupação
é flexibilizar as articulações da discípula até aos limites do possível.”
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empatia, procurando fazer o espectador esquecer que não está perante uma
fatia de vida, mas sim perante uma forma simbólica construída. A virtude
de Brecht está em não se ficar pela mera destruição da ilusão (ou pela
defesa de uma “ilusão imperfeita”, para usarmos os termos de Stendhal):
ele contrapõe-lhe certos mecanismos específicos de “distanciação”, ou de
estranheza, em que vale a pena determo-nos.
Antes de Brecht, já o teatro futurista tinha lutado contra o teatro naturalista
utilizando a surpresa, a agressão, a complicada maquinaria, sobretudo no
domínio da dança, para “corporizar a voz do inconsciente”. O objectivo de
Brecht não é, porém, desocultar o inconsciente: o esquecimento contra o
qual luta é mais o da convenção social de que falavam Nietzsche e Marx
do que o dos mecanismos do consciente/inconsciente estudados por Freud.
A partir da análise marxista da alienação, isto é, de um homem separado
da natureza, dos outros homens e daquilo que produz, Brecht imagina um
teatro não naturalista, que não apenas falaria desses temas da alienação
como erigiria essa separação em princípio geral: onde antes havia conti
nuidade, passa a haver divisão; onde antes havia a ilusão de uma unidade,
passa a haver desdobramento, “mundividência”. Interrupção e desdobramento
são os dois modos brechtianos de desenvolver a distância artística nos
espectáculos.
O princípio da interrupção, como Benjamin notou, já estava a ser usado
há uns anos pela imprensa, pela rádio, pela fotografia e pelo cinema: so-
bretudo pelo cinema, onde o conceito de montagem, a partir dos anos 10,
se tornou fundamental. Ora o teatro, pelo peso da fisicalidade de que antes
falámos, continuava a aspirar a uma continuidade de que a lei das três
unidades é problemático sintoma. Brecht propõe-se interromper a acção
dramática, para evitar a catarse e abrir novos espaços em que os actores e
os espectadores possam tomar posição relativamente às personagens, às
condições e aos acontecimentos: “é necessário renunciar a tudo o que re-
presente uma tentativa de hipnose, que provoque êxtases condenáveis.”
Por isso chama à sua proposta um teatro não aristotélico. Note-se que a
ideia de catarse não era uma figura apenas da Grécia antiga, e sim algo
que activamente se continuava a procurar nos teatros. Dê-se apenas um
exemplo: o tão lúcido Goehte (in Borie et al 245) recomendava a Schiller,
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elementos épicos como o narrador: mas Brecht quer mais do que isso, quer
que o próprio actor se desdobre. Repare-se que não se trata apenas de, na
escrita teatral de Brecht, surgirem processos em que uma personagem por
vezes se apresenta ou fala de si própria na terceira pessoa ou no passado,
ou através de um canção faz o comentário de si mesma: além dessas estra-
tégias textuais, Brecht pretende que também o próprio actor, em vez de se
transformar completamente na personagem, mantenha uma “atitude natural
de duplicidade”.
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espectador. (...) A sua descrição não terá menos valor se não reproduzir o
pânico que o acidente provocou: tê-lo-ia, sim, se o reproduzisse. O objectivo
da sua descrição não é criar emoções puras. (...)
Outro elemento essencial da cena de rua, também necessário num palco
(…), é ter uma projecção no domínio prático (...): há um compromisso social.
É fundamental que os circunstantes tenham a possibilidade de formar um
juízo crítico sobre o acidente. (...)
Há que descobrir uma perspectiva que permita ao narrador submeter o
seu estado de excitação a uma atitude crítica. Só será licito a este nosso
amigo imitar o tom excitado da vítima quando adoptar uma perspectiva bem
determinada, isto é, quando atacar os motoristas, por exemplo, porque pouco
fazem para encurtar o seu horário de trabalho. (“Se ele nem sequer está num
sindicato! Mas quando acontece alguma desgraça perde logo a calma! Estive
dez horas ao volante.”) (Bertold Brecht 112-113,118)
Assim, o actor não deve sobrepor-se àquilo que está a contar: “se a sua
capacidade de metamorfose desse nas vistas aos circunstantes, tal efeito
perturbaria a exibição”. Também “não tem de ‘arrastar’ ninguém consigo.”
Tal como aquele que começa a narrar o acidente, deve “reproduzir a entoa
ção da personagem por si descrita com uma determinada reserva, com
certa distância (de modo a que o espectador possa dizer: ‘Está excitado –
em vão, tarde de mais, finalmente’, etc.). Em suma, o actor não deve jamais
abandonar a atitude de narrador; tem de nos apresentar a pessoa que es-
tiver a descrever como alguém que lhe é alheio; no seu desempenho não
deverá nunca faltar a sugestão de uma terceira pessoa” (Brecht 111,119).
Não quer dizer que não tome posição: o actor também “manifesta senti-
mentos mas não necessariamente os mesmos do seu personagem”, e sempre
com a noção de que é pelos seus olhos que o espectador vê, o que lhe
aumenta a responsabilidade de criar perspectiva e evitar que o espectador
seja arrastado catarticamente pelos sentimentos da sua personagem.
É certo que, “no teatro épico, o actor tem várias funções, e o seu estilo
de representar varia de acordo com cada função” (apud Benjamin, 1987:87).
Mas há um princípio geral que rege essas variações: “mostrar é mais do
que ser” (Brecht 107). Há um “carácter de exposição” (85), que lembra os
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Pode perguntar-se se Brecht não coloca a fasquia tão alta que a sua
proposta se torne uma impossibilidade para o actor. Mas Brecht está segu-
ro de que é possível, porque já viu esse tipo de trabalho ser realizado em
palco. Argumenta que há várias tradições, diferentes do teatro burguês, que
provam como o seu projecto é possível. “Esta tentativa de distanciar do
público os acontecimentos representados manifesta-se já, em grau primitivo,
nas obras teatrais e pictóricas apresentadas nas tradicionais feiras anuais”,
ou nos panoramas dessas mesmas feiras, ou no modo como fala o palhaço
do circo (Brecht 89). Também se manifesta nos fantoches, poderíamos
acrescentar, lembrando-nos das impressões do personagem Wilhelm Meister
de Goethe diante do seu primeiro espectáculo: “Que não eram os próprios
fantoches quem falava, isso já eu tinha concluído da primeira vez; que eles
não se moviam por si próprios também eu suspeitava; mas porque é que,
apesar disso, aquilo era tudo tão engraçado e parecia mesmo que eram eles
próprios a falar e a mexer-se?” (Livro I:33) Mais tarde, o mesmo Wilhelm
(e estamos na Alemanha do século XVIII ) comentará assim o universo de
Shakespeare: “As suas personagens parecem ser pessoas naturais e, todavia,
não o são. Essas criaturas, que são as mais misteriosas e as mais complexas
da Natureza, agem diante de nós, nas suas peças, como se fossem relógios,
cujo mostrador e cuja caixa tivessem sido feitos de cristal; consoante a sua
finalidade, indicam o decurso das horas, mas, ao mesmo tempo, pode-se
reconhecer o mecanismo de molas e a engrenagem que os movem.” (Livro
III:253)
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Vemos assim que Brecht não propõe, como muitas vezes erradamente
se divulgou ou praticou, a total renúncia ao sentimento: em 1955, Brecht
dizia que os sentimentos continuavam a ter o seu lugar no teatro, precisando:
“muitos antigos e alguns novos.” “Nem a participação afectiva do público
nem a dos actores devem ser impedidas. Nem a representação de sentimentos
ou a utilização de sentimentos pelo actor devem ser impedidas. Apenas
uma das fontes do sentimento, a identificação, não deve ser utilizada ou
então somente como fonte secundária” (apud Oliveira 84-5). É certo que a
identificação é muitas vezes o maior gerador de sentimento e de ligação
entre o espectador e o espectáculo, por via da personagem. Por isso mesmo
Brecht queria mantê-la secundarizada e sob controlo, mas não creio que
mesmo ela deva ser excluída, sobretudo se a interrupção e a montagem
forem compreendidas como essenciais ao processo brechtiano. É o próprio
Brecht que escreve (93): “Isto não significa, porém, que se renuncie à
empatia do espectador”. A interrupção terá maior efeito se o espectador
estiver emocionalmente ligado à acção e subitamente descobrir naquela
personagem ou naquela situação algo que precisa de ser pensado e que
nos interpela tanto mais quanto reconhecemos que estávamos, na ilusão, a
rir ou chorar sem problematizar. Como defendia Stendhal, os breves momentos
de ilusão perfeita são importantes mesmo se o quadro geral é o de um
espectador consciente de estar diante de uma representação. É, pois, uma
espécie de catarse interrompida, dupla, e é curioso como o termo “purificar”,
tão aristotélico, é usado, no trecho que citámos, para o assumido confronto
entre razão e sentimento.
De algum modo, se nos lembrarmos que a distância é um contínuo va-
riável, compreendemos que ela não implica o rompimento da relação
subjectiva, como em 1912 lembrava Bullough para toda a arte dramática,
mesmo não brechtiana.
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(…) Mas isso não quer dizer que a relação entre o eu e o objecto fique
rompida a ponto de tornar-se “impessoal”. (…) Pelo contrário, ela descreve
uma relação pessoal, amiúde com colaboração altamente emocional, mas de
carácter peculiar. A sua peculiaridade está em que o carácter pessoal da
relação foi, por assim dizer, filtrado. (…) Um dos exemplos mais conhecidos
encontra-se na nossa atitude com respeito aos eventos e personagens do
drama. (Edward Bullough, apud Langer 332)
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Por muito que aprender seja divertido, e aprender com Brecht possa
levar à gargalhada ou ao choro, ele próprio tem consciência de que “a maio-
ria das grandes nações não está disposta a debater os seus problemas num
palco. Londres, Paris, Tóquio e Roma reservam os seus teatros para fins
totalmente diversos. Até agora, apenas em raros sítios, e não por muito
tempo, as circunstâncias foram propícias ao desenvolvimento de um teatro
épico. Em Berlim, o fascismo pôs energicamente cobro ao desenvolvimen-
to desse teatro” (85). O teatro burguês é feito não tanto por um impulso
mas para uma função, e essa função é a do entretenimento ligeiro. Não é
o que Brecht pretende, e (como bem nota Benjamin), ao mesmo tempo que
vai criticar essa função, vai saber recuperar a ideia de diversão nocturna
tal como existia em formas de espectáculo de classes mais pobres, ou em
que a burguesia se misturava com a boémia, como o cabaret, as variedades,
mesmo o kitsch, porque, notou Benjamin (1987:87), eles iam além do verniz
superficial da arte burguesa, acompanhavam na “sua totalidade a experiên-
cia da vida”, muito mais do que acontecia no esquema apertado do teatro
burguês. Veremos que já vem de Nietzsche esta necessidade de sair da
cultura erudita para ganhar outra profundidade na arte.
As propostas de Brecht foram sendo retomadas de múltiplas maneiras,
mesmo, um pouco indirectamente, pelo Living Theater, criado em 1947 (e um
dos seus fundadores tinha frequentado as aulas de Piscator em Nova Iorque)
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mas que se tornou famoso nos políticos anos 60, ao procurar compreender
e representar os mecanismos do “sistema” colectivo do Estado, e ao desafia-
rem o público a fazer a mesma aprendizagem: “não nos colocando para lá
do público, dizemos a esse público que ele pode também fazer a aprendiza-
gem desses mecanismos, como nós fazemos, e repeli-los” (in Barata 180).
Influenciou alguns dos maiores encenadores do nosso tempo, de Jean Vilar
a Giorgio Strehler. Em Portugal, quem mais continuadamente tem estudado
e dialogado com a estética brechtiana tem sido o encenador João Lourenço.
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(Página deixada propositadamente em branco)
9 . A lt e r n at i vas t e at r a i s ( e a n t i - t e at r a i s )
Brecht achava importante repetir que o actor não deve querer ser ma-
caco nem papagaio. Repetia-o por estar tão enraizada (na época, mas
ainda hoje…) a associação do teatro por um lado à imitação do real e por
outro à transmissão do texto. Já em 1912, o lúcido Georg Simmel (1858‑1918)
escrevia um pequeno ensaio intitulado “O actor e a realidade”, que mantém
uma perturbante actualidade. Ali mostrou como o teatro tem dificuldade
em fazer reconhecer-se como arte própria devido às suas peculiares relações
com o real e com o texto. Ora, a história da prática e do pensamento das
artes cénicas durante sobretudo a primeira metade do século XX foi em
parte a reacção radical contra essas relações: com efeitos ainda hoje nas
práticas cénicas e no pensamento sobre elas (se hoje em dia há livro ou
exposição sobre artes cénicas, e não há muitos, é bastante mais provável
que abordem o dadaísmo ou Artaud ou o “teatro sem teatro” do que Stanislavski
ou Brook…). Vale a pena pensá-los, sabendo embora que, apesar de todas
as experiências alternativas ou mesmo anti-teatrais de que falaremos, e que
abalaram o teatro como instituição moral, à maneira de Schiller, as artes
cénicas, como toda a instituição-arte, se foram reinventando e resistindo.
Como bem lembra Alain Badiou (2007:22), “uma obra importante desloca
as fronteiras, mas não pode aboli-las”.
Deixaremos para o próximo capítulo a relação com o texto, que não diz
apenas respeito ao teatro alternativo. Centremo-nos por ora na questão da
mimese e noutra que servirá de bandeira a muitas das reacções vanguar-
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1Meyerhold que em 1909-10 tinha obtido a consagração junto do grande público precisamente
com uma encenação de Tristão e Isolda, de Wagner.
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seu aspecto exterior nem sequer do interior das mentes como, impulsionado
pela psicologia e pela psicanálise, o realismo começava a fazer. Existe a
este respeito da interioridade psicológica uma certa ambiguidade dos
simbolistas, como já veremos; mas mesmo estes fazem coro na crítica à
insuficiência da lógica racional, que vem também dos autores que, contra
o pensamento sintomático de Freud, colocam o símbolo acima do conceito.
“Com pensadores como Jung, Kerenyi ou Eliade, liga-se o símbolo ao ‘esforço
para traduzir o que, na experiência intima da psyché ou no inconsciente
colectivo, ultrapassa os limites do conceito, escapa às categorias do
entendimento, aquilo que portanto não pode ser conhecido, no sentido
estrito, mas pode no entanto ser ‘pensado’, reconhecido através das formas
de expressão onde se inscreve a aspiração humana ao incondicionado, ao
absoluto, ao infinito, à totalidade, ou seja, para falar a linguagem da
fenomenologia religiosa, à abertura ao sagrado” ( J.-P. Vernant, apud Pavis,
1997:19). Uma parte deste anti-racionalismo vai de facto abrir para as
questões do sagrado, muitas vezes como fruto de uma certa má consciência
da antropologia ocidental face às idealizadas sociedades primitivas e de
uma procura da autenticidade perdida das relações humanas 2. Nem todo o
anti-racionalismo, porém, se relaciona com o sagrado.
José Guilherme Merquior (1981:186-188) mostrou muito bem como o
modernismo do início do século foi criador mas a ideologia modernista,
depois da 2ª guerra, foi repetitiva, dogmática e com grande carga ideológica.
