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O L H A R E S
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H istória da U nificação E uropeia

EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensauc@ci.uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.com

DESENHO GRÁFICO
António Barros

PRÉ-IMPRESSÃO
Aldina Almeida Santos

António Resende
Imprensa da Universidade de Coimbra

INFOGRAFIA DA CAPA
Carlos Costa
Imprensa da Universidade de Coimbra

EXECUÇÃO GRÁFICA
Tipografia Lousanense

ISBN
................

DEPÓSITO LEGAL
978-989-26-0078-9

© OUTUBRO 2010, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Índice

Prefácio.. ................................................................................................... 7

1. A representação na vida quotidiana.................................................... 15

2. O espectáculo da política.................................................................... 41

3. Suspeitas sobre o espectáculo............................................................. 71

4. Sujeito e representação.. ...................................................................... 115

5. Antropologia do espectáculo............................................................... 149

6. Unidade e pluralidade do dramático................................................... 171

7. A crise do drama e a obra de arte total.............................................. 203

8. Aristóteles e Brecht.............................................................................. 235

9. Alternativas teatrais (e anti-teatrais).................................................... 265

10. Tragédia, comédia e tragicomédia...................................................... 333

11. Texto e cena....................................................................................... 371

12. Actores e encenadores....................................................................... 405

Bibliografia............................................................................................... 443

Índice de imagens.................................................................................... 455


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Prefácio

Façamos breve o prefácio, para o livro poder ser longo.


Nos idos de 1993 criei na licenciatura em Ciências da Comunicação da
Universidade Nova de Lisboa a disciplina “Teorias do Drama”, mais tarde
“Teorias do Drama e do Espectáculo”, procurando alargar o panorama (em
Portugal ainda tão escasso) da reflexão universitária sobre estes temas. Além
da leitura das peças Hamlet e Rei Édipo, aos estudantes era transmitido, e
com eles discutido, muito do que neste livro figura e que foi sendo elabo-
rado e revisto ao longo destes 17 anos (embora haja várias partes e um
capítulo escritos propositadamente para esta edição).
Em todo este tempo, só cresceu a convicção de que aos estudantes de
comunicação interessa conhecer o que é dramático. Se para os ramos de
cinema ou televisão essa relevância parece evidente, há também que com-
preender como, hoje em dia, a publicidade vive da dramatização e mesmo
da ficcionalização dramatizada, ou que os jornalistas, tal como os teóricos
de comunicação e da cultura, se defrontam com o que tem sido chamado
uma “sociedade do espectáculo”, a qual compreenderão melhor se conhe-
cerem as teorias e tradições do espectáculo e do drama. Ou seja, o drama
e o espectáculo surgem ao mesmo tempo como importantes objectos de
estudo mas também como perspectivas que, como argumentaremos, podem
atravessar e iluminar as relações de comunicação. Reconhecendo esta dupla
relevância, o I Congresso Ibérico de Comunicação, realizado em Málaga em
2001, teve uma secção temática intitulada “Teoría del espectáculo”. Em todas
as ciências sociais, aliás, são cada vez mais as teorias que recorrem ao
drama para compreender as práticas sociais contemporâneas. Combs e
Mansfield iam mais longe, em 1976 (XXIX): “parece útil colocar a ideia de
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dramaturgia no contexto mais vasto da teoria social. Actualmente, há pou-


ca unidade para um empreendimento destes. O rumo mais promissor,
combinando as preocupações humanistas dos dramatistas e interaccionistas
simbólicos com o rigor dos modelos comportamentalistas, pode ser a teoria
da comunicação.” Pouco depois, num artigo de 1983 em que fez a genea-
logia daquilo a que chamou a “analogia dramática”, Clifford Geertz (66)
argumentou que os muitos teóricos que a desenvolvem “deviam ser huma-
nistas conhecidos por saberem alguma coisa sobre o que são o teatro, a
mimese e a retórica”, para perceberem como essa analogia está a crescer
em tantos estudos sociais. No fundo, pelo menos desde o idealismo alemão
e do fascínio de Hegel pela tragédia grega, o pensamento virou-se cada
vez mais para o teatro: hoje “há um consenso generalizado entre os críticos
que aquilo que nós costumávamos pensar como uma essência subjacente
e estável é afinal o produto de uma performance: atributos são usados como
fatos; identidades são máscaras; e a corporalidade torna-se personificação.
As análises de Victor Turner e Richard Schechner da performance estrutu-
rada, a análise do enquadramento teatral por Erving Gofmann, o dra­matismo
de Kenneth Burke ou a aplicação da teoria dos actos da fala ao texto lite-
rário desde Jacques Derrida e Judith Butler a Hillis Miller – todas estas
concepções estão em dívida com a viragem teatral da teoria” (Puchner 530).
Tenho também a convicção simétrica, que o devir deste livro porventu-
ra testará: aos estudantes e praticantes das artes cénicas interessa conhecer
a problemática hoje tão transversal da comunicação. Essa transversalidade
faz com que as Ciências da Comunicação não sejam uma disciplina rigida-
mente delimitada. Muitas vezes, como escreve o introdutor desta área em
Portugal, Adriano Duarte Rodrigues (2002:196-7), “os melhores trabalhos
sobre as questões específicas da comunicação não estão a ser realizados
no quadro dos cursos de ciências da comunicação. São trabalhos realizados
por filósofos, sociólogos, historiadores, linguistas que se ocupam da pro-
dução e da recepção do discurso. (...) Os saberes em comunicação
continuam a ser o resultado das importações de diversos domínios disci-
plinares.” Não admira, pois, que neste livro o leitor vá encontrar incursões
pela sociologia, antropologia, filosofia, história, teoria da literatura. Com os

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P refácio

riscos, que assumo, de passagens transgressoras ou apenas incipientes en-


tre disciplinas e, o que seria mais grave, entre conceitos.
Não sou, porém, um entusiasta de longas definições conceptuais. Pelo
contrário: desde que o texto seja claro e incisivo, ou para que o seja, é
melhor não gastar páginas em tentativas de definir o que, quanto mais
erudito se torna, mais cheio de reservas e ambiguidades e oscilações se
descobre – nem esse estilo caberia num livro que pretende ser claro, com
pendor fortemente didáctico (onde por isso optei por dar o acesso directo
a muitos excertos dos autores fundamentais).
Uma definição, no entanto, me vejo desta vez impelido a discutir, porque
figura no próprio título, sobre o qual hesitei. Para algumas pessoas, “drama”
pode remeter para o texto literário e ser mesmo um contraponto a “teatro”.
Ponderei alternativas. Em vez de drama, “performance”? Há já 30 anos que
a New York University transformou o seu Graduate Drama Department em
Department of Performance Studies. Com a considerável vantagem de o
fundador desse novo departamento, Richard Schechner (2006:2), deixar
claro que aborda a performance como “um ‘espectro largo’ ou um ‘conti-
nuum’ de acções humanas que vão do ritual, do jogo … do desempenho
de papéis sociais, profissionais, raciais, de género e de classe, até à cura
(do shamanismo à cirurgia), aos media e à internet.” Ou seja, inclui as artes
performativas mas de modo algum se limita a elas, como é também objec-
tivo deste livro. Mais do que isso, para Schechner, há limites que definem
em cada contexto o que é performance, mas tudo pode ser estudado como
performance. Acabei no entanto por não escolher este título, que me poria
tão à moda: Performance e Comunicação. Porque, como escreveu Marvin
Carlson (5), mesmo no sentido da disciplina lançada pelo grupo de Schechner,
a performance é um conceito permanentemente redefinido (e muito con-
testado) pelos próprios Performance Studies e por uma série de outros
campos, sobretudo desde o que tem sido descrito como o performative turn
nas ciências sociais. Depois, porque se confunde com a tradição, vinte anos
anterior, da vanguarda anti-teatral (contra a narração, a personagem, a mi-
mese) e nomeadamente com a tradição da performance art no sentido de
eventos ou happenings realizados sobretudo em galerias de arte ou museus,
muito ligados às artes visuais embora eventualmente combinadas com tea-

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D rama e C omunicação

tro, poesia, música, vídeo ou cinema. Além disso, e talvez, confesso, antes
disso, porque a primeira palavra do livro seria então um termo estrangeiro:
o que se passou e passa na NYU é importante, cheio de consequências,
mas não arrastou uma mudança generalizada nem a criação de termos
equivalentes noutras línguas. Patrice Pavis (1996:337) fala da “ausência cruel”
de tradução de performance em francês, e o mesmo poderíamos dizer para
a nossa língua. “À falta de melhor”, desabafa Pavis (1996:337) a dada altu-
ra, vertemo-lo por “espectáculo”. Mas noutro ponto (1996:125) diz que
“a noção de espectáculo (spectaculum, o que é visível e speculum, o que
reenvia a uma imagem) e a de performance (acção consumada) pertencem
a dois universos epistemológicos incompatíveis, logo a dois olhares sobre
um mesmo objecto”…
Abrir com o conceito de “espectáculo” também seria, pois, limitativo.
É aliás um termo cujo carácter pejorativo já vem de Aristóteles e não pára
de crescer nos dias de hoje. Na Poética aristotélica (1450b), o espectáculo
é uma das seis partes da tragédia, mas, “embora de natureza a seduzir o
público, é tudo o que há de estrangeiro à arte e de menos próprio do poé­
tico”. Perdurou pelos séculos a sua acepção de algo decorativo, exterior,
feito para divertir ou entreter (e é nesse sentido que hoje é muito usado
no debate político). Mesmo quando os clássicos não se lhe opunham, se-
paravam-no categoricamente do texto, em vez de os interligar. Foi por isso
que Antonin Artaud, que, como veremos nos capítulos 9 e 11, quis rein-
ventar o espectáculo, disse que, no sentido comum, “espectáculo” arrasta
tudo o que há de “pejorativo, acessório, efémero e exterior”. Além disso, a
definição de espectáculo, notam Greimas e Courtès (1979:393) “implica a
presença de um actante observador (o que exclui desta definição as ceri-
mónias, os rituais míticos, por exemplo, onde a presença do espectador
não é necessária)”. Pavis tem esperança numa nova disciplina, a “etnoce-
nologia”, neologismo criado por Jean-Marie Pradier em 1996: a qual, porém,
para evitar a deriva virtualmente infinita dos performance studies, incluiria
apenas os fenómenos ficcionais e com forma estética, o que é um campo
mais reduzido do que aquele que este livro pretende abordar.
Restaria ainda um conceito, “teatralidade”. Tem uma história específica:
emerge da Rússia pré-revolucionária de princípio do século XX , nas teorias

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P refácio

de Evreïnof e de Meyerhold, tentando definir a especificidade do teatro.


Como escreve Jean Jachymiak (49-58), “historicamente, a ‘teatralidade’ par-
ticipa de uma vontade de demarcação do teatro relativamente à ‘literatura’,
a saber, a necessidade de destacar uma forma própria irredutível ao discur-
so literário, esta discriminação (…) jogando-se no interior da própria
prática teatral.” É neste sentido de um corte epistemológico, de que falare-
mos no capítulo 11, que já Artaud (1996:36) a contrapõe à palavra: “Por
que razão é que no teatro, pelo menos no teatro como o conhecemos na
Europa, ou melhor no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, ou
seja, tudo o que não obedece à expressão pela fala, pelas palavras, (…) é
relegado para segundo plano?” No mesmo sentido, o próprio Pavis (1976:123)
pode dizer que a dança e a pantomima são “as mais teatrais das artes da
representação”. Assim, se o conceito base fosse teatralidade estaríamos a
fazer desaparecer uma parte importante do nosso trabalho: a questão do
texto. Para Barthes, nos Essais Critiques (1993:1194), a teatralidade é “o tea-
tro, menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações que se
edifica sobre a cena a partir do argumento escrito, é esta espécie de per-
cepção ecuménica dos artifícios sensuais, gestos, sons, distâncias, substâncias,
luzes, que submerge o texto sob a plenitude da sua linguagem exterior.”
Além disso, “teatralidade” é um conceito, ou uma metáfora, cheia de
ambiguidades. Josette Féral (347-8), por exemplo, pergunta: “A teatralidade
é uma propriedade que pertence propriamente apenas ao teatro ou pode
investir paralelamente o quotidiano? É uma qualidade (no sentido kantiano
do termo) que seria por assim dizer preexistente ao objecto no qual se
investe, uma condição de emergência do teatral? Ou seria antes uma con-
sequência de um certo processo de teatralização que incidiria sobre o real
ou sobre o sujeito?” Igualmente, escreve Michèle Febvre (45) resumindo
Michel Bernard (1976 e 1988), há quem veja o conceito a montante da
instituição ou género teatral, “para captar a teatralidade na sua origem como
um fenómeno extra-teatral, como uma condição prévia, matriz originária,
estrutura crucial que torna o teatro possível, ou ainda como processo de
engendramento do Teatro”. Tal é a “pletora dos seus diferentes usos” que
Pavis conclui que “teatralidade” é um conceito com “qualquer coisa de
mítico, de demasiado geral, mesmo de idealista e etnocêntrico” (1996:358);

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D rama e C omunicação

uma dessas “metáforas brilhantes mais pela perspectiva de uma descoberta


do que pelo seu conteúdo actual” (Pavis, 1985:28).
Opto, assim, por usar como título e chapéu o termo “drama”. Vem do
grego drama, acto em movimento, acção. É um campo semântico usado
por todos, conhecendo-se a sua polissemia: qualificamos de dramático o
que decorre num teatro mas também o que se passa num hospital ou num
estádio de futebol, e essa clara abrangência corresponde aos objectivos
desta obra. Seria até interessante pensar por que no dia a dia não falamos
em “dramático” para qualificar situações cómicas (herança do teatro burguês,
literário e sério, dos últimos séculos?) ou a que características o termo anda
associado: problemas, tensões, peripécias, catástrofes, geradores de suspense
(cf. Lehmann 46). É certo que pode haver nalgumas línguas ou nos estudos
literários a tendência para associar “drama” apenas ao texto escrito, à lite-
ratura dramática, mas nada a isso obriga e não é de todo essa a nossa
intenção. Em muitos e excelentes casos, o dramático é mesmo associado
ao que transcende o texto. Por exemplo, Benjamin escreveu: “No dramático,
o mistério é justamente esse momento onde ele transcende o domínio da
sua própria linguagem num outro mais elevado e inacessível a essa lingua-
gem. Assim, ele não se pode jamais exprimir em falas, mas unicamente na
representação; é o ‘dramático’ na sua acepção mais rigorosa” (apud Lehmann
68). Outro exemplo, bem antigo: em 1909, quando escreveu A Revolução
do Teatro, Georg Fuchs argumentava assim: “na sua forma muito simples,
o drama é movimento rítmico dos corpos no espaço.” Tudo o que podemos
encontrar no music-hall – “dança, acrobacias, técnicas de malabarismo,
funambulismo, prestidigitação, luta e boxe, adestramento de animais, Singspiel,
jogo de máscaras, etc.” são para Fuchs formas simples do drama (apud ibid
67). É certo que quando Hans-Thies Lehmann (66) procura definir o “teatro
pós-dramático” (uma parte minoritária mas fundamental do teatro actual),
afirma que “a condição da sua existência é precisamente a fractura entre o
drama e o teatro e a sua emancipação recíproca.” Mas, justamente, iremos
problematizando essa relação tensa entre texto e cena, desde as vanguardas
do início do século XX até hoje. E pretendemos, no âmbito já explicado
deste livro fundado na perspectiva da comunicação, frisar que “drama”
abrange todos os fenómenos dramáticos, ficcionais ou não, excepcionais
ou quotidianos, seja no domínio estético seja fora dele. Começaremos mes-

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P refácio

mo por abordar a dimensão dramática enquanto constitutiva das relações


tanto no espaço público como no espaço privado, e por isso mesmo funda-
mental nas teorias da comunicação. Depois de tratarmos essa representação
na vida de todos os dias e as respectivas transformações nos últimos séculos,
torna-se clara a necessidade de ir buscar, às teorias do drama, mais instru-
mentos conceptuais e teóricos. É só então que este livro aborda o drama
enquanto género da estética, bem como os respectivos subgéneros. Para
conhecer o pensamento próprio que a perspectiva dramática tem gerado, são
tratados alguns grandes marcos das teorias do drama, de Aristóteles aos
nossos dias, bem como os principais elementos do drama: texto e cena, es-
paço, personagem, actor e encenador.
Sou dos que acreditam que é preciso conhecer primeiro os fundamentos
para depois aceder às variações e complexificações. Em futuros ensaios
poderei dar conta de questões mais complexas, nomeadamente as que
passam pelos criadores e pensadores contemporâneos que vêm reformu-
lando ou mesmo pondo em questão algumas das bases aqui apresentadas,
de um modo que neste livro fica apenas esboçado.
Já viram porque não sou grande adepto de discussões terminológicas,
embora por vezes sejam indispensáveis: acredito mais nos conceitos e teo­
rias que escolhi para vos expor, porque esses tenho a convicção profunda
que podem ser úteis para compreender a vida dentro da comunicação ou
dentro das artes cénicas. Há uma convicção, que me vem da minha própria
prática teatral, de que estes elementos, muito embora não esgotem o cam-
po que pretendem tratar (não coube neste livro a questão fundamental da
recepção – público, espectador, crítica –, quase não coube a dos espaços
teatrais – arquitectura e cenografia – nem a relação com os novos media),
são bases úteis, fundamentais, e que, em muitos casos, bebi directamente
de mestres: muitos encenadores, actores, cenógrafos e iluminadores portu-
gueses, tantos que fariam uma longa lista (ver www.pfm.com.pt) e também
alguns mestres estrangeiros com quem tive oportunidade de trabalhar mais
tempo, como a Polina Klimovitskaya, a Marcia Haufrecht, a Pina Bausch ou
o José Sanchis Sinisterra. A minha gratidão vai também para os estudantes
de licenciatura e para os do seminário de mestrado “Linguagens Cénicas”
(a que o capítulo 9 mais corresponde), que ao longo dos anos discutiram

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D rama e C omunicação

comigo estas matérias e para o Departamento de Ciências da Comunicação


da Universidade Nova de Lisboa que as reconheceu como legítimas e até
fundamentais. Agradeço também aos convidados que nessas aulas fui tendo,
como Herbert Blau, Eugénia Vasques e Armindo Bião. À Eugénia, ao Abel
Barros Baptista, à Cláudia Madeira e ao Humberto Brito agradeço os co-
mentários a um ou dois capítulos. Agradeço aos fotógrafos e instituições
que generosamente disponibilizaram as imagens; ao António Lobo, a ajuda
fraterna no tratamento de algumas delas. Agradeço ainda aos arguentes, em
2003, de uma primeira versão deste texto nas minhas provas de agregação,
Professores Maria Helena Serôdio e José de Oliveira Barata, em cujos
incentivos, críticas e sugestões reflecti e que procurei acolher neste livro.
E agradeço aos leitores que quiserem contribuir com reparos ou sugestões
sobre este livro: pfm@sapo.pt.

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1 . A RE P RE S EN TAÇ ÃO N A V IDA QU OT IDI A N A

Theatrum mundi, el gran teatro del mundo, all the world is a stage, todo
o mundo é um palco: qualquer destas fórmulas e o sucesso que têm
conhecido sugerem que há um amplo e benigno consenso sobre esta matéria.
Não creio que assim seja: existem duas linhas, duas linhagens. Aquela que
abordaremos durante dois capítulos valoriza, de facto, a mediação espe­c ­
tacular na comunicação; a outra, bem pelo contrário e bem repetidamente,
condena essa mediação e defende uma sociedade sem representação e sem
espectáculo, como veremos no terceiro capítulo. É um diferendo profundo,
que vem pelo menos da antiguidade grega até aos nossos dias. Depois de
o expor, falarei ainda, no quarto capítulo, daquilo que considero ser uma
falsa saída para tal dilema, e procurarei, apoiando-me em Shakespeare, dar
uma resposta mais interessante.
Partindo da primeira linhagem, começaremos por ver como a represen-
tação e o espectáculo são uma dimensão estruturante de toda a vida
quotidiana – e no próximo capítulo desenvolveremos um exemplo especí-
fico, na área da comunicação política. Usaremos os contributos que as
teorias da antropologia e da sociologia têm vindo a dar sobre este tema, e
que no campo interdisciplinar dos estudos em comunicação ganharão par-
ticular acuidade. 1

1 Não desenvolveremos aqui a perspectiva da vida como um jogo – esse jeu ou play que
em francês ou inglês recobre tanto um jogo de crianças como um jogo de futebol como uma
representação teatral. Muito tem sido escrito nesse ponto de vista, desde a brilhante obra
Homo Ludens, que o historiador holandês Johan Huizinga publicou em 1938, “não com o
objectivo de definir o lugar do jogo entre todas as outras manifestações de cultura, mas antes
de afirmar a que ponto a própria cultura tem a característica de jogo” (2003:prefácio). Sem
D rama e C omunicação

Nas ciências sociais, desde pelo menos os anos 30 tem-se falado muito
em “actores” e “papéis”. Mas aquilo a que o antropólogo Clifford Geertz
(1926-2006) chama a “drama analogy” só mais recentemente se tornou, por
um lado sistemático (como analogia, não como metáfora incidental) e, por
outro, não pejorativo: “começou a ser aplicada menos no modo depreciativo
de máscaras e palhaçada, que tendia a caracterizar o seu uso generalizado,
e mais num modo construtivo, genuinamente dramatúrgico – making, not
faking, como o antropólogo Victor Turner (1920-1983) colocou a questão”
(Geertz 64). Há duas fontes bastante contraditórias, diz Geertz, para esta
analogia. Por um lado, a teoria dos rituais, que vem de Francis Fergusson,
T. S. Eliot, Antonin Artaud, encarando o drama como comunhão. Por outro
lado, o “dramatismo” para usarmos o termo do teórico da literatura e filó-
sofo americano Kenneth Burke (1897-1993), que vê o drama como acção
simbólica e persuasiva: uma linha que muitos autores desenvolveram,
inspirando-se em Burke, em Durkheim, em Ernst Cassirer, em Northrop
Frye, em Foucault, e de que o emblema maior se tornou a obra de Erving
Goffman (1922-1982), que neste capítulo amplamente estudaremos.

Durkheim, Simmel, Cooley, James, Mead, e recentemente Goffman,


forneceram-nos uma imagem subtilmente pormenorizada do pacto que o
homem faz com a sociedade para a preservação e criação de si próprio.
A tarefa fundamental que qualquer sociedade à face da terra tem de enfrentar
é realmente monumental. A sociedade deve proteger os seus objectos-pessoas
no seu ponto mais doloroso: a frágil auto-estima de cada um dos seus
membros. No encontro social, cada membro expõe-se ao escrutínio público,
e ao possível e intolerável minar daquilo de que mais necessita: a auto-avaliação
positiva que tão laboriosamente tem fabricado. Com paradas desta magnitude
não pode haver nada de rotina na vida social. (Ernest Becker 102)

ignorar que a nossa época potenciou e assumiu em tantos aspectos a sua dimensão de jogo,
ou precisamente porque isso nos obrigaria a um desenvolvimento extensíssimo pela teoria
dos jogos (que se estende da matemática à cibernética, à economia, à ciência política, à
filosofia, ao jornalismo), consideramos essa perspectiva complementar mas não prioritária em
relação às que desenvolveremos, e achamos que enviesaria a comparação com o drama, que
só infantilmente pode ser conceptualizado (por muitos, infelizmente) como um jogo de
faz‑de‑conta.

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A representação na vida quotidiana

Os “actores sociais” vão optando: podem representar os seus papéis com


entusiasmo ou indiferença, com convicção interior ou distanciadamente, ou
mesmo recusar-se a representar. “Então a realidade social parece estar pre-
cariamente assente na cooperação entre muitos actores individuais – ou
talvez uma imagem melhor seria a de acrobatas envolvidos em actos de
equilíbrio perigosos, segurando entre eles a oscilante estrutura do mundo
social. Palco, teatro, circo e até carnaval – aqui temos as imagens do nosso
modelo dramático, com uma concepção de sociedade como precária, in-
certa, muitas vezes imprevisível” (Peter Berger 39).
“Totus Mundus Agit Histrionem” – “Toda a gente se comporta como um
histrião” – era a máxima do romano Petrónio que figurava no interior do
Teatro Globe, no tempo de Shakespeare. Note-se que o actor social não
precisa de estar, como o actor de teatro, consciente do trabalho que faz
para causar uma impressão. Mesmo sem o estar, “exibe uma notável capa-
cidade de produzir o efeito certo no tempo exacto, ou, se falhar, corrigir
os erros que ele e os seus colegas de equipa possam fazer” (Messinger
80‑81). Mas já teremos material mais do que suficiente para mostrar a im-
portância estruturante da representação na vida de todos os dias se nos
debruçarmos algum tempo sobre certos actos simbólicos bem conscientes.
Se atentarmos em como os momentos decisivos da nossa vida – nomeada-
mente o nascimento, o amor, o trabalho, a morte – são marcados por
cerimónias – baptizado, ritos de passagem à idade adulta, casamento, for-
matura, posse, bodas de prata e de ouro, enterro... – cerimónias que
mesmo depois de serem contestadas ou parecerem fora de moda persistem
ou regressam (como é o caso dos casamentos); se nos lembrarmos de como
cada ano é pontuado por cerimónias próprias (a passagem de ano, o car-
naval, a Páscoa, os aniversários, o Natal); se atentarmos também no que se
passa, com ou sem cerimónias, nas manobras quotidianas de troca, de se-
dução ou de poder, começamos a entender que se pode argumentar, como
o sociólogo Jean Duvignaud (1970:16), que “o homem é a única espécie
dramática” 2.

2 Logo aí nos distanciamos da ideia de jogo, porque Huizinga é o primeiro afirmar, e na


primeira página, que os “animais não esperaram pelo homem para lhes ensinar a jogar”.

17
A representação na vida quotidiana

Os humanos são os únicos animais que estruturam as suas acções em


torno de sentidos simbólicos, lembra Kenneth Burke (7-17). Não se limitam
a juntar-se: casam; não matam só por comida, mas também por deuses e
nações; o território não é apenas defendido, é nomeado. Descontado o geral
instinto de dissimular para sobreviver, que Nietzsche encontra em todas as
espécies, o que distingue o homem do resto dos animais, muito mais do que
outras características que aliás tem sabido transformar, é esta constante:
a capacidade, mais ainda, a necessidade de representar para viver.

Certamente – como tem sido assinalado há já muito tempo a propósito


das cerimónias de sedução entre répteis ou aves – distintas espécies dramatizam
o acto sexual. Mas, precisamente, dir-se-ia que nós só compreendemos o
sentido dos comportamentos não humanos no momento em que eles se
teatralizam. (...) A nossa própria existência, ou, melhor, a existência da cultura,
é uma representação teatralizada dos instintos e das pulsões. A sexualidade,
a morte, o intercâmbio económico ou estético, o trabalho, tudo é manifestado,
interpretado. (...)
O acto dramático é, antes de mais, uma cerimónia. E tudo organiza esse
aspecto cerimonial (sem o qual a credibilidade desabaria): a separação entre
o público profano e os actores isolados num estreito mundo semelhante a
um universo sagrado, os particularismos da linguagem poética que opõem o
diálogo teatral à fala quotidiana. A vida comum oferece-nos exemplos
comparáveis. (...) Uma cerimónia religiosa numa igreja ou numa sinagoga,
um aniversário familiar, uma sessão no tribunal, a entronização de um bruxo
ou de um sacerdote, a coroação de um rei, a inauguração de uma ponte, não
são acaso actos em que os homens privados vêm representar papéis públicos?
(...)
Acaso não poderia dizer-se que a nossa experiência, para poder enraizar‑se
em nós, necessita de representar-se, de impor-se em forma de espectáculo
para poder ser admitida como emoção? Inclusive a nossa vida ‘interior’ é
representada como um drama de que o cristianismo, com o seu instinto
teatral, fixou as formas. (...) Nada se livra do espectáculo ou da teatralização
da existência. Inclusive as nossas revoluções (ou melhor, sobretudo elas!)
são eminentemente dramáticas. (...) Até o tráfico obscuro do ilegal ou o

19
D rama e C omunicação

mistério das seitas também possuem, evidentemente, uma teatralização


igualmente rigorosa. (...)
Estas cerimónias podem ser de dois tipos, conforme representem um
comportamento tradicional ou preparem uma decisão e antecipem uma acção.
(...) Um conselho de guerra, um tribunal, uma reunião sindical ou revolucionária
tomam decisões, isto é, preparam a sociedade actual para uma acção que o
grupo deve e pode realizar. (...) Isto não quer dizer que a acção seja irracional,
mas sim que a racionalidade que ela implica se refere ao aspecto ainda não
vivido da experiência. ( Jean Duvignaud, 1970:16,15,11,12,19,22)

A revolução francesa deu-nos os mais extraordinários exemplos dessas


cerimónias prometeicas: ao inaugurar a destruição de antigos papéis e ao
fazer a afirmação ardente de papéis inéditos, recorreu exuberantemente à
teatralidade de festas, cortejos e novas liturgias. É, escreve ainda Duvignaud
(1970:20), “como se a sociedade dramatizasse certos papéis para criar ou
constituir uma sociedade mais coerente e intensa do que a sociedade po-
sitiva, e certos grupos não existissem sem esta coerência suplementar e
imaginária que adquirem durante estas manifestações excepcionais mas
regulares”. É uma situação que também se encontra frequentemente nos
escravos negros trazidos de África, ou em grupos ignorados (por exemplo,
de mulheres maltratadas) ou miseráveis.
Também o antropólogo Georges Balandier (1920- ) lembra que, muitas
vezes, “o recurso ao imaginário se torna a convocação dum futuro. (...)
As luzes do palco do futuro iluminam o do presente.” Centrando-se espe-
cialmente nas questões do espectáculo do poder, argumenta, como Duvignaud,
que ele é usado tanto para legitimar o passado como para preparar o fu-
turo.
Muitas vezes o passado colectivo, elaborado numa tradição ou num
costume, torna-se a fonte da legitimação. É uma reserva de imagens, de
símbolos, de modelos de acção; permite empregar uma história idealizada,
construída e reconstruída segundo as necessidades, ao serviço do poder
actual. Este último gere e assegura os seus privilégios pela encenação de um
património. É todavia através do mito do herói que a teatralidade se encontra
mais frequentemente acentuada; engendra uma autoridade mais espectacular

20
A representação na vida quotidiana

do que a chamada autoridade de rotina, porque esta é sem surpresas. O herói


começa por ser tido como tal porque seria “o mais capaz ” – em particular
de assumir a responsabilidade soberana, como afirma Carlyle. Ele é reconhecido
pela sua força dramática. É desta força que tira a sua qualidade, e não do
nascimento ou da formação que recebeu. (Georges Balandier 22)

No próximo capítulo desenvolveremos esta questão do herói. Entre os


contributos da antropologia, destaquemos também o de Claude Lévi-Strauss
(1908-2009): dedicou muito tempo ao estudo das máscaras, que afirmou
existirem em todas as sociedades – “Se incluirmos a maquilhagem e a tatua­
gem dentro da definição da máscara, então encontramo-la em todas as
sociedades”. Essas “máscaras são coisas vivas: é impossível enumerar, tantas
elas são, as sociedades em que as máscaras, confiadas ao cuidado de padres
ou outras pessoas qualificadas, são diariamente veneradas, tratadas e alimen-
tadas. (...) Estas crenças são tão fortes que por vezes explicam por que razão
certos tipos de máscaras não são apresentados nos museus.” (Lévi‑Strauss 9)
Se Duvignaud e Balandier referiam que a cerimónia por um lado con-
sagra o existente, por outro lado ajuda a sociedade a lançar-se para a
renovação, Lévi-Strauss, por sua vez, considera que a máscara tem uma
dupla função: consagrar o estatuto social do homem ou permitir a sua co-
municação com o sobrenatural. Vejamos cada uma destas vertentes.
Diz Lévi-Strauss (12,10) que, seja para o feiticeiro africano seja para o
homem do século XVIII (mais coberto de branco e vermelho do que uma
geisha), “ser ele próprio é ser ‘alguém’. Alguém, portanto uma máscara: um
ser, não apenas existente mas significante.” “O homem social é na essência
mascarado: traz um nome, herda um estatuto, tem uma posição.” Lévi‑Strauss
(11) chama a atenção para as analogias que podemos verificar numa longa
série que vem desde as máscaras mortuárias modeladas em barro na cabe-
ça de um morto pelos nativos das Novas Hebrides, até às “máscaras
funerárias, já materialmente distintas do cadáver, depois até às figuras tu-
mulares gregas ou romanas ou medievais, ainda fiéis à última aparência, e
finalmente termina nas estátuas que erigimos em memória dos grandes
homens. Em todos estes casos, a máscara nunca é nem sequer principal-
mente uma mera semelhança física. Inclui emblemas, insígnias e símbolos

21
D rama e C omunicação

representando a posição e estatuto social e as honrarias. Mais ainda, em


muitas sociedades estas posições não poderiam ser assumidas ou afirmadas
sem a máscara correspondente; na América, África e Melanésia existem
máscaras do arauto, do polícia, do cobrador de impostos, do espião e do
mendigo. O papel e o prestígio não constituem aquela ‘face’ que o homem
se arrisca a perder quando o apoio da sociedade lhe é retirado?”
A este propósito, leia-se um delicioso conto de Machado de Assis, inti-
tulado O Espelho, em que um jovem adulto é muito festejado pela sua
passagem a alferes. Quando problemas familiares e a fuga dos escravos o
deixam sozinho, sente uma angustiante falta de identidade, da qual só sai
na manhã em que se lembra de vestir a sua farda de alferes e mirar-se no
espelho. Tal é o resultado que não mais ele deixará, mesmo sozinho, de
vestir esse uniforme e nele se mirar.
Lévi-Strauss sublinha que raras são as sociedades que não conheceram
a máscara que é aplicada à cara (as excepções parecem existir na Austrália
e Polinésia). A língua portuguesa tem, aliás, muitas expressões (“perder a
cara”, “perder a face”, “dar a cara”, “cara a cara”, “a cara metade”, “face a
face”, “encabeçar uma lista”, “dar de caras”, “com que cara”, “não ter cara
para”, “vergonha na cara”, “cara de pau”, “cara de estúpido”, “cara de poucos
amigos”, “custar os olhos da cara”, “ter duas caras”, “encarar”, “descarado”,
“fachada”, e, no Brasil, “quebrar a cara” ou, simplesmente, “o cara”...) que
mostram como a identidade e o prestígio existem, antes de mais, associados
ao rosto. Os nossos documentos oficiais, como o bilhete de identidade, o
cartão de estudante ou a carta de condução, só têm fotografia do rosto.
As funções naturais, diz Lévi-Strauss, “pertencem ao corpo: respiração, cir-
culação, assimilação, geração – e sobre elas temos pouco controlo. A cara,
por outro lado, é o lugar das funções ‘socializadas’, ou talvez devesse dizer,
‘socializantes’: primeiro a linguagem, articulada pela boca; depois esse
outro sistema de signos que constitui a expressão de sentimentos, de origem
natural, sem dúvida, mas que cada cultura remodelou numa dimensão e
estilo diferentes. É por causa da cara e através dela que o homem comuni-
ca com o homem. E é disfarçando ou transformando a sua cara que ele
interrompe essa comunicação ou a desvia para outros fins”, de outra natu-
reza – nomeadamente, a comunicação com o inumano.

22
A representação na vida quotidiana

O cabelo penteado para a frente a cobrir a cabeça, aqui temos sem dúvida
o protótipo da máscara, tal como a encontramos em certos ritos. Um gesto
tão simples e tão cheio de sentido. O microcosmos bem organizado simbolizado
pelos olhos, nariz e boca e a sua ordem estabelecida dá lugar a um universo
desordenado; os instrumentos sociais da expressão dão lugar à Natureza
triunfante; (...) já não é um pai ou um parente, um concidadão ou um
estrangeiro, um senhor ou um servo; está livre para contactar com outros
poderes, outros mundos, os do amor e da morte. A diferença não é assim
tão grande entre esta máscara rudimentar e a máscara de veludo preto dos
nossos bailes de máscaras, que, para quem a usa e para quem brevemente
a encontra, simboliza aventura e a oportunidade de derrubar a ordem
quotidiana das coisas. (…)
A máscara desvia a comunicação da sua função humana, social e secular
para estabelecer contacto com um mundo sagrado. Por isso, a máscara não
fala, ou se fala usa a sua própria linguagem especial, que se opõe foneticamente
e semanticamente àquela que permite aos homens comunicarem entre si. (...)
Imbuída de vida pelo seu portador, a máscara traz o deus à terra, estabelece
a sua realidade, mistura-o com a sociedade dos homens; inversamente, ao
mascarar-se, o homem testemunha a sua própria existência social, manifesta-a,
classifica-a com a ajuda de símbolos. A máscara é ao mesmo tempo o homem
e outra coisa diferente do homem: é a mediadora por excelência entre a
sociedade, por um lado, e a Natureza, geralmente misturada com o Sobrenatural,
por outro. (Claude Lévi-Strauss 9)

Deixando para o quinto capítulo as relações do drama com o sagrado


e o religioso, centremo-nos por agora na dimensão espectacular das trocas
económicas e das relações de poder, que a antropologia tem também apro-
fundado. Lévi-Strauss liga-se a uma tradição antropológica que tem como
matriz o texto clássico de Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva, de 1925.
Mauss argumentou que o intercâmbio entre os grupos é o facto primordial
e essencial de toda a existência concreta e por isso mesmo precisa de ser
representado como o acto social fundamental. Mauss estudou a represen-
tação deste intercâmbio, nomeadamente (na senda de Frank Boas) sob a
forma da festividade ou do potlach, isto é, do consumo sumptuoso e do

23
D rama e C omunicação

esbanjamento público como momentos essenciais da caracterização de to-


dos os papéis colectivos.
Vários antropólogos tentaram desenvolver esta questão, iniciada quando
Boas realizou o seu trabalho no Canadá, entre os Kwakiutl da região de
Vancouver. Pelo menos depois da luta que travaram contra a administração
colonial do século XIX , os Kwakiutl eram muito competitivos e exprimiam
a rivalidade entre os chefes através da destruição dos bens. A sua instituição
que ficou mais célebre era o potlach, uma reunião social em que os chefes
queimavam cobertores e esmagavam pratos de cobre (as duas mais impor-
tantes formas de riqueza nesta sociedade), desafiando os seus rivais a fazer
o mesmo. Os chefes mostravam assim o seu desprezo pela propriedade até
ao ponto de a destruírem, humilhavam os rivais que não fossem capazes
de fazer o mesmo e, destruindo-a, convertiam a riqueza material em pres-
tígio simbólico.
O sociólogo norueguês, mais tarde naturalizado americano, Thorstein
Veblen, no célebre livro de 1899 A Teoria da Classe Ociosa, retomou o mo-
delo teórico do potlach que Boas elaborara para os Kwakiutl e procurou
generalizá-lo, mostrando como a classe abastada moderna tem também
exibido a sua riqueza e o seu poder no decurso da história através do
“consumo ostentatório” de festas e de bens como moradias ou roupas.
(É um modelo que tem sido aplicado às classes burguesas e nobres, mas
que também poderíamos discutir relativamente a todas as classes: pense-se,
por exemplo, nas duas cozinhas que as casas dos emigrantes muitas vezes
têm, uma para usar, outra para mostrar; ou nas antenas parabólicas que
alguns montaram mas não estão ligadas ou os donos nem sequer têm tele-
visão; ou nas etiquetas de viagens exóticas em malas que nunca saíram do
bairro...) Norbert Elias estudou a noção do dever que obrigava a alta nobre-
za da sociedade cortesã do antigo regime a gastar de modo especialmente
abundante. Lawrence Stone, por sua vez, inspirou-se em Veblen para ana-
lisar os magníficos edifícios, festas e funerais dos pares de Inglaterra.
Um quadro análogo, mas sobre a nobreza italiana, foi traçado pelo his-
toriador inglês Peter Burke (1937 –, não confundir com Kenneth Burke, que
referimos antes), num ensaio intitulado “O mundo como teatro”, inspirando‑se
em Veblen, Elias e Stone (mas também noutros estudos, incluindo os de

24
A representação na vida quotidiana

Pierre Bourdieu sobre os modelos sociais de gosto e distinção na França


dos anos 1960). Peter Burke investigou a cultura e a sociedade italianas nos
séculos XVI a XVIII , sobretudo a nível dos consumos, dos retratos pintados
e dos sociolectos, bem como das reflexões que sobre eles se faziam na
própria época.
“É verdadeiramente singular”, escreve P. Burke (151,154), “descobrir que
os italianos do século XVII descreviam a sua própria sociedade com uma
linguagem que não andava longe da linguagem de Bourdieu, de Elias, se
não mesmo de Veblen.” Por exemplo, no século XVII , um certo Giovanni
Botero comentava “que era precisamente o facto de viverem na cidade que
encorajava aquele tipo de comportamento entre os nobres, que gastavam
muito mais nas cidades do que nas suas propriedades ‘devido à concorrência
e à emulação dos outros’.” “Os sociólogos apenas elaboraram uma ideia já
familiar nos séculos XVI e XVII, ou seja, que o mundo era um teatro. O Cortesão
de Castiglioni, com as suas instruções sobre as provas de espontaneidade,
era uma espécie de Goffman do século XVI.” P. Burke argumenta que estudos
como os de Veblen e Stone apenas descrevem e dão nomes aos com­
portamentos, mas não analisam as razões deles, nem revelam “o funcionamento
interno de um sistema que é desprezado por ser irracional”.

É fundamental que nesta investigação se ponha de parte qualquer forma


de moralismo: ou seja, não se deve condenar a nobreza pela ‘extravagância’
do seu modo de vida, pela excentricidade dos seus palácios, banquetes ou
roupas preciosas. Quer as observações dos contemporâneos quer a análise
da moderna teoria sociológica sugerem que os gastos em objectos aparente-
mente inúteis desempenhavam funções reais: não eram mais do que um meio
de traduzir a riqueza em status e poder. Havia portanto nestes comporta-
mentos uma racionalidade latente; seria antes considerado irracional o
comportamento de um nobre que tivesse procurado remar contra a maré,
renunciando a este tipo de despesa e esperando mesmo assim preservar a
honra da sua família. Uma estratégia semelhante não podia tornar-se racional
sem que antes mudasse o sistema global – o que começou a suceder na Itália,
na França e na Inglaterra só no século XVIII, quando uma relativa sobriedade
se tornou um sinal de particular distinção. (Peter Burke 152)

25
D rama e C omunicação

O mesmo autor estudou ainda os retratos pintados dos séculos XV a XVIII,

retratos que eram “um artigo de consumo ostentatório e, ao mesmo tempo,


uma representação de outros artigos, tais como roupas, edifícios, estátuas,
etc.” “As pinturas eram de facto vistas de forma teatral. Como diz um críti-
co do século XVII, Roger de Piles, ‘deve considerar-se um quadro como uma
cena de teatro, onde cada figura desempenha o seu papel’.”

O objecto pintado era o resultado de um compromisso social entre o


artista e o modelo, de modo a representar não tanto o modelo tal qual era
mas a imagem que o modelo tinha de si próprio ou, mais precisamente, a
imagem que o artista tinha do modelo.
A importância das armaduras ou dos livros nos retratos aristocráticos
do Renascimento torna-se mais compreensível quando se pensa nos ideais
(e nas carreiras) representados como concorrentes pelas armas e pelas letras.
Quando [no século XV ] Berruguete pinta Federigo, duque de Urbino, reves-
tido de uma couraça a ler um livro, produz uma obra que, não podendo
embora ser lida tal como é sem gerar uma impressão de incoerência, expri-
me todavia o símbolo fulgurante da fusão destes ideais na pessoa do pai
daquele homem em cuja corte Castiglione haveria de formular a sua visão
do cortesão como homem universal, primando tanto nas letras como nas armas.
(Peter Burke 153)

Numa mão a espada, noutra a pena, se quisermos citar, do século se-


guinte, o verbo tão plástico do nosso Camões, aliás também quase sempre
representado com armadura e um livro. Ou, se quisermos utilizar exemplos
que ainda podemos encontrar nas fotografias das nossas famílias, quantas
vezes os camponeses, ao irem ao fotógrafo da vila, eram retratados diante
de colunas clássicas – uma sinédoque em que a parte representava o todo
dos palácios, símbolo do estatuto social.
Mas Peter Burke foi estudar ainda a história social da língua italiana:
pela boca morre o peixe, ou sobrevive.

Não se pode dizer que os italianos cultos do século XVI fossem indiferentes
à questão da língua. A controvérsia sobre qual fosse a melhor forma de

26
D rama e C omunicação

italiano escrito ou falado favorecia a percepção tanto individual como colectiva


das variações linguísticas existentes nos diferentes grupos sociais. (...) Aquilo
que procurei fazer (...) foi aprender as regras basilares: como saudar as
pessoas, como pedir um favor, como ser amável, como e quando ser grosseiro,
quando usar formas dialectais e assim por diante. E tudo isto em ambientes
sociais diferentes, que vão desde a corte à subcultura ou anticultura dos
mendigos e dos ladrões. (...)
No século XVIII , porém, há alguns indícios da reacção contra estas
formalidades linguísticas, tal como se começa a reagir contra os rituais, os
retratos solenes, as vestes pomposas e coisas no género. A coincidência entre
estes diferentes indicadores poderia corroborar a hipótese de uma grande
agitação cultural estar em curso. (Peter Burke 155-7)

Esta grande viragem detectável no século XVIII , quando os sinais de


distinção passam a ser, pelo menos a nível da língua, do vestuário e da
pintura, não a ostentação dos dois séculos anteriores mas, pelo contrário,
a simplicidade, faz P. Burke sublinhar que, para analisar qualquer repre­
sentação, é preciso historicizar a abordagem teatral: “desde a relativa
simplicidade do século XV até ao incremento espectacular da magnificência
e teatralidade nos séculos XVI e XVII e até ao abandono de artifícios e
estereótipos ocorrido no século XVIII , quando se começaram a representar
padres em roupas de quarto ou fidalgos a fungar rapé.” A falta de historicidade
é a principal reserva que Burke coloca ao modelo fundamental de Erving
Goffman, que de facto constrói um esquema com claras coordenadas espaciais
(a estratificada sociedade ocidental) mas poucas referências temporais.
Apesar desta crítica, P. Burke (153) reconhece que o contributo mais
importante nesta área foi o de Goffman, cujo trabalho “é, substancialmente,
uma exploração da metáfora do mundo como teatro”. Erving Goffman é,
de facto, outra referência fundamental para se compreender a encenação
da vida quotidiana. Note-se como ele nos diz (1973:240) que a sua “expo-
sição não trata dos aspectos do teatro que se insinuam progressivamente
na vida quotidiana”. O seu objecto próprio não é mais do que “a estrutura
dos encontros sociais”, das interacções dos “indivíduos sempre em presen-
ça uns dos outros”. É para a análise dessa interacção que Goffmann propõe

28
A representação na vida quotidiana

uma perspectiva dramatúrgica. No fundo, ele critica a ingenuidade das


análises sociológicas habituais, que costumam falar da sociedade antes da
dramatização, ou sem ela: vêm os actores sociais sem o público, as acções
aplicadas só aos respectivos objectos, ou seja, acreditam no que é repre-
sentado, como se não fosse representado. Poderíamos estender esta crítica
aos esquemas mais lineares da comunicação, em que um emissor transmi-
te ao receptor uma mensagem transparente num código claro.
Ora, diz Goffmann (1973:67,207), e repare-se como isto é importante
para as ciências da comunicação que não queiram reduzir-se a uma con-
cepção meramente informativa, qualquer “actividade orientada para uma
tarefa tende a transformar-se numa actividade orientada para a comunicação.
(...) Em vez de executar pura e simplesmente a tarefa e dar livre curso aos
seus sentimentos, o actor exprime o facto de cumprir a sua tarefa e comu-
nica os seus sentimentos de forma socialmente aceitável”, para isso
manipulando a impressão que dá. Na interacção, as pessoas “transformam­
‑se então numa equipa de actores e os observadores transformam-se em
público. As acções que parecem aplicar-se a objectos tornam-se signos
dirigidos ao público. O desenrolar da actividade dramatiza-se.”
Vejamos então como, na vida de todos os dias, juntamos à execução de
uma tarefa a comunicação aos outros de que a estamos a cumprir e as
convenções ou sentimentos a ela associados. Nas palavras do actor Marlon
Brando, “A mais velha profissão do mundo não é a prostituição, é repre­
sentar” 3 . Há certos momentos críticos em que isto se nota mais. Por
exemplo, os adolescentes nas cerimónias de formatura, ou quando querem
comprar bebidas num bar, ou um empregado a quem um cliente se dirige
como dono da loja, ou que é confundido com um cliente, têm de mostrar‑se
fortes, assumir uma representação assertiva. Numa situação mais limite
ainda, “os indivíduos conscientes da sua morte eminente não ficam só preo­
cupados com o que a morte acarreta, mas também com a qualidade da sua
performance final. Muitos exprimem medo de quebrar, de transtornar os
familiares, de não mostrarem coragem e resolução face à situação última e

3 “Acting, not prostitution, is the oldest profession in the world”. Apud Schirmer (31).

29
D rama e C omunicação

incontornável. (…) Sem dúvida, muitos ensaiam como irão lidar com os
familiares, e até o que serão as suas frases finais. Historicamente, os crimi-
nosos condenados à morte têm sido louvados pelo seu nobre porte no
patíbulo, e os prisioneiros têm receado quebrar ou perder o controlo dos
intestinos durante os julgamentos” (Combs e Mansfield XXIII ). Moribundo,
e como que a provar quanto encenara o seu domínio, o imperador romano
Augusto pronunciou a locução que, no teatro antigo, anunciava o fim da
representação: Acta est fabula.

O soldado que vai combater está sob pressão para ser conforme, para
mostrar as virtudes valorizadas pela organização: ser corajoso, agressivo,
mesmo heróico. Para a maior parte dos soldados, o medo é algo a ser supri-
mido dos colegas e dos superiores. Para evitar a despromoção (ou o pelotão
de fuzilamento), o soldado deve agir como se essas virtudes fossem uma
parte essencial do seu eu. (…) Se perde controlo da sua ‘face’, pode ser
sujeito a humilhação e punição. Mas se for bem sucedido, é socialmente
aceitável e assume os atributos que tanta dificuldade tinha em mostrar com
o seu medo interior. Por outras palavras, tornou-se a máscara que usava; o
seu ser, a sua identidade, é o que ele parece ser. (Combs e Mansfield XX)

Se pensarmos agora, não em indivíduos comuns em situações limites,


mas em grupos situados nos extremos da escala de estatutos sociais, também
encontramos mais facilmente esta característica de representação quotidia-
na, que, repete-se é no entanto comum a todos nós. Sheldon Messinger
(73) usa a expressão to be on, que lhe foi sugerida por um desabafo do
artista Sammy Davis Jr. sobre as desvantagens da fama: “Assim que de ma-
nhã saio da porta da minha casa, estou on, Papá, estou on”. Neste caso,
estamos no grupo dos famosos. No extremo oposto, grupos marginalizados,
como negros, passam grande parte do tempo on – e podem, quando rela-
xam entre eles, fazer troça das personagens-tipo que são obrigadas a
assumir quando estão on. Outros grupos estigmatizados, por exemplo ho-
mossexuais e deficientes, mostram uma ansiedade mais permanente,
“baseada no sentimento contínuo de estarem em palco como performers –
sempre sob vigilância (…) Mas não é preciso olhar para casos extremos

30
A representação na vida quotidiana

para testemunhar esse medo do palco (stage fright) na vida de todos os


dias. Muita da chamada ansiedade da era moderna é essencialmente devida
ao medo do palco” (Lyman e Scott 148).
Geralmente, diz Goffman, os indivíduos tendem a dar de si uma repre-
sentação idealizada; mas, por exemplo, os shetlandeses antigos procuravam,
pelo contrário, representar os estereótipos da miséria extrema a fim de
serem ajudados pela assistência social ou de não verem aumentados os seus
encargos. Ou seja, as relações são muito instrumentais e não é por serem
manipulados que os indivíduos deixam de manipular. Em termos weberianos,
a ética dos fins parece muito mais generalizada do que a ética dos princí-
pios: “enquanto actores, os indivíduos procuram dar a impressão de que
vivem de acordo com as numerosas regras que servem para os avaliar, a
eles e aos seus produtos. Como essas normas são inúmeras e omnipresen-
tes, os actores vivem, muito mais do que se poderia pensar, num universo
moral. Mas, na medida em que são actores, o que preocupa os indivíduos
é menos a questão moral da actualização das normas do que a questão
amoral da construção duma impressão capaz de fazer acreditar que eles
estão a actualizar essas normas. A sua actividade levanta pois questões
morais, mas eles não estão interessados nela dum ponto de vista moral:
eles são, nesta relação, comerciantes da moralidade” (1973:237). Goffman
dá exemplos como o do merceeiro que, em tempo de guerra, oferece à sua
clientela a habitual variedade de produtos mas o faz graças a fontes de abas-
tecimento proibidas, que mantém secretas. Para cumprir uma tarefa ou
objectivo, o indivíduo ou o grupo lança mão do que for preciso, mas só
apresenta ou só insiste em público naquelas actividades que melhor se ajus-
tam às normas ideais ou que deixam provas mais tangíveis da sua aplicação.
Para garantir esse efeito, na apresentação do eu dá-se frequentemente
uma amputação da complexidade do ser para o reduzir ao papel principal
desempenhado na interacção: “os actores dão muitas vezes a impressão de
que o seu papel actual é o seu único papel ou, pelo menos, o mais impor-
tante (...) O público por sua vez crê muitas vezes que o actor se reduz ao
papel que apresenta”. “Com efeito, o público pode considerar que se eco-
nomiza muito tempo e energia tratando o actor em função apenas do seu
aspecto profissional, como se ele fosse tudo o que o seu uniforme faz crer

31
D rama e C omunicação

que ele é e nada mais do que isso. A existência tornar-se-ia intolerável para
alguns se qualquer contacto entre duas pessoas levasse à partilha de expe-
riências, preocupações e segredos pessoais” (1973:52-53).

Há a dança do merceeiro, do costureiro, pela qual eles se esforçam por


persuadir a sua freguesia de que não são outra coisa senão um merceeiro,
um costureiro. (...) Um merceeiro que sonha é ofensivo para o cliente, por-
que já não é totalmente um merceeiro. A boa educação exige que ele se
contenha na sua função de merceeiro, como o soldado de sentinela diante
de nós se faz coisa-soldado com um olhar directo mas que não vê nada, que
já não é feito para ver, porque é o regulamento e não o interesse do mo-
mento que determina o ponto que ele deve fixar (o olhar fixo a dez passos).
Eis aqui tantas precauções para aprisionar o homem naquilo que ele é. Como
se vivêssemos no medo perpétuo de que ele lhe escape, que ele ultrapasse
e iluda de repente a sua condição. ( Jean-Paul Sartre, apud Goffman, 1973:76‑77)

Assim, um sacerdote tenderá a retorizar a sua relação com o sagrado e


a menosprezar a sua relação com o dinheiro; tal como a maioria dos artis-
tas, durante muito tempo, não apresentava claramente ou pessoalmente a
sua relação com o mercado (mas essa maioria talvez tenha passado a mi-
noria a partir dos anos 70 do século XX ). Aliás, estas duas profissões, de
sacerdote e de artista, vivem associadas a uma ideia de vocação, em que,
diz Goffman (1973:150), se “esconde o longo e fastidioso trabalho que
precedeu a tarefa, ou se escondem as humilhações sofridas e tudo o que
se deve aceitar tacitamente para a conseguir, a fim de dar a impressão de
que sempre se teve a aptidão ideal para essa tarefa”. Noutras profissões,
pelo contrário, há uma “retórica da aprendizagem”, em que os actores têm
de se submeter a uma formação iniciática “para dar a impressão de que o
diplomado é um ser que a aprendizagem refez e que se distingue agora
dos outros homens” – a profissão médica está muitas vezes mais perto
desta segunda retórica, embora alguns médicos prefiram a primeira.
Os ritos de iniciação e de passagem, que os Performance Studies de
Schechner (2006:66-75) tanto estudaram a partir do conceito de limiar
oriundo da antropologia de Turner, não dizem apenas respeito a sociedades

32
A representação na vida quotidiana

ditas primitivas: na sociedade contemporânea podemos ver desse ponto de


vista muitos actos, desde o ritual judaico muito formalizado do Bar Mitzvah
à mera entrega da chave da casa de banho dos executivos a um emprega-
do em ascensão social na empresa. Harold Garfinkel (315-321) estudou por
seu lado as “cerimónias de degradação”, que baixam ou destroem o esta-
tuto de uma pessoa: por exemplo, a excomunhão, a cerimónia militar de
ser expulso por desonra do exército ao som de tambores (drumming out),
a declaração diplomática como persona non grata, ou a prática dos sindi-
catos ingleses de não falar a trabalhadores recalcitrantes
Por tudo isto é tão importante para Goffman inserir esta discussão no
seu contexto social. Ainda que se queira falar dos mecanismos dramatúrgi-
cos em geral (e ahistoricamente, como P. Burke criticou), terá de se referir
a situação social em que eles são pertinentes. Goffman desenvolve cons-
tantemente a questão da dependência da representação em relação às
normas sociais e valores (ou convenções morais, como lhes chama).

Sabendo que as fontes de impressão usadas pelo observado implicam


uma imensidade de normas (...) respeitantes ao mesmo tempo às relações
sociais e à representação da tarefa, vemos mais uma vez que a vida quotidiana
está encerrada numa rede de convenções morais. (...) Os públicos tendem a
considerar a personagem projectada pelo actor no decurso duma representação
ordinária como um representante autorizado do seu grupo de colegas, da
sua equipa e da sua organização social. (...) Cada vez que o actor desempenha
o seu papel, envolve esses conjuntos sociais mais vastos que são as equipas,
as organizações, etc. Cada nova representação dá lugar a um novo pôr à
prova da legitimidade desses conjuntos e a um novo pôr em questão da sua
reputação. (Erving Goffman 1973:229)

De modo que a representação é ao mesmo tempo uma consequência e


uma causa do processo dinâmico de socialização, que a modifica “para a
adaptar ao nível de intelecção e às expectativas da sociedade na qual se
desenrola” (1973:40). E essa representação socializante só é possível graças
à socialização anterior por que o indivíduo passou. Como qualquer social
role abrange um ou mais papeis (parts), isto é, “rotinas”, modelos de acção

33
D rama e C omunicação

preestabelecidos e que podem ser apresentados ou utilizados noutras oca-


siões, “por mais especializado que seja um papel, a respectiva fachada
social, salvo certas excepções, apresenta traços que também podem ser
encontrados em outros papéis um pouco diferentes” (asseio, modernidade,
competência, etc.) (1973:33). Pode mesmo estudar-se como esses elementos
do repertório se organizam em constelações específicas dos vários grupos,
como fez Pierre Bourdieu em A Distinção.

Quando alguém muda efectivamente de posição na sociedade e deve


desempenhar um novo papel, não lhe é certamente indicado em todos os
pormenores como se deve comportar, e a realidade da sua nova situação não
é certamente logo tão constrangedora que determine a sua conduta sem que
ele precise de nela reflectir mais. Geralmente, recebe apenas algumas
indicações, sugestões e directivas para a sua encenação, e admite-se que já
possui no seu repertório um grande número de pistas de representação que
lhe são necessárias no seu novo cenário (...). O que parece ser exigido ao
actor é que ele aprenda suficientemente pedaços do papel para ser capaz de
“improvisar” e de se sair melhor ou pior na situação, qualquer que seja o
papel que lhe calhe. (Erving Goffman 1973:74)

E o actor social não poderá modificar esse papel, desempenhá-lo de


uma maneira pessoal? Provavelmente, irá então recorrer a outros modelos
e rotinas, ou a eles ser comparado pelo seu público. Posso, por exemplo,
procurar ser um professor de outro tipo, inovador: mas não serei o primeiro
a fazê-lo e provavelmente serei percebido como o tipo de professor-cama-
rada, irmão em vez de pai, ou simplesmente segundo os estereótipos do
vaidoso ou do artista. Escreve Goffman (1973:34): “Quando um indivíduo
toma a cargo uma tarefa nova para ele mas também relativamente rara na
sociedade, ou quando se tenta modificar o prisma sob o qual essa tarefa é
habitualmente conhecida, tem todas as hipóteses de constatar que já há
várias fachadas solidamente estabelecidas entre as quais deverá escolher.
Assim, a nova fachada que nos esforçamos por dar a uma tarefa raras vezes
é verdadeiramente nova”. Convenhamos que há aqui um excessivo fatalismo:
se os actores nada pudessem mudar, então a sociedade viveria sempre num

34
A representação na vida quotidiana

círculo fechado e vicioso, quando de facto se transforma – em espiral, se


quisermos.
Mesmo o sociólogo Niklas Luhmann (1927-1998), que pensou as socie-
dades de grande diferenciação social, considera que os papéis continuam
socialmente definidos com clareza. Segundo Luhmann (passim 69-89), nas
sociedades altamente diferenciadas há é menos padrões ou modelos pre-
viamente definidos e socialmente aprovados que determinem como
combinar uma pluralidade de papéis em histórias de vida coerentes. Cada
indivíduo vai seleccionando e combinando as acções em padrões indivi­duais
e estendendo os seus networks pessoais de conhecimentos e de interesses.
Por exemplo, posso fazer uma combinação que em termos clássicos era
rara ou mesmo aberrante: ser ao mesmo tempo professor universitário e
também actor de cinema. Isto não significa que deixem de existir identida-
des sociais definidas e estáveis: eu sei o que é ser professor universitário
e sei também o que é um actor. As identidades estão é mais associadas aos
lugares do que às pessoas. Luhmann refere-o e, na sua esteira, Paul DiMaggio
(445) diz que, hoje em dia, tendencialmente, “os papéis sociais substituem
as pessoas como portadores das culturas de status”; as pessoas cada vez
mais variam entre vários papéis, com diferentes referências culturais.
Idealmente (idealtipicamente), um crescente número de pessoas vai ao
grande self-service social e compõe o seu tabuleiro à sua maneira – que
pode nem ser partilhada por nenhuma outra pessoa. Esta nova condição
vem de há décadas. Lembro-me de, em 1986, ler no jornal Village Voice de
Nova Iorque muitos anúncios como este, em que alguém a procurar cor-
respondência se apresentava assim: “gosto de grande literatura e de filmes
de cowboys, de arte moderna e de rock retro” (não sei se essa pessoa terá
encontrado alguém com o mesmo tabuleiro de elementos, seria uma feliz
combinação de duas singularidades).
Nesse sentido, e embora escrevendo numa época anterior a essas trans-
formações, Goffman dá um contributo importante ao lembrar que só na
sociedade ocidental se procurou a coerência de detalhes, que os chineses,
por exemplo, desconhecem. E, mesmo entre nós, esta imposição da “reali-
dade” do realismo foi um processo gradual e recente. Goffman conta como,
na Inglaterra do século XX , um oficial da casa do rei lutou contra a incon-

35
D rama e C omunicação

gruência das representações: por exemplo, contra as árias populares que


tiravam a dignidade às cerimónias reais, ou contra as canções cómicas que
a fanfarra tocava durante as condecorações. Tradicionalmente, a represen-
tação caracterizava-se exactamente pela ambiguidade, pela polissemia, de
que o riso de tipo carnavalesco, registado todo o ano, constituía o paroxis-
mo. Nesse sentido, pode notar-se criticamente que Goffman, apesar desta
breve advertência histórica, aceita e quase normativisa essa coerência
burguesa, porque todo o seu modelo teatral está sempre referido ao natu-
ralismo, que finge uma realidade específica e unívoca, sem elementos
trágico-cómicos, ambíguos – apenas a “realidade”.
No modelo ocidental da coerência (que, como vimos em Luhmann, está
ele próprio em transformação) é que há uma preocupação constante, por
parte dos actores sociais e do seu público, em evitar as contradições. Por
isso, quanto mais a representação do impostor se aproxima da realidade,
maior é o perigo que nos ameaça porque, se uma representação é execu-
tada com competência por alguém que se descobre ser um impostor, “esse
espectáculo pode enfraquecer no nosso espírito o laço moral entre o direi-
to legítimo de desempenhar um papel e a aptidão para o desempenhar”.
Daí que hoje “talvez o verdadeiro crime do escroc seja menos o de roubar
o dinheiro às suas vítimas do que o de pôr em dúvida a convicção comum
segundo a qual as maneiras e uma aparência burguesa só pertencem aos
burgueses”. O mesmo com as gaffes: “O que importa aqui não é que a
definição momentânea, provocada por um deslize, seja nela mesma parti-
cularmente repreensível, mas é mais simplesmente o facto de que ela é
diferente da definição oficial. Esta diferença introduz uma divergência ex-
tremamente perturbadora entre a definição oficial e a realidade, porque é
precisamente próprio da definição oficial ser a única possível”; e o resto
da representação, embora certo, não pode equilibrar este deslize: uma só
nota falsa no concerto introduz a ruptura (Goffman, 1973:26,55).
Há mesmo uma vigilância extrema e constante, muito bem estudada por
Goffman, para desmascarar todos aqueles que, nalgum dos elementos da
sua representação, escapem ao papel que lhes foi atribuído (as incongruên­
cias que a todo o momento denunciamos nos outros são incongruências
em relação ao consenso estabelecido, à norma). “A mitologia e as revistas

36
A representação na vida quotidiana

populares estão cheias de histórias romanescas nas quais o traidor e o he-


rói disfarçam ambos a sua identidade e são desmascarados no último
capítulo, onde se descobre que o traidor não é de estatuto superior e que
o herói não é de estatuto inferior” (ibid. 62). O filme My Fair Lady é ao
mesmo tempo um exemplo do sistema de vigilância, em que os sociolectos,
tão fortes na Inglaterra, são o obstáculo mais difícil a quem quer ludibriar,
e uma excepção na medida em que, após intenso e amoroso trabalho, o
filme termina com o triunfo dos falsificadores.
A vigilância sobre as fachadas que os outros apresentam implica ter em
conta tanto a dimensão verbal como a não verbal – um aspecto fundamen-
tal da comunicação a que tem sido dada muita importância nos últimos
anos mas que Goffman conceptualizou de forma precursora – e que pode-
mos entretanto relacionar com a distinção que vimos ser feita por Lévi-Strauss
entre as funções mais socializantes da face e as mais orgânicas do corpo.

A capacidade de expressão de um actor (e por conseguinte a sua aptidão


para dar impressões) exprime-se de duas formas radicalmente diferentes de
actividade simbólica: a expressão explícita e a expressão indirecta. A primeira
compreende os símbolos verbais ou os seus substitutos, que uma pessoa usa
conforme o costume da língua e unicamente para transmitir a informação
que ele mesmo e os seus interlocutores querem atribuir a esses símbolos.
Trata-se da comunicação no sentido formal e estrito do termo. A segunda
compreende um grande leque de acções que os interlocutores podem
considerar como signos sintomáticos quando é provável que o actor tenha
agido por razões diferentes daquelas de que fez menção explícita. Como se
verá, esta distinção só é válida no começo da análise. Com efeito, um actor
pode sempre transmitir intencionalmente falsas informações através destes
dois tipos de comunicação; o primeiro implicando a fraude, o segundo a
simulação. (...)
Sabendo que o actor provavelmente se apresenta sob uma luz favorável,
os seus parceiros podem ter em atenção dois aspectos na percepção dele:
uma parte composta essencialmente de asserções verbais, que o actor pode
facilmente manipular à sua vontade, e uma parte constituída sobretudo por
expressões indirectas que lhe é difícil controlar. Os seus interlocutores podem

37
D rama e C omunicação

então usar os aspectos do seu comportamento expressivo tidos por incon-


troláveis para verificar o valor daquilo que ele comunica pelos aspectos
controláveis. Daí uma dissimetria fundamental no processo de comunicação,
o actor não tendo conhecimento senão dum só fluxo da sua comunicação
enquanto os espectadores conhecem dela mais um fluxo. (...)
Dado que os interlocutores estão em condições de testar os aspectos mais
controláveis do comportamento por intermédio dos aspectos menos controláveis,
podemos esperar que o actor tente por vezes tirar partido desta possibilidade,
manipulando a impressão que produzem os comportamentos considerados
a esse título como dando informações dignas de crédito. (...) Este tipo de
controlo operado pelo actor restabelece a simetria no processo de comunicação
e abre o caminho a uma espécie de jogo da informação – um ciclo virtualmente
infinito de dissimulações, descobertas, falsas revelações e redescobertas. (...)
Os seus interlocutores podem, evidentemente, sentir que ele manipula os
aspectos aparentemente espontâneos do seu comportamento, e procurar nesse
próprio acto de manipulação o reflexo da conduta que ele não conseguiu
controlar.
Enfim, a aptidão para adivinhar o esforço do actor para conseguir uma
espontaneidade calculada parece mais desenvolvida nos indivíduos do que
a aptidão a manipular o seu próprio comportamento, de forma que, tendo o
espectador hipóteses de ganhar vantagem sobre o actor, a dissimetria inicial
do processo de comunicação tende a manter-se. (Erving Goffman, 1973:12,16,17)

Umberto Eco elabora uma matriz deste jogo possivelmente infinito de


revelação e dissimulação, que podemos encontrar tanto nas comédias de
enganos de Manandro a Pirandello como na vida quotidiana. Fá-lo mencio-
nando Goffman mas juntando ao raciocínio deste a questão da intenção do
emissor: “Se se considera a nossa matriz como modelo de uma combinató-
ria teatral, seria necessário, diga-se de passagem, juntar-lhe um valor
suplementar, a saber, a maneira pela qual o emissor desejaria que o desti-
natário lhe atribuísse uma intenção. Introduz-se então um elemento de
volição do equívoco: a situação (que já Lacan se deleitou a analisar) da
carta roubada, ou aquela do judeu de Varsóvia que diz a seu amigo: ‘Por que
é que o senhor mente dizendo que vai a Cracóvia para que eu creia que
vai a Lemberg, quando na verdade vai é a Cracóvia?’” (1989:50)

38
A representação na vida quotidiana

Mas voltemos ainda a Goffman, para quem o que é mais condenado são
as representações que ignoram os limites da condição do actor. Isso é en-
carado do ponto de vista do grupo de estatuto superior – que até pode
fingir outra condição mas não pode ser ameaçado pelo fingimento dos de
estatuto inferior. Chegamos assim à ligação de todas estas questões da re-
presentação quotidiana com a questão do poder (que Goffman define
weberianamente como a capacidade de o indivíduo dirigir a actividade de
outro indivíduo): “por uma representação entende-se a totalidade da acti-
vidade duma pessoa dada, numa ocasião dada, para influenciar duma
certa maneira um dos outros participantes.” É do interesse do actor “con-
trolar a conduta dos seus interlocutores e em particular a forma como eles
o tratam em resposta. Consegue-o em larga medida modificando a definição
da situação em que os seus parceiros surgem; e pode influenciar esta de-
finição exprimindo-se ele próprio de forma a impor-lhes o tipo de
impressão que os leva a agir de bom grado de acordo com o seu próprio
plano.” Repare-se que esse controlo se inicia logo ao nível da percepção:
“se encararmos a percepção como uma forma de contacto e de comunica-
ção, então ter o controlo daquilo que se percebe é ter o controlo do
contacto estabelecido, da mesma maneira que delimitando e regulando o
espectáculo se delimita e regula o contacto”. (1973:23,13,69)
Goffman dá exemplos: “as restrições trazidas ao contacto, o manter duma
distância social, fornecem um meio de engendrar e manter o medo no pú-
blico – um meio, como disse Kenneth Burke, de manter o público em
estado de mistificação relativamente ao actor”. Mas Goffman (ibid. 69) sabe
que o poder não se exerce apenas de cima para baixo: se cita Cooley
quando este diz que “os homens do mundo usam muito as boas maneiras
como um meio de disfarce pessoal que tem por fim, entre outros, conser-
var‑lhes uma espécie de ascendente sobre as pessoas simples”, logo
acrescenta que os “simples” também usam o medo, a distância social, os
interditos, como forma de protecção e ameaça em relação aos que os
dominam. Nisto podemos aproximá-lo da concepção que Foucault desen-
volveu de um poder que se exerce a todos os níveis da vida social; aliás,
os procedimentos de delimitação, rarefacção e interdição que Foucault (1971)

39
D rama e C omunicação

analisou ao nível dos discursos podem também ser relacionados com os


que Goffman encontra ao nível geral de todas as actividades de represen-
tação.
Ora, prossegue Goffman, por mais que a interacção envolva todos e se
represente como consensual, as relações são assimétricas: o estabelecimen-
to de uma definição global da situação “não implica tanto que há um
acordo sobre o real mas sim que há um acordo sobre a questão de saber
quem está no direito de falar o quê”. “Quando um actor se encontra em
presença dum público, a sua representação tende a incorporar e a ilustrar
os valores sociais oficialmente reconhecidos, muito mais, de facto, do que
é tendência habitual no conjunto do seu comportamento.” Por exemplo, os
estudantes na sala de aula tendem a mostrar muito mais respeito pelo pro-
fessor e pela instituição do que nas suas conversas fora da sala – e o
mesmo se poderia dizer sobre os comentários dos professores em relação
aos alunos. Mas, como também se vê no caso das aulas, “os actores e o
público acordam tacitamente em agir como se existisse entre eles um certo
grau de oposição e um certo grau de acordo.” (Ibid. 18,225) Não se mostra
apenas obediência ou adulação. Por exemplo, um aluno que repetidamen-
te faz visíveis esforços para agradar ao professor, não ficará bem visto por
ele e sobretudo pelos colegas. Há, pois, uma gestão sempre temporária da
representação do acordo e do desacordo. E a interacção entre os vários
pólos hierarquizados das relações pode até, em vez de pôr em causa a
dominação (ou ao mesmo tempo que o faz), reforçá-la, na medida em que
permanentemente ensaia e dá uma representação da harmonia – por exem-
plo, o facto de um aluno poder discordar ou protestar numa aula pode ser
um elemento disruptivo que ao mesmo tempo prova como o professor e a
instituição permitem o desacordo, e nesse sentido pode mostrar que ambos
os lados estão unidos numa instituição tolerante.
Se pensarmos a questão, não já a nível da interacção em pequenos gru-
pos, mas à escala macroscópica, por exemplo a nível de uma nação,
compreenderemos que o espectáculo também pode ser visto aí como es-
sencial justamente pela sua relação com o poder político. É o que veremos
no próximo capítulo.

40
2 . O E S P EC TÁC U LO DA P O L Í T IC A

Já no século XVIII , Schiller soube ver a importância da representação na


conquista e manutenção do poder político. Partiu da ideia comum a vários
filósofos posteriores a Kant de que o “irrepresentável” que este teorizara
poderia talvez aceder à representação através do teatro, enquanto encarna-
ção sensível do ideal. Schiller também sublinhou inteligentemente a
mediação que o espectáculo faz entre razão e sentimento e tirou daí as
conclusões para o aproveitamento que as forças no poder podem fazer
dessa mediação no sentido de fortalecer o espírito nacional.

A nossa natureza, tão incapaz de permanecer mais tempo no estado animal


como de prosseguir os trabalhos mais delicados da razão, exigia um estado
intermédio que unisse os dois pólos opostos, moderasse a tensão demasiado
violenta, transformando-a em doce harmonia, e facilitasse a transição alternativa
de um estado para o outro. Ora, esta função só o sentido estético ou o
sentimento do belo a pode desempenhar. Como, porém, o primeiro feito de
um legislador prudente deve ser seleccionar de entre dois efeitos o maior,
ele não se contentará com ter simplesmente desarmado as inclinações do
seu povo; utiliza-las-á também, sempre que possível, como instrumento de
planos superiores e esforçar-se-á por as transformar em fontes de felicidade.
Por isso ele escolheu, antes de tudo, o teatro, que abre ao espírito sedento
de actividade um domínio imenso, de alimento a todas as faculdades da alma,
sem exigir demasiado de uma só, e concilia a educação da razão e do coração
com o mais nobre dos passatempos. (…)
O teatro é, mais que qualquer outra instituição pública, uma escola de
sabedoria prática, um guia para a vida civil, uma chave infalível para as portas
D rama e C omunicação

mais secretas da alma humana. (...) Não posso deixar passar aqui em claro
a grande influência que um bom teatro fixo exerceria sobre o espírito da
nação (…) porque reúne em si todos os estados e classes e conhece o melhor
caminho para chegar à razão e ao coração. (…) Numa palavra, se chegássemos
a ter um teatro nacional – tornar-nos-íamos também uma nação. O que é que
unia tão firmemente a Grécia? (Friedrich Schiller in Barata 93-5)

Isto que Schiller escreveu no final do século XVIII foi na época um topos
muito repetido. Já Rousseau tinha reconhecido em 1758 que “o efeito geral
do espectáculo é reforçar o carácter nacional, aumentar as inclinações naturais
e fornecer uma nova energia a todas as paixões” (in Barata 89). Em 1773,
Louis-Sébastien Mercier (in Borie et al 224) argumenta no mesmo sentido:
“O meio mais activo e mais pronto de armar invencivelmente as forças da
razão humana e de lançar de repente sobre um povo uma grande massa de
luzes seria, seguramente, o teatro (…). É aí que o pensamento majestoso de
um só homem iria inflamar todas as almas com uma comoção eléctrica: é
aí, enfim, que a legislação reencontraria menos obstáculos e operaria as
maiores coisas sem esforço e sem violência.” No século XIX, Victor Hugo virá
reavivar a mesma ideia: o teatro pode levar o povo a conceber-se como
identidade nacional, nomeadamente através da representação da História e
da sua evolução. Também Hegel escreve, em 1832 (in ibid. 334), com argu-
mentos históricos: “em várias épocas a poesia dramática foi igualmente
utilizada para abrir caminho a ideias novas, à política, à moral, à poesia, à
religião. Aristófanes, nas suas primeiras comédias empreende uma viva po-
lémica contra a nova situação política de Atenas e a guerra do Peloponeso”.
A dimensão espectacular do poder, que nestes autores surge ainda como
mera possibilidade ou aspiração, podemos hoje vê-la como estrutural.
Recentemente, Alain Badiou fez desta questão um elemento central do seu
pensamento sobre o teatro:

O teatro está ligado ao Estado, ele é uma mediação pública entre o Estado
e o seu exterior: a multidão reunida. E como a circulação se faz nos dois
sentidos (do poder para a multidão e da multidão para o poder), o teatro é
absolutamente ambíguo. Ele é o ponto onde uma certa audácia do Estado

42
O espectáculo da política

encontra o meio intelectual do que é colectivo, reunido, público. O próprio


Luís XIV subsidiava as audácias materialistas de Molière. E o teatro popular
como o teatro de rua são [hoje], em França, subsidiados pelo Estado. (Alain
Badiou, 2007:22-23)

Também alguns antropólogos como Georges Balandier têm vindo a des-


tacar em vários contextos, não tanto a relação do poder político com o
teatro, mas a própria constituição da política como espectáculo.

Por detrás de todas as formas de disposição da sociedade e de organização


dos poderes, encontra-se, sempre presente, governante de bastidor, a
“teatrocracia”. Ela regula a vida do dia-a-dia dos homens em colectividade;
ela é o regime permanente que se impõe aos diversos regimes políticos
revogáveis, sucessivos. (…) O grande actor político comanda o real pelo
imaginário. (…)
O Poder estabelecido só pela força, ou pela violência não domesticada,
teria uma existência constantemente ameaçada; o poder iluminado apenas
pela luz da razão teria pouca credibilidade. Não consegue manter-se nem
pela autoridade brutal, nem apenas pela justificação racional. Não se faz nem
se mantém senão pela transposição, pela produção de imagens, pela
manipulação de símbolos e sua organização num quadro cerimonial. (…)
Todo o poder político consegue finalmente a subordinação através da
teatralidade; mais aparente numas sociedades do que noutras, porque as
diferenças de civilização as levam a desiguais níveis “espectaculares”. (Georges
Balandier 19-25)

Então, como caso particular e relevante da representação quotidiana,


vamos fazer em todo este capítulo uma espécie de zoom ao espectáculo da
política, com exemplos ao longo da história. Começando pelas sociedades
ditas primitivas, continuemos com Balandier.

A entronização é uma modificação. Os reis fazem-se. A antropologia


política africanista deu disso e repetiu a demonstração. Mesmo no caso das
pequenas sociedades sem aparato e de governo discreto. No Togo Setentrional,

43
D rama e C omunicação

o chefe do clã dos Moba não acedia ao seu cargo senão depois de um retiro
junto dos altares protectores. Aí, recebia consagração, formação e insígnias.
Tornava-se outro, sendo marcado fisicamente por uma mutilação sexual,
usando um nome novo, aprendendo um código de conduta específica que
o obrigava a não falar senão através de um intermediário. (…)
O soberano Yatenga, governante de um dos reinos Mossi do Burkina-Faso,
era, numa primeira fase, apenas o chefe de todos os chefes. Não podia ser
coroado rei senão depois de fazer um longo itinerário de iniciação, conduzido
através de uma parte do reino. A que alberga os lugares simbólica e
historicamente fortes. Durante o percurso, a pessoa real formava-se e o poder
real tornava-se mais preciso. O acto decisivo e final situava-se onde foi fixada
a primeira residência do fundador do Estado. O rei era aí “feito” definitivamente.
Era exposto a meio do dia sobre a “pedra do poder”, apresentado ao povo
sobre um cavalo garanhão que simbolizava o novo reino e vestido com
vestuário branco especial. O seu regresso era feito em triunfo, recebia todos
os sinais de submissão. O rei, no decorrer destas provas de formação,
“assimilava” o espaço e a história mossi. (Georges Balandier 32-33)

Pensemos noutras sociedades e continuemos com os exemplos. Nas


cidades gregas, entre os séculos VIII e VI a.C., os tiranos já utilizavam abun-
dantemente as festas populares em benefício da sua propaganda. Pisístrato,
em 556 a. C., organizou a sua entrada em Atenas sob a protecção figurada
da deusa Atena, que o foi receber pessoalmente.
Em Roma, o espectáculo do poder desenvolveu-se ainda mais. Já desde
os tempos da República os magistrados ofereciam grandes festas e os ge-
nerais vitoriosos encenavam os seus triunfos. Mas sobretudo nos tempos
do Império, a população desocupada vivia de distribuições gratuitas de pão,
azeite e vinho, exigia panem et circenses: entregue à ociosidade, ela pode-
ria reunir-se em aglomerações sediciosas; era, portanto, melhor distraí-la.
Sucediam-se então as festas oferecidas pelo imperador. Graças a essas ce-
rimónias a que comparecia, o imperador tornava-se conhecido, entrava em
contacto com o povo e testava a sua popularidade – embora as aclamações
espontâneas se tivessem transformado em aclamações ritmadas, que as
multidões deviam repetir a partir de um “coro” criado no tempo de Nero.

44
O espectáculo da política

Essa encenação do poder está sempre mais visível onde há uma lideran-
ça centralizada. Podemos por isso dar um grande salto no tempo, passando
mesmo por cima da Idade Média (à qual voltaremos no quinto capítulo).
Porque é na Renascença, diz ainda Balandier (35), que voltamos a encontrar
os exemplos mais espectaculares da “transposição dramática dos aconteci-
mentos históricos, da tradução simbólica das relações políticas e sociais, e
da espectacularização da ideologia.” Maquiavel (1469-1527) aconselha o
príncipe a “divertir e reter o povo em festas e jogos” e a “fingir e disfarçar”,
compondo para si mesmo uma personagem completamente diferente.

Todos vêem perfeitamente o que aparentas por fora, porém muito poucos
percebem o que vai por dentro; e esses poucos não se atrevem a contrariar
a opinião dos muitos, que têm por si a magestade do Estado que os apoia.
(...) Pois o vulgo só se pronuncia quanto àquilo que vê. (Maquiavel (apud
Schwartzenberg 6)

A centralização da monarquia francesa no reinado de Luís XIV (1643­


‑1715) trabalhou tão profundamente a encenação do poder que podemos
pensar se teria sido possível sem essa teatralização. O próprio espaço de
Versalhes, tendo no centro o grande palácio real e à volta as mansões que
os nobres, por vezes com enormes dificuldades, tiveram de ir ali construin-
do, traduz visivelmente a imagem, já de si nova e muito bem trabalhada,
do rei-sol. Ali se organizavam múltiplos “divertimentos reais”: por exemplo,
em 1664, a corte pôde ver A Princesa de Élida com a actriz Du Parc e, no
mesmo cortejo, o próprio rei, numa couraça dourada e montando um ca-
valo enfeitado com diamantes.
Nos teatros, todos tinham que fazer as devidas vénias ao camarote real,
mesmo que ele estivesse vazio: o que significa (como Jean-Marie Apostolidès
bem mostrou a partir do conceito de Ernst Kantarowicz do “duplo corpo
do rei”), que a figura do monarca já existia independentemente do corpo
físico de um qualquer rei em concreto 1. Pela mesma razão (e Louis Marin

1 Kantarowicz retomou aliás a ideia de Plowden, jurista do tempo da rainha Isabel I de


Inglaterra, segundo a qual o rei tem dois corpos: um corpo natural (mortal), e um corpo político,
corporativo, que não pode ser visto nem tocado mas faz o policiamento e governo do reino.

45
analisou bem este fenómeno), as moedas e retratos de Luís XIV exibiam a
mesma face da monarquia independentemente do envelhecimento concre-
to do homem. E no momento da morte física de um rei, como a monarquia
continuava, gritava-se: “Morreu o rei. Viva o rei!”
Cerca de um século mais tarde, a Revolução Francesa, apesar de toda a
sua carga ideológica, ou por causa dela, não pôs de lado o espectáculo:
apenas o transformou. E não estamos apenas a falar no espectáculo dos
castigos e suplícios corporais, uma prática medieval actualizada com a gui-
lhotina para o povo testemunhar e celebrar a vitória sobre o acusado
(cf. Foucault, 1977). A revolução criou novos cultos cívicos e afectou-lhes
os ritos, os espaços e os suportes que antes eram católicos, com uma pro-
fusão de imagens a reproduzirem o imaginário revolucionário em estampas
e bandeiras e com Marat, depois de assassinado, a ocupar nalgumas igrejas
o lugar onde antes estivera Cristo. Mais do que isso, porém, usou novos
espaços e criou ritos com uma inédita dimensão de massas. Logo no pri-

46
O espectáculo da política

meiro aniversário da revolução, a 14 de Julho de 1790, a Festa da Federação


reuniu duzentas mil pessoas no Champ de Mars, em Paris. O pintor David
foi escolhido e nomeado para “Grão-Mestre das festas da República”, e
passou a encená-las.

Robespierre, que presidia então à Convenção, desempenhou o papel


principal. Enquanto os coros entoavam o hino adequado à circunstância, “Pai
do Universo, suprema inteligência”, ele ateou fogo, pessoalmente, a uma
estátua do ateísmo. Depois, marchando à frente da Convenção, cujos membros
carregavam ramos de flores e espigas de trigo, ele encaminhou-se, no meio
de um enorme cortejo, da Tulherias para o Campo de Marte, onde se tinha
erguido uma montanha simbólica encimada pela Árvore da Liberdade. (Roger­
‑Gérard Schwartzenberg 289)

Os exemplos sucedem-se como as gerações. Napoleão usou a companhia


e os conselhos dos actores, que convidava frequentemente para jantar; de
estatura muito baixa, cuidava de apresentar-se em condições que pudessem
compensar a falta de altura e impressionar os espíritos. O seu sobrinho,
Luis Napoleão Bonaparte, apresentou-se na campanha eleitoral de 1848 à
margem das principais formações políticas e desprezado pelos seus adver-
sários; mas a associação entre a sua imagem e nome e os do tio funcionou
tão bem que ganhou as eleições, três anos depois fez um golpe de estado,
proclamou-se imperador e foi ratificado em sucessivas eleições.
Os funerais de Victor Hugo, em 1885, foram uma ocasião de disputa
entre diferentes facções da França coeva, que queriam aproveitar as cerimó-
nias fúnebres daquele que era geralmente tido por símbolo nacional para
mostrar como a nação era conservadora, ou revolucionária, laica ou ateia2.
Se continuarmos, à vol d’oiseau, para o século XX , encontramos a vida
política repleta de termos teatrais (fala-se no “palco da política”, na “cena
política”, nos “actores políticos”, na “ribalta”, nos “cabeças de lista” como

2 Cf. Ben-Amos, 1997:425-464. Ver, do mesmo autor, 2000, uma análise de casos entre 1789
e 1996. Uma excelente análise dos funerais do imperador Hirohito do Japão, em 1989, e da
sua transmissão televisiva pode ser encontrada em Mário Mesquita, 23-42.

47
D rama e C omunicação

“cabeças de cartaz”, no “cair do pano”). Além de o parlamento estar espa-


cialmente disposto em anfiteatro, muitas vezes os congressos e reuniões
políticas (ou, nos Estados Unidos, mesmo os debates televisionados) pas-
saram a organizar-se em salas de espectáculos ou recintos desportivos.
A política é também um dos lugares onde o guarda-roupa e adereços mais
fazem lembrar os do teatro ou da ópera: uniformes, galões, medalhas, con-
decorações, faixas. As próprias despesas de representação dos políticos
testemunham a pertinência da teoria do duplo corpo do estadista: é a ver-
ba para a viagem ou roupa do Presidente enquanto Presidente.
Em 1912, o cineasta Raoul Walsh acompanhou Pancho Villa na sua guer-
rilha mexicana: para poder filmar as suas emboscadas e execuções, o
próprio Villa chegou a atrasar as investidas duas e três horas até que o
cineasta tivesse luz suficiente.
Em 1931, Pétain teve cursos de dicção com uma actriz da Comédie Française
(nos anos 80, Cavaco Silva fez o mesmo com a actriz Glória de Matos).
O general De Gaulle recebia os conselhos de três decanos do Théâtre Français.
Na Alemanha, o III Reich levou ao rubro, por essa época, a encenação
da política. Kinser e Klineman (apud Combs e Mansfield: XXVII) argumen-
taram que o movimento nazi avassalou a Alemanha no despertar da
confusão e desilusão do pós-guerra porque Hitler não tratou a política como
uma rotina de trabalho, mas como teatro. O nazismo organizou marchas com
archotes, comícios frequentemente à noite, à luz dos projectores e das tochas,
bandeiras, estandartes, pálios, uniformes, cantos e hinos de ecos wagneria-
nos. “Aquelas pesadas engrenagens montadas por Goebbels”, escreve
Schwartzenberg (140), “atingem o seu ponto culminante com a chegada do
deus ex machina, precedida de um lento cerimonial, destinado a retardar ao
máximo o aparecimento do Mágico. A permitir o pleno funcionamento da
grande mola sociológica da Espera, estudada por Marcel Mauss.”
O Führer chegava à tribuna ao som do rufar de tambores e dizem que
dispunha mesmo de um painel instalado no seu púlpito, para poder ir va-
riando a iluminação do estádio. Ou seja, o estádio funcionava como um
estúdio, e Hitler incumbiu a cineasta Leni Riefenstahl de filmar os congressos
nazis de Nuremberga, em 1933, 34 e 35. O resultado foram os impressionan-
tes filmes Vitória da Fé, O Triunfo da Vontade e O Dia da Liberdade.

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Muitos mais exemplos se encontram na obra O Estado Espectáculo, de
Roger-Gérard Schwartzenberg. Trata-se, é certo, de um livro que, além de
mal escrito e repetitivo, tem uma abordagem exaltada que corresponde a
um pensamento maquiavélico, moralista e terrorista, com pouca análise e
conclusões monolíticas (“evidentemente”, “não é mais do que”). A sua gran-
de virtude, além da muita informação que reúne sobre o tema e que vamos
amplamente utilizar, é ter sabido, nos anos 70, chamar a atenção para uma
área cada vez mais importante e em mutação, a do “Estado-espectáculo”
– conceito que é uma paráfrase da “sociedade espectáculo” de Guy Debord,
de que falaremos no próximo capítulo. Tal como em Debord, a própria
descrição que Schwartzenberg faz dos fenómenos não se separa de uma
condenação deles e da ideia de que será possível um Estado que não seja
espectáculo, ou mesmo que ele já existiu – por muitos que sejam os exem-
plos que ele próprio apresenta do espectáculo da política desde os gregos...
Feitas estas advertências, centremo-nos na ideia central deste autor: numa
época de esteticização difusa da sociedade e do Estado, “as nossas conjec-
turas já não têm como único objecto as relações do espectáculo e da
sociedade em geral. Como as que tecia Guy Debord em 1967. Agora, é a
superestrutura da sociedade, é o próprio Estado que se transforma em em-

49
D rama e C omunicação

presa teatral, em ‘Estado espectáculo’. De uma maneira sistemática e


organizada.” (Schwartzenberg 1) Ora, quando o próprio Estado se transfor-
ma em empresa produtora de espectáculo, muda não apenas o discurso
como a economia da acção política, o cálculo das perdas e ganhos potenciais
quando se elaboram decisões e o modo de as apresentar tecnicamente.
Surgem novos tipos de aparelho, quer na técnica quer no pessoal: novas
organizações e estruturas de poder adquirem influência superior aos apa-
relhos tradicionais das democracias representativas, agora em função das
regras do espectáculo e da publicidade.
E quando surgem estes “novos” fenómenos? Na década de 20, o mundo
empresarial, atravessando uma época difícil, volta-se para os peritos em
relações públicas para conhecer o seu mercado e melhorar a sua imagem.

Juntamente com a pesquisa motivacional, surge a publicidade política. Na


década de 30. Novamente derrotado nas eleições presidenciais de 1928, o
Partido Democrático americano provê-se de um serviço de publicidade
permanente. Chegando ao poder quatro anos depois, com Roosevelt, ele
também coloca pela primeira vez as relações públicas ao serviço da presidência.
Em 1936, o governo emprega – pelo menos – 146 publicitários em regime
de tempo integral e outros 124 em regime de tempo parcial. (...)
Agora, as campanhas políticas organizam-se racionalmente, como as
campanhas publicitárias. Daí um estudo prévio do “mercado” político, através
de inquéritos e pesquisas. (…) Daí o estudo da imagem dos partidos e
candidatos que se defrontam, aos olhos da opinião pública. Daí a investigação
das motivações psicológicas. E as “simulações” envolvendo as diversas tácticas
possíveis, etc. (Roger-Gérard Schwartzenberg 218)

Uma parte importante dos novos modos de fazer política tem a ver com
as sondagens, também elas importadas do mundo empresarial. Em França,
o Instituto de Opinião Pública foi criado em 1938. Mas a primeira vez que,
numa eleição nacional, se recorreu a uma sondagem de opinião já tinha
ocorrido em 1936, nos Estados Unidos, e na década seguinte começaram a
ser usadas também a nível local. “As sondagens dissecam a anatomia da
circunscrição: idade, sexo, escolaridade, rendas dos eleitores; zonas de

50
O espectáculo da política

força e de fraqueza. Elas indicam o que o público pensa relativamente aos


candidatos (notoriedade, deficiências, etc.). Revelam, finalmente, quais os
problemas mais importantes para os eleitores e a opinião destes sobre esses
problemas. Chegam até a medir as reacções à plataforma do candidato antes
que ele receba a sua forma definitiva. Desta maneira, ele pode adaptar a sua
candidatura e o seu programa de acordo com essas indicações.” (ibid. 227)
Mas o argumento principal de Schwartzenberg é que passou a haver uma
profissionalização do trabalho das campanhas políticas, que deixou de ser
feito, de graça, por amigos políticos ou membros do partido e passou a ser
gerido por agências especializadas, que tratam do planeamento, estratégia,
pesquisa e análise de dados, realização de sondagens, marketing, financia-
mento, relação com os media, realização de filmes, etc. A primeira empresa
de gestão de campanhas foi fundada em 1933, em São Francisco: desde esse
ano até 1955, 70 das 75 campanhas que orientou ganharam as eleições.
Mas “a campanha política é apenas uma instância do papel crucial da
acção dramática desenvolvida pelas elites para cortejar as massas” (Combs
e Mansfield XXVII). “Cada vez mais, há um guião dos acontecimentos pú-
blicos de modo a eliminar da apresentação tanto quanto possível os
elementos discordantes ou imprevistos. Mais ainda, os próprios media pa-
recem dar uma ‘unidade dramática’ aos actores e eventos da elite que de
facto eles não possuem” (ibid. XXVI). Daniel Boorstin (181-200) diz que a
nossa época (e podemos perguntar se esta restrição temporal faz sentido)
criou o fenómeno do “pseudo-evento”, um acontecimento cuidadosamente
construído e alimentado, uma performance dramática que controla a apre-
sentação da imagem individual ou grupal às massas. Era o que já faziam
os velhos estúdios de cinema para lançar as suas estrelas e hoje frequen-
temente acontece na vida dos partidos. Na obra 1984, de Orwell, uma
elite política conduz um “pseudo-acontecimento” de propaganda sobre uma
guerra remota e uma conspiração interna misteriosa que liga para sempre
as pessoas à protecção paternal do Big Brother. Se o pseudo-evento é des-
mascarado, como o peru que George W. Bush andou a servir de bandeja
aos soldados para aparecer nas imagens de Natal e se veio a saber ser um
peru de plástico, sempre nos lembramos que os espectadores não são co-
baias passivas e que as leituras unívocas e maquiavélicas não são as mais
eficazes.

51
D rama e C omunicação

Mas vejamos então as tarefas de alguns dos profissionais destas equipas


políticas. Em campanha, os “homens avançados” organizam a deslocação
(itinerários, reuniões, comícios) e informam os candidatos sobre os pro-
blemas e os dirigentes locais, de modo a que ele os possa mencionar,
dando a impressão de conhecer muito bem as questões específicas da-
quela localidade e evitando ferir susceptibilidades ou agravar conflitos.
Há também aqueles que escrevem os discursos. John Kennedy tinha vários,
incluindo um prémio Pulitzer; mas o seu principal acessor para esta tare-
fa, durante dez anos, foi Theodore Sorensen, que depois continuou a
colaborar com James Carter, como uma espécie de dramaturgo oficial da
Casa Branca.

Kennedy tomava nota das histórias interessantes contadas por algum


orador a fim de as utilizar posteriormente. (...) Eu possuía um volumoso
‘dossiê humorístico ’ que crescia continuamente. Como, em geral, os textos
dos discursos entregues à imprensa eram expurgados das anedotas, era
possível voltar a utilizá-las noutro discurso. Além dos nossos arquivos cómicos,
mantínhamos uma colectânea de conclusões, geralmente citações de
personagens ilustres ou referências a acontecimentos históricos que,
acompanhando uma breve peroração, podiam colocar o ponto final em
qualquer discurso, sobre todo e qualquer assunto. (Theodore Sorensen, apud
Schwartzenberg 233)

O presidente dos Estados Unidos Gerald Ford chegou a contratar ofi-


cialmente para a Casa Branca um gagman, incumbido de acrescentar frases
espirituosas e opening jokes nos seus discursos – como em Hollywood.
É interessante verificar quantos políticos foram também jornalistas: na
França do século XVII, Luis III e Richelieu, sob pseudónimos, escreviam para
jornais; na Revolução Francesa, figuras tão centrais como Desmoulins e
Marat trabalharam na imprensa; o próprio Napoleão Bonaparte lançava
boletins para tornar populares as suas campanhas em Itália e no Egipto; o
seu sobrinho chegou a ter um jornal oficial com muitos dos artigos redigi-
dos pelos seus próprios ministros; já no século XX , Clemenceau e Jaurès
foram jornalistas e políticos; Mussolini foi director de um jornal; Nasser

52
O espectáculo da política

supervisionava os meios de informação, indo às gráficas, corrigindo os


textos e a paginação. Em Portugal não faltam também os exemplos, desde
Salazar a Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Portas, Miguel Portas, Pacheco
Pereira ou, mais recente e episodicamente, Vicente Jorge Silva ou Maria
Elisa (para não falarmos de escritores como Sophia de Mello Breyner, Natália
Correia, Manuel Alegre). Outros, não sendo jornalistas, cuidaram da relação
com eles: Kennedy também ganhou as eleições pelo respeito e afabilidade
com que sempre tratou a imprensa e de que esta se dava conta nas suas
notícias, ao contrário do que acontecia com Nixon. Recentemente, divulga-
ram-se (cf. Matos, 2003) as cartas que Salazar, não confiando apenas nos
seus mecanismos de censura, escrevia directamente aos directores de jornais:
porque, como ele próprio sabia e dizia, “em política, o que parece, é”.
No entanto, Hitler (apud Schwartzenberg 173) afirmava: “todos os gran-
des acontecimentos que revolucionaram o mundo foram provocados pela
palavra [oral] e não pelos escritos”. E utilizava sobretudo a rádio, que na
época era o meio de maior difusão. Durante a 2ª guerra, também em França
e Inglaterra os primeiro-ministros e alguns ministros recorreram muito à
rádio. E, durante a ocupação nazi da França, a voz de Vichy e a voz de
Londres enfrentavam-se em ondas rivais.
Vale a pena reflectir sobre as diferenças entre os vários media. MacLuhan
(apud ibidem: 173) escreveu que a radiodifusão é, em si, um meio quente,
que não dá tréguas, uma técnica totalitária: “a simples possibilidade de ter
existido politicamente um Hitler já é uma consequência directa da rádio e
dos sistemas de sonorização.” De facto, sabe-se como, já em 1938, Orson
Welles tinha semeado o pânico em todos os Estados Unidos ao adaptar
para rádio A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells: centenas de milhares de
ouvintes tomaram por real aquela ficção sobre o desembarque dos mar-
cianos. MacLuhan acrescenta: “Hitler fez o mesmo, só que ele não estava
a brincar.”
Em vez de um determinismo pela técnica, é porém preferível ter em
conta o regime em que cada meio é usado. A própria radiodifusão, se for
ouvida em clima de liberdade, incluindo confronto entre várias ideias e
informações que possam pôr em causa os discursos, prova que não é in-
trinsecamente totalitária. Um exemplo clássico é o do democrata Theodore

53
D rama e C omunicação

Roosevelt, que nos seus doze anos de mandato como presidente dos EUA
(1933-45) desenvolveu magistralmente o uso da rádio. “Aliás, mesmo antes
de chegar à Casa Branca, Roosevelt experimenta o rádio, como governador
de Nova Iorque. Reconhece nele, sem demora, um poderoso instrumento
para conquistar a opinião pública para a sua causa, pela possibilidade de
estabelecer com ela uma comunicação directa, de passar por cima da legis-
latura do Estado e da imprensa escrita, dominada pelos republicanos.
Sucedem-se por isso, desde o seu primeiro mandato de governador, as
famosas fireside chats, conversas à lareira, em tom simples e livre” (ibidem
176) – como, em Portugal, mas já na era da televisão, Marcelo Caetano,
mesmo controlando o parlamento e a imprensa, procurou também fazer nas
suas “conversas à lareira”. Roosevelt voltou à rádio na campanha para a
presidência, quando mais de metade dos diários e semanários se opunham
à sua candidatura. Enquanto presidente, fez 28 dessas conversas, cada uma
delas ouvida por 80 milhões de cidadãos e ajudando a fazer passar as suas
reformas, contra as quais o congresso lutava.
No fundo, a geração da segunda guerra mundial foi a mais radiofónica.
Mas algo teve de mudar com o advento do cinema sonoro e da televisão.
Quando esta se começou a expandir na Europa, Raymond Aron disse que
Hitler pertencia à era da rádio, mas que agora, com a televisão, tudo era
diferente, porque a imagem tornava a mentira mais difícil. Passado meio
século, sabemos como não acabou a “mentira em política”, para usar a
expressão de Hannah Arendt (1972): alterou-se, sim, o tipo de representa-
ção. Tal como o cinema sonoro e os grandes planos exigiram dos actores
menos teatralidade, menos expressionismo, menos ênfase, maior uso da
meia voz e do murmúrio, também em política a geração dos grandes dis-
cursos teatrais como os de Hitler ou De Gaulle é substituída por outra que,
como Giscard d’Estaing ou Marcelo Caetano, procura falar mais intimamen-
te, à beira da lareira. Um consultor de Kennedy opunha-se à passagem na
televisão dos discursos feitos para multidões, por o tom ficar excessivo. Isto
acompanha, nas democracias ocidentais, a passagem das técnicas duras de
propaganda, características dos anos 20 e 30, das ditaduras e das guerras,
para técnicas mais subtis de persuasão.

54
O espectáculo da política

A televisão, cuja definição e grandes planos pouco escondem, traz tam-


bém uma maior preocupação com a imagem, a luz, a maquilhagem, os
dentes, a pele dos candidatos. Conta-se que Pompidou mandava depilar as
sobrancelhas, demasiado espessas (e que Cavaco Silva também). MacMillan
mandou encurtar o bigode, considerado fora de moda pelas eleitoras; em
Portugal, seguiram a moda de tirar o bigode políticos como António Guterres,
Jorge Coelho, Marcelo Rebelo de Sousa ou Isaltino Morais. Heath mandou
remodelar a dentadura. Paulo Portas branqueou-a.

Sempre que possível, JFK assistia à retransmissão da sua conferência de


imprensa. Criticava-se, muitas vezes, exclamando: “Eu aí poderia ter-me saído
muito melhor!”, “A iluminação está péssima” ou então “Os planos nesse ângulo
dão cabo de mim!” (...)
Sem dúvida, o duelo que causou maior impressão foi o que contrapôs
John Keneddy e Richard Nixon, candidatos à Casa Branca em 1960. Foram
organizados quatro debates entre os dois homens (...) e cada emissão atraiu
um auditório calculado entre 65 e 70 milhões de telespectadores. (...) Nesses
quatro debates – e particularmente no primeiro – a forma tem primazia sobre
o fundo. Tanto para os espectadores como para os “actores”. E, apesar das
precauções tomadas pelos seus especialistas em televisão, Nixon passa por
diversos dissabores, sobretudo no dia 26 de Setembro.
Antes desse primeiro debate, os seus assistentes determinam a instalação
de dois minúsculos projectores de 500 watts a fim de iluminar directamente
as órbitas de Nixon, eliminando-lhes a sombra profunda (...); mas os fotógrafos
de imprensa, cuja presença no plateau é autorizada na última hora, deslocam
involuntariamente os projectores colocados com tanto cuidado. Além disso,
embora estivesse abatido e convalescendo de uma doença, Nixon recusou
os serviços de um maquilhador especializado da CBS. Um dos seus assistentes
limitou-se a colocar um pouco de Lazy Shave sobre a sua barba cerrada e
escura (...). Ora, diante das câmaras da CBS (...) essa protecção revela-se
muito insuficiente. Nos planos aproximados, que dão a impressão de
esquadrinhar a pele transparente do vice-presidente, vêem-se todos os pelos
da sua barba. Daí o injusto cabeçalho do Chicago Daily News: ‘Nixon sabotado
pelo maquilhador da televisão?’ Nos debates seguintes, Nixon deixou-se

55
D rama e C omunicação

convencer e usou uma maquilhagem especial para o corrigir as devastações


provocadas pela (...) câmara de televisão, que dá a impressão de penetrar
por baixo da pele quase como um raio-x. (...)
Finalmente: uma desdita final nesse primeiro debate de 1960. Tendo-lhe
sido comunicado que o fundo do enquadramento seria pintado com uma
tonalidade de cinzento classificado com o nº 5 da escala dessa cor (isto é,
um cinza escuro), Nixon vestiu uma roupa cinza-claro, para contrastar. Ora,
ao secar, o tom de cinza ficou sensivelmente mais claro do que o previsto.
Contra aquele fundo claro inesperado, a figura de Nixon, metido na sua roupa
clara, diluía-se num contorno impreciso e parecia absorvida pelo cenário. (...)
Veredicto da senhora Rosa Kennedy, mãe do candidato democrata que se
apresentou perfeitamente vestido (camisa azul, roupa cinza-escuro), natural-
mente bronzeado, claramente consciente das exigências da televisão: “Naquela
noite fiquei com muita pena da mãe de Nixon”.
Kennedy consegue finalmente a vitória por uma pequena margem de
113.238 votos em mais de 68 milhões de eleitores. (Roger-Gérard Schwartzenberg
184)

Ou seja, uma margem de 0,17%. Ora, se tivermos em conta que 6% dos


eleitores assumiram terem decidido o sentido do seu voto durante os de-
bates televisivos, compreendemos a importância eleitoral que esses debates
tiveram.
Desse primeiro debate entre Kennedy e Nixon, o que ainda hoje é mais
marcante para as teorias da comunicação é o resultado das sondagens rea­
lizadas logo a seguir: os que o seguiram pela rádio consideraram que os
candidatos se tinham quase equiparado. Os que o acompanharam pela
televisão acharam, pelo contrário, que Nixon se saíra mal, e até mesmo
muito mal na opinião de muitos. Isto, além de confirmar o que vimos há
pouco (que a rádio não é intrinsecamente totalitária e pode dar voz a opi-
niões e sentimentos contrários), veio sobretudo tornar claro que, aos
argumentos apresentados pelos candidatos, se sobrepõe, em televisão, uma
quarta dimensão, que vive sobretudo da imagem e provoca no telespecta-
dor um sentimento intuitivo de adesão ou recusa. Não é por acaso que
dizemos “eu vi-o na televisão”, e não “eu ouvi-o”. Foi por isso que, em 1976,

56
O espectáculo da política

poucos dias antes do primeiro debate nos Estados Unidos entre os candi-
datos James Carter e Gerald Ford, a grande antropóloga Margaret Mead
telefonou ao publicitário que acessorava Carter para reiterar o conselho:
“Style over substance! Style over substance!” Mais estilo que substância!
Por muita importância que tenham os debates entre candidatos nas
campanhas eleitorais, vale a pena lembrar outras formas de marketing elei-
toral desenvolvidas na segunda metade do século XX . Uma fórmula ainda
não usada em Portugal é a do “homem na arena”, assim qualificada por
Roger Ailes, produtor de televisão contratado por Nixon para a sua campa-
nha de 1968. O seu objectivo? Projectar a imagem de um “novo Nixon”,
natural, cordial, espontâneo mas perfeitamente senhor de si, objecto da
simpatia do público. O seu funcionamento? Dez emissões de uma hora, em
que Nixon era colocado de pé, numa pequena plataforma, a responder às
perguntas de oito interlocutores, sentados em semicírculo diante dele e
tomados como representativos do eleitorado americano (um negro, um
magistrado israelita, o presidente de uma associação de polacos e húngaros,
uma dona de casa suburbana, um homem de negócios, um fazendeiro, dois
jornalistas). Por trás dele, o público: cerca de 300 espectadores, cuidado-
samente seleccionados pela direcção local do partido Republicano. “O efeito
de arena – lembrando remotamente a posição do mártir na fossa dos
leões – mobiliza instintivamente a simpatia dos telespectadores por esse
homem sozinho, que os enfrenta de pé, cercado por forças hostis. Passando
bem depressa a aplaudir as respostas de Nixon, o público do estúdio trans-
mite a todos a impressão de que o candidato possui o encanto, a autoridade
e todas as qualidades exigidas de um presidente” (Schwartzenberg 193).
Note-se que, já em 1952, era a agência de publicidade BBDO quem
organizava a campanha televisiva de Nixon. E foi ela quem lhe criou a
confissão televisionada, formato que ainda hoje é tão usado mas que guar-
da a memória dessa alocução proferida por Nixon a 23 de Setembro de
1952, conhecida até hoje como The Checkers Speech. O então candidato à
vice-presidência, acusado de contar com apoios financeiros ocultos e de
desviar os fundos eleitorais para usá-los em seu próprio benefício, defen-
deu‑se confessando... pecadilhos menores. Passo a transcrever.

57
D rama e C omunicação

Agora, numa atitude sem precedentes na história política americana, vou­


‑lhes fornecer um historial financeiro completo de tudo o que ganhei, de
tudo o que gastei, de tudo o que devo.
Possuo uma Oldsmobile de 1950; 3.000$ aplicados na minha casa da
Califórnia onde vivem meus pais; 20.000$ aplicados na minha casa de
Washington; um seguro de vida de 4.000$. Devo: 10.000$ da minha casa na
Califórnia, 20.000$ da minha casa em Washington; 4.500$ ao Riggs National
Bank; 3.500$ a meus pais; 500$ do meu seguro de vida. É só. Não é grande
coisa. Gostaria de acrescentar ainda o seguinte: a Pat não tem nenhum casaco
de peles de vison. Ela possui um respeitável casaco de bom tecido republicano.
E eu estou sempre a dizer-lhe que qualquer coisa lhe fica bem. (…)
Confesso que nos deram um presente depois da minha indicação. Um
texano ouviu a Pat dizer na rádio que as minhas duas filhas mais novas
gostavam de ter um cão. Acreditem ou não, na véspera de partirmos em
campanha, recebemos um recado para irmos à estação de Baltimore levantar
uma encomenda. Fomos lá buscá-la. Sabem o que era? Um cachorrinho cocker
que tinha feito toda a viagem desde o Texas, metido numa gaiola. Preto e
branco, às malhas. A nossa filhinha Tricia, a de seis anos, baptizou-o com o
nome de Checkers. E sabem, as miúdas, como todas as crianças, adoraram
o cão. E quero deixar claro desde já: independentemente do que disserem,
nós vamos ficar com ele.

Demorou muitos anos até que o público se apercebesse de como Nixon


era capaz de encenar bem a mentira. Na altura, triunfou: a emissão foi um
sucesso, sem que ninguém suspeitasse nem do logro nem sequer de que a
aparente singeleza daquela confissão tinha sido preparada por oito dias de
meticulosos ensaios.
As aparições televisivas dos candidatos podem ainda incluir: emissões
em que respondem a telefonemas dos ouvintes, aparentemente espontâ­neas
mas muitas vezes filtradas para convir à campanha; os pequenos spots pu-
blicitários, para conseguir sensibilizar mesmo aqueles telespectadores que
não gostam dos programas políticos; os documentários biográficos; ou, a
meio termo entre estas duas fórmulas, os tempos de antena, que podem
durar vários minutos mas em que, para não deixar o espectador mudar de

58
O espectáculo da política

canal, se trata muito brevemente vários temas, cada um com uma duração
que afinal por vezes se assemelha à dos spots.
Nos discursos de que se sabe irem aparecer extractos na televisão, por
trás dos oradores por vezes colocam-se cartazes que não conseguem ser
lidos pelo auditório a quem aparentemente estão a falar: é porque são
pensados para caberem no enquadramento televisivo, quando a cara do
orador surgir junto ao lema escolhido. George W. Bush rodeou-se de pessoas
dos canais de televisão, com experiência em iluminação, enquadramentos
e importância dos fundos. Num discurso de 2003 para promover o plano
económico, os assessores pediram às pessoas que estavam na multidão atrás
de Bush para tirarem as gravatas, de modo a parecerem-se mais com os
cidadãos que, segundo o discurso, iriam beneficiar com a redução de
impostos. Para anunciar o fim dos combates no Iraque, Bush discursou a
bordo do porta-aviões Abraham Lincoln, envergando um uniforme de piloto,
diante de uma tripulação coreografada e vestida com camisas de cores
combinadas: o discurso foi especificamente marcado para o que directores
de fotografia chamam a “hora mágica da luz”, que lançou um eflúvio dourado
sobre a cerimónia.
Nos comícios e na televisão, os candidatos surgem frequentemente
associados com outras vedetas. Desde logo, da política: mais uma vez, pode
referir-se Nixon, que utilizou na sua campanha de 1972 spots televisionados
que o mostravam junto a Brejnev ou Mao Tse Tung; Fernando Nogueira fez
o mesmo, em Portugal, quando procurou afirmar-se como sucessor credível
de Cavaco Silva. A celebridade de uma vedeta pode ajudar a da outra
(citem‑se os casamentos de Elizabeth Taylor com Mike Todd, Eddie Fischer
e Richard Burton, ou de Arthur Miller com Marilyn Monroe, ou de Manuel
Maria Carrilho com Bárbara Guimarães ou o namoro de Claudia Schiffer
com David Copperfield).
Há também a associação com vedetas do espectáculo, desde pelo menos
o tempo de Kennedy. E, mais ainda, tem havido transferências de figuras
do espectáculo ou do desporto para o mundo da política: a princípio re-
cebidas com algum escárnio, pelo menos por parte dos adversários (como
Reagan na campanha de 1966 para governador da Califórnia), depois triun-
fantes ou encaradas com crescente normalidade. Arnold Schwartzneger é

59
D rama e C omunicação

desde 2003 governador da Califórnia. Em 1974, a actriz Vanessa Redgrave


apresentou a sua candidatura nos subúrbios de Londres, pelo Partido
Revolucionário dos Trabalhistas. Na Grécia, depois da ditadura, a actriz e
cantora Melina Mercouri foi deputada e muitos anos Ministra da Cultura e
o compositor Mikos Teodorakis foi também deputado e ministro. Na Argentina,
Eva Peron, ex-bailarina, algum tempo locutora de rádio e actriz, inflamava
as multidões argentinas e chegou a suceder ao marido na presidência.
Berlusconi foi cantor em clubes nocturnos e navios de cruzeiro, antes da
sua carreira de empresário e de político. No Brasil, Pelé foi ministro do
Desporto e Gilberto Gil foi ministro da Cultura. Na Itália, Cicciolina chegou
a deputada. Em Portugal, os exemplos limitam-se a tentativas breves ou
provocatórias de Nicolau Breyner, Mário Viegas e Manuel João Vieira, a
alguns mandatários das campanhas ou, mais recentemente, aos lugares de
deputados do fadista Nuno da Câmara Pereira e da actriz e realizadora Inês
de Medeiros.
Há ainda a possibilidade de colocar os próprios políticos no terreno
tradicional do espectáculo, nomeadamente musical. Em 1973, Walter Scheel,
então vice-chanceler e ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha

60
O espectáculo da política

Federal, gravou uma antiga canção popular em benefício dos menores


inadaptados: classificado em primeiro lugar no hit parade e tendo concor-
dado em interpretar a mesma canção em público num programa de
televisão, viu a sua popularidade chegar ao apogeu. Alguns meses depois,
em 1974, tornou-se chanceler. Também Giscard d’Estaing, em 1969, quando
ainda era ministro das Finanças, foi a um programa de televisão e gravou,
acompanhando-se ao acordeão, Je cherche fortune autour du chat noir. Bill
Clinton recorreu muito ao saxofone. Berlusconi tem co-escrito canções e
hinos. Em Portugal, vimos já vários políticos conhecidos a tocar, a cantar
ou mesmo a representar em peças de teatro (Deus Pinheiro, Pinto Balsemão,
Dias Loureiro, Almeida Santos, Alberto João Jardim, Jorge Coelho, Lobo
Xavier, Pedro Passos Coelho, Mendes Bota, Duarte Lima, Odete Santos...)
Sem intimidade, a figura pública quase sempre exibe tudo: a família, os
animais domésticos, a idade, a saúde, os bons costumes, a vida sexual...
A campanha eleitoral serve desde logo para testar a resistência (sobretudo se
há primárias, como nos EUA, em que a campanha dura quase um ano): Durão
Barroso fez questão de se confrontar com Guterres subindo a pé a ilha do
Pico e comparando as condições atmosféricas com aquelas em que o rival
tinha subido. Um boletim oficial (apud Schwartzenberg 109) emitido em
Fevereiro de 1976 pela Casa Branca, para contrariar notícias sobre problemas
num joelho do presidente, mostra-nos a que ponto a exposição chegou.

O senhor Ford está a ter problemas com os seus joelhos, ambos operados
tempos atrás; compensa-os entretanto através de vigorosos exercícios físicos
quando se levanta às 5h30 da manhã e nada diariamente 400 metros na pis-
cina ao ar livre que mandou construir na Casa Branca. À noite, só se
levanta uma vez, para aliviar a bexiga, dorme bem, não teve reacções ner-
vosas depois das duas tentativas de assassinato de que foi vítima. Os seus
dentes estão manchados pela nicotina. Tem testículos normais e simétricos.
O presidente não mostra tendências depressivas. As suas fezes são escuras
e bem formadas.

Tal como Ford, muito outros políticos exibem a sua actividade despor-
tiva, que ajuda a projectar uma imagem dinâmica e de aptidão. Em Portugal,

61
D rama e C omunicação

há o caso evidente de Marcelo Rebelo de Sousa, com os seus banhos no


rio Tejo e no mar; ou o de Sócrates, com o seu jogging em todas as partes
do mundo ou as participações na meia maratona. É claro que os diferentes
desportos têm as suas conotações: podem ser mais de equipa ou mais in-
dividuais, mais populares ou de elite.
Tradicionalmente, é necessário o candidato ser casado: o celibatário é
alvo de muitas suspeitas e interrogatórios, como se viu com Edward Heath
em Inglaterra, em 1974, ou com Maria de Lourdes Pintassilgo em Portugal,
em 1979, ou com José Sócrates, em 2005. Mas a moral evolui, e hoje já há
muitos ministros divorciados ou assumidamente gays. O que não tira o facto
de a mulher do candidato poder dar um contributo importante: ao surgir
como casal, a figura fica humanizada, familiar, e conquista votos femininos.
Em Portugal, pelo menos desde 1976, a imagem da esposa tem sido
especialmente importante na campanha e na popularidade dos presidentes
da república. Pode é a popularidade da mulher ultrapassar a do marido, se
ele for apagado ou estiver em crise (casos de Gerald Ford, com faixas na
campanha a pedirem “Betty’s Husband for Presidency in 76”, ou mesmo de
Kennedy com Jacqueline em visita à Europa, ou do Príncipe Carlos face à
Princesa Diana), ou se ele já abandonou a vida política activa (casos de
Eva Peron ou de Hillary Clinton).
Foi especial o caso sucedido em 2005 no lançamento da campanha para
Lisboa de Manuel Maria Carrilho: o publicitário Edson Athaíde concebeu
um vídeo em que o candidato aparecia com a mulher, Bárbara Guimarães,
e com o filho de um ano e pouco: o resultado foi o oposto do que se pre-
tendia, porque, no contexto português, não há tanta tradição de exposição
da família, e porque muitos media hostis ao candidato fizeram passar a
ideia de que se estava a aproveitar politicamente a popularidade de uma
mulher sem passado político e, pior, de um bébé; com a agravante de o
candidato ter anteriormente reivindicado a necessidade de proteger a sua
família dos media, a quem agora a expunha.
Se nas campanhas se recorre aos filhos e netos é porque humanizam a
personagem: não apenas as crianças muito pequenas enternecem qualquer
um (como a publicidade bem sabe), como o político fotografado ou filma-
do junto aos filhos ganha um aspecto mais comum, ao mesmo tempo

62
O espectáculo da política

parecendo confirmado como pai ou avô da nação; quando Cavaco Silva


regressou para se candidatar à Presidência, uma das estratégias para afastar
a apreciação de tecnocrata que o vinha prejudicando foi a repetida expo-
sição com filhos e netos. E o político ainda recebe, no caso de serem filhos
muito pequenos (casos de Kennedy, de Tony Blair ou do idoso Adriano
Moreira), uma conotação inevitável de potência sexual.
Como alertaram Gilles Deleuze e Félix Guattari (em O Anti-Édipo),
“o Estado é desejo que se transfere da cabeça do chefe para o coração dos
súbditos (...) A mais fantástica máquina de repressão ainda é desejo, sujei-
to que deseja e sujeito de desejo.” A conotação erótica foi ostensiva no caso
de líderes que se pretendiam macho latinos, erectos nas suas botas como
Mussolini ou Sidónio Pais, ou persuasiva no caso de Kennedy, que, como
comentou Theodore White, provocava “uma espécie de excitação, de reac-
ção diante da sua personalidade”. Pode ser cultivada, como Henry Kissinger,
com fama de sedutor, rodeado de starlettes, que um dia confessou: “Há
mulheres que só se sentem atraídas pelo meu poder... o poder é o melhor
afrodisíaco”. E os gestores de campanha podem tirar partido dessas quali-
dades físicas (repare-se nas eleições americanas, com candidatos sexy como
Clinton, Al Gore, George W. Bush ou Obama), com a enorme vantagem de
essa atracção erótica atravessar classes, partidos e idades.
Também por isso António Guterres começava os seus discursos com a
invocação: “Portuguesas e portugueses!” Em Bordéus, Chaban-Delmas or-
ganizou reuniões públicas reservadas às eleitoras. “Durante a campanha
presidencial da primavera de 1974, Giscard d’Estaing dirigia-se à França
como se fosse um ser vivo – e feminino – que ele declarava pretender ‘olhar
no fundo dos olhos’. (...) Em 1977, respondeu durante uma hora às per-
guntas filmadas de mulheres francesas a respeito da sua condição”, num
programa intitulado “Perguntas de Mulheres” (Schwartzenberg 280).
Quando o presidente Kennedy foi alvejado, estudos mostraram um au-
mento de ansiedade: nos dias a seguir ao assassinato, os norte-americanos
bebiam mais e dormiam pior, por exemplo. “As cerimónias televisionadas
e altamente emocionais (a parada militar fúnebre, com o cavalo sem cava-
leiro, a presença de líderes mundiais, a grande missa, o enterro em Arlington,
etc.) serviram como uma dramática reafirmação da sobrevivência dos sím-

63
D rama e C omunicação

bolos políticos para além da queda de um chefe particular. Foi, nas palavras
de Duncan, um ‘momento de mistificação’ que não serviu apenas para
honrar o líder morto, mas também para reafirmar a continuação dos sím-
bolos políticos – que o navio iria continuar a navegar” (Combs e Mansfield
XXV ).
Tudo isto configura uma personalização do poder político, que em geral
a comunicação social não deixa de incrementar, para tornar mais palpáveis
os acontecimentos. Pierre Lazareff (apud Schwartzenberg 164), durante
muito tempo redactor-chefe do France-Soir, recomendava: “explicar as ideias
pelos factos e os factos pelos homens”. E repetia diariamente aos seus co-
laboradores: “Contem histórias, façam os homens viver!” O grande público
interessa-se mais por um lead que diga “Obama telefonou a Cavaco” do
que “Os Estados Unidos enviaram uma mensagem ao presidente português”.
E a personalização da política traz para primeiro plano a produção de sinais
e índices de apresentação de si, que sempre damos e que os outros sempre
decifram (como vimos em Goffman).
Essa imagem é uma reprodução mais ou menos fiel de quem se apre-
senta. É o conjunto de traços que se preferiu exibir à observação pública,
uma selecção, uma recomposição, uma maqueta. Se pensarmos no concei-
to de duplo corpo do rei, custa-nos menos a compreender que se construa
a figura oficial com alguma autonomia em relação à figura real. Mussolini
dizia: há que “fazer da própria vida a sua obra-prima”. De Gaulle (apud
Schwartzenberg 133) deixou escrito nas suas memórias: “Os maiores medem
cuidadosamente as suas intervenções. Fazem delas uma arte”. Já muito an-
tes, César e Napoleão escreveram para impor ao futuro a sua própria visão
da sua personagem, recompondo-a.
Uma vez fixada uma imagem, há que evitar as rupturas súbitas, de modo
que muitos dirigentes podem ficar, como De Gaulle, prisioneiros da sua
própria coerência; mas são mais numerosos os casos de uma mudança re-
pentina que destrói a figura em que se acreditava e não dá tempo de
acreditar na que passa a apresentar-se – como dizem os publicitários, é
mais fácil criar uma imagem de marca do que trocar de imagem.
Repare-se, no entanto, que pode haver personalização do poder político
como forma de dar um rosto a um programa (por exemplo, Roosevelt e o

64
O espectáculo da política

New Deal, Kennedy e a Nova Fronteira, Giscard e a modernização, Mário


Soares e a democracia representativa, Tony Blair e a terceira via). E que
esta personalização do poder, no sentido de conferir uma existência pessoal
a uma abstracção programática, é diferente do poder pessoal. Muitas vezes
ambas as facetas coincidem (casos de Estaline e Mao), mas outras não (casos
de Churchill ou Roosevelt). Por exemplo, num regime democrático, as
eleições assumem uma feição de duelo entre duas ou mais personalidades
(mesmo as eleições legislativas, uma vez que o rei ou o presidente da
República designará como chefe do governo o líder do partido vitorioso).
Mas nem mesmo isto significa que haja um poder propriamente pessoal:
veja-se o caso do herói Churchill, que logo a seguir a ter vencido a guerra,
na democracia mais antiga do mundo, foi derrotado nas urnas. Há que
compreender em que contextos se passa mais facilmente da personalização
simbólica para um efectivo poder pessoal: por exemplo, quando se trata
de fundadores de novos Estados, ainda por cima muitas vezes dilacerados
por divisões étnicas ou tribais que parecem pedir a continuidade do herói
fundador; ou quando certas instituições favorecem a continuidade das
pessoas nos lugares, como as monarquias hereditárias ou os regimes
plebiscitários, presidencialistas e presidenciais. “Na América Latina”, argumenta
Schwartzenberg (259), “a cláusula de não-reegibilidade imediata do presidente
impede o ‘continuismo’. Ela garante pelo menos o carácter temporário do
mandato presidencial. Na África, pelo contrário, os presidentes de um modo
geral são indefinidamente reelegíveis e frequentemente reeleitos”; por isso
ali houve casos, como o de Nkrumah no Gana e Mobutu no Zaire, que
desenvolveram a sua própria doutrina filosófico‑religiosa. Mas o culto a
Estaline, na União Soviética, não lhes ficou atrás.
Ditadores como Estaline, Hitler ou Salazar não adoptavam a atitude fami-
liar, não mostravam sequer a mulher, cultivavam a distância. Seguiam o
conhecido preconceito de que “não existe nenhum grande homem aos olhos
dos seus criados”. Mesmo o general De Gaulle, embora num contexto demo-
crático, para manter a sua aura de herói não aparecia com a família e
escrevia assim nas suas memórias: “A sobriedade do discurso empresta maior
relevo à atitude. Não há nada mais capaz que o silêncio de realçar a autori-
dade… Imperatoria brevitas, diziam os romanos” (apud Schwartzenberg 17).

65
D rama e C omunicação

Mas De Gaulle, após dois períodos de liderança em França, acabou


contestado nas ruas em Maio de 1968. Schwartzenberg procura mostrar, de
forma bastante convincente, como essa liderança heróica costuma ser subs-
tituída por uma liderança em que o povo já não se projecta num ideal
acima dele, mas sim num semelhante em que se reconhece. Nos Estados
Unidos, o presidente Jimmy Carter (repare-se no diminutivo Jimmy…), não
exibia as suas qualificações de oficial da marinha e físico nuclear, mas sim
as suas origens humildes. Em Portugal, Cavaco Silva tentou um pouco o
mesmo, insistindo nas horas que, em pequeno, tinha de caminhar a pé até
à escola.
Por sua vez, o lado comum desses líderes também acaba por cansar, diz
Schwartzenberg. É a ocasião para os líderes charmosos, com educação
elevada, geralmente na casa dos quarenta anos, herdeiros ricos mas capazes
tanto de beber champanhe como de arregaçar as mangas e comer sardinhas:
ou seja, procuram encarnar o duplo ideal da diferença e da igualdade, da
aristocracia e da maioria. Naturalmente, correspondem a períodos de paz
e prosperidade. Se voltarem períodos de crise militar ou económica, os
eleitores dispensarão os encantos e riscos de um primeiro-ministro que,
como Trudeau no Canadá, descia das reuniões pelo corrimão: quererão de
novo um herói ou então um “pai”, isto é, um político experiente, que até
já poderá ter sido charmoso, como Willy Brandt, mas agora assume a con-
dução dos destinos da nação com o seu capital de relações e de sabedoria.
Note-se como esta tipologia de Schwartzenberg (herói, homem comum,
líder charmoso, pai) pode ser relacionada com os naipes da distribuição
teatral e com os três tipos de dominação de Max Weber (1983), tradicional,
racional/legal e carismática; e como vários tipos podem coexistir, quando um
partido ou uma coligação procura beneficiar da mais-valia de todos eles. Por
exemplo, em França, “no início de 1977, a maioria propõe um triunvirato:
Chirac no papel de herói, seguro de si mesmo e do seu destino; Giscard
d’Estaing no de líder charmoso, sempre cuidando de seduzir, inclusive atra-
vés de exercícios literários; e Barre como o pai, sólido e plácido” (ibid. 89).
Falta ainda discutir alguns perigos específicos que poderão advir destas
novas máquinas de funcionamento espectacular da política. O primeiro diz
respeito às grandes verbas envolvidas, que favorecem os candidatos ou os

66
O espectáculo da política

partidos mais ricos, geralmente conservadores. Comparado ao clã Kennedy,


por ocasião das primárias democratas de 1960, o próprio Humphrey (apud
ibid. 327) apresentava-se como “o merceeiro da esquina lutando contra um
supermercado”. Comentando as eleições senatoriais de 1970 nos EUA, Ralph
Nader (apud ibid. 328) observou: “Dos quinze candidatos principais dos
sete Estados mais importantes, onze eram bilionários. Os quatro que não
o eram foram derrotados”. É um perigo real contra o qual podem, no en-
tanto, ser tomados três tipos de medidas: a publicidade das despesas
eleitorais, a sua limitação e o seu financiamento pelo Estado. Mas os gastos
continuam depois das campanhas, e os que foram eleitos utilizam muitas
vezes na sua propaganda elevadíssimos recursos do Estado. Segundo um
artigo do New York Times retomado pela Visão de 29-5-2003 (“A presidência
como teatro”), “para o discurso televisionado de Bush no aniversário do
11 de Setembro, a Casa Branca alugou três plataformas de iluminação do
tipo utilizado para iluminar estádios e concertos de rock, fê-las atravessar
o porto de Nova Iorque, ancorou-as em redor da Estátua da Liberdade e
depois apontou-as para cima de modo a iluminar os 90 metros do símbolo
da liberdade da América.” Para um discurso pronunciado em 2002 na
Roménia, a administração Bush alugou projectores na Grã-Bretanha, fê-los
atravessar o canal da Mancha e levou-os de camião para Bucareste.
Um segundo perigo tem a ver com a diminuição da racionalidade na
vida política: como veremos no quarto capítulo, há uma erosão do que ao
longo dos séculos se tinha alcançado como cidadania e espaço público, a
partir do momento em que tudo começa a ser discutido em termos de per-
sonalidade e intimidade. Se na imprensa escrita sobra algum espaço e
tempo para expandir uma argumentação racional (embora quase sempre
também com elementos emocionais), já a rádio e a televisão vivem de dis-
cursos mais curtos, afectivos e personalizados, por vezes roçando mesmo,
nos seus famosos sound-bytes, o discurso da publicidade.
É certo que os eleitores mais politizados são menos sensíveis à televisão,
cujo efeito permanece marginal. A questão é que, muitas vezes, as eleições
ganham-se ou perdem-se junto dos eleitores menos politizados, dos inde-
cisos (em Portugal, são sobretudo as mulheres). E são esses, justamente, os
mais influenciáveis. Ou seja, os mais interessados na política, que mais

67
D rama e C omunicação

seguem as notícias e os debates, já fizeram a sua escolha. Mas os menos


interessados têm convicções menos fortes e a persuasão vai tentar motivá‑los,
sobretudo pela televisão, geralmente com mais forma do que conteúdo,
com mensagens repetidas, lúdicas e suficientemente ambíguas para que os
eleitores possam projectar nelas diversos anseios. Segundo o jornal Expresso
(5-11-1988), “até aos anos 50, os factores decisivos na escolha eleitoral dos
americanos eram, por ordem decrescente: o partido, a situação social (gru-
po étnico, religioso, regional, profissional) os candidatos eles próprios e os
temas concretos. Em 1970 (…de então para cá a tendência ter-se-á reforça-
do), a ordem passou a ser: os candidatos, os temas (mais especificamente,
os valores defendidos), o partido e a situação social.”

[Vivemos num] tempo em que os políticos fazem o que for necessário


para agradar aos media. A submissão aos media, e em particular às televisões,
manifesta-se sob todas as formas. Adiam-se ou antecipam-se reuniões
partidárias, alteram-se encontros, atrasam-se comícios, modifica-se a agenda
do primeiro-ministro – tudo para que os eventos coincidam com os horários
dos telejornais e permitam directos televisivos. Há líderes que chegam a
repetir duas e três vezes uma mesma passagem de um discurso, perante
plateias atónitas, para que aquela passagem seja transmitida em directo pelas
diferentes estações de televisão. (…) [Isto] faz com que os políticos vão
deixando de dizer o que deveriam dizer para dizerem o que convém em
função de quem os vê através dos media. (…) A partir do momento em que
as câmaras começam a filmar, tudo se altera, os protagonistas tornam-se
actores, passam a representar um papel especialmente encenado para as
televisões. Dito de outro modo: os próprios fragmentos da realidade que as
televisões transmitem já não são “partículas do real” mas sim meras
“encenações”. ( José António Saraiva, Expresso, 24-11-1998)

Anote-se como o então director do Expresso parece acreditar que, antes


deste tempo, e em particular das televisões, os protagonistas não eram
actores e a política não era encenada. Espero que os exemplos dados, des-
de as sociedades ditas primitivas, infirmem essa perspectiva. Mas fica o
resto da análise, que alerta para um outro perigo: o de passarem a vencer

68
O espectáculo da política

os partidos e os líderes destituídos de ideias e convicções, dispostos a


moldar o essencial do seu programa para o adaptar às preferências dos
eleitores e que, depois de eleitos, fazem sobretudo o que os media querem.
Isso acontece mais facilmente com aqueles políticos que não se afirmaram
ao longo de uma carreira, mas foram muito rapidamente descobertos e
lançados por especialistas de marketing.

Foi um professional campaigner, Roy Day, quem descobriu Nixon. Em


1946, Roy Day, então presidente do comité central republicano de Los Angeles,
formou o “comité dos cem” para encontrar um candidato ao Congresso capaz
de enfrentar Gerald Voorhis, o democrata que estava a terminar o seu mandato.
Esse comité lançou um apelo, publicado na primeira página de 26 jornais,
solicitando postulantes. Nixon respondeu a esse apelo e compareceu perante
o comité, que o escolheu. (Roger-Gérard Schwartzenberg 235)

É claro que Nixon depois continuou a ser constantemente trabalhado


por outros especialistas de marketing (que por vezes, na eleição seguinte,
passam para o candidato rival), mas logo a sua ascensão representou a
vitória dos profissionais de campanhas. E a sua queda representou a vitória
do jornalismo escrito e das instituições democráticas.

69
(Página deixada propositadamente em branco)
3 . S U S P EI TA S S O B RE O E S P EC TÁC U LO

1. Cumprindo o anunciado no primeiro capítulo, é tempo de passar àque-


la linhagem que não está de acordo com a importância da mediação pelo
espectáculo. Sumarizemos os principais argumentos – para no fim podermos
ensaiar uma resposta possível, com o auxílio do pensamento que existe no
próprio drama.
Ainda nos dias de hoje está presente na linguagem de todos os dias a
conotação pejorativa de espectáculo: quando dizemos “não faças cenas”, “ele
fez todo um teatro”, “que fiteiro”, “pantomineiro” ou “estavas a representar”,
“tira a máscara”, “és tão melodramático”, não estamos decerto a sugerir qua-
lidades (apenas a expressão, mais recente, “é, ou és, um espectáculo”
aparece como, mais que positiva, majorativa). É impressionante a recorrência
de argumentações contra o espectáculo: percorrê-las em pormenor necessita-
ria de muito tempo e espaço; um autor que a isso se dedicou, Jonas Barish
na obra The Antitheatrical Prejudice, que já descobrimos depois de construí­
do o nosso próprio texto, precisou de 499 páginas, só para a tradição
ocidental. Lembrando que na Índia, até tempos recentes, os actores pertenciam
às castas desprezadas e eram despojados de muitos direitos sociais; e na China,
até à revolução comunista, as actrizes eram por regra recrutadas entre as
prostitutas e como tal mantidas e desprezadas.
Mas quando hoje se fala do mundo como teatro, é já algo de positivo para
aqueles muitos teorizadores que repensaram e reformularam algumas das
preocupações subjacentes às suspeitas e ataques contra o teatro. Mais uma
razão para nos debruçarmos, ainda que sinteticamente, sobre como e porquê
tanto se tem argumentado (e ainda se argumenta) contra o espectáculo. Para
guiar esta rápida viagem, adiantemos desde já que nela encontraremos quatro
D rama e C omunicação

grandes linhas de suspeição: os perigos da imitação e da ilusão; os estragos


das emoções e paixões, questão estrutural que desde o início da era cristã
pode estar ligada à questão do erotismo, carnalidade e depravação, que a
reunião física de actores e espectadores propiciaria e que os alegados maus
costumes dos primeiros apenas viriam agravar; e a exteriorização e desdo-
bramento que são inerentes à representação.
Comecemos pela Grécia antiga, já que, na distância entre Platão e
Aristóteles, poderemos ver a primeira formulação profunda deste diferendo.
Em Platão, encontramos a dicotomia entre o orador sagrado da verdade
(o Fedro) e o sofista, prevaricador da palavra e da verdade, que interessei-
ramente inflama as opiniões e as paixões (o Gorgias). A hostilidade de
Platão contra a mimesis como espelho que armadilha a alma no mundo
sensível e sensual levou-o mesmo à célebre proposta de expulsar os poetas
da cidade. Por se tratar de uma questão muito complexa em Platão, e ao
mesmo tempo seminal para todo o pensamento ocidental e para as questões
do espectáculo, vale a pena determo-nos um pouco na sua proposta.
Convém lembrar que a “República” concebida por Platão não existe
concretamente: essa “cidade” é a ideia reguladora que nos permite viver no
meio das nossas imperfeições. O seu governo cabe à filosofia e esta não
exclui a poesia: como já argumentou Stanley Rosen (apud Pinto 345), se
tomarmos a poiesis no sentido amplo de “produção”, A República, como todos
os diálogos platónicos, é ela própria um poema, aliás escrito sob a forma de
diálogo. Diz-se que Platão escreveu tragédias quando ainda era jovem (Puchner
522) e, segundo Diógenes Laertius (apud Barish 5), Platão teria mesmo co-
meçado por aprender apaixonadamente a arte dramática, até disso ser
“curado” pelos ensinamentos de Sócrates. Mas ao escolher, dentro das várias
formas de escrita filosófica existente, a dos diálogos entre diferentes persona-
gens, Platão dedicou-se não apenas a rejeitar mas a competir com o teatro.
Quando, por exemplo, escreve (449 a): “Polemarco (que estava sentado um
pouco mais longe do que Adimanto) estendeu a mão, agarrou-lhe no manto,
na parte de cima, junto ao ombro, puxou-o para si e, esticando-se para a
frente, inclinou-se para lhe dizer umas palavras”, temos personagens, movi-
mentos, diálogos. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, foi o primeiro a

72
S uspeitas sobre o espectáculo

descrever os diálogos de Platão como uma combinação de tragédia e comédia,


mesmo como a criação de um novo género sintético, o romance. Mikhail
Bakthin retomou este argumento (sem o atribuir a Nietzsche) e, mais recen-
temente, Martin Puchner desenvolveu-o.

O teatro de interacção e diálogo que emerge dos diálogos dramáticos


variados e ricos de Platão segue um novo conjunto de convenções genéricas:
um número limitado de personagens masculinos envolvidos em tipos específicos
de interacção social, situados ou no campo ou na cidade de Atenas, o mais
proeminente dos quais é o simpósio. O que Platão apresenta é um drama
social das classes altas, um teatro de costumes tanto como um teatro de
ideias, um novo drama que revê a comédia e a tragédia. (Martin Puchner
522-3)

Esse drama não se destina é a ser representado, dada a aversão de Platão


pelo aparelho teatral: actores esbracejando e exibindo-se para uma massa
reunida mais para ver do que para pensar. Assim, diz Puchner, Platão inven-
ta uma nova forma de teatralidade, à qual podemos chamar o primeiro closet
drama – expressão usada para o drama que é escrito para ser lido e não
representado, seja na Antiguidade seja sobretudo a partir do século XVII.

Concebido pelo inimigo declarado do teatro, o closet drama é uma forma


especificamente concebida para manter o teatro ao largo, mas também, e de
modo mais importante, para tomar o seu lugar. Longe de abandonar de todo
a teatralidade, Platão desloca a experiência de assistir ao teatro para o acto
de ler um closet drama, que se torna o novo forum para a actividade de fi-
losofar. (…) Na verdade, o closet drama continuará a ser o género de eleição
para filósofos com suspeitas acerca do teatro e, reciprocamente, para drama-
turgos com aspirações filosóficas, desde Séneca passando por John Milton
até Percy Shelley. O closet drama satisfaz-lhes o desejo de nada terem a ver
com o teatro real, substituindo-o por um teatro textualmente processado,
livre da presença de actores e da sua mimese aparentemente não mediada.
O teatro do filosófico closet drama baseia-se no literário como um baluarte
contra o espectáculo. (Martin Puchner 523)

73
D rama e C omunicação

Ciente dos limites do discurso demonstrativo, Platão reconheceu o carácter


indispensável da poesia e ainda a necessidade de recorrer à poesia para per-
suadir: mas sempre considerando que apenas o filósofo tem os propósitos e
os instrumentos para garantir que o uso da poesia implica uma carga ontoló-
gica e ética, que procura a natureza das coisas e por isso é útil. Equipado
com um discernimento que nada tem a ver com critérios avulsos, o filósofo-rei
pode recorrer conscientemente à “nobre mentira” e à capacidade persuasiva
que ela tem, para organizar a cidade. A “mentira em palavras” é o recurso à
ficção, à imagem, e apenas se visar confundir os espíritos será considerada
fraudulenta, sem nobreza: como é o caso, para Platão, de toda a poesia de
carácter mimético, que deve ser recusada em absoluto. Tal como o médico
pode achar justificado mentir ao doente, ou o chefe da cidade ao inimigo, há
outros casos em que a dita “imitação em palavras” tem uma função positiva,
ou mesmo salvífica; a ponto de Platão a denominar de pharmakon (remédio,
antídoto, meio de cura).

O imitador, no sentido mais elevado do termo, é o que conhece a reali-


dade em si mesma. O que habilita o filósofo a ser rei é a mesma prerrogativa
que o habilita a dizer “mentiras com nobreza”, entenda-se ficções benéficas:
é a posse do tal pharmakon que consiste em conhecer os originais e desse
modo não se perder no mundo das cópias. O que conta é ter “a pedra de
toque”, o “contraveneno” em relação às falsificações: a esse saber só tem
acesso o filósofo, pelos seus dotes naturais, pela educação ajustada, pela
conversão pessoal que o torna esclarecido quanto ao que é principal, o seu
interesse próprio, a utilidade, não no sentido vulgar da utilidade aparente
mas no de uma utilidade baseada na natureza das coisas. (Maria José Vaz
Pinto 348‑349)

“Se algum dos que não é suposto mentirem for apanhado a fazê-lo, deve-
rá ser severamente punido: põe em risco, de modo subversivo a segurança
da cidade, como o tripulante incauto poderá provocar o naufrágio do navio.”
É por isso que Platão se opõe a todos os eventuais concorrentes do filóso-
fo: não apenas aos poetas, mas também a retóricos, a sofistas, a todos os
relativistas e subjectivistas, a todos os que saturam de mimese a polis des-

74
S uspeitas sobre o espectáculo

crita na República e que podem fazer os homens perder-se entre tantas


imitações; no fundo, a todos os rivais do filósofo-rei, aos que podem co-
mover e mover a opinião pública na agora, nos tribunais, nas assembleias.
O que Platão procura, pois, numa operação que reaparecerá em deter-
minados momentos ao longo da história, é expulsar da poesia tudo o que
não tenha a ver com os critérios filosóficos. Admite na cidade os hinos aos
deuses, os encómios aos varões honestos e aos valores morais; a razão
platónica sabe o que tem a ganhar na complementaridade com a imagina-
ção, a imagem e a emoção, desde que reconvertidos e submetidos à
vocação filosófica. Mas propõe a clara delimitação e expulsão de toda a
restante poesia, de carácter mimético, para a qual utiliza a noção de pseu-
dos, mal absoluto, ignorância instalada na alma. Entrar no jogo de pseudos
é perder o rumo da verdade, e, decerto pela força que a razão conhece e
teme na sua rival, é, diz Platão, introduzir “costumes capazes de derrubar
e deitar a perder uma cidade, tal como se fosse um navio.”
Platão teme a veneração que os gregos manifestam pela poesia, pois
consideram Homero, por exemplo, possuído por uma espécie de sabedoria
nacional e universal e o maior meio da sua transmissão (cf. Barish 8). E pa-
rece lamentar ou temer a própria evolução da arte do seu tempo, quer no
domínio da pintura quer no da escultura: ter-se-ia registado uma progressiva
atenção ao ponto de vista do espectador e à necessidade de incluir na repre-
sentação as distorções convenientes aos desejados efeitos ópticos. Desta
maneira, escreve ainda Vaz Pinto (348), “releva-se uma mimética de tipo so-
fístico, visando produzir efeitos fictícios, ajustados às sensibilidades de que
cada sujeito é medida, oposta a uma mimética de tipo filosófico que se su-
bordina à busca de homoiôsis ou da semelhança com o modelo, tão correcta
quanto possível.”
Se Platão já pensa assim em relação à pintura e escultura, o que pensa
sobre o teatro? É algo que começamos a compreender claramente ao escu-
tarmos as objecções que levanta à imitação, mesmo que apenas parcial,
feita por um autor épico que, por vezes, dá a palavra às personagens.
A figura do imitador “não se adapta ao nosso governo, porquanto não
existe entre nós homem duplo nem múltiplo, uma vez que cada um exe-
cuta uma só tarefa.”

75
D rama e C omunicação

Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à


sua arte, de tomar todas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se
exibir juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante dele, como
se de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na
nossa cidade não há homens dessa espécie, nem sequer é lícito que existam,
e mandá-lo-íamos embora para outra cidade, depois de lhe termos derramado
mirra sobre a cabeça e de o termos coroado de grinaldas. Mas, para nós,
ficaríamos com um poeta e um narrador de histórias mais austero e menos
aprazível, tendo em conta a sua utilidade, a fim de que ele imite para nós a
fala do homem de bem e se exprima segundo aqueles modelos que de início
regulámos, quando tentávamos educar os militares. (Platão 398 a, b)

Segundo a visão platónica, “quanto maior for a mediocridade do poeta,


mais imitará tudo e não considerará coisa alguma indigna de si, a ponto
de tentar imitar tudo com grande aplicação e perante numeroso auditório”,
com vozes e gestos e com pouca narração. O que Platão recomenda é uma
narração que resuma na terceira pessoa os acontecimentos, sem precisar
de lhes dar voz: pois então teria de imitar as vozes e os gestos, e a perso-
nificação, o fingir que se é outra pessoa (ou animal ou ser) é um dos
grandes ódios em que assenta toda a República de Platão. Já o grande le-
gislador Sólon tinha chamado mentiroso a Téspis, o primeiro director de
coro e actor grego, porque fingia ser outra pessoa. Ou seja, na cidade Platão
quer que o poeta tenha uma atitude tão moderada e recta – e masculina –
como o militar. Imitar, só se for o homem de bem.

Os nossos guardiões, isentos de todos os outros ofícios, devem ser os


artífices muito escrupulosos da liberdade do Estado, e de nada mais se devem
ocupar que não diga respeito a isso, não hão-de fazer qualquer coisa. Se
imitarem, que imitem o que lhes convém desde a infância: coragem, sensatez,
pureza, liberdade e todas as qualidades dessa espécie. Mas a baixeza, não
devem praticá-la nem serem capazes de a imitar, nem nenhum dos outros
vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade. Ou
não te apercebeste de que as imitações, se se perseverar nelas desde a in-
fância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a

76
S uspeitas sobre o espectáculo

inteligência? (…) Logo, não ordenaremos a um daqueles de quem queremos


ocupar-nos e que é preciso que se tornem homens superiores que, sendo
homens, imitem uma mulher, nova ou velha, a injuriar o marido, ou a criticar
os deuses, ou a gabar-se, por se supor feliz, ou dominada pela desgraça,
pelo desgosto e pelos gemidos; muito menos quando está doente, ou apai-
xonada, ou com as dores da maternidade. (…) Nem que imitem escravas e
escravos, procedendo como tais. (…) nem homens perversos e cobardes (…);
entendo ainda que não devem habituar-se a assemelhar-se aos loucos em
palavras nem em actos. Pois devem conhecer-se os loucos e os maus, homens
ou mulheres, mas não fazer nem imitar nada que seja deles. (…) Deverão
eles imitar os ferreiros ou quaisquer outros artífices, os remadores das trir-
remes ou os seus capitães, ou qualquer outra coisa referente a estas profissões?
– E como poderia ser isso se nem sequer lhes é lícito aplicar-se a qualquer
destes ofícios?
­– E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros, o murmúrio dos rios, o
bramir do mar, os trovões, e todos os ruídos dessa espécie – acaso deverão
imitá-los?
– Mas é que lhes foi proibido estarem loucos ou imitar a loucura. (…)
– O homem que julgo moderado, quando, na sua narrativa, chegar à
ocasião de contar um dito ou um feito de uma pessoa de bem, quererá ex-
primir-se como se fosse o próprio, e não se se envergonhará dessa imitação,
sobretudo ao reproduzir actos de firmeza e bom senso do homem de bem;
querê-lo-á em menos coisas e em menor grau, quando essa pessoa tiver
tergiversado, devido à doença, ou à paixão, ou mesmo à embriaguez ou
qualquer outro acidente. Quando, porém, se tratar de algum exemplo indi­gno
dele, não quererá copiá-lo afanosamente quem lhe é inferior, a não ser ao
de leve, quando ele tiver praticado algum acto honesto; e, mesmo assim,
sentir-se-á envergonhado, ao mesmo tempo por não ter prática de imitar
seres dessa espécie e por se aborrecer de se modelar e de se formar sobre
um tipo de gente que lhe é inferior, desprezando-o no seu espírito, a não
ser como entretenimento. (Platão 395 c, d e; 396 a, b, d, e)

Se Platão assim discorre sobre o “género misto” da epopeia, apenas


porque o narrador recorre por vezes à imitação das vozes e gestos das

77
D rama e C omunicação

personagens, entendemos a sua aversão total ao teatro, em que esse recur-


so é sistemático e estrutural. Creio que não tem sido suficientemente
sublinhado que, justamente ao conhecer a força que a imagem, a imaginação
e a emoção transmitem às ideias, Platão recusa especialmente o teatro, sobre-
tudo por mais três razões. O que mais caracteriza e condena o pseudos é
fazer passar as ficções por realidade (o que pode equivaler ou não a des-
conhecer-se a si mesmo como ficção). E é como caso extremo desse logro
que surge o ataque à imitação dramática, que leva alguém a protagonizar
como seus os conflitos e paixões alheios e a personificar outras pessoas e
seres, como acabamos de ver. Por outro lado, por ser um lugar em que o
discurso se descentra do orador e da sua busca da verdade para passar a
viver em função da preocupação em agradar ao espectador. Por outro lado
ainda, como lugar privilegiado dessa aliança com a imaginação e as emoções,
em que, mesmo momentaneamente, se abranda a vigilância ontológica e se
abrem emocionantes brechas por onde a razão se pode perder. (Platão não
valoriza as emoções, excepto a coragem destemida que permite aos soldados
defender o Estado, e por isso é necessária à sobrevivência da comunidade.)

Das duas propriedades primárias dos nossos espíritos, uma, a faculdade


de processar dados sensoriais, não é [para Platão] de confiança, é facilmente
enganada pelas aparências e sujeita a enganos. (...) A outra, o ‘princípio
calculador e racional’, lida com números e quantidades exactas. Classifica e
corrige as impressões desordenadas dos sentidos, certificando-se da real
verdade das coisas. Os artistas, diz Sócrates, devem fidelidade ao princípio
inferior, que trabalha com fantasias e opiniões. Pintam os homens divididos
entre eles, dilacerados entre paixão e razão, e ao fazê-lo, em vez de nos
ajudarem a dominar as nossas paixões, inflamam-nas. (…) Os artistas convidam­
‑nos a simpatizar com homens atormentados por emoções a que devíamos
ter vergonha de nos entregar nas nossas próprias vidas. ( Jonas Barish 9-10)

Tal resulta claro em várias passagens d’A República.

O poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo,


lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o

78
S uspeitas sobre o espectáculo

que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora
que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância
da verdade. (…)
Contudo não é essa a maior acusação que fazemos à poesia: mas o dano
que ela pode causar até às pessoas honestas, com excepção de um escassíssimo
número, isso é que é o grande perigo. (…) Ouve e repara. Os melhores de
entre nós, quando escutam Homero ou qualquer poeta trágico a imitar um
herói que está aflito e se espraia numa extensa tirada cheia de gemidos, ou
os que cantam e batem no peito, sabem que gostamos disso, e que nos
entregamos a eles, e os seguimos, sofrendo com eles, e com toda a seriedade
elogiamos o poeta, como sendo bom, por nos ter provocado até ao máximo
essas disposições. (…)
Mas quando sobrevém a qualquer um de nós um luto pessoal, reparaste
que nos gabamos do contrário, se formos capazes de nos mantermos tranquilos
e de sermos fortes, entendendo que esta atitude é característica de um homem,
ao passo que aquela, que há pouco louvámos, o é de uma mulher? (…)
Se pensares que a parte da alma que há pouco contínhamos pela força,
nos desgostos pessoais, que tem sede de lágrimas e de gemidos em abundância
até se saciar, porque a sua natureza é tal que a leva a ter esses desejos, é,
nessas alturas, a parte a que os poetas dão satisfação e regozijo. Ao passo
que a parte de nós que é a melhor por natureza, por não estar suficientemente
educada pela razão e pelo hábito, abranda a vigilância dessa parte às
lamentações, a pretexto de que está a contemplar males alheios. (Platão 605
b, c, d, e, 606 a)

Encontrámos já, nesta matriz platónica, muitos dos elementos que recor-
rerão até hoje. A preocupação que subjaz é o receio de abrir fissuras na
consciência totalmente adequada a si mesma, identificada com a Razão,
receio tanto maior quanto se considera que, mesmo dentro de cada um,
existem duas almas, e uma delas é irracional. Ora, para Platão, “por onde
a razão, como uma brisa, nos levar, é por aí que devemos ir”. Toda a sua
obra é uma persistente arquitectura da supremacia da Razão. Ele teme os
nossos raciocínios se mergulhados no mundo sensível, meras sombras da
Razão com maiúscula. Teme que essa alma racional fraqueje e chore: “se o

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D rama e C omunicação

poeta nos espreme lágrimas com acções fingidas, está a amolecer-nos de


modo a que mais prontamente choraremos e nos lamentaremos nas nossas
vidas quotidianas.” (Barish 10). Este argumento sobre o amolecimento ou
suposta efeminização irá reaparecer, como adiante veremos.

2. Apesar deste cerrado ataque do mestre, na antiguidade grega as re-


presentações teatrais, inseridas no quadro das festas religiosas, viviam
dignificadas: os actores eram reconhecidos pela cidade, podiam usar a co-
roa, prémio de quem triunfava, por vezes iam até à suprema glória de, em
muitos festivais, oferecerem a sua própria máscara ao Deus que se honrava;
numa época um pouco mais tardia, recebiam além disso apreciáveis quan-
tias como remuneração; desde Sólon, na Grécia Arcaica, até à Grécia Clássica,
os actores, sobretudo os de tragédia, eram mesmo mantidos pelo Estado
ou pelos cidadãos mais ricos, obrigados a isso por uma espécie de impos-
to; e quando, a partir do século IV a. C., as peças começaram a circular
por diferentes territórios, a alguns dos actores mais reputados foram atri-
buídas funções de diplomacia. Se formos ler Aristóteles (como melhor
veremos no oitavo capítulo), encontramos até, muito ao contrário de Platão,
a reabilitação da mimese, que pode ser uma armadilha, mas também uma
psicagogia da santidade moral e da sabedoria. Aristóteles valorizou a arte,
que na sua relação mimética com a realidade seria uma pedagógica porta-
dora de verdade; teorizou, nomeadamente, o espectáculo, em que a palavra
está associada ao gesto, à música, ao canto e à dança; e em vez de enten-
der as paixões como um movimento estritamente irracional, viu e afirmou
repetidamente a existência de uma estrutura cognitiva a acompanhar o
surgimento das emoções, que por isso podem até levar a acções virtuosas.
Mas, como Michel Foucault (1971) bem mostrou, o triunfo sobre os so-
fistas veio depois a instituir um valor de verdade autónomo, independente
do acto ou do contexto ou do interesse de a dizer. E o certo é que a in-
junção platónica de expulsar o poeta, bem como o seu especial receio
relativamente à mimese dramática, começaram a passar à prática, pelo me-
nos, na Roma Antiga. É certo que Roma sustentava o povo não apenas de
pão mas também de circo; e ao mesmo tempo foi mestra das arquitecturas
teatrais em variadas cidades do império, desde anfiteatros ao imponente

80
coliseu de Roma (inaugurado em 86 d. C.), introduziu a novidade da cor-
tina de boca de cena (que já aparece referida em 56 a. C.). Vale a pena
descrever um pouco a diversidade dos espectáculos romanos (cf. Vasques,
2003 e Carvalho), para melhor compreender a rejeição que provocaram.
Representavam-se tragédias e comédias, mas também dois outros géneros
novos. Um foi a chamada comédia atelana, porque, embora próxima de
certos divertimentos tradicionais latinos com fantasias e máscaras alegres
(as Saturas), foram actores vindos da cidade de Atela que a trouxeram para
Roma, de onde se difundiu: em vez de se basear num texto, desenvolvia
situações improvisadas com base em intrigas preordenadas e em quatro
figuras tipo fortemente caracterizados pelas máscaras e pelo comportamen-
to, sendo por isso considerada como a antecessora da Commedia dell’Arte.
O outro foi a pantomima, inspirada ou na Grécia ou na farsa popular rús-
tica, em que os actores já não usavam máscara nem, inicialmente, diziam

81
D rama e C omunicação

texto (embora mais tarde houvesse alguma elaboração literária), assentando


por isso no trabalho corporal, no gesto e na dança; segundo o testemunho
dos poetas Ovídio e Marcial, o mimo explorava o gosto popular, parodian-
do os assuntos da dramaturgia e da mitologia greco-romana mas também
os do quotidiano. Houve no entanto alguns esforços, por exemplo dos
imperadores Augusto (influenciado por Horácio) e Domiciano, no início da
era cristã, para restaurar o prestígio das tragédias herdadas da Grécia.
Ora, quem eram os actores dos teatros romanos? Eram sobretudo escra-
vos, muitos deles gregos, ou eram recrutados nas camadas inferiores da
sociedade; trabalhavam sob a alçada de um senhor, que recebia os seus
soldos, quando eram pagos. Ainda assim, dada a grande quantidade de
teatros construídos, os actores foram crescendo em número e em organi-
zação, chegando a haver um “proletariado de actores” (Carvalho). A baixa
condição social era acentuada pela admissão, nas agremiações de actores,
de mimos, bufões, gladiadores, atletas e acrobatas. As mulheres assumiam
já desde o Império os papéis femininos, talvez por influência dos mimos,
que sempre constituíram elencos mistos. A remuneração dependia do su-
cesso das representações e havia prémios, disputados em concursos. Ao fim
de algum tempo certos actores ganhavam a liberdade. Houve escolas de
atores dirigidas por retóricos, e até ao tempo de Cícero (106-43 a. C.) o
actor merecia certa consideração. Alguns actores favoritos tiveram posições
importantes na República e no Império. Cíteris, por exemplo, usufruiu, além
da popularidade, de luxuosos privilégios por ter sido amante de Marco
António (83-30 a. C.); Pílades, grego de nascimento, especializado na pan-
tomima de tragédia, escapou do desterro imposto por Augusto (63 a. C.-14
d. C.) graças à pressão popular que obrigou o imperador a levantar a sen-
tença; Batilo, grego nascido na Alexandria, foi ídolo das damas romanas
pela sua graça feminil; Glaffo foi citado por Ovídio como famoso pelas
cenas de luxúria, a ponto de adoptar uma espécie de “cinturão de castida-
de” para se defender do assédio das espectadoras; Teodora, a mima mais
famosa da antiguidade bizantina, nascida em Constantinopla, já no início
do século VI d. C., filha de um guardião do Hipódromo, tornou-se actriz,
cortesã e amante do imperador Justiniano, com quem veio a casar-se, tor-
nando-se depois imperatriz de Bizâncio.

82
S uspeitas sobre o espectáculo

Mas, a par das recompensas, havia as punições, que iam de multas a


castigos corporais ou mesmo prisão, quando os actores representavam mal
ou eram vaiados pelo público (risco que corriam tanto os libertos quanto
os escravos). Mais, muito mais do que isso: nenhum actor podia, por exem-
plo, celebrar qualquer contrato civil, a começar pelo casamento: o direito
civil romano considerava os actores “pessoas cobertas de infâmia”. Ou seja,
não os expulsavam, aplaudiam-nos mas ao mesmo tempo perseguiam-nos
e cortavam-lhes os direitos. Esta dualidade mostra bem que as duas linha-
gens se mantinham, mas predominava a desconfiança platónica (que Séneca,
por exemplo, seguiu). “Pela mesma razão porque têm em grande conta
[os actores], por essa mesma os abatem e degradam e manifestamente os
condenam à ignomínia negando-lhes direitos cívicos, escorraçando-os das
assembleias, do foro, do senado, da ordem equestre e das restantes honras,
ao mesmo tempo que os proíbem de usar certas insígnias. Quanta depra-
vação aí vai! Cativam-se daqueles que punem, desprezam aqueles a quem
aplaudem, erguem às nuvens a arte e censuram o artista.”
Quem assim escreve é Tertuliano (in Barata 59), um dos primeiros cris-
tãos: mas não visa tanto as autoridades romanas quanto os próprios
espectáculos – ou ambos, tanto mais que alguns desses espectáculos vivem
do morticínio de cristãos. Na Igreja cristã dos primeiros séculos e no seu
aceso combate contra as religiões politeístas, o teatro é condenado como
revivescência dos cultos pagãos arcaicos e os actores são denunciados como
ressurgimentos de um clero demoníaco, dedicados, sob múltiplas máscaras,
a seduzir e a perder as almas, como dizia Platão, mas agora com uma cla-
ra conotação de carnalidade e depravação, que passa a ser, como veremos,
uma terceira grande linha de ataque aos espectáculos (a primeira são as
questões da imitação e da ilusão, a segunda as emoções e paixões, e ambas
se encontram também em Tertuliano). Não achando nas Escrituras mais do
que a condenação das “assembleias dos ímpios”, declara-se que o teatro é
uma dessas assembleias: “parte-se do género para o caso individual”. Leia‑se
os múltiplos argumentos que Tertuliano alinhou com títulos como a “in-
compatibilidade entre a verdadeira religião e o teatro”, a “idolatria e
imoralidade do teatro”, as “emoções condenáveis provocadas pelos espec-
táculos”, “os sentimentos de ócio nascidos nos espectáculos”, a “inferioridade

83
D rama e C omunicação

social dos gladiadores e dos artistas do circo e do teatro” e a “acção dos


demónios nos espectáculos”.

Estes dois demónios, a bebedeira e a libidinagem, andam feitos um com


o outro e conchavados. Assim o teatro de Vénus é por igual o boleto de
Baco. Pois que os restantes jogos cénicos também se chamavam jogos dedi-
cados a Baco porque, além de lhe serem consagrados, por Baco foram
inventados, pois são os mesmos que os Gregos atribuíam a Dioniso. E é bem
visível que os padroeiros de todas as teatradas são Vénus e Baco. O que é
mais próprio e peculiar da cena, a malícia do gesto e dos requebros corpo-
rais, disso fazem oferenda a Baco e Vénus: à deusa pelo desbragamento
sexual e a Baco pelas copiosas libações. (...)
Esses exercícios são idólatras: dado que os seus actores se fazem passar
por Deuses. (…) São os demónios que, prevendo desde o início que o pra-
zer dos espectáculos seria um dos meios mais eficazes para introduzir a
idolatria, inspiraram eles próprios aos homens a arte das representações
teatrais. (…) Deus ordena-nos que reverenciemos e conservemos o santo
Espírito em nós, pela nossa tranquilidade, nossa doçura, nossa moderação,
nossa paciência; (…) Ele proíbe-nos de o inquietarmos com os nossos furo-
res, com as nossas excitações, com as nossas cóleras, com as nossas tristezas.
Ora, como pôr tudo isto de acordo com os espectáculos que comovem, que
agitam tão furiosamente o espírito? (…) E se há aí alguém que aprecie o
espectáculo modesta e rectamente por atender ao respeito que a si deve, ou
ainda por imposição da idade ou do temperamento, não se livra do abalo
espiritual e do fogo sob as cinzas duma paixão larvada. Ninguém fica de
ferro frio perante a solicitação do prazer, e o afecto desregrado provoca
alguma ruína. Os abalos que se sentem excitam o afecto. E se não há im-
pressão nenhuma é que também não há prazer e é réu da vaidade o que vai
para um lugar onde nada acontece.
Pois que vão ali a buscar aqueles que, ali, nem a si mesmos se perten-
cem? A não ser, e tão-só, aquilo que os põe fora de si: tristurarem-se do
infortúnio alheio, alegrarem-se com a ventura dos outros. Desejam e abor-
recem o que não é com eles; e deste modo o seu amor é inútil e o seu ódio
injusto. (…)

84
S uspeitas sobre o espectáculo

Acreditais igualmente que Deus pode acarinhar o actor, que tão cuidado-
samente rapa a barba desfigurando, por essa infidelidade, a face que lhe foi
dada? (…) Pensais ainda que o uso das máscaras seja aprovado por Deus?
Pergunto-vos. Se ele proíbe toda a espécie de simulacros, quanto mais não
proibirá que se desfigure a sua imagem? Não, não: o autor da verdade não
poderia aprovar nada de falso. Se ele condena todas as espécies de hipocri-
sia, perdoaria a um actor, que imita a sua voz, a sua idade, o seu sexo? Que
finge estar apaixonado, ou estar encolerizado? Que chora lágrimas falsas, e
emite falsos suspiros?
E não faltam aí documentos provados acerca daqueles que o demo arpoou
nos espectáculos públicos e se afastaram de Deus. Pois ninguém pode servir
a dois senhores. Que tem a ver a luz com as trevas? Que tem a vida a ver
com a morte? (Tertuliano, in Barata 55-59 e Borie et al 41-45)

Um século mais tarde, logo no primeiro concílio de Elvira (303 d. C.),


ficou instituído que os comediantes renunciassem à sua profissão antes de
serem admitidos na comunidade cristã. Ou seja, o direito canónico estendeu
à sociedade religiosa a já referida incapacidade civil dos actores em Roma,
excluindo-os por sua vez dos sacramentos e da sepultura cristã. No sécu-
lo IV , o católico Arius ainda propôs um teatro cristão para combater o
paganismo da cena romana: valeu-lhe logo como castigo a excomunhão.
Outros Padres da Igreja, como S. Clemente de Alexandria, S. Cipriano,
S. João Crisóstomo, retomarão idênticos argumentos. No século IV , as
Confissões de Santo Agostinho são um caso particular, porque tentam explicar
as razões da paixão que o santo admite ter tido pelo teatro: a moderação
já pedida por Platão é aqui associada à paz interior de que o espectáculo
das paixões afasta, porque, embora as emoções surjam de fonte pura, são
no teatro convertidas em corrupção – suja, doentia e inútil.

Eu tinha também, ao mesmo tempo, uma paixão violenta pelos espectáculos


do Teatro, que estavam cheios de imagens das minhas misérias, e das chamas
amorosas que alimentavam o fogo que me devorava. Mas qual é o motivo
que faz com que os homens aí acorram com tanto ardor, e que queriam
experimentar a tristeza olhando coisas funestas e trágicas que, apesar de

85
D rama e C omunicação

tudo, não quereriam sofrer? Porque os espectadores querem sentir a dor, e


essa dor é o seu prazer. Qual o motivo senão uma loucura miserável, pois
somos tanto mais comovidos por essas aventuras poéticas quando menos
curados daquelas paixões (…). Mas que compaixão se pode ter para com as
coisas fingidas e representadas num Teatro, uma vez que aí não se excita o
auditor para socorrer os fracos e os oprimidos, mas é este convidado apenas
a afligir-se com o seu infortúnio? Que ele fica tanto mais satisfeito com os
actores quanto mais eles o comoverem com pena e aflição. (…) Se (…) for
tocado com a dor, fica atento e chora, experimentando, ao mesmo tempo, o
prazer e as lágrimas. Mas dado que todos os homens naturalmente desejam
alegrar-se, como podem gostar dessas lágrimas e dessas dores? Não será que,
ainda que o homem não sinta prazer pela miséria, no entanto ele sinta prazer
a ser tocado pela misericórdia? E que, dado que não pode experimentar esse
movimento da alma sem experimentar a dor, aconteça que, por uma
consequência necessária, ele acarinhe e goste dessas dores?
Então, essas lágrimas procedem da fonte do amor natural que temos uns
pelos outros. Mas para onde vão as águas dessa fonte, para onde correm?
Elas vão fundir-se numa corrente de pez em ebulição de onde saem os ardores
violentos dessas negras e sujas voluptuosidades. E é nessas acções viciosas
que esse amor se converte, e se muda pelo seu próprio movimento, à medida
que se afasta e se distancia da pureza celeste do verdadeiro amor. (…)
Guarda-te, minha alma, da impureza de uma compaixão louca. Porque existe
outra, sábia e razoável, da qual não deixo agora de estar tocado. Mas então
tomava parte na alegria desses amantes do Teatro (…). Estava descansado
que a narrativa e a representação que se faziam diante de mim me arranhavam
um pouco a pele, por assim dizer, embora em seguida, como acontece aos
que se coçam com as unhas, essa satisfação passageira me causasse um
inchaço cheio de inflamação de onde saía sangue corrompido e lama. (Santo
Agostinho, in Borie et al 45-47)

No séc. XIII, mesmo se São Tomás, leitor de Aristóteles, admite ao teatro


uma certa legitimidade desde que ele busque um fim edificante, essa legi-
timidade parcial e de princípio não pode estender-se aos actores, afectados
ao mesmo tempo pela incapacidade jurídica no direito civil e pela exclusão

86
S uspeitas sobre o espectáculo

da vida sacramental. S. Tomás pode quando muito tranquilizar a consciên-


cia dos dramaturgos cristãos, mas não pode desculpar que eles recorram
aos actores e à assembleia teatral para interpretar as suas obras – a solução,
mais uma vez, seriam os closet dramas.

3. E no entanto, depois de os teatros romanos terem fechado aquando


das invasões bárbaras, sobrevivendo apenas pantomimas e acrobacias am-
bulantes, os espectáculos acabam por recrudescer durante a Idade Média
europeia e o Renascimento, em múltiplas manifestações, religiosas ou pagãs,
como os mistérios, as representações sacras, os inícios da commedia dell’arte
ou os mariazzi. Mais tarde, nas Academias do Renascimento, há mesmo uma
grande revivescência dos latinos e do seu teatro, estudado pelo humanismo
douto e divulgado pelos grupos de Commedia dell’arte. É também a época
do nosso Gil Vicente, de Lope de Vega, do incomparável (mas brevíssimo)
teatro isabelino, todos maioritariamente no extraordinário século XVI.

São as cortes, onde o peso da riqueza económica se faz sentir, que fo-
mentam a arte do espectáculo, protegendo os que nele trabalham, quer a
nível teórico, quer a nível prático. A Lisboa das descobertas assiste ao flo-
rescimento do teatro vicentino, à teorização de António Ferreira e Sá de
Miranda; Veneza vê Ruzante, polemiza pela pena de Bembo; Florença tem
nos Medicis os protectores de uma plêiade de grandes escritores; Siena,
Ferrara assistem ao nascimento das primeiras companhias e academias,
exemplos que muitos irão beber na origem, transplantando-os para os seus
respectivos países; a nível cénico, triunfa a cena à italiana.

Vão ser as sociedades monárquicas as que irão oferecer melhores condições


ao actor. Pode começar a falar-se de actores individualmente e, inclusive, de
“companhias” pagas para “fazer teatro”. Nalguns casos este teatro, feito por
actores, pré-existe aos textos teatrais concebidos para um palco. Ruzante na
Itália, protegido pelo Cardeal Cornaro; entre nós, Gil Vicente, escudado na
corte de D. João III, são dois exemplos. (…) Agora, o actor vive na cidade.
Começa a esbater-se o nomadismo que durante muito tempo caracterizou
certos grupos de comediantes; ao lado da corte, o actor exibe-se para o
público da cidade. O arlequim é agora servidor de dois amos que, no entanto,

87
D rama e C omunicação

lhe pagam desigualmente. Cada vez mais a sua arte caminha para a
comercialização, sujeita às leis da oferta e da procura. A Commedia dell’Arte
virá assinalar o primado do actor, de todas as suas virtualidades, o histrionismo,
perante uma sociedade que já compreendia o teatro como passatempo pago;
e porque passatempo, o mais apreciado não era o valor ideológico ou literário
do texto, mas sim os “acidentes” e a forma como os actores os resolvem.
( José Oliveira Barata 33-4)

Dario Fo (26-40) procurou (re)fazer a história das primeiras companhias


teatrais em Itália. “O teatro da Commedia, aquele que se reflectiu na história
do espectáculo de toda a Europa durante aproximadamente três séculos, foi
construído por um grupo de pessoas cultas, bem-preparadas e de gosto mo-
derno.” Muitas vezes, gozavam de um alto estatuto junto da corte e a
actuação das companhias era disputada entre os grandes senhores. Por exem-
plo, no século XVI, quando o rei de França assiste em Veneza à actua­ção de
uma famosa companhia de cómicos, os Gelosi, faz questão de os ter em Paris.
É uma época de grandes conflitos religiosos e de perseguição aos protestan-
tes franceses, os huguenotes: alguns deles raptam então os Gelosi em plena
viagem, exigindo em troca deles a libertação de todos os huguenotes presos
e uma grande quantia de dinheiro. “Depois de uma negociação de quinze
dias, todos os huguenotes prisioneiros são libertados, o dinheiro é pago e
os actores, finalmente, podem prosseguir até Paris. Um cronista da época
comenta: ‘Se o caso envolvesse negociar a vida do primeiro-ministro, de
quatro cônsules e de três marechais, Henrique III teria deixado tranquila-
mente que os matassem, preocupando-se somente em mandar celebrar uma
bela missa em honra das vítimas’”. Já no regresso dessa exibição em Paris, a
grande cómica dos Gelosi, grávida de oito meses, morre em Lyon. O funeral,
dizem as crónicas, parecia o de uma rainha: “atrás do féretro, num carro
coberto por uma montanha de flores, estavam príncipes, poetas e escritores
de toda a Europa. Convém lembrar que foi a única mulher da sua época a
ser aceite como membro em nada menos do que quatro academias.”
Por causa dessa relação privilegiada com os poderes civis, continua Dario
Fo (40), “na Commedia dell’Arte, os nobres, os cavaleiros e as damas nun-
ca usavam máscaras. Aqui se mostra claramente a dominação de uma

88
S uspeitas sobre o espectáculo

classe: só não eram ridicularizados os detentores do poder absoluto. (...)


A ironia só era permitida em relação às personagens e profissões odiosos
à burguesia capitalista nascente, que, naquele tempo, estava gerindo toda
a cultura, inclusive o teatro. É essa a classe que solicita aos cómicos o de-
senvolvimento de temas particulares e as variações sobre o próprio tema.”
Isto representava maior dependência do que geralmente se imagina para
estes primeiras companhias de grandes improvisadores. Além disso, “é ne-
cessário reconhecer que, embora algumas companhias independentes
gozassem de respeito e consideração, outras viviam e trabalhavam em com-
pleta submissão. Os seus actores eram considerados propriedade, inclusive
física, de príncipes e senhores, estando sujeitos aos seus caprichos.” De
novo nessa época, o poder emotivo que os actores geriam não impedia,
antes motivava, as tentativas de o controlar.
Assim, no fim do século XVI cresce a onda crítica em relação a estas
companhias: “a primeira vez que o nome de Arlecchino apareceu num pa-
pel impresso (no ano de 1585) foi para denunciá-lo como emérito garanhão.
(...) O autor do feroz libelo era, supostamente, um poetastro com ciúmes
do descarado sucesso e da simpatia que Arlecchino gozava não só junto ao
público comum, mas, sobretudo, junto aos homens de cultura da cidade, e
até mesmo junto ao rei e à rainha da França. (...) Seguindo essa onda de
‘morte aos indecentes!’, os cómicos tornaram-se vítimas de um jogo pesado;
alguns autores de ensaios sobre a comédia à italiana até fizeram o possível
e o impossível para malhá-los melhor. Eles apresentam os histriões da im-
provisação como uma congregação de eméritos vagabundos, desprovidos
de dignidade e ofício” (Fo 15-17).
A situação, nesta viragem do século XVI para o século XVII , piorou. Na
Inglaterra, a mudança deveu-se também a razões políticas: num curtíssimo
espaço de tempo desapareceu (mesmo fisicamente) o florescente e popular
teatro, durante guerras civis que, ao vencerem os que tinham apoiado os
florescentes espectáculos, combateram também esse seu poderoso aliado.
Em toda a Europa, a mudança deveu-se sobretudo a razões religiosas. A so­
ciedade saída do Renascimento sofre agora o embate com a Reforma da
Igreja, e é então que este diferendo de que vimos falando ganha um nome
célebre, no século XVII : “a querela dos espectáculos”.

89
D rama e C omunicação

4. Poderíamos desenhar um mapa da Europa do século XVII segundo os


lugares onde se faz um tipo de teatro, dois tipos ou nenhum. Em terras
calvinistas, o teatro, sob qualquer forma que seja, é proibido. No século
XVII, a Inglaterra puritana, a Holanda gomarista, a Genebra calvinista supri-
mem completamente o teatro e proíbem a profissão cómica. Na Alemanha
católica, encontramos um só tipo de teatro, praticado apenas nos colégios
dos jesuítas e de outras ordens ensinantes. A situação é muito diferente na
Europa do Sul, em Itália, em Espanha, em França, onde coexistem um tea­
tro de Colégio e um teatro profano, interpretado por actores “mercenários”
e não por estudantes, e mesmo sustentado pelas autoridades civis, que vêm
nele um divertimento louvável para os nobres como para o povo. Repare­
‑se como isto ocorre em pleno centro da geografia católica.

O teatro humanista, recordemo-lo, nasceu em Roma em 1460-1480 e não


tardou a ter como patrono o Colégio Sagrado. No século XVII, o papa Urbano
VIII Barberini faz construir um teatro nos jardins do seu palácio privado, o
Quirinal. A Itália dos séculos XVII e XVIII é a pátria europeia do teatro e da
ópera. Ora, é o país da Europa mais exclusivamente católico, juntamente com
a Espanha. (...) A Igreja romana italiana não teve problemas em fazer um
compromisso (...) com o impulso natural para ‘fazer teatro’ que rebentava
em todas as partes da Itália.
Toda uma diplomacia casuística conseguiu pouco a pouco conciliar a
reforma dos costumes, a legitimidade de um teatro ao serviço dessa reforma,
mesmo uma reabilitação dos actores que aplicassem a sua arte a um teatro
reformado. (…) Sem esse diálogo, não teria havido Século de Ouro espanhol,
nem ‘Barroco’ italiano, nem Corneille nem Molière. (Marc Fumaroli 34)

Havia toda uma argumentação casuística, de ascendência aristotélica e


ciceroniana, misturada com humanismo antropológico e sociológico,
argumentação sustentada por autoridades laicas mas também cristãs, no
sentido de encontrar soluções de mediação, teóricas e práticas, “a favor da
‘moralização’ da profissão cómica e de um aprofundamento filosófico e
espiritual da dramaturgia moderna” (ibid. 36)

90
S uspeitas sobre o espectáculo

É pois nos países católicos que a querela tem mais possibilidade de se


desenvolver, com dois partidos: de um lado, os praticantes do teatro, ge-
ralmente apoiados pelas autoridades civis, e do outro as autoridades
eclesiásticas, preocupadas com a reforma profunda dos costumes cristãos.
Vejamos os vários tipos de argumentos usados contra o espectáculo.

Em primeiro lugar, os argumentos de autoridade. (...) Todos os defensores


da tese rigorista citam os pais da Igreja, Tertúlio, Cipriano, Agostinho (…)
Debaixo deste arsenal de citações patrísticas (a que se juntam as de Séneca),
reconhece-se a vontade de retomar ab ovo o grande combate da Igreja dos
primeiros séculos contra essa forma do culto politeísta que era o teatro antigo,
[entretanto] revivificado nas Academias (...) A segunda série de argumentos
invocados pelos partidários da supressão do teatro tem a ver com os próprios
actores, os histriones. São, não apenas agentes do demónio e da sua
multiplicidade, mas prevaricadores da palavra, que vendem aos espectadores.
(...) Por definição, eles vivem em estado de prostituição; vê-los, e por maioria
de razão frequentá-los, é crime. As máscaras que eles usam ou as personagens
que eles mimam rebaixam-nos para uma espécie de animalidade contagiosa.
O terceiro grupo de argumentos é sem dúvida o mais determinante: desta
vez toca na essência da arte dramática e na natureza do prazer mimético,
que atrai actores e espectadores uns para os outros. Para os rigoristas, a
essência da mimesis dramática é demoníaca: o homem, imagem de Deus,
dissolve-se no espelho da cena em imagens de Satanás, identifica-se com
elas por um prazer intrinsecamente sexual e perverso, uma inclinação para
a queda e a corrupção. O tempo consagrado ao teatro é o oposto directo do
tempo consagrado à salvação. (...)
A suspeita que recai sobre o teatro dirige-se à paródia da incarnação do
Verbo que ali decorre, com fins mercenários por parte de histriões ímpios e
com o intuito de desviar os espectadores do bom caminho. Face aos
sacramentos, e entre outros ao sacramento da palavra em cátedra, que o
Concílio de Trento elevou ao nível de ofício maior do episcopado, a palavra
e a acção “cómicos” aparecem como rivais demoníacos: a palavra de verdade
e de salvação não podem coexistir na mesma cidade cristã com a palavra de
mentira e de perdição, a cátedra com as bancadas e a cena, o Cristo orador

91
D rama e C omunicação

com o Anticristo sofista. E no entanto, apesar destas posições rigoristas muito


generalizadamente pregadas e inspirando as instruções episcopais e sinodais,
o debate em terra católica permanecia em aberto. (Marc Fumaroli 32-33)

Em França, Itália e Espanha, o debate e o equilíbrio subtil e fértil entre


a sociedade saída do Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma só vão
ser postos em causa pelo movimento jansenista de Port Royal, primeiro em
França e depois na Europa católica. Ou seja, o rigorismo é agora, não ape-
nas protestante, mas também católico. “A violenta polémica de Nicole e de
Varet contra o teatro e desde logo contra Corneille apaga mais de um sé-
culo de negociações e de mediações” (Fumaroli 36). Molière bem pode pôr,
no título do Tartufo, O Impostor: condenam-no na mesma por pôr palavras
piedosas e sedutoras na boca dúplice do hipócrita e a peça fica proibida
durante cinco anos.

Qualquer moralização ou cristianização do teatro é um alibi que, tornando


o mal menos visível, aumenta o seu poder corruptor. Mesmo o dramaturgo,
que os jesuítas do século XVII preservam da maldição que recai sobre os seus
intérpretes, encontra-se englobado pelos jansenistas Nicole e Varet na obra
de morte espiritual que seria o teatro no seu conjunto. Corneille é o objecto
dos seus ataques mais virulentos justamente porque as suas tragédias cristãs
servem de pretexto à espécie de amancebamento sexual que a cena cria
necessariamente entre actores e espectadores.
Voltemos a Corneille, de quem uma das melhores comédias (imitada do
espanhol) se intitula O Mentiroso. O seu herói Dorante não é um actor pro-
fissional, é um estudante de província que, em Paris, pretende passar por
fidalgo da moda e inventa uma vida fictícia. É um ‘comediante da vida’, como
o Clitandro da Ilusão Cómica. Mente, mas a sua mentira não é odiosa. É uma
forma de se experimentar, no sentido de Montaigne, de projectar sobre os
outros uma persona que ainda não está em condições de assumir, mas que
assumirá plenamente mais tarde. Aqui, a mentira não se opõe irreversivel-
mente à verdade. Tal como a ilusão, no título de Corneille, não se opõe
irreversivelmente à realidade. Está-se justamente na ordem da imaginação,
da sua plasticidade, mas também da retórica, e do sentido agudo que esta

92
S uspeitas sobre o espectáculo

pode ter da fertilidade da linguagem, das suas figuras, das suas metáforas,
da sua ironia (dissimulatio). Há mentiras que prefiguram uma verdade, há
ilusões que são condutoras de realidades. Para os rigoristas, este universo
de mediações, em que o teatro está em casa e com ele a humanidade, é
evidentemente a abominação da desolação. (Marc Fumaroli 33,36-37)

Também em Portugal, são muitos os padres da Inquisição que, dos púl-


pitos ou através de escritos polémicos, condenam as comédias. Neste
século XVII , o padre Manuel Bernardes (apud Branco 50) clama assim:
“Os assuntos das comédias pela maior parte são impuros, cheios de lascivos
amores, de galanteios profanos (...) empenhos desatinados, quimeras, (...)
e tudo isto costuma parar em uma comunicação desonesta, em um incesto,
ou em um adultério, em que há muitos lances torpes, louvores lisonjeiros
da formosura, expressões afectadas de amor (…) e em suma, uma gentílica
idolatria, ajustada pontualmente às infames leis de Vénus e Cupido”. Ou
seja, lubricidade, afectação e heresia.
Podia esperar-se que o século XVIII , emancipando-se da Igreja e desen-
volvendo uma cultura científica e materialista, tivesse ultrapassado tais
desconfianças. Mas não. Nele cresceu o ataque, que já vimos vir de Roma,
ao poder dos actores, nomeadamente pela acentuação da pretensa amora-
lidade dos seus costumes, agora centrada sobretudo nas actrizes. Já existiam
muitas mulheres em palco, geralmente filhas e mães de actores (e no fim
do século XVII a reforma do teatro preconizada pelo abade Pure defendia
é que elas não estivessem sempre grávidas). Em relação à Commedia dell’Arte,
há documentos que mostram como pelo menos em 1560 havia mulheres a
desempenhar os papéis femininos – o que ainda não acontecia em Inglaterra,
onde por isso essas comediantes eram acusadas como “prostitutas”. Foi em
vão que, cerca de 1570, a Igreja italiana tentou banir as actrizes: no fim
desse século, elas eram a norma do palco italiano, muito embora acusadas
de serem cortesãs e corruptoras dos jovens. Mas no século XVIII já não era
apenas uma questão de número: as actrizes passaram de facto a ter maior
poder, a ser cada vez mais jovens, por vezes solteiras e independentes – e
na dança mostravam os seus corpos. Acompanhando e extrapolando estes
factos, foi no século XVIII que se fixou em França o mito da actriz/preda-

93
D rama e C omunicação

dora/prostituta e das arrivistas sem cultura que usariam o poder sexual e


a intriga para chegarem à aristocracia.

Os homens franceses no século XVIII percebiam as mulheres como


crescentemente poderosas e não gostavam nada disso. (...) Iluminados que
fossem, retinham a fantasia de que as mulheres são a encarnação da paixão
sexual e que os homens são as suas vítimas. O corpo feminino, diz Michel
Foucault [História da Sexualidade], era (…) considerado ser ‘completamente
saturado com sexualidade’, o que então era definido com um estado mórbido.
(...) Dado que todas as mulheres eram por natureza predadoras, quanto mais
o eram aquelas mulheres que, independentemente das suas acções em privado,
tornavam os seus corpos sexualmente saturados visíveis no palco a um público
pagante, exibindo o seu poder sobre os homens. (Virgínia Scott 24)

No século anterior, Boileau (apud Scott 25) argumentara com acutilância


que, “se as actrizes deviam ser censuradas pela excitação sexual dos espec-
tadores masculinos, então também devia deixar de ser permitido pintar
Virgens Marias e Madalenas que fossem agradáveis de contemplar, porque
podia acontecer que também elas despertassem concupiscência numa men-
te corrupta.” Mas agora o debate que poupava as igrejas, que de facto
provinha inicialmente das igrejas, centrava-se nas actrizes.
Muitos homens do século XVIII , como o jovem Willhem Meister, ficavam
fulminados pela visão dessas mulheres em palco. Restif (apud Scott 23-4),
impressor, amigo de Sade, também ele fulminado logo na primeira vez que
foi à Comédie Italienne, em 1770 escreve um tratado sobre a reforma do
teatro, em que propõe medidas como: a supressão dos actores profissionais;
os actores e actrizes devem ser escravos públicos. Escolhidos nos orfanatos
em que as crianças foram expostas na roda, sustentados pelo Estado, per-
tença do Estado, serão mantidos em instituições semelhantes a conventos
sob o governo de um padre e madre superiores; não terão direitos civis; a
prima donna, depois de cada representação, deve pôr de lado todos os
seus adornos e voltar a casa vestida com buréis e sapatos de madeira. Restif
argumenta que a degradação é o único antídoto para o veneno proferido
pela actriz, e ataca a Mlle Préville, um pilar da cena francesa há trinta anos,

94
S uspeitas sobre o espectáculo

como perigosa, mesmo contagiosa pela sua beleza, espectro emocional e


“criminelle facilité”. Esposa e mãe de quatro filhos, ela é descrita noutras
passagens como “um modelo de decência, de dignidade, de nobreza de
espírito e de inteligência”, mas Restif propõe uma explicação científica numa
“nota do editor”: “As actrizes, no calor da emoção, como amantes e outras
pessoas apaixonadas, emitem a partir dos olhos minúsculos projécteis que
insensivelmente despertam as mesmas emoções naqueles que as vêem e
ouvem.” 1 Mesmo um actor como Riccoboni (apud Scott 20) defendera em
1728, ao reformar-se, que “os sentimentos mais correctos no papel mudarão
de natureza ao passarem na boca dos actores, e muitas vezes tornar-se-ão
criminosos, quando forem animados pela execução teatral...”
Pouco tempo depois, em 1757, Diderot (in Borie et al 179-180) concede
que sempre houve e há actores “a quem confiaríeis sem temor o vosso
segredo e a vossa bolsa e com o qual acreditaríeis que a honra da vossa
mulher e a inocência da vossa filha estariam em muito mais segurança do
que com um grande senhor da corte, ou um respeitável ministro dos nossos
altares... (...) O elogio não é exagerado: o que me irrita é não ouvir citar
um maior número de actores que o tivessem merecido ou que o mereçam
(...), que um actor homem galante, uma actriz honesta sejam fenómenos
tão raros.” Diderot critica então o sistema de educação, deixando suben-
tendida a necessária reforma. “Se se vê tão poucos grandes actores é que
os pais não destinam os seus filhos ao teatro; é porque não são preparados
por uma educação começada na juventude”. São formados pela “deficiência
de educação, a miséria e a libertinagem. O teatro é um recurso, nunca uma
escolha. Nunca ninguém se torna actor pelo gosto da virtude, pelo desejo
de ser útil a uma sociedade e de servir o seu país ou a sua família, por
nenhum dos motivos honestos que poderiam encaminhar um espírito recto,

1 Curiosamente, quase nunca em França reflectem sobre o efeito que os homens, no palco
ou no público, poderiam ter sobre as mulheres espectadoras, como vimos acontecer com
Glaffo na antiga Roma; embora em Inglaterra, no fim do século XVI, o receio das representações
que já não se realizavam em casas particulares mas sim em recintos públicos, levasse certos
panfletos (como The School of Abuse, de 1579, por Stephen Gosson), a exortar a mulher a não
ir ao teatro, onde poderia ser objecto e até sujeito de contemplação e desejo. É Maria Helena
Serôdio (27-28) quem cita este panfleto, a partir dos estudos de Jean E. Howard.

95
D rama e C omunicação

um coração caloroso, uma alma sensível para uma profissão tão bela.” No
mesmo sentido, em 1773, Louis-Sébastien Mercier (ibid. 224-5) estende a
crítica à própria figura do dramaturgo: ele deveria ser “o cantor da vir-
tude, o grande flagelador do vício, o homem do universo”, mas, “em vez
de se mostrar legislador, com esse orgulho legítimo adequado ao seu esta-
tuto, obedeceu vaidosamente ao gosto frívolo e mesquinho dos aristocratas
do seu século; depois incensou as loucuras agradáveis e perigosas de alguns
dos seus compatriotas; (…) tanto atraindo paixões nocivas com o pretexto
de as pintar, esqueceu que espalhava o contágio do exemplo ao mesmo
tempo que louvava a fidelidade do seu pincel.”

5. Vamos reencontrar esta lógica rigorista nos Discursos de Rousseau e


na sua carta a D’Alembert, ou mesmo no seu Contrato Social2. Que Rousseau
(1712-1778) se situe na linhagem anti-espectáculo, eis o que dá que pensar
e mostra que este diferendo sobre os espectáculos não coincide com a
divisão entre iluminismo e romantismo, que ao longo dos séculos também
se foram acompanhando, digladiando e sobrepondo como rivais. Rousseau,
em tantos aspectos pioneiro a anunciar as virtualidades e limites da mo-
dernidade, não hesita em condenar os espectáculos com representação.
Rousseau descreve o teatro como “um antro obscuro” e propõe, em vez de
teatro, festas, em vez de salas fechadas, o ar livre, em vez de espectadores
passivos, a transformação de todos em participantes.

Não chega que o povo tenha pão e viva da sua condição. É preciso que
viva agradavelmente: a fim de que cumpra melhor os seus deveres, que se
atormente menos para deles sair, e que a ordem pública esteja melhor
estabelecida. (…) Quereis então tornar um povo activo e laborioso? Dai-lhe
festas, oferecei-lhe divertimentos que lhe façam amar o seu estado e o impeçam
de invejar outro mais doce. Alguns dias assim perdidos valorizarão mais todos
os outros. Presidi aos seus prazeres para os tornar honestos: é a verdadeira
maneira de animar os seus trabalhos. (…)

2Curiosamente, numa querela setecentista sobre a ópera, Rousseau, que também foi
compositor, defendeu a ópera italiana, mais emotiva, contra a francesa, mais espectacular.

96
S uspeitas sobre o espectáculo

Temos já várias dessas festas públicas; tenhamos mais ainda. (…) Mas não
adoptemos esses espectáculos exclusivos que tristemente encerram um
pequeno número de pessoas num antro obscuro; que as mantêm temerosas
e imóveis no silêncio e na inacção; que não oferecem aos olhos mais que
tabiques, pontas de ferro, soldados, imagens aflitivas da servidão e da
desigualdade. Não, povos felizes, estas não são as vossas festas! É ao ar livre,
é debaixo do céu que é preciso reunir-vos e entregar-vos ao doce sentimento
da vossa felicidade.
Que os vossos prazeres não sejam efeminados nem mercenários, que nada
do que cheire a constrangimento e interesse os envenene, que sejam livres
e generosos como vós, que o sol ilumine os vossos espectáculos inocentes;
vós próprios vos transformareis num espectáculo, o mais digno que ele pos-
sa alumiar.
Mas quais serão enfim os assuntos destes espectáculos? O que se mostrará
aí? Nada, se quiserem. (…) Plantai no meio de uma praça uma estaca coroada
de flores, reuni o povo em torno dela e tereis aí uma festa. Fazei melhor
ainda: dai os espectadores em espectáculo, tornai-os a eles próprios actores
(…). Não tenho necessidade de os enviar para os jogos dos gregos antigos:
existem outros mais modernos. (…) Temos revistas todos os anos; prémios
públicos, reis do arcabuz, do canhão, da navegação (…). E porque, seguindo
o modelos dos prémios militares, não fundaríamos outros prémios para a
ginástica, para a luta, a corrida, o disco, para diversos exercícios do corpo?
Porque não animaríamos os nossos barqueiros para competições sobre o
lago? ( Jean-Jacques Rousseau, in Borie et al 192-193)

Nessas festas, repare-se, não haveria representação, ninguém fingiria ser


quem não é. A questão do poder das mulheres não deixa também, como
vemos, de estar presente, embora de outra maneira: para Rousseau (também
neste aspecto na linhagem de Platão), o teatro torna a sociedade efeminada,
amolecida. Mas os seus argumentos dizem menos respeito à sexualidade
do que às emoções e paixões. Vejamos como a posição de Rousseau é
claramente contra a mimese, pelo menos a mimese dramática, que curio-
samente analisa sempre do lado do receptor. Ele torna explícito um receio
que é um pouco diferente do de Platão: que o hábito de ver as virtudes e
as emoções representadas nos faça achá-las todas falsas e descrer delas.

97
D rama e C omunicação

Se fosse representado um acontecimento ocorrido ontem em Paris, far­


‑me-iam supor que era do tempo de Molière. (…) Diz-se bem que nada
daquilo nos convém e sentir-nos-íamos tão ridículos ao adoptar as virtudes
dos seus heróis quanto a falar em verso e vestir uma roupa de romano. Eis
então, mais ou menos, para que servem todos esses grandes sentimentos e
todas essas máximas brilhantes que louvam com tanta ênfase: a relegá-las
para sempre à cena, e a mostrar-nos a virtude como um jogo teatral, bom
para divertir o público mas que seria uma loucura querer transportar seriamente
para a sociedade. Assim a impressão mais vantajosa das melhores tragédias
é o reduzir a algumas afeições passageiras, estéreis e sem efeito, todos os
deveres do homem. (…)
Os espectáculos não são maus em si mesmos, (…) nalguns lugares, serão
úteis para (…) numa palavra, impedir que os maus costumes degenerem em
banditismo. Noutros locais, não serviriam senão para destruir o amor ao
trabalho, para desencorajar a indústria, para arruinar os particulares, (…)
para transformar a sabedoria em ridículo, para substituir a prática da virtude
por um jargão teatral, para transformar toda a moral em metafísica, para
transvertir os cidadãos em belos espíritos, as mães de família em amantes, e
as filhas em apaixonadas de comédia. (…) Os maus ganharão e os bons
perderão ainda mais; todos contrairão um carácter de moleza, um espírito
de inacção que retirará a uns as grandes virtudes e impedirá os outros de
meditar em grandes crimes. ( Jean-Jacques Rousseau, in Borie et al 189-191)

Rousseau rebate ainda os argumentos que, a partir de Aristóteles, apre-


sentam a vivência das paixões no teatro como purga que purifica a alma
ou o corpo.

Ficaria sempre por saber se as paixões demasiado irritadas não acabam


por degenerar em vícios. Eu bem sei que a poética do teatro pretende
precisamente o contrário, ou seja, purgar as paixões, provocando-as: mas
custa-me muito conceber esta regra. Ou seria que, para se tornar moderado
e sensato, era necessário começar por ser furioso e louco? (…)
Dizem que a pintura fiel das paixões e dos sofrimentos que as acompanham
é suficiente para as evitar com todo o cuidado que pudermos. Mais não é pre-

98
S uspeitas sobre o espectáculo

ciso, para se dar conta da má fé de todas estas respostas, do que consultar o


estado do seu coração no fim de uma tragédia. A emoção, a perturbação e a
fraqueza que se sente e que se prolonga depois da peça, será que anunciam
uma disposição que se aproxima e que irá prevalecer e regular as nossas pai-
xões? As impressões vivas e chocantes às quais nos habituamos, e que tão
frequentemente reaparecem, serão as apropriadas para moderar os nossos sen-
timentos de acordo com a necessidade? (...) Ou não sabemos que todas as
paixões são irmãs e que uma só é suficiente para provocar mal, e que comba-
tê-las uma a uma não é senão mais um meio de tornar o coração mais sensível
a todas? O único instrumento que serve para as purgar é a razão e eu já disse
que a razão não produz nenhum efeito no teatro. ( Jean-Jacques Rousseau, in
Barata 89)

A República que Rousseau quer ajudar a criar é racional, e, pelos vistos,


como em Platão, frágil nessa racionalidade; dela quer afastada a influência,
que sabe ser poderosa, do espectáculo.

6. Rousseau parte do postulado de que no teatro não há lugar para a


razão. Vimos já, na lição anterior, como, pelo contrário, Schiller observou
pouco tempo depois que o espectáculo é um lugar de intermediação entre a
razão e a emoção. Mas, por ser intermediação, pode ser atacado pelos rigo-
ristas cristãos ou mesmo por Rousseau devido ao excesso de carne e de
paixão, e também pode ser condenado por demasiada distância em relação
à carne e à paixão. É com esta conotação oposta, ou seja, já não de promís-
cua proximidade mas sim de cerimoniosa distância, que o espectáculo volta
a ser atacado num novo contexto bem visível a partir dos anos 60 do sé-
culo XX e em que, devido à estetização difusa da sociedade, o debate passa
do teatro strictu sensu para o espectáculo, que seria cada vez mais generali-
zado e dominante.
Guy Debord (1931-1994), um dos principais membros da Internacional
Situacionista, soube chamar a atenção para o crescimento das imagens como
algo de existencialmente central na experiência contemporânea, o que o
coloca no grupo dos grandes diagnosticadores deste aspecto do século XX,

ao lado de um Walter Benjamin e de um MacLuhan e antecipando os pós­

99
D rama e C omunicação

‑modernismo; foi também um dos primeiros a pensar a globalização. A sua


insistência na imagem e na mediação é no entanto feita com o propósito de
recusar liminarmente todas as mediações, nomeadamente aquela que aqui nos
ocupa e que fez Debord ficar mais conhecido, através da sua obra publicada
em 1967, A Sociedade do Espectáculo.
Partindo de uma reformulação do marxismo e das correspondentes aná-
lises do fetichismo da mercadoria, Debord continua a funcionar dentro do
esquema da dialéctica hegeliana, corrigida pela teoria da alienação do neo­
‑marxismo de Lefèvbre, Marcuse e Gabel. O problema de Debord é, aliás,
comum a todos os que, marxistas ou funcionalistas, nos séculos XIX e XX par-
tiram de uma ideia utópica de sociedade da comunhão, do comunismo ou da
solidariedade, ideia que deformou, como seu negativo, as análises, mesmo
que pioneiras e iluminadoras, da sociedade existente – que nunca é uma
sociedade da comunhão, como pensam, mas sim da comunicação, para usar-
mos os termos de Georges Bataille. Mas é numa oposição à comunicação no
que ela tem de mais racional e objectivo que estes autores imaginam uma
forma mais elevada, uma espécie de substituto da experiência religiosa na sua
forma mística.
É neste contexto que Debord critica a “sociedade do espectáculo”, por três
grandes ordens de razões. Primeiro, sempre na linhagem de Platão, por a
busca honesta do essencial dar lugar à pouca profundidade das aparências
– Natália Correia (111), retomando as invectivas de Debord contra a “socie-
dade do espectáculo”, criticará “o intolerável desaparecimento do ser no
aparecer”, o “ruído do efémero que neutraliza o real”. Segundo, e já na li-
nhagem marxista, por considerar que a função catártica do espectáculo
permite às nossas sociedades, ao representarem-se no desdobramento da
cena, regular a sua própria sobrevivência. Terceiro, porque a categoria de-
bordiana de espectáculo pressupõe uma distância, uma separação clara entre
o que é espectáculo e o que o não é, sendo o espectáculo visto por ele como
uma imagem invertida da “realidade social”, que se separou da sociedade para
se voltar contra os homens. Ora, como nota Bragança de Miranda (1998:22),
essa “oposição entre espectáculo e vida é inquietante, pois pressupõe que
deverá existir uma apresentação directa da vida, e que toda a representação
ou imagem implica uma negação dessa mesma vida. Nós, herdeiros do bar-

100
S uspeitas sobre o espectáculo

roco mediterrânico, temos razões para suspeitar de uma crítica que recusa a
mediação, como momento de divisão, de separação.” Daqui resulta, continua
Miranda, “a sensação de que Debord se deixa apanhar pela patologia apoca-
líptica, denunciando incansavelmente tudo e todos, levando-o a recusar a
negatividade, a divisão, a separação, em suma, a finitude do homem moder-
no. (...) Ele que recorria a procedimentos de negação que foram dos mais
radicais deste século, ao mesmo tempo recusa-os na teoria, sacrificando-os a
uma história da reconciliação final, da comunidade humana realizada e ‘sem
história’.” E repare-se que temos ainda mais razões para suspeitar dessa teoria
do espectáculo como negação da vida, devido ao próprio diagnóstico que
Debord faz de uma sociedade em que já tudo seria dado em espectáculo, não
havendo por isso uma vida exterior a ele.
Mas a ideia de Debord é ao mesmo tempo que as mediações espectacu-
lares nos estariam a afastar da vida. Repare-se que esta ideia já aparece, por
exemplo, no final da secção “Do prazer dramático” das Confissões de Santo
Agostinho (70): “Tal era a minha vida! Mas isto, meu Deus, podia chamar­‑se
vida?” E reaparece desde então em vários autores. Vimos como Robert
Schwartzenberg veio aplicar o conceito debordiano da “sociedade do espectá­
culo” a uma área específica mas decisiva da contemporaneidade, a que chama
“O Estado espectáculo”. E Giorgio Agamben, em A Comunidade que Vem (de
novo o tema da comunidade, como se viéssemos de uma comunidade, quan-
do sempre vivemos em sociedade) radicaliza a posição de Debord, porque
identifica o espectáculo com a perda da linguagem e, portanto, da política
humana: a era do espectáculo é a “do niilismo consumado”, embora se
possa procurar uma acção positiva no seio da nova situação.

O capitalismo na sua forma última (…) apresenta-se como uma imensa


acumulação de espectáculos, em que tudo aquilo que era directamente vivido
foi expulso por uma representação. Porém, o espectáculo não coincide
simplesmente com a esfera das imagens ou com aquilo a que chamamos hoje
media: é (…) a expropriação e a alienação da própria socialidade humana.
(…) O espectáculo não é mais que a pura forma da separação: (…) a potência
prática do homem separa-se de si própria e apresenta-se como um mundo
em si. (…) Depois de ter falsificado a totalidade da produção, ela pode agora

101
D rama e C omunicação

manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação


social, para transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo
pode ser posto em questão, excepto o próprio espectáculo, que, em si, nada
mais diz do que isto: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. (…)
É claro que o espectáculo é a linguagem, a própria comunicatividade ou
o ser linguístico do homem. (…) O capitalismo (…) não estava apenas dirigido
para a expropriação da actividade produtiva, mas também, e sobretudo, para
a alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística e comunicativa
do homem, (…) Precisamente porque é a possibilidade de um bem comum
que é expropriada, a violência do espectáculo é tão destrutiva; mas, pela
mesma razão, o espectáculo contém ainda algo como uma possibilidade
positiva, que pode ser usada contra ele. (…) A época em que vivemos agora
é também aquela em que se torna pela primeira vez possível para os homens
terem a experiência da sua própria essência linguística. (Giorgio Agamben,
1993:61)

7. Régis Debray (5-13) procura encontrar, no contexto dos anos 60, 70 e


80, as razões para o aumento da condenação do espectáculo. Debray propõe
um estudo “mediológico”, postulando o princípio de que a questão do
espectáculo, como a de qualquer outra mediação, não pode ser discutida
moralmente, sem se atender aos dispositivos materiais em que ele existe.
“As maquinarias da representação mudam mais depressa, infelizmente, do que
as nossas metáforas”, mas por isso mesmo há que estudá-las: “fim das ‘grandes
narrativas’ e aparecimento das multisalas, é tudo o mesmo.”

Podemos interrogar o espectáculo enquanto moralistas (ele corrompe ou


melhora os costumes?), ou como psicólogos (o que existe de sugestão hipnótica
nesse fascínio?), ou como filósofos (que estatuto para a ilusão entre o
verdadeiro e o falso?), como sociólogos (podemos conceber sociedades sem
espectáculo?), como terapeutas (de que humores íntimos a catarse nos purga?),
como historiadores (como evoluíram as artes dramáticas?), e ainda em mais
dez atitudes. Abordá-lo como mediólogo é começar por observar uma certa
forma material: como é dado a ver, como é o acesso do público, as condições
de escuta, as posturas de visão. É atravessar o espaço do texto para olhar o

102
S uspeitas sobre o espectáculo

espaço cénico, a forma dos assentos, as máquinas e as luzes. Assim como há


uma eloquência diferente antes e depois do microfone, um jogo de actores
antes e depois da câmara (o audiovisual desincorpora a assistência em
audiência), um espaço público antes e depois da televisão, não há “sociedade
do espectáculo” no abstracto e no intemporal. (Régis Debray 6)

Procurando descrever os vários aspectos do contexto em que é possível


compreender os ataques ao espectáculo, Debray argumenta que, muito
antes de ser estigmatizada “a sociedade do espectáculo” ou “o Estado es-
pectáculo”, estava em curso a transformação do dispositivo espectacular de
separação entre a cena e o público. E isto acontecia, tanto nas mudanças
cenográficas, com a contestação da ribalta e de todo o palco à italiana,
como noutras áreas, como, por exemplo, as artes plásticas. De facto, boa
parte da arte vanguardista tem a ver com o desejo de abolir o simbólico
(embora não se possam desprezar as diferenças entre cada arte, com a li-
teratura a privilegiar, na mesma época, a ambiguidade alegórica), e mesmo
a linguagem falada (veja-se a época das pinturas “sem título”) e de fazer
emergir a matéria, para depois a salvar. Onde antes era pedido para não
tocar nas obras expostas, Marcel Duchamp, nos anos 10, viera pedir: “É favor
tocar”. “Já não haverá espectadores na minha cidade, não haverá senão acto-
res”, preconizava nos anos 50 Jean Dubuffet (que substitui o objecto para
olhar pela estrutura penetrável). São autores redescobertos e retomados nes-
tes anos 60 em que deixa de haver molduras nos quadros e palavras debaixo
deles, os teatros são rebaptizados “lugares de proximidade” e alguns grupos
como o Living Theatre fazem as suas representações fora dos espaços con-
vencionais, mesmo na própria rua, convidando à proximidade ou até à
participação do público: em 1969, no espectáculo Dionysus in 69, encenado
por Richard Schechner, os espectadores eram convidados a entrar em con-
tacto físico com os actores.

Para quê fazer processos em boa e devida forma, em lugares solenes,


segundo procedimentos complicados? (…) Na justiça, educação, política,
belas-artes – em todo o lado ressoa a injunção: “colem-se à vida”. (...) Todos
os domínios reclamam a presença imediata mais do que o representado. (...)

103
D rama e C omunicação

As artes a dois tempos (teatro de texto, música e dança com partitura) recuam
diante dos primeiros impulsos, o talento de execução empalidece diante do
génio da improvisação. (...)
Não ao desfasamento, à descolagem simbólica, sim à fatia de vida.
Encenação mas de uma recusa de encenar. Apoteose de “uma cultura que é
a vida”, segundo o voto exacto de Artaud, curiosamente transformado – sem
a participação cósmica nem o rigor pessoal – no politicamente correcto das
sociedades do lucro. (Régis Debray 8)

Repare-se como, em todo este contexto bem visível a partir dos anos 60,
a condenação das mediações espectaculares ressurge com uma conotação
oposta à dos rigoristas cristãos ou mesmo de Rousseau: não por excesso de
carne e de paixão, mas por demasiada distância em relação à carne e à paixão.

Ironia da História: a ortodoxia paleo‑cristã regressava pela extrema­


‑esquerda. De facto, foram os apologistas dos primeiros séculos – Tertuliano,
Clemente de Alexandria, Santo Agostinho – que mais ferozmente justificaram
a continência espectacular, apelando aos bons cristãos para que deixassem
de frequentar tanto os teatros como os banhos mistos, arenas e estádios.
A patrística, misógina e anti-vitalista, condenava o espectáculo como opus
diaboli por pertencer à ordem da Carne (do sexo, das paixões e do seu calor
comunicativo), enquanto que é em nome dos valores do corpo e da vida,
expressivos e dionisíacos, que o zelo anti-apolíneo de hoje recusa ritos,
cerimónias, protocolos e encenações. (Régis Debray 9)

8. Se nas artes plásticas e performativas esta vontade de proximidade se


realiza de modo artesanal, reivindicando mesmo que o homem se reaproprie
daquilo de que estaria a ficar separado, noutros campos essas mesmas trans-
formações não dispensarão a técnica ou virão até indissociavelmente ligadas
a ela. Vale a pena determo-nos numa breve reflexão sobre esta questão, por-
que a técnica costumava ser atacada, pelos mesmos que suspeitavam do
espectáculo, como criadora de mediações e distância, mas na segunda meta-
de do século XX ela aparece com a face oposta de abolidora das distâncias e
campeã das proximidades.

104
S uspeitas sobre o espectáculo

Afinal, o humano sempre se constitui na relação com objectos, artefactos,


artifícios, mas isso não significa que essa relação seja bem aceite. A parti-
cular ambivalência face à técnica, ao mesmo tempo temida e admirada
desde as raízes gregas da cultura ocidental, faz-nos vê-la simultaneamente
como motor de emancipação e fonte de todos os males, e faz-nos falar
tanto do empobrecimento da experiência (e empobrecimento da comuni-
cabilidade dessa experiência) como da comunicação mais possível entre
todos e todos – levando-nos a pensar o espaço público tecnologizado como
espaço de liberdade e espaço de controlo.
Vejamos a técnica como ela é, um permanente outro na cultura, e evi-
temos abolir essa alteridade pelo movimento simultâneo de humanização
da técnica e tecnicização do humano. O mal-estar perante a técnica e a
constante reflexão sobre ela nas últimas décadas são mais um sintoma do
que uma invalidação da sua presença na experiência moderna: e é justa-
mente porque a técnica reforça o poder das mediações que a desconfiança
em relação a ela surge tanta vez ligada às suspeitas sobre o espectáculo.

O ódio das mediações une desde as origens o teatrofobo e o tecnofobo.


A crítica da representação apoia-se sempre no fantasma de um ‘eu original’,
de uma presença inicial e plena em si mesmo e no mundo. De um estado
de natureza em que o homem se banharia na plenitude de uma dádiva
primeira: a condenação da técnica como atentado ao autêntico e a crítica do
espectáculo como vida ausente alinham a condenação das aparências com a
dos artifícios. (...) E foi uma mesma tradição que deu reputação de vilões e
indignos ao actor e ao artesão, ao mimo e ao engenheiro. É bem como
imitação ou simulacro que Platão recusa o objecto técnico (...). Realidades
de segunda ordem, cidadãos de segunda classe. (Régis Debray 11)

A questão é que, como o próprio Debray reconhece (só não reconhece a


contradição), ainda nos anos 60 a ideologia da proximidade é reforçada com
a utilização de um novo dispositivo técnico, a televisão – e, mais tarde é re-
forçada pela cibercultura das redes. Ou seja, a técnica parece vir agora não
acrescentar mas abolir as mediações.

105
D rama e C omunicação

O fluxo televisual dá-se como a própria vida e não como uma representação
da vida: como uma amostra do mundo tomada em directo e não como uma
transposição, um discurso sobre o mundo. (...) A videosfera nascida em 1968
coloca-se sob o signo do circuito curto. Promete o abreviado, o directo, a
máxima transitividade. (..)
As metáforas omnipresentes da carícia e do surf introduzem à nova
sociedade do contacto, ao mesmo tempo dura e descontraída, que relega a
‘sociedade do espectáculo’, com tudo o que ela exigia de composição e de
convenção, para um passado enfático, quase monárquico. A democracia do
momento: viver em contacto directo um universo com acesso directo (...)
Já nada escapa à grande viragem em que se deixaria de estar diante para
estar dentro. (...) E o ‘todos para o palco, todos actores!’ já não é uma nostalgia
de quem faz os seus passeios solitários com falta de calor humano [Rousseau],
mas o sucesso contabilizável e palpável de um sistema tecnológico em plena
expansão, a ligação generalizada, que nos faz enfim tocar com os dedos
(push the button) a trilogia idílica Imediaticidade-Proximidade-Simplicidade.
(Régis Debray 7, 8, 12)

Vale a pena notar, com Lacoue-Labarthe (2000), que esta vontade de


imediaticidade, por ele descrita como “mimetologia”, não é nova: sempre
alimentou todo o desejo de absoluto. De novo contra Aristóteles, que logo
nos fundamentos da metafísica desenvolvia um esquema instrumental, sem-
pre houve uma outra tendência profunda desde os primórdios religiosos e
míticos da cultura (que os românticos não se cansaram de desenvolver),
que defendia a fusão de todas as diferenças numa “totalidade” perfeita. Essa
fusão exigiria alguma revolução, figura ainda presente em Debord e nos
anos 60, mas que foi desaparecendo de cena, como que dispensada pela
técnica, pela compressão do espaço e do tempo operada em velocidade,
pelo “tempo real” e pela “instantaneidade”, pelas máquinas da imagem e
pela “máquina das máquinas”, o computador, dispensando os dualismos.
Daí alguns fazerem o diagnóstico de que a representação e o simbólico
teriam chegado ao fim, quer por se terem realizado totalmente (Baudrillard)
quer por terem sido superados (Ascott) – cf. Miranda, 1999:294.

106
S uspeitas sobre o espectáculo

Toda a discussão em torno do real/virtual está ainda muito embrionária


e por vezes dominada por um determinismo pela técnica, como se ela fos-
se desencarnada, como se não tivesse uma origem humana e pudéssemos
extrair uma ontologia das características técnicas dos dispositivos. Em vez
disso, creio que o virtual é um sintoma e não uma causa das mutações
culturais, que aliás vêm muito mais de trás do que a categoria de virtual
ou o triunfo dela ou das novas tecnologias. Neste sentido, falta uma arqueo­
logia que não necessite de apresentar o novo como incriado nem o antigo
como desaparecido (cf. Monteiro, 2002:233-5).
De qualquer modo, essa discussão tem ainda uma outra vertente que
afecta a discussão da representação e do espectáculo: a confusão entre
meio e mensagem, mais ainda, entre meio e realidade, acarreta para alguns
o fim da categoria de real. É o que muito e muito reactivamente se tem co-
mentado relativamente à actual indiferenciação televisiva entre realidade e
ficção: “de tanto nos querer dar o credível, com os seus docu-dramas, os seus
scoops em directo, os seus reality-shows, a suspeita instala-se em autodefesa.
(…) André Breton tinha-o previsto logo em 1924, na primeira frase do Manifesto
surrealista: ‘A tal ponto chegou a crença na vida, no que a vida tem de mais
precário, a vida real, entenda-se, que por fim este crença perde-se.’ O contra-
to de crença ficcional – essa desrealização do mundo convencionada e
temporária – poderia muito bem recarregar as baterias do simbólico, que mais
tarde ou mais cedo o terra-a-terra indicial descarrega.” (Debray 12-13)
Este fim da categoria de real, ou mesmo de matéria (tudo passando a
poder ser digitalizado) levaria logicamente ao fim da representação, ao
acabar com tudo o que pudesse ser obstáculo à comunicação imediata e
instantânea. Foi o que defendeu, com alguma reificação da técnica, Henri­
‑Pierre Jeudy no I Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da
Comunicação, em 1999.

Já ultrapassámos a sociedade do espectáculo. Esta supunha que podíamos


ter uma imagem da realidade apresentada de forma espectacular, o que
implica uma certa distância da representação, distância que é constitutiva do
próprio acto de se representar a sociedade como espectáculo. Já não é o
caso desde que a imagem e o real são idênticos. Já não há função especular

107
D rama e C omunicação

da imagem, a imagem já não é um espelho da realidade. A imagem é a


realidade. Isto quer dizer que a relação com a imagem na qual vivemos hoje
é uma relação de adesão, de fascínio, de alucinação e já não uma relação
espectacular porque não há uma colocação à distância. Estamos além do
espectáculo. (Henri-Pierre Jeudy 48)

Neste contexto de indiferenciação entre o real e o virtual, com um suporte


cada vez mais estável tecnologicamente, há uma espécie de ciberantropologia
da desincarnação, em que a nova cultura cibernética funcionaria como
grande “buraco negro” sugador de toda a realidade social e em que a
discussão muitas vezes descola para as metafísicas da pura exterioridade.
Parece então que o risco, ao contrário do que pressupunha Debord, não é a
divisão nem a separação, e que o importante, mesmo para escapar à tendência
para uma programação total, será justamente encontrar pontos e momentos
de diferenciação.
Repare-se como, da crítica a uma anterior concepção do mundo, se pode
deslizar para o exagero de pensar que já não existem mediações e para o
fatalismo de crer que já nunca as voltaremos a recriar. Hannah Arendt
escreveu (apud Miranda, 1999:317): “Conviver no mundo significa essen­
cialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em
comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam em seu redor;
pois, como todo o intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e
estabelece uma relação entre os homens”. A mesa é uma (boa) metáfora,
mas hoje podemos pensar noutros intermediários que ao mesmo tempo nos
separam e nos juntam. Em vez de proclamar o fim das mediações, devemos
é saber reconhecer e analisar as novas mediações do nosso tempo. Contra
isso, e voltando às posições das duas primeiras lições, há que afirmar, como
Serge Moscovici (30), que “o homem sem arte, sem técnica gestual e mental,
não é conhecido nem conhecível”. Ou como Debray (11): “Sonhar com uma
sociedade sem técnica ou com uma sociedade sem espectáculo, é sonhar
com um homem sem aprendizagem, saído já pronto das mãos de Deus (...).
Que não precisaria de passar por uma herança, uma cultura, mistérios e
mitos. Que poderia compreender sem interpretar, perceber o seu tempo
sem dele se afastar; sem passar pela escola, sem ir ao circo, ao teatro e ao

108
S uspeitas sobre o espectáculo

cinema. (...) Tal indivíduo não existe. Ou antes, sim: é um consumidor, um


cliente, um utilizador.”

9. Assim se reforça a importância de as teorias da comunicação contem-


porânea terem em conta o espectáculo. Como escreve Daniel Mesguich
(apud Debray 10): “é sempre preciso afastar-se para ver melhor” (justamen-
te o contrário do que pediam Duchamp e Dubuffet há muitas décadas).
O próprio Rousseau (apud Debray 7) comentava: “Quanto mais reflicto
sobre isto, mais me parece que tudo aquilo que põem em representação
no teatro não o aproxima de nós, afasta-o”. A questão agora é pensar se
esse afastamento, esse dar a ver fora ou diante de nós, é vantajoso ou ne-
gativo. Hegel e Sartre têm posições ambíguas em relação a essa capacidade
humana de exteriorização e de representação. Como observa Duvignaud
(1970:17), “Hegel construiu a sua Fenomenologia a partir da exteriorização
da consciência e da sua alienação, ou seja, da sua capacidade de fazer-se
alheia a si mesma. Mas há algo de mágico nessa exteriorização que suscita
a nossa reflexão. (...) Sartre falou muito e acertadamente desta manifestação
diante dos outros, convertendo-a em algo de trágico e pavoroso. Teria sido
necessário estabelecer uma relação entre essa exteriorização e a própria
substância social que nesse acto se realiza.” E assim repensá-la, sem ambi-
guidades nem receios, como algo de necessário e positivo. Como disse
Barthes (apud Sinisterra 101), “o espectáculo da inconsciência é o começo
da consciência”.
O complexo pensamento de Hegel talvez possa, a este respeito, ser
reavaliado, porque a sua dialéctica, muito embora apoiada numa mística da
permanente fusão, incluía um momento de divisão que, juntamente com o
simbolismo estético, interessa recuperar como contra-corrente à indiferen-
ciação proclamada por muitos teorizadores da moderna tecnologia. A questão
está em tomarmos consciência de que a exteriorização ou objectivação é
um momento indispensável à criação de perspectiva, e portanto ao pensa-
mento, sem a conotação pejorativa que Marx (mais claramente do que
Hegel) deu a alienação. O que nos leva a um receio que ainda não apare-
ceu explicitamente nestes argumentos (excepto um pouco em Rousseau,
quando diz que o hábito de ver as virtudes, vícios e paixões representados

109
D rama e C omunicação

faz com tudo se torne falso e mole). Teme-se na prática da representação


teatral o hábito e o treino de entrar e sair da construção que se fez. É algo
que cativa o espectador, mas ao mesmo tempo o faz tomar consciência de
que aquilo perante o qual se encontra não é a própria realidade. Na missa,
por exemplo, um crente não pensa assim: não é temporariamente que sus-
pende a sua descrença, não considera que durante um curto tempo
acredita na consagração do corpo e sangue de Cristo, ao mesmo tempo
sabendo que isso não é verdade. Mas no teatro sim.
Michel Mayer considera aliás que as paixões em geral (não está a referir­
‑se especificamente ao teatro) têm o mesmo mecanismo de desdobramento.

As paixões encantam-nos e obnubilam-nos, a ponto de se fazerem es-


quecer pela história e como história. E, ao mesmo tempo, sabemos
perfeitamente que tudo isso não passa de uma ‘bela fábula’. Um pouco como
a criança que tem medo das histórias sanguinárias e horríveis, sem que acre-
dite verdadeiramente nelas. A paixão é precisamente aquilo que cativa o
espectador ao mesmo tempo que o faz tomar consciência de que aquilo
perante o qual ele se encontra não é a própria realidade. (…) Se houvesse
uma mera identidade, não existiriam nem a ficção nem a estética em geral.
Uma consciência totalmente consciente de si própria, numa total adequação
a si mesma, não deixa nenhum lugar, no domínio que manifesta, para a
paixão que iria obscurecer as suas acções. Esta resulta de um afastamento e
de uma diferença, em que o sujeito se surpreende como desfasado relativa-
mente a si próprio e invadido por um universo que se transforma num
destino e numa necessidade que ele sente. (Michel Meyer, 1994:236-237)

Podemos agora compreender melhor o receio que há em relação ao tea-


tro, que é simultaneamente um lugar de emoções e paixões, e também,
estruturalmente, um lugar de desdobramento, em que, dizia Sartre numa
conferência de 1958, eu me sento para ver-me a mim próprio a partir de fora
e assim consigo ir mais longe do que pela reflexão sem desdobramento.

O teatro é uma apresentação do homem ao homem através de acções


imaginárias. Resultado disto: uma distância. (…) Mas esta distância da

110
S uspeitas sobre o espectáculo

apresentação dá uma outra coerência ao universo apresentado. (…) No teatro,


ficamos de fora e o herói perde-se diante de nós. Mas o efeito sobre nós e
sobre os sentimentos é por isso mais considerável, porque, ao mesmo tempo,
esse herói é nós próprios fora de nós. (…) O homem apresentado é eu mesmo
fora do meu poder. Isto significa: fazer-nos descobrir como outros, como se
outros homens nos olhassem; noutros termos, obter aquela objectividade que
não posso obter pela minha reflexão. ( Jean-Paul Sartre 1973:88-89)

Vimos Tertuliano argumentar que no teatro o espectador fica “fora de


si”, “nem a si mesmo se pertence”. A origem grega do termo teatro, theatron,
é dar a ver: é o lugar onde o público olha para uma acção que lhe é
apresentada num outro lugar. É por isso um ponto de vista sobre um acon-
tecimento. Em alemão, Vorstellung, Darstellung ou Aufführung usam essa
imagem espacial de “colocar diante” (Pavis, 1997:359 e 302) – embora não
se deva reduzir o teatro à visualidade, à opsis aristotélica, porque também
é feito de escuta e de temporalidade, como adiante lembraremos: mas tam-
bém aí “não esqueçamos que escutar alguém, é mostrar-se disposto a
eventualmente admitir o seu ponto de vista”, lembram Perelman e Olbrechts­
‑Tyteca (22). É o espaço onde tomamos consciência da nossa capacidade
humana de entrar dentro de uma ficção e dos respectivos pensamentos e
emoções, sabendo ao mesmo tempo que é uma ficção e habituando-nos a
sair dela com a mesma facilidade com que entramos. Além disso, na esfera
do teatro, que é o espaço interhumano do diálogo e da contradição, em
vez do cogito, pensamento do eu, do repli sur soi, temos um pensamento
que só se desenrola na segunda pessoa, na relação das personagens umas
com as outras, e portanto no foro exterior. (Para já não falar que o erotis-
mo também passa da esfera privada para a pública.) O que é possível
contrapor ao imenso receio de perda nessa exterioridade é que ela não
empobrece nem desgasta o sujeito: enriquece-o.

Talvez fosse tempo de nos perguntarmos se a problemática anti-burguesa


da alienação não terá sido uma sublimação filosófica da avareza burguesa.
A tomá-la à letra, tudo o que eu projecto no outro seria outro tanto que eu
perderia em mim. Seria então necessário recuperar na minha vida prática a

111
D rama e C omunicação

realidade que o imaginário do espectáculo me roubou; entre a nossa existência


e as nossas imagens, seria um jogo de soma zero: “quanto mais o homem
contempla, menos vive”. Pura ideologia. A experiência sentida é a seguinte:
quanto mais contemplamos, melhor vivemos. E como nem há comunidade
imediata sem protocolos de assembleia, nem sujeito individual sem mediações
objectivas, acrescentemos: quanto menos houver espectadores, menos haverá
cidadãos. (...)
A sociedade de mercado, pelo menos no Ocidente (a crescente Ásia está
sem dúvida melhor fornecida) parece em estado de deficit cerimonial. Está
demasiado apressada, caminha depressa demais, já não tem tempo a dedicar
às finezas do como se. (...) Não há suficiente dramaturgia e distância. A baixa
de atenção dramática retira toda a significação à morte no próprio momento
em que proliferam as imagens de massacres e “um assassínio” por minuto
das séries televisivas. “Os maiores dramas da história, dizia Henri Gouhier,
filósofo do teatro, talvez só se expliquem pela perda do sentido dramático.”
Quanto tempo o sentimento trágico da existência poderá sobreviver à falta
de tragédias contemporâneas? E o respeito pela vida, ou a sacralidade da
morte, à evacuação das cerimónias fúnebres, ao escamoteamento hospitalar
das agonias, aos enterros às escondidas? (...)
“O espectáculo rouba-nos o ser”, repete o moralista moderno. Porquê? Porque
serve de metáfora à distância entre os homens. De facto, que fazer com essa
separação – o pejorativo de mediação? Fazer com. Aboli-la é pior do que assumi-
la. (...) Quem expulsa o intermediário em breve expulsa o intérprete. O problema
é que a realidade vivida não ressoa sem se colocar à distância (...). O sentido
é um efeito de eco, e o eco um efeito de abismo. É porque nada de humano
é dado ao homem imediatamente que a ilusão cómica não é uma mentira: que
ele tem de passar pelo falso para ir à sua verdade; de se projectar nos outros,
para entrar em relação consigo mesmo. (Régis Debray 9-13)

Para a linhagem defensora das mediações espectaculares, há que tornar


claro como a representação é condição e alimento da cultura e da comu-
nicação. Mesmo que isso não seja evidente: como escreveu Goffman (1993:76),
“A facilidade com que os actores levam a cabo, sem precisarem de reflectir,
e apesar disso de forma consequente, as suas rotinas conformes às normas,

112
S uspeitas sobre o espectáculo

significa não que não tenha havido representação mas simplesmente que
os participantes não se deram conta de que havia uma representação”.
Se negarmos a representação, em vez de a manipularmos, a maior parte de
nós fica à mercê dela, sem grande possibilidade de regresso à coisa repre-
sentada, muito mais do que quando essa representação era marcada e
sinalizada – quando o mascarado usava (punha e tirava) a máscara. Por isso
“não devemos surpreendermo-nos por ver que, nas sociedades que adop-
taram sistemas de estatutos não igualitários e orientações religiosas
pronunciadas, os indivíduos tomam por vezes o conjunto do drama social
menos a sério do que nós e transgridem as barreiras sociais através de
signos rápidos que dão ao homem escondido por trás da máscara mais
importância do que nós julgaríamos permitido” (ibid. 231). Lévi-Strauss (12)
argumenta no mesmo sentido: “apesar de as suas funções serem quase
opostas, as máscaras não são menos indispensáveis ao grupo do que as
palavras. Uma sociedade que acredita que dispensou as máscaras só pode
ser uma sociedade em que as máscaras, mais poderosas do que alguma vez
o foram antes, vão por sua vez estar mascaradas para melhor enganarem
os homens.”