Em alguns humanismos do nosso tempo, “o elemento irracionalista teria
sido por demais exagerado, teria sido finalmente hipostasiado, transformado
numa espécie de máquina de guerra contra uma visão mais racional e mais
objectiva dos fenómenos estéticos”. Apetece lembrar, a todos os que defendem
o irracionalismo da arte, a frase de Baudelaire (229) que me parece tão
pertinente, no seu ensaio sobre Wagner, contra os “que despem assim o
génio da sua racionalidade e lhe destinam uma função puramente instintiva
2Se formos, aliás, reler o já citado tratado indiano de Bharata (in Borie et al 37), reparamos
que também contém a ideia de mimese (“o teatro é a representação do mundo inteiro (…)
porque a imitação do mundo é uma regra do teatro”), mas que o seu conceito de imitação do
mundo inclui os deuses e os seus inimigos.
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que, no cinema, isso não é possível: e, por mais pueril que essa razão
possa parecer, estou convencido que para mim é muito importante”. Um
desejo que, em Barthes, não é diminuído, antes aumentado, pela moldura
do acto: “não gosto dos teatros que estabelecem uma comunicação, uma
confusão, uma indecisão entre a cena e a sala”. (1978b:124-125)
É certo que esses corpos em cena também são atravessados por um
desejo de linguagem. Por exemplo, o que acontece quando um actor ou
um cantor usam a voz? Há um processo de gestão da energia respiratória
que gera uma explosão sonora; mas ao mesmo tempo essa voz é suporte
da linguagem; tem pois um “estatuto ambivalente de força e de sentido, de
desejo e de discurso” (Bernard, 1976:359). O mesmo se poderia dizer do
bailarino quando dança. As manifestações intensivas do corpo metamorfo-
seiam-se em expressão ou metaforizam-se, mesmo quando estavam longe
de intenção mimética ou expressiva (cf. Febvre 47). Por isso Anne Ubersfeld
(166) diz que “o actor é o próprio lugar do equívoco da teatralidade”.
O corpo é semiotisado pelo performer ou por quem o vê e ouve mas pos-
sui também um lado pulsional que vai sendo revalorizado: é signo e
estímulo, é sentido e sensação.
No pensamento de Alain Badiou (2007:24), esta questão ultrapassa as
fronteiras da cena: “Eu resumi o que penso ser a ideologia dominante, hoje,
depois da morte de Deus, e na soberania abstracta do mercado, pela fór-
mula ‘não há senão corpos e linguagens’.” Mas o teatro coloca a questão
geral de modo especialmente exemplar e perturbador. “Eu creio”, continua
Badiou, “que há teatro a partir do momento em que há exposição pública
– com palco ou sem ele – de uma combinação desejada de corpos e lin-
guagens”; ele resulta da intersecção entre ambos. Ora, “o teatro sempre
oscilou entre dois extremos”: uma “tendência para a fusão colectiva cujo
paradigma, mais ou menos secreto, é a orgia. Do outro lado, a distância, a
passividade contemplativa do público que assiste, silencioso e cativo”.
É, “na linguagem dos autores românticos, o grotesco e o sublime”: “à ab-
jecção viva dos corpos que dançam, sexuados e provocantes, corresponde
dialecticamente o sublime dos corpos ornados, feitos estátua, rarefeitos.”
O corpo dionisíaco e o corpo apolíneo, se Badiou quisesse usar os termos
de Nietzsche.
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Os anos 60, como já vimos, foram talvez a década que mais perto este-
ve da vitalidade orgíaca, ou em que ela culminou. Foi, diz Blau, uma “era
paradisíaca para o ‘corpo hipocondríaco’, ‘o corpo esquizóide’, ‘o corpo
drogado’, ‘o corpo masoquista’” (conceitos de Deleuze e Guattari). Uma
mística participatória da proximidade, Woodstock e outros festivais, o Living
Theatre circulando pela América e Europa cada vez mais despido e na rua,
a psicofísica de Grotowski, Dionysus in ’69 na Performance Garage de
Richard Schechner: esse que mais tarde criou os Performance Studies, por-
que todos estes movimentos, com “a porta fora dos seus gonzos” (Deleuze,
parafraseando Shakespeare), possibilitaram e deram o tom a um pensamen-
to novo, “como se Deleuze tivesse perdido um parafuso” (Blau 2009:30-31).
Essa importância do corpo acabou por ser admitida na academia, continua
Blau (2009:31), nas décadas que se foram sucedendo depois da de 60: “foi
um discurso sobre o corpo, o corpo que tudo sabe, que trouxe a performance
à teoria, mas cada vez mais ideologizado, com deferência em relação ao
sexo e ao género, raça, classe, etnicidade.” Ora, como nota José Gil (1980:7),
existe aqui a possibilidade de “uma violência real exercida sobre o corpo:
quanto mais sobre ele se fala, menos ele existe por si próprio.” A esse corpo
tantas vezes neutralizado ou domesticado na teoria, corresponde aliás,
também em termos de práticas sociais, a partir dos anos 80, um corpo
tratado em termos cada vez mais apolíneos do que dionisíacos, quando se
desenvolve a “somatização da sociedade”, para usar uma expressão de Bryan
S. Turner (apud Raposo 125). Há o declínio das concepções sagradas do
corpo, que se torna, nos sistemas sociais contemporâneos, um importante
campo de actividade política e cultural secularizada, praticada em dietas,
health-clubs, cirurgias plásticas e manipulações genéticas.
“Espectacularizado de todas as maneiras pela cultura dominante dos
media ao longo das últimas décadas”, escreve Maria Teresa Cruz (364),
“o corpo subiu pois aos palcos mais recentes da cultura erudita sem ter
afinal muito mais para mostrar” (a não ser, por vezes, “deformações, con-
taminações, amputações, próteses, transmutações, e ainda, imaterializações,
animações e fantasmizações”), deste modo “não lhe sendo também já pos-
sível ressuscitar o escândalo da sua exibição, de que parece sobrar quando
muito o escândalo de uma exibição teórica do corpo.” Isto prende-se com
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com efeito cómico assegurado: a peça que ainda hoje é retomada, Rei Ubu,
apresentada em 1896 (só por um dia, tal o escândalo, mas retomada no ano
seguinte). E Jarry sabe como quer que seja montada: a personagem princi-
pal deve usar máscara; um cenário único; as cenas de multidão substituídas
por uma só figura; anacronismo dos figurinos, etc.
Alguns destes elementos, mas também muitos outros que não param de
constituir ainda hoje inspiração para artistas dos mais variados campos,
podemos encontrá-los no futurismo. Surge oficialmente em 1909, com a
publicação do Manifesto Futurista do poeta italiano Filippo Marinetti no
jornal francês Le Figaro (que no mesmo ano é traduzido no Diário dos
Açores…). É um movimento claramente ligado ao espectáculo, em que a
própria vida pessoal, quase sem fronteiras com a vida artística, é dada em
show: “Tudo o que tenha algum valor significativo é teatral” (apud Lista
1973: 258). Mas não deixa de sublinhar que, “entre todas as formas literárias,
a que tem um alcance futurista mais poderoso é certamente a obra teatral”
(Marinetti, logo em 1911, in Lista, 1973: 247).
Lutam também contra o teatro naturalista, que consideram um diverti-
mento acéfalo, industrial e sentimentalista, um dos grandes responsáveis
pela “frouxidão” do povo italiano: há que fugir do “espectáculo inevitavel-
mente piedoso da mãe cujo filho morreu ou da rapariga que não pode
casar com o seu amado”. Querem pôr as artes cénicas em conexão com as
necessidades dos tempos modernos, como a força, a agressividade, a velo-
cidade, a simultaneidade, fazem hinos à guerra, aos transportes, às grandes
metrópoles, à ciência (leia-se o poema “Ode Marítima” de Álvaro de Campos,
que Sá-Carneiro considerou uma “obra prima do futurismo”). Sentem-se por
isso muito mais perto do teatro marginal. Marinetti escreve em 1913 no
manifesto “O Music-Hall” (que Craig quatro meses depois traduz e comen-
ta na sua revista The Mask): “o music-hall, consequência da electricidade,
nascido de algum modo connosco, não tem felizmente tradição, nem mes-
tres, nem dogmas, e alimenta-se da actualidade veloz”; “é uma escola de
subtileza, de complicação e de síntese cerebral”, de plágio e de paródia (in
Lista, 1973: 249,251-252). No mesmo ano, escreve também que “O vaude-
ville, através da sua constituição intrínseca, impõe ao actor uma fala rápida,
não envolvida, ágil, moderna, excluindo absolutamente: tons graves, a pau-
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ficialmente o presente como acção. Mas esse “presente activo pode ser
tanto o do corpo, crucificado, da mística dialéctica (o sublime e a abjecção)
como o da dialéctica das escolhas, da encenação organizada das condições
que envolvem o absoluto presente de uma decisão. Artaud e Brecht, com
efeito, indicam duas maneiras de ser fiel ao ‘acontecimento’ Meyerhold”
(Badiou, 2007:24).
Falaremos detidamente de Antonin Artaud (1896-1948) no capítulo 11. Para
já, importa referi-lo como mais um opositor do naturalismo, que quer recupe-
rar domínios esquecidos do teatro: o metafísico, o cosmológico, o sagrado.
É, como mostra Monique Borie (1989:22-25), “uma lógica implicando ao mes-
mo tempo uma visão diferente do mundo, uma outra representação da pessoa
e do corpo e uma outra prática da linguagem”. Quer fundar ou refundar
“a ideia de um teatro que seria acto, um acto carregado de toda a sua força
operatória.” Artaud foi o primeiro a formular em toda a sua radicalidade o que
vários outros depois vêm perseguindo até hoje: a “questão da eficácia, da
força dos signos no teatro”, “a redefinição da linguagem teatral pelo retomar
da posse das energias perdidas dos antigos signos”: “o signo é uma presença
que age, mobilizando forças reais”, porque “um gesto que vemos e que o es-
pírito reconstrói em imagens tem tanto valor como um gesto que fazemos”.
Artaud chamou em 1938 ao seu projecto “teatro da crueldade”: um tema,
note-se, que já encontramos, por exemplo, no diálogo de Hamlet com a mãe
(“Tenho de ser cruel para ser bom”), e que Nietzsche lançara em Para além
do Bem e do Mal, quando, nos parágrafos 229 e 230, diz que tudo no ho-
mem, incluindo o esforço do conhecimento, passa pela crueldade, exercida
sobre o outro ou sobre si próprio. Crueldade, em Artaud, tem o sentido de
radicalidade e rigor: não confundir com a dilaceração física do corpo, tal
como foi explorada, em seu nome, na Body Art de Gina Pane, por exemplo.
O melhor é ler o próprio Artaud, para quem:
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Searle) sublinha que não existe apenas a função referencial, mas também
a função performativa, compreendemos que a cultura contemporânea tem
produzido contextos que favorecem a abordagem da performance. Também
a crescente importância dada ao jogo, não apenas no sentido lúdico mas
também no de jogos de linguagem (a partir de Wittgenstein) vem como que
abrir certos espartilhos do conceito dramático tradicional, a favor de inte-
ractividade que será explorada pelo happening, mas também por algumas
novas formas de teatro (com limites que seria interessante estudar: até onde
pode ir a participação activa do espectador?).
Vimos que as últimas décadas têm também revelado o corpo como a maior
caixa de surpresas de uma sociedade que parece querer emancipar-se do
logocentrismo – e não residirá no corpo, hoje, o ponto fulcral da criação
cénica, como Artaud antecipou e as teorias de um corpo abstractizado não
conseguem abolir? Ora, o espectáculo da performance centra-se sempre na
presença dos corpos: podem ser dois corpos sentados a uma grande mesa,
mas podem ser também corpos em risco, seja nas coreografias de Wim
Wanderkouybos, seja quando Joseph Beuys convive uma semana numa galeria
de arte com um coiote, seja nas perfurações de Gina Paine, seja nas cirurgias
plásticas de Orlan. “A novidade reside no facto de que se operou uma transição
do sofrimento representado para um sofrimento vivido na representação: acções
corporais esgotantes e arriscadas em cena (Lala la Human Steps); provas
físicas de disciplina paramilitar (em muitos teatros dansados, em Einar Schleef);
masoquismo (La Fura dels Baus); provocação ética pelo jogo com ficção ou
realidade da crueldade ( Jan Fabre); exibição de corpos doentes e alterados”
(Lehmann 270). Frequentemente, a utilização arriscada, perigosa, do corpo
surge mesmo como a legitimação possível e necessária da sua ficção 3 .
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Há lugares que seria preciso quase abandonar ao actor. É ele quem deve
dispor da cena escrita, repetir certas palavras, retomar certas ideias, suprimir
algumas e acrescentar outras. Nos cantabile o músico deixa a um grande
cantor o livre exercício do seu gosto e do seu talento: contenta-se em marcar
‑lhe os intervalos principais de um belcanto. O poeta deveria fazer o mesmo
quando conhece bem o seu actor. (Denis Diderot, in Borie et al 153)
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D rama e C omunicação
Vale a pena referir ainda que muitos elementos que vimos referindo
caracterizaram a forma mas sobretudo a temática das peças da chamada
nova vanguarda dos anos 50 e 60, que é por vezes conhecida por anti
‑teatro: designação um pouco vaga, que abrange quer os esforços para o
teatro se destruir a si próprio, como por vezes consegue em Pirandello,
Mrozeck, Beckett ou Handke, quer o “teatro do absurdo” de Ionesco (e depois
em Beckett), em que a acção já não obedece a uma causalidade aristotéli-
ca nem social (como em Brecht) mas às leis do acaso.
Muitos dos novos temas assim lançados por todos os criadores e movi-
mentos que referimos neste capítulo deixaram influências e marcas que
estão presentes nas práticas performativas de hoje: para um actor, um can-
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tor, um bailarino (bem como para alguns dos que os dirigem), os conceitos,
ou pelo menos vagas noções e vocábulos, de espontaneidade, improvisação,
energia, qualidade de movimento, estão presentes e por vezes ganham
prioridade sobre conceitos mais tradicionais ligados à mimese, ao texto, à
repetição, à força. Mas pouco têm sido acompanhados pela reflexão teóri-
ca. Os próprios Performance Studies, “de tão ligados à semiótica, teoria
crítica e psicanálise, enfatizam a interpretação e a construção do sentido,
ideológico e político” (Cull 8). Têm a imensa vantagem de pensar o que se
passa em cena como processos e relações; mas ali procuram, dir-se-ia que
cada vez mais, o ideológico e o político, que acabam por trazer alguma
estabilidade a um universo preferencialmente (mas ao que parece insupor-
tavelmente) instável; e essa atitude não deixa de ter efeitos pesados sobre
as próprias práticas performativas ditas alternativas, que nos últimos anos
se dirigem também elas para o ideológico e o político. Vale então a pena
referir agora dois pensadores que, embora de forma ainda aproximativa, se
procuram sintonizar com as tendências que referimos.