113
(Página deixada propositadamente em branco)
4 . O S U J EI TO E A RE P RE S EN TAÇ ÃO

1. All the world is a stage. Repare-se como Shakespeare diz que todo o
mundo é um palco. A questão que muitas vezes se põe, e que, como já
veremos, Shakespeare não deixa de levantar, é se não haverá um resto que
não é representado nem representável e se não residirá nesse resto o mais
importante das nossas vidas. É como se o reconhecimento que até aqui
fizemos, com maior ou menor dificuldade, da dimensão estruturante da
representação, depois conhecesse uma dobra que se recusa a aceitar que
todos os outros, ou todo o eu, representam: uma vontade de encontrar
terra firme no oceano infinito dos espelhos. Álvaro de Campos desabafa
assim em dois poemas (67,296):

“Símbolos? Estou farto de símbolos...


Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.”
“Símbolos. Tudo símbolos...
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?”

No segundo destes poemas, o cansaço de Campos leva-o a vagamente


querer que as mãos brancas da pessoa desejada, à sua frente, não sejam
símbolos: mas conclui que os símbolos não acabam, “é o mal dos símbolos,
you know.”
Noutros casos, não queremos atravessar os símbolos para chegar à nudez
do outro: queremos que o outro atravesse os símbolos para chegar até nós.
Como se lê no fragmento 688 das Pensées de Pascal: “E se me amam pelo
meu juízo, pela minha memória, amam-me? A mim? Não, porque posso
D rama e C omunicação

perder essas qualidades sem me perder a mim mesmo. Onde reside esse
eu, se não é no corpo, nem na alma?... Nunca pois amamos alguém, mas
apenas qualidades.”
Por isso, enquanto os ritos de passagem podem ser importantes ao fa-
zerem uma pessoa sentir-se integrada, ainda que seja pelas qualidades (de
idade ou de profissão, por exemplo), podem também, se forem ritos de
despedida, atirar brutalmente o indivíduo, de repente liberto da sua situa-
ção social, para um isolamento angustiante.
Outros casos onde sobressai como ferida a dualidade entre o que é
representado e algo que se supõe ser mais fundo ou mais importante en-
contram-se frequentemente nos doentes mentais. “O doente mental não fica
satisfeito com parecer ‘normal’, ele luta para ser ‘normal’. Paradoxalmente,
isto significa, em parte, que ele quer ‘parecer normal’ a si próprio. Lutar
por ‘parecer normal’ aos outros – ‘montando um show de normalidade’
interfere com este objectivo. (…) [O actor] é obrigado a ser o que proclama,
e os doentes mentais sugerem que estes constrangimentos operam ‘dentro’
do indivíduo tanto como ‘sobre’ ele. De facto, a sua necessidade de acre-
ditar nele próprio é até maior do que a sua necessidade de estar certo de
que os outros mantêm uma certa visão dele. Ele está agarrado a uma ética,
e viola essa ética na medida em que está on.” (Messinger 75-76, 81-82)
E os serviços da medicina (por vezes também os da psicologia) aí estão
para “tratar” quem não queira pertencer exclusivamente à personagem que
lhe pertence, quem não se encontre na situação em que se encontra.
Já um sujeito normal, segundo Lacan, é essencialmente alguém que se
coloca na posição de não levar a sério a maior parte do seu discurso interior.
Mesmo assim, mesmo nos casos ditos normais, “em certas circunstâncias na
vida de todos os dias o actor torna-se, ou é levado a tornar-se, consciente
de uma real ou potencial discrepância entre os seus eus ‘real’ e ‘projectado’,
entre o seu ‘eu’ e a sua ‘personagem’. Pode saudar essa discrepância que
sente com alegria ou com ansiedade; presumivelmente, costuma encontrar-
se algures entre estes dois pólos afectivos.” (Messinger 74)

2. Ou seja, mesmo aceitando todo o lado cerimonial, encenado e ritualizado


da vida social, pode colocar-se a questão: não haverá alguma dimensão que

116
O sujeito e a representação

escape a essa encenação? Esta dúvida, segundo Giorgio Agamben (2010:62­


‑63), tem a sua origem logo na filosofia estóica, “que moldou a sua ética
sobre a relação entre o actor e a sua máscara”, definindo-a “por uma dupla
intensidade: por um lado, o actor não pode pretender escolher ou recusar
o papel que o autor lhe atribui; por outro, não pode também identificar-se
sem resíduos com ele (…), não deve identificar-se até ao fundo com o seu
papel, confundir-se com a sua personagem. (…) A pessoa moral constitui­
‑se, pois, através de uma adesão e, juntamente com esta, de um afastamento
em relação à máscara social: aceita-a sem reservas e, ao mesmo tempo,
toma perante ela, como que imperceptivelmente, as suas distâncias.” Esta
ambivalência pode ser apreciada “nas pinturas ou nos mosaicos romanos
que representam o diálogo silencioso do actor com a sua máscara.”
Em Roma a máscara dizia-se e associava-se a persona, conceito que não
cessou de evoluir. Como nota Jean Duvignaud (1970:71-2), repare-se que
“apenas certas civilizações, e, dentro delas, tipos bem definidos de sociedades,
souberam impor à diversidade, à descontinuidade e às incompatibilidades
que compõem a trama da vida, uma imagem única da pessoa humana e a
representaram: a polis grega, as cidades italianas do Tre e do Quattrocento,
as monarquias centralizadas europeias, os Estados Asiáticos” – mas não, por
exemplo, a civilização chinesa ou as sociedades indígenas americanas ou
africanas. “Existem sociedades que nunca elegeram o homem como matéria­
‑prima dos seus sonhos nem da sua expressão geral. (...) Num texto hoje
clássico (Sociologie et anthropologie), Marcel Mauss examinou o caminho
seguido pela ‘noção de pessoa’ na cultura ocidental”, insistindo “nessa
impostura que consiste em projectar no passado a nossa concepção do ‘eu’,
tal como ela foi elaborada a partir da filosofia cristã, definida nos códigos
e costumes e imposta durante a primeira fase do desenvolvimento da
sociedade industrial europeia”.
Tal noção de pessoa não tem deixado de crescer no pensamento ociden-
tal dos últimos séculos. Richard Sennett mostrou até como isso tem levado,
pelo menos desde o flâneur do século XIX, a que os indivíduos se considerem
prisioneiros nos lugares onde têm de desempenhar papéis sociais (a come-
çar pela família e pelo trabalho), e prefiram vaguear pela cidade à procura
da identidade perdida, que só então se revelaria. Mas é um vaguear silen-

117
D rama e C omunicação

cioso, silenciado, em que cada vez mais só a uns poucos (os políticos, as
celebridades da televisão ou do espectáculo) é reconhecido o direito a
terem uma representação pública e a figura do “espectador” surge cada vez
mais como um ser passivo, mero observador afundado na sua interioridade
(e os estudos em comunicação não têm parado de mostrar como face à
exibição diária de catástrofes e múltiplas violências nos tornamos especta-
dores mais passivos, que vêem mas não respondem, percebem mas não
agem, conhecem mas não têm responsabilidade.) Sennett (338-339) não
considera que apenas entendemos as instituições e acontecimentos em
termos de exibição de personalidade, porque “obviamente não é assim”:
“Entendemos que o poder é uma questão de interesses nacionais e inter-
nacionais, o jogo de classes e grupos étnicos, o conflito de regiões ou
religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento.”
Podemos ver neste diagnóstico de Sennett, feito em 1974, algo do que
discutimos na lição anterior a respeito de certa ideologia da imediaticidade
que grassa no final dos anos 60. “O localismo e a autonomia local”, diz
Sennett (339), “estão a tornar-se credos políticos generalizados, como se,
quanto mais íntima a escala, mais significado humano tivesse a experiência
das relações de poder – e isto mesmo quando as estruturas de poder reais
se transformam cada vez mais num sistema internacional. A comunidade
torna-se uma grande arma contra a sociedade, cujo grande vício é agora
considerado a sua impessoalidade. Mas a comunidade de poder não pode
passar de uma ilusão numa sociedade como a do ocidente industrial.”
Quando Max Weber (1983) analisava preocupadamente a burocracia como
fenómeno inerente à sociedade capitalista, não deixava de reconhecer que
é preferível, para quem concorre a um lugar, que a escolha seja mediada
por procedimentos burocráticos em vez de ser escolhida imediatamente a
pessoa que for mais familiar…
Sennett (338) procede à análise e denúncia desta ideologia da proximi-
dade: a intimidade localiza a experiência humana no que está próximo, “de
modo que o que está perto das circunstâncias imediatas da vida é o mais
importante”; “as pessoas procuram ou pressionam as outras para despirem
as barreiras dos costumes, maneiras e gestos que se põem no caminho da
franqueza e da abertura comum. A expectativa é de que, quando as relações

118
O sujeito e a representação

são próximas, elas são quentes: é um tipo de sociabilidade intensa que as


pessoas procuram quando tentam remover as barreiras ao contacto íntimo,
mas essa expectativa é derrotada no acto. Quanto mais perto ficam as pes-
soas, menos sociáveis, mais dolorosas e fratricidas as suas relações.” Não
porque a “natureza humana” seja má ou destrutiva, como pensam os con-
servadores, mas porque tal relação da intimidade com a sociabilidade é
“o resultado de um longo processo histórico, em que os próprios termos
da natureza humana foram transformados naquele fenómeno individual,
instável e auto-absorto a que chamamos ‘personalidade’.”
Parece-me que, mesmo se a actualidade, pelo menos em termos políticos,
ou em certos ciclos políticos, já não utiliza tanto essa retórica da proximi-
dade, continua extremamente pertinente a outra acepção da tirania da
intimidade, que, nas palavras do próprio Sennett, “consiste em medir a
sociedade em termos psicológicos”.

Essa é a história da erosão de um delicado equilíbrio que mantinha a


sociedade no primeiro alvor da sua existência secular e capitalista. Era um
equilíbrio entre a vida pública e a privada, entre o reino impessoal em que
se podia investir um tipo de paixão e um reino impessoal em que se podia
investir um outro. (...) Gradualmente, essa força misteriosa e perigosa que
era o self veio a definir as relações sociais. Tornou-se um princípio social.
(...) A sociedade em que vivemos hoje carrega as consequências dessa história,
o apagamento da res publica pela crença em que os sentidos sociais são
gerados pelos sentimentos dos seres humanos individuais. (Richard Sennett
338)

Por exemplo, elegemos candidatos de acordo com as suas personalidades,


queremos que sejam credíveis e mostrem auto-controlo: a própria ideia de
classe começa a pesar menos na escolha feita pela maioria dos eleitores e a
parecer apenas a expressão de capacidades pessoais (no limite, tratar-se-ia de
“ter classe”). Já nem sequer, diz Sennett com indignação, se separa o domínio
privado, o da tal essência íntima do ser, do domínio da esfera pública, da
intervenção cívica que tinha sido conseguida ao longo de tantos séculos e
que agora é ela própria regida, ou representada, também debaixo do sobera-

119
D rama e C omunicação

no princípio psicologizante da intimidade – um presidente, um professor,


valem ou não valem pela sua “personalidade”, pelo seu “carácter”, pelas ca-
racterísticas e episódios da sua relação pessoal e íntima. Uma intimidade que
então se torna, evidentemente, cada vez mais representada, encenada, dada
a ver aos media e aos espectadores.
No mesmo sentido de Sennett, a teoria sistémica de Niklas Luhmann (1982
e 1995) desmentiu incansavelmente a identidade entre os sistemas psíquicos
(consciência) e os sistemas sociais (comunicação): a pretensa continuidade
entre eles está presente no equívoco conceito moral de pessoa, mas para
Luhmann não faz sentido centrar a comunicação na unidade psico-física da
chamada “pessoa humana”.

3. É interessante observar como o tão sociológico Goffman se deixa ele


próprio enredar quando aborda as questões psicológicas, nomeadamente
com o problema da sinceridade. Conhecemos já o seu ponto de partida:
“É sempre possível manipular a impressão que o observador utiliza como
um substituto da realidade, porque, na ausência de tal ou tal coisa, pode
sempre usar-se o signo da sua presença que não é a coisa mesma. A ne­
cessidade em que o observador se encontra de se fiar nas representações
da realidade origina a possibilidade de representações fraudulentas” (Goffman,
1973:237). Esta questão da fraude é desenvolvida por Goffman com bastante
hesitação e alguma contradição.
Goffman procura por vezes encontrar um sentido psicológico da falsida-
de, distinguindo entre os cínicos, que sabem que estão a representar, e os
que representam inocentemente – mas acaba por reconhecer as limitações
deste critério.

Pode ser útil inverter a perspectiva e examinar em que medida o próprio


actor acredita na impressão de realidade que tenta criar junto daqueles que
o rodeiam. (…) Há duas possibilidades extremas: ou um actor pode ficar
preso ao seu próprio jogo, ou pode comportar-se de forma cínica. (...) Quando
o actor não acredita no seu próprio jogo, falar-se-á de cinismo por oposição
à “sinceridade”, que será reservada aos actores que acreditem na impressão
produzida pela sua própria representação. (...)

120
O sujeito e a representação

Temos tendência a encarar as representações verdadeiras como qualquer


coisa de totalmente não intencional, que seria o produto involuntário de uma
resposta espontânea do actor à situação. Quanto às representações simuladas,
tendemos a encará-las como uma colecção minuciosa de elementos falsos,
porque não existe nenhuma realidade para a qual esses elementos do
comportamento pudessem constituir uma resposta directa. Convém sublinhar
agora que esta concepção dualista pode servir de ideologia aos actores
honestos mas constitui uma análise pobre. (...)
O que é preciso ver aqui bem, é que uma representação honesta, sincera,
séria, está menos ligada ao mundo real do que podíamos julgar à primeira
vista (...) Que um actor honesto deseje exprimir uma mentira, deve esforçar­
‑se por ser natural nas suas representações, por meio de expressões
apropriadas, e por eliminar as expressões que poderiam desacreditar a
impressão produzida, e ter cuidado para que o público não lhe dê significados
inesperados. (Erwing Goffman, 1973:25,21,72,68)

A posição privilegiada do actor para conhecer e pôr a nu o jogo em que


contudo está envolvido leva a um contínuo vai-vem entre os dois pólos,
cinismo e sinceridade, assim como proporciona “uma espécie de ponto
intermédio em que se pode ficar graças a uma relativa lucidez sobre si
mesmo” (ibidem:28).
Goffman propõe então um outro critério: pode o actor não saber se é
sincero, nem nós o sabermos, ou ser ao mesmo tempo sincero e cínico, e
de qualquer modo representado, mas por vezes há dados reais objectivos
que, confrontados com a representação, permitem dizer se esta é ou não é
“flagrantemente” falsa: por exemplo, dizer se um indivíduo que afirma ter
estado num lugar lá esteve realmente, e dizê-lo através de uma prova in-
discutível. Acontece, porém, que, “na vida quotidiana, é geralmente
possível ao actor criar aproximadamente qualquer tipo de impressão falsa
evitando cair na mentira característica e indesculpável. Técnicas de comu-
nicação tais como a insinuação, a ambiguidade calculada e a mentira por
omissão permitem ao seu utilizador ter todos os benefícios da mentira sem,
tecnicamente falando, proferir uma só” (ibidem:64)

121
D rama e C omunicação

Goffman recorre então, e simultaneamente, a um terceiro critério: pode­


‑se mentir sem ser considerado fraudulento ou abominável. Há uma
distinção, dentro do grupo dos cínicos, “entre aqueles que se apresentam
sob um disfarce para fazer progredir aquilo que estimam ser as justas rei-
vindicações duma colectividade e aqueles que se disfarçam por acidente
ou brincadeira, e aqueles que se disfarçam para retirar disso um proveito
pessoal” (ibidem: 63). Mas este último critério, moral (que faz lembrar as
mentiras com ou sem nobreza de que falava Platão), é amplamente rejeita-
do pelas reflexões do próprio autor (ibidem: 66,63): “aquilo que numa
determinada época é considerado como a actividade dum charlatão profis-
sional pode tornar-se, dez anos mais tarde, uma actividade legalmente
reconhecida” (pensemos na prática de lobbying). Mesmo numa só época,
por exemplo, “é repreensível para um rapaz de 15 anos fingir ter 18 para
poder conduzir um carro ou beber numa bar; mas frequentemente o con-
texto social torna um dever para a mulher fazer-se passar por mais nova
ou fisicamente mais sedutora do que na realidade é”. Além disso, na mesma
sociedade e na mesma época, certos públicos consideram como legítimas
actividades que outros podem ter por pulhices. E, o que mais é, não há na
vida quotidiana nenhuma actividade ou relações sociais cujos actores não
se entreguem a práticas discretas ou escondidas, inconciliáveis com as im-
pressões dadas abertamente.

4. Como vimos logo na primeira lição, Goffman acabou por colocar a


questão em termos da definição social dos papéis a desempenhar. Por essa
ligação às condições de uma interacção dinâmica, os critérios de falsidade
mostram-se muito difíceis ou impossíveis de achar e Goffman (ibidem:
67‑68) tem de passar adiante: “não há razão, muitas vezes, para afirmar que
os factos em desacordo com a impressão considerada constituem uma reali­
dade mais real do que a realidade aparente que eles contradizem (…). Para
muitas questões sociológicas, não é talvez mesmo necessário decidir qual
é mais real, se a impressão dada pelo actor se aquela que ele se esforça
por não transmitir ao seu público. A ideia essencial aqui, dum ponto de
vista sociológico, é simplesmente que as impressões dadas nas representa-
ções quotidianas estão expostas a rupturas. Atribui-se como tarefa apenas

122
O sujeito e a representação

saber que tipo de impressão de realidade pode destruir a impressão de


realidade dada por uma representação, deixando a outros o cuidado de
responder à questão de saber o que a realidade realmente é”.
Vimos como a própria ideia-base do seu pensamento, ou pelo menos
aquela que mais nos interessa em termos da teoria da comunicação, é que
qualquer actividade feita em grupo dramatiza-se, representa-se, porque a
simples consciência do acto e o facto de o mostrar aos outros já produz ine-
vitavelmente a actuação. A falsidade da representação é inerente ao próprio
facto de ser uma representação, isto é, ao facto já visto de o indivíduo, ao
mesmo tempo que executa uma tarefa, tentar dar dela uma impressão que
seja socialmente aceitável: “em geral, a representação de uma actividade
difere em certa medida da actividade em si e por conseguinte falsifica-a
inevitavelmente” (ibidem:67).
Como escreveu mais recentemente Niklas Luhmann, a própria sinceridade,
ao expressar-se, torna-se insincera. Donde, só expressamos a mentira, como
há tantos séculos argumentou Séneca. Basta termos escrito uma carta de amor
para o sabermos: parece-nos que a carta expressa sempre algo de diferente
(algo a mais ou a menos ou de outra qualidade) do que aquilo que sentimos.
Seguindo os raciocínios de Goffman e Eco, ou a tradição do século XVIII,
podemos até propositadamente molhar certas palavras só para dar a sensação
de que involuntariamente borrámos essa expressão mais formal com o nosso
desajeitado sentimento ou corpo.

Acto de manipulação por excelência, a carta instaura uma nova ordem


de verdade; contrariamente ao que afirmava a tradição platónica e patrística,
a verdade não é fruto de uma essência, mas produto de uma dialéctica que
requer a mentira como factor estrutural. Resulta, por conseguinte, de um
percurso, de uma deslocação permanente dos signos tornada possível graças
à própria maleabilidade/plasticidade dos significantes. (Carlos Carreto 42)

Outro exemplo hoje familiar é o dos chats da internet, onde a relação


com os outros e com o seu contexto é teatralizada e fantasiada: assumem­
‑se identidades, personagens, muitas vezes fictícias e efémeras. Dialogamos
com outros sem saber o seu nome, o seu físico, a sua identidade, ou sem
sabermos se sabemos, o que vem dar ao mesmo ou pior.

123
D rama e C omunicação

Seja, porém, na rede, por carta ou face a face, quem sabe dizer, em
qualquer momento das suas palavras, pensamentos, actos e omissões, se
está a ser completamente sincero? E, se nunca podemos dizer se somos
completamente sinceros, nem destrinçar o quanto de verdade e o quanto
de fingimento existe no que fazemos, então talvez fosse melhor considerar
a sinceridade uma categoria numenal e deixá-la fora da discussão. No en-
tanto, a presença dominante da psicologização de que fala Sennett, e o
consequente encarniçamento com que tantos vêm defender o princípio da
sinceridade contra a “encenação”, obrigam a carrear vários argumentos que
mostrem como a questão do sujeito e da sua imaginada transparência são
hoje pensados com muita complexidade

5. Dinis Machado, autor do esplêndido romance O Que Diz Molero, re-


flectiu sobre como a famosa sinceridade se complexifica na interacção
comunicacional.

O espírito de grupo reduz a individualidade. Qualquer fórum aberto opera


resistências à sinceridade essencial. E é através do fórum aberto que se instala
os esclarecimentos e também os lugares-comuns, mesmo se por eles passa
algum conflito (e passam também por ele os conhecidos sinais da aparência).
Mas este espírito de grupo, por outro lado, desenvolve zonas estimáveis de
compreensão recíproca. A sinceridade é aqui um valor pouco persistente,
porque é mais importante, neste caso, a urgência de outros. Daí passarem
nesse espaço não só as mentiras brancas, mas também as omissões, que são
formas de relativizar a sinceridade. (…)
Quem defende, ainda, a impossibilidade de se ser sincero nas relações
sociais protege desse modo equilíbrios estruturais – evita, por exemplo, que
a sinceridade de alguém sobre outrem possa, até, ser ofensiva. Estamos em
zonas frágeis do comportamento humano. (Dinis Machado, Jornal de Notícias,
10-2-2002)

Um autor muito interessante, Thomas Pavel (31), depois de elogiar em


Searle a atitude pragmática e a importância acordada à simulação, critica as
suas regras de asserção, a começar pela regra de sinceridade, que implicaria

124
O sujeito e a representação

que “o locutor gozasse de uma perfeita transparência em relação a si pró-


prio e às suas crenças.” Ou seja, do número infinito de proposições que o
locutor pode enunciar, devia poder definir claramente aquelas em que crê
e ter um mecanismo para rapidamente dizer a propósito de qualquer coisa
que enuncie se pertence a esse grupo, e portanto se foi sincero e se está
disposto a assumir todas as consequências do seu enunciado. Mas a nossa
experiência diz-nos que não funcionamos assim: podemos pronunciar-nos,
por exemplo, sobre a nova liderança do PSD, ou sobre o modelo da cons-
trução europeia, ou sobre um novo concurso da televisão, sem termos
propriamente crenças a esse respeito. Ou então, teríamos que discutir que
profundidade queremos dessa crença. Que dure o tempo da sua expressão,
ou muito tempo? Deve ser simultânea, precedê-la, segui-la? Os epistemólo-
gos debateram muito estas questões, com critérios mais elaborados: por
exemplo, Price (apud Pavel 32) distinguia opinião, convicção e convicção
absoluta e distinguia entre acreditar propriamente dito, o que equivale a
dar o seu assentimento face a provas, e simplesmente aceitar ou dar por
adquirido, acções que relevam, segundo ele, de uma “ausência irracional
de desconfiança”.

Em geral, nós acreditamos mais ou menos num pequeno número de


proposições, sem nos perguntarmos muito se lhes aceitamos todas as
consequências. Muitas vezes, a nossa relação com as proposições é tal que
não sabemos pura e simplesmente se acreditamos nelas ou não. Por vezes
também afirmamos proposições nas quais pensamos acreditar, quando em
realidade aderimos a elas não porque acreditamos nelas mas porque, por
exemplo, admiramos a pessoa de quem as recebemos. (...)
A nossa sinceridade deriva menos do compromisso com tal ou tal asserção
do que da fidelidade aos nossos amigos, às nossas raízes e ao grupo que
delas se reclama. (...)
Sujeitos cuja sinceridade se adquire por participação no grupo não saberiam
defender a verdade da maior parte dos seus enunciados, a não ser por
referência à comunidade epistemológica, e menos ainda sofreriam sem hesitar
as consequências lógicas das suas afirmações. Enquanto indivíduos, raramente
damos prova de qualidades como a sinceridade, a arte de argumentar a favor

125
D rama e C omunicação

das nossas asserções, a vontade de consentir nos seus corolários, excepto


talvez para um pequeno número de proposições em que realmente nos
envolvemos do coração. (...)
A noção de sujeito falante, ponto de origem e mestre dos seus enunciados,
torna-se difícil de compreender. A imagem veiculada pela linguística
contemporânea, de um locutor ideal em posse de uma competência de
linguagem precisa e sofisticada, conhecendo a fundo os pormenores da
sintaxe, a significação das palavras e as regras que controlam as suas crenças
e as suas expectativas, herda demasiado do sujeito cartesiano, esse mestre
imóvel de um espaço interior inteiramente submetido à sua lei. As críticas
vindas de horizontes diversos, entre os quais os ataques de Jacques Derrida
contra a presença-em-si, a crítica desconstrucionista da ideia de mestria
semântica e a abordagem linguística de Jacques Lacan desfizeram essa
concepção de sujeito. (Thomas Pavel 31-33)

Afastamo-nos cada vez mais da ideia, ou do mito, da pessoa como um


“foro interno”, “íntimo”, a qual, como bem analisou José Jiménez (181-185),
se associou, com a modernidade, à ideia de uma razão cartesiana, auto­
‑suficiente, que implicava um eu estável, uno, homogéneo e para isso
precisou de negar os sentidos, o sonho, o inconsciente, a ilusão, o corpo.
Ao contrário dos conceitos relacionais (como amizade, ou autoridade) ou
dos conceitos de regulação (equidade, regras sociais, convenções), todos
eles ligando o indivíduo ao outro, o conceito de “eu” sugere uma diferen-
ciação em que o indivíduo é concebido como um contentor isolado dos
outros indivíduos: passou por um processo de socialização mas o produto
final é uma entidade diferenciada, origem da acção e pensamento e que
até é incentivada a ser autónoma, independente, livre, atenta às ameaças
dos outros. Ora, o conceito de pessoa é uma armadilha teórica tão grande
como a ideia de “comunidade”. Não existe pessoa tal como nunca existiu
comunidade: apenas existem seres complexos, actores sociais, em socieda-
de e em comunicação, seres com histórias, traços, motivações, projectos,
estratégias, defesas, investimentos, narrativas, possibilidades, relações. Como
escreve Duvignaud (1970:16), “inclusive a nossa vida mental que supomos
individual, a nossa pessoa que estimamos eterna e absoluta, acaso não é,

126
O sujeito e a representação

no nosso ‘foro interno’ (que é sem dúvida um mito) uma representação que
nos oferecemos a nós mesmos?” Como se vê deslumbrantemente no caso
de Fernando Pessoa, que, intuindo que nunca temos acesso ao “eu” como
sujeito total (apenas de enunciação), precisou de se desdobrar em perso-
nagens para se conhecer e existir. Ou em Mário de Sá-Carneiro, juntando
ao eu a correlação do outro: “Eu não sou eu nem sou o outro,/ Sou qual-
quer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que vai de mim para
o Outro.” É também através do outro, do que ele pensa de mim e de como
ele se relaciona comigo, que eu me vou conhecendo. O dramaturgo italia-
no Luigi Pirandello publicou entre 1918 e 1935 uma série de peças sob o
colectivo e significativo título Máscaras Nuas, em que o eu é constituído
por facetas mutantes que escondem um abismo e só existe na relação com
os outros, podendo duas personagens ter noções contraditórias sobre uma
terceira. O que requer justamente uma abordagem comunicacional, desde
que não seja pelos esquemas mais primitivos das teorias da comunicação
(com emissor e receptor cartesianamente claros e distintos).

Todo o sujeito é um sujeito barrado, um sujeito de divisão radical (A. Badiou).


Ora todo o esquema jakobsoniano parte de um sujeito pleno, e a sua divisão
interna é transferida para o espaço da comunicação que separa o emissor do
receptor, na medida em que o emissor é apenas o outro permutável com o
receptor. Ora, como escreve Cusin, “para Lacan, pelo contrário, o sujeito é
‘puxado para os quatro cantos’ por um esquema que já não é dual, mas que
se articula ao mesmo tempo com o outro (objecto do meu desejo e imagem
do meu Eu) e com o Outro (lugar inacessível da fala e do desejo)”. (…)
Donde se conclui que, na hipótese de Jakobson, em que nos são propostos
dois sujeitos prévios – iguais, simétricos –, ficamos perante uma alternativa:
ou a relação “tecnocrática” de dois sujeitos que se perfilam na sua equivalência
desencantada e vazia (e temos aqui os modelos “informacionais” da comuni­
cação literária, concebendo sempre a linguagem como instrumento), ou a
relação desenvolvida pela clausura de um imaginário que apenas pode
desembocar na agressão, na captura totalitária, na morte do outro (paixão
do Um, crítica de identificação). Deserto do 2, alienação do 1. Mas, como
escreve Michel Cusin, “pode-se dizer que não há nunca comunicação a dois,

127
D rama e C omunicação

mas sempre interlocução a mais de dois, por causa do Outro que existe em
mim sempre que falo e que existe no outro sempre que ele me escuta”. Donde:
1 + 1 = 3. Do lado do emissor, Jakobson não considera o factor que pode
desencadear o processo de comunicação. Para Lacan, se o sujeito fala, se ele
se dirige a um receptor, é porque não encontra em si o significante capaz
de dar sentido à sua própria fala, e o procura no outro, para que o outro,
que também o não possui, lho conceda: amar é dar o que se não tem. Mas,
nesta solicitação, eu não me dirijo ao outro, sujeito precário, como eu
desamparado, mas ao Outro do outro que, no meu desamparo, nele suponho.
(Eduardo Prado Coelho 459,461)

De facto, mais ainda do que Freud já fizera, Lacan veio mostrar a opaci-
dade do sujeito. Onde antes projectávamos um sujeito uno e soberano da
representação, passamos a ver um sujeito muito pouco “sujeito”: instável, sem
completa consciência do que diz e do que faz, como já o mostrara Nietzsche;
cindido, em múltiplos conflitos, com uma subjectividade que se constrói, como
processo, no domínio do irrepresentável. Lacan (159-160) reage contra o fac-
to de, a partir do cogito cartesiano, ter havido “a acentuação enganadora da
transparência do Eu em prejuízo da opacidade do significante que o determi-
na”: não existe “uma forma justa de responder à pergunta ‘Quem fala?’
quando se trata do sujeito do inconsciente. Porque essa resposta não poderia
vir dele, se ele não sabe o que diz, nem mesmo sabe que fala, como nos
ensina toda a experiência da análise. Por isso o lugar do inter-dito, que é o
intra-dito de um entre-dois-sujeitos, é esse mesmo onde se divide a transpa-
rência do sujeito clássico para passar aos efeitos do fading que especificam
o sujeito freudiano.”
Procurando afastar-se das noções lógica, gramatical, psicológica ou
transcendental, Lacan defende que “o ‘eu’ é um fenómeno da Linguagem, uma
‘aparição’ sua e não o seu centro ou orgão de apropriação.” A verdade é ‘dita’
pelo conjunto dos fenómenos culturais, permanecendo os participantes neles
fora dela. Como acrescenta Julia Kristeva (passim 82-112), ao reconhecermos
a presença incontornável da linguagem e a sua intertextualidade, colocamo­
‑nos num inter-dito, que é um intra-dito entre sujeitos: passamos da transparência
cartesiana à opacidade freudiana, e da noção de “pessoa sujeito” a uma outra,

128
O sujeito e a representação

que é a de ambivalência. Compreendemos assim, escreve Adriano Duarte


Rodrigues (1986:175), “o estatuto ambivalente e paradoxal do sujeito de
enunciação, deixando de o considerar como simples emissor para o encarar
como ‘nó politópico’”: os processos de comunicação não são rectilíneos, são
de troca e de interferência; das suas estratégias fazem parte mecanismos de
feed-back, de double-bind, de astúcia, sedução, persuasão, representação.
Por sua vez, o estruturalismo e a hermenêutica vieram reforçar a ideia
de que a linguagem é tão pouco transparente como o sujeito: em vez de
um instrumento dócil de um sujeito claro, a linguagem é o lugar da com-
plexa constituição do sujeito. Se, no seu início, como criticou Ricoeur, a
tarefa hermenêutica ainda era entendida de modo psicologizante como re-
constituição do génio singular do autor, mais tarde, aproximando-se da
fenomenologia heideggeriana, desvalorizou o pólo do sujeito a favor de uma
noção de linguagem na qual e pela qual o sujeito se define. Por seu lado, os
estudos formalistas e estruturalistas (em diálogo com certas experiências lite-
rárias) acentuaram o cepticismo a respeito do sujeito como autor ou origem
do sentido e colocaram a própria linguagem como actor fundamental da obra
literária. O pós-estruturalismo ultrapassou a imagem de um sujeito submetido
ao código da língua para acentuar o código como jogo incontrolável de dife-
renças, desorganizado, fazendo assim desaparecer esse último reduto da
racionalidade estável do sujeito. Por seu lado, a Filosofia da Linguagem de-
senvolveu as intuições Wittgensteinianas de “regra”, de “jogo de linguagem”
e de “formas de vida” encerradas na linguagem, como práticas linguísticas e
não linguísticas determinantes na constituição do sentido e da subjectividade,
mostrando que a significação não pode ser compreendida por referência uni-
camente a um sujeito dado.

6. Ou seja, como bem sintetiza Adriano Duarte Rodrigues (2003:33), “é na


linguagem que a realidade acede à experiência e o discurso é o modo como
a realidade se constitui ou se encena como experiência”. Não se trata, pois,
de ser dono de uma verdade e apenas usar a linguagem para a dizer (“truth
well told” ou “dizer bem toda a verdade”, como no lema, internacional e
português, da agência de comunicação e relações públicas McCann Imagem).
Mas tão pouco se trata da roda livre de uma linguagem sem qualquer per-

129
D rama e C omunicação

tinência em relação ao real ou que pressuporia a inexistência desse real.


Mesmo Nietzsche, ao propor a inversão do platonismo, não se propunha
quedar-se no espelhismo infinito das aparências, mas sim ir mais além da
aparência e da realidade. Nietzsche abria para uma atitude perspectivista,
hoje fundamental: não se trata de negar que o real existe, mas de assumir
a inevitabilidade de construímos nomes, imagens, metáforas, linguagens,
não para substituir o real, mas para procurarmos aproximarmo-nos dele e
lidar com ele.
Os artistas sabem-no muito bem. “A arte é uma mentira que nos ajuda
a descobrir a verdade”, afirmava Picasso. “Sou mentiroso mas sou sincero”,
dizia Fellini. Ou seja, só dentro de uma construção que faço é que posso
procurar ser verdadeiro. É aproximadamente o que diz Goethe pela boca
de uma interposta máscara, Wilhelm Meister:

– Excelente! – disse Wilhelm. – Pois numa sociedade em que as pessoas


não se dissimulam, em que cada um apenas segue o seu pendor, a graça e
a satisfação não podem manter-se durante muito tempo, e onde a gente se
dissimula sempre não entram de todo. Portanto, não está mal cedermos à
dissimulação, logo desde o princípio, e sermos, em seguida, tão sinceros
quanto quisermos, debaixo da máscara. ( Johann W. Goethe Livro II 159)

“O homem é menos ele quando fala na sua pessoa. Dêem-lhe uma más-
cara e ele dirá a verdade”, afirma no mesmo sentido Oscar Wilde. Ou, na
fórmula mais complexa mas por isso mesmo insuperável de Pessoa: “O poe-
ta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor
/ A dor que deveras sente.”
Ainda hoje se associa muitas vezes a poesia lírica à maior expressão de
um sujeito dito “verdadeiro”, apesar das posições de Pessoa sobre o fingi-
mento, ou das de Eliot sobre a impessoalidade da arte, ou do tão célebre
verso de Rimbaud “Je est un autre”. Ou seja, na lírica a busca desse além
da aparência e da realidade reverte frequentemente para os abismos do eu.
Creio ser na ficção, enquanto criação de seres (personagens, lugares, situa­
ções, acções) imaginários, ou de mesclas de seres imaginários com seres
reais, em todo o caso directa ou indirectamente pertinentes para nós, que

130
D rama e C omunicação

melhor se colocam, e já, colocando, em parte se resolvem, as questões do


sujeito e da linguagem e do processo da sua constituição.
Conforme comenta Paul Auster (279-280), não é por acaso que há tantas
ficções em que um detective lida com os problemas que temos em manter
uma identidade convencional, arriscando-se, nessa tentativa de tudo com-
preender, a só desvelar mais mistérios: as personagens da sua The New York
Trilogy, diz, perseguem a questão de quem somos ou não somos, vão-se
despindo até uma condição em que têm de encarar quem realmente somos;
“ou quem não somos, no fundo vai dar ao mesmo”. A multiplicação é sem-
pre uma indeterminação, uma não-coincidência com a verdade. “Já não sou
eu, mas outro que mal acaba de começar”, escreveu Beckett. “Dentro de
mim há um outro eu que está zangado comigo”, diz Sir Thomas Browne,
numa frase que Graham Greene coloca em epígrafe ao seu primeiro roman-
ce, The Man Within (em português, O Outro Eu).
E, dentro da ficção, é sobretudo na ficção dramática (e sobretudo quando
ela é realizada em palco) que melhor se testemunha a realidade a encenar-se
como experiência: em vez de uma verdade absoluta, o drama desdobra e
multiplica as verdades e sobretudo coloca-as numa cena onde se defrontam.

Se não existe obstáculo, não existe nó dramático; porque o nó resulta


normalmente das intenções opostas das personagens. (…) Descobrir-se-á
quase sempre duas acções, ou mesmo mais, numa tragédia. Qual será então
a acção principal? Cada um considerará a sua como a mais importante, porque
cada um é o seu próprio centro para si próprio. (…) Pode objectar-se que
uma resolução negativa não deve ser considerada senão como o complemento
de uma resolução positiva. Todavia, o que acontecerá quando as personagens
não tenham pura e simplesmente intentos opostos, mas projectos completamente
diferentes? (August-Wilhelm Schlegel, in Borie et al 264)

No mesmo sentido escreve Hegel (in ibid. 328): “as circunstâncias da


acção dramática são de tal espécie que cada personagem encontra obstá-
culos vindos da parte das outras personagens. Descobre no seu caminho
um objectivo oposto ao seu, que busca igualmente realizar-se.” Ou, nas
palavras mais recentes do encenador Peter Stein, “de cada vez que o teatro

132
O sujeito e a representação

transmite uma mensagem, o público espera que se produza sem tardar o


contrário, que a palavra depressa se revele mortal, por exemplo. Porque
essa é a lei do teatro: cada fala, cada palavra pronunciada sobre um palco
despertam a contradição. O teatro produz a contradição para que a acção
possa prosseguir.” A colocação em cena do sujeito, do outro e da sua comu-
nicação mostram como o drama (em teatro, em cinema, em dança, em ópera...)
é um lugar privilegiado para o pensamento do uno dar lugar ao pensamento
das diferenças e das perspectivas. A mise-en-scène corresponde, se não à
invenção, pelo menos à mais clara e talvez à mais profunda realização do
perspectivismo.
Para ilustrar esta minha posição sobre a potência perspectivista do theatron,
é fácil realizar em grupo um exercício inspirado no psicodrama (Moreno, 1984
e 1997). Um voluntário vem ao “palco” e chama colegas que representem os
seus pais e irmãos; em seguida, o voluntário coloca-os no espaço; por fim,
coloca-se a si mesmo na posição que melhor entende em relação aos restan-
tes membros da sua família. Segue-se a mera descrição, pelos que ficaram de
fora, do que vêem: por exemplo, uma mãe na frente, agarrada a duas filhas,
um irmão isolado, e no fundo, virado noutra direcção, o pai. Que contraste
com o voluntário seguinte, em que temos, por exemplo, a mãe e o pai de
mãos dadas entre si e a uma irmã mais nova, e o próprio voluntário no fun-
do, de costas! E como o simples pôr em cena daquilo que já se sabia produz
um conhecimento muito mais profundo, por vezes surpreendente para o pró-
prio voluntário, mesmo violento. Ao fim de dois ou três casos torna-se
claríssima a potência do theatron, do dar a ver, da exteriorização cénica da
interioridade, que, como já referimos, Hegel bem conhecia e de certo modo
temia. Uma aparência que é afinal uma realidade, pelo menos para aquele
sujeito – diferente seria a mise-en-place feita pela mãe ou pelo irmão, e no
final pode chegar a pedir-se ao último voluntário que imagine a disposição
da família antes de o irmão mais novo nascer, numa breve sugestão do que
o psicodrama pode desenvolver.

7. Detenhamo-nos em Shakespeare, que não deixa de experimentar, ou de


pôr em cena, as virtualidades e os limites da representação e a possibilidade
de uma existência não representada. Por exemplo, na peça Rei Lear (que se

133
D rama e C omunicação

inspira em lendas de que temos, em Portugal, o caso d’A Guardadora de


Patos), faz Cordelia, a filha mais nova de Lear, calar-se, recusar-se a tornar
insincera a sua sinceridade, comunicando-a. Cordelia nega-se a fingir que
é amor o amor que deveras sente: Lear deserda-a mas é essa a única filha
em quem vai acabar, tarde demais, por poder confiar. Superando todas as
expectativas da própria tragédia, Shakespeare elabora e leva ao último li-
mite (a morte da filha nos braços do pai), essa recusa da representação.
(Na nossa Guardadora de Patos, curiosamente, não é total a recusa de tra-
duzir por palavras esse amor; apenas a imagem escolhida, o sal, é menos
lisonjeira e adocicada do que as imagens das irmãs e do que seria de es-
perar. E o final é feliz.)
Mas creio que é em Hamlet que podemos encontrar um mais complexo
desenvolvimento desta questão. Órfão de pai, mais órfão talvez da mãe que
o traiu com o tio, sem ter em quem confiar, Hamlet tão pouco conhece a
adesão epistemológica a uma comunidade onde possa alicerçar crenças,
enunciados, argumentos, consequências e a sua própria sinceridade, no
sentido que atrás estudámos com Pavel. Repare-se que Hamlet, como
Cordelia, despreza as palavras – words, words, words –, lembra que não é
honesto pôr certas coisas por escrito. Quando a mãe lhe pergunta o que
lhe parece tão singular, ele responde:

HAMLET: Parece não, senhora, é; não conheço o “parece”.


Nem o meu negro manto, amada mãe,
Nem as vestes rituais deste solene luto,
Nem a oprimida brisa dos suspiros,
Nem o abundante rio dos meus olhos,
Nem o porte de face tão vencida,
Nem todos os modos, formas e sinais de dor
Me podem exprimir. Pois os sinais parecem,
Podem ser representados e fingidos,
São apenas a veste e o aparato do luto.
Mas o que está em mim excede o gesto. 1

1 Acto I, cena 2. Usámos a tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen (21).

134
O sujeito e a representação

Ou seja, Hamlet reconhece que há coisas que podem ser fingidas por
sinais como o luto, as lágrimas e os suspiros, mas, pelo menos nele, Hamlet,
que, apesar de continuar a vestir-se de preto e a mostrar sinais de dor, se
recusa a dar importância a esse jogo, há alguma coisa que não entra no
jogo da representação. Sintoma evidente de que já se destaca uma noção
de pessoa, presente também na recomendação de Polónio ao filho, to thine
own self be true. Vários autores têm mostrado como o indivíduo renascentista
já não se quer agrilhoado à condição feudal de nascença e desenvolve uma
noção de carácter não herdado mas escolhido e construído por si próprio.
Sem chegar ainda à plena subjectividade, que só surgirá com o romantismo,
Hamlet aponta já para uma demanda de interioridade e profundidade:
“o que está em mim excede o gesto”.
Repare-se como este é o único verso afirmativo depois de tantas negações.
Por isso Terry Eagleton (171) pôde argumentar que “o sentido do eu único
de Hamlet mais não é do que a negação de tudo”. Como nota Wilhelm
Meister (Goethe Livro IV 319), “é em vão que seu tio o quer encorajar,
mostrar-lhe a sua situação sob um outro ponto de vista; o sentimento do
seu nada nunca o abandona”. O príncipe do reino podre, como outras
figuras de malcontent da tragédia jacobita, revela e produz um descentramento
que não tem ainda, nem terá talvez depois, mais do que o vazio a ocupar
o lugar dessa subjectividade. 2

De duas formas se tem vindo a contestar a noção de subjectividade ple-


na implícita nessa psicologização: ou revelando que a identidade não é tão
livremente construída quanto se julgava, ou considerando que é legível na
tragédia de Shakespeare, e em muitas das tragédias jacobitas, um descentra-
mento ou um “vazio” como ocupando a zona dessa imputada subjectividade.
(…)
“Os escritores do Renascimento (…) estavam activamente envolvidos num
desafio à ideologia” ( Jonathan Dollimore). Uma das consequências maiores

2 Vários séculos mais tarde, Álvaro de Campos escreve de um modo que nos faz lembrar
esta problemática, no poema “Tabacaria”: “Como os que invocam espíritos invocam espíritos/
invoco a mim mesmo e não encontro nada.”

135
D rama e C omunicação

desta atitude é o “descentramento do homem”, no sentido de lhe recusar uma


essência ou natureza inalterável. A figura do malcontent da tragédia jacobita
é, assim, um “protótipo do sujeito moderno descentrado, o suporte de uma
subjectividade que não é a antítese do processo social, mas o seu foco, em
particular, o foco da contradição política, social e ideológica” (Dollimore).
(…) Ou seja, de algum modo estaria a problematizar a subjectividade mais
do que a apresentar o homem como uma unidade espiritual ou psicológica,
provando que a identidade é uma ficção, ou melhor, uma construção. Daqui
decorrem os comportamentos da hipocrisia, mas também a “consciência de
um eu como flexível, problemático, indefinível, deslocado – e, como é evidente,
contraditório” (Dollimore) – que acompanha, de resto, a ideia de instabilidade
e de mudança permanente no mundo. (Maria Helena Serôdio 175-176)

Podíamos ainda acrescentar que, nessa exaltação da subjectividade, a pró-


pria pessoa-sujeito se pode retirar de cena. Michel Foucault (2002:70-71)
mostrou, por exemplo a partir da tela de Velásquez As Meninas, de 1656,
como, na “dispersão que ela ao mesmo tempo recolhe e exibe, é imperio-
samente indicado em todas as partes um vazio essencial: a desaparição
necessária daquilo que a funda – daquele a que se assemelha e daquele
aos olhos do qual ela não passa de Semelhança. Este sujeito mesmo – que
é o Mesmo – foi elidido. E liberta, finalmente, dessa relação que a acorren-
tava, a representação pode oferecer-se como pura representação”. Algo de
aproximável, não apenas na cronologia, tem sido apontado no teatro desde
o tempo de Shakespeare. São muitas as peças isabelinas em que o self­
‑fashioning, a automodelação a que se aspira, vive num espaço social,
ideológico e cultural em que é “permanentemente adiada e historicamente
incompleta” (Greenblatt 254-256), autoconstruída e autodestruída como no
exemplo de Othello. No mesmo sentido, Deleuze (2003) insiste que nem
O Rei Édipo nem Hamlet são tragédias no sentido aristotélico: porque en-
cenam o desfazer do sujeito no acontecimento.
Vários estudos têm argumentado como a enigmática riqueza de Hamlet,
sempre atento aos pontos de vista dos que lhe são diferentes, sempre acei-
tando tudo para os outros embora nada para si, provém justamente da
perspectivação múltipla que vai sendo introduzida ao longo desta peça em

136
que há uma ausência de centro, uma disseminação, em que Hamlet deseja
e recusa as várias posições do sujeito que lhe são propostas, em que quem
agora vigia é depois vigiado, em que há uma constante “reversibilidade de
sentidos entre verdade e mentira, autenticidade e afectação” (Serôdio 180),
“dúzias de confrontações com retratos, imagens e espelhos” (Frye, 1986:93).
E se Hamlet tem sido chamada a Esfinge ou a Mona Lisa do teatro, melhor
seria chamar-lhe, pelo seu poliedrismo, a Demoiselle d’Avignon.
Mesmo alguém tão infinitamente perceptivo como Hamlet acaba por aceitar
(é certo que com tristeza e claustrofobia) que ser humano é ser finito, é ser
em certo sentido um prisioneiro (Frye, 1986:98). Stanley Cavell vê a evolução
de Hamlet, dividido entre to be or not to be, como um trabalho progressivo de
aprendizagem do luto por parte de alguém que quer viver e provar que existe,
e para isso tem de abandonar passo a passo o cepticismo ligado ao infinito,

137
D rama e C omunicação

ao vazio, à negação do valor do mundo: porque, diz Cavell (187), to be, “existir,
é tomar nas mãos a sua existência, passá-la ao acto, como se a base da
existência humana fosse o teatro” – mesmo que algures guardemos, como
Hamlet, a sensação de que se é estranho a essa finita e melodramática condição
humana3.
“Não conheço o parece”, nem as vestes rituais, nem a máscara da dor,
nem todos os sinais que podem ser representados e fingidos. Isto diz Hamlet
na segunda cena da peça. Com o tempo, porém, o que faz ele? Representa
e faz representar. Começa a tomar atitudes estranhas, an antic disposition,
de modo que nem Ofélia, nem Polónio, nem a mãe, nem porventura ele
próprio, sabem já onde estão as fronteiras entre o fingidor e o fingimento,
entre a razão e a loucura. O que pretende com essa afectação? Desmascarar
as falsidades e venalidades de personagens como Polónio, Rosencrantz,
Guildenstern e sobretudo o rei e a rainha, se as tiverem. E para levar a
cabo o que o seu próprio fantasma lhe pede, acaba por aderir à teatralida-
de, tornando-se dramaturgo e encenador de uma pequena peça. Hamlet
conhece o poder da exteriorização teatral, de colocar o homem a ver de
fora os seus próprios actos (e, ao contrário de Platão ou Rousseau, não
teme que esse espectador se comova, antes, como Aristóteles, valoriza esse
efeito): “Ouvi contar / Que certos criminosos, assistindo a uma peça, /
Foram de tal forma, e até ao fundo da alma, atingidos pela arte da cena /
Que logo confessaram seus maus actos” (Acto II, cena 2). E decide fazer o
mesmo para, estudando a reacção de Cláudio, ficar finalmente a saber se
foi ou não o tio quem assassinou o pai. O drama torna-se o seu pharmakon,
o seu contra-veneno. Eis uma grande evolução, para quem tinha começado
por declarar que nem sequer conhecia os “parece”, os fingimentos, e afinal
só consegue o que quer por meio do teatro: “The play’s the thing”, diz na
frase que encerra o 2º acto.

3 Tão estranho permanece Robert Walser a este processo que rejeita claramente Hamlet:
“Vemos justamente graças a Hamlet que o amadurecimento é uma obrigação, por isso uma
coisa completamente indesejável. Para nós, que vivemos, é antes uma imaturidade bem gentil,
alegre, que devemos desejar. (…) Na vida, a sabedoria suprema é a alegria de viver, a de
existir aqui em baixo, isto é, tanto quanto possível, ficar imaturo.” Ver “Ensaio sobre Hamlet”,
de 1926, em Walser, p. 74.

138
O sujeito e a representação

No fim dessa peça, Hamlet fica a saber o que quer e parece até sentir
algum desprezo pelas personagens mais simples e unidimensionais, como
Laertes. Se quisermos usar os termos da psicologia, ele passou do quadro
do play-action ao do play-acting, da acção à actuação: tal como as crianças,
que vão aprendendo que não lhes basta querer uma coisa ou berrar por
ela, e que terão melhores resultados se desenvolverem estratégias comuni-
cacionais para a conseguirem.
Se afinal não podemos recusar o parecer e se os nossos objectivos só
podem ser realizados através de uma deliberada estratégia perspectivista
de representação e encenação, quer dizer que há uma dimensão dramática
fundamental na nossa existência em sociedade, na comunicação. Podemos
com a evolução de Hamlet perceber que a identidade de alguém não é
aquilo que escapa ao jogo da representação, mas, pelo contrário, que a
identidade, pelo menos a identidade social (mas haverá outra?) só começa
a existir quando alguém se situa nesse jogo. Hamlet só depois da represen-
tação, e até da peça, é que começa a saber quem é e quem os outros são.
A máscara, persona, é constitutiva da pessoa, da identidade, muito embora
hoje tenhamos sempre tendência a falar dela, com alguma facilidade, no
sentido pejorativo.

Em Roma, cada indivíduo era identificado por um nome que exprimia a


sua pertença a uma gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida
pela máscara de cera do antepassado que cada família patrícia guardava no
átrio de sua casa. (…) Persona acabou por significar a capacidade jurídica e
a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, do mesmo modo
que não tinha nem antepassados, nem máscara, nem nome, não podia tam-
bém ter uma ‘pessoa’, uma capacidade jurídica (servus non habet personam).
A luta pelo reconhecimento é, portanto, luta por uma máscara, mas a más-
cara coincide com a ‘personalidade’ que a sociedade reconhece a cada
indivíduo (ou com a ‘personagem’ que, com a sua conivência por vezes re-
ticente, ela faz dele). (Giorgio Agamben, 2010:61-62)

“Usar uma máscara é a essência da civilidade”, diz Sennett. A minha


representação como professor, mesmo que seja uma máscara que eu não

139
D rama e C omunicação

queira que se me cole completamente à cara, é, no mínimo, uma parte


constitutiva da minha identidade - “sou” professor da Universidade Nova
de Lisboa. Hoje em dia o mais difícil de ser aceite é a ideia de que essa
máscara possa ser mais do que a atitude maquiavélica de “fingir e disfarçar”
o que está por dentro: que possa, ao mesmo tempo que esconde, revelar
ou constituir a identidade.

Não é provavelmente por um puro acaso histórico que o termo pessoa,


no seu sentido primeiro, significa uma máscara. É antes o reconhecimento
do facto de que toda a gente, sempre e em toda a parte, representa um pa-
pel, mais ou menos conscientemente. (...) É nesses papéis que nós nos
conhecemos uns aos outros, e que nos conhecemos a nós mesmos. Num
certo sentido, e na medida em que representa a ideia que nós fazemos de
nós mesmos – o papel que nos esforçamos por assumir – esta máscara é o
nosso verdadeiro me, o me que nós gostaríamos de ser. No fim, a ideia que
nós temos do nosso papel torna-se uma segunda natureza e uma parte inte-
grante da nossa personalidade. Vimos ao mundo como indivíduos, assumimos
uma personagem e tornamo-nos pessoas. (Robert E. Park, apud Goffman,
1973:27)

Os últimos séculos afastaram, infelizmente, a ideia de pessoa desta ideia


de máscara, a qual passou a ser associada a mentira. O que também se
pode perceber na etimologia de outra palavra, comentada por Duvignaud
(1970:21): “Actor diz-se em grego ‘hypocrita’, isto é, aquele que representa
uma personagem. Compreende-se então o sentido que esta palavra tomou
posteriormente, a partir do momento em que o homem se preocupou em
confrontar (ideia inconcebível noutros grupos civilizacionais) aquilo que
representa e certa imagem absoluta e pura do ser interior – que por sua
vez parece uma ficção exclusivamente europeia”, como ficções são para
nós as possessões deles.

8. Se recorrermos de novo a Shakespeare, mas desta vez a uma cena de


Ricardo III (acto I, cena 2), podemos avançar ainda um pouco mais esta dis-
cussão. Quando a rainha Ana acompanha o funeral do seu marido, surge-lhe

140
O sujeito e a representação

Gloucester, aquele que o matou, e que ali mesmo lhe declara o seu amor.
Ana chama-lhe fingidor, dissembler, mas o caso é que, ao longo desta genial
cena, a rainha, e o espectador com ela, acabam por começar a acreditar nas
palavras e gestos do assassino, e por desculpar o acto em nome da paixão.
É só no fim da cena que, em monólogo, Gloucester se auto-desmascara, fala
da sua aparência dissimulada, revelando-se ele próprio surpreendido com o
resultado da sua brilhante performance: conseguiu conquistá-la sozinho, no
próprio momento do funeral do marido dela, diante do próprio corpo que
esfaqueou, tal como lhe assassinou o sogro! Ele, que ainda por cima é coxo
e corcunda e não faz tenção de a manter por muito tempo?
Significa isto que ele é cínico? Gloucester conclui o contrário: antes é
que andava enganado sobre a sua pessoa (I do mistake my person all this
while). Ele não duvida da representação face aos resultados que teve, du-
vida é daquela “pessoa que antes pensava ser”. É que a representação tem
efeitos, e muito concretos: Gloucester há-de chegar a rei, e passar a achar
que é essa a sua mais evidente e inatingível identidade – tal como o alferes
do conto de Machado de Assis trocou de bom grado as suas dúvidas exis-
tenciais pela sua espelhada imagem de farda.

141
D rama e C omunicação

Essa genial cena de Ricardo III acaba com o Duque a pedir ao sol que
brilhe para que ele possa ver a sua sombra quando passa. Mantenhamos
ainda a dúvida do início desta lição: será que podemos mesmo abrir mão,
sem mais, de alguma distinção entre o ser e a sua representada projecção?
Entre o I e o Me, para usarmos os termos dos interaccionistas, isto é, entre o
meu íntimo e o papel social que desempenho? Ou, para usar os termos de
Paul Ricoeur, entre a parte de mim que é sólida e constante, o idem, e aque-
la parte que se vai transformando no contacto com o outro, o ipse? Mas se o
próprio Hamlet já tinha, no século XVI, tantas dúvidas sobre a sua solidez, se
já Iago, no início de Othello, exclamava “I am not what I am”, como podemos
nós agarrar-nos a tal ideia, depois de vermos Fernando Pessoa encontrar a
sua identidade no desdobramento, depois de lermos Joyce oscilar sem defi-
nição nem marcas entre o seu discurso e o das personagens, depois da
crítica do sujeito por parte da psicanálise, da filosofia da linguagem, da her-
menêutica, do estruturalismo, do desconstrutivismo, e quando os mesmos já
nos fizeram compreender que a linguagem também não é um instrumento
dócil, depois de a modernidade tardia se ter definido como época de simu-
lacros... Nós, que vivemos numa época que Gilles Lipovetski bem definiu
como “sismográfica”, em que o idem, a parte sólida, é cada vez menor porque
se tende a mudar constantemente de casa, de profissão, de parceiro, de hob-
bies... Já numa das suas primeiras peças, Man ist Man (de 1926), Brecht
mostra, segundo o comentário de Benjamin (1987:86), que “um homem é um
homem, um estivador é um mercenário. Ele convive com a sua natureza de
mercenário, do mesmo modo que convivera com a sua natureza de estiva-
dor. Um homem é um homem: não se trata de fidelidade à sua própria
essência, e sim da disposição constante para receber uma nova essência.”
Agamben (2010:68) considera que é ainda a culpa oriunda da ética as-
cética dos estóicos, “porque fundada numa cisão (entre o indivíduo e a sua
máscara, entre a pessoa ética e a jurídica)” que, por reacção (num tempo
em que a identidade é cada vez mais sem pessoa, fundada em processos
biométricos ou biológicos, impressões digitais ou ADN), faz actualmente
surgir “a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita das
máscaras. No momento em que prega o indivíduo a uma identidade pura-
mente biológica e associal, promete-lhe que o deixará assumir na Internet

142
O sujeito e a representação

todas as máscaras e todas as segundas e terceiras vidas possíveis, nenhuma


das quais poderá alguma vez pertencer-lhe propriamente.”
Procurando a quadratura do círculo, um disco do músico brasileiro Gabriel,
o Pensador, lançou como título e lema: “Seja você mesmo mas não seja sem-
pre o mesmo”. Mudamos, decerto, por sentirmos que nenhum dos papéis nos
é suficiente, embora cada um deles, por uma ou outra razão, num ou noutro
momento, possa ser necessário ou corresponder à procura de nós mesmos.
Aproximamo-nos então da solução que proponho para a questão levantada
em toda esta lição. Eu apresentar-me como professor não é uma máscara
mentirosa: é uma parte de mim. No entanto, o que está em mim excede esse
papel. Por isso, ao mesmo tempo que na vida quotidiana procuramos fixar o
outro numa só identidade que simplifique a interacção, como vimos com
Goffman e Sartre, reagimos mal, cada vez pior, à redução de nós próprios a
um papel. Sentimos sempre cada representação como uma amputação do
nosso ser, o qual nunca se revê completamente em qualquer das suas apre-
sentações (e é uma estabilização também, como mostra Goffman, ao contrário
do que pretende Ricoeur: o papel assumido na interacção social tem de ser
mais estável do que as flutuações pessoais de cada um, e isso dói-nos). Por
causa desse sentimento de amputação, não há maior insulto do que dizer a
alguém: “não passas de tal”.
Infelizmente, não há qualquer papel tão total que evite a amputação, e
é esse o drama da impossível sutura. Mas, repare-se, estamos então a
reconhecer que cada representação é uma parte de nós, e não uma mentira:
apenas é insuficiente, isto é, mente em relação à nossa totalidade. Só que
essa totalidade também sabemos hoje que é muito mais sonhada do que
real: é da ordem do fantasma, e faz parte da natureza dos fantasmas, mesmo
quando nos visitam como visitaram Hamlet, não conseguirem encarnar-se
completamente no real. “Logique de la hantise”, da assombração, disse
Derrida (1993) a propósito de Hamlet: “hantologie” que pode ser mais forte
do que uma ontologia. A nossa relação com o espectro é essencial, nela se
joga a relação connosco próprios e com o outro, que não está presente mas
não pára de regressar: a experiência do lugar singular de onde posso falar
vem dessa relação, da filiação, do apelo, da interpelação. Pensamos, como
Rimbaud: La vraie vie est ailleurs. O mundo é um palco e a vida é um sonho.

143
D rama e C omunicação

A consciência não consegue chegar a coincidir consigo mesma, dada a


complexidade da linguagem, a lógica da relação e a alteridade infinita,
irredutível do outro. Para Lacan, a totalidade identitária do “je” é a imagem
ilusória do “moi”, com a qual nos identificamos: talvez necessária como
ideal regulativo, ambição, utopia ou até castrador controlo, como o pai de
Hamlet, que não o deixava viver.
Por isso Emmanuel Levinas (1906-1995) propõe que se substitua a ideia
redutora de “totalidade” pela ideia de “infinito”. E há que aceitar que não
é possível querer ancorar esse infinito numa única, íntima e subjectiva di-
mensão identitária, que se sobreporia aos múltiplos níveis (histórias,
motivações, estratégias, projectos) que constituem a própria personalidade
e que ignoraria a relação constitutiva com o Outro.
Isso mesmo compreende o fabuloso Peer Gynt, de Ibsen, quando no fim
da vida passa em revista as sucessivas fases da sua polifacetada existência.

PEER GYNT: Ah! Velho louco, com a cabeça sempre cheia de fantasias!
Tu não és imperador nenhum, és só uma cebola! E eu agora vou descascar­
‑te, querido Peer! Não te serve de nada chorar nem suplicar. (Pega numa
cebola e descasca-a capa por capa.)
Aqui vai a capa de fora, toda rota: é o homem naufragado, agarrado aos
destroços do barco.
Esta capa é o passageiro – está miserável e gasta, mas conserva ainda um
leve sabor a Peer Gynt.
Esta que está por baixo é o eu do explorador de minas de ouro; já não
tem sumo nenhum, se é que alguma vez o teve.
Esta capa grossa, com a camada ressequida, é o caçador de peles da baía
do Hudson.
A que vem a seguir parece uma coroa – não, muito obrigado! Vamos
deitá-la fora sem mais explicações.
Esta é o arqueólogo, pequena mas vigorosa.
E esta, fresca e suculenta, é o profeta. Como dizem as escrituras, ele
tresanda tanto a mentiras que enche de lágrimas os olhos das boas pessoas.
Esta capa que se enrola sobre si, muito delicada, é o grande senhor que
leva uma vida de luxo e prazer.

144
D rama e C omunicação

A que vem a seguir parece doente. Tem estrias pretas; o preto pode
significar escravos e missionários.
(Tira várias capas de uma vez.)
Mas as capas nunca mais acabam! Quando é que o coração aparece?
(Desfaz a cebola em pedaços.)
Não, ele não aparece! Chega-se ao interior mais interior do centro e não
há nada, só capas – capas pequenas, cada vez mais pequenas. A natureza é
muito engraçada!
(Atira fora o resto.)
Acabaram-se as meditações! Quem anda mergulhado em pensamentos
profundos, tropeça com facilidade.
Desse perigo posso eu rir-me à vontade, porque já estou de gatas no
chão. (Henrik Ibsen 4)

Sabemos assim, cenicamente, que não há uma identidade última que pos-
sa dizer a verdade sobre as outras. Samuel Beckett avisou: arrancadas todas
as máscaras, por trás estaria o vazio ou a morte. A cebola não tem caroço,
apenas capas. No jogo tenso, dramático, entre a representação e a realidade
que a excede e lhe resiste, a verdade será sempre procurada mas sempre
existirá apenas, parcialmente, pluralmente, como ideal a regular as múltiplas
posições do grande teatro do mundo, ou do mundo como teatro. A busca de
uma subjectividade que é da ordem do fantasma cresceu nos últimos séculos
mas essa subjectividade é menos real do que as máscaras que assumimos.
Isto não significa que devamos abandonar uma busca que, em termos de
crescimento pessoal, nos pode levar cada vez mais longe, além das represen-
tações superficiais e estereotipadas. O valor de Peer Gynt é justamente ter até
ao fim procurado ir mais fundo no conhecimento do mundo e de si próprio.
Mas quanto melhor conhecermos e assumirmos as máscaras maior liberdade
e profundidade poderemos ter nessa subjectiva demanda.
É essa, ou pode ser essa, a importância de assumirmos e pensarmos o
espectáculo, o theatron, o dar a ver. Temos de recuperar para a teoria da

4 Usámos a versão de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos para o espectáculo de
2002. Não publicada.

146
O sujeito e a representação

comunicação este programa: theatrum mundi, el gran teatro del mundo, all
the world is a stage. Felizmente que a representação nos pode dar, como deu
a Hamlet, perspectiva e clarividência. Ao mesmo tempo que a análise drama-
túrgica permite estar atento às máscaras e encenações que sem ela poderiam
passar despercebidas e mais perigosamente eficazes, a arte do drama profis-
sional surge como um território onde pode haver espaço e tempo físicos para
o risco do desnudamento, para ir descascando as várias máscaras e para lhes
ir dando, não um caroço, mas uma encarnação possível. Porque assistir silen-
cioso às máscaras estereotipadas das vedetas da política ou da televisão é
menos interessante do que assistir, e mesmo participar, nesse acto vertigino-
so em que os profissionais do espectáculo, que mais devem saber das
máscaras, aceitam (quando aceitam) brincar com elas e tirá-las, com uma
atracção pelo perspectivismo e uma vulnerabilidade a que os outros não se
sujeitam. Nesse sentido, o drama é ou pode ser o sal da terra, em vez do mel:
pode ser a representação menos convencional, a palavra, o silêncio ou o
gesto mais vitais, aquele sal reconhecido tardiamente, como revelação e cas-
tigo, na Guardadora de Patos, aliás Cordélia.

147
(Página deixada propositadamente em branco)
5 . A N T RO P O L O G I A DO E S P EC TÁC U LO

1. Argumentada que foi a importância constitutiva da teatralidade, avan-


cemos por agora na sua antropologia. Muitas teorias têm visto nos mais
variados rituais formas pre-teatrais: e, por abusiva generalização, têm mes-
mo associado todo o pre-teatro aos cultos religiosos. Vejamos primeiro o
abuso e depois as próprias teorias.
Não há dúvida de que aquilo a que, com tantas variações, costumamos
chamar teatro encontra o seu nome e o seu início na Antiga Grécia e esta-
va aí muito ligado ao ritual das festas gregas, com as representações a
servirem para reunir a multidão. Os cidadãos iam para os lugares festivos
com o primeiro pretexto das tragédias e comédias que ali se apresentavam.
Também é certo que muitas vezes as religiões, quer as das sociedades ditas
primitivas, quer por exemplo o cristianismo, promoveram a representação
dramática, como aliás referimos na primeira lição. Se virmos o extraordiná-
rio filme Acto da Primavera (rodado em 1961-62), de Manoel de Oliveira,
assistimos ao empenho com que uma aldeia transmontana põe em cena um
Auto da Paixão de Cristo. Mas muitas vezes a igreja recusava-se, ou recusa­
‑se hoje, a participar em determinadas procissões ou representações por
entender que não estão dentro dos cânones religiosos, ou que são um sin-
cretismo de várias camadas, nem todas elas ligadas ao catolicismo. Como
se pode eloquentemente ver no filme que Catarina Alves Costa realizou em
1993 na procissão da Senhora Aparecida, festa que tem lugar todos os anos,
em Agosto, bem perto do Porto. Esta procissão é um ritual impressionante,
desde logo pela carga quase medieval dos seus andores, de uma altura tão
gigantesca que é necessário uma multidão de homens a carregá-los e outros
a segurá-los com cordas para não caírem. Mas a Senhora Aparecida tem
D rama e C omunicação

outra prática ainda mais extraordinária: além dos ex-votos em cera – pernas,
joelhos, braços, cabeças – que as pessoas que estiveram doentes promete-
ram oferecer à Virgem e que são comuns em muitas outras partes,
sobretudo do Norte do país, esta é uma procissão a quem alguém que es-
teja em risco de morrer, ou os familiares desse alguém, podem prometer
levar essa entidade mais abstracta que é a própria morte. Como pode ser
ela figurada? A pessoa que esteve à beira da morte e se salvou é deitada
num caixão, a cara é coberta com um pano e é carregada como morta pe-
los seus familiares, para depois como que ressuscitar frente à capela da
Senhora Aparecida. É justamente a essa parte da procissão, quando são
levados os caixões, que no ano em que foi feito o filme o padre decide
não se associar, para grande indignação do povo, como se vê e ouve no
filme, onde nortenhamente se discute se essa prática é ou não é católica.
O jovem padre é inflexível e só encabeça a procissão mais tarde, quando
saem os andores, rodeados de crianças vestidas de anjinhos e outras figuras
bíblicas. Aí temos um exemplo de um ritual parcialmente católico e par-
cialmente rejeitado pela igreja católica como pagão.
Por outro lado, podemos também pensar no carnaval, que ainda há
poucos anos estava tão presente em Portugal com as suas máscaras e jogos,
que nada tinha de religioso e era mesmo o reverso da religião estabelecida.
Em pesquisa que realizei sobre o Carnaval, no início dos anos 80, em pe-
quenas aldeias da Beira (Monteiro, 1984), deparei com actividades pagãs,
tradicionalmente ligadas ao final do Inverno, e constatei, com espanto, como
ainda nos anos 40 as autoridades religiosas tinham de fazer abundante
propaganda nas aldeias e nas próprias vilas, com folhetos a explicarem os
fundamentos e preceitos da Páscoa. As senhoras mais religiosas da Lousã
fechavam-se na igreja matriz durante o Carnaval, rezando contra aquelas
heresias e tentando introduzir, depois da Quaresma, a Páscoa, como uma
forma de expiar tais práticas pagãs. Sendo uma religião do pecado, a Igreja
católica tem uma grande capacidade de incorporar e digerir elementos que
lhe são exteriores: permite por exemplo que haja o Carnaval, com todos os
excessos de raiz pagã das festividades carnavalescas, e depois impõe uma
Quaresma purificadora e uma Páscoa redentora.

150
A ntropologia do espectáculo

É tempo de reabrirmos o Hamlet e repararmos como também o grupo


de comediantes que chegou a Elsinore nada parecia ter de religioso ou
ritual: trazia uma divertimento em que a Igreja não era tida, excepto quando
atiçada pelo excesso de indecência ou de ateísmo, como vimos no terceiro
capítulo. Havia no tempo de Shakespeare, como alguns séculos antes e
depois, muitos grupos ambulantes como os que improvisavam as cenas da
Commedia dell’Arte italiana, ou como os que se dedicavam a peças de
pendor mais histórico ou literário, que sobreviveram até ao século XX – sem
conotação religiosa. Seria até irónico, depois de termos visto quanto a
igreja cristã combateu o teatro, afirmar agora que todo o teatro é religião.
É impossível dizer que todo o espectáculo saiu do culto religioso. Mas
parte dele?
Depende do que entendermos por “saiu”. Bertold Brecht (163) tem uma
posição clara: “Dizer que o teatro proveio do culto mais não é do que dizer
que foi precisamente por desprender-se do culto que ele se tornou teatro”.
Creio ser fundamental sublinhar a ruptura que necessariamente se dá entre
a experiência religiosa e a experiência estética. Num texto célebre de Walter
Benjamin, de 1936, intitulado A obra de arte na era da sua reprodutibilida-
de técnica, destaca-se justamente a mudança do estatuto da arte, que antes
tinha um valor ritual e passa a ter os valores de autenticidade e exposição,
assentes em pressupostos radicalmente diferentes. Pensemos numa catedral,
onde uma estátua ou um cântico não eram apenas obras isoladas de “arte”:
eram feitos para estarem inseridos naquele culto onde ao mesmo tempo se
passavam muitas coisas – uma multidão de crentes reunida, odores variados,
um padre que oficiava e repetia a última ceia, uma luz indecisa que entra-
va por vitrais. Quando hoje vemos essa mesma escultura exposta num
museu, ou quando, sentados numa sala de espectáculos, ouvimos executar
essa mesma música, o quadro de referência é inteiramente diferente e o
tipo de experiência também: foi a isso que Benjamin chamou o valor de
exposição perante um público. Mesmo a própria categoria de público é uma
nova categoria. Não dizemos que as pessoas que estão numa igreja são o
público que está a assistir à missa: são crentes que estão a participar na-
quele ritual.

151
D rama e C omunicação

Já usei, no espectáculo Artaud-Estúdio, partes do corpo em cera como


as da procissão da Senhora Aparecida: achei que tinham uma forte eficácia
artística naquele espectáculo, mas nunca pretendi que essa eficácia fosse
igual ou sequer do mesmo tipo da sua utilização nas igrejas. Há aqui um
corte que temos de assumir. Quando aqueles elementos que estavam inse-
ridos num conjunto bastante complexo de relações aparecem como
objecto estético, inseridos num outro contexto que é ser arte, isolados e
destacados das outras relações, são e não são, mas sobretudo não são,
objectos rituais.
Pode mesmo argumentar-se que é justamente porque perdemos muitos
valores rituais, porque temos hoje alguma dificuldade em encontrar uma
dimensão religiosa nas sociedades contemporâneas, que de algum modo
nos fixarmos na arte, nomeadamente (é o caso que aqui nos interessa) no
drama, como um lugar onde ainda haveria essa sobrevivência ou um revi-
vificar do sentimento religioso. Há que ter em conta o contexto em que
esta nostalgia ocorre: os mais consagrados movimentos estéticos dos sécu-
los XIX e XX desenvolveram um fascínio pelo primitivo, primeiro na música
e na poesia, depois nas artes visuais. O grand ennui que se instalou na
elite cultural europeia (a expressão foi cunhada por Schopenhauer logo em
1819) manifestou um mal-estar com a civilização (cf. Freud) e um desejo
de uma harmonia que supostamente teria existido numa “comunidade” in
illo tempore. As intenções ritualistas da “Obra de Arte Total” de Wagner, ou
o bain de foule baudelairiano, ou a divisa “Donner un sens plus pur aux
mots de la tribu” do wagneriano Mallarmé, mostram a que ponto o gosto
pelo refinado dos modernos se conjugou com uma paixão pelo bárbaro.
Prolongando-se depois, com a linha dura do alto modernismo europeu,
numa ruptura (bem diferente dos românticos) com a natureza, com a civi-
lização moderna e com a utopia revolucionária (ou mesmo democrática),
numa antropologia filosófica das mais negras que levou a um anelo cada
vez mais obscuro e gnómico. Como lembra José Guilherme Merquior (1981:130),
vários analistas do modernismo “salientaram o seu sentido hierofílico: a sua
nostalgia do sagrado”. Se a Modernidade se desenvolveu como epopeia do
Negativo, em torno da ausência, do agonismo e da “descriação”, a idealizada
vida primitiva e os seus rituais surgiram como o indispensável negativo dessa
negatividade.

152
A ntropologia do espectáculo

Uma autêntica política do primitivismo faz parte de muita da arte mo-


derna ou mesmo a ela dá origem. Opõe ao homem cartesiano (que vimos
ser individual, auto-suficiente, estável, sem sonho nem inconsciente nem
corpo) os desafios do irracional, do ilógico, do imaginário, do bruto, do
comunitário, do enraizado, do dionisíaco. E as artes performativas foram
talvez as que mais se prestaram à ilusão de um regresso de facto ao ritual:
se ninguém confunde um quadro cubista com uma máscara africana (por
mais que dela tenha recebido influência), há muito quem queira ou tenha
querido acreditar que uma assembleia teatral estaria de facto a reviver um
antigo ritual. Mesmo as discussões sobre as diferenças entre a tragédia e a
comédia tornaram-se muitas vezes, no século XX , não questões de drama-
turgia e de construção dramática, mas uma questão religiosa: sublinhando
que as questões da tragédia e da comédia, na sua origem grega, tiveram a
ver com diferenças no tipo de ritual e esquecendo-se de as analisar nas
suas dimensões actuais.

Partilhamos uma atmosfera intelectual geral em que o sagrado (para pôr a


questão suavemente) não está seguramente protegido contra o secular; o secular
ocupa de tal modo os nossos pensamentos acordados que podemos até encarar
o reino do sagrado como uma ficção piedosa, e não como uma realidade
corrente. E alguns acham que o verdadeiro sagrado (se realmente existe)
floresce (...) na música ou na arte ou no drama com o seu poder de iluminar
a nossa existência, de criticar e transformar o nosso aborrecimento secular.
Esses que acham que o drama é, para o homem moderno, um locus do
sagrado são um grupo bastante heteróclito. Cépticos, psicólogos das
profundezas, liturgistas, pessoas geralmente devotas – esses improváveis
companheiros partilham aquilo a que tenho chamado um tópico de debate
do século vinte, o grau de sagrado no drama (...). Se somos devotos, o nosso
estudo do drama é provavelmente uma tentativa de conseguir a confirmação
intelectual de verdades em que ainda acreditamos mas que já não consideramos
que se confirmem a si próprias. E se somos cépticos, o nosso estudo do
drama procede ainda com mais paixão; o drama não apenas explica e valida
o sagrado – uma religião em que persistimos em acreditar; em vez disso, o
drama é o sagrado. (Harold Watts 113-115)

153
D rama e C omunicação

2. Não podemos identificar o dramático com o religioso, quer porque


nem todo o dramático tem origens religiosas, quer porque as próprias ca-
tegorias de dramático e de religioso indiciam já uma época moderna que
separadamente as enquadrou. Não podemos projectar sobre o passado
categorias (de que um exemplo claro é a de “paisagem”) que foram criadas
modernamente, numa época dominada pela ciência e pela cisão da expe-
riência em várias esferas, em que à estética (surgida apenas no século XVIII)

caberia o domínio do prazer desinteressado (por exemplo, no caso da pai-


sagem, aquela parte da experiência que subsiste quando contemplo a terra
sem ser do ponto de vista da ciência nem do da economia).
Este corte é sublinhado também por Hans Georg Gadamer (1986:57-65).
Em 1954, para a comemoração dos 175 anos do teatro fundado por Schiller
em Mannheim, fez um pequeno discurso intitulado O carácter festivo do
teatro. Festivo não é aqui entendido necessariamente no sentido de alegria
ou felicidade: no luto, por exemplo, também há este lado “festivo”, tal como,
acrescenta Gadamer, numa grande manifestação desportiva, num jogo de
futebol – que para uns é festivo e para outros é luto, conforme sejam de
uma equipa ou de outra. Entendamos este carácter festivo como algo que
resulta de uma reunião de pessoas que são “elevadas para fora da sua vi-
vência quotidiana e erguidas para uma espécie de comunhão universal”
(58). A primeira referência de Gadamer continua a ser a dos espectáculos
gregos, em que as tragédias surgiram do culto, associadas a dança, a mú-
sica, a cerimónia. Mas poderíamos acrescentar que todos os espectáculos
(de teatro, de dança, de circo, de música, de cinema) podem ter um carác-
ter festivo, por vezes simultaneamente alegre e triste, eufórico e disfórico
– como é bem visível em Pina Bausch, em Fellini, em Kusturica...
Gadamer sublinha um outro aspecto: as festas não se fazem todos os
dias (Roger Caillois e Mircea Eliade também insistiram nesta dimensão de
descontinuidade da celebração na trama quotidiana). Só celebramos o Natal
ou o aniversário uma vez por ano. É uma temporalidade muito própria, ao
mesmo tempo única mas com a possibilidade de se repetir em determinados
momentos (nomeadamente no ano seguinte), e em que a relação do pre-
sente com o passado e com o futuro é também muito específica. Aquilo
que festejamos no Natal não é só uma recordação museológica, uma lem-

154
A ntropologia do espectáculo

brança mais ou menos vaga de um nascimento que ocorreu há dois mil


anos: é uma reactualização desse nascimento, dessa salvação do mundo, e
na missa isso é muito claro. Quando o padre ergue o cálice e diz que este
é o corpo e sangue de Cristo, está, para os crentes, a reactualizar um gesto,
uma ceia que terá havido há dois mil anos também. Ou seja, “o mistério da
celebração festiva é que suspende o tempo” e consegue elevar-nos a uma
presença em que o passado e o presente se tornam um só (ibid. 59).
Temos portanto como características deste carácter festivo um carácter
único e singular da festa, uma temporalidade onde o passado e o presente
se fundem, a elevação para fora da nossa vida quotidiana, e por último
poderíamos dizer, segundo Gadamer, que há a criação de um outro estado:
“alguma coisa que sai de dentro de nós e toma forma diante dos nossos
olhos de um modo que reconhecemos e experimentamos como apresenta-
ção mais profunda da nossa própria realidade” (60). Ou seja, quando se
está diante de um momento festivo que nos toca, há alguma coisa que nós
compreendemos ou que se formula diante de nós, que nos interpela e que
reconhecemos como algo de mais profundo em nós próprios. Não é por
acaso que aldeias isoladas de Trás-os-Montes vão precisar de representar
aqueles autos, regularmente, uma vez por ano, com todo o incalculável
trabalho e sacrifício de fabricar as roupas, decorar os textos, ensaiar…
Ora, diz Gadamer, o que se passa no primeiro período, a que chama a
era da presença religiosa elevada, não é semelhante ao que se passa na sala
do teatro de Mannheim, depois da criação dos círculos aristocráticos e
burgueses, no contexto da moderna sociedade industrial. Basta dizer que
nessa sala se faz teatro todas as noites: perdeu-se já aquele carácter singu-
lar, único, que as festas necessariamente têm. Trata-se de um outro tipo de
experiência a que Gadamer chama o “teatro permanente”: agora, pela pri-
meira vez, “encontramos todo um repertório clássico. Agora, pela primeira
vez, somos confrontados com a tarefa de mediar entre a contemporaneida-
de do presente e a presença da nossa herança cultural” (62).
E neste teatro de repertório há uma enorme separação entre o público
e os actores, coisa que não estava presente nas festas gregas, nos cultos de
Dioniso, nas procissões religiosas, mesmo no teatro medieval, até em mui-
to teatro barroco. Existia uma dimensão de assembleia ruidosa de pessoas

155
D rama e C omunicação

que participavam no espaço da peça, enquanto no teatro permanente há


uma separação muito clara entre o espectador e os actores. Essa represen-
tação que está separada do público e que se repete diariamente não tem
o carácter excepcional, único, da festa. Vive daquilo a que Gadamer chama
uma transcendência moral: o espectador sente uma tensão entre a sua vida
normal, quotidiana e o mundo encantado que lhe é apresentado no palco.
Este espectador, diz Gadamer (mas também vimos Richard Sennett descre-
ver a mesma situação), tem a sensação de que a sua vida é uma vida
prosaica. Uma vida da qual tem uma visão restrita, uma visão, como dizia
Schiller, do tipo da das formigas; de repente, no palco, vê o que é uma
vida grandiosa, porque lhe apresentam grandes heróis, grandes paixões ou
grandes sentimentos (bigger than life, como insiste depois a máquina de
espectáculos norte-americana). Schiller e Hegel, como vimos, entendem que
o teatro é um veículo privilegiado para incutir certos ideais. Almeida Garrett
também. É a uma espécie de uma lição de ética e de transcendência moral
que os espectadores, no seu espaço silencioso e escuro, vão assistir:
“o drama torna visível a harmonia ética da vida que já não pode ser vista
na própria vida” (Gadamer, 1986:62).
É certo, continua Gadamer (62-63), que isto não significa que, nesta
segunda fase, o teatro não seja uma experiência interessante, ou que seja
só um museu morto: “o teatro não se torna, e de facto nunca se pode tor-
nar, simplesmente histórico”. Será tanto mais interessante quanto não se
limitar a reconstituições de estilos históricos pesquisados por eruditos mas,
pelo contrário, continuar à sua maneira “o poder de fusão que o presente
possui como tal quando consegue elevar a vida passada à presença.” Claro
que os espectadores podem estar sentados no Teatro Nacional D. Maria II
e sentirem-se tocados e elevados ao assistir, na moldura do palco, ao es-
pectáculo Mãe Coragem: pode haver um efeito poderoso. Mas é um efeito
completamente diferente do carácter festivo.

3. Para compreendermos melhor a ruptura que se deu com a passagem


ao novo quadro em que os espectáculos são realizados, o melhor é estudar,
historicamente, a implantação do dispositivo cénico da representação mo-
derna. Retomemos por momentos Balandier (35), que tem a virtude de não
estudar apenas as sociedades ditas primitivas: “A lição da história comple-

156
A ntropologia do espectáculo

ta a da antropologia, restituindo os modos de dramatização social e


política menos desconcertantes.” Por exemplo, Balandier vai referir as so-
ciedades europeias da Idade Média: “tudo aí se mostra e se joga, as práticas
sociais realizam-se numa dramatização permanente. Os laços sociais esta-
belecidos segundo um cenário rigoroso fazem de cada reencontro público
uma representação. As circunstâncias da vida individual – nascer, casar e
morrer – traduzem-se em actos significativos, exemplares ou exaltantes.
As festas, concebidas como verdadeiras liturgias civis, põem em cena as
hierarquias que constituem a sociedade, a fim de as expor e de as confirmar,
ou de as contestar simbolicamente nessas pantomimas sagradas que são a
celebração do Burro ou dos Loucos.” Alguns aspectos das celebrações des-
se tempo permanecem até hoje, sobretudo em contextos rurais.

Enquanto que nas festas “oficiais” era marcada a hierarquia, com a exposição
dos signos que assinalavam os diversos lugares ocupados – bandeiras, brasões,
vestuário, ornamentos – as festas populares, abalavam esta ordem e punham
o mundo às avessas: assim se pôde falar de um “realismo grotesco”, a propósito
desta cultura popular. Bakhtine mostra que o princípio do grotesco, cuja
implicação mina, por um riso radical, a seriedade hierárquica, tem algo a ver
com um certo uso do corpo. ( José Gil, 1980:63)

Sigamos agora Pierre Francastel, um autor que dedicou a sua vida ao


estudo das artes visuais, especialista nomeadamente no Quattrocento ita-
liano, época em que as pinturas ainda não estavam centradas segundo as
regras da perspectiva: era muito comum encontrar várias cenas simultâ­neas,
sem um espaço único nem muitas vezes um centro em torno do qual a
pintura se organizasse. Encontrávamos também, por exemplo, certas nuvole,
onde cada medalhão representava uma imagem distinta, que nos parecem
bastante misteriosas mas que “são a representação objectiva de máquinas
e de episódios das grandes festas populares” (1973a:227). Francastel defen-
de que compreendemos muito melhor aquilo que se estava a passar nas
artes plásticas se as relacionarmos com as festas que eram feitas nessa
época, nomeadamente os jogos e os cortejos, religiosos, semileigos ou pa-
gãos: “foram as cenas populares da rua que serviram de modelo à pintura
religiosa do Quattrocento” (228).

157
Francastel estudou as imensas festas de rua que eram organizadas, pro-
cissões com muitas estações (como ainda hoje a Via Sacra), cortejos com
máquinas complicadíssimas. E as entradas dos reis também davam lugar a
toda uma grande mise en scène de recepção ao monarca: “Maquiavel é
tanto quanto a Sacra Rappresentazione uma chave de explicação para a
Arte e o Teatro do Quattrocento” (ibid. 237).

Não foi apenas o teatro medieval que serviu de fonte de inspiração


concreta aos artistas, mas também o ciclo capital das festas populares, dos
cortejos rituais, oriundos do antigo drama litúrgico, mas saídos definitivamente
da igreja e transformados numa das formas de actividade comum, tão
importante para a civilização do Quattrocento como uma partida de futebol
na Inglaterra contemporânea. (...)
Mas, se se pode caracterizar os últimos séculos da Idade Média como a
idade das liturgias semileigas influenciadas por tradições que remontam às
idades pagãs, o século XVI marca, pelo contrário, uma reviravolta. (...) Ao
que parece, o povo afeiçoara-se tanto a esses ritos – que podiam compreen-
der torneios ou caças, como se vê em Uccello – que os poderosos da época
se assustaram. A multidão participava demais na representação, atribuía de-
masiados sentidos às figurações que se lhe ofereciam, fazia com demasiada
facilidade aplicações alusivas ao seu tempo. (Pierre Francastel, 1973a: 226,
239)

158
A ntropologia do espectáculo

Na passagem do séc. XV para o séc. XVI , por efeito já da reforma e da


contra-reforma e também do desenvolvimento do Estado moderno, há uma
redução drástica das festas, quase só reduzidas às entradas reais ou prin-
cipescas, aos autos católicos ou a certas festas dos colégios jesuítas. Por
exemplo, na mesma Florença onde em 1430 tinham saído 23 máquinas, em
1514, apenas 80 anos depois, saíram quatro máquinas – e todas elas menos
populares, mais edificantes. Isto quer dizer que as celebrações passaram
muito da rua para o interior, para os pátios, os jeux de paume ou os pró-
prios palácios. Mesmo o Estado, em grande medida, veio dispensar a
aclamação pública, conseguindo afirmar a sua autoridade sem precisar de
ser aclamado na rua, ou mesmo receando o contacto com as grandes mul-
tidões.
São transformações, diz Francastel (1973b), bem patentes na figura do
diabo: deixa de temer-se uma figura exterior, como ainda aparece em Gil
Vicente, um belzebu que saía das barcas ou dos bosques para tentar ou
condenar o homem, mas passa a temer-se um demónio interior à cons­ciência
e ao coração do próprio homem. Há aqui, evidentemente, uma mudança
de mentalidade, uma visão muito mais antropocêntrica, centrada no micro-
cosmos humano, já não baseado nas dicotomias entre a terra e o céu, mas
estudando como cada um de nós tem dentro de si um conflito entre as
forças do bem e do mal, uma dualidade interior. Cada homem já por si é
um microcosmos.
Não admira então que, em termos das representações, se assista a uma
transformação espacial, mais precoce na pintura, que neste século XV, como
observou Kernodle já antes de Francastel, está adiante daquilo que se
passa no teatro. O espaço passa a estar organizado e estruturado na tela,
segundo as regras da perspectiva. Mais tarde, nos séculos XVI e XVII , dá-se
o mesmo no teatro, com aquilo a que se chama o cubo cenográfico: em
vez de termos um cortejo com muitos espaços diferentes, ou mesmo a
dispersão espacial que encontramos ainda em quase todas as peças de
Shakespeare, há a unificação do espaço, no teatro como na pintura, com
a preferência por um único cenário, num palco que é um cubo onde o
espectáculo se desenrola diante de outro cubo onde os espectadores as-
sistem.

159
D rama e C omunicação

Curiosamente, diz ainda Francastel, no barroco sobrevive a tradição ante-


rior, ainda que em conflito com a mentalidade e visualização racionalistas
– permitindo a riqueza do teatro isabelino, do teatro do século de ouro es-
panhol, da escultura popular barroca de certas regiões do sul da Europa. Há
uma grande nostalgia das antigas fórmulas de representação que se desdo-
bravam em episódios no tempo e no espaço, nostalgia que, aliás, a Igreja
Católica utilizou para atrair as massas e ao mesmo tempo opor-se ao avanço
do espírito racionalista, centrado no homem e já não em Deus.

A redução ao cubo geométrico da cena teatral moderna caminha juntamente


com o refinamento de uma cultura especulativa infinitamente menos popular
do que a da Idade Média. Tudo o que é cenário, maquinaria, mostra a resistência
de uma tradição popular e medieval que sobrevive até ao Romantismo. (...) Não
se poderia subestimar a força da corrente figurativa que, pelas máquinas e pela
pintura ilusionista dos fundos, introduz o maravilhoso até sobre a cena clássica.
(…) Pelo Barroco, toda uma categoria da humanidade salva o que pode ser
salvo das suas tradições, pelo temor das consequências abertas pela racionalidade
moderna que se exprime apenas no Clássico. (..) O progresso das novas
linguagens reflecte essa marcha hesitante do pensamento moderno. (...)
No século XVII, será o teatro que de longe suplantará a pintura, e realizará
finalmente o compromisso entre a figuração nascida das tradições antigas,
as concepções do espaço unitário e abstracto nascidas do espírito científico
moderno e as tradições maravilhosas do espectáculo popular. Ele materializará
então, no par cena-sala solidários, a concepção ideal do microcosmos­
‑macrocosmos que constitui o fundo da filosofia dos tempos modernos. (Pierre
Francastel, 1973:243-247)

4. Diante de transformações tão radicais, como pode continuar a dizer-


se que tudo é religião ou que tudo são manifestações de uma mesma
essência do culto? Há que estudar os fenómenos na sua historicidade e na
sua tipologia. Afastada a tendência para um essencialismo de tipo religioso
ou ritualístico, conscientes do novo quadro espacial, temporal e estético
em que o espectáculo passa a desenrolar-se, só então podemos abordar

160
A ntropologia do espectáculo

alguns pontos de contacto e de diferença entre o espectáculo moderno e


os rituais tradicionais: quer a nível de alguns princípios constitutivos, quer
em coincidências ou heranças históricas, quer por opção deliberada de
alguns artistas.
Nos princípios constitutivos, o principal traço comum é tratar-se, quer
nas cerimónias religiosas quer no espectáculo, de um fenómeno que reúne
as pessoas, mesmo quando os espectadores passam a estar às escuras e
espacialmente separados do palco. Neste sentido, Gadamer (1986:63) pode
escrever: “sentimos que o espírito comunal, que nos apoia e que transcen-
de cada um de nós individualmente, representa o real poder do teatro e
nos remete para as antigas fontes religiosas e para os festivais, para os
cultos das festas antigas”. Nisto, o espectáculo distingue-se, por exemplo,
da leitura (não da leitura no tempo dos gregos, que era feita em voz alta
diante de pessoas reunidas, mas da moderna leitura individual e silenciosa).
Sabemos a diferença entre ouvirmos música sozinhos, em casa, e ouvirmos
música num concerto, juntamente com muitas outras pessoas que geram
um efeito próprio, catártico, em que fenómenos como o riso, o choro, a
admiração, a indignação se contagiam e potenciam.

Esta é uma das características mais atraentes e misteriosas do teatro: uma


espécie de reacção colectiva, um consenso, vai muitas vezes desenvolver-se
no público, e vai, numa representação em palco, tender a tornar-se manifesta
tanto aos actores como ao próprio público. Qualquer pessoa que já tenha
actuado num palco confirmará que a reacção colectiva a uma peça é palpável
e real. O público, num certo sentido, deixa de ser uma soma de indivíduos
isolados; torna-se uma consciência colectiva. (...) Foi por isso que Hitler
nunca falou apenas para um microfone: insistia que tinha sempre de estar
diante de um grande público que gritasse a sua aprovação. (...)
No seu melhor, quando uma boa peça bem representada coincide com
um público receptivo, pode produzir-se uma concentração de pensamento e
emoção que leva a um grau elevado de lucidez, de intensidade emocional
que resulta num nível mais alto de insight espiritual e pode tornar essa
experiência afim da experiência religiosa, um memorável ponto alto na vida
de um indivíduo. (Martin Esslin, apud Dollan 26)

161
D rama e C omunicação

Veja-se por exemplo a memória marcante que ficou em Benjamin das


suas primeiras idas ao teatro, não tanto pela peça em si como pela expe-
riência colectiva.

Ainda era pequeno. A palavra teatro irrompia no meu coração como um


toque de cometa. A fantasia despertava. (...) O acesso dava-se por uma bre-
cha no tempo; o nicho do dia, ou seja, a tarde já cheirava a candeeiros e a
ida para a cama era interrompida. Não para dirigir o olhar em direcção a
Guilherme Tell ou à Bela Adormecida ou, pelo menos, não com esse fim
único. O objectivo era bem mais elevado: estar no teatro, sentado no meio
dos outros que também lá estavam. Não sabia o que me esperava, mas tinha
a certeza que o assistir à peça era apenas um fragmento, ou melhor, um
prólogo a um comportamento bem mais significativo, que eu partilhava com
os outros. (Walter Benjamin, 1992:154)

Há de facto um efeito que advém da própria experiência colectiva, mui-


to embora – não é demais repeti-lo – não se possa daqui concluir que o
que se passa no drama no seu contexto mais estético, na sua moldura mais
de arte, repete na sua essência o mesmo tipo de experiência que encon-
traríamos num auto medieval, na tragédia do tempo dos gregos ou numa
dança de uma tribo africana. Podemos até entender como há em boa parte
da arte moderna uma certa sacralidade ou uma aspiração ao sagrado. Mas,
pelas razões que Benjamin tão clara e precocemente evidenciou, não é o
mesmo tipo de efeito.
Aproveite-se para sublinhar que, por ser tão importante este elemento
constitutivo da reunião em grupo, o drama tem mais condições de se de-
senvolver em sociedades com mais experiência do colectivo.

O drama, como a música, é uma performance de conjunto para um público,


e é mais provável que a música e o drama floresçam numa sociedade que tenha
uma grande consciência de si própria enquanto sociedade, tal como a Inglaterra
isabelina. Quando uma sociedade se torna individualizada e competitiva, como
a Inglaterra vitoriana, a música e o drama sofrem correspondentemente, e a
palavra escrita quase monopoliza a literatura. (Northrop Frye, 1990:249)

162
A ntropologia do espectáculo

5. Insistir nesta percepção das diferenças não impede, antes potencia, o


estudo de algumas repetições, influências e relações inesperadas, como têm
feito, quer os estudos literários, quer os da antropologia teatral. Tomemos
rapidamente o caso de Northrop Frye, que no capítulo “Formas específicas
de drama” da sua Anatomia da Crítica (282-293) nos dá uma tipologia de
alguns textos teatrais – que, note-se, podem coexistir num mesmo tempo
(como se vê com Shakespeare, que entra em quase todos os tipos), embo-
ra Frye (que nunca se preocupou demasiado com as suas contradições)
insinue uma evolução, desde os autos medievais até dramaturgos como
Ibsen ou Claudel.
Começando pelos autos: a partir das peças escriturais medievais, as
peças-mito ou os romances heróicos, com a posse comum de um mito, a
mistura espectacular de popular e esotérico, sem distinção entre deus e
herói ou entre nobre e padre e com muita utilização da música, seria pos-
sível definir um tipo espectacular, aplicável também, segundo Frye, ao
teatro Nô dos japoneses, ao teatro grego e a Wagner.

Já as peças históricas, como muitas obras de Shakespeare e de outro


teatro isabelino, com os seus temas da unificação da nação e dos perigos
da desagregação, representam uma mudança: o abandono da circularidade
temporal a favor da continuidade, a diminuição da partilha comunitária e
um trabalho mais verbal e mimético do que espectacular. Essa mudança vai
levar (por exemplo, no mesmo Shakespeare) à matriz da tragédia, que junta
o herói central do auto e a temática da queda, mostrando como, ironicamente,
por forças sociais e psicológicas ou do mundo inconsciente ou maligno, a
roda da fortuna gira e os que estavam no topo se encontrarão depois no

163
D rama e C omunicação

fundo. No palco é feito um forte juízo, enquanto nos autos se aceitava os


acontecimentos sem os julgar.
Quando se começa a inquirir as causas da tragédia, perde-se a supre-
macia do acontecimento ou do mito, desenvolve-se a psicologia, propõe-se
um confronto directo entre o drama e o público, cresce a mimese ou o
realismo total, cada vez mais individual. Sempre segundo Frye, como essa
representação mimética, ao acentuar-se, tende a ser ou opressiva ou ridí-
cula, dá-se uma evolução no sentido da ironia e um afastamento da
tragédia a favor da comédia. Primeiro como comédia de costumes, the way
of the world, depois cada vez mais como utopia: a vida as you like it. O juízo
já não é feito no palco, nem sequer no confronto entre a cena e o público:
é entregue claramente aos espectadores.
Mas quando a comédia se afasta da ironia a favor da sociedade feliz,
utópica, da música e dança, no tipo a que Frye chama máscara, passamos
a ter mais espectáculo do que juízo. São muitas vezes (como em tantos
autos de Gil Vicente), celebrações de ocasiões especiais e de grande ligação
com a corte ou com o público. Assim, temos de novo um grande aspecto
comunitário, e por isso no esquema de Frye a máscara está do lado do
auto. Shakespeare surge de novo como exemplo, com as peças Sonho de
uma Noite de Verão e A Tempestade. Mas Frye encontra também relações
da máscara com a ópera e o cinema, embora reconheça que estes são mais
miméticos.
Ao lado da máscara ideal desenvolve-se a anti-máscara (vejam-se os
sátiros em Macbeth e o fantasma em Hamlet), as figuras de destruição e
decadência, as antíteses virtude/vício, deus/demónio, fada/monstro: chega-
mos a um outro tipo, a que Frye chama as moralidades. Aí, a representação
destaca-se do tempo e do espaço: não a favor do ideal mas sim de um
limbo sinistro (morte ou futuro), com pouca distinção entre ilusão e reali-
dade. Neste regresso à máscara arquetípica, reaparece a comunidade do
auto, mas sem deuses: a forma é agora subjectiva e psicológica, atenta ao
interior da mente humana – como vimos em Francastel a partir do século
XVII , mas Frye encontra sobretudo, dos séculos XVIII a XX , em peças de
Goethe, Strindberg, Pirandello ou Claudel, que exploram a tentação, a so-
lidão, a confusão, o medo, as projecções mentais, os jogos de espelhos.

164
A ntropologia do espectáculo

6. Já não do ponto de vista literário, mas sim da antropologia do espec-


táculo, autores como Eugénio Barba ou Richard Shechner têm-se dedicado
a comparar os modos como em várias culturas diferentes se ritualizaram e
dramatizaram certos aspectos da vida ou se desenvolveram linguagens cé-
nicas muito apuradas e com surpreendentes semelhanças pontuais. Basta
ver os exemplos de Barba sobre a utilização das mãos e dos pés na tradição
da dança indiana, no teatro Nô japonês, nas danças do Bali, na Commedia
dell’Arte e na pantomima de Marcel Marceau. Ou os esforços de Dario
Fo (40) no sentido de “compreender a trajectória das migrações culturais,
desde o Oriente até ao Mediterrâneo, do mundo antigo ao da Commedia
dell’Arte.”
Tal como aconteceu noutras artes do primeiro quartel do século XX

(pense-se no cubismo), também alguns artistas no teatro encontraram nas


cenas de outras culturas a inspiração para os seus próprios voos. Para dar
apenas um exemplo maior entre muitos outros (um dos quais estudaremos
noutra lição, Bertold Brecht, que nunca porém imaginou que se defendes-
se uma ressacralização do teatro), também o actor, dramaturgo e encenador
francês Antonin Artaud (1896-1948) começou por uma prática artística rea­
lizada segundo as convenções da época, que não o satisfizeram: em 1927
escrevia já que “a Revolução mais urgente a realizar reside numa espécie
de regressão no tempo” (apud Borie 22) 1. Considerando que a nossa cul-
tura “cheira a branco”, Artaud – que Susan Sontag (68) considerou ser um
“xamane” – virou-se para as lógicas diferentes de outras culturas; estudou
a civilização da Síria, visitou o México, impressionou-se enormemente com
as danças balinesas que se apresentaram em França, defendeu um “teatro
da crueldade” que redescobrisse a eficácia das práticas dos feiticeiros pri-
mitivos, que se identificasse, “em suma, com as práticas da antiga magia”
(não da religião, que considerava deformar o homem) – e que fosse, jus-
tamente, um teatro de acontecimentos únicos, não da repetição.

1 Oskar Kokoschka, o pintor cuja peça teatral de 1909, Assassino, a Esperança das Mulheres,
fazia parte de um programa com muitas semelhanças com o de Artaud, rejeitava no entanto
a fuga da “criatividade original” (ou baseada na tradição europeia) em direcção ao exotismo.
Cf. Christopher Innes (100-110).

165
D rama e C omunicação

O Teatro da Crueldade (…) porá de novo em moda as grandes preocupações


e as grandes paixões essenciais que o teatro moderno ocultou sob a patine
do homem pseudocivilizado.
Estes temas serão cósmicos e universais e interpretados de acordo com
os mais antigos textos provenientes das velhas cosmogonias mexicana, hindu,
judaica e iraniana. (Antonin Artaud)

Apesar da marginalidade em que a proposta de Artaud viveu durante


várias décadas, o certo é que Gadamer, em 1954, bem sentia que a cultura
europeia estava a ficar saturada do teatro de repertório e aspirava por re-
gressar a um certo carácter festivo.

A transformação estrutural na nossa sociedade é tão profunda que seria


um milagre se continuássemos entretidos com os luxos íntimos, históricos e
museológicos do tipo de teatro que cumpriu a sua função específica no século
XIX. (...) Sentimos que o mundo não pode ser simplesmente entendido em
termos da tensão criada pela elevação do sentimento moral. Pelo contrário,
sentimos que o espírito comunitário que nos apoia a todos e transcende cada
um de nós individualmente representa o real poder do teatro e nos leva de
volta às fontes religiosas dos cultos festivos. (...) Hoje em dia estamos constante
e intensamente conscientes de que o mundo humano e o gesto humano têm
um poder comunicativo em relação ao qual todos os maiores desperdícios da
nossa cultura tecnológica de transformação do mundo parecem inseguros,
hesitantes, forçados e efémeros. Quando uma palavra é bem dita, quando uma
pancada é dada na porta no tempo certo, algo se apresenta que nenhuma
quantidade de simulação técnica com os métodos mais sofisticados pode alguma
vez realmente conseguir. (...) Há uma imediaticidade no teatro que raramente
encontramos na nossa existência completamente especializada, obscurecida
como está por mil diferentes mediações. (Hans Georg Gadamer, 1986:63-65)

É prova de boa intuição Gadamer escrever em 1954, mesmo sob a forma


de aspiração, sobre uma tendência teatral que se tornou muito mais evi-
dente na década seguinte. Já vimos como a cultura europeia, a partir dos
anos 60, passou por uma obsessão da imediaticidade e do contacto, da

166
A ntropologia do espectáculo

proximidade. E era isso que Gadamer estava a adivinhar: essa fome de


regressar a uma experiência em que não estamos como meros espectadores
de uma schilleriana lição de elevação moral, mas estamos a participar numa
cerimónia mais ou menos festiva. E em que o teatro pode ser um lugar que,
justamente por manter um carácter colectivo e privilegiar a presença dos
actores vivos e não apenas filmados ou pintados, do gesto humano, da
comunicação directa, da imediaticidade, pode ser retomado de uma outra
maneira quando há esta fome de festa.
Os anos 60 desenvolveram aquilo a que Marc Augé chamou, mais re-
centemente, “a actualidade do paganismo”: uma visão antropológica do
homem cuja identidade se define pela relação com o outro, com o univer-
so, mesmo com forças invisíveis, chamem-se ou não deuses. Tendo o teatro
a especificidade de reunir pessoas numa assembleia, e sendo a máscara um
meio de contacto também com o não humano, não seria esta arte que iria
ficar de fora de tal neopaganismo. Nos anos 60, o grupo Living Theatre faz
um trabalho igualmente marcante nos Estados Unidos e na Europa, em que
os actores, quase desnudos, trazem o teatro, mais gestual que verbal, para
a rua, procurando devolver-lhe a dimensão comunitária e ritualizada, ape-
lando à participação do público. Na mesma época, o polaco Jerzy Grotowski
(1933‑1999) trabalha, a partir de referências haitianas, sobre as figuras do
bailarino e do guerreiro que desempenham um acto em que, diz, o corpo
e a essência entram em osmose. Recebeu as influências do grupo polaco
La Reduta, em que o teatro se fundia com práticas místicas de devoção
messiânica, e podemos vê-lo também como actualizador do rigor artaudia-
no, embora ele recuse tal herança. Nos anos 60, Grotovski procurou a
natureza específica do teatro no conceito de “teatro pobre” (é a sua obra
mais conhecida em português: em vez dos “merceeiros” do teatro, quer um
“actor Santo” para um “teatro puro”). A partir de 1969, aprofunda a relação
com a “antropologia teatral”, abandonando o próprio conceito de teatro a
favor do parateatro ou teatro de participação, lutando contra o afastamen-
to entre o actor e o espectador. De 1956 a 1970, faz viagens pela Ásia
Central, China e Índia, pesquisando rituais, indagando a possibilidade de
existência de universais corporais: “é importante observar o que fica cons-
tante face à variação das culturas, o que existe como transcultural” (1985:126).
Em 1983 instala-se durante três anos nos Estados Unidos, e logo a seguir

167
D rama e C omunicação

em Itália, dedicando-se “à tentativa de isolar ‘unidades mínimas’ nos rituais


antigos de diferentes culturas e à investigação dos traços sobreviventes
desses rituais no movimento performativo, nas danças, nas canções, nos
rituais encantatórios, na estrutura das linguagens e nos ritmos dos seus
performers” (Vasques, 2003:145).
Os ecos desses movimentos chegaram a Portugal no final da década de
60 e influenciaram, nomeadamente, a fundação do Teatro A Comuna; e
ainda hoje há grupos que continuam a querer, à sua maneira, trabalhar
nessa linha (por exemplo, o Teatro o Bando, embora, evidentemente, numa
época e num contexto renovados, realiza muitos dos seus espectáculos,
quase sempre com maquinarias cénicas espectaculares, fora de salas con-
vencionais – a sua sede é no campo –, distribuindo por vezes mantas e
sopas pelo público). Actualmente, na Europa, o mais famoso grupo que
continuou essa herança, reclamando o legado de Artaud, é o catalão Fura
dels Baus (sobretudo antes de enveredar pela utilização da tecnologia con-
temporânea), que quase sempre faz do espectáculo um acontecimento em
que a multidão, de pé, é obrigada a deslocar-se, a correr, a interagir.
Claro está: estas tendências ritualistas são apenas uma das tendências
dos espectáculos contemporâneos. E mesmo aqueles que admitem, como
admite Thomas Pavel (182), que “as formas complexas pressupõem formas
simples” e que “o teatro nasceu do ritual”, devem saber logo lembrar-se que
“o caminho contrário é impossível (pace Artaud)”... 2 Por muita vontade que
tenhamos de encontrar o sagrado nalgum lugar, não podemos declarar
simplesmente que o espectáculo é a nova forma do sagrado e a substituição
dos antigos rituais. Como vimos, tanto em termos históricos como em termos
teóricos, essa passagem não é simples: os contextos são radicalmente dife-
rentes e têm de ser reconhecidos. Isto não faz com que os ignoremos: faz
com que estudemos como essas actividades estão construídas, vão sendo
transformadas, vão tendo os seus períodos históricos e os seus modos e
estilos de funcionamento próprios, em vez de pensarmos apenas nos seus
efeitos. É o caminho que procuraremos trilhar nos capítulos seguintes.

2 O próprio Artaud, aliás, chegou a dizer que “o importante é não crer que esta arte deva
permanecer sagrada, isto é, reservada”: muito embora requeira uma preparação, e portanto não
seja para qualquer um fazer, também não deve servir para distinguir ou isolar uns poucos.

168
(Página deixada propositadamente em branco)
6 . U NIDA DE E P L U R A L IDA DE DO DR A M ÁT ICO

1. Surgindo embora da discussão anterior sobre a diferença do drama


enquanto categoria estética, o presente capítulo pode parecer descabido a
quem acreditar que, pelo menos em teoria da literatura, não faz hoje sentido
falar de géneros. São muitos os críticos deste tipo de abordagem. Uns, por
reagirem contra uma ideia normativa de género: de facto, embora Aristóteles
entendesse as suas categorias como prospecção especulativa e não como
injunção, no classicismo renascentista os textos da cultura clássica,
nomeadamente a Poética aristotélica, foram retomados de modo autonobilitante
que simultaneamente recriou a fonte e erigiu as novas formulações em dogmas
pseudo-clássicos (cf. Brito, 2007): os géneros foram assim transformados
em entidades essenciais, invariantes e associadas a regras obrigatórias
(e voltaram a sê-lo no final do século XIX , para os evolucionistas); não
admira, então, que já em 1585 Giordano Bruno (apud Segre 87) reagisse
contrapondo que “são tantos os géneros e espécies de verdadeiras regras
quantos os géneros e espécies de verdadeiros poetas”. Nos séculos XVI e
XVII , as poéticas do maneirismo, do pré-barroco e do barroco contestaram
abertamente os géneros e regras em nome da liberdade criadora. O mesmo
fez no século XVIII o movimento pré-romântico alemão Sturm und Drang,
defendendo a individualidade absoluta e a autonomia radical de cada obra
literária; ou Lessing (in Borie et al 220), ao dizer que os géneros devem
estar bem separados nos tratados dogmáticos, “mas quando um homem de
génio, com objectivos mais altos, faz entrar vários géneros numa única e
mesma obra, é preciso esquecer o livro dogmático e ver apenas se o autor
realizou a sua ambição”.
D rama e C omunicação

No mesmo século, Diderot escreve a entrada sobre “Génio” na Enciclopédia,


defendendo que “quase não há nenhuma dessas regras que o génio não
possa infringir com sucesso”. A estética do génio está muito presente nas
teorias do romantismo, que, embora multiformes, têm “um fundamento
inalterável: a rejeição da teoria clássica dos géneros, em nome da histori-
cidade do homem e da cultura, da liberdade e da espontaneidade criadoras,
da singularidade das grandes obras literárias, etc.” (Silva 360). As regras são
os “andaimes que servem para construir e que se refazem para cada edifí-
cio”, escrevia Victor Hugo em 1827 (in Borie et al 306). Ideias que vão
aflorando até hoje: por exemplo, na crítica formalista de raiz idealista (não
confundir com o formalismo russo, para quem a singularidade da obra é
relativa, já que entra em relação com o sistema da literatura justamente
através do género), ou em Benedetto Croce, que argumenta que são os
medíocres que trabalham esforçadamente dentro dos géneros, enquanto os
grandes vultos muitas vezes os transgridem.
Muitos outros têm reagido por a lírica não ser, nas teorias clássicas,
reconhecida como género ou mesmo como o género. Outros ainda, desde
Goethe (1749-1832) e Friedrich Schlegel (1772-1829), argumentam que a
separação dos géneros está a desaparecer e a literatura se caracteriza por
uma mistura de géneros. O próprio Schlegel, que tanto escreveu sobre
géneros, encontrou elementos líricos e épicos já no drama grego e chegou
a considerar só existir um único género romântico, a poesia universal em
devir infinito, ou, o que vem dar ao mesmo, haver tantos géneros român-
ticos como textos românticos; e, assim, “todos os géneros clássicos, na sua
rigorosa pureza, são actualmente risíveis” (apud Schaeffer 168). Seria mes-
mo um signo da modernidade autêntica (nomeadamente na literatura
dramática e no teatro) o facto de um escritor já não se orientar pela sepa-
ração dos géneros, querer ultrapassar as distinções e os limites, e, como
defendeu já no século XX Maurice Blanchot (1907-2003), não aceitar nenhum
intermediário entre a obra singular e a literatura como um todo, como úl-
timo género, fazendo de cada obra uma interrogação sobre o próprio ser
da literatura.
Há-de reparar-se, porém, como esses mesmos que criticam os géneros
acabam por utilizá-los ou construir novos ou ambas as coisas: foi assim

172
U nidade e pluralidade do dramático

com os românticos alemães e mesmo com Blanchot. Além disso, a crítica


dos géneros não os faz desaparecer e pode até criar géneros novos.

O facto de a obra desobedecer ao género não o torna inexistente; tem-se


a tentação de dizer: pelo contrário. E isto por uma dupla razão. Primeiro,
porque a transgressão, para existir enquanto tal, tem necessidade de uma lei
– que será precisamente transgredida. Poderíamos ir mais longe: a norma só
se torna visível – só existe – mediante as suas transgressões. É aliás o que o
próprio Blanchot escreve: “Se é verdade que Joyce infringe a forma romanesca
tornando-a aberrante, é verdade que ela só existe graças a essas alterações.”
(...)
Mas há mais. A obra não só pressupõe necessariamente uma regra para
poder ser uma excepção, como também, logo que é reconhecida no seu
estatuto excepcional, se torna, por sua vez, graças ao sucesso de livraria e à
atenção dos críticos, uma regra. (Tzvetan Todorov 47)

Um poeta como Baudelaire pode começar a fazer poemas em prosa e


essa transgressão tornar-se um novo género. O choque entre diferentes
concepções de géneros gerou por vezes lutas acesas, mesmo físicas, como
as que opuseram neoclássicos e românticos a propósito do novo conceito
de drama: veja-se a célebre a batalha em torno de Hernani, a peça de Victor
Hugo estreada em 1930, que dividiu os actores e as plateias em duelos
verbais e físicos, dentro e mesmo fora dos teatros. Assim, dos desvios,
alargamentos, restrições, deslocações, combinações, inversões e da própria
acção de uns géneros, ou de partes mesmo secundárias deles, sobre os
outros se vai fazendo a dinâmica incessante da criação (cf. Segre 79-80).
Entendamos, assim, que cada autor se colocará algures numa relação
entre o que já existe como obras, teorias e regras, por um lado, e o seu
desejo de originalidade e de mudança, por outro. A utilização de elementos
já existentes (léxicos, morfologias, técnicas, esquemas rítmicos e narrativos,
soluções descritivas e expositivas, topoi, agrupamentos temáticos), e sobre-
tudo de soluções para dar coesão a esses elementos, oferece ao criador
uma experiência de séculos que facilita e enriquece o seu trabalho, ao
mesmo tempo que pode constituir-se em desafio ao seu próprio acto cria-

173
D rama e C omunicação

dor: por isso tantos dos maiores poetas escreverem e escrevem, por
exemplo, sonetos, essa forma tão codificada. Igualmente significativo é o
facto de os próprios autores usarem frequentemente categorias genéricas
nos títulos ou subtítulos das suas obras: teatro, farsa, comédia, tragédia…
E assim como o criador sintoniza o seu trabalho em função de certos mo-
delos que já existem, também o receptor se sintoniza com as obras em
função de certos “horizontes de expectativa”, que em boa parte dizem res-
peito aos géneros e subgéneros (os teatros ingleses da época de Shakespeare
içavam até uma bandeira vermelha quando levavam à cena uma peça his-
tórica, uma preta quando era tragédia, uma branca se se tratava de farsa
ou peça-romance).
Mas o que se entende por género? A voz específica de um autor pode
ser reconhecida como um estilo; ele pode mesmo, em conjunto com outros,
formar uma corrente, uma escola, um movimento; mas tal não significa
necessariamente o reconhecimento de um género, porque esse movimento
pode não ter como característica distintiva propriedades discursivas mais
do que banais. Falamos em género quando a história dos eventos artísticos
leva a uma estabilização suficientemente coerente e estável da utilização
da linguagem para se cruzar com a poética geral. Esse cruzamento é que
pode, diz ainda Todorov (53), dar ao género “a honra de se tornar a per-
sonagem principal dos estudos literários”. No dizer de Henry James (apud
Todorov 48): “os géneros são a própria vida da literatura; reconhecê-los
inteiramente, ir até ao fim do sentido próprio de cada um, mergulhar pro-
fundamente na sua consistência – produz verdade e força”.
É para ir ao fundo das características do dramático e apenas para isso
que recorremos à questão dos géneros, tendo embora “consciência do ca-
rácter multívoco e até equívoco do termo” (Silva 385). Não vamos entrar
em questões infindáveis, que aliás, como lembra Aguiar e Silva (339), se
relacionam com problemas ontológicos e epistemológicos “da filosofia em
todas as épocas: a existência de universais e a sua natureza; a distinção e
a correlação categoriais entre o geral e o particular; a interacção de facto-
res lógico-invariantes nos processos de individuação; fundamentos e
critérios das operações classificativas, etc.” Evitamos a discussão sobre se
os géneros são categorias abstractas ou históricas. Embora saibamos que

174
U nidade e pluralidade do dramático

cada género é teorizado numa determinada época (geralmente depois de


já criado ou mesmo quando entra em crise), podemos utilizá-los como
categorias abstractas, heurísticas, precisamente porque sabemos que as obras
não se encaixam exactamente na pureza dessas definições e que ganhamos
em compará-las, historicamente, com as categorias abstractas. Croce prefe-
ria que se partisse de criações individuais para então formar os conceitos
genéricos. A quem, como eu, se formou sob a influência dos “ideais-tipos”
de Max Weber (1977), não choca, é mesmo o procedimento habitual da
teoria, usar categorias que se sabe serem abstractas (mas que, evidente-
mente, foram construídas a partir de alguma percepção do que existe), para
depois ir verificar como e porquê cada realidade concreta nunca coincide
exactamente com elas (neste sentido, poderíamos mesmo, em vez de gé-
neros, usar o conceito de tipos, que têm mais fraca inscrição do tempo, diz
Todorov, ou modos, como categorias meta-históricas).
Foi o que no fim do século XVIII propôs o clarividente Goethe (cf. Segre
75): sistematizou os três grandes géneros (épico, dramático e lírico) num
esquema circular, e cada realização concreta definir-se-ia dentro desse cír-
culo com base nas distâncias em relação a essas três categorias. Novalis
(apud Schaeffer 166-167) argumentou na mesma época e no mesmo senti-
do do seu mestre: um sistema cuja unidade não seria fundada por relações
exteriores entre três formas irredutíveis mas por uma relação interior em
que os três termos fundamentais são, em proporções variáveis, constitutivos
de qualquer obra. Considerou também Goethe (que aliás foi durante 26
anos director do teatro de Weimar) que, na literatura do seu tempo, por
exemplo, no romance epistolar, era patente uma convergência dos géneros
em relação ao dramático, que é aquele que nos trouxe a esta questão ge-
nérica.

2. É uso sábio começar por ver como a questão foi colocada pelos pen-
sadores gregos. Tanto Platão como Aristóteles propuseram diferentes
classificações alternativas, consoante os conteúdos, consoante as formas
métricas, mas, sobretudo, consoante aquilo que correspondia aos diferentes
modos da oralidade em que a literatura grega, toda ela, vivia. Se pensarmos
na experiência de ouvir um texto, compreendemos que é diferente uma só

175
D rama e C omunicação

pessoa falar sem mudar o timbre da voz (é o género a que Platão chama
expositivo ou narrativo), ou várias pessoas fingirem ter uma conversa entre
elas (no género dramático), ou ainda uma só pessoa falar mas periodicamen-
te mudar o timbre de voz para imitar outra pessoa (a epopeia, que já Platão
considerava um género misto, combina o narrativo e o dramático porque o
narrador dá por vezes a palavra às personagens, como podemos ver em
Homero, em Camões ou em tantos romances modernos).
Esta distinção essencial tem a ver com a situação de comunicação, com
aquilo a que a teoria dos géneros de Frye (1990) chama o “radical de
apresentação”. E basta-nos para iniciar a discussão do dramático, comparan­
do-o com o narrativo, sem ter de aprofundar a questão da lírica, que foi
pensada por Aristóteles mas só foi individualizada e estudada como género
muito depois, no século XVI , e que tanta discussão tem gerado. A filósofa
Kate Hamburger, de quem trataremos um pouco mais adiante, provocou
em 1957 algum choque, porque, apesar de se inserir na teoria da literatura,
englobava tanto o dramático como o épico na mesma categoria da ficção,
entendida como criação de personagens, lugares, acções, presentes, passados
e futuros imaginários. Esta semelhança básica entre os dois, que tem aliás
permitido tantas adaptações de romances a peças e vice-versa, não impede
a autora de estudar como o mesmo material ficcional tem de se verter em
cada um dos géneros segundo regras próprias.
O essencial é perceber como a utilização da linguagem abre a possibi-
lidade da mentira e da invenção (pensemos na ambiguidade da raiz latina
fingere, moldar, criar figura a partir de molde, de onde derivam tanto fin-
gimento como ficção). A possibilidade da mentira está na natureza da
linguagem: é um espaço de liberdade para a criança e também para o
adulto. Se a sociedade faz as pessoas prometer e jurar é porque receia essa
mentira. Dito isto, é também essencial perceber como a ficcionalidade da
linguagem (seja na arte seja, por exemplo, nos discursos da publicidade, do
jornalismo, da pedagogia, do diário íntimo, embora cada um com a sua pró-
pria lógica de enunciação) pode ser desenvolvida em dois grandes géneros
ou modos: narrando os acontecimentos ou colocando pessoas de carne e
osso a mostrar esses acontecimentos (deixemos por agora de lado a hipóte-
se mista). A tradição anglo-saxónica (Henry James, por exemplo) tem

176
U nidade e pluralidade do dramático

utilizado os termos telling e showing, para distinguir, na própria narração, os


casos em que a enunciação é feita exclusivamente pelo narrador e os casos,
considerados superiores já por Aristóteles1, em que o narrador faz ouvir a
voz das próprias personagens. No caso do drama puro, que estudaremos já
de seguida, não há mesmo narrador: as personagens falam e agem sem qual-
quer intercessor. Cada um saberá qual dos modos prefere ou em qual
considera que melhor se realiza a ficcionalidade. O importante aqui é conhe-
cer profundamente a sua lógica de funcionamento.
O dramático leva o princípio do logro até ao fim, imitando mesmo fisica-
mente o que se quer comunicar ao espectador: procura que o significante
seja idêntico ao significado. Põe a ficção em actos, visíveis, audíveis, ofere-
cidos aos sentidos, como se não houvesse nenhuma instância de enunciação,
como se fosse uma fatia do próprio mundo, um tableau vivant. Já o narrati-
vo relata por palavras, e muitas vezes mesmo comenta e julga aquele mundo
ficcional que nessas palavras cria, renunciando a servir-se de vozes diferen-
tes da do narrador ou expositor. Confiando no meio mais antigo que
existe, na narração pura a linguagem apenas designa, mas não mostra.

1 “A tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia (chega até a servir­
‑se do metro épico), e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que
acrescentam a intensidade dos prazeres que lhe são próprios. Possui, ainda, grande evidência
representativa, quer na leitura, quer na cena; e também a vantagem que resulta de, adentro
de mais breves limites, perfeitamente realizar a imitação”. Poética, 1462b. No mesmo sentido
escreve Schiller em 1781: “descobriu-se que o método dramático por si mesmo, sem ter que
ver com a personificação teatral, tinha uma grande vantagem sobre todos os outros géneros
da poesia (…). Como de alguma maneira coloca sob os nossos olhos o mundo que ela nos
pinta, e que nos representa as paixões e os mais secretos movimentos do coração pelos
próprios discursos das personagens, é necessariamente superior em poder de efeito sobre a
poesia descritiva, da mesma maneira que a contemplação viva o é sobre o conhecimento
histórico. (…) Este grande privilégio do modo dramático, em, por assim dizer, surpreender a
alma nas suas operações mais misteriosas, está, absolutamente fora de questão no autor francês
[por comparação com o inglês]. (…) O génio próprio ao drama, que Shakespeare parece ter
tido em seu poder, como Próspero tinha Ariel, o verdadeiro espírito, digo, do género dramático,
cava mais profundamente a alma, mergulha no coração os traços mais acerados e instrui mais
vivamente que o romance ou a epopeia, e nem é preciso a representação sensível e real para
nos tornar particularmente recomendável esse género de poesia.” (Schiller, in Borie et al
229‑230)

177
D rama e C omunicação

3. Compreendida esta distinção essencial, interna ao próprio universo da


ficção, poderemos analisar o que faz com que um texto ou uma situação
sejam dramáticos. Dissemos já que na realidade encontramos sempre uma
combinação dos diferentes géneros; dissemos também que a própria forma-
ção e reforma dos géneros vai acontecendo historicamente. Ora, é muito
interessante verificar como, numa determinada época, se procurou delimitar
e realizar, na prática, a categoria abstracta do drama puro: aquilo a que Peter
Szondi (1983) chamou o drama absoluto.

Enquanto conceito histórico, representa um fenómeno da história literária:


é o drama, tal como nasceu em Inglaterra na época isabelina e sobretudo na
França do século XVII, prolongando-se no classicismo alemão. (...) Nem as
peças religiosas da Idade Média, nem as peças históricas de Shakespeare
fazem parte dele. A perspectiva histórica impede igualmente de ter em conta
a tragédia grega, cuja natureza só poderia ser captada num contexto totalmente
diferente. (...)
O drama da época moderna nasceu no Renascimento. No momento da
desintegração da visão medieval do mundo, é ao homem, vindo à consciência
de si próprio, que se deve a audácia espiritual de construir a substância da
obra (...) unicamente pela reprodução das relações interhumanas. (...) A esfera
do entre-dois parecia-lhe essencial na sua existência: a liberdade e o entrave,
a vontade e a decisão, as mais importantes das suas determinações. O lugar
onde conseguiu a realização dramática foi o acto da decisão. Decidindo-se
pelo mundo dos outros, a sua interioridade abriu-se e tornou-se presença
dramática. (...) Tudo o que estava aquém ou além deste acto devia permanecer
estranho ao drama: o inexprimível assim como a expressão, a alma selada
assim como a ideia já separada do sujeito. (...)
Ora, o terreno linguístico em que o mundo do interhumano podia ser
mediatizado era o diálogo. No Renascimento, quando prólogo, coro e epílogo
foram suprimidos, o diálogo tornou-se, talvez pela primeira vez na história
do teatro (com o monólogo, que permaneceu episódico e não era constitutivo
da forma do drama) o único componente da textura dramática. É isso que
distingue o drama clássico da tragédia antiga bem como da peça religiosa

178
U nidade e pluralidade do dramático

medieval, ou do teatro profano na época barroca ou da peça histórica de


Shakespeare. A supremacia do diálogo e portanto da troca interhumana do
drama indica que este não tem outra matéria senão a reprodução da relação
entre os homens e só conhece o que brilha nessa esfera. (...)
O drama é absoluto. Para ser uma pura relação, e portanto dramática,
deve libertar-se de todos os elementos exteriores, nada conhecer senão a si
mesmo.
O autor está ausente do drama. Não fala, mas está na origem do discurso.
O drama não é escrito, mas exposto. As palavras ditas no drama são todas
‘decisões’ (Entschlüsse), saíram da situação e permanecem nela; não saberiam
ser compreendidos como uma palavra vinda do autor. O drama só pertence
ao seu autor globalmente.
A relação com o espectador não é menos absoluta. (...) A forma cénica
criada pelo drama do Renascimento e do classicismo, a cena frontal (tantas
vezes denegrida) é a única adaptada ao absoluto do drama e revela-o em
todos os seus traços. Qualquer transição lhe é estranha (os degraus, por
exemplo, que abririam a cena à sala). Essa cena, (...) podemos acreditar
que foi apenas a peça que a criou. No fim de cada acto, quando a cortina
cai, substrai-se de novo ao olhar do espectador (...) A ribalta que a ilumina
deve indicar que o jogo dramático se oferece a si mesmo a luz sobre o
palco.
Até a arte do actor se regula pelo absoluto do drama. A relação do actor
com o seu papel não deve em caso nenhum ser visível: o actor e a personagem
unem-se para formar o homem dramático.
O absoluto do drama formula-se sob um outro aspecto: o drama é primário.
Não é a representação (secundária) de alguma coisa (de primário); representa­
‑se a si próprio, é ele próprio. A sua acção tal como cada uma das suas
réplicas é ‘original’, realiza-se no seu aparecimento. O drama não conhece a
citação nem a variação. (Peter Szondi 10-15)

Por isso mesmo, um poeta e dramaturgo tão lúcido como T. S. Eliot


(1888-1955) critica em certas obras dramáticas o aparecimento excessivo do
autor, a sobrepor-se às personagens.

179
D rama e C omunicação

O demónio de Goethe remete-nos inevitavelmente a Goethe. Encarna uma


filosofia. Uma criação artística não deve fazer isto: deve substituir a filosofia.
Quer dizer que Goethe não sacrificou ou consagrou o seu pensamento à
confecção de um drama; o drama é ainda um meio. E este tipo de arte mista
foi repetida por homens incomparavelmente menores do que Goethe. (…)
Não me parece que qualquer drama que “encarne uma filosofia” do autor
(como Faust) ou que ilustre uma teoria social (como a de Shaw) possa
preencher os requisitos. (T. S. Eliot, in Barata 142-3)

Que requisitos é costume associar ao dramático? Na época que Szondi


tão bem define, formula-se para a literatura dramática a lei das três unida-
des: unidade de lugar, unidade de tempo e unidade de acção.
A exigência da unidade de lugar significa a interiorização, na própria
escrita das peças, daquele centramento que, com Francastel, já vimos exis-
tir nos espaços teatrais do século XVI . Quando lemos Hamlet ou outras
peças de Shakespeare ou de autores ingleses do seu tempo, reparamos que
há uma constante alternância entre vários espaços. Muitas vezes, para mu-
dar de espaço é necessário um narrador, que diga algo como “deixemos
agora os conjurados na floresta e voltemos ao rei no seu palácio, o rei que
não desconfia de nada”; é sobretudo nas peças históricas, diz Szondi (17),
que “um narrador, chamado coro, apresenta ao público cada acto como
capítulos de uma obra histórica popular.” Ora, para que a peça passe a
estar directamente entregue às personagens, sem prólogo nem epílogo nem
a figura do narrador, há vantagem em limitar a acção a um único espaço,
ou só mudar de espaço quando se muda de acto, como fez o classicismo
francês, Corneille (in Barata 71) pedindo “que nunca se mudasse de lugar
no primeiro acto, mas apenas de um para o outro”.
A questão da unidade de tempo, que não discutimos antes, não pode
ser resolvida tão depressa. No entanto, o princípio é o mesmo: evitar a
presença de um narrador ou montador que diga qualquer coisa como “dei-
xemos agora decorrer três anos”. Já Aristóteles pensava a diferença entre o
dramático e o narrativo considerando que a tragédia (no sentido mais am-
plo do dramático) “procura, o mais que é possível, caber dentro de um
período do sol, ou pouco excedê-lo, ao passo que a epopeia não tem li-

180
U nidade e pluralidade do dramático

mite de tempo.” De facto, enquanto que, na epopeia, Camões conta toda a


História de Portugal, de Afonso Henriques a Vasco da Gama, ou um roman-
ce pode narrar toda a vida de uma pessoa ou mesmo de várias gerações
da mesma família, no género dramático tenta-se condensar os acontecimen-
tos em pouco tempo: procura-se uma temporalidade mais restrita. E se
pensarmos na comparação com o romance, também notamos, como Wilhelm
Meister (Goethe, vol. 3:39): “O romance deve ir lentamente e os sentimen-
tos da personagem principal devem, seja de que maneira for, retardar o
avanço do todo para o desenlace. O drama deve andar depressa e o carác-
ter da personagem principal deve impelir-se para o desfecho e ser apenas
retardado. O herói do romance deve ser paciente, pelo menos não actuan-
te em alto grau; do herói dramático exige-se eficácia e acção.”
Tomemos um caso paradigmático (a que já a Poética de Aristóteles dá
grande relevo): antes de Sófocles vários épicos e até dramaturgos gregos
tinham tratado a história de Édipo, mas seguindo as várias etapas – o
oráculo, o nascimento, as fugas do recém-nascido, o crescimento, o novo
oráculo, o assassinato de Laio, o casamento com Jocasta, a queda. O gé-
nio de Sófocles foi saber inventar um momento chave, especialmente
crítico (no caso, uma peste) em que não precisou de uma grande exten-
são de tempo (se repar arem, são poucas hor as), mas em que, no
entanto, temos a violenta noção do que estava para trás e do que virá
para a frente.
Por isso o Rei Édipo de Sófocles é sempre tomado como paradigma da
opção propriamente dramática. Se, segundo a estética clássica desde o
romano Horácio, também na narrativa há vantagem em tomar os aconteci-
mentos in medias res, ou seja, já a meio (leiam-se a Ilíada, os Lusíadas,
A Metamorfose de Kafka), esta opção é muito mais premente no género
dramático: escolhe uma situação de crise a meio dos acontecimentos porque
necessita de maior concentração temporal, e porque, como vimos em
Gadamer, no drama há uma especial integração temporal entre o passado
e o presente. No dizer do dramaturgo contemporâneo Heiner Müller (59),
que assim se aproxima de Gadamer, “no teatro, a história só é representá-
vel como coexistência no tempo do passado, do presente e do futuro, e é
assim que ela se torna compreensível”.

181
Em Praga, conheci um grande fotógrafo de teatro, Jaroslav Krej čí, que
me dizia: quando olhamos para uma boa fotografia de teatro (imaginemos,
de uma personagem a atirar uma cadeira pelo ar, ou simplesmente imóvel
numa cadeira), sentimos que se está a passar alguma coisa; e está a passar­
‑se alguma coisa porque alguma coisa se passou antes; e depois disto vai
acontecer alguma coisa e nada vai ser como antigamente. Esta dinâmica
temporal é específica do dramático, como argumenta a filósofa Susanne
Langer (1980). Por vezes, o que distingue os grandes actores dos actores
médios é conseguirem, em cada momento, ter inscrito o que aconteceu
antes e o modo como vão terminar – o seu destino, se quisermos. (E uma
das dificuldades do teatro de vanguarda, como veremos no capítulo 9, é
precisamente como acentuar o presente e a novidade se o teatro se apro-
funda com a relação entre presente, passado e futuro.)
Por isso, diz Langer (323), conhecemos melhor os meandros do príncipe
Hamlet do que conhecemos a nossa própria vida: como princípio, meio e
fim, como unidade, como “forma que vai sendo preenchida” (conceito de
Charles Morgan que Langer elogia). É claro que também na nossa vida, se
for minimamente estruturada, temos um pouco essa sensação: se este livro
tiver alguma estrutura com princípio, meio e fim, faz sentir que em cada

182
U nidade e pluralidade do dramático

capítulo há um todo que vai sendo preenchido. Esse é “um aspecto da


experiência real e, efectivamente, um aspecto fundamental, que distingue
a vida humana da existência que levam os animais: o sentido de passado
e futuro como partes de um contínuo e, portanto, da vida como uma rea-
lidade única.” (Ibid. 324) No dia a dia, ponho uma cafeteira ao lume e
presumo que depois de um tempo a água vai ferver; ou entro num auto-
carro e espero sair passadas algumas paragens. Mas no género dramático,
diz Langer, tenho uma noção mais forte de que o que estou a fazer agora
me vem de um passado e vai determinar o meu futuro, ou seja, de que há
um destino e de que cada passo que se dá vai cumprindo esse destino:
temos a sensação muito mais aguda de que aquilo que estamos a ver não
é apenas um presente inocente. Logo no início da peça, quando ainda não
sabemos bem o que se está a passar, já temos a sensação de que aquilo
que se desenrola tem uma carga por trás (algo se passou antes) e também
que a acção que a personagem está a fazer agora vai traçando o seu des-
tino, o ponto onde vai chegar no final. Como diz Langer (324), estar
diante de uma boa peça, como o Rei Édipo, é como olhar para um tabulei-
ro de xadrez quando o jogo já vai a meio – percebemos que houve algumas
jogadas antes e que dali há-de sair um cheque-mate. Depois do momento
crítico em que reconhece o que fez, Édipo cega, deixa de ser rei, exila-se.
É por isso que o drama escolhe momentos especialmente críticos, mo-
mentos como aquele em que Édipo compreende que tentou escapar ao que
o oráculo previra mas afinal não conseguiu: o destino cumpriu-se, “o pas-
sado caiu-lhe em cima”, como se costuma dizer de forma muito expressiva
em português corrente. E sente-se também o futuro dele, enquanto que na
narração há mais uma construção de uma memória, de um passado, argu-
menta Langer.
A questão da comparação dos tempos consoante os géneros é, eviden-
temente, delicada. Sendo certo que qualquer enunciado nos pode dar todos
os tempos, o que nos permite dizer, como geralmente se diz, que o tempo
do romance é o passado? Susanne Langer aborda esta questão dos tempos
no drama para contrapor que a característica do dramático não é, como
tantas vezes se diz, o presente, uma vez que esse não o distingue da nar-
ração, em que também nos deparamos com uma sucessão de presentes.

183
Mas, apesar dos argumentos de Langer (e de Kate Hamburger), creio que
a narrativa tem, de facto, mais relação com o passado: o simples facto de
haver um narrador empurra os acontecimentos para o pretérito, para um
antes do acto de os contar (até as histórias de antecipação e ficção cientí-
fica, como as de Ray Bradbury, são narradas no passado). Pelo contrário,
no drama absoluto, para além de o tempo da representação ser muito cur-
to para poder exprimir uma grande duração, não há narrador e assistirmos
ao que as personagens, fisicamente presentes, fazem e dizem diante de nós,
com um grande efeito de “aqui e agora”. Nesse sentido, Goethe (in Borie
et al 243) considera, na correspondência com Schiller, que a “principal
diferença consiste, então, em que o poeta épico representa os factos como
perfeitamente passados, e o poeta dramático como perfeitamente presentes.”
Pode objectar-se que não é óbvio que a temporalidade do drama seja
predominantemente o presente. De facto, quando as relações dos géneros
com o tempo começaram a ser sistematizadas (inicialmente por Humboldt

184
U nidade e pluralidade do dramático

e Schelling), Jean Paul, em 1813, associou a cada género uma temporalida-


de: “A Epopeia representa o acontecimento que se desenvolve a partir do
passado, o Drama a acção que se estende em direcção ao futuro, a Lírica
a sensação que se encerra no presente” (apud Segre 81). De Hegel a
Jakobson, há consenso no sentido de associar ao passado o género épico
e ao presente o lírico, não o dramático. Ainda em 1946, Emil Staiger, numa
obra assaz influente, caracteriza o lírico como recordação, o épico como
observação e o dramático como expectativa (cf. Silva 380). Há de facto na
construção dramática (ou fílmica) um trabalho sobre a expectativa, sobre
o futuro: mesmo num autor tão carregado de passado como Tadeusz Kantor,
“o passado torna-se futuro” (Sucher 236). Mas também a narrativa gere essa
criação de expectativas. É o aqui e agora da fenomenologia teatral que a
nosso ver relaciona o dramático preferencialmente com o presente.
Hoje o teatro e a sua família dos espectáculos ao vivo como a ópera ou
o bailado são os únicos a usar como materiais principais os seres humanos,
os corpos (foi isso que tornou possível as teorias e os trabalhos de autores
teatrais como Artaud e Grotovsky): é claro que também esses corpos surgem
em cena como substitutos de alguma coisa, mas a enunciação é fortemente
modificada pela irrupção de corpos vivos na obra de arte. Corpos presentes,
no duplo sentido de presença física (um actor “com muita presença”) e
presente temporal. No teatro é preciso muita força do autor e do actor para
tornar sensível, mais do que dizer, o futuro (Tchékhov, Beckett) ou o passado
(Ibsen, Bernhardt, Kantor), porque no teatro, onde se carrega um peso de
realidade, é mais difícil descolar o acontecimento representado do tempo
da representação: não é totalmente incapaz, mas é-lhe mais difícil conseguir
essa elasticidade porque tem os limites dos corpos reais, do tempo real e
do espaço real. Já o romance, cuja estratégia ficcional se desenvolve apenas
com palavras, pode jogar à vontade com o tempo: reduzi-lo como se nada
fosse (“passaram vinte anos”) ou dilatá-lo (em Proust, um piscar de olho
pode demorar quinze páginas); dar saltos para trás e para a frente, alterná­
‑lo, em possibilidades praticamente ilimitadas: “irá tão depressa para a
frente, tão depressa para trás, e será voluntariamente seguido por todo o
lado, dado que se dirige apenas à imaginação, e a imaginação cria para si
própria as suas imagens”, comenta Goethe (in Borie et al 245).

185
D rama e C omunicação

Para operar saltos no tempo, o teatro pede por vezes ajuda ao espaço,
por exemplo mudando o cenário no intervalo entre os actos – e Lope de
Vega chega a defender que a representação de entremeses durante os in-
tervalos aumentará a noção de ter decorrido muito tempo quando se
retoma a peça. A própria ideia clássica da peça em três actos, tal como a
expressão aristotélica de procurar “o mais que é possível” caber dentro de
uma revolução do sol, ou a injunção de Corneille de “não ultrapassar de-
masiado as vinte e quatro horas”, ou a de Lope de Vega defendendo que
a acção “se passe no menos tempo que for possível (…), procurando, se
puder, em cada acto, não interromper o término do dia”, já são, com tantos
condicionais, o sintoma de uma dificuldade de cumprimento total da uni-
dade de tempo.

Eu gostaria, para não incomodar em nada o espectador, que aquilo que


se representa na sua frente em duas horas – se pudesse de facto passar em
duas horas, e o que se lhe mostra num teatro que não muda, pudesse fixar­
‑se num só quarto ou numa sala, de acordo com a escolha que se tivesse
feito; mas frequentemente isto é tão pouco praticável, para não dizer mesmo
impossível, que se torna necessário encontrar um maior alargamento para o
lugar, bem como para o tempo. (Pierre Corneille, in Barata 72)

À medida que o classicismo se desenvolve, mais indeterminado se vai


tornando o tempo; e o lugar é considerado ter unidade se não for especi-
ficado ou se for, por exemplo, “uma cidade” (“o que se fizesse passar numa
só cidade teria unidade de lugar”, escreve o próprio Corneille em 1660, in
Borie et al 115), ainda que de facto surjam vários lugares dela.
E assim chegamos à questão da unidade de acção. É fundamental para
Aristóteles, não apenas pelas razões que aqui mais nos ocupam, mas também
por sempre lhe ser difícil reconhecer uma intelegibilidade racional a causas
acidentais e pela vontade política de demonstrar a existência natural de um
ethos comunitário (cf. Brito, 2010). Para Aristóteles, “acção” (praxis) é a ac-
tividade dramática, motivada pelas circunstâncias ou pelos caracteres, sendo
por isso fundamental a motivação que leva aos acontecimentos. Só assim se
entende que Aristóteles repita incansavelmente “que uma peça ou um poema

186
U nidade e pluralidade do dramático

só podem ser unificados se representarem uma acção.” Como podemos acei-


tar isto, se Homero, tanto na Ilíada como na Odisseia, usa múltiplas acções?
É que Aristóteles considera que em ambas Homero fez as obras centrar-se em
volta de uma acção que, no sentido que dá ao termo, é única. Poetas meno-
res tentaram a unidade fixando-se numa só personagem ou numa só acção
física: apenas Homero teve a visão para descobrir uma acção global no vasto
e diversificado material das suas épicas (na Ilíada, trata-se de lidar com a
fúria de Aquiles, na Odisseia, do regresso a casa). Também Sófocles, ou
Shakespeare, ou Ibsen, tomam uma história com muitos acontecimentos e vão
encontrar maneiras de lhe dar uma unidade, apresentável em poucos momen-
tos cruciais e críticos.
A questão é que a unidade de acção é no drama uma exigência muito mais
restritiva, quer para dispensar a figura do narrador quer para atender à fi-
sicalidade do palco. Já Aristóteles notava: na tragédia “não é possível imitar
várias partes da acção como desenvolvendo-se ao mesmo tempo, mas ape-
nas a parte que os actores representam na cena”, ao passo que na epopeia
o poeta pode “apresentar muitas partes realizando-se simultaneamente,
graças às quais, se são apropriadas, aumenta a amplitude do poema” (Poética,
1459b). Por isso, das três unidades, a de acção é, neste sentido, a mais
inevitável no drama – e é nela que Aristóteles mais insiste. Retomemos
Goethe na sua correspondência com Schiller (in Borie et al 244): “o poeta
dramático é forçado a fixar a sua atenção sobre um único ponto, enquanto
o poeta épico pode mover-se à sua vontade, e como se dirige sempre à
imaginação, representa a natureza inteira com ajuda das comparações, as
quais devem ser usadas de modo muito sóbrio pelo poeta dramático.” 2
Lessing, por seu turno, comentará (in ibid. 217) que as unidades de lugar

2 Como experiências limite para procurar escapar à unidade de acção citem-se algumas
obras futuristas. Em Simultaneità, de Marinetti, são postas em cena simultaneamente duas
acções completamente independentes, em lugares distintos. Outras vezes, os futuristas dão a
ideia de simultaneidade usando projecções para mostrar uma cena diferente da que ao mesmo
tempo decorre em cima do palco. Abolindo a unidade de acção, é muito provável que se
ponha em causa a unidade de lugar, e possivelmente também a de tempo: nas experiências
sintéticas de que falaremos no capítulo 9, os futuristas podem contar em poucos minutos meio
século de vida de um casal, como em Passatismo, de Corra e Settimelli. Cf. Coda, 1994.

187
D rama e C omunicação

e tempo decorrem da unidade de acção, a não ser para os clássicos fran-


ceses, que as tratam como “indispensáveis em si próprias” porque “não
tinham qualquer gosto pela unidade de acção” e preferiam acções variadas
e complexas.
Convém ter presentes alguns factores que estão ligados às leis das unida-
des. Subjaz-lhes a ideia de que o espectador do drama é posto diante de uma
fatia de vida, em tempo breve e lugar único: “é uma representação activa e
patética de coisas como se elas estivessem a acontecer realmente naquele
momento”, e o espectador “vê aqui as coisas como se elas acontecessem
verdadeiramente diante dele” escreve em 1631 Jean de Mairet (in ibid. 91­
‑92), no centro do romantismo. Por isso é contra os saltos no tempo e no
espaço: “é impossível que a imaginação não arrefeça, e que uma mudança
de cena tão brusca não a surpreenda, e não a aborreça extremamente, se
for preciso que corra sempre atrás do seu tema de província em província”.
Ora, a tradição inglesa, com expoente em Shakespeare, constrói peças com
inúmeros saltos espaciais e temporais. Dryden (in ibid. 126), escreve em
1668: “Quantos belos acidentes podem acontecer naturalmente em dois ou
três dias, os quais não têm qualquer probabilidade de acontecer no com-
passo de vinte e quatro horas? Também é preciso dar tempo para o
amadurecer das intenções.” Mesmo Samuel Johnson, escrevendo já em 1765
e impondo um certo classicismo em Inglaterra, mas sem nunca deixar de
invocar “a autoridade de Shakespeare”, também rebaterá com verve este
tipo de argumento.

É falso que uma representação qualquer seja tomada pela realidade, que
uma fábula dramática qualquer, na sua materialização, tenha alguma vez sido
credível nem, por um único instante, acreditada. A objecção vinda da
impossibilidade de passar uma primeira hora em Alexandria e a segunda em
Roma supõe que, no início da peça, o espectador se imagine realmente em
Alexandria, e creia que, tendo ido ao teatro, fez a viagem até ao Egipto e
que está a viver no tempo de António e Cleópatra. Seguramente aquele que
imagina isto pode imaginar mais ainda. Aquele que num dado momento pode
tomar a cena pelo palácio dos Ptolomeus também pode, meia hora depois,
tomá-la pelo promontório do Áccio. A ilusão, se é admitida, não tem limites

188
U nidade e pluralidade do dramático

certos, (…) não há razão para que um espírito vogando assim no êxtase
consulte o relógio. (Samuel Johnson, in Borie et al 208-209)

Johnson influenciará a obra Racine et Shakespeare, em que o grande


romancista Stendhal valoriza o génio inglês e desenvolve a curiosa teoria
da ilusão imperfeita: os espectadores não estão iludidos no sentido de
enganados, eles “sabem bem que estão no teatro, e que assistem à
representação de uma obra de arte e não a um facto verdadeiro”. O curioso
é que essa ilusão imperfeita necessita de pequenos momentos de ilusão
perfeita, “mais frequentes do que se crê em geral”: “estes momentos duram
infinitamente pouco, por exemplo, um meio segundo, ou um quarto de
segundo” e “encontram-se mais assiduamente nas tragédias de Shakespeare
do que nas tragédias de Racine. Todo o prazer que se experimenta com o
espectáculo trágico depende da frequência desses pequenos momentos de
ilusão, e do estado de emoção em que, nos seus intervalos, deixam a alma
do espectador.” (in ibid. 293-294)
Não apenas os ingleses, mas também os espanhóis, tinham enraizada uma
tradição avessa às regras do classicismo francês. Veja-se a ambiguidade do
que Lope de Vega (que escrevia muito para o grande público dos corrales
de comedias madrilenos e neste texto pretende justificar-se perante os aca-
démicos) proclama em Arte Nuevo de Hacer Comedias en este Tiempo, de
1609:

“e quando tenho que escrever uma comédia,


fecho os preceitos a seis chaves (...)
Acautele-se que apenas este assunto
tenha uma acção, cuidando que a fábula
de maneira nenhuma seja episódica,
quero dizer, inserta de outras coisas
que do primeiro intento se desviem;
nem que dela se possa cortar um membro
que não derrube todo o contexto.
Não há que aconselhar que decorra no período
de um sol, embora seja o conselho de Aristóteles,

189
D rama e C omunicação

porque já lhe perdemos o respeito


quando misturámos a máxima trágica
à humildade da baixeza cómica.
Que se passe no mínimo de tempo possível,
a não ser quando o poeta escreva uma história
em que tenham que passar-se alguns anos,
que estes poderá pôr nas distâncias
dos dois actos, ou se for forçoso
a alguma figura fazer uma viagem,
coisa que tanto ofende a quem entende;
mas não vá vê-las quem se ofende.”

(Voltaremos no capítulo 10 à questão da mistura entre o trágico e o


cómico).
Mesmo em França, porém, a questão das unidades não deixa de ser
problematizada, nomeadamente na sua relação com outro factor que também
faz parte dos preceitos canónicos: a vraissemblance. O prazer de que Mairet
fala “consiste principalmente na verosimilhança”. Que é um pau de muitos
bicos. Ao mesmo tempo que uns, como D’Aubignac em 1657, argumentam
ser inverosímil que um mesmo palco e um mesmo serão afinal representem
vários espaços e tempos, o próprio Racine (in Borie et al 129), pergunta-se,
no auge do classicismo, em 1671: “só o verosímil comove na tragédia, e
que verosimilhança existe quando acontece num dia uma multitude de
coisas que dificilmente ocorreriam em várias semanas?” Mesmo Corneille
(in ibid. 109) desenvolve em 1660 a confortável teoria de que o dramatur-
go trabalha entre a verosimilhança e a necessidade: ao contrário do
romancista, que “nunca tem liberdade de se afastar da verosimilhança, por-
que nunca tem uma razão nem desculpa legítima para dela se afastar”, o
homem de teatro deve dar prioridade ao necessário sobre o verosímil, não
nas acções em si, mas na ligação entre elas, que é o cerne do debate. Até
Mairet (in ibid. 92-93) sabe que a regra da unidade de tempo é “muito
difícil de seguir no conjunto” porque os “belos efeitos raramente se podem
encontrar num espaço de tempo tão curto”; a necessidade levará então a
uma cronologia mais alargada. D’Aubignac (in ibid. 94) argumenta como

190
U nidade e pluralidade do dramático

Corneille: “o poeta trabalha sobre a acção como verdadeira apenas na me-


dida em que possa ser representada; donde se poderia concluir que existe
uma qualquer mistura destas duas considerações”.
Com o passar das décadas, vai-se tornando cada vez mais claro que a
verosimilhança é contrária à concentração temporal. Em 1810, a Madame
de Staël (in ibid. 284-285) argumenta assim: “quase não existem aconteci-
mentos que datem da nossa era cuja acção possa decorrer, ou no mesmo
dia, ou no mesmo lugar; a diversidade dos factos que acarreta uma ordem
social mais complicada, as delicadezas de sentimento que inspira uma re-
ligião mais terna, enfim, a verdade dos costumes que se deve respeitar nos
quadros mais próximos de nós, exigem uma grande latitude nas composi-
ções dramáticas.” Treze anos mais tarde, Alessandro Manzoni (in ibid.
287-288) comenta como a necessidade de desenvolver a acção dramática
em poucas horas fez “exagerar as paixões, desnaturando-as”: “e o teatro
encheu-se de personagens fictícias que aí figuraram como tipos abstractos
de algumas paixões, mais do que como seres apaixonados”. Da implosão
do conceito de drama falaremos, sim, mas no próximo capítulo. Agora temos
outra questão maior a contrapor ao que até agora expusemos.

4. Apesar da lei das três unidades, creio ser enganador falar apenas da
unidade do drama contra a pluralidade da narração, porque uma das ca-
racterísticas fundamentais do dramático é o facto de pluralizar – não as
acções, mas os pontos de vista. Vale a pena desenvolver este aspecto fun-
damental, que pode ficar ocultado pelas regras composicionais das
unidades. Em 1852, o Vitoriano Dallas (cf. Segre 81), muito influenciado
pelos românticos alemães, elaborou um esquema em que a lírica represen-
taria a unidade de um ser que se exprime, o drama representaria a
pluralidade das várias personagens e a épica a totalidade (porque nos dá
essas personagens mais o narrador que as enquadra, decifra e comenta).
E juntou-lhe uma distinção pelo uso das pessoas verbais: a primeira pessoa
do singular para a lírica, a segunda do plural para o drama e a terceira
pessoa do singular para a épica (em 1935, Roman Jakobson, in ibidem: 81,
desenvolveu esta formulação gramatical, considerando que a primeira pes-
soa do presente é o ponto de partida e o fio condutor da poesia lírica, a

191
D rama e C omunicação

terceira pessoa do passado corresponde à epopeia, mas, estranhamente,


não referindo nem o relacionador tu nem o género dramático). No dramá-
tico, o estilo tem de adaptar-se à variedade das personagens.

Ajustar o estilo à personagem ou tema internos é conhecido como decorum


ou adequação do estilo ao conteúdo. O decorum é em geral a voz ética do
poeta, a modificação da sua própria voz para a voz de uma personagem ou
para o tom vocal pedido por um assunto ou humor. E tal como o estilo se
encontra no seu estado mais puro na prosa discursiva, assim o decorum está
obviamente no seu estado mais puro no drama, onde o poeta não aparece
em pessoa. O drama pode ser descrito, deste ponto de vista que agora
tratamos, como epos ou ficção absorvido pelo decorum. (Northrop Frye,
1990:268-269)

Parece-me muito importante insistir sobre esta pluralidade dramática: os


autores que não a conseguem entender ficam sempre limitados a uma
espécie de recitativos líricos; pelo contrário, atingem o cume os autores
que conseguem desdobrar-se numa multiplicidade de pontos de vista, como
Fernando Pessoa (que dizia estar a fazer “um drama em gente em vez de
em actos”) ou, sobretudo, Shakespeare, em que cada uma das suas mil
personagens tem a sua maneira própria de olhar para o mundo, a sua
sensibilidade, a sua fisicalidade, os seus interesses, a sua maneira de falar
– numa obra tão monstruosa que alguns têm mesmo levantado a questão
se teria sido realmente possível concebê-la sozinho.
Esta pluralidade e conflitualidade de pontos de vista é tanto mais ne-
cessária quanto os acontecimentos e conflitos do drama, por não existir
narrador, só podem provir das próprias personagens. Podemos encontrar
já em Aristóteles esta relação entre a acção dramática e a adequação à
pluralidade de pontos de vista das personagens, na medida em que as ac-
ções provêm sempre das motivações das diversas personagens. Não é demais
lembrá-lo: praxis não significa necessariamente actividade física, mas acti-
vidade dramática, dependente da motivação que leva aos acontecimentos,
aquilo a que Dante, muito mais tarde, chamará um “movimento do espírito”
(e, dentro da motivação, Aristóteles ainda distingue aquela a que chama

192
U nidade e pluralidade do dramático

“patética”, que está mais próxima do pólo passional da experiência, da


motivação “ética”, que está mais próxima da razão e da vontade conscien-
temente controladas). De facto, quando tentamos definir as acções de alguém
que conhecemos, ou das personagens de peças ou filmes, geralmente fa-
zemo-lo em termos de designações genéricas ligadas às motivações (dizemos
“a Luísa vingou-se”, ou “perdoou”, e não todas as acções concretas que
executou).

Na filosofia de Aristóteles, e em muitas teorias subsequentes sobre a acção


humana, os conceitos de “acção” e de “paixão” (ou praxis e pathos) são
agudamente contrastados. A acção é activa: a psyche percebe uma coisa que
quer, e “move­‑se” em sua direcção. A paixão é passiva; a psyche sofre alguma
coisa que não pode controlar ou compreender, e “é movida” por ela. Os dois
conceitos, abstractamente considerados, são opostos; mas na nossa experiência
humana, acção e paixão estão sempre combinadas, e este facto é reconhecido
na psicologia de Aristóteles. Nenhum movimento da psyche é pura paixão
– totalmente desprovida de objectivo ou de compreensão – excepto talvez
nalguns estados patológicos em que se perdeu a qualidade humana. E não
existe acção humana sem a sua componente de indefinido sentimento ou
emoção; só Deus (em algumas filosofias aristotélicas) pode ser definido como
Acto Puro. (…) Mesmo na dor, luxúria, terror, ou luto, a paixão, tal como a
conhecemos, adquire algum motivo mais ou menos consciente, alguma forma
humana que podemos reconhecer. (Francis Fergusson 67)

Assim, não há praxis que não provenha do pathos. Quem podemos ima-
ginar como autor da pura praxis, não motivada? Só Deus, diz Aristóteles.
Só Deus e Chuck Norris, acrescentaríamos nós (e os seus filmes são tão
desinteressantes justamente porque a única razão para as personagens da-
rem tiros e pontapés é… ser um filme de acção). Simetricamente, não há
emoção que não acabe por dar origem a uma acção: o luto, o medo, o
desejo, podem paralisar uma pessoa durante uns momentos ou umas horas,
mas, excepto em casos que consideramos patológicos, esse sentimento aca-
bará por se resolver numa acção. As palavras emoção e movimento têm
aliás a mesma raiz, como se percebe nos termos mover e comover, ou, em
inglês, motion e emotion.

193
D rama e C omunicação

O pensamento moderno converge com esta concepção aristotélica de


uma acção motivada. Na estética romântica, Friedrich Schlegel pensou os
géneros em correlação ontológica com os factores subjectivo e objectivo,
sendo a lírica uma forma subjectiva, a épica uma forma objectiva e o drama
uma forma subjectivo-objectiva (embora por duas ocasiões faça trocar de
posições a épica e o drama). O seu irmão August Wilhelm Schlegel usa o
mesmo esquema, não hesitando em colocar o drama como interpenetração
da objectividade e da subjectividade, considerando a épica como a tese, a
lírica como a antítese e o drama como a síntese das manifestações poéticas
do espírito humano; nisto coincidem os Schlegel “com a valoração atribuí­
da à tragédia na Poética de Aristóteles: o género misto, precisamente por
ser um género sintético, incorpora as virtualidades dos géneros puros e
transcende as limitações destes” (Aguiar e Silva 361-362).
Vamos encontrar a mesma linha de pensamento noutro autor fulcral para
esta discussão: Hegel, que em cem páginas sobre o dramático estabeleceu
a abordagem filosófica mais sistemática sobre estes temas. Hegel retomou
dos românticos a distinção dos três géneros segundo a relação entre o
objectivo e o subjectivo. A epopeia, segundo Hegel (in Borie et al 324-330),
“põe em relevo o próprio objectivo na sua objectividade”; mas no drama
“não são os factos em si mesmos que constituem o aspecto principal, mas
a disposição do espírito interior da acção”. O conteúdo da lírica é o
“subjectivo, o mundo interior, a alma que reflecte, que sente e que, em vez
de agir, se fixa, pelo contrário, em si própria como interioridade, podendo
assim tomar como única forma e objectivo último o exprimir-se do sujeito”.
O drama é uma síntese das duas anteriores atitudes, é o produto de uma
civilização já avançada: “Expõe uma acção completa como concretizando-se
diante dos nossos olhos; simultaneamente, esta parece emanar das paixões
e da vontade íntima das personagens que a desenvolvem.” No drama,
“encontramo-nos diante tanto de um desenvolvimento objectivo como do
seu originar-se no interior os indivíduos, de modo que o objectivo se
manifesta como pertencente ao sujeito, enquanto o subjectivo, ao invés, é
levado ao alcance da intuição, por um lado, no seu passar à extrinsecação
real e, pelo outro, na libertação e satisfação que a paixão proporciona como
resultado necessário do próprio agir”. “Esta objectividade que provém do

194
U nidade e pluralidade do dramático

sujeito, tal como esta subjectividade que consegue ser representada na sua
realização e na sua validade objectiva, (…) fornecem a forma e o conteúdo
da poesia dramática enquanto acção”. Isto deve-se também a que o indivíduo
dramático não é redutível à sua conclusa autonomia; antes, encontra-se
envolvido em luta e oposição com outros.

A personagem não fica fechada em si mesma numa independência solitária.


(…) Encontra-se arrastada para uma luta com outras personagens; (…) embora
o homem moral e a natureza íntima sejam o centro da representação dramática,
esta não pode contentar-se com as simples situações líricas nem mesmo com
a narrativa mais ou menos patética das acções passadas, ou com a descrição
das alegrias, dos pensamentos e dos sentimentos em que o homem se conserva
inactivo. (…) Mas esta acção exterior, em vez de se concretizar como um
simples acontecimento, encerra as intenções e os esforços da acção humana.
A acção é essa mesma vontade, perseguindo o seu objectivo. (…) O herói
dramático traz em si o fruto dos seus próprios actos. (Hegel, in Borie et al
326-328)

Szondi (64-65) pensa o drama de modo semelhante: “o acontecimento


é absoluto no drama porque se destacou tanto da situação interior da alma
como da situação exterior da objectividade, e porque funda sozinho a di-
nâmica da obra.” Tanto Szondi como Susanne Langer dão, a este respeito,
um exemplo semelhante: se quisermos escrever sobre o contexto histórico
de uma época, no caso, sobre a reforma luterana, melhor é que nos dedi-
quemos a um ensaio ou a um romance: no drama, esse contexto terá de
aparecer encarnado nas decisões concretas de algumas personagens, e não
apenas como mera ilustração. Szondi (16): “as condições objectivas às quais
seria necessário apelar para dar os motivos de uma tal decisão exigiriam
ser tratadas no modo épico. A explicação da decisão de Lutero a partir da
situação interhumana na qual ele se encontra seria a única possibilidade
para o drama, mas seria evidentemente de todo estranha às intenções de
uma peça sobre a Reforma.” Langer (326): “onde o ‘meio ambiente’ chega
de alguma forma a entrar no drama, entra como uma ideia nutrida por
pessoas na peça, tais como visitantes de cortiços e reformistas”. Ou, nos

195
D rama e C omunicação

termos de Hegel, no drama devem ganhar expressão mais os motivos in-


ternos e os fins do que a vasta conexão do mundo com a condição real
dos indivíduos.
Quando estamos a assistir a um drama, em que não há um narrador,
em que apenas temos as personagens, todas as coisas que acontecem vêm
do interior, da subjectividade dessas personagens, ou então do que elas
narram. Nada existe ali sem partir das personagens, ninguém sem ser as
personagens comenta, por exemplo: “ela está triste”: é uma personagem
que diz ou mostra (voluntaria ou involuntariamente) que está triste ou diz
que outra está triste. Mas essa subjectividade não é igual à da lírica: por-
que, para existir, tem de se objectivar e de se confrontar com outras. Um
jovem fechado no seu quarto, durante duas horas ou dois meses, a me-
ditar se terá feito bem em estudar na universidade não é a personagem
ideal para um drama ou para um filme. Essa é uma limitação terrível mas
que caracteriza o género dramático: a subjectividade tem de se objectivar,
esse interior tem de se decidir a vir para fora. O objectivo manifesta-se
como pertencente ao que os sujeitos experenciam ou narram, vem do
interior dos indivíduos; mas para isso eles têm de tornar o subjectivo
objectivo. E como as personagens ainda têm essa capacidade de exprimir
subjectividades e além disso narrar acontecimentos, próximos ou distantes,
compreende-se que Aristóteles tivesse o dramático na conta de género
mais completo.

5. Estas ideias vão ser bem retomadas pela neo-hegeliana Kate Hamburger,
precisamente porque vai partir da materialidade associada a cada um des-
tes géneros – ou seja, no caso do drama, parte da sua realização física numa
cena. O drama, diz Hamburger, está sujeito às limitações físicas do palco,
onde não há ninguém a introduzir e a comentar as personagens e as acções:
são as personagens que se criam a si próprias. O que existe no palco é o
que elas disserem e fizerem. Hamburger insiste demasiado no “disserem”,
nos diálogos, como se no palco só houvesse diálogos e não movimentos
corporais; já vimos mesmo, com Goffmann, que há uma complementarida-
de entre palavras e gestos e que, embora o dramático seja classicamente o
território da palavra, há dramas modernos em que as personagens nem

196
U nidade e pluralidade do dramático

sequer falam. As acções podem até alterar a imagem transmitida pelas pa-
lavras; as personagens por vezes são apanhadas em rupturas, como já vimos
em Goffman, ou no Tartufo de Molière ou nos filmes de Jacques Rivette; a
questão é que só sei isso quando alguma coisa de contraditório passar ao
domínio da percepção. Esta é a limitação, mas também a graça, do teatro
e da vida: estamos limitados àquilo que vemos e ouvimos. A questão fun-
damental aqui é que, seja por palavras, seja por acções, as personagens
têm de exteriorizar o que está dentro delas: de outro modo, não existem,
porque não há ninguém que conte os acontecimentos e sentimentos por
elas. São as personagens que se criam a si mesmas, ou umas às outras, pelo
que dizem e fazem.
Hamburger dá o exemplo de uma personagem da peça Tasso, de Goethe.
Hofmannsthal escreveu a Goethe dizendo que ele tinha criado uma extra-
ordinária princesa misteriosa, introvertida, mas “se viu obrigado a estragar
a figura mais linda, fazendo-a falar sobre si mesma e declamar, quando o
seu carácter teria exigido o silêncio.” O problema é que, se ela não se ex-
teriorizasse, não existia. Imaginemos que todas as personagens eram assim,
com uma grande vida interior mas sem a exteriorizarem: não existia drama.
Já no romance não é assim: podemos saber tudo o que vai dentro das ca-
beças e corações das personagens. Como já notava Schlegel (in Borie et al
260-261): “para preencher as lacunas que os diálogos deixarão na história,
o narrador retoma a palavra em seu próprio nome e, descreve todas as
circunstâncias que devem ser conhecidas. O poeta dramático é obrigado a
renunciar a este meio.” Por isso Thomas Mann, em Estudos sobre o Teatro,
de 1908, diz que o teatro é uma “arte de silhuetas”.

Onde existe cena dramática que ultrapasse uma cena de um romance


moderno pela precisão da visão, pela actualidade intensiva, pela realidade?
(...) O romance é mais exacto, mais completo, mais informado, mais
consciencioso, mais profundo do que o drama em tudo o que diz respeito
ao homem físico e psíquico. Contrariando a opinião de que o drama é a obra
literária por excelência, confesso que a considero antes uma arte silhuetada
e apenas o homem narrado é completo, inteiro, real e plástico. (Thomas
Mann, apud Hamburger 145)

197
D rama e C omunicação

Nesse sentido, Thomas Mann tem razão: o romance vai mais longe. No
drama, não podemos entrar na cabeça e no coração e no passado das
personagens quando elas se escondem ou retraem. De facto, quando leio um
romance posso ficar a saber muito mais sobre o interior das personagens.
Alguém está a olhar para mim: se fosse num romance, eu poderia de imediato
saber o que pensa ou sente, se o narrador o explicasse. Mas repare-se que
esta situação do drama é também a situação da vida quotidiana, em que
também não sabemos o que se está a passar na cabeça das pessoas: só sabemos
aquilo que elas manifestarem. Podemos, como diz Goffman, estar atentos a
eventuais desfasamentos entre o que dizem e fazem (está a mostrar-se muito
interessado, mas por algum descuido descubro que está a pensar noutra coisa).
Estamos porém limitados à exteriorização das subjectividades internas ou da
sua falsificação: se a pessoa exterioriza o interesse, concluo que está interessada.
É a limitação do drama e é a limitação da nossa vida quotidiana. Todos nós,
com certeza, gostaríamos de conhecer melhor os nossos pais: serão felizes?
Tê-lo-ão sido? O que sentem? Um romance poderia dizer-nos tudo: no drama,
como na chamada vida real, sei apenas o que o meu pai ou a minha mãe me
quiserem dizer, ou o que eles traduzirem nas suas acções e gestos; aquilo que
eles não exteriorizarem de alguma forma, eu não conheço, não existe para
mim. No drama, é a mesma coisa: só existe o que as personagens manifestarem
em palavras, em sons, em silêncios e em gestos ou movimentos.

A situação do espectador frente ao palco – onde, como diz Schiller (em


carta a Goethe), “ele está ligado estreitamente ao presente sensível” –
corresponde muito mais ao carácter fragmentário da realidade vivenciável,
no sentido desenvolvido acima; a personagem e, como tal, o mundo dramático
é-lhe mais aproximável do que o épico. O modo como se nos apresentam a
personagem e o mundo épicos ultrapassam consideravelmente aquilo que se
pode apresentar na realidade física e histórica. Podemos experimentar o
homem no seu “interior diáfano” num único lugar “epistemológico”, ou seja,
na criação literária narrativa. (Kate Hamburger 146)

Ou seja, e este parece-me ser o ponto fundamental de Kate Hamburger


(140-142), o que define o drama é a necessidade de “passar do modo da

198
U nidade e pluralidade do dramático

imaginação ao modo da percepção”. O drama é a passagem “do domínio


infinito da imaginação ao espaço limitado da realidade”, que é o espaço
real do palco, a cujas leis se submete com soluções variáveis 3 . Por essa
limitação ao palco o drama não tem a elasticidade da narrativa, que pode,
se quiser, saltar partes, sublinhar outras, entrar nos pensamentos e no pas-
sado das personagens. No drama, há uma realidade física a respeitar e só
existe aquilo que for perceptível nessa realidade física. Lembremos dois
recursos que o drama clássico utiliza, não diríamos para entrar no pensa-
mento das personagens, mas para fazer esse pensamento sair para o
exterior: os monólogos e os apartes, que traduzem o interior mais escon-
dido ou mais alheio à situação de representação em que a personagem se
encontra e por isso não podem ser ouvidos pelas outras personagens.

6. Há-de reparar-se que parece existir uma pequena contradição entre


o que diz Kate Hamburger e o que diz Susanne Langer. Para Langer, o
drama é uma forma que vai sendo preenchida: temos a noção de um todo
que se vai cumprindo, em que o passado se encadeia com o presente e
com o futuro. Ora, Hamburger sublinha o lado fragmentário do drama, por
contraponto à totalidade do romance. De facto, é inerente ao drama só
conhecer fragmentos. Só que, através daqueles fragmentos a que, pelas leis
físicas do drama, de facto estamos sujeitos, porque o drama implica ele-
mentos da percepção, apesar de tudo compomos uma certa unidade
orgânica de forma mais forte do que no quotidiano e do que no romance.
É sabido que toda a obra de arte implica um certo fechamento: mesmo
obscuro como é, o personagem Hamlet está todo contido naquele texto.
Nunca se descobrirá um seu diário íntimo nem as cartas que tenha escrito
à sua mãe e que poderiam contradizer o que antes sabíamos. Mas, como
observou Brecht (73), “ao épico Döblin se deve uma excelente caracteriza-
ção dos géneros ao afirmar que, ao contrário do drama, a epopeia pode, a
bem dizer, retalhar-se em pedaços, pedaços que permanecem, apesar de tudo,

3 Como Hamlet quando decide ser, e portanto passar do domínio infinito dos seus
pensamentos para o campo limitado da presença e da acção no palco do mundo, que por
sinal o leva ao palco propriamente dito.

199
D rama e C omunicação

com inteira vitalidade.” Também Milan Kundera (1988) e Maurice Blanchot


(1984) insistiram no carácter digressivo do romance e da narrativa. Já no
drama, apesar do carácter fragmentário que a presença em palco sempre
implica, esse fechamento é claramente determinado pela moldura do palco,
pelas suas limitações espaciais, temporais e físicas e pelo “preenchimento da
forma” inerente ao drama ou pelo menos ao drama absoluto.
Ou seja, o drama é fragmentário mas não disperso. Isto não se deve
apenas ao facto de incluir elementos narrativos que situam, relacionam ou
condensam os acontecimentos. É também e sobretudo porque no drama as
personagens vão fazer e dizer coisas que remetem para o seu passado e
futuro, como Édipo, e portanto acabamos por ter uma noção mais forte da
totalidade daquela vida do que temos no quotidiano. Só talvez nalguns
momentos críticos da nossa vida é que revemos este todo que a nossa
existência é ou parece ser e dizemos “realmente, o que tens tu andado a
fazer, ao que estás amarrado e ao que chegaste!”; ou “se voltasse atrás,
faria tudo de outra maneira”; ou “se voltasse atrás, voltaria a fazer o mesmo”.
Para usarmos os termos gregos, é a diferença entre chronos, a mera crono-
logia quantitativa ou passagem do tempo, e kairos, o sentido agudo do
significado da ligação entre os acontecimentos e entre os tempos passado,
presente e futuro, um sentido que só existe em certos momentos, críticos.
É justamente nesse kairos que o drama se vai concentrar; sobretudo a tra-
gédia, que Proust definiu pelo seu extremo preenchimento: é um todo com
um propósito e retém apenas aquelas imagens “que nos podem ajudar a
tornar o seu propósito inteligível” (apud Kracauer 265). Mesmo nas peças
de Tchékhov, compostas de fragmentos aparentemente esfarrapados, aca-
bamos por ter uma inegável sensação de coesão, de forma que vai sendo
preenchida.

7. Uma última advertência: se já Platão considerava a epopeia como


género misto, em que o narrador por vezes cede a enunciação às persona-
gens, modernamente conhecemos ainda muito mais possibilidades de
combinação entre os géneros, incluindo aquilo a que Brecht, retomando e
teorizando a ideia do recitante clássico, chamou “teatro épico”, como vere-
mos – e que compreenderemos tanto melhor quanto mais profundamente

200
U nidade e pluralidade do dramático

tivermos entendido o que está em causa em cada género tomado em ab-


soluto. No início do século XXI , e apesar de ciclicamente haver períodos
em que se regressa a uma maior pureza das grandes categorias atrás sinte-
tizadas, poderíamos apontar inúmeras tendências para compor as obras
como mosaicos que recorrem com enorme liberdade a estratégias enuncia-
tivas próprias de vários géneros.
Por sua vez, o cinema já é de raiz e necessariamente uma combinação,
cuja dosagem varia, entre o dramático e o narrativo. Começou muito perto
do teatro (o que ainda se nota em designações como “movie theatre” ou
“cine-teatro”), não só porque era (como ainda hoje é) um espectáculo que
as pessoas, saindo de casa, iam ver a uma sala onde quase sempre, a horas
fixas, actores representavam, mas também porque o cinema dos primeiros
tempos, quando fazia ficção, se socorria de actores de teatro e dos seus
sketches ou mesmo de toda uma tradição teatral, como o burlesco. A ne-
cessidade de uma certa unidade temporal era clara, embora o cinema
estivesse muito mais livre quanto à unidade de espaço ou de acção. Em
grande medida também dependia e depende sempre, como o teatro, do
que as personagens fizerem ou disserem. Mas desde sempre pôde colocar
ao lado das personagens uma maior variedade de objectos e acções: no
filme há muitas possibilidades para o showing, ninguém precisa de dizer
“está a chover”, vê-se a chuva, ou vê-se um avião a atravessar os céus, ou
vê-se, como em todas as adaptações cinematográficas de Hamlet, Ofélia a
boiar no riacho entre galhos e flores, em vez de ser a rainha a narrar ver-
balmente esta morte. Os limites temporais são também mais flexíveis:
quando Pier Paolo Pasolini filma Édipo Rei, embora parta da peça de Sófocles,
desfaz a concentração temporal que o dramaturgo criara e mostra a vida
de Édipo desde bebé.
Mais ainda: já em 1916 Hugo Münsterberg (104) escrevia que “o cinema
(photoplay) nos conta a história humana libertando-nos das formas do mun-
do exterior, nomeadamente espaço, tempo e causalidade, e ajustando os
acontecimentos às formas do mundo interior, nomeadamente atenção, me-
mória e imaginação.” Isso, que já podia ser intuído numa época tão
recuada, não deixou de aumentar à medida que o cinema foi encontrando
o seu caminho, não como mero registo das acções teatrais colocadas dian-

201
D rama e C omunicação

te da câmara, mas sim como modo de narrar, com soluções próprias que
foram sendo inventadas, incluindo os saltos no tempo (elipses, flashbacks),
a montagem paralela, a narração em off, e que o foram aproximando do
romance assimptoticamente, isto é, chegando cada vez mais perto mas sem
nunca alcançar a elasticidade temporal e espacial da narrativa escrita 4.

A imagem móvel é a causa do facto de o cinema ser tanto drama epicizado


como épica dramatizada. O factor de mobilidade da fotografia cinematográfica
transforma-a numa função narrativa, que faz do actor, em grande parte, uma
personagem épica. O factor da imagística dessa fotografia limita, no entanto,
a configuração dos seres cinematográficos à forma dramática (...). Os géneros
dramático e épico fundem-se no filme na forma particular do drama epicizado
e do épico dramatizado – uma fusão em que ambos os factores são ampliados
e limitados de modo singular. (Kate Hamburger 163-164)

Algumas instalações e performances contemporâneas recorrem ao vídeo


para aumentar a elasticidade temporal, trabalhando por exemplo as dessin-
cronizações: Dan Graham, em Present Continuous Past(s), em Time Delay
e sobretudo em Past and Future Split Attention conjuga uma descrição an-
tecipada e uma descrição rememorizada, um avanço e um atraso, no
mesmo espaço cénico. As sempre problemáticas unidades de lugar, de
tempo e de acção são assim interrogadas, com um efeito inquietante sobre
o espectador.

4 Devo várias destas reflexões ao seminário de Christian Metz “Théorie du film: l’énonciation
comparée”, que em 1990/91 frequentei em Paris III. Que eu saiba, o conteúdo dessas aulas
não foi publicado, devido à morte prematura do autor. Algumas podem, porém, ser encontradas
no livro L’énontiation impersonelle ou le site du film”.

202
7 . DA CRI S E DO DR A M A E DA O B R A DE A R T E TOTA L

1. Vimos no capítulo anterior como toda a teorização que culminou na


ideia do drama absoluto e uno chegou a ter a sua concretização histórica,
nos séculos XVI e XVII , sobretudo em França, mas também no classicismo
alemão e, depois da Restauração inglesa de 1660, na própria Inglaterra,
onde os autores acolheram alguma influência da dramaturgia francesa.
É altura, neste início do século XXI , de analisarmos como a mudança dos
tempos e das vontades levou, já há século e meio, a mudanças profundas
na ideia de drama – há noções que são desenvolvidas e estabilizadas para
depois, uma vez compreendidas, poderem ser postas em causa.
Começaremos por seguir essa obra maior que é a Teoria do Drama
Moderno, de 1956, onde Peter Szondi analisa a decomposição do “drama
absoluto”, regido pelas três unidades. “Por volta do ano 1860, esta forma
do drama não era apenas a norma subjectiva dos teóricos, ela representava
o estado objectivo da arte dramática. Aquilo que existia ao lado e que lhe
poderíamos opor ou tinha um carácter arcaico ou estava ligado a uma te-
mática precisa. Deste modo, a forma ‘aberta’ de Shakespeare, que opomos
sempre à forma ‘fechada’ do classicismo, não pode ser separada das suas
peças históricas, e de cada vez que a literatura alemã a retomou de forma
bem sucedida, tratava-se de apresentar um fresco histórico” (Szondi 19-20).
Szondi afirma que a partir do século XVII até finais do século XIX o que
se encontrava era o “drama absoluto”, clássico ou neoclássico. Há que fazer
aqui uma pausa em Szondi e objectar que ele está a passar por cima do
movimento romântico, que, logo nas duas primeiras décadas do século XIX,

tanto na teoria como na prática do drama, vinha reagindo às doutrinas


classicizantes. Não tratavam os românticos apenas de desenvolver (a par
D rama e C omunicação

do melodrama de forte esplendor cenográfico) a tragédia histórica, nomea­


damente com o tratamento da História recente. Tratavam também, para o
que na questão dos géneros mais nos interessa, de sacudir as regras e as
unidades (excepto a de acção). Bastará citar o Prefácio a Cromwell, que
Victor Hugo (1802-1885) escreveu em 1827 (tinha 25 anos) e onde exclama:
“Metamos o martelo às teorias, às poéticas, aos sistemas. Deitemos abaixo
essa velha crosta que mascara a fachada do teatro! Não há regras, nem
modelos! Ou antes: não há outras regras senão as das leis gerais da natu-
reza, que flanam por sobre toda a arte, e as leis especiais que, para cada
composição, resultam em condições próprias a cada assunto. (…) As pri-
meiras são a viga que sustenta a casa; as segundas, a carpintaria que serve
para a construir e que se refaz em cada edifício” (in Barata 105). Hugo
considera ser próprio da modernidade a reunião da ode e da epopeia, da
tragédia e da comédia, do grotesco e do sublime, na poesia dramática, a
que chama simplesmente drama e que seria a poesia completa (diz poesia
com a acepção de criação, embora defendesse o drama em prosa). De facto,
os géneros correspondem como vimos a necessidades epocais: em 1937
Lukács comparará os géneros segundo diferentes visões da realidade mas
também segundo as características do público a que se destinam e não
podemos deixar de ver que “o drama burguês emerge, na segunda metade
do século XVIII , em correlação com a existência de um público burguês e
popular que não conhece nem a gramática nem a enciclopédia necessárias
para a compreensão da tragédia neoclássica” (Silva 396).
O conceito romântico de drama por que Lessing lutou desde o século
XVIII e que Hugo proclamou em 1827 logo prosperou na teoria e na prática
cénica. Veja-se como em 1871, ao explicar “A escola do romantismo no
teatro”, Teófilo Braga dava o assunto como passado desde Bodmer, Schlegel
e Lessing: “Acabou-se com a eterna questão das unidades; assentou-se que
os trágicos gregos nem sempre as seguiram, e que a fórmula proposta na
Poética de Aristóteles era facultativa, e que compreendida materialmente
levava a uma pobreza de interesses inevitável” (103). Não pode, pois, dizer­
‑se que em 1860 o drama absoluto era a norma indiscutida dos teóricos e
dos criadores. Mas voltemos a Szondi, que tem observações pertinentes
sobre o que se passava com os que ainda seguiam essa norma na segunda

204
Da crise do drama e da obra de arte total

metade do século XIX. Vamos assistir às dificuldades da forma canónica que


tinha sido criada no Renascimento, em época de plena confiança no Homem
e na comunicação interhumana, que agora começava a erodir-se. “As exi-
gências técnicas do drama são o reflexo de exigências existenciais. (...) As
contradições entre a forma dramática e os problemas da época presente
não deverão ser expostas abstractamente, mas sim captadas no interior da
obra concreta sob o seu aspecto técnico, isto é, como ‘dificuldades’” (Szondi
9-10). É a isso que Szondi vai dedicar-se e vale a pena acompanhar a sua
análise de três grandes dramaturgos do fim do século XIX .

Szondi mostra como há em Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês (1828­


‑1906), um evidente domínio da forma dramática: mas “esta perfeição
exterior esconde uma crise interna do drama”. Ele aborda personagens que
estão mergulhadas na sua interioridade e no seu passado: duas caracterís-
ticas que melhor convêm ao género épico. Só que Ibsen vai persistir na
forma clássica do drama, sem sequer a procurar criticar. “Como o ponto de
partida era épico, ele estava como que obrigado a alcançar esta mestria
incomparável na construção dramática. E, porque a atingiu, não pudemos
depois distinguir nele a base épica” (20, 27).
Por exemplo, Ibsen baseou a maior parte das suas peças na chamada
“técnica analítica”, que tem aliás levado a que o comparem com Sófocles:
os acontecimentos apresentados no drama estão cheios de ecos de um
passado. Mas, no Édipo Rei, quando a verdade é revelada, ela pertence ao
presente: com as notícias do passado, é o presente que é revelado e afecta-
do. Já nas peças de Ibsen, o passado ganha ao presente, vem canibalizá-lo:
“raramente consegue fazer com que a actualidade ofereça um tema tão
forte como a acção evocada e que elas se amalgamem inteiramente”. Por
exemplo, o tema recorrente da hereditariedade, ou de um leitmotiv (um
objecto, um som...) que no presente fazem ecoar o passado, em Ibsen não
são, como em outros, maneiras de mostrar as transformações, ou sequer a
identidade na mudança: são modos de conseguir que mesmo no teatro,
apesar da presença aqui e agora dos corpos, se viaje para o passado, de
fazer com que este se actualize, e mesmo de transmitir o próprio tempo que
passa e dura (a durée, para usar o termo que irá ser usado por Henri Bergson
no início do século XX ). O que conta não é “nada do que se situa no pas-

205
D rama e C omunicação

sado, mas o próprio passado: os ‘longos anos’ recordados sem cessar e ‘toda
esta vida desperdiçada, falhada’. Mas toda esta dimensão é inacessível ao
presente dramático. Pois apenas um elemento temporal pode ser tornado
presente no sentido de uma actualização dramática, e não o tempo em si
mesmo. E este tempo só pode, no drama, ser o objecto de uma narrativa”
(Szondi 26-27).
Daí a mestria que Ibsen tem de desenvolver para não pôr em causa a
forma dramática (a peça de 1867 Peer Gynt é uma excepção que confirma
a regra que depois sempre seguiu, porque nessa peça Ibsen põe em causa
as unidades de tempo e de lugar, seguindo as aventuras do protagonista
com uma extensão mais habitual no modo épico). Mestria redobrada, se
repararmos que, embora a temática de Ibsen “provenha inteiramente do
relacionamento interhumano, ela apenas se desenvolve, como seu reflexo,
na alma dos seres isolados e estranhos uns aos outros. (...) Os homens, em
Ibsen, só podem viver metidos dentro deles próprios e alimentando-se da
‘mentira da vida’” (ibid. 26). Mais uma vez, vemos como já não estamos no
domínio do drama clássico: em Édipo Rei, tantas vezes tomado como mo-
delo, a verdade é de natureza objectiva; em Ibsen, pelo contrário, toda a
verdade é interior, subjectiva. “Reconhecemos aqui a distância que, de for-
ma geral, afasta o mundo burguês da ruína trágica do herói. O trágico é-lhe
imanente, e não reside na morte, mas na vida” (ibid. 28).
Isolamento e passado é o que vamos encontrar também em Anton
Tchékhov (1860-1904), que lhes junta ainda o tempo do futuro utópico.
Continuemos com a argúcia de Szondi (28). “Nos dramas de Tchékhov, os
homens vivem sob o signo da renúncia. Renunciam sobretudo ao presente
e à comunicação, à felicidade do verdadeiro encontro. (...) A renúncia ao
presente, é a vida no passado e na utopia; a renúncia ao encontro, é a
solidão.” A peça As Três Irmãs, de 1900, mostra-nos as protagonistas a viver
em função do sonho de voltar a Moscovo, bem como os discursos de
Verchinine sobre a vida daí a duzentos ou trezentos ou mesmo mil anos.
É notável como os farrapos que constituem a matéria da peça lhe acabam
por dar uma notável coesão e eficácia. “Da mesma forma que os heróis dos
dramas Tchékhovianos persistem em viver uma vida mundana, apesar da
sua ausência psíquica, e que não retiram as últimas consequências da sua

206
Da crise do drama e da obra de arte total

solidão e da sua nostalgia, mas permanecem suspensos num lugar intermé-


dio entre o mundo e o eu, o presente e o passado, a forma dramática
também não renuncia totalmente às categorias que a constituem” (ibid. 31).
Tchékhov consegue criar motivações temáticas, como a surdez de Feraponte
na mesma peça, para justificar que o que antes deveria ser uma relação
interhumana de seres que se expõem e confrontam se torne um diálogo de
surdos. Por muito que Tchékhov vivencie e exprima a rarefacção da comu-
nicação, ou, para usarmos os termos de Benjamin (1992b), a nova pobreza
de experiência transmissível, por muito que as suas personagens vivam
isoladas, falando sozinhas, o genial dramaturgo encontra engenhosas ma-
neiras de criar uma vaga sucessão de acções e falas, “dispostas para dar à
temática apenas aquilo que é preciso de movimento, para que o diálogo
seja possível. (...) A sua contradição interna (entre temática monológica e
expressão dialógica) não conduz a uma explosão da forma dramática” (ibid.
31-2).

Mas mesmo o diálogo não tem peso, é como a pálida cor de base sobre
a qual se destacam, como manchas vivas, os monólogos arranjados em ré-
plicas onde se concentra o sentido do conjunto. (…) Não são monólogos no
sentido tradicional do termo. Não têm como fonte a situação, mas a temática.
O monólogo dramático, como mostrou G. Lukács, não formula nada que se
subtraia verdadeiramente à comunicação: “Hamlet esconde, por razões prá-
ticas, o seu estado de alma às pessoas da corte; talvez justamente porque
eles não compreenderiam muito bem que ele vai, e mesmo que ele deve
vingar o seu pai”. Em Tchékhov, tudo é diferente. As palavras são pronun-
ciadas bem no meio das pessoas e não no isolamento. Mas elas isolam
aquele que as pronuncia. Quase insensivelmente, o diálogo inconsistente
torna-se monólogo consistente. Não são monólogos isolados, integrados na
obra dialógica; seria mais verdadeiro dizer que a obra no seu conjunto se
afasta do drama para se tornar lírica. (Peter Szondi 31-32)

Acrescentemos ainda, à análise de Szondi, que Tchékhov, ao introduzir


peças dentro das suas peças (por exemplo, n’A Gaivota, algumas persona-
gens representam num pequeno palco dentro do palco uma peça para as

207
D rama e C omunicação

outras assistirem) está criar um efeito de espelho, de mise en abîme, que


perturba a ilusão dramática e o carácter absoluto do drama clássico.
Nesses tempos de crise oitocentista do drama, Ibsen e Tchékhov manti-
veram, no entanto, com o género dramático uma relação problemática mas
não crítica: procuraram ultrapassar as dificuldades dentro da própria forma
dramática constituída pelo diálogo de várias personagens, sem narrador.
Mas, uma vez que se ia acentuando no drama um pendor épico ou lírico,
nada impedia outros de imaginar novas formas.
O dramaturgo sueco August Strinberg ainda procurou desenvolver a sua
primeira peça, O Pai, dentro da moldura tradicional, embora com um estilo
fortemente subjectivo. Declarou então: “Eu creio que a vida, inteiramente
descrita, de um homem, é mais autêntica e mais rica de ensinamentos do
que a de uma família inteira” (apud Szondi 35).

208
Da crise do drama e da obra de arte total

Esta frase, escrita em 1886, faz já antever as dificuldades que Strindberg


teria em funcionar nos moldes dramáticos clássicos. Mesmo essa primeira
peça, apesar de parecer um drama de família, é toda ela concebida e de-
senvolvida segundo a perspectiva da personagem principal. A obra,
comenta Szondi (37), “repousa aqui sobre a unidade, não de acção, mas do
eu da sua personagem central. A unidade de acção torna-se não essencial,
mesmo incómoda (…) pois não há nenhuma correlação entre a unidade de
tempo e de lugar e a unidade do eu.” Além disso, há uma projecção do
próprio escritor na sua escrita que faz lembrar grande parte da lírica: “Como
saber o que se passa no cérebro dos outros? (…) Apenas conhecemos uma
única vida, a nossa”, escreve então Strindberg (apud Szondi 35). E se, nes-
sa primeira peça, ele ainda observa estritamente a regra das três unidades,
depois de muito escrever (teatro mas também prosa e poesia), atravessa
um período de vários anos de interrupção no seu trabalho, para regressar,
nos anos de viragem para o século XX , com uma nova “dramaturgia do eu”
que faz explodir essa regra e o equilíbrio do jogo entre as personagens.
Cria, nomeadamente, o “drama em estações”, no qual seguimos o percurso
por vários lugares do protagonista, o qual se distingue claramente das per-
sonagens que vai encontrando, que lhe permanecem estranhas e que
(diferentemente de Peer Gynt, de Ibsen, que também é, em certa medida,
um drama em estações) são vistas exclusivamente pela perspectiva do pro-
tagonista. “As diferentes cenas não estão ligadas por qualquer relação
causal, não se engendram umas às outras como no drama. São antes como
pedrarias isoladas, enfiadas sobre a progressão do eu” (Szondi 40). A ques-
tão, pois, já não é, como na primeira peça, que o dramaturgo só possa
projectar a sua própria vida (coisa que aliás Strindberg não deixará de fazer
até ao fim). Mais do que isso, trata-se de fazer da vida psicológica, por
definição escondida ou mesmo fantasmática, a principal realidade dramá-
tica: influenciado pelas ideias de Charcot e pelos progressos da psicologia
no fim do século XIX , está mais interessado na vida interior do que nos
elementos materiais. Mas isso nega o drama clássico, feito da abertura e
franqueza dialógica.
Houve, é certo, autores como Gerhart Hauptmann, que, na mesma vira-
gem do século, ainda procuraram preservar a forma tradicional: mas é

209
D rama e C omunicação

significativo que mesmo eles, sentindo o crescente mal-estar e isolamento


da existência burguesa (de que o romance dava por essa época tão grande
testemunho), tenham entendido que o confronto de personagens lançadas
sem ajuda na abertura e no confronto umas com as outras já só era possí-
vel em outras classes sociais. Assistiu-se então à situação paradoxal de um
drama escrito por burgueses para um público burguês mas que se debru-
çava sobre realidades de outras classes (operários, pescadores…) que lhe
eram estranhas: paradoxo insustentável que, embora feito para assegurar a
sobrevivência do drama clássico, cedo revelaria a sua impossibilidade.

O drama naturalista escolhia os seus heróis nas camadas inferiores da


sociedade. Aí encontrava homens de uma vontade intacta, capazes de se
envolver com todas as suas forças numa acção para a qual os arrastava a sua
paixão, e que nada de importante separava, nem o culto do seu eu, nem a
reflexão. (...) Tomando consciência da crise do drama burguês, (...) evadiam­
‑se da sua própria época. Para encontrar refúgio, não no passado, mas num
presente estranho. Descendo os degraus da escada social, descobriam o
arcaísmo no presente. (…)
O poeta burguês e a burguesia que constitui o seu público observam os
camponeses e o proletariado. Esta distância tem consequências negativas no
plano dramatúrgico. (...) A distância social, condição necessária do drama
naturalista, é-lhe fatal. O facto de se poder ter feito da piedade uma categoria
central da obra de Hauptmann, não infirma, pelo contrário, o sentimento de
que o autor se encontra diante das suas criaturas como observador, não está
atrás delas, ou dentro delas. (Peter Szondi 71-73)

O desenvolvimento das temáticas sociais deste naturalismo pedia uma


abordagem mais narrativa do que puramente dramática: no próximo capí-
tulo veremos como Brecht teve justamente a necessidade e o engenho de
transformar assumidamente o drama absoluto num “teatro épico”. Pode
ainda notar-se – como faz Eugénia Vasques (2003:54-55) num livro sintéti-
co e fértil que iremos citar frequentemente – que autores naturalistas da
transição do século XIX para o século XX , como Hauptmann e Tolstoi, ou
outros influenciados pelos novos princípios científicos e por A Filosofia do

210
Da crise do drama e da obra de arte total

Inconsciente, de 1853, em que K. Hartmann antecipava a teoria psicanalí-


tica de Freud, começaram a “sublinhar o lado proibido e controverso de
personagens e situações”, abrindo assim o caminho às temáticas da cruel-
dade e da provocação de que trataremos sobretudo no capítulo 9.

2. Houve outra grande corrente nascida da crise do drama oitocentista


e que Szondi não contempla, embora surja duas décadas antes dos primei-
ros marcos que refere: a corrente que defendeu aquilo que Richard Wagner,
em 1849, baptizou como “obra de arte total” (Gesamtkustwerk). Vinha já de
trás. Nem falemos na tradição oriental: um dos mais antigos tratados de
teatro, talvez de antes de Cristo, é o indiano Natya-Shastra, em que Shastra
significa tratado e Naty significa dança, o que revela logo a importância do
movimento dançado, acompanhado de música e palavras cantadas. Mesmo
na tradição ocidental, vimos como Aristóteles dava importância à música e
à dança a par da palavra, vimos como Goethe falava de uma convergência
dos vários géneros para o dramático (dando como exemplo o romance
epistolar). Convergência que encontramos no próprio campo da música,
tanto na ópera italiana como sobretudo no “recitativo accompagnato” de-
senvolvido e teorizado no século XVIII pelo compositor Christoph Glück,
que, em conjunto com escritores, bailarinos e cenógrafos, procurou reformar
a ópera, defendendo que as exigências dos cantores se deviam submeter
às da sequência dramática. Victor Hugo defendia a inclusão no drama de
muitas acções espectaculares, que fossem além do mero diálogo. Também
o cantor e músico francês François Delsarte (1811-1871) criou uma escola
em que se trabalhava a correspondência entre a palavra e o gesto, sendo
este o mais importante, por vir do coração e da respiração.
Vale a pena citar um pouco longamente um texto do bailarino e coreó-
grafo suíço Jean-Georges Noverre, um dos principais criadores do “Ballet
de acção”, cujas Cartas sobre a Dança, de 1760, exerceram grande influên-
cia em toda a Europa e antecipam muitas das posições de Wagner.

O poeta imagina que a sua arte se eleva acima da do músico; este acreditaria
estar a rebaixar-se se consultasse o mestre de bailado; aquele não comunica
nunca com o desenhador; o pintor decorador não fala se não aos pintores

211
D rama e C omunicação

subordinados, e enfim, o maquinista muitas vezes desprezado pelo pintor,


comanda soberanamente as manobras do teatro. Se o poeta (…) desdenha
as outras artes, não pode ter delas senão uma fraca ideia; (…) o músico
seguindo o seu exemplo toma as palavras, percorre-as sem atenção. (…) Faz
uma abertura? Em nada é relativa à acção que se vai passar. (…) O pintor
decorador, à falta de não conhecer perfeitamente o drama, cai muitas vezes
no erro; (…) o desenhador das roupas não consulta ninguém; (…) o mestre
de bailado não é informado de nada (…).
Não é a grande quantidade de lampiões colocada ao acaso, ou arranjados
simetricamente que ilumina bem um teatro e que valoriza a cena; o talento
consiste em saber distribuir as luzes por partes ou por massas desiguais (…)
aquele que tem que os iluminar deveria, parece-me consultar o pintor. (…)
Que os poetas desçam do sagrado Valezinho; que os artistas encarregados
das diferentes partes que compõem a Ópera ajam de acordo, e se ajudem
mutuamente.(…) O poeta: é dele primeiramente que depende o êxito dado
que é ele quem compõe, quem coloca, quem desenha e quem põe na
proporção do seu génio mais ou menos belezas, mais ou menos acções. (…)
Os pintores que secundam a sua imaginação são o mestre de música, o mestre
de bailado, o pintor-decorador, o desenhador para o Costume das roupas e
o maquinista: todos os cinco devem igualmente concorrer para a perfeição
e beleza da obra, seguindo exactamente a ideia primitiva do poeta, que por
sua vez deve vigiar cuidadosamente a totalidade. O olho do mestre é um
ponto necessário, ele deve entrar em todos os pormenores. (…) Um autor
que abandona a sua obra aos cuidados de cinco pessoas que nunca vê, que
mal se conhecem e que todas se evitam, parece-se bastante com aqueles pais
que confiam a educação dos filhos a mãos estrangeiras. ( Jean-Georges Noverre,
in Borie et al 194)

Mas não foi Noverre quem mais marcou a posteridade. Foi Wagner. Ele
tentou de forma bastante sistemática levar mais longe um projecto de
Gesamtkunstwerk, obra de arte total. De algum modo, trata-se de uma nos-
talgia em relação ao antigo ritual: já não podendo as artes, como vimos no
capítulo 5, inscrever-se no ritual, podem pelo menos procurar inscrever-se
umas nas outras. O seu ensaio mais importante a este respeito intitula-se

212
Da crise do drama e da obra de arte total

A obra de arte do futuro; vamos tratá-lo com pormenor por ser um texto
pouco citado e de grande relevância no panorama actual. Aí Wagner se
insurge contra a separação entre as várias artes. Só na associação, diz Wagner
(782), as artes, como as pessoas, encontram a liberdade: “só no Comunismo
é que o Egoísmo encontra a sua plena satisfação”.

Cada faculdade artística do homem tem os seus laços naturais, uma vez
que o homem não tem um único Sentido, mas diferentes Sentidos; enquanto
cada faculdade nasce do seu sentido especial e, dessa forma, cada faculdade
tem de encontrar os seus laços nos limites do seu sentido correlato. Mas as
fronteiras dos sentidos separados são também os seus pontos de junção e
de encontro, aqueles pontos onde eles se fundem uns com os outros e cada
um está de acordo com o outro; e exactamente o mesmo fazem as faculdades
que derivam de tocarem e concordarem umas com as outras. Por isso, os
seus limites são removidos por esse acordo; mas apenas aqueles que se amam
podem concordar, e “amar” significa: reconhecer o outro e ao mesmo tempo
conhecer-se a si mesmo. (Richard Wagner 781)

Repare-se que se trata de mais do que uma mera associação: não é a


“variedade” das artes que interessa a Wagner, mas a sua fusão numa obra
total: “Quando todas as barreiras caírem, não há mais artes nem fronteiras,
mas apenas Arte, a universal e una” (781) Ele considera que já houve situa­
ções em que as artes estiveram unidas: as três artes primevas, Dança, Música
e Poesia, entreteceram-se sempre que houve condições artísticas, primeiro
na Lírica, mais tarde, “de modo mais consciente e mais alto, no Drama”
(780). Mas, infelizmente, a tendência foi sempre para acabar numa separa-
ção, em que cada uma das três artes, “desligada da corrente que as unia”,
fica sem “vida nem movimento próprios”, apenas “recebendo regras despó-
ticas para o movimento mecânico” (780).
Wagner não hesita em denunciar as rivalidades entre artes, um “egoísmo”
que tem trazido à arte “mutilação e insinceridade”, mesmo nos casos em
que se autoproclama arte “fraterna” e “cristã”, “dando-se ares de arte uni-
versal”, quando, na verdade, “cada unidade se pavoneia como algo especial
e ‘original’” e o todo ou não existe ou é mera imitação. Considera, a come-

213
D rama e C omunicação

çar, que a poesia do seu tempo perdeu toda a força performativa: “em vez
de ao Ouvido, silenciosamente dirigida ao Olho; o esforço do poeta tornou­
‑se um dialecto escrito – a respiração do poeta, o gatafunho do escrivão”
(782). Wagner lembra então aquela situação da mitologia em que o poeta,
com as suas palavras, conseguiu amansar as feras e conclui, com graça:
“as Líricas de Orfeu nunca teriam sido capazes de levar as bestas selvagens
ao silêncio e à plácida adoração, se o cantor lhes tivesse apenas dado uns
versos mudos e impressos para ler” (782-783).

Quanto ao teatro do seu tempo, Wagner (791) encontra também esse


dialecto escrito, tão pouco performativo que “não encontrará um centíme-
tro de espaço para respirar na Obra de Arte do Futuro. O Homem que se
retratará a si próprio no Drama do Futuro abandonou para sempre todo o
prosaico bla-bla-bla das maneiras da moda ou da intriga polida, que os
nossos ‘poetas’ modernos têm de embaraçar e desembaraçar nas suas peças,
com grande circunstancialidade.” Nem todos seguem este estilo, é certo,
mas Wagner considera a “moderna poesia dramática” pomposa e ridícula
na sua vaidade.

214
Da crise do drama e da obra de arte total

Não é mais favorável o diagnóstico que Wagner faz das tentativas de


combinação das várias artes no seu tempo. Parece-lhe que as tentativas de
articular palavra e música vêm redundando em equívocos. “Cada uma das
outras artes retirava da Música, mas não dava nada em troca; assim aquela
pobre Música, que na sua necessidade vital estendia as mãos em todas as
direcções, foi forçada a tirar, por razões de sobrevivência. Assim, ela pri-
meiro engolfou a Palavra, para fazer dela o que lhe parecesse melhor: mas
enquanto ela se desfazia desta palavra, da forma como o seu sentimento
caprichoso ditava, na música Católica ela perdia o seu esqueleto. (…) Um
novo e energético manusear da Palavra, de forma a daí ganhar forma, foi
mostrado pela música sacra Protestante, que, na ‘música da Paixão’, fez
força no sentido de um drama eclesiástico” (785). Mas a poesia pareceu
temer o desafio que a música lhe lançava, deitou ao monstro voraz da
Música uns pedacinhos menores e voltou à sua esfera egoísta da literatura,
fazendo abortar o Oratório, que acabou por ser transladado, como mera
música, da igreja para a sala de concertos. E assim se foi estabilizando e
acentuando uma situação de rivalidade e subordinação.

Onde a Poesia de bom grado reinaria sozinha, como na Peça falada, levou
a Música como sua criada, para a sua própria conveniência; como, por
exemplo, para entreter o público nos intervalos, ou mesmo para realçar o
efeito de certas transacções mudas, como a irrupção de um ladrão sorrateiro,
e assuntos dessa natureza! A Dança fez a mesma coisa. (…) Mas a Música
rematou finalmente toda esta arrogância empolada, com a sua desavergonhada
insolência na Ópera. (…) A Ópera, como aparente ponto de união das três
artes relacionadas, tornou-se no ponto de encontro dos maiores esforços de
busca interior destas irmãs. (…) Mas na medida em que a Poesia e a Dança
foram obrigadas a ser simples escravas da Música, nasceu entre as suas fileiras
egoístas um crescente espírito de rebelião contra a irmã dominadora. As artes
da Dança e da Poesia tinham tomado uma posse pessoal do Drama à sua
maneira: a Peça espectacular e o Ballet pantomímico eram os dois territórios
entre os quais a Ópera agora distribuía as suas tropas.
Assim a Ópera torna-se o compacto mútuo do egoísmo das três artes. (…)
Os cantores estarão expressamente proibidos de se entregarem a qualquer

215
D rama e C omunicação

espécie de movimento corporal gracioso – isto deve ser exclusiva propriedade


dos bailarinos. (…) Nem sequer poderão articular as suas palavras e versos
e deverão relegá-los em vez disso para os livros impressos, a serem lidos
obrigatoriamente depois da actuação. (Richard Wagner 786-7)

Não é, pois, a continuação dessa ópera que este enorme autor de ópe-
ras (que ele não vê como óperas, mas como obras, totais) quer fazer, mas
sim a criação de um outro tipo de obra: Gesamt, que significa conjunta.
Para lhe dar consistência teórica, vai fundar-se em duas ideias, a de fisica-
lidade e a de Povo (Volk), que ambas vão levar à supremacia da ideia de
drama. “O Poeta primeiro torna-se Homem através da sua tradução para o
corpo e sangue do Performer”: como na sua peculiar leitura do mito de
Orfeu, só é possível mudar “de ‘querer’ para ‘poder’” pelo “Querer do poe­
ta que desce para o Poder do actor” (788). “Assim, a arte Poética não pode
de todo criar a obra de arte genuína – e esta só o é na medida em que é
trazida à manifestação física directa – sem aquelas artes às quais o espec-
táculo físico pertence directamente. O pensamento, esse mero fantasma da
realidade, não tem forma por si; e apenas quando retraça a estrada na qual
veio à luz pode atingir perceptibilidade artística. Na arte Poética, o objec-
tivo de toda a Arte chega primeiro à consciência: mas as outras artes
contêm nelas a Necessidade inconsciente que cria este objectivo” (782).
Ou seja, a manifestação física dá força às palavras, como no exemplo
de Orfeu, mas também as faz viver em zonas mais fundas da Necessidade
não consciente. “Nem foi o verdadeiro Épico-do-Povo, de nenhuma forma,
um mero poema recitado: as canções de Homero (…) tinham florescido no
meio do Povo, prolongadas pela voz e pelo gesto, como uma obra de arte
realizada pelo corpo.” Representaram um estádio intermédio entre a Lírica
e a Tragédia, e com esta a Obra de Arte do Povo entrou na arena pública
da vida política; e “só floresceu enquanto foi inspirada pelo espírito do
povo”, popular, comunitário (783). Neste aspecto, o ideário de Wagner é
profundamente romântico: também Victor Hugo (cf. Borie et al 300-303),
por exemplo, traçara uma evolução começando na ode, passando pela
epopeia e terminando no drama, capaz de conduzir um povo a conceber-se
como unidade nacional.

216
Da crise do drama e da obra de arte total

Quando, diz Wagner (784), “a irmandade nacional do Povo foi despeda-


çada em pedaços, quando o elo comum da sua Religião e Costumes
primevos foi perfurado e desfeito pelas agulhas sofísticas do espírito egoís­
ta da auto-dissecação Ateniense – aí a obra de arte do Povo também cessou.”
É claro que Nietzsche encontrou neste texto de Wagner inspiração para a
sua análise do socratismo grego. E em ambos estes génios que durante
algum tempo foram amigos, cresceu a ideia de que (cito sempre as palavras
de Wagner, 782), “apenas pelo Povo, ou nas pegadas do Povo, pode a poesia
ser realmente feita – foi aí que o propósito poético se ergueu para a vida
aos ombros das artes da Dança e da Música”. Em ambos há a ideia de uma
fusão que ultrapassa as classes e a individuação: “o Povo já não será uma
classe separada e particular; porque nesta Obra de Arte seremos todos um”
(780). Mas em Wagner é mais clara a preocupação em passar da ideia à sua
manifestação física: “Com o povo, tudo é realidade e acto; ele faz, e depois
regozija-se no pensamento da sua própria realização” (783).

A mais imperiosa e forte necessidade do homem-artista no pleno uso das


suas capacidades é levar a si próprio no mais alto âmbito do seu ser até à
máxima expressão de Comunidade; e isto ele apenas alcança com a necessária
largueza da compreensão geral no Drama. (…) O lugar no qual este
extraordinário processo acontece é o palco Teatral; a obra de arte colectiva
que traz à luz do dia, o Drama. (Richard Wagner 790)

Ao peso esmagador do texto na maior parte do teatro do seu tempo,


contrapõe Wagner o quê? Uma totalidade com texto, música e dança e
também com elementos plásticos. Um palco “preparado pelo arquitecto e
pelo pintor” de paisagens cénicas (“a ilusão das artes plásticas tornar-se-á
verdade no Drama”), que “têm o poder de instalar o artista dramático exe-
cutante no seio da Natureza física” (787-8). Depois esse elemento físico é
alargado para o igualmente infinito elemento emocional, não físico, através
do complemento perfeito dessa paisagem em algo “diametralmente oposto”,
a música. “O seu carácter peculiar é o de um elemento natural fluido, der-
ramado no meio das substâncias mais definidas e individualizadas das duas
outras artes”: “dissolve o terreno duro e imóvel da cena real num éter

217
D rama e C omunicação

fluido, elástico, impressionável” (785,789). A orquestra apoia a obra com


um elemento “ao mesmo tempo artístico, natural e humano”: mas “tem de
ocupar nesta obra de arte uma posição muito diferente da que tem na
ópera moderna.” Wagner procura um centro único: “com os nossos olhos
dirigidos à Obra de Arte do Futuro, nós estamos a procurar a arte Poética
onde ela está a lutar para se tornar uma arte viva e imediata, e isto acon-
tece no Drama” (784). Por isso, o músico será também o poeta (Wagner
escrevia ele próprio os seus libretos) ou trabalhará em estrita combinação
com ele: “Nós devemos implorar para que nos permitam ver o poeta-mu-
sical como incluído no poeta-da-palavra – seja pessoalmente ou por
associação é aqui uma questão indiferente” (791). Wagner antevê muito bem
as reacções a esta sua proposta.

O Dramaturgo moderno sentir-se-á pouco tentado a admitir que o Drama


não devia pertencer exclusivamente ao seu ramo da arte, a arte da Poesia;
acima de tudo ele não será capaz de se obrigar a partilhá-lo com o poeta­
‑musical, isto é, como ele nos entende, permitir que a Peça seja engolida
pela Ópera. Muitíssimo certo! – enquanto a Ópera subsistir, a Peça deve
também manter-se, e, para esses efeitos, a Pantomima também; enquanto
alguma disputa a esse respeito for pensável, o Drama do Futuro deve manter­
‑se impensável. Se, no entanto, a dúvida do poeta reside mais fundo, e consiste
nisto, que ele não pode conceber como a Canção pôde ter o direito de
usurpar inteiramente o lugar do diálogo falado: então ele deve tomar como
resposta que (…) ainda não tem uma ideia clara do carácter da obra de Arte
do Futuro.
Primeiro, não pensa que a Música tem de ocupar nessa obra de Arte um
lugar muito diferente do que tem na Ópera moderna: que apenas quando o
seu poder for o mais ajustado é que ela deve abrir-se em expansão total;
quando, pelo contrário, um outro poder, por exemplo o do Discurso dramático,
for o mais necessário, ela tem de subordinar-se a isso; muito embora a Música
possua a faculdade peculiar de, mesmo sem ficar completamente em silêncio,
ligar-se tão imperceptivelmente ao pensativo elemento do Discurso que deixa
este parecer marchar para o estrangeiro sozinho, ao mesmo tempo que ainda
o apoia. (...)

218
Da crise do drama e da obra de arte total

Quem será, então, o Artista do Futuro?


Sem dúvida, o Poeta.
Mas quem será o Poeta?
Indiscutivelmente o Performer.
Mas quem, mais uma vez, será o Performer?
Necessariamente a Irmandade de todos os Artistas. (...)

É nele, no executante imediato, que as três artes irmãs unem as suas


forças numa só operação colectiva, na qual a mais alta faculdade de cada
uma chega ao seu máximo desenvolvimento (…) O bailarino mimético é
despido da sua importância, assim que consegue cantar e falar (...) Agora as
artes todas juntas, agora em pares, e de novo em solitário esplendor, de
acordo com a necessidade momentânea da única fonte de regra e objectivo,
a Acção Dramática. (…) Há uma coisa que todas as três artes unidas devem
querer, de modo a serem livres, e essa coisa é o Drama: alcançar a meta do
Drama deve ser o seu objectivo comum. (Richard Wagner 791-792, 788-789)

3. Wagner procurou ele próprio realizar cenicamente as suas ideias,


fazendo erigir e equipar em Bayreuth, fora do contexto mundano habitual
nas óperas, um edifício para as novas obras (inaugurado em 1876). A sua
influência foi enorme em toda a Europa. Mesmo a sua utopia de criar
teatros grátis para todos influenciou a criação de “teatros livres” como o
de Antoine, em Paris (1887), o Freie Bühne de Otto Brahm em Berlim
(1889), ou a criação por Stanislavski do Círculo Alexeiev, da Sociedade
de Arte e Literatura (com actores amadores) e do Teatro de Arte de Moscovo
(1898). As suas ideias são reconhecíveis também na escola que em 1919
passou a chamar-se Bauhaus, onde se defendia uma arte total e universal,
baseada no espírito anti-individualista e de intervenção na comunidade e
onde o teatro foi ganhando um papel de relevo na formação geral do
artista, como veremos no capítulo 9. Mas aqui vamos preferir dar mais
importância às mudanças nos conceitos dramáticos do que aos contextos
da produção.
Comece por sublinhar-se que há desde logo um grande interesse por
Wagner em Charles Baudelaire (1821-1867) – que o considerou “o mais

219
D rama e C omunicação

ilustre entre os mestres”, que se correspondeu com ele e sobre ele escreveu
um decisivo artigo em 1861 – e em geral nos simbolistas. Mas, segundo
Marcella Lista (2006:7-12), com os simbolistas a ideia da obra de arte total
é substituída pela de sinestesia (por exemplo, uma “audição colorida”, um
tema que a ciência do século XIX vinha estudando e era muito usado pelas
artes experimentais e pelos movimentos ocultistas) e pela ideia de “corres-
pondências”, como união dos sentidos que podem ser relacionados através
dos símbolos. Baudelaire afirma várias vezes nesses anos 50 a sua crença
na “analogia universal, ou aquilo a que uma religião mística chama a cor-
respondência”, e que magnificamente fixou em 1857 no célebre poema
“Correspondances”:

Como longos ecos que ao longe se confundem


Numa tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se respondem.

Então, diz Lista (11), “[se] os sentidos correspondem uns aos outros na
caixa de ressonância que é a experiência sensorial humana, cada arte, por
si mesma, pode fazer apelo a esse diálogo interno da sensibilidade, a fim
de despertar a humanidade integral das origens.” Por exemplo, aos dezoito
anos, Paul Fort (1872-1960), a quem Verlaine chamará “Príncipe dos poetas”,
faz no virar do século, sob influência directa das “Correspondências”
baudelairianas, um espectáculo a partir do Cântico dos Cânticos de Salomão,
em torno de quatro elementos: palavra, música, cor e perfume; os
projectores de luz mudavam de cor a cada cena, tentando acompanhar o
ritmo das paixões; dos camarotes superiores, maquinistas de cena lançavam
perfumes sobre a plateia por meio de vaporizadores (cf. Vasques, 2008a:
182­- 183).
No resto deste capítulo iremos centrar-nos em alguns teorizadores das
artes cénicas, seguidores de Wagner, que desenvolvem até hoje uma
determinada alternativa ao realismo, procurando uma poética própria do
palco, independente do texto literário ou mesmo auto-suficiente. Veremos
que nesses seguidores os elementos plásticos virão a encontrar uma

220
Da crise do drama e da obra de arte total

importância que não tinham em Wagner e até chegarão muitas vezes a


ganhar uma predominância já contrária à articulação harmoniosa que ele
defendia, deslizando assim da obra total para a obra arquitectural, ou mesmo
predominantemente visual 1.
Esta é aliás uma questão fascinante e que mereceria mais aprofundamento
(que teria de começar por discutir a obra Laoconte, que Gotthold Lessing
publicou em 1766). Se tomarmos os termos recentes de Alain Badiou (2007),
há teatro desde que a Ideia se mostre primordialmente pelo tempo, não
sendo o espaço (ou o contorno) suprimido, mas organizado pelo tempo;
há “plástico” caso seja o espaço a subordinar o tempo. Esta asserção não
é, porém, pacífica. Vimos como na etimologia de teatro está o dar a ver:
thea remete para o sentido da visão Em 1722, já o dramaturgo La Motte (in
Borie et al 141) lembrava a máxima de Horácio: que os espíritos são mais
vivamente impressionados pela vista do que pelos ouvidos. Em 1657, Hedelin
D’Aubignac (in ibid. 105), teorizador da dramaturgia francesa, tinha lembrado:
“chama-se teatro, e não auditório, quer dizer, um local onde se olha o que
se faz, e não onde se escuta o que se diz”; mas logo acrescenta que também
é verdade que “toda a tragédia na representação não consiste em mais do
que discursos; está aí todo o trabalho do poeta, aquilo em que principalmente
usa as forças do seu espírito; e se ele faz aparecer algumas acções no seu
teatro, é para ter a oportunidade de fazer um qualquer discurso agradável;
tudo o que ele inventa, é com a finalidade de o fazer dizer”. Se os clássicos
assim se dividiam sobre este tema, não menos o fazem os contemporâneos.
Patrice Pavis (1996:303) argumenta: “Representar, é também tornar tempo­
ralmente e auditivamente presente aquilo que não o era; é apelar ao tempo
da enunciação para mostrar alguma coisa, portanto insistir sobre a dimensão
temporal do teatro. A representação, não é pois, ou não é apenas, o
espectáculo; é tornar presente a ausência, apresentá‑la de novo à nossa
memória, aos nossos ouvidos, à nossa temporalidade (e não só aos nossos
olhos).” Jean-Loup Rivière (113-114) defende que a experiência de assistir

1 Se quisermos usar os termos de Aristóteles (1450b), falaremos no crescimento da


dimensão de “espectáculo”, no sentido em que a sua realização “mais depende do cenógrafo
do que do poeta”.

221
D rama e C omunicação

a uma peça ou a uma ópera é diferente da experiência de as ouvir em


disco, mesmo que estejamos no fundo do camarote ou nos bastidores, sem
ver o palco: “A imagem existe por si mesma, o signo pela sua ressonância”;
“a imagem é global, homogénea, o signo é parcial, é este acontecimento,
ali, num canto da cena, imprevisível”; nos “momentos cruciais da vida, fala-
se do primeiro grito ou da última palavra, nunca do primeiro ou do último
olhar. Neste sentido, poderia dizer-se que, se o teatro é a reserva de um
lugar sem imagem, é na medida em que submete o olhar à ordem da escuta.”
No mesmo sentido, escreve Deleuze (1979: 115): “o teatro tem dificuldade
em desfazer-se do primado da audição, em que mesmo as acções são
primeiro ouvidas”.
Deixemos a questão em aberto, mas registemos: a partir da teorização
de um músico, Wagner, que como vimos teorizou a obra de arte total como
combinação de “três artes primevas, Dança, Música e Poesia”, só de passa-
gem falando de pintura ou escultura (embora na Poética de Aristóteles a
mimesis resultasse da combinação destas cinco artes, Wagner parece lem-
brar‑se que Pintura e Escultura não eram Musas na mitologia, e os pintores
tanto reagiram a esse apagamento que quase o fizeram abandonar a ideia
de Gesamtkunstwerk), a partir de Wagner, dizia, abriu-se nas artes do es-
pectáculo uma linha de experimentação e criação predominantemente
visuais. “Desejo ardentemente o regresso da imagem”, dirá Gordon Craig,
para quem o público vai ao teatro “ver” as peças e não “ouvir” (ainda hoje,
de facto, perguntamos: “Já viste aquela peça?”). Se Wagner comentava, em
carta à sua mulher, que tinha conseguido criar a “orquestra invisível” mas
não lograra inventar o “teatro invisível”, os seus discípulos, já pouco cren-
tes na “obra de arte total”, é por um teatro do visível e da imagem visual
que lutam. Como passo a explicar.

4. Comecemos pelo suíço Adolphe Appia (1862-1928), que realizou


muitos projectos de encenação de óperas de Wagner e em 1895 publicou
em Paris um ensaio intitulado La mise en scène du drame wagnerien. Depois
de observar o que se fazia em vários teatros da Europa, Appia teve a luci-
dez de ver que o seu mestre tinha concebido uma nova forma dramática,

222
Da crise do drama e da obra de arte total

tinha concretizado essa forma musicalmente – mas não tinha sabido realizá­
‑la nem na escrita (veja-se a acção “exclusivamente interior” de Tristão, diz
Appia, apud Liébert 80) nem cenicamente: “não soube harmonizar a forma
representativa (a encenação) com a forma dramática que utilizava.”
Tomando o projecto de Wagner no ponto em que este o deixou incom-
pleto, Appia vai então pesquisar os modos de articular a música, as artes
visuais e o texto. A ideia de fusão das artes, em que Appia temia o caos,
é substituída pela da hierarquia das artes. A sua interessante teorização
sobre o palco como ponto de encontro entre o espaço e o tempo vai pri-
vilegiar, como ponto fulcral que articula esses dois planos, o trabalho do
actor (mais um eco de Wagner, que vimos dizer: “Quem será o Poeta? in-
discutivelmente o performer”).

Porquê reduzir a nada – e antecipadamente – qualquer esforço de síntese?


(...) O tempo e o espaço possuirão um elemento conciliatório – um elemento
que lhes seja comum? A forma no espaço pode tomar a sua parte das durações
sucessivas do tempo? E essas durações teriam ocasião de se propagar no
espaço? Ora é a isto mesmo que o problema se reduz, se queremos reunir
as artes do tempo e as artes do espaço num objecto. (...)
O movimento, a mobilidade, eis o princípio director e conciliatório que
regulará a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir,
simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática. (...) O corpo,
vivo e móvel, do actor é o representante do movimento no espaço. (…) Numa
das mãos, o actor apodera-se do texto; na outra detém, como num feixe, as
artes do espaço; depois, reúne irresistivelmente as duas mãos e cria, pelo
movimento, a obra de arte integral. O corpo vivo é, assim, o criador dessa
arte e detém o segredo das relações hierárquicas que unem os diversos
factores, pois é ele que está à cabeça. É do corpo, plástico e vivo, que
devemos partir para voltar a cada uma das nossas artes e determinar o seu
lugar na arte dramática. (Adolphe Appia, in Barata 121-2)

A defesa teórica da centralidade do actor não impediu Appia de combater


a exaltação da vedeta como destrutora da harmonia espectacular, nem de

223
D rama e C omunicação

procurar atmosferas cénicas que fossem significativas independentemente


do texto. Nelas o actor acaba por ter uma função plástica: “O corpo não é
apenas móvel: é plástico também. Essa plasticidade coloca-o em relação
directa com a arquitectura e aproxima-o da forma escultural, sem poder,
no entanto, identificar-se com ela, porque é móvel” (ibid. 122). Repare-se
como Appia fala de relação directa com a arquitectura: o espaço cénico já
não é visto apenas segundo as regras da perspectiva, passando a sua
concepção de bidimensional a tridimensional, afastando-se da pintura (tão
cara aos teatros naturalistas e sobretudo aos simbolistas, que no entanto
influenciam alguns aspectos desta corrente) em favor da escultura e da
arquitectura. Como se vê nestas formulações de Appia, bem como nas
elaboradas cenografias em que elimina da cena todo o espaço livre para o
substituir por escadarias, cubos, planos inclinados, num palco sem rampa
nem pano de boca.
Algo de muito musical ficou, no caso de Appia (ele próprio músico no
início da sua actividade), no conceito de “espaços rítmicos” (muitos dos
seus desenhos cenográficos têm apenas este nome, “espaços rítmicos”). Vale
a pena lembrar como a questão rítmica estava no ar do tempo (como Eugénia
Vasques desenvolveu, 2003:87-91). Um ano depois do referido ensaio de
Appia, em 1896, é aberta a primeira Olimpíada da era moderna. No mesmo
ano, Karl Bücher, economista alemão e fundador das “Ciências do Jornalismo”,
publica Arbeit und Rythmus, onde “tenta provar que, na sua origem, todo
o trabalho humano obedece ao ritmo, e que o trabalho, o jogo e a arte
formam uma unidade” – já no século XVIII d’Alembert tinha defendido que
a noção de medida não se aprende só pelo canto das aves mas também
pelo ruído dos batimentos de martelo dos trabalhadores. Em 1906, Appia
entra em contacto com o trabalho desenvolvido pelo músico suíço Émile
Jaques-Dalcroze, com quem vai colaborar nos vinte anos seguintes.
Provavelmente a influência vinha de trás, da “ginástica harmónica” inven-
tada no século XIX pelo já referido François Delsarte e surge agora como
“ginástica rítmica” ou “método integral de rítmica”, integrando, como nos
gregos, a arte e a filosofia, procurando “as relações entre o sentido da mú-
sica e a expressão do movimento, entre a voz falada e cantada e os gestos”
(Vasques, 2003:88).

224
Note-se ainda que Appia revolucionou a iluminação no teatro – algo só
possível a partir da iluminação eléctrica. Com Appia, a luz ganhou uma
importância inédita como modo de estruturar a cenografia, e a sombra foi
considerada por ele tão importante como a luz para a relação do actor com
o espaço (e neste aspecto sente-se a presença do simbolismo). Nos mesmos
anos, a bailarina americana Loïe Fuller (oriunda do circo e do music-hall),
realizava em Paris experiências inovadoras de coreografia e iluminação
(colaborou com a cientista francesa Marie Curie e registou muitas patentes),
com a luminescência aplicada aos cenários e figurinos e com o uso de
enormes véus sustentados por paus. Algo que, no Instituto Jaques-Lacroze
e muito na concepção de Appia, a bailarina e coreógrafa Mary Wigman
desenvolverá, usando o figurino como “elementos plástico capaz de fazer
a dança e o corpo do bailarino sugerirem uma estatuária que se movimen-
ta no espaço” (ibid.:89).
Dentro dessa mesma visão, e nos mesmos primeiros vinte efervescentes
anos do século XX, destaca-se igualmente o inglês Gordon Craig (1872-1966),
filho de uma actriz e de um arquitecto e cenógrafo. Com notável talento
literário, Craig foi grande divulgador das novas ideias, as suas e muitas de

225
D rama e C omunicação

Appia, para um “teatro do futuro” (eco da expressão wagneriana). Nele


encontramos a mesma vontade de desenvolver uma poética autónoma para
o teatro, repensando-o totalmente e articulando os vários elementos que
compõem a obra de arte total.
Craig começou muito jovem como actor, mas “o bloqueio estava nos
meus ossos, no meu sangue, que me gritavam indistintamente que um ver-
dadeiro artista é… santo Deus, algo de diferente do que é um actor” (Craig,
1962:154). Passou a desenhar muito para teatro (uma das suas memórias
mais vivas de infância é o grande actor e encenador Henry Irving mostrar
à sua mãe um álbum com cenografias de óperas de Wagner em Bayreuth,
ibid. 58). Encenou apenas quatro anos (1900-1903); incompreendido, passou
a fazer estudos e esboços sobre encenação e a dedicar-se à História e teo­
ria do teatro, embora Stanislavski, o encenador russo de quem falaremos
no último capítulo, o tenha chamado para co-encenar Hamlet em Moscovo,
que preparou durante três anos (1909-1911): Craig interpretou a peça como
uma luta do espírito com a matéria, mas não trabalhou com os actores, que
mantiveram o estilo realista de Stanislavski.
Craig só voltou a encenar esporadicamente: um Ibsen em Copenhaga
em 1926, um Macbeth em Nova Iorque em 1928. A obra de Craig é sobre-
tudo de escrita, apesar das muitas patentes que registou, nomeadamente
para um sistema de painéis ou ecrãs deslizantes com que pretendia dotar
o palco de uma arquitectura em movimento, servida pela iluminação (já em
1909 Appia jogava com lâmpadas no tecto em painéis deslizantes): todo o
palco deveria ser móvel; tanto as paredes como o chão e o tecto deveriam
ser compostos de quadrados que poderiam deslocar-se independentemen-
te ou em grupos, com padrões de luz consequentemente mutáveis, de modo
a que todo este movimento abstracto das formas plásticas já gerasse no
espectador uma resposta emocional.
Em Craig encontramos a mesma luta de Appia contra o naturalismo:
“o objectivo da arte não é reflectir a vida e o artista não imita, cria”; “o rea-
lismo não pode elevar-se, mas apenas declinar” (2005:56, 139). A influência
simbolista faz-se também sentir na preferência pela sugestão, que prescinde
do pormenor, do realismo e mesmo do figurativo, a favor de jogos de luz e
sombra.