Um deles é Jean-François Lyotard, que abordou as artes cénicas não
pelo lado da narratividade ou da representação, mas pelo lado da energia
e das pulsões. Lyotard (1974 e 1980) não se cansou de questionar a potên-
cia recorrente do dispositivo teatral tradicional, que opera um trabalho
substitutivo, de simulacro, de representação do ausente, um “em vez de”,
ao passo que para Lyotard o acto performativo não consiste, ou já não
consiste, em signos, mas numa “errância dos fluxos, uma deslocabilidade e
uma espécie de eficácia por afectos, que são os da economia libidinal”
(1974:99). Desejaria uma teatralidade fundada na presença ou na apresen-
tação, na deslocação em vez da substituição, na evidência da superfície
contra o efeito de conteúdo, na potência de gozo, a montante e a juzante.
Fala de “teatro energético” a propósito do trabalho coreográfico de Merce
Cunningham, que não liga a teatralidade à representação e ao simulacro
mas à produção de afectos, não à intenção mas à intensificação (cf. Febvre
47). Para mais depressa compreendermos a sua perspectiva, creio que po-
deríamos associar a sua visão aos actuais concertos (de música não
erudita), e nesse sentido ele sintoniza-se com as grandes multidões que a
eles acorrem em vez de ao teatro tradicional. Mas a intensificação energé-
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tica de que ele fala está também muito presente no teatro, mesmo quando
baseado no texto. Como me dizia Luís Miguel Cintra numa entrevista a
propósito dos 25 anos de trabalho do Teatro da Cornucópia:
Note-se que o “afecto” de que fala Lyotard não tem a ver com o senti-
mento pessoal, com a emoção (cf. Uhlmann, 2007): é um devir, como
também sempre sublinha o outro maior pensador com afinidade com estas
práticas não miméticas, Gilles Deleuze (1925-1995). Foucault disse que um
dia talvez o século XX fosse chamado deleuziano, e parece que o século
XXI , ou pelo menos parte dele, está a perceber ou a procurar realizar essa
profecia. É um pensamento que quis abranger especificamente as práticas
cénicas, e os exemplos que atrás demos de alternativas teatrais, mais os
que ele próprio nos acrescenta, poderão ajudar a seguir o alcance por ve-
zes enigmático da sua escrita.
Deleuze começa a incluir com alguma frequência o teatro no seu pen-
samento a partir da obra Différence et répétition, de 1968. Repetição em
francês também significa ensaio: experimentar, testar, “assim tornando a
própria repetição algo de novo” (Blau, 2009:25). Como no dizer de um dos
autores com quem Deleuze tem mais afinidade, Samuel Beckett: “Ever tried.
Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.” �����������������
Não importa, ten-
ta outra vez, falha outra vez. Falha melhor.
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Uma das razões para Deleuze tomar o teatro como modelo para a sua
teoria de eventos singulares reside no facto de que como arte performativa,
o teatro é baseado na presença, em acções e eventos que acontecem ao vivo
em frente dos nossos olhos, sem nos incitar sempre a atribuir-lhes um estatuto
de representação. Este carácter de apresentação, em oposição ao de
representação, é exactamente aquilo de que Deleuze necessita para o seu
teatro de eventos singulares, já que estes eventos formam séries de diferenças
que não podem ser reduzidas a uma identidade estabilizadora por detrás
deles. Mas o teatro no entanto não tenta de alguma forma representar um
mundo? Além disso, performances diferentes de uma mesma peça implicam
precisamente um modelo de diferença que está ancorada numa identidade,
nomeadamente, na identidade da peça que está a constantemente a ser
ensaiada. O teatro tradicional, a que Deleuze chama “teatro de representação”,
não é pois certamente o que Deleuze tem em mente quando fala de um
“teatro de eventos”; pelo contrário, ele tem de lutar duramente para manter
a sua distância em relação a tudo o que no teatro possa mediar, através da
mimese, a presença cheia de eventos da representação ao vivo, um teatro
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teatro como iniciado e sustentado pela subtracção (Bene retira personagens
ou partes do texto das peças clássicas, amputa os elementos que fazem ou
representam um sistema do Poder): é em Deleuze um conceito vitalista de
subtracção, imediatamente ligado ao nascimento e proliferação de algo
inesperado (enquanto que em Bene, cuja relação com a política é muito
diferente da de Deleuze, o conceito de subtracção aponta para a extinção,
comenta Lorenzo Chiesa). Qual é então a proposta desse manifesto, que
constitui o texto mais específico de Deleuze sobre as artes cénicas (e que
citarei longamente, tanto mais que não está traduzido em português)? Em
primeiro lugar, “eliminar as constantes ou as invariantes, não só na lingua-
gem ou nos gestos, mas também na representação teatral e naquilo que é
representado em cena; logo eliminar tudo aquilo que ‘faz’ Poder, o poder
daquilo que o teatro representa (o Rei, os Príncipes, os Patrões, o Sistema),
mas também o poder do próprio teatro (o Texto, o Diálogo, o Actor, o
Encenador, a Estrutura); e depois, deixar passar tudo através da variação
contínua, como se fosse sobre uma linha de fuga criadora, que constitui
uma língua menor na linguagem” (o maior e o menor são dois tratamentos
diferentes da linguagem).
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É a mesma coisa, diz Deleuze, para o cinema italiano, com as suas am-
bições pseudo-políticas: são um teatro e um cinema narcisistas, historicistas,
moralizantes. Mas como sair desta situação da representação conflituosa,
oficial, institucionalizada? Deleuze (1978:123-124,128) rejeita várias direcções:
“o teatro vivido, em que os conflitos são mais vividos que representados,
como num psicodrama? O teatro estético, em que os conflitos formalizados
se tornam abstractos, geométricos, ornamentais? O teatro místico, que ten-
de a abandonar a representação para se tornar vida comunitária e ascética
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uma grande potência, mas não é feita para as soluções, nem para as inter-
pretações. É quando a consciência abandonou as soluções e as interpretações,
que ela então conquista a sua própria luz, os seus gestos e os seus sons, a
sua própria e decisiva transformação. (Gilles Deleuze, 1978:125‑126,129-130)
4 O próprio Bene (apud Cull 13,21) afirma que o manifesto de Deleuze saiu quatro meses
antes da estreia do seu Ricardo III, apenas a partir de uma discussão do projecto que Bene
tinha: o que indicaria um certo desprendimento de Deleuze em relação ao acontecimento
teatral. Embora se possa duvidar desta afirmação de Bene e se deva fazer justiça ao manifesto
de Deleuze, que viu várias peças de Bene (decerto mesmo, e previamente, essa de que descreve
por vezes com minúcia os gestos e entoações), leu textos sobre ele, viu os seus filmes…
5 Segundo Gil (2001:73-4), mesmo no livro Mille Plateaux, em que Deleuze mais desenvolve
o conceito de “corpo sem orgãos”, que aí designa o plano de imanência, “depois da leitura
dessas páginas tão densas, permanece o mistério a propósito de ‘aquilo que se deveria fazer’
para esquivar os estratos e construir um corpo pleno. É que continuamos a não ver que
transformações se devem fazer sofrer ao corpo para que este se torne um plano de imanência.”
Começamos a vê-lo quando Gil mostra admiravelmente como procede o bailarino. Não sei, e
Gil também parece duvidar, se seria possível fazer o mesmo para o teatro.
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5. A desumanização do teatro
Assim, Deleuze não está afinal tão desfasado de uma parte do movimento
teatral, ele mesmo contra a prática do teatro existente: é muito interessante
observar como, além de alojar a energia dos anos 60, ele retoma uma série
de propostas alternativas tal como foram formuladas entre 1885 e 1928, com
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1º, à desumanização da arte; 2º, a evitar as formas vivas; 3º, a fazer com
que a obra de arte não seja senão obra de arte; 4º, a considerar a arte como
jogo, e nada mais; 5º, a uma essencial ironia; 6º, a evitar toda a falsidade,
e, portanto, a uma escrupulosa realização. Por fim, 7º, a arte, segundo os
jovens artistas, é uma coisa sem transcendência alguma.”
Reencontramos esta ideia de perda da transcendência onze anos mais
tarde, em 1936, com Walter Benjamin, no texto célebre em que colocou
a ênfase na questão da “reprodutibilidade técnica” como sintoma e causa
da perda de um enraizamento ritual, que levou a arte a viver uma crise,
a que os artistas reagiram professando “a arte pela arte”. Dela surge uma
teologia negativa: acabou, efectivamente, por conceber-se uma arte “pura”
(1992c:83).
A questão que vale a pena colocar é se será ou foi concebível uma desu-
manização na própria arte do teatro. Nos últimos quinze anos do século XIX
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Então, “no caso de não ser o próprio poeta a ler, directamente, a sua
obra sobre o palco, só restaria uma alternativa aos actores: tornarem-se
imóveis e mudos, assemelhando-se o mais possível a estátuas ou figuras de
cera, ‘transeuntes circunspectos do país das fábulas’” (Vasques, 2003:82-83).
Para um drama estático, um actor imóvel: nem sequer uma marioneta, mas
uma figura de cera, com a voz separada do corpo e o corpo afinal muito
mais negado do que anunciámos ser (e foi para outras correntes) a forte
tendência desde o século XIX . Se nos lembrarmos como o movimento está
ligado à emoção – cf. capítulo 6 e também a etimologia latina movere e
emovere, que originam em português mover e comover, ou indirectamente,
através do francês, os substantivos ingleses motion e emotion – compreen-
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6 Escrevendo sobre o filme O Retrato de Dorian Gray, Meyerhold (1973:277) gaba o intérprete
da personagem Allan, que “não é actor, mas um pouco pintor, um pouco poeta. (…) Ele exibe
cada um dos seus movimentos, da sua silhueta, está cheio de segurança e de beleza. Todo o
seu jogo se situa no plano da forma, e não tem de se preocupar em sentir os sentimentos de
Allan.”
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3000, de Depero, uma história de amor que duas locomotivas nutrem pelo
chefe da estação, ainda elas têm formas humanóides, e ele forma humana.
Mas o artista-aviador Fedelo Azari imagina um Teatro Aéreo Futurista, em
que as histórias, nos céus, são entre aviões de verdade (embora se possam
apaixonar e ter filhos…).
Também em Itália, na mesma época, encontramos frequentemente em
Pirandello a concepção do actor como alguém que inevitavelmente trai o
texto, como na peça Seis Personagens à Procura de Autor, de 1921. Na
mesma Itália até uma grande acriz, Eleanora Duse (1858-1924), chega a
dizer que, se fosse para salvar o teatro, todos os actores teriam de morrer
da peste (um tema que será tão importante para Artaud): “os actores enve-
nenam o ar, eles fazem a arte ser impossível. Não é drama o que eles
querem, mas apenas peças de teatro”.
Aqui ao lado, na Galiza, o dramaturgo Valle Inclán (1869-1936) começa
em 1909 a publicar um conjunto de comédias com o título genérico Tablado
de Marionetas para Educación de Príncipes, em que as personagens são
marionetas de feira: o que desenvolverá naquilo a que chama o esperpento,
onde a realidade é distorcida para dar a ver o que se esconde por trás das
fachadas e em que as personagens carecem de humanidade e se apresentam
como marionetas.
Da marioneta passamos à super-marioneta nas teorizações de Gordon
Craig, que no entanto cresceu entre actores, começou como actor e sabia
bem o seu lugar: daí alguma ambiguidade desse prefixo “super”, que pode
ser (e foi) lido como “ainda mais marioneta”, mas também tem a conotação
de o actor transcender a marioneta, nomeadamente a decadência em que
caíram as marionetas da sua época e a vulgaridade a que tantas vezes o
actor estava sujeito na rápida e mecânica montagem de espectáculos. Craig
evoca a esplêndida descrição que no ano 800 a. C. Heródoto fez do templo
sagrado de Tebas, onde uma rainha calma e impassível era o exemplo da
arte sem sentimentos dos egípcios. Craig acrescenta-lhe uma fábula sobre
duas mulheres que nas margens do rio Ganges conseguem entrar no san-
tuário da divina marioneta, espiam os segredos do Verdadeiro Teatro, e
depois fazem a sua paródia barata para satisfazer o gosto vulgar da multi-
dão – é uma espécie de “mito da criação do teatro moderno (nunca revisto)
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como uma adulteração pelas mulheres dos poderes roubados do corpo não
humano” (Blau, 1992:101). Que nas suas pesquisas Craig se tenha interessa-
do pelas máscaras, está patente na sua escolha do título The Mask para a
revista internacional que fundou e editou entre 1908 e 1929, bem como na
escrita de vários projectos de peças intituladas “máscaras”, mistura de pan-
tomima, ballet e féerie, no género das peças inglesas do tempo dos Tudor
(cf. Meyerhold, 1973:148). E embora afirme nas memórias (1962:105) que o
seu teatro assenta em “O actor. A peça. A cena. O lugar. O tema”, a sua pro-
posta, como vimos, quando fala das marionetas, é radical: “suprimi o actor”,
“nenhuma personagem viva em que as comoções da carne sejam visíveis”.
A ideia de desumanização do actor é levada ao extremo na Bauhaus,
sobretudo até 1928: o actor, ou performer, transformado em máquina viva,
mas viva apenas no sentido em que dá movimento às formas dos objectos.
Com Oskar Schlemmer, que desde o seus primeiros textos cita Kleist e Craig,
o movimento dos corpos, metamorfoseados em formas geométricas, inspira
‑se na repetição, na mecanização e na robotização, com vista à abstracção,
à “substituição do organismo pela figura de arte mecânica” (27,36). Isto está
bem patente nas fotografias do seu Ballet Triádico (embora as poucas imagens
que dele existem em filme mostrem que essas poses não sabiam sustentar-se
no tempo, porque os movimentos das figuras pelo espaço era muito livre,
mais parecido com Isadora Duncan do que com um robot…) E de novo, em
Schlemmer a mesma metáfora: “não podem os bailarinos ser marionetas
verdadeiras, movidas por fios, ou melhor ainda, auto-propulsionados por
meio de um mecanismo preciso, quase livre de intervenção humana, quando
muito dirigido por controlo remoto?” (apud Demers e Horakova 441).
Creio que podemos distinguir duas tendências distintas dentro deste
combate contra a humanização do actor ou do bailarino. Em ambas a di-
mensão humana surge como um obstáculo. Uma, de Meyerhold a Schlemmer,
procura uma mecânica. A outra, de Craig a Artaud, procura uma espirituali
zação do corpo do actor. Craig entendia que o actor deve espiritualizar-se,
o seu corpo tornar-se musical, com a beleza de morte da marioneta. Em
Artaud, a ideia de um “corpo sem órgãos” testemunha a vontade de, ao
mesmo tempo que se afirma a centralidade do corpo, libertá-lo. Em ambas
as tendências, porém, encontramos a oposição ao sentimento: “os sentimen
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tos atrasam”, escreve Artaud, que sente que lhe intoxicaram “a vida com
doses letais de sentimento e espírito” e por isso “foge da vida”: “as paixões
atrasam, as instituições atrasam, está tudo a mais, nesse demais sempre a
pesar sobre a existência, ela própria uma ideia a mais”, que retarda a ime-
diaticidade do acontecer (1993:21-22,25). Por isso Artaud propõe que o
actor seja “uma espécie de elemento passivo e neutro – pois toda a inicia-
tiva pessoal lhe está rigorosamente vedada” (1996:96).