226
Em 1923, Craig traça uma evolução do teatro do ponto de vista do es-
paço cénico, dividindo-o em cinco fases: a cena de pedra, na Grécia; a
igreja-teatro, na Idade Média; os tablados da commedia dell’arte; a pers-
pectiva; e finalmente, o “teatro do futuro” em que a cenografia reintroduz
a arquitectura no teatro. Chega a afirmar (apud Meyerhold, 1973:150) que
“O teatro tem tão pouca necessidade de um encenador que não seja cenó-
grafo, mesmo que tenha uma formação muito desenvolvida, como o
hospital não tem necessidade de um carrasco!” A escola que Craig fundou
em Florença em 1913 destinava-se sobretudo a cenógrafos, e entre muitas
disciplinas não havia propriamente formação de actor (embora houvesse
educação vocal, dicção e ginástica), porque Craig achava que a interpreta-
ção não se ensinava.

227
D rama e C omunicação

Esta tendência, que já aflorava em Appia, para privilegiar a personali-


dade plástica da cena, vai no caso de Craig ao ponto de a ela submeter o
próprio actor. Craig cresceu no meio de actores: conhecendo por dentro os
tiques e convenções arbitrárias que faziam os actores do seu tempo con-
torcer-se em caretas destituídas de arte, Craig desenvolve, em 1905, a ideia
muito polémica do actor como Über-marionette, super-marioneta. Craig faz
um historial sucinto da vida da marioneta desde a arte estática dos egípcios
descrita por Heródoto (século V a. C.), na qual estava interdito aos artistas
exprimir sentimentos pessoais, ao contrário dos últimos séculos em que o
sentimentalismo foi tomando conta da cena.

Na origem, o corpo humano não servia de instrumento à Arte do Teatro.


Não se considerava as emoções humanas como um espectáculo próprio para
ser dado à multidão. O combate de um tigre com um elefante na arena convinha
melhor, quando se tratava de procurar emoções violentas. A luta encarniçada
de dois animais oferecia todas as sensações que podemos encontrar no teatro
moderno e oferecia-se sem falsificações. Um tal espectáculo não era mais brutal;
era mais delicado, mais humano; porque nada seria mais revoltante do que
ver homens e mulheres deixados sobre um estrado exibindo ao público o que
o Artista recusa mostrar senão velado sob uma forma da sua invenção. (….)
Suprima-se a árvore autêntica que se colocou em cena, suprima-se o tom
natural, o gosto natural, e chegar-se-á igualmente a suprimir o actor. É o que
acontecerá um dia e gosto de ver certos Directores de teatros encarar os
meios de a cena florescer. Não haverá mais personagem viva para confundir
no nosso espírito a arte e a realidade; personagem viva em que as fraquezas
e os frémitos da carne sejam visíveis. (...)
O actor desaparecerá e em seu lugar veremos uma personagem inanimada
que se chamará, se quiserdes, Supermarioneta – até que tenha conquistado
um nome mais glorioso. (...) Quer os aplausos estoirem em trovoada ou se
percam isolados, a marioneta não se comove; os seus gestos não se precipitam
nem se confundem; que se cubra de flores e de louvores, a heroína conserva
um rosto impassível. Há mais de um traço de génio na marioneta, mais do
que o brilho de uma personalidade que se manifesta: ela é para mim o último
vestígio da Arte nobre e bela de uma civilização passada. (...)

228
Da crise do drama e da obra de arte total

A supermarioneta não rivalizará com a vida, mas irá além dela; não figurará
o corpo de carne e osso, mas o corpo em estado de êxtase, e enquanto
emanar dela um espírito vivo, revestir-se-á de uma beleza de morte. Essa
palavra morte vem naturalmente ao bico da pena por aproximação com a
palavra vida que os realistas reclamam constantemente. (Gordon Craig, in
Barata 117-119)

Voltaremos a esta questão da vida das marionetas. A influência de Appia


e Craig foi muito importante na sua época – e ainda o é na nossa, por
pouco que os seus nomes sejam citados. Tiveram ecos no construtivismo
russo e alemão, bem como no expressionismo alemão e nórdico. O futu-
rismo italiano e francês prolongou a sua luta anti-naturalista, a preocupação
com o corpo e o seu movimento, a reinvenção dos recursos do palco. Mas
talvez nunca a predominância visual tenha sido levada tão longe como no
trabalho do pintor abstracto alemão Oscar Schlemmer (1888-1943), saído
da Bauhaus, que preparou durante oito anos o Ballet Triádico, sem palavras
e dividido em três sequências (amarela, cor-de-rosa e negra), combinando
figurinos e movimentos geométricos, num assumido “Teatro abstracto”.
Uma referência à parte merece o alemão Bertold Brecht (1898-1956),
não porque se insira nesta tendência para privilegiar os elementos plásticos
ou arquitecturais, tendência que não é a sua, mas porque também trabalha
a relação do drama com as outras artes, nomeadamente com a música
(veja-se por exemplo a relação com os compositores Kurt Weil, Hanns Eisler
e Paul Dessau). Brecht começou a criar nos anos 20, pouco depois das
maiores obras teóricas de Appia e Craig, mas, em coerência com os seus
princípios (que estudaremos no próximo capítulo) de interrupção e des-
dobramento, contrapôs à totalidade mágica wagneriana “uma separação
radical dos elementos”: “Enquanto a expressão ‘obra de arte total’ significar
um conjunto que é uma mistela pura e simples, enquanto as artes tiverem,
assim, de ser ‘com-fundidas’, todos os variados elementos ficarão identica-
mente degradados de per si, na medida em que apenas lhes é possível
servir de deixa aos outros. Tal processo de fusão abarca também o espec-
tador, igualmente fundido no todo e representando a parte passiva (que
padece) da obra de ‘arte global’. Há que combater esta forma de magia”.

229
D rama e C omunicação

“Os actores, os decoradores, os maquilhadores, os costureiros, os músicos


e os coreógrafos põem a sua arte ao serviço duma tarefa comum, sem es-
quecer a sua independência.” (24-25)
Ao mesmo tempo que Brecht, mas em França, Antonin Artaud (1896-1948),
de quem adiante também trataremos mais detidamente, não deixa de defen-
der que “tem de ser restabelecida uma noção de espectáculo integral” e tal
como Brecht vê essa totalidade como não fusional, dissonante – e ambos a
vêem como não apenas arquitectural ou plástica. Artaud fala do corpo
(e de uma voz que saia do corpo, que seja parte dele) em diálogo (e como
haveria diálogo se houvesse fusão?) com o espaço, através de um forte tra-
balho plástico, e com a iluminação. Questões ainda hoje interpelantes: por
exemplo, como saber responder à proposta visionária que Artaud faz, num
dos seus manifestos, sobre um possível “diálogo da voz com a luz”? E ainda
uma componente musical que vai das percussões ao canto?

Tem de ser restabelecida uma noção de espectáculo integral. A questão


é fazer falar o espaço, alimentá-lo e mobilizá-lo. (...)
Não haverá nenhum espectáculo que não contenha um elemento físico e
objectivo, sensível a todos. Gritos, gemidos, aparições, surpresas, golpes de
teatro de toda a casta, a beleza mágica do vestuário inspirada em certos modelos
rituais. Resplendor da iluminação, beleza de sortilégio das vozes, sedução da
harmonia, notas raras da música, cores dos objectos, ritmo físico dos movimentos
cujo “crescendo” e “decrescendo” se conjugarão com a pulsação dos movimentos
familiares a todos, aparições concretas de objectos novos e surpreendentes,
máscaras, manequins de vários metros de tamanho, alterações bruscas da luz,
acção física da luz, que suscita o calor e o frio, etc. (...)
O espectáculo será calculado de forma a constituir toda uma linguagem.
Não haverá, assim, nenhum movimento perdido e todos os movimentos
obedecerão a um mesmo ritmo; e pela tipificação extrema das personagens, a
gesticulação, a fisionomia e os fatos equivalerão a outros tantos traços de luz.
Estes processos que consistem em intensidades de cores, luzes ou sons,
que empregam vibrações, frémitos, repetição, tanto dum ritmo musical como
duma frase falada, tons especiais ou duma difusão geral da luz, só podem
alcançar pleno efeito pela utilização de dissonâncias.

230
Da crise do drama e da obra de arte total

Porém, em vez de circunscrever estas dissonâncias à órbita de um único


sentido, fá-las-emos sobrepor um sentido a outro, uma cor a um som, uma
palavra a uma luz, um gesto agitado a uma tonalidade de som grave, etc.
(Antonin Artaud in Barata 167-170)

Isto escreve Artaud em 1935. Outro testemunho que mostra a consciên-


cia que havia na época da necessidade de utilizar os vários elementos
teatrais sem necessariamente os fundir numa neo-romântica obra de arte
total vem de Jan Mukarovsky, pioneiro do estruturalismo, que numa con-
ferência de 1937 sobre “A linguagem de palco no teatro de vanguarda”
escreve:

Hoje, (…) todas as componentes do teatro se libertaram de subordinações


e superioridades mútuas, nenhuma delas se submete nem é submetida e as
tensões recíprocas entre elas podem manifestar-se livremente. Decorrem na
obra vários esquemas composicionais ao mesmo tempo, e cada um deles tem
a sua própria coerência e continuidade internas. A linguagem, o gesto, o
movimento, a iluminação, a música, o filme – todas estas componentes, e
cada uma delas por si só, adquirem a validez de princípios compositivos; os
esquemas de composição por elas determinados podem coincidir agora,
divergir depois, cruzar-se, decorrer paralelamente (…), podendo estabelecer
relações extremamente transitórias e variáveis. Tão-pouco há conteúdo por
um lado e forma por outro: cada componente constitui simultaneamente (…)
tanto conteúdo como forma. (…) No teatro novo (…) cada componente
mantém permanentemente a sua coerência interna e a sua independência em
relação às outras componentes. ( Jan Mukarovsky 220)

Entretanto, as décadas de 40 e 50 viram um regresso em força do rea-


lismo e do texto. Mas no fim da década de 60 houve de novo ocasião para
retomar as ideias de um “teatro total”, como fez nessa época Jean-Louis
Barrault (1910-1994), ou mesmo o Living Theatre (grupo fundado nos Estados
Unidos em 1947), que, embora rapidamente tendesse para usar nenhuma
cenografia e poucos adereços, defendeu uma “encenação sonora total”.

231
D rama e C omunicação

Nesses anos 60 começou a actuar e encenar aquele que é hoje a grande


referência na interpretação arquitectural da linha wagneriana: Robert Wilson
(1941- ). Tal como Wagner, embora sem a referência à Natureza nem ao
povo (é um artista cosmopolita, que tem trabalhado muito mais na Europa
do que nos Estados Unidos onde nasceu), Wilson centrou muitas das suas
obras em torno da biografia de um herói (o que é logo bastante wagneria-
no): Einstein, Freud, Edison, Lincoln, Garibaldi, Guilherme Tell, Hamlet,
Fausto... E não faltam nos seus espectáculos uma minuciosa articulação com
a música e uma majestosa dimensão operática. Wilson contribuiu para de-
senvolver as soluções cénicas que Appia dizia ainda faltarem a Wagner.
Vejamos algumas linhas fundamentais do seu percurso.
Nada interessado no realismo e na psicologia (“o teatro é muito compli-
cado, os actores pensam demais, é tão aborrecido!”, dizia Wilson em 1999
numa conferência em Lisboa, que iremos citando), Bob Wilson começou por
trabalhar com um rapaz surdo-mudo, experiência fulcral que resultou no
espectáculo Deafman’s Glance (O Olhar do Surdo), de 1971. Um caminho
que levaria ainda mais longe, em 1974, com um rapaz autista: tornando
assim impossível os habituais canais de comunicação, obrigava-se e obriga-
va o teatro a descobrir e desenvolver outros níveis de expressão e co­municação.
Herbert Blau (1992:175) comenta que, deste modo, “o autismo foi tratado
não como um impedimento mas como uma espécie de convite, em torno
do qual os outros performers podiam articular-se” e articular a peça, nome-
adamente reforçando os padrões repetitivos caros a Wilson. Deleuze chegou
a escrever que nada é mais instrutivo do que o autismo.
Como Appia, Wilson procurou relacionar espaço e tempo através do
movimento: “sempre o movimento primeiro”. Como Craig, isso significou,
progressivamente, tratar o actor, a quem Wilson dita cada mínimo gesto,
como uma supermarioneta subordinada ao cenógrafo como grande criador.
Com estudos iniciais em desenho e pintura, licenciado em arquitectura e
assumindo que “se tivesse estudado teatro não estaria a fazer o que faz”,
Wilson tornou-se sobretudo um arquitecto da cena, no seu melhor, ou, mais
recentemente, um seu designer: “o teatro começou por ser arquitectural,
depois deixou a arquitectura e Deus sabe o que agora é”. Ao seu trabalho
têm chamado “um teatro de imagens” (absolutamente surpreendentes no

232
início, mais decorativas nos últimos anos). Partindo dos seus próprios de-
senhos (ou, mais raramente, de fotografias), trabalhando constantemente
as desproporções, Bob Wilson cuida cada elemento visual, porque “muitas
vezes, no teatro, o que vemos impede-nos de ouvir” – tal como o que ou-
vimos nos impede de ver. Utiliza muitos ecrãs móveis, como Craig
imaginava, embora com mais influência da projecção cinematográfica. E cui-
da sobremaneira a iluminação, porventura a área em que foi mais inovador:
“talvez o elemento mais importante do teatro seja a luz, porque é aquilo
que nos faz ver e ouvir”.
Sublinhe-se que Wilson recolheu num aspecto a lição de Artaud e de
Brecht, e também do desconstrucionismo pós-estruturalista, para propor às
várias artes uma totalidade federativa, anti-wagneriana, não fusional, em
que se aproveita e tira partido do contraste entre elas, em que nenhuma
ilustra outra, em que o sentido, ou antes, os sentidos, vêm precisamente
do seu entrechoque e da dissonância. Consegue assim ir gerando, como
Brecht, a surpresa e o assombro: mas não para conseguir uma tomada de
posição crítica e política, antes para nos instalar numa espécie de sonho
acordado, talvez a beleza de morte de que falava Craig, em que, conforme
bem comenta Herbert Blau (1992:153), “apesar de todos os corpos em mo-

233
D rama e C omunicação

vimento, há uma espécie de presença incorpórea. Pode bem ser isso que,
como no fetiche, o torna sedutor.” Conta-se que Aragon, tendo assistido a
Deafman’s Glance, desabafou que o sonho surrealista tinha finalmente en-
contrado realização cénica.
Uma última referência, a Pina Bausch: estudou dança nos Estados Unidos
e do modernismo que ali dominava a linguagem da dança reteve justamen-
te a ideia de promover o encontro entre as artes; mas não reteve a
abstracção geométrica desse modernismo, e o “teatro-dança” que fundou
centrou-se na figura humana, no quotidiano e na emoção (mais próximo,
portanto, da tradição expressionista alemã). O seu trabalho é a prova que
o projecto de cruzamento entre as artes não tem de se limitar a uma con-
cepção plástica ou arquitectural, como aquela a que atrás demos especial
ênfase, nem ao tratamento do performer como uma marioneta. Mas falare-
mos desse outro caminho no último capítulo.
Aquilo a que veremos Lehmann chamar o “teatro pósdramático”, e em
que engloba tanto Bob Wilson como Pina Bausch, apresenta-se quase sem-
pre como ponto de encontro das artes, obrigando a novas formas de
percepção: “não é surpreendente que com esta forma de teatro, os adeptos
de outras disciplinas (artes plásticas, dança, música) estejam frequentemen-
te mais à vontade do que os espectadores incondicionais do teatro
narrativo literário” (41).

234
8 . A RI S TÓT E L E S E B REC H T

1. Outra linha de transformação do drama absoluto seiscentista, nomea­


damente por recuperação da figura do narrador em palco, foi lançada pelo
dramaturgo e encenador alemão Bertold Brecht, já no século XX . Uma vez
que apresenta a sua proposta como “um teatro não aristotélico”, poderemos
compreendê-la melhor se brevemente apontarmos alguns aspectos ainda
não referidos de Aristóteles.
Para Aristóteles (tal como para Nietzsche, como veremos no 10º capítulo),
é o coro quem mais directamente representa a acção da peça; e pode fazê‑lo
porque tem menos individualidade do que Édipo ou as outras personagens.
No coro, podemos sentir a acção a um nível mais profundo do que o
individual. Claramente, para Aristóteles, a “acção” é uma categoria mais
importante do que a personagem, que, no fundo, é apenas uma “acção
habitual”. De facto, um professor é alguém que repete a acção de dar aulas,
ou um escritor é alguém que repetidamente escreve. Apesar de, no seu
tempo, em resultado de toda uma evolução da tragédia grega, já começarem
a destacar-se algumas personagens em relação ao coro, Aristóteles acredita
que, mesmo que elas ainda pouco mais sejam do que nomes, se os incidentes
da história forem compostos na sua sequência trágica, já produzem a maior
parte do efeito trágico.
Aristóteles preconiza: “o enredo é o primeiro princípio e a alma da tra-
gédia”. É certo que, hoje, a construção de intrigas anda por vezes mal
vista por algumas críticas, que pensam nelas como a ingenuidade mecâni-
ca de histórias policiais. Mas Aristóteles concebe a intriga como “orgânica”:
vê-a como a forma básica da peça, e nesse sentido pode falar-se da “intri-
ga” de um poema curto. Para Aristóteles, os poetas, como os pintores, os
músicos, os bailarinos, todos “imitam acção” em diferentes maneiras.
D rama e C omunicação

Dentro da intriga, como sua “parte orgânica”, Aristóteles destaca a cena


de reconhecimento, ou anagnorisis. É o que ocorre quando Édipo reconhece
que, por muito que tenha tentado fugir ao seu destino, sempre matou o pai
e casou com a mãe; ou quando Lear, ao acordar no V Acto, maltrapilho e
quase louco, reconhece gradualmente Cordélia, a filha que expulsou; ou
quando, no Frei Luís de Sousa, de Garrett, Madalena reconhece na voz do
romeiro o seu marido. O reconhecimento está frequentemente ligado à
inversão, à queda de uns e ascensão de outros, aos reveses da fortuna
(veja-se o que acontece ao rei Édipo): reconhecimento e inversão dependem
um do outro e juntos produzem o pathos.
Sublinhe-se também a ideia aristotélica (mas tão actual) de que são a
piedade e o temor, juntos e ao vivo, que podem produzir a catarse. Uma obra
que provoque apenas a piedade é meramente sentimental, como as lágrimas
demagógicas de muitas telenovelas. Uma obra que provoque exclusivamente
o medo, como em certos filmes de terror, apenas nos faz agarrar tensamen-
te à cadeira ou fechar os olhos. Mas os mestres da tragédia (e do suspense)
misturam piedade e medo, identificação e temor, e assim procuram a catarse
que nos purgue as emoções e nos faça compreender o nosso destino indi-
vidual como destino humano universal (veremos como também para Nietzsche
esta passagem do indivíduo ao colectivo é fundamental na tragédia).
E por que razão a tragédia, com as suas imagens de conflito, terror e
sofrimento, nos há-de dar prazer? Porque produz a catarse, esse conceito
fundamental que surge pela primeira vez na Poética de Aristóteles em dez
únicas palavras, mas que desde então tanta tinta tem feito correr. Aristóteles
fala de “purgação” ou “catarse”: o termo grego pode significar tanto a lim-
peza do corpo (um termo da medicina, e aliás o pai de Aristóteles era
médico) como a limpeza do espírito (um termo religioso). Ambas estas
acepções, e a associação de ambas com uma “cura”, têm sido uma referên-
cia e um constante motivo de discussão.

2. A ideia de catarse é a que mais nos interessa neste capítulo como


contraponto a Bertold Brecht (1898-1956), enorme dramaturgo, poeta, en-
cenador e teorizador do teatro, que se tornou uma das referências mais
centrais do século XX .

236
A ristóteles e B recht

Comecemos por esclarecer que Brecht só pode chamar ao seu teatro


anti­‑aristotélico no sentido de anti-catártico. Em muitos outros aspectos, ele
partilha as posições do mestre grego: “Segundo Aristóteles, a fábula é – e
aí nós pensamos o mesmo – a alma do drama. (…) Tudo depende da fábula,
ela é o coração do espectáculo teatral” (apud Oliveira 84). O que Brecht
quer é assumir que a fábula é “ajustada e modelada” em função das ideias
do seu inventor (in Borie et al 488), para que “o público não seja de modo
algum convidado a atirar-se à fábula como a um rio, para aí se deixar
arrastar indiferentemente para um e outro lado” (apud Oliveira 88). E para
isso vai fragmentar a fábula, torná-la descontínua, remontá-la: “as partes da
fábula devem opor-se criteriosamente umas às outras, dando-lhes uma
estrutura própria de uma pequena peça na peça” (apud ibid. 88). Mais uma
razão para defender um teatro épico: como vimos atrás, Brecht concorda
com Döblin “que, ao contrário do drama, a epopeia se pode, a bem dizer,
retalhar em pedaços, pedaços que permanecem, apesar de tudo, com inteira
vitalidade” (Brecht 73). Este trabalho de montagem por vezes leva-o mesmo
a contrariar outro princípio aristotélico, o da unidade de acção. O modo
como Brecht usa os materiais que formarão a intriga é contrário a “um
realismo segundo critérios puramente formais e literários… Pelo contrário,
permitiremos ao artista pôr em jogo toda a sua fantasia, toda a sua
originalidade, todo o seu humor, toda a sua inventiva” (apud Sinisterra 98).
“Assim, no realismo brechtiano cabem o simbolismo, a alegoria, a parábola,
a estilização, o convencionalismo, a farsa, assim como a introdução de
elementos puramente imaginativos – sonhos, visões, aparições sobre­naturais,
etc.” (Sinisterra 98) 1.
Vimos no capítulo anterior como, em termos dos conteúdos das peças,
já o naturalismo avançava por meios sociais não burgueses. Para melhor
contextualizarmos as mudanças que Brecht vai introduzir, não apenas nos
conteúdos mas no próprio género dramático, convém recuar ainda mais
atrás, até ao século XVIII . Porque já nessa altura o novo drama reclamava

1 Sinisterra, 2002:97, acrescenta: Brecht recusa o conceito romântico de originalidade artística,


cria em equipa, “utiliza conscientemente materiais literários alheios de origem muito diversa”, “a
adaptação de temas e argumentos da literatura e da tradição universais, a paródia de situações e
personagens já criadas, inclusive a utilização de textos alheios”.

237
D rama e C omunicação

novos temas dramáticos, “abrir as cabanas”, revelar “o que se ignora ou o


que se esquece”, na expressão de Sébastien Mercier em 1773 (in Borie et
al 227): “ter falta de pão, de dinheiro, estar alojado num sótão aberto a
todos os ventos; que destino glorioso e nobre quando é o da virtude! (…)
O poeta é o intérprete das infelicidades, o orador público dos oprimidos.”
Ainda mais importante do que isso, já nesse século XVIII havia quem come-
çasse a pedir aquela que será uma das grandes mudanças de Brecht, o
crescimento dos elementos objectivos e, nalguns casos mais raros, mesmo
a sua autonomização. Repare-se no que Diderot defendia em 1757.

Até agora, na comédia, os caracteres foram o objecto principal e a situa­


ção tem sido apenas acessória; é preciso que agora a situação se torne o
tema principal, e que os caracteres não sejam mais do que os acessórios.
(…) É a condição, os seus deveres, as suas vantagens, os seus embaraços,
que devem servir de base à obra. Parece-me que esta fonte é mais fecunda,
mais vasta e mais útil que a dos caracteres. (…) Nada, talvez, nos seja mais
desconhecido que as condições, e nada nos deverá interessar mais. Nós temos
cada um o nosso estado na sociedade; mas temos relações com homens de
todos os estados.
As condições! Quantos pormenores importantes, acções públicas e
domésticas, verdades desconhecidas, situações novas a retirar desses fundos!
E as condições não têm elas entre si os mesmos contrastes que os caracteres?
E o poeta não as poderia opor? (Diderot, in Borie et al 163-165)

Em 1809, Benjamin Constant (in ibid. 279-280) leva mais longe e com mais
claras implicações estas ideias de que “a paixão e o carácter são acessórios:
a acção da sociedade é o principal”. E logo a seguir, Constant toca no pon-
to que fará a grande viragem: “O espectador deve saber qual é o estado da
sociedade em si mesma independentemente do herói.”
Independentemente do herói! Compreende-se como esta viragem altera a
essência do drama clássico, em que tudo o que existia no palco dependia da
subjectividade das personagens. Tão funda é essa ruptura que não espanta
que o drama do século XIX, mesmo quando desenvolvia as condições sociais
das personagens (e apesar daquela afirmação solta de Constant), não se atre-

238
A ristóteles e B recht

vesse ainda a autonomizá-las. As condições para esse salto encontram-se


no início do século XX e a primeira referência a reter é a do encenador e
produtor alemão Erwin Piscator (1893-1966). Adepto do movimento dada,
do cabaret e do music-hall, influenciado também pelas cenas curtas do
cinema e pela respectiva teoria da montagem e adepto do materialismo
marxista em que a objectividade se sobrepõe à subjectividade, cria a seguir
à primeira guerra um teatro de agit prop.

Reconhecer-se-á, finalmente, que o lamento de Tasso bate sem eco contra


o concreto e o aço do nosso século, e que também a neurastenia de Hamlet
não pode contar com nenhuma pena numa geração de lançadores de granadas
e recordistas? Ver-se-á por fim que o “herói interessante” só é interessante
para a época que vê, encarnada nele, a sua sorte, que a dor e a alegria, ainda
ontem aparentemente sublimes, se afiguram futilidades ridículas ao olhar
vigilante de um presente lutador? (Erwin Piscator, in Barata 158)

Piscator não apenas defendeu um Teatro Político (título do seu livro de


1929), como introduziu na cena fotografias, mapas, estatísticas, palcos ro-
lantes. Nos “colectivos dramatúrgicos” de Piscator estava Brecht, cinco anos
mais novo, que aproveitou tudo isto e lhe acrescentou, não só o seu génio
de dramaturgo, como a sua capacidade teórica de romper com as caracte-
rísticas mais enraizadas do drama. É que, como logo em 1931 notou o
clarividente Walter Benjamin (1987:79), “qualquer que tenha sido o funcio-
namento desse teatro político [anterior a Brecht], do ponto de vista social
ele limitou-se a franquear ao público proletário posições que o aparelho
teatral havia criado para o público burguês. As relações funcionais entre
palco e público, texto e representação, director e actores quase não se
modificaram. O teatro épico parte da tentativa de alterar fundamentalmen-
te essas relações.” “Teatro épico” é um termo que Piscator veio a reclamar
como seu e que Brecht toma como primeira definição do seu novo caminho.
De facto, aquilo a que o marxista Brecht mais reage no teatro do seu
tempo não são os temas: o “drama social” naturalista pusera em cena
problemas sociais de todas as classes, incluindo o operariado. No dizer de
Brecht (apud Dort 118), “o aprofundamento de novos temas necessita de

239
D rama e C omunicação

uma forma nova dramatúrgica e teatral”. Não põe em causa a instituição


teatral, como no próximo capítulo veremos muitos vanguardistas fazerem,
mas transforma profundamente a sua lógica e a sua função. A temática
social e o “princípio científico” que levava autores como Zola, no romance,
a analisar cada vez mais sectores da sociedade, encontrava sérias limitações
na forma dramática, em que, como vimos, tudo o que se manifesta provém
da subjectividade das personagens. Para levar até às últimas consequências
o espírito analítico (e científico), Brecht decide pôr em cena o choque entre
essa subjectividade e as condições objectivas que a condicionam, manifestadas
independentemente das personagens: já não a fusão (que vimos ser própria
do género dramático) entre subjectividade e objectividade (uma subjectividade
que tem de se objectivar, uma objectividade que tem como única fonte as
personagens), mas a possibilidade de eles se manifestarem autonomamente,
mesmo em oposição. A arte que já estava a centrar-se nessa oposição era
o romance, a “moderna epopeia burguesa”, no dizer de Lukács; Brecht não
hesita então em epicizar o drama, impondo “o teatro épico”.

A expressão “teatro épico” pareceu a muitos contraditória em si, pois, a


exemplo da Grécia de Aristóteles, considerava-se que a forma épica e a forma
dramática de narrar uma fábula eram fundamentalmente distintas. (...) Apesar
desse facto, surgia ainda um cunho dramático nas obras épicas e um cunho
épico nas obras dramáticas. O romance burguês do século passado cultivou
um pendor dramático bastante intenso. (...)
Não pretendemos explicar aqui por que motivo a oposição entre épico e
dramático, durante longo tempo considerada insuperável, perdeu a sua rigidez
(…). As possibilidades oferecidas pelas projecções, possibilidades de maior
transformação da cena através da utilização de “motores” – o cinema –,
completaram o equipamento do palco; surgiram no preciso momento em que
se verificou não ser já possível apresentar os acontecimentos que se revestem
para os homens de importância máxima pelo simples processo de personificação
das forças em acção ou da submissão das personagens ao poder de invisíveis
forças metafísicas. Para a exacta compreensão dos acontecimentos, tornava­
‑se necessário dar realce (por vasto e “significativo”) ao ambiente em que
viviam os homens.

240
A ristóteles e B recht

Este ambiente era, também, naturalmente, focado nas obras dramáticas


produzidas até então; porém, não como um elemento independente, mas
sim, apenas, do ponto de vista da figura central do drama. Surgia da reacção
que o herói lhe contrapunha. Aparecia a nossos olhos como uma tempestade
que apenas se vê num barco que desfralda as velas à superfície das águas
e, depois, no encurvar das velas. No teatro épico, porém, pretendia-se que
o ambiente se manifestasse independentemente. (Bertold Brecht 72-74)

Veremos daí a pouco que recursos técnicos Brecht vai utilizar. Mas ain-
da que não existissem projecções e motores ou Brecht não os usasse,
poderia haver teatro épico: pensemos em recursos tão antigos no teatro
como o prólogo ou o narrador (abolidos no Renascimento), que já por si
fazem com que as personagens não preencham completamente a represen-
tação e que, ao enquadrá-las, mostram que estão em representação2. Brecht
recupera esta figura do narrador, que a partir do século XVI fora afastada
do drama clássico e romântico (com algumas excepções nos dramas histó-
ricos). Com Brecht, voltam pois a existir em palco, lado a lado com os
elementos subjectivos, elementos objectivos que não provêm das persona-
gens. Não se pense, porém, que essa objectividade significa uma verdade
única. Pelo contrário, os elementos objectivos são introduzidos para acres-
centar elementos estranhos às personagens, que obrigam a problematizar.
Brecht não tem receio de exteriorização que o theatron implica, ele quer
mesmo que o espectador e até as personagens se vejam a si próprias como
que de fora. Daí o tão falado conceito de distanciação (ou Verfremdungseffekt)
brechtiano, do qual também aqui se impõe fazer uma pequena genealogia.

2 Também o encenador russo Vsevolod Meyerhold, de quem muito falaremos no próximo


capítulo, tinha já em 1912 escrito em defesa da reintrodução dos prólogos e interrupções:
“O prólogo, e a parada que se lhe segue, bem com o discurso final ao público, tão apreciado
pelos Italianos e Espanhóis do século XII, bem como pelos que em França fazem vaudeville,
todos estes elementos do antigo teatro obrigam o espectador a ver a representação dos actores
como um jogo, e não de outro modo. E de cada vez que o actor leva o espectador longe
demais no país das maravilhas, esforça-se de imediato por lembrar a esse espectador, através
de uma réplica inesperada ou de uma longa apóstrofe em aparte, que está apenas a assistir
a um ‘jogo’.” (1973:188-189)

241
D rama e C omunicação

O espanto foi muito procurado pelos futuristas: já em 1913 Marinetti


tinha dito que no music-hall há “uma única razão de ser e de triunfar, a de
inventar incessantemente novos elementos de estupor” (ibid. 250). Marinetti
e Cangiullo escrevem mesmo, em 1921, um manifesto intitulado “Teatro da
surpresa” (Lista 279-280). Estranheza foi um conceito muito usado nos anos
20. Foi importante para os simbolistas em França. Mas era sobretudo na
Rússia que estavam a fermentar as ideias mais próximas do caminho
brechtiano. Em primeiro lugar, o conceito de Priem Ostrannenija, ou
ostranenie, “tornar estranho” que o formalista russo Viktor Schklovski usava
desde 1917 para designar um procedimento específico da arte, o “procedi­
mento de singularização” que consiste em “obscurecer a forma, em aumentar
a dificuldade e a duração da percepção”, de modo a “libertar o objecto do
automatismo perceptivo (assim, não chamaremos o objecto pelo seu nome,
mas iremos descrevê-lo como se o víssemos pela primeira vez, e trataremos
cada incidente como se acontecesse pela primeira vez” (apud Dort 120).
Na Rússia, o encenador Alexander Tairov (1885-1950) trabalhou esta ideia,
e o encenador Yevgeny Vaktangov (1883-1922) promoveu, no seu realismo
fantástico, um “sistema do espanto”, que Nikolai Evreinov (1879-1953)
desenvolveu. Mas era sobretudo Meyerhold quem estava a usar no teatro
técnicas que irão ser claramente inspiradoras para Brecht: o ante-jogo, uma
pantomima que conta e prepara para perceber de uma certa maneira o que
vai seguir-se; ou o jogo invertido, em que, “deixando repentinamente de
figurar a sua personagem, o actor interpela o público directamente, para
lhe lembrar que está apenas a representar e que na realidade o espectador
e ele são cúmplices” (Dort 120). Meyerhold e o construtivismo em geral
trabalharam para tornar as situações dramatúrgicas não naturais, antes
suscitadoras de espanto e passíveis de contestação e modificação (cf. Vasques,
2003:104,132,155-156).
Brecht começa a falar do Efeito V (Verfremdungseffekt) a partir de 1936,
depois de uma viagem à União Soviética, em que encontra as principais
figuras do teatro soviético, como Meyerhold. Não lhe interessa o formalismo
que, a partir da estranheza, pode levar a uma a-referencialidade que já
vimos não ser o seu caminho: em Aristóteles rejeitava a catarse, não a mi-
mese. Pela mesma razão, rejeita nos artistas dadaístas ou surrealistas uma

242
A ristóteles e B recht

estranheza que fica para sempre estrangeira: “O Dadaísmo e o Surrealismo


utilizam efeitos de estranhamento radicais. Os seus objectos não regressam
do estranhamento” (Brecht, apud Oliveira 86). Entre os exemplos de Efeito V,
cita ainda a dicção dos clowns e o emprego de panoramas nas cenas e
quadros apresentados nas feiras. Mas a partir de todo estes contributos,
desenvolve um “longo processo de elaboração teórica a partir da sua prá-
tica continuada como autor e encenador” (Sinisterra 99). A estranheza pode
conseguir-se a nível temático: a acção situa-se em lugares ou tempos lon-
gínquos; o argumento desenrola-se com um sentido parabólico. Ou a nível
estrutural: cenas justapostas e descontínuas; títulos, cartazes; coros e reci-
tantes; monólogos e interpelações ao público; poemas e canções. Ou a nível
situacional, com paródias e contrastes. Ou a nível cenográfico, com ausên-
cia de cenários realistas, visibilidade das fontes de luz, projecções. Ou com
música “dialéctica”. Ou ainda a nível interpretativo, com máscaras, gestus
sociais, vestuário e objectos e com o desdobramento do actor (ibid. 100).
Brecht vai por vezes preferir usar os termos “distância” e “distanciação”.
Como lembra Bullough, retomado por Susanne Langer (332), objectividade
parece ser algo que ou se tem ou se não tem. “A distância, pelo contrário,
admite naturalmente gradações, e difere não apenas de acordo com a na-
tureza do objecto, que pode impor um maior ou menor grau de Distância,
mas também varia de acordo com a capacidade do indivíduo de a manter
num grau maior ou menor.” Podemos querer, como Brecht, introduzir em
certos momentos “efeitos de distanciação”, que já por si significam que
estávamos mais perto e saltamos para mais longe; e podemos fazer variar
essa distância. E com esse jogo sobre as distâncias vamos ganhando mais
perspectiva do que se estivéssemos sempre colados às personagens e às
situações. Não se trata, pois, de uma verdade única, mas do contrário dela.
Por isso Brecht usa também o termo mundividência. Com o mesmo acon-
tecimento olhado de diferentes pontos de vista, estamos mais perto do
cubismo: “A estética da montagem viria arrasar uma importante conquista
do Ocidente – refiro-me à descoberta e aperfeiçoamento da perspectiva
que, ao longo dos séculos, pesou grandemente nos destinos da pintura e
do teatro, veja-se a história moderna da encenação. (…) Num pequeno
tratado dedicado à pintura chinesa, Sobre a Pintura chinesa, Brecht admira

243
D rama e C omunicação

nesses autores o facto de eles não gostarem de ‘ver tudo de um só ponto


de observação’” (Oliveira, 1997:90). No final das peças, Brecht prefere fre-
quentemente deixar o desfecho em aberto (como já fazia Émile Zola), sem
a conciliação final de que Hegel falava: será o espectador, e não as perso-
nagens, a ter de reflectir e decidir entre vários desfechos possíveis.

No seu período de maturidade, Brecht abandona todo o esquematismo


sociológico que pôde reger a sua produção dramática – em especial por volta
da época das suas peças didácticas e antinazis – para aprofundar o drama
da consciência humana debatendo-se entre as brumas ideológicas que se
impõem como evidência do real. Neste enclave ético, que possui uma dupla
vertente, ao mesmo tempo individual e colectiva, encontra-se, sem dúvida,
um dos terrenos mais férteis da dramaturgia contemporânea. Porque, com
efeito, neste tempo de confusão em que nos tocou viver, não há tema mais
urgente do que este da consciência individual perdida nas suas próprias
ilusões de objectividade. ( José Sanchis Sinisterra 100)

O que distingue Brecht do teatro panfletário e assim o leva a chegar até


aos nossos dias é que não se trata de colocar apenas um narrador ou per-
sonagem com uma única perspectiva crítica sobre o mundo, atacando-o de
fora: trata-se, na melhor tradição dramática, de desdobrar-se em várias
perspectivas e colocá-las a confrontar-se em cena, e Brecht inventa para
isso uma grande quantidade de soluções que já apresentarei. Ou seja, ao
mesmo tempo que reintroduz no teatro as “condições sociais” independen-
temente das personagens, o que o afasta do “drama absoluto”, Brecht trata
essas condições numa dialéctica de pontos de vista que é eminentemente
teatral e que pretende levar ainda mais longe a característica perspectivis-
ta que já argumentei ser decisiva no espectáculo. Numa época mais tardia,
Brecht prefere mesmo chamar ao seu trabalho “teatro dialéctico” do que
“teatro épico” e é esse desdobramento em diferentes pontos de vista que
faz dele um dos maiores dramaturgos de sempre.

Tem-se dito que o teatro de Brecht não se propõe desenvolver acções,


mas representar condições. E enquanto quase todas as palavras de ordem da

244
D rama e C omunicação

sua dramaturgia caíram no esquecimento, esta permaneceu, contribuindo


para um certo mal-entendido. (…) O teatro épico conserva do facto de ser
teatro uma consciência incessante, viva e produtiva. Essa consciência permite­
‑lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e é no fim desse
processo, e não no começo, que aparecem as “condições”. Elas não são
trazidas para perto do espectador, mas afastadas dele. Ele reconhece-as como
condições reais, não com arrogância, como no teatro naturalista, mas com
assombro. Com este assombro, o teatro épico presta homenagem, de forma
dura e pura, a uma prática socrática. É no indivíduo que se assombra que o
interesse desperta; só nele se encontra o interesse na sua forma originária.
(Walter Benjamin, 1987:81)

A grande preocupação de Brecht é mesmo que nada seja evidente, nem


sequer o ponto de vista ou a ideologia do narrador ou o do autor: pelo
contrário, trata-se sempre de problematizar, de pôr em perspectiva, ou, para
usar os termos de Michel Meyer (1991), de “desocultar os interrogativos”,
isto é, trata-se de fazer com que tudo aquilo que aparece como não
problemático, tudo o que esconde as suas razões de ser ou de não ser, seja
analisado até que venham à luz as interrogações que estavam escondidas.
Veremos como já Nietzsche criticara esse mecanismo nuclear da acção humana
que consiste em colocar num registo metafísico aquilo que é convencional,
arbitrário, produto da acção humana. Como Brecht escreve: “Nunca digas
‘é natural’, para que nada possa parecer definitivo”. “O Naturalismo revela
logo no seu nome os seus instintos ingénuos e criminosos” (Brecht, apud
Oliveira 100). “Estranhem o que não for estranho. Tomem por inexplicável
o habitual. Sintam-se perplexos diante do quotidiano.” Por isso Roland
Barthes, embora tão interessado pelo trabalho que Brecht realizava sobre
os signos, chegou a escrever (1987:194): “mais do que uma semiologia, o
que deveríamos reter de Brecht seria uma sismologia”. Na sua escrita e nas
suas encenações, Brecht usava (como também Meyerhold) a oposição de
elementos contrários, para levar o espectador a usar activamente a inteligência
quando confrontado com o estranho, o contraditório, o incompreensível.
Conta-se que, enquanto encenador, quando num ensaio Brecht alcançava
o que queria de uma cena em que trabalhava há algum tempo, logo propunha

246
A ristóteles e B recht

que se fizesse exactamente o contrário, para ver se não seria ainda melhor.
Benjamin (1987:84) escreveu, com graça, que Brecht se “relaciona com a sua
história como o professor de ballet com sua aluna. A sua primeira preocupação
é flexibilizar as articulações da discípula até aos limites do possível.”

Em tudo o que é evidente é hábito renunciar-se, muito simplesmente, ao


acto de compreender. O que era natural tinha, pois, de adquirir um carácter
sensacional. Só assim as leis de causa e de efeito podiam ser postas em
relevo. Os homens tinham de agir de determinada forma e de poder,
simultaneamente, agir de outra.
Foram, de facto, modificações de monta.
O espectador do teatro dramático diz: - Sim, eu também já senti isso. – Eu
sou assim. – O sofrimento deste homem comove-me pois é irremediável.
É uma coisa natural. – Será sempre assim. – Isto é que é arte! Tudo ali é
evidente. – Choro com os que choram e rio com os que riem.
O espectador do teatro épico diz: - Isso é que eu nunca pensaria. – Não
é assim que se deve fazer. – Que coisa extraordinária, quase inacreditável.
– Isso tem de acabar. - O sofrimento deste homem comove-me porque seria
remediável. – Isto é que é arte! Nada ali é evidente. – Rio-me de quem chora
e choro com os que riem. (...)
Como o espectador vê coisas que não deseja ver, como vê os seus desejos
não apenas saciados, mas criticados (vê-se não na qualidade de sujeito, mas
na de objecto), é, em princípio, capaz de atribuir ao teatro uma nova função.
(Bertold Brecht 75,35)

A própria utilização do registo cómico, ou tragicómico, ajuda ao estra-


nhamento e a “facilitar a ‘despedida’ do historicamente ultrapassado” (Knopf,
apud Oliveira 76).

3. O jogo torna-se outro, distinto daquilo a que Brecht chamou “teatro


de ilusão” ou “teatro dramático”, designação em que englobava igualmente
os “clássicos” e os “românticos”, ou seja, todo o “drama absoluto” tal como
vimos Szondi descrevê-lo. No tempo de Brecht, predominava o drama na-
turalista, que tendia (e ainda hoje tende) a trabalhar sobre a ilusão e a

247
D rama e C omunicação

empatia, procurando fazer o espectador esquecer que não está perante uma
fatia de vida, mas sim perante uma forma simbólica construída. A virtude
de Brecht está em não se ficar pela mera destruição da ilusão (ou pela
defesa de uma “ilusão imperfeita”, para usarmos os termos de Stendhal):
ele contrapõe-lhe certos mecanismos específicos de “distanciação”, ou de
estranheza, em que vale a pena determo-nos.
Antes de Brecht, já o teatro futurista tinha lutado contra o teatro naturalista
utilizando a surpresa, a agressão, a complicada maquinaria, sobretudo no
domínio da dança, para “corporizar a voz do inconsciente”. O objectivo de
Brecht não é, porém, desocultar o inconsciente: o esquecimento contra o
qual luta é mais o da convenção social de que falavam Nietzsche e Marx
do que o dos mecanismos do consciente/inconsciente estudados por Freud.
A partir da análise marxista da alienação, isto é, de um homem separado
da natureza, dos outros homens e daquilo que produz, Brecht imagina um
teatro não naturalista, que não apenas falaria desses temas da alienação
como erigiria essa separação em princípio geral: onde antes havia conti­
nuidade, passa a haver divisão; onde antes havia a ilusão de uma unidade,
passa a haver desdobramento, “mundividência”. Interrupção e desdobramento
são os dois modos brechtianos de desenvolver a distância artística nos
espectáculos.
O princípio da interrupção, como Benjamin notou, já estava a ser usado
há uns anos pela imprensa, pela rádio, pela fotografia e pelo cinema: so-
bretudo pelo cinema, onde o conceito de montagem, a partir dos anos 10,
se tornou fundamental. Ora o teatro, pelo peso da fisicalidade de que antes
falámos, continuava a aspirar a uma continuidade de que a lei das três
unidades é problemático sintoma. Brecht propõe-se interromper a acção
dramática, para evitar a catarse e abrir novos espaços em que os actores e
os espectadores possam tomar posição relativamente às personagens, às
condições e aos acontecimentos: “é necessário renunciar a tudo o que re-
presente uma tentativa de hipnose, que provoque êxtases condenáveis.”
Por isso chama à sua proposta um teatro não aristotélico. Note-se que a
ideia de catarse não era uma figura apenas da Grécia antiga, e sim algo
que activamente se continuava a procurar nos teatros. Dê-se apenas um
exemplo: o tão lúcido Goehte (in Borie et al 245) recomendava a Schiller,

248
A ristóteles e B recht

em 1797: “o espectador deve ser presa de uma agitação incessante; privado


da liberdade de reflectir, deve seguir o mimo com paixão; a sua imaginação
não tem mais nada que fazer, nada mais se pode esperar dela”. Era sobre-
tudo a isto que Brecht se opunha, e só por comodidade continuamos a
falar da sua proposta como anti-aristotélica, quando a sua luta era sobre-
tudo contra o teatro dominante do seu tempo.
Uma condição importante para o novo caminho é que os vários acon-
tecimentos isolados não devem seguir-se uns aos outros de modo
imperceptível, devem encadear-se de modo a fazer ver as cadeias: não
só, como é tendência de todo o modernismo, porque a arte agora assu-
me e exibe a sua condição de linguagem, de constructo, mas também,
no caso de Brecht, por razões políticas, para que o juízo crítico se pos-
sa interpor.
Em vez de a principal interrogação do espectador ser sobre o que se vai
passar a seguir, preso pela sucessão dos acontecimentos, Brecht pretende
que ele se interrogue sobre o porquê de eles acontecerem. Para isso, não
hesita em recorrer a processos como este: a personagem ou o narrador
contam aquilo que vai acontecer mais adiante, retirando deste modo aqui-
lo que mais costuma prender o espectador, a expectativa em relação ao
desenrolar dos acontecimentos. Encontramos este recurso, note-se, já na
fase mais racionalista da tragédia grega: como em 1657 notava Hédelin
d’Aubignac (in Borie et al 219), Eurípedes “informa-nos não apenas sobre
o que aconteceu, mas sobre o que irá acontecer. Sabemos assim desde o
início o desenlace e toda a catástrofe.” D’Aubignac acha isso “um defeito
muito sensível”, porque pensa que “toda a satisfação da peça repousa qua-
se única e exclusivamente na novidade e na surpresa”. Mas quando o
século XVIII começa a reivindicar um novo tipo de drama, Lessing (in ibid.
219) valoriza em Eurípedes o que o outro criticava: “Não, o mais trágico
dos poetas trágicos não tinha uma ideia tão mesquinha da sua arte; sabia
que essa arte é susceptível de uma perfeição muito mais alta e que a satis-
fação de uma curiosidade pueril é o objectivo mínimo ao qual deve aspirar
(…) e prometia a si próprio comovê-los a seu belo prazer, não tanto com
a ajuda dos factos mas pela maneira como os apresentaria.” É justamente
essa a maneira de Brecht raciocinar e trabalhar.

249
D rama e C omunicação

Enumeremos outros procedimentos que, da escrita à iluminação, operam


interrupções e permitem contínuos desdobramentos:

- além do já referido prólogo, um narrador pode intervir no meio dos


acontecimentos, parando-os para fazer comentários ou acrescentar dados
contextuais;

- esses dados, incluindo estatísticas, podem também ser projectados em


ecrãs ou exibidos em cartazes enquanto decorre a acção;

- os mesmos ecrãs e cartazes podem servir para separar as cenas, anun-


ciando o título ou o conteúdo da cena seguinte;

- acaba a ribalta e tudo o que fazia a cena parecer iluminar-se a si pró-


pria: passa a haver projectores colocados na sala, tornando bem claro que
algo está a ser mostrado aos espectadores (hoje em dia, mesmo os teatros
mais tradicionais já assumiram estas opções que na época de Brecht eram
revolucionárias);

- as canções interrompem a acção para explicar, sublinhar ou problema-


tizar determinados aspectos do que estava a acontecer.

O petróleo, a inflação, as lutas sociais, a família, a religião, o trigo, o


comércio de gado de consumo passaram a fazer parte dos temas do teatro.
Coros elucidavam o espectador acerca dos factos para ele desconhecidos.
Por meio de montagens cinematográficas, mostravam-se acontecimentos de
todo o mundo. As projecções forneciam material estatístico. Pela deslocação
dos fundos para primeiro plano, a acção dos homens era submetida a uma
crítica. (Bertold Brecht 76)

4. Mas se os vários elementos que enunciámos, ao interromperem as


cenas ou sobreporem-se a elas, já mostram até que ponto o projecto de
Brecht acentua o desdobramento e o perspectivismo, eles são ainda poten-
ciados pelas suas ideias sobre o trabalho do actor, que tanto teorizou
(embora com raríssimos bons seguidores). O trabalho do actor é aquele
que, na tradição do teatro ocidental, mais provoca a identificação do es-
pectador; seria possível manter essa tradição e apenas sobrepor-lhe

250
A ristóteles e B recht

elementos épicos como o narrador: mas Brecht quer mais do que isso, quer
que o próprio actor se desdobre. Repare-se que não se trata apenas de, na
escrita teatral de Brecht, surgirem processos em que uma personagem por
vezes se apresenta ou fala de si própria na terceira pessoa ou no passado,
ou através de um canção faz o comentário de si mesma: além dessas estra-
tégias textuais, Brecht pretende que também o próprio actor, em vez de se
transformar completamente na personagem, mantenha uma “atitude natural
de duplicidade”.

E não era somente o fundo que tomava posição perante os acontecimentos


ocorridos no palco, trazendo à memória, em enormes ecrãs, outros acon­
tecimentos simultâneos, ocorridos algures; justificando ou refutando, através
de documentos projectados, as falas das personagens; fornecendo números
concretos, (...) para acompanharem diálogos abstractos. (...) Também os
actores não consumavam completamente a sua transformação, antes mantinham
uma distância em relação à personagem, e incitavam, até, ostensivamente, a
uma crítica. (...)
Ou seja, o que o público vê não é uma fusão entre quem descreve e
quem está a ser descrito, não é um terceiro, autónomo e não contraditório,
com contornos diluídos do primeiro (o que é descrito), tal como é costume
deparar-se-nos no teatro que por aí se faz habitualmente (desenvolvido mais
precisamente por Stanislavski). As opiniões e os sentimentos do indivíduo
que descreve e do que é descrito não estão sintonizados. (...) Já não é
permitido abandonar-se a uma vivência sem qualquer atitude crítica (e sem
consequências na prática), por mera empatia para com a personagem dramática.
(Bertold Brecht 74-75,120)

A quotidiana “cena de rua”, como aquela em que alguém conta um aci-


dente, serve de exemplo a Brecht.

A testemunha ocular de um acidente de trânsito demonstra a um apinhado


de gente como se passou o desastre. (...) O indivíduo que faz a descrição
na rua experimentou indubitavelmente uma vivência de natureza emocional,
mas não intenta fazer com que a sua descrição resulte em vivência para o

251
D rama e C omunicação

espectador. (...) A sua descrição não terá menos valor se não reproduzir o
pânico que o acidente provocou: tê-lo-ia, sim, se o reproduzisse. O objectivo
da sua descrição não é criar emoções puras. (...)
Outro elemento essencial da cena de rua, também necessário num palco
(…), é ter uma projecção no domínio prático (...): há um compromisso social.
É fundamental que os circunstantes tenham a possibilidade de formar um
juízo crítico sobre o acidente. (...)
Há que descobrir uma perspectiva que permita ao narrador submeter o
seu estado de excitação a uma atitude crítica. Só será licito a este nosso
amigo imitar o tom excitado da vítima quando adoptar uma perspectiva bem
determinada, isto é, quando atacar os motoristas, por exemplo, porque pouco
fazem para encurtar o seu horário de trabalho. (“Se ele nem sequer está num
sindicato! Mas quando acontece alguma desgraça perde logo a calma! Estive
dez horas ao volante.”) (Bertold Brecht 112-113,118)

Assim, o actor não deve sobrepor-se àquilo que está a contar: “se a sua
capacidade de metamorfose desse nas vistas aos circunstantes, tal efeito
perturbaria a exibição”. Também “não tem de ‘arrastar’ ninguém consigo.”
Tal como aquele que começa a narrar o acidente, deve “reproduzir a entoa­
ção da personagem por si descrita com uma determinada reserva, com
certa distância (de modo a que o espectador possa dizer: ‘Está excitado –
em vão, tarde de mais, finalmente’, etc.). Em suma, o actor não deve jamais
abandonar a atitude de narrador; tem de nos apresentar a pessoa que es-
tiver a descrever como alguém que lhe é alheio; no seu desempenho não
deverá nunca faltar a sugestão de uma terceira pessoa” (Brecht 111,119).
Não quer dizer que não tome posição: o actor também “manifesta senti-
mentos mas não necessariamente os mesmos do seu personagem”, e sempre
com a noção de que é pelos seus olhos que o espectador vê, o que lhe
aumenta a responsabilidade de criar perspectiva e evitar que o espectador
seja arrastado catarticamente pelos sentimentos da sua personagem.
É certo que, “no teatro épico, o actor tem várias funções, e o seu estilo
de representar varia de acordo com cada função” (apud Benjamin, 1987:87).
Mas há um princípio geral que rege essas variações: “mostrar é mais do
que ser” (Brecht 107). Há um “carácter de exposição” (85), que lembra os

252
A ristóteles e B recht

conceitos de Benjamin e a cumplicidade que ambos tiveram. “O actor deve


mostrar uma coisa, e mostrar a si mesmo. Ele mostra a coisa com naturalidade,
na medida em que se mostra, e mostra-se, na medida em que mostra a
coisa. Embora haja uma coincidência entre essas duas tarefas, a coincidência
não deve ser tal que a contradição (diferença) entre elas desapareça.” (Brecht,
apud Benjamin, 1987:88) A mais alta realização do actor é “tornar os gestos
citáveis”; comentário de Benjamin (1987:88): “ele precisa de espaçar os
gestos, como o tipógrafo espaça as palavras”.
Mais uma vez, é interessante assinalar como esta proposta não nasceu
do nada. Tem uma relação curiosa com a que, no século XVIII , foi feita no
texto O paradoxo do actor por Diderot, que decidiu tomar o trabalho do
actor como exemplo da distância que o artista deve tomar. Diderot insistiu
que o actor que se deixe dominar pelos sentimentos produz uma arte mais
pobre do que aquele que consegue submeter esses sentimentos a uma
elaboração.

Imitação, para Diderot, não significa cópia ou repetição acrítica; pelo


contrário, é sinónimo de descoberta que implica, da parte do actor, não a
frieza ou indiferença que por vezes se costuma citar como objectivo da
estética de Diderot, mas antes uma consciência muito clara de que ao actor
compete interpretar o significado de um papel desvendando-o, enquanto
agente de comunicação, ao público, o qual, por sua vez, tem a obrigação de
completar e compreender o processo iniciado pelo actor. Este relata pois a
paixão/emoção do papel que desempenha; mas não a deve viver. Quanta
proximidade, nos processos, face a Brecht! ( José Oliveira Barata 34)

Há também, já no século XX , a influência do teatro futurista (cf. Coda,


1994), em que o actor deve por vezes usar só partes do corpo, ou entrar e
sair da personagem para surpreender o público, caricaturar personagens e
situações, alternar ritmos como lentidão ou rapidez extremos, desencontrar
os gestos das palavras (por exemplo, falas graves e mímica cómica), ou
montar uma cena dentro de outra cena. Pense-se também no modo como
Vaktangov retrabalha as lições do mestre Stanislavski, opondo à ideia de
“encarnar” a personagem um processo de construção em que o próprio

253
D rama e C omunicação

actor “deveria sentir-se espantado perante circunstâncias dadas absoluta-


mente inesperadas e revelar intensa excitação nervosa de espanto ou
assombro” (Vasques, 2003:132). A mesma preocupação se encontra, na
mesma época, entre os simbolistas e os construtivistas. Meyerhold pede
mesmo ao actor que faça os gestos antes de dizer as palavras do texto,
transferindo assim a atenção dos espectadores do conteúdo narrativo para
a sua técnica de representar e mostrando, de acordo com uma análise sócio­
‑política da obra, o que pensa sobre o papel desempenhado na intriga pela
acção que está a desempenhar: um “actor-tribuna”, que deve “mostrar o que
pensa em cada momento sobre o que mostra e como o mostra aos espec-
tadores” (Vasques, 2003:110)
Brecht desenvolverá, como elemento importante do teatro épico, o con-
ceito de gestus: “as atitudes que as pessoas adoptam umas em relação às
outras, sempre que são socio-historicamente significantes”. Em O Círculo
de Giz Caucasiano, Azdak expõe a ideia de Gestus quando instrui o seu
visitante disfarçado, que está a fugir da polícia, sobre como parecer pobre:
“Acabe o seu queijo, mas coma-o como um homem pobre, senão eles
apanham-no… Apoie os cotovelos na mesa. Agora, envolva o queijo no seu
prato como se ele pudesse ser-lhe roubado a qualquer momento” (apud
Auslander, 1997:103). O conceito de gestus é, assim, ao mesmo tempo ana-
lítico e sintético, expressão vocal e corporal, não como expressão de
sentimentos individuais, nem sensuais nem imediatistas; tão pouco é pan-
tomima ou gestos ilustrativos, mas sim “a condição intersubjectiva que
exprime uma atitude global de alguém perante o todo social” (Oliveira 93).
É enorme a exigência que assim é feita directamente ao trabalho do
actor, a acrescentar às outras exigências brechtianas que decorrem da própria
escrita das peças e da construção dos espectáculos (por exemplo, p. 38,
“o actor teria de se servir de um processo completamente diferente do
costume para tornar sensacionais os acontecimentos já revelados pelos
títulos e, por conseguinte, despojados já de qualquer sensacionalidade, do
ponto de vista do conteúdo”). Recuperando uma ideia dos futuristas, Brecht
chega mesmo a sugerir que o público possa fumar nos teatros, para colocar
a fasquia ainda mais alta.

254
A ristóteles e B recht

A atitude do espectador é a de uma pessoa que está a fumar e a observar


algo ao mesmo tempo. Obriga, assim, o actor a uma representação melhor
e mais autêntica, pois será vão querer levar um homem que esteja a fumar,
um homem, por conseguinte, já bastante ocupado consigo próprio, a deixar­
‑se absorver pela peça. Dentro em breve teríamos, deste modo, um teatro
cheio de público especializado, tal como acontece já nos pavilhões desportivos,
que se enchem de um público conhecedor. É impossível que os actores se
atrevessem, ainda, a servir a um público entendido esses dez-réis de mímica
miserável que preparam, hoje em dia, nuns quantos ensaios, às três pancadas.
(Bertold Brecht 38)

Pode perguntar-se se Brecht não coloca a fasquia tão alta que a sua
proposta se torne uma impossibilidade para o actor. Mas Brecht está segu-
ro de que é possível, porque já viu esse tipo de trabalho ser realizado em
palco. Argumenta que há várias tradições, diferentes do teatro burguês, que
provam como o seu projecto é possível. “Esta tentativa de distanciar do
público os acontecimentos representados manifesta-se já, em grau primitivo,
nas obras teatrais e pictóricas apresentadas nas tradicionais feiras anuais”,
ou nos panoramas dessas mesmas feiras, ou no modo como fala o palhaço
do circo (Brecht 89). Também se manifesta nos fantoches, poderíamos
acrescentar, lembrando-nos das impressões do personagem Wilhelm Meister
de Goethe diante do seu primeiro espectáculo: “Que não eram os próprios
fantoches quem falava, isso já eu tinha concluído da primeira vez; que eles
não se moviam por si próprios também eu suspeitava; mas porque é que,
apesar disso, aquilo era tudo tão engraçado e parecia mesmo que eram eles
próprios a falar e a mexer-se?” (Livro I:33) Mais tarde, o mesmo Wilhelm
(e estamos na Alemanha do século XVIII ) comentará assim o universo de
Shakespeare: “As suas personagens parecem ser pessoas naturais e, todavia,
não o são. Essas criaturas, que são as mais misteriosas e as mais complexas
da Natureza, agem diante de nós, nas suas peças, como se fossem relógios,
cujo mostrador e cuja caixa tivessem sido feitos de cristal; consoante a sua
finalidade, indicam o decurso das horas, mas, ao mesmo tempo, pode-se
reconhecer o mecanismo de molas e a engrenagem que os movem.” (Livro
III:253)

255
D rama e C omunicação

A maior referência de Brecht, porém, naquelas décadas em que tantos


artistas europeus foram buscar inspiração a sociedades não europeias, foi
sem dúvida o teatro chinês (que aliás também influenciara Diderot, como
já notava Teófilo Braga em 1871:95).

No que respeita ao estilo, o teatro épico nada apresenta especialmente


novo. Aparenta-se ao antiquíssimo teatro asiático, pelo seu carácter de
exposição e pelo realce dado ao aspecto artístico. (...)
O artista chinês não representa como se além das três paredes que o
rodeiam existisse, ainda, uma quarta. Manifesta saber que estão a assistir ao
que faz. Tal circunstância afasta, desde logo, a possibilidade de vir a produzir-
se um determinado género de ilusão característico dos palcos europeus. (...)
Ele não oculta que faz uma descrição (nem tem pretensões de ser um
acontecimento autêntico). Tudo o que na representação é fruto de ensaio
ficará, por completo, em evidência – desde a memorização do texto a toda
a engrenagem mobilizada e a toda a preparação subjacente. (...)
O artista chinês é, além do mais, espectador de si próprio. Ao representar,
por exemplo, uma nuvem, ao representar o seu surto imprevisto, (...) olha,
por vezes, para o espectador, como se quisesse dizer-lhe: “Não é mesmo
assim?” Mas olha também para os seus próprios braços e para as suas pernas,
guiando-os, examinando-os, e, acaso, elogiando-os até, por fim. Olha claramente
para o chão, avalia o espaço de que dispõe para o seu trabalho; nada disto
lhe parece poder perturbar a ilusão. (...)
O actor ocidental esforça-se por aproximar o espectador tanto quanto
possível dos acontecimentos que estão a ser representados e das personagens
que os estão a representar. (...) Procura meter-se na pele da personagem e
emprega toda a energia de que dispõe para se metamorfosear o mais
completamente possível num outro tipo humano. (...) Deixando subir a voz,
sustendo a respiração e contraindo simultaneamente os músculos do pescoço,
o que provoca uma afluência de sangue à cabeça, é fácil ao actor criar, em
si, um estado de cólera; o efeito de distanciação, porém, não se manifesta
nestas circunstâncias.
Por exemplo, se o actor, em determinado momento, mostrar, sem transição
de espécie alguma, uma palidez intensa na cara, palidez que provoca

256
A ristóteles e B recht

mecanicamente colocando a cara entre as mãos onde tem qualquer substância


branca de caracterização. E se o actor exibir, simultaneamente, uma aparente
serenidade, o seu estado de susto, proveniente desta ou daquela notícia ou
descoberta, provocará um efeito de distanciação. Esta maneira de representar
é mais sã e, a nosso parecer, mais digna de seres racionais, requer não só
muita psicologia e arte de viver, como também uma aguda compreensão do
que é, de facto, importante socialmente. Nela decorre, também, evidentemente,
um processo de criação, mas de uma forma superior, pois está elevado à
esfera do consciente. (Bertold Brecht 85,91-92,94,97-98,112)

5. Estamos agora em condições de compreender e sistematizar os pon-


tos mais importantes da proposta de Brecht. Usemos para isso o quadro
que ele próprio elaborou (23-4):

Um teatro de forma dramática Um teatro de forma épica


Activo Negativo
Faz participar o espectador numa acção cénica Torna o espectador uma testemunha mas
Consome-lhe a actividade Desperta-lhe a actividade
Proporciona-lhe sentimentos Exige-lhe decisões
Vivência Mundividência
O espectador é imiscuído em qualquer coisa O espectador é posto perante qualquer coisa
Sugestão Argumento
As sensações são conservadas como tal As sensações são elevadas ao nível de
conhecimento
O espectador está no centro, comparticipa dos O espectador está defronte, analisa
acontecimentos
Parte-se do princípio de que o homem é algo O homem é objecto de uma análise
já conhecido
O homem imutável O homem susceptível de ser modificado e de
modificar
Tensão em virtude do desenlace Tensão em virtude do decurso da acção
Uma cena em função da outra Cada cena em si e por si
Progressão Construção articulada
Acontecer rectilíneo Curvilíneo
Obrigatoriedade de uma evolução Saltos
O homem como algo fixo O homem como realidade em processo
O pensamento determina o ser O ser social determina o pensamento
Sentimento Razão

257
D rama e C omunicação

Não é necessário sublinhar o carácter racional deste esquema: numa


época em que os teatros eram dominados pelo sentimentalismo, Brecht
tinha a contrapor o marxismo, que os seus fundadores definiam como
“materialismo científico”, e também as lições de várias ciências humanas:
“A moderna psicologia, da psicanálise ao behaviorismo, proporciona-me
conhecimentos que me facilitam uma apreciação totalmente diversa do caso
em questão, muito especialmente se tomar em conta os dados da sociologia
e não desprezar a economia e a história. Dir-me-ão que o que proponho é
complicado, ao que não poderei responder senão afirmativamente. Talvez
acabem por se convencer e por concordar comigo que há uma boa porção
de literatura que é bastante primitiva, mas perguntem, ainda, profundamente
preocupados: ‘Uma noite de teatro não passará, então, a ser uma coisa
tremenda?’ A resposta é negativa. Tudo o que uma poesia contiver de carácter
científico tem de estar completamente transposto para o plano da poesia.”
(81-2).
É essa transposição que Brecht sabe fazer e que lhe assegura hoje um
lugar importante e vivo. Mesmo em termos teóricos, é talvez imprudente
reproduzir o esquema acima, que vem incluído num texto sobre a ópera
Grandeza e Decadência da Cidade de Mahagonny. O pensamento de Brecht
não é esquemático, está sempre em mudança pelo movimento do mundo
e pela própria experiência da sua prática cénica. Como ele próprio virá a
reconhecer, “Muitas vezes enfraquecemos as nossas próprias posições para
combater o nosso adversário e, para obter vantagens imediatas, privamos
a nossa causa das suas dimensões mais amplas e mais válidas” (apud
Benjamin, 1987:89). Escritos posteriores àquele pequeno esquema mostram
como se foi aproximando da ideia schilleriana do teatro como mediação
entre razão e sentimento, e foi assumindo que a interpelação da razão é
mais eficaz e profunda se for feita a alguém que sente (desde que se en-
contre maneiras de esse sentimento não o impedir de pensar):

Tanto a razão como o sentimento se encontram degenerados, numa época


como esta em que o capitalismo se aproxima do seu fim e em que ambos
chegaram a uma contradição estéril. Mas é em relação à nova classe em
ascensão e a todos que com ela lutam que vale nomear a razão e o sentimento,

258
A ristóteles e B recht

a razão e o sentimento numa grande e fecunda contradição. A nós os


sentimentos impelem-nos a uma mais extrema tensão e a razão purifica-nos
os sentimentos. (Bertold Brecht 86-87)

Vemos assim que Brecht não propõe, como muitas vezes erradamente
se divulgou ou praticou, a total renúncia ao sentimento: em 1955, Brecht
dizia que os sentimentos continuavam a ter o seu lugar no teatro, precisando:
“muitos antigos e alguns novos.” “Nem a participação afectiva do público
nem a dos actores devem ser impedidas. Nem a representação de sentimentos
ou a utilização de sentimentos pelo actor devem ser impedidas. Apenas
uma das fontes do sentimento, a identificação, não deve ser utilizada ou
então somente como fonte secundária” (apud Oliveira 84-5). É certo que a
identificação é muitas vezes o maior gerador de sentimento e de ligação
entre o espectador e o espectáculo, por via da personagem. Por isso mesmo
Brecht queria mantê-la secundarizada e sob controlo, mas não creio que
mesmo ela deva ser excluída, sobretudo se a interrupção e a montagem
forem compreendidas como essenciais ao processo brechtiano. É o próprio
Brecht que escreve (93): “Isto não significa, porém, que se renuncie à
empatia do espectador”. A interrupção terá maior efeito se o espectador
estiver emocionalmente ligado à acção e subitamente descobrir naquela
personagem ou naquela situação algo que precisa de ser pensado e que
nos interpela tanto mais quanto reconhecemos que estávamos, na ilusão, a
rir ou chorar sem problematizar. Como defendia Stendhal, os breves momentos
de ilusão perfeita são importantes mesmo se o quadro geral é o de um
espectador consciente de estar diante de uma representação. É, pois, uma
espécie de catarse interrompida, dupla, e é curioso como o termo “purificar”,
tão aristotélico, é usado, no trecho que citámos, para o assumido confronto
entre razão e sentimento.
De algum modo, se nos lembrarmos que a distância é um contínuo va-
riável, compreendemos que ela não implica o rompimento da relação
subjectiva, como em 1912 lembrava Bullough para toda a arte dramática,
mesmo não brechtiana.

A Distância (…) é obtida ao separar-se o objecto e a sua atracção do


próprio eu da pessoa, ao desengrená-lo das necessidades e finalidades práticas.

259
D rama e C omunicação

(…) Mas isso não quer dizer que a relação entre o eu e o objecto fique
rompida a ponto de tornar-se “impessoal”. (…) Pelo contrário, ela descreve
uma relação pessoal, amiúde com colaboração altamente emocional, mas de
carácter peculiar. A sua peculiaridade está em que o carácter pessoal da
relação foi, por assim dizer, filtrado. (…) Um dos exemplos mais conhecidos
encontra-se na nossa atitude com respeito aos eventos e personagens do
drama. (Edward Bullough, apud Langer 332)

6. Brecht explicitou melhor a parte de divertimento que defende para o


teatro quando explicou porque também chamou à sua proposta um “teatro
didáctico”. Ele evocou, a este respeito, as tendências didácticas dos misté-
rios medievais, do teatro clássico espanhol e do teatro jesuíta. Didáctico,
moral, mas não como em Nietzsche, para quem, escreve Brecht, “a preocu-
pação moral era algo melancólico”; tão pouco como em Schiller, porque
“não deve transportar ninguém, servindo-se do seu poder de sedução, da
esfera do quotidiano para outra ‘mais elevada’” (83). Há, porém, algo em
Schiller que agrada a Brecht: para ambos, o carácter didáctico pode ser
altamente recreativo. “Para Schiller, nada havia que fosse mais recreativo e
causasse maior satisfação do que propagar ideais.”

Há que defender o teatro épico contra qualquer possível suspeita de se


tratar de um teatro profundamente desagradável, tristonho e fatigante. O que
podemos dizer, é que a oposição entre aprender e divertir-se não é uma
oposição necessária por natureza, uma oposição que sempre existiu e sempre
terá de existir. (...)
Há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e combativa.
Não fora esta possibilidade de uma aprendizagem divertida, e o teatro, pese
a toda a sua estrutura, não seria capaz de ensinar. O teatro não deixa de ser
teatro, mesmo quando é didáctico; e, desde que seja bom teatro, diverte. (…)
Ao criticarmos o teatro adverso como um espectáculo meramente culinário,
damos talvez a impressão de que o nosso é inimigo de todo o prazer, como
se não pudéssemos conceber o processo de aprendizagem a que nos dedicamos
senão como uma fonte de desprazer. (…) No entanto, o processo de
conhecimento de que falamos é ele próprio agradável. O facto de que o

260
A ristóteles e B recht

homem pode ser conhecido de determinado modo engendra um sentimento


de triunfo, e também o facto de que ele não pode ser conhecido inteiramente,
nem definitivamente, mas é algo que não é facilmente esgotável, e contém
em si muitas possibilidades (daí a sua capacidade de desenvolvimento), é
um conhecimento agradável. O facto de que ele é modificável pelo seu
ambiente e de que pode modificar esse ambiente, isto é, agir sobre ele,
gerando consequências – tudo isso provoca um sentimento de prazer. O mesmo
não ocorre quando o homem é visto como algo de mecânico, substituível,
incapaz de resistência, o que hoje acontece devido a certas condições sociais.
O assombro, que devemos incluir na teoria aristotélica dos efeitos da tragédia,
deve ser visto como uma capacidade que pode ser aprendida. (Bertold Brecht
76-78 e apud Benjamin, 1987:89)

Por muito que aprender seja divertido, e aprender com Brecht possa
levar à gargalhada ou ao choro, ele próprio tem consciência de que “a maio-
ria das grandes nações não está disposta a debater os seus problemas num
palco. Londres, Paris, Tóquio e Roma reservam os seus teatros para fins
totalmente diversos. Até agora, apenas em raros sítios, e não por muito
tempo, as circunstâncias foram propícias ao desenvolvimento de um teatro
épico. Em Berlim, o fascismo pôs energicamente cobro ao desenvolvimen-
to desse teatro” (85). O teatro burguês é feito não tanto por um impulso
mas para uma função, e essa função é a do entretenimento ligeiro. Não é
o que Brecht pretende, e (como bem nota Benjamin), ao mesmo tempo que
vai criticar essa função, vai saber recuperar a ideia de diversão nocturna
tal como existia em formas de espectáculo de classes mais pobres, ou em
que a burguesia se misturava com a boémia, como o cabaret, as variedades,
mesmo o kitsch, porque, notou Benjamin (1987:87), eles iam além do verniz
superficial da arte burguesa, acompanhavam na “sua totalidade a experiên-
cia da vida”, muito mais do que acontecia no esquema apertado do teatro
burguês. Veremos que já vem de Nietzsche esta necessidade de sair da
cultura erudita para ganhar outra profundidade na arte.
As propostas de Brecht foram sendo retomadas de múltiplas maneiras,
mesmo, um pouco indirectamente, pelo Living Theater, criado em 1947 (e um
dos seus fundadores tinha frequentado as aulas de Piscator em Nova Iorque)

261
D rama e C omunicação

mas que se tornou famoso nos políticos anos 60, ao procurar compreender
e representar os mecanismos do “sistema” colectivo do Estado, e ao desafia-
rem o público a fazer a mesma aprendizagem: “não nos colocando para lá
do público, dizemos a esse público que ele pode também fazer a aprendiza-
gem desses mecanismos, como nós fazemos, e repeli-los” (in Barata 180).
Influenciou alguns dos maiores encenadores do nosso tempo, de Jean Vilar
a Giorgio Strehler. Em Portugal, quem mais continuadamente tem estudado
e dialogado com a estética brechtiana tem sido o encenador João Lourenço.

262
A ristóteles e B recht

Continuam hoje a fazer-se excelentes espectáculos brechtianos. Lamentável


é quando Brecht é invocado e imitado superficialmente por aqueles que
querem um teatro parado no tempo, ou querem uma receita clara e fácil
(julgam eles) para não terem de se entregar com mais generosidade e
poeticidade, essas que contribuem para que a clarividente obra de Brecht
esteja hoje tão viva. Compete-nos a nós, hoje, não encerrar Brecht em
fórmulas (nem sequer nas suas próprias, que há que reconhecer que foram
bastantes mas variadas, devido aos combates que ia travando) e recriá-lo
num tempo que é outro: “não já imitando as suas contribuições superficial
e parcialmente, mas sim adaptando-as criativamente às nossas circunstâncias
– tão distintas – de tempo e lugar” (Sinisterra 95). Por exemplo, se na época
de Brecht o teatro era dominado pelo sentimento e ele sentia necessidade
de dominar o sentimento pela razão, podem levantar-se fundadas dúvidas
sobre se, depois de um século XX tão racional e crítico, no meio de tanta
distância, o melhor princípio ainda será a distanciação brechtiana ou se
haverá que jogar de modos sempre novos com a interrupção e o des­
dobramento, com a razão e o sentimento. Podemos também perguntar‑nos
se ainda é necessário e vantajoso operar a separação segundo o esquema
de Brecht, em blocos (narrador, depois personagens, depois canção ou
narrador), quando a literatura e o próprio teatro caminharam para uma
muito maior maleabilidade na interpenetração entre discurso directo e
indirecto – aquilo a que os estudos literários chamam o discurso indirecto
livre. Nem faria sentido tratar Brecht de outra maneira senão com perspectiva.

263
(Página deixada propositadamente em branco)
9 . A lt e r n at i vas t e at r a i s ( e a n t i - t e at r a i s )

1. Contra a mimese e o racionalismo

Brecht achava importante repetir que o actor não deve querer ser ma-
caco nem papagaio. Repetia-o por estar tão enraizada (na época, mas
ainda hoje…) a associação do teatro por um lado à imitação do real e por
outro à transmissão do texto. Já em 1912, o lúcido Georg Simmel (1858‑1918)
escrevia um pequeno ensaio intitulado “O actor e a realidade”, que mantém
uma perturbante actualidade. Ali mostrou como o teatro tem dificuldade
em fazer reconhecer-se como arte própria devido às suas peculiares relações
com o real e com o texto. Ora, a história da prática e do pensamento das
artes cénicas durante sobretudo a primeira metade do século XX foi em
parte a reacção radical contra essas relações: com efeitos ainda hoje nas
práticas cénicas e no pensamento sobre elas (se hoje em dia há livro ou
exposição sobre artes cénicas, e não há muitos, é bastante mais provável
que abordem o dadaísmo ou Artaud ou o “teatro sem teatro” do que Stanislavski
ou Brook…). Vale a pena pensá-los, sabendo embora que, apesar de todas
as experiências alternativas ou mesmo anti-teatrais de que falaremos, e que
abalaram o teatro como instituição moral, à maneira de Schiller, as artes
cénicas, como toda a instituição-arte, se foram reinventando e resistindo.
Como bem lembra Alain Badiou (2007:22), “uma obra importante desloca
as fronteiras, mas não pode aboli-las”.
Deixaremos para o próximo capítulo a relação com o texto, que não diz
apenas respeito ao teatro alternativo. Centremo-nos por ora na questão da
mimese e noutra que servirá de bandeira a muitas das reacções vanguar-
D rama e C omunicação

distas, que é a do corpo. Mas então, no fundo, voltamos à velha querela


dos espectáculos, lembrar-se-á o leitor que leu o terceiro capítulo. Como
aí vimos, as suspeitas lançadas ao longo dos séculos contra o espectáculo
prendiam-se frequentemente com dois tipos de argumentos: a ilusão dra-
mática que faria perder o não filósofo nas armadilhas da mimese; e os
perigos da co-presença viva dos corpos emocionados e sexuados. As pro-
postas alternativas ao teatro instituído far-se-ão no século XX reformulando
estes dois topoi: pela negação da ideia de o teatro ser fundado no miméti-
co, o que é uma novidade em relação aos termos habituais da querela; e
ao mesmo tempo pelo reconhecimento da presença do corpo no teatro,
mas vista agora com sentido positivo. Comecemos pelo primeiro tema.
Escreveu Simmel (201): na “arte teatral, que apela mais do que qualquer
outra ao público imediato, na medida da sua democratização massificadora,
parece degradar-se em todo o lado a pauta valorativa desde o autenticamente
artístico até à imediatez da impressão natural”. Contra o naturalismo reagiram
os primeiros modernos (“Quem ousaria atribuir à arte a função estéril de
imitar a natureza?”, exclamava já Baudelaire), os simbolistas, os futuristas,
os dadaístas, os expressionistas. A arte responderia aos seus próprios critérios
e não aos da reprodução do natural. Os modernistas lutaram pela pureza
das disciplinas artísticas, pela necessidade de a pintura ser pictórica, a
escultura escultórica – e o teatro, teatral. “Reteatralizar o teatro” é em 1909
o slogan do alemão Georg Fuchs (1868-1949). E Vsevolod Meyerhold
(1874‑1940), no seu livro que em português se intitulou precisamente O Teatro
Teatral, procurou utilizar ao máximo as técnicas da cena para não depender
do discurso das personagens. (Que aos 66 anos Meyerhold, apesar de toda
a sua dedicação à revolução, tenha sido preso e executado quando o
estalinismo, ao defender o realismo, perseguiu as vanguardas, mostra
tragicamente a resistência de que falávamos à deslocação das fronteiras).
Se esta defesa de uma poética própria do palco faz lembrar os autores que
arrumámos no capítulo sobre a “obra de arte total”, a exigência modernista
de uma pureza de cada arte, e portanto de um teatro teatral, é contrária a
projectos fusionais ou sinestésicos, mesmo numa arte como o teatro, que
por definição tem de incluir várias linguagens; levará por exemplo Meyerhold

266
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

a rejeitar o projecto wagneriano de fusão das artes 1, dizendo mesmo, em


1913, que o pintor e o músico nada têm a ver com o dramático.
A crítica radical da noção de mimese estava já inscrita no pensamento
sobre o teatro que o wagneriano Friedrich Nietzsche (1844-1900) desenvol-
vera em 1871-72 e que estudaremos no capítulo sobre a tragédia. Ao centrar
a experiência teatral naquilo a que chama o dionisíaco (termo que vem do
deus Dionisos, do informe, da embriaguez, da música), Nietzsche ataca o
pensamento de Sócrates e Platão e, por arrastamento, a poética de Aristóteles.
Uma vez mais, Aristóteles é criticado injustamente. Nunca é demais lembrar
que a ideia de mimesis vem sempre a par com a de poiesis (de poieín, ac-
tuar, agir) no livro de Aristóteles, que aliás se chama justamente Poética;
além disso, a mimese poética “não é uma literal e passiva cópia da reali-
dade, uma vez que apreende o geral presente nos seres e nos eventos
particulares – e, por isso mesmo, a poesia se aparenta com a filosofia” (Silva
342). Mas os princípios de construção que a partir de Aristóteles ou em
nome dele foram erigidos como fundamento do teatro punham a ênfase na
referencialidade, na intriga e nas personagens. O que a partir de Nietzsche
alguns não param de tentar fundar é um pensamento não representativista
(contra o realismo ou, mais tarde, mesmo contra o simbolismo) e alguns
dos lugares mais naturais desse pensar são precisamente as vanguardas
teatrais, ou anti-teatrais, isto é, as que entendem o teatro com fundamento
dionisíaco, anti-racionalista, e querem “decifrar uma mítica linguagem tea-
tral, chame-se ela hieróglifo (Meyerhold), ideograma (Grotovski), ‘base
preexpressiva do actor’ (Barba)” – Pavis, 1997:19. Isto não se encontrava
em Brecht, que revolucionou o teatro e o modo de trabalhar a fábula sem
abrir mão da referencialidade: o seu teatro queria mudar a vida, e para isso
tinha de referir-se a ela. Mas as vanguardas de que agora vamos falar, com
a sua raiva antimimética, não querem um equilíbrio entre mimesis e poeisis,
querem pura e simplesmente conjurar a primeira, nem que seja por magia.
Nas propostas que adiante abordaremos, o palco é um lugar de criação,
frequentemente feérica, que não tem de ser um espelho do real: nem do

1Meyerhold que em 1909-10 tinha obtido a consagração junto do grande público precisamente
com uma encenação de Tristão e Isolda, de Wagner.

267
D rama e C omunicação

seu aspecto exterior nem sequer do interior das mentes como, impulsionado
pela psicologia e pela psicanálise, o realismo começava a fazer. Existe a
este respeito da interioridade psicológica uma certa ambiguidade dos
simbolistas, como já veremos; mas mesmo estes fazem coro na crítica à
insuficiência da lógica racional, que vem também dos autores que, contra
o pensamento sintomático de Freud, colocam o símbolo acima do conceito.
“Com pensadores como Jung, Kerenyi ou Eliade, liga-se o símbolo ao ‘esforço
para traduzir o que, na experiência intima da psyché ou no inconsciente
colectivo, ultrapassa os limites do conceito, escapa às categorias do
entendimento, aquilo que portanto não pode ser conhecido, no sentido
estrito, mas pode no entanto ser ‘pensado’, reconhecido através das formas
de expressão onde se inscreve a aspiração humana ao incondicionado, ao
absoluto, ao infinito, à totalidade, ou seja, para falar a linguagem da
fenomenologia religiosa, à abertura ao sagrado” ( J.-P. Vernant, apud Pavis,
1997:19). Uma parte deste anti-racionalismo vai de facto abrir para as
questões do sagrado, muitas vezes como fruto de uma certa má consciência
da antropologia ocidental face às idealizadas sociedades primitivas e de
uma procura da autenticidade perdida das relações humanas 2. Nem todo o
anti-racionalismo, porém, se relaciona com o sagrado.
José Guilherme Merquior (1981:186-188) mostrou muito bem como o
modernismo do início do século foi criador mas a ideologia modernista,
depois da 2ª guerra, foi repetitiva, dogmática e com grande carga ideológica.
Em alguns humanismos do nosso tempo, “o elemento irracionalista teria
sido por demais exagerado, teria sido finalmente hipostasiado, transformado
numa espécie de máquina de guerra contra uma visão mais racional e mais
objectiva dos fenómenos estéticos”. Apetece lembrar, a todos os que defendem
o irracionalismo da arte, a frase de Baudelaire (229) que me parece tão
pertinente, no seu ensaio sobre Wagner, contra os “que despem assim o
génio da sua racionalidade e lhe destinam uma função puramente instintiva

2Se formos, aliás, reler o já citado tratado indiano de Bharata (in Borie et al 37), reparamos
que também contém a ideia de mimese (“o teatro é a representação do mundo inteiro (…)
porque a imitação do mundo é uma regra do teatro”), mas que o seu conceito de imitação do
mundo inclui os deuses e os seus inimigos.

268
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

e por assim dizer vegetal.” Como adiante veremos, no diagnóstico que em


1925 Ortega y Gasset fez da arte moderna (cf. Monteiro:1996), o espírito
lúdico e formalista desliga-se da relação com o real, opõe-se mesmo a toda
a agitação do movimento social e político do século XIX , e nisto é
arquiconservador e com forte fundo elitista. Merquior (in Rebello 186-188),
salvaguardando embora que a autonomia da função estética está bem
estabelecida desde Kant e que não se pode submeter a estética aos diktats
de qualquer racionalidade, pergunta precisamente se acaso a teoria do teatro
contemporâneo “não se transformou em ponto alto de uma ideologia
modernista ou neo-modernista” francamente epigonal, enquanto grande
recusa dos tempos modernos: mística da hiperteatralidade, raiva antimimese
sob a forma logofágica, horror ao texto e a tudo o que releva da linguagem,
são elementos nada inocentes que merecem uma problematização crítica.

2. Ascensão e queda do corpo

Outra linha de força, ou de luta, que atravessa muitos dos movimentos


de que falaremos neste capítulo, e que tal como a anti-mimese irá desem-
bocar numa rejeição do logos e da palavra, tem a ver com o acentuar da
fisicalidade e a valorização do corpo. Pode estar ligada à revalorização do
sagrado, religioso ou pagão, através do retomar de práticas ritualizantes,
ou pode ter uma feição inteiramente profana. É uma tendência de toda a
sociedade, mas o teatro e as outras artes performativas constituem um
campo em que a presença viva do corpo é constitutiva e essencial. Por isso
desde os primeiros cristãos foram tão criticados: pela promiscuidade que
junta os corpos na assembleia teatral, pela atracção fulminante que os cor-
pos sobre o palco exercem sobre quem os vê e ouve – vimos já todos esses
argumentos, mas agora vão tomar sinal positivo.
Roland Barthes definia assim o prazer do espectáculo vivo: “no teatro,
estou mais perto da venustidade dos corpos, e gozo mais disso na medida
em que me seria sempre possível, nem que fosse por um acto de loucura,
de um happening, subir ao palco e tocar esses corpos, beijá-los, enquanto

269
D rama e C omunicação

que, no cinema, isso não é possível: e, por mais pueril que essa razão
possa parecer, estou convencido que para mim é muito importante”. Um
desejo que, em Barthes, não é diminuído, antes aumentado, pela moldura
do acto: “não gosto dos teatros que estabelecem uma comunicação, uma
confusão, uma indecisão entre a cena e a sala”. (1978b:124-125)
É certo que esses corpos em cena também são atravessados por um
desejo de linguagem. Por exemplo, o que acontece quando um actor ou
um cantor usam a voz? Há um processo de gestão da energia respiratória
que gera uma explosão sonora; mas ao mesmo tempo essa voz é suporte
da linguagem; tem pois um “estatuto ambivalente de força e de sentido, de
desejo e de discurso” (Bernard, 1976:359). O mesmo se poderia dizer do
bailarino quando dança. As manifestações intensivas do corpo metamorfo-
seiam-se em expressão ou metaforizam-se, mesmo quando estavam longe
de intenção mimética ou expressiva (cf. Febvre 47). Por isso Anne Ubersfeld
(166) diz que “o actor é o próprio lugar do equívoco da teatralidade”.
O corpo é semiotisado pelo performer ou por quem o vê e ouve mas pos-
sui também um lado pulsional que vai sendo revalorizado: é signo e
estímulo, é sentido e sensação.
No pensamento de Alain Badiou (2007:24), esta questão ultrapassa as
fronteiras da cena: “Eu resumi o que penso ser a ideologia dominante, hoje,
depois da morte de Deus, e na soberania abstracta do mercado, pela fór-
mula ‘não há senão corpos e linguagens’.” Mas o teatro coloca a questão
geral de modo especialmente exemplar e perturbador. “Eu creio”, continua
Badiou, “que há teatro a partir do momento em que há exposição pública
– com palco ou sem ele – de uma combinação desejada de corpos e lin-
guagens”; ele resulta da intersecção entre ambos. Ora, “o teatro sempre
oscilou entre dois extremos”: uma “tendência para a fusão colectiva cujo
paradigma, mais ou menos secreto, é a orgia. Do outro lado, a distância, a
passividade contemplativa do público que assiste, silencioso e cativo”.
É, “na linguagem dos autores românticos, o grotesco e o sublime”: “à ab-
jecção viva dos corpos que dançam, sexuados e provocantes, corresponde
dialecticamente o sublime dos corpos ornados, feitos estátua, rarefeitos.”
O corpo dionisíaco e o corpo apolíneo, se Badiou quisesse usar os termos
de Nietzsche.

270
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Não sabemos a que corpos Barthes refere o seu desejo de beijar, se ao


corpo orgíaco, se ao corpo estátua. Ambos despertam energias e pulsões.
O certo é que muitas revoluções teatrais já na segunda metade do século
XIX incluíam uma reivindicação da importância do corpo. Vimos atrás o
papel da fisicalidade em Wagner. No próprio naturalismo, de que pouco
falámos, há uma luta para “dar ao corpo o seu grande lugar, por amor da
verdade”, nas palavras de Émile Zola (1840-1907): Zola opõe-se ao teatro
da sua época, que “usa o homem psicológico, [mas] ignora o homem fisio-
lógico”, ou seja, que trabalha sobre um “homem convencional que foi
despojado do seu corpo” e em que portanto “assistimos apenas ao trabalho
de uma máquina intelectual, posta de parte, funcionando na abstracção”
(in Borie et al 354). Um encenador naturalista como o francês André Antoine
(1858-1943) insurge-se contra o facto de os actores da época usarem “dois
únicos instrumentos, a voz e a cara: o resto do corpo não participa na ac-
ção” (ibid. 367). Veremos no último capítulo como, na Rússia coeva,
Stanislavski criou um método baseado nas acções físicas, que os seus dis-
cípulos (como Meyerhold e Michael Tchékhov) desenvolveram por várias
vias. Na mesma transição do século XIX para o XX, Jarry (ibid. 363) insurge-
se: “O actor ‘mete na cabeça’ a personagem e deveria fazê-lo em todo o
corpo”. Nos anos 30 do século XX , Artaud sente o corpo como ponto de
partida e de ancoragem de todo o seu trabalho: foi dos mais veementes a
erigir, não apenas, como Wagner, o performer, mas o corpo do performer, em
bandeira de um novo teatro total, “um teatro que em cada representação faça
ganhar corporalmente qualquer coisa, tanto àquele que representa como
àquele que vem ver representar; aliás, não se representa, age-se.” E na segun-
da metade do século XX , com a abolição das fronteiras que erigiam a
transcendência do palco, com a deslocalização do corpo dos performers
que podem movimentar-se entre os espectadores, com os happenings, as
performances e o acentuar do aspecto performativo mesmo quando não
são performances no sentido estrito (e até por vezes com as novas tecno-
logias), vai acentuar-se o paradigma da orgia e, a nível do pensamento,
como adiante já veremos, uma tendência vitalista, que radica no corpo para
pensar a performance como puro devir permanente, oposto à mimese, à
representação ou à reflexão.

271
D rama e C omunicação

Os anos 60, como já vimos, foram talvez a década que mais perto este-
ve da vitalidade orgíaca, ou em que ela culminou. Foi, diz Blau, uma “era
paradisíaca para o ‘corpo hipocondríaco’, ‘o corpo esquizóide’, ‘o corpo
drogado’, ‘o corpo masoquista’” (conceitos de Deleuze e Guattari). Uma
mística participatória da proximidade, Woodstock e outros festivais, o Living
Theatre circulando pela América e Europa cada vez mais despido e na rua,
a psicofísica de Grotowski, Dionysus in ’69 na Performance Garage de
Richard Schechner: esse que mais tarde criou os Performance Studies, por-
que todos estes movimentos, com “a porta fora dos seus gonzos” (Deleuze,
parafraseando Shakespeare), possibilitaram e deram o tom a um pensamen-
to novo, “como se Deleuze tivesse perdido um parafuso” (Blau 2009:30-31).
Essa importância do corpo acabou por ser admitida na academia, continua
Blau (2009:31), nas décadas que se foram sucedendo depois da de 60: “foi
um discurso sobre o corpo, o corpo que tudo sabe, que trouxe a performance
à teoria, mas cada vez mais ideologizado, com deferência em relação ao
sexo e ao género, raça, classe, etnicidade.” Ora, como nota José Gil (1980:7),
existe aqui a possibilidade de “uma violência real exercida sobre o corpo:
quanto mais sobre ele se fala, menos ele existe por si próprio.” A esse corpo
tantas vezes neutralizado ou domesticado na teoria, corresponde aliás,
também em termos de práticas sociais, a partir dos anos 80, um corpo
tratado em termos cada vez mais apolíneos do que dionisíacos, quando se
desenvolve a “somatização da sociedade”, para usar uma expressão de Bryan
S. Turner (apud Raposo 125). Há o declínio das concepções sagradas do
corpo, que se torna, nos sistemas sociais contemporâneos, um importante
campo de actividade política e cultural secularizada, praticada em dietas,
health-clubs, cirurgias plásticas e manipulações genéticas.
“Espectacularizado de todas as maneiras pela cultura dominante dos
media ao longo das últimas décadas”, escreve Maria Teresa Cruz (364),
“o corpo subiu pois aos palcos mais recentes da cultura erudita sem ter
afinal muito mais para mostrar” (a não ser, por vezes, “deformações, con-
taminações, amputações, próteses, transmutações, e ainda, imaterializações,
animações e fantasmizações”), deste modo “não lhe sendo também já pos-
sível ressuscitar o escândalo da sua exibição, de que parece sobrar quando
muito o escândalo de uma exibição teórica do corpo.” Isto prende-se com

272
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

a anterior questão da mimese, porque, em vez de o corpo ser o lugar por


excelência da afirmação do real e da nossa relação próxima e indesmentí-
vel com o mundo, a teorização sobre o corpo levou a uma teorização do
próprio corpo: “a ideia de que o corpo é uma invenção, uma figura, uma
abstracção, composta por um conjunto de atributos, aliás tão ‘incorporais’
quanto materiais: de género (feminino, masculino), de espécie (racional),
políticos (livre, soberano), etc.” No meio de “um adormecimento ou entor-
pecimento generalizados”, “ditos como o do artista Stelarc, ‘O corpo está
obsoleto’, ecoaram transversalmente por entre os discursos de filósofos,
intelectuais e artistas” (ibid. 364-365).

O corpo é assim aquilo que inventámos para a relação (a lei, o contrato,


a linguagem, a troca) e para nos abrigar da afecção, dessa experiência que
precisamente escapa à relação (a qual implica sempre distância), impondo a
proximidade radical do contacto, do toque, ou mesmo do choque. (…) De
entre todas as dimensões modernas do corpo, a dimensão estética é aquela
que muito especificamente gere a distância à afecção, tendo servido pois
para reunir um conjunto de saberes e de produtividades que a literatura, as
artes e hoje também a técnica e os media exercem com perícia: a gestão do
nosso ‘coeficiente de fricção’ com o mundo (como dizia Duchamp), estimulando
e anestesiando, aquecendo e arrefecendo os corpos. (Maria Teresa Cruz 364‑5)

A esta nova tendência da cultura e mesmo da sociedade em geral, como


reage a família das artes cénicas, que se distinguem justamente de todas as
outras pela presença viva dos corpos, não abstractos, próximos, portadores e
criadores da tão temida afecção? Veremos ainda neste capítulo como se pode
procurar fugir ao corpo orgânico na teoria da cena – mas não na sua prática.

3. Movimentos: do simbolismo à improvisação

Não nos apressemos, porém, a chegar ao século XXI , quando, para o


compreender, iremos ainda passar por uma série de movimentos do século
XX . Ou mesmo do final do século XIX , porque esta sintética viagem pelos

273
D rama e C omunicação

movimentos alternativos que, saturados da tradição (literária e teatral) da


pièce bien faite, intriga bem urdida, diálogos espirituosos ou psicológicos,
mais radicalmente vão pôr em causa as próprias ideias de teatro e de mi-
mese, esta viagem, dizia, vamos iniciá-la no movimento simbolista, que
ganhou força na chamada Belle Époque, ou seja, a partir dos anos 70 do
século XIX até à 1ª guerra mundial. Nesse período, como explica Eugénia
Vasques (2003:116 e 2008b:1), “a vida em si é considerada já uma espécie
de teatro ou mesmo de circo (…), sendo o teatro, sobretudo nas primeiras
manifestações, nos primeiros ‘manifestos’ (Maeterlinck, Gustave Kahn),
considerado um género inferior para gente inferior (Mallarmé) pois só teria
necessidade do teatro quem não conseguisse perceber as coisas por si mes-
mo e precisasse de ‘explicação’”: “o teatro era um lugar onde se explicavam
textos a quem não os sabia entender de outro modo”.
O simbolismo foi essencialmente um movimento de poetas. Mas poetas
de um novo tipo. A própria música não foi considerada uma arte exterior
com quem o texto se deveria articular: foi o próprio texto que se “musica-
lisou”. Como diz o famoso verso de Paul Verlaine (1844-1896): “de la
musique avant toute chose”, a música antes de qualquer outra coisa…
O drama poético (ou lírico) dos simbolistas recebe aliás grande influência
“das formas musicais da ópera, do oratório, da cantata e do dramma lirico
italiano”, embora depois se desprenda do ascendente musical (Pavis,
1996:109). Quando estes poetas abordam a cena, mesmo nos nomes dos
muitos teatros que criam se vê a preponderância da literatura: só em Paris,
capital do movimento, temos, entre muitos outros, o Théâtre de l’Oeuvre,
Théâtre des Poètes, Le Cercle des Écoliers, Théâtre des Lettres, Théâtre de
la Société Artistique et Littéraire.
E o que procuram no palco? Algo ali os interessa e atrai, mas de forma
muito contraditória. Por um lado, querem desmaterializar a cena, consideram
a “palavra poética” como único meio de pôr os espectadores em contacto
com o mundo das essências: “seria a imaginação e a capacidade de sonho
do espectador que se deveriam responsabilizar pela encenação (do/s
sentido/s); a encenação deveria, portanto, renunciar às tecnologias e ma-
quinarias, que a descoberta da electricidade potenciava, a fim de que ela
não se tornasse um obstáculo visual e ilusionista à comunhão poética que
o espectáculo deveria estabelecer com o espectador” (Vasques, 2008b).

274
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Alguns simbolistas, como Mallarmé, não cedem a ninguém o lugar na cena,


para que o próprio poeta transmita directamente o poema; outros admitem
o actor mas de forma muito controlada e anti-realista, como adiante vere-
mos, estático e com a dicção própria dos escritores. Por outro lado, também
há entre os simbolistas a vontade de encontrar equivalentes físicos para a
expressão verbal, com a colaboração de pintores e músicos, de modo a que
as próprias atmosferas cénicas consigam sugerir, psicologicamente, os es-
tados de alma e as contradições do inconsciente: penumbra, portas e
janelas que sobre ela abrem, a nova iluminação eléctrica permitindo jogos
de luzes e sombras. A peça de Tchékhov A Gaivota, em que um jovem
escritor quer montar, numa cena posta no jardim, uma peça de novo tipo,
difícil de aceitar por todos e até por ele próprio, é uma “reflexão intensís-
sima sobre o embate epocal entre Naturalistas e Simbolistas” (Vasques,
2008b) e sobre as hesitações dos próprios simbolistas…
De qualquer modo, no simbolismo ainda sobrevivem com alguma
importância as ideias de texto, de sinestesia (há peças sobre cores, sobre
música, sobre perfumes) e de psicologia, que já veremos ser sacudidas por
movimentos posteriores. Se não se trata de dar o retrato copiado da realidade
externa, a poesis procurará evocar uma realidade escondida e subjectiva:
não tanto a subjectividade do coração, mais a do inconsciente e do sonho,
mais a sugestão do que a emoção. Mesmo entre os poetas, trata-se de sugerir
através das palavras sem nomear objectivamente os elementos da realidade.
Sublinhemos para já que a aproximação que os simbolistas desenvolvem
entre o lírico e o dramático (que já vimos iniciada em Tchéchov) provoca
uma desestruturação da forma dramática. Pelas implicações que tem sobre
o género, é fundamental considerar a obra do poeta belga Maurice Maeterlinck
(1862-1949), a quem o pintor Kandinsky virá a atribuir o acto fundador do
teatro do futuro, um teatro que lograria transitar do mundo material para
o espiritual. Em 1906, Maeterlinck publica um texto programático intitulado
“O trágico quotidiano”, que à tradição aristotélica e naturalista dos “diálogos
úteis”, externos, que acompanham e explicam as acções, contrapõe o “diálogo
inútil” ou “de segundo grau”, que fala directamente às almas, como nas
peças de Ibsen (talvez o dramaturgo mais encenado pelos simbolistas, além
de Maeterlinck). As palavras e poemas do texto teatral têm um valor em si,

275
D rama e C omunicação

rítmico e musical, e não em função de uma estrutura dramática claramente


desenhada; a única função da intriga é proporcionar ocasiões para as
estâncias líricas. O “teatro estático” assim proposto vai ter grande influência
na produção poética e dramática do fim do século XIX e inícios do século
XX : além de Strindberg, que já estudámos e tem pontos de contacto com
esta proposta, leia-se Hofmannstahl, Rilke, Trakl, D’Annunzio. Em 1913
(antes de se concentrar no espectáculo heteronímico), Fernando Pessoa
comparou-se com Maeterlinck e disse que ia fazer muito melhor: em dois
dias escreveu o “drama estático” O Marinheiro.
O poeta simbolista Pierre Quillard publicou, em 1891, o manifesto
“Da absoluta inutilidade da encenação exacta”, onde defendia que o uni-
verso da peça deveria ser sugerido por cores, linhas e palavras, mas nunca
por uma cenografia mimética. Cinco anos depois, e com evidente influência
desse texto mas um desenvolvimento mais complexo, surgem os primeiros
manifestos de Alfred Jarry (1873-1907), um ex-aluno de Bergson, com
23 anos: “Da inutilidade do teatro no teatro” e “Doze argumentos de teatro”.
Como os simbolistas, Jarry desconfia da narração, porque a intriga deve ser
elementar, mero pretexto para a afirmação de outros elementos. Elege a
dramaturgia de Maeterlinck como a forma de teatro que vem actualizar as
peças de Ésquilo ou do teatro isabelino, o seu terror e piedade trágicos,
através do silêncio.
Jarry acredita na especificidade da arte dramática: desconfia mesmo da
confusão de géneros. Mas defende um teatro despojado de quase todos os
seus elementos habituais. Dedicado à experimentação (que designa por
théâtres à côté, teatros ao lado, que define como “amadores”, “teatros regu-
lares do pequeno número”, da minoria que se quer opor aos consumidores
burgueses, o “grande número”), Jarry propõe-se eliminar o cenário (e o
actor, como veremos), defende uma cenografia rudimentar, abstracta, capaz
de permitir, não à multidão, mas a cada espectador, uma visão pessoal da
obra. Faz mesmo a apologia do teatro com cenários naturais, ao ar livre,
no campo, com lugares ao sol gratuitos e estrados fáceis de montar.
Jarry acredita que está a surgir um novo teatro, um teatro abstracto, que
há-de ser tão eterno como o de Shakespeare ou Goethe. A esse teatro só
falta uma comédia: mas eis que Jarry propõe a montagem de “uma coisa”

276
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

com efeito cómico assegurado: a peça que ainda hoje é retomada, Rei Ubu,
apresentada em 1896 (só por um dia, tal o escândalo, mas retomada no ano
seguinte). E Jarry sabe como quer que seja montada: a personagem princi-
pal deve usar máscara; um cenário único; as cenas de multidão substituídas
por uma só figura; anacronismo dos figurinos, etc.
Alguns destes elementos, mas também muitos outros que não param de
constituir ainda hoje inspiração para artistas dos mais variados campos,
podemos encontrá-los no futurismo. Surge oficialmente em 1909, com a
publicação do Manifesto Futurista do poeta italiano Filippo Marinetti no
jornal francês Le Figaro (que no mesmo ano é traduzido no Diário dos
Açores…). É um movimento claramente ligado ao espectáculo, em que a
própria vida pessoal, quase sem fronteiras com a vida artística, é dada em
show: “Tudo o que tenha algum valor significativo é teatral” (apud Lista
1973: 258). Mas não deixa de sublinhar que, “entre todas as formas literárias,
a que tem um alcance futurista mais poderoso é certamente a obra teatral”
(Marinetti, logo em 1911, in Lista, 1973: 247).
Lutam também contra o teatro naturalista, que consideram um diverti-
mento acéfalo, industrial e sentimentalista, um dos grandes responsáveis
pela “frouxidão” do povo italiano: há que fugir do “espectáculo inevitavel-
mente piedoso da mãe cujo filho morreu ou da rapariga que não pode
casar com o seu amado”. Querem pôr as artes cénicas em conexão com as
necessidades dos tempos modernos, como a força, a agressividade, a velo-
cidade, a simultaneidade, fazem hinos à guerra, aos transportes, às grandes
metrópoles, à ciência (leia-se o poema “Ode Marítima” de Álvaro de Campos,
que Sá-Carneiro considerou uma “obra prima do futurismo”). Sentem-se por
isso muito mais perto do teatro marginal. Marinetti escreve em 1913 no
manifesto “O Music-Hall” (que Craig quatro meses depois traduz e comen-
ta na sua revista The Mask): “o music-hall, consequência da electricidade,
nascido de algum modo connosco, não tem felizmente tradição, nem mes-
tres, nem dogmas, e alimenta-se da actualidade veloz”; “é uma escola de
subtileza, de complicação e de síntese cerebral”, de plágio e de paródia (in
Lista, 1973: 249,251-252). No mesmo ano, escreve também que “O vaude-
ville, através da sua constituição intrínseca, impõe ao actor uma fala rápida,
não envolvida, ágil, moderna, excluindo absolutamente: tons graves, a pau-

277
D rama e C omunicação

sa sábia, o burilar cuidadoso e todas as outras lentidões pedantes que pelo


contrário assentam como uma luva no dramaturgo norueguês” (Ibsen, que
passa de adorado pelos simbolistas a alvo fácil dos futuristas).
Foram múltiplos os manifestos futuristas, mas não foi menor a passagem
ao acto das suas ideias. As serate foram encontros públicos onde a apre-
sentação de poesia, de pintura, de música, de ópera, de dança, se juntava
a intensa propaganda estética e a confrontos verbais e físicos, porque os
espectadores se manifestavam ruidosamente e eram a isso incentivados
pelos próprios artistas, já que os futuristas proclamaram a queda da quarta
parede. Não se tratou, porém, de uma amálgama eclética ou fantochada
sem rumo. Vejamos com trataram conscientemente de quebrar os preceitos
dramatúrgicos tradicionais de texto, de tempo, de narratividade e até de
relação com o corpo. Levaram as palavras para fora dos seus limites, escre-
vendo por vezes textos não apenas com onomatopeias e glossolálias, mas
mesmo com poucas palavras inteligíveis. Exploraram a simultaneidade, com
acções totalmente díspares e desconexas a decorrerem ao mesmo tempo
no mesmo palco, rompendo assim com a principal das três unidades, a de
acção. A ideia de narrativa foi também desconstruída em peças com se-
quência ilógica, não armadas segundo a razão ou qualquer sistema
filosófico ou intuitivo.
Em 1915, o manifesto sobre o teatro sintético considerou a dramaturgia
tradicional excessivamente prolixa e assentando numa gigantesca perífrase
literária: para quê contar a história de Otelo em três horas, se se pode
contá-la em três minutos? Marinetti foi amigo de Meyerhold, visitou-o na
Rússia em 1914 e, confrontado com um grupo de estudantes de teatro,
prescreveu-lhes: “é estúpido escrever cem páginas quando uma bastaria”.
“Tristão e Isolda retardam o seu espasmo para excitar o rei Marco. Conta­
‑gotas do amor”, escreveu Marinetti em “Abaixo o Tango e Parsifal”, de 1914
(in Lista 352); embora por outro lado defendesse wagneriamente um “Teatro
total para as massas” (manifesto de 1933): “sintético, polisensacional, simul-
tâneo, poli-cénico, aéreo-pictórico, aéreo-poético, cinematográfico,
radiofónico, olfactivo, táctil, ruidista” (in Lista 285).
Marinetti desenvolveu ainda a questão do corpo: em 1915 escreveu pe-
ças mais longas, mas em que só era mostrada uma parte do corpo dos

278
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

actores: os pés (Le Basi) ou as mãos que se apertam, se juntam em oração,


arranham, escrevem (Le Mani).
Craig foi inspiração para os cenários em movimento que Prampolini
concebeu para as peças futuristas, com tubos de néon, luzes e cores elec-
tromagnéticas, combinações de fluorina e outros gases. E os futuristas
ampliaram o espectro de sons tradicional, com a inclusão do que o con-
ceito de música chamava “ruídos”, para introduzir na música (como estava
a suceder também no cinema) os sons violentos da guerra e das grandes
cidades, com as suas explosões, o trânsito ruidoso, a cacofonia verbal.
Construíram mesmo para esse efeito máquinas, os Intonarumori (que en-
toam ruídos), com um sistema de notação respectivo, que por um lado
produziam sons da natureza (trovões, gritos, assobios, choros, murmúrios)
e por outro, já libertos da mimese, criavam sons nunca ouvidos; chegaram
mesmo a teorizar a música electrónica.
Muitos elementos futuristas podem ser encontrados no movimento Dada,
embora com metodologia mais caótica, ou mesmo com recusa de toda a
metodologia e racionalismo, de qualquer tipo de equilíbrio, combinando
um pessimismo irónico e uma ingenuidade radical, cepticismo absoluto e
improvisação: estava-se em plena guerra mundial, havia que desertar,
denunciar, escandalizar, sublinhar o ilógico e o absurdo. Um grupo de
escritores e artistas plásticos fundou em Zurique, em 1916, o Cabaret Voltaire
(de novo a valorização do cabaret). “O teatro está a morrer. Aquilo que é
eléctrico prospera.” Os espectáculos dada, que rapidamente alastraram a
várias cidades europeias e americanas, misturavam manifestos, sketches,
peças de teatro, peças de música; incluíam insultos ao público, que lançava
impropérios e projécteis. Depois da guerra, um dos líderes do movimento,
Tristan Tzara, vai viver para Paris, onde os Dadas se combinam com o
nascente surrealismo, embora este seja mais politizado e com mais raízes
no simbolismo.
Mas continuemos no início do século XX, agora noutra geografia. Vsevolod
Meyerhold começa por ser um dos principais actores do Teatro de Arte de
Moscovo. Poucos anos depois, desentende-se com Stanislavski e segue
outro caminho. Defende o lema “no teatro como no teatro”, contrário ao
“no teatro como na vida” de Stanislavski. Meyerhold cria então, em 1902,

279
D rama e C omunicação

na província, um teatro “impressionista”, capaz “de exprimir os mistérios


eternos, o sentido da nossa era” (duas ambições grandiosas e algo contra-
ditórias) por oposição ao teatro psicologista de Stanislavski. Um teatro
apresentacional, que privilegia o olhar e o movimento, contra o teatro re-
presentacional, que dava mais importância ao sentimento, rompendo assim
com a mimese mesmo da vida interior, tal como a procurava Stanislavski.
Ainda assim, em 1905 este chama Meyerhold para dirigir consigo um teatro
experimental. Meyerhold aceita e encena logo uma peça de Maeterlinck:
privilegia como os simbolistas a colaboração empenhada dos poetas e o
seu teatro experimental procura textos pouco ou nada representados, mes-
mo “textos irrepresentáveis”.
No seu primeiro livro teórico, de 1913 (que reúne vários artigos, um
deles, extenso, sobre a sua encenação de Tristão e Isolda de Wagner),
Meyerhold defende o princípio do grotesco como linguagem cénica. Nunca
cita Victor Hugo, mas o que propõe lembra a sua estética do heterogéneo
e a sua defesa do grotesco, que seria, para o encenador russo, já a afastar­
‑se do simbolismo, “a segunda etapa da via da estilização do teatro, um
procedimento já não analítico, aquele que visava o pormenor, mas sintéti-
co, pois o que se visa, agora, é a plenitude da vida. Seria a superação e a
negação da estilização (simbolista) e conteria em si (…) o sublime e o
horrível.” (Vasques, 2003:108-109)
No mesmo ano em que publica o livro, Meyerhold entra numa nova fase
de investigação, sobre o teatro de raiz popular e a commedia dell’arte.
Note-se que dois dos artigos do livro também tinham sido sobre os teatros
das barracas de feira, que já no século XVIII parodiavam as tragédias clássicas.
Na primeira metade do século XX muitos redescobriram o interesse de
espectáculos tidos como marginais: circo, fantoches, teatro de feira, formas
populares do teatro musical. Vimos esse fascínio e aproveitamento já em
Piscator e em Brecht. Escreve também Craig nas suas memórias (1962:116‑7)
que aos 17 anos (em 1889) se tornou um adepto fervoroso do music-hall
pela “sua chama e o seu brilho, a sua música e a sua dança, a sua diversidade,
esta espécie de vertigem que o animava e a corrente subterrânea que o
percorria”, “talvez perigosa”, “e sobretudo o ritmo, omnipresente na música,
o balancear dos braços, a mímica, os botões dos fatos, a inclinação do

280
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

chapéu de coco, sem falar desse delicioso vocabulário, cheio de cómico e


de verve”: “como muitos de nós, sem qualquer dúvida, eu sentia que o
tumulto deste espectáculo carregava uma mistura de vulgaridade e de
grandeza que o teatro circunspecto e pretensamente legítimo começava a
temer”. Vimos também com que argumentos Marinetti, amigo de Meyerhold,
defendeu em 1913 o teatro de vaudeville e como o movimento Dada começou
num cabaret de Zurique. Herdando de Maeterlinck e Craig, Meyerhold
desenvolve a ideia de um “teatro de máscaras”, baseado nos “princípios da
barraca de feira”.
Temos, pois, que considerar mais fases no percurso de Meyerhold.
De 1913 a 1917 vai integrar-se no movimento construtivista, e depois da
revolução de Outubro desenvolve a partir da ideologia bolchevista uma
nova técnica para o actor, a biomecânica: uma técnica complexa de execu-
ção instantânea de tarefas ditadas exteriormente, oposta ao método
introspectivo de Stanislavski. Com Meyerhold, “o teatro deixa de subordinar
a passagem da ideia a uma meditação representativa. A via está aberta para
os exercícios performativos” (Badiou, 2007:24).
Em vários aspectos se vê como Meyerhold se liga à utopia de um teatro
de massas, longe do esteticismo. Suprime totalmente o pano de boca e os
bastidores, adopta cenários neutros, praticamente inexistentes, e aproxima
o palco da sala. Quando ainda se situava no quadro do simbolismo, parti-
cipava nas “Quartas-feiras” de Vyacheslav Ivanov, em que não havia
separação entre actores e espectadores, todos participando numa liturgia
ritual: o palco “teria uma situação diferente em cada dia e dele sairiam os
actores para se misturarem com o público ao qual distribuiriam vestes e
máscaras, juntando-se, por fim, todos os participantes numa imensa impro-
visação comunitária” (Vasques, 2003:101). No quadro da revolução, Meyerhold
defende mesmo que o público deve poder interromper a acção cénica para
criticar as posições das personagens. “Ao apresentar a performance como
um acto de criação colectiva, Meyerhold marcava uma ruptura com uma
concepção tradicional do teatro e dos seus poderes, fundada sobre os ca-
racteres formais da representação. Sabe-se que convidou por vezes o
público a exprimir-se directamente”, não só na teoria mas em pelo menos
dois espectáculos que encenou (During 25). Meyerhold quer mostrar arti-

281
D rama e C omunicação

ficialmente o presente como acção. Mas esse “presente activo pode ser
tanto o do corpo, crucificado, da mística dialéctica (o sublime e a abjecção)
como o da dialéctica das escolhas, da encenação organizada das condições
que envolvem o absoluto presente de uma decisão. Artaud e Brecht, com
efeito, indicam duas maneiras de ser fiel ao ‘acontecimento’ Meyerhold”
(Badiou, 2007:24).
Falaremos detidamente de Antonin Artaud (1896-1948) no capítulo 11. Para
já, importa referi-lo como mais um opositor do naturalismo, que quer recupe-
rar domínios esquecidos do teatro: o metafísico, o cosmológico, o sagrado.
É, como mostra Monique Borie (1989:22-25), “uma lógica implicando ao mes-
mo tempo uma visão diferente do mundo, uma outra representação da pessoa
e do corpo e uma outra prática da linguagem”. Quer fundar ou refundar
“a ideia de um teatro que seria acto, um acto carregado de toda a sua força
operatória.” Artaud foi o primeiro a formular em toda a sua radicalidade o que
vários outros depois vêm perseguindo até hoje: a “questão da eficácia, da
força dos signos no teatro”, “a redefinição da linguagem teatral pelo retomar
da posse das energias perdidas dos antigos signos”: “o signo é uma presença
que age, mobilizando forças reais”, porque “um gesto que vemos e que o es-
pírito reconstrói em imagens tem tanto valor como um gesto que fazemos”.
Artaud chamou em 1938 ao seu projecto “teatro da crueldade”: um tema,
note-se, que já encontramos, por exemplo, no diálogo de Hamlet com a mãe
(“Tenho de ser cruel para ser bom”), e que Nietzsche lançara em Para além
do Bem e do Mal, quando, nos parágrafos 229 e 230, diz que tudo no ho-
mem, incluindo o esforço do conhecimento, passa pela crueldade, exercida
sobre o outro ou sobre si próprio. Crueldade, em Artaud, tem o sentido de
radicalidade e rigor: não confundir com a dilaceração física do corpo, tal
como foi explorada, em seu nome, na Body Art de Gina Pane, por exemplo.
O melhor é ler o próprio Artaud, para quem:

Sem um elemento de crueldade como fundamento do espectáculo, não é


possível haver teatro. No estado de degenerescência em que nos encontramos,
é através da pele que se fará penetrar de novo a metafísica nos espíritos. (...)
O teatro não poderá voltar a ser ele próprio, quer dizer, constituir um
meio de ilusão verdadeira, a menos que proporcione ao espectador precipitados

282
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

verídicos de sonhos, em que o seu apreço pelo crime, as suas obsessões


eróticas, a sua selvajaria, as suas quimeras, o seu sentido utópico da vida e
das coisas, o seu canibalismo até, transbordem, num plano que não é suposto
nem ilusório, mas interior.
Por outros termos, o teatro deve empenhar-se, por todos os meios, em repor
em causa não só os aspectos do mundo objectivo e descritivo externo, mas os
do mundo interno, quer dizer, do homem considerado metafisicamente. (...)
Esta crueldade, que será sangrenta quando necessário, mas que, de forma
alguma, o será sistematicamente, pode ser, assim, identificada como uma
espécie de pureza moral severa que não receia dar à vida o preço que ela
exige. (...) O Teatro da Crueldade escolherá assuntos e temas que correspondam
à agitação e ao desassossego característicos da nossa época. (...)
Enquanto, no teatro digestivo de hoje em dia, os nervos, quer dizer, uma
determinada sensibilidade fisiológica, são deliberadamente postos de lado,
entregues à anarquia individual do espectador, o Teatro da Crueldade tenciona
restabelecer todos os processos mágicos, já de uso comprovado pelo tempo,
para cativar a sensibilidade. (Antonin Artaud (1996:96,90)

No seu teatro da crueldade Artaud foi percursor da prática e da teoria


da performance art, que, a partir dos anos 60, acentuará a procura de
alternativas cénicas ao pensamento representativista (seja ele realista ou
simbólico) e dualista (realidade versus representação), defendendo a pre-
sença. É um projecto difícil, na era do simulacro e da cópia (da ausência)
e na área do espectáculo. E é um projecto arriscado, porque procura rede-
finir o teatro mas também as outras artes, a própria arte, a própria cultura.