Utopias ou distopias de há um século, que Deleuze retomou teorica-
mente? Mas é importante conhecê-las e discuti-las, porque na prática
cénica e fílmica de hoje subsistem, sem se saber de onde vêm, elementos
delas, desgarrados e simplificados. Quase não conheci um encenador por-
tuguês que não fosse contra a psicologia (como se fosse possível conceber
um ser humano sem psicologia, mas a questão é justamente recear-se o
humano), ainda hoje há quem peça aos actores de teatro e sobretudo de
cinema uma “leitura branca”, a nova dança usa cada vez mais a voz mas
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5. Tadeusz Kantor
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que era real na vida estava despojado da sua função vital e da sua eficácia
vital neste TEMPO irreal”, escreve Kantor. Neste sentido insere-se na linha
dos que pretendem ultrapassar o fenómeno psicológico (não se trata de
uma memória mimética nem saudosista). “Se no princípio deste percurso de
constantes interrogações e rupturas”, explica Alvim (20), “a improvisação
– até ao esgotamento e substituição por terceiros – era o que Kantor pedia
aos seus actores, posteriormente pede-lhes que deixem no palco a acumulação
de todas as suas vivências, que joguem, consciente ou inconscientemente,
com essas marcas do passado, sem no entanto se comprometerem emo
cionalmente.”
Falta ainda um elemento que faça a cena ser mais e outra coisa do que
os actores: não formas, mas matéria, ou forma/matéria, através de objectos.
Mas os seus objectos não estão na relação hierárquica habitual, em que o
homem é o sujeito dominante e eles são acessórios: eles encontram-se numa
exterioridade recíproca que Kantor designa por “bio-objectos”. Os objectos
não carecem da “ilusão do ser”, uma vez que eles já são, diz Kantor. Podem
ser objectos da memória, familiares, da infância ou da aldeia natal, consti-
tuindo uma mitologia pessoal, ou ser objectos no seu estado mutilado (pela
guerra), objectos de ruínas, partidos, decaídos, degradados, deslocados, ou
ainda objectos-mercadorias (Amey, apud Alvim 37).
Há aqui um eco da ideia de matéria como princípio activo, que Georges
Bataille (“Le Bas Matérialisme et la Gnose”) considerava o leitmotiv da
gnose. Nos termos de Kantor: “Talvez tenham agido sobre mim os princípios
da minha IDEIA DA REALIDADE DO MAIS BAIXO ESCALÃO que sempre
me obrigam a colocar e exprimir as questões ‘últimas’ na matéria ínfima,
POBRE, privada de dignidade, de prestígio, indefesa, frequentemente até
INFAME”. No teatro como aliás na sua obra de artista plástico, há um fas-
cínio de Kantor pela cadeira, o embrulho ou o manequim.
Nem todos os objectos reflectem a procurada imagem da morte. E aqui
reencontramos o recurso à marioneta. Kantor começou por, ainda estudante,
criar em 1938 um Teatro de Marionetas, tendo como referências as vanguardas
dos anos 20, nomeadamente o construtivismo russo e o abstraccionismo.
Da Bauhaus retoma também o teatro de bonecos, que sabemos terem um
lugar importante no gosto popular – e Kantor, como Craig, como Brecht,
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Em 1971, Kantor usa muitos manequins como “os duplos dos personagens
vivos, como se fossem dotados de uma consciência superior, alcançada depois
da consumação da sua própria vida. Esses manequins estavam já visivelmen-
te marcados pelo selo da morte” (2004:245). Em 1975, no espectáculo “La
Classe Morte”, as personagens transportam às costas manequins de fisionomia
impassível, que não dirão o que é a morte ou a vida ou a infância perdida.
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Falta ainda ver como muitas rupturas que neste capítulo referimos se
reflectem em algumas práticas cénicas posteriores, naquilo a que o alemão
Hans-Thies Lehmann, em livro de 1999, chamou O Teatro Pósdramático 7.
Lehmann considera que “o conceito de drama, mesmo com mil diferenciações,
perdeu o seu valor conceptual. Já não resolve a missão dos conceitos teóricos
que consiste em aguçar a percepção, antes oculta a compreensão do teatro”
(45). Há aqui um movimento parecido com o de Brecht, que também
escolheu a designação “teatro dramático” para qualificar o teatro com que
queria romper. No final do século XX , Lehmann considera que o termo
dramático “pode num sentido alargado (e compreendendo também a maior
parte da própria obra de Brecht!) definir o núcleo da tradição teatral europeia”
7 O termo já tinha sido brevemente usado: “Richard Schechner (…) fala uma vez de um
‘teatro pósdramático de happenings’ e, também de passagem, visando Beckett, Genet e Ionesco,
de um ‘drama pósdramático’, onde já não seria a ‘story’ mas aquilo a que ele chama o ‘game’
que constituiria a ‘matriz generativa’” (Lehmann 33-34).
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(ibid: 26). Tradição que persiste em muitos, talvez na maioria, dos espectáculos
ainda hoje. Lehmann reconhece que o drama “subsiste como estrutura do
teatro ‘normal’, mas uma estrutura enfraquecida e em perda de crédito:
como expectativa de grande parte do seu público, como base de numerosas
das suas formas de representação, como norma dramatúrgica funcionando
automaticamente.” E, mesmo dentro do teatro pósdramático, “os membros
ou os ramos de um organismo dramático estão, mesmo como material
moribundo, sempre presentes”.
As linhas de fuga ao teatro dramático vai Lehmann tentar resumi-las no
conceito de pósdramático, que abrange um enorme conjunto de criadores
muito díspares, atravessando décadas diversas (a partir dos anos 70) e com
características bem diferentes: “teatro da desconstrução, teatro multimédia,
teatro neo-tradicionalista, teatro do gesto e do movimento” (ibid: 32), etc.;
mas tenta agrupar tudo isto numa conceptualização que não é apenas epo-
cal, antes se pretende conceptualmente substantiva. Para dar apenas o
exemplo da dança, na sua categoria cabem tanto Merce Cunnigham como
Pina Bausch, como se eles fossem afins ou se à segunda se pudesse aplicar
a característica de “formalismo marcado” que diz constituir “uma das carac-
terísticas do estilo do teatro pósdramático” (ibid:182). Mas antes tinha dito
que a heterogeneidade do estilo seria uma das características desse teatro...
Postas estas reservas, que convirá manter presentes, vale a pena seguir
o esforço de Lehmann, porque, independentemente de etiquetas, traz de
facto um avanço no pensamento sobre os caminhos (plurais) que o teatro
vem seguindo nas últimas décadas. “Faltam muitas vezes os instrumentos
conceptuais para formular a sua percepção”. Lehmann vai por um lado
oferecer uma perspectiva histórica de como a ele se chegou, por outro
arriscar “a conceptualização e a verbalização da experiência deste teatro
contemporâneo, muitas vezes qualificado de ‘difícil’” (ibid: 22-23,69).
Lehmann parte da “tese de que a profunda ruptura das vanguardas por
volta de 1900 continuou no entanto a preservar o essencial do ‘teatro dra-
mático’. (…) As formas teatrais que então surgiram continuaram a servir a
representação de aí em diante modernizada de universos textuais. Convém
recordar que as reformas do teatro visavam mesmo, frequentemente, salva-
guardar o texto e a sua verdade da desfiguração por práticas teatrais
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A perda do sentido da arte, a favor dos sentidos, é algo que não preocupa
Lehmann (não é essa a nossa posição, como iremos vendo, nomeadamente
no último capítulo). Pelo contrário, é algo que ele celebra como libertação
da vocação das artes. E isto passa pelo abandono da mimese, a que o drama
sempre permanecera ligado. Lehmann diz que talvez o teatro pósdramático
não seja mais “do que um momento no qual o reconhecimento do além da
representação terá podido operar-se a todos os níveis” (234). Como “nenhu-
ma poetização do drama renunciou ao conceito de acção como objecto de
mimesis, a realidade do novo teatro começa com a desaparição do triângulo
– drama, acção, imitação (…) Enquanto não nos tivermos libertado deste
modelo nunca poderemos pensar o que reconhecemos e sentimos na vida
como formado pela arte” (50). Deixando embora clara a nossa discordância
com esta ideia fácil de que a arte para se afirmar tem de romper com a mi-
mese ou com a fabula (o que aliás excluiria tantas das maiores obras, de
Homero a Paula Rego…) sigamos Lehmann na sua exposição de como o
teatro pósdramático (mas nem todo…) escolheu esse caminho.
Mas a questão não é tão simples, porque o real, quanto mais não seja
sensorial, faz parte do teatro. “Do sentido à sensualidade, assim se chama
o deslocamento operado pelo processo teatral enquanto tal; é o fenómeno
da voz viva que manifesta mais directamente a presença e a dominância
possível do elemento sensual no interior do sentido e, ao mesmo tempo, o
coração da situação teatral: a co-presença de actores vivos” (ibid: 240).
Ou seja, mesmo rejeitando a mimese, a presença real dos actores leva a
“uma via na fronteira entre dois espaços, como uma reviravolta contínua,
não de forma e de conteúdo, mas de uma contiguidade ‘real’ (conexão com
a realidade) e de uma construção ‘encenada’.” (162-163).
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Assim “surgiram formas teatrais que não iriam até à supressão pura e
simples do sentido, mas encontramos novas formas de um sentido ‘em
suspensão’” (11-12). “Enquanto que a mimese, na acepção aristotélica, en-
gendra o prazer do re-conhecimento e leva, por assim dizer, sempre a um
resultado, os dados sensoriais ficam aqui continuamente à espera de res-
postas. O que se vê e se ouve fica ‘em potência’, em apropriação diferida”
(156). A relação com o receptor sai assim reforçada, e uma das melhores
partes da obra de Lehmann é quando articula uma conceptualização dessa
mudança.
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“a segurança e a certeza não reflectidas com as quais ele vive o seu estado
de espectador enquanto comportamento social inocente e não problemáti-
co” são postas em causa (164). Por vezes, como nos espectáculos dos Fura
dels Baus, o público pode ser sacudido de um lado para o outro e aban-
donado sem orientação (200); nos trabalhos de Josef Szeiler ou do grupo
Angelus Novus, seguindo o exemplo de Grotovski, as apresentações públi-
cas são entendidas como continuação do trabalho dos ensaios, e, nos
primeiros, o público pode entrar e sair quando lhe apetecer. “Se o teatro
se apresenta como esboço e não como pintura acabada, deixa ao espectador
a possibilidade de sentir a sua presença, de reflecti-la, e até de contribuir
para o seu carácter inacabado. O preço disto é a decidida depreciação da
tensão dramática” (173).
“A des-hierarquização dos procedimentos teatrais representa um princípio
contínuo e inerente ao teatro pósdramático” (já antecipada pelos textos tea
trais de Gertrud Stein). E “géneros diferenciados encontram-se ligados numa
representação (dança, texto narrativo, performance…); todos os meios são
utilizados com uma mesma importância” (135-136). Isto implica um papel
decisivo da colagem e da montagem, como no cinema, no expressionismo
e no surrealismo. À medida que o espectador “adquire uma faculdade sem-
pre crescente de ligar o heterogéneo, a apresentação extensa das relações
lógicas faz cada vez menos sentido” (100). O teatro pósdramático:
Estas formas, a que por vezes “quase não podemos chamar teatro”, po-
dem utilizar “motivos vindos do cinema ou da música pop, um patchwork
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Isto não impede que assim se vá muitas vezes ao encontro de “um mo-
tivo fundamental da teoria da arte e do teatro: a ideia do ‘choque’ (Benjamin),
a meio caminho entre uma categoria psicológica e estética; do que é ‘sú-
bito’ (Bohrer), do ‘ser-assaltado’ (Adorno), do susto que ‘é necessário para
o reconhecimento’ (Brecht), da ideia que o pavor é ‘a primeira aparição do
novo’ (Heiner Müller), da ameaça que ‘nada se produza’ (Lyotard)” (232).
Algumas formas do teatro pósdramático “tendem a integrar a velocidade da
época dos media”, trocando o desenvolvimento psicológico de acções e
personagens por ritmos de percepção acelerados, pela velocidade da esté-
tica pop e dos media, resultando em espectáculos de menos de uma hora;
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1 0 . T R AG É DI A , CO M É DI A E T R AG ICO M É DI A
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram. E umas pessoas que chega-
ram da fronteira dizem que não há lá sinal de Bárbaros. E agora, que vai
ser de nós sem os Bárbaros?”
Porque vêm então os bárbaros ao poema? Eles servem para teatralizar
um diagnóstico radical da decadência da civilização, na filiação de Nietzsche.
A civilização também cria deserto e mal-estar (veja-se o livro de Freud, de
1930, O Mal-estar na Civilização). Todo o documento de cultura é também
um documento de barbárie – a expressão é de Walter Benjamin. Nem só
os bárbaros nos matam: por delicadeza, também se perdem as vidas. Por
isso a cultura repetidamente sonha com a invasão da barbárie. Benjamin,
duas a três décadas depois de Kaváfis 1, compreende o carácter destrutivo
como aquele que precisa de abrir área e caminho: “a sua necessidade de
ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio. O carácter destru-
tivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas
da nossa própria idade; reanima, pois toda a eliminação significa, para o
destruidor, uma completa redução, a extracção da raiz da sua própria con-
dição. O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais
nada, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quan-
to se testa o quanto ele merece ser destruído.” (1986:187) A indispensável
linguagem parece tanto mais dispensável quanto a nossa Modernidade vai
reduzindo tudo a palavras e não consegue deixar de o fazer, mesmo sa-
bendo que isso significa a sua própria destruição. Quando, no vai-vem
entre a linguagem e o mundo, se perde o contacto com o mundo, ou se
acredita que é a linguagem e só ela que cria o Ser, então é preciso tentar
ir às próprias coisas e aceitar a sua violência – o mais nua possível. Mandam
‑se pelo menos sentinelas para a fronteira, à espera dos bárbaros. Por isso,
as vanguardas artísticas do início do século XX , como as neo-vanguardas
do fim do mesmo século, foram à procura das barbáries instintivas e cor-
porais, africanas, orientais ou infantis. Por isso existem no nosso tempo
tantos movimentos de neo-tribalismo.
1 Do poema apenas sabemos que foi escrito antes de 1911. O texto de Benjamin é dos
anos 30.
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para essa mediação. Um dos pontos argumentativos mais fortes d’O Nascimento
da Tragédia é o que consiste em mostrar 1) que a nossa cultura moderna foi
dominada por uma espécie de socratismo estético, cuja matriz Nietzsche vai
buscar às tragédias de Eurípides e que 2) a tensão entre dois princípios
contrários, que é essencial na ordem da vida, foi de algum modo desfeita
com o racionalismo elaborado de um Sócrates e de um Eurípides. Assim se
gera uma forma estética inadequada à representação da ordem irrepresentável,
porque está imbuída dos preceitos racionalistas que a filosofia socrática
introduziu para sempre na nossa cultura. (António Marques X-XI)
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tudo pode ser mais ou menos do que parece, tudo está carregado de pos-
sibilidades como uma casca de banana; a intriga submete-se ao que queiram
as personagens da peça, ou mesmo ao que façam as personagens que de
súbito irrompam nela. Por isso, nas reviravoltas da comédia sente-se muito
mais a mão de alguém (o autor ou uma personagem por ele) que tudo
manobra, que sabe o que os outros desconhecem e no final traz harmonia.