É da essência do próprio acontecimento ser ao mesmo tempo o que causa


irrupções, e o que não existe e não organiza os temas, senão sob a forma
de rastos pouco legíveis. Poderia dizer-se que a performance se encontra
exactamente entre a força activa do que surge e a sua disseminação enigmática.
(Alain Badiou, 2007:26)

Se pensarmos que um conjunto teórico hoje central nas teorias da co-


municação, conhecido como teoria dos actos da fala (vide J. L. Austin e J.

283
D rama e C omunicação

Searle) sublinha que não existe apenas a função referencial, mas também
a função performativa, compreendemos que a cultura contemporânea tem
produzido contextos que favorecem a abordagem da performance. Também
a crescente importância dada ao jogo, não apenas no sentido lúdico mas
também no de jogos de linguagem (a partir de Wittgenstein) vem como que
abrir certos espartilhos do conceito dramático tradicional, a favor de inte-
ractividade que será explorada pelo happening, mas também por algumas
novas formas de teatro (com limites que seria interessante estudar: até onde
pode ir a participação activa do espectador?).
Vimos que as últimas décadas têm também revelado o corpo como a maior
caixa de surpresas de uma sociedade que parece querer emancipar-se do
logocentrismo – e não residirá no corpo, hoje, o ponto fulcral da criação
cénica, como Artaud antecipou e as teorias de um corpo abstractizado não
conseguem abolir? Ora, o espectáculo da performance centra-se sempre na
presença dos corpos: podem ser dois corpos sentados a uma grande mesa,
mas podem ser também corpos em risco, seja nas coreografias de Wim
Wanderkouybos, seja quando Joseph Beuys convive uma semana numa galeria
de arte com um coiote, seja nas perfurações de Gina Paine, seja nas cirurgias
plásticas de Orlan. “A novidade reside no facto de que se operou uma transição
do sofrimento representado para um sofrimento vivido na representação: acções
corporais esgotantes e arriscadas em cena (Lala la Human Steps); provas
físicas de disciplina paramilitar (em muitos teatros dansados, em Einar Schleef);
masoquismo (La Fura dels Baus); provocação ética pelo jogo com ficção ou
realidade da crueldade ( Jan Fabre); exibição de corpos doentes e alterados”
(Lehmann 270). Frequentemente, a utilização arriscada, perigosa, do corpo
surge mesmo como a legitimação possível e necessária da sua ficção 3 .

3 Como escreve Erika Fischer-Lichte (162,166-167), “o testemunho apresentado – os corpos


activos e em sofrimento dos performers – pode, assim, ganhar a força de prova evidente aos
olhos dos espectadores” – os quais, no entanto, não crêem necessariamente nesse ritual. E ao
mesmo tempo esse acto provoca ou potencia reflexões sobre o corpo do espectador. Até que
ponto a dor pode ser comunicada? “Perceber a dor significa perceber a sua própria dor, nunca
a dor de outrém (...). A dor do performer só pode ganhar presença para os espectadores nas
suas próprias imaginações e não no desempenho da acção pela qual o performer se fere a si
próprio/a”. Aproximamo-nos, então, sob novas formas, de uma estética do sublime.

284
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Enumeremos rapidamente alguns tópicos que se destacam na perfor-


mance. Há quase sempre uma junção de várias artes, mas, como todas
acentuam o seu lado performativo (não referencial nem narrativo nem se-
quer simbólico), não há a fusão pretendida por Wagner (não há uma “acção
dramática” comum sobre a qual todos trabalhem). Está-se mais perto do
entrechoque preconizado por Artaud e Brecht. Em termos espaciais, recusa-
se a criação de um espaço fictício: o espaço representado coincide com o
espaço da representação, o espaço real. A mesma tendência se verifica com
a utilização do tempo: é o tempo real da execução. Os padrões habitual-
mente usados para produzir significado são inaplicáveis. Cada espectador
convoca-os, se puser a questão da significação, e responde à sua maneira
a essa inaplicabilidade. Ou seja, os significados não estão preestabelecidos
(num culminar da ambiguidade de que Umberto Eco falou em 1958 em
Obra Aberta), e defende-se que o espectador se tornará menos passivo: terá
de usar activamente as suas percepções, associações, memórias e discursos.
Isto não quer dizer que o performer não faça associações simbólicas:
por vezes faz, e fortes – por exemplo, com rituais arcaicos, cristãos ou
pagãos. Mas a esse ritual falta a legitimação que o padre ou o xamã têm:
não é uma construção colectiva, é uma construção subjectiva. Para o es-
pectador, se for da mesma cultura, há apenas a possibilidade de partilhar
tais associações, não há a necessidade. Não são símbolos fixos, há mesmo
um evidente desfasamento entre significado e significante. A questão é que
esse acréscimo semântico é desvalorizado como secundário, porque a fun-
ção referencial está dominada pela função performativa: “a atenção do
espectador (...) não está dirigida para um sentido possível, mas concentra-
se na execução física de uma acção, por um lado, e no efeito que causa
no corpo do performer, por outro” (Fischer-Lichte 163).
Há na performance uma chamada de atenção para a “frágil vida dos
corpos, ameaças que pesam sobre a integridade do que é conhecido como
‘natural’, hostilidade a todos os códigos que pesam sobre a vida individual,
dissipação da fronteira entre o público e o privado, etc.” (Badiou, 2007:22).
Mas nem sempre se trata de levar o corpo ao limite. Há mesmo alguns tipos
de performance que reintroduzem, de outro modo, o mimético! No seu
diálogo com Badiou, Elie During (25) chama a atenção para aquele género

285
D rama e C omunicação

de performance que desenvolve apenas “uma atenção ao carácter perfor-


mativo das tarefas quotidianas (saudar alguém, compor as roupas, etc.)”,
ou seja, que procura o “prolongamento da experiência comum mais do que
como encenação, ou construção de um espaço autónomo. Allan Kaprow
censurava precisamente os acontecimentos Fluxus [iniciados em 1961] por
perpetuarem sob uma outra forma o ‘enquadramento’ artístico da perfor-
mance”. Badiou (2007:25) responde: “Sim, evidentemente, a performance
‘radical’ está do lado da não-arte, da vida tão somente salientada, e ainda
sem insistência, como que de passagem. É a derradeira forma de um voto
que remonta, penso eu, ao romantismo alemão: que a vida seja ela própria
a arte, que mais nada separe o universo das formas de afirmação viva, que
haja como que um poema da vida.” E nessa recusa de a arte substituir a
vida mais uma vez Artaud surge como precursor, porque foi o primeiro a
querer evitar o regramento das anti-regras, a formalização da arte, essa “gran-
de maleita espiritual do Ocidente, que é o local por excelência onde se
confundiu arte com esteticismo”: “Pró diabo a arte. Não há só arte, há o vazio,
o abismo do que sempre está mais adiante, mais fundo, mais absoluto.”
Ainda outro tema comum a Artaud e à performance tem a ver com a
importância do que acontece uma única vez, no momento, contra a repe-
tição. Como observou Herbert Blau (1990), na cultura contemporânea há
um desejo simultâneo e contraditório de negar a teatralidade e de regressar
à teatralidade (pura, primitiva, presencial, etc.). Um elemento que pode
ajudar a conciliar estes desejos é a ausência de repetição: vimos em Gadamer
como a teatralidade festiva se distingue do teatro de repertório pelo seu
carácter singular. Segundo o voto utópico de Artaud, que achava que até
um poema devia ser dito uma vez e logo rasgado, ou do movimento Dada,
que não aceitava repetir-se para que o próprio escândalo não se tornasse
objecto de consumo artístico, a não repetição acentua a efemeridade do
teatro até ao ponto da representação singular. Teatral, mas único: una no-
che y basta, como se diz no teatro español a partir de Valle-Inclán. Não
existe performance de repertório, ela vive apenas no presente (e nas me-
mórias), e se acaso é registada, entra no circuito das representações, onde
trai a sua ontologia.

286
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

O que nos leva à questão da improvisação. Ela fora central na Commedia


dell’arte a partir de meados do século XV: aí os actores improvisavam a
partir de um rudimento de intriga (canovaccio) e de algumas personagens­
‑tipo e respectivas rotinas, piadas e gags, adaptando-se depois à situação
concreta do lugar e do público de cada representação. Mas do teatro clás-
sico a improvisação esteve quase arredada. Diderot faz-lhe referência,
quando escreve:

Há lugares que seria preciso quase abandonar ao actor. É ele quem deve
dispor da cena escrita, repetir certas palavras, retomar certas ideias, suprimir
algumas e acrescentar outras. Nos cantabile o músico deixa a um grande
cantor o livre exercício do seu gosto e do seu talento: contenta-se em marcar­
‑lhe os intervalos principais de um belcanto. O poeta deveria fazer o mesmo
quando conhece bem o seu actor. (Denis Diderot, in Borie et al 153)

Mas repare-se que aqui ainda estamos mais na liberdade de o actor se


apropriar do texto (liberdade que o mesmo Diderot se encarregará de li-
mitar com a metáfora da marioneta, como adiante veremos) do que na
reflexão sobre a espontaneidade ou improvisação do actor. É a partir do
início do século XX que estas passam a ser reconhecidas, nomeadamente
com o expressionismo, o futurismo e o movimento dada.
Vamos encontrar, de forma inovadora, a questão da improvisação no
próprio tema das peças de Luigi Pirandello (1867-1936), autor de Esta Noite
Improvisa-se, de 1930. Vimos também como a improvisação foi importante
para Meyerhold, que durante algum tempo procurou mesmo ir ao encontro
das técnicas da Commedia dell’arte. Quando Artaud se iniciou no teatro,
trabalhou com o actor e encenador Charles Dullin (1885-1949), o qual,
embora formado na escola de Copeau de prioridade ao texto, incluía a
improvisação como matéria nuclear do treino dos seus actores. Mais força
ainda teve a improvisação na dança de Loïe Fuller, ou nas escolas dirigidas
por Jaques-Dalcroze e por Gordon Craig. Nos anos 30, num quadro dife-
rente do estético, o da psicoterapia, Jacob Levy Moreno (1889-1974) fundou
o psicodrama ou “teatro da espontaneidade”.

287
D rama e C omunicação

Mas é no happening desenvolvido a partir dos anos 50 que a ideia de


espontaneidade ganha novo alento: “É assim que os ‘eventos’ de Georg
Brecht e certas ‘actividades’ de Allan Kaprow evocam uma espécie de tea-
tro restrito (…). A palavra, o texto, são aí reduzidos a instruções ou
declarações minimais”, só porque algum enunciado é sempre necessário,
nem que seja “Que comece a festa!” (During 23). Assim, comenta Badiou
(2007:25), “a experiência performativa está na junção da ideia de participa-
ção, de construção de um novo colectivo, e de uma outra exigência da arte
contemporânea: o da importância da improvisação e do ‘deixar-vir’ fortuito.”

Vale a pena referir ainda que muitos elementos que vimos referindo
caracterizaram a forma mas sobretudo a temática das peças da chamada
nova vanguarda dos anos 50 e 60, que é por vezes conhecida por anti­
‑teatro: designação um pouco vaga, que abrange quer os esforços para o
teatro se destruir a si próprio, como por vezes consegue em Pirandello,
Mrozeck, Beckett ou Handke, quer o “teatro do absurdo” de Ionesco (e depois
em Beckett), em que a acção já não obedece a uma causalidade aristotéli-
ca nem social (como em Brecht) mas às leis do acaso.

O anti-teatro caracteriza-se por uma atitude geral crítica face à tradição:


recusa da imitação e da ilusão, portanto da identificação do espectador,
ilogismo da acção; supressão da causalidade em benefício do acaso; cepticismo
face ao poder didáctico ou político da cena; redução antihistórica do drama
a uma forma absoluta ou a uma tipologia literária existencial; negação de
todos os valores, em particular os dos heróis positivos (o absurdo desenvolve­
‑se também como contra-corrente ao drama filosófico ou ao realismo
psicológico ou social). (Patrice Pavis, 1996:23)

4. Um pensamento alternativo: Lyotard e Deleuze

Muitos dos novos temas assim lançados por todos os criadores e movi-
mentos que referimos neste capítulo deixaram influências e marcas que
estão presentes nas práticas performativas de hoje: para um actor, um can-

288
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

tor, um bailarino (bem como para alguns dos que os dirigem), os conceitos,
ou pelo menos vagas noções e vocábulos, de espontaneidade, improvisação,
energia, qualidade de movimento, estão presentes e por vezes ganham
prioridade sobre conceitos mais tradicionais ligados à mimese, ao texto, à
repetição, à força. Mas pouco têm sido acompanhados pela reflexão teóri-
ca. Os próprios Performance Studies, “de tão ligados à semiótica, teoria
crítica e psicanálise, enfatizam a interpretação e a construção do sentido,
ideológico e político” (Cull 8). Têm a imensa vantagem de pensar o que se
passa em cena como processos e relações; mas ali procuram, dir-se-ia que
cada vez mais, o ideológico e o político, que acabam por trazer alguma
estabilidade a um universo preferencialmente (mas ao que parece insupor-
tavelmente) instável; e essa atitude não deixa de ter efeitos pesados sobre
as próprias práticas performativas ditas alternativas, que nos últimos anos
se dirigem também elas para o ideológico e o político. Vale então a pena
referir agora dois pensadores que, embora de forma ainda aproximativa, se
procuram sintonizar com as tendências que referimos.
Um deles é Jean-François Lyotard, que abordou as artes cénicas não
pelo lado da narratividade ou da representação, mas pelo lado da energia
e das pulsões. Lyotard (1974 e 1980) não se cansou de questionar a potên-
cia recorrente do dispositivo teatral tradicional, que opera um trabalho
substitutivo, de simulacro, de representação do ausente, um “em vez de”,
ao passo que para Lyotard o acto performativo não consiste, ou já não
consiste, em signos, mas numa “errância dos fluxos, uma deslocabilidade e
uma espécie de eficácia por afectos, que são os da economia libidinal”
(1974:99). Desejaria uma teatralidade fundada na presença ou na apresen-
tação, na deslocação em vez da substituição, na evidência da superfície
contra o efeito de conteúdo, na potência de gozo, a montante e a juzante.
Fala de “teatro energético” a propósito do trabalho coreográfico de Merce
Cunningham, que não liga a teatralidade à representação e ao simulacro
mas à produção de afectos, não à intenção mas à intensificação (cf. Febvre
47). Para mais depressa compreendermos a sua perspectiva, creio que po-
deríamos associar a sua visão aos actuais concertos (de música não
erudita), e nesse sentido ele sintoniza-se com as grandes multidões que a
eles acorrem em vez de ao teatro tradicional. Mas a intensificação energé-

289
D rama e C omunicação

tica de que ele fala está também muito presente no teatro, mesmo quando
baseado no texto. Como me dizia Luís Miguel Cintra numa entrevista a
propósito dos 25 anos de trabalho do Teatro da Cornucópia:

Também há um lado que prezo na maneira de as pessoas mais novas


estarem no teatro, que é o gosto de fazer teatro como um momento excepcional
de vida. No teatro fazem-se coisas que não são as da vida chata de todos os
dias e isso também leva ao gosto por usar muito o corpo, pelas acrobacias.
Ali há qualquer coisa na vida dele, actor, que é diferente, que é maior, mais
difícil, mais extraordinário. Isto é um dos valores principais para um actor
novo. E muitas vezes o público também gosta porque tem a noção de que
está a assistir a um momento excepcional. Eu gosto muito disso e como actor
sinto-o: mas enquanto para mim todas essas coisas, apesar de tudo, são
relacionadas com a produção de um sentido que eu transmito a um espectador,
em muitos actores mais novos o importante não é o sentido, é aquilo que
os faz existir naquele momento de uma forma mais intensa. (Luís Miguel
Cintra, in Monteiro, 1998:94)

Note-se que o “afecto” de que fala Lyotard não tem a ver com o senti-
mento pessoal, com a emoção (cf. Uhlmann, 2007): é um devir, como
também sempre sublinha o outro maior pensador com afinidade com estas
práticas não miméticas, Gilles Deleuze (1925-1995). Foucault disse que um
dia talvez o século XX fosse chamado deleuziano, e parece que o século
XXI , ou pelo menos parte dele, está a perceber ou a procurar realizar essa
profecia. É um pensamento que quis abranger especificamente as práticas
cénicas, e os exemplos que atrás demos de alternativas teatrais, mais os
que ele próprio nos acrescenta, poderão ajudar a seguir o alcance por ve-
zes enigmático da sua escrita.
Deleuze começa a incluir com alguma frequência o teatro no seu pen-
samento a partir da obra Différence et répétition, de 1968. Repetição em
francês também significa ensaio: experimentar, testar, “assim tornando a
própria repetição algo de novo” (Blau, 2009:25). Como no dizer de um dos
autores com quem Deleuze tem mais afinidade, Samuel Beckett: “Ever tried.
Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.” �����������������
Não importa, ten-
ta outra vez, falha outra vez. Falha melhor.

290
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

A ontologia de Deleuze dá prioridade à diferença, ao processo, ao devir,


ao tornar-se. E considera que é precisamente essa variação ou movimento
que nos põem em contacto com o real (o que tem sido aspiração da teoria
da performance filosoficamente articulada de Artaud a Grotovski): pensa a
“presença ontológica como um tornar-se – é a variação perpétua ou dife-
rença-em-si que, para Deleuze, constitui o real” (Cull 5). Consequentemente,
assim é com o teatro, ou Deleuze propõe que assim seja: “uma nova
potencialidade de teatro, uma força não representativa sempre em desequi-
líbrio” (1979:94). Na obra dos anos 60, Deleuze localiza as origens do
teatro sem representação numa tradição teatral dentro da filosofia, exem-
plificada por Nietzsche e Kierkegaard, que “querem pôr a metafísica em
movimento… fazê-la agir e fazê-la realizar actos imediatos… É uma questão
de produzir dentro do trabalho um movimento capaz de afectar o espírito
fora de toda a representação”. (Nisto Deleuze é criticado por Jacques Derrida,
1978, para quem a presença, para ser presença e auto-presença, já começou
sempre a representar-se a si própria.)

Uma das razões para Deleuze tomar o teatro como modelo para a sua
teoria de eventos singulares reside no facto de que como arte performativa,
o teatro é baseado na presença, em acções e eventos que acontecem ao vivo
em frente dos nossos olhos, sem nos incitar sempre a atribuir-lhes um estatuto
de representação. Este carácter de apresentação, em oposição ao de
representação, é exactamente aquilo de que Deleuze necessita para o seu
teatro de eventos singulares, já que estes eventos formam séries de diferenças
que não podem ser reduzidas a uma identidade estabilizadora por detrás
deles. Mas o teatro no entanto não tenta de alguma forma representar um
mundo? Além disso, performances diferentes de uma mesma peça implicam
precisamente um modelo de diferença que está ancorada numa identidade,
nomeadamente, na identidade da peça que está a constantemente a ser
ensaiada. O teatro tradicional, a que Deleuze chama “teatro de representação”,
não é pois certamente o que Deleuze tem em mente quando fala de um
“teatro de eventos”; pelo contrário, ele tem de lutar duramente para manter
a sua distância em relação a tudo o que no teatro possa mediar, através da
mimese, a presença cheia de eventos da representação ao vivo, um teatro

291
D rama e C omunicação

que consiste no “movimento não mediado”, “puras forças”, “gestos” e “espectros


e fantasmas”, um teatro sem texto previamente escrito e “sem actores”
(Différence et répétition:19). (Martin Puchner 525)

Na obra Mille plateaux (Mil Palcos), de 1980, escrita em parceria com


Félix Guattari, “esta afirmação de um movimento mais fundamental que vem
antes da representação é também articulada em termos de um primado do
‘afecto’ ou do ‘devir’ sobre a imitação (…) A imitação não é a única maneira
de conceber como diferentes seres ou espécies podem aproximar-se uns
dos outros. ‘Caímos numa falsa alternativa’, argumentam Deleuze e Guattari,
‘se dissermos que ou se imita ou se é’. Tornar-se animal, por exemplo, não
é fingir ser um animal. (…) Os devires são tentativas de entrar em contacto
com as velocidades e afectos de um tipo diferente de corpo, de romper
com um eu discreto.’ (…) Não percebemos nada sobre a relação entre
actores e papéis se continuarmos a subscrever o paradigma da mimesis.
Deleuze e Guattari dizem para ouvirmos os artistas. Ouçam De Niro quando
ele fala em andar ‘como’ um caranguejo, não como uma metáfora, mas como
uma metamorfose.” Deleuze e Guattari falam da “proliferação de devires­
‑mulher, devires-animal, como actos transformativos. Também citam ‘as
performances de Lolito, um engolidor de garrafas, cerâmicas, porcelanas,
ferro, e até bicicletas’, que ‘faz o seu queixo entrar em composição com o
ferro de tal maneira que ele próprio se torna o queixo de um cão molecular’”
(Cull 7-8).
“O espectáculo começa e acaba no mesmo momento em que o fazemos”,
diz Carmelo Bene citado por Deleuze (1979:91). Este tratamento da perfor-
mance como um acto irrepetível e sem lei faz-nos recuar a Artaud: há um
“artaudismo ubíquo” em Deleuze e Guattari, escreve Edward Scheer. A própria
importância do corpo passa um pouco pelos mesmos parâmetros nos dois
autores. Para Susan Sontag (20), a obra de Artaud “tem menos que ver com
um niilismo difuso do que com uma experiência específica de sofrimento”;
ele pensa a vida a partir do sofrimento corporal, há claramente uma física
na sua metafísica. Por sua vez, Deleuze escreve, em Cinéma 2: L’image­
‑temps, de 1985: “Não é que o corpo pense, mas obstinado e teimoso,
força-nos a pensar, e força-nos a pensar o que está escondido do pensa-

292
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

mento, a vida.” (189) Há ainda a paixão comum por sons assignificantes,


que abrem a possibilidade de novos pensamentos, como nas glossolálias
de Artaud: Deleuze acha que novos sentidos emergem quando a linguagem
deixa de ser falada “perfeita e soberbamente”.
Mas é sobretudo o tipo de teatralidade que ambos concebem que os
aproxima. Artaud, em O Teatro e o seu Duplo, está fascinado com os círcu-
los ciclónicos do teatro balinês, gritos súbitos, voltas em todas as direcções,
com “meticulosidade matemática”. Ora, comenta Blau (2009:26-27), “o que
é imaginado, quando Deleuze deriva o seu teatro da repetição de Nietzsche
e Kierkegaard (embora o Deus do último não seja exactamente parente do
Dioniso do primeiro) é uma ‘metafísica em movimento, em acção’, sem
qualquer mediação, ‘vibrações, rotações, remoinhos, gravitações, danças ou
saltos que tocam directamente o espírito’.” É assim uma concepção “da
‘multiplicidade de fibras nervosas’ (Deleuze e Guattari), actuando [perfor-
ming] em todos nós até aos rizomáticos da teatralidade nos mil palcos em
que cada um de nós é vários, ou mais, sem nada como uma ‘personagem’
no devir da não-identidade, no espaço prolífero do entre epistemológico.
Ou antes como o Grande Bordel de Genet, onde a vida não é apenas um
sonho, mas com tudo traído ao mesmo tempo, no devir daquilo-que-não-é,
um irreverentemente encenado ‘sonho-pesadelo’ (…), que requer no seu
dinamismo espacial ‘uma dupla teatralidade’”.
Há ainda, continua Blau, nexos entre a performance futurista, com as
parole in libertà ou as máquinas de ruído, a “vibração indescritível” da
alquimia de Artaud e alguns dos conceitos deleuzianos, que parecem deri-
var da “fiscofollia” ou loucura corporal do futurista Marinetti: e “a insónia
febril do seu Teatro de Variedades, sem nada a impelir a performance senão
uma lógica da sensação, instala o plano de jogo para a ‘fantasmafísica’ de
Deleuze, o termo criado por Foucault (1970) precisamente para essa lógica”
(Blau, 2009:29).
Deleuze vai também encontrar exemplo e inspiração num seu contem-
porâneo, o actor, encenador e realizador italiano Carmelo Bene (1937-2002).
Deleuze publicou em Itália, em 1978, um manifesto a propósito do teatro
de Bene (mais especificamente, da sua encenação de Ricardo III, de
Shakespeare), a defender o “teatro da variação perpétua”. Ali considera o

293
teatro como iniciado e sustentado pela subtracção (Bene retira personagens
ou partes do texto das peças clássicas, amputa os elementos que fazem ou
representam um sistema do Poder): é em Deleuze um conceito vitalista de
subtracção, imediatamente ligado ao nascimento e proliferação de algo
inesperado (enquanto que em Bene, cuja relação com a política é muito
diferente da de Deleuze, o conceito de subtracção aponta para a extinção,
comenta Lorenzo Chiesa). Qual é então a proposta desse manifesto, que
constitui o texto mais específico de Deleuze sobre as artes cénicas (e que
citarei longamente, tanto mais que não está traduzido em português)? Em
primeiro lugar, “eliminar as constantes ou as invariantes, não só na lingua-
gem ou nos gestos, mas também na representação teatral e naquilo que é
representado em cena; logo eliminar tudo aquilo que ‘faz’ Poder, o poder
daquilo que o teatro representa (o Rei, os Príncipes, os Patrões, o Sistema),
mas também o poder do próprio teatro (o Texto, o Diálogo, o Actor, o
Encenador, a Estrutura); e depois, deixar passar tudo através da variação
contínua, como se fosse sobre uma linha de fuga criadora, que constitui
uma língua menor na linguagem” (o maior e o menor são dois tratamentos
diferentes da linguagem).

294
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Carmelo Bene não acredita na vanguarda. E também não acredita num


teatro popular, num teatro para todos, numa comunicação entre o homem
de teatro e o povo. É que, quando se fala de um teatro popular, tende-se
sempre para uma certa representação dos conflitos, conflitos entre indivíduo
e sociedade, entre a vida e a história, contradições e oposições de todos os
géneros que atravessam uma sociedade e também os indivíduos. Ora, aquilo
que é verdadeiramente narcisista e que diz respeito a toda a gente é esta
representação dos conflitos, seja ela naturalista, ou hiperrealista, etc. Há um
teatro popular que é como o narcisismo do operário. Sem dúvida que há
uma certa tentativa de Brecht para fazer com que as contradições, as oposições
não sejam apenas representadas; mas o próprio Brecht quer que elas sejam
apenas “compreendidas”, e que o espectador tenha os elementos para uma
“solução” possível. Não significa sair do âmbito da representação, é apenas
passar de um pólo dramático da representação burguesa a um pólo épico da
representação popular. Brecht não leva a “crítica” suficientemente longe. Bene
pretende substituir a representação dos conflitos pela presença da variação,
enquanto elemento mais activo, mais agressivo. Mas por que razão os conflitos
estão geralmente subordinados à representação, por que razão o teatro é
sempre representativo quando toma como objecto os conflitos, as contradições,
as oposições? É porque os conflitos já estão normalizados, codificados,
institucionalizados. São ‘produtos’. Eles já são uma representação, que pode
ser representada ainda melhor em cena. (…) As instituições são os orgãos
da representação dos conflitos reconhecidos, e o teatro é uma instituição, o
teatro é “oficial”, mesmo o de vanguarda, mesmo o popular. (Gilles Deleuze,
1978:120-122)

É a mesma coisa, diz Deleuze, para o cinema italiano, com as suas am-
bições pseudo-políticas: são um teatro e um cinema narcisistas, historicistas,
moralizantes. Mas como sair desta situação da representação conflituosa,
oficial, institucionalizada? Deleuze (1978:123-124,128) rejeita várias direcções:
“o teatro vivido, em que os conflitos são mais vividos que representados,
como num psicodrama? O teatro estético, em que os conflitos formalizados
se tornam abstractos, geométricos, ornamentais? O teatro místico, que ten-
de a abandonar a representação para se tornar vida comunitária e ascética

295
D rama e C omunicação

‘fora do espectáculo’?” Não servem a Deleuze. Que alternativa propõe?


“Quando um conflito ainda não está normalizado, isto acontece porque ele
depende de algo mais profundo, é como o relâmpago que anuncia algo e
que provém de algo, é o emergir súbito de uma variação criadora, inespe-
rada, sub-representativa.” O caminho para o conseguir é a variação contínua,
que tem a ver com o devir-minoritário: “cada um é minoritário, potencial-
mente minoritário, enquanto possa desviar-se deste modelo.” Minoria tem
dois sentidos, sem dúvida relacionados, mas bem distintos: um estado de
facto (as mulheres, as crianças, o Sul, o terceiro mundo... etc.); e um se-
gundo significado, que é “um devir no qual nós nos empenhamos”.

Devir-minoritário é um fim, e um fim que tem a ver com todos. (…) Um


devir minoritário universal. Minoria designa aqui a potência de um devir,
enquanto que maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de
uma situação. É aqui que o teatro ou a arte podem surgir, com uma função
política específica. Na condição de minoria não representar nada de regionalista;
mas também nada de aristocrático, de estético nem de místico. (…)
Desta forma o teatro não encontraria uma função suficientemente modesta
e todavia eficaz? Esta função anti-representativa seria a de traçar, constituir
de algum modo uma figura da consciência minoritária, como potencialidade
de cada um. Tornar uma potencialidade presente, actual, é completamente
diferente de representar um conflito. Já não se poderia dizer que a arte tem
um poder, que ainda é poder, mesmo quando critica o Poder. Porque,
exercitando a forma de uma consciência minoritária, direccionar-se-ia a
potências de devir, que pertencem a um âmbito diferente do domínio do
Poder e da representação-modelo. (…) Seria a autoridade de uma variação
perpétua, em oposição ao poder ou ao despotismo do invariante. Seria a
autoridade, a autonomia do gago, de quem conquistou o direito a gaguejar,
em oposição ao “bem falar” maior. E, claro, (…) é preciso que a própria
variação não pare ela própria de variar, isto é, que percorra efectivamente
novos caminhos sempre inesperados. (…)
Trata-se realmente de uma tomada de consciência, embora não tenha
nada a ver com uma consciência psicanalítica, nem com uma consciência
política marxista, ou brechtiana. A consciência, a tomada de consciência é

296
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

uma grande potência, mas não é feita para as soluções, nem para as inter-
pretações. É quando a consciência abandonou as soluções e as interpretações,
que ela então conquista a sua própria luz, os seus gestos e os seus sons, a
sua própria e decisiva transformação. (Gilles Deleuze, 1978:125‑126,129-130)

Sem pôr em causa a fertilidade e potencialidade do pensamento assim


expresso, um comentário mais ou menos evidente ou fácil que pode ser
feito ao manifesto deleuziano (como ao manifesto de Tzara que repudia os
manifestos) é que afinal sobrepõe a sua própria voz aos desejados gague-
jares, lapsos, afasias: ele não está a subtrair mas sim a adicionar ao legado
da vanguarda (Blau, 2009:29). É um paradoxo a que voltaremos a propósi-
to das invectivas literárias de Artaud contra as palavras.
Mas sobretudo não se sabe que teatro pode nascer da visão de Deleuze,
como aliás da de Nietzsche. Badiou e depois Peter Hallward (cf. Cull 11)
criticaram o facto de Deleuze ser um pensador do teatro des-incorporado ou
des-materializado; é uma abordagem filosófica ou literária que pouco se re-
laciona com a linguagem própria da cena4. O que não impede, como veremos
no último capítulo, que alguns encenadores de hoje partam de Deleuze para
criar linguagens cénicas em que o palco, mais do que um lugar que represen-
ta, é um espaço onde se produzem energias e afectos entre os performers.
Mas de facto o conceito de “Corpo sem órgãos”, que Deleuze tanto
retoma de Artaud, e que entre nós José Gil (2001) tão bem desenvolveu 5,

4 O próprio Bene (apud Cull 13,21) afirma que o manifesto de Deleuze saiu quatro meses

antes da estreia do seu Ricardo III, apenas a partir de uma discussão do projecto que Bene
tinha: o que indicaria um certo desprendimento de Deleuze em relação ao acontecimento
teatral. Embora se possa duvidar desta afirmação de Bene e se deva fazer justiça ao manifesto
de Deleuze, que viu várias peças de Bene (decerto mesmo, e previamente, essa de que descreve
por vezes com minúcia os gestos e entoações), leu textos sobre ele, viu os seus filmes…
5 Segundo Gil (2001:73-4), mesmo no livro Mille Plateaux, em que Deleuze mais desenvolve
o conceito de “corpo sem orgãos”, que aí designa o plano de imanência, “depois da leitura
dessas páginas tão densas, permanece o mistério a propósito de ‘aquilo que se deveria fazer’
para esquivar os estratos e construir um corpo pleno. É que continuamos a não ver que
transformações se devem fazer sofrer ao corpo para que este se torne um plano de imanência.”
Começamos a vê-lo quando Gil mostra admiravelmente como procede o bailarino. Não sei, e
Gil também parece duvidar, se seria possível fazer o mesmo para o teatro.

297
D rama e C omunicação

é, como o Dioniso nietzschiano, “essencialmente sem imagem, não tendo


nada a ver com o corpo propriamente dito” (Blau, 2009:33). Ora, apesar do
êxtase e visão e mistério de Artaud, “não há performance sem o corpo,
sempre vulnerável e material; ou na sua ausência, como num palco vazio,
melancolicamente ali, terrível – o que Beckett faz passar em Breath”: “só
funciona enquanto teatro com o corpo ali – mesmo na sua ausência, po-
demos cheirá-lo nos bastidores, esse cheiro a mortalidade, que pode vir até
nós em delírio, como com o Rei Lear no matagal; ou sub-repticiamente,
insidiosamente, como na Sonata dos Espectros de Strindberg; ou inesgota-
velmente em Beckett, dando à luz em cima de uma sepultura” (ibid. 33).
Martin Puchner, parcialmente inspirado no livro de Evlyn Gould Teatro
Virtual de Diderot a Mallarmé, fez em 2002 uma inteligentíssima revisão de
como a filosofia, desde Platão, está ao mesmo tempo dependente do teatro
mas sempre a negar o teatro que realmente existe. “Heidegger tinha ca­
pturado a viragem da ontologia para a filosofia da linguagem com a
formulação ‘a linguagem é a casa do ser’; uma tradição diferente da filoso-
fia parece acreditar que esta casa é um teatro.” (524) “A história da teoria
não pode ser concebida independentemente da história do teatro (…):
Platão/Tragédia Grega; Deleuze/Artaud; Nietzsche/Wagner; Derrida/Mallarmé;
Benjamim/Trauerspiel.” (529) Só que “a teoria cria os seus próprios concei-
tos de teatralidade, que têm tendência a estar em desacordo com o teatro
real.” (530). Platão, como vimos, escreve um closet drama, a rivalizar com
a tragédia. Os simbolistas franceses, também o vimos, foram pelo mesmo
caminho: “de muitas formas resistiram à mise-en-scène contemporânea e só
hesitantemente foram encenados quando um novo tipo de prática de en-
cenação de vanguarda foi estabelecido (…). Na ausência de um teatro real,
os gestos teatrais do mimo, descritos num dos textos de Mallarmé, tornam­
‑se, na famosa leitura de Derrida, nada mais do que uma forma peculiar de
escrita; o teatro é assim assimilado à condição de texto e de escrita. (Uma
tentativa semelhante de transformar uma teoria baseada no teatro numa
teoria baseada no texto pode ser observada em A Origem do Drama Barroco
Alemão, quando Benjamin impõe ao teatro barroco a noção de alegoria
textual.)” (526) A diferença em relação ao teatralismo de Deleuze pode
então ser vista como um caminho diferente seguido no interior do campo

298
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

do drama: Deleuze também tenta “inventar, em filosofia, um equivalente do


teatro” (di-lo em Différence et répétition:17); mas em vez de escrever um
teatro para ser lido porque rejeita a representação existente, ele baseia-se
num teatro da vanguarda, antitextual, que já nos seus manifestos tinha fei-
to a crítica do teatro (veja-se todo o legado de Artaud). “Enquanto Platão
competia com a tragédia grega, Deleuze tomou de empréstimo um teatro
que já estava ele mesmo separado da representação teatral, tanto em
desacordo com o teatro como qualquer filósofo platónico poderia estar.
A viragem de Deleuze para o teatro foi assim possível por causa do próprio
afastamento de Artaud do mesmo. (…) Esta é a razão pela qual a teoria
não precisa de se virar contra as práticas do teatro representacional; o
próprio teatro da vanguarda tomou conta desse papel crítico na agressivi-
dade de formulação do seu próprio imaginário teatral.” (527-528) Por sua
vez, Nietzsche, que estudaremos melhor no próximo capítulo, está numa
posição dupla: tem uma filosofia pró-teatral enquanto a obra de Wagner é
ainda conceptual e programática, “do futuro”; mas quando as suas óperas
começam a ser encenadas, quando Luís II patrocina a instituição Bayreuth
que Nietzsche não se cansa de ridicularizar, então muda para uma posição
anti‑teatral. “Como no caso de Platão, podemos ver aqui que o que motiva
a posição anti-teatral não é uma aversão ideológica em relação ao teatro,
mas, ao contrário, uma dependência dele”. (529) E, mesmo na primeira fase
de Nietzsche, “a música, cuja especial relação com a formulação dionisíaca
de Nietzsche foi herdada de Shopenhauer, é mais do que um substituto da
ausência de representatividade. A origem, na música, da tragédia grega é
a construção do teatro sem representação, actores, a alucinação de um
teatro invisível que não o é.” (528)

5. A desumanização do teatro

Assim, Deleuze não está afinal tão desfasado de uma parte do movimento
teatral, ele mesmo contra a prática do teatro existente: é muito interessante
observar como, além de alojar a energia dos anos 60, ele retoma uma série
de propostas alternativas tal como foram formuladas entre 1885 e 1928, com

299
D rama e C omunicação

prolongamentos em Artaud e em muitos manifestos (e algumas realizações)


até hoje. O próprio Deleuze vai um pouco mais atrás e considera que
Nietzsche e Kierkegaard, ao reconstruírem a filosofia como acto imediato,
“inventam um incrível equivalente do teatro dentro da filosofia”, e assim
fundam não só uma nova filosofia como um “teatro do futuro”: “um puro
pôr em cena sem autor, sem actores e sem sujeitos…. De facto, há actores
e sujeitos, mas são larvas, porque só elas são capazes de suster as frases,
os deslizes e as rotações” (2003:219). Há mais de cem anos persiste, como
contra-corrente ao teatro, a ideia de um teatro sem corpo, ou sem actor,
ou com actor sem corpo, ou com corpo sem órgãos. Vale a pena reunir
brevemente os que assim se posicionam (é uma impressionante recorrência
de um conceito paradoxal), fazer o balanço dessa utopia – e discutir se não
será uma distopia…
Poderemos chamar-lhe a desumanização do teatro. E vale então a pena
lembrar, como em 1924-1925, o pensador espanhol Ortega y Gasset comen-
tava a crescente “desumanização da arte” na sua época. É certo, escreve
Ortega (19,53,20-21), que uma certa emancipação em relação ao humano é
condição de toda a arte: “alegrar-se ou sofrer com os destinos humanos
que, talvez, a obra de arte nos refira ou apresente é coisa muito diferente
do verdadeiro gozo artístico.” Mas a “arte nova” estava a salientar essa
emancipação. “Ainda que seja impossível uma arte pura, não há dúvida
alguma de que existe uma tendência para uma purificação da arte. Esta
tendência levará a uma eliminação progressiva dos elementos humanos,
demasiado humanos, que dominavam a produção romântica e naturalista.”
“Quem sabe o que dará de si este estilo nascente! A empresa que acomete
é fabulosa - quer criar do nada. Eu espero que mais adiante se contente
com menos e acerte mais.” Note-se, de passagem, como a avaliação que
Ortega faz, isto é, como a própria carga do substantivo “desumanização”,
é ambígua: por um lado Ortega quer reconhecer nela uma característica
inerente e necessária a toda a arte (por isso critica os elementos “demasia-
do humanos”), por outro lado teme que a falta de referência, ainda que
residual, ao mundo humano lhe roube a razão de ser. É extraordinário o
diagnóstico que Ortega traça, já nessa época. “Se analisarmos o novo esti-
lo encontramos nele certas tendências sumamente conexas entre si. Tende:

300
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

1º, à desumanização da arte; 2º, a evitar as formas vivas; 3º, a fazer com
que a obra de arte não seja senão obra de arte; 4º, a considerar a arte como
jogo, e nada mais; 5º, a uma essencial ironia; 6º, a evitar toda a falsidade,
e, portanto, a uma escrupulosa realização. Por fim, 7º, a arte, segundo os
jovens artistas, é uma coisa sem transcendência alguma.”
Reencontramos esta ideia de perda da transcendência onze anos mais
tarde, em 1936, com Walter Benjamin, no texto célebre em que colocou
a ênfase na questão da “reprodutibilidade técnica” como sintoma e causa
da perda de um enraizamento ritual, que levou a arte a viver uma crise,
a que os artistas reagiram professando “a arte pela arte”. Dela surge uma
teologia negativa: acabou, efectivamente, por conceber-se uma arte “pura”
(1992c:83).
A questão que vale a pena colocar é se será ou foi concebível uma desu-
manização na própria arte do teatro. Nos últimos quinze anos do século XIX

e nos primeiros trinta do século XX , como já tínhamos visto no capítulo 7 e


continuámos a ver neste, tal foi a vontade de afirmar a poética própria do
palco, tal a reacção em relação ao mimetismo realista e tal o surgimento e
crescimento do papel do encenador, que se imaginou um actor que clara-
mente fizesse parte da visão e das imagens do Criador (o encenador, que
o poeta simbolista também quis ser), liberto das emoções e impulsos im-
previsíveis do ser vivo (intérprete). O que não deixa de revelar uma
desconfiança em relação ao histerismo dos actores que não é alheia aos
receios que vimos, no quarto capítulo, em relação à força da sexualidade,
sobretudo feminina, no teatro. Um palco sem actores, ou pelo menos sem
actores humanos?
Começou por ser um sonho de escritor. Podem os escritores valorizar o
muito que os actores fazem sobre os textos, dando-lhes vida; mas também
podem, e em certas épocas é o que predomina, sonhar com um actor que
apenas seja o veículo fiel de transmissão do texto. Em 1757, Diderot (in
Borie et al 177), defendendo a ideia de um actor que cumpra a sua “função”
e não esteja à mercê das flutuações dos seus próprios sentimentos, já
utiliza a metáfora da marioneta, que veremos aparecer recorrentemente:
“Um grande actor é outra marioneta maravilhosa cujo fio o poeta segura e
a quem ele indica a cada verso qual a forma verdadeira que deve tomar”.

301
D rama e C omunicação

Em 1810, é o romancista e dramaturgo Heinrich von Kleist (1777-1811)


quem vem defender, no pequeno texto “Sobre o teatro de marionetas”, que
estas ultrapassam o ser humano porque não têm afectação, esse mal que
aparece quando a alma “se encontra em todo o lado menos no centro de
gravidade do movimento”. Nesta reflexão em forma de diálogo, o protago-
nista é um bailarino da ópera, que considera cada vez mais perceptível
terem as marionetas uma graça que os humanos não alcançam: “na medida
em que o mundo orgânico se debilita e obscurece a reflexão, faz a sua
aparição a graça cada vez mais radiante e soberana. (…) A graça (…)
manifesta-se com a máxima pureza nessa anatomia humana que carece de
toda a consciência, ou então na que possui uma consciência infinita, por-
tanto, num manequim ou num deus”. A beleza do texto de Kleist não pode
levar-nos a deixar de ver que nos séculos XIX e XX muitos encenadores se
pensaram a si mesmos como os da consciência infinita, portanto como
deuses, e pensaram os actores como seres não conscientes, como manequins.
É o que iremos ver.
Com o simbolismo do fim do século XIX , que vimos ser sobretudo um
movimento de poetas, há um persistente receio de que a subjectividade e
a exterioridade dos actores façam perder a elevação dos grandes poemas.
Daí defenderem a “fala branca”, a máscara neutra, a interpretação estática,
ou mesmo a substituição pura e simples dos actores por sombras, reflexos,
esculturas e marionetas. Em 1885, no primeiro ano de uma revista simbo-
lista chamada La Revue Wagnérienne, Stéphane Mallarmé (1842-1898)
publica um artigo intitulado “Richard Wagner: rêveries d’un poète français”,
em que “detecta a possibilidade de transformar o actor num signo artístico
impessoal e universal” (Vasques, 2008a:17). Esta ideia será levada mais
longe nas diatribes de Maeterlinck em 1896 contra os actores como destrui-
dores do sonho e da visão universalizante, ou na defesa de um actor sem
carne e osso que imagina como um “andróide” nas suas peças, sobretudo
nas experiências dos “Pequenos dramas para marionetas”, de 1894. É tal o
receio do que possa acontecer ao texto nas mãos, ou nas vozes e corpos,
dos actores (receio que vai muito além da rejeição do actor-vedeta, que
fomos encontrando de Aristóteles a Wagner), que tanto Maeterlinck como
Mallarmé muitas vezes preferem que os seus poemas dramáticos sejam lidos

302
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

solitariamente, sem intermediação (a não ser pelos próprios poetas), do


que encenados. O autor quer chegar directamente ao ouvido profundo do
espectador. O actor que tem uma vida própria, que é reconhecido em cena
pelo público (seja a grande Sarah Bernahrdt, ou “a Duse”, seja no fundo
qualquer outro, porque transporta o seu mundo próprio para o interior da
obra poética), “não permite que o símbolo e a eternidade do ‘homem’ se
realizem sobre a cena”.

O palco é o lugar onde morrem as obras-primas porque a representação


de uma obra-prima com a ajuda de elementos acidentais e humanos é
antinómica. Toda a obra-prima é um símbolo e o símbolo não suporta a
presença activa do homem. (…)
Seria talvez necessário afastar totalmente o ser vivo da cena. Ninguém
nos diz que não voltaríamos, assim, a uma arte de séculos muito antigos, da
qual as máscaras dos trágicos transportam talvez os últimos traços. (…)
A ausência do homem parece-me indispensável. Logo que o homem entra
num poema, o imenso poema da sua presença apaga tudo à sua volta. (…)
É difícil prever por que conjunto de seres privados de vida seria preciso
substituir o homem sobre a cena; mas parece que as estranhas impressões
sentidas nas galerias de cera, por exemplo, poderiam ter-nos colocado, há
muito tempo, sobre os traços de uma arte morta ou viva. (Maeterlinck, 1890,
apud Vasques, 2003:82-83)

Então, “no caso de não ser o próprio poeta a ler, directamente, a sua
obra sobre o palco, só restaria uma alternativa aos actores: tornarem-se
imóveis e mudos, assemelhando-se o mais possível a estátuas ou figuras de
cera, ‘transeuntes circunspectos do país das fábulas’” (Vasques, 2003:82-83).
Para um drama estático, um actor imóvel: nem sequer uma marioneta, mas
uma figura de cera, com a voz separada do corpo e o corpo afinal muito
mais negado do que anunciámos ser (e foi para outras correntes) a forte
tendência desde o século XIX . Se nos lembrarmos como o movimento está
ligado à emoção – cf. capítulo 6 e também a etimologia latina movere e
emovere, que originam em português mover e comover, ou indirectamente,
através do francês, os substantivos ingleses motion e emotion – compreen-

303
D rama e C omunicação

demos mais profundamente como as correntes que negam o sentimento


acabam por conceber um teatro estático.
Em 1896, será a vez de Jarry (admirador de Maeterlinck) considerar que
os actores, como os cenários, são objectos “horríveis e incompreensíveis”,
“que atravancam a cena sem utilidade” e que é preciso eliminar. No mínimo,
os actores devem “substituir a sua cabeça por meio de uma máscara que a
encerre, a efígie da PERSONAGEM”, por exemplo “o Avarento, o Hesitante,
o Ávido” (in Borie et al 364).

Com pequenos acenos de cabeça de cima para baixo e de baixo para


cima e oscilações laterais, o actor desloca as sombras sobre toda a superfície
da sua máscara. E a experiência prova que seis principais (e outras tantas
para o perfil, que são menos nítidas) são o suficiente para todas as expressões,
(…) Todos os que já viram teatros de fantoches puderam comprová-lo. (…)
Um exemplo de gesto universal: a marioneta testemunha o seu espanto com
um recuo violento e um choque do crânio contra os bastidores. Através de
todos estes acidentes subsiste a expressão substancial, e em muitas cenas o
mais belo é a impassibilidade da máscara única, manifestando-se nas palavras
hilariantes ou graves. (Alfred Jarry, in Borie et al 363)

Repare-se como Jarry já aceita o corpo, o movimento e os acidentes,


desde que não sejam provocados pela personalidade ou pelas mutações do
actor: este deve construir uma voz e um corpo para cada personagem‑más-
cara e depois permanecer impassível. O anti-sentimentalismo de Jarry tem
ecos de Nietzsche: “o teatro que é animado por máscaras impessoais não
é acessível senão àqueles que se sentem suficientemente viris para criar a
vida”.
Uns anos mais tarde, vamos encontrar a mesma ideia de “incorporação
da máscara”, e a mesma metáfora da marioneta, nas propostas de Meyerhold
(no entanto ainda muito ligado em certos aspectos à humanidade vivida,
energizada e participada). Começa por defender um teatro estático, à maneira
dos simbolistas: “É preciso um teatro imóvel”, tal como já existiu nos gregos,
escreve em 1907 Meyerhold (1973:106-107); há que preferir “ao gesto lugar­
‑comum o gesto figé e a economia dos movimentos.” Mais tarde, dentro da

304
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

biomecânica, o cinético e o estático têm valores semelhantes (a inspiração


vem do teatro japonês), mas mesmo o movimento é prescrito com lentidão.
Meyerhold trabalha o corpo dos actores como trabalha os objectos em cena:
há, como em Appia, uma plasticização do trabalho do actor: “disposição
cénica das personagens em baixos-relevos ou em frescos, permitindo-nos
exprimir o diálogo interior pela música do movimento plástico” (ibid. 94).
É uma das críticas que faz aos actores de Stanislavski: “estão demasiado
habituados a representar peças de tom realista, e portanto não puderam
encontrar os processos plásticos correspondendo à reprodução sobre o
palco do novo drama místico-simbolista” (ibid. 71-72). Defende mesmo “uma
plástica que não corresponda às palavras (…): o que distingue o antigo
teatro do novo é que neste o plástico e as palavras estão submetidos cada
um ao seu ritmo próprio e por vezes até se divorciam” (ibid. 116-117). Mais
do que isso, é à plástica que deve submeter-se a emissão vocal, com voz
neutra. Em 1907, dirá que “precisa de actores despersonalizados”. Reflectindo
sobre os resultados de trabalhar sobre a arte de Maeterlinck, escreve:
“É necessária um frio cinzelar das palavras”, sem trémulos nem finais
vibrantes; “uma calma exterior dissimulando as emoções vulcânicas. E tudo
isto sem tensão, com ligeireza.” (ibid. 114-115)
O jogo facial não deve ser psicológico: reencontramos a impassibilidade
de Jarry ou do teatro nipónico. Meyerhold desenvolve o trabalho de
máscara, chama mesmo a uma das suas companhias “Teatro de máscaras”.
E reencontramos a metáfora que vimos seguindo: Meyerhold quer que os
seus actores atinjam o estado “marioneta” de representação. Mas lembra
que há dois tipos de teatro de marionetas: Meyerhold quer, não as mario-
netas que imitam o quotidiano, mas aquelas em que “os movimentos e as
situações, apesar da sua intenção de reproduzir a vida sobre o palco, não
têm absolutamente nenhuma semelhança com o que o público vê na
vida. (…) O homem não quis criar sobre o palco uma arte de homem. (…)
O público vem ao teatro para ver um homem praticar a sua arte, mas será
arte apresentar-se a si mesmo sobre o palco? O público espera invenção,
jogo, mestria. E o que lhe é dado, é a vida ou a sua imitação servil” (ibid.
189­‑190, 192). Logo em 1905, escrevera (ibid. 72): “Homens… Em todo o
lado nada mais do que homens. Os actores são homens, os espectadores

305
D rama e C omunicação

são homens. Uns e outros não se afrontam suficientemente.” Num texto de


1918 (ibid. 277), chegará a afirmar: “No teatro com que eu sonho, repre-
sentar‑se‑á sem representar, expondo a sua técnica (e sem nada sentir
interiormente)” 6.
Ao mesmo tempo, os futuristas também se desdobram em propostas de
extirpação do elemento humano. “Queremos submeter os actores à autori-
dade dos escritores”, proclama em 1911 Marinetti, que escreve desde 1913
contra “esta coisa e esta palavra imundas: psicologia” (in Lista 248,252). No
mesmo ano gaba o music-hall porque entre outras coisas “mecaniza piade-
ticamente o sentimento” (ibid. 251). Referimos já as suas peças que retiram
ao actor a presença completa, expondo-lhe só as mãos ou pés. Mas alguns
futuristas vão mais longe. Prampolini (in Lista 283) escreve em 1924 no
manifesto “A atmosfera cénica futurista”: “Eu considero o actor como um
elemento inútil à acção teatral e por causa disso perigoso para o futuro do
teatro. O actor é o elemento de interpretação que apresenta mais incógni-
tas e menos garantias. (…) Creio por isso que a intervenção do actor no
teatro enquanto elemento de interpretação é um dos compromissos mais
absurdos para a arte do teatro. (…) A aparição do elemento humano na
cena rompe o mistério do além que deve reinar no teatro, templo de abs-
tracção espiritual.” Por isso Prampolini chega a idealizar uma representação
teatral em que os actores desapareçam, deixando lugar a um ambiente
cénico personificado: algo que os simbolistas já preconizavam, com os seus
jogos de luz e penumbra, mas agora é radicalizado. Os futuristas assumem
a vontade de fazer peças onde a figura humana esteja completamente au-
sente: nos figurinos tentam eliminar ao máximo os traços humanos dos que
os vestem e lhes dão movimento – têm a aparência de autómatos. Mais do
que isso, criam espectáculos só com objectos tridimensionais em movimen-
to, com luzes e sons: Fogos de Artifício, Danças Plásticas. Em Macchina del

6 Escrevendo sobre o filme O Retrato de Dorian Gray, Meyerhold (1973:277) gaba o intérprete
da personagem Allan, que “não é actor, mas um pouco pintor, um pouco poeta. (…) Ele exibe
cada um dos seus movimentos, da sua silhueta, está cheio de segurança e de beleza. Todo o
seu jogo se situa no plano da forma, e não tem de se preocupar em sentir os sentimentos de
Allan.”

306
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

3000, de Depero, uma história de amor que duas locomotivas nutrem pelo
chefe da estação, ainda elas têm formas humanóides, e ele forma humana.
Mas o artista-aviador Fedelo Azari imagina um Teatro Aéreo Futurista, em
que as histórias, nos céus, são entre aviões de verdade (embora se possam
apaixonar e ter filhos…).
Também em Itália, na mesma época, encontramos frequentemente em
Pirandello a concepção do actor como alguém que inevitavelmente trai o
texto, como na peça Seis Personagens à Procura de Autor, de 1921. Na
mesma Itália até uma grande acriz, Eleanora Duse (1858-1924), chega a
dizer que, se fosse para salvar o teatro, todos os actores teriam de morrer
da peste (um tema que será tão importante para Artaud): “os actores enve-
nenam o ar, eles fazem a arte ser impossível. Não é drama o que eles
querem, mas apenas peças de teatro”.
Aqui ao lado, na Galiza, o dramaturgo Valle Inclán (1869-1936) começa
em 1909 a publicar um conjunto de comédias com o título genérico Tablado
de Marionetas para Educación de Príncipes, em que as personagens são
marionetas de feira: o que desenvolverá naquilo a que chama o esperpento,
onde a realidade é distorcida para dar a ver o que se esconde por trás das
fachadas e em que as personagens carecem de humanidade e se apresentam
como marionetas.
Da marioneta passamos à super-marioneta nas teorizações de Gordon
Craig, que no entanto cresceu entre actores, começou como actor e sabia
bem o seu lugar: daí alguma ambiguidade desse prefixo “super”, que pode
ser (e foi) lido como “ainda mais marioneta”, mas também tem a conotação
de o actor transcender a marioneta, nomeadamente a decadência em que
caíram as marionetas da sua época e a vulgaridade a que tantas vezes o
actor estava sujeito na rápida e mecânica montagem de espectáculos. Craig
evoca a esplêndida descrição que no ano 800 a. C. Heródoto fez do templo
sagrado de Tebas, onde uma rainha calma e impassível era o exemplo da
arte sem sentimentos dos egípcios. Craig acrescenta-lhe uma fábula sobre
duas mulheres que nas margens do rio Ganges conseguem entrar no san-
tuário da divina marioneta, espiam os segredos do Verdadeiro Teatro, e
depois fazem a sua paródia barata para satisfazer o gosto vulgar da multi-
dão – é uma espécie de “mito da criação do teatro moderno (nunca revisto)

307
D rama e C omunicação

como uma adulteração pelas mulheres dos poderes roubados do corpo não
humano” (Blau, 1992:101). Que nas suas pesquisas Craig se tenha interessa-
do pelas máscaras, está patente na sua escolha do título The Mask para a
revista internacional que fundou e editou entre 1908 e 1929, bem como na
escrita de vários projectos de peças intituladas “máscaras”, mistura de pan-
tomima, ballet e féerie, no género das peças inglesas do tempo dos Tudor
(cf. Meyerhold, 1973:148). E embora afirme nas memórias (1962:105) que o
seu teatro assenta em “O actor. A peça. A cena. O lugar. O tema”, a sua pro-
posta, como vimos, quando fala das marionetas, é radical: “suprimi o actor”,
“nenhuma personagem viva em que as comoções da carne sejam visíveis”.
A ideia de desumanização do actor é levada ao extremo na Bauhaus,
sobretudo até 1928: o actor, ou performer, transformado em máquina viva,
mas viva apenas no sentido em que dá movimento às formas dos objectos.
Com Oskar Schlemmer, que desde o seus primeiros textos cita Kleist e Craig,
o movimento dos corpos, metamorfoseados em formas geométricas, inspira­
‑se na repetição, na mecanização e na robotização, com vista à abstracção,
à “substituição do organismo pela figura de arte mecânica” (27,36). Isto está
bem patente nas fotografias do seu Ballet Triádico (embora as poucas imagens
que dele existem em filme mostrem que essas poses não sabiam sustentar-se
no tempo, porque os movimentos das figuras pelo espaço era muito livre,
mais parecido com Isadora Duncan do que com um robot…) E de novo, em
Schlemmer a mesma metáfora: “não podem os bailarinos ser marionetas
verdadeiras, movidas por fios, ou melhor ainda, auto-propulsionados por
meio de um mecanismo preciso, quase livre de intervenção humana, quando
muito dirigido por controlo remoto?” (apud Demers e Horakova 441).
Creio que podemos distinguir duas tendências distintas dentro deste
combate contra a humanização do actor ou do bailarino. Em ambas a di-
mensão humana surge como um obstáculo. Uma, de Meyerhold a Schlemmer,
procura uma mecânica. A outra, de Craig a Artaud, procura uma espirituali­
zação do corpo do actor. Craig entendia que o actor deve espiritualizar-se,
o seu corpo tornar-se musical, com a beleza de morte da marioneta. Em
Artaud, a ideia de um “corpo sem órgãos” testemunha a vontade de, ao
mesmo tempo que se afirma a centralidade do corpo, libertá-lo. Em ambas
as tendências, porém, encontramos a oposição ao sentimento: “os sentimen­

308
tos atrasam”, escreve Artaud, que sente que lhe intoxicaram “a vida com
doses letais de sentimento e espírito” e por isso “foge da vida”: “as paixões
atrasam, as instituições atrasam, está tudo a mais, nesse demais sempre a
pesar sobre a existência, ela própria uma ideia a mais”, que retarda a ime-
diaticidade do acontecer (1993:21-22,25). Por isso Artaud propõe que o
actor seja “uma espécie de elemento passivo e neutro – pois toda a inicia-
tiva pessoal lhe está rigorosamente vedada” (1996:96).
Utopias ou distopias de há um século, que Deleuze retomou teorica-
mente? Mas é importante conhecê-las e discuti-las, porque na prática
cénica e fílmica de hoje subsistem, sem se saber de onde vêm, elementos
delas, desgarrados e simplificados. Quase não conheci um encenador por-
tuguês que não fosse contra a psicologia (como se fosse possível conceber
um ser humano sem psicologia, mas a questão é justamente recear-se o
humano), ainda hoje há quem peça aos actores de teatro e sobretudo de
cinema uma “leitura branca”, a nova dança usa cada vez mais a voz mas

309
D rama e C omunicação

quase sempre neutra, mecanizada ou distorcida, etc. E nem sequer estou a


falar da utilização de robots em cena, que os especialistas discutem se é
performance ou instalação (Auslander:2009).
De onde vem este sistema de ideias, coerente, recorrente, insistente? Esta
vontade de afastar o actor, o sentimento, o orgânico, esta insistência na
impassibilidade? São decerto sintoma de preocupações profundas por parte
de alguns (não todos) dos melhores criadores e teóricos das artes cénicas
de uma época. Correspondem à reacção contra o sentimentalismo ou histeria
dos actores, contra a estética realista e a favor de uma evolução no sentido
da abstracção, tal como outras artes estavam a fazer rapidamente e com tão
bons resultados. Meyerhold (1973:71-2) é claro a esse respeito: “nunca se
deveria ter tolerado que a dramaturgia e a pintura ultrapassassem tão
largamente a técnica da encenação e dos actores”; a solução seria “a pesquisa
fremente e infatigável de novos procedimentos plásticos, apropriados à nova
dramaturgia, que até aqui não tem teatro porque ganhou demasiado avanço,
tal como a pintura contemporânea está muito mais avançada do que as
técnicas da cena e dos actores.” O que o tempo parece ter vindo a mostrar
– e já quase cem anos passaram – é que essa visão de um teatro abstractizado
e portanto desumanizado se depara com fortes limites: cada arte tem a sua
especificidade, e a descolagem em relação ao realismo, à figuração, à pessoa
humana, à psicologia, ao sentimento, podem dar resultados muito mais
relevantes na pintura, na escultura, poderíamos mesmo discutir se na própria
poesia, do que no teatro.
Encontro em Herbert Blau (1992:101,149,151-2,158) uma vontade lúcida
e esclarecida de ultrapassar os limites que estas práticas e pensamentos nos
vêm ainda impondo. No seu diagnóstico, começa por reconhecer que, de
facto, no século XIX , “a emergência do realismo foi inseparável da drama-
tização da histeria” (como se vê, por exemplo, nas heroínas de Ibsen, ou
em certos heróis de Strindberg), que infectou o drama e corrompeu o
acting.�������������������������������������������������������������������
A tentativa de purificação das artes cénicas por extirpação do hu-
mano e do emotivo fez-se com toda a insistência que vimos mas a grande
questão é se conduziu a algo de cenicamente possível. E, sendo possível,
desejável? Quem na actualidade continua mais perto de afastar a presença
indesejada do humano é a linha de Robert Wilson, onde, apesar “de todos

310
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

os corpos em movimento, é uma espécie de presença incorpórea que liga


a petrificação do acto à precipitação do movimento.” Em Wilson assistimos
a “um afastamento radical do sentido do afecto ou da validade da emoção,
ou do que podia ser pensado como emoções validantes, do tipo invocado
por Gramsci em que podemos ‘sentir a humanidade’.” Há ali uma “indeter-
minação atenuada das emoções”: “a textura da performance é tal, a sua
atenuação, que podemos pensar em todas as aparências como ‘o edifício
sem fundações’ de uma visão em que os actores se dissolveram em ar, ar
fino, mesmo antes de os folguedos terem acabado (Shakespeare, Tempestade,
4.1.148-156), porque assumiram desde o início – sem aquele carácter beli-
coso que é uma figura do drama e o seu paradoxo de necessidade – a
função de um signo.” Tudo isto tem sido acompanhado por certo pensa-
mento teórico: “tem-se desenvolvido através da parada alta da ideologia do
desejo a noção substituta de intensidades afectivas que, com energia voan-
do em todas as direcções, pode dar-nos a impressão que em tudo se sente
o mesmo, incluindo as espécies amplamente divergentes da performance
pós-moderna.” Há aí uma “mudança aparente no estatuto da emoção (…):
a substituição das emoções sentidas, partilhadas ou validantes de um hu-
manismo presumivelmente desacreditado, por uma noção de afecto
totalmente diferente e indeterminada. Isto é parte do projecto antiedipiano
de desfazer o mimético (…) e destruir não apenas o repertório de imagens
da representação burguesa mas a própria estrutura repressiva da represen-
tação. (…) O preconceito antimimético permanece nesses modos de
performance em que as imagens ainda prevalecem, com mais ou menos
desespero tentando ultrapassar ou curto-circuitar o demónio da analogia,
mesmo nos seus velhos truques de falsificar emoções. Onde as emoções,
porém, não são simplesmente extirpadas, podem ser virtualmente encerra-
das e varridas pela simples e radical velocidade do afecto, embora isso
possa parecer uma contradição nas dinâmicas longas e suspensas ou na
radical viscosidade das produções de Wilson”.
Já por várias vezes pusemos reservas a esta raiva antimimética. E veremos
no último capítulo que também existem hoje importantes linhas, alternativas
às alternativas, que proporcionam “sentir a humanidade” e a emoção sem
no entanto serem sentimentalistas. Decerto não poderiam era ter sido cria-

311
D rama e C omunicação

das sem esta revolta moderna contra os sentimentos convencionais ou


falsificados. E por isso terá valido a pena revisitarmos alguns dos elementos
que até por vezes subsistem, mas de forma reflectida e integrada, mesmo
num teatro que não nega o humano e a correspondente psicologia. Quando
Samuel Beckett (um caso tão à parte que necessitaria de um capítulo pró-
prio) faz uma peça em que só se vê a boca da actriz, herda sem dúvida
das experiências de Marinetti; e os exemplos podiam multiplicar-se, porque
muitos elementos destes criadores que tenho vindo a referir são hoje reto-
mados. O que me parece essencial é romper com o sistema em que eles se
vinham integrando, no qual é temido e rejeitado o papel do actor, da psi-
cologia, do sentimento e do orgânico.
A questão da “organicidade” é, em meu entender, o grande desafio, so-
bretudo desde os anos 80 (embora já a encontremos, por exemplo, na
pesquisa do Living Theatre). Não a ideia de Kleist de que o mundo orgânico
tem de enfraquecer para que surja a graça, não um corpo sem órgãos, como
em Artaud, mas um corpo com órgãos e que assume ou procura a sua orga-
nicidade: a voz ligada ao corpo, o movimento conectado com o coração, a
mente em sintonia com o corpo (veja-se, como exemplos entre muitos, sig-
nificativos logo pelo seu título, as técnicas de body-mind centering ou de
authentic movement). É certo que a analogia entre a obra de arte e um or-
ganismo vivo pode ser conservadora, por reacção à tendência para a
desconstrução e a montagem. Mas precisamos de começar a admitir que a
especificidade do teatro o leva a não fazer abstracção do humano e do or-
gânico: o que não o impede de se compor de fragmentos, como vimos no
capítulo 6 e vários criadores contemporâneos vêm provando, ao conciliarem
montagem e organicidade.

5. Tadeusz Kantor

Veremos no último capítulo como estas questões, nomeadamente o di-


fícil desafio de trabalhar hoje o sentimento sem sentimentalismo, são bem
elaboradas e resolvidas nalguns criadores contemporâneos. Para já, fiquemos
com um exemplo extremo de síntese tensa de muitas propostas que temos

312
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

vindo a referir neste capítulo e da sua superação através da criação de uma


linguagem própria: a obra do polaco Tadeusz Kantor (1915-1990) – vide
http://cricoteka.com.pl/en. Uma obra tensa entre improvisação e automa-
tismo, entre vida e morte, abstracção e emoção. Uma obra, não esqueçamos,
iniciada em plena 2ª guerra mundial: Kantor começa por chamar ao seu
teatro um “Teatro da Morte”. Mas foi ao “encontro do real e do seu pesa-
delo, o pesadelo da História” (Alvim 6). Descreve o seu método como
“virado para o nada” e portanto “impossível”. Como Artaud, que encarava
a existência como “um vazio vivo de que tivesse conservado a direcção”.
A linguagem transformou-se numa máscara condicionante que é preciso
arrancar. O método de Kantor procura que, na cena, se dê o regresso, uma
“infame transição”, da “sepultura”, do reino dos mortos, do “outro mundo”,
para a esfera da vida, para o reino dos vivos – o que de novo lembra Artaud.
O manifesto-poema de 1975 abre com a já citada fábula de Craig sobre as
mulheres que roubam e adulteram os poderes do corpo não humano. Kantor
proclama então, ainda com ecos de Craig: “São apenas os mortos que se
fazem perceptíveis (para os vivos) e obtêm assim, por esse preço, o mais
elevado, o seu próprio estatuto, a sua singularidade, a sua silhueta replan-
descente, quase como no circo. (…) No meu teatro, um manequim deve
(…) [ser] um modelo para o actor vivo” (apud Alvim 25).
Note-se que também “Jean Genet (…) fez sua a ideia de que o verda-
deiro lugar do teatro seria de facto o cemitério, a ideia de que o teatro era
por essência um aglomerado de mortos. Ele, tão importante para Heiner
Müller, encontra-se com este (…) na ideia de que o teatro seria ‘um diálo-
go com os mortos’ que confere à obra de arte a sua verdadeira dimensão.
A obra de arte não se dirige às gerações futuras como frequentemente se
acredita. Segundo Genet, Giocometti cria, de facto, ‘estátuas que fazem
enfim as delícias dos mortos’. (…) Heiner Müller pôde considerar o teatro
antigo como uma conjuração dos mortos; quando o teatro nô, com um
mínimo de mimese, gravita em volta do retorno dos mortos, bastaria então
pensar esta noção possível do teatro para repor em questão a tradição do
teatro dramático” (Lehmann 107).
Mas voltemos a Kantor. O seu teatro necessita de criar um espaço próprio,
teatral, liberto da função e da finalidade. “O TEMPO PASSADO e tudo o

313
D rama e C omunicação

que era real na vida estava despojado da sua função vital e da sua eficácia
vital neste TEMPO irreal”, escreve Kantor. Neste sentido insere-se na linha
dos que pretendem ultrapassar o fenómeno psicológico (não se trata de
uma memória mimética nem saudosista). “Se no princípio deste percurso de
constantes interrogações e rupturas”, explica Alvim (20), “a improvisação
– até ao esgotamento e substituição por terceiros – era o que Kantor pedia
aos seus actores, posteriormente pede-lhes que deixem no palco a acumulação
de todas as suas vivências, que joguem, consciente ou inconscientemente,
com essas marcas do passado, sem no entanto se comprometerem emo­
cionalmente.”
Falta ainda um elemento que faça a cena ser mais e outra coisa do que
os actores: não formas, mas matéria, ou forma/matéria, através de objectos.
Mas os seus objectos não estão na relação hierárquica habitual, em que o
homem é o sujeito dominante e eles são acessórios: eles encontram-se numa
exterioridade recíproca que Kantor designa por “bio-objectos”. Os objectos
não carecem da “ilusão do ser”, uma vez que eles já são, diz Kantor. Podem
ser objectos da memória, familiares, da infância ou da aldeia natal, consti-
tuindo uma mitologia pessoal, ou ser objectos no seu estado mutilado (pela
guerra), objectos de ruínas, partidos, decaídos, degradados, deslocados, ou
ainda objectos-mercadorias (Amey, apud Alvim 37).
Há aqui um eco da ideia de matéria como princípio activo, que Georges
Bataille (“Le Bas Matérialisme et la Gnose”) considerava o leitmotiv da
gnose. Nos termos de Kantor: “Talvez tenham agido sobre mim os princípios
da minha IDEIA DA REALIDADE DO MAIS BAIXO ESCALÃO que sempre
me obrigam a colocar e exprimir as questões ‘últimas’ na matéria ínfima,
POBRE, privada de dignidade, de prestígio, indefesa, frequentemente até
INFAME”. No teatro como aliás na sua obra de artista plástico, há um fas-
cínio de Kantor pela cadeira, o embrulho ou o manequim.
Nem todos os objectos reflectem a procurada imagem da morte. E aqui
reencontramos o recurso à marioneta. Kantor começou por, ainda estudante,
criar em 1938 um Teatro de Marionetas, tendo como referências as vanguardas
dos anos 20, nomeadamente o construtivismo russo e o abstraccionismo.
Da Bauhaus retoma também o teatro de bonecos, que sabemos terem um
lugar importante no gosto popular – e Kantor, como Craig, como Brecht,

314
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

vai pesquisar na cultura não erudita ou mesmo marginal. Progressivamente,


Kantor acha que a marioneta já não serve e passa a trabalhar com manequins
de madeira e bonecos de cera, figuras perfeitas (porque não são obrigadas
a ser outra coisa além do que são) mas híbridas, que no seu estatuto de
“múmias quase mortas” causam estranheza e inquietude. Situando-se na fronteira
“entre o ser e o não ser”, entre o belo e o grotesco, criam desconforto e fascínio,
como no célebre conceito de Freud, o unheimlich, o familiar‑não‑familiar.

315
D rama e C omunicação

Em 1971, Kantor usa muitos manequins como “os duplos dos personagens
vivos, como se fossem dotados de uma consciência superior, alcançada depois
da consumação da sua própria vida. Esses manequins estavam já visivelmen-
te marcados pelo selo da morte” (2004:245). Em 1975, no espectáculo “La
Classe Morte”, as personagens transportam às costas manequins de fisionomia
impassível, que não dirão o que é a morte ou a vida ou a infância perdida.

O campo do imaginário começou a traduzir-se, para mim, não como um


material a construir e a realizar num quadro, mas como um vasto lugar fechado
no qual vêm acumular-se objectos do meu passado, sob a forma de destroços
e de armadilhas (…) que não me pertencem, ‘estrangeiros’; pessoalmente,
encontrei-me no meio disto tudo, sem nenhum papel a desempenhar. Não
fazia questão, aliás, em explicar no que poderia consistir, visto que isso
levaria já a uma espécie de estabilização. Ora, trata-se sobretudo de manter,
tanto quanto possível, esse estado de fluidez, de transumância, mas também
de magnetização que atraía todas as coisas, até as mais inesperadas. (Tadeusz
Kantor, 1982:272)

Kantor evitava os espaços convencionais dos teatros; quando tinha de


os usar, despia-os de todas as cortinas, transformando-os numa enorme
caixa negra, duplo negativo do habitual cubo cenográfico. Foi assim que
vimos e não esquecemos um espectáculo seu no esvaziado grande auditó-
rio da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1989. “LUGAR, não a cena mas
sim o LUGAR”: “a finalidade é criar no cenário não uma ilusão (longínqua,
sem perigo) mas uma realidade tão concreta como a sala” – como vimos
ser característico da performance. Tanto o espaço como os objectos e os
actores têm uma existência prévia à representação, que a ilusão criada
durante a representação não pode anular. Tal como os objectos, cada actor
deve aparecer em cena “carregado com toda a fascinante bagagem das suas
predisposições e dos seus destinos” (Alvim 19). O que eles estão é retirados
dos seus “rituais diários”, da sua função e finalidade, de modo a terem uma
existência autónoma e dilatarem-se na esfera artística da “liberdade total”,
sem qualquer finalidade pragmática (cf. Bauer) e sem contexto determina-
do (Alvim 14-15).

316
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Assim, esta realidade quase naturalista subitamente ganhou características


novas, algo suspeitas. Aumentou e começou a falar num idioma estrangeiro
como se estivesse ‘possessa’. Ela identifica-se como algo estrangeiro ou que
está morto para nós. Este processo de mudança é o processo de ‘deslizamento’
da ficção dramática, que cataloguei ‘o mundo da Morte’, para a ‘realidade’.
Claro que o espaço não pode ser apenas um pano de fundo; ele deve estar
conectado com as suas actividades, situações, acções, personagens, estados
emocionais e psicológicos... (Tadeusz Kantor, apud Alvim 24)

Reencontramos então o que esteve ausente em quase todo este capítulo:


a emoção, o sentimento e mesmo a psicologia. Não por acaso, em 1989, na
reposição do espectáculo O Regresso de Ulisses, Kantor rebaptizou a sua
obra: já não apenas “Teatro da Morte”, agora também “Teatro da Morte e
do Amor” (Alvim:18).

6. Que teatro pósdramático?

Falta ainda ver como muitas rupturas que neste capítulo referimos se
reflectem em algumas práticas cénicas posteriores, naquilo a que o alemão
Hans-Thies Lehmann, em livro de 1999, chamou O Teatro Pósdramático 7.
Lehmann considera que “o conceito de drama, mesmo com mil diferenciações,
perdeu o seu valor conceptual. Já não resolve a missão dos conceitos teóricos
que consiste em aguçar a percepção, antes oculta a compreensão do teatro”
(45). Há aqui um movimento parecido com o de Brecht, que também
escolheu a designação “teatro dramático” para qualificar o teatro com que
queria romper. No final do século XX , Lehmann considera que o termo
dramático “pode num sentido alargado (e compreendendo também a maior
parte da própria obra de Brecht!) definir o núcleo da tradição teatral europeia”

7 O termo já tinha sido brevemente usado: “Richard Schechner (…) fala uma vez de um
‘teatro pósdramático de happenings’ e, também de passagem, visando Beckett, Genet e Ionesco,
de um ‘drama pósdramático’, onde já não seria a ‘story’ mas aquilo a que ele chama o ‘game’
que constituiria a ‘matriz generativa’” (Lehmann 33-34).

317
D rama e C omunicação

(ibid: 26). Tradição que persiste em muitos, talvez na maioria, dos espectáculos
ainda hoje. Lehmann reconhece que o drama “subsiste como estrutura do
teatro ‘normal’, mas uma estrutura enfraquecida e em perda de crédito:
como expectativa de grande parte do seu público, como base de numerosas
das suas formas de representação, como norma dramatúrgica funcionando
automaticamente.” E, mesmo dentro do teatro pósdramático, “os membros
ou os ramos de um organismo dramático estão, mesmo como material
moribundo, sempre presentes”.
As linhas de fuga ao teatro dramático vai Lehmann tentar resumi-las no
conceito de pósdramático, que abrange um enorme conjunto de criadores
muito díspares, atravessando décadas diversas (a partir dos anos 70) e com
características bem diferentes: “teatro da desconstrução, teatro multimédia,
teatro neo-tradicionalista, teatro do gesto e do movimento” (ibid: 32), etc.;
mas tenta agrupar tudo isto numa conceptualização que não é apenas epo-
cal, antes se pretende conceptualmente substantiva. Para dar apenas o
exemplo da dança, na sua categoria cabem tanto Merce Cunnigham como
Pina Bausch, como se eles fossem afins ou se à segunda se pudesse aplicar
a característica de “formalismo marcado” que diz constituir “uma das carac-
terísticas do estilo do teatro pósdramático” (ibid:182). Mas antes tinha dito
que a heterogeneidade do estilo seria uma das características desse teatro...
Postas estas reservas, que convirá manter presentes, vale a pena seguir
o esforço de Lehmann, porque, independentemente de etiquetas, traz de
facto um avanço no pensamento sobre os caminhos (plurais) que o teatro
vem seguindo nas últimas décadas. “Faltam muitas vezes os instrumentos
conceptuais para formular a sua percepção”. Lehmann vai por um lado
oferecer uma perspectiva histórica de como a ele se chegou, por outro
arriscar “a conceptualização e a verbalização da experiência deste teatro
contemporâneo, muitas vezes qualificado de ‘difícil’” (ibid: 22-23,69).
Lehmann parte da “tese de que a profunda ruptura das vanguardas por
volta de 1900 continuou no entanto a preservar o essencial do ‘teatro dra-
mático’. (…) As formas teatrais que então surgiram continuaram a servir a
representação de aí em diante modernizada de universos textuais. Convém
recordar que as reformas do teatro visavam mesmo, frequentemente, salva-
guardar o texto e a sua verdade da desfiguração por práticas teatrais

318
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

tornadas convencionais” (28). Mas no fim do século XX a situação foi bem


diferente: “o modelo de comunicação dramático” foi “mais distintamente
posto em questão” pelos textos radicais das últimas décadas do que pela
prática da encenação (83) 8. Teatro de encenadores tanto é hoje em dia o
tradicional teatro dramático como o pósdramático: não é isso que distingue
ou que distinguiu a mudança (76). Para Lehmann, foram os próprios dra-
maturgos e as suas transgressões quem abriu caminho ao pósdramático.
Este teatro pósdramático provocou mudanças muito profundas, embora
a sua força não resida “numa exigência de transformar o mundo nem se
exprima na provocação da sociedade, mas na fabricação de acontecimentos,
de excepções, de instantes de desvio” (166). Não se trata já de transgredir
tabus, porque “o tabu desapareceu na esteira da racionalização, da desmis-
tificação e do desencanto do mundo” (293). O ar do tempo que agora se
respira pressupõe “um homem para quem mesmo os conflitos que parecem
mais graves já não tomam a forma do drama”. “É certo que podemos num
momento ou noutro reconhecer ainda um ‘aspecto dramático’ nalgum com-
bate de dirigentes, mas de novo nos apercebemos bastante depressa que,
no fundo, todo o conflito se decide noutra parte – nos blocos de poder.
No que respeita às verdadeiras questões, os nomes dos protagonistas são
intercambiáveis na prosa da vida.” “A fórmula ‘Nada mais nos resta do que
a comédia’ exprime a perda, no quotidiano, da interpretação trágica do
mundo como totalidade.” (54, 80). Já não se trata, como nas concepções de
Turner ou Schechner, de um modelo de drama assente na fractura da nor-
ma social, crise e posterior reconciliação, sempre dentro de um espaço de
solidariedade. Os tempos de hoje recusam as grandes narrativas, as macro­
‑estruturas, a coerência. “Poderíamos demonstrar que nesta transformação
se esconde uma tendência solipsista. O estabelecimento e a relativa resis-
tência a ‘grandes’ formas pode explicar-se pelo facto de que elas ofereciam
a possibilidade de articular experiências colectivas. A comunidade é a es-
sência dos géneros artísticos. E justamente já não se crê nessa comunidade
que se reconhecia por uma forma vivida em comum”: quando muito há

8 Também Meyerhold considerava que a dramaturgia do seu tempo estava avançada em


relação à encenação, como vimos na p. 310.

319
D rama e C omunicação

pequenas afinidades dentro de grupúsculos (130-131). Lehmann, no seu es-


forço de tudo abraçar, não deixa no entanto de referir certas experiências do
teatro com comunidades, desde os anos 70: procura de espaços que o rela-
cionem com o mundo da vida e do trabalho, mais tarde ocupação de lugares
públicos, grupos de ou com cegos ou deficientes motores ou mentais (214).
De resto, “o teatro parece renunciar à ideia de um princípio e de um fim;
a ideia de que a catástrofe (ou o divertimento) poderia assim continuar da
mesma maneira é-lhe mais próxima. As concepções científicas de um univer-
so ritmado alternadamente pelas expansões e contracções da teoria do caos
e do jogo contribuíram, também elas, para desdramatizar a realidade” (286).
Marianne van Kerkhoven “estabelece uma relação entre as novas linguagens
teatrais e a teoria do caos, que pretende que a realidade consiste mais em
sistemas instáveis do que em circuitos herméticos” (Lehmann 130).
Lehmann (28-29,155) dá mais algumas pistas (poucas) sobre o contexto
que explica ou permite o teatro pósdramático: reacção à “omnipresença
dos media na vida quotidiana desde os anos 70”, “uma resposta do teatro
à comunicação social transformada, às condições das tecnologias da infor-
mação generalizadas”, “novas possibilidades de ligação com a tecnologia
dos media”. “O poder económico e ideológico da indústria cinematográfica
e electrónica das imagens” tem também algum peso, no sentido em que
tornou preponderante “a ilustração ou a ‘simulação’ perfeitas – isto é, a
concepção mais insípida do que poderia e deveria ser a arte” (184). E assim
libertou o teatro para se afirmar como linguagem que cria as suas próprias
tramas conceptuais, o que para Lehmann o obriga a libertar-se totalmente
da questão da mimese. A articulação deste raciocínio (como se a arte não
pudesse ser mimética) parece-me muito discutível, mesmo na pintura
(até na abstracta, quanto mais na que mantém ou regressa a alguma figu-
ração), mais ainda no teatro, em que as tentativas de desumanização foram,
como vimos, persistentes mas continuam problemáticas. O próprio Lehmann,
com termos de Michael Kirby, reconhece que, “aparentemente, a presença
de um comportamento humano ‘real’ é aqui [no teatro] demasiado directo”,
mas acha que “foi necessário esperar pelos anos 1980 para que o teatro
obrigasse (…) a considerar uma acção abstracta, um teatro formalista
onde o processo real da performance substituísse o ‘mimetic acting’” (49).

320
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

A perda do sentido da arte, a favor dos sentidos, é algo que não preocupa
Lehmann (não é essa a nossa posição, como iremos vendo, nomeadamente
no último capítulo). Pelo contrário, é algo que ele celebra como libertação
da vocação das artes. E isto passa pelo abandono da mimese, a que o drama
sempre permanecera ligado. Lehmann diz que talvez o teatro pósdramático
não seja mais “do que um momento no qual o reconhecimento do além da
representação terá podido operar-se a todos os níveis” (234). Como “nenhu-
ma poetização do drama renunciou ao conceito de acção como objecto de
mimesis, a realidade do novo teatro começa com a desaparição do triângulo
– drama, acção, imitação (…) Enquanto não nos tivermos libertado deste
modelo nunca poderemos pensar o que reconhecemos e sentimos na vida
como formado pela arte” (50). Deixando embora clara a nossa discordância
com esta ideia fácil de que a arte para se afirmar tem de romper com a mi-
mese ou com a fabula (o que aliás excluiria tantas das maiores obras, de
Homero a Paula Rego…) sigamos Lehmann na sua exposição de como o
teatro pósdramático (mas nem todo…) escolheu esse caminho.

Quando os signos já não oferecem uma síntese mas, no entanto, ainda


dão referências a um ‘conteúdo’, continuam apesar de tudo assimiláveis num
trabalho associativo labiríntico. Mas quando essas referências já não funcionam
de todo, a recepção encontra-se face a uma recusa ainda mais radical: a
confrontação com a imediaticidade ‘muda’ e densa dos corpos, das matérias
e das formas. O significante já não faz mais do que se comunicar a si próprio,
ou mais precisamente, comunicar a sua presença. (Hans-Thies Lehmann 155)

Mas a questão não é tão simples, porque o real, quanto mais não seja
sensorial, faz parte do teatro. “Do sentido à sensualidade, assim se chama
o deslocamento operado pelo processo teatral enquanto tal; é o fenómeno
da voz viva que manifesta mais directamente a presença e a dominância
possível do elemento sensual no interior do sentido e, ao mesmo tempo, o
coração da situação teatral: a co-presença de actores vivos” (ibid: 240).
Ou seja, mesmo rejeitando a mimese, a presença real dos actores leva a
“uma via na fronteira entre dois espaços, como uma reviravolta contínua,
não de forma e de conteúdo, mas de uma contiguidade ‘real’ (conexão com
a rea­lidade) e de uma construção ‘encenada’.” (162-163).

321
D rama e C omunicação

Assim “surgiram formas teatrais que não iriam até à supressão pura e
simples do sentido, mas encontramos novas formas de um sentido ‘em
suspensão’” (11-12). “Enquanto que a mimese, na acepção aristotélica, en-
gendra o prazer do re-conhecimento e leva, por assim dizer, sempre a um
resultado, os dados sensoriais ficam aqui continuamente à espera de res-
postas. O que se vê e se ouve fica ‘em potência’, em apropriação diferida”
(156). A relação com o receptor sai assim reforçada, e uma das melhores
partes da obra de Lehmann é quando articula uma conceptualização dessa
mudança.

É possível diferenciar no teatro um eixo de comunicação intra-cénico


sobre a cena e um eixo ortogonal que representa a comunicação entre a cena
e a localização real ou estruturalmente distinta do espectador. Atendendo a
que o termo grego “theatron” designava na origem o lugar onde se encon-
travam os espectadores (e não o teatro no seu conjunto), chamaremos ao
segundo eixo “eixo-theatron”. Os diferentes modos de monólogo, de após-
trofe ao público e o solo de performance têm em comum o recuo do eixo
intra-cénico a favor do eixo-theatron. A língua do actor passa a ser por prin-
cípio acentuada como dirigida ao público, o seu discurso como o discurso
de uma pessoa real. (…) O teatro pósdramático tirou a consequência: deve
ser possível em princípio marginalizar em extremo a primeira dimensão (até
ao seu desaparecimento) e forçar a segunda para a elevar a uma nova qua-
lidade teatral. (Hans-Thies Lehmann 205-206)

Reencontramos, em consequência, uma ideia (que lembra o célebre


conceito de Benjamin): o princípio da exposição torna-se preponderante, e
diz respeito não apenas aos corpos, aos gestos, às vozes, mas à própria
língua. “Sons, palavras, frases, ruídos cuja lógica não resulta de um ‘sentido’
mas da composição cénica”: já os textos (paisagens) teatrais de Gertrude
Stein tinham dado “o exemplo de uma linguagem que perde o sentido e a
temporalidade teleológicos imanentes e pode ser comparada a um objecto
em exposição” (ibid 237). Que a descolagem do sentido não seja apesar de
tudo completa, vê-se nas nuances com que Lehmann faz as suas sínteses:
“mais presença do que representação, mais experiência partilhada do que

322
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

experiência transmitida, mais processo do que resultado, mais manifestação


do que significação, mais impulsão de energia do que informação” (134).
Nesse dar em exposição, o teatro pósdramático, ou uma parte dele,
aproximou-se do quotidiano, “do trivial e do banal, da simplicidade de um
encontro, de um olhar, de uma situação comum. O teatro dá assim uma
resposta possível à saciedade da torrente quotidiana de fórmulas retóricas.
A dramatização inflacionista e anestesiante de sensações quotidianas torna-
va-se insuportável.” Por isso, como certas tendências da literatura e da
música, uma parte do teatro pósdramático “pratica uma economia na utili-
zação de signos que remete para a ascese” (141): espaço vazio (de Brook,
mas já vinha de Appia, Copeau, Brecht), silêncio, lentidão. Porém, como
neste grande albergue do pósdramático há igualmente casos de sobrecarga
de elementos, objectos, mobílias, e de alta velocidade, Lehmann também
diz que a lei é a infracção “à norma da densidade dos signos mais ou menos
estabelecida. Existe ou um excesso, ou uma escassez” (139).
Esta integração do espaço quotidiano pode acontecer mesmo quando
há a recusa da ficção, que é outro aspecto fundamental da obra de Lehmann.
É certo que o teatro já “conhecia um certo número de rupturas convencio-
nalizadas (o aparte, o discurso ao público)”, mas inseria “tudo isto tão
discretamente quanto possível no cosmos fictício”. O teatro pósdramático
estilhaçou, ou mesmo abandonou, a ideia do teatro como representação de
um cosmos fictício, cujo fechamento era fundamental para o drama (mesmo
no teatro épico ou no teatro do absurdo): atenuam-se os princípios de
narração e de figuração, bem como a ordem de uma fábula.
Um elemento central do paradigma pósdramático é “atribuir ao real a
mesma legitimidade que ao ficcional”: e “não é tanto a aparição do ‘real’
enquanto tal, é a sua utilização autoreflexiva” (162). “Em vez da atenção
(épica) virada para o desenrolar das acções (narradas ou representadas), o
interesse é inteiramente dirigido à presença dos actores, bem como aos
reflexos mútuos e às analogias recíprocas”. (176) No teatro pósdramático,
como na performance, “impõe-se o liveness, isto é, a presença provocante
do homem em vez da incarnação de uma personagem” (218). Pode, é cla-
ro, gerar-se algum “mal-estar pela indecibilidade de saber se se trata de
realidade ou ainda de ficção”: quando em cena morrem peixes ou rãs pa-

323
D rama e C omunicação

recem ser esmagadas ou não sabemos se o actor está a receber descargas


eléctricas (Fabre), o público reage (164).
Lehmann apresenta então como uma das chaves do novo teatro (embo-
ra com antecedentes) o conceito de situação: a categoria adequada para o
novo teatro não é a acção, mas o estado (“é sabido que são geralmente
mais os pintores que falam em estados”) e a situação, não apenas como
evento de excepção, mas como algo que provoca todos os participantes.

É por isso que colocamos o conceito de situação ao lado do de aconte-


cimento. Esta noção serve para pôr em jogo o contexto da tematização de
situações na abordagem da filosofia da existência (Merleau-Ponty, Jaspers,
Sartre). Aí, o termo ‘situação’ designa uma esfera instável da escolha ao mes-
mo tempo possível e imposta, assim como a transformabilidade virtual da
situação. Através do jogo, o teatro cria uma situação na qual já não é possí-
vel alguém colocar-se simplesmente ‘em face’ do objecto percebido, mas onde
se acha como parte integrante e, por este facto, aceita – como Gadamer
sublinha para a ‘situação’ – encontrar-se nela de tal maneira que ‘não se
possa ter dela um conhecimento como de um objecto’ (Gadamer). (….)
Efectivamente, o teatro nega intencionalmente a possibilidade de ‘desenvol-
ver uma fábula’ ou, em todo o caso, relega-a para um segundo plano. Isto
não exclui uma dinâmica particular (…), poder-se-ia chamar ‘dinâmica céni-
ca’ em oposição à dinâmica dramática. Mesmo o quadro ‘estático’ parece ser
em verdade somente ‘o estado’ do trabalho pictórico decorrido, definitivo
por esta vez, no qual o olhar do observador, se quiser abarcar a imagem,
deve aperceber e reconstruir a dinâmica e o processo. (…) O estado é a
representação estética do teatro: ele mostra mais um conjunto do que uma
história, mesmo se os actores em carne e osso evoluem no seu interior. Não
é por acaso que muitos artistas do teatro pósdramático provêm das artes
plásticas. (Hans-Thies Lehmann 167-168,104)

Outras vezes, Lehmann fala da “preponderância de uma ‘atmosfera’ sobre


os desenvolvimentos narrativos” (95). Sublinhe-se que não exclui a narração,
antes a apresenta mesmo como “um dos traços característicos do teatro
pósdramático”: “muitas vezes, tem-se a impressão, não de assistir a uma

324
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

representação de teatro, mas antes à escuta de uma narrativa sobre a peça


em questão”. Só que não é uma narração épica, é mais uma combinação
com “a recordação/narração pessoal dos actores”, “a transmissão de uma
experiência pessoal” (173). Nos espectáculos do encenador Klaus Michael
Grüber, tem-se a sensação de que a acção já passou, e nem sequer há o
debate sobre ela, mas apenas uma meditação melancólica, um “eco do acto
produzido”, um Trauerspiel, uma voz que se eleva, comunicante mas im-
potente (117).
O declínio do ficcional é causa ou consequência do declínio das perso-
nagens. Já “não há necessidade nem da acção dramática nem das dramatis
personae”, sequer plasticamente concebidas, “nem mesmo de personagens
identificáveis” (45), como ainda vemos em Kantor ou Pina Bausch.
“Encontramos aqui uma articulação ligando-se menos à intencionalidade
– a característica do sujeito – do que ao seu abandono, menos à vontade
consciente do que ao desejo, menos ao ‘eu’ do que ao ‘sujeito do incons-
ciente’” (21).
Como correlato, a relação com “o mundo das coisas no seu poder má-
gico e na sua realidade concreta” deixa de ser prerrogativa da representação
lírica ou épica. A imbricação dos corpos no mundo das coisas deixa de ser
abafada: as coisas voltam a ter valor, seja no teatro de Kantor, como vimos,
seja no teatro High Tech, seja nas paisagens de Bob Wilson com plantas,
pedras, máquinas, animais; e os actores de carne e osso conhecem por sua
vez a experiência da coisificação (268-269).
Outro aspecto fundamental na caracterização que Lehmann faz do teatro
pósdramático é a perda de qualquer ideia de totalidade. “Totalidade, ilusão,
representação de um mundo constituem o modelo do ‘drama’. E inversa-
mente, pela sua forma, o teatro dramático acaba quando e na medida em
que esses elementos já não representem o princípio regulador, mas passem
a ser apenas uma variante possível da arte do teatro” (28). “O teatro pós­
‑dramático dos anos 1980 e 1990 já nem sequer sente o colapso das
certezas na concepção do mundo como uma ansiedade metafísica” (80).
Lehmann apresenta para este abandono da ideia de totalidade, da mi-
mese e do modelo, por um lado as razões sociológicas que já referimos,
por outro lado razões internas à própria evolução do drama: “o teatro tem

325
D rama e C omunicação

vivido toda uma série de metamorfoses que – em relação aos postulados da


unidade, da totalidade, da reconciliação e do sentido – afirmam o direito à
disparidade, ao parcial, ao absurdo e ao feio. (…) Esse ‘outro’ do teatro
clássico já estava predisposto na sua concepção filosófica mais consequen-
te: enquanto possibilidade escondida da fractura no quadro do mecanismo
de reconciliação levado ao extremo”: esta evolução “significa mais o desen-
volvimento e a eclosão de uma potencialidade da desintegração, da
desmontagem e da desconstrução no drama” (62-63). Lehmann mostra até
como “a descrição hegeliana da evolução histórica do drama aparece como
um modelo da dissolução do conceito de teatro dramático” (65).
O abandono da totalidade como ideia do drama não é apenas uma
questão de género: porque os géneros se transformam conforme as mudan-
ças da História e porque o próprio género dramático era concebido como
estado superior da História. “Considerar a História como drama conduz
quase inevitavelmente à teleologia, conferindo ao drama a perspectiva de
uma última conciliação plena de sentido na estética idealista, ou a visão do
progresso da História na concepção histórica marxista. (…) Um certo nú-
mero de intelectuais marcados pelo conteúdo de significantes estéticos da
História puderam sobrencarecer isso, aos conceberem a História como
contendo em si uma beleza dramática objectiva. Se autores como Samuel
Beckett ou Heiner Müller evitaram – justamente – a forma dramática, foi
também por causa das suas implicações histórico-teleológicas” (54-55).
Note-se que estas tendências se verificam nas várias artes, que apresen-
tam “traços estilísticos que se atribuem à tradição maneirista: resistência à
concisão orgânica, tendência para os extremos, distorção, instabilidade,
paradoxo”, equivalência, “cada pormenor parecendo poder surgir no lugar
de um outro”. “Sacrifica-se a síntese para, por outro lado, atingir uma den-
sidade em momentos intensos. Esta tendência aplica-se ao conjunto das
disciplinas artísticas. O teatro, a arte do acontecimento por excelência,
torna-se o paradigma da estética” (130-132).
Vejamos então como o abandono da totalidade transforma o funciona-
mento do teatro. O próprio ensaio, “se servia antes para a estruturação, a
elaboração da forma, é aqui sinónimo de desestruturação e de desconstru-
ção da fábula, da significação e da totalidade formal” (254). O teatro

326
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

desenvolve muitas conjunções rizomáticas, que impedem a síntese (142).


Heiner Müller confiou a Horst Laube: “quando eu vou ao teatro, percebo
sempre que me é cada vez mais enfadonho seguir uma mesma e só acção
no decurso de um serão. De facto, isso já não me interessa. Quando, no
primeiro quadro, se esboça uma acção, quando no segundo começa uma
outra que nada tem a ver, em seguida um terceiro e um quarto, então é
que é divertido, agradável, mas já não é a peça perfeita” (apud Lehmann
34-35). Mais ainda do que a variação, uma das novas características é a
simultaneidade: várias cenas ou um grande número de elementos em si-
multâneo – como num quadro de Brueghel. Esta simultaneidade obriga à
fragmentação da percepção (138). A parataxe (construção por justaposição,
sem que um termo de ligação indique a natureza da relação entre as frases)
e a simultaneidade “conduzem a que o ideal estético clássico de uma coe-
são ‘orgânica’ dos elementos no artefacto se torne obsoleta” (135,138).

Os discursos da cena aproximam-se mais da estrutura dos sonhos e


parecem relatar o mundo sonhado dos seus criadores. No sonho predomina
a não hierarquia entre as imagens, os movimentos e as palavras. (…)
Na hermenêutica psicanalítica, fala-se de ‘atenção igualmente flutuante’.
Freud utilizou esta denominação para caracterizar o modo como o analista
escuta o indivíduo analisado. O importante aqui é que não se compreende
tudo de uma só vez. A percepção deve antes permanecer receptiva para
surpreender nos lugares mais inesperados laços, correspondências, explicações
que deixam aparecer a uma nova luz o que antes foi dito. (Hans-Thies
Lehmann 131,137)

Também a recepção no teatro passa a caracterizar-se pela “atenção flu-


tuante”. Aumenta a função do espectador”, “que já não representa apenas
uma espécie de testemunha exterior, mas se torna um parceiro, parte inte-
grante do teatro, que decide do sucesso da comunicação” (170,220). “Porque
o teatro partilha com as outras disciplinas artísticas da (pós)modernidade
uma tendência para a auto-reflexão e a auto-tematização” (19-20). E isto
afecta enormemente a relação com o espectador, que deixa de ser “um
factor bem confortável na definição prévia da situação como teatro”:

327
D rama e C omunicação

“a segurança e a certeza não reflectidas com as quais ele vive o seu estado
de espectador enquanto comportamento social inocente e não problemáti-
co” são postas em causa (164). Por vezes, como nos espectáculos dos Fura
dels Baus, o público pode ser sacudido de um lado para o outro e aban-
donado sem orientação (200); nos trabalhos de Josef Szeiler ou do grupo
Angelus Novus, seguindo o exemplo de Grotovski, as apresentações públi-
cas são entendidas como continuação do trabalho dos ensaios, e, nos
primeiros, o público pode entrar e sair quando lhe apetecer. “Se o teatro
se apresenta como esboço e não como pintura acabada, deixa ao espectador
a possibilidade de sentir a sua presença, de reflecti-la, e até de contribuir
para o seu carácter inacabado. O preço disto é a decidida depreciação da
tensão dramática” (173).
“A des-hierarquização dos procedimentos teatrais representa um princípio
contínuo e inerente ao teatro pósdramático” (já antecipada pelos textos tea­
trais de Gertrud Stein). E “géneros diferenciados encontram-se ligados numa
representação (dança, texto narrativo, performance…); todos os meios são
utilizados com uma mesma importância” (135-136). Isto implica um papel
decisivo da colagem e da montagem, como no cinema, no expressionismo
e no surrealismo. À medida que o espectador “adquire uma faculdade sem-
pre crescente de ligar o heterogéneo, a apresentação extensa das relações
lógicas faz cada vez menos sentido” (100). O teatro pósdramático:

Conhece a justaposição e a colocação ao mesmo nível de todos os meios


confundidos que permitam ao teatro pedir emprestado uma pletora de
linguagens formais heterogéneas para além do drama, indo mesmo até a uma
auto-interrupção do carácter estético enquanto tal. O teatro pósdramático
pode realizar uma montagem dos elementos líricos, épicos ou dramáticos
( “ rapsódica ” , poderíamos dizer com Sarrazac), não aplicando essas noções
apenas ao carácter das estruturas da linguagem: ou pode procurar a
proximidade extrema do “ real ” , do quotidiano, do aparentemente a-mórfico.
(Hans-Thies Lehmann 14)

Estas formas, a que por vezes “quase não podemos chamar teatro”, po-
dem utilizar “motivos vindos do cinema ou da música pop, um patchwork

328
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

de episódios minúsculos e rápidos: ao mesmo tempo distanciados pela


ironia, sarcásticos, ‘cínicos’, desiludidos e de tom cool” (191). Encontra
muitas vezes inspiração “nos conceitos do divertimento cinematográfico ou
televisivo, refere-se (sem preocupações qualitativas) aos Splatter Movies, a
séries de tv, aos clichés da publicidade, à música disco e também ao patri-
mónio intelectual clássico. Ao mesmo tempo, este teatro marca o estado de
espírito dos seus espectadores, e sobretudo dos mais jovens, entre resigna-
ção, rebelião, tristeza e desejo impaciente de uma vida intensa e de
felicidade. (…) Ao fun corresponde a tendência constantemente observável
da paródia, já inerente ao teatro do absurdo” (190-191).

Face ao peso e à difusão quase incontornável da realidade mediatizada,


a maior parte dos artistas não entrevê outra saída que não seja ‘enxertar’ o
seu trabalho pessoal sobre outros modelos, em vez de tentar uma formulação
artística ‘própria’ ou original – tentativa aparentemente sem esperança no
mundo mediatizado. Mas como os clichés mediatizados se incrustam em todas
as formas de representações, uma seriedade sem equívocos torna-se quase
impensável. (…) Todos os movimentos do sentimento quaisquer que eles
sejam só podem hoje exprimir-se entre aspas e qualquer impulso emotivo
que o drama antigamente podia mostrar deve agora passar o filtro da ironia.
(…) A maior parte dos artistas posiciona-se a cada vez numa certa distância
em relação à sua ‘própria’ cultura e adopta uma atitude dissidente, divergente
e marginal. (Hans-Thies Lehmann, 189-190,277)

Isto não impede que assim se vá muitas vezes ao encontro de “um mo-
tivo fundamental da teoria da arte e do teatro: a ideia do ‘choque’ (Benjamin),
a meio caminho entre uma categoria psicológica e estética; do que é ‘sú-
bito’ (Bohrer), do ‘ser-assaltado’ (Adorno), do susto que ‘é necessário para
o reconhecimento’ (Brecht), da ideia que o pavor é ‘a primeira aparição do
novo’ (Heiner Müller), da ameaça que ‘nada se produza’ (Lyotard)” (232).
Algumas formas do teatro pósdramático “tendem a integrar a velocidade da
época dos media”, trocando o desenvolvimento psicológico de acções e
personagens por ritmos de percepção acelerados, pela velocidade da esté-
tica pop e dos media, resultando em espectáculos de menos de uma hora;

329
D rama e C omunicação

outras formas trabalham o ralentit, a imobilização e a repetição. “A desin-


tegração do tempo como continuum revela-se como o signo da dissolução
ou, pelo menos, da subversão do sujeito possuindo a certeza do seu próprio
tempo”, porque já não consegue orientar ou ligar experiências radicalmen-
te descontínuas (251).
“Uma corrente da arte moderna atinge o teatro: a permutação da obra,
num processo inaugurado por Marcel Duchamp com o ‘real’ do urinol.
O objecto estético já não possui, por assim dizer, verdadeira substância em
si próprio, mas funciona como o que desencadeia, catalisa e enquadra um
processo no espectador”, possibilitando uma transformação da percepção,
contra aquilo a que os formalistas russos chamavam uma percepção “auto-
matizada” (169,167). Mas raramente se trata de uma relação política
explícita, como acontecia com o Living Theatre, em que o público era in-
tegrado em discussões ou mesmo escaramuças: porque a comunicação
teatral já não é, em primeiro lugar, entendida “como confrontação com o
público, mas como produção de situações de auto-reflexão e de auto-ex-
perimentação de todos os participantes” (167). O que pode por vezes
existir é a acentuação do carácter ensaístico (cuja origem remonta a Craig,
que imaginou uma encenação de todos os diálogos de Platão): textos teó-
ricos, filosóficos ou pertencendo à estética do teatro são trazidos para o
palco; mesmo com textos teatrais, “os actores parecem mais mergulhados
num debate sobre o seu objecto e a sua transposição cénica do que na
representação” (179-181).
Por último, Lehmann faz várias observações interessantes sobre os novos
lugares da palavra no teatro. Por exemplo, no teatro de John Jesurun, “des-
valorizada pela sua característica psicológica individual, a linguagem falada
assume o papel de elemento de conexão e de constituição” (184). Já “as
teses que Brecht desenvolveu nos anos 1920 sobre a ‘literarização’ do tea-
tro (…) também visavam reforçar a presença do texto escrito como
interrupção da imagética cénica autosuficiente”. Embora com fins diferentes,
também Giorgio Barberio Corsetti (referindo expressamente as heranças de
Meyerhold, Grotovski e Living Theatre) considera que “o teatro precisa do
texto como corpo estranho, como ‘esfera exterior à cena’”, para, com tantos
efeitos visuais, “não se perder na auto-teatralização da opsis” (236-237).

330
A lternativas teatrais (e anti -teatrais)

Assim estes criadores pósdramáticos, muitas vezes com formação ou


passado nas artes plásticas, vão necessitar da palavra, mas vão espacializá­
‑la. Convém aqui “englobar a noção de ‘espaçamento’ no sentido que Derrida
lhe dá: a materialidade fonética, o desenrolar temporal, o estender no
espaço, a perda de teleologia e da auto-identidade. Escolheremos o termo
de texto-paisagem porque designa ao mesmo tempo o laço da linguagem
teatral pósdramática com as novas tecnologias do visual e lembra a relação
com as Landscape Plays [de Gertrud Stein]. O texto, o visual e os ruídos
fundem-se na ideia de uma paisagem sonora” (239). “O verdadeiro diálogo
opera-se entre o som e o espaço sonoro e não entre os interlocutores”
(118). Com a música electrónica torna-se possível manipular à vontade os
parâmetros do som; juntamente com “as combinações de barulhos e sons
electrónicos (sampling) (…) torna-se possível manipular e estruturar
deliberadamente o conjunto do espaço sonoro do teatro” (145). Ora,
“tradicionalmente, a sonoridade vocal como halo em torno de um corpo
cuja verdade é a sua palavra não prometia nada menos do que a determinação
subjectiva da identidade humana.” Por isso, passar a manipular a voz não
é um jogo infantil: “a voz desviada pela electrónica põe fim ao privilégio
da identidade”; “desagrega-se a densidade do conjunto do processo teatral,
quando os sons e a voz são organizados separadamente uns dos outros e
reconhecíveis, cada um, na sua lógica própria” (241).
Finalmente, sublinhe-se a “tendência do monólogo para deslizar para a
locução em coro” (Angermeyer, apud Lehmann 209). À partida, “um coro
ainda oferece a possibilidade de manifestar um corpo colectivo que entra
em relação com fantasmas sociais e com aspirações à unificação” (210). Só
que “o teatro pósdramático não quer tanto fazer ouvir a voz de um sujeito
particular, como realizar uma disseminação das vozes” (240-241). Não é um
diálogo antitético, é mais aditivo, uma polifonia: “individualmente, os ora-
dores só executam por assim dizer estrofes num coro colectivo de
lamentações (…) em que as vozes individuais se adicionam num canto
geral” (209) – curiosamente, uma tendência que Szondi já encontrava em
Maeterlinck, o que só confirma como esta viagem pelos movimentos alter-
nativos desde o século XIX continua necessária para compreender algumas
tendências contemporâneas.

331
(Página deixada propositadamente em branco)
1 0 . T R AG É DI A , CO M É DI A E T R AG ICO M É DI A

1. No seguimento das anteriores discussões sobre o que caracteriza (e


o que desestrutura) o dramático, vale a pena reflectir agora sobre o que
distingue a tragédia e a diferencia da comédia. O que resultará, no final,
numa atenção à tragicomédia.
Veremos que a discussão da tragédia remete privilegiadamente para a
necessidade que a cultura sempre tem sentido de se confrontar com o seu
exterior. Diante da angústia face ao caos, face ao “absolutismo da experiên­
cia”, para usar os termos de Hans Blumenberg, os homens tiveram e têm
necessidade de inventar nomes, imagens, metáforas que transformam essa
angústia em medos localizados; recobertos com tais nomes, podem esque-
cer esse contacto primordial com o que não está nas suas mãos ou nas suas
bocas – mas ao mesmo tempo sentem alguma necessidade de o lembrar.
Num poema do escritor de Alexandria, Konstantínos Kaváfis (1863-1933),
que iremos citando, imagina-se uma situação em que os chefes do império
romano estão “À espera dos bárbaros”: “essa gente era uma espécie de
solução”. Cavafy não tem uma nostalgia culposa e esquemática da barbárie,
nem sonha regressar a uma pretensa e idílica comunhão original, como
tantos pensadores fizeram nestes últimos três séculos e outros, leitores de
Freud ou de Marcuse, pensaram nos anos 60 ser possível fazer a partir das
artes. Kaváfis sabe que nega a barbárie em cada palavra que escreve, pelo
próprio acto de escrevê-la. A relação com a barbárie e com a sua liberdade
só pode, portanto, ser subtil e ambígua; é nessa ambiguidade que cria um
espaço de manobra. “Porque, subitamente, começa um mal-estar, e esta
confusão? Como os rostos se tomaram sérios! E porque se esvaziam tão
depressa as ruas e as praças, e todos voltam para casa tão apreensivos?
D rama e C omunicação

Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram. E umas pessoas que chega-
ram da fronteira dizem que não há lá sinal de Bárbaros. E agora, que vai
ser de nós sem os Bárbaros?”
Porque vêm então os bárbaros ao poema? Eles servem para teatralizar
um diagnóstico radical da decadência da civilização, na filiação de Nietzsche.
A civilização também cria deserto e mal-estar (veja-se o livro de Freud, de
1930, O Mal-estar na Civilização). Todo o documento de cultura é também
um documento de barbárie – a expressão é de Walter Benjamin. Nem só
os bárbaros nos matam: por delicadeza, também se perdem as vidas. Por
isso a cultura repetidamente sonha com a invasão da barbárie. Benjamin,
duas a três décadas depois de Kaváfis 1, compreende o carácter destrutivo
como aquele que precisa de abrir área e caminho: “a sua necessidade de
ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio. O carácter destru-
tivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas
da nossa própria idade; reanima, pois toda a eliminação significa, para o
destruidor, uma completa redução, a extracção da raiz da sua própria con-
dição. O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais
nada, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quan-
to se testa o quanto ele merece ser destruído.” (1986:187) A indispensável
linguagem parece tanto mais dispensável quanto a nossa Modernidade vai
reduzindo tudo a palavras e não consegue deixar de o fazer, mesmo sa-
bendo que isso significa a sua própria destruição. Quando, no vai-vem
entre a linguagem e o mundo, se perde o contacto com o mundo, ou se
acredita que é a linguagem e só ela que cria o Ser, então é preciso tentar
ir às próprias coisas e aceitar a sua violência – o mais nua possível. Mandam­
‑se pelo menos sentinelas para a fronteira, à espera dos bárbaros. Por isso,
as vanguardas artísticas do início do século XX , como as neo-vanguardas
do fim do mesmo século, foram à procura das barbáries instintivas e cor-
porais, africanas, orientais ou infantis. Por isso existem no nosso tempo
tantos movimentos de neo-tribalismo.

1 Do poema apenas sabemos que foi escrito antes de 1911. O texto de Benjamin é dos
anos 30.

334
T ragédia , comédia e tragicomédia

É claro, porém, que as artes contemporâneas vivem também da citação


e montagem de construções do passado. Num mundo complexo, carregado
de imagens de uma tão longa e densa tradição cultural, não pode procla-
mar‑se nenhuma ingenuidade – a não ser ardilosa. Seria absurdo aspirar à
naturalidade, ou erigi-la em alvo, em qualquer sociedade posterior a
Shakespeare, ou a Mozart, ou a Picasso – ou a Bosch, ou a Homero... Haverá,
quando muito, artifícios e aparências de naturalidade. Mesmo quem espera
pelos bárbaros, espera com togas bordadas, braceletes e anéis: porque
“coisas dessas maravilham os bárbaros”. Quando eles vieram conquistar
Roma, foram também conquistados por ela, pelas suas insígnias. Romanizaram-­
‑se e disseminaram a sua cultura, ainda mais longe que o Império.
No século XX os bárbaros também vieram, realmente, terrivelmente,
criando sociedades totalitárias que não foram solução nenhuma nem pude-
ram ser suportadas muito tempo. Quando se passou da espera dos bárbaros,
como “uma espécie de solução”, à experiência dos bárbaros, como solução,
o resultado foi um Waste Land devastado e devastador, com opressões e
massacres do género daqueles antigos que Kaváfis, como bem nota Jorge
de Sena (161), sinistramente omite, talvez por evidentes, e que tantos mo-
dernistas, dos maiores, não tiveram na devida conta. Fomos bárbaros e
escravos – e ainda hoje o somos, noutros focos de indescritível violência,
maiores nuns países do que noutros. É que a ideia de barbárie só pode ser
ambiguamente glosada ou estetica ou eroticamente: só aí é possível conhe-
cer ou projectar totalidades, e bem está a política contemporânea quando,
melhor ou pior, se defende com clareza contra os coletes de força de outros
terrores. Kaváfis, sabiamente, nunca extrapola para fora das soluções da
poesia; nele, os bárbaros funcionam sempre e apenas como “uma espécie
de solução”, um referente, um operador do diálogo ou do silêncio loquaz.
O enunciador deste poema é alguém no meio da multidão que, no Fórum,
espera os bárbaros, mas que parece mais lúcido do que essa multidão; não
tem a sua alegre inconsciência porque tem a consciência dela; e por isso
mesmo não se decide, enuncia ambígua e ironicamente. Sena (215,193,25‑26)
gabou em Kaváfis a “visão constantemente trágica e irrisória da História”,
“uma visão muito moderna do saber viver com desencantada coragem”, “em
que não subsiste a mínima fracção de complacência, de ilusão, de senti-
mentalismo ou de pedantaria intelectual”.

335
D rama e C omunicação

Assim aqui estamos, à espera dos bárbaros, de Ítaca, de Godot. Talvez


esta espera, e a angústia dela, sejam os maiores laços sociais que hoje nos
ligam. Assumindo cada vez mais o incontornável inacabamento da nossa
Modernidade, é ambígua mas activamente que nos movemos, como Kaváfis.
E tudo isto se coloca com particular relevância ao discutirmos a tragédia:
essa que, ao procurar enfrentar o exterior da cultura, o faz no interior des-
sa cultura, e por isso trai o trágico ao ir ao encontro dele.
Pois há distância entre o trágico e a tragédia? Eduardo Lourenço (5)
relembra a diferença, que já antes vimos, entre a participação colectiva em
cultos, muitas vezes sacrificiais, e a sua expressão como modo de arte, tal
como a tragédia é pensada por Aristóteles já num tempo em que passou a
ser obra de profissionais e objecto de concurso: em Aristóteles “é um es-
teta que fala, não um habitante de um mundo visceralmente confrontado
com a realidade trágica.”

À Tragédia bastaram três gerações para se converter de culto em espec-


táculo, de participação num mistério que não se desenrola diante dos homens,
mas neles e através deles, em re-criação. Recriação de destinos trágicos sem
dúvida, recriação através da qual a comunhão no mistério inicial, no trágico
original inexpresso, é sempre possível, mas cada vez mais sob o modo esté-
tico, quer dizer, sob o modo anti-trágico por excelência. (...)
O Trágico reflui da exterioridade onde desde sempre parece ter tido o
centro, para o seu núcleo primordial: a Linguagem. É aqui, lugar da ordem
do mundo, que a percepção de um caos irremível, ou só redimido através
de um sacrifício que consagra sem ilusão alguma a impotência humana – e
tal é a experiência trágica – nos dá, através de balbuciamentos o que foi
outrora um fúnebre mas exaltante esplendor. (...)
Assim a Tragédia enquanto obra de arte não é outra coisa que o modo
de abolição do Trágico. Que o seu destino histórico tenha sido uma contí-
nua degradação do Trágico é consequência, não acaso. Por isso e ao
contrário do que se pensa os Gregos não foram um povo trágico mas o
primeiro dos povos nossos conhecidos que o não foi. É aliás neste facto
que realmente consiste o tão famoso e tão superficialmente interpretado
milagre grego. (...)

336
T ragédia , comédia e tragicomédia

De onde procede então esse lugar comum de espírito trágico atribuído


aos gregos e que a Tragédia contém como um vaso sagrado? Da confusão,
quase irremediável, entre o ser e a sua expressão, esta última tomando pela
sua variabilidade o lugar daquilo que nomeia mas ocultando-o. O Trágico
enquanto ser é o que escapa à “compreensão”, à variabilidade humana, é o
domínio dos deuses, quer dizer, de outra-coisa-que-o-homem. Mas o Trágico
enquanto apreendido, expresso (e é isto antes de tudo a Tragédia grega) é
por natureza des-tragifïcação. (Eduardo Lourenço 1-5)

Na nossa reflexão, que se situa desde logo no terreno da expressão da


tragédia como arte do trágico (mesmo se ainda de algum modo ligada a
cultos religiosos, como na Grécia), esse estrato preexpressivo vai surgir
constantemente como horizonte, convocado em muitas das discussões sobre
o tema. A começar pela mais célebre de todas, a do jovem Nietzsche que,
em 1870, aos vinte e sete anos, escreveu essa obra maior, que iremos citar
longamente, O Nascimento da Tragédia. Dezasseis anos mais tarde consi-
derou que, apesar de ser “obra de principiante”, “muito convencido e por
isso arrogando-se o direito de não efectuar demonstrações”, com muita
eloquência e pouca prudência, apesar de tudo afrontava “um problema com
cornos” (esta era a definição que os gregos davam de enigma), que era o
de questionar, com “intuições e ousadias”, o pensamento racional, científi-
co, e as suas raízes no próprio pensamento grego (9-10). A principal dessas
intuições, dirá mais tarde Nietzsche, foi, contra a ideia de resignação do
seu próprio mestre Schopenhauer, argumentar que o pessimismo e a tragé-
dia não correspondem necessariamente ao declínio, à decadência, à
falência dos instintos lassos e enfraquecidos.

Uma propensão intelectual para o que é duro, horrível, malvado,


problemático na existência feita de bem-estar, de transbordante saúde, de
abundância existencial? Haverá talvez um sofrimento devido à própria
sobreabundância? Uma tentadora ousadia da mais arguta visão, que exige o
que é terrível como se desafiasse o inimigo, o digno inimigo perante o qual
ela pode provar a sua força? (...) E por sua vez: o que significa aquilo que
causou a morte da tragédia, o socratismo da moral, a dialéctica, moderação

337
D rama e C omunicação

e serenidade do homem teórico – como assim? não poderia precisamente


este socratismo ser um sinal da decadência, do cansaço, da doença, dos
instintos dissolvendo-se anarquicamente? E a “serenidade grega” do helenismo
tardio, apenas um crepúsculo? (Friedrich Nietzsche 8)

Contra o espírito lógico, racional e crítico que Sócrates simboliza e que


Nietzsche (inspirando-se em Wagner, como mostrei no sétimo capítulo)
diagnostica já no último período das tragédias áticas, o que contrapõe?
Justamente a subversão dessa racionalidade pelo seu contrário, à imagem
do que teria acontecido no quadro (historicamente um pouco discutível)
que Nietzsche traça dos primeiros tempos das tragédias na Grécia. Esta luta
de contrários, tão característica de todo o pensamento do autor de Humano,
Demasiado Humano, é nesta obra figurada nos deuses Apolo e Dioniso.
A oposição pode por vezes parecer menos clara, porque Dioniso tem mui-
tos nomes (corresponde à experiência do desdobramento, entendida a
partir da matriz do actor) e mistura por exemplo elementos masculinos e
femininos. Por sua vez Apolo é matador de animais, fica impregnado com
o seu sangue, tem também algo de dionisíaco; nas poucas figurações gregas
destes deuses, ele surge por vezes com a lira, que já veremos corresponder
melhor a Dioniso. Mas no que poderíamos considerar uma amizade guer-
reira entre ambos há diferença suficiente para Nietzsche fundar uma
polaridade, assumindo embora em O Nascimento da Tragédia que um fala
a linguagem do outro e vice-versa: “Dioniso fala a linguagem de Apolo,
Apolo porém acaba por falar a linguagem de Dioniso” (153).

A ambas as divindades artísticas, Apolo e Dioniso, está associada a nossa


asserção de que existe no mundo grego uma monstruosa oposição, no que
diz respeito à origem e aos objectivos, entre a arte do escultor, a apolínea,
e a arte da música isenta de imagens, como sendo a de Dioniso: ambos os
impulsos, tão distintos, caminham lado a lado, na maioria dos casos em
divergência aberta um com o outro e provocando-se para criar novos
nascimentos cada vez mais vigorosos, a fim de perpetuar a luta daquela
oposição que a palavra comum “arte” só aparentemente supera; até que
finalmente, através de um miraculoso acto metafísico da “vontade” helénica,

338
D rama e C omunicação

eles surgem acasalados e, neste acasalamento, acabam por gerar a obra de


arte, tão dionisíaca como apolínea, da tragédia ática. (Friedrich Nietzsche
23-24)

Temos assim, figurado pelos gregos em Apolo, um desejo de sonho, de


ponderação, de livre serenidade, de sabedoria, de forma, de aparência,
mesmo de convenção, de uma escultura grega: “mesmo quando ele se en-
coleriza e olha com mau humor, repousa sobre ele a aura da bela
aparência. (…) Poderia mesmo dizer-se de Apolo que a confiança inabala-
da naquele principium [individuationis] e a tranquila postura sentada de
quem nele se encontra cativo recebeu nele a sua mais sublime expressão,
e desejaríamos mesmo designar Apolo como sendo a magnífica imagem
divina do principium individuationis, de cujos gestos e olhares nos falaria
todo o prazer e sabedoria da ‘aparência’, juntamente com a sua beleza.”
No outro pólo, o da desmesura, se adicionarmos à desorientação e horror
perante o que escapa à razão “o voluptuoso arrebatamento que, na mesma
quebra do principium individuationis, se ergue a partir do fundamento
mais íntimo do ser humano e até da natureza, estaremos a lançar um olhar
para a essência do elemento dionisíaco, que nos ainda é dada do modo
mais aproximado pela analogia do êxtase. Seja pela influência da bebida
narcótica, de que falam em hinos todos os homens e povos originários, seja
com a poderosa aproximação da Primavera, que penetra plena de prazer
na natureza, despertam aquelas agitações dionisíacas, em cuja progressão
desaparece o que é subjectivo, até atingir um pleno esquecimento de si
próprio. Também na Idade Média alemã se revolviam, sob o mesmo poder
dionisíaco, multidões sempre crescentes, cantando e dançando, de um lugar
para outro: nesses dançarinos de São João e São Vito, reconhecemos os
coros báquicos dos Gregos, com o seu precedente histórico na Ásia menor
até à Babilónia e aos orgiásticos saqueus” (26-27).
Repare-se a importância que tem, nesta argumentação, a cultura não
erudita, ou o exterior da cultura, em que certa poesia (não a dos rapsodos
líricos, mas a dos ditirambos) se mistura com a música e ambas com a
multidão para romperem o “véu” que a própria obra artística constitui e
assim se regressar ao seio de uma unidade primitiva do ser.

340
T ragédia , comédia e tragicomédia

Nietzsche não concebia a cultura grega, nem a verdadeira cultura de um


modo geral, como o domínio onde unicamente impera a forma proporcionada
ou a beleza, aquela beleza que precisamente hoje qualificamos de apolínea.
Há um outro elemento proveniente de um estrato não erudito que entra na
criação cultural e se afigura essencial para a afirmação de uma grande cultura
como a grega. Nietzsche imagina como nessa cultura da medida e da
individualidade afirmada, desde logo, como cidadania (e falamos sobretudo
de Atenas), irrompe o excessivo e, pior ainda, a anulação desse principium
individuationis. A tragédia é o desenvolvimento desse elemento de ruptura
e desproporção. Nietzsche não terá sido o primeiro a notar isso, mas foi por
certo quem mais radicalmente procurou aproveitar positivamente para a
contemporaneidade esse elemento antiapolíneo. (...)
Contrariamente a toda uma tradição que avaliava a cultura grega pela sua
qualidade apolínea, Nietzsche aparece a sublinhar, a propósito da tragédia,
a necessidade para uma grande cultura de um rompimento com aquilo que
precisamente parece equivaler ao conceito desta e que afinal é um, mas
apenas um, dos seus princípios. (António Marques LXXXI)

No prefácio autocrítico a O Nascimento da Tragédia, Nietzsche liga


Dioniso a uma “carência estranha ainda por nomear”, assume que está a
balbuciar numa língua estranha, porque não domina esse objecto que é o
dionisíaco mas quer usar a linguagem e o instinto para falar dele; pede
mesmo que não lhe impeçam a tragédia. Falta encontrar o operador que
permita figurar sem ser numa ordem conceptual e estética (Hans Blumenberg
sugeriu para esse efeito toda uma teoria da inconceptualidade). Nietzsche
elegeu o elemento musical, pela capacidade única (tão celebrada também
por Wagner, na altura grande inspirador de Nietzsche) que a música tem
de quebrar as resistências e as mediações de que o logos não prescinde e
de fundir as individualidades num corpo comunitário. Poderá dizer-se que,
em relação ao que hoje sabemos da História da Grécia antiga, Nietzsche
terá exagerado a importância, na tragédia grega, dos ritmos ditirâmbicos,
dos coros e da música em relação à acção dramática que Aristóteles con-
siderava essencial: mas isso foi tão fundamental à construção do seu
sistema que a primeira edição do livro se chamava O Nascimento da Tragédia

341
D rama e C omunicação

a partir do Espírito da Música. O que Nietzsche defende, comenta António


Marques (LXXXIII), “é que no ditirambo do coro trágico processa-se uma
tal comunicação com o público que deixa de haver uma espécie de media-
ção conceptual, o enredo deixa de ser o elemento primordial e o indivíduo
funde-se no todo. É conveniente sublinhar que é neste momento que se
exprime o estético, tal como o entende Nietzsche: uma expressão para além
dos fenómenos e do conceptual. Efectivamente é para este ponto que con-
verge toda a sua interpretação”.

O artista plástico e simultaneamente o poeta épico, com ele aparentado,


está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco é
ele próprio, sem qualquer imagem, apenas dor e ressonâncias primordiais da
mesma. O génio lírico sente crescer, a partir do estado místico de despojamento
de si próprio e de unidade, um mundo de imagens e símbolos que tem uma
coloração, causalidade e velocidade totalmente diferentes daquele mundo do
artista plástico e do poeta épico. Enquanto este último vive nestas imagens
e só nelas com alegre satisfação (...).
A civilização: sobre esta última Richard Wagner diz que ela se vê suprimida
pela música como o brilho das lâmpadas pela luz do dia. Da mesma maneira,
creio, o Grego civilizado sentia-se suprimido perante o coro dos sátiros: e
esse é o efeito mais próximo da tragédia dionisíaca, o facto de o Estado e a
sociedade, e em geral as clivagens entre um ser humano e outro, darem lugar
a um poderosíssimo sentimento de unidade, que reconduz ao coração da
natureza. (...)
O coro é o “espectador ideal” na medida que é o único observador capaz
de ver o mundo de visões da cena. Um público de espectadores, tal como o
conhecemos, era desconhecido aos Gregos: nos seus teatros era possível a
qualquer pessoa, tendo em conta a estrutura do espaço destinado aos
espectadores, erguendo-se em anfiteatro de arcos concêntricos, deixar de ver
todo o mundo civilizado em redor, e imaginar-se enquanto coreuta, numa
contemplação saciada. (...) A excitação dionisíaca tem o poder de comunicar
a toda uma massa essa faculdade artística que possibilita a alguém ver-se
rodeado por um bando de espíritos semelhante, com o qual ela sabe que
está intimamente unida. Este processo do coro trágico constitui o fenómeno

342
T ragédia , comédia e tragicomédia

originário dramático: alguém que se vê transformado perante si próprio,


agindo então como se tivesse penetrado noutro corpo, noutro carácter. Tal
processo encontra-se no início da evolução do drama. Trata-se aqui de algo
diferente da situação do rapsodo, que não se funde com as suas imagens,
vendo-as antes como algo externo, com um olhar de contemplação e de
forma semelhante à do pintor; aqui existe já uma renúncia do indivíduo ao
assumir uma natureza estranha. Tal fenómeno surge aliás de modo epidémico:
um bando inteiro sente-se assim enfeitiçado. O ditirambo distingue-se por
isso mesmo de qualquer outro cântico coral. (...)
Sob a magia do elemento dionisíaco estreita-se não apenas a união entre
um ser humano e outro: também a natureza alienada, hostil ou subjugada
volta a celebrar a sua festa de reconciliação com o seu filho pródigo, o ser
humano. (...) Agora o escravo é um homem livre, quebram-se agora todas
as limitações rígidas e hostis que a necessidade, arbitrariedade ou uma “moda
insolente” estabeleceram entre os seres humanos. Agora, no Evangelho da
harmonia dos mundos, cada um sente-se não apenas unido, reconciliado,
fundido com o seu próximo, mas como um ser único, como se o véu de
Maya estivesse rasgado e já só esvoaçasse em farrapos perante o misterioso
Uno primordial. (...)
A convulsão do estado dionisíaco, com a sua destruição das habituais
barreiras e limites da existência, contém nomeadamente enquanto dura um
elemento letárgico, no qual mergulha toda a vivência pessoal do passado.
Assim se apartam, através desta clivagem de esquecimento, o mundo da
realidade contemporânea e o da realidade dionisíaca. Mas logo que aquela
realidade quotidiana se torna de novo consciente, ela é sentida com asco
como tal; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto daqueles
estados. Neste sentido o homem dionisíaco assemelha-se a Hamlet: ambos
lançaram um olhar verdadeiro para a essência das coisas, tendo chegado ao
conhecimento, e sentem repugnância em agir; porque a sua acção em nada
pode alterar a essência eterna das coisas e eles sentem como ridículo ou
humilhante que lhes seja imposta a reordenação de um mundo saído dos
eixos. O conhecimento mata o agir, requerendo este um envolvimento pelo
véu da ilusão – esta é a lição de Hamlet, não aquela sabedoria de pacotilha
do João-que-sonha, que não chega a agir por um excesso de reflexão, como

343
D rama e C omunicação

se se tratasse de um excedente de possibilidades; não o reflectir, não! – o


verdadeiro conhecimento, o olhar para dentro da tremenda verdade, torna-se
preponderante em relação a qualquer motivo que incite a agir, tanto em
Hamlet como no homem dionisíaco. Agora já nenhuma consolação resulta,
a nostalgia passa para além de um mundo depois da morte, para além dos
próprios deuses; a existência vê-se negada, juntamente com o seu fulgurante
reflexo nos deuses ou num Além imortal. Consciente da verdade uma vez
contemplada, o ser humano vê então por toda a parte apenas o lado horrível
ou absurdo do ser, entendendo agora a dimensão simbólica no destino de
Ofélia, reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno: sente
repugnância. (Friedrich Nietzsche 45,58,62,64,27-28,59)

Há aqui um eco claro do seu mestre Schopenhauer, para quem aquele


“que através do sofrimento toma conhecimento do véu de Maia que cobre
toda a forma fenomenal, a tragédia conduziu-o à resignação e à abdicação
da vontade de viver” (Serra, 2006:53). Mas note-se como Nietzsche ora fala
em nenhuma consolação possível, e projecção para a morte, ora fala em
consolação metafísica, “poderosa e cheia de alegria”: porque só a arte, como
já veremos, transforma o horrível em imagens de vida. É que falta ainda
sublinhar como existe um último momento essencial no conceito nietzschiano
de tragédia: não uma síntese dos contrários, porque não é um pensamento
dialéctico, mas algo de positivo que nasce do interior do negativo, sem a
anulação simples ou formal deste. Não apenas o dionisíaco irrompe sempre
como uma consciência do seu contrário apolíneo, como acaba por manifestar­
‑se apolineamente, com a aparição em cena (num pequeno palco separado
do coro) dos heróis que se juntam ao coro (esclarece a Poética de Aristóteles,
1449a, que “Ésquilo foi o primeiro que elevou de um a dois o número de
actores, diminuiu a importância do coro e fez do diálogo protagonista;
Sófocles introduziu três actores e a cenografia” – a peça Rei Édipo já tem
seis personagens principais não integradas em coros, personagens que
seriam desempenhadas pelos três actores). Ou seja, acaba por haver imagem,
mas esta não é a mera aparência e sim uma visão profunda, que só é possível
porque se passou pelo momento dionisíaco – uma embriaguez que faz ver
mais, que é mesmo condição da lucidez.

344
T ragédia , comédia e tragicomédia

Na sua origem, a tragédia é apenas “coro” e não “drama”. Mais tarde, é


empreendida a tentativa de mostrar o deus como se fosse real e de representar
a visão, bem como o enquadramento ilusório, como uma figura que se
encontra ao alcance de cada olhar; assim principia o “drama” no sentido mais
restrito. É então que o coro ditirâmbico é incumbido da tarefa de excitar de
forma dionisíaca a disposição dos ouvintes, de maneira a que estes, quando
o herói trágico surge em cena, não vejam o ser informe e mascarado mas
sim uma visão de certo modo nascida do seu próprio êxtase. (...)
O encantamento é o pressuposto de toda a arte dramática. Neste
encantamento, o entusiasta dionisíaco vê-se a si mesmo como sátiro, e como
sátiro contempla por sua vez o deus, isto é, vê na sua metamorfose uma nova
visão para além de si, como consumação apolínea do seu estado. Com esta
nova visão o drama fica completo. (...)
De acordo com isto, reconhecemos na tragédia uma oposição estilística
radical: cor, mobilidade e dinâmica discursiva apartam-se na lírica dionisíaca
do coro e, por outro lado, no mundo onírico e apolíneo da cena, como duas
esferas de expressão totalmente distintas. Os fenómenos apolíneos nos quais
Dioniso se objectiva já não são “um eterno oceano, alternando a trama, a
vida uma chama” [Goethe], como é a música do coro; já não são aquelas
forças apenas sentidas e não condensadas em imagem, forças essas nas quais
o entusiástico servo de Dioniso sente a proximidade do deus: fala-lhe agora,
a partir da cena, a nitidez e firmeza da configuração épica, e agora Dioniso
já não fala por meio das forças mas enquanto herói épico, quase com a
linguagem de Homero. (...)
Aqui, neste supremo risco da vontade, aproxima-se a arte, tal feiticeira
redentora com poderes curativos; só ela pode transformar aquela ideia de
repugnância sobre os aspectos horríveis ou absurdos da existência em
representações, com as quais se tornara possível viver: estas constituem o
sublime enquanto dominação artística do horrível, e o cómico, enquanto
descarga artística da repugnância pelo absurdo. (Friedrich Nietzsche 60-68)

Repare-se na importância, aqui, da categoria de “sublime”: é uma presença


kantiana, ainda frequente em O Nascimento da Tragédia, que desaparece
depois, quase por completo, das obras de Nietzsche (e, como mostrou

345
D rama e C omunicação

Nuno Nabais, também tem ficado impensada pelos nietzschianos). Nietzsche


não quis fugir ao encontro com o dionisíaco, ousou balbuciar na língua
estranha de algo ainda por nomear, e não devemos nós fugir a esse encontro
novo e único. Os termos que fazem o contributo de Nietzsche não são os
do sublime, mas os do trágico dionisíaco. Ele vem colocar o resultado do
contraste entre contrários num outro patamar, que, chame-lhe embora
“apolíneo”, já não tem a ver com a aparência ou com a dissimulação que
afasta do ser: depois do trânsito dionisíaco, alcança-se uma outra visão mais
profunda.

Em 1870, e sob o efeito de programa wagneriano de uma nova estética,


o ser ou unidade primordial ainda deve poder ser captável e comunicável.
E, de facto, Nietzsche procura agora contrários metafisicamente fundamentais
e que sejam capazes daquele tipo de expressão mútua: na verdade, é
esteticamente que o apolíneo pode apresentar-se e desenvolver-se como a
encenação (poderia traduzir-se esta pelo termo técnico alemão Darstellung,
o qual evoca também a representação e a exibição) do dionisíaco. Uma
espécie de esquematismo simbólico que, de algum modo, representa o que
é irrepresentável. Nietzsche, ou melhor o Nietzsche d’O Nascimento da
Tragédia, não é o primeiro filósofo a encorajar a possibilidade da representação
simbólica do irrepresentável. Antes dele toda a filosofia romântica tinha
podido defender essa possibilidade e antes de qualquer um Kant, na sua
teoria sobre o sublime, define este como uma espécie de representação, cuja
característica é a de representar, não por semelhança da figura, mas por
semelhança de regras. Será esse o processo que a imaginação segue para
justamente representar o irrepresentável.
Agora Nietzsche procura essa forma representante do irrepresentável, que
é o uno primordial, no mito trágico, naquela história ou intriga que não é
simplesmente regida pelas categorias da racionalidade (relação mecânica e
irreversível entre causas e efeitos, permanência da substância, etc.). (…)
Assim, no plano da experiência estética, a possibilidade de mediação entre
o sujeito e uma ordem metafísica (seja esta designada como uno primordial
ou ser originário) para sempre inacessível é encarada por Nietzsche de um
modo afirmativo, mas deve sublinhar-se que nem toda a forma estética serve

346
T ragédia , comédia e tragicomédia

para essa mediação. Um dos pontos argumentativos mais fortes d’O Nascimento
da Tragédia é o que consiste em mostrar 1) que a nossa cultura moderna foi
dominada por uma espécie de socratismo estético, cuja matriz Nietzsche vai
buscar às tragédias de Eurípides e que 2) a tensão entre dois princípios
contrários, que é essencial na ordem da vida, foi de algum modo desfeita
com o racionalismo elaborado de um Sócrates e de um Eurípides. Assim se
gera uma forma estética inadequada à representação da ordem irrepresentável,
porque está imbuída dos preceitos racionalistas que a filosofia socrática
introduziu para sempre na nossa cultura. (António Marques X-XI)

Há ainda que acrescentar, a este respeito, a mudança rápida do pensamento


de Nietzsche, que três anos mais tarde, num ensaio intitulado precisamente
Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral, remete para uma
origem convencional da verdade, em transposição ou dissimulação, num
contexto naturalista de preservação da comunidade. Ou seja, em vez da
noção metafísica do uno primordial que tínhamos n’O Nascimento da Tragédia,
transcendendo por completo qualquer determinação humana (apenas com
efeitos na acção humana), passamos a ter, em resultado directo da acção e
controlo humanos, a capacidade de a linguagem representar convencional­
mente as coisas por necessidade antropológica (e mesmo criar novas
realidades, sem no entanto nunca se confundir com elas). Mas perdurará em
toda a obra de Nietzsche a necessidade de lutar contra o esquecimento que
des-naturaliza e que coloca num registo metafísico aquilo que é produto de
uma instituição humana, expressando, diz Nietzsche no ensaio de 1873, “de
uma maneira moral, a obrigação de mentir segundo uma convenção
estabelecida, mentir de um modo gregário, num estilo vinculativo para todos”
(221-222). Não temos como fugir a essa situação antropológica, mas podemos
evitar o esquecimento dela: não temos por que nos encerrar no instituído,
no puro fenoménico. Nas duas obras de Nietzsche que estamos a referir, o
problema consiste em atingir e activar a memória daquilo que originalmente
não estava dissimulado pela linguagem que, ao representá-lo, o esconde.
Para isso o sujeito cria perspectivas sobre esse mundo mítico, descontínuas
em relação ao seu mundo fenoménico mas no entanto reconhecíveis como
mundo possível. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche não diz que podemos

347
D rama e C omunicação

conhecer as coisas em si mesmas: elas permanecem inacessíveis ao logos, à


nomeação objectiva (Nietzsche é, neste período da sua obra, “kantiano quanto
baste”, diz Marques); mas debruça-se sobre uma hipótese de mundo que não
entrou na dissimulação, no conceito e no belo característicos do apolíneo.
Se a tragédia é memória daquilo que, não sendo a coisa em si, é pelo
menos um assalto à harmonia, à pacificação que dominantemente atraves-
sam toda a história da arte, então ela é rara, mesmo nas últimas décadas,
essas que Gianni Vattimo (1987:98,1990:21,64-68,71-72,76-82) considera
caracterizarem-se por um novo Ser da arte, vivendo do contrário dessa
harmonia, da instabilidade, do dépaysement. As palavras de Sileno, amigo
de Dioniso, quando capturado pelo rei Midas, são, porém, mais do que
isso: “O melhor é para ti totalmente inatingível; não haver nascido, não ser,
nada ser. Mas a segunda coisa melhor para ti é morrer em breve.” (apud
Nietzsche:34) E nesta dimensão, levada ao absoluto, a tragédia é raríssima,
como notou George Steiner recentemente.

A tragédia absoluta é muito rara. (…) Proclama axiologicamente que é


melhor não ter nascido ou, nascendo, morrer jovem. (…) No absolutamente
trágico, o crime do homem é ser, é existir. (…) A “tragédia” absoluta como
visão filosófica sistemática ou como literatura produzida por esta visão, é
muito rara pois é quase insuportável. (…)
A lista de tragédias absolutas é curta. Contém O Rei Édipo e A Antígona
de Sófocles; algumas peças de Eurípides como Medeia, Hecuba, As Troianas
e as Bacantes, sobretudo; o enredo principal de Fausto de Marlowe; Timão
de Atenas de Shakespeare; Berenice (…) e Fedra de Racine, Cenci de Shelley,
juntamente com a adaptação de Artaud; Woyzeck de Büchner; os “buracos
negros” no guignol e monólogos de Beckett. (George Steiner 129-130)

Este limite do trágico (que, ao dizer-se, se destragifica) é o desafio re-


petidamente lançado, na sua própria impossibilidade e vertigem, a uma
cultura que mesmo sendo apolínea está sempre “à espera dos bárbaros” –
ou alguns nela alimentam essa espera, lutando contra o fechamento nas
fronteiras da linguagem, querendo abrir portas ou pelo menos janelas para
o exterior dessa cultura.

348
T ragédia , comédia e tragicomédia

Não é um acaso se a meditação moderna acerca do Trágico e da Tragédia


é obra daquele homem [Nietzsche] que mais dolorosa e raivosamente se
atacou ao mito da Cultura ou da Cultura como mito, simbolizadas a seus
olhos pela Grécia clássica. (...) Na verdade o seu propósito estava condenado
de antemão: a tragédia grega na qual ele via o trágico e por consequência
o dissolvente apropriado à “decadente” Cultura, era ela mesma não só forma
cultural mas mais profundamente instauração da Cultura, passagem de uma
vivência efectivamente trágica, quer dizer, sob a qual o homem curva as
espáduas, a uma visão do trágico que só por sê-lo já nos distancia e nos
torna real ou potencialmente senhores do Destino. (...)
A um século podre de refinamento e de mística racional, o teatro de
Shakespeare pôde aparecer como insuportável de barbárie, intolerável, bem
próximo de provocar nele aquele escândalo do corpo e da alma do espectador
que Antonin Artaud exige do “teatro de crueldade”. Mas o mesmo Artaud
endereça ao teatro de Shakespeare a censura decisiva de afogar justamente
“o trágico”, a insuportável e libertadora “crueldade” nas águas brilhantes, mas
bem suspeitas, da Psicologia. (...)
Na verdade, a questão hamletiana por excelência – que também no Hamlet
existe mas como música invisível e futura – não é a que a Morte tão
pesadamente nos propõe, mas uma outra, anterior: o Trágico pode ser dito?
De o não poder ser nasce o “trágico-outro” dos Ionesco, dos Beckett, dos
Dubillard, herdeiros a seu modo de Strindberg, Tchékhov e Pirandello, os
reis magos da nova Tragédia. Todavia, e como ela existe, este “trágico-outro”
dos Ionesco e dos Beckett é de algum modo, ao mesmo tempo que exasperação
da mais profunda contradição da Tragédia – abolir o trágico exprimindo-o – a
sua quadratura e, por conseguinte, o seu fim. Nem de outra coisa é testemunho
o facto de Ionesco designar a sua nova maneira trágica como “anti-teatro”.
(Eduardo Lourenço 2-4)

Centrámo-nos atrás na tragédia antiga, ou melhor, na poderosa mas


peculiar leitura ontológica que dela faz Nietzsche. A reflexão sobre a tra-
gédia do século XX acrescentaria, é claro, outras dimensões, que, no livro
Pensar o Trágico, José Pedro Serra assim sabiamente evita e sintetiza:

349
D rama e C omunicação

A expressão mais intensa do trágico contemporâneo melhor se encontra,


talvez, no desespero, no vazio, na ausência de sentido e no absurdo, nesse
sentimento que um nada consome tudo, um tudo que não é mais que um
outro nada. (…) Colocam, exaustivamente, o problema da linguagem, talvez
um aspecto original do trágico contemporâneo. Há crimes, desgraças, equívocos
e triunfos em Agamémnon e em Édipo, em Lear e em Macbeth, e em outros
heróis da tragédia clássica, mas o destino, terrível ou magnífico que a cada
um coube em sorte pode ser dito, é dito confiadamente e é percebido e
vivido como tal. Em À Espera de Godot ou em A Cantora Careca o homem
está privado de dizer a sua dor porque ela não é acessível à linguagem. Mau
grado as vozes que se erguem, reina um pesado silêncio onde tudo se
volatilizou. Não será esta tragédia da linguagem uma expressão ainda mais
trágica que as clássicas tragédias, onde, só pelo facto de serem ditas, se
evidencia o desejo de as superar, de não permitir que o homem nelas se
perca e arruíne? ( José Pedro Serra, 2006:94-95)

2. Avancemos agora para o que distingue a tragédia da comédia. A primeira


ideia que sempre aflora é colocar a diferença no riso por contraponto ao
choro. Mas estaríamos a fugir à análise das obras se tivéssemos apenas em
conta o pretenso efeito no espectador – e estaríamos a esquecer, ainda por
cima, que nem toda a peça em que nos rimos é uma comédia, nem, em
rigor, toda a comédia é divertida. A estrutura de ambas tem de ser analisada
em pormenor.
Como se sabe, perdeu-se o livro que provavelmente Aristóteles escreveu
sobre a comédia. Aquilo que, indirectamente, podemos reconstituir da sua
posição diz apenas respeito a um dos critérios que o grande filósofo usa:
na tragédia teríamos a queda de uma personagem de condição nobre, nem
demasiado malvada nem demasiado boa, enquanto na comédia teríamos as
maldades de uma personagem inferior, de carácter animalesco, em relação
à qual experimentamos um sentimento de superioridade, de modo que não
nos identificamos com a sua queda. Quando o neoclassicismo quer retomar
os modelos e teorias da Antiguidade, define que a tragédia e a epopeia
apresentam como personagens principais reis, grandes senhores e altos

350
T ragédia , comédia e tragicomédia

351
D rama e C omunicação

dignitários, a comédia escolhe em geral as suas personagens na classe mé-


dia ou burguesa e a farsa procura as suas entre o povo.
Essas observações seriam pertinentes em relação às obras gregas, em-
bora ainda hoje exista algum sabor a igualdade na estrutura habitual da
comédia, como intriga “dos pobres, dos jovens e das mulheres, contra os
ricos, os pais e os velhos”, diz Badiou (2007:27). Mas deve notar-se que não
podem constituir um critério principal: o próprio Aristóteles diz que a tra-
gédia tende a imitar os homens melhores do que os homens reais; e na
poética do latino Horácio, as tragédias de Cleofonte não deixam de ser
tragédias por os homens em acção serem semelhantes à média humana.
Além disso, são considerações que perdem força depois de tantas obras
trágicas terem incluído personagens não nobres (já Lessing considerava no
século XVIII não ser importante a estirpe do desgraçado) e de tantas obras
cómicas não se limitarem a personagens animalescas, mesmo sem por isso
passarem a ser géneros híbridos, que daí a pouco discutiremos.
José Pedro Serra discute amplamente esta questão: é certo que “a con-
vicção de que à tragédia pertence um estilo nobre e grandioso apropriado
ao alto estatuto das personalidades que a protagonizam aparece muito cedo
na literatura latina”, em Horácio, em Séneca, e “é sucessivamente repetida,
quer nos últimos séculos da Antiguidade, quer ao longo de toda a Idade
Média” até ao século XIII (Serra, 2006:32). E a caracterização da tragédia
pela grandeza anda muitas vezes de par com a caracterização pela queda.

A ideia da vicissitude da sorte, dos reveses da Fortuna, ilustrando a


passagem da dita para a desdita, que, como atrás referimos, constitui o outro
núcleo fundamental da caracterização da acção trágica, aparece normalmente
associada ao alto estilo da tragédia. Na Poética de Aristóteles, o final infeliz
surge já como a resolução mais conveniente a este tipo de imitação, embora
não atinja a proporção de uma exigência canónica; com o andar do tempo
e o virar dos séculos, porém, esta ideia sedimentou-se, fortaleceu-se, tornou­
‑se lugar comum não discutido, e, sobretudo, a par da grandeza do estilo e
do tema, constitui o ponto referencial da distinção entre a comédia e a
tragédia. ( José Pedro Serra, 2006:32)

352
T ragédia , comédia e tragicomédia

A tragédia começaria na alegria e acabaria na tristeza, caracterizando-se


a comédia pelo percurso inverso? Serra não considera errado atribuir gran-
deza e ruína à tragédia: mas por um lado faz notar que não são exclusivos
dela – há grandeza na epopeia, na novela, no romance (quem negaria
grandeza a uma obra como Ana Karenina?); por outro lado, argumenta que
este tipo de caracterização continua nebulosa, pouco conceptual. Aliás, “um
véu moralizante cobre muitas vezes estas explicações, facto que não é de
estranhar uma vez que a queda de homens ilustres e poderosos, que haviam
praticado crimes terríveis e hediondos, facilmente se adapta aos didácticos
exemplos da teologia moral cristã” (ibid. 34). Ora, essa ideia de um castigo
por um erro moral afasta-nos do cerne e da intensidade da tragédia: Édipo
não cometeu um erro moral, mas sim um erro de juízo intelectual; agiu
daquela maneira porque, na sua finitude humana, não sabia. Ou porque,
na concepção de Hegel (in Borie et al 338), os heróis não podem realizar
o seu objectivo legítimo “senão violando outros direitos que se excluem e
contradizem”: “não podendo realizar o que há de verdadeiro e de positivo
no seu fim e no seu carácter senão como negação e violação da outra po-
tência igualmente justa, encontram-se, apesar da sua moralidade ou antes
por causa dela, arrastados a cometer erros.”
Se queremos ter um maior rigor conceptual, ficam ainda muitas pergun-
tas por responder, insiste Serra. Quando dizemos “grandeza”, falamos em
estatuto social ou moral, exterior ou interior, das personagens ou da acção?
A queda é fortuita ou é fatalidade, e neste caso, de que ordem? É definiti-
va ou redimível? “Deve o desastre trágico servir de fundamento a todos os
pessimismos, ou a queda do protagonista revela uma ordem superior e
transcendente que transfigura a derrota e o absurdo indicando um horizon-
te de inteligibilidade e de plenitude?” (Serra, 2006:34,42-5). A resposta de
Serra é clara: o momento da tragédia é solar. No terror que sobre ele cai,
na escuridão, o homem lança-se para uma ordem possível. É o contrário
da catástrofe, é crise, mas no terror palpita um coração que sente, um pen-
samento que pensa, uma mão que age – e confiança na linguagem que o
faz. Não há absurdo. Mesmo a solidão é de quem vai mais longe na con-
dição humana. A tragédia grega é já o “sinal de um esforço para afirmar a
autonomia do gesto humano perante os deuses e o destino, gesto nascido

353
D rama e C omunicação

de um inquietante ser – o homem – que não se aceita escravo dos deuses


e do destino e, simultaneamente, se entende por eles de algum modo de-
terminado” (Serra, 2010:17).
Avançaremos mais na nossa análise se atentarmos como o carácter ex-
piatório correspondia a uma primeira parte dos rituais gregos (por isso Frye
chama à tragédia “comédia incompleta”), que depois se completariam numa
parte jubilatória com rituais de fertilidade (o komos de onde etimologica-
mente vem comédia). A tragédia lida com a morte e a desvitalização ou
desagregação da comunidade. Em contraste, a comédia lida com a vida em
permanente renascimento, com a continuidade da comunidade: não é por
acaso que muitas vezes termina com o casamento de um jovem casal ou
com alguma sugestão de comida; raramente refere a morte, e, se o faz, é
uma morte que não absorve toda a peça, antes é parte do movimento có-
mico global.
Há aqui uma distinção estrutural e fulcral entre a irreversibilidade e o
eterno retorno. Quando o rei Lear tem nos braços a filha Cordélia, morta,
ele sublinha a irreversibilidade clamando que ela nunca mais voltará e re-
petindo cinco vezes isso que faz a diferença trágica: never, never, never,
never, never. Já a comédia se caracteriza pelo facto de as perdas serem
temporárias e os acontecimentos poderem voltar atrás: do horizonte de
expectativas que temos em relação à comédia faz mesmo parte que um
perdão, uma redenção ou algum Deus ex machina podem mudar súbita e
completamente o curso dos acontecimentos. Enquanto na tragédia se pede
coerência a uma sequência inevitável de acontecimentos que levam à ca-
tástrofe, na comédia aceitamos todo o tipo de incongruências (de espaço,
como desproporções ou assimetrias, ou de tempo, como acontecimentos
inesperados, que Aristóteles não admite na tragédia). Já Hegel (in Borie et
al 328) assinalava: “A comédia, na complicação das suas intrigas, não tem
necessidade de uma condensação tão forte como a tragédia, que, na maior
parte do tempo, decorre sobre um pequeno número de motivos e se dis-
tingue por uma simplicidade plena de grandeza.”
Há, na tragédia, um destino que se cumpre em função do que as per-
sonagens fizerem, e nem mesmo uma nova acção das personagens o pode
mudar: é inexorável como um lance de dados. Na comédia, tudo é possível,

354
T ragédia , comédia e tragicomédia

tudo pode ser mais ou menos do que parece, tudo está carregado de pos-
sibilidades como uma casca de banana; a intriga submete-se ao que queiram
as personagens da peça, ou mesmo ao que façam as personagens que de
súbito irrompam nela. Por isso, nas reviravoltas da comédia sente-se muito
mais a mão de alguém (o autor ou uma personagem por ele) que tudo
manobra, que sabe o que os outros desconhecem e no final traz harmonia.
Hegel (in ibid 334) também sagazmente o notou: “a tragédia não oferece a
mesma latitude para o desenvolvimento da personalidade do poeta que a
comédia, na qual o acidental e o arbitrário da individualidade representam
naturalmente um papel essencial. Assim, por exemplo, Aristófanes (…) não
esconde as suas opiniões políticas, os acontecimentos e as situações do
dia.”
Mas a subjectividade que se sente na comédia é sobretudo a das perso-
nagens, como Hegel (in ibid: 339-340) também não deixou de assinalar:
é cómica “a subjectividade que introduz ela própria contradições nas suas
acções, para em seguida as resolver, mantendo-se calma e segura de si.”
Na comédia, “é a personalidade ou a subjectividade que, na sua segurança
infinita, conserva a preponderância. (…) Na comédia, que nos faz rir de
personagens que falham nos seus próprios esforços, aparece no entanto o
triunfo da personalidade apoiada fortemente sobre si própria. (…) O que
caracteriza o cómico é a satisfação infinita, a segurança que experimentamos
por nos sentirmos elevados acima da própria contradição e de não estarmos
numa situação cruel e infeliz. É a felicidade e a satisfação da pessoa que,
segura de si mesma, suporta assistir ao fracasso dos seus projectos e da sua
realização.”
O que nos leva a outra diferença fundamental entre tragédia e comédia.
A identidade que é revelada a Édipo ou a outra personagem trágica é uma
completa redefinição moral: ele percebe a complexidade dos acontecimen-
tos, é afectado por eles, torna-se um ser qualitativamente diferente e retira
daí todas as consequências. Em contraste, as personagens da comédia não
são afectadas pela experiência que atravessam; passam por uma quantida-
de de acontecimentos sem lhes perceber a qualidade, não mudam nem se
adaptam, por vezes são mesmo fisicamente surdas. No geral, escrevem
Calderwood e Toliver (174), “as personagens da comédia não se desenvol-

355
D rama e C omunicação

vem. (...) A personagem tipificada sofre de surdez à situação: todas as


situações lhe são iguais, as suas diferenças situam-se fora do restrito espec-
tro tonal do seu espírito e conduta.” No limite, como nos desenhos
animados, pode cair um piano em cima das personagens que elas voltam
a seguir caminho como se nada tivesse acontecido - são invulneráveis.
Também o clown tem o riso pintado na cara, de modo a não ser afectado
pelos humores ou os acontecimentos. Muitas comédias terminam com o
protagonista que se recusa a aprender a sua lição e embarca na mesma
loucura que o pôs em sarilhos. No final da peça, Volpone acaba internado
num hospital para “incuráveis”. E Vladimir combina com Estragão voltar no
dia seguinte para continuar a injustificada espera de Godot (falando é cer-
to em trazer uma corda onde há a possibilidade de se enforcarem, caso
Godot não venha...)
Por isso há uma diferença fundamental quanto àquele momento de
anagnorisis ou reconhecimento que Aristóteles considerou fulcral: no caso
da tragédia, reconhecimento do destino de uma personagem, como Édipo,
que tem ele próprio de criar as condições e as informações para tanto; na
comédia, reconhecimento de muitos, com múltiplas identidades que são
finalmente reveladas, depois de alguém ter retido muito tempo a informação.
Note-se ainda que não é tanto o acontecimento em si que é trágico ou
cómico mas sim o modo como o encaramos. O mesmo acontecimento pode
ser olhado alternativamente de um ponto de vista cómico ou trágico. Um
bêbado que caminha aos ziguezagues por uma rua será cómico: até ao
momento em que soubermos, por exemplo, que começou a beber desde
que lhe morreu o filho. Ríamos enquanto tínhamos uma distância emocio-
nal: assim também o que alguém conta como “desgraça” pode ser motivo
de riso para os que estão de fora (“se fosse contigo eu queria ver!”, dirá
então ele) ou até para ele próprio algum tempo mais tarde, quando alguma
distância se tiver instalado. Aquela distância de que já Aristóteles falava
quando dizia que na comédia não nos identificamos com a queda das per-
sonagens. Por serem inferiores, a reacção do espectador é de cumplicidade
ou de superioridade, não de angústia. Por isso Horace Walpole (apud
Calderwood e Toliver 176), pôde dizer que a vida é uma tragédia para o
homem que sente, e uma comédia para o homem que pensa. Em 1871, Schiller
estabelecia a comparação do seguinte modo:

356
T ragédia , comédia e tragicomédia

O poeta trágico deve desconfiar do raciocínio calmo, e dirigir-se sempre


ao coração: o poeta cómico deve evitar a paixão, e ocupar sempre o espíri-
to. Assim, um faz explodir a sua arte excitando constantemente o patético,
o outro afastando constantemente o patético; (…) Se então a tragédia tem
um ponto de partida mais importante, é preciso, por outro lado, reconhecer
que a comédia tende para um objectivo mais importante; e que se ela pu-
desse atingi-lo, tornaria toda a tragédia supérflua e impossível. Este
objectivo não é outra coisa senão o termo supremo ao qual o homem deve
aspirar sem cessar: é o de se libertar de toda a paixão, é o de ver sempre
em volta de si, e em si, com uma visão clara e um olhar calmo, é de reco-
nhecer em todo o lado mais o acidental que a fatalidade, e rir da tolice em
vez de se irritar ou de se lamentar pela maldade. (Friedrich Schiller, in
Borie et al 241)

Acrescentemos ainda uma outra perspectiva. Num capítulo da já citada


Anatomia da Crítica, Northrop Frye elabora uma “teoria dos mythoi”, em
que compara tragédia e comédia segundo a oposição e interacção do ideal
com o real, do mundo da inocência com o da experiência. A ironia ou a
sátira enraízam-se no mundo imperfeito do real e da experiência; a tragédia
representa o movimento da inocência, através da hamartia, isto é, da falta
ou erro original, até à catástrofe; a comédia vai do mundo da experiência,
através de complicações ameaçadoras, até a um final feliz e a uma assumpção
geral de inocência inscrita desde o início e em que todos vivem felizes para
sempre.

3. Umberto Eco (1986:260) levanta a questão de o trágico ser muito mais


universal do que o cómico: sofremos com personagens trágicas muito
afastadas de nós, quer no tempo (Édipo ou Orestes) quer no espaço
(compreendemos o protagonista de um filme japonês trágico). “O cómico,
pelo contrário, parece ligado ao tempo, à sociedade, à antropologia cultural”,
e por isso custa-nos a rir com as obras gregas, medievais ou japonesas:
“custa a achar cómico Aristófanes, necessita-se de mais cultura para rir de
Rabelais do que se necessita para chorar a morte de Orlando.”

357
D rama e C omunicação

Pode objectar-se, é certo, que existe um cómico ‘universal’: o bolo na


cara, por exemplo (…). Mas, nesse caso, poder-se-ia dizer que o trágico que
sobrevive não é apenas o trágico igualmente universal (a mãe que perde o
filho, a morte da amada ou do amado): também sobrevive o trágico mais
particular. Mesmo sem saber do que era acusado, Sócrates, que se apaga
lentamente dos pés até ao coração, faz-nos estremecer, enquanto, sem uma
licenciatura em ciências clássicas, não sabemos exactamente porque é que
o Sócrates de Aristófanes deve fazer-nos rir.
A diferença existe também quando se consideram obras contemporâneas:
qualquer um estremece vendo Apocalypse Now, seja qual for a sua nacionalidade
e o seu nível cultural; enquanto para Woody Allen é preciso ser-se bastante
culto. (Umberto Eco, 1986:260-261)

A resposta que Eco (1986:262) dá à questão que levanta é a seguinte: ao


contrário da comédia, a tragédia primeiro explicita as regras que seriam de
esperar e que foram transgredidas. “Por isso é universal: explica sempre por-
que é que o acto trágico deve incutir-nos temor e piedade. O que equivale
a dizer que todo o trágico é também uma lição de antropologia cultural e
permite que nos identifiquemos com uma regra que talvez não seja a nossa.”

Trágica pode ser a situação de um membro de uma comunidade antropófaga


que se recusa ao rito canibalesco: mas será trágica na medida em que a
narrativa nos convença da majestade e do peso do dever de antropofagia.
Uma história que nos conte as aflições de um antropófago dispéptico e
vegetariano que não ama a carne humana, mas sem nos explicar longa e
convincentemente como é nobre e necessária a antropofagia, será apenas
uma história cómica. (...)
O facto é que é típico do trágico, antes, durante e depois da representação
da violação da regra, entreter-nos por longo tempo precisamente sobre a
natureza da regra. Na tragédia [grega] (...), a função do coro é precisamente
a de nos explicar a cada passo qual era a Lei: só assim se compreende a sua
violação e as suas fatais consequências. A Madame Bovary é uma obra que,
antes de mais, explica como é condenável o adultério, ou, pelo menos, como
os contemporâneos da protagonista o condenam. (Umberto Eco, 1986:262)

358
T ragédia , comédia e tragicomédia

Já “as obras cómicas dão a regra como implícita e não se preocupam em


reforçá-la”. Como é evidente na ironia, “a qual, consistindo em afirmar o
contrário (de quê? Daquilo que é ou daquilo em que socialmente se crê),
morre quando o contrário do contrário for dado explicitamente” (nas suas
páginas de teoria estética, Fernando Pessoa, com a sua educação inglesa,
insistiu muito nesta não explicitação própria da ironia, característica de um
Swift e que achava faltar aos portugueses). Mas todo o cómico funciona
nestes termos: “dada uma encenação social ou intertextual já conhecida do
público, mostra-se a sua variação sem, contudo, a tornar discursivamente
explícita” (Eco, 1986:263).
E quais são, continua Eco (1986:263-264), “as encenações que o cómico
viola sem ter de as reforçar? Antes de mais, as encenações comuns, ou melhor,
as regras pragmáticas de interacção simbólica, que o corpo social deve as-
sumir como dadas. O bolo na cara faz rir porque se pressupõe que, numa
festa, os bolos se comem e não se atiram à cara dos outros.” Sabemos, e
Grice ou Searle até o teorizaram, como uma pergunta do género “Tens horas?”
pressupõe que o outro nos diga que horas são, e não que nos responda
(situação cómica): “tenho”. E podíamos multiplicar os exemplos, como faz
Eco. “Não digas aquilo que julgas ser falso. Situação cómica: ‘Meu Deus,
peço-te, dá-me uma prova da tua inexistência!’”. “Não digas aquilo para que
não tens provas adequadas. Situação cómica: ‘Acho o pensamento de Maritain
inaceitável e irritante. Ainda bem que nunca li nenhum os seus livros!’” Não
digas ou faças o que não for relevante num determinado contexto ou situa-
ção: de outro modo criarás momentos cómicos, como Polónio faz em Hamlet.
Eco (1986:265-267) acrescenta ainda uma nota sobre aquilo que, retoman-
do um conceito de Pirandello, designa por humorismo, em que é a própria
voz da enunciação quem faz a reflexão sobre as regras e a sua violação, e
também sobre a linguagem e as suas regras, num jogo com as palavras e as
frases: já Aristóteles o fazia, Joyce também. Dom Quixote vive da referência
constante e complexa aos romances de cavalaria em que ele quer ou julga
viver.

Não é por acaso que o Quixote começa com uma livraria. A obra de
Cervantes dá-nos como conhecidas as encenações intertextuais sobre as quais

359
D rama e C omunicação

as empresas do louco da Mancha se modela, mas invertendo-lhes os resultados.


Explica-as, reforça-as, rediscute-as, tal como uma obra trágica põe em questão
a regra a violar. O humorismo, portanto, age como o trágico, talvez com esta
diferença: no trágico, a regra reforçada faz parte do universo narrativo
(Bovary), ou, quando é reforçada a nível das estruturas discursivas (o coro
trágico), aparece também sempre enunciada pelas personagens; no humorismo,
pelo contrário, a descrição da regra deveria aparecer como instância, ainda
que escondida, da enunciação, voz do autor que reflecte sobre as encenações
sociais em que a personagem enunciada deveria acreditar. (…) O humorismo
seria sempre metassemiótico e metatextual. (Umberto Eco, 1986:267)

Patrice Pavis (2007:53) considera que esta característica metalinguística


pode encontrar-se em grande parte da comédia: “A comédia, diferentemente
da tragédia, presta-se facilmente aos efeitos de distanciação e de boa vonta-
de se autoparodia, pondo assim os seus procedimentos e o seu modo de
ficção em exergo. De modo que é aquele género que apresenta uma grande
consciência de si, funcionando muitas vezes como metalinguagem crítica e
como teatro dentro do teatro.”

4. Geralmente, pelo seu fatalismo, pela irreversibilidade dos acontecimen-


tos que pode desmotivar a acção e por apelar aos sentimentos (terror e
piedade, dizia Aristóteles) e os purgar (idem), a tragédia costuma ser vista
como mais conservadora do que a comédia: esta, justamente por viver de
uma distância, sem identificação sentimental com uma personagem nem com
a intriga que pode variar a qualquer momento, pode ter uma visão global
mais crítica. Mas a questão não é tão simples.
Devido a outras características que vimos – sobretudo ao facto de pri-
vilegiar a continuidade e o eterno retorno – pode argumentar-se que, pelo
contrário, a comédia é mais conservadora: procura conservar o que tem a
bem da comunidade, enquanto na tragédia as personagens arriscam tudo,
tomam e mantêm posições extremas e perdem de um modo definitivo (no-
meadamente, perdem a vida). E a comédia trabalha mais com estereótipos,
a nível das personagens e dos comportamentos, do que a tragédia.

360
T ragédia , comédia e tragicomédia

O ponto de vista de Umberto Eco vem dar novos argumentos a esta ideia
de o cómico ser mais conservador: “a regra violada pelo cómico é de tal
maneira reconhecida que não há necessidade de a reforçar.” O cómico pres-
supõe uma regra intocável, que preexiste e que regressa depois da aparição
do cómico. “O cómico parece popular, libertador, porque dá licença para
violar a regra. Mas dá-a precisamente a quem introjectou essa regra de tal
maneira que a presume como inviolável. (…) Em regime de permissividade
absoluta e de completa anomia não há Carnaval possível, porque ninguém
recordaria que coisa é posta (parenteticamente) em questão.” (1986:265)
Creio que a discussão do carácter conservador do cómico deve passar por
se distinguir entre vários tipos de comédia. É o que faz Northrop Frye. Em
Anatomia da Crítica (163-206), disserta sobre duas grandes tradições. Existe,
por um lado, a comédia satírica, cultivada já na Grécia por Aristófanes e de-
pois seguida por autores como Maquiavel, Ben Jonson, Gil Vicente, Molière
ou Bernard Shaw. Fala-nos da experiência degradada, de personagens ridícu-
las, avarentas ou hipócritas (como Tartufo ou Volpone). Será então que há
uma comédia crítica por oposição a uma comédia conservadora? Também não
é assim tão simples. Repare-se na estrutura de cada uma. A comédia satírica
é muito crítica mas termina com a imposição da lei. Só quando umas perso-
nagens são desmascaradas e punidas é que as outras podem viver satisfeitas
e se alcança o final feliz. Ou seja, vai-se da liberdade às restrições: depois de
deixar livre curso às peripécias mais absurdas, a lei acaba por ser reposta, em
geral de forma rápida e que liberta do mal. Foi, portanto, crítica no seu de-
senrolar, mas repôs a ordem no seu desfecho.
Já a comédia romântica, pelo contrário, vai da frustração à liberdade.
É menos crítica durante o seu desenrolar, mas acaba por banir a ordem exis-
tente. É uma tradição que remonta a Plauto (e que encontramos em muitos
filmes, do tipo boy meets girl). Note-se que designá-la como romântica não
significa associá-la sem mais ao amor ou à sedução (que também podem
surgir na comédia satírica): significa que há uma maneira simpática e leve
de tratar assuntos como o romance, os naufrágios, as crianças perdidas, as
identidades trocadas; significa também que os vícios são inofensivos ou dão
vontade de rir, porque predomina uma experiência elevada; e sobretudo
significa que há uma perspectiva caridosa, em que mesmo as personagens

361
D rama e C omunicação

perigosas são absorvidas no perdão e se termina por um reconhecimento e


uma reconciliação. Ou seja, o final feliz não advém do facto de se restringi-
rem os ridículos mas sim de se libertar o herói e a heroína (por exemplo,
devido a uma lei excessiva e opressora os dois amantes foram separados,
sofreram restrições, mas no final libertam-se dessa lei e ficam felizes).
Como vimos no quinto capítulo, em outro ensaio de Anatomia da Crítica
Frye refere mais dois modos de comédia. Uma é a comédia da utopia, da vida
as you like it. Se for desenvolvida no sentido, não do realismo mimético e da
ironia, mas do espectáculo, vai dar origem àquilo a que Frye chama Máscara,
ou seja, uma comédia da sociedade feliz, da música e dança, como em Sonho
de uma Noite de Verão e Tempestade, de Shakespeare. Se, pelo contrário, for
acentuado o realismo mimético, vai desenvolver-se a comédia social irónica,
crítica, que nos diz assim está o mundo. Um tal modo teria como forma ex-
trema o Simpósio: mas este, ao impor uma lição ou uma regra, na sua relação
mestre/discípulo afasta-se da contradição propriamente dramática.

5. Refira-se por último como, até pela raridade da “tragédia absoluta”,


trágico e cómico têm muitas vezes aparecido misturados. Isto vem da origem
do drama. No antiquíssimo tratado indiano de Bharata, foi “quando a
felicidade se misturou de tristeza” que os brâmanes foram ter com Brama
e pediram um novo livro sagrado, que viria a ser o do teatro. Antes ainda,
na cultura grega, Aristóteles escreve lapidarmente em De generatione et
corruptione que tanto a tragédia como a comédia se criam com as mesmas
letras do alfabeto. Tanto quanto se sabe havia peças satíricas no interlúdio
ou no final da representação das tragédias gregas, os grandes tragediógrafos
tendo de escrever para os concursos também uma peça satírica. É certo que
não conhecemos uma trilogia completa, apenas discretas secções: a excepção
é a Oresteia, de Ésquilo, um tríptico que, como nota George Steiner, “não
sabemos se era uma instância excepcional ou a norma”. “O que realmente
sabemos é que uma trilogia grega, com a sua pujante encenação de mitos
trágicos, ou interligados ou separados, era seguida de uma peça satírica.
Até onde conseguimos descortinar, este epílogo em forma de farsa gozava,
ironizava, estava construído para caricaturar e esvaziar elementos do material
trágico precedente.” (131) De Roma chegaram-nos um ou dois exemplos

362
T ragédia , comédia e tragicomédia

de tragicomédias, como O Anfitrião de Plauto. Mais tarde, a tradição dos


entremezes, remontando à Idade Média mas desenvolvida a partir do século
XVI, fazia, como o nome indica, alternar peças de registos distintos ou mesmo
opostos: uma tradição que durava ainda no século XIX , para desespero dos
novos dramaturgos, como já veremos.
Sem ser em alternância, pode haver, dentro de uma peça trágica, encla-
ves cómicos, ou vice-versa, mantendo embora a dominante de um deles,
como em Hamlet. Repare-se como na tragédia tem havido personagens que
exageram muito o seu comportamento, como Macbeth ou mesmo Fausto,
ou até que são claramente burlescos, como Osric em Hamlet: personagens
que não destroem o trágico, antes, por contraste, o realçam (é Osric quem
vem trazer a Hamlet o desafio para o mortal duelo). Do mesmo modo, há
quem considere comédias muitas peças que, na boa tradição trágica, se
centram em personagens que são bodes expiatórios, como Shylock, Volpone
ou Tartufo.
Uma fusão mais completa, em que nem o trágico nem o cómico domi-
nam, ou pouco dominam, formará um híbrido, a tragicomédia. Porque
passámos tantas páginas a contrapor a comédia e a tragédia, devemos
debruçar-nos agora com igual detença nos argumentos sobre esta tradição
de mistura entre trágico e cómico, que vem desde os tempos mais recuados
até Tchékhov, Pirandello, Chaplin, Fellini, Almodovar, Pina Bausch e tantos
outros.

Nas formas cénicas, o pulsar natural é o da tragicomédia. A questão da


existência humana é imitada, estilizada, escolhida pluralisticamente. Onde há
tormenta e ruína, há também prazer e esperança. É uma espécie de movimento
pendular e de simultaneidade que é visto como sendo a verdade vital, o lugar
comum essencial da sobrevivência humana. (…)
O exemplo de Shakespeare é a quintessência. (…) Quase nada no drama
Shakespeariano tem apenas uma interpretação monista, tem apenas uma
natureza e consequência. (…) Fortinbras dará um monarca mais pesado e
mais vulgar do que aquele que Hamlet teria dado, as perdas são múltiplas,
mas os tempos na Dinamarca estarão de volta em união e serviços sociais
prestados. (George Steiner 131-132)

363
D rama e C omunicação

Existem várias fases e geografias na defesa ou ataque da tragicomédia.


Se as especulações de Aristóteles podem ser invocadas por ambos os lados
da contenda, a doutrina de outros autores gregos e sobretudo latinos, como
Cícero e Horácio, é clara: não se deve expor um tema cómico em versos
próprios da tragédia, nem tema trágico em versos de comédia, porque são
entidades perfeitamente diferenciadas em termos temáticos e formais,
devendo o poeta evitar qualquer hibridismo: “que cada género, bem
distribuído, ocupe o lugar que lhe compete”, prescreve Horácio (apud
Silva 347).
Podia esperar-se que o Renascimento, ao retomar as obras e teorias
clássicas, seguisse claramente estes preceitos. Mas, neste aspecto, a Europa
esteve muito dividida. Já no fim do século XVI, em Itália, havia grande con-
flito sobre a tragicomédia. Nessa época, a poética do maneirismo e
sobretudo a do barroco começaram a defender o valor intrínseco dos gé-
neros mistos ou híbridos. Com grande sucesso no século de ouro espanhol
e no drama isabelino inglês. Mesmo em França, Jean de La Taille, fortemen-
te influenciado pela leitura de Aristóteles, escreve em 1572: “é o ponto
principal de uma Tragédia saber organizá-la bem, bem construir, e deduzi­
‑la de maneira a que ela mude, transforme, manipule e vire o espírito dos
auditores, daqui, dacolá, e faça com que eles vejam agora uma alegria to-
mada subitamente em tristeza, e agora ao contrário, a exemplo das coisas
humanas.” Mas esta combinação de contrários pode ser encontrada sobre-
tudo nas pujantes dramaturgias da Espanha e Inglaterra. Lope de Vega
defendia em 1609 a combinação entre as duas máscaras naquilo a que
chamava um “Minotauro teatral”: “O trágico e o cómico misturados (...)
/ farão grave uma parte, outra ridícula, / que esta variedade nos deleita: /
bom exemplo nos dá a natureza, / que por tal variedade tem beleza.” (in
Barata 69) Na mesma época, a natural mistura de registos era a prática co-
mum da dramaturgia inglesa, e Shakespeare será constantemente invocado
por todos os que defendem este tipo de opção. Ainda em 1668, já num
período posterior ao fecho dos teatros ingleses e à sua reabertura aquando
da Restauração, e portanto algo influenciado pelo classicismo francês, o
dramaturgo inglês John Dryden reflectia assim:

364
T ragédia , comédia e tragicomédia

Nenhum teatro no mundo tem algo de tão absurdo como a tragicomédia


inglesa; é um drama da nossa própria invenção, e a sua forma é suficiente
para o proclamar inglês; aqui um rasgo de riso, ali outro de tristeza e paixão,
(…) os nossos poetas apresentam a peça e a farsa juntas. (…)
Porque se deveria considerar a alma do homem mais pesada que os seus
sentidos? Não passam os olhos de um objecto desagradável a outro agradável
num tempo muito mais curto do que o que é requerido para isto? E o
desagrado do primeiro não realça a beleza do último? A velha regra da lógica
poderia tê-lo convencido de que os contrários, quando colocados juntos, se
realçam um ao outro. Uma gravidade continuada mantém os espíritos demasiado
constrangidos, rebaixados; precisamos de os refrescar de vez em quando,
como quando descansamos durante uma viagem, para que possamos continuar
com mais facilidade. John Dryden (in Borie et al 123-125)

Bom conhecedor da dramaturgia francesa, Dryden considerava que


Molière ou o irmão de Corneille (Thomas) já começavam a escrever segun-
do a tradição italiana, espanhola ou inglesa. E de facto, alguns ecos se
encontram em França, como por exemplo na “Introdução à tragicomédia”
escrita em 1628 (ainda Lope de Vega era vivo) por François Ogier, um pré­
‑clássico assaz ligado aos ingleses.

Veja-se que é muito mais razoável misturar as coisas graves com as menos
sérias numa mesma sucessão de discurso, e fazê-las encontrarem-se num
mesmo tema de fábula ou de história, do que juntar, fora da obra, as sátiras
com as tragédias, que não têm nenhuma ligação de conjunto e que confundem
e perturbam a vista e a memória dos auditores: pois dizer que é pouco
conveniente fazer aparecer numa mesma peça as mesmas personagens,
tratando tanto de assuntos sérios, importantes e trágicos, e imediatamente a
seguir, de coisas comuns, vãs e cómicas, é ignorar a condição da vida dos
homens, de quem os dias e as horas são muitas vezes entrecortados de risos
e de lágrimas, de contentamento e de aflição, segundo são agitados pela boa
ou má Fortuna. (…) Os pintores observam que os mesmos movimentos dos
músculos e dos nervos que formam os risos nas faces são os mesmos que
servem para nos fazer chorar e pôr nessa triste postura em que testemunhamos

365
D rama e C omunicação

uma dor profunda. E depois, no fundo, aqueles que querem que não se altere
e não se mude nada nas invenções dos antigos, discutem aqui apenas sobre
a palavra, e não sobre a coisa: pois, o que é o Ciclope de Eurípides senão
uma tragicomédia cheia de zombarias e de vinho, de Sátiros e de Silenos
dum lado, do sangue e da raiva de Polifemo com o olho vazado do outro?
A coisa é então antiga, embora o nome seja novo; resta-nos somente tratá-la
como é devido, e saber descer oportunamente do coturno da tragédia (…)
à chinela da comédia. (François Ogier, in Borie et al 86-87)

Mas o triunfo do classicismo em França na segunda metade do século


XVII levou, nesse país, ao declínio da tragicomédia e ao triunfo da tragédia
regular: somando à regra das unidades de tempo, lugar e acção a regra da
unidade de tom, combateu-se severamente os géneros híbridos. Assim se
pronunciará, no século XVIII , o enciclopedista D’Alembert.

O que me parece condenável (…) é a mistura bizarra que quase sempre


fizeram do patético e do agradável: dois sentimentos tão dilacerantes e
díspares não foram feitos para serem vizinhos e, ainda que haja na vida
algumas circunstâncias bizarras em que se ri e se chora ao mesmo tempo,
eu pergunto se todas as circunstâncias da vida são adequadas à representação
no teatro e, ainda se o sentimento perturba, é mau o que resulta desta aliança
de risos com lágrimas; é então preferível o prazer apenas de chorar, ou então
o prazer apenas de rir. ( Jean le Rond d’Alembert, in Barata 91)

Esta regra da unidade de tom teve uma hegemonia muito mais loca­
lizada, temporal e geograficamente, do que a das outras três unidades.
O pré-romantismo e o romantismo insistentemente invocam Shakespeare
(nomeadamente contra Racine) para justificarem a prática da combinação
entre géneros. O drama romântico virá misturar tragédia e comédia, lirismo
e farsa; e (sobretudo no romantismo alemão) relaciona esse hibridismo
com a concepção dialéctica do real, em que a verdade e a beleza se
constituem ou se revelam mediante a síntese dos contrários. O iluminista
alemão Lessing, crítico do neoclassicismo francês e adepto de Shakespeare,
escreve, em 1767-78:

366
T ragédia , comédia e tragicomédia

Que se entende, enfim por uma mistura de géneros? Que sejam separados
o mais exactamente possível nos tratados dogmáticos, e ainda bem; mas
quando um homem de génio, com objectivos mais altos, faz entrar vários
géneros numa única e mesma obra, é preciso esquecer o livro dogmático e
ver apenas se o autor realizou a sua ambição. Que importa que uma peça
de Eurípedes não seja nem toda narrativa nem toda drama? Chamai-lhe um
ser híbrido; basta que este híbrido me agrade e me instrua mais que as
produções regradas dos vossos outros autores correctos como Racine e outros.
A mula não é burra nem cavalo: será por isso menos útil como animal de
carga? (Lessing, in Borie et al 220-223)

Lessing foi também um crítico de Voltaire: mas as posições deste variaram.


Foi um dos introdutores de Shakespeare em França, embora nos últimos
anos da sua vida lhe tenha feito múltiplos ataques; mas a sua vontade de
equilibrar o gosto classicista com as qualidades do drama grego e inglês
não excluía a mistura de géneros:

Nada é mais comum que uma casa na qual o pai resmunga, uma filha
arrebatada pela sua paixão chora, o filho zomba dos dois, e alguns parentes
tomam parte na cena de maneiras diferentes. Troça-se muitas vezes num
quarto do que enternece no quarto vizinho, e a mesma pessoa algumas vezes
riu e chorou pela mesma coisa no mesmo quarto de hora. (…)
Não inferimos daqui que toda a comédia deva ter cenas bufas e cenas
enternecedoras. (…) Não se deve excluir nenhum género, e se me perguntassem
que género é o melhor, responderia: “O que for melhor tratado”. (…)
Confessa-se que é raro fazer passar os espectadores insensivelmente do
enternecimento ao riso; mas esta passagem, por mais difícil que seja de captar
numa comédia, não é menos natural aos homens. Já fizemos notar noutro
momento que nada é mais vulgar que as aventuras que afligem a alma, e
cujas circunstâncias inspiram em seguida uma alegria passageira. Infelizmente
é assim que é feito o género humano. Homero representa mesmo os Deuses
rindo da desgraça de Vulcano, no tempo em que eles decidem sobre o destino
no mundo. Heitor sorri do medo de seu filho Astíanax, enquanto Andrómaca
semeia as lágrimas. (Voltaire, in Borie et al 151)

367
D rama e C omunicação

Isto escreve Voltaire em 1730. 27 anos depois, Diderot teoriza mesmo a


ideia de um género híbrido, ou intermédio, a que chama “género sério”,
“onde a acção se avance pela perplexidade e pelo embaraço.”

Em rigor, uma peça nunca se encerra num género. (…) A vantagem do


género sério é que, colocado entre os dois outros, tem recursos, quer porque
se eleva, quer porque se abaixa. Tal não se passa com o género cómico e com
o género trágico. (…) A tragicomédia não pode ser senão um género de má
qualidade porque se confundem aí dois géneros distantes e separados por uma
barreira natural. Não se passa aí por variações imperceptíveis; cai-se a cada
passo nos contrastes, a unidade desaparece. (…) Fazei comédias no género
sério, fazei tragédias domésticas, e ficareis seguros de que os aplausos e a
imortalidade vos estão reservados. (Diderot, in Borie et al 158‑162)

No já citado Prefácio a Cromwell, de 1827, Victor Hugo irá muito para


além desta concepção de naturalismo doméstico. Com veemência invoca
vários fundamentos para defender a mistura de géneros: a ideia da arte
como expressão da vida, que não deve excluir nenhum dos seus aspectos
e para isso precisa de ser uma amálgama de belo e de feio, de riso e de
dor, de sublime e de grotesco; a metafísica cristã, que ensina que “o homem
é corpo e é espírito, é grandeza e é miséria, devendo a arte dar forma
adequada a esta verdade essencial”; a dialéctica dos pares antitéticos sublime
(a alma) e grotesco (a fera humana), belo e feio, sendo a verdadeira poesia
o lugar de harmonia dos contrários; o evolucionismo que encara o drama
como síntese de formas poéticas anteriores, a ode e a epopeia, a tragédia
e a comédia; o exemplo de Shakespeare, “que funde sob um mesmo sopro
o grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia”. A nova
forma teatral que propõe, a que chama simplesmente drama, é por isso
contrária à pureza dos géneros e à regra da unidade de tom. Que aliás não
encontra nos serões da época, em que se fazem exigências estritas à peça
clássica para depois a entremear com óperas-cómicas ou farsas.

Esperemos que não se demorem em França a habituarem-se a consagrar


toda uma noite a uma única peça. (…) Que se faz de facto agora? Dividem‑se

368
T ragédia , comédia e tragicomédia

os deleites do espectador em duas partes bem distintas. Primeiro dão-lhe


duas horas de prazer sério, depois uma hora de prazer galhofeiro; com a
hora de intervalo que não contamos no prazer no total são quatro horas.
O que faria o drama romântico? Trituraria e misturaria artisticamente aquelas
duas espécies de prazer. A cada instante faria passar o auditório do sério ao
riso, das excitações galhofeiras às emoções lancinantes, do grave ao doce, do
prazer à severidade. Porque, como já o afirmámos, o drama é o grotesco com
o sublime, a alma sob o corpo, é uma tragédia sob uma comédia. Não vedes
que, repousando-vos assim de uma impressão com outra, estimulando
alternadamente o trágico após o cómico, o alegre após o terrível, associando­
‑se mesmo quando necessário ao fascínios da ópera, estas representações,
não oferecendo mais do que uma peça, não valeriam bem outras? A cena
romântica faria uma iguaria picante, variada, saborosa, daquilo que no teatro
clássico é um remédio dividido em duas pílulas. (Victor Hugo, in Borie et al
312-313)

Cinco anos depois, Hegel (in ibid. 340) anota que “na poesia dramática
moderna, o trágico e o cómico estão ainda mais entretecidos”. Por opção
estética, mas também por uma razão que remonta aos velhos critérios aris-
totélicos. Durante o século XIX, diminuindo as oposições entre classes nobres
e populares e entre linguagem “artística” e “corrente”, a tragédia é abaixada
e a comédia elevada, a favor de um teatro burguês que trata de uma classe
média ou de relações entre classes. Desde então, o hibridismo entre comé-
dia e tragédia tende a ser aceite por quase todos, cultivado por muitos, e
levado bem longe por alguns.

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(Página deixada propositadamente em branco)
1 1 . T E X TO E CEN A

1. A área do espectáculo, ao vivo, é por definição a da obra efémera.


Uma das seduções e ao mesmo tempo frustrações do espectáculo é que
não fica nada de concreto: ficam apenas as memórias, ou os registos
noutros suportes que são de uma natureza diferente. “O teatro é a única
arte que constitui a experiência sempre renovada de um acto que acaba
consigo. O acto de esculpir deixa uma escultura, o de gravar, uma gravura;
o teatro nada deixa a não ser alguns desperdícios: fatos, um dossier de
imprensa, recordações, etc.” (Rivière 117). Essa finitude de algo que passa,
tão vulnerável e efémero, entre o retorno e a perda, torna-o humano e
atraente. Um dos mais antigos tratados sobre teatro, escrito no século XIV

por Zeami, um dos fundadores do teatro Nô japonês, começa por assumir


esta condição.

Porque se simboliza por uma flor todas as coisas do mundo? É pela sua
existência efémera que se gosta delas, elas só florescem durante uma estação,
são raras.
De igual modo, o Nô fala ao coração e suscita o interesse. A flor, o
interesse e a raridade, eis a maravilha do Nô.
Florir e murchar são inevitáveis; é o que torna as flores maravilhosas.
O encanto do Nô, a sua flor, encontra-se na virtude da mudança. (…)
As flores de hoje são semelhantes às do ano passado. Assim, o Nô, mesmo
tendo já sido visto antes, ou inscrevendo-se num repertório importante,
retornará, após a passagem do tempo, igualmente raro. (Zeami, in Borie et
al 48-49)
D rama e C omunicação

Quem vive do espectáculo vivo tenta fazer dessa finitude uma sedução
e lembrar-se que esse é também, à sua maneira, o fascínio da vida, em que
só temos a perder se nos tentarmos agarrar às coisas. Como disse Jean-Louis
Barrault: “amo o teatro justamente porque não aspira a ser durável. Não
desafia a morte.”

Passa depressa o tempo no teatro. A elaboração dos espectáculos não


tem a duração do resto da vida. Todo o ritmo mais regular das outras vidas
se transforma, se desdobra, se arruma e desarruma, para construir aquelas
horas de muita vida inventada, pensada, reelaborada por muitas cabeças e
muitos corações para acontecer todas as noites um tempo fulgurante, de
excepção, maior que a outra vida, mas por isso mesmo mais passageiro ainda.
Ali, naquele fulgor, se consome. Acaba. E deixa uma enorme saudade, e
muitos desejos de vida diferente. A memória disto não se resolve em imagens,
nenhum registo a substitui. Acaba por dissolver-se em mais vida. (Luís Miguel
Cintra 6)

Eduardo Prado Coelho (jornal Público, 22/1/2003) comentou que, apesar


destas palavras (ou mesmo dentro dessas palavras), “há sobretudo essa
espécie de revolta que nos fica, silenciosa, amortecida, de que aquilo que
foi ver ou ouvir pela primeira vez um texto, um cenário ou uma persona-
gem, não voltará a repetir-se do mesmo modo.” Não voltará a repetir-se
sequer na noite seguinte de um “mesmo” espectáculo: actores e espectado-
res poderão vir banhar-se no mesmo rio, mas não nas mesmas águas 1.
Assim, há que pensar como o efémero existe no presente de cada ins-
tante do acto performativo, porque de cada vez se busca alcançar algo cujo
imediato desaparecimento torna incapturável. O performer pode dizer, como
o filósofo Vladimir Jankélévitch (1903-1985): “E como aquilo que eu pro-

1 Segundo Lehmann (220), esta condição tende ainda a aumentar no teatro pósdramático,
na medida em que “o critério se torna dependente da experiência dos participantes, ou seja,
de um facto subjectivo, efémero, comparado com a ‘inércia’, com a fixação da obra duravelmente
estabelecida”.

372
T exto e cena

curo quase não existe, como o essencial é uma quase nada, um não sei
quê, uma coisa ligeira entre todas as coisas ligeiras, esta busca insana ten-
de sobretudo a mostrar o impalpável – qualquer coisa de que se pode
entrever a aparição, mas não verificá-la, porque se desvanece no instante
mesmo em que aparece, porque a primeira vez é também a última.”
Como pode a teoria pensar estes acontecimentos efémeros e impalpáveis?
Em geral, as teorias parecem mais preparadas para lidar com objectos,
ainda que em ruínas. Mesmo elementos tão contextuais como os provérbios
são quase sempre estudados fora do contexto! Por isso, em relação ao dra-
ma e ao espectáculo, as teorias continuam a debruçar-se ou sobre os textos,
ou sobre o que ficou da arquitectura, dos cenários e dos figurinos, muito
mais do que sobre o acto dinâmico de produção e recepção colectiva, que
é afinal o que mais caracteriza o espectáculo. A própria crítica, em Portugal,
na sua maioria quase se limita aos textos.
Vimos já como o pensamento de Deleuze dá prioridade ao processo, ao
devir, ao tornar-se, o que choca com a concepção de drama como re-pre-
sentação. Conflui com os Performance Studies de Richard Schechner (2006),
que analisam sempre os eventos performativos como práticas, acontecimen-
tos, processos e relações, não como “objectos”, “sujeitos” ou “coisas”
discretos. “Desenhos e esculturas”, escreve Schechner (1985:22), “que no
mundo moderno estão associados com ‘signos’ e ‘símbolos’ (semelhança
verbal) são nos tempos paleolíticos associados com actos (semelhança te-
atral). Assim, os ‘guiões’ de que eu falo são padrões de actos, não modos
de simbolização separada do fazer.” Tanto Deleuze como Schechner “afir-
mam o movimento e o ‘estar vivo’ como imanente até aos fenómenos
aparentemente mais estáveis” (Cull 3). O que pode fazer um pouco a dife-
rença da abordagem comunicacional do dramático é também conseguir criar
condições para que se entenda como o texto na biblioteca ou o guarda­
‑roupa no museu não esgotam de maneira nenhuma a cena ou o es­pectáculo.
É certo que o texto é o que mais fica: do teatro isabelino temos sobretudo
os textos que nos chegaram, dos gregos também, juntamente com alguma
teoria sobre o espectáculo. Mas não podemos contentar-nos com o que fica,
quando estudamos algo que se caracteriza por passar.

373
D rama e C omunicação

Para pensarmos a questão da relação entre os textos e a cena, vamos


situar-nos entre dois mitos. Quando se fala em “representação” de alguma
coisa, a própria palavra, re-presentar, parece sugerir que há algo que já está
feito e depois se reapresenta, se repete, como se o texto em si já contives-
se tudo e já estivesse completo sem essa re-presentação. Este é o primeiro
mito. Há quem tente fazer remontar esta ideia aos gregos e a Aristóteles:
mas, quando relemos a Poética, vemos como ali se sublinha que todas as
formas de literatura e drama vêm de dois instintos da própria natureza huma-
na, o de imitação e o de harmonia e ritmo, e constatamos que dá tanta
importância à música, ao canto, à dicção, que chega a dizer que “o terror
e a piedade podem surgir por efeito do espectáculo cénico” (embora con-
sidere preferível e mais propriamente artístico que decorram “da íntima
conexão dos actos”, de modo que baste ouvir, mesmo sem ver).
Se formos, entretanto, ler os leitores renascentistas de Aristóteles, ou os
críticos, religiosos ou não, que vimos condenarem os actores mas defende-
rem os dramaturgos desde que os seus textos fossem moralizantes, ou no
século XVIII Diderot, para quem o actor deve servir repetidamente, sem
discussão nem emoção, a forma ditada pelo texto, ou então Hegel, no sé-
culo XIX , aí sim, claramente, temos este mito do texto, de um platonismo
latente, em que a passagem à cena, a mise-en-scène, a encenação, seria
apenas a execução exterior e mais ou menos aleatória de algo que estaria
completo em si e que não afectaria o sentido da obra textual.
Parece-me difícil sustentar esta posição. Pelo menos nós, leitores mo-
dernos, quando estamos a ler um texto de teatro temos claramente a
sensação de que não estamos a aceder ao objecto completo. Quando lemos
Hamlet, por exemplo, ou O Rei Édipo, temos a noção de que o que estamos
a ler é apenas a preparação de uma obra final que ainda vai requerer mais
alguma coisa – há uma incompletude naquele texto.

Uma característica primariamente distintiva do drama enquanto drama


(...) é o defeito ontológico do texto dramático enquanto meramente escrito
ou impresso (e apenas lido); isto é, a nossa sensação, quando lemos um
texto dramático num livro, de que não estamos a receber o livro todo, de
que um elemento crucial da obra (ou, se preferirmos, da intenção da obra)

374
T exto e cena

375
D rama e C omunicação

está a faltar na nossa experiência real como leitores, como leitores solitários
fabricando imagens mentais em resposta a palavras, em vez de espectadores
lidando com imagens e sons reais e palpáveis na atmosfera festiva do teatro.
(Benjamin Bennett 61)

Em Verdade e Método, Gadamer a dado momento argumentou que em


todos os textos há um lado de performance, de passagem posterior a um acto.
De facto, houve um tempo, o de Homero, em que todos os textos se destinavam
a ser lidos em voz alta. Mais tarde, porém, essa leitura performativa e comunitária
passou a limitar-se aos textos teatrais: só aí subsiste uma forte tradição de
metamorfose do texto. Mesmo aí, nota Maria João Brilhante (13), “depois da
invenção da escrita, a possibilidade técnica, a partir de Gutenberg, de imprimir
as palavras ditas durante a acção teatral teve consequências profundas na
transformação do teatro, das quais o denominador comum foi a separação
entre texto e espectáculo.” Ainda assim, apesar dessas transformações, hoje,
ao contrário do que pretende Gadamer, não é a mesma experiência ler um
livro ou assistir colectivamente a uma peça, nem é a mesma a tradição do
romance, da poesia ou do teatro. Quando lemos um conto, um romance, um
poema, sabemos que tudo aquilo que o autor queria que recebêssemos está
ali. Benjamin (1992b:47) mostrou bem como o romance, escrito em isolamento
para ser lido em isolamento, é a forma literária que materializa a individuação
burguesa.

2. Nesse sentido, há uma crise do drama que não é apenas do século


XIX : é inerente à estrutura do texto teatral em qualquer época que o quei-
ra tomar como texto, porque pretende sempre a passagem a outra coisa.
Pretende, como se diz em cinema, uma realização: no cinema, aliás, vários
autores teorizaram esta ideia de um texto que morre no filme (Tarkovski), de
uma “etapa crisálida” que dá lugar a um outro ser ( Jean-Claude Carrière), de
“uma estrutura que quer ser outra estrutura” (Pasolini). O texto de teatro tem,
é certo, mais estabilidade do que o guião de cinema, porque é frequente ser
publicado e ter muitas encenações diferentes (ao passo que no cinema cada
guião só costuma ser filmado uma vez); mas ainda assim é um texto que pede
a passagem a uma cena.

376
T exto e cena

Bennett pergunta depois: qual é a importância dessa realização? Não po-


deríamos ficar sempre enredados em textos, e nas intertextualidades de que
falam Julia Kristeva ou Jorge Luis Borges, que sem dúvida existem e são uma
maneira interessante de pensar a literatura? Mas essas intertextualidades podem
fazer-nos perder a noção de por que razões ou por que interesses vitais criá­
mos estes textos e criámos os géneros literários. Vimos já, nomeadamente ao
falarmos da crise do drama, que os géneros podem deixar de corresponder
às vivências de uma época.
Felizmente, diz Bennett (60,64), há um lugar onde os textos literários
são colectivamente testados na sua pertinência para a vida. O drama, es-
creve este autor, é “a memória e a consciência da literatura”, é “o templo
da literatura”. Templo não tem para Bennett necessariamente um sentido
religioso, mas sim de laboratório: mesmo se for o caso de Brecht também
temos, não um texto que é fechado num género literário, mas um texto que
é submetido a uma reactivação e testado na sua eficácia; vamos ver se as
palavras que estão escritas naquele livro Mãe Coragem têm força, impacte,
pertinência. E isso vê-se porque há um lugar em que os textos são passados
ao acto e testados ao vivo frente a um público, aí, onde é muito mais difí-
cil de serem aceites se forem letra morta. “A dimensão colectiva do teatro
é essencial, porque o presente da Ideia é experimentado pela presença do
público”, diz Badiou (2007:25)
Ou seja, o que acontece nesta espécie de celebração é o nosso acto de
recordar que não se trata apenas de arte literária e dos seus géneros, mas que
há um interesse humano, vital, nesses textos, letra viva – como se vê quando
as pessoas se juntam para trabalhosamente os fazer passar (ou não passar) a
outra arte, performativa.

3. Durante muito tempo não havia, aliás, textos dramáticos como Hegel
os imaginava: como uma entidade sozinha, por si. O que havia era textos
escritos directamente para uma cena, para serem representados, e depois se
via se funcionavam ou não. Se funcionassem, eram guardados. Os textos an-
tigos que nós temos, seja de Sófocles, seja de Shakespeare, até de Racine, são
aqueles textos que funcionaram tão bem que sobreviveram – passaram o
teste da cena.

377
D rama e C omunicação

A questão da Antiguidade merece um esclarecimento. Como se pode ler


na Poética de Aristóteles, inicialmente os autores das tragédias e das comé-
dias eram também os seus actores. No tempo de Ésquilo terá surgido o
primeiro actor que não escrevia as suas peças, Frínico, que só representa-
va e algum poder tinha sobre a cena – terá sido ele a dividir o Coro em
dois grupos e a introduzir personagens femininas na cena grega. Isto não
significava que os dramaturgos não continuassem a ser actores. Sófocles
terá sido o primeiro autor a não representar as suas peças em virtude de
uma fraqueza da voz, o que não o impediu de ganhar dezoito vezes o
concurso anual de tragédias e atingir enorme renome; passava assim a ha-
ver casos em que apenas se escrevia ou apenas se representava, o que
aliás é inerente ao aumento até três do número de actores nas peças. Já na
Roma antiga, era tal a ignomínia lançada sobre os actores que o castigo
infligido ao dramaturgo Décimo Labério por a sua irreverência não ter
poupado o próprio César foi obrigá-lo a representar os seus textos – sinal
de que havia então uma muito maior cisão entre dramaturgo e actor.
Com o Renascimento e o crescimento de grupos profissionais de teatro,
de que já falámos, no fundo a situação volta a ser a da Grécia: no meio
dos actores há alguns que escrevem o que vai ser representado. Por exem-
plo, Shakespeare nunca autonomizou as suas peças: as obras que dele temos
são a recolha dos papéis dos próprios actores, guardados porque valia a
pena voltar a levar à cena uma peça que tinha tido tão boa recepção, e só
publicados depois da sua morte, em versões algo contraditórias. É uma das
razões por que Hamlet é uma peça tão longa: o que temos hoje é a junção
de várias versões. Não sabemos exactamente o que era do Hamlet original,
mas quem se atreve a eliminar? Em geral, as edições modernas optam por
juntar todo o que existe das diferentes versões. Só nos anos 90 algumas
editoras começaram a ousar optar por uma das versões.
Era, assim, uma escrita feita para uma prática cénica. Gordon Craig con-
siderou mesmo que as obras de Shakespeare podem ter sido o resultado
de um trabalho colectivo com os actores, e hoje generaliza-se a convicção
de que muitas das suas peças poderão de facto ter recebido contributos
dos actores e, por vezes, de outros autores (algo que ele assumiu nas pri-
meiras e últimas peças). O nosso Gil Vicente também escrevia textos para

378
T exto e cena

dar a um ou mais actores, incluindo ele próprio, muitas vezes em ocasiões


especiais como um nascimento real ou o dia de Reis ou as matinas de Natal.
A figura do dramaturgo não era a de um escritor (aliás a própria noção de
literatura só surge com a modernidade), mas a de alguém que estava a
fornecer directamente uma cena – e que muitas vezes também era actor,
como Gil Vicente, Shakespeare ou Molière. Ainda hoje, aliás, alguns actores
mais antigos preferem pôr de lado o texto integral que receberam e ir para
os ensaios apenas com um caderno ou umas folhas onde escreveram as
suas falas, antecedidas das respectivas deixas.

Contrariamente a um preconceito fortemente espalhado e cuja fonte é a


escola, o teatro não é um género literário. É uma prática cénica. (...) Ser-nos-á
por isso impossível considerar a “representação” como a tradução de um
texto que estaria completo sem ela. O que assegura a sobrevivência é apenas
o facto de que é preciso o canevas textual para manter a ressurreição de
uma representação que agradou. Antes da imprensa e mesmo depois, numerosas
são as obras teatrais que desapareceram porque a representação dela não
pareceu suficientemente convincente para que outros praticantes (ou os
mesmos) lhe quisessem assegurar a reposição. (Anne Ubersfeld 9-10)

Mesmo peças das quais há notícia de ter havido representações bem


sucedidas, como o Cardenio que Shakespeare escreveu a partir de Dom
Quixote, não chegaram aos séculos seguintes, desapareceram.

A noção de texto é uma noção relativamente recente pois a noção em


uso na época clássica, por exemplo para a França, era a de peça de teatro.
Ora, contrariamente ao que os teóricos afirmam, nessa época a peça de teatro,
essa, parece-me extraordinariamente dependente, parece-me inteiramente
ligada à prática cénica da época. Aliás, há uma prova económico-sociológica
evidente: durante largo tempo, em França, nos séculos XVII e XVIII, o primeiro
autor francês que goza de uma certa independência é Corneille. Antes dele,
os autores eram considerados “fornecedores” dos actores, forneciam um texto
como mais tarde se fornecia um libreto a um compositor; não existiam mesmo
direitos de autor. (...) [O próprio] Racine não é um escritor independente;
fornece um certo tipo de prática cénica. (Bernard Dort, in Rebello 127-128)

379
D rama e C omunicação

Por isso mesmo o teatro isabelino é tão diferente do teatro clássico francês:
porque as tradições cénicas eram muito diferentes. Racine ou Molière estavam
a escrever para práticas distintas da de Shakespeare. Se fossem só textos lite-
rários, haveria decerto muito maior semelhança entre o que se fazia em França
e Inglaterra. (Como aliás passou a acontecer desde a afirmação do texto tea-
tral como “literatura”, com a separação de muitos dramaturgos em relação aos
grupos que levam à cena as peças e a submissão do actor ao texto escrito.)
Mais argumentos contra este mito do texto autónomo, que não precisa de
mais nada, que vive por si? Repare-se como o texto dramático é heterogéneo:
além dos diálogos e monólogos das personagens, tem didascálias, que são as
indicações sobre os espaços, os ritmos e as outras acções que acontecem além
das falas: um simulacro de drama que “invade as letras do texto – didascálias,
grafismo especial para a alternância de falas, pontuação, métrica, descrições,
apelos ao leitor mascarado de espectador” (Brilhante 13-15). Repare-se também
que as próprias falas das personagens constituem uma forma de acção, como
mostraram autores como Searle e Austin (teorias dos actos da fala). Repare-
se ainda como essas falas estão repletas de deíticos: referências, nos próprios
diálogos, a lugares, tempos, objectos, etc. Quando alguém diz: “Vem cá: Onde
é que encontraste isto? Diz lá: foi ali?”, está a remeter para um cá, um isto e
um ali (e até para uma resposta silenciosa do outro) que, lidos, não fazem
todo o sentido: só no contexto os conseguimos perceber.
Daí o facto de, quer em termos da prática cénica, quer em termos da se-
miologia, se ter nas últimas décadas trabalhado a ideia de que, ao tomarmos
um texto, ele já pede um determinado número de acções. Shakespeare é mais
uma vez um exemplo extremo, e o encenador inglês John Barton fez escola
mostrando como, apesar de Shakespeare não escrever quase nada além dos
diálogos, as próprias falas das personagens, ao conterem muitos deíticos e
actos da fala e ao alternarem de verso para prosa, de linguagem elevada para
linguagem vulgar, mesmo de vocábulos longos para monossílabos, já sugerem
os caminhos e ritmos para a prática cénica.
Cabe depois ao encenador apoiar essa passagem do texto à cena: o que
ele faz, em conjunto com os actores e toda a restante equipa, não é apenas
sublinhar o texto que lá está, nem é apenas fazer dizer um texto, nem é

380
T exto e cena

traduzi-lo ou ilustrá-lo. Porque, na representação, o texto está presente. Anne


Ubersfeld (10) argumenta assim: “a representação não poderia ser a tradução
ou a ilustração de um texto: não é a tradução (a passagem de uma linguagem
para outra); seria uma operação inútil porque o texto (dialogado) figura no
interior da representação, como signos linguísticos, ao nível fónico; porquê
traduzir um texto que se ouve?”
Se pusermos em cena Hamlet, o texto estará lá. E um dos prazeres que
muitas vezes temos ao ver Hamlet em cena ou em filme é comparar as várias
versões de certas passagens ou de cada uma das personagens. É porque o
texto lá está que comparamos as leituras que são feitas dele. Sobre o texto
são acrescentadas outras dimensões. Numa passagem por Lisboa, em 1999,
Bob Wilson contou que no seu espectáculo intitulado I Was Sitting on My
Bed, o I e o II actos tinham o mesmo texto, mas o segundo era encenado
e interpretado pela coreógrafa e bailarina Lucinda Childs de modo tão di-
ferente do primeiro que muita gente não acreditava que o texto fosse igual.
O encenador português Rogério de Carvalho encenou uma vez uma peça
de Fassbinder, O Paraíso Não Está à Vista, que, por ser curta, permitiu este
jogo muito interessante: na primeira parte as marcações eram umas, na
segunda parte o texto era o mesmo mas as marcações eram outras, e pelo
simples facto de, por exemplo, termos agora na frente uma personagem
que antes estava atrás (isto com a qualidade rigorosíssima com que este
encenador marca os lugares e movimentos) fazia como se estivéssemos
perante um outro espectáculo, com o mesmo texto.
Claro que essas outras dimensões são controladas pelo texto. Claro que
quem escreveu o fez a prever a cena. Já Diderot (apud Pavis, 1997:303) no-
tava que a escrita teatral “não engana”: “Que um poeta tenha ou não escrito
a pantomima, reconhecerei, logo de entrada, se compôs ou não de acordo
com ela. A conduta da sua peça não será a mesma; as cenas terão um modo
totalmente diferente; o seu diálogo ressentir-se-á disso (…). A pantomima é
o quadro que existia na imaginação do poeta, quando ele escrevia e que ele
queria que a cena mostrasse a cada instante quando fosse representado.”
August Schlegel (in Borie et al 261) argumenta desta maneira, em 1808:
“Concordo que há obras dramáticas que não foram destinadas ao teatro

381
D rama e C omunicação

pelos seus autores, e que aí não produzirão muito efeito, embora sejam
admiradas na leitura. Mas duvido muito que um homem que nunca tivesse
visto um espectáculo, ou que nunca tivesse ouvido falar, pudesse receber
dessas obras uma impressão tão viva como a que elas produzem sobre nós.”
Mesmo daqueles autores que, no século XIX , em pleno mito do texto
autónomo, escreveram peças contra a cena do seu tempo, “para não serem
representadas”, para serem apenas lidas (e houve grandes autores que o
fizeram, como Kleist e Büchner na Alemanha, ou Musset em França): se
ainda hoje representamos essas peças é porque eles, quando estavam a
escrever, participavam numa tradição (e numa aspiração) cénica que lhes
permitia antecipar admiravelmente a passagem desses textos à cena. Há
actualmente pesquisas que procuram reconstituir que tipo de encenações
os autores tinham em mente – convenções cénicas da época, concepções
do espaço e do tempo, montagem dramatúrgica, etc. (cf. Pavis, 1997:303).

382
T exto e cena

Susanne Langer (327) sublinha que o que está escrito tem de ser um
projecto suficientemente definido para unir em torno dele todas as pes­
soas que vão estar a colaborar na passagem à cena. Nos filmes também.
É preciso que a peça escrita ou o guião sejam suficientemente fortes para
orientar o encenador, o cenógrafo, o figurinista, os actores, o músico – to-
dos vão buscar a sua inspiração e orientação àquele texto, que por isso,
geralmente, é o elemento mais unificador do projecto. Lembremos como
Wagner falava da “acção dramática” como princípio unificador.
Susanne Langer (327-8) toma de empréstimo a metáfora da crista da onda,
de Edith Warton: “o uso do diálogo na ficção (...) deve ser reservado para
os momentos culminantes e considerado como o borrifo em que se quebra
a grande onda da narrativa ao curvar-se em direcção ao observador na praia.”
E logo lembra que esses momentos culminantes não são raros: “a culmina-
ção do pensamento e do sentimento na fala é uma ocorrência frequente,
como a culminação e a quebra de cada onda numa constante rebentação.
(...) Um dramaturgo que escreve apenas as falas proferidas numa peça mar-
ca uma longa série de momentos culminantes no fluxo da acção.”
As falas são o rebentamento das ondas, quando algo já não pode per-
manecer apenas interior ou não verbal e é passado à fala. Por baixo, há o
subtexto, que é aquilo que dá mais trabalho aos actores e encenadores:
procurar as ondas que sustentam aquelas falas e fazem com que em certos
momentos a personagem tenha que falar. Mas se os actores ficarem só por
essas palavras – como tantas vezes, infelizmente, acontece – é um espec-
táculo muito desinteressante. O próprio Hamlet já tinha nojo das “palavras,
palavras, palavras”.

4. A desvalorização das palavras é um tema antigo mas que cresce tan-


to no início do século XX , depois da crise do género dramático que Szondi
analisou, que dá origem ao mito contrário: não o mito do texto puro e
auto-suficiente mas, por reacção, o mito da cena pura. A ideia de que não
interessa senão a cena. No princípio do século XX houve quem defendesse
esta ideia, que Bernard Dort considera fazer um “corte epistemológico”.
Vimos como Appia e Gordon Craig começaram, por reacção a um teatro
todo baseado no texto, a defender uma poética cénica em que a orientação

383
D rama e C omunicação

genérica já não seria dada pelo texto, como pede Susanne Langer e como
ainda hoje é comum no “teatro dramático” (para usarmos a expressão de
Lehmann), mas sim pelo encenador (neles muito entendido como projectista
visual): o corte corresponde ao aparecimento da encenação teatral no sentido
moderno do termo e ao crescimento do papel do encenador como autor do
espectáculo. A partir daí, em muitos teatros, “o encenador desempenha dois
papéis, o de ensaiador e o de dramaturgo e, ainda, o de controlador, que
dantes jamais tinha assumido, das relações entre a actividade prática e a prá-
tica social”, queixa-se o dramaturgo Nigel Gearing (in Rebello 145). É deixar
de pensar o teatro como “poesia dramática”, à luz de Aristóteles ou de Hegel,
e assumi-lo como arte independente, ainda que futura e feita de uma conju-
gação de vários elementos. Vimos também como o “teatro de imagens” de
Bob Wilson prolonga esta visão do teatro como arquitectura, da cena como
espaço a que os outros elementos se iriam condicionar – os próprios actores
seriam supermarionetas. Não admira que Craig tenha também ido buscar
elementos da tradição oriental: porque a nossa cultura ocidental tem sido cada
vez mais logocêntrica, baseada no texto, enquanto noutras tradições a dança
ou a música ou o corpo são mais orientadores do espectáculo final do que o
texto. A tradição oriental (dança, siva, ioga) junta o signo e o corpo como
duas modalidades do discurso e do prazer. A tradição ocidental é que privi-
legia o suporte linguístico, e no teatro dos últimos séculos fomos tendendo a
privilegiar o texto, a ponto de esquecermos que ainda no tempo de Shakespeare,
de Gil Vicente, de António José da Silva ou de Racine (ou mais tarde com
Brecht, ou hoje, com Peter Handke, Botho Strauss, Sam Shepard, Jorge Silva
Melo, José Maria Vieira Mendes e tantos outros) esse texto não era autónomo,
era feito directamente para uma cena.
Neste mito oposto, em que a cena se afirma contra o texto, vale a pena
deter-nos no caso de Antonin Artaud (1896-1948). Ele reagia a uma sociedade
“comida pelas palavras”, apesar da aporia em que ficava: ao recusar o texto,
a repetição e a estética fazia-o com palavras. Vindo da sua Marselha natal para
Paris, e ao mesmo tempo que escrevia alguns versos mas só lhe publicavam
as cartas que sobre eles trocava, Artaud fez-se actor: queria, como disse mais
tarde e noutro contexto, “provar a minha existência, ligar-me à realidade so-
nora das coisas, romper com a fatalidade”.

384
T exto e cena

385
D rama e C omunicação

Trabalhou dez anos nesta profissão, em teatro e em cinema, com gestos seus
em peças escritas por outros (só uma vez representou o protagonista da sua
única peça, Os Cenci, adaptada de Shelley e de Stendhal, que teve apenas 17
representações), muitas vezes em pequenos papéis, mesmo sem palavras: até
que a vocação, ou as circunstâncias, ou ambas as coisas, o tornaram acima
de tudo um fazedor de palavras, escritor e pensador, de vastíssima obra es-
crita. No entanto, mesmo nas suas conferências procurava subordinar a voz
ao corpo: por exemplo, Anaïs Nin conta no seu Diário como, em plena
Sorbonne, Artaud escandalizou porque, ao falar de “O teatro e a peste” (uma
comparação que já Santo Agostinho tinha feito), optou a dada altura por en-
carnar um pestífero.
Em 1947, pouco mais de um ano antes de morrer, Artaud organizou e
realizou no Théâtre du Vieux Colombier uma derradeira conferência que in-
titulou La véritable histoire d’Artaud le Mômo e subintitulou Tête-â-tête: um
frente a frente consigo mesmo, ou com o seu duplo, a que assistiu uma pla-
teia siderada. Ainda hoje não se tem a certeza se improvisou ou se leu as
folhas que tinha preparado e que, por vezes, lhe caíam ao chão. O que é
certo e significativo é que, ao fim de algum tempo, calou-se: porque, dizem,
sentiu que o ambiente não era favorável a essa espécie de testamento que
preparara. Ou porque, creio, finalmente passou ao acto essa aversão ao logos
e às palavras que há tantos anos defendera por palavras e actos mas não por
omissões: “na verdade, eu tinha reparado que já bastava de palavras e até
mesmo de rugidos, e o necessário eram bombas” (1995:26).
Derrida (1978) já brilhantemente mostrou as contradições desse homem
que, por muito que quisesse fugir à linguagem ocidental, nos legou uma obra
que não pôde nem poderia escapar a essa linguagem. Artaud não soube re-
solver uma aporia que ninguém pode resolver, nem sequer dando-lhe o nome
de Esfinge – outra palavra. A prova, se prova for necessária, encontramo-la
se alargarmos um pouco o objecto do bisturi de Derrida a outros enormes
autores da nossa tradição. É curioso encontrar, para trás, no tempo, tanto ou
mais do que o artaudiano tema do incesto, os mesmos palavrosos protestos
contra as palavras – em Strindberg, em John Ford, em Shakespeare, em
Eurípedes! Vejamos, em sucessivos flashbacks.
Na única peça que escreveu, Artaud faz o protagonista dizer: “O que dis-
tingue os actos da vida e os actos do teatro é que na vida fazemos mais e

386
T exto e cena

dizemos menos, enquanto no teatro falamos muito para fazer uma coisinha
de nada.” A possibilidade de restabelecer o equilíbrio, acrescenta o velho
conde, é passar aos actos, fazer, também no teatro, muita coisa, em prejuízo
da vida, com todo um programa de crimes a cometer. Logo a seguir, diz:
“Ar, confio-te os meus pensamentos”; a meu ver, não porque os confie em
palavras, mas porque confia menos nelas do que no sopro, a que Artaud tan-
tas vezes se referiu.

Não foi ainda decisivamente provado que a linguagem das palavras seja
a melhor linguagem possível. E parece-me que, no palco, que é acima de
tudo um espaço para preencher e um sítio onde algo acontece, a linguagem
das palavras terá de ceder lugar à linguagem dos signos, cujo aspecto objectivo
é o que em nós produz um efeito mais imediato.
Não se trata de suprimir a palavra articulada, mas de conferir às palavras,
aproximadamente, a importância que têm nos sonhos. (…) O público popular
sempre apreciou as expressões e as imagens directas. A fala articulada, as
expressões verbais explícitas participarão de todas as partes da acção, clara
e cuidadosamente elucidadas, as partes em que a vida repousa e a consciência
intervém.
Mas além deste sentido lógico, as palavras serão interpretadas num sentido
de sortilégio, autenticamente mágico, atendendo à forma e às emanações
sensuais e não só ao sentido. (Antonin Artaud, 1996: 105,91,121)

No seu tête-à-tête do Vieux Colombier, Artaud defende o oculto e o


chamado sobrenatural, mas, ao mesmo tempo, diz que há 50 anos lhe fal-
ta a palavra mais importante: “quero dizer em voz alta o que me incomoda
há muito tempo. Mas eu não sei falar, quando falo gaguejo porque me
comem as palavras”.
Disto não haverá saída, a não ser, talvez, assumindo como quer Deleuze
a gaguez enquanto linguagem preferencial, menor, ou distorcendo as pala-
vras: o que Artaud não deixou de fazer, explorando a linguagem de outras
maneiras (ouça-se, por exemplo, a sua derradeira gravação radiofónica,
Pour en finir avec le jugement de Dieu, de 1947, cheia de gritos, glossolálias,
sons musicais). Em carta de 1922 à sua namorada romena, Génica Athanasiou,
que se envergonhava de escrever mal francês, Artaud (1996b:37-38) reco-

387
D rama e C omunicação

menda: “Não tenhas medo de usar termos que não fiquem bem um com o
outro, são esses, em geral, que exprimem mais coisas.” E, noutra carta, uns
dias mais tarde, explica: “a alma dos homens não está nas palavras. Amamo­
‑nos mais quando não escrevemos porque todas as palavras são uma
mentira. Quando falamos traímos a nossa alma. Bastava olharmo-nos.
Sentimos coisas, mas só o esforço que se faz para as exprimir já é uma
traição” (1996b:41-42). E, no fim da vida, rara será a conferência ou texto
em que Artaud não interrompa a seriedade das palavras com a irrupção de
glossolálias selvagens que as distorcem.
Desse dilema nunca abandonado vem a autenticidade extraordinária da
sua voz, escrita ou falada. Não porque não tenha arte, mas porque essa arte
não é uma estilização estética feita sobre uma qualquer essência anterior e
mais importante: ela própria é a procura essencial, nele a estilização é or-
gânica, ontológica, gutural.

É em torno da encenação, considerada não como um simples grau de


refracção dum texto sobre o palco, mas como o ponto de partida de toda a
criação teatral, que se constituirá a linguagem típica do teatro. E é na utilização
e na manipulação desta linguagem que se dissolverá a velha dualidade do
autor e do encenador, substituídos por uma espécie de Criador único a quem
caberá a responsabilidade dupla do espectáculo e da acção. (…) Solicitaremos
à encenação, e não ao texto, a materialização destes antigos conflitos e, acima
de tudo, a sua actualização. Isto é, estes temas serão levados directamente
para o teatro e materializados em movimentos, expressões e gestos, antes de
se esvaírem em palavras. Renunciaremos assim à superstição do texto e à
ditadura do escritor. (Antonin Artaud, 1996:91,120-121)

Primeiro flashback. Strindberg (115), n’A Sonata dos Espectros que Artaud
tanto quis encenar, põe na boca de um dos protagonistas a questão: “para
quê falar, se de qualquer maneira já não nos podemos enganar um ao ou-
tro?” E, adiante, numa passagem que vale a pena citar longamente, não
apenas disserta sobre o silêncio como faz uma experiência sobre ele. Também
aqui, parece que ele não serve à personagem como não serve ao drama-
turgo.

388
T exto e cena

Falar sobre se está ou não está bom tempo, coisa que todos sabemos,
saber novidades da saúde de cada um, que também já conhecemos... Não,
eu prefiro o silêncio, no silêncio ouvem-se os pensamentos e vê-se o passado,
o silêncio não pode esconder... o que as palavras escondem. Li no outro dia
que a diversidade das línguas, nos povos primitivos, se destina a esconder
aos outros os segredos da tribo; todas as línguas são, por isso, uma linguagem
cifrada, e todo aquele que encontrou a chave, comprende-as a todas; alguns
segredos, é certo, podem ser desvendados sem a ajuda de nenhuma chave,
especialmente os que têm a ver com a paternidade; diante de um tribunal,
a história é outra: duas falsas testemunhas bastam para estabelecer uma prova,
desde que estejam de acordo; no género de expedições de que eu quero
falar, não se leva nenhuma testemunha, porque a própria natureza dotou o
homem de um sentimento de pudor que mantém escondido o que deve ser
escondido... Mas encontramo-nos por vezes sem querer em situações em que
é preciso revelar os segredos mais recônditos, arrancar a máscara do escroc
e desembuçar o bandido... (Um silêncio. Todos se olham sem nada dizer.) Que
silêncio! (Um longo silêncio). (August Strindberg 109)

Se recuarmos agora até aos isabelinos, encontramos repetidamente o


mesmo tema da aversão às palavras. John Ford, em A Pity She’s a whore,
põe uma das personagens, talvez a mais justiceira, a exclamar: “É tão gran-
de a vilania das palavras, que até as pombas meigas se enraivecem!” Em
Shakespeare, os exemplos são tão abundantes que dariam, por si só, um
longo estudo. No Rei Lear, declara com toda a lucidez que “ainda não che-
gámos ao pior, enquanto pudermos ir dizendo, ‘isto é o pior’.” Hamlet,
aquele que se queixa das “palavras, palavras, palavras”, declara, em carta
a Ofélia, que não sabe traduzir o seu amor por versos bem contados:
“sou mau nestes números, não tenho jeito para contar os meus gemidos,
mas amo-te muito, oh, amo-te mais do que muito, acredita.” Note-se, de
passagem, que quando Fernando Pessoa quis declarar-se a essa outra Ofélia
(Queirós) que veio trabalhar no mesmo escritório, puxou-a para um vão de
escada e disse-lhe justamente esses versos do Hamlet sobre a impossibili-
dade de traduzir o amor em versos.

389
D rama e C omunicação

A mãe de Hamlet, essa pede-lhe, ordena-lhe: “Cala-te”, “silêncio”. “Não


digas mais nada”, “ah, não fales mais comigo, que as tuas palavras entram
como punhais nos meus ouvidos, mais não, doce filho.” O que nos vem
lembrar que essas palavras podem, como punhais, ser actos – falas que
agem, actos da fala. Por toda esta peça existem, aliás, discussões sobre os
limites da linguagem e sobre as revelações que surgem quando ela sai dos
seus parâmetros razoáveis: “não há dúvida que é loucura, mas há nela um
método”; “muitas vezes a loucura acerta com felicidade naquilo que a razão
e a saúde não alcançam”; Ofélia “diz coisas duvidosas só com meio sentido.
A sua fala é nada, e no entanto esse uso descosido das palavras move a aten-
ção dos ouvintes – eles escutam-na e lá ajeitam as suas palavras para baterem
certo com os pensamentos de cada um, nada de certo, mas muito infeliz.”
Se recuássemos aos gregos e fôssemos ler a Medeia, de Eurípedes, en-
contraríamos as mesmas hesitações. A começar em Creonte, que diz à
protagonista: “as tuas palavras são agradáveis aos ouvidos. Mas no fundo
do coração – e isso arrepia-me – tu meditas uma desgraça. Parte, por isso,
e depressa. Basta de palavras” – mas acaba por aceitar as promessas dessas
palavras. Até à própria Medeia, cujo longo monólogo oscila entra a fala e
a acção: “mas neste ponto suspendo as minhas palavras e choro sobre esse
crime que prometi cometer em seguida.”
Outra peça em que um dos temas estruturantes é o jogo entre a palavra
e o silêncio mostra como a questão é provavelmente tão antiga quanto a
linguagem: trata-se do Rei Édipo, de Sófocles. Ali, existe todo um jogo en-
tre as personagens que não querem falar, as outras que as obrigam a falar,
as consequências boas e más da palavra, não apenas oracular mas humana.
“Não, não posso revelar a tua desgraça, que seria também a minha.” “Pelos
deuses, senhor, não me perguntes mais nada.” “Há coisas que é horrível
fazer, mas é mais horrível falar delas.” “Se falo, com mais razão mereço a
morte. Oxalá os deuses me tivessem matado nesse dia!” “É o que te vai
acontecer, se não disseres a verdade.” “Mais cedo morrerei se não falar.”
“Se te recusares a revelar o que sabes, não amas a cidade que te fez nascer.”
“Tudo o que tem de suceder, sucederá, apesar do meu silêncio.” “Se tem
de suceder, bem mo podes revelar agora.” “Estás a tentar-me, para fazer-me
falar?” “Ai de mim! cheguei ao ponto mais terrível do que tenho a dizer.”
“E eu do que tenho de ouvir. Mas tenho de ouvi-lo.”