Hegel (in ibid 334) também sagazmente o notou: “a tragédia não oferece a
mesma latitude para o desenvolvimento da personalidade do poeta que a
comédia, na qual o acidental e o arbitrário da individualidade representam
naturalmente um papel essencial. Assim, por exemplo, Aristófanes (…) não
esconde as suas opiniões políticas, os acontecimentos e as situações do
dia.”
Mas a subjectividade que se sente na comédia é sobretudo a das perso-
nagens, como Hegel (in ibid: 339-340) também não deixou de assinalar:
é cómica “a subjectividade que introduz ela própria contradições nas suas
acções, para em seguida as resolver, mantendo-se calma e segura de si.”
Na comédia, “é a personalidade ou a subjectividade que, na sua segurança
infinita, conserva a preponderância. (…) Na comédia, que nos faz rir de
personagens que falham nos seus próprios esforços, aparece no entanto o
triunfo da personalidade apoiada fortemente sobre si própria. (…) O que
caracteriza o cómico é a satisfação infinita, a segurança que experimentamos
por nos sentirmos elevados acima da própria contradição e de não estarmos
numa situação cruel e infeliz. É a felicidade e a satisfação da pessoa que,
segura de si mesma, suporta assistir ao fracasso dos seus projectos e da sua
realização.”
O que nos leva a outra diferença fundamental entre tragédia e comédia.
A identidade que é revelada a Édipo ou a outra personagem trágica é uma
completa redefinição moral: ele percebe a complexidade dos acontecimen-
tos, é afectado por eles, torna-se um ser qualitativamente diferente e retira
daí todas as consequências. Em contraste, as personagens da comédia não
são afectadas pela experiência que atravessam; passam por uma quantida-
de de acontecimentos sem lhes perceber a qualidade, não mudam nem se
adaptam, por vezes são mesmo fisicamente surdas. No geral, escrevem
Calderwood e Toliver (174), “as personagens da comédia não se desenvol-
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Não é por acaso que o Quixote começa com uma livraria. A obra de
Cervantes dá-nos como conhecidas as encenações intertextuais sobre as quais
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O ponto de vista de Umberto Eco vem dar novos argumentos a esta ideia
de o cómico ser mais conservador: “a regra violada pelo cómico é de tal
maneira reconhecida que não há necessidade de a reforçar.” O cómico pres-
supõe uma regra intocável, que preexiste e que regressa depois da aparição
do cómico. “O cómico parece popular, libertador, porque dá licença para
violar a regra. Mas dá-a precisamente a quem introjectou essa regra de tal
maneira que a presume como inviolável. (…) Em regime de permissividade
absoluta e de completa anomia não há Carnaval possível, porque ninguém
recordaria que coisa é posta (parenteticamente) em questão.” (1986:265)
Creio que a discussão do carácter conservador do cómico deve passar por
se distinguir entre vários tipos de comédia. É o que faz Northrop Frye. Em
Anatomia da Crítica (163-206), disserta sobre duas grandes tradições. Existe,
por um lado, a comédia satírica, cultivada já na Grécia por Aristófanes e de-
pois seguida por autores como Maquiavel, Ben Jonson, Gil Vicente, Molière
ou Bernard Shaw. Fala-nos da experiência degradada, de personagens ridícu-
las, avarentas ou hipócritas (como Tartufo ou Volpone). Será então que há
uma comédia crítica por oposição a uma comédia conservadora? Também não
é assim tão simples. Repare-se na estrutura de cada uma. A comédia satírica
é muito crítica mas termina com a imposição da lei. Só quando umas perso-
nagens são desmascaradas e punidas é que as outras podem viver satisfeitas
e se alcança o final feliz. Ou seja, vai-se da liberdade às restrições: depois de
deixar livre curso às peripécias mais absurdas, a lei acaba por ser reposta, em
geral de forma rápida e que liberta do mal. Foi, portanto, crítica no seu de-
senrolar, mas repôs a ordem no seu desfecho.
Já a comédia romântica, pelo contrário, vai da frustração à liberdade.
É menos crítica durante o seu desenrolar, mas acaba por banir a ordem exis-
tente. É uma tradição que remonta a Plauto (e que encontramos em muitos
filmes, do tipo boy meets girl). Note-se que designá-la como romântica não
significa associá-la sem mais ao amor ou à sedução (que também podem
surgir na comédia satírica): significa que há uma maneira simpática e leve
de tratar assuntos como o romance, os naufrágios, as crianças perdidas, as
identidades trocadas; significa também que os vícios são inofensivos ou dão
vontade de rir, porque predomina uma experiência elevada; e sobretudo
significa que há uma perspectiva caridosa, em que mesmo as personagens
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Veja-se que é muito mais razoável misturar as coisas graves com as menos
sérias numa mesma sucessão de discurso, e fazê-las encontrarem-se num
mesmo tema de fábula ou de história, do que juntar, fora da obra, as sátiras
com as tragédias, que não têm nenhuma ligação de conjunto e que confundem
e perturbam a vista e a memória dos auditores: pois dizer que é pouco
conveniente fazer aparecer numa mesma peça as mesmas personagens,
tratando tanto de assuntos sérios, importantes e trágicos, e imediatamente a
seguir, de coisas comuns, vãs e cómicas, é ignorar a condição da vida dos
homens, de quem os dias e as horas são muitas vezes entrecortados de risos
e de lágrimas, de contentamento e de aflição, segundo são agitados pela boa
ou má Fortuna. (…) Os pintores observam que os mesmos movimentos dos
músculos e dos nervos que formam os risos nas faces são os mesmos que
servem para nos fazer chorar e pôr nessa triste postura em que testemunhamos
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uma dor profunda. E depois, no fundo, aqueles que querem que não se altere
e não se mude nada nas invenções dos antigos, discutem aqui apenas sobre
a palavra, e não sobre a coisa: pois, o que é o Ciclope de Eurípides senão
uma tragicomédia cheia de zombarias e de vinho, de Sátiros e de Silenos
dum lado, do sangue e da raiva de Polifemo com o olho vazado do outro?
A coisa é então antiga, embora o nome seja novo; resta-nos somente tratá-la
como é devido, e saber descer oportunamente do coturno da tragédia (…)
à chinela da comédia. (François Ogier, in Borie et al 86-87)
Esta regra da unidade de tom teve uma hegemonia muito mais loca
lizada, temporal e geograficamente, do que a das outras três unidades.
O pré-romantismo e o romantismo insistentemente invocam Shakespeare
(nomeadamente contra Racine) para justificarem a prática da combinação
entre géneros. O drama romântico virá misturar tragédia e comédia, lirismo
e farsa; e (sobretudo no romantismo alemão) relaciona esse hibridismo
com a concepção dialéctica do real, em que a verdade e a beleza se
constituem ou se revelam mediante a síntese dos contrários. O iluminista
alemão Lessing, crítico do neoclassicismo francês e adepto de Shakespeare,
escreve, em 1767-78:
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Que se entende, enfim por uma mistura de géneros? Que sejam separados
o mais exactamente possível nos tratados dogmáticos, e ainda bem; mas
quando um homem de génio, com objectivos mais altos, faz entrar vários
géneros numa única e mesma obra, é preciso esquecer o livro dogmático e
ver apenas se o autor realizou a sua ambição. Que importa que uma peça
de Eurípedes não seja nem toda narrativa nem toda drama? Chamai-lhe um
ser híbrido; basta que este híbrido me agrade e me instrua mais que as
produções regradas dos vossos outros autores correctos como Racine e outros.
A mula não é burra nem cavalo: será por isso menos útil como animal de
carga? (Lessing, in Borie et al 220-223)
Nada é mais comum que uma casa na qual o pai resmunga, uma filha
arrebatada pela sua paixão chora, o filho zomba dos dois, e alguns parentes
tomam parte na cena de maneiras diferentes. Troça-se muitas vezes num
quarto do que enternece no quarto vizinho, e a mesma pessoa algumas vezes
riu e chorou pela mesma coisa no mesmo quarto de hora. (…)
Não inferimos daqui que toda a comédia deva ter cenas bufas e cenas
enternecedoras. (…) Não se deve excluir nenhum género, e se me perguntassem
que género é o melhor, responderia: “O que for melhor tratado”. (…)
Confessa-se que é raro fazer passar os espectadores insensivelmente do
enternecimento ao riso; mas esta passagem, por mais difícil que seja de captar
numa comédia, não é menos natural aos homens. Já fizemos notar noutro
momento que nada é mais vulgar que as aventuras que afligem a alma, e
cujas circunstâncias inspiram em seguida uma alegria passageira. Infelizmente
é assim que é feito o género humano. Homero representa mesmo os Deuses
rindo da desgraça de Vulcano, no tempo em que eles decidem sobre o destino
no mundo. Heitor sorri do medo de seu filho Astíanax, enquanto Andrómaca
semeia as lágrimas. (Voltaire, in Borie et al 151)
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Cinco anos depois, Hegel (in ibid. 340) anota que “na poesia dramática
moderna, o trágico e o cómico estão ainda mais entretecidos”. Por opção
estética, mas também por uma razão que remonta aos velhos critérios aris-
totélicos. Durante o século XIX, diminuindo as oposições entre classes nobres
e populares e entre linguagem “artística” e “corrente”, a tragédia é abaixada
e a comédia elevada, a favor de um teatro burguês que trata de uma classe
média ou de relações entre classes. Desde então, o hibridismo entre comé-
dia e tragédia tende a ser aceite por quase todos, cultivado por muitos, e
levado bem longe por alguns.
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1 1 . T E X TO E CEN A
Porque se simboliza por uma flor todas as coisas do mundo? É pela sua
existência efémera que se gosta delas, elas só florescem durante uma estação,
são raras.
De igual modo, o Nô fala ao coração e suscita o interesse. A flor, o
interesse e a raridade, eis a maravilha do Nô.
Florir e murchar são inevitáveis; é o que torna as flores maravilhosas.
O encanto do Nô, a sua flor, encontra-se na virtude da mudança. (…)
As flores de hoje são semelhantes às do ano passado. Assim, o Nô, mesmo
tendo já sido visto antes, ou inscrevendo-se num repertório importante,
retornará, após a passagem do tempo, igualmente raro. (Zeami, in Borie et
al 48-49)
D rama e C omunicação
Quem vive do espectáculo vivo tenta fazer dessa finitude uma sedução
e lembrar-se que esse é também, à sua maneira, o fascínio da vida, em que
só temos a perder se nos tentarmos agarrar às coisas. Como disse Jean-Louis
Barrault: “amo o teatro justamente porque não aspira a ser durável. Não
desafia a morte.”
1 Segundo Lehmann (220), esta condição tende ainda a aumentar no teatro pósdramático,
na medida em que “o critério se torna dependente da experiência dos participantes, ou seja,
de um facto subjectivo, efémero, comparado com a ‘inércia’, com a fixação da obra duravelmente
estabelecida”.
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curo quase não existe, como o essencial é uma quase nada, um não sei
quê, uma coisa ligeira entre todas as coisas ligeiras, esta busca insana ten-
de sobretudo a mostrar o impalpável – qualquer coisa de que se pode
entrever a aparição, mas não verificá-la, porque se desvanece no instante
mesmo em que aparece, porque a primeira vez é também a última.”
Como pode a teoria pensar estes acontecimentos efémeros e impalpáveis?
Em geral, as teorias parecem mais preparadas para lidar com objectos,
ainda que em ruínas. Mesmo elementos tão contextuais como os provérbios
são quase sempre estudados fora do contexto! Por isso, em relação ao dra-
ma e ao espectáculo, as teorias continuam a debruçar-se ou sobre os textos,
ou sobre o que ficou da arquitectura, dos cenários e dos figurinos, muito
mais do que sobre o acto dinâmico de produção e recepção colectiva, que
é afinal o que mais caracteriza o espectáculo. A própria crítica, em Portugal,
na sua maioria quase se limita aos textos.
Vimos já como o pensamento de Deleuze dá prioridade ao processo, ao
devir, ao tornar-se, o que choca com a concepção de drama como re-pre-
sentação. Conflui com os Performance Studies de Richard Schechner (2006),
que analisam sempre os eventos performativos como práticas, acontecimen-
tos, processos e relações, não como “objectos”, “sujeitos” ou “coisas”
discretos. “Desenhos e esculturas”, escreve Schechner (1985:22), “que no
mundo moderno estão associados com ‘signos’ e ‘símbolos’ (semelhança
verbal) são nos tempos paleolíticos associados com actos (semelhança te-
atral). Assim, os ‘guiões’ de que eu falo são padrões de actos, não modos
de simbolização separada do fazer.” Tanto Deleuze como Schechner “afir-
mam o movimento e o ‘estar vivo’ como imanente até aos fenómenos
aparentemente mais estáveis” (Cull 3). O que pode fazer um pouco a dife-
rença da abordagem comunicacional do dramático é também conseguir criar
condições para que se entenda como o texto na biblioteca ou o guarda
‑roupa no museu não esgotam de maneira nenhuma a cena ou o espectáculo.
É certo que o texto é o que mais fica: do teatro isabelino temos sobretudo
os textos que nos chegaram, dos gregos também, juntamente com alguma
teoria sobre o espectáculo. Mas não podemos contentar-nos com o que fica,
quando estudamos algo que se caracteriza por passar.
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está a faltar na nossa experiência real como leitores, como leitores solitários
fabricando imagens mentais em resposta a palavras, em vez de espectadores
lidando com imagens e sons reais e palpáveis na atmosfera festiva do teatro.
(Benjamin Bennett 61)
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3. Durante muito tempo não havia, aliás, textos dramáticos como Hegel
os imaginava: como uma entidade sozinha, por si. O que havia era textos
escritos directamente para uma cena, para serem representados, e depois se
via se funcionavam ou não. Se funcionassem, eram guardados. Os textos an-
tigos que nós temos, seja de Sófocles, seja de Shakespeare, até de Racine, são
aqueles textos que funcionaram tão bem que sobreviveram – passaram o
teste da cena.
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Por isso mesmo o teatro isabelino é tão diferente do teatro clássico francês:
porque as tradições cénicas eram muito diferentes. Racine ou Molière estavam
a escrever para práticas distintas da de Shakespeare. Se fossem só textos lite-
rários, haveria decerto muito maior semelhança entre o que se fazia em França
e Inglaterra. (Como aliás passou a acontecer desde a afirmação do texto tea-
tral como “literatura”, com a separação de muitos dramaturgos em relação aos
grupos que levam à cena as peças e a submissão do actor ao texto escrito.)
Mais argumentos contra este mito do texto autónomo, que não precisa de
mais nada, que vive por si? Repare-se como o texto dramático é heterogéneo:
além dos diálogos e monólogos das personagens, tem didascálias, que são as
indicações sobre os espaços, os ritmos e as outras acções que acontecem além
das falas: um simulacro de drama que “invade as letras do texto – didascálias,
grafismo especial para a alternância de falas, pontuação, métrica, descrições,
apelos ao leitor mascarado de espectador” (Brilhante 13-15). Repare-se também
que as próprias falas das personagens constituem uma forma de acção, como
mostraram autores como Searle e Austin (teorias dos actos da fala). Repare-
se ainda como essas falas estão repletas de deíticos: referências, nos próprios
diálogos, a lugares, tempos, objectos, etc. Quando alguém diz: “Vem cá: Onde
é que encontraste isto? Diz lá: foi ali?”, está a remeter para um cá, um isto e
um ali (e até para uma resposta silenciosa do outro) que, lidos, não fazem
todo o sentido: só no contexto os conseguimos perceber.
Daí o facto de, quer em termos da prática cénica, quer em termos da se-
miologia, se ter nas últimas décadas trabalhado a ideia de que, ao tomarmos
um texto, ele já pede um determinado número de acções. Shakespeare é mais
uma vez um exemplo extremo, e o encenador inglês John Barton fez escola
mostrando como, apesar de Shakespeare não escrever quase nada além dos
diálogos, as próprias falas das personagens, ao conterem muitos deíticos e
actos da fala e ao alternarem de verso para prosa, de linguagem elevada para
linguagem vulgar, mesmo de vocábulos longos para monossílabos, já sugerem
os caminhos e ritmos para a prática cénica.
Cabe depois ao encenador apoiar essa passagem do texto à cena: o que
ele faz, em conjunto com os actores e toda a restante equipa, não é apenas
sublinhar o texto que lá está, nem é apenas fazer dizer um texto, nem é
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pelos seus autores, e que aí não produzirão muito efeito, embora sejam
admiradas na leitura. Mas duvido muito que um homem que nunca tivesse
visto um espectáculo, ou que nunca tivesse ouvido falar, pudesse receber
dessas obras uma impressão tão viva como a que elas produzem sobre nós.”
Mesmo daqueles autores que, no século XIX , em pleno mito do texto
autónomo, escreveram peças contra a cena do seu tempo, “para não serem
representadas”, para serem apenas lidas (e houve grandes autores que o
fizeram, como Kleist e Büchner na Alemanha, ou Musset em França): se
ainda hoje representamos essas peças é porque eles, quando estavam a
escrever, participavam numa tradição (e numa aspiração) cénica que lhes
permitia antecipar admiravelmente a passagem desses textos à cena. Há
actualmente pesquisas que procuram reconstituir que tipo de encenações
os autores tinham em mente – convenções cénicas da época, concepções
do espaço e do tempo, montagem dramatúrgica, etc. (cf. Pavis, 1997:303).
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Susanne Langer (327) sublinha que o que está escrito tem de ser um
projecto suficientemente definido para unir em torno dele todas as pes
soas que vão estar a colaborar na passagem à cena. Nos filmes também.
É preciso que a peça escrita ou o guião sejam suficientemente fortes para
orientar o encenador, o cenógrafo, o figurinista, os actores, o músico – to-
dos vão buscar a sua inspiração e orientação àquele texto, que por isso,
geralmente, é o elemento mais unificador do projecto. Lembremos como
Wagner falava da “acção dramática” como princípio unificador.
Susanne Langer (327-8) toma de empréstimo a metáfora da crista da onda,
de Edith Warton: “o uso do diálogo na ficção (...) deve ser reservado para
os momentos culminantes e considerado como o borrifo em que se quebra
a grande onda da narrativa ao curvar-se em direcção ao observador na praia.”
E logo lembra que esses momentos culminantes não são raros: “a culmina-
ção do pensamento e do sentimento na fala é uma ocorrência frequente,
como a culminação e a quebra de cada onda numa constante rebentação.
(...) Um dramaturgo que escreve apenas as falas proferidas numa peça mar-
ca uma longa série de momentos culminantes no fluxo da acção.”
As falas são o rebentamento das ondas, quando algo já não pode per-
manecer apenas interior ou não verbal e é passado à fala. Por baixo, há o
subtexto, que é aquilo que dá mais trabalho aos actores e encenadores:
procurar as ondas que sustentam aquelas falas e fazem com que em certos
momentos a personagem tenha que falar. Mas se os actores ficarem só por
essas palavras – como tantas vezes, infelizmente, acontece – é um espec-
táculo muito desinteressante. O próprio Hamlet já tinha nojo das “palavras,
palavras, palavras”.
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genérica já não seria dada pelo texto, como pede Susanne Langer e como
ainda hoje é comum no “teatro dramático” (para usarmos a expressão de
Lehmann), mas sim pelo encenador (neles muito entendido como projectista
visual): o corte corresponde ao aparecimento da encenação teatral no sentido
moderno do termo e ao crescimento do papel do encenador como autor do
espectáculo. A partir daí, em muitos teatros, “o encenador desempenha dois
papéis, o de ensaiador e o de dramaturgo e, ainda, o de controlador, que
dantes jamais tinha assumido, das relações entre a actividade prática e a prá-
tica social”, queixa-se o dramaturgo Nigel Gearing (in Rebello 145). É deixar
de pensar o teatro como “poesia dramática”, à luz de Aristóteles ou de Hegel,
e assumi-lo como arte independente, ainda que futura e feita de uma conju-
gação de vários elementos. Vimos também como o “teatro de imagens” de
Bob Wilson prolonga esta visão do teatro como arquitectura, da cena como
espaço a que os outros elementos se iriam condicionar – os próprios actores
seriam supermarionetas. Não admira que Craig tenha também ido buscar
elementos da tradição oriental: porque a nossa cultura ocidental tem sido cada
vez mais logocêntrica, baseada no texto, enquanto noutras tradições a dança
ou a música ou o corpo são mais orientadores do espectáculo final do que o
texto. A tradição oriental (dança, siva, ioga) junta o signo e o corpo como
duas modalidades do discurso e do prazer. A tradição ocidental é que privi-
legia o suporte linguístico, e no teatro dos últimos séculos fomos tendendo a
privilegiar o texto, a ponto de esquecermos que ainda no tempo de Shakespeare,
de Gil Vicente, de António José da Silva ou de Racine (ou mais tarde com
Brecht, ou hoje, com Peter Handke, Botho Strauss, Sam Shepard, Jorge Silva
Melo, José Maria Vieira Mendes e tantos outros) esse texto não era autónomo,
era feito directamente para uma cena.
Neste mito oposto, em que a cena se afirma contra o texto, vale a pena
deter-nos no caso de Antonin Artaud (1896-1948). Ele reagia a uma sociedade
“comida pelas palavras”, apesar da aporia em que ficava: ao recusar o texto,
a repetição e a estética fazia-o com palavras. Vindo da sua Marselha natal para
Paris, e ao mesmo tempo que escrevia alguns versos mas só lhe publicavam
as cartas que sobre eles trocava, Artaud fez-se actor: queria, como disse mais
tarde e noutro contexto, “provar a minha existência, ligar-me à realidade so-
nora das coisas, romper com a fatalidade”.
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Trabalhou dez anos nesta profissão, em teatro e em cinema, com gestos seus
em peças escritas por outros (só uma vez representou o protagonista da sua
única peça, Os Cenci, adaptada de Shelley e de Stendhal, que teve apenas 17
representações), muitas vezes em pequenos papéis, mesmo sem palavras: até
que a vocação, ou as circunstâncias, ou ambas as coisas, o tornaram acima
de tudo um fazedor de palavras, escritor e pensador, de vastíssima obra es-
crita. No entanto, mesmo nas suas conferências procurava subordinar a voz
ao corpo: por exemplo, Anaïs Nin conta no seu Diário como, em plena
Sorbonne, Artaud escandalizou porque, ao falar de “O teatro e a peste” (uma
comparação que já Santo Agostinho tinha feito), optou a dada altura por en-
carnar um pestífero.
Em 1947, pouco mais de um ano antes de morrer, Artaud organizou e
realizou no Théâtre du Vieux Colombier uma derradeira conferência que in-
titulou La véritable histoire d’Artaud le Mômo e subintitulou Tête-â-tête: um
frente a frente consigo mesmo, ou com o seu duplo, a que assistiu uma pla-
teia siderada. Ainda hoje não se tem a certeza se improvisou ou se leu as
folhas que tinha preparado e que, por vezes, lhe caíam ao chão. O que é
certo e significativo é que, ao fim de algum tempo, calou-se: porque, dizem,
sentiu que o ambiente não era favorável a essa espécie de testamento que
preparara. Ou porque, creio, finalmente passou ao acto essa aversão ao logos
e às palavras que há tantos anos defendera por palavras e actos mas não por
omissões: “na verdade, eu tinha reparado que já bastava de palavras e até
mesmo de rugidos, e o necessário eram bombas” (1995:26).
Derrida (1978) já brilhantemente mostrou as contradições desse homem
que, por muito que quisesse fugir à linguagem ocidental, nos legou uma obra
que não pôde nem poderia escapar a essa linguagem. Artaud não soube re-
solver uma aporia que ninguém pode resolver, nem sequer dando-lhe o nome
de Esfinge – outra palavra. A prova, se prova for necessária, encontramo-la
se alargarmos um pouco o objecto do bisturi de Derrida a outros enormes
autores da nossa tradição. É curioso encontrar, para trás, no tempo, tanto ou
mais do que o artaudiano tema do incesto, os mesmos palavrosos protestos
contra as palavras – em Strindberg, em John Ford, em Shakespeare, em
Eurípedes! Vejamos, em sucessivos flashbacks.
Na única peça que escreveu, Artaud faz o protagonista dizer: “O que dis-
tingue os actos da vida e os actos do teatro é que na vida fazemos mais e
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dizemos menos, enquanto no teatro falamos muito para fazer uma coisinha
de nada.” A possibilidade de restabelecer o equilíbrio, acrescenta o velho
conde, é passar aos actos, fazer, também no teatro, muita coisa, em prejuízo
da vida, com todo um programa de crimes a cometer. Logo a seguir, diz:
“Ar, confio-te os meus pensamentos”; a meu ver, não porque os confie em
palavras, mas porque confia menos nelas do que no sopro, a que Artaud tan-
tas vezes se referiu.
Não foi ainda decisivamente provado que a linguagem das palavras seja
a melhor linguagem possível. E parece-me que, no palco, que é acima de
tudo um espaço para preencher e um sítio onde algo acontece, a linguagem
das palavras terá de ceder lugar à linguagem dos signos, cujo aspecto objectivo
é o que em nós produz um efeito mais imediato.
Não se trata de suprimir a palavra articulada, mas de conferir às palavras,
aproximadamente, a importância que têm nos sonhos. (…) O público popular
sempre apreciou as expressões e as imagens directas. A fala articulada, as
expressões verbais explícitas participarão de todas as partes da acção, clara
e cuidadosamente elucidadas, as partes em que a vida repousa e a consciência
intervém.
Mas além deste sentido lógico, as palavras serão interpretadas num sentido
de sortilégio, autenticamente mágico, atendendo à forma e às emanações
sensuais e não só ao sentido. (Antonin Artaud, 1996: 105,91,121)
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menda: “Não tenhas medo de usar termos que não fiquem bem um com o
outro, são esses, em geral, que exprimem mais coisas.” E, noutra carta, uns
dias mais tarde, explica: “a alma dos homens não está nas palavras. Amamo
‑nos mais quando não escrevemos porque todas as palavras são uma
mentira. Quando falamos traímos a nossa alma. Bastava olharmo-nos.
Sentimos coisas, mas só o esforço que se faz para as exprimir já é uma
traição” (1996b:41-42). E, no fim da vida, rara será a conferência ou texto
em que Artaud não interrompa a seriedade das palavras com a irrupção de
glossolálias selvagens que as distorcem.
Desse dilema nunca abandonado vem a autenticidade extraordinária da
sua voz, escrita ou falada. Não porque não tenha arte, mas porque essa arte
não é uma estilização estética feita sobre uma qualquer essência anterior e
mais importante: ela própria é a procura essencial, nele a estilização é or-
gânica, ontológica, gutural.
Primeiro flashback. Strindberg (115), n’A Sonata dos Espectros que Artaud
tanto quis encenar, põe na boca de um dos protagonistas a questão: “para
quê falar, se de qualquer maneira já não nos podemos enganar um ao ou-
tro?” E, adiante, numa passagem que vale a pena citar longamente, não
apenas disserta sobre o silêncio como faz uma experiência sobre ele. Também
aqui, parece que ele não serve à personagem como não serve ao drama-
turgo.
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Falar sobre se está ou não está bom tempo, coisa que todos sabemos,
saber novidades da saúde de cada um, que também já conhecemos... Não,
eu prefiro o silêncio, no silêncio ouvem-se os pensamentos e vê-se o passado,
o silêncio não pode esconder... o que as palavras escondem. Li no outro dia
que a diversidade das línguas, nos povos primitivos, se destina a esconder
aos outros os segredos da tribo; todas as línguas são, por isso, uma linguagem
cifrada, e todo aquele que encontrou a chave, comprende-as a todas; alguns
segredos, é certo, podem ser desvendados sem a ajuda de nenhuma chave,
especialmente os que têm a ver com a paternidade; diante de um tribunal,
a história é outra: duas falsas testemunhas bastam para estabelecer uma prova,
desde que estejam de acordo; no género de expedições de que eu quero
falar, não se leva nenhuma testemunha, porque a própria natureza dotou o
homem de um sentimento de pudor que mantém escondido o que deve ser
escondido... Mas encontramo-nos por vezes sem querer em situações em que
é preciso revelar os segredos mais recônditos, arrancar a máscara do escroc
e desembuçar o bandido... (Um silêncio. Todos se olham sem nada dizer.) Que
silêncio! (Um longo silêncio). (August Strindberg 109)
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Tudo aqui nos lembra como as falas são actos. Esmagado pelas pala-
vras reveladoras, quando já não as pode continuar a remeter para a
loucura (“não esperava que falasses como um louco”), Édipo concluirá:
“Mulher, receio que já me tenham falado demais.” E a própria Jocasta,
que antes declarava que “quem não tremeu ao cometer um crime, também
não se deixa atemorizar por palavras”, quando passa da fala ao acto si-
lencioso, deixa o coro aterrado: “Receio que grandes males venham
deste silêncio.”
Voltemos a Artaud. As suas palavras deram-nos - e já não foi pouco
- um imenso e novo horizonte para o teatro: mas não chegou a construir
um teatro para esse horizonte. Escreveu (além de um surrealista diálogo
radiofónico) uma só peça, e essa, apesar do tema provocador do incesto,
com uma estrutura e uma forma muito clássicas (era aliás, repita-se,
adaptada de Shelley e Stendhal); encenou-a, é certo, mas as fotografias
mostram um dispositivo algo convencional, excepto por alguns fatos
desenharem o interior do corpo humano. Além disso, Artaud escreveu
inúmeros textos, poemas, manifestos, ensaios, cartas, cadernos, análises,
súplicas: que a editora Gallimard tem vindo a editar, completando já 26
volumes!
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2São sobretudo pequenos textos em jornais e revistas. Ver 1993, sobretudo os textos que
começam, no vol. I, nas pp. 481,486,496,514,547,730,753,848,889,1530; vol. II, p. 1591.