390
T exto e cena

Tudo aqui nos lembra como as falas são actos. Esmagado pelas pala-
vras reveladoras, quando já não as pode continuar a remeter para a
loucura (“não esperava que falasses como um louco”), Édipo concluirá:
“Mulher, receio que já me tenham falado demais.” E a própria Jocasta,
que antes declarava que “quem não tremeu ao cometer um crime, também
não se deixa atemorizar por palavras”, quando passa da fala ao acto si-
lencioso, deixa o coro aterrado: “Receio que grandes males venham
deste silêncio.”
Voltemos a Artaud. As suas palavras deram-nos - e já não foi pouco
- um imenso e novo horizonte para o teatro: mas não chegou a construir
um teatro para esse horizonte. Escreveu (além de um surrealista diálogo
radiofónico) uma só peça, e essa, apesar do tema provocador do incesto,
com uma estrutura e uma forma muito clássicas (era aliás, repita-se,
adaptada de Shelley e Stendhal); encenou-a, é certo, mas as fotografias
mostram um dispositivo algo convencional, excepto por alguns fatos
desenharem o interior do corpo humano. Além disso, Artaud escreveu
inúmeros textos, poemas, manifestos, ensaios, cartas, cadernos, análises,
súplicas: que a editora Gallimard tem vindo a editar, completando já 26
volumes!

6. Depois de Artaud, da performance, do happening, do Living Theatre,


do Bread and Puppet, do Teatro de la Mamma, da presença crescente dos
elementos coreográficos e circenses dentro do próprio teatro, já será
possível pensar um espectáculo que dispense completamente o texto?
Bob Wilson fez Deafman’s Glance, que não tinha palavras; mas decerto
ao fazer o guião de luzes desse espectáculo tinha um texto em que tudo
o que acontecia na cena estava escrito. Ainda que não queiramos ser
totalmente derridianos e ver tudo como um tecido textual, é evidente que
há uma dominância textual fundamental na nossa cultura. Veja-se como,
no Ocidente, até conseguimos criar um sistema de explicitar por escrito
acontecimentos tão misteriosos como a música e a dança, em que o re-
pertório é retomado em diferentes partes do mundo porque inventámos
uma escrita própria capaz de traduzir os sons e movimentos em texto.

391
D rama e C omunicação

Também Samuel Beckett (que é um mago das palavras mas extremamen-


te depuradas, não tagarelas) tem uma peça, Acte sans paroles, que está
publicada: as personagens não falam mas fazem uma série de acções, que
o texto descreve ou prescreve; nessa peça, Beckett apenas leva mais longe
– até ao silêncio – a depuração das falas: ali, “a ausência de palavras é o
traço de uma palavra anterior ou interior”, comenta Ubersfeld (13), que
acrescenta: “mesmo o mimo, na medida em que pode ser tido por teatro,
não é teatro sem texto”. Inspirando-se também no teatro popular e nos
clowns, Beckett virá a desenvolver várias obras que são feitas de movimen-
tos precisos e inquietantes sobre o palco, sem palavras. “Beckett é exemplar”,
diz Badiou (2007:27): “substitui a comédia com intriga por agenciamentos
cómicos que, de resto, são mais instalações teatrais do que performances.
Vozes, corpos, devires, irrupções, dispostos fora da intriga, mostram a po-
tência crítica do insignificante existente. Mas a língua permanece, e que
língua!” E certas tradições teatrais, como a inglesa, apesar das invectivas de
Gordon Craig (que rapidamente emigrou…) nunca deixaram de assentar na
importância da palavra, de Wilde aos angry men Osborne, Werker, Pinter.
Surgiu também, em muitos países e estéticas, uma concepção mais alarga-
da do texto teatral, com adaptações de epopeias, novelas, romances.
Podemos então dizer que está certo o mito do texto absoluto e auto­
suficiente? De maneira nenhuma: seria fazer tábua rasa de dimensões
fundamentais do espectáculo e de contributos essenciais do século XX , de
Craig e Artaud até à performance contemporânea. Porque permanece uma
questão fundamental: “em teatro a noção de texto não é a mesma que em
literatura” (Dort, in Rebello 124). Mesmo encenadores na linha do Actors’
Studio preferem que o texto não seja decorado logo no início, para não
ficar mecânico, para ficar ligado a impulsos (ainda que isso possa atrasar
o processo, se mais tarde há um período em que os actores estão a tentar
decorar). Posso também dar o testemunho de um espectáculo que encenei
em 1999 na Fundação Calouste Gulbenkian, Área de Risco, em que estava
particularmente à vontade porque era um texto meu: na primeira semana
não dei o texto aos actores. Só a cenógrafa e o músico tinham a peça; os
actores, sem sequer saberem bem quais eram as suas personagens, estavam
muito perplexos: mas eu dava-lhes situações sobre as quais eles improvisavam,

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T exto e cena

393
D rama e C omunicação

de modo a criar situações, ambientes, memórias, e foi surpreendente ver


como chegavam perto do que eu queria, como se tivessem lido a peça,
mesmo antes de os alimentar com palavras. Havia a onda já a formar-se, e
as palavras vieram depois para ajudar ao rebentamento dessa onda. Porque,
por vezes, quando os actores partem do texto, entram numa rotina de apenas
o dizer, e podem não sentir os impulsos de onde as palavras vêm.
Tudo depende de como nos situamos entre estes dois mitos. Quem co-
manda o quê, num espectáculo? Vimos já que lidamos com um politexto,
composto de muitos textos: a peça escrita, mas também o espaço, as lin-
guagens da cenografia, dos figurinos, da luz, do som, dos corpos. Posso
até recorrer a mais do que uma peça, ou tomar um romance e adaptá-lo,
ou contos, ou uma epopeia (como Mahabaratta, de Peter Brook e Carrière),
ou um filme, ou a lista telefónica. Porquê? Talvez porque o teatro da tea-
tralidade de que Craig e Meyerhold falavam é suficientemente forte para
viver por si e alimentar-se de vários elementos, sem excluir o texto nem
ser excluído por ele. No tempo das criações colectivas, Peter Brook, de
visita a Portugal, em 1980, aconselhou-me a não dispensar o texto, dizendo-
me qualquer coisa como: “experimenta fazer uma criação colectiva sobre
o ciúme, e depois compara-a com o nível a que seria possível chegar se
incorporassem, entre outros, o genial contributo de Shakespeare em Othello”.
Justamente por não ser único nem sagrado, não há razão para não integrar
o texto no complexo processo de trabalho. Tudo depende de como, entre
as várias linguagens que sempre convergem na cena, se vão estabelecer
prioridades e hierarquias. Brecht falava de um “contrato” entre os vários
elementos, e considerava que no teatro não há um centro real mas vários
centros possíveis (Dort, in Rebello 147). Pode contudo optar-se por dar
prioridade (apenas prioridade) ao texto, ao espaço, ao “desenho” (do ce-
nário, da luz ou do som), à música ou à própria ideia da obra total, como
já vimos. Uns grupos seguirão por um caminho, outros por outro, outros
por atalhos. Badiou profetiza uma tendência, mas não me parece que seja
certo ela concretizar-se, muito menos em todos os países e grupos por igual.

Chamo aqui “invisíveis” às instruções ou enunciados que (…) estão “entre”


a ideia e o acto. Estas instruções foram durante muito tempo parcialmente

394
T exto e cena

escondidas (porque só eram explícitas durante os ensaios), parcialmente


visíveis (desde que o encenador brechtiano quisesse dá-las a ver, ou as ex-
plicitasse no programa do espectáculo). A passagem completa de um teatro
da mostração a um teatro da construção (ou do processo) pressupõe certa-
mente que o lugar das instruções seja revisto, a natureza da sua existência.
No fundo, a primeira forma desta revisão foi, durante pouco mais de um
século, a importância crescente do encenador. Ele foi, na fronteira do visível
e do invisível, o homem das instruções (ou dos axiomas da representação).
A performance, bem como a invasão da cena pelos esquemas forjados pela
dança ou pelas práticas corporais, indica sem dúvida que o século do ence-
nador chegou claramente ao fim. Mas não se pode confundir de maneira
nenhuma este fim com o fim do teatro. (…) O fim da ideia de um encenador
do mundo não é de forma alguma o fim de toda a ideia do mundo. O teatro
existiu durante muito tempo sem a figura separada do encenador, e conti-
nuará sem ela. A grande questão é a de saber o que então centraliza as
instruções, por muito aleatórias que elas sejam. O meu sentimento é que elas
se tornarão cada vez mais abstractas, e não corporais ou colectivas. Estamos
a ir, e essa é a minha profecia, em direcção a uma austera matemática teatral.
(Alain Badiou, 2007:23)

7. Justamente por ser um politexto que junta distintos sistemas de signos,


o espectáculo tem sido terreno muito fértil para a semiologia. Se Barthes
já chamou a atenção para o funcionamento polifónico de toda a produção
de sentido, mais fascinado ficou com a arte combinatória do teatro japonês
Bunraku (1970:63-82): um entrelaçado de códigos que afinal encontramos
também no teatro ocidental. Umberto Eco (1978:18) chamou mesmo “Terra
Prometida da semiótica” ao teatro, que se joga entre texto e cena, entre o
visto e o percebido, o verbal e o não verbal. Fazer a semiologia de um
texto escrito é uma coisa: mas em cima do palco está um conjunto não
infinito mas variado de signos, de linguagens: o que é dito através do tex-
to, do cenário, dos figurinos, das luzes, dos movimentos, etc. O espectador
vai ser convidado a relacioná-las, e quanto mais experiente for maior faci-
lidade terá em fazê-lo. Relacionamos as coisas que estamos a ver umas com
as outras (por exemplo, as personagens de negro versus as personagens de

395
D rama e C omunicação

vermelho) e relacionamo-las com os mundos exteriores à peça (ao verme-


lho podemos associar a paixão, ou a revolução).
As abordagens semiológicas do espectáculo começaram nos anos 30, quan-
do a Escola de Praga começou a estudar o teatro de um ponto de vista
estruturalista (só nos anos 70 surgiu uma semiologia do teatro de orientação
pragmática). Num ensaio de 1938, Piotr Bogatyrev (71-91) chamou já a aten-
ção para “Os signos do teatro”: em cena há uma semiotização mais evidente
de cada objecto. A cadeira na sala de aula serve sobretudo para o professor
se sentar nela; mas a cadeira pode ter um valor mais importante: com o seu
luxo ou a sua austeridade marca o estatuto de quem a pode usar, indepen-
dentemente, até, de alguém se sentar ou não nela (é o que se passa, por
exemplo, em quase todas as casas, com a sua combinação de elementos para
usar e elementos para mostrar). O que acontece em cena é que prevalece o
valor simbólico sobre o valor utilitário. Em cena, a cadeira física pode nunca
chegar a ser usada, ou ser feita por um actor de gatas, ou entrelaçando os
braços, ou com uma corda; já em Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare,
duas personagens fazem um muro só com as mãos. Peter Brook, defensor da
cena como “espaço vazio”, é conhecido por ir retirando elementos do cenário
até à depuração máxima, que pode chegar à simples sinalização por uma cana
ou uma corda.
Mesmo em cinema (onde até agora constitui uma excepção), Lars von Trier
trabalhou nesse sentido de mera sinalização dos espaços e objectos no filme
Dogville. Também Brecht trabalhou muito sobre a semiotização dos objectos,
a que dava especial atenção; foi uma das razões por que Roland Barthes lhe
dedicou inúmeros estudos2.
Repare-se no estatuto intermédio que têm os signos cénicos. Richard
Demarcy escreve: “A linguagem visual do teatro ocupa uma posição intermé-
dia entre a linguagem visual escrita (daí as suas ligações com a literatura) e
a linguagem visual cinematográfica (...). Por exemplo: a escrita serve-se da
palavra ‘exército’ para fazer surgir o exército no espírito do leitor.” O cinema
mostra um exército o maior possível. O teatro não ficará só pelas palavras

2São sobretudo pequenos textos em jornais e revistas. Ver 1993, sobretudo os textos que
começam, no vol. I, nas pp. 481,486,496,514,547,730,753,848,889,1530; vol. II, p. 1591.

396
D rama e C omunicação

ditas pelos actores, procurará elementos visuais ou sonoros para o fazer sur-
gir fisicamente, mas nunca porá no palco um exército completo: talvez
trombetas, sons, alguns soldados, raramente os cavalos. “É sem dúvida este
vaivém complexo entre realidade e convenção total que faz do teatro uma
arte original da representação.” (27) Shakespeare sabia bem a importância da
imaginação do espectador, que trabalha a partir dos signos dados em palco.
Ele pede, logo no início da peça Henrique V: “preencham as nossas imper-
feições com os vossos pensamentos” (durante toda esta peça, aliás, o coro
fará variações sobre esta ideia).

... Criem poderes imaginários;


Pensem, quando falamos em cavalos, que vêm cavalos
A enterrar os orgulhosos cascos na terra que os recebe;
Porque são os vossos pensamentos que agora devem
Enfeitar os nossos reis, levá-los a toda a parte,
Queimar etapas, tornar os resultados de muitos anos
Num caso de uma hora. (William Shakespeare, Henrique V, prólogo)

Isto significa que o acto de interpretação do sentido da representação


pode ser feito mais pelo espectador do que pelo actor. Queira ou não, o
espectador fabrica sentido, teatraliza e atribui intenções a tudo o que vê.
Como escreveu Deleuze (1984:10): “entre duas figuras sempre uma história
se introduz”. “A introdução de animais vivos no palco faz aliás tomar clara
consciência de como o nosso apetite efabulador nos leva a fabricar sentido
quando, evidentemente, não podemos acreditar que o animal desempenhe
conscientemente um papel” (Febvre 48). No palco de teatro existe uma
teatralidade fundada na relação entre quem olha e quem é olhado, tal como
aliás acontece no quotidiano: um olhar sobre a pessoa ou situação ou
acontecimento vem teatralizar, envolvendo-o “de uma fantasmática ou de
uma ficção que não lhe pertencem” (Féral 347-361).
Há contributos da semiologia muito interessantes e concretos para a própria
prática cénica. Umberto Eco (1989:51) refere, para começar, a cinésica: é o
estudo da significação dos gestos, da expressão do rosto, das posições cor-
porais, das atitudes motoras. Tem uma longa tradição científica, que remonta

398
T exto e cena

pelo menos a Darwin. Nos mesmos anos 30 dos primeiros estudos semioló-
gicos do teatro, Marcel Mauss estudava os gestos e a utilização social do
corpo. Pela mesma época, muitos actores publicavam livros que incluíam
fotografias dos vários tipos de expressões que a cara pode transmitir. Vimos
também, com Goffman, como estamos atentos ao jogo das possíveis diferen-
ças entre o que é expresso por palavras e o que é expresso por gestos.
Ou entre as palavras. Um campo da semiologia fundamental para o drama
é a paralinguística: Eco (1989:51) define-a como “o estudo das entoações,
das inflexões de voz, das diversas significações de um acento, de um sus-
surro, duma hesitação, de um tonema, de uma inflexão, às vezes de um
soluço ou de um bocejo”. Para além das palavras propriamente ditas, há
pausas, entoações, expressões que usamos tanto ou mais do que as palavras
e que vão articular o discurso de uma determinada maneira. Se ouvirmos uma
gravação de uma conversa num café, ou mesmo de uma aula universitária,
que se poderia esperar ser um discurso muito articulado e limpo, constatamos
que está cheia dessa paralinguagem. Quanta informação é dada pela maneira
como as palavras são enunciadas e por aquilo que está entre as palavras!
Note-se que já no século XVIII o pensamento precursor de Diderot reconhecia
que, mesmo numa época que valorizava as grandes tiradas verbais, elas eram
menos eficazes do que toda a paralinguagem que entre elas surgia:

O que é que nos afecta no espectáculo de um homem animado por uma


grande paixão? São os seus discursos? Às vezes. Mas o que comove sempre,
são os gritos, as palavras inarticuladas, as vozes entrecortadas, alguns
monossílabos que se escapam por intervalos, um não sei que murmúrio na
garganta, entredentes. A violência do sentimento entrecortando a respiração
e levando a comoção ao espírito, separa as sílabas das palavras, o homem
passa de uma ideia a outra; começa uma multitude de discursos, e não acaba
nenhum; e, com excepção de alguns sentimentos que transmite no primeiro
acesso, aos quais, regressa sem cessar, o resto não é mais do que uma
sequência de ruídos fracos e confusos, de sons expirantes, de acentos abafados
que o actor conhece melhor que o poeta. (…) Um ramo oposto a estas
verdadeiras vozes da paixão, é aquilo a que chamamos de tiradas. Nada é
mais aplaudido, e de maior mau gosto. (Diderot, in Borie et al 154)

399
D rama e C omunicação

Outro campo ainda é a proxémica: estuda a organização do espaço,


nomeadamente a distância entre as pessoas. Vimos já, no exercício de psi-
codrama referido no quarto capítulo, como essa organização espacial e essa
distância são significativas, e como variam de família para família. Por
maioria de razão, variam de cultura para cultura: “para representar dois
sicilianos conversando entre si, é necessário dispor de um espaço diferen-
te daquele que seria necessário para representar dois piemonteses” (Eco,
1989:51). Pôr em cena um espectáculo implica uma organização espacial:
dizer a mesma frase, ou cantar a mesma canção, tem um resultado comple-
tamente diferente se for feito junto ao receptor ou longe. Umberto Eco
(1989:52) conta que foi ver o filme Vermelhos e Brancos, do realizador
húngaro Miklós Jancsó, sobre um universo que transpirava desumanidade,
e notou que nunca eram usadas as distâncias habituais entre as pessoas:
elas estavam, ou muito juntas, ou muito afastadas, o que, independente-
mente das palavras, dava logo uma sensação de desconforto. “Lembro-me”,
diz Eco, “de ter compreendido que as impressões de desumanidade e cruel-
dade, de desespero e de loucura que este filme, falando da guerra,
conseguia inspirar, provinham de uma utilização calculada da dissipação
dos movimentos e da alteração das distâncias normais entre as personagens.”
Eco comentou isso com o realizador, que não tinha uma consciência tão
teórica da questão, nem tinha que ter; mas é claro que quem está a encenar
ou realizar trabalha muito sobre o espaço e as distâncias. Na linguagem
técnica do teatro, chama-se marcações à definição dos movimentos das
personagens, e portanto da proxémica.
É claro que, quando Umberto Eco estava a assistir a esse filme, como
semiólogo estava atento a uma leitura das distâncias. Diz ele que, no cine-
ma, faz constantemente uma leitura do filme como linguagem, vendo como
os signos foram utilizados: “qualquer pessoa está defrontado perante um
significante visual que remete para qualquer outra coisa”. Enquanto que,
ao assistir a uma peça de teatro, Eco se deixa envolver completamente: ali
“qualquer pessoa pode ainda acreditar estar diante da realidade bruta, sem
mediação de signos”. (1978:19) Eu, pelo contrário, tenho a sensação opos-
ta: estou mais a decifrar uma linguagem no teatro do que no cinema, onde
me é mais fácil por momentos mais ou menos longos acreditar que estou

400
T exto e cena

diante da realidade bruta. O ecrã bidimensional consegue dar-me mais a


noção da vida tridimensional e levar-me à “suspensão voluntária da des-
crença”, que é como, depois de Coleridge, se tem definido a ficção. Também
Sartre (85,88) tem esta posição inversa da de Eco: o teatro é fascinante
porque é o homem visto de fora, em perspectiva, enquanto no cinema há
maior empatia e o espectador entra dentro do filme: “A participação no
cinema é maior do que no teatro. (...) No cinema nós somos o herói, par-
ticipamos nele, corremos para a nossa perdição. No teatro, ficamos de fora
e o herói perde-se diante de nós.”
Em 1765, Samuel Johnson (in Borie et al 209-210) partia do princípio de
que “os espectadores conservam sempre o seu bom-senso, e sabem, desde
o primeiro acto até ao último que a cena não é mais que uma cena e que
os actores são apenas actores. (…) Perguntar-se-á como comove o drama
se não é acreditado. (…) A reflexão que toca o coração não é que os ma-
les que vemos são males reais, mas que são males aos quais poderemos
estar expostos (…), como uma mãe chora sobre o filho quando se recorda
que a morte pode levar-lho.” Não esqueçamos, entretanto, que as diferentes
épocas, ou, numa mesma época, diferentes opções estéticas, podem con-
ceber e tentar fabricar a teatralidade como ilusão perfeita, ou como
desmascarar das ilusões, ou como exaltação do artifício, do jogo (seja esse
jogo sóbrio ou ostentatório). Pode até, num outro extremo, ambicionar um
teatro que não quer ser recebido como teatro, o “teatro do invisível”, uma
das várias propostas de Augusto Boal (1931-2009), que com fins sócio­
‑políticos quer confundir-se com os acontecimentos da vida e confundir o
espectador não prevenido da convenção – criando por exemplo uma
pseudo-altercação no metro a propósito da proibição de fumar.
Diferentes espectadores terão diferentes experiências do teatro e do
cinema – e aliás o mesmo espectador pode ter experiências diferentes con-
forme o tipo de espectáculo ou de filme. O que é fundamental não perder
de vista é que aquilo que distingue o teatro da literatura ou mesmo do
cinema é que ele é signo mas também é corpo: implica a presença física
dos actores, dos espectadores, do espaço... Daí todas as abordagens do
dispositivo energético e pulsional ligado ao espectáculo, de Artaud e
Grotovski a Lyotard ou Deleuze, como vimos.

401
D rama e C omunicação

Procuremos ir mais longe na reflexão semiológica. No palco do teatro,


lida-se com um signo muito especial, que muitas vezes se apresenta como
se não fosse signo: ao actor é pedido mais frequentemente do que a qual-
quer outro artista que seja “natural”, como se não fizesse uma arte e apenas
transmitisse a própria realidade – questão que já discutimos e voltará no
próximo capítulo. Por outro lado, um dos trunfos do palco pode ser justa-
mente a artificialidade. A viúva de Jorge de Sena contou-me que o marido
gostava muito de teatro, não por causa do naturalismo, mas justamente por
ser uma convenção tão forte que, em Londres, se podia assistir a uma gran-
de actriz “morrer” em palco, o público aplaudir, a actriz agradecer e voltar
à posição de morta para a peça continuar – como ainda hoje acontece na
ópera ou em certas sitcoms televisivas gravadas ao vivo. Nestes casos (mais
do que no naturalismo em que a convenção só é desfeita nos aplausos fi-
nais), evidencia-se que a existência física própria do drama não impede,
antes potencia, a nossa entrada no mundo da ficção (e a nossa saída dele).3

Todos concordam com o carácter sobrereferencial do teatro. A construção


do referente cénico é da ordem do oxímoro: a “realidade” do espectáculo, a
sua verosimilhança supõem a convenção; Landowski precisa excelentemente
o procedimento: ‘É uma instância imaginária investida de uma existência
semiótica, mas privada de realidade fora do quadro espectacular que a faz
nascer, que cauciona a realidade do espectáculo’. (...) A natureza do paradoxo
referencial sublinha a dimensão elocutória da enunciação cénica; dois
momentos discursivos estão aqui implicados, para retomar Eco: a) a asserção
de uma convenção mentirosa, b) a pseudo-asserção pela personagem/
espectador no interior do mundo possível assim determinado. (André Helbo)

Assim como o actor sabe o que vai acontecer a Hamlet no decorrer da


peça mas tem de actuar como se o desconhecesse, porque ele sabe mas
Hamlet não sabe, também o público sabe que o actor tem esse conheci-

3 Nos espectáculos de ilusionismo, o próprio intitulado deixa claro que a atracção é a


ilusão, ainda que num género particular dentro do ilusionismo exista a atracção suplementar
de explicar por que mecanismos ela foi conseguida.

402
T exto e cena

mento, e que o actor está ciente de que os espectadores familiarizados com


a peça também o têm, mas olha para a personagem como se fosse inde-
pendente de tudo isso, aceitando aquela irrealidade: é aquilo a que Natanson
(56) chama “a apropriação do conjuntivo”. 4
A posição do espectador não deixa assim de ser paradoxal: ele paga
para ser enganado. Dir-se-á que o mesmo se passa em toda a ficção, que
essa é a regra do contrato ficcional. Mas o logro do teatro, como temos
visto, é diferente porque é realizado fisicamente: paga-se para que alguém
em cima do palco finja que é um mendigo ou um príncipe da Dinamarca
que está num castelo. Helbo fala, a este respeito, da “ambivalência funda-
dora da ilusão teatral: a simulação, o iniciar do jogo só são possíveis graças
ao espectador instigador do prazer. Perversidade de um olhar que aceita o
engano na condição de ser ele próprio a vítima.”
Outro aspecto que merece ser compreendido é o das migrações do su-
jeito: por exemplo, o autor do texto delega no encenador, que delega nos
actores. André Helbo escreve: “Entregue às migrações (actanciais ou modais)
internas ao discurso, o sujeito de enunciação sobrevive às metamorfoses;
é exactamente aí que reside a essência do paradoxo teatral: pela sua pro-
cura do sujeito individual (espectador ou actor) condena-se, através de um
jogo de delegações, à sua própria diluição no sujeito colectivo (público)
que o perpetua.” Também, inversamente, podemos pensar o espectáculo
como uma delegação do público que pede aos criadores que lhe mostrem
ou desenvolvam o seu próprio imaginário. No teatro posdramático, em que
o eixo da relação com o público se pode tornar prioritário, diz Lehmann
(206), “a concepção da semiótica do teatro (…) torna-se problemática” na
medida em que ainda esteja centrada no eixo intracénico. Mas há décadas
que a semiótica tem consciência dos vários eixos.

4 Natanson (1976:58) cita uma conferência em que o actor e encenador Jean-Louis Barrault
comenta que, no momento em que Hamlet ouve Polónio por trás da tapeçaria e, brandindo
a espada, grita “Um rato?”, consegue finalmente o acto sanguinário que antes não ousara:
“é capaz de empunhar a espada e matar um rato, mas talvez não fosse capaz de empunhar a
espada para matar um homem”, diz Barrault. O facto de trabalhar sobre uma figura permite
à personagem ir mais longe. Ao actor e ao espectador também.

403
D rama e C omunicação

Quando tentamos definir o discurso espectacular, dificilmente escapamos


à categoria do paradoxo. Uma primeira aproximação abordaria o processo
teatral em termos de delegação de saber por um autor a um meio cénico que
se dirige ao espectador. Uma segunda hipótese inverteria o momento do
mandato: o espectador transmite à instância cénica (e ao autor) um poder
especular, o de lhe comunicar a imagem do seu próprio desejo. Em ambos
os casos se perpetua o duplo constrangimento de uma interacção lógica.
(André Helbo)

Vamos mais longe: não nos seria difícil colocar à partida o teatro como
inversão crítica da noção de representação, a tarefa do teatro concreto sendo
a de construir o modelo real de uma construção imaginária. A cena aparece
então como um après-coup do imaginário e nesta perspectiva o facto de
passar ou não pela textualidade literária não é essencial. (Anne Ubersfeld 10)

Ou seja, o espectador delega a realização do seu imaginário numa equipa


teatral em que, por sua vez, o dramaturgo delega a sua voz no encenador,
que delega nos actores, numa relação complexa (mútua e que abrange mais
elementos), como estudaremos no próximo capítulo.

404
1 2 . AC TORE S E ENCEN A DORE S

1. Procuremos neste último capítulo dar a conhecer melhor o trabalho


dos actores e de outros criadores das artes cénicas. Comecemos pelo tra-
balho do actor, porque, como Goethe diz pela boca de Wilhelm Meister
(Goethe, Livro II:139): “um bom actor faz-nos esquecer, em breve, um cená-
rio lastimável e impróprio; pelo contrário, o mais belo teatro é que nos faz
mesmo sentir a falta de bons actores.”
Iremos progredindo do mais pueril para o mais complexo. Entre as
questões que as pessoas sempre colocam sobre o actor, a primeira costuma
ser: “como é que os actores conseguem decorar os textos?”. Responde-se
com o que já foi visto no último capítulo: que o essencial não são as pa-
lavras, palavras, palavras, que um actor não é um altifalante nem um talking
head e que, no teatro, muitas vezes o texto é a última fase de um proces-
so em que, ao longo das semanas, vai havendo possibilidade e razões de
decorar o texto. Já tenho argumentado (Monteiro, 2005:275-276) que deviam
perguntar aos actores era como conseguem esquecer. Essa questão encerra
boa parte da dificuldade e do mistério da sua arte. No discurso que faz aos
actores, Hamlet espanta-se: What’s Hecuba to him or him to Hecuba? – como
é possível o actor viver aquela ficção como se fosse sua ou da sua família?
Espantemo-nos agora: como é possível, passado um mês, o actor ter esque-
cido tamanha paixão e estar já a viver outra a que procura entregar-se com
igual desmedida?
Talvez estas entregas sucessivas e infinitas não sejam saudáveis. Mas
talvez, talvez sejam aquilo que as crianças espontaneamente fazem, aliás
misturando, alegremente e com muitos choros, as realidades e as ficções.
D rama e C omunicação

E cada adulto não terá esquecido ou tentado esquecer pelo menos uma
humilhação, uma ira ou um pecado que só ele próprio conhece? Como
poderíamos prosseguir a caminhada sob o peso desmesurado das muitas
malas de memórias? De facto, esquecer o passado é lembrar o presente.
Esforçamo-nos por esquecer, até porque o presente, sobretudo o presente
dramático, já inevitavelmente nos faz viajar para os momentos passados e
futuros que sintetiza. Mas será humanamente possível sermos nós próprios
a fazer uma mala de viagem, de modo a salvar da necessária selecção os
amores e paixões que nos marcaram e nos tornaram mais humanos?
Há actores que esquecem de menos. Trabalhei com um que, depois de
ir fazer uma peça do Genet, voltou para a companhia tão mudado, tão
irascível, que acabou por desistir: não tinha sabido esquecer. Um caso par-
ticular desta espécie é o actor que vai criando uma figura e nunca se
esquece dela, talvez para assim ter um filtro, uma máscara que se interpõe
e facilita ao mesmo tempo a entrega e a distância, a dádiva e o esqueci-
mento dela.
Há outros actores que esquecem demais, e vão para a peça seguinte só
com uma memória técnica, sem se lembrarem de que pelo menos em cada
momento que entraram em cena e acreditaram em Hecuba também se tor-
naram um ser humano melhor e mais profundo.
O encenador também tem de aprender a esquecer mas não conta para
isso com a ajuda diária e nocturna dos espectadores – esses que justificam
e tornam possível que os actores se tornem pontos de intensa passagem
de ideias e sentimentos a que não podem ficar agarrados!
Uma das melhores utopias do espectáculo é a do momento decisivo e
irrepetível: una noche y basta. Artaud chegou a defender que os próprios
poemas deveriam ser ditos uma vez e logo destruídos: o sonho de algo
magicamente eficaz precisamente porque não repetível – um sonho para o
qual tantos acordaram nas últimas décadas, cansados de dois séculos de
um teatro que se instituiu como máquina de repetição. Mas mesmo quando
tem de repetir a mesma peça todas as noites durante vários meses (ou, para
a câmara, os mesmos gestos e falas durante vários takes), o actor terá de
saber improvisar, com técnica e espontaneidade, para que esses gestos e
falas pareçam nascer no preciso momento em que são no entanto repetidos.

406
Actores e encenadores

Tal como no dia da estreia teve de esquecer, sem esquecer, que as marca-
ções são marcações, para que as personagens e situações tenham ou pareçam
ter vida própria, não delegada. Esquecer é lembrar o presente, e nada é mais
difícil ao actor, e talvez a todas as pessoas, do que estar realmente presente.
Descarta-se também rapidamente a questão do vedetismo, que não tem
deixado de se projectar sobre a questão do actor, desde Aristóteles passan-
do por Wagner e Craig até aos nossos dias. Invoque-se então o lema do
Teatro de Arte de Moscovo, dirigido por aquele que ainda hoje é a referên-
cia mais constante nas reflexões sobre o actor, Konstantin Stanislavski
(1863-1938): “ama a arte, não te ames a ti na arte”. O mestre russo, que
redigiu o seu livro A Formação do Actor sob a forma de diário de um pro-
fessor, põe este a avisar a turma:

Agora recordem isto: o teatro por via do seu lado espectacular e da sua
notoriedade atrai muita gente que só quer explorar a sua beleza ou fazer
carreira. Aproveitam a ignorância do público, o seu mau gosto, caprichos,
intrigas, falsos êxitos e muitos outros meios que não têm relação com a arte.
Devemos usar para com eles das mais severas medidas e se os não podemos
modificar, devemos obrigá-los a abandonar o Teatro. É por isso (e voltou-se
para Sónia) que você deve decidir duma vez para sempre se vem aqui para
servir a arte e pronta a fazer os sacrifícios necessários, ou explorá-la para
fins pessoais. (Konstantin Stanislavski 52)

Uma outra questão que também vale a pena referir rapidamente diz
respeito à mercantilização do actor. Roland Barthes faz-lhe agudamente o
diagnóstico.

Numa peça recente (que ganhou um prémio) ambos os personagens


masculinos desbordaram de líquidos de toda a espécie, lágrimas, suores,
saliva. Tinha-se a impressão de assistir a um trabalho fisiológico horrível, a
uma torção monstruosa dos tecidos internos, como se a paixão fosse uma
grande esponja molhada espremida pela mão implacável do dramaturgo.
Compreende-se bem a intenção desta tempestade visceral: fazer da “psicologia”
um fenómeno quantitativo, obrigar o riso ou a dor a assumir formas métricas

407
D rama e C omunicação

simples, de tal modo que a paixão se tome também uma mercadoria como
as outras, um objecto de comércio, inscrito num sistema numérico de troca:
eu dou o meu dinheiro ao teatro, exigindo em paga uma paixão bem visível,
quase computável, e se o actor enche bem a medida, se ele sabe pôr a
trabalhar o seu corpo diante de mim sem batota, se eu não posso duvidar
do esforço que faz, então decretarei que o actor é excelente, dar-lhe-ei
testemunho da minha alegria por ter investido bem o meu dinheiro num
talento que não o escamoteia, mas o restitui centuplicado sob a forma de
lágrimas e de suores verdadeiros. (…)
E quando, extenuado, esvaziado de todos os seus humores, o actor vem
no fim da peça saudar o público, este aplaude-o como um recordista do
jejum ou dos alteres, propondo-lhe secretamente que vá restaurar forças,
substituir toda essa água com que mediu a paixão que lhe comprámos.
(Roland Barthes, 1978:100-101)

2. Uma outra questão que sempre surge permite começar a discutir


aspectos mais complexos: “o mais importante não é ser natural?”, ou “porque
é que os actores brasileiros são mais naturais do que os portugueses?”
Convém começar por ter em conta que as indústrias do cinema e da televisão
requerem do actor especificidades que podem demorar alguns anos a
dominar – e que em Portugal também já estão apreendidas. Há em primeiro
lugar uma diferença no tempo de ensaio e no de execução (geralmente em
cinema ou televisão só se ensaia no momento do registo e demora-se uma
hora a realizar uma cena que no teatro pode ser ensaiada e apresentada
durante meses). Há uma diferença também de contracena, porque em vez
de seres humanos muitas vezes os actores de televisão e cinema estão a
contracenar sobretudo com máquinas; por isso é que, conta-se, Sofia Loren
pedia para alguns membros da equipa constituírem uma espécie de público
para quem ela pudesse representar. Há também, quando se é filmado, uma
maior dependência em relação a quem filma, porque o actor não consegue
ter a noção exacta de como está a ser captado. E há ainda uma diferença
de escala, porque o actor que quer manifestar, por exemplo, desconfiança,
num grande palco à italiana pode ter de andar cinco passos, enquanto no
cinema ou na televisão talvez só precise de levantar a sobrancelha. Daí a

408
Actores e encenadores

tendência para usar muito a cara, em vez da expressão do corpo todo


(sobretudo em televisão, que vive dos grandes planos e onde os actores
por vezes o são apenas “do pescoço para cima”). Tendência que, eviden­
temente, outros grandes actores evitam: Greta Garbo era expressiva e
carismática mesmo sem quase mexer o rosto.
Para além destes aspectos a que Debray chamaria mediológicos, há que
aprofundar a questão da naturalidade que paira como uma exigência sobre
o trabalho do actor, e não apenas nos televisivos tempos de “apanhados”
e reality-shows ou daquilo a que Lipovetsky chamou cultura cool. É certo
que Diderot, ao escrever o seu célebre ensaio “Paradoxe sur le comédien”,
já valorizou a estética do actor como um trabalho consciente e artístico.
E que Schiller, no célebre prefácio à Noiva de Messina, entendeu que a
função do coro na tragédia grega era formar uma muralha humana de pro-
tecção à tragédia para que esta decorresse íntegra, separada do mundo real,
salvaguardando o seu domínio ideal e a sua liberdade poética. Mas, no
mesmo século XVIII, quantos estetas não insistiram que só é possível gostar
de uma voz quando ela é sentida como “natural”? Debrucemo-nos sobre a
questão.
Em 1912, Georg Simmel escreveu aquele precioso ensaio intitulado
“O actor e a realidade”, onde mostra como o teatro tem dificuldade em
fazer reconhecer-se como arte própria devido à sua peculiar relação por
um lado com o real e por outro lado com o texto. Por isso Brecht, já o
vimos, achava importante repetir que o actor não deve querer ser um macaco
nem um papagaio. Sobre a primeira questão, Susanne Langer (334) lembra
que, assim como um bom imitador pode não ser um bom actor (ou então
Fernando Pereira seria o melhor actor português), também “há pessoas
conhecidas como bons leitores de poesia ou prosa que nem por isso precisam
de ter qualquer aptidão para o teatro”. Vimos Deleuze (apud Cull 7) defender
que “a imitação não é a única maneira de conceber como diferentes seres
ou espécies podem aproximar-se uns dos outros”, há também a metamorfose,
o devir, processos complexos de construção de personagens. Quanto à
relação com o texto, diz Simmel, “entende-se popularmente do seguinte
modo: por meio do actor, a obra poética seria ‘tornada realidade’”. Mas
Simmel (203,207) argumenta que o actor é “o estilizador de todas as

409
D rama e C omunicação

impressionabilidades sensoriais como uma unidade”, “marcada pela


uniformidade do estilo, pela lógica no ritmo e decorrer dos sentimentos” e
outros recursos com que modifica as coordenadas da realidade empírica; e
o actor “tão-pouco converte a obra de arte dramática em realidade, antes,
pelo contrário, converte a realidade em obra de arte teatral”: “a arte teatral
não é o mediador entre aqueles dois nem o servidor de dois amos”.

Na medida em que reconhecemos o completo erro da ideia de que o


actor “realiza” a criação poética, uma vez que, de facto, exercita frente a esta
criação uma arte específica e unitária que está exactamente à mesma distância
da realidade como a própria obra [literária], nesta medida entendemos sem
perda de tempo por que razão o bom imitador ainda não é um bom actor,
que o talento para imitar seres humanos nada tem que ver com a capacidade
artístico-criativa do actor. Porque o objecto do imitador é a realidade, a sua
meta é ser tomado como realidade. Mas o actor artístico é tão pouco imitador
do mundo real como o é o pintor de retratos, antes é o criador de um mundo
novo (...).
Assim como o actor não é (como pretende o naturalismo popular) o
imitador do homem que se encontra na sua situação, assim tão-pouco (como
o pretende o idealismo literário) é a marioneta do seu papel, como se não
houvesse para ele qualquer tarefa artística (...) Por muito bonito que soe que
o actor só deve infundir vida ao drama (...), isso faz desaparecer, entre o
drama e a realidade, a autêntica e incomparável arte teatral (...).
Apenas esta autonomia da arte teatral como arte legitima o maravilhoso
fenómeno de que a figura poética, criada como una e unívoca, se ofereça
por distintos actores em configurações completamente distintas, das quais
cada uma pode ser plenamente suficiente, nenhuma mais correcta e nenhuma
mais errónea do que a outra. (Georg Simmel 204,206-207)

Uma vez compreendida a especificidade da criação no palco, então o


espectáculo pode integrar tudo, inclusive elementos do real – como o pró-
prio Bob Wilson fez, por exemplo, ao colocar numa das suas sofisticadas
cenografias um mendigo que tirou das ruas, o que pode ser mais uma ma-
neira de evitar os actores, nessa linha que, de tanto afirmar a poética

410
Actores e encenadores

própria do palco, de tanto reagir contra o mimetismo realista e a ditadura


do texto, imaginou um actor que claramente fizesse parte da visão e das
imagens do encenador, liberto das emoções e impulsos imprevisíveis do
ser vivo. Já desenvolvemos, no capítulo 9, esta ideia de um teatro sem ac-
tores. Mas o facto de a prática cénica continuar a não dispensar os actores,
apesar de todos os inerentes imprevistos e acidentes, dá-nos o prazer de
continuar. Quanto mais tivermos presente que o actor não é apenas o que
diz o texto ou aquele que imita a realidade, mais o reconheceremos como
criador, em vez de o anularmos. Procuremos então conhecer melhor o tra-
balho do actor-criador. Um bom primeiro passo é dar a conhecer de que é
feito o treino do actor.

3. Garrett entendia que entre as principais tarefas de reforma do teatro


português estava a de formar actores – “devagar, que isso é o mais difícil
de tudo”. E nessa formação como em toda a vida profissional do actor, é
fundamental ter preparado e aberto o seu instrumento, que neste caso é o
seu próprio corpo e voz; porque não bastam o carisma, ou um bom texto,
ou um bom encenador ou bons colegas: nem o maior pianista pode tocar
bem se o instrumento estiver desafinado. Mal vai o actor que confia dema-
siado na sua inspiração: até porque, ao contrário de outras artes, em que
ainda é possível imaginar que o criador trabalhe apenas quando sentir um
inspirado impulso, o actor tem uma profissão com horas marcadas: é às
vinte e duas horas e dezassete minutos que tem de entrar em cena e falar
ou cantar ou rir ou chorar.
Como escreveu Barrault, “todas as tardes, à hora certa, devemos ser
primaveris. A tal minuto é-nos mister chorar, a outro é-nos mister rir, ou
encolerizarmo-nos; a tal palavra, devemos arrepiar-nos. E durante dez me-
ses do ano, é-nos proibido alijar o peso com que trabalhamos” (in Barata
127). Além disso, o actor tem de saber sustentar os seus sentimentos pelo
tempo que o espectáculo exigir: ora, um actor amador ou que apenas con-
fie na inspiração, por melhor que seja não tem meios de evitar as quebras
entre alguns pontos altos.
Treino, pois. Composto de quê? No tempo em que Garrett fundou o
conservatório nacional, falava-se em “arte de dizer” ou “declamar”. Porque,

411
D rama e C omunicação

como notou Meyerhold (in Barata 139), “o teatro do século XIX era um
teatro falado em que os actores, acomodados em cadeirões ou divãs, fala-
vam, falavam sem cessar; um actor destes era uma espécie de fonógrafo
que todos os dias tocava discos diferentes: hoje um texto de Puchkine,
amanhã um de Molière.” É claro que o treino da voz é necessário, mas é
apenas uma parte do treino do actor. E nele, ao contrário do que muitas
pessoas pensam, o mais difícil e demorado não é conseguir uma boa dicção,
que essa geralmente alcança-se depressa: é conectar a voz com o corpo e
a respiração. É nisto que o treino da voz hoje se concentra, seguindo aliás
a experimentação que vem dos anos 60, por exemplo, com o Living Theatre,
de que um dos directores afirmava:

Verificámos que determinados sons só podem ser produzidos conve­


nientemente quando acompanhados de uma acção corporal bem definida.
É, portanto, a parte do corpo posta em movimento que dita esse som.
O nosso esforço tendeu sempre para uma unificação. Aí estava um campo
de aplicação desse princípio. Nós vivemos numa sociedade esquizofrénica,
em que tudo está compartimentado, a começar pelos indivíduos, os quais
têm, no interior da sua solidão, outros compartimentos. Há que modificar
isso, há que fazer comunicar o coração, o corpo, o cérebro, etc. ( Julian Beck,
in Barata 181)

Um dos termos mais usados em ensaio nas últimas décadas tem sido o
de organicidade, para marcar justamente a integração entre as várias partes
do corpo, voz, emoções, inteligência – questão que neste livro temos vindo
a defender como fundamental.
Por alguma razão as crianças podem berrar horas sem ficar roucas: ne-
las há a unificação de que fala Julian Beck, há o relaxamento mesmo nos
momentos difíceis e há uma boa postura da coluna. Como mostram as téc-
nicas Alexander (cf. Brennan, 1994) e Linklater (cf. www.kristinlinklater.
com), não é possível um uso correcto e continuado da voz sem uma boa
postura do corpo: a voz não é um fenómeno exclusivo da garganta, nem
sequer da cabeça, antes envolve todo o corpo. Muito do treino inicial do
actor consiste em redescobrir o que sabia em criança e em reeducar o cor-

412
Actores e encenadores

po e a voz, mal habituados por uma socialização que o fez estar mal
sentado na escola durante anos, ou falar num só registo para ser “bem
educado”.
Nesse treino do corpo do actor, não se privilegia a massa muscular, mas
sim a energia interna, como os orientais sempre conceberam:

Quando movemos o nosso espírito até aos dez décimos, é preciso movermos
o nosso corpo até aos sete décimos. Há, portanto, mais sentimento interior que
movimento corporal. (…) O jogo exterior não deve ultrapassar o jogo interior.
(…) Se o actor controla os seus movimentos corporais mais do que os dos
seus sentimentos, a sua interpretação será interessante (…)
O actor deve captar a natureza física antes de imitar os seus gestos. (..)
É preciso primeiro aprender a colocar-se na condição física da personagem;
a mímica só vem depois. (Zeami, in Borie et al 49)

Hoje também os desportistas trabalham segundo técnicas como a vi­


sualização: mais do que a força a fazer entrar a bola no cesto, conta a
visualização prévia dessa entrada. O corpo, repare-se, é quase todo com-
posto de água, com ar a entrar e a sair. Não queremos o actor tenso de que
falava Barthes, cheio de suor, veias e tendões à vista; com a energia inter-
na, queremos algo de muito mais leve e mais profundo do que isso. Mas
não se trata de um transe: o actor não há-de esquecer-se de si ou de onde
está, parte do treino dele é até para manter o simples contacto com a rea-
lidade, para saber estar alerta, com noção agudíssima de tudo o que o
rodeia e com o corpo e a mente a trabalharem de modo integrado.
Depois, falta usá-los. O livro Anatomia do Actor, de Barba e Savarese,
mostra-nos as mil e uma formas como cada parte do corpo tem sido posta
ao serviço de aprendizagens e linguagens muito específicos, em várias partes
do mundo. Barba tem alguma tendência, ao valorizar as outras culturas,
para injustamente desvalorizar a ocidental, mas sempre vai incorporando
exemplos da Commedia dell’Arte ou da pantomima. No Ocidente, como
notava Meyerhold (in Barata 140), “é evidente que o teatro naturalista vê
no rosto o principal meio de expressão do actor e negligencia todos os
outros. Ignora os encantos da plástica, e não obriga os seus actores a um

413
D rama e C omunicação

treino corporal. Quando cria uma escola, esquece que a cultura física deveria
ser a principal matéria a ensinar; quando sonha levar à cena Antígona ou
Júlio César, esquece que a música destas peças as coloca numa outra classe
de teatro, um teatro de outro género.” Mas já vimos que todo o século XX

conheceu a luta contra esse naturalismo, redescobriu o corpo (podemos


reinvocar o “atletismo da afectividade” de Artaud, ou Craig, que dizia que
“o actor é como um desportista de alta competição”, “um atleta”, dizia
Barrault, ou a pantomima de Marcel Marceau, ou Grotowsky); explorou
mesmo, no fim do século, os limites desse corpo, não apenas na performance,
como vimos, mas em todo o cruzamento com as artes coreográficas e com
as artes circenses, cada vez mais presentes no teatro, ou em todo o fascínio
actual pelas metamorfoses e deformações mais ou menos tecnológicas do
corpo.
“Ninguém ama tão corporalmente como o actor”, escreveu Herberto
Hélder (1981:136-139) num admirável trecho de Poemacto. E cada vez mais
a “arte de dizer” do actor é dita pelo corpo, numa “expressão corporal” que
há uns bons anos se vulgarizou justamente porque algo mudou na nossa
relação com o corpo-signo, que no entanto continua mais enigmático do
que por vezes apressadamente se pensa.

4. “Ninguém ama tão publicamente como o actor. Como o secreto actor”,


escreve Herberto Hélder no mesmo poema. Tentemos entrar nesse território
mais complexo que são as emoções do actor. Outra pergunta recorrente:
“como é que o actores conseguem chorar?”. Se não buscar apenas um tru-
que, a pergunta corresponde de facto a uma inquietação perante essa
condição sui generis de alguém que tem obrigatoriamente de manifestar as
emoções perante um público. É claro que o treino do actor também vai
libertando os canais que lhe permitem estar mais facilmente em contacto
com as suas emoções e manifestá-las – mais uma vez, reaproxima-se das
crianças, que passam constante e sonoramente, em segundos, do riso ao
choro. Nesse treino, em que a simples respiração profunda junto aos outros
já é a princípio sentida como um desnudamento, o actor vai-se habituando
a abrir-se e expor-se.

414
Actores e encenadores

Seria, contudo, um equívoco pensar que, no seu trabalho, o actor expõe


o seu choro ou a sua emoção em estado bruto. Talvez no lugar de emoção
devêssemos falar em sensibilidade: como o pianista que, por muito triste
que seja a música que está a interpretar, não se deixa dominar pelo choro
que o impediria de tocar, pela emoção bruta que o cegaria, antes domina
essa emoção e a transpõe para um outro patamar. Mais uma vez, podemos
recorrer a Simmel para desfazer este equívoco.

Finalmente, a tentação mais subtil para atar a arte teatral à esfera de


realidade reside na ideia de que a realidade experimentada, a que aquele
desce como ao seu material, é essencialmente uma realidade interna. (...)
A aparente profundidade desta explicação não logra, contudo, achar a autêntica
realização artística do actor. Certamente, só as vivências anímicas do actor
podem interpretar a figura Hamlet e, se não apresentasse ao espectador essa
realidade anímica, por assim dizer, para a sua experiência posterior, seria
então um boneco ou um fonógrafo. Mas sobre esta realidade psicológica
vivida ou reproduzida vem antes de mais a forma artística que flui a partir
duma fonte ideal e que, de antemão, não é nenhuma realidade, mas sim uma
exigência. (...) A arte exige que a mera causalidade dos factos torne visível
um sentido, que todos os fios que percorrem a infinitude do espaço e do
tempo se dirijam para o interior numa delimitação autosuficiente, que a
sucessão da realidade se ordene ritmicamente. (Georg Simmel 204-205)

Tal como Hamlet, a partir dos obscuros e contraditórios sentimentos que


o paralisavam, teve de encontrar um meio de se encontrar e de agir (e esse
meio, como vimos, foi a representação), também cada actor, obscuro como
todos os sujeitos, terá que pesquisar a sua vida interior, reconhecer e usar
os seus sentimentos mas dar-lhes uma forma, um sentido e um ritmo
transmissíveis, não obscuros. E terá de o fazer, em cada representação, como
se fosse a primeira vez. Um pequeno exercício de Stanislavski permite logo
começar a apreender esta dificuldade: dê como situação a alguém estar na
hora do casamento e ter de procurar desesperadamente as alianças:
provavelmente obterá muitos suspiros, exclamações e gesticulações para
mostrar essa aflição. Mas se depois repetir o exercício mantendo a situação

415
D rama e C omunicação

mas escondendo de facto o anel, verá como a energia de quem procura se


concentra com uma qualidade de atenção e movimento muito mais
interessantes. Uma das dificuldades do actor é que tem de procurar um
objecto quando sabe onde está, tem de rir ou chorar em relação a uma
frase ou uma situação que se repetem há quatro takes ou há cinco meses...
O actor terá de encontrar maneiras de repetidamente ir chamando e
dominando as suas emoções: tarefa difícil, que exige caminhos específicos,
porque os sentimentos são como as crianças – se lhes pedimos uma coisa,
podem fazer outra.
O russo Konstantin Stanislavski, no virar do século XIX para o século XX

(portanto, na mesma época de Simmel), foi o primeiro a teorizar caminhos


para o trabalho do actor. Antes, tratava-se mais de uma profissão transmitida
oralmente, muitas vezes em família – tradição de que ainda hoje há vestígios,
como se vê nos casos de alguns dos maiores actores portugueses, como
Eunice Muñoz e João Perry, ambos filhos de actores. Stanislavski procurou
explicitar um método que, numa época ainda muito dominada pela emoção,
trouxesse alguma análise, racionalidade e solidez ao trabalho do actor.
Não bastava ao grande encenador russo o naturalismo, tal como o na-
turalismo não bastava a Tchékhov que ele tantas vezes encenou em
primeira mão: o Teatro de Arte de Moscovo conforme notou Meyerhold
(1973:95,103-104), tinha “duas caras”: era ao mesmo tempo um teatro na-
turalista e “um teatro de estados de alma”.

Não basta exprimir só a vida exterior da personagem. É preciso ainda


adaptar a ela todas as qualidades humanas próprias, vazar nela a sua alma.
O fim fundamental da nossa arte é criar a vida profunda dum espírito humano
e exprimi-la de forma artística. (Konstantin Stanislavski, in Barata 134)

Stanislavski começou por sugerir um trabalho sobre a “memória afectiva”.


De facto, é claro que só pode representar a tristeza quem já alguma vez
esteve triste. Mas, tanto no plano ético como no da simples eficácia (excepto
talvez em filme, quando não há que repetir tantas vezes), é duvidoso que
o actor, para chorar a morte de Hamlet, se deva lembrar no palco, todas
as noites, da morte de alguém da sua família ou de um animal de estimação…

416
Actores e encenadores

Pode até deixar vir essas memórias algumas vezes durante o processo de
ensaios, mas aos poucos, começando a acreditar na realidade daquela ficção,
já será como amigo de Hamlet que o chorará – além de que estará mais
em controlo do seu acto artístico, mais independente das surpresas que a
memória afectiva traz. No fundo, ela corresponde afinal a um elemento do
inconsciente, quando Stanislavski queria instrumentos conscientes para
chegar ao inconsciente.
O próprio Stanislavski acabou por deixar de lado esta ideia da memória
afectiva, que em boa parte contradizia outra linha de trabalho que lançou
e que hoje continua essencial: que o actor parta das acções físicas elemen-
tares, de modo a manter-se relaxado e concentrado. Ao receber um copo
de leite quente da pessoa que lhe declarou o seu amor, deve sentir esse
calor como algo que o afecta, que o toca, seduzindo-o ou incomodando-o.
São acções conscientes que acabam por afectar o inconsciente.

É um dilema. Só o inconsciente nos pode dar a inspiração de que temos


necessidade para criar. Mas só podemos utilizá-lo graças ao consciente, que
em princípio suprime o inconsciente.
Felizmente há uma saída. Basta que empreguemos um subterfúgio. Há no
espírito humano certos elementos acessíveis que dependem da consciência
e da vontade e que, por sua vez, são capazes de agir sobre os processos
psicológicos involuntários.
Isto exige um trabalho de criação extremamente complicado, que se
efectua em parte pelo domínio do consciente, mas que, numa proporção
mais vasta, é inconsciente e involuntário. (...)
A fim de exprimir todos os cambiantes de uma vida em grande parte
inconsciente, é absolutamente necessário possuir e dominar um aparelho
físico e vocal de uma extrema sensibilidade e cuidadosamente educado.
Deverão ser capazes de reproduzir instantânea e exactamente os sentimentos
mais delicados e subtis. Eis a razão por que exigimos de vocês um trabalho
muito mais intenso do que o que é pedido a outros actores. Deverão exercitar
simultaneamente o aparelho psíquico, que lhes permitirá criar a vida interior
da personagem, e o físico – que exprimirá com precisão os seus sentimentos.
(Konstantin Stanislavski, in Barata 134-136)

417
D rama e C omunicação

Repare-se como, assim, Stanislavski ia ao encontro do que vimos ser


fundamental no género dramático: tudo o que existe no drama vem do
interior subjectivo das personagens, mas por sua vez essa subjectividade
há-de encontrar modos de se exteriorizar, de trazer as emoções “à flor da
pele”. Stanislavski (apud Mitter 6) considera que “em cada acção física há
uma motivação psicológica interna que impele à acção física, tal como em
cada acção psicológica interna há também uma acção física, que expressa
a sua natureza psíquica. A união destas duas acções resulta em acção or-
gânica no palco.” Parafraseando Peter Brook em ensaios, Albert Hunt
escreve: “O actor deve escavar dentro dele mesmo em busca de respostas,
mas ao mesmo tempo deve estar aberto aos estímulos do exterior. Representar
é o casamento destes dois processos” (apud Mitter 6).
Uma vez mais, leiamos a visão que Herberto Hélder tem do actor: “Bocado
estrela. Bocado janela para fora. Outro bocado gruta para dentro. (...)
O actor é um tenebroso recolhimento de onde brota a pantomima.” Há
actores que vivem demasiado ensimesmados na sua gruta e não conseguem
trazer para fora “o que lhes vai na alma”, ou só são captáveis pelo grande
plano de uma câmara. No extremo oposto, há actores que exteriorizam
muito, mas sem conexão com o seu interior. O que se procura é a integra-
ção do exterior com o interior.
Um dos maiores discípulos de Stanislavski foi Michael Tchékhov (1891­
‑1955), sobrinho do dramaturgo Anton Tchékhov de quem já tanto falámos:
desenvolveu variados aspectos desse treino psicofísico do actor, partindo
sempre do princípio de que a melhor maneira de o actor não estar ansioso
ou preocupado com a sua imagem ou o seu talento é estar ocupado com
um trabalho físico específico. Se pusermos os sapatos de outra pessoa,
podemos sentir como só esse facto já nos requer um outro modo de andar
e de estar, uma outra maneira de ser – e por isso mesmo nos dá gozo.
Michael Tchékhov insistiu muito na ideia de encontrar no corpo um centro
físico a partir do qual consideramos que toda a personagem se organiza:
não é por acaso que muitas personagens da boa literatura dramática e até
romanesca estão associadas a um elemento físico, como Cyrano, ou o
Corcunda de Notre Dame: mas mesmo nas outras o actor deve definir um
pequeno segredo físico, que não precisa de exibir, que pode até, ao fim de

418
Actores e encenadores

alguns ensaios, começar a esconder, como as mãos sujas de sangue do


casal Macbeth.
Num nível ainda mais complexo, pode mesmo definir dois centros opos-
tos, em conflito – como Charlot de peito unido ao peito da amada mas com
um cão a puxar-lhe a gabardina em sentido oposto. É outra herança de
Stanislavski, que insistia na vantagem de o actor trabalhar sempre sobre
conflitos com o outro ou consigo próprio: mesmo numa cena de amor, ele
pode ter medo dela, ou dele próprio ao amá-la, ou de perder o seu amor,
ou de que algo os separe...
A influência de Stanislavski foi e é enorme: cem anos passados, não exis-
te ainda hoje um sistema alternativo ao seu, mas apenas diversos métodos
que de algum modo herdam das suas reflexões – nem que seja para parcial-
mente as rejeitarem. A norte-americana Stella Adler veio conhecê-lo, já idoso,
em Paris, e desse encontro trouxe as ideias para fundar nos Estados Unidos,
depois com Lee Strasberg e Elia Kazan, o célebre Actors’ Studio, onde se
continua a trabalhar sobre os princípios do relaxamento, sensorialização
(“meter-se na pele da personagem”, se quisermos usar uma expressão portu-
guesa), mesmo memórias afectivas de espaços, pessoas e situações. O legado
stanislavskiano influenciou até o polaco Jerzy Grotowski (1933-1999), funda-
dor de um “Teatro Pobre”, laboratorial, em que um treino exaustivo do corpo
e da voz procura “uma unidade peculiar do que é individual e do que é co-
lectivo”.
O trabalho de Grotowski foi reduzindo até ao limite zero esse grande
outro que é o público. Peter Brook (1925- ), grande encenador inglês há
muito radicado em França, homenageia e distancia-se.

Grotowski ocupa-se de um laboratório. Só ocasionalmente tem necessidade


de espectadores, e em pequeno número. É de cultura católica - ou anticatólica:
neste caso, os dois extremos tocam-se. Cria uma espécie de serviço, de culto.
Nós trabalhamos num outro país, com uma outra língua e uma outra cultura.
Não temos como objectivo uma nova missa, mas sim uma nova relação, de
tipo isabelino – estabelecendo um laço entre o privado e o público, o íntimo
e o povoado, o secreto e o aberto, o quotidiano e o mágico. Para isso,
precisamos de uma multidão em cena e de uma multidão na sala – e, no

419
D rama e C omunicação

meio dessa multidão em cena, indivíduos que oferecem as suas verdades


mais íntimas aos indivíduos que povoam esse público, que partilham uma
experiência colectiva. (...)
O trabalho de Grotowski leva-o cada vez mais profundamente ao mundo
interior do actor, até ao ponto onde o actor deixa de ser actor para se tornar
um homem essencial. Para isso, ele precisa de todos os elementos dinâmicos
da arte dramática, para que cada célula do seu corpo seja obrigada a revelar
os seus segredos. No início, o encenador e o público são necessários, para
intensificar o processo. No entanto, à medida que a acção se aprofunda, tudo
o que lhe é exterior deve desaparecer, até que, no fim, não haja nem teatro,
nem actor, nem público – nada além de um homem solitário desempenhan-
do o seu último drama totalmente só. Para mim, o caminho do teatro vai no
sentido oposto, partindo da solidão de um indivíduo para conduzir a um
sentimento intensificado porque partilhado. Uma forte presença dos actores
e uma forte presença do público podem produzir um conjunto de uma in-
tensidade única, no seio do qual as barreiras são quebradas, onde o invisível
se torna realidade. Então, a verdade de todos e a verdade de cada um con-
fundem-se. Elas são uma mesma experiência. Inseparáveis. (Peter Brook, 1992)

Aprofundemos a proposta de Brook, que considera que uma aproximação


meramente “psicológica é inadequada, uma abordagem textual insuficiente”
(1998:20). Vejamos como se distancia de ambas as tendências.

Existe um veneno subtil que ameaça a nossa vida social. Chama-se


“reducionismo”. Na prática isto quer dizer: recortar as dimensões de tudo o
que é desconhecido ou misterioso. Desmistificar tudo o que se puder, reduzir
tudo a uma norma convencionada. Os jovens actores, apanhados nessa
armadilha, acreditam que a sua própria vida quotidiana lhes oferece tudo o
que é necessário e que podem fundar a sua compreensão unicamente nas
suas experiências pessoais. Aplicam os clichés políticos e sociais a situações
ou personagens cujas verdadeiras riquezas estão muito para além de simples
ideias. (…) Hamlet estava consciente disso quando exclamava [na cena da
flauta]: “Queres jogar comigo? Como se tu conhecesses as minhas medidas!
Tu arrancarias o coração do meu mistério…” (Peter Brook, 1998:16)

420
Actores e encenadores

Em seguida, Brook distancia-se da abordagem meramente textual. “O dever


do actor não é pensar as palavras como uma parte do texto, mas pensá-las
como parte de um ser humano, levado pelo fluxo dos acontecimentos.”
Brook lembra que Synge, grande poeta e dramaturgo irlandês, via o autor
como alguém deitado no chão do sótão a ouvir o discurso real que lá che-
gasse acima por uma fissura no soalho. (1998:18-19) Lembra também o que
o rei Lear diz a Cordélia: “nós encarregamo-nos do mistério das coisas/
como se fossemos espiões de Deus.”

Nós fingimos que Lear disse esta frase espontaneamente, e isto provoca
muito mais espanto do que imaginar a mesma frase trabalhada cuidadosamente
por um homem sentado à sua secretária com uma pluma e papel. (...) Virar­
‑se em parte para o autor e em parte para a personagem é um pensamento
duplo. O pensamento duplo desperdiça a energia e a concentração. (...)
O que podemos dizer a um jovem actor que experimenta um destes
grandes papéis? Esqueça Shakespeare. Esqueça que alguma vez existiu um
homem com este nome. Esqueça que estas peças têm um autor. Pense apenas
que a sua responsabilidade enquanto actor é dar vida a seres humanos. Então
imagine unicamente – como um truque útil – que a personagem que está a
trabalhar existiu verdadeiramente, imagine que alguém o seguiu secretamente
por todo o lado com um gravador, de tal forma que as palavras que ele dizia
sejam verdadeiramente as suas. O que é que isto modificava?
As consequências de uma tal atitude podem levar muito longe. Todas as
tentativas de pensar que Hamlet é “como eu” são aniquiladas. Hamlet não é
como “eu”, não é como todo o mundo, porque ele é único. (Peter Brook,
1998: 19,17)

Esse ser único, que o actor procurará ir escavando tanto dentro de si


próprio como no texto das cenas, terá de respirar e viver, qualquer que
seja o grau de profundidade e de estranheza das suas falas e acções. Brook
(1998:35,28) prossegue: “Um actor fala e bebe um copo de água, é natural,
e de repente esta personagem lança-se na poesia, num discurso muito
complexo – isto também deve parecer natural – e se faz um movimento
bizarro, também deve ser natural.” “A densidade – a densidade do instante – é

421
D rama e C omunicação

o que mais nos interessa. Esta densidade tinha em conta numerosos elementos,
a começar por uma linguagem imagética, mas também palavras, e essas
palavras tomavam uma dimensão extraordinária pelo facto de não serem
simplesmente ‘conceitos’. Mesmo se o conceito é um elemento necessário
do discurso, não deixa de ser uma parcela tragicamente insignificante de
tudo o que o discurso nos pode dar” (retomamos o que vimos no capítulo
sobre a tragédia, nomeadamente a teoria da inconceptualidade reclamada
por Blumenberg).

5. Brook aconselha a que o encenador se deixe conduzir pela loucura


do actor como o rei pelo seu bobo ou o cego pelo seu cão. Vale a pena,
agora, explicar genericamente em que consiste o trabalho do encenador.
Desde a geração de Stanislavski e do francês Antoine, o encenador tornou­
‑se o elemento aglutinador na constituição da equipa, na dinâmica do
grupo, na escolha dos textos, na integração das várias linguagens de que
é feito o espectáculo, por vezes na gestão administrativa de uma companhia;
pode ser ao mesmo tempo cenógrafo, ou tradutor, ou compositor; pode
mesmo, como vimos na família artística que vem de Craig até Bob Wilson,
ser tomado como o único autor, a cuja visão os outros se submetem como
marionetas. Centremo-nos apenas, mais modesta e didacticamente, no modo
como contribui para erguer um espectáculo, nomeadamente na sua relação
com o actor.
O que faz o encenador? Primeiro, faz a dramaturgia do texto, por vezes
com a ajuda do que hoje se chama um “dramaturgista” (não confundir com
o dramaturgo, que escreveu a peça, enquanto este apenas a interpreta). Há
que estudar o sobretexto, isto é, o enquadramento histórico, político e socio-
lógico que pode ajudar a compreender um texto de Gil Vicente, de Shakespeare
ou de Brecht – saber, por exemplo, que certa passagem tem a ver com as
mudanças políticas dos anos em que a peça foi escrita, ou com o modo como
os actores representavam. Quando esse sobretexto está claro, há ainda que
proceder a toda uma hermenêutica do que está escrito (das falas e das didas-
cálias), à qual se dedica um certo período dos ensaios (geralmente os
primeiros). Suponhamos que uma didascália diz: “Teresa entra” (ou simples-
mente que as indicações de uma fala de outra personagem revelam que ela

422
Actores e encenadores

entra, dizendo, por exemplo, “Ah, finalmente chegaste, anda cá”). Falta saber
como entra, de onde, para onde, se fica em pé, se se senta ou deita, etc. (além
de se poder querer mudar o que vem na didascália). Para decidir tudo isso,
há sobretudo que explorar o subtexto, a tal onda de impulsos que repetida-
mente temos referido e que leva essa personagem a entrar, agir e falar.
Pode-se, nesse processo, imaginar acontecimentos que teriam ocorrido antes,
mesmo que não figurem na peça: há quem remonte até à infância das perso-
nagens. Pode-se, também, nos ensaios, imaginar o que as personagens fariam
se lhe acontecesse isto ou aquilo; Wilhelm Meister (Livro IV:319-321) sugere
que a chave de Hamlet pode ser encontrada se imaginarmos no que ele se
teria tornado caso o tio não tivesse matado o pai e casado com a mãe.
É sobretudo necessário encontrar acções e ambientes que ajudem a passar,
como quer Hamburguer, do domínio da imaginação ao domínio da percepção.
Na conversa entre Hamlet e a mãe, é diferente se ela estiver de pé ou deita-
da na cama, se estiver vestida ou em roupa de noite, se estiver a fazer alguma
tarefa com um objecto cortante na mão ou o mais que a imaginação ditar.
É claro que essa imaginação pode ser accionada apenas pela vontade de
mostrar trabalho e talento, mesmo que estes não tenham relação com o que
o texto pede. Retomemos aqui o que Barthes dizia sobre a mercantilização,
agora aplicado ao encenador.

Outro quinhão infeliz na herança do teatro burguês é o mito do achado.


Certos encenadores experimentados fazem disso a sua reputação. Ao representar
La Locandiera, uma jovem companhia fez baixar, em todos os actos, os móveis
do tecto. Evidentemente, trata-se de algo de inesperado, e toda a gente se
espanta da invenção: o pior é que ela é completamente inútil, visivelmente
ditada por uma imaginação em dificuldade, que busca o novo pelo novo a
qualquer preço. (…) O processo é gratuito, trata-se de um formalismo puro,
mas pouco importa: aos olhos do público burguês, a encenação não é nunca
mais do que uma técnica do achado, e certos “animadores” são cúmplices
destas exigências: contentam-se com inventar. Aqui ainda, o nosso teatro
baseia-se na dura lei da troca: é necessário e suficiente que as prestações do
encenador sejam visíveis e que cada qual possa controlar o rendimento do
seu bilhete. (…)

423
D rama e C omunicação

Naturalmente, o estilo é quase sempre um álibi destinado a evitar as


motivações profundas da peça: dar a uma comédia de Goldoni um estilo
puramente “italiano” (arlequinadas, mimos, cores vivas, mascarilhas, movimentos
de pernas e retórica da presteza) é desembaraçar-se por bom preço do
conteúdo social e histórico da obra, é desarmar à subversão aguda das relações
cívicas, numa palavra, é mistificar. (Roland Barthes, 1978:101-102)

Peter Brook nota também, com graça, como naquilo a que chama o “Teatro
Mortal”, o negócio passa por um certo aborrecimento.

Afinal de contas, associa-se cultura com um certo sentido de dever, e


guarda-roupa histórico ou longas tiradas com a sensação de estar aborrecido;
por isso, inversamente, a porção certa de aborrecimento é uma garantia
reconfortante de um acontecimento que vale a pena. Claro está, a dosagem
é tão subtil que é impossível estabelecer a fórmula exacta – aborrecimento
demais e o público é levado a levantar-se, aborrecimento de menos e pode
achar o tema desagradavelmente intenso. No entanto, autores medíocres
parecem intuir o seu caminho sem erro para a mistura perfeita – e perpetuam
o Teatro Mortal com sucessos chatos, universalmente gabados. (Peter Brook,
1982:13)

Em contraponto, para mostrar como a boa encenação inventa a partir


do texto que pretende fazer passar ao domínio físico da percepção, pode-
mos recorrer ao diário do grande encenador italiano Giorgio Strehler, por
exemplo, quando fala da sua encenação de O Cerejal. No texto desta peça,
Tchékhov já entrecruzara maravilhosamente a dimensão da passagem do
tempo com o espaço de uma quinta, nomeadamente um quarto da infância.
Strehler vai desenvolver o seu trabalho em conexão com as possibilidades
abertas pelo texto.

A ideia de Tchékhov de situar o primeiro e o último acto d’O Cerejal no


“quarto das crianças” não se deve ao acaso. Nem o facto de haver nessa
divisão um armário. É estranho que ninguém tenha dado a esta figura-símbolo
a importância que ela merece: o armário centenário. (...) Não esqueçamos

424
Actores e encenadores

que Tchékhov escreveu, por exemplo: “Vania abre o armário que chia.”
Tchékhov nunca escreve ao acaso as suas indicações cénicas. Há aí portanto
uma indicação cómica, de uma coisa “antiga”, que sofre, que tem dores, que
evoca o sentido do tempo. (Giorgio Strehler 310))

Strehler (308-309) irá colocar nesse quarto móveis feitos à escala de crian-
ças e um serviço de cozinha feito para elas brincarem, de modo que, quando
as personagens ali estiverem, se sinta de imediato e constantemente a passa-
gem do tempo. Maquinará o tal armário de modo a estar tão cheio de coisas
que quando Gaev, falando do passado, roda a chave e abre o armário, é o
passado que fisicamente cai sobre ele: poeira, plumas, chapéus, véus, sapatos,
caixas, bolas de Natal que rolam e se partem, papéis, cartas, e, por fim, um
pequeno trenó que, “como um pequeno caixão, rolará da direita para a es-
querda no proscénio para vir chocar contra Liouvob, ignorando ainda que foi
o trenó do seu filho que assim embateu com ele. Aí, Lioubov chorará em
silêncio. E o quarto parecerá então como uma espécie de cemitério do tempo:
esse tempo ao qual Vania e Lioubov, depois também Gaev, tentarão a seguir
impor uma ordem durante uma parte da cena, mas em vão. Acabarão talvez
por se sentar no chão em cima de roupas velhas, sobretudos e um casaco de
peles, outrora esplêndido, agora todo rapado, mas ainda suave quando o
acariciam, quando se anicham nele.”

6. Podemos ir mais fundo na compreensão do trabalho do actor e da


encenação se estudarmos alguns outros criadores deste início do século
XXI . Deixaremos de lado essa outra família de encenadores, estudada nos
capítulos 7 e 9, que imagina um teatro assente num projecto visual, em que
o actor seria mera marioneta, questão que já discutimos. Gostaria de deter­
‑me sobre alguns criadores que mostram como é possível combinar uma
linguagem própria com o interesse pela vida extra-artística, que tantas ve-
zes as vanguardas, desde o grand ennui do século XIX , tem considerado
desinteressante ou até degradante. Para eles, não há razão para continuar
aquilo a que vimos Ortega y Gasset chamar, em 1925, a “desumanização
da arte”. É mesmo pelo trabalho artístico que o interesse pelo mundo re-
nasce (em vez de ser um substituto do mundo), como na descrição que

425
D rama e C omunicação

Nietzsche (58) faz do antigo grego na tragédia: “salva-o a arte e através da


arte salva-o a vida”. É a proposta de um trabalho, digamos, humano, não
demasiado humano1. Lévi-Strauss colocou esplendidamente a questão, numa
frase que muitas vezes me tem servido de guia: disse ele que os dois riscos
extremos da arte são não chegar a ser linguagem (por exemplo, num poe-
ma adolescente de amor ou numa dança na discoteca, ainda que muito
perto do sentimento), ou de ser demasiado linguagem (digamos, por
exemplo, num poema que já só fala das palavras e da página em branco).
E criticou a tendência da arte moderna para trabalhar apenas os sentidos,
fugindo ao sentido (cf. Monteiro, 1996).
José Jiménez (154) resumiu assim os aspectos que mais temos de rever
nas vanguardas: elas deixaram infelizmente crescer a “discordância entre a
medula central do seu projecto – acabar com a cisão entre arte e vida – e
a acentuação do seu auto-enclausuramento”: “a confiança ‘iluminada’ no
desígnio superior da arte, na sua missão ‘salvadora’, produz como conse-
quência que a dinâmica de ruptura da atitude vanguardista se confronte de
modo quase exclusivo com a tradição artística”.
Também Adorno (266), claro, se preocupou tanto e tão lucidamente com
estas questões que tornou bem visíveis as aporias das vanguardas: “A situa­
ção da arte é hoje aporética. Se enfraquece a sua autonomia, entrega-se ao
mecanismo da sociedade existente; se permanece estritamente no seu cam-
po, deixa-se integrar com igual facilidade como ramo inofensivo entre outros”,
caindo num protesto solitário, formal, cerebral, endurecido, insensível.
Adorno não via saída para estas aporias: mas, apesar delas, defendia que
a arte “só é íntegra quando não entra no jogo da comunicação”. É verdade
que muitas vezes a pretensa ultrapassagem do vanguardismo significa ape-
nas, com o pretexto de voltar à comunicação com o público, a entrada num
jogo à partida perdido de banalização e comercialização. Mas quem quer
inserir-se numa linha em que a arte testemunha e problematiza mais a cul-

1 Desenvolvo estas questões teóricas em Monteiro (1996) e a sua aplicação às artes cénicas
no artigo “Experimentar viver: Bartís, Bausch, Pérez, Pavlovsky”, a publicar em volume de
homenagem a Yvette K. Centeno, e de que aqui retomo a segunda parte.

426
Actores e encenadores

tura do que acabaram por fazer os próprios modernistas com a sua


“estética da oposição” e da “resistência”, deve lembrar-se, em primeiro lugar,
que é uma violência “reduzir a experiência multiforme das vanguardas ar-
tísticas do nosso século à unidade genérica” e homogénea ( Jiménez 149).
Em segundo lugar, deve lembrar que a modernidade não se esgotou no
modernismo. Por muito que uma doxa estética instaure como influente
cânone os autores modernistas das grandes revoluções na linguagem, não
é sustentável, mesmo esteticamente, que esqueçamos todas as muitas obras
dos modernos não modernistas (Pirandello, Ibsen, Gombrowicz, Musil, Arlt,
Borges, Camus, Auden, João Cabral, Drummond de Andrade, John Ashbery,
Saramago, Lobo Antunes...) que combinaram o trabalho sobre a linguagem
e a abertura sobre o mundo, para quem a História é realmente História e
não mera matéria-prima do mito.
Ora, como José Guilherme Merquior (1987:11) claramente denunciou, por
que razão, “a não ser por beata superstição neomodernista - veríamos em
Mallarmé um fulcro de criação cultural superior, digamos, ao drama de Ibsen?
Se o fazemos, é por pura inculcação da doxa; é porque os netos de Saussurre
(avô, diga-se de passagem, inocente) nos ensinaram a contemplar em Mallarmé
o maior percursor da libertação do significante. (…) O pobre Ibsen não abriu
caminho para a participação nas trevas; sua crítica social não se desdobrou
em rejeicionismo radical da cultura moderna, vazado em linguagem delibera-
damente obscura. (…) E a compacta eficiência dessa doxa pode ser medida
pelo facto de que quase ninguém acha isso escandaloso: continua-se, é certo,
a representar, e muito, as peças de Ibsen - mas seu teatro prima pela ausên-
cia no estudo das principais fontes da literatura moderna. (…) Entretanto, se
algo resta da concepção clássica da literatura como iluminação e sopesamen-
to de problemas morais, então não pode haver dúvida de que, no mínimo,
Ibsen não é inferior a Mallarmé.”
Além disso, se deixarmos a “estratégia de hibernação”, que foi como
Habermas designou a atitude da escola de Frankfurt, e nos abrirmos a
considerar, não apenas as mais clássicas artes eruditas mas também fenó-
menos como a arquitectura e o cinema (como Benjamin soube fazer), e
sobretudo se atentarmos nas transformações que todas elas têm desenvol-

427
D rama e C omunicação

vido, em vez da sonhada “pureza” dos vanguardistas, encontraremos a


impureza, o hibridismo, a distorção, a instabilidade, a oscilação. Encontraremos
também muitas transgressões das fronteiras estabelecidas entre o que é e
não é arte, quer porque alguns movimentos artísticos procuram disseminar
e reintegrar a arte nos processos da vida, quer porque fora da arte muitos
campos vão reivindicar-se como territórios da criatividade, da imaginação,
da sensibilidade, da esteticização (por vezes crítica, por vezes mero design
consumista). Verificaremos então que já nem sempre são as vanguardas que
com o seu génio produzem as revoluções artísticas que, depois de um pe-
ríodo maior ou menor, irão sendo divulgadas junto das massas: muitas
vezes essas vanguardas vão buscar as inovações a movimentos que lhe são
exteriores (os grafitti, a música de sampling, a dança de rua), porque a dita
cultura de massas também é uma cultura-sujeito, com invenção e utopia.
Tudo isto é fundamental para nos situarmos nas práticas cénicas: algumas
continuam no sonho de uma arte de pura forma ou pura revolta, às vezes
sem se darem conta das aporias que Adorno tão bem descreveu em 1970;
muitas outras imaginam que ultrapassam essas aporias através de uma ri-
tualização que o teatro, fenómeno colectivo e ao vivo, proporciona mais
do que as outras artes e que pretensamente (absurdamente) o reinscreveria
numa inserção pré-moderna e pré-estética; outras, que são aquelas de que
iremos agora tratar, compreendem a divisão moderna da experiência em
esferas particulares mas procuram formas da sua articulação (como aliás já
propuseram Kant, Nietzsche, Foucault ou Habermas). É costume opor ilu-
minismo e romantismo, mas a verdade é que desde sempre o triunfo da
razão quis ser também uma sensibilidade, assim como os defensores do
sentimento tinham um projecto racional. Podemos querer acentuar aquela
oposição, e pretender uma arte meramente conceptual, ou sensorial (se uma
proposta for meramente sentimental já hoje ninguém, curiosamente, a le-
gitima como arte...) Mas é melhor procurar fundir os vários planos
antropológicos de que é composta qualquer experiência.
Entendamo-nos desde já: seguindo esta argumentação, ao defender o
sentimento e a sensibilidade, não se trata de negar a razão na arte ou no
teatro. No Festival de Cádiz de 2002, conheci o dramaturgo, encenador e

428
Actores e encenadores

actor argentino Eduardo Pavlovsky. Era o vivíssimo exemplo do que agora


se vem chamando a inteligência emocional, de como “o que em mim sen-
te está pensando”, para usar um verso famoso de Fernando Pessoa: e por
isso, sentindo, pensando, actuando, escrevendo, podia mesmo tomar a sua
própria palavra, em vez de dizer apenas as palavras dos outros. O argenti-
no Ricardo Bartís (que fez a sua primeira encenação sobre um texto de
Pavlovsky) ironizava, em entrevista (aos psicanalistas Slimobich e Garrofe),
sobre o facto de, nos manuais de Stanislavski, os actores serem sempre
muito tontos e necessitarem de um encenador que os guiasse:

Pertenço a uma geração que passou por certas dúvidas em relação ao


conhecimento, o que eu lamento profundamente. (…) Havia uma sobreva-
lorização da acção em detrimento do que seria o pensamento e a actuação
promove essa confusão. Creio profundamente nos actores inteligentes, com
uma produção independente de sentido. (Ricardo Bartís)

“Pensa dançando, dança pensando”, recomendava o actor e encenador


chileno Andrés Pérez (apud Caballero 123), que nesse mesmo ano de 2002
morreu, com 51 anos. Para impulsionar esse processo, conta um dos seus
actores, “ele pedia-nos que nos juntássemos sem ele e nos puséssemos de
acordo sobre a cena que fôramos ver. (...) Apresentávamos a cena e logo
ali ele nos guiava e dirigia. Por isso os seus actores eram tão livres a criar.
Porque o Andrés trabalhava com eles só depois de os actores proporem
algo” (Rovira 11).
O mesmo com Pina Bausch 2, que, cinco anos depois de fundar a sua
companhia, começou a trabalhar com perguntas: até hoje, cada espectácu-
lo do Tanztheater assenta em dezenas, centenas de perguntas como, por
exemplo: “Em que momento te sentiste pela primeira vez homem ou mulher?”

2 A minha relação com o trabalho de Pina Bausch é mais próxima do que com os outros
criadores referidos, porque, em Fevereiro e Março de 2000 pude estagiar com ela em Wuppertal.
Da muita bibliografia que existe sobre esta criadora, sugiro, para a questão das perguntas, o
livro de Bentivoglio (1994).

429
D rama e C omunicação

“Que cicatrizes tens?” “Faz rir um urso”, “Como não se deve dançar”, “Um
braço que não acaba”, “Um ser parecido com uma ninfa”, “Uma nova forma
de dançar a dois”, “Algo de exacto”, “Matar com os pés”. Quem quer, vai res-
ponder verbal ou gestualmente, individualmente ou em grupo. Pina filma e
anota meticulosamente as respostas. De muitos dos desafios lançados pode
não surgir nada de interessante, e muitas vezes os bailarinos exasperam-se.
Mas “só assim, por caminhos enviesados”, consegue descobrir o que quer e
pode fazer com aquelas pessoas, naquele momento, profundamente. É como
ir à pesca, há que saber esperar. Aqueles que mais se habituaram ao método,
já vêm eles propor, sem perguntas, certas ideias, apontamentos, músicas. No
espectáculo 1980, o processo subsiste explicitamente no próprio resultado
final: os bailarinos não apenas dão as respostas como fazem perguntas uns
aos outros (e ao público), em palco: “De que tens medo?” “Descreve em três
palavras o país de onde vens”. As perguntas são boas, mas, como lembra
uma das suas maiores bailarinas, Jo Ann Endicott (18), “não são só as ‘per-
guntas’ que importam, mas também as respostas” dos intérpretes.
O que procuram estes directores com tanta experimentação? Gefühl!,
pede sempre Pina, Gefühl!, sentimento! Para desenvolvermos a questão do
sentimento, é importante deixar claro que a experimentação destes autores
que admiro é simultaneamente sobre a vida (observações, memórias da
história pessoal ou colectiva, sonhos, projectos, emoções, reacções) e sobre
a melhor maneira de a expressar na linguagem do teatro ou do teatro dan-
ça. Como disse Pérez (apud Caballero 122), “O problema não é só senti-lo,
é mostrar que o estás sentindo”. Não há, pelo menos em arte, a pura es-
pontaneidade: até os grafitti têm a sua gramática. “O sentimento é algo
muito exacto, é uma outra compreensão, uma outra língua”, disse Pina
Bausch numa conferência em Lisboa (3-4-2007). Retomando o princípio de
Lévi-Strauss, se não chegassem a ser linguagem, não citaríamos estes cria-
dores como artistas; mas, se fossem demasiado linguagem, se associassem
toda a experimentação a uma procura de novos códigos ou efeitos, tão
pouco os citaria eu, que entendo que um dos grandes erros das vanguardas
modernistas foi julgar que tinham inventado a experimentação e que nela
se esgotava o seu trabalho.

430
Da referida combinação de planos antropológicos fazem parte: a associa-
ção entre as artes, essa grande herança do trabalho modernista; mas também,
mais antropologicamente, e ultrapassando o mito do génio isolado, o con-
fronto entre adultos e crianças (no início do percurso de Pavlovsky, como
aliás no de Bob Wilson, que no entanto pertence a uma família bem diferen-
te), ou entre adultos e idosos (como fez Pina Bausch ao remontar, em 2002,
o espectáculo Kontakthof com maiores de 65 anos); a associação de actores
consagrados com actores do teatro de rua ou de província ou universitários,
ou mesmo a vivência comum de actores de diferentes continentes e culturas,
como em Pina Bausch ou Peter Brook; a incorporação de experiências vivi-
das nos espaços de ensaio e representação ou durante as tournées de Andrés
Pérez ou, nas últimas décadas, a vontade de Pina Bausch passar em cada ano
três semanas com toda a companhia numa cidade, onde as improvisações
ganham estímulos locais; a consciência de que a vida tem sentido mas tam-
bém tem sem sentido, o que fazia Pavlovsky, nos fóruns de Cádiz, insistir na
importância do humor, elemento fundamental destes vários angustiados cria-
dores – veja-se também como Pina Bausch comenta os seus bailarinos: “têm
todos um desejo sincero de procurar ser tal como são. E sentido de humor.”

431
Mais ainda do que o humor, há frequentemente em Bausch a ideia da
festa, da incorporação de elementos populares (um velho ilusionista, um
antigo malabarista, pares de uma escola de danças de salão, projecções em
vídeo caseiro de cenas quotidianas ou de músicos tradicionais). É regressar
do ballet, como produção estética, ao “baile” (como no subtítulo dessa
experiência de Kontakthof com os idosos, “Uma festa com a cidade de
Wuppertal”), que vai ao encontro daquele “carácter festivo do teatro” que,
como vimos, já em 1954 Gadamer pressentia que o teatro queria retomar.
Também em Pavlovsky há elementos do teatro popular e do guiñol, que o
fizeram ser comparado a Dario Fo. Tal como em Andrés Perez: “todos aju-
dando a encher balões e a pendurar serpentinas. Com essa energia
esperávamos ansiosamente o público. Como quando se organizam essas
festas surpresa e que, ao chegar o aniversariante, todos juntos gritam:
Surpresa!!! Assim éramos nós, todo o grupo pronto para surpreender o
público” (Rovira, 2002:110).
Há assim, repare-se, nessa festa ou, para usarmos a expressão pavlovskiana,
nesse “teatro do gozo”, uma diferença fundamental em relação às tendências
modernas e pós-modernas do puro jogo, ou mesmo da estética como puro

432
Actores e encenadores

prazer desinteressado. Pelo contrário, há a vontade de contrariar esse


desinteresse, recuperando o projecto que as vanguardas tiveram antes do
seu fechamento, que era a vontade de desenvolver, conscientemente, sem
inocência, “a identificação do que os homens são e querem vir a ser”,
assumindo que “a sua experiência criativa pode contribuir para reduzir ou
ampliar as linhas de desenvolvimento da vida humana”; “o amor pela
experimentação como linha de abertura estética de um mundo nem concluso
nem fechado: aberto à tentativa do possível, do que pode vir a ser” ( Jiménez
155-156). Também “Grotowski sublinhou muitas vezes que o mais importante
para ele é procurar respostas à questão: como se deve viver?” (Lechika,
apud Mitter 78). E Peter Brook (apud ibid. 78) diz: “o teatro é a procura de
uma expressão que está directamente relacionada com a qualidade da vida.”
Da vida como lugar habitável, com luz e sombra.
Como nenhum destes criadores citados é suspeito de descurar a elabo-
ração de uma linguagem própria, eles provam que é possível combiná-la
com o interesse pela vida extra-artística, que tantas vezes as vanguardas
dos séculos XIX e XX iam considerando desinteressante ou até degradante,
e mesmo reencontrar pelo trabalho da arte o interesse pelo mundo.
Jo Ann Endicott (62,65) conta como, vinda de uma linguagem do ballet,
baseado na verticalidade ascencional, estranhou os movimentos de Pina
Bausch, que todos puxavam “para baixo, down, down, e não up”, como na
dança clássica.” Pina pedia: “Breathe. Respirar. Mostra quem tu és.” O que
significa esse “mostrar quem tu és”? Será que essa introspecção não con-
tradiz a ideia de uma “arte impessoal” dos modernistas de todas as artes,
incluindo o teatro, onde há muitas décadas se tornou um lugar comum a
recusa de qualquer psicologia? Contradiz, porque essa recusa da psicologia
é uma solução simplista e a questão exige uma resposta complexa, que
procuraremos dar com a argumentação dos criadores aqui em análise.
Contrariar a desumanização da arte significa regressar ao humano, de que
a psicologia é uma parte: que lugar lhe daremos?
Poderíamos aliás discutir este problema em relação a todas as artes,
incluindo a lírica, porque, como disse lapidarmente Fernando Pessoa, “tem
a arte, para nascer, que ser de um indivíduo; para não morrer, que ser

433
D rama e C omunicação

estranha a ele”. É, de novo, o problema de chegar a ser linguagem, o que


distingue uma carta de amor de um poema de amor. Mas o teatro é uma
arte que se presta esplendidamente a discutir esta questão da subjectivida-
de na sua relação com a objectivação, como amplamente vimos desde o
capítulo 6. Poderão contrapor que, desde o início do século XX , outros
autores, também eles hoje clássicos, imaginaram um teatro assente num
projecto visual, que excluiria o actor ou toda a sua subjectividade. Poderíamos
discutir se não se trata, mesmo aí, da subjectividade do encenador ou do
cenógrafo: mas, de facto, creio que surgiu então uma outra família de cria-
dores, que se perpetuou, entre grandes roturas e pequenas rotinas, entre
grandes imagens e meros efeitos, até Bob Wilson. Como disse Pérez (apud
Caballero 122), “há um teatro de imagens e há um teatro de emoções, de
personagens.” Não vamos voltar ao primeiro, que já tratámos abundante-
mente nos capítulos 7 e 9, apesar de me interessar muito mais o segundo.
São opções. Por exemplo, Guy Scarpetta (174-185) ataca aquilo a que cha-
ma o histerismo de Pina Bausch porque prefere a abstracção geométrica da
dança modernista americana e acha que só o abandono de toda a psicologia
permite “o ataque directo ao sistema nervoso”. Ora, no trabalho de Pina temos
um certo regresso à psicologização, embora sem ser nos termos do velho
naturalismo; é um regresso à ideia do corpo como signo, da qual a modern
dance se afastara e que agora regressa como signo não simbólico.
Bausch costuma dizer que os seus espectáculos nascem, não do princípio
para o fim, mas do interior para o exterior. Também Pérez 3 pedia aos seus
actores: “Não ser voluntarioso. Não ‘fazer’, não ‘fabricar’, não ‘histrionizar’.”
“Não busques a significação desde o exterior. Busca dentro de ti, olha a
partir de dentro, da emoção”; “pede ao teu inconsciente. Envia a mensagem.
Um dia, processado, este desejo far-se-á carne, terá trabalhado dentro de
ti, modificando-te.”

3 Como vou passar a discutir este tema dando um espaço de coerência a cada um dos
criadores, não citarei cada frase de ou sobre Pérez; todas elas podem ser encontradas no
referido nº 112 da revista Apuntes, sobretudo nos artigos da secção “Hacia la definición de un
método”, pp. 98-123. O mesmo para Bartís, cujas citações foram retiradas do diálogo com
Slimobich e Garrofe.

434
“Trata-se, dizia Pérez, de desnudar-se, porque a personagem vem e o
actor vai ao seu encontro.” Mas, nos seus ensaios, antes de subir ao pal-
co, “os actores vão primeiro apagar-se, desconhecer-se, não se devem
reconhecer”. Ou seja, para desnudar-se não basta tirar coisas, é necessá-
rio entrar num processo teatral que evite os reconhecimentos habituais,
que leve mais longe, por outros caminhos. E a esse processo de maquilhar
e vestir, o espectador poderá mesmo assistir, à entrada para o espectácu-
lo Negra Ester como nos espectáculos do Théâtre du Soleil, onde Pérez
passou anos tão marcantes: “foi no Théâtre du Soleil e com Ariane
[Mnouchkine], como pessoa, que eu encontrei o rigor, a minúcia e o de-
sejo de unir o Teatro com o ser humano.” O que fica claro, na mestra e
no discípulo, é que essa vontade do humano não dispensa uma linguagem
– nem obriga a uma linguagem realista. Quem disse que as emoções são
realistas? Quem disse que a expressão delas é necessariamente realista?
“Deves buscar outra escala nas emoções, para além do realismo.” “O pro-
blema é como traduzir a verdade por caminhos não realistas.” Em França,
Pérez teve a oportunidade de provar a linguagem do Kabuki, do Nô, do
kathakali, da commedia dell’arte e da máscara, que viria depois a usar no
Chile – e máscara, como sabemos, etimologicamente significa persona.

435
D rama e C omunicação

Um outro aspecto decisivo para Pérez, e que complexifica a questão da


subjectividade, era a relação com o outro: “Este é um trabalho em direcção
ao outro. Transformar-me a mim para tratar de entender o outro.” Mais uma
vez, no teatro, mais do que nas outras artes, o criador é obrigado a sair da
sua subjectividade: primeiro pela relação com a equipa de co-criadores,
depois pela relação com o público. Como lembra Pavlovsky, só a dinâmica
do grupo pode transcender os narcisismos individuais. Ora no teatro, lugar
de narcisismos mas também de trabalho colectivo, cria-se essa dinâmica,
em que a subjectividade de cada actor tem de confrontar-se com a dos
outros actores (quando os há) e com a dos outros criadores – a começar
pelo encenador. Diz Rodolfo Pulgar (2002:98) sobre Andrés Pérez: “Ele
conseguia meter-se dentro do actor, como co-piloto cúmplice, e acompanhá-
lo nesta viagem lúdica e desconhecida (pois nunca se sabe até onde
chegaremos). Não sei como ele se metia nos meus recantos mais íntimos,
descobrindo coisas que nem eu próprio sabia que existiam nem que as
tinha, remexendo nas minhas sensações, nas minhas ideias, nos meus mo-
vimentos. Ele estava de fora, claro, e podia ver o que eu não podia.”
As memórias de Jo Ann Endicott (24,18) não escondem: “eu não poderia
ter feito isso sem a Pina, nem ela sem mim.” Mas, “no início, em 1973, ti-
vemos alguns problemas entre nós. Às vezes explodi: ‘Tu és uma vampira,
odeio-te; não te importas que alguém esteja ali a rebentar desde que o teu
trabalho avance!’”. Como reconhece Ricardo Bartís, “são muito duras as
relações entre a actuação e a encenação, pelo que está em jogo, a presen-
ça de alguém que julga. Penso que no campo da psicanálise também, a
sensação de que o outro se introduz dentro de ti e então produz conexões
ou te induz. Creio que o encenador é, nesse sentido, um indutor da criação
de possibilidades. (…) O reconhecimento da existência do outro e da pos-
sibilidade de não trabalhar sobre a diferença mas sim sobre o encontro,
isso está muito vinculado ao teatral, à ideia do amor.
É necessário entender que o regresso à humanização da arte, que implica
o regresso à psicologia, não pode ser simples nem inocente. Aprofundemos
o tema, por difícil que seja (já vimos como a noção de sujeito é hoje muito
mais crítica e complexa do que em Freud, onde já não era propriamente
simples). Como vimos no capítulo 4, a ideia, ou o mito, da pessoa, já não

436
Actores e encenadores

como máscara mas sim como um “foro interno”, “íntimo”, que não existe
em muitas culturas, foi desenvolvida na nossa, dramatizada pelo cristianismo
e não tem parado de crescer e de ameaçar a esfera pública. Associou-se,
com a modernidade, à ideia de uma razão cartesiana, auto-suficiente, que
implicava um eu estável, uno, homogéneo e negava os sentidos, o sonho,
o inconsciente, a ilusão, o corpo (cf. Jiménez 179-204). Mas se já no século
XVIII o próprio Diderot discutia tão amplamente a questão da sinceridade,
como podemos nós, no século XXI, ignorar todos os trabalhos que, sobretudo
no último século, fizeram a crítica da noção de sujeito? Não há razão nem
espaço para os retomar aqui (cf. cap. 4 e Monteiro, 1996:29-39): digamos
apenas que os contributos da psicanálise, do estruturalismo, da filosofia da
linguagem, da própria hermenêutica pósheideggeriana, nos mostraram como
o sujeito é opaco e metamórfico, o outro é opaco e múltiplo, a própria
linguagem não é um instrumento dócil. (Razão talvez para não seguirmos
Wallace Stevens quando aconselhava o artista a tornar o visível mais difícil
de ver! Se o sujeito e a linguagem já são tão opacos, a melhor arte não será
aquela que se distingue pelo milagre de instaurar uma clareza?)
O próprio psicodrama, terapia que recorre à ideia original de theatron
como dar a ver, veio a recusar essa ideia de sujeito. Como se pode ver em
Pavlovsky, também médico psicoterapeuta, que, depois de criar o Movimiento
Psicodramático en Latinoamérica, e depois de, num trabalho de “antropo-
fagia”, ter “devorado e desovado” a autores que citei como Bausch, Brook,
Grotovski, Stanislavski, e depois de ter realizado trabalho fora de Buenos
Aires (Madrid, Londres, Paris e Gotemburgo), desenvolveu as ideias da
Multiplicação Dramática e Multiplicação Ressonante, tendentes “a aprofun-
dar por desdobramento (quer dizer, por extensão) a abertura dessa história
a novas histórias possíveis, por e através do grupo” (Pavlovsky e Kessekman).
“Instrumentamos a exploração de um inconsciente a ser desdobrado, a
produzir, em vez de um inconsciente produzido e por descobrir vertical-
mente em cada sujeito. (Kesselman e Pavlovsky, s.d.).

Alguém dramatiza uma cena com o seu par. Tradicionalmente estamos


habituados a pensar em termos de sujeitos. “Entre” um casal podemos sentir
que estão os filhos, os pais, a família, etc. Mas nós pensamos hoje em termos

437
D rama e C omunicação

de agenciamentos, e não apenas em termos de papéis familiares. Um casal


cria no seu “entre” uma máquina de tédio e aborrecimento. O aborrecimento
é um estado. Estado produzido pela máquina que envolve os membros do
casal. Não porque cada membro do casal seja aborrecido, mas porque entre
os dois produziram uma máquina infernal de tédio. O “entre” dramatizado é
o aborrecimento como máquina produzida pelo casal (…): não corresponde
a nenhum sujeito, mas a fractais, pequenos ritornelos de intensidades
bloqueadas. (…) Não há sujeitos, pessoas ou personagens que se deixem
desenvolver. Não há mais do que necessidades, individuações precisas e sem
sujeito que se definem por afectos ou forças. (…) As afecções são o que é
independente do sujeito. Aqui se joga a capacidade de afectar e ser afectado.
Não do que “eu” produzo mas do que eu produzo com o outro que me rouba,
e roubando eu também. (Pavlovsky e Kesselman)

Tudo isto Pavlovsky teoriza em relação ao seu trabalho como terapeuta,


que afirma ter beneficiado mais da sua experiência teatral do que o opos-
to. No seu trabalho de teatro, onde além de dramaturgo quase sempre
intervém também como actor ou encenador, há muitos elementos autobio-
gráficos: “São momentos, intensidades, que têm que ver com a minha vida,
com as minhas experiências, com a minha relação de casal”, admite (em
entrevista a Olga Cosentino). “Procuro ter uma ressonância existencial, jogo
com os meus próprios fantasmas”, respondeu-me em Cádiz quando lhe
perguntei pela dimensão ficcional. Por vezes expressionista, por vezes hi-
perealista, ou de um “realismo exasperante”, numa mesma peça multiplica
perspectivas, incluindo (como o dramaturgo Koltès) as dos malfeitores.
O resultado não é nem o teatro psicológico, nem o psicanalítico à la Ionesco,
nem tão-pouco o distanciamento de Brecht. É, digamos, uma rehumanização
que não esquece a lição de Beckett – nem a teoria de Deleuze: “este está
ali imanentemente rizomático, altamente auto-referencializado e suficiente
através do qual pode recodificar a língua teatral” (Toro 59-84).
Igualmente numa perspectiva muito influenciada por Deleuze, também
Bartís procede a uma discussão da “grande influência no teatro, em meu
entender problemática, com aspectos muito positivos e com aspectos mui-
to negativos, do que foram a aparição da psicanálise, o pensamento

438
Actores e encenadores

freudiano e o seu desenvolvimento dentro do que seriam as formas ou as


linguagens teatrais.” Na proposta de Bartís, “produz-se um campo de acu-
mulação de energia e de procedimento, que tem a ver exclusivamente com
a actuação; ainda por cima, narro um relato. Então, é quase um elemento
técnico produzir uma cena sobre a cena, porque se não for assim, a cena
condena-me a representá-la. Devo desenvolver uma opinião, por cima da
cena.” Isto não acontece em todo o teatro, evidentemente, diz Bartís.

Há um teatro dominante, que é o teatro representativo, um teatro psico-


lógico que estrutura um relato que se liga sequencialmente em termos de
sentido, quero dizer de causas, de elementos causais, etc. Com personagens,
ou seja, com limites precisos, tanto físicos como emocionais, em relação a
um modelo do real, do que é dado como sendo o real. E as personagens
contam uma história, este é o relato. O relato preexiste ao corpo do actor.
Supõe-se que esse relato lhe preexiste, então o trabalho do actor consiste
em reproduzir, representar ou trazer ao espaço esse elemento que lhe é
prévio. Um bom actor seria aquele que mais se aproximasse a essa repre-
sentação desse sentido prévio. Esse é o teatro dominante. Tem causas
ideológicas, e tem necessidades expressivas, porque quer confirmar níveis
de realidade. Há outro teatro, que advém mais do teatro do actor. (…) Esse
pensamento teatral que vem da actuação tem mais que ver com o instante,
com não haver nada prévio à existência do corpo do actor, que funda um
instante privilegiado e único. Na realidade vamos ao teatro, não tanto para
que nos contem uma história, mas para vermos actuar. (Ricardo Bartís)

Tal como na máquina de agenciamentos de Pavlovsky, assim Bartís pro-


põe a autonomia teatral.

A nossa preocupação é criar uma máquina autónoma de produção de


teatralidade, onde os limites da actuação não estejam dados por nenhum
papel. (…) Tem tanto peso o desenvolvimento da poética desse actor, como
a ideia temática que deve desenvolver, neste caso o texto. (…) Uma verdade
poética, e que será a tensão da personalidade desse actor nesse instante. (…)
A actuação produz distúrbios, erotiza os corpos. (…) Situações de encontros

439
D rama e C omunicação

onde há algo, diz-se o porvir, algo que supera o encadeamento tradicional,


onde é aceite a possibilidade de uma lógica que advém dessa máquina de
produzir sentidos. Como nos sonhos, onde começa uma autonomia própria
inerente a essa mecânica, que se refere ao real, mas tem uma dinâmica
própria, e então dá-se-lhe uma legalidade. O que sonha está dentro disso.
(…)
Esse teatro é um teatro muito mais frágil porque não tem nenhum modelo
sobre o qual representar, não representa sobre a estrutura tradicional do
relato, (…) não tem uma legalidade estilística, antes funda um território
poético na presunção de que vai criar um instante, um instante privilegiado
pelo qual vai produzir um acontecimento. Tema que Badiou e o pensamento
francês vão buscar ao teatro. (Ricardo Bartís)

Muitos outros aspectos haverá que estudar neste tipo de procura de


novos caminhos. É um processo cheio de contradições: recorre ao texto
mas também à improvisação (“trabalhamos noutra direcção (…), o texto é
um disparador de associações”, diz Bartís, “qualquer reflexão implicava
fazê-lo a partir da prática, improvisando, fazendo. O texto não se devia
prejulgar. Havia que procurar senti-lo, descobri-lo, sonhá-lo”, diz Pérez).
É um processo que exige muito tempo (muitos meses com Bausch, mais
ainda com Bartís), ainda que possa explorar uma rapidez antiteatral, como
em Pavlovsky e Pérez 4. Por agora, o essencial é sublinhar que estes excep-
cionais criadores nos provam que a arte consegue ser muito autobiográfica
sem deixar de ser arte; muito pessoal e muito autónoma; explorar os limi-
tes sem deixar de ser dar em espectáculo; explorar um vocabulário e uma
escrita para pensar o mundo. São processos arriscados, desgastantes na
relação consigo próprio e com a equipa de trabalho: processos que os
maiores muitas vezes abandonam justamente porque não querem rotinizar
aquilo que antes foi fogo e risco.

4 “Devemos lutar contra a lentidão. É um dos demónios do teatro. A rapidez ajuda na


improvisação, aquece a alma e a imaginação” (Pérez, apud Caballero 123). “A forma que tenho
de actuar procura colocar as coisas num lugar muito antiteatral, rápido” (Pavlovsky e Kessekman).

440
Actores e encenadores

Não entendo as possibilidades de associações criativas baseadas noutra


ordem que não seja a de um certo respeito e amor pelo outro. É uma grande
limitação porque chega um momento em que se começa a reduzir muito o
círculo das pessoas com as quais se trabalha. E o desgaste que isso significa,
nos vínculos, por causa do tempo e das experiências e das intensidades.
A actuação é uma experiência muito intensa. (…) Suponhamos o toureio: há
toureiros que toureiam e há outros que representam o toureio e não há
qualquer risco. Quando se actua com sinceridade e com profundidade há um
enorme risco de não conseguir e então de deprimir-se, de estar triste por
não ter feito aquilo que se deve. E é sempre muito mais intensa a vivência
do fracasso do que a vivência de algum êxito. O sentimento é muito efémero.
O sentimento está contido no tempo que dura a actuação. Depois, já não
ocorre, o outro é uma situação social, de outra ordem. (…) O relato funciona
como um suporte de realidade, como um colchão sobre o qual enlouquecer.
Quando digo enlouquecer, é uma técnica depurada de controlo. Não é a
crença na exacerbação narcisista dos actores do método que se lastimam, as
pessoas choram intensamente e pensam na mãe morta, que são tudo
procedimentos muito vulgares. Como crer em Deus se Ele aparece? Não, não.
A nossa preocupação é estar, não é ser. Então a forma surge como um tema
muito importante. (Ricardo Bartís)

“Então a forma aparece”: esse “então” faz toda a diferença, como Nietzsche
procurou explicar em O Nascimento da Tragédia – só depois da vertigem
dionisíaca a forma aparece com profundidade. Por isso todos estes criadores
que referi se aventuram no desconhecido. Pina Bausch recomendou-me o
mesmo que ao seu assistente de encenação: que nunca lhe dissesse que algo
estava “bonito”, porque então já não o poderia usar, já não seria uma aventura
no inominável: “tudo o que eu quero fazer é ir onde ainda não estive”, disse
a coreógrafa em Lisboa (3-4-2007). Endicott (73) testemunha, sobre o
espectáculo Barba Azul: “até ao segundo mesmo em que tinha que falar, eu
não sabia o que me ia sair da boca. Tinha de ser espontâneo. E de cada vez
era diferente, em função do estado no qual eu me encontrava”. É por esse
acentuar da efemeridade do teatro que durante trinta anos Pina Bausch fez
questão em estar presente todas as noites, irrepetíveis e misteriosas.

441
D rama e C omunicação

O mesmo dizem os actores que trabalharam com Andrés Pérez: “uma


pessoa surpreendia-se com o que conseguia”, “estava sempre à espera de
uma indicação totalmente imprevisível ou de uma decisão inesperada. Não
quero dizer com isto que o Andrés fosse impulsivo, diria antes misterioso”.
O próprio Pérez: “Isto podia ocorrer porque, no método proposto, nada
estava decidido de antemão; tudo era procura e risco, e jogo também.”
E Pavlovsky: “ainda não sei o que fizemos. A obra foi surgindo de diversas
maneiras.”
Não é por acaso que estes criadores convergem: o quebra‑cabeças e o
quebra‑emoções com que trabalham correspondem à experiência contem-
porânea de lidar com um futuro incerto, as suas ameaças, as suas angústias,
as suas alegrias também. É uma exigência do processo teatral e é também
uma exigência existencial da experiência quotidiana de que eles não que-
rem desligar-se. Em vez de, como tantos outros, procurarem lugares‑comuns
nos abismos, optam pela difícil via de, como queria Karl Kraus (1874-1936),
procurar abismos nos lugares comuns.

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453
(Página deixada propositadamente em branco)
Í n d i c e d e i mag e n s
(Página deixada propositadamente em branco)
Í ndice de imagens

Capa e contracapa - Croquis de P. 18 - Retrato em estúdio, P. 27 - Luís de Camões,


O. Aslan a partir dos anos 80, Lisboa, por Andreas Paulus,
diagramas do mestre de Nacional Fotos. gravura publicada pela
ballet Carlo Blasis, 1857. primeira vez em
Discursos Varios Politicos,
de Manuel Severim de
Faria, 1624.

P. 18 - Casamento na Lousã, P. 18 - Fotografia na noite do P. 27 - Retrato do


anos 60, baile de finalistas. jovem Nicomedes,
Foto Império. por Eugenio Courret,
Lima, 1880.

P. 18 - Festa de empresa, P. 27 - Federigo da Montefeltro, P. 27 - A menina


anos 80, Lisboa, duque de Urbino, com o Mary Thondyke
Nacional Fotos. filho, pintados por acompanhada pelas
Berruguete, 1480-81, suas bonecas,
óleo sobre painel, por Eugenio Courret,
134 x 77 cm, Lima, 1902.
Galleria Nazionale delle
Marche, Urbino.

457
D rama e C omunicação

P. 46 - Louis XIV como Apolo, P. 81 - Platão (à esquerda) e P. 141 - Luís Miguel Cintra,
por Henri Gissey, 1653, Aristóteles (à direita), Márcia Breia e José
167 x 260 mm, pormenor de quadro Manuel Mendes em
Biblioteca Nacional, A Escola de Atenas, Ricardo III, de Shakespeare,
Paris. de Raffaello Sanzio, encenação de Luís
1509. Miguel Cintra, no Teatro
da Cornucópia, 1985.
Fotografia de Cristina
Reis e Paulo Cintra.

P. 49 - Adolf Hitler P. 131 - Jorge Molder, P. 145 - Nicolau Pais e, no vídeo,


discursa em Berlim fotografia da série Luísa Cruz e João Reis,
na campanha “Para continuar”, 1997. em Um Hamlet a Mais,
presidencial, 1932. Fotografia em sais de encenação de Ricardo
prata, 102 x 102 cm. Pais no Teatro Nacional
S. João, 2003.
Fotografia de João Tuna.

P. 60 - O Presidente Bill Clinton P. 137 - Buster Keaton P. 145 - João Pedro Vaz em
toca num saxofone que como Hamlet Peer Gynt, de Ibsen,
lhe foi oferecido pelo no filme Day Dreams, encenação de João
Presidente Boris Yeltsin 1922. Lourenço, no Teatro
em 1994. Aberto, 2002.
Fotografia de Bob Fotografia de João
McNeely. Lourenço.

458
Í ndice de imagens

P. 158 - A Chegada dos P. 184 - Busto de Sófocles. P. 225 - Orfeu e Eurídice:


Embaixadores Ingleses, A Descida aos Infernos,
por Vittore Carpaccio, desenho para cenário
1498, Gallerie Dell’ por Adolphe Appia,
Accademia, Venice, 1926
589 x 275 cm.

P. 169 - Paula Só, António P. 208 - Autoretrato P. 227 - Desenho de cenário para
Terrinha, Horácio de Strindberg, Hamlet, por
Manuel em Montedemo, Paris, 1886. Gordon Craig.
adaptação da novela de
Hélia Correia,
encenação de João
Brites, Teatro O Bando,
1987. Fotografia de
Mariano Piçarra.

P. 182 - Isabel Ruth em Artaud P. 214 - Orfeu encanta as bestas, P. 233 - Einstein on the Beach,
Estúdio, dramaturgia e gravura de Regius ópera de Robert Wilson
encenação de Paulo para as Metamorfoses de e Philip Glass,
Filipe, no Centro de Ovídio. coreografia de Andrew
Arte Moderna da De Groat, estreada em
Fundação Calouste 1976. Fotografia de
Gulbenkian, 1997. Marc Enguerand
Fotografia de Susana Bernard. © CDDS
Paiva. Enguerand Bernard.

459
D rama e C omunicação

P. 245 - Bertold Brecht, P. 309 - Duas figuras do P. 339 - Dioniso segura uma taça
photomatons de 1940 Ballet triádico, de vinho vazia e um
de Oskar Schlemmer, ramo de videira. Detalhe
Landestheater, Stuttgart, de pintura numa ânfora
1922. (técnica de pintura
vermelha sobre
cerâmica), de Cleofrades.
Entre 500- 490 a.C..
Museu do Louvre, Paris.

P. 315 - “A secretária”, obra


de Tadeusz Kantor
(também artista
plástico), semelhante
P. 262 - Eunice Muñoz em Mãe
às secretárias e
Coragem e os seus Filhos,
manequins usados
de Bertold Brecht,
no espectáculo
encenação de João
La Classe Morte,
Lourenço, no Teatro P. 351 - Jack Nicholson,
estreado em 1975.
Nacional D. Maria II, Los Angeles, 1986.
© 2010. Fotografia
1986. Fotografia de Fotografia de Herb
The Jewish Museum/
Garizo do Carmo Ritts. © Herb Ritts
Art Resource
/Scala, Florence. Foundation.

P. 294 - Carmelo Bene P. 339 - Estátua romana P. 375 - Montgomery Clift em


na curta-metragem conhecida como Apolo 1956, na rodagem do
Hermitage, por si escrita Belvedere, cópia de um filme Raintree County.
e realizada, 1968. bronze grego de cerca de Fotografia de Bob
330-320 a. C., 2,24 m Willoughby. © 1978
de altura, museus do Bob Willoughby/
Vaticano. mptvimages.com.

460
Í ndice de imagens

P. 382 - Páginas 29-30 do P. 397 - A Conferência dos P. 432 - Kontakthof,


caderno de Samuel Pássaros, encenação de de Pina Bausch, na
Beckett Peter Brook, 1979. versão com maiores de
para a encenação da peça As canas designam a 65 anos, estreada em
À Espera de Godot no entrada no palácio do 2000.
Schiller Theater, Berlim, Simorg. Fotografia de Maarten
Março de 1975. Vanden Abeele.

P. 385 - Antonin Artaud P. 397 - Dogville, P. 435 - Andrés Pérez


na personagem do filme realizado por a maquilhar-se para uma
monge Jean Massieu Lars von Trier, 2003. apresentação de Ricardo
no filme de Carl Dreyer II, de Shakespeare,
A paixão de Joana de Arc, no Théãtre du Soleil,
1928. com encenação de
Ariane Mnouchkine,
1984.

P. 393 - Samuel Beckett. P. 431 - Dois cigarros na


Fotografia de Dmitri escuridão,
Kasterine. © Dmitri de Pina Bausch, 1984.
Kasterine. Fotografia de Gert
Weigelt.

461
(Página deixada propositadamente em branco)
H istória da U nificação E uropeia
(Página deixada propositadamente em branco)
O L H A R E S

IMPRENS A DA UNIVERSIDA D E D E CO I M B R A
COIMBRA UNIVERSIT Y P R E SS

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