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ditas pelos actores, procurará elementos visuais ou sonoros para o fazer sur-
gir fisicamente, mas nunca porá no palco um exército completo: talvez
trombetas, sons, alguns soldados, raramente os cavalos. “É sem dúvida este
vaivém complexo entre realidade e convenção total que faz do teatro uma
arte original da representação.” (27) Shakespeare sabia bem a importância da
imaginação do espectador, que trabalha a partir dos signos dados em palco.
Ele pede, logo no início da peça Henrique V: “preencham as nossas imper-
feições com os vossos pensamentos” (durante toda esta peça, aliás, o coro
fará variações sobre esta ideia).
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pelo menos a Darwin. Nos mesmos anos 30 dos primeiros estudos semioló-
gicos do teatro, Marcel Mauss estudava os gestos e a utilização social do
corpo. Pela mesma época, muitos actores publicavam livros que incluíam
fotografias dos vários tipos de expressões que a cara pode transmitir. Vimos
também, com Goffman, como estamos atentos ao jogo das possíveis diferen-
ças entre o que é expresso por palavras e o que é expresso por gestos.
Ou entre as palavras. Um campo da semiologia fundamental para o drama
é a paralinguística: Eco (1989:51) define-a como “o estudo das entoações,
das inflexões de voz, das diversas significações de um acento, de um sus-
surro, duma hesitação, de um tonema, de uma inflexão, às vezes de um
soluço ou de um bocejo”. Para além das palavras propriamente ditas, há
pausas, entoações, expressões que usamos tanto ou mais do que as palavras
e que vão articular o discurso de uma determinada maneira. Se ouvirmos uma
gravação de uma conversa num café, ou mesmo de uma aula universitária,
que se poderia esperar ser um discurso muito articulado e limpo, constatamos
que está cheia dessa paralinguagem. Quanta informação é dada pela maneira
como as palavras são enunciadas e por aquilo que está entre as palavras!
Note-se que já no século XVIII o pensamento precursor de Diderot reconhecia
que, mesmo numa época que valorizava as grandes tiradas verbais, elas eram
menos eficazes do que toda a paralinguagem que entre elas surgia:
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4 Natanson (1976:58) cita uma conferência em que o actor e encenador Jean-Louis Barrault
comenta que, no momento em que Hamlet ouve Polónio por trás da tapeçaria e, brandindo
a espada, grita “Um rato?”, consegue finalmente o acto sanguinário que antes não ousara:
“é capaz de empunhar a espada e matar um rato, mas talvez não fosse capaz de empunhar a
espada para matar um homem”, diz Barrault. O facto de trabalhar sobre uma figura permite
à personagem ir mais longe. Ao actor e ao espectador também.
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Vamos mais longe: não nos seria difícil colocar à partida o teatro como
inversão crítica da noção de representação, a tarefa do teatro concreto sendo
a de construir o modelo real de uma construção imaginária. A cena aparece
então como um après-coup do imaginário e nesta perspectiva o facto de
passar ou não pela textualidade literária não é essencial. (Anne Ubersfeld 10)
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1 2 . AC TORE S E ENCEN A DORE S
E cada adulto não terá esquecido ou tentado esquecer pelo menos uma
humilhação, uma ira ou um pecado que só ele próprio conhece? Como
poderíamos prosseguir a caminhada sob o peso desmesurado das muitas
malas de memórias? De facto, esquecer o passado é lembrar o presente.
Esforçamo-nos por esquecer, até porque o presente, sobretudo o presente
dramático, já inevitavelmente nos faz viajar para os momentos passados e
futuros que sintetiza. Mas será humanamente possível sermos nós próprios
a fazer uma mala de viagem, de modo a salvar da necessária selecção os
amores e paixões que nos marcaram e nos tornaram mais humanos?
Há actores que esquecem de menos. Trabalhei com um que, depois de
ir fazer uma peça do Genet, voltou para a companhia tão mudado, tão
irascível, que acabou por desistir: não tinha sabido esquecer. Um caso par-
ticular desta espécie é o actor que vai criando uma figura e nunca se
esquece dela, talvez para assim ter um filtro, uma máscara que se interpõe
e facilita ao mesmo tempo a entrega e a distância, a dádiva e o esqueci-
mento dela.
Há outros actores que esquecem demais, e vão para a peça seguinte só
com uma memória técnica, sem se lembrarem de que pelo menos em cada
momento que entraram em cena e acreditaram em Hecuba também se tor-
naram um ser humano melhor e mais profundo.
O encenador também tem de aprender a esquecer mas não conta para
isso com a ajuda diária e nocturna dos espectadores – esses que justificam
e tornam possível que os actores se tornem pontos de intensa passagem
de ideias e sentimentos a que não podem ficar agarrados!
Uma das melhores utopias do espectáculo é a do momento decisivo e
irrepetível: una noche y basta. Artaud chegou a defender que os próprios
poemas deveriam ser ditos uma vez e logo destruídos: o sonho de algo
magicamente eficaz precisamente porque não repetível – um sonho para o
qual tantos acordaram nas últimas décadas, cansados de dois séculos de
um teatro que se instituiu como máquina de repetição. Mas mesmo quando
tem de repetir a mesma peça todas as noites durante vários meses (ou, para
a câmara, os mesmos gestos e falas durante vários takes), o actor terá de
saber improvisar, com técnica e espontaneidade, para que esses gestos e
falas pareçam nascer no preciso momento em que são no entanto repetidos.
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Tal como no dia da estreia teve de esquecer, sem esquecer, que as marca-
ções são marcações, para que as personagens e situações tenham ou pareçam
ter vida própria, não delegada. Esquecer é lembrar o presente, e nada é mais
difícil ao actor, e talvez a todas as pessoas, do que estar realmente presente.
Descarta-se também rapidamente a questão do vedetismo, que não tem
deixado de se projectar sobre a questão do actor, desde Aristóteles passan-
do por Wagner e Craig até aos nossos dias. Invoque-se então o lema do
Teatro de Arte de Moscovo, dirigido por aquele que ainda hoje é a referên-
cia mais constante nas reflexões sobre o actor, Konstantin Stanislavski
(1863-1938): “ama a arte, não te ames a ti na arte”. O mestre russo, que
redigiu o seu livro A Formação do Actor sob a forma de diário de um pro-
fessor, põe este a avisar a turma:
Agora recordem isto: o teatro por via do seu lado espectacular e da sua
notoriedade atrai muita gente que só quer explorar a sua beleza ou fazer
carreira. Aproveitam a ignorância do público, o seu mau gosto, caprichos,
intrigas, falsos êxitos e muitos outros meios que não têm relação com a arte.
Devemos usar para com eles das mais severas medidas e se os não podemos
modificar, devemos obrigá-los a abandonar o Teatro. É por isso (e voltou-se
para Sónia) que você deve decidir duma vez para sempre se vem aqui para
servir a arte e pronta a fazer os sacrifícios necessários, ou explorá-la para
fins pessoais. (Konstantin Stanislavski 52)
Uma outra questão que também vale a pena referir rapidamente diz
respeito à mercantilização do actor. Roland Barthes faz-lhe agudamente o
diagnóstico.
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simples, de tal modo que a paixão se tome também uma mercadoria como
as outras, um objecto de comércio, inscrito num sistema numérico de troca:
eu dou o meu dinheiro ao teatro, exigindo em paga uma paixão bem visível,
quase computável, e se o actor enche bem a medida, se ele sabe pôr a
trabalhar o seu corpo diante de mim sem batota, se eu não posso duvidar
do esforço que faz, então decretarei que o actor é excelente, dar-lhe-ei
testemunho da minha alegria por ter investido bem o meu dinheiro num
talento que não o escamoteia, mas o restitui centuplicado sob a forma de
lágrimas e de suores verdadeiros. (…)
E quando, extenuado, esvaziado de todos os seus humores, o actor vem
no fim da peça saudar o público, este aplaude-o como um recordista do
jejum ou dos alteres, propondo-lhe secretamente que vá restaurar forças,
substituir toda essa água com que mediu a paixão que lhe comprámos.
(Roland Barthes, 1978:100-101)
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como notou Meyerhold (in Barata 139), “o teatro do século XIX era um
teatro falado em que os actores, acomodados em cadeirões ou divãs, fala-
vam, falavam sem cessar; um actor destes era uma espécie de fonógrafo
que todos os dias tocava discos diferentes: hoje um texto de Puchkine,
amanhã um de Molière.” É claro que o treino da voz é necessário, mas é
apenas uma parte do treino do actor. E nele, ao contrário do que muitas
pessoas pensam, o mais difícil e demorado não é conseguir uma boa dicção,
que essa geralmente alcança-se depressa: é conectar a voz com o corpo e
a respiração. É nisto que o treino da voz hoje se concentra, seguindo aliás
a experimentação que vem dos anos 60, por exemplo, com o Living Theatre,
de que um dos directores afirmava:
Um dos termos mais usados em ensaio nas últimas décadas tem sido o
de organicidade, para marcar justamente a integração entre as várias partes
do corpo, voz, emoções, inteligência – questão que neste livro temos vindo
a defender como fundamental.
Por alguma razão as crianças podem berrar horas sem ficar roucas: ne-
las há a unificação de que fala Julian Beck, há o relaxamento mesmo nos
momentos difíceis e há uma boa postura da coluna. Como mostram as téc-
nicas Alexander (cf. Brennan, 1994) e Linklater (cf. www.kristinlinklater.
com), não é possível um uso correcto e continuado da voz sem uma boa
postura do corpo: a voz não é um fenómeno exclusivo da garganta, nem
sequer da cabeça, antes envolve todo o corpo. Muito do treino inicial do
actor consiste em redescobrir o que sabia em criança e em reeducar o cor-
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po e a voz, mal habituados por uma socialização que o fez estar mal
sentado na escola durante anos, ou falar num só registo para ser “bem
educado”.
Nesse treino do corpo do actor, não se privilegia a massa muscular, mas
sim a energia interna, como os orientais sempre conceberam:
Quando movemos o nosso espírito até aos dez décimos, é preciso movermos
o nosso corpo até aos sete décimos. Há, portanto, mais sentimento interior que
movimento corporal. (…) O jogo exterior não deve ultrapassar o jogo interior.
(…) Se o actor controla os seus movimentos corporais mais do que os dos
seus sentimentos, a sua interpretação será interessante (…)
O actor deve captar a natureza física antes de imitar os seus gestos. (..)
É preciso primeiro aprender a colocar-se na condição física da personagem;
a mímica só vem depois. (Zeami, in Borie et al 49)
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treino corporal. Quando cria uma escola, esquece que a cultura física deveria
ser a principal matéria a ensinar; quando sonha levar à cena Antígona ou
Júlio César, esquece que a música destas peças as coloca numa outra classe
de teatro, um teatro de outro género.” Mas já vimos que todo o século XX
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Pode até deixar vir essas memórias algumas vezes durante o processo de
ensaios, mas aos poucos, começando a acreditar na realidade daquela ficção,
já será como amigo de Hamlet que o chorará – além de que estará mais
em controlo do seu acto artístico, mais independente das surpresas que a
memória afectiva traz. No fundo, ela corresponde afinal a um elemento do
inconsciente, quando Stanislavski queria instrumentos conscientes para
chegar ao inconsciente.
O próprio Stanislavski acabou por deixar de lado esta ideia da memória
afectiva, que em boa parte contradizia outra linha de trabalho que lançou
e que hoje continua essencial: que o actor parta das acções físicas elemen-
tares, de modo a manter-se relaxado e concentrado. Ao receber um copo
de leite quente da pessoa que lhe declarou o seu amor, deve sentir esse
calor como algo que o afecta, que o toca, seduzindo-o ou incomodando-o.
São acções conscientes que acabam por afectar o inconsciente.
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Nós fingimos que Lear disse esta frase espontaneamente, e isto provoca
muito mais espanto do que imaginar a mesma frase trabalhada cuidadosamente
por um homem sentado à sua secretária com uma pluma e papel. (...) Virar
‑se em parte para o autor e em parte para a personagem é um pensamento
duplo. O pensamento duplo desperdiça a energia e a concentração. (...)
O que podemos dizer a um jovem actor que experimenta um destes
grandes papéis? Esqueça Shakespeare. Esqueça que alguma vez existiu um
homem com este nome. Esqueça que estas peças têm um autor. Pense apenas
que a sua responsabilidade enquanto actor é dar vida a seres humanos. Então
imagine unicamente – como um truque útil – que a personagem que está a
trabalhar existiu verdadeiramente, imagine que alguém o seguiu secretamente
por todo o lado com um gravador, de tal forma que as palavras que ele dizia
sejam verdadeiramente as suas. O que é que isto modificava?
As consequências de uma tal atitude podem levar muito longe. Todas as
tentativas de pensar que Hamlet é “como eu” são aniquiladas. Hamlet não é
como “eu”, não é como todo o mundo, porque ele é único. (Peter Brook,
1998: 19,17)
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o que mais nos interessa. Esta densidade tinha em conta numerosos elementos,
a começar por uma linguagem imagética, mas também palavras, e essas
palavras tomavam uma dimensão extraordinária pelo facto de não serem
simplesmente ‘conceitos’. Mesmo se o conceito é um elemento necessário
do discurso, não deixa de ser uma parcela tragicamente insignificante de
tudo o que o discurso nos pode dar” (retomamos o que vimos no capítulo
sobre a tragédia, nomeadamente a teoria da inconceptualidade reclamada
por Blumenberg).
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entra, dizendo, por exemplo, “Ah, finalmente chegaste, anda cá”). Falta saber
como entra, de onde, para onde, se fica em pé, se se senta ou deita, etc. (além
de se poder querer mudar o que vem na didascália). Para decidir tudo isso,
há sobretudo que explorar o subtexto, a tal onda de impulsos que repetida-
mente temos referido e que leva essa personagem a entrar, agir e falar.
Pode-se, nesse processo, imaginar acontecimentos que teriam ocorrido antes,
mesmo que não figurem na peça: há quem remonte até à infância das perso-
nagens. Pode-se, também, nos ensaios, imaginar o que as personagens fariam
se lhe acontecesse isto ou aquilo; Wilhelm Meister (Livro IV:319-321) sugere
que a chave de Hamlet pode ser encontrada se imaginarmos no que ele se
teria tornado caso o tio não tivesse matado o pai e casado com a mãe.
É sobretudo necessário encontrar acções e ambientes que ajudem a passar,
como quer Hamburguer, do domínio da imaginação ao domínio da percepção.
Na conversa entre Hamlet e a mãe, é diferente se ela estiver de pé ou deita-
da na cama, se estiver vestida ou em roupa de noite, se estiver a fazer alguma
tarefa com um objecto cortante na mão ou o mais que a imaginação ditar.
É claro que essa imaginação pode ser accionada apenas pela vontade de
mostrar trabalho e talento, mesmo que estes não tenham relação com o que
o texto pede. Retomemos aqui o que Barthes dizia sobre a mercantilização,
agora aplicado ao encenador.
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Peter Brook nota também, com graça, como naquilo a que chama o “Teatro
Mortal”, o negócio passa por um certo aborrecimento.
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que Tchékhov escreveu, por exemplo: “Vania abre o armário que chia.”
Tchékhov nunca escreve ao acaso as suas indicações cénicas. Há aí portanto
uma indicação cómica, de uma coisa “antiga”, que sofre, que tem dores, que
evoca o sentido do tempo. (Giorgio Strehler 310))
Strehler (308-309) irá colocar nesse quarto móveis feitos à escala de crian-
ças e um serviço de cozinha feito para elas brincarem, de modo que, quando
as personagens ali estiverem, se sinta de imediato e constantemente a passa-
gem do tempo. Maquinará o tal armário de modo a estar tão cheio de coisas
que quando Gaev, falando do passado, roda a chave e abre o armário, é o
passado que fisicamente cai sobre ele: poeira, plumas, chapéus, véus, sapatos,
caixas, bolas de Natal que rolam e se partem, papéis, cartas, e, por fim, um
pequeno trenó que, “como um pequeno caixão, rolará da direita para a es-
querda no proscénio para vir chocar contra Liouvob, ignorando ainda que foi
o trenó do seu filho que assim embateu com ele. Aí, Lioubov chorará em
silêncio. E o quarto parecerá então como uma espécie de cemitério do tempo:
esse tempo ao qual Vania e Lioubov, depois também Gaev, tentarão a seguir
impor uma ordem durante uma parte da cena, mas em vão. Acabarão talvez
por se sentar no chão em cima de roupas velhas, sobretudos e um casaco de
peles, outrora esplêndido, agora todo rapado, mas ainda suave quando o
acariciam, quando se anicham nele.”
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1 Desenvolvo estas questões teóricas em Monteiro (1996) e a sua aplicação às artes cénicas
no artigo “Experimentar viver: Bartís, Bausch, Pérez, Pavlovsky”, a publicar em volume de
homenagem a Yvette K. Centeno, e de que aqui retomo a segunda parte.
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2 A minha relação com o trabalho de Pina Bausch é mais próxima do que com os outros
criadores referidos, porque, em Fevereiro e Março de 2000 pude estagiar com ela em Wuppertal.
Da muita bibliografia que existe sobre esta criadora, sugiro, para a questão das perguntas, o
livro de Bentivoglio (1994).
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“Que cicatrizes tens?” “Faz rir um urso”, “Como não se deve dançar”, “Um
braço que não acaba”, “Um ser parecido com uma ninfa”, “Uma nova forma
de dançar a dois”, “Algo de exacto”, “Matar com os pés”. Quem quer, vai res-
ponder verbal ou gestualmente, individualmente ou em grupo. Pina filma e
anota meticulosamente as respostas. De muitos dos desafios lançados pode
não surgir nada de interessante, e muitas vezes os bailarinos exasperam-se.
Mas “só assim, por caminhos enviesados”, consegue descobrir o que quer e
pode fazer com aquelas pessoas, naquele momento, profundamente. É como
ir à pesca, há que saber esperar. Aqueles que mais se habituaram ao método,
já vêm eles propor, sem perguntas, certas ideias, apontamentos, músicas. No
espectáculo 1980, o processo subsiste explicitamente no próprio resultado
final: os bailarinos não apenas dão as respostas como fazem perguntas uns
aos outros (e ao público), em palco: “De que tens medo?” “Descreve em três
palavras o país de onde vens”. As perguntas são boas, mas, como lembra
uma das suas maiores bailarinas, Jo Ann Endicott (18), “não são só as ‘per-
guntas’ que importam, mas também as respostas” dos intérpretes.
O que procuram estes directores com tanta experimentação? Gefühl!,
pede sempre Pina, Gefühl!, sentimento! Para desenvolvermos a questão do
sentimento, é importante deixar claro que a experimentação destes autores
que admiro é simultaneamente sobre a vida (observações, memórias da
história pessoal ou colectiva, sonhos, projectos, emoções, reacções) e sobre
a melhor maneira de a expressar na linguagem do teatro ou do teatro dan-
ça. Como disse Pérez (apud Caballero 122), “O problema não é só senti-lo,
é mostrar que o estás sentindo”. Não há, pelo menos em arte, a pura es-
pontaneidade: até os grafitti têm a sua gramática. “O sentimento é algo
muito exacto, é uma outra compreensão, uma outra língua”, disse Pina
Bausch numa conferência em Lisboa (3-4-2007). Retomando o princípio de
Lévi-Strauss, se não chegassem a ser linguagem, não citaríamos estes cria-
dores como artistas; mas, se fossem demasiado linguagem, se associassem
toda a experimentação a uma procura de novos códigos ou efeitos, tão
pouco os citaria eu, que entendo que um dos grandes erros das vanguardas
modernistas foi julgar que tinham inventado a experimentação e que nela
se esgotava o seu trabalho.
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Da referida combinação de planos antropológicos fazem parte: a associa-
ção entre as artes, essa grande herança do trabalho modernista; mas também,
mais antropologicamente, e ultrapassando o mito do génio isolado, o con-
fronto entre adultos e crianças (no início do percurso de Pavlovsky, como
aliás no de Bob Wilson, que no entanto pertence a uma família bem diferen-
te), ou entre adultos e idosos (como fez Pina Bausch ao remontar, em 2002,
o espectáculo Kontakthof com maiores de 65 anos); a associação de actores
consagrados com actores do teatro de rua ou de província ou universitários,
ou mesmo a vivência comum de actores de diferentes continentes e culturas,
como em Pina Bausch ou Peter Brook; a incorporação de experiências vivi-
das nos espaços de ensaio e representação ou durante as tournées de Andrés
Pérez ou, nas últimas décadas, a vontade de Pina Bausch passar em cada ano
três semanas com toda a companhia numa cidade, onde as improvisações
ganham estímulos locais; a consciência de que a vida tem sentido mas tam-
bém tem sem sentido, o que fazia Pavlovsky, nos fóruns de Cádiz, insistir na
importância do humor, elemento fundamental destes vários angustiados cria-
dores – veja-se também como Pina Bausch comenta os seus bailarinos: “têm
todos um desejo sincero de procurar ser tal como são. E sentido de humor.”
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Mais ainda do que o humor, há frequentemente em Bausch a ideia da
festa, da incorporação de elementos populares (um velho ilusionista, um
antigo malabarista, pares de uma escola de danças de salão, projecções em
vídeo caseiro de cenas quotidianas ou de músicos tradicionais). É regressar
do ballet, como produção estética, ao “baile” (como no subtítulo dessa
experiência de Kontakthof com os idosos, “Uma festa com a cidade de
Wuppertal”), que vai ao encontro daquele “carácter festivo do teatro” que,
como vimos, já em 1954 Gadamer pressentia que o teatro queria retomar.
Também em Pavlovsky há elementos do teatro popular e do guiñol, que o
fizeram ser comparado a Dario Fo. Tal como em Andrés Perez: “todos aju-
dando a encher balões e a pendurar serpentinas. Com essa energia
esperávamos ansiosamente o público. Como quando se organizam essas
festas surpresa e que, ao chegar o aniversariante, todos juntos gritam:
Surpresa!!! Assim éramos nós, todo o grupo pronto para surpreender o
público” (Rovira, 2002:110).
Há assim, repare-se, nessa festa ou, para usarmos a expressão pavlovskiana,
nesse “teatro do gozo”, uma diferença fundamental em relação às tendências
modernas e pós-modernas do puro jogo, ou mesmo da estética como puro
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3 Como vou passar a discutir este tema dando um espaço de coerência a cada um dos
criadores, não citarei cada frase de ou sobre Pérez; todas elas podem ser encontradas no
referido nº 112 da revista Apuntes, sobretudo nos artigos da secção “Hacia la definición de un
método”, pp. 98-123. O mesmo para Bartís, cujas citações foram retiradas do diálogo com
Slimobich e Garrofe.
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“Trata-se, dizia Pérez, de desnudar-se, porque a personagem vem e o
actor vai ao seu encontro.” Mas, nos seus ensaios, antes de subir ao pal-
co, “os actores vão primeiro apagar-se, desconhecer-se, não se devem
reconhecer”. Ou seja, para desnudar-se não basta tirar coisas, é necessá-
rio entrar num processo teatral que evite os reconhecimentos habituais,
que leve mais longe, por outros caminhos. E a esse processo de maquilhar
e vestir, o espectador poderá mesmo assistir, à entrada para o espectácu-
lo Negra Ester como nos espectáculos do Théâtre du Soleil, onde Pérez
passou anos tão marcantes: “foi no Théâtre du Soleil e com Ariane
[Mnouchkine], como pessoa, que eu encontrei o rigor, a minúcia e o de-
sejo de unir o Teatro com o ser humano.” O que fica claro, na mestra e
no discípulo, é que essa vontade do humano não dispensa uma linguagem
– nem obriga a uma linguagem realista. Quem disse que as emoções são
realistas? Quem disse que a expressão delas é necessariamente realista?
“Deves buscar outra escala nas emoções, para além do realismo.” “O pro-
blema é como traduzir a verdade por caminhos não realistas.” Em França,
Pérez teve a oportunidade de provar a linguagem do Kabuki, do Nô, do
kathakali, da commedia dell’arte e da máscara, que viria depois a usar no
Chile – e máscara, como sabemos, etimologicamente significa persona.
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como máscara mas sim como um “foro interno”, “íntimo”, que não existe
em muitas culturas, foi desenvolvida na nossa, dramatizada pelo cristianismo
e não tem parado de crescer e de ameaçar a esfera pública. Associou-se,
com a modernidade, à ideia de uma razão cartesiana, auto-suficiente, que
implicava um eu estável, uno, homogéneo e negava os sentidos, o sonho,
o inconsciente, a ilusão, o corpo (cf. Jiménez 179-204). Mas se já no século
XVIII o próprio Diderot discutia tão amplamente a questão da sinceridade,
como podemos nós, no século XXI, ignorar todos os trabalhos que, sobretudo
no último século, fizeram a crítica da noção de sujeito? Não há razão nem
espaço para os retomar aqui (cf. cap. 4 e Monteiro, 1996:29-39): digamos
apenas que os contributos da psicanálise, do estruturalismo, da filosofia da
linguagem, da própria hermenêutica pósheideggeriana, nos mostraram como
o sujeito é opaco e metamórfico, o outro é opaco e múltiplo, a própria
linguagem não é um instrumento dócil. (Razão talvez para não seguirmos
Wallace Stevens quando aconselhava o artista a tornar o visível mais difícil
de ver! Se o sujeito e a linguagem já são tão opacos, a melhor arte não será
aquela que se distingue pelo milagre de instaurar uma clareza?)
O próprio psicodrama, terapia que recorre à ideia original de theatron
como dar a ver, veio a recusar essa ideia de sujeito. Como se pode ver em
Pavlovsky, também médico psicoterapeuta, que, depois de criar o Movimiento
Psicodramático en Latinoamérica, e depois de, num trabalho de “antropo-
fagia”, ter “devorado e desovado” a autores que citei como Bausch, Brook,
Grotovski, Stanislavski, e depois de ter realizado trabalho fora de Buenos
Aires (Madrid, Londres, Paris e Gotemburgo), desenvolveu as ideias da
Multiplicação Dramática e Multiplicação Ressonante, tendentes “a aprofun-
dar por desdobramento (quer dizer, por extensão) a abertura dessa história
a novas histórias possíveis, por e através do grupo” (Pavlovsky e Kessekman).
“Instrumentamos a exploração de um inconsciente a ser desdobrado, a
produzir, em vez de um inconsciente produzido e por descobrir vertical-
mente em cada sujeito. (Kesselman e Pavlovsky, s.d.).
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“Então a forma aparece”: esse “então” faz toda a diferença, como Nietzsche
procurou explicar em O Nascimento da Tragédia – só depois da vertigem
dionisíaca a forma aparece com profundidade. Por isso todos estes criadores
que referi se aventuram no desconhecido. Pina Bausch recomendou-me o
mesmo que ao seu assistente de encenação: que nunca lhe dissesse que algo
estava “bonito”, porque então já não o poderia usar, já não seria uma aventura
no inominável: “tudo o que eu quero fazer é ir onde ainda não estive”, disse
a coreógrafa em Lisboa (3-4-2007). Endicott (73) testemunha, sobre o
espectáculo Barba Azul: “até ao segundo mesmo em que tinha que falar, eu
não sabia o que me ia sair da boca. Tinha de ser espontâneo. E de cada vez
era diferente, em função do estado no qual eu me encontrava”. É por esse
acentuar da efemeridade do teatro que durante trinta anos Pina Bausch fez
questão em estar presente todas as noites, irrepetíveis e misteriosas.
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451
D rama e C omunicação
452
B ibliografia
453
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Í n d i c e d e i mag e n s
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Í ndice de imagens
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D rama e C omunicação
P. 46 - Louis XIV como Apolo, P. 81 - Platão (à esquerda) e P. 141 - Luís Miguel Cintra,
por Henri Gissey, 1653, Aristóteles (à direita), Márcia Breia e José
167 x 260 mm, pormenor de quadro Manuel Mendes em
Biblioteca Nacional, A Escola de Atenas, Ricardo III, de Shakespeare,
Paris. de Raffaello Sanzio, encenação de Luís
1509. Miguel Cintra, no Teatro
da Cornucópia, 1985.
Fotografia de Cristina
Reis e Paulo Cintra.
P. 60 - O Presidente Bill Clinton P. 137 - Buster Keaton P. 145 - João Pedro Vaz em
toca num saxofone que como Hamlet Peer Gynt, de Ibsen,
lhe foi oferecido pelo no filme Day Dreams, encenação de João
Presidente Boris Yeltsin 1922. Lourenço, no Teatro
em 1994. Aberto, 2002.
Fotografia de Bob Fotografia de João
McNeely. Lourenço.
458
Í ndice de imagens
P. 169 - Paula Só, António P. 208 - Autoretrato P. 227 - Desenho de cenário para
Terrinha, Horácio de Strindberg, Hamlet, por
Manuel em Montedemo, Paris, 1886. Gordon Craig.
adaptação da novela de
Hélia Correia,
encenação de João
Brites, Teatro O Bando,
1987. Fotografia de
Mariano Piçarra.
P. 182 - Isabel Ruth em Artaud P. 214 - Orfeu encanta as bestas, P. 233 - Einstein on the Beach,
Estúdio, dramaturgia e gravura de Regius ópera de Robert Wilson
encenação de Paulo para as Metamorfoses de e Philip Glass,
Filipe, no Centro de Ovídio. coreografia de Andrew
Arte Moderna da De Groat, estreada em
Fundação Calouste 1976. Fotografia de
Gulbenkian, 1997. Marc Enguerand
Fotografia de Susana Bernard. © CDDS
Paiva. Enguerand Bernard.
459
D rama e C omunicação
P. 245 - Bertold Brecht, P. 309 - Duas figuras do P. 339 - Dioniso segura uma taça
photomatons de 1940 Ballet triádico, de vinho vazia e um
de Oskar Schlemmer, ramo de videira. Detalhe
Landestheater, Stuttgart, de pintura numa ânfora
1922. (técnica de pintura
vermelha sobre
cerâmica), de Cleofrades.
Entre 500- 490 a.C..
Museu do Louvre, Paris.
460
Í ndice de imagens
461
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H istória da U nificação E uropeia
(Página deixada propositadamente em branco)
O L H A R E S
IMPRENS A DA UNIVERSIDA D E D E CO I M B R A
COIMBRA UNIVERSIT Y P R E SS